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1 Inicia-se o ano litúrgico, e o Intróito da Missa propõe-nos uma consideração intimamente

relacionada com o princípio da nossa vida cristã: a vocação que recebemos. Vias
tuas, Domine, demonstra mihi, et semitas tuas edoce me : mostra-me, Senhor, os teus caminhos e
indica-me as tuas veredas. Pedimos ao Senhor que nos guie, que nos deixe ver seus passos, para
que possamos caminhar para a plenitude dos seus mandamentos, que é a caridade.

Acredito que vós e eu, ao pensarmos nas circunstâncias que acompanharam a nossa decisão de nos
esforçarmos por viver integramente a fé, daremos muitas graças ao Senhor e teremos a convicção
sincera - sem falsas humildades - de que não houve nisso mérito algum da nossa parte. Em geral,
aprendemos a invocar Deus desde a infância, dos lábios de pais cristãos; mais adiante, professores,
companheiros e conhecidos nos ajudaram de mil maneiras a não perder Jesus Cristo de vista.

Um dia - não quero generalizar; abre teu coração ao Senhor e conta-lhe a tua história -, talvez um
amigo, um simples cristão igual a ti, te fez descobrir um panorama profundo e novo, e, ao mesmo
tempo, antigo como o Evangelho. Sugeriu-te a possibilidade de te empenhares seriamente em
seguir Cristo, em ser apóstolo de apóstolos. Talvez tenhas perdido então a tranqüilidade e não a
tenhas recuperado, convertida em paz, enquanto livremente, porque te apeteceu - que é a razão
mais sobrenatural -, não respondeste sim a Deus. E veio a alegria, forte, constante, que só
desaparece quando te afastas dEle.

Não me agrada falar de escolhidos nem de privilegiados. Mas é Cristo quem fala, quem escolhe. É
a linguagem da Escritura: Elegit nos in ipso ante mundi constitutionem - diz São Paulo - ut essemus
sancti. Escolheu-nos antes da criação do mundo, para que sejamos santos. Eu sei que isto não te
enche de orgulho, nem te faz sentir-te superior aos outros homens. Essa escolha, raiz da chamada,
deve ser a base da tua humildade. Levanta-se por acaso um monumento aos pincéis do grande
pintor? Serviram para plasmar obras primas, mas o mérito é do artista. Nós, cristãos, somos apenas
instrumentos do Criador do mundo, do Redentor de todos os homens.

2 Anima-me considerar um precedente narrado passo a passo nas páginas do Evangelho: a vocação
dos primeiros Doze. Vamos meditá-la devagar, pedindo a essas santas testemunhas do Senhor que
nos ensinem a seguir Cristo como elas o fizeram.

Aqueles primeiros apóstolos - que me inspiram grande devoção e carinho - eram bem pouca coisa,
segundo os critérios humanos. Quanto à posição social, com exceção de Mateus - que certamente
ganhava bem a vida e que deixou tudo quando Jesus lho pediu -, eram pescadores: viviam do dia a
dia, labutando até de noite para poderem conseguir o seu sustento.

Mas a posição social é o que menos importa. Não eram cultos, nem sequer muito inteligentes, pelo
menos no que se refere às realidades sobrenaturais. Até os exemplos e as comparações mais
simples eram para eles incompreensíveis, e recorriam ao Mestre: Domine, edissere nobis
parabolam , Senhor, explica-nos a parábola. Quando Jesus, servindo-se de uma imagem, alude ao
fermento dos fariseus, imaginam que os está recriminando por não terem comprado pão.

Pobres, ignorantes. E nem sequer simples, abertos. Dentro das suas limitações, eram ambiciosos.
Discutem muitas vezes sobre qual deles será o maior quando, segundo a sua mentalidade, Cristo
instaurar na terra o reino definitivo de Israel. Discutem e exaltam-se durante esse momento sublime
em que Jesus está prestes a imolar-se pela humanidade: na intimidade do Cenáculo.

Fé, pouca. O próprio Jesus Cristo o diz. Viram-no ressuscitar mortos, curar toda a espécie de
doenças, multiplicar o pão e os peixes, acalmar tempestades, expulsar demônios. E é São Pedro,
escolhido como cabeça, o único que sabe responder prontamente: Tu és o Cristo, o Filho de Deus
vivo. Mas é uma fé que ele interpreta à sua maneira, porque se atreve a enfrentar Cristo Jesus, para
que não se entregue em redenção pelos homens. E Jesus tem que lhe responder: Retira-te de
mim, Satanás, que me serves de escândalo, porque não tens a sabedoria das coisas de Deus, mas
das coisas dos homens. Pedro raciocinava humanamente, comenta São João Crisóstomo, e
concluía que tudo aquilo - a Paixão e a Morte - era indigno de Cristo, reprovável. Por isso Jesus
repreende-o e diz-lhe: não, sofrer não é coisa indigna de mim; tu pensas assim porque raciocinas
com idéias carnais, humanas.

Mas será que aqueles homens de pouca fé sobressaíam talvez pelo seu amor a Cristo? Não há
dúvida de que o amavam, pelo menos de palavra. Em certas ocasiões, deixam-se arrebatar pelo
entusiasmo: Vamos nós também e morramos com Ele. Mas, na hora da verdade, todos fogem,
exceto João, que verdadeiramente amava com obras. Só este adolescente, o mais jovem dos
Apóstolos, permanece junto da Cruz. Os outros não sentiam esse amor tão forte quanto a morte.

Estes eram os Discípulos escolhidos pelo Senhor; assim os escolhe Cristo; assim se comportam
antes de que, cheios do Espírito Santo, se convertam em colunas da Igreja. São homens comuns,
com defeitos, com fraquezas, com a palavra mais fácil que as obras. E, entretanto, Jesus chama-os
para fazer deles pescadores de homens, co-redentores, administradores da graça de Deus.

3 Conosco aconteceu algo de semelhante. Sem grande dificuldade, poderíamos encontrar na nossa
família, entre os nossos amigos e companheiros - para não me referir ao imenso panorama do
mundo -, tantas outras pessoas mais dignas que nós de receberem a chamada de Cristo. Mais
simples, mais sábias, mais influentes, mais importantes, mais agradecidas, mais generosas.

Eu, ao pensar nestes pontos, sinto-me envergonhado. Mas percebo também que a nossa lógica
humana não serve para explicar as realidades da graça. Deus costuma procurar instrumentos fracos,
para que se perceba claramente que a obra é dEle. São Paulo evoca com estremecimento a sua
vocação: E por último, depois de todos, foi também visto por mim, como por um aborto. Porque eu
sou o mínimo dos Apóstolos, indigno de ser chamado Apóstolo porque persegui a Igreja de
Deus. Assim escreve Saulo de Tarso, homem de uma personalidade e um vigor que a história nada
mais fez do que agigantar.

Fomos chamados sem mérito algum da nossa parte, dizia: porque na base da vocação encontra-se o
conhecimento da nossa miséria, a consciência de que as luzes que iluminam a alma - a fé -, o amor
com que amamos - a caridade - e o desejo que nos sustém - a esperança -, são dons gratuitos de
Deus. Por isso, não crescer em humildade significa perder de vista o propósito da eleição divina: ut
essemus sancti, a santidade pessoal.

E agora, partindo dessa humildade, podemos compreender toda a maravilha da chamada divina. A
mão de Cristo colheu-nos de um trigal: o semeador aperta em sua mão chagada o punhado de trigo.
O sangue de Cristo banha a semente, empapa-a. Depois, o Senhor lança ao ar esse trigo, para que,
morrendo, seja vida e, afundando-se na terra, seja capaz de multiplicar-se em espigas de ouro.

4 A Epístola da Missa lembra-nos que temos que assumir esta responsabilidade de apóstolos com um
espírito novo, cheios de animo, despertos. Já é hora de despertarmos do sono, pois estamos mais
perto da nossa salvação do que quando recebemos a fé. A noite avança e o dia aproxima-
se. Deixemos, pois, as obras das trevas, e revistamo-nos das armas da luz.

Dir-me-eis que não é fácil, e não vos faltará razão. Os inimigos do homem, que são os inimigos da
sua santidade, tentam impedir essa vida nova, esse revestir-nos do espírito de Cristo. Não encontro
melhor enumeração dos obstáculos à fidelidade cristã do que a que estabelece São
João: concupiscentia carnis, concupiscentia oculorum et superbia vitae; tudo o que há no mundo é
concupiscência da carne, concupiscência dos olhos e soberba da vida.
5 A concupiscência da carne não é apenas o impulso desordenado dos sentidos em geral, nem o
apetite sexual, que deve ser ordenado e em si não é mau, porque é uma nobre realidade humana
santificável. Por isso, nunca falo de impureza, mas de pureza, já que a todos se dirigem as palavras
de Cristo: Bem-aventurados os limpos de coração, porque verão a Deus. Por vocação divina, uns
terão que viver essa pureza no matrimônio; outros, renunciando aos amores humanos, para
corresponderem única e apaixonadamente ao amor de Deus. Mas nem uns nem outros escravos da
sensualidade, porém senhores do seu corpo e do seu coração, para poderem dá-los sacrificadamente
aos outros.

Ao tratar da virtude da pureza, costumo acrescentar o qualificativo de santa. A pureza cristã, a


santa pureza, não é o orgulho de nos sentirmos puros, não contaminados. É saber que temos os pés
de barro, ainda que a graça de Deus nos livre dia a dia das ciladas do inimigo. Considero uma
deformação do cristianismo a insistência com que certas pessoas escrevem ou pregam quase
exclusivamente sobre esta matéria, esquecendo outras virtudes que são capitais para o cristão e, em
geral, para a convivência entre os homens.

A santa pureza não é a única nem a principal virtude cristã: é, entretanto, indispensável para
perseverarmos no esforço diário da nossa santificação; e sem ela não é possível qualquer dedicação
ao apostolado. A pureza é conseqüência do amor com que entregamos ao Senhor a alma e o corpo,
as potências e os sentidos. Não é negação, é afirmação jubilosa.

Dizia que a concupiscência da carne não se reduz exclusivamente à desordem da sensualidade:


estende-se ao comodismo e à falta de vibração, que impelem a procurar o mais fácil, o mais
agradável, o caminho aparentemente mais curto, mesmo à custa de concessões no caminho da
fidelidade a Deus.

Comportar-se assim equivaleria a abandonar-se incondicionalmente ao império de uma dessas leis,


a do pecado, contra a qual nos previne São Paulo: Encontro, pois, esta lei em mim: quando quero
fazer o bem, o mal está junto de mim. Porque me deleito na lei de Deus segundo o homem
interior, mas vejo nos meus membros outra lei que se opõe à lei do meu espírito e me subjuga à lei
do pecado... Infelix ego homo!, infeliz de mim! Quem me livrará deste corpo de morte? Ouçamos o
que responde o próprio Apóstolo: a graça de Deus, por Jesus Cristo Nosso Senhor. Podemos e
devemos lutar contra a concupiscência da carne, porque, se formos humildes, ser-nos-á concedida
sempre a graça do Senhor.

6 O outro inimigo, escreve São João, é a concupiscência dos olhos, uma avareza de fundo que leva a
apreciar apenas o que se pode tocar: os olhos que ficam como que colados às coisas terrenas, mas
também os olhos que, por isso mesmo, não sabem descobrir as realidades sobrenaturais. Portanto,
podemos entender a expressão da Sagrada Escritura como uma referência à avareza dos bens
materiais e, além disso, a essa deformação que nos leva a observar o que nos rodeia - os outros, as
circunstâncias da nossa vida e do nosso tempo - com visão exclusivamente humana.

Os olhos da alma embotam-se; a razão julga-se auto-suficiente e capaz de entender todas as coisas
prescindindo de Deus. É uma tentação sutil, que se escuda na dignidade da inteligência; da
inteligência que nosso Pai-Deus outorgou ao homem para que o conheça e o ame livremente.
Arrastada por essa tentação, a inteligência humana considera-se o centro do universo, entusiasma-
se novamente com o sereis como deuses e, enchendo-se de amor por si mesma, vira as costas ao
amor de Deus.

Deste modo, a nossa existência pode entregar-se sem condições às mãos do terceiro inimigo,
a superbia vitae. Não se trata simplesmente de pensamentos efêmeros de vaidade ou de amor
próprio: é um endurecimento generalizado. Não nos enganemos, porque tocamos o pior dos males,
a raiz de todos os extravios. A luta contra a soberba deve ser constante, porque, como já se disse
graficamente, essa paixão morre um dia depois de a pessoa morrer. É a altivez do fariseu, a quem
Deus reluta em justificar por encontrar nele uma barreira de auto-suficiência. É a arrogância que
leva a desprezar os demais homens, a dominá-los, a maltratá-los: porque onde houver soberba, aí
haverá também ofensa e desonra.

7 Começa hoje o tempo do Advento e é bom que tenhamos considerado as insídias destes inimigos da
alma: a desordem da sensualidade e da fácil leviandade; o desatino da razão que se opõe ao Senhor;
a presunção altaneira, que esteriliza o amor a Deus e às criaturas. Todos estes estados de ânimo são
obstáculos certos, e seu poder perturbador é grande. Por isso a liturgia nos faz implorar a
misericórdia divina: A Ti, Senhor, elevo minha alma; em Ti espero; não seja eu confundido, nem se
riam de mim os meus adversários, rezamos no Intróito. E na antífona do Ofertório
repetiremos: Espero em Ti, não seja eu confundido!

Agora que se aproxima o tempo da salvação, é consolador ouvir dos lábios de São Paulo: Depois
que Deus Nosso Salvador manifestou sua benignidade e amor aos homens, livrou-nos não pelas
obras de justiça que tivéssemos feito, mas por sua misericórdia.

Se percorrermos as Santas Escrituras, descobriremos constantemente a presença da misericórdia de


Deus: enche a terra, estende-se a todos os seus filhos, super omnem carnem; rodeia-nos, antecede-
nos, multiplica-se para nos ajudar, e foi continuamente confirmada. Ao ocupar-se de nós como Pai
amoroso, Deus nos tem presentes em sua misericórdia: uma misericórdia suave, agradável como a
nuvem que se desfaz em tempo de seca.

Jesus Cristo resume e compendia toda a história da misericórdia divina: Bem-aventurados os


misericordiosos, porque alcançarão misericórdia. E em outra ocasião: Sede misericordiosos, como
vosso Pai celestial é misericordioso. Ficaram também muito gravadas em nós, entre tantas outras
cenas do Evangelho, a clemência com a mulher adúltera, as parábolas do filho pródigo, da ovelha
perdida e do devedor perdoado, a ressurreição do filho da viúva de Naim. Quantas razões de justiça
para explicar este grande prodígio! Morreu o filho único daquela pobre viúva, aquele que dava
sentido à sua vida e podia ajudá-la na sua velhice. Mas Cristo não faz o milagre por justiça; Ele o
faz por compaixão, porque se comove interiormente perante a dor humana.

Que segurança nos deve produzir a comiseração do Senhor! Clamará por mim e eu o
ouvirei, porque sou misericordioso. É um convite, uma promessa que não deixará de
cumprir. Aproximemo-nos, pois, confiadamente do trono da graça, a fim de alcançarmos
misericórdia e auxílio da graça no tempo oportuno. Os inimigos da nossa santificação nada
conseguirão, porque essa misericórdia de Deus nos protege por antecipado; e se por nossa culpa e
fraqueza caímos, o Senhor nos socorre e nos levanta. Tinhas aprendido a evitar a negligência, a
afastar de ti a arrogância, a adquirir piedade, a não ser prisioneiro das questões mundanas, a não
preferir o caduco ao eterno. Mas, como a debilidade humana não pode manter um passo decidido
num mundo resvaladiço, o bom Médico te indicou também remédios contra a desorientação, e o
Juiz misericordioso não te negou a esperança do perdão.

8 A existência do cristão desenvolve-se neste clima da misericórdia divina. Esse é o âmbito do


esforço com que procura comportar-se como filho do Pai. E quais os principais meios para
conseguirmos que a vocação se fortaleça? Hoje te indicarei dois, que são quais eixos vivos da
conduta cristã: a vida interior e a formação doutrinal, o conhecimento profundo da nossa fé.

Vida interior, em primeiro lugar. Como são poucos ainda os que a entendem! Ao ouvirem,falar de
vida interior, pensam na escuridão do templo, quando não no ambiente rarefeito de certas sacristias.
Há mais de um quarto de século venho dizendo que não é isso. O que descrevo é a vida interior de
um simples cristão, que habitualmente se encontra em plena rua, ao ar livre; e que na rua, no
trabalho, na família e nos momentos de lazer permanece atento a Jesus o dia todo. E o que é isso
senão vida de oração contínua? Não é verdade que compreendeste a necessidade de ser alma de
oração, com uma relação de amizade com Deus que te leve a endeusar-te? Essa é a fé cristã e assim
o compreenderam sempre as almas de oração. Escreve Clemente de Alexandria: Torna-se Deus o
homem que quer o mesmo que Deus quer.

A princípio custa; é preciso esforçar-se por dirigir o olhar para o Senhor, por agradecer a sua
piedade paternal e concreta para conosco. Pouco a pouco, o amor de Deus - embora não seja coisa
de sentimentos - torna-se tão palpável como uma flechada na alma. É Cristo que nos persegue
amorosamente: Eis que estou à tua porta e bato. Como vai a tua vida de oração? Não sentes às
vezes, durante o dia, desejos de conversar mais com Ele? Não lhe dizes: mais tarde te contarei isto,
mais tarde conversarei sobre isto contigo?

Nos momentos expressamente dedicados a esse colóquio com o Senhor, o coração se expande, a
vontade se fortalece, a inteligência - ajudada pela graça - embebe em realidades sobrenaturais as
realidades humanas. E, como fruto, surgem sempre propósitos claros, práticos, de melhorar a
conduta, de tratar delicadamente, com caridade, todos os homens, de nos empenharmos a fundo -
com o empenho dos bons esportistas - nesta luta cristã de amor e de paz.

A oração se torna contínua, como o palpitar do coração, como o pulso. Sem essa presença de Deus,
não há vida contemplativa; e, sem vida contemplativa, de pouco vale trabalhar por Cristo, porque,
se Deus não edifica a casa, em vão trabalham os que a constroem.

9 Para se santificar, o simples cristão - que não é um religioso, que não se separa do mundo, porque o
mundo é o lugar do seu encontro com Cristo - não precisa de hábito externo nem de sinais
distintivos. Seus sinais são internos: a presença de Deus constante e o espírito de mortificação. Na
realidade, uma coisa só, porque a mortificação nada mais é que a oração dos sentidos.

A vocação cristã é vocação de sacrifício, de penitência, de expiação. Temos que reparar por nossos
pecados - quantas vezes não teremos virado a cara para não vermos Deus! - e por todos os pecados
dos homens. Temos que seguir de perto os passos de Cristo: trazendo sempre em nosso corpo a
mortificação, a abnegação de Cristo, seu abatimento na Cruz, para que também em nossos corpos
se manifeste a vida de Jesus. O nosso caminho é de imolação, e essa renúncia nos trará o gaudium
cum pace, a alegria e a paz.

Não contemplamos o mundo com gesto triste. Têm prestado um fraco serviço à catequese, talvez
involuntariamente, esses biógrafos de santos que queriam descobrir a todo o custo coisas
extraordinárias nos servos de Deus, já desde os primeiros vagidos. E contam de alguns deles que
em sua infância não choravam, e às sextas-feiras não mamavam, por mortificação... Vós e eu
nascemos chorando, como Deus manda; e nos prendíamos ao peito de nossa mãe sem nos
preocuparmos com Quaresmas nem com Têmporas.

Agora, com o auxílio de Deus, aprendemos a descobrir ao longo dos dias - aparentemente sempre
iguais - spatium verae poenitentiae, um tempo de verdadeira penitência; e nesses instantes fazemos
propósitos de emendatio vitae, de melhorar a nossa vida. Este é o caminho para sabermos acolher a
graça e as inspirações do Espírito Santo na alma. E com essa graça - repito - vem o gaudium cum
pace, a alegria, a paz e a perseverança no caminho.

A mortificação é o sal da nossa vida. E a melhor mortificação é a que combate - em pequenos


detalhes, durante o dia todo - a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da
vida. Mortificações que não mortifiquem os outros, que nos tornem mais delicados, mais
compreensivos, mais abertos a todos. Não seremos mortificados se formos suscetíveis, se
estivermos preocupados apenas com os nossos egoísmos, se esmagarmos os outros, se não nos
soubermos privar do supérfluo e, às vezes, do necessário; se nos entristecermos quando as coisas
não correm como tínhamos previsto. Pelo contrário, seremos mortificados se nos soubermos
fazer tudo para todos, para salvar a todos.

10 A vida de oração e de penitência, e a consideração da nossa filiação divina, nos transformam em


cristãos profundamente piedosos, como crianças diante de Deus. A piedade é a virtude dos filhos, e,
para que o filho possa confiar-se aos braços de seu pai, deve ser e sentir-se pequeno, necessitado.
Tenho meditado com freqüência nessa vida de infância espiritual, que não se opõe à fortaleza
porque exige uma vontade enérgica, uma maturidade temperada, um caráter firme e aberto.

Piedosos, pois, como meninos; mas não ignorantes, por que cada um deve esforçar-se, na medida
de suas possibilidades, por estudar a fé com seriedade e espírito científico; e tudo isso é teologia.
Piedade de meninos, portanto, mas doutrina segura de teólogos.

O empenho em adquirir esta ciência teológica - a boa e firme doutrina crista - deve-se em primeiro
lugar ao desejo de conhecer e amar a Deus. Ao mesmo tempo, é conseqüência da preocupação geral
da alma fiel por descobrir o significado mais profundo deste mundo, que é obra do Criador. Com
periódica monotonia, há quem procure ressuscitar uma suposta incompatibilidade entre a fé e a
ciência, entre a inteligência humana e a Revelação divina. Essa incompatibilidade apenas pode
surgir, e só aparentemente, quando não se entendem os dados reais do problema.

Se o mundo saiu das mãos de Deus, se Ele criou o homem à sua imagem e semelhança e lhe deu
uma chispa da sua luz, o trabalho da inteligência - mesmo que seja um trabalho duro - deve
desentranhar o sentido divino que já naturalmente têm todas as coisas; e à luz da fé, percebemos
também o seu sentido sobrenatural, que procede da nossa elevação a ordem da graça. Não podemos
admitir o medo à ciência, porque qualquer trabalho, se for verdadeiramente científico, conduz à
verdade. E Cristo disse: Ego sum veritas, Eu sou a verdade.

O cristão deve ter fome de saber. Desde o cultivo dos saberes mais abstratos até às habilidades do
artesão, tudo pode e deve levar a Deus. Porque não há tarefa humana que não seja santificável, que
não seja motivo para a nossa própria santificação e oportunidade para colaborarmos com Deus na
santificação dos que nos rodeiam. A luz dos seguidores de Jesus Cristo não deve permanecer no
fundo do vale, mas no cume da montanha, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem vosso
Pai que está nos céus.

Trabalhar assim é oração. Estudar assim é oração. Investigar assim é oração. Não saímos nunca do
mesmo: tudo é oração, tudo pode e deve levar-nos a Deus, alimentar esse convívio contínuo com
Ele, da manhã até à noite. Todo o trabalho honrado pode ser oração; e todo o trabalho que for
oração, é apostolado. Desse modo, a alma se enrijece numa unidade de vida simples e forte.

11 Nada mais vos queria dizer neste primeiro Domingo do Advento, em que já começamos a contar os
dias que nos faltam para o Natal do Salvador. Vimos a realidade da vocação cristã, como o Senhor
confiou em nós para levar almas à santidade, para aproximá-las dEle, para uni-las à Igreja e
estender o reino de Deus a todos os corações. O Senhor nos quer entregues, fiéis, delicados. Ele nos
quer santos, muito seus.

Por um lado, a soberba, a sensualidade e o tédio, o egoísmo; por outro, o amor, a dedicação, a
misericórdia, a humildade, o sacrifício, a alegria. Temos que escolher. Fomos chamados a uma vida
de fé, de esperança e de caridade. Não podemos cruzar os braços e deixar-nos ficar num medíocre
isolamento.

Certa vez, vi uma águia encerrada numa gaiola de ferro. Estava suja, meio depenada; tinha entre as
garras um pedaço de carne podre. Ocorreu-me pensar no que seria de mim se abandonasse a
vocação recebida de Deus. Fiquei com pena daquele animal solitário, enjaulado, que tinha nascido
para voar muito alto e olhar o sol de frente. Podemos remontar até às humildes alturas do amor de
Deus, do serviço a todos os homens. Mas para isso é preciso que não haja recantos escondidos na
alma, onde não possa entrar o sol de Jesus Cristo. Temos que jogar fora todas as preocupações que
nos afastem dEle; e assim Cristo em tua inteligência, Cristo em teus lábios, Cristo em teu coração,
Cristo em tuas obras. Toda a vida, o coração e as obras, a inteligência e as palavras, saturadas de
Deus.

Olhai e levantai a cabeça, porque está próxima a vossa redenção, lemos no Evangelho. O tempo
de Advento é tempo de esperança. Todo o panorama da nossa vocação cristã, essa unidade de vida
que tem como nervo a presença de Deus, nosso Pai, pode e deve ser uma realidade diária.

Pede-a comigo a Nossa Senhora, imaginando como Ela passaria aqueles meses à espera do Filho
que ia nascer. E Nossa Senhora, Santa Maria, fará com que sejas alter Christus, ipse Christus, outro
Cristo, o próprio Cristo!

12 Lux fulgebit hodie super nos, quia natus est nobis Dominus, hoje brilhará sobre nós a luz, porque
nos nasceu o Senhor! Eis a grande novidade que comove os cristãos e que, através deles, se dirige à
humanidade inteira. Deus está aqui! Esta verdade deve tomar posse de nossas vidas. Cada Natal
deve ser para nós um novo encontro especial com Deus, que deixe a sua luz e a sua graça
penetrarem até o fundo da nossa alma.

Detemo-nos diante do Menino, de Maria e de José; estamos contemplando o Filho de Deus


revestido da nossa carne... Vem-me à memória a viagem que fiz a Loreto, em 15 de agosto de 1951,
para visitar a Santa Casa por um motivo muito íntimo. Lá celebrei a Santa Missa. Queria dizê-la
com recolhimento, mas não tinha contado com o fervor da multidão. Não tinha calculado que, nesse
grande dia de festa, muitas pessoas dos arredores viriam a Loreto, com a bendita fé dessa terra e
com o amor que têm à Madona. E a sua piedade, considerando as coisas - como diria? - unicamente
do ponto de vista das leis rituais da Igreja, levava-as a manifestações não muito apropriadas.

E assim, enquanto eu beijava o altar, nos momentos prescritos pelas rubricas da Missa, três ou
quatro camponeses beijavam-no ao mesmo tempo. Distraía-me, mas estava emocionado. E também
me atraía a atenção o pensamento de que naquela Santa Casa - que a tradição assegura ser o lugar
onde viveram Jesus, Maria e José -, em cima da mesa do altar, se tinham gravado estas
palavras: Hic Verbum caro factum est. Aqui, numa casa construída pelas mãos dos homens, num
pedaço da terra em que vivemos, habitou Deus!

13 O Filho de Deus fez-se carne e é perfectus Deus, perfectus homo, perfeito Deus e perfeito
homem! Há neste mistério qualquer coisa que deveria emocionar os cristãos. Estava e estou
comovido; gostaria de voltar a Loreto... Vou lá em desejo, para reviver os anos da infância de
Jesus, repetindo e considerando: Hic Verbum caro factum est!

Iesus Christus, Deus Homo, Jesus Cristo, Deus-Homem! Eis uma das magnalia Dei, uma das
maravilhas de Deus em que temos de meditar e que precisamos agradecer a este Senhor que veio
trazer a paz na terra aos homens de boa vontade, a todos os homens que querem unir a sua
vontade à Vontade boa de Deus. Não só aos ricos, nem só aos pobres! A todos os homens, a todos
os irmãos! Pois irmãos somos todos em Jesus: filhos de Deus, irmãos de Cristo. E sua Mãe é
nossa Mãe.

Na terra, há apenas uma raça: a raça dos filhos de Deus. Todos devemos falar a mesma língua: a
que nosso Pai que está nos Céus nos ensina, a língua dos diálogos de Jesus com seu Pai, a língua
que se fala com o coração e com a cabeça, aquela que estamos usando agora na nossa oração. É a
língua das almas contemplativas, dos homens que são espirituais por se terem apercebido da sua
filiação divina; uma língua que se manifesta em mil moções da vontade, em luzes vivas do
entendimento, em afetos do coração, em decisões de retidão de vida, de bem-fazer, de alegria, de
paz.

É preciso ver o Menino, nosso Amor, no seu berço, olhar para Ele sabendo que estamos perante
um mistério. Precisamos aceitar o mistério pela fé, aprofundar no seu conteúdo. Para isso
necessitamos das disposições humildes da alma cristã: não pretender reduzir a grandeza de Deus
aos nossos pobres conceitos, às nossas explicações humanas, mas compreender que esse mistério,
na sua obscuridade, é uma luz que guia a vida dos homens.

Vemos - diz São João Crisóstomo - que Jesus saiu de nós, da nossa substância humana, e que
nasceu de Mãe virgem; mas não entendemos como pôde ter-se realizado esse prodígio. Não nos
cansemos tentando descobri-lo: aceitemos antes com humildade o que Deus nos revelou, sem
esquadrinhar com curiosidade o que Deus nos escondeu. Assim, com este acatamento, saberemos
compreender e amar; e o mistério será para nós um esplêndido ensinamento, mais convincente
que qualquer raciocínio humano.

14 Ao falar diante do Presépio, sempre procurei ver Cristo Nosso Senhor desta maneira, envolto em
paninhos, sobre a palha de uma mangedoura; e, enquanto ainda é Menino e não diz nada, vê-lo já
como Doutor, como Mestre. Preciso considerá-lo assim, porque tenho que aprender dEle. E, para
aprender dEle, é necessário conhecer a sua vida: ler o Santo Evangelho, meditar no sentido divino
do caminhar terreno de Jesus.

Na verdade, temos que reproduzir em nossa vida a vida de Cristo, conhecendo Cristo à força de
ler a Sagrada Escritura e de a meditar, à força de fazer oração, como agora a estamos fazendo
diante do Presépio. É preciso entender as lições que nos dá Jesus já desde Menino, desde recém-
nascido, desde que seus olhos se abriram para esta bendita terra dos homens.

Jesus, crescendo e vivendo como um de nós, revela-nos que a existência humana, a vida comum e
de cada dia, tem um sentido divino. Por muito que tenhamos considerado estas verdades, devemos
encher-nos sempre de admiração ao pensar nos trinta anos de obscuridade que constituem a maior
parte da vida de Jesus entre seus irmãos, os homens. Anos de sombra, mas, para nós, claros como
a luz do Sol. Mais: resplendor que ilumina os nossos dias e que lhes dá uma autêntica projeção,
pois somos cristãos comuns, com uma vida vulgar, igual à de tantos milhões de pessoas nos mais
diversos lugares do mundo.

Assim viveu Jesus durante seis lustros: era fabri filius, o filho do carpinteiro. Virão depois os três
anos de vida pública, com o clamor das multidões. E as pessoas surpreendem-se: Quem é este?
Onde aprendeu tantas coisas? Pois a sua vida tinha sido a vida comum do povo da sua terra. Era
o faber, filius Mariae, o carpinteiro, filho de Maria. E era Deus; e estava realizando a redenção do
gênero humano; e estava a atrair a Si todas as coisas.

15 Como em relação a qualquer outro aspecto da sua vida, nunca deveríamos contemplar esses anos
ocultos de Jesus sem nos sentirmos afetados, sem os reconhecermos como o que realmente são:
chamadas que o Senhor nos dirige para sairmos do nosso egoísmo, do nosso comodismo. O
Senhor conhece as nossas limitações, o nosso individualismo e a nossa ambição; a nossa
dificuldade em nos esquecermos de nós mesmos e nos entregarmos aos outros. Sabe o que é não
encontrar amor e verificar que, mesmo aqueles que dizem segui-lo, só o fazem a meias.
Recordemos as cenas tremendas que os Evangelistas nos descrevem e em que vemos os Apóstolos
ainda cheios de aspirações temporais e de projetos exclusivamente humanos. Mas Jesus escolheu-
os, mantém-nos juntos de si e confia-lhes a missão que recebeu do Pai.

Também a nós nos chama e nos pergunta, como a Tiago e a João: Potestis bibere calicem quem
ego bibiturus sum?; estais dispostos a beber o cálice - este cálice da completa entrega ao
cumprimento da vontade do Pai - que eu vou beber? Possumus! Sim, estamos dispostos, é a
resposta de João e de Tiago... Vós e eu estamos dispostos seriamente a cumprir, em tudo, a
vontade do nosso Pai-Deus? Demos ao Senhor nosso coração inteiro, ou continuamos apegados a
nós mesmos, aos nossos interesses, à nossa comodidade, ao nosso amor próprio? Há em nós
alguma coisa que não corresponda à nossa condição de cristãos e que nos impeça de nos
purificarmos? Hoje apresenta-se-nos a ocasião de retificar.

É necessário que nos convençamos de que Jesus nos dirige pessoalmente estas perguntas. É Ele
quem as faz, não eu. Eu não me atreveria a fazê-las a mim próprio. Eu vou continuando a minha
oração em voz alta, e vós, cada um de vós, por dentro, está confessando ao Senhor: Senhor, que
pouco valho! Que covarde tenho sido tantas vezes! Quantos erros! Nesta ocasião e naquela...;
nisto e naquilo... E podemos exclamar também: Ainda bem, Senhor, que me tens sustentado com
a tua mão, porque me sinto capaz de todas as infâmias... Não me largues, não me deixes; trata-me
sempre como a um menino. Que eu seja forte, valente, íntegro. Mas ajuda-me como a uma
criatura inexperiente. Leva-me pela tua mão, Senhor, e faz com que tua Mãe esteja também a meu
lado e me proteja. E assim, possumus!, poderemos, seremos capazes de ter-Te por modelo.

Não é presunção afirmar possumus! Jesus Cristo ensina-nos este caminho divino e pede-nos que o
empreendamos, porque Ele o tomou humano e acessível à nossa fraqueza. Por isso se rebaixou
tanto: Este foi o motivo por que se abateu, tomando forma de servo aquele Senhor que, como
Deus, era igual ao Pai; mas abateu-se na majestade e na potência; não na bondade nem na
misericórdia.

A bondade de Deus quer facilitar-nos o caminho. Não rejeitemos o convite de Jesus, não lhe
digamos não, não nos façamos surdos ao seu chamamento, pois não existem desculpas, não temos
motivo nenhum para continuar a pensar que não podemos. Ele ensinou-nos com o seu
exemplo. Portanto, peço-vos encarecidamente, meus irmãos, que não permitais que se vos tenha
mostrado em vão modelo tão precioso, mas que vos conformeis com Ele e vos renoveis no espírito
da vossa alma.

16 Vemos como é necessário conhecer Jesus, observar amorosamente a sua vida? Muitas vezes fui à
procura da definição, da biografia de Jesus na Sagrada Escritura. Encontrei-a lendo aquela que o
Espírito Santo registra em duas palavras: Pertransiit benefaciendo. Todos os dias de Jesus Cristo
na terra, desde o seu nascimento até à morte, pertransiit benefaciendo, foram preenchidos fazendo
o bem. Como também diz a Escritura noutro lugar: Bene omnia fecit, fez tudo bem, terminou bem
todas as coisas, não fez senão o bem.

E tu? E eu? Lancemos um olhar sobre a nossa vida, para ver se temos alguma coisa que emendar.
Eu, sim, encontro em mim muito que fazer. E como me vejo incapaz, só por mim, de praticar o
bem, e como o próprio Jesus nos disse que sem Ele nada podemos , vamos, tu e eu, implorar ao
Senhor a sua assistência por meio de sua Mãe, neste colóquio íntimo, próprio das almas que
amam a Deus. Não acrescento mais nada, porque é cada um de vós que deve falar, segundo as
suas necessidades. Por dentro, e sem ruído de palavras, neste mesmo momento em que vos dou
estes conselhos, aplico esta doutrina à minha própria miséria.

17 Pertransiit benefaciendo... O que fez Jesus para derramar tanto bem, e só bem, por onde quer que
passasse? Os Santos Evangelhos transmitiram-nos outra biografia de Jesus, resumida em três
palavras latinas que nos dão a resposta: Erat subditus illis, obedecia. Hoje, que o ambiente está
cheio de desobediência, de murmuração, de desunião, devemos amar especialmente a obediência.

Sou muito amigo da liberdade, e precisamente por isso estimo tanto essa virtude cristã. Devemos
sentir-nos filhos de Deus e viver com o empenho de cumprir a vontade do nosso Pai, de realizar
tudo segundo o querer de Deus, simplesmente porque nos apetece, que é a razão mais
sobrenatural.

O espírito do Opus Dei, que tenho procurado praticar e ensinar há mais de trinta e cinco anos, fez-
me compreender e amar a liberdade pessoal. Quando Deus Nosso Senhor concede a sua graça aos
homens, quando os chama com uma vocação específica, é como se lhes estendesse a mão, uma
mão paternal, cheia de fortaleza, repleta sobretudo de amor, porque nos busca um por um, como a
suas filhas e filhos, e porque conhece a nossa debilidade. O Senhor espera que façamos o esforço
de agarrar a sua mão, essa mão que nos estende. Deus pede-nos um esforço, que será prova da
nossa liberdade. E para consegui-lo, temos que ser humildes, temos que nos sentir filhos
pequenos, e amar a bendita obediência com que correspondemos à bendita paternidade de Deus.

Precisamos deixar que o Senhor intervenha em nossas vidas e que intervenha confiadamente, sem
encontrar obstáculos nem recantos obscuros. Nós, os homens, tendemos a defender-nos, a apegar-
nos ao nosso egoísmo. Sempre tentamos ser reis, nem que seja do reino da nossa miséria.
Devemos compreender, através desta consideração, o motivo pelo qual temos necessidade de
recorrer a Jesus: é para que Ele nos torne verdadeiramente livres, e desta forma possamos servir a
Deus e a todos os homens. Só assim perceberemos a verdade daquelas palavras de São
Paulo: Agora, porém, livres do pecado e feitos servos de Deus, tendes por fruto a santificação e
por fim a vida eterna. Porque o salário do pecado é a morte, ao passo que o dom gratuito de
Deus é a vida eterna em Nosso Senhor Jesus Cristo.

Estejamos precavidos, portanto, visto que a nossa tendência para o egoísmo não morre, e a
tentação pode insinuar-se de muitas maneiras. Deus exige que, ao obedecer, ponhamos em
movimento a fé, porque a sua vontade não se manifesta com aparato ruidoso. As vezes, o Senhor
sugere o seu querer como que em voz baixa, lá no fundo da consciência; e é necessário
escutarmos atentamente, para sabermos distinguir essa voz e ser-lhe fiéis.

Muitas vezes fala-nos através de outros homens, e pode acontecer que, à vista dos defeitos dessas
pessoas, ou pensando que não estão bem informadas, que talvez não tenham entendido todos os
dados do problema, surja como que um convite para não obedecer.

Tudo isso pode ter um significado divino, porque Deus não nos impõe uma obediência cega, mas
uma obediência inteligente, e temos que sentir a responsabilidade de ajudar os outros com a luz
do nosso entendimento. Mas sejamos sinceros conosco mesmos: examinemos em cada caso se nos
deixamos conduzir pelo amor à verdade ou antes pelo egoísmo e pelo apego aos nossos próprios
critérios. Quando as nossas idéias nos separam dos outros, quando nos levam a quebrar a
comunhão, a unidade com nossos irmãos, é sinal certo de que não estamos agindo segundo o
espírito de Deus.

Não o esqueçamos: para obedecer, repito, é precisa humildade. Vejamos de novo o exemplo de
Cristo. Jesus obedece, e obedece a José e a Maria. Deus veio à terra para obedecer, e para
obedecer às criaturas. São duas criaturas perfeitíssimas: Santa Maria, nossa Mãe - mais do que Ela
só Deus -, e aquele varão castíssimo, José. Mas criaturas. E Jesus, que é Deus, obedecia-lhes!
Temos que amar a Deus, para amar assim a sua vontade, e ter desejos de corresponder aos
chamamentos que nos dirige através das obrigações da nossa vida de todos os dias: nos deveres de
estado, na profissão, no trabalho, na família, no convívio social, no nosso próprio sofrimento e no
sofrimento dos outros homens, na amizade, no empenho em realizar o que é bom e justo...

18 Quando chega o Natal, gosto de contemplar as imagens do Menino Jesus. Essas figuras, que nos
mostram o Senhor tão humilhado, recordam-me que Deus nos chama, que o Onipotente quis
apresentar-se desvalido, quis necessitar dos homens. Da gruta de Belém, Cristo diz a mim e a ti
que precisa de nós; reclama de nós uma vida cristã sem hesitações, uma vida de doação, de
trabalho, de alegria.
Não conseguiremos jamais o verdadeiro bom humor, se não imitarmos deveras Jesus, se não
formos humildes como Ele. Insistirei de novo: vemos onde se oculta a grandeza de Deus? Num
presépio, nuns paninhos, numa gruta. A eficácia redentora de nossas vidas só se produzirá se
houver humildade, se deixarmos de pensar em nós mesmos e sentirmos a responsabilidade de
ajudar os outros.

É normal, às vezes até entre almas boas, criarem-se conflitos íntimos, que chegam a produzir
sérias preocupações, mas que carecem de qualquer base objetiva. Sua origem está na falta de
conhecimento próprio, que conduz à soberba: ao desejo de se tornarem o centro da atenção e
estima de todos, à preocupação de não ficarem mal, de não se resignarem a fazer o bem e
desaparecer, à ânsia de segurança pessoal... E assim, muitas almas que poderiam gozar de uma
paz extraordinária, que poderiam saborear um imenso júbilo, transformam-se, por orgulho e
presunção, em infelizes e infecundas!

Cristo foi humilde de coração. Ao longo da sua vida, não quis para si nenhuma coisa especial,
nenhum privilégio. Começa por permanecer nove meses no seio de sua Mãe, como qualquer outro
homem, com extrema naturalidade. O Senhor sabia de sobra que a humanidade necessitava dEle
com urgência. Tinha, portanto, fome de vir à terra para salvar todas as almas. Mas não precipita o
tempo; vem na sua hora, como chegam ao mundo os outros homens. Desde a concepção até o
nascimento, ninguém - a não ser São José e Santa Isabel - percebe esta maravilha: Deus veio
habitar entre os homens!

O Natal também está rodeado de uma simplicidade admirável: o Senhor vem sem estrondo,
desconhecido de todos. Na terra, só Maria e José participam da divina aventura. Depois, os
pastores, avisados pelos Anjos. E, mais tarde, os sábios do Oriente. Assim se realiza o fato
transcendente que une o céu à terra, Deus ao homem!

Como é possível tanta dureza de coração, que cheguemos a acostumar-nos a estes episódios?
Deus humilha-se para que possamos aproximar-nos dEle, para que possamos corresponder ao seu
amor com o nosso amor, para que a nossa liberdade se renda, não só ante o espetáculo do seu
poder, como também ante a maravilha da sua humildade.

Grandeza de um Menino que é Deus! Seu Pai é o Deus que fez os céus e a terra, e Ele ali está,
num presépio, quia non erat eis locus in diversorio, porque não havia outro lugar na terra para o
dono de toda a Criação.

19 Não me afasto da mais rigorosa verdade se digo que Jesus continua ainda hoje a buscar pousada
no nosso coração. Temos que lhe pedir perdão pela nossa cegueira pessoal, pela nossa ingratidão.
Temos que lhe pedir a graça de nunca mais lhe fecharmos a porta de nossas almas.

O Senhor não nos oculta que a obediência rendida à Vontade de Deus exige renúncia e entrega,
porque o amor não reclama direitos; quer servir. Ele percorreu primeiro o caminho. Jesus: como
foi que obedeceste? Usque ad mortem, mortem autem crucis, até à morte, e morte de Cruz. Temos
que sair de nós mesmos, complicar a vida, perdê-la por amor de Deus e das almas... Tu querias
viver, e que nada te acontecesse; mas Deus quis outra coisa... Existem duas vontades: a tua
vontade deve ser corrigida para se identificar com a Vontade de Deus, e não a de Deus torcida
para se acomodar à tua.

Tenho visto, com alegria, muitas almas jogarem a vida - como Tu, Senhor, usque ad mortem!
- para cumprir o que a vontade de Deus lhes pedia, dedicando seus esforços e seu trabalho
profissional ao serviço da Igreja, pelo bem de todos os homens.

Aprendamos a obedecer, aprendamos a servir. Não há maior fidalguia do que entregar-se


voluntariamente a servir os outros. Quando sentimos o orgulho que referve dentro de nós, a
soberba que nos leva a pensar que somos super-homens, é o momento de dizer não, de dizer que o
nosso único triunfo há de ser o da humildade. Assim nos identificaremos com Cristo na Cruz, sem
nos sentirmos aborrecidos ou inquietos, nem com mau humor, mas alegres, porque essa alegria, o
esquecimento de nós mesmos, é a melhor prova de amor.

20 Permiti-me que volte de novo à naturalidade, à simplicidade da vida de Jesus, que já vos tenho
feito considerar tantas vezes. Esses anos ocultos do Senhor não são coisa sem significado, ou uma
simples preparação dos anos que viriam depois, os anos da sua vida pública. Desde 1928,
compreendi claramente que Deus desejava que os cristãos tomassem por exemplo toda a vida do
Senhor. Entendi especialmente a sua vida escondida, a sua vida de trabalho comum entre os
homens: o Senhor quer que muitas almas encontrem o seu caminho nesses anos de vida silenciosa
e sem brilho. Obedecer à vontade de Deus, portanto, é sempre abandonar o egoísmo; mas não é
necessário que se reduza predominantemente a um afastamento das circunstâncias habituais que
rodeiam a vida dos homens, iguais a nós pelo seu estado, pela sua profissão, pela sua situação na
sociedade.

Sonho - e o sonho já se tornou realidade - com multidões de filhos de Deus santificando-se na sua
vida de cidadãos comuns, compartilhando ideais, anseios e esforços com as demais pessoas.
Preciso gritar-lhes esta verdade divina: se permaneceis no meio do mundo, não é porque Deus se
tenha esquecido de vós, não é porque o Senhor não vos tenha chamado. Deus vos convidou a
permanecer nas ocupações e nas ansiedades da terra, porque vos fez saber que a vossa vocação
humana, a vossa profissão, as vossas qualidades não só não são alheias aos seus desígnios divinos,
mas foram santificadas por Ele como oferenda gratíssima ao Pai!

21 Recordar a um cristão que a sua vida não tem outro sentido senão o de obedecer à vontade divina
não é separá-lo dos outros homens. Pelo contrário: em muitos casos, o mandamento recebido do
Senhor é que nos amemos uns aos outros como Ele nos amou vivendo junto dos outros e tal como
os outros, entregando-nos ao serviço do Senhor no mundo, para dar a conhecer melhor a todas as
almas o amor de Deus; para Lhes dizer que se abriram os caminhos divinos da terra.

O Senhor não se limitou a dizer que nos amava, mas demonstrou-o com obras. Não esqueçamos
que Jesus Cristo se encarnou para ensinar, para que aprendamos a viver a vida dos filhos de Deus.
Recordemos o preâmbulo do evangelista São Lucas nos Atos dos Apóstolos: Primum quidem
sermonem feci de omnibus, ó Theophile, quae coepit Jesus facere et docere, falei de tudo o que de
mais notável Jesus fez e pregou. Veio ensinar, mas fazendo; veio ensinar, mas sendo modelo,
sendo o mestre e o exemplo com a sua conduta.

Agora, diante de Jesus Menino, podemos continuar o nosso exame pessoal: estamos decididos a
procurar que a nossa vida sirva de modelo e ensinamento aos nossos irmãos, aos nossos iguais, os
homens? Estamos decididos a ser outros Cristos?

Não é suficiente dizê-lo com a boca. Tu - pergunto-o a cada um de vós e pergunto-o a mim
mesmo - tu, que por seres cristão és convidado a ser outro Cristo, mereces que se repita de ti que
vieste facere et docere, fazer tudo como um Filho de Deus, atento à vontade de seu Pai, para que
deste modo possas levar todas as almas a participarem das coisas boas, nobres, divinas e humanas
da Redenção? Estás vivendo a vida de Jesus Cristo na tua vida habitual no meio do mundo?

Fazer as obras de Deus não é um bonito jogo de palavras, mas um convite a gastar-se por Amor.
Temos que morrer para nós mesmos, a fim de renascermos para uma vida nova. Porque assim
obedeceu Jesus, até à morte de Cruz, mortem autem crucis. Propter quod et Deus exaltavit illum,
Por isso Deus o exaltou. Se obedecermos à vontade de Deus, a Cruz será também Ressurreição,
exaltação. Cumprir-se-á em nós, passo a passo, a vida de Cristo; poder-se-á afirmar que vivemos
procurando ser bons filhos de Deus, que passamos fazendo o bem, apesar da nossa fraqueza e dos
nossos erros pessoais, por mais numerosos que tenham sido.

E quando vier a morte, que virá inexoravelmente, esperá-la-emos com júbilo, como tenho visto
que o souberam fazer tantas pessoas santas no meio da sua existência diária. Com alegria, porque,
se imitarmos Cristo em fazer o bem - em obedecer e levar a Cruz, apesar das nossas misérias -
ressuscitaremos como Cristo: Surrexit Dominus vere!, que ressuscitou realmente.

Jesus, que se fez menino - meditemos -, venceu a morte. Pelo aniquilamento, pela simplicidade,
pela obediência, pela divinização da vida comum e vulgar das criaturas, o Filho de Deus foi
vencedor!

Este foi o triunfo de Jesus Cristo. Assim nos elevou ao seu nível, ao nível dos filhos de Deus,
descendo ao nosso terreno, ao terreno dos filhos dos homens.

22 Estamos no Natal. Vêm-nos à lembrança os diversos fatos e circunstâncias que rodearam o nascimento
do Filho de Deus, e o olhar detém-se na gruta de Belém, no lar de Nazaré. Maria, José e Jesus Menino
ocupam, de modo muito especial, o centro do nosso coração. Que nos diz, que nos ensina a vida ao
mesmo tempo simples e admirável dessa Sagrada Família?

Entre as muitas considerações que poderíamos fazer, quero comentar agora principalmente uma. O
nascimento de Jesus significa, como diz a Escritura, a inauguração da plenitude dos tempos, o
momento escolhido por Deus para manifestar por inteiro seu amor aos homens, entregando-nos o seu
próprio Filho. Essa vontade divina cumpre-se no meio das circunstâncias mais normais e comuns: uma
mulher que dá à luz, uma família, uma casa. A Onipotência divina, o esplendor de Deus, passam
através das realidades humanas, unem-se ao elemento humano. A partir daí, nós, os cristãos, sabemos
que, com a graça do Senhor, podemos e devemos santificar todas as realidades nobres da nossa vida.
Não há situação terrena, por mais insignificante e vulgar que pareça, que não possa ser ocasião de um
encontro com Cristo e etapa do nosso caminhar para o reino dos céus.

Por isso, não é de estranhar que a Igreja se alegre e se rejubile, contemplando a modesta morada de
Jesus, Maria e José. É grato - reza o hino de matinas desta festa - recordar a pequena casa de Nazaré
e a existência simples que ali se vive, celebrar com cânticos a simplicidade humilde que rodeia Jesus,
a sua vida escondida. Foi ali que, ainda menino, Ele aprendeu o ofício de José, foi ali que cresceu em
idade e participou num trabalho de artesão. Junto dele sentava-se sua doce Mãe; junto de José vivia a
sua esposa bem-amada, feliz de poder ajudá-lo e oferecer-lhe seus cuidados.

Ao pensar nos lares cristãos, gosto de imaginá-los luminosos e alegres, como foi o da Sagrada Família.
A mensagem do Natal ressoa com toda a força: Glória a Deus no mais alto dos céus, e paz na terra
aos homens de boa vontade. Que a paz de Cristo triunfe em vossos corações, escreve o Apóstolo. A
paz de nos sabermos amados por nosso Pai-Deus, incorporados em Cristo, protegidos pela Virgem
Santa Maria, amparados por José. Essa é a grande luz que ilumina nossas vidas e que, por entre as
dificuldades e misérias pessoais, nos impele a continuar para a frente, cheios de ânimo. Cada lar
cristão deveria ser um remanso de serenidade em que, por cima das pequenas contrariedades diárias,
se pudesse notar uma afeição profunda e sincera, uma tranqüilidade profunda, fruto de uma fé real e
vivida.

23 Para um cristão, o matrimônio não é uma simples instituição social, e menos ainda um remédio para as
fraquezas humanas: é uma autêntica vocação sobrenatural. Sacramento grande em Cristo e na Igreja,
diz São Paulo , e, ao mesmo tempo e inseparavelmente, contrato que um homem e uma mulher
estabelecem para sempre, porque - queiramos ou não - o matrimônio instituído por Jesus Cristo é
indissolúvel: sinal sagrado que santifica, ação de Jesus que se apossa da alma dos que se casam e os
convida a segui-Lo, transformando toda a vida matrimonial em um caminhar divino sobre a terra.
Os casados estão chamados a santificar o seu matrimônio e a santificar-se a si próprios nessa união;
por isso, cometeriam um grave erro se edificassem a sua conduta espiritual de costas para o lar, à
margem do lar. A vida familiar, as relações conjugais, o cuidado e a educação dos filhos, o esforço
necessário para manter a família, para garantir o seu futuro e melhorar as suas condições de vida, o
convívio com as outras pessoas que constituem a comunidade social, tudo isso são situações humanas,
comuns, que os esposos cristãos devem sobrenaturalizar.

A fé e a esperança têm que manifestar-se na serenidade com que se encaram os problemas, pequenos
ou grandes, que surgem em todos os lares, no ânimo alegre com que se persevera no cumprimento do
dever. Assim, a caridade inundará tudo e levará a compartilhar as alegrias e os possíveis dissabores, a
saber sorrir, esquecendo as preocupações pessoais para atender os demais; a escutar o outro cônjuge
ou os filhos, mostrando-lhes que são queridos e compreendidos de verdade; a não dar importância a
pequenos atritos que o egoísmo poderia converter em montanhas; a depositar um amor grande nos
pequenos serviços de que se compõe a convivência diária.

Santificar o lar, dia a dia; criar, com o carinho, um autêntico ambiente de família: é disso que se trata.
Para santificar cada jornada, é preciso praticar muitas virtudes cristãs; em primeiro lugar, as teologais,
e depois todas as outras: a prudência, a lealdade, a sinceridade, a humildade, o trabalho, a alegria...
Mas no caso do matrimônio, da vida matrimonial, é preciso começar com uma referência clara ao
amor dos cônjuges.

24 O amor puro e limpo dos esposos é uma realidade santa que eu, como sacerdote, abençôo com as duas
mãos. Na presença de Jesus Cristo nas bodas de Caná, a tradição cristã tem visto freqüentemente uma
confirmação do valor divino do matrimônio: Nosso Salvador foi às bodas - escreve São Cirilo de
Alexandria - para santificar o princípio da geração humana.

O matrimônio é um sacramento que faz de dois corpos uma só carne; como diz com expressão forte a
teologia, sua matéria são os próprios corpos dos nubentes. O Senhor santifica e abençoa o amor do
marido pela mulher e o da mulher pelo marido: estabelece não somente a fusão de suas almas, mas
também a de seus corpos. Seja ou não chamado à vida matrimonial, nenhum cristão pode desprezá-la.

O Criador deu-nos a inteligência, que é como uma centelha do entendimento divino, e que nos permite
- mediante a vontade livre, outro dom de Deus - conhecer e amar; e deu ao nosso corpo a possibilidade
de gerar, que é como uma participação do seu poder criador. Deus quis servir-se do amor conjugal
para trazer novas criaturas ao mundo e aumentar o corpo da sua Igreja. O sexo não é uma realidade
vergonhosa, mas uma dádiva divina que se orienta limpamente para a vida, para o amor e para a
fecundidade.

Este é o contexto, o pano de fundo em que se situa a doutrina cristã sobre a sexualidade. Nossa fé não
desconhece nada das coisas belas, generosas, genuinamente humanas que há aqui em baixo. Ensina-
nos que a regra do nosso viver não deve ser a busca egoísta do prazer, porque só a renúncia e o
sacrifício levam ao verdadeiro amor: Deus amou-nos e convida-nos a amá-lo e a amar os outros com a
verdade e a autenticidade com que Ele nos ama. Quem conservar a sua vida, perdê-la-á, e quem
perder a vida por amor de mim, encontrá-la-á, escreveu São Mateus em seu Evangelho, com frase que
parece paradoxal.

As pessoas em cuidados consigo mesmas, que agem buscando acima de tudo a sua própria satisfação,
põem em risco a sua salvação eterna e já agora são inevitavelmente infelizes e desgraçadas. Só quem
se esquece de si mesmo e se entrega a Deus e aos outros - também na vida matrimonial - pode ser feliz
na terra, com uma felicidade que é preparação e antecipação do céu.

Enquanto caminhamos pela terra, a dor é a pedra de toque do amor. No estado matrimonial,
considerando as coisas de uma maneira descritiva, poderíamos afirmar que há anverso e reverso. De
um lado, a alegria de se saber querido, o entusiasmo de construir e fazer singrar um lar, o amor
conjugal, o consolo de ver os filhos crescerem. De outro, dores e contrariedades, o passar do tempo,
que consome os corpos e ameaça azedar os caracteres, a aparente monotonia dos dias que parecem
sempre iguais.

Formaria um pobre conceito do matrimônio e do carinho humano quem pensasse que, ao tropeçar com
essas dificuldades, o amor e a alegria se acabam. Precisamente então, quando os sentimentos que
animavam aquelas criaturas revelam a sua verdadeira natureza, é que a doação e a ternura se enraízam
e se manifestam como um afeto autêntico e profundo, mais poderoso do que a morte.

25 Essa autenticidade do amor requer fidelidade e retidão em todas as relações matrimoniais. Comenta
São Tomás de Aquino que Deus uniu às diversas funções da vida humana um prazer, uma satisfação;
esse prazer e essa satisfação são, portanto, bons. Mas se o homem, invertendo a ordem das coisas,
procura essa emoção como valor último, desprezando o bem e o fim a que deve estar ligada e
ordenada, perverte-a e desnaturaliza-a, convertendo-a em pecado ou em ocasião de pecado.

A castidade - que não é simples continência, mas afirmação decidida de uma vontade enamorada - é
uma virtude que mantém a juventude do amor, em qualquer estado de vida. Existe uma castidade dos
que sentem despertar em si o desenvolvimento da puberdade, uma castidade dos que se preparam para
o casamento, uma castidade daqueles a quem Deus chama ao celibato, uma castidade dos que foram
escolhidos por Deus para viverem no matrimônio.

Como não recordar aqui as palavras fortes e claras com que a Vulgata nos transmite a recomendação
do Arcanjo Rafael a Tobias, antes de este desposar Sara? O anjo admoestou-o assim: Escuta-me e eu
te mostrarei quem são aqueles contra os quais o demônio pode prevalecer. São os que abraçam o
matrimônio de tal modo que excluem Deus de si e de sua mente, e se deixam arrastar pela paixão
como o cavalo e o mulo, que estão desprovidos de entendimento. Sobre esses o diabo tem poder.

Não há amor humano puro, franco e alegre no matrimônio se não se vive a virtude da castidade, que
respeita o mistério da sexualidade e o faz convergir para a fecundidade e a entrega. Nunca falei de
impureza e sempre evitei descer a casuísticas mórbidas e sem sentido, mas, de castidade e de pureza,
da afirmação jubilosa do amor, sim, falei muitíssimas vezes e devo falar.

A respeito da castidade conjugal, assevero aos esposos que não devem ter medo de expressar o seu
carinho, antes pelo contrário, pois essa inclinação é a base da sua vida familiar. O que o Senhor lhes
pede é que se respeitem e que sejam mutuamente leais, que se confortem com delicadeza, com
naturalidade, com modéstia. Dir-lhes-ei também que as relações conjugais são dignas quando são
prova de verdadeiro amor e, portanto, estão abertas à fecundidade, aos filhos.

Cegar as fontes da vida é um crime contra os dons que Deus concedeu à humanidade e uma
manifestação de que a conduta se inspira no egoísmo, não no amor. Então tudo se turva, os cônjuges
chegam a olhar-se como cúmplices; e produzem-se dissensões que, a continuar nessa linha, são quase
sempre insanáveis.

Quando a castidade conjugal acompanha o amor, a vida matrimonial torna-se expressão de uma
conduta autêntica, marido e mulher compreendem-se e sentem-se unidos; quando o bem divino da
sexualidade se perverte, a intimidade se destrói, e marido e mulher já não se podem olhar nobremente
nos olhos.

Os esposos devem edificar a sua vida em comum sobre um carinho sincero e limpo, e sobre a alegria
de terem trazido ao mundo os filhos que Deus lhes tenha conferido a possibilidade de ter, sabendo
renunciar a comodidades pessoais e tendo fé na Providência. Formar uma família numerosa, se tal for
a vontade de Deus, é penhor de felicidade e eficácia, embora afirmem outra coisa os fautores de um
triste hedonismo.
26 Não vos esqueçais de que, entre os esposos, há ocasiões em que não é possível evitar as rusgas. Não
alterqueis nunca diante dos filhos: fá-los-íeis sofrer e pôr-se-iam de um dos lados, contribuindo talvez
para aumentar inconscientemente a vossa desunião. Mas brigar, sempre que não seja muito freqüente,
também é uma manifestação de amor, quase uma necessidade. A ocasião, não o motivo, costuma ser o
cansaço do marido, esgotado pelo trabalho profissional; a fadiga - oxalá não seja o aborrecimento - da
esposa, que teve de lutar com as crianças, com as empregadas ou com o seu próprio caráter, às vezes
pouco rijo, ainda que vós, mulheres, sejais mais enérgicas que os homens, se vos propondes sê-lo.

Evitai a soberba, que é o maior inimigo da vossa vida conjugal: em vossas pequenas brigas, nenhum
dos dois tem razão. Aquele que estiver mais sereno deve dizer uma palavra que contenha o mau humor
até mais tarde. E mais tarde - a sós - discuti, que logo fareis as pazes.

Vós, mulheres, pensai se porventura não descuidais um pouco o arranjo pessoal; recordai, com o
provérbio, que “a mulher bem-posta tira o homem de outra porta”: é sempre atual o dever de vos
apresentardes amáveis como quando éreis noivas, dever de justiça, porque pertenceis ao vosso marido;
e ele não deve esquecer, igualmente, que é vosso e que conserva a obrigação de ser, durante toda a
vida, afetuoso como um noivo. Mau sinal se sorrísseis com ironia ao lerdes este parágrafo: seria sinal
evidente de que o afeto familiar se havia convertido em gélida indiferença.

27 Não se pode falar do matrimônio sem pensar ao mesmo tempo na família, que é o fruto e a
continuação da realidade que se inicia com o matrimônio. Uma família compõe-se, não só do marido e
da mulher, mas também dos filhos e, em um ou outro grau, dos avós, dos demais parentes e das
empregadas domésticas. O calor íntimo de que depende o ambiente familiar deve chegar a todos eles.

É certo que há casais a quem o Senhor não concede filhos: é sinal, então, de que lhes pede que
continuem a querer-se com igual carinho e que dediquem as suas energias - se puderem - a serviços e
tarefas em benefício de outras almas. Mas o normal é que um casal tenha descendência. Para estes
esposos, a primeira preocupação devem ser os seus próprios filhos. A paternidade e a maternidade não
terminam com o nascimento: essa participação no poder de Deus, que é a faculdade de gerar, deve
prolongar-se mediante a cooperação com o Espírito Santo, para que culmine com a formação de
autênticos homens cristãos e autênticas mulheres cristãs.

Os pais são os principais educadores de seus filhos, tanto no aspecto humano como no sobrenatural, e
devem sentir a responsabilidade dessa missão, que exige deles compreensão, prudência, saber ensinar
e sobretudo saber amar; e que se empenhem em dar bom exemplo. Não é caminho acertado para a
educação a imposição autoritária e violenta. O ideal dos pais concretiza-se antes em chegarem a ser
amigos dos filhos: amigos a quem se confiam as inquietações, a quem se consultam os problemas, de
quem se espera uma ajuda eficaz e amável.

É necessário que os pais consigam tempo para estar com os filhos e falar com eles. Os filhos são o que
há de mais importante: são mais importantes que os negócios, que o trabalho, que o descanso. Nessas
conversas, convém escutá-los com atenção, esforçar-se por compreendê-los, saber reconhecer a parte
de verdade - ou a verdade inteira - que possa haver em algumas de suas rebeldias. E, ao mesmo tempo,
ajudá-los a canalizar retamente seus interesses e entusiasmos, ensiná-los a considerar as coisas e a
raciocinar, não lhes impor determinada conduta, mas mostrar-lhes os motivos sobrenaturais e humanos
que a aconselham. Em uma palavra, respeitar-lhes a liberdade, já que não há verdadeira educação sem
responsabilidade pessoal, nem responsabilidade sem liberdade.

28 Os pais educam fundamentalmente com a sua conduta. O que os filhos e as filhas procuram no pai e
na mãe não são apenas uns conhecimentos mais amplos que os seus, ou uns conselhos mais ou menos
acertados, mas algo de maior categoria: um testemunho do valor e do sentido da vida encarnado numa
existência concreta, confirmado nas diversas circunstâncias e situações que se sucedem ao longo dos
anos.

Se tivesse que dar um conselho aos pais, dir-lhes-ia sobretudo o seguinte: que os vossos filhos vejam -
não alimenteis ilusões, eles percebem tudo desde crianças e tudo julgam - que procurais viver de
acordo com a vossa fé, que Deus não está apenas nos vossos lábios, que está nas vossas obras, que vos
esforçais por ser sinceros e leais, que vos quereis e os quereis de verdade.

Assim contribuireis da melhor forma possível para fazer deles cristãos verdadeiros, homens e
mulheres íntegros, capazes de enfrentar com espírito aberto as situações que a vida lhes apresente, de
servir aos seus concidadãos e de contribuir para a solução dos grandes problemas da humanidade,
levando o testemunho de Cristo aonde quer que se encontrem mais tarde, na sociedade.

29 Escutai os vossos filhos, dedicai-lhes também o vosso tempo, mostrai-lhes confiança, acreditai no que
vos disserem, ainda que uma vez ou outra vos enganem; não vos assusteis com as suas rebeldias,
posto que também vós, na mesma idade, fostes mais ou menos rebeldes; saí-lhes ao encontro, até meio
do caminho, e rezai por eles. E vereis como recorrerão a seus pais com simplicidade - podeis estar
certos, se agis assim cristãmente -, em vez de recorrerem, com suas legítimas curiosidades, a um
amigalhaço desavergonhado e brutal. A vossa confiança, a vossa relação amigável com os filhos,
receberá em resposta a sinceridade deles para convosco. E isto é a paz familiar, a vida cristã, embora
não faltem contendas e incompreensões de pouca monta.

Como descreverei - pergunta um escritor dos primeiros séculos - a felicidade desse matrimônio que a
Igreja une, que a entrega confirma, que a bênção sela, que os anjos proclamam, e que Deus Pai tem
por celebrado?... Ambos os esposos são como irmãos, servos um do outro, sem que se dê entre eles
separação alguma, nem na carne nem no espírito. Porque verdadeiramente são dois numa só carne, e
onde há uma só carne deve haver um só espírito... Ao contemplar esses lares, Cristo se alegra e
envia-lhes a sua paz; onde estão dois, ali está Ele também, e onde Ele está, não pode haver nada de
mau.

30 Procuramos resumir e comentar alguns traços desses lares em que se reflete a luz de Cristo e que, por
isso - repito -, são luminosos e alegres; lares em que a harmonia que reina entre os pais se transmite
aos filhos, à família inteira e a todos os ambientes que a acompanham. Assim, em cada família
autenticamente cristã, reproduz-se de algum modo o mistério da Igreja, escolhida por Deus e enviada
como guia do mundo.

A todo o cristão, seja qual for a sua condição - sacerdote ou leigo, casado ou solteiro -, aplicam-se
plenamente as palavras do Apóstolo que se lêem precisamente na Epístola da festa da Sagrada
Família: escolhidos de Deus, santos e amados. Isso somos todos, cada um no seu lugar no mundo:
homens e mulheres escolhidos por Deus para dar testemunho de Cristo e levar aos que nos rodeiam a
alegria de se saberem filhos de Deus, apesar dos nossos erros e procurando lutar contra eles.

É muito importante que nunca falte o sentido vocacional do matrimônio, tanto na catequese e pregação
como na consciência daqueles a quem Deus queira nesse caminho, já que estão real e verdadeiramente
chamados a incorporar-se aos desígnios divinos de salvação de todos os homens.

Por isso, talvez não se possa propor aos esposos cristãos melhor modelo que o das famílias dos tempos
apostólicos: o centurião Cornélio, que foi dócil à vontade de Deus, e em cuja casa se consumou a
abertura da Igreja aos gentios ; Áquila e Priscila, que difundiram o cristianismo em Corinto e em
Éfeso, e que colaboraram com o apostolado de São Paulo ; Tabita, que com a sua caridade assistiu os
necessitados de Jope. E tantos outros lares de judeus e gentios, de gregos e romanos, aos quais chegou
a pregação dos primeiros discípulos do Senhor.

Famílias que viveram de Cristo e que deram a conhecer Cristo. Pequenas comunidades cristãs, que
atuaram como centros de irradiação da mensagem evangélica. Lares iguais aos outros lares daqueles
tempos, mas animados de um espírito novo, que contagiava os que os conheciam e com eles se
relacionavam.

Assim foram os primeiros cristãos e assim havemos de ser nós, os cristãos de hoje: semeadores de paz
e de alegria, da paz e da alegria que Jesus nos trouxe.

31 Não há muito tempo, tive ocasião de admirar um baixo-relevo em mármore que representava a cena da
adoração do Menino-Deus pelos Magos. Emoldurando esse baixo-relevo, viam-se outros: quatro
anjos, cada um com um símbolo - um diadema, o mundo coroado pela cruz, uma espada, um cetro. Foi
assim que alguém ilustrou plasticamente, com símbolos bem conhecidos, o acontecimento que hoje
comemoramos: uns homens sábios - a tradição diz que eram reis - prostram-se diante de um Menino,
depois de perguntarem em Jerusalém: Onde está o rei dos judeus que acaba de nascer?

Instado por essa pergunta, eu também contemplo agora Jesus reclinado numa mangedoura , num lugar
próprio para animais. Onde está, Senhor, a tua realeza: o diadema, a espada, o cetro? Pertencem-lhe, e
Ele não os quer; reina envolto em panos. É um Rei inerme, que se apresenta indefeso; é uma criança.
Como não havemos de recordar aquelas palavras do Apóstolo: Aniquilou-se a si mesmo, tomando a
forma de servo ?

Nosso Senhor encarnou-se para nos manifestar a vontade do Pai. E eis que já do próprio berço nos
instrui. Jesus Cristo procura-nos - com uma vocação, que é vocação de santidade - para com Ele
consumarmos a redenção. Consideremos o seu primeiro ensinamento: temos que corredimir
procurando o triunfo, não sobre o próximo, mas sobre nós mesmos. Como Cristo, precisamos
aniquilar-nos, sentir-nos servidores dos outros para os levar a Deus.

Onde está o Rei? Não será que Jesus deseja reinar antes de tudo no coração, no teu coração? Por isso
se fez Menino, porque quem há que não ame uma criança? Onde está o Rei? Onde está o Cristo que o
Espírito Santo procura formar em nossa alma? Não pode estar na soberba, que nos separa de Deus;
não pode estar na falta de caridade, que nos isola. Aí não pode estar Cristo; aí o homem fica só.

No dia da Epifania, situados aos pés de Jesus Menino, de um Rei sem sinais externos de realeza,
podemos dizer-lhe: Senhor, tira a soberba de minha vida; destrói o meu amor próprio, este desejo de
me afirmar e me impor aos outros; faz com que o fundamento da minha personalidade seja a
identificação contigo.

32 Identificar-se com Cristo não é meta fácil. Mas também não é difícil, se vivermos como o Senhor nos
ensinou, se recorrermos diariamente à sua Palavra, se impregnarmos a nossa vida da realidade
sacramental - a Eucaristia - que Ele nos deixou em alimento, porque o caminho do cristão
é andadeiro, como lembra uma antiga canção da minha terra. Deus chamou-nos clara e
inequivocamente. Como os Reis Magos, descobrimos uma estrela - que é luz e rumo - no céu da nossa
alma.

Vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo. Foi o que aconteceu conosco. Nós também
percebemos que pouco a pouco se acendia na alma um novo resplendor: o desejo de sermos
plenamente cristãos; se assim me posso exprimir, a ânsia de tomarmos Deus a sério. Se cada um de
nós se pusesse agora a contar em voz alta o processo íntimo da sua vocação sobrenatural, os outros
perceberiam que tudo isso era divino. Agradeçamos a Deus Pai, a Deus Filho, a Deus Espírito Santo e
a Santa Maria, por meio da qual nos vêm todas as bênçãos do céu, este dom que, juntamente com a fé,
é a maior graça que o Senhor pode conceder a uma criatura: o firme anseio de alcançar a plenitude da
caridade, na convicção de que não só é possível, como também necessária, a santidade no meio das
ocupações profissionais, sociais...
Consideremos a delicadeza com que o Senhor nos dirige o convite. Exprime-se com palavras
humanas, como um enamorado: Eu te chamei pelo teu nome... Tu és meu. Deus, que é a Formosura, a
Grandeza, a Sabedoria, anuncia-nos que somos seus, que nos escolheu como termo do seu amor
infinito. É precisa uma forte vida de fé para não desvirtuarmos esta maravilha que a Providência
Divina deposita em nossas mãos. Fé como a dos Reis Magos: a convicção de que nem o deserto, nem
as tempestades, nem a tranqüilidade dos oásis nos impedirão de chegar à meta do Presépio eterno: a
vida definitiva com Deus.

33 Um caminho de fé é um caminho de sacrifício. A vocação cristã não nos tira do nosso lugar, mas exige
que abandonemos tudo o que estorva o querer de Deus. A luz que se acende é apenas o princípio;
temos que segui-la, se desejamos que essa claridade se torne estrela, e depois sol. Enquanto os Magos
estavam na Pérsia - escreve São João Crisóstomo -, não viam senão uma estrela; mas, quando
abandonaram a sua pátria, viram o próprio sol da justiça. Pode-se dizer que não teriam continuado a
ver a estrela se tivessem permanecido no seu país. Apressemo-nos, pois, nós também; ainda que todos
no-lo impeçam, corramos à casa desse Menino.

Vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo. Ao ouvir isto, o Rei Herodes perturbou-se, e com
ele toda a cidade de Jerusalém. Ainda hoje se repete a cena. Perante a grandeza de Deus, perante a
decisão, seriamente humana e profundamente cristã, de viver de modo coerente com a fé. Não faltam
pessoas que se enchem de estranheza, e até se escandalizam e se desconcertam. Dir-se-ia que não
concebem outra realidade além das que cabem em seus estreitos horizontes terrenos. Perante os gestos
de generosidade que percebem na conduta dos que ouviram a chamada do Senhor, sorriem com
displicência, assustam-se, ou então - em casos que parecem verdadeiramente patológicos - concentram
todo o seu esforço em impedir a santa determinação que uma consciência tomou com a mais plena
liberdade.

Já tive ocasião de presenciar uma espécie de mobilização geral contra os que haviam decidido dedicar
toda a sua vida ao serviço de Deus e dos demais homens. Há gente persuadida de que o Senhor não
pode escolher seja quem for sem lhes pedir autorização, e de que o homem não é capaz de responder
sim ou não ao Amor, com a mais plena liberdade. Para quem raciocina nesses termos, a vida
sobrenatural de cada alma é algo secundário; pensam que merece atenção, mas só depois de satisfeitos
os pequenos comodismos e egoísmos humanos. Se fosse assim, que restaria do cristianismo? As
palavras de Jesus, amorosas e exigentes ao mesmo tempo, serão só para ouvir, ou para ouvir e pôr em
prática? Ele disse: Sede perfeitos, como vosso Pai celestial é perfeito.

Nosso Senhor dirige-se a todos os homens, para que caminhem ao seu encontro, para que sejam
santos. Não chama só os Reis Magos, que eram sábios e poderosos; antes disso, tinha enviado aos
pastores de Belém, não já uma estrela, mas um de seus anjos. No entanto, quer uns quer outros - sejam
pobres ou ricos, sábios ou menos sábios - devem fomentar na sua alma uma disposição humilde que
permita escutar a voz de Deus.

Consideremos o caso de Herodes: era um poderoso da terra, e tem às suas ordens a colaboração dos
sábios: Reunindo todos os príncipes dos sacerdotes e os escribas do povo, perguntou-lhes onde havia
de nascer o Messias. Seu poder e sua ciência não o levam a reconhecer Deus. Para o seu coração
empedernido, o poder e a ciência são instrumentos da maldade: o desejo inútil de aniquilar Deus, o
desprezo pela vida de um punhado de crianças inocentes.

Continuemos a ler o Santo Evangelho: Eles responderam: em Belém de Judá, pois assim está escrito
pelo profeta. “E tu, Belém, terra de Judá, não és certamente a menor entre as cidades de Judá,
porque de ti sairá o chefe que apascentará meu povo de Israel” Não nos podem passar despercebidos
estes detalhes de misericórdia divina: aquele que vinha redimir o mundo nasce numa aldeia perdida. É
que Deus não faz distinção de pessoas , como nos repete insistentemente a Escritura. Ao convidar uma
alma a uma vida de plena coerência com a fé, não se detém em méritos de fortuna, em títulos de
nobreza, em altos graus de ciência. A vocação precede todos os méritos: A estrela que tinham visto no
Oriente precedia-os, até que, chegando sobre o lugar onde estava o Menino, se deteve.

A vocação está em primeiro lugar; Deus nos ama antes de que saibamos sequer dirigir-nos a Ele, e
deposita em nós o amor com que podemos corresponder-lhe. A bondade paternal de Deus corre ao
nosso encontro. Nosso Senhor não se limita a ser justo; vai muito mais longe: é misericordioso. Não
espera que o procuremos; antecipa-se, com manifestações inequívocas de carinho paternal.

34 Se a vocação está em primeiro lugar, se a estrela brilha antecipadamente para nos orientar no nosso
caminho de amor a Deus, não é lógico ter dúvidas quando ela se oculta uma vez por outra. Quase
sempre por nossa culpa, acontece em determinados momentos da nossa vida interior o que aconteceu
durante a viagem dos Reis Magos: a estrela desaparece. Conhecemos já o resplendor divino da nossa
vocação, estamos persuadidos do seu caráter definitivo, mas talvez o pó que levantamos ao andar -
nossas misérias - forme uma nuvem opaca que não deixa passar a luz.

Que fazer então? Seguir os passos daqueles homens santos: perguntar. Herodes serviu-se da ciência
para proceder de modo injusto; os Reis Magos utilizam-na para fazer o bem.

Mas nós, cristãos, não temos necessidade de perguntar a Herodes ou aos sábios da terra. Cristo deu à
sua Igreja a segurança da doutrina, a corrente de graça dos Sacramentos; e cuidou de que houvesse
pessoas que nos pudessem orientar, que nos conduzissem, que nos trouxessem constantemente à
memória o nosso caminho. Dispomos de um tesouro infinito de ciência: a Palavra de Deus, guardada
pela Igreja; a graça de Cristo, que nos é administrada através dos Sacramentos; o testemunho e o
exemplo dos que vivem retamente ao nosso lado, e que souberam construir com suas vidas um
caminho de fidelidade a Deus.

Seja-me permitido um conselho: se alguma vez perdemos a claridade da luz, recorramos sempre ao
bom pastor. E quem é o bom pastor? O que entra pela porta da fidelidade à doutrina da Igreja; aquele
que não se comporta como o mercenário, o qual, vendo chegar o lobo, abandona as ovelhas e foge; e
o lobo as arrebata e dispersa o rebanho. A palavra divina não é vã; e a insistência de Cristo - não
percebemos o carinho com que fala de pastores e de ovelhas, do redil e do rebanho? - é uma
demonstração prática da necessidade de um bom guia para a nossa alma.

Se não houvesse maus pastores, escreve Santo Agostinho, Ele não no-lo teria prevendo. Quem é o
mercenário? É o que vê o lobo e foge; o que procura a sua glória, não a glória de Cristo: o que não
se atreve a censurar os pecadores com liberdade de espírito. O lobo fila uma ovelha pelo pescoço, o
demônio induz um fiel a cometer adultério. E tu te calas, não censuras. És mercenário; viste vir o lobo
e fugiste. Talvez digas: não, estou aqui, não fugi. Não, respondo, fugiste porque te calaste; e te calaste
porque tiveste medo.

A santidade da Esposa de Cristo sempre se demonstrou - como hoje continua a demonstrar-se - pela
abundancia de bons pastores. Mas a fé cristã, que nos ensina a ser simples, não nos induz a ser
ingênuos. Há mercenários que se calam, e há mercenários que pronunciam palavras que não são de
Cristo. Por isso, se porventura o Senhor permite que fiquemos às escuras, mesmo em coisas de
pormenor; se sentimos que a nossa fé não é firme, recorramos ao bom pastor, àquele que entra pela
porta, exercendo o seu direito, àquele que - dando a vida pelos outros - quer ser, na palavra e na
conduta, uma alma enamorada: talvez um pecador também, mas que confia sempre no perdão e na
misericórdia de Cristo.

Se a nossa consciência nos reprova alguma falta - mesmo que não nos pareça grave -, se estamos em
dúvida, recorramos ao Sacramento da Penitência. Iremos ao sacerdote que nos atende, àquele que sabe
exigir de nós firmeza na fé, delicadeza de alma, verdadeira fortaleza cristã. A Igreja concede-nos a
mais plena liberdade para nos confessarmos com qualquer sacerdote que possua as legítimas licenças;
mas um cristão de vida clara procura - livremente - aquele que reconhece como bom pastor, e que
pode ajudá-lo a levantar os olhos para tornar a ver no alto a estrela do Senhor.

35 Videntes autem stellam, gavisi sunt gaudio magno valde , diz o texto latino com admirável reiteração:
ao descobrirem novamente a estrela, exultaram cheios de grande alegria. Por quê tanta alegria? Porque
eles, que nunca duvidaram, recebem do Senhor a prova de que a estrela não desapareceu: deixaram de
contemplá-la sensivelmente, mas tinham-na conservado sempre na alma. Assim é a vocação do
cristão: se não se perde a fé, se se preserva a esperança em Jesus Cristo, que estará conosco até à
consumação dos séculos , a estrela reaparece. E, ao verificarmos uma vez mais a realidade da vocação,
nasce uma alegria maior, que aumenta em nós a fé.

Entrando na casa, viram o Menino com Maria, sua Mãe, e, pondo-se de joelhos, o adoraram. Nós
também nos ajoelhamos diante de Jesus, do Deus escondido na humanidade: repetimos-lhe que não
queremos dar as costas à sua chamada divina, que não nos afastaremos dEle; que tiraremos do nosso
caminho tudo o que for obstáculo à fidelidade; que desejamos sinceramente ser dóceis às suas
inspirações. Tu, na tua alma, e eu também - porque faço uma oração íntima, com um profundo clamor
silencioso - estamos contando agora ao Menino que temos ânsias de ser tão leais aos nossos
compromissos quanto os servos da parábola, para que nos possa também responder: Alegra-te, servo
bom e fiel.

E abrindo seus tesouros, ofereceram-lhe presentes de ouro, incenso e mirra. Detenhamo-nos um


pouco nesta passagem do Santo Evangelho. Como é possível que nós, que nada somos e nada
valemos, levemos oferendas a Deus? Diz a Escritura: Toda a dádiva e todo o dom perfeito vêm do
alto. O homem não consegue sequer descobrir inteiramente a profundidade e a beleza dos presentes do
Senhor: Se conhecesses o dom de Deus! , responde Jesus à mulher samaritana. Jesus Cristo ensinou-
nos a esperar tudo do Pai, a procurar, antes de mais nada, o reino de Deus e a sua justiça, porque tudo
o resto nos seria dado por acréscimo, e Ele sabe de que coisas estamos necessitados.

Na economia da salvação, Nosso Pai cuida de cada alma com amorosa delicadeza: Cada um recebeu
de Deus seu próprio dom, uns de uma maneira, outros de outra. Poderia, pois, parecer inútil esforçar-
nos por apresentar ao Senhor algo de que Ele necessitasse; dada a nossa situação de devedores
insolventes , nossas oferendas assemelhar-se-iam às da Lei Antiga, que Deus já não aceita: Não
quiseste sacrifícios nem oblações, nem holocaustos pelos pecados, nem te são agradáveis as coisas
que se oferecem segundo a Lei.

Mas o Senhor sabe que dar é próprio de enamorados, e Ele mesmo nos indica o que deseja de nós. Não
lhe interessam as riquezas, nem os frutos, nem os animais da terra, do mar ou do ar, porque tudo isso
lhe pertence. Quer algo íntimo, que temos que entregar-lhe com liberdade: Dá-me, meu filho, o teu
coração. Estamos vendo? Ele não se satisfaz compartilhando: quer tudo. Repito: não anda procurando
as nossas coisas; quer-nos a nós mesmos. Daí - e somente daí - surgem todos os outros presentes que
podemos oferecer ao Senhor.

Vamos dar-lhe, portanto, ouro: o ouro fino do espírito de desprendimento do dinheiro e dos meios
materiais. Não esqueçamos que são coisas boas, que procedem de Deus. Mas o Senhor dispôs que as
utilizássemos sem nelas deixar o coração, fazendo-as render em proveito da humanidade.

Os bens da terra não são maus; pervertem-se quando o homem os erige como ídolos e se prostra diante
deles; enobrecem-se quando os convertemos em instrumentos a serviço do bem, em uma tarefa cristã
de justiça e de caridade. Não podemos correr atrás dos bens materiais como quem vai à busca de um
tesouro; nosso tesouro está aqui, reclinado numa mangedoura; é Cristo, e nEle se devem concentrar
todos os nossos amores, porque onde estiver o nosso tesouro, lá estará também o nosso coração.
36 Oferecemos incenso: os desejos - que sobem até o Senhor - de levar uma vida nobre, da qual se
desprenda o bonus odor Christi , O perfume de Cristo. Impregnar nossas palavras e ações desse bonus
odor é semear compreensão, amizade. Que a nossa vida acompanhe a vida dos demais homens, para
que ninguém se encontre ou se sinta só. Nossa caridade deve ser também carinho, calor humano.

Assim no-lo ensina Jesus Cristo. Fazia séculos que a humanidade esperava a vinda do Salvador; os
profetas haviam-no anunciado de mil maneiras, e - embora grande parte da Revelação de Deus aos
homens se tivesse perdido em conseqüência do pecado e da ignorância -, até nos confins da terra se
conservava o desejo de Deus, a ânsia de redenção.

Chega a plenitude dos tempos e, para levar a cabo essa missão, não aparece um gênio filosófico, como
Platão ou Sócrates; não se instala na terra um conquistador poderoso, como Alexandre Magno. Nasce
um Infante em Belém: é o Redentor do mundo. Mas, antes de falar, ama com obras. Não traz nenhuma
fórmula mágica, porque sabe que a salvação que nos oferece tem que passar pelo coração do homem.
Suas primeiras ações são risos e choros de criança, sono inerme de um Deus humanado: para nos
cativar, para que saibamos acolhê-lo em nossos braços.

Uma vez mais ganhamos consciência do que é o cristianismo. Se o cristão não ama com obras,
fracassa como cristão, que é fracassar também como pessoa. Não podemos pensar nos outros homens
como se fossem números ou degraus para nós podermos subir; ou massa para ser exaltada ou
humilhada, adulada ou desprezada, conforme os casos. Devemos pensar nos outros - em primeiro
lugar, nos que estão ao nosso lado - como verdadeiros filhos de Deus que são, com toda a dignidade
desse título maravilhoso.

Com os filhos de Deus temos que nos comportar como filhos de Deus: o nosso amor deve ser
sacrificado, diário, feito de mil detalhes de compreensão, de sacrifício silencioso, de dedicação que
não se percebe. Este é o bonus odor Christi, que fazia dizer aos que viviam entre os nossos primeiros
irmãos na fé: Vede como se amam!

Não falo de um ideal utópico. O cristão não é um Tartarin de Tarascon, empenhado em caçar leões
onde não os pode encontrar: nos corredores de sua própria casa. Quero falar sempre de uma vida diária
e concreta: da santificação do trabalho, das relações familiares, da amizade. Se não somos
cristãos nesses momentos, quando o seremos? O bom perfume do incenso é o resultado de uma brasa
que queima sem espetáculo uma grande quantidade de grãos. O bonus odor Christi faz-se sentir entre
os homens, não pelas labaredas de um fogo de palha, mas pela eficácia de um rescaldo de virtudes: a
justiça, a lealdade, a fidelidade, a compreensão, a generosidade, a alegria.

37 E, com os Reis Magos, oferecemos também mirra, o sacrifício que não deve faltar na vida cristã. A
mirra traz-nos à lembrança a paixão do Senhor: na Cruz, dão-lhe a beber mirra misturada com vinho ,
e com mirra ungiram seu corpo para a sepultura. Mas não pensemos que a reflexão sobre a
necessidade do sacrifício e da mortificação significa introduzir uma nota de tristeza na festa alegre que
hoje celebramos.

Mortificação não é pessimismo nem espírito acre. A mortificação nada vale sem a caridade: por isso
devemos procurar mortificações que, além de nos fazerem passar pelas coisas da terra com domínio,
não mortifiquem os que vivem ao nosso lado. O cristão não pode ser nem um verdugo nem um
miserável; é um homem que sabe amar com obras, que prova o seu amor na pedra de toque da dor.

Mas devo dizer outra vez que, em geral, essa mortificação não consistirá em grandes renúncias, que
aliás não são freqüentes. Há de compor-se de pequenas vitórias: sorrir para quem nos aborrece, negar
ao corpo o capricho de uns bens supérfluos, acostumar-se a escutar os outros, fazer render o tempo que
Deus põe à nossa disposição... E tantos outros detalhes, aparentemente insignificantes -
contrariedades, dificuldades, dissabores - que surgem ao longo do dia sem que os procuremos.
38 Termino com as palavras do Evangelho de hoje: Entrando na casa, viram o Menino com Maria, sua
Mãe. Nossa Senhora não se separa do seu Filho. Os Reis Magos não são recebidos por um rei
encimado no seu trono, mas por um Menino nos braços de sua Mãe. Peçamos à Mãe de Deus, que é
nossa Mãe, que nos prepare o caminho que conduz à plenitude do amor: Cor Mariae dulcissimum, iter
para tutum! Seu doce coração conhece o caminho mais seguro para encontrarmos Cristo.

Os Reis Magos tiveram uma estrela; nós temos Maria, Stella maris, Stella Orientis, Estrela do mar,
Estrela do Oriente. Hoje dizemos-lhe: Santa Maria, Estrela do mar, Estrela da manhã, ajuda os teus
filhos. Nosso zelo pelas almas não deve conhecer fronteiras, porque ninguém está excluído do amor de
Cristo. Os Reis Magos foram as primícias dos gentios; mas, uma vez consumada a Redenção, já não
há judeu nem grego, não há servo nem livre, não há homem nem mulher - não existe discriminação de
espécie alguma -, porque todos vós sois um em Jesus Cristo.

Nós, cristãos, não podemos ser exclusivistas nem separar ou classificar as almas; virão muitos do
Oriente e do Ocidente ; todos têm lugar no coração de Cristo. Seus braços - voltamos a admirá-lo no
Presépio - são de criança, mas são os mesmos que se abrirão na Cruz, atraindo todos os homens a Si.

E o nosso último pensamento vai para esse homem justo, nosso Pai e Senhor São José, que, como de
costume, passa despercebido na cena da Epifania. Adivinho-o recolhido em contemplação, protegendo
com amor o Filho de Deus que, feito homem, foi confiado aos seus cuidados paternais. Com a
maravilhosa delicadeza de quem não vive para si, o Santo Patriarca excedeu-se num serviço tão
silencioso como eficaz.

Falamos hoje da vida de oração e de ânsias de apostolado. Queremos melhor mestre do que São José?
Se quiserdes um conselho, que repito incansavelmente há muitos anos, ite ad Ioseph , recorrei a São
José: ele nos mostrará caminhos concretos e modos humanos e divinos de nos aproximarmos de Jesus.
E em breve nos atreveremos, como ele, a segurar nos braços, a beijar, vestir e cuidar deste Menino-
Deus que para nós nasceu. Com a homenagem da sua veneração, os Magos ofereceram a Jesus ouro,
incenso e mirra; José deu-lhe - por inteiro - o seu coração jovem e enamorado.

39 A Igreja inteira reconhece em São José o seu protetor e padroeiro. Ao longo dos séculos, tem-se falado
dele sublinhando diversos aspectos da sua vida, continuamente fiel à missão que Deus lhe confiou. Por
isso, desde há muitos anos, agrada-me invocá-lo com este título muito íntimo: Nosso Pai e Senhor.

São José é realmente Pai e Senhor: protege e acompanha no seu caminho terreno aqueles que o
veneram, como protegeu e acompanhou Jesus enquanto crescia e se tornava homem. Quando se
procura ganhar intimidade com ele, descobre-se que o Santo Patriarca é, além disso, Mestre de vida
interior, porque nos ensina a conhecer Jesus, a conviver com Ele, a tomar consciência de que fazemos
parte da família de Deus. E São José nos dá esses ensinamentos sendo, como foi, um homem comum,
um pai de família, um trabalhador que ganhava a vida com o esforço de suas mãos. E este último
aspecto reveste-se também de um significado que é para nós motivo de reflexão e de alegria.

Ao celebrarmos hoje a sua festa, quero evocar a sua figura recordando o que dele nos diz o Evangelho,
para assim podermos descobrir melhor o que Deus nos transmite através da vida simples do Esposo de
Santa Maria.

40 Tanto São Mateus como São Lucas nos falam de São José como varão que descendia de uma estirpe
ilustre: a de Davi e Salomão, reis de Israel. Historicamente, os detalhes desta ascendência são um
pouco confusos, não sabemos qual das duas genealogias enumeradas pelos evangelistas diz respeito a
Maria - Mãe de Jesus segundo a carne - e qual a José, que era pai do Senhor segundo a lei judaica.
Nem sabemos se a cidade natal de São José era Belém, onde se recenseou, ou Nazaré, onde vivia e
trabalhava.
Sabemos, porém, que não era uma pessoa rica: era um trabalhador, como milhões de outros homens
em todo o mundo; exercia o ofício fatigante e humilde que Deus havia escolhido para Si ao tomar a
nossa carne e ao querer viver trinta anos entre nós como outra pessoa qualquer.

A Sagrada Escritura diz-nos que José era artesão. Vários Padres acrescentam que foi carpinteiro. São
Justino, referindo a vida de trabalho de Jesus, afirma que fazia arados e jugos. Baseando-se
provavelmente nessas palavras, Santo Isidoro de Sevilha conclui que José era ferreiro. Seja como for,
era um operário que trabalhava a serviço de seus concidadãos, que tinha uma habilidade manual, fruto
de anos de esforço e de suor.

Das narrações evangélicas depreende-se a grande personalidade humana de José: em nenhum


momento surge aos nossos olhos como um homem apoucado ou assustado perante a vida; pelo
contrário, sabe enfrentar os problemas, ultrapassar as situações difíceis, assumir com responsabilidade
e iniciativa as tarefas que lhe são confiadas.

Não estou de acordo com a forma clássica de representar São José como um ancião, ainda que com
isso se tenha tido a boa intenção de ressaltar a perpétua virgindade de Maria. Eu imagino-o jovem,
forte, talvez com alguns anos mais do que a Virgem, mas na plenitude da vida e do vigor humano.

Para viver a virtude da castidade, não é preciso esperar pela velhice ou pelo termo das energias. A
castidade nasce do amor e, para um amor limpo, nem a robustez nem a alegria da juventude
representam qualquer obstáculo. Jovem era o coração e o corpo de São José quando contraiu
matrimônio com Maria, quando soube do mistério da sua Maternidade divina, quando viveu junto dEla
respeitando a integridade que Deus queria oferecer ao mundo, como um sinal mais da sua vinda às
criaturas. Quem não for capaz de entender um amor assim, é porque conhece muito mal o verdadeiro
amor e desconhece por completo o sentido cristão da castidade.

Como dizíamos, José era um artesão da Galiléia, um homem como tantos outros. E o que pode esperar
da vida um habitante de uma aldeia perdida como Nazaré? Apenas trabalho, todos os dias, sempre com
o mesmo esforço. E, no fim da jornada, uma casa pobre e pequena, para recuperar as forças e
recomeçar a tarefa no dia seguinte.

Mas o nome de José significa em hebreu Deus acrescentará. A vida santa dos que cumprem a sua
vontade, Deus acrescenta dimensões inesperadas: o que a torna importante, o que dá valor a tudo - o
divino. À vida humilde e santa de José, Deus acrescentou - se assim me é permitido falar - a vida da
Virgem Maria e a de Jesus, Senhor Nosso. Deus nunca se deixa vencer em generosidade. José podia
tornar próprias as palavras pronunciadas por Santa Maria, sua Esposa: Quia fecit mihi magna qui
potens est, fez em mim coisas grandes Aquele que é Todo-Poderoso, quia respexit humilitatem, porque
olhou para a minha pequenez.

José era efetivamente um homem comum, em quem Deus confiou para realizar coisas grandes. Soube
viver - tal e como o Senhor queria - todos e cada um dos acontecimentos que compuseram a sua vida.
Por isso, a Santa Escritura louva José afirmando dele que era justo. E, na língua hebraica, justo quer
dizer piedoso, servidor irrepreensível de Deus, cumpridor da vontade divina ; outras vezes, significa
bom e caridoso para com o próximo. Numa palavra, justo é aquele que ama a Deus e demonstra esse
amor cumprindo os mandamentos divinos e orientando toda a vida para o serviço de seus irmãos, os
homens.

41 A justiça não consiste na simples submissão a uma regra: a retidão deve nascer de dentro, deve ser
profunda, vital, porque o justo vive da fé. Viver da fé: essas palavras, que mais tarde foram tema
freqüente de meditação para o Apóstolo Paulo, vêem-se amplamente realizadas em São José. Seu
cumprimento da vontade de Deus não é rotineiro nem formalista, mas espontâneo e profundo. A lei,
que todo o judeu praticante observava, não foi para ele um simples código nem uma fria recompilação
de preceitos, mas expressão da vontade do Deus vivo. Por isso soube reconhecer a voz do Senhor
quando lhe foi manifestada de forma inesperada e surpreendente.

A história do Santo Patriarca foi uma vida simples, mas não uma vida fácil. Depois de momentos
angustiantes, fica sabendo que o Filho de Maria foi concebido por obra do Espírito Santo. E esse
Menino, Filho de Deus, descendente de Davi segundo a carne, nasce numa gruta. Os anjos celebram
seu nascimento, e personalidades de terras longínquas vêm adorá-lo. Mas o Rei da Judéia deseja a sua
morte, e torna-se necessário fugir. O Filho de Deus é, aparentemente, um menino indefeso, que terá de
viver no Egito.

42 Ao narrar estas cenas no seu Evangelho, São Mateus salienta constantemente a fidelidade de José, que
cumpre sem hesitações os mandatos de Deus, mesmo que algumas vezes o sentido desses mandatos
lhe possa parecer obscuro ou sem conexão com o resto dos planos divinos.

Freqüentes vezes, os Padres da Igreja e os autores espirituais ressaltam esta firmeza da fé de São José.
Referindo-se às palavras do Anjo, que o manda fugir de Herodes e refugiar-se no Egito , o Crisóstomo
comenta: Ao ouvir isto, José não se escandalizou nem disse: isto parece um enigma. Ainda há pouco
me davas a conhecer que Ele salvaria o seu povo, e agora não só não é capaz de se salvar a si mesmo,
como somos nós que temos de fugir, de empreender uma viagem e sofrer uma longa mudança: isso é
contrário à tua promessa. José não raciocina desse modo, porque é um varão fiel. Também não
pergunta pela data de regresso, apesar de o Anjo a ter deixado indeterminada, posto que lhe tinha
dito: permanece lá - no Egito - até que eu te avise. Nem por isso levanta dificuldades, mas obedece, e
crê, e suporta todas as provas alegremente.

A fé de José não vacila, sua obediência é sempre estrita e rápida. Para compreendermos melhor esta
lição que aqui nos dá o Santo Patriarca, cumpre considerarmos que a sua fé é ativa e que a sua
docilidade não se assemelha à obediência de quem se deixa arrastar pelos acontecimentos. Porque a fé
cristã é o que há de mais oposto ao conformismo ou à passividade e à apatia interiores.

José abandonou-se sem reservas nas mãos de Deus, mas nunca se recusou a refletir sobre os
acontecimentos, e assim pôde alcançar do Senhor esse grau de compreensão das obras de Deus que é a
verdadeira sabedoria. Desse modo, aprendeu pouco a pouco que os planos sobrenaturais têm uma
coerência divina, embora às vezes estejam em contradição com os planos humanos.

Nas diversas circunstâncias de sua vida, o Patriarca não renuncia a pensar nem desiste da sua
responsabilidade. Pelo contrário, coloca toda a sua experiência humana a serviço da fé. Quando volta
do Egito, ouvindo que Arquelau reinava na Judéia em lugar de seu pai Herodes, temeu ir para
lá. Aprendeu a mover-se dentro do plano divino e, como confirmação de que seus pensamentos vão ao
encontro do que Deus realmente quer, recebe a indicação de se retirar para a Galiléia.

Assim foi a fé de José: plena, confiante, íntegra, manifestada numa entrega eficaz à vontade de Deus,
numa obediência inteligente. E, junto com a fé, a caridade, o amor. Sua fé funde-se com o Amor: com
o Amor a um Deus que estava cumprindo as promessas feitas a Abraão, a Jacó, a Moisés; com o
carinho de esposo para com Maria, e com o carinho de pai para com Jesus. Fé e amor na esperança da
grande missão que Deus, servindo-se dele também - um carpinteiro da Galiléia -, estava iniciando no
mundo: a redenção dos homens.

43 Fé, amor, esperança: estes são os eixos da vida de São José e os de toda a vida cristã. A entrega de São
José aparece-nos urdida por um entrelaçado de amor fiel, de fé amorosa, de esperança confiante. A sua
festa é, por isso, uma boa oportunidade para que todos renovemos a nossa entrega à vocação de
cristãos que o Senhor concedeu a cada um.

Quando se deseja sinceramente viver de fé, de amor e de esperança, a renovação da entrega não
significa retomar uma coisa que estava em desuso. Quando há fé, amor e esperança, renovar-se
significa conservar-se nas mãos de Deus, apesar dos erros pessoais, das quedas, das fraquezas: é
confirmar um caminho de fidelidade. Renovar a entrega, repito, é renovar a fidelidade àquilo que o
Senhor quer de nós: é amar com obras.

O amor tem necessariamente as suas manifestações características. Às vezes, fala-se do amor como se
fosse um impulso para a satisfação própria, ou um simples recurso para completarmos em moldes
egoístas a nossa personalidade. E não é assim: amor verdadeiro é sair de si mesmo, entregar-se. O
amor traz consigo a alegria, mas é uma alegria com as raízes em forma de cruz. Enquanto estivermos
na terra e não tivermos chegado à plenitude da vida futura, não pode haver amor verdadeiro sem a
experiência do sacrifício, da dor. Uma dor que se saboreia, que é amável, que é fonte de íntima alegria,
mas que é dor real, porque supõe vencer o egoísmo e tomar o amor como regra de todas e cada uma de
nossas ações.

44 As obras do amor são sempre grandes, mesmo que se trate de coisas aparentemente pequenas. Deus
aproximou-se dos homens, pobres criaturas, e disse-nos que nos ama: Deliciae meae esse cum filiis
hominum , minhas delícias são estar com os filhos dos homens. O Senhor mostra-nos que tudo tem
importância: as ações que, com olhos humanos, consideramos extraordinárias; essas outras que, pelo
contrário, qualificamos como algo de pouca categoria. Nada se perde. Nenhum homem é desprezado
por Deus. Todos nós, cada um seguindo a sua própria vocação - no seu lar, na sua profissão ou ofício,
no cumprimento das obrigações que lhe competem por seu estado, nos seus deveres de cidadão, no
exercício dos seus direitos -, todos somos chamados a participar do reino dos céus.

É o que nos ensina a vida de São José: simples, normal e comum, feita de anos de trabalho sempre
igual, de dias humanamente monótonos, que se sucedem uns aos outros. Tenho pensado muitas vezes
nesse aspecto, ao meditar sobre a figura de São José, e esta é uma das razões que me fazem sentir uma
devoção especial por ele.

Quando, no seu discurso de encerramento da primeira sessão do Concílio Vaticano II, no passado dia 8
de dezembro, o Santo Padre João XXIII anunciou que no cânon da missa se mencionaria o nome de
São José, uma altíssima personalidade eclesiástica telefonou-me imediatamente para me
dizer: Rallegramenti! Felicitações! Ao escutar a notícia, pensei imediatamente no senhor, na alegria
que lhe deve ter causado. Era verdade: porque na assembléia conciliar, que representa a Igreja inteira
reunida no Espírito Santo, proclamava-se o imenso valor sobrenatural da vida de São José, o valor de
uma vida simples de trabalho feito diante de Deus, em total cumprimento da vontade divina.

45 Descrevendo o espírito da associação a que dediquei a minha vida - o Opus Dei -, tenho dito que se
apóia, como que em seu eixo, no trabalho diário, no trabalho profissional exercido no meio do mundo.
A vocação divina confere-nos uma missão, convida-nos a participar na tarefa única da Igreja, para
sermos assim testemunhas de Cristo perante os nossos iguais, os homens, e levarmos todas as coisas
para Deus.

A vocação acende uma luz que nos faz reconhecer o sentido da nossa existência. É convencermo-nos,
sob o resplendor da fé, do porquê da nossa realidade terrena. Nossa vida - a presente, a passada e a que
há de vir - ganha um novo relevo, uma profundidade de que antes não suspeitávamos. Todos os fatos e
acontecimentos passam a ocupar o seu verdadeiro lugar: entendemos para onde o Senhor nos quer
conduzir, e nos sentimos como que avassalados por essa tarefa que Ele nos confia.

Deus tira-nos das trevas da nossa ignorância, do nosso caminhar incerto por entre as vicissitudes da
história, e, seja qual for o posto que ocupemos no mundo, chama-nos com voz forte, como o fez um
dia com Pedro e com André: Venite post me, et faciam vos fieri piscatores hominum , segui-me, e eu
vos tornarei pescadores de homens.
Quem vive da fé pode encontrar a dificuldade e a luta, a dor e até a amargura, mas nunca cairá no
desânimo ou na angústia, pois sabe que a sua vida tem valor, sabe para que veio a esta terra. Ego sum
lux mundi - exclamou Cristo -; qui sequitur me non ambulat in tenebris, sed habebit lumen vitae : Eu
sou a luz do mundo; aquele que me segue não caminha nas trevas, mas possuirá a luz da vida.

Para merecermos essa luz de Deus, precisamos amar, reconhecer humildemente a necessidade de
sermos salvos, e dizer com Pedro: Senhor, a quem iremos? Tu tens palavras de vida eterna. E nós
cremos e conhecemos que tu és Cristo, o Filho de Deus. Se agirmos assim de verdade, se deixarmos a
chamada divina penetrar no nosso coração, também com verdade poderemos repetir que não
caminhamos nas trevas, pois, por cima das nossas misérias e dos nossos defeitos pessoais, brilha a luz
de Deus, como o sol brilha por cima da tempestade.

46 A fé e a vocação de cristãos afetam toda a nossa existência, não apenas uma parte. As relações com
Deus são necessariamente relações de entrega, e assumem um sentido de totalidade. A atitude do
homem de fé é olhar para a vida, em todas as suas dimensões, sob uma perspectiva nova: a que Deus
nos dá.

Todos vós, que hoje celebrais comigo esta festa de São José, sois homens dedicados ao trabalho nas
mais diversas profissões humanas, fazeis parte dos lares mais diversos, pertenceis a tão diferentes
nações, raças e línguas. Fostes educados em centros de ensino, em oficinas ou escritórios, exercestes a
vossa profissão durante anos, travastes relações profissionais e pessoais com os vossos companheiros,
participastes na solução dos problemas coletivos das vossas empresas e da vossa sociedade.

Pois bem: recordo-vos, uma vez mais, que nada disso é alheio aos planos divinos. A vossa vocação
humana é parte, e parte importante, da vossa vocação divina. Esta é a razão pela qual tendes que vos
santificar - contribuindo ao mesmo tempo para a santificação dos outros, dos vossos iguais -
precisamente santificando o vosso trabalho e o vosso ambiente: essa profissão ou ofício que preenche
vossos dias, que dá uma fisionomia peculiar à vossa personalidade humana, que é a vossa maneira de
estar no mundo; esse lar, a vossa família; e essa nação em que nascestes e que amais.

47 O trabalho acompanha inevitavelmente a vida do homem sobre a terra. Com ele aparecem o esforço, a
fadiga, o cansaço, manifestações da dor e da luta que fazem parte da nossa existência humana atual, e
que são sinais da realidade do pecado e da necessidade da redenção. Mas o trabalho em si não é uma
pena, nem uma maldição ou um castigo: aqueles que falam assim não leram bem a Sagrada Escritura.

É hora de que todos nós, cristãos, anunciemos bem alto que o trabalho é um dom de Deus, e que não
faz nenhum sentido dividir os homens em diferentes categorias, conforme os tipos de trabalho,
considerando umas ocupações mais nobres do que as outras. O trabalho, todo o trabalho, é testemunho
da dignidade do homem, do seu domínio sobre a criação; é meio de desenvolvimento da
personalidade; é vínculo de união com os outros seres; fonte de recursos para o sustento da família;
meio de contribuir para o progresso da sociedade em que se vive e para o progresso de toda a
humanidade.

Para um cristão, essas perspectivas alargam-se e ampliam-se, porque o trabalho se apresenta como
participação na obra criadora de Deus que, ao criar o homem, o abençoou dizendo: Crescei e
multiplicai-vos, e enchei a terra e submetei-a, e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves do
céu, e sobre todos os animais que se movem sobre a terra. E porque, além disso, ao ser assumido por
Cristo, o trabalho se nos apresenta como realidade redimida e redentora: não é apenas a esfera em que
o homem se desenvolve, mas também meio e caminho de santidade, realidade santificável e
santificadora.
48 Convém não esquecer, portanto, que esta dignidade do trabalho se baseia no Amor. O grande
privilégio do homem é poder amar, transcendendo assim o efêmero e o transitório. O homem pode
amar as outras criaturas, dizer um “tu” e um “eu” cheios de sentido. E pode amar a Deus, que nos abre
as portas do céu, que nos constitui membros da sua família, que nos autoriza a falar-lhe também de tu a
Tu, face a face.

Por isso, o homem não se deve limitar a fazer coisas, a construir objetos. O trabalho nasce do amor,
manifesta o amor, orienta-se para o amor. Reconhecemos Deus não apenas no espetáculo da natureza,
mas também na experiência do nosso próprio trabalho, do nosso esforço. O trabalho é assim oração,
ação de graças, porque nos sabemos colocados na terra por Deus, amados por Ele, herdeiros de suas
promessas. É justo que o Apóstolo nos diga: Quer comais, quer bebais, ou façais qualquer outra
coisa, fazei tudo para a glória de Deus.

49 O trabalho profissional é também apostolado, ocasião de entrega aos outros homens, o momento de
lhes revelar Cristo e levá-los a Deus Pai; é conseqüência da caridade que o Espírito Santo derrama nas
almas. Entre as indicações que São Paulo dá aos Efésios, sobre o modo como se deve manifestar a
mudança que neles operou a conversão, a sua chamada ao cristianismo, encontramos esta: Aquele que
furtava não furte mais, mas trabalhe, ocupando-se com suas mãos em qualquer coisa honesta, a fim de
ter com que ajudar a quem esteja em necessidade. Os homens têm necessidade do pão da terra para
sustentar as suas vidas, e também do pão do céu para iluminar e dar calor aos seus corações. Com o
nosso próprio trabalho, com as iniciativas que possamos promover a partir das nossas ocupações, nas
nossas conversas, no convívio com os outros, podemos e devemos concretizar esse preceito apostólico.

Se trabalhamos com esse espírito, a nossa vida, no meio das limitações próprias da condição terrena,
será uma antecipação da glória do céu, dessa comunidade com Deus e com os santos, onde reinam
somente o amor, a entrega, a fidelidade, a amizade, a alegria. Na ocupação profissional diária e comum
encontraremos a matéria - real, consistente, valiosa - para realizarmos toda a vida cristã, para
atualizarmos a graça que nos vem de Cristo.

Nessa tarefa profissional, exercida de olhos postos em Deus, entrarão em jogo a fé, a esperança e a
caridade. As vicissitudes, as relações e os problemas próprios do trabalho alimentarão a nossa oração.
O esforço necessário para levar a cabo as tarefas diárias será ocasião de vivermos essa Cruz que é
essencial a todo o cristão. A experiência da nossa fraqueza, os malogros que existem sempre em
qualquer esforço humano, dar-nos-ão mais realismo, mais humildade, mais compreensão com os
outros. Os êxitos e as alegrias convidar-nos-ão a dar graças e a pensar que não vivemos para nós
mesmos, mas para o serviço dos outros e de Deus.

50 Para viver assim, para santificar a profissão, é necessário em primeiro lugar trabalhar bem, com
seriedade humana e sobrenatural. Quero recordar aqui, por contraste, o que conta um desses antigos
relatos dos evangelhos apócrifos: O pai de Jesus, que era carpinteiro, fazia arados e jugos. Certa vez
- continua a narrativa - uma pessoa de boa reputação encomendou-lhe uma cama. Mas aconteceu que
um dos varais era mais curto que o outro, e José não sabia o que fazer. Então o Menino Jesus disse a
seu pai: põe os dois paus no chão e alinha-os por uma das extremidades. José assim fez. Jesus
colocou-se do outro lado, pegou no varal mais curto e esticou-o, deixando-o tão comprido quanto o
outro. José, seu pai, encheu-se de admiração ao ver o prodígio e cobriu o Menino de abraços e beijos,
dizendo: feliz de mim, porque Deus me deu este Menino.

José não podia dar graças a Deus por tais motivos; seu trabalho não podia ser dessa espécie. São José
não é o homem das soluções fáceis e milagreiras, mas o homem da perseverança, do esforço e -
quando necessário - do engenho. O cristão sabe que Deus faz milagres: que os fez há séculos, que
continuou a fazê-los depois e que continua a fazê-los agora, porque non est abbreviata manus Domini ,
o poder de Deus não diminuiu.
Mas os milagres são uma manifestação da onipotência salvadora de Deus, não um expediente para
remediar as conseqüências da inépcia ou para favorecer o nosso comodismo. O milagre que o Senhor
nos pede é a perseverança na vocação cristã e divina, a santificação do trabalho de cada dia: o milagre
de converter a prosa diária em decassílabos, em verso heróico, pelo amor com que desempenhamos as
ocupações habituais. Deus nos espera aí, de tal forma que sejamos almas com senso de
responsabilidade, com preocupação apostólica, com competência profissional.

Por isso, como lema para o trabalho de cada um, posso indicar este: Para servir, servir. Porque, para
fazer as coisas, é preciso antes de mais nada saber terminá-las. Não acredito na retidão de intenção de
quem não se esforça por alcançar a competência necessária para cumprir bem as tarefas que lhe são
confiadas. Não basta querer fazer o bem; é preciso saber fazê-lo. E, se realmente queremos, esse
desejo traduzir-se-á no empenho em utilizar os meios adequados para deixar as coisas acabadas, com
perfeição humana.

51 Mas esse serviço humano, essa capacidade que poderíamos chamar técnica, esse saber realizar o ofício
próprio, deve, além disso, estar informado por uma característica que foi fundamental no trabalho de
São José e que devia ser fundamental em todo o cristão: o espírito de serviço, o desejo de trabalhar
com o fim de contribuir para o bem dos demais homens. O trabalho de José não foi um trabalho que
visasse a auto-afirmação, embora a dedicação a uma vida operativa tivesse forjado nele uma
personalidade amadurecida, bem delineada. O Patriarca trabalhava com a consciência de estar
cumprindo a vontade de Deus, pensando no bem dos seus, Jesus e Maria, e tendo em vista o bem dos
habitantes da pequena Nazaré.

Em Nazaré, José devia ser um dos poucos artesãos, se não o único. Possivelmente, carpinteiro. Mas,
como costuma acontecer nas pequenas povoações, também devia ser capaz de fazer outras coisas: pôr
em andamento um moinho que não funcionava, ou consertar antes do inverno as fendas de um teto.
José devia tirar muita gente de dificuldades, com um trabalho bem acabado. Seu trabalho profissional
era uma ocupação orientada para o serviço, tinha em vista tornar mais grata a vida das outras famílias
da aldeia; e far-se-ia acompanhar de um sorriso, de uma palavra amável, de um comentário dito como
que de passagem, mas que devolve a fé e a alegria a quem está prestes a perdê-las.

52 As vezes, quando se tratasse de pessoas mais pobres do que ele, José devia trabalhar aceitando em
troca alguma coisa de pouco valor, que deixasse a outra pessoa com a satisfação de pensar que tinha
pago. Normalmente, cobraria o que fosse razoável, nem mais nem menos. Saberia exigir o que em
justiça lhe era devido, já que a fidelidade a Deus não pode significar renúncia a direitos que na
realidade são deveres: São José tinha de exigir o que era justo, pois com a recompensa desse trabalho
precisava sustentar a Família que Deus lhe havia confiado.

Exigir os direitos que nos assistem não deve ser fruto de um egoísmo individualista. Não se ama a
justiça, se não se deseja vê-la estendida aos outros. Como também não é lícito encerrar-se numa
religiosidade cômoda, esquecendo as necessidades alheias. Quem deseja ser justo aos olhos de Deus
esforça-se também por fazer com que se pratique de fato a justiça entre os homens. E não apenas pelo
bom motivo de que não se injurie o nome de Deus, mas porque ser cristão significa acolher todas as
instâncias nobres que existem no ser humano. Parafraseando um conhecido texto do Apóstolo São
João , podemos dizer que quem se proclama justo com Deus, mas não é justo com os outros homens, é
um mentiroso; e a verdade não habita nele.

Como todos os cristãos que viveram aquele momento, também eu recebi com emoção e alegria a
decisão de celebrar a festa litúrgica de São José Operário. Essa festa, que é uma canonização do valor
divino do trabalho, mostra como a Igreja, na sua vida coletiva e pública, se faz eco das verdades
centrais do Evangelho, que Deus deseja ver especialmente meditadas nos nossos dias.
53 Já falamos muito deste tema em outras ocasiões, mas permito-me insistir de novo na naturalidade e na
simplicidade da vida de São José, que não se distanciava de seus vizinhos nem levantava barreiras
desnecessárias.

Por isso, embora em alguns momentos ou situações isso possa ser conveniente, normalmente não gosto
de falar de operários católicos, de engenheiros católicos, de médicos católicos, etc., como se se
tratasse de uma espécie dentro de um gênero, como se os católicos formassem um grupinho separado
dos outros, dando assim a sensação de que existe um fosso entre os cristãos e o resto da humanidade.
Respeito a opinião contrária, mas penso que é muito mais correto falar de operários que são católicos,
ou de católicos que são operários; de engenheiros que são católicos, ou de católicos que são
engenheiros: porque o homem que tem fé e que exerce uma profissão intelectual, técnica ou manual, é
e sente-se unido aos outros, igual aos outros, com os mesmos direitos e obrigações, com o mesmo
desejo de progredir, com o mesmo anseio de enfrentar os problemas comuns e de encontrar solução
para eles.

Assumindo todos esses aspectos, o católico saberá fazer da sua vida diária um testemunho de fé, de
esperança e de caridade; testemunho simples, normal, sem necessidade de manifestações
espetaculares, pondo de manifesto - com a coerência da sua vida - a presença constante da Igreja no
mundo, já que todos os católicos são eles mesmos Igreja, são membros, com pleno direito, do único
Povo de Deus.

54 Desde há muito tempo gosto de recitar uma comovente invocação a São José, que a própria Igreja nos
propõe, entre as orações preparatórias da missa: José, varão bem-aventurado e feliz, a quem foi
concedido ver e ouvir o Deus que muitos reis quiseram ver e ouvir, e não viram nem ouviram; e não
apenas vê-lo e ouvi-lo, mas também segurá-lo nos braços, beijá-lo, vesti-lo e guardá-lo: rogai por
nós. Esta oração nos servirá para entrarmos no último tema que hoje queria tocar: o convívio íntimo
entre José e Jesus.

Para São José, a vida de Jesus foi uma contínua descoberta da sua própria vocação. Recordávamos
atrás aqueles primeiros anos cheios de circunstâncias aparentemente contraditórias: glorificação e
fuga, majestade dos Magos e pobreza do presépio, cântico dos Anjos e silêncio dos homens. Quando
chega o momento de apresentar o Menino no Templo, José, que leva a modesta oferenda de um par de
pombas, vê Simeão e Ana proclamarem que Jesus é o Messias. E seu pai e sua mãe escutavam com
admiração , diz São Lucas. Mais tarde, quando o Menino fica no Templo sem que Maria e José o
saibam, ao encontrá-lo novamente, depois de o procurarem por três dias, o mesmo evangelista diz
que se maravilharam.

José surpreende-se, José admira-se. Deus vai-lhe revelando os seus desígnios e ele esforça-se por
entendê-los. Como toda a alma que queira seguir Jesus de perto, descobre imediatamente que não é
possível andar com passo cansado nem persistir na rotina. Deus não se conforma com a estabilidade no
nível atingido, com o descanso naquilo que já se tem. Deus exige continuamente mais e mais, e seus
caminhos não são os nossos caminhos humanos. Como nenhum outro homem antes ou depois dele,
São José aprendeu de Jesus a permanecer atento às maravilhas de Deus, a ter a alma e o coração
abertos.

55 Mas se José aprendeu de Jesus a viver de um modo divino, atrever-me-ia a dizer que, sob o aspecto
humano, ensinou muitas coisas ao Filho de Deus. Há qualquer coisa que não acabo de gostar no título
de pai adotivo com que às vezes se designa José, porque oferece o perigo de sugerir que as suas
relações com Jesus eram frias e externas. Certamente a nossa fé nos diz que José não era pai segundo a
carne, mas essa não é a única paternidade possível.

A José não só se deve o nome de pai - lemos num sermão de Santo Agostinho -, como se deve mais a
ele do que a qualquer outro. E acrescenta: De que forma era pai? Tanto mais profundamente pai,
quanto mais casta foi a sua paternidade. Alguns pensavam que era pai de Nosso Senhor Jesus Cristo,
tal como são pais os outros, os que geram segundo a carne, e não recebem seus filhos somente como
fruto do seu afeto espiritual. Por isso diz São Lucas: pensava-se que era pai de Jesus. Por que diz
apenas que se pensava? Porque o pensamento e o juízo humanos se referem àquilo que costuma
acontecer entre os homens. E o Senhor não nasceu do germe de José. Mas à piedade e à caridade de
José nasceu um filho da Virgem Maria, que era Filho de Deus.

José amou Jesus como um pai ama o seu filho, dando-lhe tudo o que tinha de melhor. Cuidou daquele
Menino como lhe tinha sido ordenado, e fez dele um artesão: transmitiu-lhe o seu oficio. Por isso os
vizinhos de Nazaré se referiam a Jesus indistintamente como faber e fabri filius : artesão e filho do
artesão. Jesus trabalhou na oficina de José e junto de José. Como seria José, como teria atuado nele a
graça, para ser capaz de desempenhar a tarefa de educar o Filho de Deus nos aspectos humanos?

Porque Jesus devia parecer-se com José: no modo de trabalhar, nos traços do seu caráter, na maneira
de falar. No realismo de Jesus, no seu espírito de observação, no seu modo de se sentar à mesa e de
partir o pão, no seu gosto em expor a doutrina de maneira concreta, tomando como exemplo as coisas
da vida corrente, reflete-se o que foi a infância e a juventude de Jesus e, portanto, o seu convívio com
José.

Não é possível desconhecer a sublimidade do mistério. Esse Jesus que é homem, que fala com o
sotaque de uma região determinada de Israel, que se parece com um artesão chamado José, esse é o
Filho de Deus. E quem pode ensinar alguma coisa a Deus? Mas é realmente homem, e vive
normalmente: primeiro como criança, depois como adolescente, ajudando na oficina de José;
finalmente como homem maduro, na plenitude da idade. Jesus crescia em sabedoria, em idade e em
graça, diante de Deus e dos homens.

56 Nas coisas humanas, José foi mestre de Jesus; conviveu diariamente com Ele, com carinho delicado, e
cuidou dEle com abnegação alegre. Não será esta uma boa razão para considerarmos este varão justo,
este Santo Patriarca, em quem culmina a fé da Antiga Aliança, como Mestre de vida interior? A vida
interior não é outra coisa senão uma relação de amizade assídua e intima com Cristo, para nos
identificarmos com Ele. E José saberá dizer-nos muitas coisas sobre Jesus. Por isso, não abandonemos
nunca a devoção que lhe dedicamos: Ite ad Ioseph, ide a José, como diz a tradição cristã, servindo-se
de uma frase tirada do Antigo Testamento.

Mestre de vida interior, trabalhador empenhado no seu ofício, servidor fiel de Deus, em relação
continua com Jesus: este é José. Ite ad Ioseph. Com São José, o cristão aprende o que significa
pertencer a Deus e estar plenamente entre os homens, santificando o mundo. Procuremos a intimidade
com José, e encontraremos Jesus. Procuremos a intimidade com José, e encontraremos Maria, que
encheu sempre de paz a amável oficina de Nazaré.

57 Entramos no tempo da Quaresma: tempo de penitência, de purificação, de conversão. Não é tarefa


fácil. O cristianismo não é um caminho cômodo: não basta estar na Igreja e deixar que os anos
passem. Na nossa vida, na vida dos cristãos, a primeira conversão - esse momento único, que cada um
de nós recorda, e em que se percebe claramente tudo o que o Senhor nos pede - é importante; mas
ainda mais importantes, e mais difíceis, são as sucessivas conversões. E para facilitar o trabalho da
graça divina com estas conversões sucessivas, é preciso conservar a alma jovem, invocar o Senhor,
saber escutar, descobrir o que vai mal, pedir perdão.

Invocabit me et ego exaudiam eum, lemos na liturgia deste Domingo : se me invocardes, eu vos
escutarei, diz o Senhor. Devemos considerar esta maravilha que são os cuidados que Deus tem
conosco, sempre disposto a ouvir-nos, atento em cada instante à palavra do homem. Seja em que
tempo for - mas agora de um modo especial, porque o nosso coração está bem disposto, decidido a
purificar-se -, Ele nos escuta, e não deixará de atender às súplicas de um coração contrito e
humilhado.

O Senhor escuta-nos para intervir, para penetrar na nossa vida, para nos livrar do mal e cumular-nos de
bem. Eripiam eum et glorificabo eum , eu o livrarei e o glorificarei, diz do homem. Portanto, esperança
de glória. E aqui temos, como em outras ocasiões, o começo desse movimento íntimo que é a vida
espiritual. A esperança dessa glorificação acentua a nossa fé e estimula a nossa caridade. E deste modo
se põem em movimento as três virtudes teologais, virtudes divinas que nos assemelham ao nosso Pai-
Deus.

Haverá melhor maneira de começarmos a Quaresma? Renovamos a fé, a esperança, a caridade. Esta é
a fonte do espírito de penitência, do desejo de purificação. A Quaresma não é apenas uma ocasião de
intensificarmos as nossas práticas externas de mortificação; se pensássemos que é apenas isso,
escapar-nos-ia o seu sentido mais profundo na vida cristã, porque esses atos externos - repito - são
fruto da fé, da esperança e do amor.

58 Qui habitat in adiutorio Altissimi, in protectione Dei coeli commorabitur. Habitar sob a proteção de
Deus, viver com Deus: esta é a arriscada segurança do cristão. Precisamos persuadir-nos de que Deus
nos ouve, de que está com os olhos postos em nós; assim se inundará de paz o nosso coração. Mas
viver com Deus é indubitavelmente correr um risco, porque o Senhor não se satisfaz compartilhando:
quer tudo. E aproximar-se um pouco mais dEle significa estarmos dispostos a uma nova conversão, a
uma nova retificação, a escutar mais atentamente as suas inspirações, os santos desejos que faz brotar
na alma, e a pô-los em prática.

Desde a nossa primeira decisão consciente de vivermos integramente a doutrina de Cristo, não há
dúvida de que avançamos muito no caminho da fidelidade à sua Palavra. Mas não é verdade que ainda
restam tantas coisas por fazer? Não é verdade que resta sobretudo tanta soberba? É precisa, sem
dúvida, uma nova mudança, uma lealdade mais plena, uma humildade mais profunda, de modo que,
diminuindo o nosso egoísmo, Cristo cresça em nós, já que illum oportet crescere, me autem minui , é
preciso que Ele cresça e eu diminua.

Não é possível ficarmos imóveis. Temos que avançar em direção à meta apontada por São Paulo: Não
sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim. A ambição é alta e nobilíssima: a identificação com
Cristo, a santidade. Mas não existe outro caminho, se desejamos ser coerentes com a vida divina que
Deus fez nascer em nossas almas pelo Batismo. Avançar é progredir na santidade; e negar-se ao
desenvolvimento normal da vida cristã é retroceder. Porque o fogo do amor de Deus precisa ser
alimentado, crescer cada dia, ganhar raízes na alma: e o fogo mantém-se vivo quando se queimam
coisas novas. Por isso, se não aumenta, leva caminho de extinguir-se. Lembremo-nos das palavras de
Santo Agostinho: Se disseres basta, estás perdido. Procura sempre mais, caminha sempre, progride
sempre. Não permaneças no mesmo lugar, não retrocedas, não te desvies.

A Quaresma coloca-nos agora diante destas perguntas fundamentais: progrido na minha fidelidade a
Cristo, em desejos de santidade, em generosidade apostólica na minha vida diária, no meu trabalho
quotidiano entre os meus colegas de profissão?

Cada um deve responder a estas perguntas sem ruído de palavras. E perceberá como é necessária uma
nova transformação, para que Cristo viva em nós, para que a sua imagem se reflita sem distorções na
nossa conduta.

Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz cada dia e siga-me. Isso é o que
Cristo nos repete ao ouvido, intimamente: a Cruz, cada dia. Não apenas - escreve São Jerônimo - no
tempo da perseguição, ou quando se apresenta a possibilidade do martírio, mas em todas as
situações, em todas as obras, em todos os pensamentos, em todas as palavras, neguemos aquilo que
antes éramos e confessemos o que agora somos, já que renascemos em Cristo.
Estas considerações não são, afinal, senão o eco daquelas outras palavras do Apóstolo: É verdade que
outrora éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor. Comportai-vos como filhos da luz, porque o fruto
da luz consiste em caminhar com toda a bondade e justiça e verdade: procurando o que é agradável
ao Senhor.

A conversão é obra de um instante; a santificação é tarefa de toda a vida. A semente divina da


caridade, que Deus depositou em nossas almas, aspira a crescer, a manifestar-se em obras, a dar frutos
que correspondam em cada momento ao que é agradável ao Senhor. Por isso é indispensável que
estejamos dispostos a recomeçar, a reencontrar - nas novas situações da nossa vida - a luz e o impulso
da primeira conversão. Esta é a razão pela qual nos devemos preparar com um exame profundo,
pedindo ajuda ao Senhor, para que possamos conhecê-lo melhor e conhecer-nos melhor. Não existe
outro caminho, se queremos converter-nos de novo.

59 Exhortamur ne in vacuum gratiam Dei recipiatis , nós vos exortamos a não receber em vão a graça de
Deus. Porque a graça divina pode penetrar em nossas almas nesta Quaresma, se não fecharmos as
portas do coração. Precisamos cultivar as boas disposições, o desejo de nos transformarmos a sério, de
não brincar com a graça do Senhor.

Não me agrada falar de temor, porque o que move o cristão é a Caridade de Deus, que nos foi
manifestada em Cristo, e que nos ensina a amar a todos os homens e a criação inteira. Mas devemos
sem dúvida falar de responsabilidade, de seriedade: Não queirais enganar-vos a vós mesmos; com
Deus não se brinca , adverte-nos o mesmo Apóstolo.

É preciso decidir-se. Não é lícito viver mantendo acesas, como diz o povo, uma vela a São Miguel e
outra ao diabo. É preciso apagar a vela do diabo. Temos que consumir a nossa vida fazendo-a arder
por completo ao serviço do Senhor. Se o nosso propósito de santidade for sincero, se tivermos a
docilidade de nos abandonarmos nas mãos de Deus, tudo correrá bem. Porque Ele está sempre disposto
a dar-nos a sua graça e, especialmente neste tempo, a graça para uma nova conversão, para uma
melhora na nossa vida de cristãos. Não podemos considerar esta Quaresma como uma época a mais,
como uma simples repetição cíclica do tempo litúrgico. Este momento é único; é uma ajuda divina que
temos que aproveitar. Jesus passa ao nosso lado e espera de nós - hoje, agora - uma grande mudança.

Ecce nunc tempus acceptabile, ecce nunc dies salutis ; este é o tempo oportuno, este pode ser o dia da
salvação. Ouvem-se novamente os silvos do Bom Pastor, seu chamado carinhoso: Ego vocavi te
nomine tuo. Chama-nos a cada um pelo nosso nome, pelo apelativo familiar com que nos chamam as
pessoas que nos amam. A ternura de Jesus por nós não se pode traduzir em palavras.

Consideremos juntos esta maravilha do amor de Deus: o Senhor vem ao nosso encontro, espera por
nós, coloca-se à beira do caminho, para que tenhamos que vê-lo necessariamente. E chama-nos
pessoalmente, falando-nos das nossas coisas, que são também suas, movendo a nossa consciência à
compunção, abrindo-a à generosidade, imprimindo em nossas almas o desejo de sermos fiéis, de nos
podermos chamar seus discípulos. Basta percebermos estas íntimas palavras da graça - que muitas
vezes são como uma censura afetuosa -, para nos darmos conta de que Ele não nos esqueceu durante
todo o tempo em que, por nossa culpa, deixamos de o ver. Cristo ama-nos com o carinho inesgotável
que se encerra em seu coração de Deus.

Reparemos como insiste: Eu te ouvi no tempo oportuno, eu te ajudei no dia da salvação. Já que Ele te
promete e te oferece oportunamente a glória - o seu amor -, e te chama, tu, que irás dar ao Senhor?
Como corresponderás, como corresponderei eu também, a esse amor de Jesus que passa?

Ecce nunc dies salutis, aqui está diante de nós o dia da salvação. O chamado do Bom Pastor chega até
nós: Ego vocavi te nomine tuo, eu te chamei pelo teu nome. É preciso responder - amor com amor se
paga - dizendo: Ecce ego quia vocasti me , chamaste-me e aqui estou. Estou decidido a não permitir
que este tempo de Quaresma passe como passa a água sobre as pedras, sem deixar rasto. Deixar-me-ei
empapar, transformar; converter-me-ei, dirigir-me-ei de novo ao Senhor, amando-o como Ele deseja
ser amado.

Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, e com toda a tua alma, e com toda a tua
mente. Que resta do teu coração - comenta Santo Agostinho -, para que possas amar-te a ti mesmo?
Que resta da tua alma, que resta da tua mente? “Ex toto”, diz. “Totum exigit te, qui fecit te”. Quem te
fez exige tudo de ti.

60 Depois deste protesto de amor, temos que nos comportar como amadores de Deus. In omnibus
exhibeamus nosmetipsos sicut Dei ministros , comportemo-nos em todas as coisas como servidores de
Deus. Se te deres como Ele quer, a ação da graça manifestar-se-á na tua conduta profissional, no teu
trabalho, no empenho em fazer com estilo divino as coisas humanas, grandes ou pequenas, porque,
pelo Amor, todas elas adquirem uma nova dimensão.

Mas nesta Quaresma não podemos esquecer que querer ser servidor de Deus não é fácil. E para
recordar as dificuldades, continuemos com o texto de São Paulo recolhido na Epístola da Missa deste
Domingo: Como servidores de Deus - escreve o Apóstolo -, com muita paciência nas tribulações, nas
necessidades, nas angústias, nos açoites, nas prisões, nas sedições, nos trabalhos, nas vigílias, nos
jejuns; com pureza, com doutrina, com longanimidade, com mansidão, com o Espírito Santo, com
caridade sincera, com palavras de verdade, com fortaleza de Deus. Nos momentos mais díspares da
vida, em todas as situações, temos que nos comportar como servidores de Deus, sabendo que o Senhor
está conosco, que somos seus filhos. Temos que ser conscientes dessa raiz divina enxertada em nossa
vida, e atuar em conseqüência.

As palavras do Apóstolo devem encher-nos de alegria, porque são como que uma canonização da
nossa vida de simples cristãos, que vivem no meio do mundo, partilhando anseios, trabalhos e alegrias
com os demais homens, seus iguais. Tudo isso é caminho divino. O que o Senhor nos pede é que a
todo o momento nos comportemos como seus filhos e servidores.

Mas essas circunstâncias ordinárias da vida só serão caminho divino se verdadeiramente nos
convertermos, se nos entregarmos. Porque São Paulo emprega uma linguagem dura. Promete ao
cristão uma vida difícil, arriscada, em perpétua tensão. Como se desfigurou o cristianismo quando se
pretendeu fazer dele um caminho cômodo! Mas também é desfigurar a verdade pensar que essa vida
profunda e séria, que conhece vivamente todos os obstáculos da existência humana, é uma vida de
angústia, de opressão ou de temor.

O cristão é realista, de um realismo sobrenatural e humano, sensível a todos os matizes da vida: a dor e
a alegria, o sofrimento próprio e alheio, a certeza e a perplexidade, a generosidade e a tendência para o
egoísmo. O cristão conhece tudo, e tudo enfrenta, cheio de integridade humana e da fortaleza recebida
de Deus.

61 A Quaresma comemora os quarenta dias que Jesus passou no deserto, como preparação para esses
anos de pregação que culminam na Cruz e na glória da Páscoa. Quarenta dias de oração e de penitência
que, ao findarem, desembocam na cena que a liturgia de hoje oferece à nossa consideração no
Evangelho da Missa: as tentações de Cristo.

É uma cena cheia de mistério, que o homem em vão pretende entender - Deus que se submete à
tentação, que deixa agir o Maligno -, mas que pode ser meditada se pedirmos ao Senhor que nos faça
compreender a lição que encerra.

Jesus Cristo tentado. A Tradição esclarece a cena considerando que Nosso Senhor quis também sofrer
a tentação para nos dar exemplo em tudo. E assim é, porque Cristo foi perfeito Homem, igual a nós,
exceto no pecado , Depois de quarenta dias de jejum, em que possivelmente se alimentou apenas de
ervas, raízes e um pouco de água, Jesus sente fome: fome verdadeira, como a de qualquer outra
criatura. E quando o demônio lhe propõe que converta as pedras em pão, o Senhor não só rejeita o
alimento que o corpo lhe pedia, como afasta de si uma incitação maior: a de usar do poder divino para
remediar, digamos assim, um problema pessoal.

Tê-lo-emos notado ao longo dos Evangelhos: Jesus não faz milagres em benefício próprio. Converte a
água em vinho para os esposos de Caná ; multiplica os pães e os peixes para dar de comer a uma
multidão faminta , Mas Ele ganha o pão, durante muitos anos, com o seu próprio trabalho. Mais tarde,
ao longo do seu peregrinar por terras de Israel, viverá com a ajuda daqueles que o seguem.

São João relata-nos que, depois de uma longa caminhada, chegando Jesus ao poço de Sicar, mandou os
seus discípulos ao povoado para comprarem comida; e ao ver aproximar-se a Samaritana, pediu-lhe
água, porque não tinha com que tirá-la. Seu corpo fatigado pela longa caminhada experimenta o
cansaço, e há ocasiões em que dorme para reparar as forças. Generosidade do Senhor que se humilhou,
que aceitou plenamente a condição humana, que não se serve do seu poder de Deus para fugir das
dificuldades ou do esforço; que nos ensina a ser fortes, a amar o trabalho, a apreciar a nobreza humana
e divina de saborear as conseqüências da entrega.

Na segunda tentação, quando o demônio lhe propõe que se atire do alto do Templo, Jesus recusa-se
novamente a usar do seu poder divino. Cristo não busca a vanglória, o espetáculo, a comédia humana
que procura utilizar Deus como pano de fundo da sua própria excelência. Jesus Cristo quer cumprir a
vontade do Pai sem adiantar os tempos nem antecipar a hora dos milagres, antes pelo contrário,
percorrendo passo a passo a dura senda dos homens, o amável caminho da Cruz.

Coisa muito parecida vemos na terceira tentação: são-lhe oferecidos reinos, poder, glória. O demônio
pretende estender às ambições humanas essa atitude que se deve reservar só para Deus: promete uma
vida fácil a quem se prostrar diante dele, diante dos ídolos. Nosso Senhor reconduz a adoração ao seu
único e verdadeiro fim - Deus -, e reafirma a sua vontade de servir: Afasta-te de mim, Satanás, porque
está escrito: Adorarás o Senhor teu Deus, e só a Ele servirás.

62 Devemos aprender desta atitude de Jesus. Durante a sua vida na terra, não quis sequer a glória que lhe
pertencia, porque, assistindo-lhe o direito de ser tratado como Deus, assumiu a forma de servo, de
escravo. O cristão sabe assim que toda a glória é para Deus, e que não pode utilizar a sublimidade e a
grandeza do Evangelho em benefício dos seus interesses e ambições humanas.

Devemos aprender de Jesus. Opondo-se a toda a glória humana, sua atitude está em perfeita harmonia
com a grandeza de uma missão única: a de Filho amadíssimo de Deus, que se encarna para salvar os
homens. Uma missão que o amor do Pai rodeou de uma solicitude repassada de ternura: Filius meus es
tu, ego hodie genui te. Postula a me et dabo tibi gentes hereditatem tuam. Tu és o meu Filho, eu te
gerei hoje. Pede-me, e dar-te-ei as nações por herança.

O cristão que - em seguimento de Cristo - vive nesta atitude de completa adoração ao Pai, recebe do
Senhor palavras de amorosa solicitude: Porque espera em mim, livrá-lo-ei; protegê-lo-ei, porque
conhece o meu nome.

63 Jesus respondeu não ao demônio, ao príncipe das trevas. E logo se manifesta a luz. Depois disso o
diabo o deixou; e eis que os anjos se aproximaram e o serviam. Jesus suportou a prova, uma prova
verdadeira, porque, como comenta Santo Ambrósio, não procedeu como Deus, usando do seu poder -
senão, de que nos serviria o seu exemplo? -, mas, como homem, serviu-se dos meios que tem em
comum conosco.

O demônio citou malevolamente o Antigo Testamento: Deus mandará seus anjos para que protejam o
justo em todos os seus caminhos. Mas Jesus, recusando-se a tentar seu Pai, devolve a esta passagem
bíblica o seu verdadeiro sentido. E, como prêmio à sua fidelidade, quando chega a hora, apresentam-se
os mensageiros de Deus Pai para o servirem.

Vale a pena considerar o método que Satanás emprega com Jesus Cristo Senhor Nosso: argumenta
com textos dos livros sagrados, desfigurando de forma blasfema o seu sentido. Jesus não se deixa
enganar: o Verbo feito carne conhece bem a Palavra Divina, escrita para salvação dos homens, e não
para sua confusão e condenação. Quem estiver unido a Jesus Cristo pelo Amor - podemos concluir -
não se deixará nunca enganar pelo manejo fraudulento da Escritura Santa, porque sabe que é obra
típica do demônio procurar confundir a consciência cristã, esgrimindo dolosamente com os próprios
termos empregados pela eterna Sabedoria, tentando transformar a luz em trevas.

Contemplemos brevemente esta intervenção dos anjos na vida de Jesus, pois assim entenderemos
melhor o seu papel - a missão angélica - em toda a vida humana. A tradição cristã descreve os Anjos
da Guarda como grandes amigos, colocados por Deus ao lado de cada homem para o acompanharem
em seus caminhos. Por isso nos convida a procurar a sua intimidade, a recorrer a eles.

Ao fazer-nos meditar nestas passagens da vida de Cristo, a Igreja recorda-nos que, neste tempo da
Quaresma, em que nos reconhecemos pecadores, cheios de misérias, necessitados de purificação,
também há lugar para a alegria. Porque a Quaresma é simultaneamente tempo de fortaleza e de júbilo:
temos que encher-nos de coragem, já que a graça do Senhor não nos há de faltar; Deus estará ao nosso
lado e enviará seus Anjos para que sejam nossos companheiros de viagem, nossos prudentes
conselheiros ao longo do caminho, nossos colaboradores em todas as nossas tarefas. In manibus
portabunt te, ne forte offendas ad lapidem pedem tuum , continua o salmo: os Anjos te levarão nas
mãos, para que teu pé não tropece em pedra alguma.

Temos que saber tratar os Anjos com intimidade: recorrer a eles agora, dizer ao nosso Anjo da Guarda
que estas águas sobrenaturais da Quaresma não resvalaram sobre a nossa alma, mas penetraram nela
até o fundo, porque temos o coração contrito. Peçamos-lhe que leve até o Senhor a boa vontade que a
graça fez germinar sobre a nossa miséria, como um lírio nascido no meio do esterco. Sancti Angeli
Custodes nostri, defendite nos in proelio, ut non pereamus in tremendo iudicio. Santos Anjos da
Guarda, defendei-nos no combate, para que não pereçamos no tremendo Juízo.

64 Como se explica esta oração confiante, esta certeza de que não pereceremos no combate? É um
convencimento que parte de uma realidade que nunca me cansarei de admirar: a nossa filiação divina.
O Senhor, que nesta Quaresma pede que nos convertamos, não é um Dominador tirânico, nem um Juiz
rígido e implacável: é nosso Pai. Fala-nos dos nossos pecados, dos nossos erros, da nossa falta de
generosidade; mas é para nos livrar de tudo isso, para nos prometer a sua Amizade e o seu Amor. A
consciência da nossa filiação divina dá alegria à nossa conversão: diz-nos que estamos voltando para a
casa do Pai.

A filiação divina é o fundamento do espírito do Opus Dei. Todos os homens são filhos de Deus. Mas
um filho pode reagir de muitas maneiras diante de seu pai. Temos de nos esforçar por ser dos que
procuram perceber que, ao querer-nos como filhos, o Senhor fez com que vivêssemos em sua casa no
meio deste mundo, que fôssemos da sua família, que as suas coisas fossem nossas e as nossas suas, que
tivéssemos essa familiaridade e confiança com Ele que nos faz pedir, como uma criança, a própria lua!

Um filho de Deus trata o Senhor como Pai. Não como quem presta um obséquio servil, nem com uma
reverência protocolar, de mera cortesia, mas com plena sinceridade e confiança. Deus não se
escandaliza dos homens. Deus não se cansa com as nossas infidelidades. Nosso Pai do Céu perdoa
qualquer ofensa quando o filho volta de novo para Ele, quando se arrepende e pede perdão. Nosso
Senhor é de tal modo Pai, que prevê os nossos desejos de sermos perdoados e a eles se antecipa,
abrindo-nos os braços com a sua graça.

Não estou inventando nada. Recordemos a parábola que o Filho de Deus nos contou para que
entendêssemos o amor do Pai que está nos céus: a parábola do filho pródigo.

Quando ainda estava longe, diz a Escritura, viu-o seu pai e enterneceram-se-lhe as entranhas; e,
correndo ao seu encontro, lançou-lhe os braços ao pescoço e cobriu-o de beijos. Estas são as palavras
do livro sagrado: cobriu-o de beijos, comia-o a beijos. Pode-se falar com mais calor humano? Pode-se
descrever de maneira mais gráfica o amor paternal de Deus pelos homens?

Perante um Deus que corre ao nosso encontro, não nos podemos calar, e temos que dizer-lhe com São
Paulo: Abba, Pater! , Pai, meu Pai!, porque, sendo Ele o Criador do universo, não se importa de que
não o tratemos com títulos altissonantes, nem reclama a devida confissão do seu poder. Quer que lhe
chamemos Pai, que saboreemos essa palavra, deixando a alma inundar-se de alegria.

De certo modo, a vida humana é um constante retorno à casa do nosso Pai. Retorno mediante a
contrição, mediante a conversão do coração, que se traduz no desejo de mudar, na decisão firme de
melhorar de vida, e que, portanto, se manifesta em obras de sacrifício e de doação. Retorno à casa do
Pai por meio desse sacramento do perdão em que, ao confessarmos os nossos pecados, nos revestimos
de Cristo e nos tornamos assim seus irmãos, membros da família de Deus.

Deus espera-nos como o pai da parábola, de braços estendidos, ainda que não o mereçamos. O que
menos importa é a nossa dívida. Como no caso do filho pródigo, basta simplesmente abrirmos o
coração, termos saudades do lar paterno, maravilhar-nos e alegrar-nos perante o dom divino de nos
podermos chamar e ser verdadeiramente filhos de Deus, apesar de tanta falta de correspondência da
nossa parte.

65 O homem tem uma capacidade tão estranha para esquecer as coisas mais maravilhosas e acostumar-se
ao mistério! Consideremos de novo, nesta Quaresma, que o cristão não pode ser superficial.
Plenamente mergulhado no seu trabalho diário entre os demais homens, seus iguais, atarefado,
ocupado, em tensão, o cristão tem que estar ao mesmo tempo totalmente mergulhado em Deus, porque
é filho de Deus.

A filiação divina é uma verdade feliz, um mistério consolador. A filiação divina empapa toda a nossa
vida espiritual, porque nos ensina a procurar, conhecer e amar o nosso Pai do Céu, e assim cumula de
esperança a nossa luta interior e nos dá a simplicidade confiante dos filhos pequenos. Mais ainda:
precisamente porque somos filhos de Deus, esta realidade leva-nos também a contemplar com amor e
com admiração todas as coisas que saíram das mãos de Deus Pai Criador. E deste modo somos
contemplativos no meio do mundo, amando o mundo.

Na Quaresma, a liturgia considera as conseqüências do pecado de Adão na vida do homem. Adão não
quis ser um bom filho de Deus, e revoltou-se. Mas ouve-se também continuamente o eco desta felix
culpa - culpa feliz, ditosa - que a Igreja inteira cantará, cheia de alegria, na vigília do Domingo da
Ressurreição.

Chegada a plenitude dos tempos, Deus Pai enviou ao mundo seu Filho Unigênito para que
restabelecesse a paz; para que, redimindo o homem do pecado, adoptionem filiorum reciperemus ,
fôssemos constituídos filhos de Deus, libertados do jugo do pecado, habilitados a participar na
intimidade divina da Trindade. E assim se tornou possível que este homem novo, esta nova enxertia
dos filhos de Deus, libertasse toda a criação da desordem, restaurando todas as coisas em Cristo , que
nos reconciliou com Deus.

Tempo de penitência, portanto. Mas, como vimos, não é uma tarefa negativa. A Quaresma deve ser
vivida com o espírito de filiação que Cristo nos comunicou e que palpita em nossa alma. O Senhor
chama-nos para que nos aproximemos dEle e desejemos ser como Ele: Sede imitadores de Deus, como
filhos muito queridos , colaborando humildemente, mas fervorosamente, com o divino propósito de
unir o que se quebrou, de salvar o que se perdeu, de ordenar o que o homem pecador desordenou, de
reconduzir o que se extraviou, de restabelecer a divina concórdia em toda a criação.

66 A liturgia da Quaresma ganha às vezes acentos trágicos, quando se medita no que supõe para o homem
o seu afastamento de Deus. Mas essa conclusão não é a última palavra. A última palavra é Deus quem
a pronuncia, e é a palavra do seu amor salvador e misericordioso e, portanto, a palavra da nossa
filiação divina. Por isso repito hoje com São João: Vede que amor teve o Pai para conosco, querendo
que nos chamássemos filhos de Deus e que o fôssemos de verdade. Filhos de Deus, irmãos do Verbo
feito carne, dAquele de quem foi dito: nEle estava a vida, e a vida era a luz dos homens. Filhos da
Luz, irmãos da Luz: é o que nós somos! Portadores da única chama capaz de abrasar os corações feitos
de carne.

Calo-me agora para prosseguir a Santa Missa. Mas cada um deve pensar no que o Senhor lhe pede, nos
propósitos, nas decisões que a ação da graça quer promover dentro de si.

E, ao percebermos essas exigências sobrenaturais e humanas de entrega e de luta, lembremo-nos de


que Jesus Cristo é o nosso modelo, de que Jesus, sendo Deus, permitiu que o tentassem, para que
assim nos enchêssemos de coragem e estivéssemos certos da vitória. Porque Ele não perde batalhas, e
nós, se estivermos unidos a Ele, nunca seremos vencidos, mas poderemos chamar-nos e ser realmente
vencedores: bons filhos de Deus.

Vivamos contentes. Eu estou contente. Não o deveria estar, olhando para a minha vida, fazendo esse
exame pessoal de consciência que este tempo litúrgico da Quaresma nos pede. Mas sinto-me contente
porque vejo que o Senhor me procura uma vez mais, que o Senhor continua a ser meu Pai. Sei que vós
e eu, decididamente, com o resplendor e a ajuda da graça, veremos que coisas temos que queimar, e as
queimaremos; que coisas temos que arrancar, e as arrancaremos; que coisas temos que entregar, e as
entregaremos.

A tarefa não é fácil. Mas contamos com um ponto de referência claro, com uma realidade de que não
devemos nem podemos prescindir: somos amados por Deus, e deixaremos que o Espírito Santo atue
em nós e nos purifique, para podermos assim abraçar o Filho de Deus na Cruz, ressuscitando depois
com Ele, porque a alegria da Ressurreição tem as suas raízes na Cruz.

Maria, nossa Mãe, auxilium christianorum, refugium peccatorum: intercede junto de teu Filho para
que nos envie o Espírito Santo, que desperte em nossos corações a decisão de caminharmos com passo
firme e seguro, fazendo ressoar no mais íntimo da nossa alma a chamada que encheu de paz o martírio
de um dos primeiros cristãos: Veni ad Patrem , vem, volta para teu Pai, que te espera.

67 Acabamos de ler na Santa Missa um texto do Evangelho segundo São João que nos relata a cena da
cura milagrosa do cego de nascença. Penso que todos nos comovemos uma vez mais perante o poder e
a misericórdia de Deus, que não olha com indiferença para a desgraça humana. Mas gostaria agora de
fixar a atenção sobre outros aspectos, para que compreendamos que, quando há amor de Deus, o
cristão também não pode permanecer indiferente perante a sorte dos outros homens e sabe por sua vez
tratar a todos com respeito; e que, quando esse amor decai, surge o perigo de se invadir, fanática e
impiedosamente, a consciência alheia.

Ao passar - diz o Santo Evangelho -, viu Jesus um cego de nascença. Jesus que passa. Com freqüência
me tenho maravilhado perante esta forma simples de relatar a clemência divina. Jesus passa, e logo se
apercebe da dor. Consideremos, em contrapartida, como eram diferentes os pensamentos dos
discípulos naquela ocasião. Perguntam-lhe: Mestre, quem pecou, este ou seus pais, para que nascesse
cego?

Não nos deve causar estranheza que muitas pessoas, mesmo entre as que se consideram cristãs, se
comportem de forma parecida. Antes de mais nada, imaginam o mal. Sem prova alguma, pressupõem-
no; e não só admitem essa ordem de pensamentos, como ainda se atrevem a manifestá-los num juízo
aventurado, diante da multidão.

A conduta dos discípulos poderia benevolamente ser qualificada de leviana. Naquela sociedade - aliás,
como hoje; nisto, pouco se mudou -, havia outros, os fariseus, que faziam dessa atitude uma norma.
Lembremo-nos de que maneira Jesus Cristo os denuncia: Veio João, que não come nem bebe, e dizem:
Está possesso do demônio. Veio o Filho do homem, que come e bebe, e dizem: É um comilão e
bebedor de vinho, amigo de publicanos e pecadores.

Ataques sistemáticos à fama, conspurcação da conduta irrepreensível. Essa crítica mordaz e lancinante
atingiu o próprio Jesus Cristo, e não é raro que alguns reservem o mesmo sistema para os que, embora
conscientes de suas lógicas e naturais misérias e erros pessoais - pequenos e inevitáveis, dada a
humana fraqueza, acrescentaria -, desejam seguir o Mestre. Mas a comprovação dessas realidades não
nos deve levar a justificar tais pecados e delitos - falatórios, como lhes chamam com uma compreensão
suspeita - contra o bom nome de ninguém. Jesus anuncia que, se o pai de família foi alcunhado de
Belzebu, não é de esperar que se conduzam melhor com os de sua casa ; mas também esclarece
que quem chamar néscio a seu irmão, será réu do fogo do inferno.

Donde nasce esta apreciação injusta dos outros? É como se alguns usassem continuamente umas
viseiras que lhes alterassem a visão. Não acreditam, por princípio, que seja possível a retidão ou, ao
menos, a luta constante por comportar-se bem. Como diz o antigo adágio filosófico, recebem tudo
segundo a forma do recipiente: em sua prévia deformação. Para eles, até as coisas mais retas refletem,
apesar de tudo, uma atitude retorcida que adota hipocritamente a aparência de bondade. Quando
descobrem claramente o bem - escreve São Gregório -, esquadrinham tudo para examinar se, além
disso, não haverá algum mal oculto.

68 É difícil fazer entender a essas pessoas - cuja deformação quase se converte numa segunda natureza -
que é mais humano e mais verídico pensar bem do próximo. Santo Agostinho dá este
conselho: Procurai adquirir as virtudes que julgais faltarem aos vossos irmãos, e já não vereis os seus
defeitos, porque vós mesmos não os tereis. Para alguns, esta forma de proceder identifica-se com a
ingenuidade. Eles são mais realistas, mais razoáveis.

Erigindo o preconceito como norma de juízo, ofenderão seja quem for sem mesmo ouvir as suas
razões. Depois, objetivamente, bondosamente, talvez concedam ao injuriado a possibilidade de se
defender - contra toda a moral e todo o direito -, porque, em vez de arcarem com o ônus de provar a
suposta falta, concedem ao inocente o privilégio de demonstrar a sua inocência.

Não seria sincero se não confessasse que as considerações anteriores são algo mais do que um rápido
respigar em tratados de direito e de moral. Baseiam-se numa experiência que não poucos viveram na
sua própria carne, da mesma maneira que muitos outros foram, com freqüência e durante longos anos,
o alvo de exercícios de tiro de murmurações, difamações e calúnias. A graça de Deus e um natural
nada rancoroso fizeram com que tudo isso não deixasse neles o menor travo de amargura. Mihi pro
minimo est, ut a vobis iudicer , pouco me importa ser julgado por vós, poderiam dizer com São Paulo.
Às vezes, empregando palavras mais correntes, terão acrescentado que tudo isso lhes saiu sempre por
uma bagatela. Essa é a verdade.

Por outro lado, entretanto, não posso negar que me causa tristeza pensar na alma de quem ataca
injustamente a honra alheia, porque o agressor injusto se arruína a si mesmo. E sofro também por
tantos que, em face de acusações arbitrárias e desaforadas, não sabem onde pôr os olhos: ficam
apavorados, não as julgam possíveis e perguntam de si para si se não será tudo um pesadelo.

Há poucos dias, líamos na Epístola da Santa Missa o episódio de Susana, aquela mulher casta,
falsamente acusada de desonestidade por dois velhos corrompidos. Susana desatou a chorar e
respondeu aos seus acusadores: por todos os lados me sinto angustiada; porque, se faço o que me
propondes, virá sobre mim a morte; e, se me nego, não escaparei de vossas mãos. Quantas vezes as
insídias dos invejosos ou dos intrigantes não colocam muitas criaturas honestas na mesma situação!
Oferecem-lhes esta alternativa: ou ofenderem o Senhor, ou verem denegrida a sua honra. A única
solução nobre e digna é ao mesmo tempo extremamente dolorosa, e têm que resolver: E melhor para
mim cair sem culpa nas vossas mãos do que pecar contra o Senhor.

69 Voltemos à cena da cura do cego. Jesus Cristo replica aos seus discípulos que aquela desgraça não é
conseqüência do pecado, mas ocasião para que se manifeste o poder de Deus. E, com maravilhosa
simplicidade, decide que o cego veja.

Começa então, a par da felicidade, o tormento daquele homem. Não o deixarão em paz. Primeiro
são os vizinhos e os que antes o tinham visto pedir esmola. O Evangelho não nos diz que se tivessem
alegrado, mas que não acabavam de acreditar no sucedido, apesar de o cego insistir que era ele mesmo
quem antes não via e agora vê. Em lugar de lhe permitirem usufruir serenamente daquela graça,
levam-no aos fariseus, que lhe perguntam de novo como foi. E ele responde pela segunda vez: Pôs
lodo nos meus olhos, lavei-me e vejo.

E os fariseus querem demonstrar que o que aconteceu - um bem e um grande milagre - não aconteceu.
Alguns lançam mão de raciocínios mesquinhos, hipócritas, muito pouco equânimes: curou num sábado
e, como é pecado trabalhar aos sábados, negam o prodígio. Outros iniciam o que hoje se chamaria um
inquérito. Vão aos pais do cego: É este vosso filho, de quem vós dizeis que nasceu cego? Como vê,
pois, agora? O medo aos poderosos leva os pais a responderem com uma proposição que reúne todas
as garantias do método científico: Sabemos que este é nosso filho e que nasceu cego; mas, como agora
vê, não o sabemos, nem tampouco sabemos quem lhe abriu os olhos. Perguntai-o a ele mesmo: tem
idade, que responda por si.

Os que conduzem o inquérito não podem acreditar, porque não querem acreditar. Chamaram outra vez
o que tinha sido cego e disseram-lhe:... Nós sabemos que esse homem - Jesus Cristo - é um pecador.

Em poucas palavras, o relato de São João mostra-nos um modelo de atentado terrível contra o direito
básico de sermos tratados com respeito, um direito que a todos nos pertence por natureza.

O tema continua a ser atual. Não custaria nenhum trabalho apontar em nossa época casos dessa
curiosidade agressiva, que leva a indagar morbidamente da vida privada dos outros. Um mínimo senso
de justiça exige que, mesmo na investigação de um presumível delito, se proceda com cautela e
moderação, sem tomar por certo o que é apenas uma possibilidade. Compreende-se até que ponto se
deva qualificar como perversão a curiosidade malsã em desentranhar o que não só não é um delito,
como pode até ser uma ação honrosa.

Perante os mercadores da suspeita, que dão a impressão de organizarem um tráfico da intimidade, é


preciso defender a dignidade de cada pessoa, seu direito ao silêncio. Costumam estar de acordo nesta
defesa todos os homens honrados, sejam ou não cristãos, porque está em jogo um valor comum: a
legítima decisão de cada qual ser como é, de não se exibir, de conservar em justa e pudica reserva as
suas alegrias, as suas penas e dores de família; e sobretudo de praticar o bem sem espetáculo, de ajudar
os necessitados por puro amor, sem obrigação de publicar essas tarefas a serviço dos outros e, muito
menos, de pôr a descoberto a intimidade da alma perante o olhar indiscreto e oblíquo de gente que
nada sabe nem deseja saber da vida interior, a não ser para zombar impiamente.

Mas como é difícil vermo-nos livres dessa agressividade xereta! Multiplicaram-se os métodos para não
deixar o homem em paz. Refiro-me aos meios técnicos, como também a sistemas de argumentar
aceitos hoje em dia, contra os quais é difícil lutar, se se deseja conservar a reputação. Partem muitas
vezes do princípio de que todo mundo se comporta mal; e com base nessa forma errônea de pensar,
surge inevitável mente o meaculpismo, a auto-crítica. Se uma pessoa não joga sobre si mesma uma
tonelada de lama, deduzem que, além de ser completamente má, é hipócrita e arrogante.

Noutras ocasiões, procede-se de maneira diferente: aquele que fala ou escreve, lançando mão da
calúnia, está disposto a admitir que você é um indivíduo íntegro, mas que talvez os outros não pensem
o mesmo, e podem portanto publicar que você é um ladrão; como demonstra que não o é? Ou então:
você afirma incansavelmente que a sua conduta é limpa, nobre, reta. Importar-se-ia de considerá-la de
novo, para verificar se por acaso não é suja, ignóbil e retorcida?

70 Não são exemplos imaginários. Estou persuadido de que qualquer pessoa ou qualquer instituição de
certo nome poderia aumentar a casuística. Criou-se em alguns setores a falsa mentalidade de que o
público, o povo, ou como queiram chamá-lo, tem o direito de conhecer e interpretar os pormenores
mais íntimos da existência dos outros.

Sejam-me permitidas umas palavras sobre algo que está bem unido à minha alma. Há mais de trinta
anos venho dizendo e escrevendo de mil formas diferentes que o Opus Dei não tem em vista nenhuma
finalidade temporal, política; que pretende única e exclusivamente difundir entre multidões de todas as
raças, de todas as condições sociais, de todos os países, o conhecimento e a prática da doutrina
salvadora de Cristo, e contribuir para que haja mais amor de Deus na terra e, portanto, mais paz, mais
justiça entre os homens, filhos de um único Pai.

Muitos milhares de pessoas - milhões - em todo o mundo compreenderam do que se tratava. Outros -
muito poucos -, seja por que motivos for, parece que não. Se meu coração está mais perto dos
primeiros, honro e amo também os outros, porque em todos merece respeito e estima a sua dignidade,
e todos estão chamados à glória dos filhos de Deus.

Mas nunca falta uma minoria sectária que, não entendendo o que eu e tantos outros amamos, quereria
que explicássemos as coisas de acordo com a sua mentalidade: exclusivamente política, alheia aos
valores sobrenaturais, atenta unicamente ao equilíbrio de interesses e de pressões de grupos. Se não
recebem uma explicação dessa natureza, errônea e ajeitada a seu gosto, continuam a pensar que há
mentira, dissimulação, planos sinistros.

Devo dizer que esses casos não me entristecem nem me preocupam. Acrescentaria que me divertem, se
fosse possível esquecer que se comete uma ofensa ao próximo e um pecado que clama diante de Deus.
Sou aragonês e, até pelos aspectos humanos do meu caráter, amo a sinceridade; sinto uma repulsa
instintiva por tudo o que suponha embuço. Sempre procurei responder com a verdade, sem
prepotência, sem orgulho, ainda que os que caluniavam fossem mal educados, arrogantes, hostis,
desprovidos do menor sinal de humanidade.

Tem-me vindo à cabeça, com freqüência, a resposta do cego de nascença aos fariseus, que
perguntavam pela enésima vez como se tinha produzido o milagre: Eu já vo-lo disse, e vós o ouvistes.
Para que quereis ouvi-lo de novo? Será que vós também quereis fazer-vos seus discípulos?

71 O pecado dos fariseus não consistia em não verem Deus em Cristo, mas em se encerrarem
voluntariamente em si mesmos; em não tolerarem que Jesus, que é a luz, lhes abrisse os olhos. Esse
nevoeiro tem resultados imediatos na vida de relação com os nossos semelhantes. O fariseu que,
julgando-se luz, não deixa que Deus lhe abra os olhos, é o mesmo que tratará soberba e injustamente o
próximo, rezando assim: Dou-te graças porque não sou como os outros homens, ladrões, injustos e
adúlteros, nem como este publicano. E quanto ao cego de nascença, que persiste em contar a verdade
da cura milagrosa, ofendem-no: Saíste do ventre de tua mãe coberto de pecados, e queres ensinar-
nos? E expulsaram-no.

Entre os que não conhecem Cristo, há muitos homens honrados que, por elementar circunspecção,
sabem comportar-se delicadamente: são sinceros, cordiais, educados. Se eles e nós não nos opusermos
a ser curados por Cristo da cegueira que ainda resta em nossos olhos, se permitirmos que o Senhor nos
aplique esse lodo que, em suas mãos, se converte no colírio mais eficaz, compreenderemos as
realidades terrenas e vislumbraremos as eternas sob uma luz nova, a luz da fé; teremos adquirido um
olhar limpo.

Esta é a vocação do cristão: a plenitude dessa caridade que é paciente, benigna, não tem inveja, não é
temerária, não se ensoberbece, não é ambiciosa, não é interesseira, não se irrita, não pensa mal, não
se alegra com a injustiça, compraz-se na verdade, tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo sofre.

A caridade de Cristo não é apenas um bom sentimento em relação ao próximo: não se detém no gosto
pela filantropia. A caridade, infundida por Deus na alma, transforma por dentro a inteligência e a
vontade; dá base sobrenatural à amizade e à alegria de fazer o bem.

Contemplemos a cena da cura do coxo, narrada pelos Atos dos Apóstolos. Subiam Pedro e João ao
templo e, ao passarem, encontraram um homem sentado à porta, que era coxo de nascença. Tudo nos
lembra aquela outra cura do cego. Mas agora os discípulos já não pensam que a desgraça se deva aos
pecados pessoais do enfermo ou às faltas de seus pais. E dizem-lhe: Em nome de Jesus Cristo
Nazareno, levanta-te e anda. Antes derramavam incompreensão, agora misericórdia; antes julgavam
temerariamente, agora curam milagrosamente no nome do Senhor. Sempre Cristo que passa! Cristo
que continua a passar pelas ruas e pelas praças do mundo, através de seus discípulos, os cristãos. Peço-
Lhe fervorosamente que passe pela alma de alguns dos que me escutam neste momento.

72 Surpreendia-nos no começo a atitude dos discípulos de Jesus perante o cego de nascença.


Comportavam-se na linha do refrão infeliz: pensa mal e acertarás. Depois, chegam a conhecer melhor
o Mestre, apercebem-se do que significa ser cristão, e a partir daí suas opiniões inspiram-se na
compreensão.

Em qualquer homem - escreve São Tomás de Aquino - existe sempre algum aspecto que nos permite
considerá-lo superior a nós, segundo as palavras do Apóstolo: “Levados pela humildade, tende-vos
uns aos outros por superiores” (Filip., 11, 3). De acordo com estas palavras, todos os homens devem
honrar-se mutuamente. A humildade é a virtude que nos leva a descobrir que as manifestações de
respeito pela pessoa - pela sua honra, pela sua boa-fé, pela sua intimidade - não são convencionalismos
exteriores, mas as primeiras manifestações da caridade e da justiça.

A caridade cristã não se limita a socorrer os necessitados de bens econômicos; seu primeiro propósito
é respeitar e compreender cada indivíduo como tal, em sua intrínseca dignidade de homem e de filho
do Criador. Por isso, os atentados à pessoa - à sua reputação, à sua honra - revelam que quem os
comete não professa ou não pratica algumas verdades da nossa fé cristã, e, em qualquer caso, que não
possui o autêntico amor de Deus. A caridade pela qual amamos a Deus e ao próximo é uma mesma
virtude, porque a razão do amor ao próximo é precisamente Deus, e amamos a Deus quando amamos
o próximo com caridade.

Espero que sejamos capazes de tirar conseqüências muito concretas destes minutos de conversa na
presença do Senhor. Principalmente o propósito de não julgarmos os outros, de não os ofendermos
nem sequer com a dúvida, de afogarmos o mal em abundância de bem, semeando à nossa volta a
convivência leal, a justiça e a paz.

E a decisão de nunca nos entristecermos se a nossa conduta reta for mal entendida pelos outros, se o
bem que - com a ajuda contínua do Senhor - procuramos realizar, for interpretado de um modo
retorcido, e por um processo ilícito atribuírem às nossas intenções desígnios de mal, uma conduta
dolosa e simuladora. Perdoemos sempre, com o sorriso nos lábios. Falemos com clareza, sem rancor,
quando nos parecer em consciência que devemos falar. E deixemos tudo nas mãos do nosso Pai-Deus,
com um divino silêncio - Iesus autem tacebat , Jesus calava-se -, se se trata de ataques pessoais, por
mais brutais e indecorosos que sejam. Preocupemo-nos apenas de fazer boas obras, que Ele se
encarregará de que elas brilhem diante dos homens.

73 Como toda a festa cristã, esta que hoje celebramos é especialmente uma festa de paz. No seu antigo
simbolismo, os ramos evocam a cena narrada pelo Gênesis: Depois de ter esperado outros sete dias,
Noé soltou de novo a pomba. E eis que pela tarde ela voltou, trazendo no bico um ramo de oliveira
com folhas verdes. Entendeu, pois, Noé que as águas já não cobriam a terra. Recordamos agora que a
aliança entre Deus e seu povo é confirmada e estabelecida em Cristo, porque Ele é a nossa paz. Nessa
maravilhosa unidade e recapitulação do velho no novo, que caracteriza a liturgia da nossa Santa Igreja
Católica, lemos no dia de hoje estas palavras de profunda alegria: Os filhos dos hebreus, levando
ramos de oliveira, saíram ao encontro do Senhor, clamando e dizendo: Glória nas alturas.

A aclamação a Jesus Cristo vem unir-se na nossa alma àquela outra que saudou o seu nascimento em
Belém. E por onde Jesus passava, conta São Lucas, as multidões estendiam seus mantos pelo
caminho. E quando já ia chegando à descida do monte das Oliveiras, toda a multidão dos discípulos
começou a louvar alegremente a Deus, em altos brados, por todos os prodígios que tinha visto,
dizendo: bendito seja o Rei que vem em nome do Senhor, paz no céu e glória nas alturas.

Pax in coelo, paz no céu. Mas olhemos também para o mundo: por que não há paz na terra? Não, não
há paz na terra. Há somente aparência de paz, equilíbrio de medo, compromissos precários. Não há paz
nem mesmo na Igreja, sulcada por tensões que retalham a alva túnica da Esposa de Cristo. Não há paz
em muitos corações que tentam em vão compensar a intranqüilidade da alma com o bulício contínuo,
com a pequena satisfação de bens que não saciam, porque deixam sempre o sabor amargo da tristeza.

As folhas de palma, escreve Santo Agostinho, são símbolo de homenagem, porque significam vitória.
O Senhor estava prestes a vencer, morrendo na Cruz; pelo sinal da Cruz, ia triunfar sobre o Diabo, o
príncipe da morte. Cristo é a nossa paz porque venceu; e venceu porque lutou, no duro combate contra
a maldade acumulada nos corações humanos.

Cristo, que é a nossa paz, é também o Caminho. Se queremos a paz, temos que seguir os seus passos.
A paz é conseqüência da guerra, da luta, dessa luta ascética, íntima, que cada cristão deve sustentar
contra tudo o que em sua vida não for de Deus: contra a soberba, a sensualidade, o egoísmo, a
superficialidade, a estreiteza de coração. É inútil clamar por sossego exterior se falta tranqüilidade nas
consciências, no fundo da alma, porque do coração saem os maus pensamentos, os homicídios, os
adultérios, as fornicações, os furtos, os falsos testemunhos, as blasfêmias.

74 Mas esta linguagem não será antiquada? Não foi por acaso substituída por um vocabulário de ocasião,
de claudicações pessoais encobertas sob uma roupagem pseudo-científica? Não existe um acordo
tácito para apontar como bens reais o dinheiro, que tudo compra, o poder temporal, a astúcia que leva a
ficar sempre por cima, a sabedoria humana que se auto-define como adulta e imagina haver superado
o sagrado?

Não sou nem fui nunca pessimista, porque a fé me diz que Cristo venceu definitivamente e, em penhor
da sua conquista, nos deu uma palavra de ordem que é também um compromisso: lutar. Nós, os
cristãos, temos um propósito de amor, que assumimos livremente com o chamado da graça divina:
uma obrigação que nos anima a lutar com tenacidade, porque sabemos que somos tão frágeis como os
demais homens. Mas, ao mesmo tempo, não podemos esquecer que, se nos servirmos dos meios
adequados, seremos o sal, a luz e o fermento do mundo: seremos o consolo de Deus.

O nosso ânimo de perseverar com firmeza neste propósito de Amor é, além disso, um dever de justiça.
E a matéria desta exigência, comum a todos os fiéis, concretiza-se numa batalha constante. Ao longo
de toda a tradição da Igreja, retratam-se os cristãos como milites Christi, soldados de Cristo. Soldados
que levam a serenidade aos outros, enquanto combatem continuamente contra as más inclinações
pessoais. Às vezes, por insuficiência de sentido sobrenatural, por uma descrença prática, não se quer
entender a vida na terra como milícia. Insinuam maliciosamente que, se nos considerarmos soldados
de Cristo, corremos o risco de utilizar a fé para fins temporais de violência, de facções. Este modo de
pensar é uma triste simplificação pouco lógica, que costuma aparecer de mãos dadas com o
comodismo e a covardia.

Nada mais alheio à fé cristã do que o fanatismo que acompanha os estranhos conúbios entre o profano
e o espiritual, sejam de que sinal forem. Esse perigo não existe, se entendemos a luta tal como Cristo
no-la ensinou: como guerra de cada um consigo mesmo, como esforço sempre renovado de amar mais
a Deus, de desterrar o egoísmo, de servir a todos os homens. Renunciar a esta contenda, seja com que
desculpa for, é declarar-se de antemão derrotado, aniquilado, sem fé, de alma caída, dissipada em
complacências mesquinhas.

Para o cristão, o combate espiritual, diante de Deus e de todos os irmãos na fé, é uma necessidade, uma
conseqüência da sua condição. Por isso, se algum de nós não luta, está traindo Jesus Cristo e todo o
seu corpo místico, que é a Igreja.

75 A guerra do cristão é incessante, porque na vida interior se verifica um perpétuo começar e recomeçar,
que nos impede de orgulhosamente nos imaginarmos perfeitos. É inevitável que haja muitas
dificuldades no nosso caminho; se não encontrássemos obstáculos, não seríamos criaturas de carne e
osso. Sempre teremos paixões que nos puxem para baixo, e sempre precisaremos defender-nos contra
esses delírios mais ou menos veementes.

Perceber no corpo e na alma o aguilhão da soberba, da sensualidade, da inveja, da preguiça, do desejo


de subjugar os outros, não deveria representar uma descoberta. É um mal antigo, sistematicamente
confirmado pela nossa experiência pessoal; é o ponto de partida e o ambiente habitual do nosso
esforço por ganhar, num íntimo desporto, a nossa corrida para a casa do Pai. Por isso nos ensina São
Paulo: Quanto a mim, corro, não como que à aventura; luto, não como quem açoita o ar; mas castigo
o meu corpo e conservo-o na escravidão, não suceda que, tendo pregado aos outros, venha eu a ser
condenado.

Para iniciar ou sustentar esta contenda, o cristão não deve esperar por manifestações exteriores ou
sentimentos favoráveis. A vida interior não é questão de sentimentos, mas de graça divina e de
vontade, de amor. Todos os discípulos foram capazes de seguir Cristo no seu dia de triunfo em
Jerusalém, mas quase todos o abandonaram à hora do opróbrio da Cruz

Para amar de verdade, precisamos ser fortes, leais, com o coração firmemente ancorado na fé, na
esperança e na caridade. Só a ligeireza insubstancial muda caprichosamente de objeto em seus amores,
que não são amores, mas compensações egoístas. Quando há amor, há integridade: capacidade de
entrega, de sacrifício, de renúncia. E, no meio da entrega, do sacrifício e da renúncia - com o suplício
da contradição -, a felicidade e a alegria. Uma alegria que nada nem ninguém nos poderá tirar.

Neste torneio de amor, não nos devem entristecer as nossas quedas, nem mesmo as quedas graves, se
recorremos a Deus com dor e bom propósito, mediante o sacramento da Penitência. O cristão não é
nenhum colecionador maníaco de uma folha de serviços imaculada. Jesus Cristo Nosso Senhor não só
se comove com a inocência e a fidelidade de João, como se enternece com o arrependimento de Pedro
depois da queda. Jesus compreende a nossa debilidade e atrai-nos a Si como que por um plano
inclinado, desejando que saibamos insistir no esforço de subir um pouco, dia após dia. Procura-nos
como procurou os discípulos de Emaús, indo ao seu encontro; como procurou Tomé e lhe mostrou as
chagas abertas nas mãos e no lado, fazendo com que as tocasse com seus dedos. Jesus Cristo está
sempre à espera de que voltemos para Ele, precisamente porque conhece a nossa fraqueza.
76 Suporta as dificuldades como um bom soldado de Cristo Jesus , diz-nos São Paulo. A vida do cristão é
milícia, guerra, uma formosíssima guerra de paz, que em nada se identifica com as empresas bélicas
humanas, porque estas se inspiram na divisão e muitas vezes nos ódios, e a guerra dos filhos de Deus
contra o seu próprio egoísmo se baseia na unidade e no amor. Vivemos na carne, mas não militamos
por motivos carnais. Porque as armas da nossa milícia não são carnais, mas sim a fortaleza em Deus
para derrubar fortalezas, desbaratando com elas os projetos humanos e toda a altivez que se levanta
contra a ciência de Deus. É a escaramuça sem tréguas contra o orgulho, contra a prepotência que nos
induz a praticar o mal, contra os juízos altaneiros.

Neste Domingo de Ramos, em que Nosso Senhor inicia a semana decisiva para a nossa salvação,
deixemo-nos de considerações superficiais e fixemos o olhar no que é verdadeiramente importante.
Vejamos bem: o que realmente devemos pretender é ir para o céu. Senão, nada vale a pena. E se
queremos ir para o céu, é indispensável sermos fiéis à doutrina de Cristo; e para sermos fiéis, é
indispensável porfiarmos com constância na luta contra os obstáculos que se opõem à nossa felicidade
eterna.

Sei que a idéia de combate evoca imediatamente a nossa fraqueza, e prevemos as quedas, os erros.
Deus conta com isso. É inevitável que, ao caminharmos, levantemos poeira. Somos criaturas e estamos
cheios de defeitos. Eu diria até que os teremos sempre; são as sombras que fazem ressaltar mais em
nossa alma a graça de Deus e as nossas tentativas de corresponder ao favor divino. E esse claro-escuro
nos tornará humanos, humildes, compreensivos, generosos.

Não nos enganemos: se na nossa vida contamos com o nosso brio e com vitórias, devemos contar
também com desfalecimentos e derrotas. Essa foi sempre a peregrinação terrena dos cristãos, mesmo
dos que veneramos hoje nos altares. Lembramo-nos de Pedro, de Agostinho, de Francisco? Nunca me
agradaram essas biografias de santos que, com toda a ingenuidade, mas também com falta de doutrina,
nos apresentavam as façanhas desses homens como se tivessem sido confirmados na graça desde o
seio materno. Não. As verdadeiras biografias dos heróis cristãos são como as nossas vidas: lutavam e
ganhavam, lutavam e perdiam. E então, contritos, voltavam à luta.

Não nos estranhe sermos derrotados com relativa freqüência, geralmente ou até sempre em matérias de
pouca importância, que nos ferem como se tivessem muita. Se há amor de Deus, se há humildade, se
há perseverança e tenacidade em nossa milícia, essas derrotas não terão excessiva importância, porque
chegarão as vitórias, que serão glória aos olhos de Deus. Não existem fracassos quando nos portamos
com intenção reta e com o propósito de cumprir a vontade de Deus, contando sempre com a sua graça
e o nosso nada.

77 Mas temos à nossa espreita um inimigo poderoso, que se opõe ao nosso desejo de encarnar com
perfeição a doutrina de Cristo: a soberba, que cresce quando não procuramos descobrir, depois dos
fracassos e das derrotas, a mão benfazeja e misericordiosa do Senhor. Então a alma enche-se de
penumbras - de triste escuridão -, e julga-se perdida. E a imaginação inventa obstáculos que não são
reais, que desapareceriam se os encarássemos simplesmente com um pouco de humildade. A soberba e
a imaginação levam às vezes a alma a enveredar por tortuosos calvários; mas nesses calvários não se
encontra Cristo, porque onde está o Senhor sempre se goza de paz e de alegria, ainda que a alma se
sinta em carne viva e rodeada de trevas.

Outro inimigo hipócrita da nossa santificação: pensar que esta batalha interior tem que se dirigir contra
obstáculos extraordinários, contra dragões que respiram fogo. É mais uma manifestação de orgulho.
Queremos lutar, mas estrondosamente, com clamores de trombetas e tremular de estandartes.

Devemos convencer-nos de que o maior inimigo da rocha não é a picareta ou o machado, nem o golpe
de qualquer outro instrumento, por mais contundente que seja: é essa água miúda, que se infiltra, gota
a gota, por entre as fendas do penhasco, até arruinar a sua estrutura. O maior perigo para o cristão é
desprezar a luta nessas escaramuças que calam pouco a pouco na alma, até a tornarem frouxa,
quebradiça e indiferente, insensível aos apelos de Deus.

Ouçamos o Senhor, que nos diz: Quem é fiel no pouco, também o é no muito, e quem é injusto no
pouco, também o é no muito. É como se Ele nos lembrasse: luta a cada instante nos detalhes
aparentemente pequenos, mas grandes aos meus olhos; cumpre com pontualidade o dever; sorri a
quem precise, ainda que tenhas a alma dorida; dedica sem regateios o tempo necessário à oração;
acode em auxílio dos que te procuram; pratica a justiça, ampliando-a com a graça da caridade.

São estas e outras semelhantes as moções que sentiremos cada dia dentro de nós, como um aviso
silencioso para que nos treinemos no desporto sobrenatural do domínio próprio. Que a luz de Deus nos
ilumine e nos leve a perceber as suas advertências; que nos ajude a lutar, que esteja ao nosso lado na
vitória; que não nos abandone na hora da queda, porque assim nos encontraremos sempre em
condições de nos levantarmos e de continuar combatendo.

Não podemos parar. O Senhor pede-nos uma luta cada vez mais rápida, cada vez mais profunda, cada
vez mais extensa. Estamos obrigados a superar-nos, porque, nesta competição, a única meta é chegar à
glória do céu. E se não chegarmos ao céu, nada terá valido a pena.

78 Quem deseja lutar serve-se dos meios adequados. E os meios não mudaram nestes vinte séculos de
cristianismo: oração, mortificação e freqüência de Sacramentos. Como a mortificação é também
oração - oração dos sentidos -, bastam-nos duas palavras para descrever esses meios: oração e
Sacramentos.

Gostaria que considerássemos agora esse manancial de graça divina que são os Sacramentos,
maravilhosa manifestação da misericórdia de Deus. Meditemos devagar na definição do Catecismo de
São Pio V: determinados sinais sensíveis que causam a graça, e ao mesmo tempo a declaram, como
que pondo-a diante dos olhos. Deus Nosso Senhor é infinito, seu amor é inesgotável, sua clemência e
sua piedade para conosco não admitem limites. E, embora nos conceda a sua graça de muitas outras
maneiras, instituiu expressa e livremente - só Ele o podia fazer - esses sete sinais eficazes, para que de
um modo estável, simples e acessível a todos, os homens pudessem participar dos méritos da
Redenção.

Se se abandonam os Sacramentos, desaparece a verdadeira vida cristã. Não obstante, sabemos que,
particularmente nesta época, não falta quem pareça esquecer - e chegue até a desprezar - esta corrente
redentora da graça de Cristo. É doloroso falar desta chaga de uma sociedade que se chama cristã, mas
toma-se necessário fazê-lo, para que em nossas almas se firme o desejo de recorrer com mais amor e
gratidão a essas fontes de santificação.

Decidem sem o menor escrúpulo adiar o batismo dos recém-nascidos, e assim cometem um grave
atentado contra a justiça e contra a caridade, privando esses seres da graça da fé, do tesouro
incalculável da inabitação da Santíssima Trindade na alma, que vem ao mundo manchada pelo pecado
original. Pretendem também desvirtuar a natureza própria do Sacramento da Crisma, em que a
Tradição viu sempre unanimemente um fortalecimento da vida espiritual, uma efusão silenciosa e
fecunda do Espírito Santo, para que, sobrenaturalmente robustecida, a alma possa lutar - miles
Christi, como soldado de Cristo - nessa batalha interior contra o egoísmo e a concupiscência.

Se se perde a sensibilidade para as coisas de Deus, dificilmente se entenderá também o Sacramento da


Penitência. A confissão sacramental não é um diálogo humano, mas um colóquio divino; é um tribunal
de segura e divina justiça, e sobretudo de misericórdia, com um juiz amoroso que não deseja a morte
do pecador, mas que se converta e viva.

É verdadeiramente infinita a ternura de Nosso Senhor. Reparemos com que delicadeza trata os seus
filhos. Fez do matrimônio um vínculo santo, imagem da união de Cristo com a sua Igreja , um grande
sacramento em que se alicerça a família cristã, que há de ser, com a graça de Deus, um ambiente de
paz e de concórdia, escola de santidade. Os pais são cooperadores de Deus. Daí procede o amável
dever de veneração que cabe aos filhos. Com razão se pode chamar o quarto mandamento de
dulcíssimo preceito do Decálogo, como escrevi há muitos anos. Quando se vive o matrimônio como
Deus quer, santamente, o lar toma-se um recanto de paz, luminoso e alegre.

79 Pela Ordem sacerdotal, nosso Pai-Deus conferiu-nos a possibilidade de que alguns fiéis, em virtude de
uma nova e inefável infusão do Espírito Santo, recebessem um caráter indelével na alma, que os
configura com Cristo-Sacerdote, para atuarem em nome de Jesus Cristo, Cabeça do seu Corpo Místico.
Através desse sacerdócio ministerial, que difere essencialmente - e não com uma simples diferença de
grau do sacerdócio comum de todos os fiéis -, os ministros sagrados podem consagrar o Corpo e o
Sangue de Cristo, oferecer a Deus o Santo Sacrifício, perdoar os pecados na confissão sacramental e
exercer o ministério da doutrina in iis quae sunt ad Deum , em tudo e somente naquilo que se refere a
Deus.

Por isso, o sacerdote deve ser exclusivamente um homem de Deus e repelir a idéia de brilhar em
campos onde os demais cristãos não precisam dele. O sacerdote não é um psicólogo, nem um
sociólogo, nem um antropólogo: é outro Cristo, o próprio Cristo, para cuidar das almas de seus irmãos.
Seria triste que o sacerdote, baseando-se numa ciência humana - que, se se dedica à sua tarefa
sacerdotal, cultivará somente como amador e aprendiz -, se julgasse só por isso habilitado a pontificar
em teologia dogmática ou moral. A única coisa que faria seria demonstrar uma dupla ignorância - na
ciência humana e na ciência teológica -, mesmo que pelo seu ar superficial de sábio conseguisse
enganar alguns leitores ou ouvintes indefesos.

É fato público que alguns eclesiásticos parecem hoje dispostos a fabricar uma nova Igreja, traindo
Cristo, trocando os fins espirituais - a salvação das almas, uma a uma - por fins temporais. Se não
resistem a essa tentação, deixarão de cumprir o seu ministério sagrado, perderão a confiança e o
respeito do povo e causarão uma terrível destruição dentro da Igreja; intrometendo-se, além disso,
indevidamente, na liberdade política dos cristãos e dos demais homens, com a conseqüente confusão -
eles mesmos se tornam perigosos - na convivência civil. A Sagrada Ordem é o sacramento do serviço
sobrenatural aos irmãos na fé; alguns parecem querer convertê-la em instrumento terreno de um novo
despotismo.

80 Mas continuemos a contemplar a maravilha dos Sacramentos. Na Unção dos enfermos, como agora se
chama a Extrema-Unção, assistimos a uma amorosa preparação da viagem que terminará na casa do
Pai. E pela Sagrada Eucaristia, sacramento - se assim nos podemos expressar - da prodigalidade
divina, Deus concede-nos a sua graça e se nos entrega Ele mesmo: Jesus Cristo, que está sempre
realmente presente - não apenas durante a Santa Missa - com seu Corpo, sua Alma, seu Sangue e sua
Divindade.

Penso repetidas vezes na responsabilidade que têm os sacerdotes de assegurar a todos os cristãos esse
canal divino dos Sacramentos. A graça de Deus vem em socorro de cada alma; cada criatura requer
uma assistência concreta, pessoal. As almas não podem ser tratadas em massa! Não é lícito ofender a
dignidade humana e a dignidade dos filhos de Deus deixando de atender pessoalmente a cada um com
a humildade de quem se sabe instrumento e veículo do amor de Cristo: porque cada alma é um tesouro
maravilhoso; cada homem é único, insubstituível. Cada um vale todo o sangue de Cristo.

Falávamos antes de luta. Mas a luta exige treino, alimentação adequada, remédios urgentes em caso de
doença, de contusões, de feridas. Os Sacramentos - principal remédio da Igreja - não são supérfluos:
quando os abandonamos voluntariamente, já não podemos dar um só passo no seguimento de Jesus
Cristo; necessitamos deles como da respiração, da circulação do sangue ou da luz, para sabermos
apreciar em qualquer instante o que o Senhor quer de nós.

A ascética do cristão exige fortaleza, e essa fortaleza procede do Criador. Nós somos a escuridão, e Ele
é claríssimo resplendor; somos a enfermidade, e Ele a saúde vigorosa; somos a escassez, e Ele a
infinita riqueza; somos a fraqueza, e Ele, quem nos sustenta, quia tu es, Deus, fortitudo mea , porque
tu és sempre, ó meu Deus, a nossa fortaleza. Nada há nesta terra capaz de se opor ao jorrar impaciente
do Sangue redentor de Cristo. Mas a pequenez humana pode toldar os olhos e ocultar-nos a grandeza
divina. Daí que todos os fiéis, especialmente os que têm por ofício dirigir - servir - espiritualmente o
Povo de Deus, tenham a responsabilidade de não cegar as fontes da graça, de não se envergonharem da
Cruz de Cristo.

81 Na Igreja de Deus, é obrigação de todos nós perseverarmos com firmeza no propósito de ser sempre
mais leais à doutrina de Cristo. Ninguém está dispensado. Se os pastores não lutassem pessoalmente
por adquirir delicadeza de consciência, respeito fiel ao dogma e à moral - que constituem o depósito da
fé e o patrimônio comum -, tornar-se-iam realidade as palavras proféticas de Ezequiel: Filho do
homem, profetiza contra os pastores de Israel; profetiza e diz a esses pastores: Assim fala o Senhor
Deus: Ai dos pastores de Israel que se apascentam a si mesmos! Porventura não são os rebanhos que
devem ser apascentados pelos pastores? Vós bebestes o seu leite e vestistes as suas lãs... Não
fortalecestes as ovelhas fracas e não curastes as doentes, não vendastes as que estavam feridas nem
reconduzistes as transviadas; não buscastes as que se tinham perdido e a todas tratastes com
violência e dureza.

São repreensões fortes; porém, mais grave é a ofensa que se faz a Deus quando, tendo recebido a
incumbência de velar pelo bem espiritual de todos, se maltratam as almas, privando-as da água limpa
do Batismo, que regenera a alma; do óleo balsâmico da Crisma, que a fortalece; do tribunal que
perdoa, do alimento que dá a vida eterna.

Quando podem acontecer estas coisas? Quando se abandona esta guerra de paz. Quem não luta expõe-
se a qualquer das escravidões que sabem agrilhoar os corações de carne: a escravidão de uma visão
exclusivamente humana, a escravidão do desejo opressivo de poder e de prestígio temporal, a
escravidão da vaidade, a escravidão do dinheiro, a servidão da sensualidade...

Se alguma vez tropeçarmos com pastores indignos desse nome - Deus pode permitir semelhante prova
-, não nos escandalizemos. Cristo prometeu assistência infalível e indefectível à sua Igreja, mas não
garantiu a fidelidade dos homens que a compõem. A estes não faltará graça abundante e generosa, se
souberem contribuir com o pouco que Deus lhes pede: vigiar atentamente, empenhando-se em remover
com a graça de Deus os obstáculos à santidade. Se não houver luta, mesmo os que parecem estar muito
alto podem estar muito baixo aos olhos de Deus. Conheço as tuas obras, a tua conduta. Consideram-te
vivo, mas estás morto. Permanece atento e consolida o resto do rebanho que está para morrer, pois
não achei as tuas obras perfeitas diante do meu Deus. Lembra-te da doutrina que recebeste e ouviste.
Observa-a e arrepende-te.

São exortações do Apóstolo São João, no século I, dirigidas a quem detinha a responsabilidade da
Igreja na cidade de Sardes. Porque o possível debilitamento do senso de responsabilidade em alguns
pastores não é um fenômeno moderno; surge já nos tempos dos Apóstolos, no próprio século em que
Jesus Cristo Nosso Senhor viveu na terra. É que ninguém está seguro, se deixa de lutar consigo
mesmo. Ninguém se pode salvar sozinho. Todos na Igreja necessitamos desses meios específicos que
nos fortalecem: da humildade, que nos persuade a aceitar ajuda e conselho; das mortificações, que
aplainam o coração, para que nele reine Cristo; do estudo da Doutrina segura de sempre, que nos leva
a conservar em nós a fé e a propagá-la.

82 A liturgia do Domingo de Ramos põe na boca dos cristãos este cântico: Levantai, portas, os vossos
dintéis; levantai-vos, portas antigas, para que entre o Rei da glória. Quem permanecer recluído na
cidadela do seu egoísmo não descerá ao campo de batalha. Mas, se levantar as portas da fortaleza e
permitir que entre o Rei da paz, sairá com Ele a combater contra toda essa miséria que embaça os
olhos e insensibiliza a consciência.
Levantai as portas antigas. Esta exigência de combate não é nova no cristianismo. É a verdade perene.
Sem luta, não se consegue a vitória; sem vitória, não se alcança a paz. Sem paz, a alegria humana é
apenas uma alegria aparente, falsa, estéril, que não se traduz em ajuda aos homens, em obras de
caridade e de justiça, de perdão e de misericórdia, em serviço de Deus.

Hoje em dia, dentro e fora da Igreja, em cima e em baixo, dá a impressão de que muitos renunciaram à
luta - a essa guerra pessoal contra as claudicações próprias -, para se entregarem de armas e bagagem a
servidões que envilecem a alma. Esse perigo estará sempre à espreita de todos os cristãos.

Por isso, é preciso pedir insistentemente à Santíssima Trindade que tenha compaixão de todos. Ao
falar destas coisas, estremeço ante o pensamento da justiça de Deus. Recorro à sua misericórdia, à sua
compaixão, para que não olhe para os nossos pecados, mas para os méritos de Cristo e de sua Santa
Mãe, que é também nossa Mãe, para os do Patriarca São José, que lhe serviu de Pai, para os dos
Santos.

O cristão pode viver com a segurança de que, se tiver desejos de lutar, Deus o pegará pela mão direita,
como se lê na Missa da festa de hoje. Foi Jesus - que entra em Jerusalém montado num pobre
jumentinho, o Rei da Paz -, foi Jesus quem o disse: O reino dos céus se alcança à força e são os
violentos que o arrebatam. Essa força não se traduz em violência contra os outros: é fortaleza para
combater as fraquezas e misérias próprias, valentia para não mascarar as infidelidades pessoais,
audácia para confessar a fé, mesmo quando o ambiente é adverso.

Hoje, como ontem, do cristão espera-se heroísmo. Heroísmo em grandes contendas, se for preciso.
Heroísmo - e será o normal - nas pequenas pendências de cada dia. Quando se luta continuamente,
com Amor e deste modo que parece insignificante, o Senhor está sempre ao lado de seus filhos, como
pastor amoroso: Eu mesmo apascentarei as minhas ovelhas e as farei repousar. Procurarei a ovelha
perdida, reconduzirei a desgarrada, vendarei a que estava ferida, restabelecerei as enfermas...
Viverão com segurança na sua terra. Quando eu tiver quebrado as cadeias do seu jugo e as houver
libertado das mãos dos seus tiranos, saberão que eu sou o Senhor.

83 Antes da festa da Páscoa, sabendo Jesus que chegara a sua hora de passar deste mundo ao Pai,
havendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim. Este versículo de São João anuncia
ao leitor do seu Evangelho que algo de importante está para acontecer nesse dia. É um preâmbulo
ternamente afetuoso, paralelo ao do relato de São Lucas: Ardentemente - afirma o Senhor - desejei
comer convosco esta páscoa, antes de padecer.

Comecemos desde já a pedir ao Espírito Santo que nos prepare para podermos entender cada expressão
e cada gesto de Jesus Cristo: porque queremos viver vida sobrenatural, porque o Senhor nos
manifestou a sua vontade de se dar a cada um de nós em alimento da alma, e porque reconhecemos
que só Ele tem palavras de vida eterna.

A fé leva-nos a confessar com Simão Pedro: Nós acreditamos e sabemos que tu és o Cristo, o Filho de
Deus. E é essa mesma fé, fundida com a nossa devoção, que nesses momentos transcendentes nos
incita a imitar a audácia de João, a aproximar-nos de Jesus e a reclinar a cabeça no peito do Mestre ,
que amava ardentemente os seus e, como acabamos de ouvir, iria amá-los até o fim.

Todas as formas de expressão se revelam pobres quando pretendem explicar, mesmo de longe, o
mistério da Quinta-Feira Santa. Mas não é difícil imaginar ao menos em parte os sentimentos do
Coração de Jesus Cristo naquela tarde, a última que passaria com os seus antes do sacrifício do
Calvário.

Tenhamos em mente a experiência tão humana da despedida de duas pessoas que se amam.
Desejariam permanecer sempre juntas, mas o dever - seja ele qual for - obriga-as a afastar-se uma da
outra. Não podem continuar sem se separarem, como gostariam. Nessas situações, o amor humano,
que, por maior que seja, é sempre limitado, recorre a um símbolo: as pessoas que se despedem trocam
lembranças entre si, possivelmente uma fotografia, com uma dedicatória tão ardente que é de admirar
que o papel não se queime. Mas não conseguem muito mais, pois o poder das criaturas não vai tão
longe quanto o seu querer.

Porém, o Senhor pode o que nós não podemos. Jesus Cristo, perfeito Deus e perfeito Homem, não nos
deixa um símbolo, mas a própria realidade: fica Ele mesmo. Irá para o Pai, mas permanecerá com os
homens. Não nos deixará um simples presente que nos lembre a sua memória, uma imagem que se
dilua com o tempo, como a fotografia que em breve se esvai, amarelece e perde sentido para os que
não tenham sido protagonistas daquele momento amoroso. Sob as espécies do pão e do vinho
encontra-se o próprio Cristo, realmente presente com seu Corpo, seu Sangue, sua Alma e sua
Divindade.

84 Como compreendemos agora o clamor incessante dos cristãos, em todos os tempos, diante da Hóstia
santa! Canta, ó língua, o mistério do Corpo glorioso e do Sangue precioso que o Rei de todos os
povos, nascido de Mãe fecunda, derramou para resgate do mundo. É preciso adorar devotamente este
Deus escondido. Ele é o mesmo Jesus Cristo que nasceu de Maria Virgem; o mesmo que padeceu e foi
imolado na Cruz; o mesmo de cujo peito trespassado jorraram água e sangue.

Este é o sagrado banquete em que se recebe o próprio Cristo, se renova a memória da sua Paixão e, por
meio dEle, a alma chega a um convívio íntimo com o seu Deus e possui um penhor da glória futura.
Assim resumiu a liturgia da Igreja, em breves estrofes, os capítulos culminantes da história da caridade
ardente que o Senhor nos dispensa.

O Deus da nossa fé não é um ser longínquo, que contemple com indiferença a sorte dos homens, seus
anseios, suas lutas, suas angústias. É um Pai que ama seus filhos até o extremo de lhes enviar o Verbo,
a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, para que, pela sua encarnação, morra por eles e os redima;
o mesmo Pai amoroso que agora nos atrai suavemente a Si, mediante a ação do Espírito Santo que
habita em nossos corações.

A alegria da Quinta-Feira Santa nasce de compreendermos que o Criador se excedeu no carinho por
suas criaturas. E como se não bastassem todas as outras provas da sua misericórdia, Nosso Senhor
Jesus Cristo instituiu a Eucaristia para que pudéssemos tê-lo sempre junto de nós e porque - tanto
quanto nos é possível entender -, movido por seu Amor, Ele, que de nada necessita, não quis prescindir
de nós. A Trindade enamorou-se do homem, elevado à ordem da graça e feito à sua imagem e
semelhança , redimiu-o do pecado - do pecado de Adão, que recaiu sobre toda a sua descendência, e
dos pecados pessoais de cada um -, e deseja vivamente morar em nossa alma: Se alguém me ama,
guardará a minha palavra, e meu Pai o amará, e viremos a ele, e nele faremos a nossa morada.

85 Esta corrente trinitária de amor pelos homens perpetua-se de maneira sublime na Eucaristia. Há já
muitos anos, todos aprendemos no catecismo que a Sagrada Eucaristia pode ser considerada como
Sacrifício e como Sacramento; e que o Sacramento se nos apresenta como Comunhão e como um
tesouro no altar, no Sacrário.

A Igreja dedica outra festa ao mistério eucarístico, ao Corpo de Cristo - Corpus Christi -, presente em
todos os tabernáculos do mundo. Hoje, nesta Quinta-Feira Santa, vamos deter-nos na Sagrada
Eucaristia, Sacrifício e alimento, na Santa Missa e na Sagrada Comunhão.

Falava da corrente trinitária de amor pelos homens. E onde podemos percebê-la melhor do que na
Missa? A Trindade inteira intervém no santo sacrifício do altar. Por isso agrada-me tanto repetir na
coleta, na secreta e na oração depois da Comunhão aquelas palavras finais: Por Jesus Cristo, Nosso
Senhor, vosso Filho - dirigimo-nos ao Pai -, que convosco vive e reina na unidade do Espírito Santo
Deus, por todos os séculos dos séculos. Amém.

Na Missa, a oração ao Pai é constante. O sacerdote é um representante do Sacerdote eterno, Jesus


Cristo, que é ao mesmo tempo a vítima. E a ação do Espírito Santo na Missa não é menos inefável nem
menos certa. Pela virtude do Espírito Santo, escreve São João Damasceno, efetua-se a conversão do
pão no Corpo de Cristo.

Esta ação do Espírito Santo exprime-se claramente no momento em que o sacerdote invoca a bênção
divina sobre a oferenda: Vinde, santificador onipotente, eterno Deus, e abençoai este sacrifício
preparado para o vosso santo nome , este holocausto que dará ao Nome santíssimo de Deus a glória
que lhe é devida. A santificação que imploramos é atribuída ao Paráclito, que o Pai e o Filho nos
enviam. Reconhecemos também essa presença ativa do Espírito Santo no sacrifício quando dizemos,
pouco antes da Comunhão: Senhor Jesus Cristo, Filho do Deus vivo, que, por vontade do Pai e com a
cooperação do Espírito Santo, por vossa morte destes a vida ao mundo....

86 Toda a Trindade está presente no sacrifício do Altar. Por vontade do Pai e com a cooperação do
Espírito Santo, o Filho se oferece em oblação redentora. Aprendamos a ganhar intimidade com a
Trindade Beatíssima, Deus Uno e Trino: três Pessoas divinas na unidade da sua substância, do seu
amor e da sua ação santificadora cheia de eficácia.

Logo a seguir ao Lavabo, o sacerdote invoca: Recebei, ó Trindade Santa, esta oblação que Vos
oferecemos em memória da Paixão, da Ressurreição e da Ascensão de Nosso Senhor Iesus Cristo. E,
no final da Missa, temos outra oração de inflamado acatamento ao Deus Uno e Trino: Placeat tibi,
Sancta Trinitas, obsequium servitutis meae... Seja-Vos agradável, ó Trindade Santíssima, o tributo da
minha servidão, a fim de que este sacrifício que eu, embora indigno, apresentei aos olhos da Vossa
Majestade, seja aceito por Vós e, por vossa misericórdia, atraia o vosso favor sobre mim e sobre
todos aqueles por quem o ofereci.

A Missa - insisto - é ação divina, trinitária, não humana. O sacerdote que celebra está a serviço dos
desígnios do Senhor, emprestando-lhe seu corpo e sua voz. Não atua, porém, em nome próprio, mas in
persona et in nomine Christi, na Pessoa de Cristo e em nome de Cristo.

O amor da Trindade pelos homens faz com que, da presença de Cristo na Eucaristia, nasçam para a
Igreja e para a humanidade todas as graças. Este é o sacrifício profetizado por Malaquias: Desde o
nascer do sol até o ocaso, é grande meu nome entre os povos; e em todo o lugar se oferece ao meu
nome um sacrifício fumegante e uma oblação pura. É o Sacrifício de Cristo, oferecido ao Pai com a
cooperação do Espírito Santo: oblação de valor infinito, que eterniza em nós a Redenção que os
sacrifícios da Antiga Lei não podiam alcançar.

87 A Santa Missa situa-nos assim perante os mistérios primordiais da fé, porque é a própria doação da
Trindade à Igreja. Compreende-se deste modo que a Missa seja o centro e a raiz da vida espiritual do
cristão. É o fim de todos os sacramentos. Na Missa, encaminha-se para a sua plenitude a vida da graça
que foi depositada em nós pelo Batismo e que cresce fortalecida pelo Crisma. Quando participamos da
Eucaristia, escreve São Cirilo de Jerusalém, experimentamos a espiritualização deificante do Espírito
Santo, que não só nos configura com Cristo - como acontece no Batismo -, mas nos cristifica
integralmente, associando-nos à plenitude de Cristo Jesus.

Na medida em que nos cristifica, a efusão do Espírito Santo leva-nos a reconhecer a nossa condição de
filhos de Deus. O Paráclito, que é caridade, ensina-nos a fundir com essa virtude toda a nossa vida; e
assim, consummati in unum , feitos uma só coisa com Cristo, podemos ser entre os homens o que
Santo Agostinho afirma da Eucaristia: sinal de unidade, vínculo de Amor.

Não revelo nada de novo se digo que alguns cristãos têm uma visão muito pobre da Santa Missa, que
muitos a encaram como um mero rito exterior, quando não como um convencionalismo social. É que
os nossos corações, tão mesquinhos, são capazes de acompanhar rotineiramente a maior doação de
Deus aos homens. Na Missa, nesta Missa que agora celebramos, intervém de um modo especial,
repito, a Trindade Santíssima. Para correspondermos a tanto amor, é preciso que haja da nossa parte
uma entrega total do corpo e da alma, pois ouvimos o próprio Deus, falamos com Ele; nós o vemos e
saboreamos. E quando as palavras se tornam insuficientes, cantamos, animando a nossa língua
- Pange, lingua! - a proclamar as grandezas do Senhor na presença de toda a humanidade.

88 Viver a Santa Missa é permanecer em oração contínua, convencer-se de que é para cada um de nós um
encontro pessoal com Deus, em que adoramos, louvamos, pedimos, damos graças, reparamos por
nossos pecados, nos purificamos e nos sentimos uma só coisa em Cristo com todos os cristãos.

Talvez nos tenhamos perguntado algumas vezes como podemos corresponder a tanto amor de Deus;
talvez nesses momentos tenhamos desejado ver claramente exposto um programa de vida cristã. A
solução é fácil e está ao alcance de todos os fiéis: participar amorosamente da Santa Missa, aprender
na Missa a ganhar intimidade com Deus, porque neste Sacrifício se encerra tudo o que o Senhor quer
de nós.

Desejaria recordar agora o desenrolar das cerimônias litúrgicas, que tantas vezes temos observado.
Seguindo-as passo a passo, é bem possível que o Senhor nos faça descobrir em que aspectos devemos
melhorar, que vícios extirpar, como deve ser o nosso relacionamento fraterno com todos os homens. O
sacerdote dirige-se ao altar de Deus, do Deus que alegra a nossa juventude. A Santa Missa inicia-se
com um cântico de alegria, porque Deus está presente. É a alegria que, unida ao reconhecimento e ao
amor, se manifesta no beijo depositado no altar, símbolo de Cristo e memória dos santos: um espaço
pequeno e santificado, porque nesta ara se prepara o Sacramento da infinita eficácia.

O Confiteor coloca-nos perante a nossa indignidade; não é a lembrança abstrata da culpa, mas a
presença, bem concreta, dos nossos pecados e das nossas faltas. Por isso repetimos: Kyrie eleison,
Christe eleison, Senhor, tende piedade de nós; Cristo, tende piedade de nós. Se o perdão de que
necessitamos estivesse em função dos nossos méritos, nasceria agora na nossa alma uma amarga
tristeza. Mas, graças à bondade divina, o perdão nos vem da misericórdia de Deus, a quem já louvamos
- Glória! -, porque só Vós sois o Santo, só Vós o Senhor, só Vós o Altíssimo, Jesus Cristo, com o
Espírito Santo, na glória de Deus Pai.

89 Ouvimos a seguir a Palavra da Escritura, a Epístola e o Evangelho, luzes do Paráclito, que fala com
voz humana para que a nossa inteligência saiba e contemple, para que a vontade se robusteça e a ação
se cumpra, porque somos um só povo que confessa uma só fé, um Credo, um povo congregado na
unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

Segue-se o Ofertório: o pão e o vinho dos homens. Não é muito, mas a oração os acompanha: Em
espírito de humildade e de coração contrito sejamos por Vós recebidos, Senhor, e que o nosso
sacrifício se cumpra hoje na vossa presença de modo que Vos seja agradável, ó Senhor Deus. Irrompe
de novo a lembrança da nossa miséria e o desejo de que tudo o que se destina ao Senhor esteja limpo e
purificado: Lavarei minhas mãos, amo o decoro da tua casa.

Há poucos instantes, antes do Lavabo, invocávamos o Espírito Santo, pedindo-lhe que abençoasse o
Sacrifício oferecido ao seu santo Nome. Terminada a purificação, dirigimo-nos à Trindade - Suscipe,
Sancta Trinitas -, para que acolha o que oferecemos em memória da vida, da Paixão, da Ressurreição e
da Ascensão de Cristo, em honra de Maria, sempre Virgem, e em honra de todos os Santos.

Que a oblação redunde em salvação de todos - Orate, fratres, reza o sacerdote -, porque este sacrifício
é meu e vosso, de toda a Santa Igreja. Orai, irmãos, mesmo que sejam poucos os que se encontram
reunidos, mesmo que esteja materialmente presente um só cristão, ou apenas o celebrante, porque
qualquer Missa é o holocausto universal, o resgate de todas as tribos e línguas e povos e nações.

Pela Comunhão dos Santos, todos os cristãos recebem as graças de cada Missa, quer se celebre perante
milhares de pessoas ou tenha por único assistente um menino, talvez distraído, que ajuda o sacerdote.
Em qualquer caso, a terra e o céu se unem para entoar com os Anjos do Senhor: Sanctus, Sanctus,
Sanctus...

Eu aplaudo e louvo com os Anjos. Não me é difícil, porque sei que me encontro rodeado por eles
quando celebro a Santa Missa. Estão adorando a Trindade. Como sei também que, de algum modo,
intervém a Santíssima Virgem, pela sua íntima união com a Trindade Beatíssima e porque é Mãe de
Cristo, da sua Carne e do seu Sangue, Mãe de Jesus Cristo, perfeito Deus e perfeito Homem. Jesus
Cristo, que foi concebido nas entranhas de Maria Santíssima sem intervenção de homem, mas apenas
pela virtude do Espírito Santo, tem o mesmo Sangue de sua Mãe: e é esse Sangue que se oferece no
sacrifício redentor, no Calvário e na Santa Missa.

90 Assim se entra no Canon, com a confiança filial que nos leva a chamar clementíssimo ao nosso Pai-
Deus. Pedimos-lhe pela Igreja e por todos na Igreja, pelo Papa, por nossa família, pelos nossos amigos
e companheiros. E o católico, que tem coração universal, pede pelo mundo inteiro, porque nada pode
ficar à margem do seu zelo vibrante. E para que a oração seja acolhida, evocamos e entramos em
comunicação com a gloriosa sempre Virgem Maria e com um punhado de homens que foram os
primeiros a seguir Cristo e por Ele morreram.

Quam oblationem... Aproxima-se o momento da Consagração. Agora, na Missa, é outra vez Cristo
quem atua através do sacerdote: Isto é o meu Corpo. Este é o cálice do meu Sangue. Jesus está
conosco! Pela transubstanciação, renova-se a infinita loucura divina ditada pelo Amor. Quando hoje se
repetir esse momento, saibamos dizer ao Senhor, sem ruído de palavras, que nada nos poderá separar
dEle, que a disponibilidade com que quis permanecer - inerme - nas aparências, tão frágeis, do pão e
do vinho, nos converteu voluntariamente em escravos: Praesta meae menti de te vivere, et te illi
semper dulce sapere ; fazei com que eu viva sempre de Vós e saboreie sempre a doçura do vosso
amor.

Mais pedidos, porque nós, homens, estamos quase sempre inclinados a pedir: por nossos irmãos
defuntos, por nós mesmos. Aqui evocamos todas as nossas infidelidades, as nossas misérias. A carga é
grande, mas Ele quer levá-la por nós e conosco. Termina o Canon com outra invocação à Santíssima
Trindade: Per Ipsum, et cum Ipso, et in Ipso..., por Cristo, com Cristo e em Cristo, nosso Amor, a Vós,
ó Pai Todo-Poderoso, seja dada toda a honra e toda a glória, agora e para sempre, na unidade do
Espírito Santo.

91 Jesus é o Caminho, o Medianeiro: nEle, tudo; fora dEle, nada. Em Cristo e ensinados por Ele,
atrevemo-nos a chamar Pai Nosso ao Todo-Poderoso: Aquele que fez o céu e a terra é esse Pai
entranhável que espera que voltemos para Ele continuamente, cada um como novo e constante filho
pródigo.

Ecce Agnus Dei... Domine, non sum dignus... Vamos receber o Senhor. Quando na terra se recebem
pessoas investidas em autoridade, preparam-se luzes, música, trajes de gala. Para hospedarmos Cristo
na nossa alma, de que maneira não deveremos preparar-nos? Já nos ocorreu pensar como nos
comportaríamos, se só pudéssemos comungar uma vez na vida?

Quando eu era criança, ainda não estava estendida a prática da Comunhão freqüente. Lembro-me do
modo como as pessoas se preparavam para comungar: havia esmero em preparar bem a alma e o
corpo. As melhores roupas, o cabelo bem penteado, o corpo fisicamente limpo, talvez até com um
pouco de perfume... Eram delicadezas próprias de gente enamorada, de almas finas e retas, que sabiam
pagar o Amor com amor.
Com Cristo na alma, termina a Santa Missa. A bênção do Pai, do Filho e do Espírito Santo
acompanha-nos durante todo o dia, na nossa tarefa simples e normal de santificar todas as nobres
atividades humanas.

Assistindo à Santa Missa, aprendemos a conviver com cada uma das Pessoas divinas: com o Pai, que
gera o Filho; com o Filho, que é gerado pelo Pai; e com o Espírito Santo, que procede dos dois.
Convivendo com qualquer uma das três Pessoas, convivemos com um só Deus; e convivendo com os
três, a Trindade, convivemos igualmente com um só Deus, único e verdadeiro. Amemos a Missa, meus
filhos, amemos a Missa. E comunguemos com fome, mesmo que nos sintamos gelados, mesmo que a
emotividade não nos acompanhe: comunguemos com fé, com esperança, com inflamada caridade.

92 Não ama a Cristo quem não ama a Santa Missa, quem não se esforça por vivê-la com serenidade e
sossego, com devoção e carinho. O amor converte os enamorados em pessoas de sensibilidade fina e
delicada; leva-os a descobrir, para que se esmerem em vivê-los, pormenores às vezes insignificantes,
mas que trazem a marca de um coração apaixonado. É assim que devemos assistir à Santa Missa. Por
isso sempre desconfiei das pessoas empenhadas em ouvir uma Missa curta e atropelada: pareciam-me
demonstrar com essa atitude, aliás pouco elegante, não terem percebido ainda o que significa o
Sacrifício do altar.

O amor a Cristo, que se oferece por nós, incita-nos a saber encontrar, uma vez terminada a Missa,
alguns minutos para uma ação de graças pessoal e íntima, que prolongue no silêncio do coração essa
outra ação de graças que é a Eucaristia. Como havemos de nos dirigir a Ele, como falar-Lhe, como
comportar-nos?

A vida cristã não se compõe de normas rígidas, porque o Espírito Santo não dirige as almas em massa,
mas em cada uma infunde propósitos, inspirações e afetos que a ajudarão a reconhecer e a cumprir a
vontade do Pai. Penso, não obstante, que em muitas ocasiões o nervo do nosso diálogo com Cristo, da
ação de graças após a Santa Missa, pode ser a consideração de que o Senhor é para nós Rei, Médico,
Mestre e Amigo.

93 É Rei, e anseia por reinar em nossos corações de filhos de Deus. Mas não imaginemos reinados
humanos; Cristo não domina nem procura impor-se, porque não veio para ser servido, mas para
servir.

Seu reino é a paz, a alegria, a justiça. Cristo, nosso Rei, não espera de nós raciocínios vãos, mas fatos,
porque nem todo aquele que diz Senhor! Senhor! entrará no reino dos céus; mas o que faz a vontade
de meu Pai que está nos céus, esse entrará.

É Médico, e cura o nosso egoísmo se deixarmos que a sua graça penetre até o fundo da alma. Jesus
advertiu-nos que a pior doença é a hipocrisia, o orgulho que leva a dissimular os pecados próprios.
Com o Médico, é imprescindível que tenhamos uma sinceridade absoluta, que lhe expliquemos toda a
verdade e digamos: Domine, si vis, potes me mundare , Senhor, se quiseres - e Tu queres sempre -,
podes curar-me. Tu conheces a minha debilidade; sinto estes sintomas e experimento estas outras
fraquezas. E descobrimos com simplicidade as chagas; e o pus, se houver pus. Senhor, Tu que curaste
tantas almas, faz com que, ao ter-te no meu peito ou ao contemplar-te no Sacrário, te reconheça como
Médico divino.

É Mestre de uma ciência que só Ele possui: a do amor sem limites a Deus e, em Deus, a todos os
homens. Na escola de Cristo, aprende-se que a nossa existência não nos pertence. Ele entregou a sua
vida por todos os homens e, se o seguimos, devemos compreender que também nós não podemos
apropriar-nos da nossa de maneira egoísta, sem partilhar das dores dos outros. Nossa vida é de Deus e
temos que gastá-la ao seu serviço, preocupando-nos generosamente com as almas e demonstrando com
a palavra e o exemplo a profundidade das exigências cristãs.

Jesus espera que alimentemos o desejo de adquirir essa ciência, para nos repetir: Quem tiver sede,
venha a mim e beba. E respondemos: ensina-nos a esquecer-nos de nós mesmos, para pensar em Ti e
em todas as almas. Deste modo, o Senhor nos levará para a frente com a sua graça, como quando
começávamos a escrever - não nos lembramos daqueles traços verticais que fazíamos na infância,
guiados pela mão do professor? -, e assim começaremos a saborear a felicidade de manifestar a nossa
fé - que já é outra dádiva de Deus - com traços inequívocos de conduta cristã, onde todos possam ler as
maravilhas divinas.

É Amigo, o Amigo: Vos autem dixi amicos. Chama-nos amigos e foi Ele quem deu o primeiro passo;
amou-nos primeiro. Mas não impõe o seu amor: oferece-o. E prova-o com o sinal mais claro da
amizade: Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos. Era amigo de
Lázaro, e chorou por ele quando o viu morto. E o ressuscitou. Se nos vir frios, apáticos, talvez com a
rigidez de uma vida interior que se extingue, seu pranto será vida para nós: Eu te ordeno, meu amigo,
levanta-te e anda , sai dessa vida mesquinha, que não é vida.

94 Termina a nossa meditação de Quinta-Feira Santa. Se o Senhor nos ajudou - e Ele está sempre disposto
a fazê-lo, desde que lhe abramos o coração -, sentiremos a urgência de lhe corresponder no que é mais
importante: amar. E saberemos difundir essa caridade entre os demais homens, com uma vida de
serviço. Eu vos dei o exemplo , insiste Jesus, falando aos seus discípulos depois de lhes ter lavado os
pés na noite da Ceia. Afastemos do coração o orgulho, a ambição, os desejos de predomínio e assim, à
nossa volta e em nós, reinarão a paz e a alegria, alicerçadas no sacrifício pessoal.

Finalmente, um pensamento filial e amoroso para Maria, Mãe de Deus e nossa Mãe. Peço desculpas se
evoco mais uma recordação de infância, desta vez relativa a uma imagem muito difundida na minha
terra, no tempo em que São Pio X estimulava a prática da comunhão freqüente. Representa Maria em
adoração à Hóstia santa. Hoje, como então e como sempre, Nossa Senhora ensina-nos a procurar a
intimidade com Jesus, a reconhecê-lo e a encontrá-lo nas diversas circunstâncias do dia e, de um modo
especial, nesse instante supremo - o tempo unindo-se à eternidade - do Santo Sacrifício da Missa: Jesus
com gesto de sacerdote eterno, atrai a Si todas as coisas, para as colocar, divino afflante Spiritu, com o
sopro do Espírito Santo, na presença de Deus Pai.

95 Esta semana, que o povo cristão tradicionalmente chama Santa, oferece-nos uma vez mais a ocasião de
considerarmos - de revivermos - os momentos em que se consuma a vida de Jesus. Tudo o que as
diversas manifestações da piedade nos trazem à memória, nestes dias, orienta-se certamente para a
Ressurreição, que é o fundamento da nossa fé, como escreve São Paulo. Mas não devemos percorrer
com excessiva pressa esse caminho; não devemos deixar cair no esquecimento uma coisa muito
simples, que talvez nos escape de vez em quando: é que não poderemos participar da Ressurreição do
Senhor se não nos unirmos à sua Paixão e à sua Morte. Para acompanharmos Cristo na sua glória, no
fim da Semana Santa, é preciso que penetremos antes no seu holocausto e nos sintamos uma só coisa
com Ele, morto no Calvário.

A entrega generosa de Cristo defronta-se com o pecado, essa realidade dura de aceitar, mas inegável:
o mistério da iniqüidade, a inexplicável maldade da criatura que se levanta, por soberba, contra Deus.
A história é tão antiga como a humanidade. Recordemos a queda dos nossos primeiros pais; depois,
toda essa cadeia de depravações que balizam a marcha dos homens, e, finalmente, as nossas rebeldias
pessoais. Não é fácil considerar a perversão que o pecado implica e compreender tudo o que a fé nos
diz. Devemos tomar consciência de que, mesmo no plano humano, a magnitude da ofensa se mede
pela condição do ofendido, pelo seu valor pessoal, pela sua dignidade social, pelas suas qualidades. E
o homem ofende a Deus: a criatura renega o seu Criador.

Mas Deus é Amor. O abismo de malícia que o pecado encerra foi transposto por uma Caridade infinita.
Deus não abandona os homens. Os desígnios divinos previram que, para reparar as nossas faltas, para
restabelecer a unidade perdida, não eram suficientes os sacrifícios da Antiga Lei; fazia-se necessária a
entrega de um Homem que fosse Deus.

Podemos imaginar - para de algum modo nos aproximarmos deste mistério insondável - que a
Trindade Beatíssima se reúne em conselho, em sua contínua relação íntima de amor imenso, e, como
resultado dessa decisão eterna, o Filho Unigênito de Deus Pai assume a nossa condição humana,
carrega sobre si as nossas misérias e as nossas dores, para acabar cravado com pregos num madeiro.

Este fogo, este desejo de cumprir o decreto salvador de Deus Pai, atravessa toda a vida de Cristo,
desde o seu próprio nascimento em Belém. Ao longo dos três anos em que conviveram com Ele, os
discípulos ouvem-no repetir incansavelmente que seu alimento é fazer a vontade dAquele que o
enviou. Até que, indo a meio a tarde da primeira Sexta-Feira Santa, se conclui a sua
imolação. Inclinando a cabeça, entregou o espírito. É com essas palavras que o Apóstolo São João nos
descreve a morte de Cristo. Jesus, assumindo todas as culpas dos homens sob o peso da Cruz, morre
pela força e vileza dos nossos pecados.

Devemos meditar no Senhor, ferido dos pés à cabeça por nosso amor. Com uma frase que se aproxima
da realidade, embora não acabe de exprimir tudo, podemos repetir com um escritor de há séculos: O
corpo de Jesus é um retábulo de dores. À vista de Cristo transformado num farrapo, convertido num
corpo inerte descido da Cruz e confiado a sua Mãe; à vista desse Jesus despedaçado, poderia concluir-
se que essa cena é a manifestação mais clara de uma derrota. Onde estão as multidões que o seguiam?
E o Reino cujo advento anunciava? No entanto, não é derrota, mas vitória. Agora Cristo acha-se mais
perto que nunca do momento da Ressurreição, da manifestação da glória que conquistou com a sua
obediência.

96 Acabamos de reviver o drama do Calvário, aquilo que me atreveria a chamar a primeira Missa, a
primordial, celebrada por Jesus Cristo. Deus Pai entrega seu Filho à morte. Jesus, o Filho Unigênito,
abraça-se ao lenho em que haviam de justiçá-lo, e seu sacrifício é aceito pelo Pai; como fruto da Cruz,
derrama-se sobre a humanidade o Espírito Santo.

Na tragédia da Paixão, consuma-se a nossa própria vida e toda a história humana. A Semana Santa não
pode reduzir-se a uma simples recordação, porque é a consideração do mistério de Jesus Cristo, que se
prolonga em nossas almas; o cristão está obrigado a ser alter Christus, ipse Christus, outro Cristo, o
próprio Cristo. Pelo Batismo, todos fomos constituídos sacerdotes da nossa própria existência, para
oferecer vítimas espirituais, que sejam agradáveis a Deus por Jesus Cristo , para realizar cada uma de
nossas ações em espírito de obediência à vontade de Deus, e assim perpetuarmos a missão do Deus-
Homem.

Por contraste, essa realidade nos leva a deter-nos nas nossas desditas, nos nossos erros pessoais. É uma
consideração que não nos deve desanimar nem colocar-nos na atitude cética de quem renunciou às
grandes esperanças, porque o Senhor reclama-nos tal como somos, para que participemos da sua vida,
para que lutemos por ser santos.

A santidade: quantas vezes pronunciamos esta palavra como se fosse um som vazio! Para muitos,
chega até a ser um ideal inacessível, um lugar comum da ascética, mas não um fim concreto, uma
realidade viva. Não pensavam assim os primeiros cristãos, que usavam o nome de santos para se
chamarem entre si, com toda a naturalidade e com grande freqüência: Todos os santos vos
saúdam , saudai a todos os santos em Cristo Jesus.

Situados agora perante o momento do Calvário, em que Jesus já morreu e ainda se não manifestou a
glória do seu triunfo, temos uma excelente ocasião para examinarmos os nossos desejos de vida cristã,
de santidade; para reagirmos com um ato de fé perante as nossas fraquezas e, confiantes no poder de
Deus, fazermos o propósito de depositar amor nas coisas do nosso dia-a-dia. A experiência do pecado
tem que nos conduzir à dor, a uma decisão mais amadurecida e mais profunda de ser fiéis, de nos
identificarmos deveras com Cristo, de perseverar custe o que custar nessa missão sacerdotal que Ele
confiou a todos os seus discípulos sem exceção, e que nos impele a ser sal e luz do mundo.

97 O pensamento da morte de Cristo traduz-se num convite para que nos situemos com absoluta
sinceridade perante os nossos afazeres diários e tomemos a sério a fé que professamos. A Semana
Santa não pode, pois, ser um parêntesis sagrado no contexto de um viver motivado exclusivamente por
interesses humanos; deve ser uma ocasião de adentrar nas profundezas do Amor de Deus, para assim
podermos mostrá-lo aos homens, com a palavra e com as obras.

Mas o Senhor estabelece condições. São Lucas conserva-nos uma declaração sua de que não podemos
prescindir: Se algum dos que me seguem não aborrece seu pai e sua mãe, a mulher e os filhos, os
irmãos e as irmãs, e até a sua própria vida, não pode ser meu discípulo. São termos duros. É verdade
que nem a palavra “odiar” nem a palavra “aborrecer” exprimem bem o pensamento original de Jesus.
De qualquer forma, as palavras do Senhor foram fortes, porque também não se reduzem a um amar
menos, como por vezes se interpreta temperadamente, para suavizar a frase. É terrível uma expressão
tão contundente, não porque implique uma atitude negativa ou impiedosa - pois o Jesus que agora fala
é o mesmo que manda amar o próximo como à própria alma, e que dá a sua vida pelos homens -, mas
por ser uma locução que indica simplesmente que, diante de Deus, não são possíveis as meias medidas.
As palavras de Cristo poderiam traduzir-se por amar mais, amar melhor, ou antes por não amar com
um amor egoísta nem tampouco com um amor de curto alcance: devemos amar com o Amor de Deus.

É disso que se trata. Observemos com atenção a última das exigências de Jesus: et animam suam. A
vida, a própria alma, é o que o Senhor nos pede. Se somos fátuos, se nos preocupamos apenas com a
nossa comodidade pessoal, se encaramos a existência dos outros e inclusive do mundo por referência
exclusiva a nós mesmos, não temos o direito de nos chamarmos cristãos e de nos considerarmos
discípulos de Cristo. A entrega tem que se realizar com obras e com verdade, não apenas com a boca.
O amor a Deus convida-nos a levar a cruz a pulso, a sentir também sobre nós o peso da humanidade
inteira, e a cumprir, dentro das circunstancias próprias do estado e do trabalho de cada um, os
desígnios ao mesmo tempo claros e amorosos da vontade do Pai. Na passagem que comentamos, Jesus
prossegue: E aquele que não carrega a sua cruz e me segue, também não pode ser meu discípulo.

Temos que aceitar a vontade de Deus sem medo, precisamos formular sem vacilações o propósito de
edificar toda a nossa vida de acordo com o que a nossa fé nos ensina e exige. Não há dúvida de que
encontraremos luta, sofrimento e dor, mas, se possuímos uma fé verdadeira, nunca nos consideraremos
infelizes: mesmo com penas e até com calúnias, seremos felizes, com uma felicidade que nos impelirá
a amar os outros e a fazê-los participar da nossa alegria sobrenatural.

98 Ser cristão não é título de mera satisfação pessoal: tem nome - substância - de missão. Já antes
recordávamos que o Senhor convida todos os cristãos a serem sal e luz do mundo. Fazendo-se eco
desse preceito, e com textos tirados do Antigo Testamento, São Pedro escreve umas palavras que
definem muito claramente essa missão: Vós sois linhagem escolhida, sacerdócio real, gente santa,
povo de conquista, para anunciar as grandezas dAquele que vos arrancou das trevas para a sua luz
admirável.

Ser cristão não é algo de acidental; é uma divina realidade que se insere nas entranhas da nossa vida,
dando-nos uma visão límpida e uma vontade decidida de agir como Deus quer. Aprende-se assim que
a peregrinação do cristão pelo mundo tem que se converter num contínuo serviço, prestado de modos
muito diversos, conforme as circunstancias pessoais, mas sempre por amor a Deus e ao próximo. Ser
cristão é agir sem pensar nas pequenas metas do prestígio ou da ambição, nem em outras finalidades
aparentemente mais nobres, como a filantropia ou a compaixão perante as desgraças alheias; é avançar
em direção ao termo último e radical do amor que Jesus Cristo manifestou ao morrer por nós.
Observam-se, por vezes, certas atitudes que são o resultado de não se saber captar esse mistério de
Jesus. Por exemplo, a mentalidade dos que encaram o cristianismo como um conjunto de práticas ou
atos de piedade, sem perceberem a sua relação com as situações da vida de todos os dias, com a
urgência de atender às necessidades dos outros e de esforçar-se por remediar as injustiças.

Eu diria que os que têm essa mentalidade ainda não compreenderam o que significa que o Filho de
Deus se tenha encarnado, que tenha assumido corpo, alma e voz de homem, que tenha participado do
nosso destino até experimentar o despedaçamento supremo da morte. Talvez involuntariamente, certas
pessoas consideram Cristo como um estranho no ambiente dos homens.

Outros, por sua vez, tendem a imaginar que, para poderem ser humanos, têm que pôr em surdina
alguns aspectos centrais do dogma cristão, e comportam-se como se a vida de oração, a relação
contínua com Deus, constituísse uma fuga às responsabilidades e um abandono do mundo. Esquecem
que foi o próprio Jesus quem nos deu a conhecer até que extremo se devem levar o amor e o serviço.
Só se procurarmos compreender o arcano do amor de Deus, desse amor que chega até à morte, é que
seremos capazes de entregar-nos totalmente aos outros, sem nos deixarmos vencer pelas dificuldades
ou pela indiferença.

99 É a fé em Cristo - morto e ressuscitado, presente em todos e cada um dos momentos da vida - que
ilumina as nossas consciências, incitando-nos a participar com todas as forças nas vicissitudes e nos
problemas da história humana. Nessa história, que se iniciou com a criação do mundo e que findará
com a consumação dos séculos, o cristão não é um apátrida. É um cidadão da cidade dos homens, com
a alma absorvida pelo desejo de Deus, cujo amor começa a entrever já nesta etapa temporal e no qual
reconhece o fim a que estamos chamados todos os que vivemos na terra.

Se tem interesse o meu testemunho pessoal, posso dizer que sempre concebi a minha atividade de
sacerdote e de pastor de almas como uma tarefa dirigida a situar cada um em face das exigências totais
da sua vida, ajudando as pessoas a descobrir aquilo que Deus lhes pedia em concreto, sem estabelecer
qualquer limitação a essa independência santa e a essa abençoada responsabilidade individual, que são
características de uma consciência cristã. Esse modo de agir e esse espírito baseiam-se no respeito à
transcendência da verdade revelada e no amor à liberdade da criatura humana. Poderia acrescentar que
se baseiam também na certeza da indeterminação da História, aberta a múltiplas possibilidades, que
Deus não quis limitar.

Seguir Cristo não significa refugiar-se no templo, encolhendo os ombros perante a evolução da
sociedade, perante os acertos ou as aberrações dos homens e dos povos. Muito pelo contrário, a fé
cristã leva-nos a ver o mundo como criação do Senhor, a apreciar, portanto, tudo o que é nobre e belo,
a reconhecer a dignidade de cada pessoa, feita à imagem de Deus, e a admirar o dom especialíssimo da
liberdade, que nos faz donos dos nossos próprios atos e nos permite - com a graça do céu - construir o
nosso destino eterno.

Amesquinharíamos a fé se a reduzíssemos a uma ideologia terrena, arvorando um estandarte político-


religioso para condenar, não se sabe em nome de que investidura divina, os que não pensam do mesmo
modo em problemas que são, por sua própria natureza, suscetíveis de receber numerosas e diversas
soluções.

100 A digressão que acabo de fazer tem por única finalidade pôr de manifesto uma verdade central:
lembrar que a vida cristã encontra o seu sentido em Deus. Os homens não foram criados apenas para
edificar um mundo o mais justo possível; para além disso, fomos estabelecidos na terra para entrar em
comunhão com o próprio Deus. Jesus Cristo não nos prometeu nem a comodidade temporal nem a
glória terrena, mas a casa de Deus Pai, que nos espera no termo do caminho.

A liturgia da Sexta-Feira Santa inclui um hino maravilhoso - o Crux fidelis - em que somos convidados
a cantar e a celebrar o glorioso combate do Senhor, o troféu da Cruz, o preclaro triunfo de Cristo. O
Redentor do Universo, ao ser imolado, vence. Deus, Senhor de todas as coisas criadas, não afirma a
sua presença pela força das armas, ou mesmo pelo poder temporal dos seus, mas pela grandeza do seu
amor infinito.

O Senhor não destrói a liberdade do homem: foi Ele precisamente que nos fez livres. Por isso, não
quer respostas forçadas; quer decisões que procedam da intimidade do coração. E espera dos cristãos
que vivamos de tal maneira que os que estão em contacto conosco percebam, por cima das nossas
próprias misérias, erros e deficiências, o eco do drama de amor do Calvário. Tudo o que temos,
recebemo-lo de Deus, para sermos sal que salgue, luz que leve aos homens a notícia alegre de que Ele
é um Pai que ama sem medida. O cristão é sal e luz do mundo, não porque vence ou triunfa, mas
porque dá testemunho do amor de Deus; e não será sal se não servir para salgar; não será luz se, com o
seu exemplo e com a sua doutrina, não oferecer um testemunho de Jesus, se perder o que constitui a
razão de ser da sua vida.

101 Temos que aprofundar nos aspectos que a morte de Cristo nos revela, sem permanecermos em formas
exteriores ou em frases estereotipadas. É necessário penetrar verdadeiramente nas cenas que revivemos
nestes dias: a dor de Jesus, as lágrimas de sua Mãe, a fuga dos discípulos, a coragem das santas
mulheres, a audácia de José e Nicodemos, que pedem a Pilatos o corpo do Senhor.

Aproximemo-nos, em suma, de Jesus morto, dessa Cruz que se recorta sobre o cume do Gólgota. Mas
aproximemo-nos com sinceridade, sabendo encontrar esse recolhimento interior que é sinal de
maturidade cristã. Desta forma, os acontecimentos divinos e humanos da Paixão tomarão conta da
nossa alma, como palavra que Deus nos dirige para desvendar os segredos do nosso coração e revelar-
nos o que espera de nossas vidas.

Faz muitos anos, vi um quadro que se gravou profundamente em meu interior. Representava a Cruz de
Cristo e, junto do lenho, três anjos: um chorava desconsoladamente; outro tinha um prego na mão,
como que para se convencer de que tudo aquilo era verdade; o terceiro estava recolhido em oração.
Um programa sempre atual para cada um de nós: chorar, crer e orar.

Perante a Cruz, dor de nossos pecados, dos pecados da humanidade, que levaram Jesus à morte; fé,
para aprofundarmos nessa verdade sublime que ultrapassa todo o entendimento, e para nos
maravilharmos ante o amor de Deus; oração, para que a vida e a morte de Cristo sejam o modelo e o
estímulo da nossa vida e da nossa entrega. Só assim nos chamaremos vencedores; porque Cristo
ressuscitado vencerá em nós, e a morte se transformará em vida.

102 Cristo vive. Esta é a grande verdade que enche de conteúdo a nossa fé. Jesus, que morreu na cruz,
ressuscitou, triunfou da morte, do poder das trevas, da dor e da angústia. Não temais, foi a invocação
com que um anjo saudou as mulheres que se dirigiam ao sepulcro. Não temais. Vindes buscar Jesus
Nazareno, que foi crucificado. Já ressuscitou; não está aqui. Haec est dies quam fecit Dominus,
exsultemus et laetemur in ea: este é o dia que o Senhor fez, alegremo-nos.

O tempo pascal é tempo de alegria, de uma alegria que não se restringe a esta época do ano litúrgico,
mas que habita sempre no coração do cristão. Porque Cristo vive. Não é Cristo uma figura que passou,
que existiu num tempo e que se retirou, deixando-nos uma lembrança e um exemplo maravilhosos.

Não. Cristo vive. Jesus é o Emmanuel: Deus conosco. A sua Ressurreição revela-nos que Deus não
abandona os seus. Pode a mulher esquecer-se do fruto do seu ventre, não se compadecer do filho de
suas entranhas? Pois ainda que ela se esquecesse, eu não me esquecerei de ti , tinha Ele prometido. E
cumpriu a sua promessa. Deus continua a achar suas delícias entre os filhos dos homens.

Cristo vive na sua Igreja. “Digo-vos a verdade: a vós convém que eu vá, porque, se não for, o
Consolador não virá a vós. Mas, se for, eu vo-lo enviarei”. Tais eram os desígnios de Deus: Jesus,
morrendo na Cruz, dava-nos o Espírito de Verdade e de Vida. Cristo permanece na sua Igreja: nos seus
sacramentos, na sua liturgia, na sua pregação e em toda a sua atividade.

De modo especial, Cristo continua presente entre nós nessa entrega diária que é a Sagrada Eucaristia.
Por isso, a Missa é o centro e a raiz da vida cristã. Em todas as Missas está sempre o Cristo Total,
Cabeça e Corpo. Por Cristo, com Cristo e em Cristo. Porque Cristo é o Caminho, o Medianeiro; nEle
encontramos tudo; fora dEle, a nossa vida fica vazia. Em Jesus Cristo, e instruídos por Ele, atrevemo-
nos a dizer - audemus dicere - Pater noster, Pai nosso. Atrevemo-nos a chamar Pai ao Senhor dos céus
e da terra.

A presença de Jesus vivo na Hóstia Santa é a garantia, a raiz e a consumação da sua presença no
mundo.

103 Cristo vive no cristão. A fé diz-nos que o homem em estado de graça se encontra endeusado. Somos
homens e mulheres, não anjos. Seres de carne e osso, com coração e paixões, com tristezas e alegrias.
Mas a divinização repercute no homem inteiro, como uma antecipação da ressurreição gloriosa. Cristo
ressuscitou dentre os mortos e constituiu-se como primícias dos defuntos; porque, assim como por um
homem veio a morte, por um homem devia vir a ressurreição dos mortos. Assim como em Adão todos
morrem, assim também em Cristo todos serão vivificados.

A vida de Cristo é a nossa vida, conforme Jesus prometera aos seus Apóstolos na Última Ceia: Todo
aquele que me ama observa os meus mandamentos, e meu Pai o amará, e viremos a ele, e nele
faremos a nossa morada. O cristão deve, pois, viver segundo a vida de Cristo, tornando próprios os
sentimentos de Cristo, de tal maneira que possa exclamar com São Paulo: Non vivo ego, vivit vero in
me Christus , não sou eu que vivo; é Cristo que vive em mim.

104 Quis recordar, embora brevemente, alguns dos aspectos dessa vida atual de Cristo - Iesus Christus heri
et hodie, ipse et in saecula , Jesus Cristo ontem e hoje, o mesmo pelos séculos - por nela se achar o
fundamento de toda a vida cristã. Se olharmos à nossa volta e considerarmos o curso da história da
humanidade, observaremos progressos e avanços. A ciência deu ao homem maior consciência do seu
poder. A técnica domina a natureza em maior grau que em épocas passadas e permite que a
humanidade sonhe com um nível mais alto de cultura, de vida material e de unidade.

Talvez alguns se sintam inclinados a matizar esse quadro, recordando que os homens sofrem agora
injustiças e guerras, inclusive piores que as do passado. Não lhes falta razão. Mas, por cima dessas
considerações, prefiro recordar que, na ordem religiosa, o homem continua a ser homem e Deus
continua a ser Deus. Neste terreno, o cume do progresso já se verificou: é Cristo, Alfa e Ômega,
princípio e fim.

Na vida espiritual, não existe uma nova época a atingir. Já está tudo dado em Cristo, que morreu, e
ressuscitou, e vive, e permanece para sempre. Mas é preciso unirmo-nos a Ele pela fé, deixando que a
sua vida se manifeste em nós, de maneira a podermos dizer que cada cristão é não já alter
Christus, outro Cristo, mas ipse Christus, o próprio Cristo!

105 Instaurare omnia in Christo, é o lema que São Paulo dá aos cristãos de Éfeso informar o mundo inteiro
com o espírito de Jesus, colocar Cristo na entranha de todas as coisas. Si exaltatus fuero a terra, omnia
traham ad meipsum , quando for levantado ao alto sobre a terra, tudo atrairei a mim. Cristo, com a sua
encarnação, com a sua vida de trabalho em Nazaré, com a sua pregação e milagres pelas terras da
Judéia e da Galiléia, com a sua morte na Cruz, com a sua Ressurreição, é o centro da Criação,
Primogênito e Senhor de toda a criatura.
Nossa missão de cristãos é proclamar essa realeza de Cristo, anunciá-la com a nossa palavra e as
nossas obras. O Senhor quer os seus em todas as encruzilhadas da terra. Chama alguns ao deserto, para
que se desentendam dos avatares da sociedade dos homens e com o seu testemunho recordem aos
demais que Deus existe. Confia a outros o ministério sacerdotal. Mas quer a grande maioria dos
homens no meio do mundo, nas ocupações terrenas. Estes cristãos devem, pois, levar Cristo a todos os
ambientes em que desenvolvem as suas tarefas humanas: à fábrica, ao laboratório, ao cultivo da terra, à
oficina do artesão, às ruas das grandes cidades e aos caminhos de montanha.

Gosto de recordar a este propósito o episódio da conversa de Cristo com os discípulos de Emaús. Jesus
caminha ao lado daqueles dois homens que perderam quase toda a esperança, a tal ponto que a vida
começa a parecer-lhes sem sentido. Compreende a sua dor, penetra em seus corações, comunica-lhes
um pouco da vida que nEle habita. Quando, ao chegarem à aldeia, Jesus faz menção de continuar
viagem, os dois discípulos detêm-no e quase o obrigam a ficar com eles. Reconhecem-no depois, ao
partir o pão; o Senhor, exclamam, esteve conosco. Então disseram um para o outro: Não é verdade
que sentíamos o coração abrasar-se dentro de nós, enquanto nos falava pelo caminho e nos explicava
as Escrituras?. Cada cristão deve tornar Cristo presente entre os homens; deve viver de tal modo que à
sua volta se perceba o bonus odor Christi , o bom odor de Cristo; deve agir de tal modo que, através
das ações do discípulo, se possa descobrir o rosto do Mestre.

106 O cristão sabe-se enxertado em Cristo pelo Batismo; habilitado a lutar por Cristo, pela Confirmação;
chamado a atuar no mundo pela participação na função real, profética e sacerdotal de Cristo;
transformado numa só coisa com Cristo pela Eucaristia, sacramento da unidade e do amor. Por isso,
como Cristo, deve viver de rosto voltado para os outros homens, olhando com amor para todos e cada
um dos que o rodeiam, para a humanidade inteira.

A fé leva-nos a reconhecer Cristo como Deus, a vê-lo como nosso Salvador, a identificar-nos com Ele,
agindo como Ele agiu. O Ressuscitado, depois de tirar o Apóstolo Tomé de suas dúvidas, mostrando-
lhe as chagas, exclama: Bem-aventurados os que não me viram e creram. E São Gregório Magno
comenta: Aqui fala-se de nós de um modo particular, porque nós possuímos espiritualmente Aquele a
quem não vimos corporalmente. Fala-se de nós, mas com a condição de que as nossas ações estejam
de acordo com a nossa fé. Não crê verdadeiramente senão aquele que na sua conduta põe em prática
o que crê. Por isso diz São Paulo daqueles que da fé só possuem palavras: professam conhecer Deus,
mas negam-no com as obras.

Não é possível separar em Cristo o seu ser de Deus-Homem da sua função de Redentor. O Verbo se
fez carne e veio à terra ut omnes homines salvi fiant , para salvar todos os homens. Com todas as
nossas misérias e limitações pessoais, somos outros Cristos, o próprio Cristo, chamados também a
servir a todos os homens.

É necessário que ressoe muitas vezes aquele mandamento que continuará a ser novo através dos
séculos. Caríssimos - escreve São João -, não pretendo escrever-vos um mandamento novo, mas um
mandamento antigo, que recebestes desde o começo; o mandamento antigo é a palavra divina que
ouvistes. E, não obstante, eu vos digo que o mandamento de que vos falo é um mandamento novo, que
é verdadeiro em si mesmo e em vós, porque as trevas desapareceram e brilha já a luz verdadeira.
Quem diz estar na luz, e aborrece seu irmão, está ainda em trevas. Quem ama o seu irmão mora na
luz e nele não existe escândalo.

O Senhor veio trazer a paz, a boa nova, a vida, a todos os homens. Não apenas aos ricos, nem apenas
aos pobres. Não apenas aos sábios, nem apenas à gente simples. A todos. Aos irmãos que somos, pois
somos filhos de um mesmo Pai Deus. Não existe, pois, senão uma raça: a raça dos filhos de Deus. Não
existe mais do que uma cor: a cor dos filhos de Deus. E não existe senão uma língua: essa que, falando
ao coração e à cabeça, sem ruído de palavras, nos dá a conhecer Deus e faz com que nos amemos uns
aos outros.
107 É esse amor de Cristo que cada um de nós deve esforçar-se por realizar na sua própria vida. Mas para
sermos ipse Christus - o próprio Cristo -, é preciso que nos contemplemos nEle. Não basta ter uma
idéia geral do espírito de Jesus, mas é preciso aprender dEle pormenores e atitudes. E sobretudo é
preciso contemplar a sua passagem pela terra, as suas pisadas, para extrair daí força, luz, serenidade,
paz.

Quando amamos uma pessoa, desejamos conhecer até os menores detalhes da sua existência, do seu
caráter, para assim nos identificarmos com ela. É por isso que temos que meditar na história de Cristo,
desde o seu nascimento num presépio até à sua morte e sua ressurreição. Nos meus primeiros anos de
atividade sacerdotal, costumava oferecer exemplares do Evangelho ou livros em que se narrasse a vida
de Jesus. Porque é preciso que a conheçamos bem, que a tenhamos toda inteira na cabeça e no coração,
de modo que, em qualquer momento, sem necessidade de livro algum, fechando os olhos, possamos
contemplá-la como num filme, de forma que, nas mais diversas situações da nossa existência, acudam
à memória as palavras e os atos do Senhor.

Assim nos sentiremos integrados na sua vida. Porque não se trata apenas de pensar em Jesus, de
imaginar as cenas que lemos. Temos que intervir plenamente nelas, ser protagonistas. Seguir Cristo tão
de perto quanto Santa Maria, sua Mãe; quanto os primeiros Doze, as santas mulheres e aquelas
multidões que se comprimiam ao seu redor. Se agirmos assim, se não criarmos obstáculos, as palavras
de Cristo penetrarão até o fundo da alma e transformar-nos-ão. Porque a palavra de Deus é viva e
eficaz, e mais penetrante que espada de dois gumes, e introduz-se até às dobras da alma e do espírito,
até às articulações e medulas, e discerne os pensamentos e as intenções do coração.

Se queremos levar até o Senhor os outros homens, temos que abrir o Evangelho e contemplar o amor
de Cristo. Poderíamos deter-nos nas cenas-cume da Paixão porque, como Ele mesmo disse, ninguém
tem maior amor que aquele que dá a vida pelos seus amigos. Mas podemos também considerar o resto
da sua vida, o seu modo habitual de lidar com os que se cruzavam com Ele.

Cristo, perfeito Deus e perfeito Homem, conduziu-se de um modo humano e divino para fazer chegar
aos homens a sua doutrina de salvação e manifestar-lhes o amor de Deus. Deus condescende com o
homem, assume a nossa natureza sem reservas, à exceção do pecado.

Causa-me uma profunda alegria considerar que Cristo quis ser plenamente homem, com carne como a
nossa. Emociona-me contemplar a maravilha de um Deus que ama com coração de homem.

108 Entre tantas cenas narradas pelos evangelistas, detenhamo-nos a considerar algumas, começando pelos
relatos dos momentos de convivência de Jesus com os Doze. O Apóstolo João, que derrama no seu
Evangelho a experiência de uma vida inteira, narra a sua primeira conversa com Jesus, com o encanto
das coisas que nunca mais se esquecem. Mestre, onde moras? Disse-lhes Jesus: Vinde e vede. Foram,
pois, e viram onde morava, e ficaram com Ele aquele dia.

Diálogo divino e humano, que transformou as vidas de João e André, de Pedro, Tiago e tantos outros;
que preparou seus corações para escutarem a palavra imperiosa que Jesus lhes dirigiu junto do mar da
Galiléia. Caminhando Jesus pelas margens do mar da Galiléia, viu dois irmãos, Simão, chamado
Pedro, e André, seu irmão, lançando as redes ao mar, pois eram pescadores. E disse-lhes: Segui-me, e
farei que sejais pescadores de homens. Imediatamente os dois deixaram as redes e o seguiram.

Nos três anos seguintes, Jesus convive com os seus discípulos, conhece-os, responde às suas
perguntas, resolve as suas dúvidas. É verdadeiramente o Rabi, o Mestre que fala com autoridade, o
Messias enviado por Deus. Mas é ao mesmo tempo acessível, íntimo. Um dia, retira-se em oração; os
discípulos encontravam-se por perto, quem sabe olhando-o e procurando adivinhar as suas palavras.
Quando volta, um deles pede-lhe: Domine, doce nos orare, sicut docuit et Ioannes discípulos
suos; ensina-nos a orar, como João ensinou aos seus discípulos. E Jesus respondeu-lhes: quando vos
puserdes a orar, haveis de dizer: Pai, santificado seja o teu nome...

Com a mesma autoridade de Deus e carinho de homem, o Senhor recebe os Apóstolos quando,
admirados com os frutos da sua primeira missão, comentavam com Ele as primícias do seu
apostolado: Retirai-vos comigo a um lugar isolado e descansai um pouco.

Uma cena muito similar se repete já no fim da permanência de Jesus sobre a terra, pouco antes da
Ascensão. Chegada a manhã, Jesus apareceu na margem; mas os discípulos não o reconheceram. E
Jesus disse-lhes: Rapazes, tendes alguma coisa que comer? Aquele que perguntara como homem, fala
depois como Deus: Lançai as redes à direita da barca e achareis. Lançaram-nas, pois, e já não as
podiam tirar pela quantidade de peixes que havia. Então o discípulo a quem Jesus amava disse a
Pedro: É o Senhor.

E Deus espera-os na margem: Ao saltarem para terra, viram preparadas umas brasas acesas com
peixe em cima e pão. E Jesus disse-lhes: Trazei para cá os peixes que acabais de pescar. Simão Pedro
subiu à barca e trouxe a rede para terra, cheia de cento e cinqüenta e três grandes peixes. E, apesar
de serem tantos, a rede não se rompeu. Disse-lhes Jesus: Vinde, comei. E nenhum dos discípulos se
atrevia a perguntar-lhe: Quem és?, sabendo que era o Senhor. Jesus aproximou-se, tomou o pão e o
distribuiu, e o mesmo fez com o peixe.

Jesus manifesta essa delicadeza e carinho não só com um grupo pequeno de discípulos, mas com
todos: com as santas mulheres, com representantes do Sinédrio - como Nicodemos - e com publicanos
- como Zaqueu -, com doentes e sãos, com doutores da lei e pagãos, com as pessoas individualmente e
com multidões inteiras.

Os Evangelhos contam-nos que Jesus não tinha onde reclinar a cabeça, mas contam-nos também que
tinha amigos queridos e de confiança, desejosos de recebê-lo em sua casa. E falam-nos da sua
compaixão pelos doentes, da sua dor pelos que ignoram e erram, da sua indignação perante a
hipocrisia. Jesus chora a morte de Lázaro, ira-se com os mercadores que profanam o Templo, deixa
que seu coração se enterneça perante a dor da viúva de Naim.

109 Cada um desses gestos humanos é gesto de Deus. Em Cristo habita toda a plenitude da divindade
corporalmente. Cristo é Deus feito homem, homem perfeito, homem cabal. E, nos seus aspectos
humanos, dá-nos a conhecer a divindade.

Ao recordarmos esta delicadeza humana de Cristo, que gasta a sua vida a serviço dos outros, fazemos
muito mais do que descrever um possível modo de nos comportarmos. Estamos descobrindo Deus.
Toda a obra de Cristo tem um valor transcendente: dá-nos a conhecer o modo de ser de Deus, convida-
nos a crer no amor de Deus, que nos criou e nos quer trazer à sua intimidade. Manifestei o teu nome
aos homens que me deste no mundo; eles eram teus, e mos deste; e eles puseram em prática a tua
palavra. Agora souberam que tudo o que me deste vem de Ti , exclamou Jesus na longa oração que o
evangelista João nos conserva.

Por isso, o relacionamento de Jesus com os homens não fica em meras palavras ou em atitudes
superficiais. Jesus toma a sério o homem e quer dar-lhe a conhecer o sentido divino da sua vida. Jesus
sabe exigir, colocar cada um em face dos seus deveres, tirar os que o escutam do comodismo e
conformismo, para levá-los a conhecer o Deus três vezes santo. A fome e a dor comovem Jesus, mas
comove-o sobretudo a ignorância. Jesus viu a multidão que esperava por ele, e enterneceu-se no seu
íntimo porque andavam como ovelhas sem pastor. Começou então a instruí-los sobre muitas coisas.

110 Percorremos algumas páginas dos Santos Evangelhos para contemplar Jesus no seu convívio com os
homens e aprender a levar a Cristo os nossos irmãos, sendo nós mesmos Cristo. É preciso aplicar essa
lição à vida diária, à nossa própria vida. Porque a vida comum e normal, aquela que vivemos entre os
demais concidadãos, nossos iguais, não é nenhuma coisa sem altura e sem relevo. É precisamente
nessas circunstâncias que o Senhor quer que a imensa maioria de seus filhos se santifique.

É necessário repetir muitas e muitas vezes que Jesus não se dirigiu a um grupo de privilegiados, mas
veio revelar-nos o amor universal de Deus. Todos os homens são amados por Deus, de todos espera
amor. De todos. Sejam quais forem as suas condições pessoais, sua posição social, sua profissão ou
ofício. A vida comum e vulgar não é coisa de pouco valor; todos os caminhos da terra podem ser
ocasião de um encontro com Cristo, que nos chama à identificação com Ele para realizarmos - no lugar
onde estivermos - a sua missão divina.

Deus chama-nos através das vicissitudes da vida diária, no sofrimento e na alegria das pessoas com
quem convivemos, nas aspirações humanas dos nossos companheiros, nos pequenos acontecimentos
da vida familiar. Chama-nos também através dos grandes problemas, conflitos e tarefas que definem
cada época histórica e que atraem o esforço e os ideais de grande parte da humanidade.

111 Compreende-se muito bem a impaciência, a angústia e os anseios inquietos daqueles que, com alma
naturalmente cristã , não se resignam perante as situações de injustiça pessoal e social que o coração
humano é capaz de criar. Tantos séculos de convivência entre os homens, e ainda tanto ódio, tanta
destruição, tanto fanatismo acumulado em olhos que não querem ver e em corações que não querem
amar.

Os bens da terra, repartidos entre poucos; os bens da cultura, encerrados em cenáculos. E, lá fora, fome
de pão e de sabedoria; vidas humanas - que são santas, porque vêm de Deus - tratadas como simples
coisas, como números de uma estatística. Compreendo e partilho dessa impaciência, levantando os
olhos para Cristo, que continua a convidar-nos a pôr em prática o mandamento novo do amor.

Todas as situações por que a nossa vida atravessa nos trazem uma mensagem divina, pedem-nos uma
resposta de amor, de entrega aos outros. Quando vier o Filho do homem em toda a sua majestade e
acompanhado de todos os seus anjos, sentar-se-á no trono da sua glória e fará comparecer diante de
si todas as nações, e separará uns dos outros, como o pastor separa as ovelhas dos cabritos, pondo as
ovelhas à sua direita e os cabritos à esquerda.

Então o rei dirá aos que estiverem à sua direita: Vinde, benditos de meu pai, tomai posse do reino que
vos está preparado desde o princípio do mundo. Porque tive fome e me destes de comer; tive sede, e
me destes de beber; era peregrino, e me hospedastes; estava nu, e me vestistes; doente, e me
visitastes; preso, e viestes ver-me. Ao que os justos lhe responderão: Senhor, quando te vimos com
fome, e te demos de comer; com sede, e te demos de beber; quando te vimos peregrino, e te
hospedamos; nu, e te vestimos; ou quando te vimos doente ou na prisão, e te fomos visitar? E o rei, em
resposta, dir-lhes-á: na verdade vos digo, sempre que o fizestes a um destes meus irmãos mais
pequenos, a mim o fizestes.

Temos que reconhecer Cristo que nos sai ao encontro nos nossos irmãos, os homens. Nenhuma vida
humana é uma vida isolada, mas entrelaça-se com as outras vidas. Nenhuma pessoa é um verso solto:
fazemos todos parte de um mesmo poema divino, que Deus escreve com o concurso da nossa
liberdade.

112 Não há nada que possa ser alheio ao interesse de Cristo. Falando com profundidade teológica, isto é, se
não nos limitamos a uma classificação funcional; falando com rigor, não se pode dizer que haja
realidades - boas, nobres ou mesmo indiferentes - que sejam exclusivamente profanas, uma vez que o
Verbo de Deus estabeleceu a sua morada entre os filhos dos homens, teve fome e sede, trabalhou com
suas mãos, conheceu a amizade e a obediência, experimentou a dor e a morte. Porque em
Cristo aprouve ao Pai situar a plenitude de todo o ser, e reconciliar por Ele todas as coisas consigo,
restabelecendo a paz entre o céu e a terra, por meio do sangue que derramou na cruz.
Temos que amar o mundo, o trabalho, as realidades humanas. Porque o mundo é bom: foi o pecado de
Adão que quebrou a divina harmonia das coisas criadas. Mas Deus Pai enviou seu Filho Unigênito
para que restabelecesse a paz; para que, convertidos em filhos por adoção, pudéssemos libertar a
criação da desordem e reconciliar todas as coisas com Ele.

Cada situação humana é irrepetível, fruto de uma vocação única que se deve viver com intensidade,
realizando nela o espírito de Cristo. Deste modo, vivendo cristãmente entre os nossos iguais, de uma
maneira normal mas coerente com a nossa fé, seremos Cristo presente entre os homens.

113 Ao considerarmos a dignidade da missão a que Deus nos chama, talvez possa surgir na alma humana a
presunção, a soberba. Seria uma falsa consciência da vocação cristã aquela que nos cegasse e nos
fizesse esquecer que somos feitos de barro, que somos pó e miséria. Na verdade, não há mal apenas no
mundo, à nossa volta; o mal está dentro de nós e aninha-se no nosso próprio coração, tornando-nos
capazes de vilanias e egoísmos. Só a graça de Deus é rocha forte: nós somos areia, e areia movediça.

Se percorremos com o olhar a história dos homens ou a situação atual do mundo, é doloroso verificar
como, depois de vinte séculos, existem tão poucos que se chamam cristãos e que os que se adornam
com esse nome são tantas vezes infiéis à sua vocação. Faz alguns anos, uma pessoa que não tinha mau
coração, mas não tinha fé, apontou para um mapa-múndi e comentou comigo: Eis o fracasso de Cristo.
Tantos séculos procurando introduzir na alma dos homens a sua doutrina, e veja os resultados: não
há cristãos.

Não falta quem pense assim nos nossos dias. Mas Cristo não fracassou; sua vida e sua palavra
fecundam continuamente o mundo. A obra de Cristo, a tarefa que seu Pai lhe encomendou está-se
realizando; sua força atravessa a história trazendo-nos a verdadeira vida, e quando já todas as coisas
estiverem submetidas a Ele, então o próprio Filho ficará submetido, enquanto homem, Àquele que
tudo lhe submeteu, a fim de que Deus seja tudo em todas as coisas.

Nessa tarefa que vai realizando no mundo, Deus quis que fôssemos seus cooperadores, quis correr o
risco da nossa liberdade. Toca-me o fundo da alma a figura de Jesus recém-nascido em Belém: uma
criança indefesa, inerme, incapaz de oferecer resistência. Deus entrega-se às mãos dos homens,
aproxima-se e desce até nós.

Jesus Cristo, que tinha a natureza de Deus, não reivindicou o seu ser igual a Deus, mas aniquilou-se a
si mesmo, tomando a forma de escravo. Deus condescende com a nossa liberdade, com a nossa
imperfeição, com as nossas misérias. Consente que os tesouros divinos se contenham em vasos de
barro, que os demos a conhecer misturando as nossas deficiências humanas com a sua força divina.

114 A experiência do pecado não nos deve, pois, fazer duvidar da nossa missão. É certo que os nossos
pecados podem tornar difícil que se reconheça Cristo, e por isso devemos enfrentar as nossas próprias
misérias pessoais, procurar a purificação. Porém, conscientes de que Deus não nos prometeu a vitória
absoluta sobre o mal durante esta vida, mas nos pede luta. Sufficit tibi gratia mea, basta-te a minha
graça, respondeu Deus a São Paulo, quando lhe pedia que o libertasse do aguilhão que o humilhava.

O poder de Deus manifesta-se na nossa fraqueza e incita-nos a lutar, a combater os nossos defeitos,
mesmo que saibamos que nunca obteremos uma vitória completa durante o nosso peregrinar terreno. A
vida cristã é um constante começar e recomeçar, um renovar-se cada dia.

Cristo ressuscitará em nós, se nos tornarmos co-participantes da sua Cruz e da sua Morte. Temos que
amar a Cruz, a entrega, a mortificação. O otimismo cristão não é um otimismo meloso, nem a simples
confiança humana de que tudo correrá bem. É um otimismo que mergulha suas raízes na consciência
da liberdade e na fé na graça; é um otimismo que nos leva a ser exigentes conosco mesmos, a esforçar-
nos por corresponder à chamada de Deus.

Desse modo, não já apesar da nossa miséria, mas de certo modo através da nossa miséria, da nossa
vida de homens feitos de carne e de barro, Cristo se manifesta - no esforço por sermos melhores, por
realizarmos um amor que aspira a ser puro, por dominarmos o egoísmo, por nos entregarmos
plenamente aos outros, convertendo a nossa existência num serviço constante.

115 Não quero concluir sem uma última reflexão. O cristão - ao tornar Cristo presente entre os homens,
sendo ele mesmo ipse Christus, o próprio Cristo -, não procura apenas viver numa atitude de amor,
mas esforça-se por dar a conhecer o Amor de Deus através desse amor humano.

Jesus concebeu toda a sua vida como uma revelação desse amor: Filipe - respondeu a um de seus
discípulos -, quem me vê, vê também o Pai. Na esteira desse ensinamento, o Apóstolo João convida os
cristãos a manifestarem com obras o amor de Deus, depois de o terem conhecido: Caríssimos, amemo-
nos uns aos outros, porque a caridade procede de Deus; e todo aquele que ama é filho de Deus e
conhece a Deus. Quem não possui este amor não conhece a Deus, porque Deus é amor. Nisto se
manifestou o amor de Deus por nós, em que enviou o seu Filho Unigênito ao mundo, para que por Ele
tenhamos a vida. E nisto consiste o seu amor, em que não fomos nós que amamos a Deus, mas foi Ele
que nos amou primeiro e enviou o seu Filho como vitima de propiciação por nossos pecados.
Caríssimos, se assim nos amou Deus, também nós devemos amar-nos uns aos outros.

116 É necessário, pois, que a nossa fé seja viva, que nos leve realmente a crer em Deus e a manter um
diálogo constante com Ele. A vida cristã deve ser vida de oração contínua, que procura estar na
presença do Senhor da manhã até à noite e da noite até à manhã. O cristão não é nunca um homem
solitário, porque vive num contínuo colóquio com Deus, que está junto de nós e nos céus.

Sine intermissione orate, prescreve o Apóstolo, orai sem interrupção. E Clemente Alexandrino
escreve, recordando esse preceito apostólico: Manda-se que louvemos e honremos o Verbo, a quem
conhecemos como salvador e rei; e por Ele ao Pai, não em dias escolhidos, como fazem os outros,
mas constantemente, ao longo de toda a vida e de todas as formas possíveis.

No meio das ocupações de cada dia, no momento de vencer a tendência para o egoísmo, ao sentir a
alegria da amizade com os outros homens, em todos esses instantes o cristão deve reencontrar Deus.
Por Cristo e no Espírito Santo, o cristão tem acesso à intimidade de Deus Pai, e percorre o seu caminho
em busca desse reino que não é deste mundo, mas que neste mundo se incoa e se prepara.

É preciso procurar Cristo na Palavra e no Pão, na Eucaristia e na Oração. E tratá-lo como se trata um
amigo, um ser real e vivo como é Cristo, porque ressuscitou. Cristo, lemos na Epístola aos
Hebreus, como permanece sempre, possui eternamente o sacerdócio. Daí que pode perpetuamente
salvar aqueles que por seu intermédio se apresentam a Deus, posto que está sempre vivo para
interceder por nós.

Cristo, Cristo ressuscitado, é o companheiro, o Amigo. Um companheiro que se deixa ver apenas entre
sombras, mas cuja realidade inunda toda a nossa vida e nos faz desejar a sua companhia definitiva.
O Espírito e a Esposa dizem: vem. Diga também quem escuta: vem. Por isso quem tem sede, venha; e
o que quiser tome a água da vida, a felicidade eterna... E o que dá testemunho destas coisas diz:
Certamente venho em breve. Assim seja. Vem, Senhor Jesus.

117 Uma vez mais, a liturgia põe diante dos nossos olhos o último dos mistérios da vida de Jesus Cristo
entre os homens: a sua Ascensão aos céus. Desde o seu Nascimento em Belém, muitas coisas
aconteceram: encontramo-lo no berço, adorado por pastores e por reis; contemplamo-lo nos longos
anos de trabalho silencioso, em Nazaré; acompanhamo-lo pelas terras da Palestina, pregando aos
homens o reino de Deus e fazendo o bem a todos. E, mais tarde, nos dias da sua Paixão, sofremos ao
presenciar como o acusavam, com que fúria o maltratavam, com quanto ódio o crucificavam.

À dor seguiu-se a alegria luminosa da Ressurreição. Que fundamento tão claro e tão firme para a nossa
fé! Não deveríamos continuar duvidando. Mas talvez ainda sejamos fracos, como os Apóstolos, e
perguntemos a Cristo neste dia da Ascensão: É agora que vais restaurar o reino de Israel? ; é agora
que vão desaparecer definitivamente todas as nossas perplexidades e todas as nossas misérias?

O Senhor responde-nos subindo aos céus. Tal como os Apóstolos, ficamos meio admirados, meio
tristes ao ver que nos deixa. Na realidade, não é fácil acostumarmo-nos à ausência física de Jesus.
Comove-me recordar que Jesus, num gesto magnífico de amor, foi-se embora e ficou; foi para o céu e
entrega-se a nós como alimento na Hóstia Santa. Sentimos, no entanto, a falta da sua palavra humana,
da sua forma de atuar, de olhar, de sorrir, de fazer o bem. Gostaríamos de voltar a vê-lo de perto,
quando se senta à beira do poço, cansado da dura caminhada , quando chora por Lázaro , quando se
recolhe em prolongada oração , quando se compadece da multidão.

Sempre me pareceu lógico - e me cumulou de alegria - que a Santíssima Humanidade de Jesus Cristo
subisse à glória do Pai. Mas penso também que esta tristeza, própria do dia da Ascensão, é uma
manifestação do amor que sentimos por Jesus, Senhor Nosso. Sendo perfeito Deus, Ele se fez homem,
perfeito homem, carne da nossa carne e sangue do nosso sangue. E separa-se de nós, indo para o céu.
Como não havíamos de notar a sua falta?

118 Se soubermos contemplar o mistério de Cristo, se nos esforçarmos por vê-lo com os olhos limpos,
perceberemos que é possível, mesmo agora, aproximar-se intimamente de Jesus, em corpo e alma.
Cristo marcou-nos claramente o caminho: pelo Pão e pela Palavra; alimentando-nos com a Eucaristia e
conhecendo e praticando o que nos veio ensinar, ao mesmo tempo que conversamos com Ele na
oração. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim e eu nele. Aquele que
retém os meus mandamentos e os guarda, esse é o que me ama. E aquele que me ama será amado por
meu Pai, e eu o amarei e me manifestarei a ele.

Não são simples promessas. São o âmago, a realidade de uma vida autêntica: a vida da graça, que nos
impele a entrar numa relação pessoal e direta com Deus. Se observardes os meus preceitos,
permanecereis no meu amor, assim como eu observei os preceitos de meu Pai e permaneço no seu
amor. Esta afirmação de Jesus, no discurso da Última Ceia, é o melhor preâmbulo para o dia da
Ascensão. Cristo sabia que era necessário ir-se embora porque, de um modo misterioso que não
acertamos a compreender, depois da Ascensão é que chegaria - numa nova efusão de Amor divino - a
terceira Pessoa da Trindade Santíssima: Digo-vos a verdade: convém que eu vá. Se não for, o
Paráclito não virá a vós. Mas, se for, eu vo-lo enviarei.

Foi-se e envia-nos o Espírito Santo, que governa e santifica a nossa alma. Ao atuar em nós, o Paráclito
confirma o que Cristo nos anunciava: que somos filhos de Deus e que não recebemos o espírito de
escravidão, para continuarmos agindo por temor, mas o espírito de adoção de filhos, em virtude do
qual clamamos: “Abba”, Pai!

Vemos? É a ação trinitária nas nossas almas. Todo o cristão tem acesso a essa inabitação de Deus no
mais íntimo do seu ser, desde que corresponda à graça que o leva a unir-se a Cristo no Pão e na
Palavra, na Sagrada Hóstia e na oração. A Igreja submete todos os dias à nossa consideração a
realidade do Pão vivo, e consagra-lhe duas das grandes festas do ano litúrgico: a da Quinta-Feira Santa
e a do Corpus Christi. Hoje, vamos deter-nos na forma de conseguir intimidade com Jesus escutando
atentamente a sua Palavra.

119 Uma oração ao Deus da minha vida. Se Deus é vida para nós, nada tem de estranho que a nossa
existência de cristãos deva estar entretecida de oração. Mas não pensemos que a oração é um ato que
se realiza e depois se abandona. O justo compraz-se na lei de Iavé e tende a acomodar-se a essa lei
durante o dia e durante a noite. Pela manhã penso em Ti ; e, de tarde, a Ti se eleva minha oração
como o incenso. O dia inteiro pode ser tempo de oração: da noite até à manhã e da manhã até à noite.
Mais ainda: como nos recorda a Escritura Santa, o próprio sono deve ser oração.

Lembremo-nos do que os Evangelhos nos contam de Jesus. Às vezes, passava a noite inteira ocupado
num colóquio íntimo com seu Pai. Como cativou os primeiros discípulos a figura de Cristo em oração!
Depois de contemplarem esta atitude constante do Mestre, pedem-lhe: Domine, doce nos orare ,
Senhor, ensina-nos a orar assim.

São Paulo - oratione instantes , contínuos na oração, escreve - difunde por toda a parte o exemplo vivo
de Cristo. E São Lucas, numa pincelada, retrata a maneira de agir dos primeiros fiéis: Animados de um
mesmo espírito, perseveravam juntos na oração.

A têmpera do bom cristão adquire-se, mediante a graça, na forja da oração. E, por ser vida, este
alimento que é a oração não segue uma trilha única. O coração saberá desafogar-se habitualmente, por
meio de palavras, nessas orações vocais ensinadas pelo próprio Deus - o Pai Nosso - ou por seus anjos
- a Ave Maria. Outras vezes, utilizaremos orações acrisoladas pelo tempo, nas quais se verteu a
piedade de milhões de irmãos na fé: as da liturgia - lex orandi -, ou as que nasceram do ardor de um
coração enamorado, como tantas antífonas marianas: Sub tuum praesidium..., Memorare..., Salve
Regina...

Em outras ocasiões, serão suficientes duas ou três expressões lançadas ao Senhor como
setas, iaculata: jaculatórias, que aprendemos na leitura atenta da história de Cristo: Domine, si vis
potes me mundare - Senhor, se quiseres, podes curar-me; Domine, tu omnia nosti, tu scis quia amo te -
Senhor, Tu sabes tudo, Tu sabes que eu te amo; Credo, Domine, sed adiuva incredulitatem meam -
Creio, Senhor, mas ajuda a minha incredulidade, fortalece a minha fé; Domine, non sum dignus -
Senhor, não sou digno!; Dominus meus et Deus meus - Meu Senhor e meu Deus!... Ou outras frases,
breves e afetuosas, que brotam do fervor íntimo da alma e correspondem a circunstancias particulares.

A vida de oração deve apoiar-se, além disso, em alguns minutos diários dedicados exclusivamente ao
trato com Deus. São momentos de colóquio sem ruído de palavras, junto do Sacrário sempre que
possível, para agradecer ao Senhor por essa espera - como está só! - de vinte séculos. A oração mental
é esse diálogo com Deus, de coração a coração, em que intervém a alma toda: a inteligência e a
imaginação, a memória e a vontade. É uma meditação que contribui para dar valor sobrenatural à
nossa pobre vida humana, à nossa vida diária e corrente.

Graças a esses momentos de meditação, às orações vocais, às jaculatórias, saberemos converter o


nosso dia num contínuo louvor a Deus, sempre com naturalidade e sem espetáculo. Assim, à
semelhança dos enamorados, que não tiram nunca os sentidos da pessoa que amam, manter-nos-emos
sempre na sua presença; e todas as nossas ações - mesmo as mais pequenas e insignificantes -
transbordarão de eficácia espiritual.

Por isso, quando um cristão envereda por este caminho de intimidade ininterrupta com o Senhor - e é
um caminho para todos, não uma senda para privilegiados -, a vida interior cresce, segura e firme; e o
homem consolida-se nessa luta, simultaneamente amável e exigente, por realizar até o fundo a vontade
de Deus.

A partir da vida de oração, podemos entender esse outro tema que a festa de hoje nos propõe: o
apostolado, a realização dos ensinamentos de Jesus transmitidos aos Apóstolos pouco antes de subir
aos céus: Vós me servireis de testemunhas em Jerusalém e em toda a Judéia e Samaria e até os confins
do mundo.
120 Com a maravilhosa normalidade do divino, a alma contemplativa expande-se em ímpetos de ação
apostólica: Ardia-me o coração dentro do peito, ateava-se o fogo em minha meditação. Que fogo é
este, senão o mesmo de que fala Cristo: Fogo vim trazer à terra e que hei de querer senão que arda?.
Fogo de apostolado, que se robustece na oração: não há melhor meio do que este para desenvolver, por
toda a redondeza do mundo, essa batalha pacífica em que cada cristão é chamado a participar - cumprir
o que resta por padecer a Cristo.

Jesus subiu aos céus, dizíamos. Mas, pela oração e pela Eucaristia, o cristão pode ter com Ele a mesma
intimidade que tinham os primeiros Doze, inflamar-se no seu zelo apostólico, para com Ele realizar um
serviço de co-redenção, que é semear a paz e a alegria. Servir, portanto, porque o apostolado não é
outra coisa. Se contarmos exclusivamente com as nossas próprias forças, nada obteremos no terreno
sobrenatural; se formos instrumentos de Deus, conseguiremos tudo: Tudo posso nAquele que me
conforta. Por sua infinita bondade, Deus resolveu servir-se destes instrumentos ineptos. Daí que o
apóstolo não tenha outro fim senão deixar agir o Senhor, mostrar-se inteiramente disponível, para que
Deus realize - através das suas criaturas, através da alma escolhida - a sua obra salvadora.

Apóstolo é o cristão que se sente enxertado em Cristo, identificado com Cristo, pelo Batismo;
habilitado a lutar por Cristo, pelo Crisma; chamado a servir a Deus com a sua ação no mundo, pelo
sacerdócio comum dos fiéis, que lhe confere uma certa participação no sacerdócio de Cristo - embora
essencialmente diferente daquela que constitui o sacerdócio ministerial - e o torna capaz de participar
no culto da Igreja e de ajudar os homens a caminhar para Deus, mediante o testemunho da palavra e do
exemplo, mediante a oração e a expiação.

Cada um de nós tem que ser ipse Christus, o próprio Cristo. Ele é o único Medianeiro entre Deus e os
homens ; e nós unimo-nos a Ele para com Ele oferecermos todas as coisas ao Pai. Nossa vocação de
filhos de Deus, no meio do mundo, exige não apenas que procuremos atingir a nossa santidade pessoal,
mas que avancemos pelos caminhos da terra, para convertê-los em atalhos que, através dos obstáculos,
levem as almas ao Senhor; que tomemos parte, como cidadãos comuns, em todas as atividades
temporais, para sermos levedura que informe a massa inteira.

Cristo subiu aos céus, mas transmitiu a tudo o que é humano e honesto a possibilidade concreta de ser
redimido. São Gregório Magno aborda este grande tema cristão com palavras incisivas: Partia assim
Jesus para o lugar de onde era e regressava do lugar em que continuava morando. Com efeito, no
momento em que subia ao céu, unia com a sua divindade o céu e a terra. Na festa de hoje, devemos
destacar solenemente o fato de ter sido suprimido o decreto que nos condenava, o juízo que nos
submetia à corrupção. A natureza a que se dirigiam aquelas palavras: “Tu és pó e em pó te hás de
tornar” (Gen. III, 19) -, essa mesma natureza subiu hoje ao céu com Cristo.

Não me cansarei de repetir, portanto, que o mundo é santificável, e que compete especialmente aos
cristãos levar a cabo essa tarefa: purificando-o das ocasiões de pecado com que os homens o desfeiam
e oferecendo-o ao Senhor como hóstia espiritual, apresentada e dignificada mediante a graça de Deus e
o nosso esforço. Em rigor, não se pode dizer que haja nobres realidades exclusivamente profanas, uma
vez que o Verbo se dignou assumir uma natureza humana íntegra e consagrar a terra com a sua
presença e com o trabalho de suas mãos. A grande missão que recebemos no Batismo é a co-redenção.
A caridade de Cristo nos compele a tomar sobre os ombros uma parte dessa tarefa divina de resgatar as
almas.

121 Tenhamos presente que a Redenção, que se consumou quando Jesus morreu na vergonha e na glória da
Cruz - escândalo para os judeus, loucura para os gentios -, continuará a realizar-se por vontade de
Deus até que chegue a hora do Senhor. Não são coisas compatíveis viver segundo o Coração de Jesus
Cristo e não nos sentirmos enviados, como Ele, peccatores salvos facere , a salvar todos os pecadores,
convencidos de que nós mesmos necessitamos de confiar cada vez mais na misericórdia de Deus. Daí
o desejo veemente de nos considerarmos co-redentores com Cristo, de salvar com Ele todas as almas,
porque somos, queremos ser ipse Christus, o próprio Jesus Cristo; e Ele deu-se a si mesmo em resgate
por todos.

Temos à nossa frente uma grande tarefa. Não é possível permanecermos passivos, porque o Senhor nos
declarou expressamente: Negociai até que eu volte. Enquanto esperamos o regresso do Senhor, que
voltará para tomar posse plena do seu Reino, não podemos estar de braços cruzados. A propagação do
Reino de Deus não é apenas tarefa oficial dos membros da Igreja, que representam Cristo por terem
recebido dEle os poderes sagrados. Vos autem estis corpus Christi : vós também sois corpo de Cristo -
frisa o Apóstolo -, com mandato específico de negociar até o fim.

Ainda há tanto que fazer! Mas será que em vinte séculos não se fez nada? Em vinte séculos trabalhou-
se muito. Não me parece nem objetiva nem honesta a persistência com que alguns se empenham em
menosprezar a tarefa dos que nos precederam. Em vinte séculos realizou-se um grande trabalho e, com
freqüência, realizou-se muito bem. Em certas épocas, houve desacertos, recuos, como também hoje há
retrocessos, medo, timidez, ao mesmo tempo que não faltam atitudes de valentia e generosidade. Mas a
família humana renova-se constantemente; em cada geração é necessário continuar com o empenho de
ajudar o homem a descobrir a grandeza da sua vocação de filho de Deus, e inculcar-lhe o mandamento
do amor ao Criador e ao próximo.

122 Cristo ensinou-nos definitivamente o caminho desse amor a Deus: o apostolado é o amor a Deus que
transborda e se dá aos outros. A vida interior exige crescimento na união com Cristo, pelo Pão e pela
Palavra. E a preocupação de apostolado é a manifestação exata, adequada e necessária da vida interior.
Quando se saboreia o amor de Deus, sente-se o peso das almas. Não se pode dissociar a vida interior
do apostolado, como não é possível separar em Cristo o seu ser de Deus-Homem da sua função de
Redentor. O Verbo quis encarnar-se para salvar os homens, para os fazer uma só coisa com Ele. Esta é
a razão da sua vinda ao mundo: Por nós, homens, e por nossa salvação desceu dos céus, rezamos no
Credo.

Para o cristão, o apostolado é algo congênito: não tem nada de artificial, de justaposto, não é externo à
sua atividade diária, à sua ocupação profissional. Tenho-o dito sem cessar, desde que o Senhor dispôs
que surgisse o Opus Dei. Trata-se de santificar o trabalho ordinário, de santificar-se nessa tarefa e de
santificar os outros mediante o exercício da respectiva profissão, permanecendo cada um no seu estado
de vida.

O apostolado é como a respiração do cristão; não pode um filho de Deus viver sem esse palpitar
espiritual. Recorda-nos a festa de hoje que o zelo pelas almas é um mandamento amoroso do Senhor:
ao subir para a sua glória, Ele nos envia pelo orbe inteiro como suas testemunhas. Grande é a nossa
responsabilidade, porque ser testemunha de Cristo implica, antes de mais nada, procurar comportar-se
segundo a sua doutrina, lutar para que a nossa conduta recorde Jesus e evoque a sua figura
amabilíssima. Temos que conduzir-nos de tal maneira que, ao ver-nos, os outros possam dizer: este é
cristão porque não odeia, porque sabe compreender, por que não é fanático, porque está acima dos
instintos, porque é sacrificado, porque manifesta sentimentos de paz, porque ama.

123 Com a doutrina de Cristo, não com as minhas idéias, acabo de traçar um caminho ideal para o cristão.
Temos de convir em que é alto, sublime, atrativo. Mas talvez nos perguntemos: será possível viver
assim na sociedade de hoje?

É verdade que o Senhor nos chamou em momentos em que se fala muito de paz, e não há paz: nem nas
almas, nem nas instituições, nem na vida social, nem entre os povos. Fala-se continuamente de
igualdade e de democracia, e proliferam as castas: fechadas, impenetráveis. Chamou-nos num tempo
em que se clama por compreensão; e a compreensão brilha pela sua ausência, mesmo entre pessoas
que agem de boa fé e querem praticar a caridade, porque, não o esqueçamos, a caridade, mais do que
em dar, consiste em compreender.
Atravessamos uma época em que os fanáticos e os intransigentes - incapazes de admitir as razões dos
outros - se protegem de antemão tachando de violentas e agressivas as suas vítimas. Chamou-nos,
enfim, quando se ouve tagarelar muito sobre unidade, e talvez seja difícil conceber maior desunião,
não já entre os homens em geral, mas entre os próprios católicos.

Nunca faço considerações políticas, porque não é esse o meu ofício. Para descrever sacerdotalmente a
situação do mundo atual, basta-me pensar de novo numa parábola do Senhor: a do trigo e do joio.
O reino dos céus é semelhante a um homem que semeou boa semente em seu campo; mas, enquanto os
trabalhadores dormiam, veio certo inimigo seu, espalhou joio no meio do trigo, e foi-se. Está tudo
bem claro: o campo é fértil e a semente é boa; o Senhor do campo lançou a mãos cheias a semente no
momento propício e com arte consumada; além disso, organizou uma vigilância para proteger a
semeadura recente. Se depois apareceu o joio, foi porque não houve correspondência, porque os
homens - os cristãos especialmente - adormeceram e permitiram que o inimigo se aproximasse.

Quando os servidores irresponsáveis perguntam ao Senhor por que cresceu o joio no seu campo, a
explicação salta aos olhos: Inimicus homo hoc fecit , foi o inimigo! Nós, os cristãos, que devíamos
estar vigilantes para que as coisas boas postas pelo Criador no mundo se desenvolvessem a serviço da
verdade e do bem, nós adormecemos - triste preguiça, esse sono! -, enquanto o inimigo e todos os que
o servem se moviam sem descanso. Bem vemos como cresceu o joio: que semeadura tão abundante e
por toda a parte!

Não tenho vocação para profeta de desgraças. Não desejo com as minhas palavras apresentar um
panorama desolador, sem esperança. Não pretendo queixar-me destes tempos em que vivemos por
providência do Senhor. Amamos esta nossa época, porque é o âmbito em que temos de alcançar a
nossa santificação pessoal. Não admitimos nostalgias ingênuas e estéreis: o mundo nunca esteve
melhor. Desde sempre, desde o nascimento da Igreja, quando ainda se escutava a pregação dos
primeiros Doze, surgiam já com violência as perseguições, começavam as heresias, propalava-se a
mentira e desencadeava-se o ódio.

Mas também não é lógico negar que o mal parece ter prosperado. Dentro de todo esse campo de Deus,
que é a terra, que é herança de Cristo, irrompeu o joio: e não apenas joio, mas abundância de joio! Não
nos podemos deixar enganar pelo mito do progresso perene e irreversível. O progresso retamente
ordenado é bom e Deus o quer. Mas hoje tem-se mais em conta esse outro falso progresso, que cega os
olhos a tanta gente, porque com freqüência não se percebe que a humanidade, em alguns de seus
passos, volta para trás e perde o que antes havia conquistado.

O Senhor - repito - deu-nos o mundo por herança. E é necessário termos a alma e a inteligência
despertas; temos que ser realistas, sem derrotismos. Só uma consciência cauterizada, só a
insensibilidade produzida pela rotina, só o aturdimento frívolo podem permitir que se contemple o
mundo sem ver o mal, a ofensa a Deus, o prejuízo, às vezes irreparável, que se causa às almas. Temos
que ser otimistas, mas com um otimismo que nasça da fé no poder de Deus - Deus não perde batalhas -
, com um otimismo que não proceda da satisfação humana, de uma complacência néscia e presunçosa.

124 Que fazer? Disse que não procurava descrever crises sociais ou políticas, derrocadas ou mazelas
culturais. Sob a perspectiva da fé cristã, venho-me referindo ao mal no sentido preciso de ofensa a
Deus. O apostolado cristão não é um programa político nem uma alternativa cultural: consiste na
difusão do bem, no contágio do desejo de amar, numa semeadura concreta de paz e de alegria. E desse
apostolado derivarão sem dúvida benefícios espirituais para todos: mais justiça, mais compreensão,
mais respeito do homem pelo homem.

Há muitas almas à nossa volta; e não temos o direito de ser obstáculo ao seu bem eterno. Estamos
obrigados a ser plenamente cristãos, a ser santos, a não defraudar Deus nem todos aqueles que esperam
do cristão o exemplo e a doutrina.
O nosso apostolado deve basear-se na compreensão. Insisto novamente: a caridade, mais do que em
dar, consiste em compreender. Não escondo que aprendi na minha própria carne quanto custa não ser
compreendido. Sempre me esforcei por fazer-me compreender, mas há quem se empenhe em não me
compreender: eis outra razão, prática e viva, para que deseje compreender a todos. Mas não há de ser
um impulso circunstancial o que nos obrigue a ter esse coração amplo, universal, católico. O espírito
de compreensão é expressão da caridade cristã do bom filho de Deus: porque o Senhor quer que
estejamos presentes em todos os caminhos retos da terra, para espalhar a semente da fraternidade - não
a do joio -, da desculpa, do perdão, da caridade, da paz. Nunca nos sintamos inimigos de ninguém.

O cristão tem que se mostrar sempre disposto a conviver com todos, a dar a todos - com o seu trato - a
possibilidade de se aproximarem de Cristo Jesus. Há de sacrificar-se de bom grado por todos, sem
estabelecer distinções, sem dividir as almas em compartimentos estanques, sem lhes aplicar rótulos,
como se fossem mercadorias ou insetos dissecados. Não pode o cristão separar-se dos outros, porque
então a sua vida seria miserável e egoísta: deve fazer-se tudo para todos, para salvar a todos.

Quem dera que vivêssemos assim, que soubéssemos impregnar a nossa conduta desta semeadura de
generosidade, deste desejo de convivência, de paz! Desse modo, fomentar-se-ia a legítima
independência pessoal dos homens e cada um assumiria a sua responsabilidade pelas tarefas que lhe
incumbem na ordem temporal. O cristão saberia defender acima de tudo a liberdade alheia, para poder
depois defender a sua própria. Teria a caridade de aceitar os outros como são - porque não há ninguém
que não arraste consigo uma cauda de misérias e não cometa erros -, ajudando-os com a graça de Deus
e com delicadeza humana a vencer o mal, a arrancar o joio, a fim de que todos possamos mutuamente
amparar-nos e viver com dignidade a nossa condição de homens e de cristãos.

125 A tarefa apostólica, que Cristo confiou a todos os seus discípulos, produz, portanto, resultados
concretos na esfera social. Não é admissível pensar que, para sermos cristãos, seja preciso voltarmos
as costas ao mundo, sermos uns derrotistas da natureza humana. Tudo, até o mais ínfimo dos
acontecimentos honestos, encerra um sentido humano e divino. Cristo, perfeito homem, não veio
destruir o que é humano, mas enobrecê-lo, assumindo a nossa natureza humana, à exceção do pecado:
veio compartilhar todas as aspirações do homem, exceto a triste aventura do mal.

O cristão deve estar sempre disposto a santificar a sociedade a partir de dentro, permanecendo
plenamente no mundo, mas sem ser do mundo naquilo que o mundo encerra - não por ser característica
real, mas por defeito voluntário, pelo pecado - de negação de Deus, de oposição à sua amável vontade
salvífica.

126 A festa da Ascensão do Senhor sugere-nos também outra realidade: esse Cristo que nos anima a
empreender esta tarefa no mundo espera-nos no céu. Por outras palavras: a vida na terra, que nós
amamos, não é a realidade definitiva; pois não temos aqui cidade permanente, mas andamos em busca
da futura cidade imutável.

Cuidemos, porém, de não interpretar a Palavra de Deus dentro dos limites de horizontes estreitos. O
Senhor não nos incita a ser infelizes enquanto caminhamos, esperando a consolação apenas no mais
além. Deus nos quer felizes também aqui, se bem que anelando pelo cumprimento definitivo dessa
outra felicidade, que só Ele pode consumar plenamente.

Nesta terra, a contemplação das realidades sobrenaturais, a ação da graça em nossas almas, o amor ao
próximo como fruto saboroso do amor a Deus, representam já uma antecipação do céu, uma incoação
destinada a crescer de dia para dia. Nós, os cristãos, não suportamos uma vida dupla: mantemos uma
unidade de vida, simples e forte, em que se fundamentam e se compenetram todas as nossas ações.

Cristo espera-nos. Vivemos já como cidadãos do céu , sendo plenamente cidadãos da terra, no meio
das dificuldades, das injustiças, das incompreensões, mas também no meio da alegria e da serenidade
que nos dá saber-nos filhos amados de Deus. Perseveremos no serviço do nosso Deus, e veremos como
aumenta em número e em santidade este exército cristão de paz, este povo de co-redenção. Sejamos
almas contemplativas, absorvidas num diálogo constante com Deus, procurando a intimidade com o
Senhor a toda a hora: desde o primeiro pensamento do dia até o último da noite; pondo continuamente
o nosso coração em Jesus Cristo, Nosso Senhor; achegando-nos a Ele por Nossa Mãe, Santa Maria, e
por Ele, ao Pai e ao Espírito Santo.

E se, apesar de tudo, a subida de Jesus aos céus nos deixar na alma um travo de tristeza, acudamos à
sua Mãe, como fizeram os Apóstolos: Tornaram então a Jerusalém... e oravam unanimemente... com
Maria, a Mãe de Jesus.

127 Ao narrarem os acontecimentos daquele dia de Pentecostes, em que o Espírito Santo desceu em forma
de línguas de fogo sobre os discípulos de Nosso Senhor, os Atos dos Apóstolos fazem-nos assistir à
grande manifestação do poder de Deus com que a Igreja iniciou a sua caminhada entre as nações. A
vitória que Cristo - pela sua obediência, pela sua imolação na Cruz e pela sua Ressurreição - havia
obtido sobre a morte e o pecado, revelou-se então em todo o seu divino esplendor.

Os discípulos, que já eram testemunhas da glória do Ressuscitado, experimentam agora a força do


Espírito Santo: suas inteligências e corações abrem-se a uma nova luz. Tinham seguido Cristo e
acolhido com fé os seus ensinamentos, mas nem sempre haviam conseguido penetrar totalmente o seu
sentido: era necessário que chegasse o Espírito de Verdade, para lhes fazer compreender todas as
coisas. Sabiam que só em Jesus podiam encontrar palavras de vida eterna, e estavam dispostos a segui-
lo e a dar a vida por Ele; mas eram fracos e, quando chegou a hora da prova, fugiram, deixaram-no só.
No dia de Pentecostes, tudo isso passou: o Espírito Santo, que é espírito de fortaleza, tornou-os firmes,
seguros, audazes. A palavra dos Apóstolos ressoa agora com energia e ímpeto pelas ruas e praças de
Jerusalém.

Os homens e mulheres que tinham afluído das mais diversas regiões e povoavam naqueles dias a
cidade, escutam assombrados. Partos, medos e elamitas, e os que habitam a Mesopotâmia, a Judéia e
a Capadócia, o Ponto e a Ásia, a Frígia e a Panfília, o Egito e a Líbia vizinha de Cirene, e os que
vieram de Roma, tanto judeus como prosélitos, cretenses e árabes, todos ouvimos falar das maravilhas
de Deus em nossas próprias línguas. Estes prodígios que se realizam diante dos seus olhos levam-nos
a prestar atenção à pregação apostólica. O mesmo Espírito Santo que atuava nos discípulos do Senhor
tocou-lhes também o coração e conduziu-os à fé.

Conta-nos São Lucas que, depois de São Pedro ter falado, proclamando a Ressurreição de Cristo,
muitos dos que o rodeavam se aproximaram perguntando: O que devemos fazer, irmãos? O Apóstolo
respondeu-lhes: Fazei penitência e seja batizado cada um de vós em nome de Jesus Cristo, para
remissão de vossos pecados; e recebereis o dom do Espírito Santo. E o texto sagrado conclui dizendo
que, naquele dia, ingressaram na Igreja cerca de três mil pessoas.

A vinda solene do Espírito Santo no dia de Pentecostes não foi um acontecimento isolado. Não há
quase nenhuma página dos Atos dos Apóstolos em que não se fale dEle e da ação com que guia, dirige
e anima a vida e as obras da primitiva comunidade cristã: é Ele quem inspira a pregação de São Pedro ,
quem confirma os discípulos na fé , quem sela com a sua presença a chamada dirigida aos gentios ,
quem envia Saulo e Barnabé a terras distantes para abrirem novos caminhos à doutrina de Jesus. Numa
palavra, sua presença e sua ação dominam tudo.

128 Esta realidade profunda que o texto da Escritura Santa nos dá a conhecer não é uma recordação do
passado, uma idade de ouro da Igreja que tenha ficado para trás, na história. Elevando-se acima das
misérias e dos pecados de cada um de nós, é também a realidade da Igreja de hoje e da Igreja de todos
os tempos. Eu rogarei ao Pai - anunciou o Senhor aos seus discípulos - e Ele vos dará outro
Consolador, para que fique convosco eternamente. Jesus manteve as suas promessas: ressuscitou,
subiu aos céus e, em união com o Pai Eterno, envia-nos o Espírito Santo para que nos santifique e nos
dê a vida.

A força e o poder de Deus iluminam a face da terra. O Espírito Santo continua assistindo a Igreja de
Cristo, para que seja - sempre e em tudo - o sinal erguido diante das nações para anunciar à
humanidade a benevolência e o amor de Deus. Por maiores que sejam as nossas limitações, nós, os
homens, podemos olhar com confiança para os céus e sentir-nos cheios de alegria: Deus nos ama e nos
livra dos nossos pecados. A presença e a ação do Espírito Santo na Igreja são o penhor e a antecipação
da felicidade eterna, dessa alegria e dessa paz que Deus nos proporciona.

Como aqueles primeiros que se aproximaram de São Pedro no dia de Pentecostes, também nós fomos
batizados. E através do Batismo, nosso Pai-Deus tomou posse das nossas vidas, incorporou-nos à vida
de Cristo e enviou-nos o Espírito Santo. O Senhor, diz a Escritura Santa, salvou-nos fazendo-nos
renascer pelo batismo, renovando-nos pelo Espírito Santo, que Ele derramou copiosamente sobre nós
por Jesus Cristo Salvador nosso, para que, justificados pela graça, cheguemos a ser herdeiros da vida
eterna conforme a esperança que temos.

A experiência da nossa fragilidade e dos nossos erros, a desedificação que pode causar o espetáculo
doloroso da pequenez ou até da mesquinhez de alguns que se chamam cristãos, o aparente fracasso ou
a desorientação de alguns movimentos apostólicos, tudo isso - que é comprovar a realidade do pecado
e das limitações humanas - pode, no entanto, constituir uma prova para a nossa fé e fazer com que se
insinuem a tentação e a dúvida: onde estão a força e o poder de Deus? É o momento de reagir, de
pormos em prática com mais pureza e energia a nossa esperança e, portanto, de procurarmos que seja
mais firme a nossa fidelidade.

129 Gostaria de relatar um episódio da minha vida pessoal, ocorrido há muitos anos. Um dia, um amigo de
bom coração, mas que não tinha fé, disse-me, apontando para um mapa-mundi: Veja! De norte a sul e
de leste a oeste! Que quer que veja?, perguntei-lhe. Respondeu-me: O fracasso de Cristo. Tantos
séculos procurando introduzir a sua doutrina na vida dos homens, e veia os resultados. Num primeiro
momento, enchi-me de tristeza: é uma grande dor, com efeito, considerar que são muitos os que ainda
não conhecem o Senhor e que, dentre os que o conhecem, são muitos também os que vivem como se
não o conhecessem.

Mas essa sensação durou apenas um instante, para dar lugar ao amor e ao agradecimento, porque Jesus
quis fazer de cada homem um cooperador livre da sua obra redentora. Não fracassou: a sua doutrina e
a sua vida estão fecundando continuamente o mundo. A redenção que Ele levou a cabo é suficiente e
superabundante.

Deus não quer escravos, mas filhos, e portanto respeita a nossa liberdade. A salvação prossegue, e nós
participamos dela: é vontade de Cristo que - segundo a expressão forte de São Paulo - cumpramos na
nossa carne, na nossa vida, aquilo que falta à sua paixão, pro Corpore eius, quod est Ecclesia, em
benefício do seu Corpo, que é a Igreja.

Vale a pena jogar a vida, entregar-se por inteiro, para corresponder ao amor e à confiança que Deus
deposita em nós. Vale a pena, acima de tudo, decidir-se a tomar a sério a fé cristã. Quando recitamos o
Credo, professamos crer em Deus Pai, Todo-Poderoso; em seu Filho Jesus Cristo, que morreu e foi
ressuscitado; no Espírito Santo, Senhor e fonte da vida. Confessamos que a Igreja, una, santa, católica
e apostólica, é o Corpo de Cristo, animado pelo Espírito Santo. Alegramo-nos ante a remissão dos
pecados e a esperança da ressurreição futura. Mas essas verdades penetram até o fundo do coração, ou
ficam talvez nos lábios? A mensagem divina de vitória, de alegria e de paz do Pentecostes deve ser o
fundamento inquebrantável do modo de pensar, reagir e viver de todo o cristão.
130 Non est abbreviata manus Domini, não se tornou mais curta a mão de Deus : Deus não é hoje menos
poderoso do que em outras épocas, nem é menos verdadeiro seu amor pelos homens. A nossa fé ensina
que a criação inteira, o movimento da terra e dos astros, as ações retas das criaturas e tudo quanto há
de positivo no curso da história, tudo, numa palavra, veio de Deus e para Deus se ordena.

A ação do Espírito Santo pode passar-nos despercebida, porque Deus não nos dá a conhecer seus
planos e porque o pecado do homem turva e obscurece os dons divinos. Mas a fé recorda-nos que o
Senhor atua constantemente: foi Ele que nos criou e nos conserva o ser; é Ele quem, com a sua graça,
conduz a criação inteira para a liberdade da glória dos filhos de Deus.

Por isso, a tradição cristã resumiu num só conceito a atitude que devemos adotar perante o Espírito
Santo: docilidade. Temos que ser sensíveis àquilo que o Espírito divino promove à nossa volta e em
nós mesmos: aos carismas que distribui, aos movimentos e instituições que suscita, aos efeitos e
decisões que nos faz nascer no coração. O Espírito Santo realiza no mundo as obras de Deus: como diz
o hino litúrgico, Ele é dador de graças, luz dos corações, hóspede da alma, descanso no trabalho,
consolo no pranto. Sem a sua ajuda, nada há no homem que seja inocente e valioso, pois é Ele quem
lava o que está manchado, cura o que está enfermo, aquece o que está frio, reconduz o extraviado e
encaminha os homens até o porto da salvação e da felicidade eterna.

Mas nossa fé no Espírito Santo deve ser plena e completa: não é uma crença vaga na sua presença no
mundo; é uma aceitação agradecida dos sinais e realidades a que Ele quis vincular especialmente a sua
força. Quando vier o Espírito de Verdade - anunciou Jesus -, Ele me glorificará, porque receberá do
que é meu e vo-lo anunciará. O Espírito Santo é o Espírito enviado por Cristo para realizar em nós a
santificação que Ele nos mereceu na terra.

É por isso que não pode haver fé no Espírito Santo se não houver fé em Cristo, na doutrina de Cristo,
nos sacramentos de Cristo, na Igreja de Cristo. Não é coerente com a fé cristã, não crê
verdadeiramente no Espírito Santo quem não ama a Igreja, quem não tem confiança nEla, quem só se
compraz em apontar as deficiências e as limitações dos que a representam, quem a julga de fora e é
incapaz de se sentir seu filho. E sou levado a considerar também como é extraordinariamente
importante e abundantíssima a ação do Divino Paráclito durante a celebração da Santa Missa nos
nossos altares, enquanto o sacerdote renova o sacrifício do Calvário.

131 Nós, os cristãos, trazemos os grandes tesouros da graça em vasos de barro ; Deus confiou seus dons à
frágil e débil liberdade humana e, embora sejamos sem dúvida assistidos pela força do Senhor, a nossa
concupiscência, o nosso comodismo e o nosso orgulho repelem por vezes essa assistência e levam-nos
a cair em pecado. Há mais de um quarto de século, ao recitar o Credo e afirmar minha fé na divindade
da Igreja, una, santa, católica e apostólica, em muitas ocasiões acrescento: apesar dos
pesares. Quando uma vez por outra comento este costume e alguém me pergunta a que me quero
referir, respondo: aos teus pecados e aos meus.

Tudo isso é certo, mas não autoriza de modo algum a julgar a Igreja com critérios humanos, sem fé
teologal, atendendo apenas à maior ou menor qualidade de certos eclesiásticos ou de certos cristãos.
Proceder assim é permanecer na superfície. O mais importante na Igreja não é ver como nós, os
homens, correspondemos, mas ver o que Deus realiza. A Igreja é nem mais nem menos Cristo presente
entre nós, Deus que vem até à humanidade para salvá-la, chamando-nos com a sua Revelação,
santificando-nos com a sua graça, sustentando-nos com a sua ajuda constante, nos pequenos e nos
grandes combates da vida diária.

Podemos chegar a desconfiar dos homens, e cada um deve desconfiar pessoalmente de si mesmo e
coroar seus dias com um mea culpa, com um ato de contrição profundo e sincero.

Mas não temos o direito de duvidar de Deus. E duvidar da Igreja, da sua origem divina, da eficácia
salvadora da sua pregação e dos seus sacramentos é duvidar do próprio Deus, é não crer plenamente na
realidade da vinda do Espírito Santo.

Antes que Cristo fosse crucificado - escreve São João Crisóstomo -, não havia nenhuma reconciliação.
E enquanto não houve reconciliação, não foi enviado o Espírito Santo... A ausência do Espírito Santo
era sinal da ira divina. Agora que o vês enviado em plenitude, não duvides da reconciliação. Mas, se
perguntarem: Onde está agora o Espírito Santo? Podia-se falar da sua presença quando havia
milagres, quando eram ressuscitados os mortos e curados os leprosos. Porém, como saber agora que
está verdadeiramente presente? Não vos preocupeis. Demonstrar-vos-ei que o Espírito Santo está
também agora entre nós...

Se não existisse o Espírito Santo, não poderíamos dizer: Senhor Jesus, pois ninguém pode invocar
Jesus como Senhor, a não ser no Espírito Santo (1 Cor XII, 3). Se não existisse o Espírito Santo, não
poderíamos orar com confiança. Com efeito, ao rezar, dizemos: Pai nosso, que estais nos céus (Mt VI,
9). Se não existisse o Espírito Santo, não poderíamos chamar Pai a Deus. E como sabemos isso?
Porque o Apóstolo nos ensina: E por sermos filhos, Deus enviou aos nossos corações o Espírito de seu
Filho, que clama: Abba, Pai! (Gal IV, 6).

Portanto, quando invocares Deus Pai, lembra-te de que foi o Espírito Santo que, ao mover a tua alma,
te deu essa oração. Se não existisse o Espírito Santo, não haveria na Igreja palavra alguma de
sabedoria ou de ciência, porque está escrito: dada pelo Espírito a palavra da sabedoria (1 Cor XII,
8)... Se o Espírito Santo não estivesse presente, a Igreja não existiria. Mas se a Igreja existe, não há
dúvida de que o Espírito Santo não falta.

Acima das deficiências e limitações humanas, insisto, a Igreja é precisamente o sinal e, de certo modo
- não no sentido estrito em que se definiu dogmaticamente a essência dos sete sacramentos da Nova
Aliança -, o sacramento universal da presença de Deus no mundo. Ser cristão é ter sido regenerado por
Deus e enviado aos homens para lhes anunciar a salvação. Se tivéssemos uma fé firme e
experimentada, e se déssemos a conhecer Cristo com audácia, veríamos como continuam a realizar-se
diante dos nossos olhos milagres como os da era apostólica.

Porque também hoje se devolve a vista aos cegos, que haviam perdido a capacidade de olhar para o
céu e contemplar as maravilhas de Deus; também hoje se dá liberdade aos coxos e entrevados, que se
achavam tolhidos por suas paixões e já não tinham um coração que soubesse amar; também hoje se dá
ouvido aos surdos, que não desejavam ter notícia de Deus; e se consegue que falem os mudos, que
tinham amordaçada a língua por não quererem confessar suas derrotas; também hoje se ressuscitam
mortos, em quem o pecado havia destruído a vida. Mais uma vez se verifica que a palavra de Deus é
viva e eficaz, e mais penetrante que qualquer espada de dois gumes. E, tal como os primeiros fiéis
cristãos, também nós nos alegramos ao admirar a força do Espírito Santo e sua ação sobre a
inteligência e a vontade de suas criaturas.

132 Vejo todos os acontecimentos da vida - os de cada existência individual e, de algum modo, os das
grandes encruzilhadas da História - como outras tantas chamadas que Deus dirige aos homens para que
encarem de frente a verdade; e como ocasiões que se oferecem aos cristãos para que anunciem com
suas próprias obras e palavras, ajudados pela graça, o Espírito a que pertencem.

Cada geração de cristãos tem que redimir e santificar o seu próprio tempo: para isso, precisa
compreender e compartilhar os anseios dos outros homens, seus iguais, a fim de lhes dar a conhecer,
com dom de línguas, como devem corresponder à ação do Espírito Santo, à efusão permanente das
riquezas do Coração divino. Compete-nos a nós, cristãos, anunciar nestes dias, a esse mundo a que
pertencemos e em que vivemos, a mensagem antiga e nova do Evangelho.

Não é verdade que toda a gente de hoje - assim, em geral e em bloco - esteja fechada ou permaneça
indiferente ao que a fé cristã ensina sobre o destino e o ser do homem; não é verdade que os homens
destes tempos se ocupem só das coisas da terra e se desinteressem de olhar para o céu. Ainda que não
faltem ideologias - e pessoas a sustentá-las - que permanecem fechadas, há em nossa época anseios
elevados de mistura com atitudes rasteiras, heroísmos a par de covardias, idealismos ao lado de
desilusões; criaturas que sonham com um mundo novo mais justo e mais humano, embora outras,
decepcionadas talvez com o fracasso dos seus primitivos ideais, se refugiem no egoísmo de cuidar
apenas da sua própria tranqüilidade ou de permanecer imersas no erro.

A todos esses homens e a todas essas mulheres, estejam onde estiverem, em seus momentos de
exaltação ou em suas crises e derrotas, temos que fazer chegar o anúncio solene e firme de São Pedro,
durante os dias que se seguiram ao Pentecostes: Jesus é a pedra angular, o Redentor, a totalidade da
nossa vida, porque fora dEle não foi dado aos homens outro nome debaixo do céu pelo qual possamos
ser salvos.

133 Entre os dons do Espírito Santo, diria que há um de que todos nós, cristãos, necessitamos
especialmente: o dom da sabedoria, que nos faz conhecer e saborear Deus, e nos coloca assim em
condições de poder avaliar com verdade as situações e as coisas desta vida. Se fôssemos conseqüentes
com a nossa fé, ao olharmos à nossa volta e contemplarmos o espetáculo da história e do mundo, não
poderíamos deixar de sentir crescer em nossos corações os mesmos sentimentos que animaram o de
Jesus Cristo: Ao ver aquelas multidões, compadeceu-se delas, porque estavam desamparadas e
abatidas, como ovelhas sem pastor.

Não é que o cristão não enxergue tudo o que há de bom na humanidade, que não aprecie as alegrias
puras, que não participe dos anseios e ideais terrenos. Pelo contrário, sente tudo isso no mais recôndito
da sua alma e de tudo partilha e tudo vive com especial profundidade, já que conhece melhor que
qualquer homem os arcanos do espírito humano.

A fé cristã não amesquinha o animo nem cerceia os impulsos nobres da alma, posto que os engrandece
ao revelar o seu verdadeiro e mais autêntico sentido: não estamos destinados a uma felicidade
qualquer, pois fomos chamados a penetrar na intimidade divina, a conhecer e a amar Deus Pai, Deus
Filho, Deus Espírito Santo e, na Trindade e na Unidade de Deus, todos os anjos e todos os homens.

Esta é a grande ousadia da fé cristã: proclamar o valor e a dignidade da natureza humana e afirmar que,
mediante a graça, que nos eleva à ordem sobrenatural, fomos criados para alcançar a dignidade de
filhos de Deus. Ousadia certamente incrível, se não se baseasse no decreto salvador de Deus Pai e não
tivesse sido confirmada pelo sangue de Cristo e reafirmada e tornada possível pela ação constante do
Espírito Santo.

Temos que viver de fé, crescer na fé, até que se possa dizer de cada um de nós, de cada cristão, o que
escrevia há muitos séculos um dos grandes Doutores da Igreja Oriental: Assim como os corpos
transparentes e nítidos, ao receberem os raios da luz, se tornam resplandecentes e irradiam brilho,
assim também as almas que são conduzidas e ilustradas pelo Espírito Santo se tornam espirituais e
levam aos outros a luz da graça. Do Espírito Santo provém o conhecimento das coisas futuras, a
inteligência dos mistérios, a compreensão das verdades ocultas, a distribuição dos dons, a cidadania
celeste, a conversação com os anjos. DEle a alegria que nunca termina, a perseverança em Deus, a
semelhança com Deus, e o que de mais sublime se pode conceber: o fazer-se Deus.

A consciência da magnitude da dignidade humana - de modo eminente e inefável, pois fomos


constituídos filhos de Deus pela graça - forma no cristão uma só coisa com a humildade, pois o que
nos salva e dá vida não são as nossas forças, mas o favor divino. É uma verdade que não se pode
esquecer nunca, porque de outro modo o endeusamento se perverteria e se transformaria em
presunção, em soberba e, mais cedo ou mais tarde, em desmoronamento espiritual ante a experiência
da própria fraqueza e miséria.

Atrever-me-ei a dizer que sou santo? - interrogava-se Santo Agostinho. Se dissesse santo como
sinônimo de santificador e não necessitado de ninguém que me santificasse, seria soberbo e
mentiroso. Mas se por santo entendemos o santificado, conforme o que se lê no Levítico: sede santos,
porque Eu, Deus, sou santo, então também o corpo de Cristo, até o último homem situado nos confins
da terra, em união com a sua Cabeça e sob a sua Cabeça, diga audazmente: sou santo!

Amemos a Terceira Pessoa da Trindade Beatíssima; escutemos na intimidade do nosso ser as moções
divinas - esses alentos, essas censuras -, caminhemos pela terra dentro da luz derramada em nossas
almas; e o Deus da esperança nos cumulará de toda a sorte de paz, para que essa esperança cresça em
nós cada vez mais e mais, pela virtude do Espírito Santo.

134 Viver segundo o Espírito Santo é viver de fé, de esperança, de caridade: é deixar que Deus tome posse
de nós e mude pela raiz os nossos corações, para os moldar à sua medida. Uma vida cristã
amadurecida, profunda e rija, não é coisa que se improvise, porque é fruto do crescimento da graça de
Deus em nós. Nos Atos dos Apóstolos, descreve-se a situação da primitiva comunidade cristã numa
frase breve, mas cheia de sentido: Perseveravam todos na doutrina dos Apóstolos, na participação da
fração do pão e na oração.

Foi assim que viveram os primeiros cristãos, e é assim que devemos nós viver: a meditação da
doutrina da fé, até a fazermos própria; o encontro com Cristo na Eucaristia; o diálogo pessoal - a
oração sem anonimato - face a face com Deus, devem constituir como que a substância última da
nossa conduta. Se isso faltar, talvez haja reflexão erudita, atividade mais ou menos intensa, devoções e
práticas de piedade. Mas não haverá existência cristã autêntica, porque faltará a compenetração com
Cristo, a participação real na obra divina da salvação.

É uma doutrina que se aplica a qualquer cristão, porque todos fomos igualmente chamados à santidade.
Não há cristãos de segunda categoria, obrigados a pôr em prática apenas uma versão reduzida do
Evangelho: todos recebemos o mesmo Batismo e, se bem que exista uma ampla diversidade de
carismas e de situações humanas, um só é o Espírito que distribui os dons divinos, uma só a fé, a
esperança, a caridade.

Podemos, pois, tomar como dirigida a nós a pergunta do Apóstolo: Não sabeis que sois templo de
Deus e que o Espírito Santo habita em vós? , e recebê-la como convite para uma relação mais pessoal
e direta com Deus. Infelizmente, para alguns cristãos, o Paráclito é o Grande Desconhecido: um nome
que se pronuncia, mas que não é Alguém - uma das três Pessoas do único Deus -, com quem se fala e
de quem se vive.

Ora, é preciso que procuremos a sua intimidade com assídua simplicidade e com confiança, como a
Igreja nos ensina a fazê-lo através da Liturgia. Assim conheceremos melhor a Deus e ao mesmo tempo
compreenderemos mais plenamente o imenso dom que significa chamar-se cristão: compreenderemos
toda a grandeza e toda a verdade desse endeusamento, dessa participação na vida divina a que antes
me referia.

Porque o Espírito Santo não é um artista que desenhe em nós a divina substância, como se fosse
alheio a ela; não é assim que nos conduz à semelhança divina. Sendo Deus e procedendo de Deus, Ele
mesmo se imprime nos corações que o recebem, como o selo sobre a cera e, dessa forma, pela
comunicação de si mesmo e pela semelhança, restabelece a natureza consoante a beleza do modelo
divino e restitui ao homem a imagem de Deus.

135 Para determinarmos, mesmo de uma maneira muito geral, um estilo de vida que nos anime a procurar
o convívio com o Espírito Santo - e, ao mesmo tempo, com o Pai e o Filho - e a ter familiaridade com
o Paráclito, podemos atentar para três realidades fundamentais: docilidade - repito -, vida de oração e
união com a Cruz.

Em primeiro lugar, docilidade, porque é o Espírito Santo quem, com suas inspirações, vai dando tom
sobrenatural aos nossos pensamentos, desejos e obras. É Ele quem nos impele a aderir à doutrina de
Cristo e a assimilá-la com profundidade; quem nos dá luz para tomarmos consciência da nossa
vocação pessoal e força para realizarmos tudo o que Deus espera de nós. Se formos dóceis ao Espírito
Santo, a imagem de Cristo ir-se-á formando cada vez mais em nós e assim nos iremos aproximando
cada dia mais de Deus Pai. Os que são conduzidos pelo Espírito de Deus, esses são filhos de Deus.

Se nos deixarmos guiar por esse princípio de vida presente em nós, que é o Espírito Santo, a nossa
vitalidade espiritual irá crescendo e abandonar-nos-emos nas mãos do nosso Pai-Deus com a mesma
espontaneidade e confiança com que uma criança se lança nos braços de seu pai. Se não vos fizerdes
semelhantes às crianças, não entrareis no reino dos céus, disse o Senhor. Velho caminho interior de
infância, sempre atual, que não é mimalhice nem falta de maturidade humana: é maturidade
sobrenatural, que nos leva a aprofundar nas maravilhas do amor divino, a reconhecer a nossa pequenez
e a identificar plenamente a nossa vontade com a de Deus.

136 Em segundo lugar, vida de oração, porque a entrega, a obediência, a mansidão do cristão nascem do
amor e para o amor se orientam. E o amor leva à vida de relação, à conversa assídua, à amizade. A
vida cristã requer um diálogo constante com Deus Uno e Trino, e é a essa intimidade que o Espírito
Santo nos conduz. Quem sabe das coisas do homem, senão o espírito do homem, que está dentro dele?
Assim, as coisas de Deus, ninguém as conheceu a não ser o Espírito de Deus. Se mantivermos uma
relação assídua com o Espírito Santo, também nós nos faremos espirituais, nos sentiremos irmãos de
Cristo e filhos de Deus, e saberemos invocá-lo sem hesitação, como Pai que é de cada um de nós.

Acostumemo-nos a procurar o convívio com o Espírito Santo, que é quem nos há de santificar; a
confiar nEle, a pedir sua ajuda, a senti-lo perto de nós. Assim se irá dilatando o nosso pobre coração,
teremos mais ânsias de amar a Deus e, por Ele, a todas as criaturas. E reproduzir-se-á em nossas vidas
aquela visão final do Apocalipse: o Espírito e a Esposa, o Espírito Santo e a Igreja - e cada cristão -,
que se dirigem a Jesus, a Cristo, e lhe pedem que venha, que fique conosco para sempre.

137 União com a Cruz, finalmente, porque, na vida de Cristo, o Calvário precedeu a Ressurreição e o
Pentecostes, e esse mesmo processo se deve reproduzir na vida de cada cristão: Somos - diz São Paulo
- co-herdeiros com Jesus Cristo, contanto que soframos com Ele, a fim de sermos com Ele
glorificados. O Espírito Santo é fruto da Cruz, da entrega total a Deus, da procura exclusiva da sua
glória e da completa renúncia a nós mesmos. Só quando o homem, fiel à graça, decide colocar no
centro da sua alma a Cruz, negando-se a si mesmo por amor de Deus, desprendendo-se realmente do
egoísmo e de toda a falsa segurança humana, quer dizer, só quando vive verdadeiramente de fé, só
então é que recebe com plenitude o grande fogo, a grande consolação do Espírito Santo.

É então que chegam também à alma aquela paz e aquela liberdade que Cristo nos conquistou , e que
nos são comunicadas com a graça do Espírito Santo. Os frutos do Espírito Santo são caridade, alegria,
paz, paciência, benignidade, bondade, longanimidade, mansidão, fé, modéstia, continência,
castidade ; e onde está o Espírito do Senhor, lá está a liberdade.

138 No meio das limitações inseparáveis da nossa situação presente - porque o pecado ainda habita de
algum modo em nós -, o cristão percebe com nova claridade toda a riqueza da sua filiação divina, na
medida em que se reconhece plenamente livre por trabalhar nas coisas do Pai, e se sente possuído de
uma alegria que se torna constante, por nada ser capaz de destruir a sua esperança.

Além disso, é também nessa hora que se torna capaz de admirar todas as belezas e maravilhas da terra,
de apreciar toda a riqueza e toda a bondade, de viver o amor com toda a inteireza e toda a pureza para
que foi criado o coração humano. É nessa altura que a sua dor perante o pecado não degenera nunca
em reação amarga, desesperada ou arrogante, porque a compunção e o reconhecimento da fraqueza
humana o levam a identificar-se de novo com as ânsias redentoras de Cristo e a sentir mais
profundamente a solidariedade com todos os homens. É então, enfim, que o cristão experimenta em si,
com segurança, a força do Espírito Santo, de maneira que nem as suas próprias quedas o abatem:
porque são um convite para que recomece e para que continue a ser testemunha fiel de Cristo em todas
as encruzilhadas da terra, apesar das suas misérias pessoais; misérias que, nestes casos, costumam ser
faltas leves e mal turvam a sua alma, ou, se são graves, encontram no Sacramento da Penitência,
procurado com compunção, o meio de fazê-lo retomar à paz de Deus e de convertê-lo novamente em
boa testemunha das misericórdias divinas.

Assim é, em breve resumo que mal consegue traduzir em pobres palavras humanas a riqueza da fé, a
vida do cristão, quando se deixa guiar pelo Espírito Santo. Por isso, só posso concluir tomando minha
a súplica contida num dos hinos litúrgicos da festa de Pentecostes, que é como um eco da oração
incessante de toda a Igreja: Vem, Espírito Criador, visita as inteligências dos teus, enche de graça
celeste os corações que criaste. Em tua escola, faz-nos conhecer o Pai, como também o Filho; faz,
enfim, que acreditemos eternamente em Ti, Espírito que procedes de Um e Outro.

139 Um olhar sobre o mundo, um olhar sobre o Povo de Deus , neste mês de Maio que começa, faz-nos
contemplar o espetáculo da devoção mariana que se manifesta em tantos costumes, antigos ou novos,
mas vividos com um mesmo espírito de amor. Dá alegria verificar que a devoção à Virgem está
sempre viva, despertando nas almas cristãs o impulso sobrenatural de se comportarem como domestici
Dei, como membros da família de Deus.

Estou certo de que cada um de nós, ao ver nestes dias como tantos cristãos exprimem de mil formas
diferentes o seu carinho pela Virgem Santa Maria, se sentirá também mais dentro da Igreja, mais irmão
de todos os seus irmãos. É como uma reunião de família, em que os filhos já adultos, que a vida
separou, voltam a encontrar-se junto de sua mãe por ocasião de uma festa. E se uma vez ou outra
discutiram entre si e se trataram mal, naquele dia é diferente; naquele dia sentem-se unidos,
reconhecem-se todos no afeto comum.

Maria edifica continuamente a Igreja, reúne-a, mantém-na coesa. É difícil ter uma devoção autêntica à
Virgem e não sentir-se mais vinculado aos outros membros do Corpo Místico e mais unido à sua
cabeça visível, o Papa. Por isso gosto de repetir: Omnes cum Petro ad Iesum per Mariam!, todos, com
Pedro, a Jesus por Maria! E, ao reconhecermo-nos parte da Igreja e convidados a sentir-nos irmãos na
fé, descobrimos mais profundamente a fraternidade que nos une a toda a humanidade: porque a Igreja
foi enviada por Cristo a todos os homens e a todos os povos.

O que acabo de dizer é algo que já todos experimentamos, pois não nos têm faltado ocasiões de
comprovar os efeitos sobrenaturais de uma sincera devoção à Virgem. Cada um poderia contar muitas
coisas. E eu também. Vem agora à minha memória uma romaria que fiz em 1933, a uma ermida da
Virgem em terra castelhana: a Sonsoles.

Não era uma romaria tal como se entende habitualmente. Não era ruidosa nem multitudinária: íamos
apenas três pessoas. Respeito e amo essas outras manifestações públicas de piedade, mas pessoalmente
prefiro tentar oferecer a Maria o mesmo carinho e o mesmo entusiasmo por meio de visitas pessoais ou
em pequenos grupos, com sabor de intimidade.

Naquela romaria a Sonsoles, conheci a origem dessa invocação à Virgem, um detalhe sem muita
importância, mas que é uma manifestação filial da gente daquela terra. A imagem de Nossa Senhora
que se venera naquele lugar esteve escondida durante certo tempo, na época das lutas entre cristãos e
muçulmanos na Espanha. Ao fim de alguns anos, foi encontrada por uns pastores que - segundo conta
a tradição -, ao vê-la, exclamaram: Que olhos tão formosos! São sóis!*

(*): Em castelhano: Son soles (N. T.).


140 Desde aquele ano de 1933, em numerosas e habituais visitas a santuários de Nossa Senhora, tive
ocasião de refletir e meditar sobre a realidade deste carinho de tantos cristãos pela Mãe de Jesus. E
sempre pensei que esse carinho era uma correspondência de amor, uma prova de agradecimento filial.
Porque Maria está muito unida a essa manifestação máxima do amor de Deus: a Encarnação do Verbo,
que se fez homem como nós e carregou com as nossas misérias e pecados. Maria, fiel à missão divina
para que foi criada, excedeu-se e excede-se continuamente no serviço aos homens, que foram
chamados todos eles a ser irmãos de seu Filho Jesus. E assim a Mãe de Deus é também agora,
realmente, a Mãe dos homens.

Assim é, porque assim o quis o Senhor. E o Espírito Santo dispôs que ficasse escrito, para
conhecimento de todas as gerações: Estavam, junto à cruz de Jesus, sua mãe, e a irmã de sua mãe,
Maria, mulher de Cleofas, e Maria Madalena. E Jesus, vendo sua Mãe e, junto dela, o discípulo que
Ele amava, disse à sua Mãe: Mulher, eis aí o teu filho. Depois, disse ao discípulo: Eis aí a tua Mãe. E
a partir daquele momento, o discípulo a teve por Mãe.

João, o discípulo amado de Jesus, recebe Maria e introdu-la em sua casa, em sua vida. Os autores
espirituais viram nessas palavras do Santo Evangelho um convite dirigido a todos os cristãos para que
todos saibamos também introduzir Maria em nossas vidas. Em certo sentido, é um esclarecimento
quase supérfluo, porque Maria quer sem dúvida que a invoquemos, que nos aproximemos dEla com
confiança, que recorramos à sua maternidade, pedindo-lhe que se manifeste como nossa Mãe.

Mas é uma mãe que não se faz rogar, que até se antecipa às nossas súplicas, porque conhece as nossas
necessidades e vem prontamente em nosso auxílio, demonstrando com obras que se lembra
constantemente de seus filhos. Cada um de nós, ao evocar a sua própria vida e ao ver como nela se
manifesta a misericórdia divina, pode descobrir mil motivos para se sentir de um modo muito especial
filho de Maria.

141 Os textos das Sagradas Escrituras que nos falam de Nossa Senhora mostram-nos precisamente como a
Mãe de Jesus acompanha seu Filho passo a passo, associando-se à sua missão redentora, alegrando-se
e sofrendo com Ele, amando aqueles a quem Jesus ama, ocupando-se com solicitude maternal de todos
os que estão ao seu lado.

Pensemos, por exemplo, no relato das bodas de Caná. Entre tantos convidados de uma dessas ruidosas
bodas do meio rural, a que comparecem pessoas de vários povoados, Maria percebe que falta vinho. Só
Ela o percebe, e sem demora. Como se nos revelam familiares as cenas da vida de Cristo! Porque a
grandeza de Deus convive com as coisas normais e comuns. É próprio de uma mulher e de uma
solícita dona de casa notar um descuido, prestar atenção a esses pequenos detalhes que tornam
agradável a existência humana: e foi assim que Maria se comportou.

Reparemos também que é João quem relata o episódio de Caná: é o único evangelista que registra esse
gesto de solicitude maternal. São João quer recordar-nos que Maria esteve presente no começo da vida
pública do Senhor, e com isso demonstra que soube aprofundar na importância da presença da
Senhora. Jesus sabia a quem confiava sua Mãe: a um discípulo que a amara, que aprendera a querer-
lhe como à sua própria mãe e que era capaz de entendê-la.

Relembremos agora os dias que se seguiram à Ascensão, na expectativa do Pentecostes. Os discípulos,


cheios de fé pelo triunfo de Cristo ressuscitado, e ansiosos ante a promessa do Espírito Santo, querem
sentir-se unidos, e vamos encontrá-los cum Maria, Matre Iesu, com Maria, a Mãe de Jesus. A oração
dos discípulos acompanha a oração de Maria; era a oração de uma família unida.

Desta vez, quem nos transmite esse dado é São Lucas, o evangelista que mais longamente narrou a
infância de Jesus. É como se quisesse dar-nos a entender que, assim como Maria teve um papel
primordial na Encarnação do Verbo, de modo análogo esteve também presente nas origens da Igreja,
que é o Corpo de Cristo.
Desde o primeiro momento da vida da Igreja, todos os cristãos que têm procurado o amor de Deus -
esse amor que se nos revela e se faz carne em Jesus Cristo - encontraram-se com a Virgem e
experimentaram de maneiras muito diferentes o seu desvelo maternal. A Virgem Santíssima pode
chamar-se verdadeiramente Mãe de todos os cristãos. Santo Agostinho disse-o com palavras
claras: Cooperou com a sua caridade para que nascessem na Igreja os fiéis, membros daquela cabeça
de que Ela é efetivamente Mãe segundo o corpo.

Não é, pois, de estranhar que um dos testemunhos mais antigos da devoção a Maria seja precisamente
uma oração cheia de confiança. Refiro-me a uma antífona composta há séculos e que ainda hoje
continuamos a repetir: À vossa proteção nos acolhemos, Santa Mãe de Deus. Não desprezeis as
súplicas que em nossas necessidades vos dirigimos, mas livrai-nos sempre de todos os perigos, ó
Virgem gloriosa e bendita.

142 Surge assim em nós, de forma espontânea e natural, o desejo de procurarmos a intimidade com a Mãe
de Deus, que é também nossa Mãe; de convivermos com Ela como se convive com uma pessoa viva,
já que sobre Ela não triunfou a morte, antes está em corpo e alma junto de Deus Pai, junto de seu
Filho, junto do Espírito Santo.

Para compreendermos o papel que Maria desempenha na vida cristã, para nos sentirmos atraídos por
Ela, para desejarmos a sua amável companhia com afeto filial, não necessitamos de grandes
investigações, embora o mistério da Maternidade divina tenha uma riqueza de conteúdo que nunca
aprofundaremos bastante.

A fé católica soube reconhecer em Maria um sinal privilegiado do amor de Deus. Deus nos chama, já
agora, seus amigos; sua graça atua em nós, regenera-nos do pecado, dá-nos forças para que, no meio
das fraquezas próprias de quem ainda é pó e miséria, possamos refletir de algum modo o rosto de
Cristo. Não somos meros náufragos a quem Deus tenha prometido salvar, porque a salvação se realiza
desde já em nós. A nossa relação com Deus não é a de um cego que anseia pela luz enquanto geme
entre as angústias da escuridão; é a de um filho que se sabe amado por seu Pai.

Dessa cordialidade, dessa confiança, dessa segurança nos fala Maria. Por isso o seu nome chega tão
direto ao coração. A relação de cada um de nós com a sua própria mãe pode servir-nos de modelo e de
pauta para o nosso relacionamento com a Senhora do Doce Nome, Maria. Temos que amar a Deus
com o mesmo coração com que amamos nossos pais, nossos irmãos, os outros membros da família,
nossos amigos ou amigas: não temos outro coração. E com esse mesmo coração temos que procurar a
intimidade com Maria.

Como se comporta um filho ou uma filha normal com sua mãe? De mil maneiras, mas sempre com
carinho e confiança. Com um carinho que em cada caso fluirá por condutos nascidos da própria vida, e
que nunca são uma coisa fria, mas costumes íntimos de lar, pequenos detalhes diários que o filho
precisa ter com sua mãe e de que a mãe sente falta se alguma vez o filho os esquece: um beijo ou uma
carícia ao sair de casa ou ao voltar, uma pequena delicadeza, umas palavras expressivas...

Em nossas relações com a nossa Mãe do Céu, existem também essas normas de piedade filial que são
os moldes do nosso comportamento habitual com Ela. Muitos cristãos adotam o antigo costume do
escapulário; ou adquirem o hábito de saudar - não são precisas palavras, basta o pensamento - as
imagens de Maria que se encontram em todo o lar cristão ou adornam as ruas de tantas cidades; ou
vivem essa maravilhosa oração que é o terço, em que a alma não se cansa de dizer sempre as mesmas
coisas, como não se cansam os namorados, e em que se aprende a reviver os momentos centrais da
vida do Senhor; ou então acostumam-se a dedicar à Senhora um dia da semana - precisamente este em
que agora estamos reunidos: o sábado -, oferecendo-lhe alguma pequena delicadeza e meditando mais
especialmente na sua maternidade.
Há muitas outras devoções marianas que não é necessário recordar neste momento. Não se trata de
introduzi-las todas na vida de cada cristão - crescer na vida sobrenatural é muito diferente de um
simples ir amontoando devoções -, mas devo afirmar, ao mesmo tempo, que não possui a plenitude da
fé cristã quem não vive algumas delas, quem não manifesta de algum modo o seu amor por Maria.

Os que consideram ultrapassadas as devoções à Santíssima Virgem dão sinais de terem perdido o
profundo sentido cristão que elas encerram, e de terem esquecido a fonte de que nascem: a fé na
vontade salvífica de Deus Pai; o amor a Deus Filho, que se fez realmente homem e nasceu de uma
mulher; a confiança em Deus Espírito Santo, que nos santifica com a sua graça. Foi Deus quem nos
deu Maria: não temos o direito de rejeitá-la, antes pelo contrário, devemos recorrer a Ela com amor e
com alegria de filhos.

143 Consideremos atentamente este aspecto. Pode ajudar-nos a compreender coisas muito importantes, já
que o mistério de Maria nos faz ver que, para nos aproximarmos de Deus, temos que nos tornar
pequenos. Em verdade vos digo - exclamou o Senhor, dirigindo-se aos seus discípulos -, se não vos
fizerdes como crianças, não entrareis no reino dos céus.

Fazer-se criança: renunciar à soberba, à auto-suficiência; reconhecer que, sozinhos, nada podemos,
porque necessitamos da graça, do poder do nosso Pai-Deus para aprender a caminhar e para perseverar
no caminho. Ser criança exige abandonar-se como se abandonam as crianças, crer como crêem as
crianças, pedir como pedem as crianças.

São coisas que aprendemos no convívio com Maria. A devoção à Virgem não é blandície nem
languidez: é consolo e júbilo que se apossam da alma, precisamente porque exige um exercício
profundo e íntegro da fé, que nos faz sair de nós mesmos e colocar a nossa esperança no Senhor.
O Senhor é meu pastor - canta um dos salmos -, nada me faltará. Em verdes prados me faz descansar,
conduz-me junto às águas refrescantes; refaz minha alma e guia-me por caminhos retos pela virtude
do seu nome. Ainda que eu atravesse um vale tenebroso, nada temerei, porque Tu estás comigo.

Porque Maria é Mãe, sua devoção nos ensina a ser filhos: a amar deveras, sem medida; a ser simples,
sem essas complicações que nascem do egoísmo de pensarmos só em nós; a estar alegres, sabendo que
nada pode destruir a nossa esperança. O princípio do caminho que leva à loucura do amor de Deus é
um amor confiado por Maria Santíssima. Assim o escrevi há muitos anos, no prólogo a uns
comentários ao Santo Rosário, e desde então voltei a comprovar muitas vezes a verdade dessas
palavras. Não vou tecer aqui muitas considerações para comentar essa idéia: prefiro, antes, convidar
cada um a fazer a experiência, a descobri-lo por si mesmo, procurando manter uma relação amorosa
com Maria, abrindo-lhe o coração, confiando-lhe suas alegrias e penas, pedindo-lhe que o ajude a
conhecer e a seguir Jesus.

144 Se procurarmos Maria, encontraremos Jesus. E aprenderemos a entender um pouco do que há no


coração de um Deus que se aniquila, que renuncia a manifestar o seu poder e a sua majestade para se
apresentar sob a forma de escravo. Falando em termos humanos, poderíamos dizer que Deus se
excede, pois não se limita ao que seria essencial ou imprescindível para nos salvar, mas vai mais
longe. A única norma ou medida que nos permite compreender de algum modo a maneira como Deus
age é perceber que não tem medida, ver que nasce de uma loucura de amor que o leva a tomar a nossa
carne e a carregar com o peso dos nossos pecados.

Como é possível perceber tudo isso, reparar que Deus nos ama, e não enlouquecer também de amor? É
necessário deixar que essas verdades da nossa fé calem na alma, até mudarem toda a nossa vida. Deus
nos ama: o Onipotente, o Todo-Poderoso, o que fez os céus e a terra!

Deus interessa-se até pelas mais pequenas coisas das suas criaturas: e chama-nos, um a um, pelo nosso
próprio nome. Essa certeza, que procede da fé, faz-nos olhar o que nos cerca sob uma nova luz, e leva-
nos a perceber que, permanecendo tudo como antes, tudo se torna diferente, porque tudo é expressão
do amor de Deus.

A nossa vida converte-se assim numa contínua oração, num bom humor e numa paz que nunca se
acabam, num ato de ação de graças desfiado ao longo das horas. Minha alma glorifica o Senhor
- cantou a Virgem Maria - e meu espírito exulta de alegria em Deus, meu Salvador: porque olhou para
a baixeza de sua serva. Por isso, desde agora me chamarão bem-aventurada todas as gerações,
porque fez em mim grandes coisas o Todo-Poderoso, cujo nome é santo.

A nossa oração pode acompanhar e imitar essa oração de Maria. Como Ela, sentiremos o desejo de
cantar, de pro clamar as maravilhas de Deus, para que a humanidade inteira e todos os seres participem
da nossa felicidade.

145 Não é possível mantermos uma relação filial com Maria e pensarmos apenas em nós mesmos, nos
nossos problemas. Não podemos permanecer em relação intima com a Virgem e ter problemas
pessoais carregados de egoísmo. Maria leva a Jesus, e Jesus é primogenitus in multis
fratribus, primogênito entre muitos irmãos. Conhecer Jesus é, portanto, compreender que não podemos
ter outro sentido para a nossa vida a não ser o da entrega ao serviço do próximo. Um cristão não pode
deter-se apenas nos seus problemas pessoais, mas deve viver de olhos postos na Igreja Universal,
pensando na salvação de todas as almas.

Deste modo, até as facetas que se poderiam considerar mais privadas e íntimas - como a preocupação
pelo progresso interior - não são na realidade pessoais, já que a santificação se funde numa só coisa
com o apostolado. Devemos, pois, ser esforçados na nossa vida interior e no desenvolvimento das
virtudes cristãs, mas de olhos postos no bem de toda a Igreja, já que não poderíamos fazer o bem e dar
a conhecer Cristo se em nossas vidas não houvesse um esforço sincero por converter em realidade
prática os ensinamentos do Evangelho.

Impregnados deste espírito, nossas orações, ainda que comecem por temas e propósitos aparentemente
pessoais, acabam sempre por desembocar no serviço aos outros. E se caminhamos pela mão da
Santíssima Virgem, Ela fará com que nos sintamos irmãos de todos os homens: porque somos todos
filhos desse Deus de quem Ela é Filha, Esposa e Mãe.

Os problemas dos outros devem ser problemas nossos. A fraternidade cristã deve estar tão arraigada no
fundo da alma, que nenhuma pessoa nos seja indiferente. Maria, Mãe de Jesus - a quem Ela criou,
educou e acompanhou durante a sua vida terrena, e com quem está agora nos céus -, ajudar-nos-á a
reconhecer Jesus que passa ao nosso lado, que se nos torna presente nas necessidades dos nossos
irmãos, os homens.

146 Naquela romaria de que antes falava, enquanto caminhávamos até à ermida de Sonsoles, passamos
junto de uns campos de trigo. A messe brilhava ao sol, embalada pelo vento. Veio então à minha
memória um texto do Evangelho, umas palavras que o Senhor dirigiu ao grupo dos seus
discípulos: Não dizeis vós que dentro de quatro meses virá a colheita? Pois eu vos digo: erguei os
olhos e vede os campos que já branqueiam para a ceifa. Pensei uma vez mais que o Senhor queria
suscitar em nossos corações o mesmo empenho, o mesmo fogo que dominava o seu. E, afastando-me
um pouco do caminho, colhi umas espigas para que me servissem de lembrança.

É preciso abrir os olhos, saber olhar ao nosso redor e reconhecer essas chamadas que Deus nos dirige
através dos que nos cercam. Não podemos viver de costas para a multidão, encerrados no nosso
pequeno mundo. Não foi assim que Jesus viveu. Os Evangelhos falam-nos muitas vezes da sua
misericórdia, da sua capacidade de participar da dor e das necessidades dos outros: compadece-se da
viúva de Naim , chora a morte de Lázaro , preocupa-se com as multidões que o seguem e não têm que
comer , compadece-se sobretudo dos pecadores, dos que caminham pelo mundo sem conhecerem a luz
nem a verdade: Ao desembarcar, Jesus viu uma grande multidão e compadeceu-se dela, porque eram
como ovelhas sem pastor. E começou a ensinar-lhes muitas coisas.

Quando somos verdadeiramente filhos de Maria, compreendemos essa atitude do Senhor, nosso
coração se dilata e revestimo-nos de entranhas de misericórdia. Dóem-nos, então, os sofrimentos, as
misérias, os erros, a solidão, a angústia, a dor dos outros homens, nossos irmãos. E sentimos a urgência
de ajudá-los em suas necessidades e de lhes falar de Deus, para que saibam tratá-lo como filhos e
possam conhecer as delicadezas maternais de Maria.

147 Encher o mundo de luz, ser sal e luz : assim descreveu o Senhor a missão dos seus discípulos. Levar
até os últimos confins da terra a boa nova do amor de Deus. A isso devem todos os cristãos dedicar a
sua vida, de um modo ou de outro.

Direi mais: temos que sentir o profundo anseio de não permanecer sós, temos que fazer com que
muitos outros se animem a contribuir para essa missão divina de levar a alegria e a paz aos corações
dos homens: Na medida em que progredirdes, atraí os outros convosco, escreve São Gregório
Magno. Desejai ter companheiros no caminho para o Senhor.

Mas tenhamos presente que, cum dormirent homines, enquanto os homens dormiam, veio o semeador
do joio, diz o Senhor numa parábola. Nós, os homens, estamos expostos a deixar-nos vencer pelo sono
do egoísmo, da superficialidade, dispersando o coração em mil experiências passageiras, evitando
aprofundar no verdadeiro sentido das realidades terrenas. Má coisa esse sono, que sufoca a dignidade
do homem e o torna escravo da tristeza!

Há um caso que nos deve doer de modo especial: o daqueles cristãos que poderiam dar mais e não se
decidem; que poderiam entregar-se totalmente, vivendo todas as conseqüências da sua vocação de
filhos de Deus, mas relutam em ser generosos. Deve doer-nos porque a graça da fé não nos foi dada
para que permaneça oculta, mas para que brilhe diante dos homens ; porque, além disso, está em jogo a
felicidade temporal e eterna dos que assim procedem. A vida cristã é uma maravilha divina, com
promessas de satisfação e serenidade, com a condição, porém, de que saibamos apreciar o dom de
Deus , sendo generosos sem medida.

É necessário, pois, despertar os que tenham caído nesse mau sono: lembrar-lhes que a vida não é um
divertimento, mas tesouro divino que deve frutificar. E é necessário também ensinar o caminho aos
que têm boa vontade e bons desejos, mas não sabem como levá-los à prática. Somos urgidos a fazê-lo
pelo próprio Jesus Cristo. Cada um de nós tem que ser não apenas apóstolo, mas apóstolo de apóstolos:
que arraste os outros consigo, que os mova a dar a conhecer Cristo por sua vez.

148 Talvez se possa perguntar como transmitir esse conhecimento às pessoas. E respondo: com
naturalidade, com simplicidade, vivendo cada qual como vive, no meio do mundo, entregue ao seu
trabalho profissional e ao cuidado da família, participando das aspirações nobres dos homens,
respeitando a legítima liberdade de cada um.

Há já quase trinta anos, Deus pôs em meu coração o anseio de fazer compreender às pessoas de
qualquer estado, condição ou ofício, esta doutrina: a vida corrente pode ser santa e plena de Deus; o
Senhor chama-nos a santificar as ocupações habituais, porque também nelas se encontra a perfeição do
cristão. Consideremo-lo uma vez mais, contemplando a vida de Maria.

Não esqueçamos que a quase totalidade dos dias que Nossa Senhora passou na terra decorreram de
forma muito parecida à de milhões de outras mulheres, ocupadas em cuidar da família, em educar os
filhos, em levar a cabo as tarefas do lar. Maria santifica as coisas mais pequenas, aquelas que muitos
consideram erroneamente como intranscendentes e sem valor: o trabalho de cada dia, os pormenores
de atenção com as pessoas queridas, as conversas e visitas por motivos de parentesco ou de amizade.
Bendita normalidade, que pode estar repassada de tanto amor de Deus!

Porque é isso o que explica a vida de Maria: o seu amor. Um amor levado até ao extremo, até ao
esquecimento completo de si mesma, feliz de estar onde Deus a quer, cumprindo com esmero a
vontade divina. Isso é o que faz com que o menor de seus gestos não seja nunca banal, mas cheio de
conteúdo. Maria, nossa Mãe, é para nós exemplo e caminho. Temos que procurar ser como Ela, nas
circunstâncias concretas em que Deus quis que vivêssemos.

Se procedermos assim, daremos aos que nos rodeiam o testemunho de uma vida simples e normal,
com as limitações e os defeitos próprios da nossa condição humana, mas coerente. E ao perceberem
que somos iguais a eles em todas as coisas, os outros sentir-se-ão impelidos a perguntar-nos: Como se
explica a vossa alegria? Donde vos vêm as forças para vencer o egoísmo e o comodismo? Quem vos
ensina a viver a compreensão, a reta convivência e a entrega, o serviço aos outros?

É então o momento de lhes manifestar o segredo divino da existência cristã, de lhes falar de Deus, de
Cristo, do Espírito Santo, de Maria; o momento de procurar transmitir, através das nossas pobres
palavras, a loucura do amor a Deus que a graça derramou em nossos corações.

149 São João conserva no seu Evangelho uma frase maravilhosa da Virgem, num episódio que já
consideramos antes: o das bodas de Caná. Narra-nos o evangelista que, dirigindo-se aos criados, Maria
lhes disse: Fazei o que Ele vos disser. É disso que se trata: de levar as almas a situar-se diante de Jesus
e a perguntar-lhe: Domine, quid me vis facere?, Senhor que queres que eu faça?

O apostolado cristão - e refiro-me agora, especificamente, ao apostolado de um simples cristão, ao de


um homem ou mulher que vive como outro qualquer entre os seus iguais - é uma grande catequese em
que, através do relacionamento pessoal, de uma amizade leal e autêntica, se desperta nos outros a fome
de Deus e se ajuda cada um a descobrir novos horizontes - com naturalidade, com simplicidade, como
disse, com o exemplo de uma fé bem vivida, com a palavra amável, mas cheia da força da verdade
divina.

Sejamos audazes. Contamos com o auxílio de Maria, Regina Apostolorum. E Nossa Senhora, sem
deixar de se comportar como Mãe, sabe colocar os seus filhos em face de suas precisas
responsabilidades. Aos que dEla se aproximam e contemplam a sua vida, Maria faz sempre o imenso
favor de os levar até à cruz, de os colocar bem diante do exemplo do Filho de Deus. E nesse confronto
em que se decide a vida cristã, Maria intercede para que a nossa conduta culmine com uma
reconciliação do irmão menor - tu e eu - com o Filho primogênito do Pai.

Muitas conversões, muitas decisões de entrega ao serviço de Deus foram precedidas de um encontro
com Maria. Nossa Senhora fomentou os desejos de procura, ativou maternalmente as inquietações da
alma, fez ansiar por uma mudança, por uma vida nova. E, assim, aquele fazei o que Ele vos
disser converteu-se em realidades de amorosa entrega, em vocação cristã que ilumina desde então toda
a nossa vida.

Estes momentos de conversa diante do Senhor, em que meditamos sobre a nossa devoção e carinho por
sua Mãe, podem, pois, reavivar a nossa fé. O mês de Maio está começando. O Senhor quer que não
desperdicemos esta ocasião de crescer no seu Amor através de um trato íntimo com sua Mãe.
Saibamos ter com Ela, em cada dia, esses pormenores filiais - pequenas coisas, atenções delicadas -,
que se irão tornando grandes realidades de santidade pessoal e de apostolado, quer dizer, de empenho
constante por contribuir para a salvação que Cristo veio trazer ao mundo.

Sancta Maria, spes nostra, ancilla Domini, sedes Sapientiae, ora pro nobis! Santa Maria, esperança
nossa, escrava do Senhor, sede da Sabedoria, rogai por nós!
150 Hoje, festa do Corpus Christi, meditamos juntos na profundidade do amor do Senhor, que o levou a
permanecer oculto sob as espécies sacramentais; e é como se ouvíssemos fisicamente aqueles seus
ensinamentos à multidão: Eis que saiu o semeador a semear. E, enquanto semeava, parte da semente
caiu junto do caminho, e vieram as aves do céu e comeram-na. Outra parte caiu em terreno
pedregoso, onde não havia muita terra, e logo brotou, porque estava a superfície; mas saindo o sol,
queimou-se e, como não tinha raiz, secou. Outra parte caiu entre espinhos, e os espinhos cresceram e
sufocaram-na. Outra parte caiu em terra boa e deu fruto: uns grãos cem, outros sessenta, outros
trinta.

A cena é atual. Também agora o Semeador divino lança a sua semente. A obra da salvação continua a
realizar-se, e o Senhor quer servir-se de nós: deseja que nós, os cristãos, abramos ao seu amor todos os
caminhos da terra; convida-nos a propagar a mensagem divina, com a doutrina e com o exemplo, até
os últimos recantos da terra. Pede-nos que, sendo cidadãos tanto da sociedade eclesial como da civil,
ao desempenharmos com fidelidade os nossos deveres, sejamos cada um de nós outro Cristo,
santificando o trabalho profissional e as obrigações do nosso próprio estado.

Se olharmos ao nosso redor, para este mundo que amamos porque é obra saída das mãos de Deus,
observaremos que a parábola se converte em realidade: a palavra de Jesus Cristo é fecunda, suscita em
muitas almas desejos de entrega e de fidelidade. A vida e o comportamento dos que servem a Deus
mudaram a História, e até muitos dos que não conhecem o Senhor se deixam guiar, talvez até sem o
saberem, por ideais nascidos do cristianismo.

Vemos também que parte da semente cai em terra estéril, entre espinhos e abrolhos: há corações que se
fecham à luz da fé. Os ideais de paz, de reconciliação, de fraternidade, são aceitos e proclamados, mas
- não poucas vezes - são desmentidos pelos fatos. Alguns homens empenham-se inutilmente em
aferrolhar a voz de Deus, impedindo a sua difusão pela força bruta ou servindo-se de uma arma menos
ruidosa, mas talvez mais cruel, porque insensibiliza o espírito: a indiferença.

151 Gostaria que, ao considerarmos tudo isto, tomássemos consciência da nossa missão de cristãos e
volvêssemos os olhos para a Sagrada Eucaristia, para Jesus que, presente entre nós, nos constituiu seus
membros: Vos estis corpus Christi et membra de membro , vós sois o corpo de Cristo e membros
unidos a outros membros. Nosso Deus decidiu permanecer no Sacrário para nos alimentar, para nos
fortalecer, para nos divinizar, para dar eficácia ao nosso trabalho e ao nosso esforço. Jesus é
simultaneamente o semeador, a semente e o fruto da semeadura: é o Pão da vida eterna.

Este milagre da Sagrada Eucaristia, que continuamente se renova, encerra todas as características do
modo como Jesus se comporta. Perfeito Deus e perfeito homem, Senhor dos céus e da terra, Ele se
oferece a cada um como sustento, da maneira mais natural e comum. Assim espera o nosso amor,
desde há quase dois mil anos. É muito tempo e não é muito tempo: porque, quando há amor, os dias
voam.

Vem à minha memória uma encantadora poesia galega, uma das cantigas de Afonso X, o Sábio. É a
lenda de um monge que, na sua simplicidade, suplicou a Santa Maria que lhe deixasse contemplar o
céu, ainda que fosse por um instante. A Virgem acolheu seu desejo, e o bom monge foi levado ao
Paraíso. Quando regressou, não reconhecia nenhum dos moradores do mosteiro: a sua oração, que lhe
parecera brevíssima, havia durado três séculos. Três séculos não são nada para um coração que ama.
Assim compreendo eu esses dois mil anos de espera do Senhor na Eucaristia. É a espera de um Deus
que ama os homens, que nos procura, que nos quer tal como somos - limitados, egoístas, inconstantes -
, mas com capacidade para descobrir seu infinito carinho e nos entregarmos a Ele por inteiro.

Por amor e para nos ensinar a amar, veio Jesus à terra e ficou entre nós na Eucaristia. Como tivesse
amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim. Com estas palavras começa São João o
relato do que sucedeu naquela véspera da Páscoa, em que Jesus - refere-nos São Paulo - tomou o pão e,
dando graças, partiu-o e disse: Isto é o meu corpo, que será entregue por vós; fazei isto em memória
de mim. E do mesmo modo, depois da ceia, tomou o cálice, dizendo: Este cálice é o novo testamento
do meu sangue; fazei isto em memória de mim todas as vezes que o beberdes.

152 É o momento simples e solene da instituição do Novo Testamento. Jesus derroga a antiga economia da
Lei e revela-nos que Ele mesmo será o conteúdo da nossa oração e da nossa vida.

Reparemos na alegria que inunda a liturgia de hoje: Seja o louvor pleno, sonoro, alegre. É o júbilo
cristão que canta a chegada de outro tempo: Terminou a antiga Páscoa, inicia-se a nova. O velho é
substituído pelo novo, a verdade faz a sombra desaparecer, a noite é eliminada pela luz.

Milagre de amor. Este é verdadeiramente o pão dos filhos : Jesus, o Primogênito do Pai Eterno, se
oferece a todos nós em alimento. E o mesmo Jesus Cristo, que aqui nos robustece, espera-nos no céu
como comensais, co-herdeiros e sócios , porque aqueles que se nutrem de Cristo morrerão de morte
terrena e temporal, mas depois viverão eternamente, porque Cristo é a vida imperecível.

Para o cristão que se conforta com o maná definitivo da Eucaristia, a felicidade eterna começa já
agora. O que era velho passou; deixemos de lado as coisas caducas, seja tudo novo para nós: os
corações, as palavras e as obras.

Esta é a Boa Nova. É novidade, notícia, porque nos fala de uma nova profundidade de Amor de que
antes não suspeitávamos. É boa, porque nada há de melhor que unir-nos intimamente a Deus, Bem de
todos os bens. É a Boa Nova, porque, de alguma maneira, e de um modo indescritível, nos antecipa a
eternidade.

153 Jesus esconde-se no Santíssimo Sacramento do altar para que nos atrevamos a procurar a sua
companhia, para ser nosso sustento, e para que assim nos tornemos uma só coisa com Ele. Quando
disse: Sem mim, nada podeis fazer , não condenou o cristão à ineficácia nem o obrigou a uma busca
árdua e difícil da sua Pessoa. Ficou entre nós com uma disponibilidade total.

Nos momentos em que nos reunimos diante do altar, enquanto se celebra o Santo Sacrifício da Missa,
quando contemplamos a Sagrada Hóstia exposta no ostensório ou a adoramos escondida no Sacrário,
devemos reavivar a nossa fé, pensar na nova existência que vem até nós, e comover-nos perante o
carinho e a ternura de Deus.

E perseveravam todos na doutrina dos Apóstolos, na comunicação da fração do pão e nas orações. É
assim que as Escrituras nos descrevem a conduta dos primeiros cristãos: congregados pela fé dos
Apóstolos em perfeita unidade, ao participarem da Eucaristia; unânimes na oração. Fé, Pão, Palavra.

Jesus na Eucaristia é penhor firme da sua presença em nossas almas; do seu poder, que sustenta o
mundo; das suas promessas de salvação, que ajudarão a família humana a habitar perpetuamente na
casa do céu, quando chegar o fim dos tempos, em torno de Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito
Santo: Trindade Beatíssima, Deus Único. É toda a nossa fé que se põe em movimento quando cremos
em Jesus, na sua presença real sob os acidentes do pão e do vinho.

154 Não entendo como se pode viver cristãmente sem sentir a necessidade de uma amizade constante com
Jesus na Palavra e no Pão, na oração e na Eucaristia. E entendo perfeitamente que, ao longo dos
séculos, as sucessivas gerações de fiéis tenham ido concretizando essa piedade eucarística: umas
vezes, com práticas multitudinárias, professando publicamente a sua fé; outras, com gestos silenciosos
e calados, na sagrada paz do templo ou na intimidade do coração.

Antes de mais, devemos amar a Santa Missa, que tem que ser o centro do nosso dia. Se vivemos bem a
Missa, como não havemos de continuar depois o resto da jornada com o pensamento no Senhor, com o
desejo irreprimível de não nos afastarmos da sua presença, para trabalhar como Ele trabalhava e amar
como Ele amava? Aprendemos então a agradecer ao Senhor mais outra delicadeza: que não tenha
querido limitar a sua presença ao instante do Sacrifício do Altar, mas tenha decidido permanecer na
Hóstia Santa que se reserva no Tabernáculo, no Sacrário.

Devo dizer que, para mim, o Sacrário foi sempre Betânia, o lugar tranqüilo e aprazível onde está
Cristo, onde lhe podemos contar as nossas preocupações, nossos sofrimentos, nossos anseios e nossas
alegrias, com a mesma simplicidade e naturalidade com que lhe falavam aqueles seus amigos Marta,
Maria e Lázaro. Por isso, ao percorrer as ruas de uma cidade ou de uma aldeia, alegra-me descobrir,
mesmo de longe, a silhueta de uma igreja: é um novo Sacrário, uma nova ocasião de deixar que a alma
se escape para estar em desejo junto do Senhor Sacramentado.

155 Quando o Senhor instituiu a Sagrada Eucaristia, na Última Ceia, era de noite, o que manifestava
- comenta São João Crisóstomo - que os tempos se tinham cumprido. Caía a noite sobre o mundo,
porque os velhos ritos, os antigos sinais da misericórdia infinita de Deus para com a humanidade se
iam realizar plenamente, abrindo caminho a um verdadeiro amanhecer: a nova Páscoa. A Eucaristia foi
instituída durante a noite, preparando de antemão a manhã da Ressurreição.

Também em nossas vidas temos que preparar essa alvorada. Tudo o que é caduco e nocivo, tudo o que
não presta - o desânimo, a desconfiança, a tristeza, a covardia -, tudo isso deve ser jogado fora. A
Sagrada Eucaristia introduz a novidade divina nos filhos de Deus, e devemos corresponder in novitate
sensus , com uma renovação de todos os nossos sentimentos e de toda a nossa conduta. Foi-nos dado
um princípio novo de energia, uma raiz poderosa, enxertada no Senhor. Não podemos voltar ao antigo
fermento, nós que temos o Pão de hoje e de sempre.

156 Nesta festa, em cidades de um extremo ao outro da terra, os cristãos acompanham o Senhor em
procissão. Escondido na Hóstia, Ele percorre as ruas e as praças - como na sua vida terrena - saindo ao
encontro dos que o querem ver, fazendo-se encontradiço dos que não o procuram. Jesus aparece assim,
uma vez mais, no meio dos seus: como reagimos perante essa chamada do Mestre?

As manifestações externas de amor devem nascer do coração e prolongar-se através do testemunho de


uma conduta cristã. Se fomos renovados pela recepção do Corpo do Senhor, devemos manifestá-lo
com obras. Que os nossos pensamentos sejam sinceros: de paz, de entrega, de serviço. Que as nossas
palavras sejam verdadeiras, claras, oportunas; que saibam consolar e ajudar, que saibam sobretudo
levar aos outros a luz de Deus. Que as nossas ações sejam coerentes, eficazes, acertadas: que tenham
esse bonus odor Christi , o bom odor de Cristo, por recordarem o seu modo de se comportar e de viver.

A procissão do Corpo de Deus torna Cristo presente nas aldeias e cidades do mundo. Mas essa
presença, repito, não deve ser coisa de um dia, ruído que se ouve e se esquece. Essa passagem de Jesus
lembra-nos que devemos descobri-lo também nas nossas ocupações habituais. A par da procissão
solene desta quinta-feira, deve avançar a procissão silenciosa e simples da vida comum de cada cristão,
homem entre os homens, mas feliz de ter recebido a fé e a missão divina de se conduzir de tal modo
que renove a mensagem do Senhor sobre a terra. Não nos faltam erros, misérias, pecados. Mas Deus
está com os homens, e devemos colocar-nos à sua disposição para que Ele se sirva de nós e se torne
contínua a sua passagem entre as criaturas.

Peçamos, pois, ao Senhor que nos conceda a graça de ser almas de Eucaristia, que a nossa relação
pessoal com Ele se traduza em alegria, em serenidade, em propósitos de justiça. E assim facilitaremos
aos outros a tarefa de reconhecerem Cristo, contribuiremos para colocá-lo no cume de todas as
atividades humanas. Cumprir-se-á a promessa de Jesus: Eu, quando for exaltado sobre a terra, tudo
atrairei a mim.
157 Jesus, dizia no começo, é o Semeador. E, por intermédio dos cristãos, prossegue a sua semeadura
divina. Cristo aperta o trigo em suas mãos chagadas, embebe-o no seu sangue, limpa-o, purifica-o e
lança-o no sulco que é o mundo. Lança os grãos um a um, para que cada cristão, no seu próprio
ambiente, dê testemunho da fecundidade da Morte e da Ressurreição do Senhor.

Se estamos nas mãos de Cristo, devemos impregnar-nos do seu Sangue redentor, deixar-nos lançar ao
vento, aceitar a nossa vida tal como Deus a quer. E convencer-nos de que, para frutificar, a semente
tem que enterrar-se e morrer. Depois, ergue-se o talo e surge a espiga; e da espiga, o pão, que será
convertido por Deus no Corpo de Cristo. Dessa forma voltamos a reunir-nos em Jesus, que foi o nosso
Semeador. Porque um só é o pão, e, embora sejamos muitos, formamos um só corpo, pois todos
participamos desse único pão.

Não percamos nunca de vista que não há fruto onde antes não houve semeadura: é preciso, portanto,
espalhar generosamente a palavra de Deus, fazer com que os homens conheçam Cristo e, conhecendo-
o, tenham fome dEle. A festa do Corpus Christi - Corpo de Cristo, Pão da Vida - é uma boa ocasião
para meditarmos nessa fome que se observa nos homens: fome de verdade, de justiça, de unidade e de
paz. Perante a fome de paz, devemos repetir com São Paulo: Cristo é a nossa paz, pax nostra. Os
desejos de verdade hão de recordar-nos que Jesus é o caminho, a verdade e a vida. Aos que aspiram à
unidade, devemos colocá-los diante de Cristo, que ora para que sejamos consummati in
unum, consumados na unidade. A fome de justiça deve conduzir-nos à fonte originária da concórdia
entre os homens: ser e sabermo-nos filhos do Pai, irmãos.

Paz, verdade, unidade, justiça. Que difícil parece às vezes a tarefa de transpor as barreiras que
impedem a convivência humana! E, não obstante, nós, cristãos, somos chamados a realizar esse grande
milagre da fraternidade: conseguir, com a graça de Deus, que os homens se tratem
cristãmente, levando uns as cargas dos outros , vivendo o mandamento do Amor, que é o vínculo da
perfeição e o resumo da Lei.

158 Não se nos pode ocultar que resta ainda muito por fazer. Em certa ocasião, contemplando talvez o
suave movimento das espigas já graúdas, disse Jesus aos seus discípulos: A messe é grande, mas os
operários são poucos. Rogai, pois, ao Senhor da messe que mande operários para a sua messe. Como
então, também agora faltam peões que queiram suportar o peso do dia e do calor. E se nós, os que
trabalhamos, não formos fiéis, acontecerá o que descreveu o profeta Joel: Destruída a colheita, a terra
ficou de luto: porque o trigo está seco, o vinho arruinado e o azeite perdido. Os lavradores estão
confusos, os vinhateiros gritam por causa do trigo e da cevada. Não há colheita.

Não há colheita quando não se está disposto a aceitar generosamente um trabalho constante, que pode
tornar-se longo e cansativo: lavrar a terra, semear, cuidar dos campos, fazer a ceifa e a debulha... É na
história, no tempo, que se edifica o Reino de Deus. O Senhor confiou-nos a todos essa tarefa, e
ninguém pode sentir-se dispensado dela. Ao adorarmos e contemplarmos hoje Cristo na Eucaristia,
pensemos que ainda não chegou a hora do descanso, que a jornada continua.

Lê-se no livro dos Provérbios: Aquele que cultiva a sua terra terá pão em abundância. Procuremos
aplicar esta passagem à nossa vida espiritual: quem não lavra o terreno de Deus, quem não é fiel à
missão divina de se entregar ao serviço dos outros, ajudando-os a conhecer Cristo, dificilmente
conseguirá entender o que é o Pão eucarístico. Ninguém aprecia o que não lhe custou esforço. Para
apreciarmos e amarmos a Sagrada Eucaristia, temos que percorrer o caminho de Jesus: ser trigo,
morrer para nós mesmos, ressurgir cheios de vida e dar fruto abundante: cem por um!.

Esse caminho resume-se numa única palavra: amar. Amar é ter o coração grande, sentir as
preocupações dos que estão ao nosso lado, saber perdoar e compreender: sacrificar-se, com Jesus
Cristo, por todas as almas. Se amarmos com o coração de Cristo, aprenderemos a servir, e
defenderemos a verdade claramente e com amor. Para amar desse modo, é preciso que cada um extirpe
da sua própria vida tudo o que estorva a vida de Cristo em nós: o apego à nossa comodidade, a
tentação do egoísmo, a tendência para a exaltação pessoal. Só se reproduzirmos em nós a vida de
Cristo, poderemos transmiti-la aos outros; só se experimentarmos a morte do grão de trigo, poderemos
trabalhar nas entranhas da terra, transformá-la por dentro, torná-la fecunda.

159 Talvez possa surgir uma vez por outra a tentação de pensar que tudo isso é tão bonito quanto um sonho
irrealizável. Falei de renovar a fé e a esperança; permaneçamos firmes, com a certeza absoluta de que
as nossas aspirações se verão cumuladas pelas maravilhas de Deus. Mas para isso é indispensável que
nos ancoremos de verdade na virtude cristã da esperança.

Não nos acostumemos aos milagres que se operam diante dos nossos olhos: ao admirável prodígio de
que o Senhor desça todos os dias às mãos do sacerdote. Jesus quer que estejamos despertos, para que
nos convençamos da grandeza do seu poder, e para que ouçamos novamente a sua promessa: Venite
post me, et faciam vos fieri piscatores hominum , se me seguirdes, farei de vós pescadores de homens;
sereis eficazes e atraireis as almas para Deus. Devemos confiar, pois, nessas palavras do Senhor, entrar
na barca, empunhar os remos, içar as velas e lançar-nos a esse mar do mundo que Cristo nos entrega
por herança. Duc in altum et laxate retia vestra in capturam! - fazei-vos ao largo e lançai as vossas
redes para pescar.

Este zelo apostólico que Cristo infundiu em nossos corações não deve esgotar-se - extinguir-se - por
falsa humildade. Se é verdade que arrastamos misérias pessoais, também é verdade que o Senhor conta
com os nossos erros. Não escapa ao seu olhar misericordioso que nós, os homens, somos criaturas com
limitações, com fraquezas, com imperfeições, inclinadas a pecar. Porém, manda-nos que lutemos, que
reconheçamos os nossos defeitos; não para nos acovardarmos, mas para nos arrependermos e
fomentarmos o desejo de ser melhores.

Além disso, devemos lembrar-nos sempre de que somos apenas instrumentos: Porquanto, que é Apolo,
que é Paulo? Ministros daquele em quem vós crestes, e segundo o dom que Deus conferiu a cada um.
Eu plantei, Apolo regou; mas quem deu o crescimento foi Deus. A doutrina, a mensagem que devemos
propagar, tem uma fecundidade própria e infinita, que não é nossa, mas de Cristo. É o próprio Deus
quem está empenhado em realizar a obra salvadora, em redimir o mundo.

160 Fé, pois, sem permitir que o desalento nos domine, sem nos determos em cálculos meramente
humanos. Para vencer os obstáculos, é necessário começar por trabalhar, mergulhar de corpo e alma na
tarefa, de tal maneira que o próprio esforço nos leve a abrir novos caminhos. Perante qualquer
dificuldade, esta é a panacéia: santidade pessoal, entrega ao Senhor.

A santidade consiste em viver tal como nosso Pai dos céus dispôs que vivêssemos. É difícil? Sim, o
ideal é muito elevado. Mas, por outro lado, é fácil: está ao alcance da mão. Quando uma pessoa
adoece, acontece às vezes que não se consegue encontrar o remédio adequado. No terreno
sobrenatural, não é assim. O remédio está sempre junto de nós: é Cristo Jesus, presente na Sagrada
Eucaristia, que nos dá, além disso, a sua graça através dos outros Sacramentos que instituiu.

Repitamos com a palavra e com as obras: Senhor, confio em Ti, basta-me a tua providência ordinária,
a tua ajuda de cada dia. Não é questão de pedir a Deus grandes milagres. Devemos, antes, pedir-lhe
que aumente a nossa fé, que ilumine a nossa inteligência, que fortaleça a nossa vontade. Jesus
permanece sempre junto de nós, e comporta-se sempre como quem é.

Desde o começo da minha pregação, tenho prevenido contra um falso endeusamento. Não te perturbes
se te conheces tal como és: assim, de barro. Não te preocupes. Porque tu e eu somos filhos de Deus -
eis o endeusamento bom -, escolhidos pela chamada divina desde toda a eternidade: Escolheu-nos o
Pai, por Jesus Cristo, antes da criação do mundo, para que sejamos santos na sua presença. Nós, que
pertencemos especialmente a Deus, que somos seus instrumentos apesar da nossa pobre miséria
pessoal, seremos eficazes se não perdermos o conhecimento da nossa fraqueza. As tentações dão-nos a
dimensão da nossa própria fragilidade.

Se nos sentimos abatidos, por experimentarmos - talvez de um modo particularmente vivo - a nossa
mesquinhez, é o momento de nos abandonarmos por completo, com docilidade, nas mãos de Deus.
Conta-se que, certo dia, um mendigo saiu ao encontro de Alexandre Magno e pediu-lhe uma esmola.
Alexandre deteve-se e ordenou que o fizessem senhor de cinco cidades. O pobre, confuso e aturdido,
exclamou: “Eu não pedia tanto!” E Alexandre respondeu: “Tu pediste como quem és; eu te dou como
quem sou”.

Mesmo nos momentos em que percebemos mais profundamente a nossa limitação, podemos e
devemos olhar para Deus Pai, para Deus Filho e para Deus Espírito Santo, sabendo-nos participantes
da vida divina. Não há nunca motivo suficiente para voltarmos a cara para trás : o Senhor está ao nosso
lado. Temos que ser fiéis, leais, fazer frente às nossas obrigações, encontrando em Jesus o amor e o
estímulo para compreender os erros dos outros e vencer os nossos próprios erros. Assim, todos esses
abatimentos - os teus, os meus, os de todos os homens -, servirão também de suporte para o reino de
Cristo.

Reconheçamos as nossas mazelas, mas confessemos o poder de Deus. O otimismo, a alegria, a


convicção firme de que o Senhor quer servir-se de nós, têm de informar a vida cristã. Se nos sentimos
parte da Igreja Santa, se nos consideramos sustentados pela rocha firme de Pedro e pela ação do
Espírito Santo, decidir-nos-emos a cumprir o pequeno dever de cada instante: a semear cada dia um
pouco. E a colheita fará transbordar os celeiros.

161 Terminemos este tempo de oração. Saboreando na intimidade da alma a infinita bondade divina,
lembremo-nos de que, pelas palavras da Consagração, Cristo se tornará realmente presente na Hóstia,
com seu Corpo, seu Sangue, sua Alma e sua Divindade. Adoremo-lo com reverência e com devoção;
renovemos na sua presença o oferecimento sincero do nosso amor; digamos-lhe sem medo que o
amamos; agradeçamos-lhe esta prova diária de misericórdia, tão cheia de ternura, e fomentemos o
desejo de nos aproximarmos da Comunhão com confiança. Eu me surpreendo diante deste mistério de
Amor: o Senhor procura como trono o meu pobre coração, para não me abandonar se eu não me afasto
dEle.

Reconfortados pela presença de Cristo, alimentados com o seu Corpo, seremos fiéis durante esta vida
terrena; e mais tarde, no céu, junto de Jesus e de sua Mãe, chamar-nos-emos vencedores. Onde está, ó
morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão? Demos, pois, graças a Deus, que nos trouxe
a vitória por Nosso Senhor Jesus Cristo.

162 Deus Pai dignou-se conceder-nos, no coração de seu Filho, infinitos dilectionis thesauros , tesouros
inesgotáveis de amor, de misericórdia, de carinho. Se quisermos descobrir a evidência de que Ele nos
ama - de que não só escuta as nossas orações, como a elas se antecipa -, basta-nos seguir o mesmo
raciocínio de São Paulo: Aquele que nem ao seu próprio Filho perdoou, antes o entregou à morte por
todos nós, como não nos dará com Ele todas as coisas?.

A graça renova o homem por dentro e converte-o, de pecador e rebelde, em seno bom e fiel. E a fonte
de todas as graças é o amor que Deus nos dedica e que nos revelou, não apenas com palavras, mas
também com fatos. Foi o amor divino que levou a segunda Pessoa da Santíssima Trindade - o Verbo, o
Filho de Deus Pai - a assumir a nossa carne, isto é, a nossa condição humana, à exceção do pecado. E o
Verbo, a Palavra de Deus, é Verbum spirans amorem, é a Palavra da qual procede o Amor.

O Amor revela-se-nos através da Encarnação, desse caminhar redentor de Jesus Cristo pela nossa terra,
até ao sacrifício supremo da Cruz. E, na Cruz, manifesta-se por meio de um novo sinal: Um dos
soldados abriu o lado de Jesus com uma lança, e imediatamente saiu sangue e água. Água e sangue
de Jesus, que nos falam de uma entrega realizada até ao último extremo, até ao consummatum est , ao
“tudo está consumado”, por amor.

Na festa de hoje, ao considerarmos uma vez mais os mistérios centrais da nossa fé, maravilhamo-nos
de que as realidades mais profundas - o amor de Deus Pai, que nos entrega seu Filho; o amor do Filho,
que o leva a caminhar serenamente para o Gólgota - se traduzam em gestos muito próximos dos
homens. Deus não se dirige a nós em atitude de poder e de domínio. Aproxima-se de cada um tomando
forma de servo, feito semelhante aos homens. Jesus nunca se mostra distante ou altaneiro. Por vezes,
durante os seus anos de pregação, chegamos a vê-lo desgostoso, por lhe doer a maldade humana. Mas,
se prestamos um pouco de atenção, logo compreendemos que o desgosto e a ira lhe nascem do amor:
são um novo convite para que abandonemos a infidelidade e o pecado. Quero eu porventura a morte
do ímpio - diz o Senhor Deus -, e não antes que se converta do seu mau caminho e viva? Estas
palavras explicam-nos toda a vida de Cristo e fazem-nos compreender por que se apresentou diante de
nós com um Coração de carne, com um Coração como o nosso, que é prova fidedigna de amor e
testemunho constante do mistério inenarrável da caridade divina.

163 Não posso deixar de confidenciar algo que constitui para mim motivo de pena e ao mesmo tempo de
estímulo para agir: é pensar nos homens que ainda não conhecem Cristo, que ainda não vislumbram a
profundidade da bem-aventurança que nos espera nos céus, e que andam pela terra como cegos, em
perseguição de uma alegria cujo verdadeiro nome ignoram, ou se perdem por caminhos que os afastam
da autêntica felicidade. Como se entende bem o que deve ter sentido o Apóstolo Paulo na cidade de
Trôade, naquela noite em que, entre sonhos, teve uma visão! Um homem macedônio postou-se diante
dele, rogando-lhe: passa a Macedônia e ajuda-nos. Terminada a visão, logo procuraram - Paulo e
Timóteo - passar à Macedônia, certos de que Deus os chamava a pregar o Evangelho àquelas gentes.

Não sentimos também que Deus nos chama, que - através de tudo o que sucede à nossa volta - nos
incita a proclamar a boa nova da vinda de Jesus? Mas às vezes nós, cristãos, apoucamos a nossa
vocação, caímos na superficialidade e perdemos o tempo em disputas e rixas. Ou, o que é pior ainda,
não falta quem se escandalize falsamente com o modo como os outros vivem certos aspectos da fé ou
determinadas devoções; e, em lugar de abrirem eles o caminho, esforçando-se por vivê-las da maneira
que consideram reta, se põem a destruir e a criticar. É claro que podem surgir, e de fato surgem,
deficiências na vida dos cristãos. Mas o que importa não somos nós e as nossas misérias: só Ele, só
Jesus, é que importa. É de Cristo que devemos falar, não de nós mesmos.

As reflexões que acabo de fazer vão ao encontro de certos comentários sobre uma suposta crise na
devoção ao Sagrado Coração de Jesus. Não há tal crise. A verdadeira devoção foi e continua a ser nos
nossos dias uma atitude viva, cheia de sentido humano e de sentido sobrenatural. Seus frutos têm sido
e continuam a ser frutos saborosos de conversão, de entrega, de cumprimento da vontade de Deus, de
penetração amorosa nos mistérios da Redenção.

Coisa bem diversa, pelo contrário, são as manifestações do sentimentalismo ineficaz, vazio de
doutrina, empanturrado de pietismo. Eu também não gosto das imagens adocicadas, dessas
representações do Sagrado Coração que não podem inspirar devoção alguma a pessoas com senso
comum e com senso sobrenatural de cristãos. Mas não é prova de boa lógica converter certos abusos
práticos, que acabam desaparecendo por si, num problema doutrinal, teológico.

Se há crise, é no coração dos homens, que - por miopia, por egoísmo, por estreiteza de vistas - não
conseguem vislumbrar o insondável amor de Cristo Senhor Nosso. Desde que se instituiu a festa de
hoje, a liturgia da Santa Igreja soube oferecer o alimento da verdadeira piedade, incluindo entre as
leituras da missa um texto de São Paulo em que nos é proposto todo um programa de vida
contemplativa - conhecimento e amor, oração e vida -, e que começa por esta devoção ao Coração de
Jesus. O próprio Deus, pela boca do Apóstolo, nos convida a avançar por esse caminho: Que Cristo
habite pela fé em vossos corações; e que, arraigados e alicerçados na caridade, possais compreender
com todos os santos qual a amplitude e a grandeza, a altura e a profundidade do mistério; e conhecer
também aquele amor de Cristo que excede todo o conhecimento, para que estejais repletos de toda a
plenitude de Deus.

A plenitude de Deus é-nos revelada e conferida em Cristo, no amor de Cristo, no Coração de Cristo.
Porque é o Coração dAquele em quem habita toda a plenitude da divindade corporalmente. Por isso,
se perdermos de vista este grande desígnio de Deus - a corrente de amor instaurada no mundo pela
Encarnação, pela Redenção e pelo Pentecostes -, não poderemos compreender as delicadezas do
Coração do Senhor.

164 Consideremos toda a riqueza que se encerra nestas palavras: Sagrado Coração de Jesus.

Quando falamos de um coração humano, não nos referimos apenas aos sentimentos; aludimos à pessoa
toda - que quer, que ama, que convive com os outros. E, no modo de os homens se exprimirem, que a
Sagrada Escritura acolheu para nos dar a entender as coisas divinas, o coração é considerado como o
resumo e a fonte, a expressão e o fundo íntimo dos pensamentos, das palavras, das ações. Um homem
vale o que valer o seu coração, poderíamos dizer com palavras da nossa linguagem.

Ao coração pertencem a alegria: Alegre-se meu coração com o teu auxílio ; o arrependimento: Meu
coração é como cera que se derrete dentro do meu peito ; o louvor a Deus: Do meu coração brota
formoso canto ; a decisão necessária para ouvir o Senhor: Meu coração está disposto ; a vigília
amorosa: Eu durmo, mas meu coração vigia. E ainda a dúvida e o temor: Não se perturbe o vosso
coração, crede em Mim.

O coração não se limita a sentir; também sabe e entende. A lei de Deus é recebida no coração e nele
permanece escrita. E a Escritura acrescenta: Da abundância do coração fala a boca. O Senhor lançou
em rosto a uns escribas esta censura: Por que pensais mal em vossos corações?. E, para resumir todos
os pecados que um homem pode cometer, disse: Do coração saem os maus pensamentos, os
homicídios, os adultérios, as fornicações, os furtos, os falsos testemunhos, as blasfêmias.

Quando na Sagrada Escritura se fala do coração, não se alude a um sentimento passageiro, que produz
emoção ou lágrimas. Fala-se do coração para indicar a pessoa que, como o próprio Jesus Cristo nos
manifestou, se orienta toda ela - alma e corpo -, para o que considera seu bem: porque onde está o teu
tesouro, aí está o teu coração.

Por isso, quando falamos do Coração de Jesus, pomos de manifesto a certeza do amor de Deus e a
verdade da sua entrega por nós. Recomendar a devoção a esse Sagrado Coração equivale a recomendar
que nos orientemos integralmente - com tudo o que somos: alma, sentimentos, pensamentos, palavras e
ações, trabalhos e alegrias - para Jesus todo.

Nisto se traduz a verdadeira devoção ao Coração de Jesus: em conhecer a Deus e nos conhecermos a
nós mesmos, e em olhar para Jesus e recorrer a Jesus, que nos anima, nos ensina, nos guia. A única
superficialidade que pode existir nesta devoção é a do homem que, não sendo integralmente humano,
não consegue alcançar a realidade de um Deus feito carne.

165 Jesus na Cruz, com o coração trespassado de Amor pelos homens, é uma resposta eloqüente - as
palavras são desnecessárias - à pergunta sobre o valor das coisas e das pessoas. Valem tanto os
homens, a sua vida e a sua felicidade, que o próprio Filho de Deus se entrega para os redimir, para os
purificar, para os elevar. Quem não amará o seu Coração tão ferido?, perguntava uma alma
contemplativa, ao aperceber-se disso. E continuava perguntando: Quem não retribuirá o amor com
amor? Quem não abraçará um Coração tão puro? Nós, que somos de carne, pagaremos amor com
amor, abraçaremos o nosso Ferido, a quem os ímpios atravessaram as mãos e os pés, o lado e o
Coração. Peçamos que se digne prender nosso coração com o vínculo do seu amor e feri-lo com uma
lança, pois é ainda duro e impenitente.
São pensamentos, afetos, colóquios que as almas enamoradas entretiveram com Jesus desde sempre.
Mas, para entender esta linguagem, para saber de verdade o que é o coração humano, e o Coração de
Cristo, e o amor de Deus, é preciso ter fé e humildade. Foi com fé e humildade que Santo Agostinho
nos deixou estas palavras universalmente famosas: Para Ti nos criaste, Senhor, e o nosso coração está
inquieto enquanto em Ti não descansar.

Quando descura a humildade, o homem passa a querer apropriar-se de Deus, não daquela maneira
divina que o próprio Cristo tornou possível quando disse: Tomai e comei: isto é o meu corpo , mas
tentando reduzir a grandeza divina aos limites humanos. A razão, essa razão fria e cega - que não é a
inteligência nascida da fé, nem sequer a inteligência reta da criatura capaz de saborear e amar as coisas
-, converte-se na sem-razão de quem tudo submete às suas pobres experiências habituais, que
amesquinham a verdade sobrenatural e recobrem o coração humano de uma crosta insensível às
moções do Espírito Santo. Nossa pobre inteligência estaria perdida se não fosse o poder misericordioso
de Deus, que rasga as fronteiras da nossa miséria: Dar-vos-ei um coração novo e revestir-vos-ei de um
novo espírito; tirarei o vosso coração de pedra e dar-vos-ei em seu lugar um coração de carne. E a
alma recupera a luz e enche-se de alegria ante as promessas da Escritura Santa.

Eu tenho pensamentos de paz e não de aflição , declarou Deus por boca do profeta Jeremias. A liturgia
aplica essas palavras a Jesus, porque nEle se manifesta claramente que é assim que Deus nos ama. Não
vem condenar-nos, não vem lançar-nos em rosto a nossa indigência ou a nossa mesquinhez: vem
salvar-nos, perdoar-nos, desculpar-nos, trazer-nos a paz e a alegria. Se reconhecermos esta
maravilhosa relação do Senhor com seus filhos, nossos corações mudarão necessariamente, e veremos
abrir-se diante dos nossos olhos um panorama absolutamente novo, cheio de relevo, de profundidade e
de luz.

166 Mas vejamos bem: Deus não nos declara que, em lugar do coração, nos dará uma vontade de puro
espírito. Não. Dá-nos um coração, e um coração de carne, como o de Cristo. Eu não disponho de um
coração para amar a Deus, e de outro para amar as pessoas da terra. Com o mesmo coração com que
amei os meus pais e estimo os meus amigos, com esse mesmo coração amo a Cristo, e o Pai, e o
Espírito Santo, e Santa Maria. Não me cansarei de repeti-lo: temos que ser muito humanos; porque, de
outro modo, também não poderemos ser divinos.

O amor humano, o amor aqui em baixo na terra, quando é verdadeiro, ajuda-nos a saborear o amor
divino. E assim entrevemos o amor com que chegaremos a gozar de Deus e aquele que nos há de unir
uns aos outros, lá no céu, quando o Senhor for tudo em todas as coisas. E ao começarmos a entender o
que é o amor divino, seremos impelidos a mostrar-nos habitualmente mais compassivos com os outros,
mais generosos, mais dedicados.

Temos que dar o que recebemos, ensinar o que aprendemos. Sem arrogância, com simplicidade, temos
que fazer os outros participarem desse conhecimento do amor de Cristo. Ao realizar o seu trabalho, ao
exercer a profissão na sociedade, cada um pode e deve converter as suas ocupações numa tarefa de
serviço. O trabalho bem acabado - que progride e faz progredir, que tem em conta os avanços da
cultura e da técnica - desempenha uma grande função, que será sempre útil à humanidade inteira,
desde que tenha por motivo a generosidade, não o egoísmo; o bem de todos, não o proveito próprio:
desde que esteja impregnado de sentido cristão da vida.

É no âmbito desse trabalho, na própria trama das relações humanas, que devemos manifestar a
caridade de Cristo e seus resultados concretos de amizade, de compreensão, de afeto humano, de paz.
Assim como Cristo passou fazendo o bem por todos os caminhos da Palestina, assim temos nós que
desenvolver uma grande sementeira de paz pelos caminhos humanos da família, da sociedade civil, das
relações profissionais, da cultura e do descanso. Será a melhor prova de que nos chegou ao coração o
reino de Deus: Nós sabemos que fomos transferidos da morte para a vida - escreve o Apóstolo São
João - porque amamos os nossos irmãos.
Mas ninguém pode viver esse amor se não se formar na escola do Coração de Jesus. Só se olharmos e
contemplarmos o Coração de Cristo, é que conseguiremos que o nosso se livre do ódio e da
indiferença; somente assim saberemos reagir cristãmente perante os sofrimentos alheios e perante a
dor.

Recordemos a cena relatada por São Lucas, quando Cristo andava pelas proximidades da cidade de
Naim. Jesus vê a angústia daquelas pessoas com quem se cruzou ocasionalmente. Podia ter passado ao
largo, ou esperar por um chamado, por um pedido. Mas nem se afasta nem espera. Toma Ele próprio a
iniciativa, movido pela aflição de uma viúva que havia perdido tudo o que lhe restava: o filho.

O evangelista explica que Jesus se compadeceu: talvez se tivesse emocionado externamente, como por
ocasião da morte de Lázaro. Jesus Cristo não era nem é insensível ao sofrimento que nasce do amor,
nem se compraz em separar os filhos de seus pais: passa além da morte para dar a vida, para que
estejam perto os que se amam, embora exija antes e ao mesmo tempo a proeminência do Amor divino,
que deve informar a autêntica existência cristã.

Cristo tem consciência de estar rodeado de uma multidão que ficará atônita perante o milagre e irá
apregoando o acontecido por toda a região. Mas o Senhor não se comporta artificialmente, não
pretende realizar um grande gesto: sente-se simplesmente afetado pelo sofrimento daquela mulher e
não pode deixar de a consolar. Aproximou-se dela e disse-lhe: Não chores. Foi como se lhe dissesse:
não te quero ver em lágrimas, porque eu vim trazer a alegria e a paz à terra. A seguir, vem o milagre,
manifestação do poder de Cristo-Deus. Mas antes tivera lugar a comoção de sua alma, manifestação
evidente da ternura do coração de Cristo-Homem.

167 Se não aprendermos de Jesus, não amaremos nunca. Se pensarmos, como alguns, que conservar o
coração limpo, digno de Deus, significa não misturá-lo, não contaminá-lo com afetos humanos, então
o resultado lógico será tornarmo-nos insensíveis à dor dos outros. Só seremos capazes de
uma caridade oficial, seca e sem alma; não da verdadeira caridade de Jesus Cristo, que é ternura, calor
humano. Com isto não dou pé a falsas teorias, que são tristes desculpas para desviar os corações de
Deus e levá-los a más ocasiões e à perdição.

Na festa de hoje, temos de pedir ao Senhor que nos conceda um coração bom, capaz de se compadecer
das penas das criaturas, capaz de compreender que, para remediar os tormentos que acompanham e
não poucas vezes angustiam as almas neste mundo, o verdadeiro bálsamo é o amor, a caridade: todos
os outros consolos apenas servem para distrair por um momento, e deixar mais tarde um saldo de
amargura e desespero.

Se queremos ajudar os outros, temos que amá-los - insisto - com um amor que seja compreensão e
entrega, afeto e voluntária humildade. Assim entenderemos por que o Senhor decidiu resumir toda a
Lei nesse duplo mandamento que é na realidade um só: o amor a Deus e o amor ao próximo, com todo
o coração.

Talvez pensemos agora que, às vezes, nós os cristãos - não os outros: tu e eu - nos esquecemos das
aplicações mais elementares desse dever. Talvez pensemos em tantas injustiças que não se remedeiam,
em abusos que não se corrigem, em situações de discriminação que se transmitem de geração em
geração sem que se comece a pôr em prática uma solução de fundo.

Não posso nem me compete propor a forma concreta de resolver esses problemas. Mas, como
sacerdote de Cristo, é meu dever recordar o que diz a Escritura Santa. Meditemos na cena do Juízo
descrita pelo próprio Jesus: Afastai-vos de num, malditos, e ide para o fogo eterno, que foi preparado
para o diabo e seus anjos. Porque tive fome e não me destes de comer; tive sede e não me destes de
beber; fui peregrino e não me recebestes; nu, e não me cobristes; enfermo e encarcerado, e não me
visitastes.
Um homem e uma sociedade que não reajam perante as tribulações ou as injustiças, e não se esforcem
por aliviá-las, não são nem homem nem sociedade à medida do amor do Coração de Cristo. Os cristãos
- conservando sempre a mais ampla liberdade à hora de estudar e de aplicar as diversas soluções, e,
portanto, com um lógico pluralismo - devem identificar-se no mesmo empenho em servir a
humanidade. De outro modo, o seu cristianismo não será a Palavra e a Vida de Jesus: será um disfarce,
um logro perante Deus e perante os homens.

168 Mas não quero deixar de propor ainda uma outra consideração: temos que lutar sem esmorecimento
por fazer o bem, precisamente por sabermos como é difícil que nós, os homens, nos decidamos
seriamente a praticar a justiça - e ainda falta muito para que a convivência terrena se inspire no amor, e
não no ódio ou na indiferença. Não ignoramos também que, embora se consiga atingir uma razoável
distribuição dos bens e uma harmoniosa organização da sociedade, jamais desaparecerá a dor da
doença, da incompreensão ou da solidão, da morte das pessoas que amamos, da experiência das nossas
limitações.

Diante desses pesares, o cristão só tem uma resposta autêntica, uma resposta que é definitiva: Cristo na
Cruz, Deus que sofre e que morre, Deus que nos entrega o seu coração, aberto por uma lança, por amor
a todos. Nosso Senhor abomina as injustiças e condena quem as comete. Mas respeita a liberdade de
cada indivíduo e por isso permite que elas existam. Deus Nosso Senhor não causa a dor das criaturas,
mas tolera-a porque - depois do pecado original - ela faz parte da condição humana. Contudo, seu
Coração cheio de Amor pelos homens levou-o a carregar, juntamente com a Cruz, todos esses
tormentos: o nosso sofrimento, a nossa tristeza, a nossa angústia, a nossa fome e sede de justiça.

A doutrina cristã sobre a dor não é um programa de consolos fáceis. É, em primeiro lugar, uma
doutrina de aceitação do sofrimento, que é de fato inseparável de toda a vida humana. Não posso
ocultar - com alegria, porque sempre preguei e procurei viver que onde está a Cruz está Cristo, o Amor
- que a dor tem aparecido freqüentemente em minha vida; e mais de uma vez tive vontade de chorar.
Em outras ocasiões, senti que crescia o meu desgosto perante a injustiça e o mal. E provei o dissabor
de ver que não podia fazer nada, que, apesar dos meus desejos e dos meus esforços, não conseguia
melhorar certas situações iníquas.

Quando falo de dor, não falo apenas de teorias. Nem me limito a registrar experiências alheias quando
confirmo que, se alguma vez sentimos vacilar a alma perante a realidade do sofrimento, o remédio é
olhar para Cristo. A cena do Calvário proclama a todos que as aflições devem ser santificadas, se
vivemos unidos à Cruz.

Porque as nossas tribulações, cristãmente vividas, se convertem em reparação, em desagravo, em


participação no destino e na vida de Jesus, que voluntariamente experimentou, por Amor aos homens,
toda a gama da dor, todo o gênero de tormentos. Nasceu, viveu e morreu pobre; foi atacado, insultado,
difamado, caluniado e condenado injustamente; conheceu a traição e o abandono dos discípulos;
experimentou a solidão e as amarguras do suplício e da morte. Ainda hoje Cristo continua a sofrer nos
seus membros, na humanidade inteira que povoa a terra, e da qual Ele é a Cabeça, o Primogênito e o
Redentor.

A dor tem um lugar nos planos de Deus. Esta é a realidade, ainda que nos custe entendê-la. O próprio
Jesus Cristo, como homem, teve dificuldade em suportá-la: Pai, se é possível, afasta de mim este
cálice; não se faça, porém, a minha vontade, mas a tua. Nesta tensão entre o suplício e a aceitação da
vontade do Pai, Jesus vai para a morte serenamente, perdoando aos que o crucificam.

Mas precisamente essa aceitação sobrenatural da dor representa, ao mesmo tempo, a maior conquista.
Morrendo na Cruz, Jesus venceu a morte: da morte, Deus tira a vida. A atitude de um filho de Deus
não é a de quem se resigna à sua trágica desventura; é antes a satisfação de quem saboreia
antecipadamente a vitória. Em nome desse amor vitorioso de Cristo, os cristãos devem lançar-se por
todos os caminhos da terra, para serem semeadores de paz e de alegria, com a sua palavra e com as
suas obras. Temos de lutar - é uma luta de paz - contra o mal, contra a injustiça, contra o pecado, para
proclamar assim que a atual condição humana não é a definitiva, que o amor de Deus, manifestado no
Coração de Cristo, alcançará o glorioso triunfo espiritual dos homens.

169 Evocávamos antes os acontecimentos de Naim. Poderíamos citar agora muitos outros, porque os
Evangelhos estão cheios de cenas semelhantes. Esses relatos sempre comoveram e continuarão a
comover os corações das criaturas; porque não encerram apenas o gesto sincero de um homem que se
compadece dos seus semelhantes, mas são essencialmente a revelação da imensa caridade do Senhor.
O Coração de Jesus é o Coração de Deus encarnado, do Emmanuel - Deus conosco.

A Igreja, unida a Cristo, nasce de um coração ferido. É desse Coração, aberto de par em par, que nos é
transmitida a vida. Embora de passagem, como não recordar aqui os Sacramentos, através dos quais
Deus opera em nós e nos faz participar da força redentora de Cristo? Como não recordar com
particular agradecimento o Santíssimo Sacramento da Eucaristia, o Santo Sacrifício do Calvário e a
sua constante renovação incruenta na nossa Missa? Jesus entrega-se a nós em alimento; Jesus Cristo
vem até nós. E por isso tudo mudou, e no nosso ser se manifestam forças - a ajuda do Espírito Santo -
que se apossam da nossa alma, que informam as nossas ações, o nosso modo de pensar e de sentir. O
Coração de Cristo é paz para o cristão.

O fundamento da entrega que o Senhor nos pede não se encontra apenas nos nossos desejos ou nas
nossas forças, tantas vezes acanhados e impotentes; apóia-se primeiramente nas graças que nos
alcançou o Amor do Coração de Deus feito Homem. Por isso podemos e devemos perseverar na nossa
vida interior de filhos de Nosso Pai que está nos céus, sem ceder ao desânimo ou ao desalento. Gosto
de mostrar como o cristão, na sua existência habitual e corrente, nos pormenores mais simples, nas
circunstâncias normais da sua jornada de trabalho, põe em prática a fé, a esperança e a caridade,
porque é nisso que reside a essência da conduta de uma alma que conta com o auxílio divino e que, no
exercício dessas virtudes teologais, encontra a alegria, a força e a serenidade.

Estes são os frutos da paz de Cristo, da paz que nos traz o seu Coração Sacratíssimo. Porque - digamo-
lo uma vez mais - o amor de Jesus pelos homens é um dos aspectos insondáveis do mistério divino, do
amor do Filho pelo Pai e pelo Espírito Santo. O Espírito Santo, laço de amor entre o Pai e o Filho,
encontra no Verbo um Coração humano.

Não é possível falar destas realidades centrais da nossa fé sem percebermos as limitações da
inteligência humana e as grandezas da Revelação. Mas, embora não possamos abarcar essas verdades,
embora a nossa razão se pasme diante delas, nós as cremos humilde e firmemente: sabemos, apoiados
no testemunho de Cristo, que são assim; que o Amor, no seio da Trindade, se derrama sobre todos os
homens por meio do Amor do Coração de Jesus.

170 Viver no Coração de Jesus, unir-se a Ele estreitamente é, portanto, converter-se em morada de
Deus. Aquele que me ama será amado por meu Pai , anunciou-nos o Senhor. E Cristo e o Pai, no
Espírito Santo, vêm à alma e fazem nela a sua morada.

Quando compreendemos estes fundamentos - mesmo em parte -, a nossa maneira de ser transforma-se.
Temos fome de Deus e fazemos nossas as palavras do Salmo: Meu Deus, eu Te busco solícito; sedenta
de Ti está minha alma; minha carne Te deseja como terra árida, sem água. E Jesus, que fomentou as
nossas ânsias, sai ao nosso encontro e diz-nos: Se alguém tem sede, venha a Mim e beba. Oferece-nos
o seu Coração, para que encontremos nele o nosso descanso e a nossa fortaleza. Se aceitarmos o seu
chamado, perceberemos como as suas palavras são verdadeiras, e aumentará a nossa fome e a nossa
sede, até desejarmos que Deus estabeleça em nosso coração o lugar do seu repouso e não afaste de nós
o seu calor e a sua luz.

Ignem veni mittere in terram, et quid volo nisi ut accendatur? Vim trazer fogo à terra, e que quero
senão que arda? Agora que nos abeiramos um pouco do fogo do Amor de Deus, deixemos que seu
impulso mova as nossas vidas, sonhemos com a possibilidade de levar o fogo divino de um extremo ao
outro do mundo, de o dar a conhecer aos que nos rodeiam, para que também eles conheçam a paz de
Cristo e, com ela, encontrem a felicidade. Um cristão que viva unido ao Coração de Jesus não pode ter
outras metas: a paz na sociedade, a paz na Igreja, a paz na sua própria alma, a paz de Deus, que se
consumará quando vier a nós o seu reino.

Maria, Regina Pacis, Rainha da Paz, porque tiveste fé e acreditaste que se cumpriria o anúncio do
Anjo, ajuda-nos a crescer na fé, a ser firmes na esperança, a aprofundar no Amor. Porque isso é o que
hoje quer de nós o teu Filho, ao mostrar-nos o seu Sacratíssimo Coração.

171 Assumpta est Maria in coelum, gaudent angeli. Maria foi levada por Deus aos céus, em corpo e alma.
Há alegria entre os anjos e entre os homens. Por quê este gozo íntimo que hoje experimentamos, com o
coração parecendo querer saltar do peito, com a alma inundada de paz? Porque celebramos a
glorificação da nossa Mãe e é natural que nós, seus filhos, sintamos um júbilo especial ao vermos
como é honrada pela Trindade Beatíssima.

Cristo, seu santíssimo Filho, nosso irmão, no-la deu por Mãe no Calvário, quando disse a São João: Eis
aí a tua Mãe. E nós a recebemos, com o discípulo amado, naquele instante de imenso desconsolo.
Santa Maria acolheu-nos na dor, quando se cumpriu a antiga profecia: E uma espada trespassará a tua
alma. Todos somos seus filhos; Ela é Mãe da humanidade inteira. E agora a humanidade comemora a
sua inefável Assunção: Maria sobe aos céus, Filha de Deus Pai, Mãe de Deus Filho, Esposa de Deus
Espírito Santo. Mais do que Ela, só Deus.

É um mistério de amor. A razão humana não consegue compreendê-lo. Só a fé pode esclarecer como é
que uma criatura foi elevada a uma dignidade tão grande, até se converter no centro amoroso para o
qual convergem as complacências da Trindade. Sabemos que é um segredo divino. Mas, tratando-se da
nossa Mãe, sentimo-nos capazes de entendê-lo mais do que outras verdades de fé, se é possível falar
assim.

Como nos teríamos comportado se tivéssemos podido escolher a nossa mãe? Penso que teríamos
escolhido a que temos, cumulando-a de todas as graças. Foi o que Cristo fez, pois, sendo Onipotente,
Sapientíssimo e o próprio Amor , seu poder realizou todo o seu querer.

Observemos como os cristãos descobriram há tanto tempo esse raciocínio: Convinha - escreve São
João Damasceno - que aquela que no parto havia conservado íntegra a sua virgindade, conservasse
sem nenhuma corrupção o seu corpo depois da morte. Convinha que aquela que tinha trazido em seu
seio o Criador feito criança, habitasse na morada divina. Convinha que a Esposa de Deus entrasse na
casa celestial. Convinha que aquela que tinha visto seu Filho na Cruz, recebendo assim em seu
coração a dor de que havia estado livre no parto, o contemplasse sentado a direita do Pai. Convinha
que a Mãe de Deus possuísse o que pertence ao seu Filho, e que fosse honrada como Mãe e Escrava
de Deus por todas as criaturas.

Os teólogos têm formulado com freqüência um argumento semelhante, destinado a captar de algum
modo o sentido desse cúmulo de graças de que Maria se encontra revestida e que culmina com a sua
Assunção aos céus. Dizem: Convinha; Deus podia fazê-lo; portanto, fê-lo. É a explicação mais clara
da razão pela qual o Senhor concedeu à sua Mãe todos os privilégios, desde o primeiro instante da sua
conceição imaculada. Ficou livre do poder de Satanás; é formosa - tota pulchra! -, limpa, pura na alma
e no corpo.

172 Mas prestemos atenção: se, por um lado, Deus quis exaltar sua Mãe, por outro, não há dúvida de que,
durante a sua vida terrena, Maria não foi poupada nem à experiência da dor, nem ao cansaço do
trabalho, nem ao claro-escuro da fé. Aquela mulher do povo que um dia prorrompeu em louvores a
Jesus, exclamando: Bem-aventurado o ventre que te trouxe e os peitos que te amamentaram, o Senhor
responde: Antes bem-aventurados os que escutam a palavra de Deus e a põem em prática. Era o
elogio de sua Mãe, do seu fiat , do faça-se sincero, rendido, posto em prática até às últimas
conseqüências, e que não se manifestou em ações aparatosas, mas no sacrifício escondido e silencioso
de cada dia.

Ao meditarmos nestas verdades, compreendemos um pouco mais a lógica de Deus, percebemos que o
valor sobrenatural da nossa vida não depende de que se tornem realidade as grandes façanhas que às
vezes forjamos com a imaginação, mas da aceitação fiel da vontade divina, de uma disposição
generosa em face dos pequenos sacrifícios diários.

Para sermos divinos, para nos endeusarmos, temos que começar por ser muito humanos, vivendo de
frente para Deus a nossa condição de homens comuns, santificando esta aparente pequenez. Assim
viveu Maria. A cheia de graça, aquela que é objeto das complacências de Deus, aquela que está acima
dos anjos e dos santos, teve uma existência normal. Maria é uma criatura como nós, com um coração
como o nosso, capaz de gozos e alegrias, de sofrimentos e lágrimas. Antes de Gabriel lhe ter
comunicado o querer de Deus, Nossa Senhora ignorava que havia sido escolhida desde toda a
eternidade para ser a Mãe do Messias. Considera-se cheia de baixeza. Por isso reconhece logo, com
profunda humildade, que nEla fez grandes coisas Aquele que é Todo-Poderoso.

A pureza, a humildade e a generosidade de Maria contrastam com a nossa miséria, com o nosso
egoísmo. É natural que, depois de nos apercebermos disso, nos sintamos impelidos a imitá-la; somos
criaturas de Deus, como Ela, e basta que nos esforcemos por ser fiéis, para que também em nós o
Senhor faça grandes coisas. Não será obstáculo a nossa pouca valia, porque Deus escolhe o que vale
pouco para que assim brilhe melhor a potência do seu amor.

173 Nossa Mãe é modelo de correspondência à graça, e, ao contemplarmos a sua vida, o Senhor nos dará
luz para que saibamos divinizar a nossa existência de todos os dias. Ao longo do ano, quando
celebramos as festas marianas, e em bastantes momentos de cada dia, nós, cristãos, pensamos muitas
vezes na Virgem. Se aproveitarmos esses instantes, imaginando como a nossa Mãe se comportaria nas
tarefas que temos que realizar, iremos aprendendo pouco a pouco, e acabaremos por parecer-nos com
Ela, como os filhos se parecem com sua Mãe.

Imitar, em primeiro lugar, o seu amor. A caridade não se limita aos sentimentos: deve estar presente
nas palavras, mas sobretudo nas obras. A Virgem não se limitou a dizer fiat, mas cumpriu em todos os
momentos essa decisão firme e irrevogável. Assim também nós: quando o amor de Deus nos aguilhoar
e soubermos o que Ele quer, deveremos comprometer-nos a ser fiéis, leais, mas a sê-lo efetivamente.
Porque nem todo o que diz Senhor, Senhor, entrará no reino dos céus; mas o que faz a vontade do meu
Pai celestial, esse entrará no reino dos céus.

Temos que imitar a sua natural e sobrenatural elegância. Maria é uma criatura privilegiada na história
da salvação: nEla o Verbo se fez carne e habitou entre nós. Foi testemunha delicada, que passa
despercebida; não foi amiga de receber louvores, porque não ambicionou a sua própria glória. Maria
assiste aos mistérios da infância de seu Filho, mistérios, se assim se pode dizer, cheios de normalidade;
mas à hora dos grandes milagres e das aclamações populares, desaparece. Em Jerusalém, quando
Cristo - montado sobre um jumentinho - é vitoriado como Rei, Maria não se encontra presente. Mas
reaparece junto da Cruz, quando todos fogem. Este modo de se comportar tem o sabor - não procurado
- da grandeza, da profundidade, da santidade da sua alma.

Procuremos aprender também seu exemplo de obediência a Deus, nessa delicada combinação de
escravidão e fidalguia. Em Maria não há nada que lembre a atitude das virgens néscias, que obedecem,
mas estouvadamente. Nossa Senhora ouve com atenção o que Deus quer, pondera o que não entende,
pergunta o que não sabe. Depois, entrega-se por completo ao cumprimento da vontade divina: Eis aqui
a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra. Vemos a maravilha? Santa Maria, mestra
de toda a nossa conduta, ensina-nos agora que a obediência a Deus não é servilismo, não subjuga a
consciência; pelo contrário, move-nos interiormente a descobrir a liberdade dos filhos de Deus.

174 O Senhor ter-nos-á feito descobrir muitos outros traços da correspondência fiel da Santíssima Virgem,
que de per si nos convidam a tomá-los como modelo: sua pureza, sua humildade, sua firmeza de
caráter, sua generosidade, sua fidelidade... Mas eu gostaria de falar de um aspecto que abrange todos
os outros, porque é o clima do progresso espiritual: a vida de oração.

Para aproveitarmos a graça que nossa Mãe nos traz no dia de hoje, e para secundarmos em qualquer
momento as inspirações do Espírito Santo, pastor de nossas almas, devemos estar comprometidos
seriamente numa atividade de íntima relação com Deus. Não nos podemos esconder no anonimato: se
não for um encontro pessoal com Deus, a vida interior não existe. A superficialidade não é cristã.
Admitir a rotina na conduta ascética equivale a assinar o atestado de óbito da alma contemplativa.
Deus nos procura um por um; e temos que responder-lhe um por um: Aqui estou, Senhor, porque me
chamaste.

Oração - todos o sabemos - é falar com Deus. Mas podemos perguntar-nos: falar, de quê? De que há de
ser, senão das coisas de Deus e das que preenchem os nossos dias? Do nascimento de Jesus, do seu
caminhar por este mundo, do seu ocultamento e da sua pregação, dos seus milagres, da sua Paixão
Redentora, da sua Cruz e da sua Ressurreição. E na presença do Deus Uno e Trino, tendo por
Medianeira Santa Maria e por advogado São José, Nosso Pai e Senhor - a quem tanto amo e venero -,
falaremos do nosso trabalho de todos os dias, da família, das relações de amizade, dos grandes projetos
e das pequenas mesquinharias.

O tema da minha oração é o tema da minha vida. Eu faço assim. E à vista desta situação em que me
encontro, surge naturalmente o propósito, determinado e firme, de mudar, de melhorar, de ser mais
dócil ao amor de Deus. Um propósito sincero, concreto. E não pode faltar o pedido urgente, mas
confiado, de que o Espírito Santo não nos abandone, porque tu és, Senhor, a minha fortaleza.

Somos cristãos comuns, trabalhamos em campos muito diferentes; toda a nossa atividade corre pelos
trilhos da normalidade; tudo se desenvolve a um ritmo previsível. Os dias parecem iguais, até
monótonos... Pois bem: esse programa, aparentemente tão comum, tem um valor divino: é algo que
interessa a Deus, porque Cristo quer encarnar-se nos nossos afazeres, animando por dentro as ações
mais humildes.

Este pensamento é uma realidade sobrenatural, límpida, inequívoca; não é uma consideração destinada
a consolar, a confortar aqueles que, como nós, não conseguirão gravar seus nomes no livro de ouro da
história. Cristo está interessado nesse trabalho que temos que realizar - uma e mil vezes - no escritório,
na fábrica, na oficina, na escola, no campo, no exercício da profissão manual ou intelectual; como está
interessado no sacrifício escondido que representa não derramarmos sobre os outros o fel do nosso
mau humor.

Repassemos na oração estas considerações, sirvamo-nos delas precisamente para dizer a Jesus que o
adoramos, e estaremos sendo contemplativos no meio do mundo, no meio do ruído da rua: em todos os
lugares. Esta é a primeira lição, na escola da vida de relação com Jesus Cristo. Dessa escola, Maria é a
melhor mestra, porque a Virgem manteve sempre essa atitude de fé, de visão sobrenatural, perante
tudo o que acontecia à sua volta: Conservava todas essas coisas, ponderando-as em seu coração.

Supliquemos hoje a Santa Maria que nos torne contemplativos, que nos ensine a compreender as
chamadas contínuas que o Senhor nos dirige, batendo à porta do nosso coração. Peçamos-lhe: Mãe
nossa, tu, que trouxeste à terra Jesus, por quem nos é revelado o amor do nosso Pai-Deus, ajuda-nos a
reconhecê-lo no meio das ocupações de cada dia; remove a nossa inteligência e a nossa vontade, para
que saibamos escutar a voz de Deus, o impulso da graça.
175 Mas não pensemos só em nós mesmos: temos que dilatar o coração até abarcar a humanidade inteira.
Pensemos, antes de mais nada, nos que nos rodeiam - parentes, amigos, colegas -, e vejamos como
podemos levá-los a sentir mais profundamente a amizade com Nosso Senhor. Se se trata de pessoas
retas e honradas, capazes de estar habitualmente mais perto de Deus, devemos encomendá-las
concretamente a Nossa Senhora. E pedir também por tantas almas que não conhecemos, porque todos
estamos navegando na mesma barca.

Sejamos leais, generosos. Fazemos parte de um só corpo, do Corpo Místico de Cristo, da Igreja Santa,
a que estão chamados muitos que procuram nobremente a verdade. Por isso temos obrigação estrita de
manifestar aos outros a qualidade, a profundidade do amor de Cristo. O cristão não pode ser egoísta; se
o fosse, atraiçoaria a sua própria vocação. Não é de Cristo a atitude dos que se limitam a guardar a sua
alma em paz - falsa paz é essa -, despreocupando-se do bem dos outros. Se aceitamos o significado
autêntico da vida humana - e ele nos foi revelado pela fé -, não podemos continuar tranqüilos,
persuadidos de que pessoalmente nos portamos bem, se não conseguimos de forma prática e concreta
que os outros se aproximem de Deus.

Há um obstáculo real na tarefa de apostolado: o falso respeito, o temor de tocar temas espirituais, a
suspeita de que uma conversa assim não será bem recebida em determinados ambientes, porque se
podem ferir suscetibilidades. Quantas vezes esse raciocínio é a máscara do egoísmo! Não se trata de
ferir ninguém; muito pelo contrário, trata-se de servir. Embora sejamos pessoalmente indignos, a graça
de Deus converte-nos em instrumentos de utilidade para os outros, porque lhes comunicamos a boa
nova de que Deus quer que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade.

E será lícito intrometer-se desse modo na vida dos outros? É necessário. Cristo interveio na nossa vida
sem nos pedir licença. Fez o mesmo com os primeiros discípulos: Passando pelo mar da Galiléia, viu
Simão e seu irmão André, que lançavam as redes ao mar, pois eram pescadores. E disse-lhes Jesus:
segui-me e eu vos farei pescadores de homens. Cada um de nós conserva a liberdade, a falsa liberdade
de responder não a Deus, como aquele jovem carregado de riquezas de que nos fala São Lucas. Mas o
Senhor e nós - em obediência às suas palavras: ide e ensinai - temos o direito e o dever de falar de
Deus, deste grande tema humano, porque o desejo de Deus é a coisa mais profunda que brota do
coração do homem.

Santa Maria, Regina Apostolorum, rainha de todos os que suspiram por dar a conhecer o amor de teu
Filho: tu, que entendes tão bem as nossas misérias, pede perdão por nossa vida; pelo que em nós podia
ter sido fogo e foi um punhado de cinzas; pela luz que deixou de iluminar; pelo sal que se tornou
insípido. Mãe de Deus, Onipotência Suplicante: traze-nos, junto com o perdão, a força para vivermos
verdadeiramente de fé e de amor, para podermos levar aos outros a fé de Cristo.

176 O melhor caminho para não perdermos nunca a audácia apostólica, a fome eficaz de servir a todos os
homens, não é outro senão a plenitude da vida de fé, de esperança e de amor; numa palavra, a
santidade. Não encontro outra receita além dessa: santidade pessoal.

Hoje, em união com a Igreja, celebramos o triunfo da Mãe, Filha e Esposa de Deus. E assim como nos
sentíamos felizes no tempo da Páscoa da Ressurreição, três dias após a morte do Senhor, agora nos
sentimos alegres porque Maria, depois de acompanhar Jesus de Belém até à Cruz, está junto dEle em
corpo e alma, gozando da glória por toda a eternidade. Esta é a misteriosa economia divina: Nossa
Senhora, que teve a graça de participar plenamente na obra da nossa salvação, tinha que seguir de
perto os passos do seu Filho: a pobreza de Belém, a vida oculta de trabalho em Nazaré, a manifestação
da divindade em Caná da Galiléia, as afrontas da Paixão e o Sacrifício divino da Cruz, a bem-
aventurança eterna do Paraíso.

Tudo isso nos diz respeito diretamente, porque esse itinerário sobrenatural deve ser também o nosso
caminho. Maria mostra-nos que essa senda é acessível, que é segura. Ela nos precedeu no caminho da
imitação de Cristo, e a glorificação da Nossa Mãe é a firme esperança da nossa própria salvação; por
isso a chamamos spes nostra e causa nostrae laetitiae, nossa esperança e causa da nossa felicidade.

Não podemos perder nunca a esperança de chegar a ser santos, de aceitar os convites de Deus, de
perseverar até o fim. Deus, que começou em nós a obra da santificação, levá-la-á a cabo. Porque se o
Senhor é por nós, quem será contra nós? Ele, que não poupou o seu próprio Filho, mas o entregou à
morte por todos nós, como deixará de nos dar com Ele qualquer outra coisa?

Nesta festa, tudo convida à alegria. A firme esperança na nossa santificação pessoal é um dom de
Deus; mas o homem não pode permanecer passivo. Recordemos as palavras de Cristo: Se alguém
quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz cada dia e siga-me. Estamos vendo? A
cruz, cada dia. Nulla dies sine cruce!, nenhum dia sem cruz: nenhum dia em que não carreguemos a
cruz do Senhor, em que não aceitemos o seu jugo. Por isso não quis deixar de recordar aqui que a
alegria da ressurreição é conseqüência da dor da Cruz.

Mas nada havemos de temer, porque o próprio Senhor nos disse: Vinde a mim, vós que estais
sobrecarregados com trabalhos, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim,
que sou manso e humilde de coração, e encontrareis repouso para vossas almas; porque o meu jugo é
suave e o meu fardo leve. Vinde - comenta São João Crisóstomo -, não para prestar contas, mas para
serdes libertados dos vossos pecados; vinde porque eu não tenho necessidade da glória que podeis
proporcionar-me; tenho necessidade da vossa salvação... Não temais ao ouvir falar de jugo, porque é
suave; não temais se falo de carga, porque é ligeira.

O caminho da nossa santificação pessoal passa diariamente pela Cruz; e não é um caminho infeliz,
porque o próprio Cristo vem em nossa ajuda, e com Ele não há lugar para a tristeza. In laetitia, nulla
dies sine cruce!, gosto de repetir; com a alma trespassada de alegria, nenhum dia sem Cruz.

177 Voltemos ao tema que a Igreja nos propõe: Maria subiu aos céus em corpo e alma, os anjos se
alvoroçam! Penso também no júbilo de São José, seu castíssimo Esposo, que a esperava no Paraíso.
Mas tornemos à terra. A fé nos confirma que aqui em baixo, na vida presente, estamos em tempo de
peregrinação, de viagem; não faltarão os sacrifícios, a dor, as privações. Não obstante, a alegria há de
ser sempre o contraponto do caminho.

Servi o Senhor com alegria : não há outro modo de servi-lo. Deus ama a quem dá com alegria , a
quem se dá por inteiro, num sacrifício prazeroso, porque não há motivo algum que justifique o
desconsolo.

Talvez achemos excessivo este otimismo, porque todos os homens conhecem as suas insuficiências e
os seus fracassos, experimentam o sofrimento, o cansaço, a ingratidão, talvez o ódio. Nós, os cristãos,
se somos iguais aos outros, como podemos estar livres destas constantes da condição humana?

Seria ingênuo negar a reiterada presença da dor e do desanimo, da tristeza e da solidão, durante o
nosso peregrinar por esta terra. Pela fé, aprendemos com segurança que tudo isso não é produto do
acaso e que o destino da criatura não é caminhar para a aniquilação dos seus desejos de felicidade. A
fé nos ensina que tudo tem um sentido divino, porque se insere no âmago do chamado que nos leva à
casa do Pai. A compreensão sobrenatural da existência terrena do cristão não simplifica a
complexidade humana; mas assevera ao homem que essa complexidade pode estar atravessada pelo
nervo do amor de Deus, pelo cabo, forte e indestrutível, que une a vida na terra à vida definitiva na
Pátria.

A festa da Assunção de Nossa Senhora propõe-nos a realidade desta feliz esperança. Somos ainda
peregrinos, mas a nossa Mãe precedeu-nos e indica-nos já o termo do caminho: repete-nos que é
possível lá chegar, e que lá chegaremos, se formos fiéis. Pois a Santíssima Virgem não é apenas nosso
exemplo: é auxílio dos cristãos. E ante a nossa súplica - Monstra te esse Matrem , mostra que és Mãe -,
não sabe nem quer negar-se a cuidar de seus filhos com solicitude maternal.

178 A alegria é um bem cristão. Só desaparece com a ofensa a Deus, porque o pecado é fruto do egoísmo e
o egoísmo é causa de tristeza. Mesmo então, essa alegria permanece no rescaldo da alma, pois
sabemos que Deus e sua Mãe nunca se esquecem dos homens. Se nos arrependemos, se brota do nosso
coração um ato de dor, se nos purificamos no santo sacramento da penitência, Deus vem ao nosso
encontro e perdoa-nos. E já não há tristeza: é muito justo regozijar-se, porque teu irmão tinha morrido
e ressuscitou; estava perdido e foi encontrado.

Estas palavras são o final maravilhoso da parábola do filho pródigo, que nunca nos cansaremos de
meditar: Eis que o Pai vem ao teu encontro; inclinar-se-á sobre os teus ombros, dar-te-á um beijo,
penhor de amor e de ternura; fará com que te entreguem um vestido, um anel, o calçado. Tu ainda
temes uma repreensão, e Ele te devolve a tua dignidade; temes um castigo, e te dá um beijo; tens medo
de uma palavra irada, e prepara um banquete para ti.

O amor de Deus é insondável. Se procede assim com quem o ofendeu, o que não fará para honrar sua
Mãe imaculada, Virgo Fidelis, Virgem Santíssima, sempre fiel?

Se o amor de Deus se mostra tão grande, quando a capacidade do coração humano - com freqüência
traidor - é tão pequena, como não se manifestará no Coração de Maria, que nunca opôs o menor
obstáculo à Vontade divina?

Observemos como a liturgia da festa se faz eco da impossibilidade de entender a misericórdia infinita
do Senhor com raciocínios humanos: mais do que explicar, canta; fere a imaginação, para que cada um
se entusiasme no seu louvor, pois todos ficaremos aquém da realidade: Apareceu no céu um grande
prodígio: uma mulher, vestida de sol, e a lua debaixo dos pés, e em sua cabeça uma coroa de doze
estrelas. O rei se enamorou da tua beleza. Como resplandece a filha do rei, em seus vestidos tecidos
de ouro!

A liturgia termina com umas palavras de Maria em que a maior humildade se conjuga com a maior
glória: Todas as gerações me chamarão bem-aventurada, porque fez em mim grandes coisas Aquele
que é Todo-Poderoso.

Cor Mariae Dulcissimum, iter para tutum, Coração Dulcíssimo de Maria, dá força e segurança ao
nosso caminho na terra: sê tu mesma o nosso caminho, porque tu conheces as vias e os atalhos certos
que, por meio do teu amor, levam ao amor de Jesus Cristo.

179 Termina o ano litúrgico, e no Santo Sacrifício do Altar renovamos ao Pai o oferecimento da Vítima,
Cristo, Rei de santidade e de graça, Rei de justiça, de amor e de paz, como dentro de pouco leremos no
Prefácio. Todos sentimos na alma uma imensa alegria ao considerarmos a santa Humanidade de Nosso
Senhor: um rei com coração de carne, como o nosso; que é o autor do universo e de cada uma das
criaturas, e que não se impõe com atitudes de domínio, mas mendiga um pouco de amor, mostrando-
nos em silêncio as suas mãos chagadas.

Como é possível, então, que tantos o ignorem? Por que se ouve ainda esse protesto cruel: Nolumus
hunc regnare super nos , não queremos que Ele reine sobre nós? Há na terra milhões de homens que se
defrontam assim com Jesus Cristo, ou melhor, com a sombra de Jesus Cristo, porque, na realidade, o
verdadeiro Cristo, não o conhecem, nem viram a beleza do seu rosto, nem perceberam a maravilha da
sua doutrina.

Diante desse triste espetáculo, sinto-me inclinado a desagravar o Senhor. Ao escutar esse clamor que
não cessa, e que se compõe não tanto de palavras como de obras pouco nobres, experimento a
necessidade de gritar bem alto: Oportet illum regnare! , convém que Ele reine.

Muitos não suportam que Cristo reine. Opõem-se a Ele de mil formas: nas estruturas gerais do mundo
e da convivência humana; nos costumes, na ciência, na arte. Até mesmo na própria vida da Igreja!
Eu não falo - escreve Santo Agostinho - dos malvados que blasfemam contra Cristo. São raros, com
efeito, os que blasfemam com a língua, mas são muitos os que blasfemam com a conduta.

Alguns incomodam-se até mesmo com a expressão Cristo-Rei: por uma superficial questão de
palavras, como se o reinado de Cristo pudesse confundir-se com fórmulas políticas; ou porque a
confissão da realeza do Senhor os levaria a admitir uma lei. E não toleram a lei, nem mesmo a do
entranhável preceito da caridade, porque não querem aproximar-se do amor de Deus: são os que
ambicionam servir apenas o seu próprio egoísmo.

O Senhor impeliu-me a repetir, desde há muito tempo, um grito silencioso: Serviam!, servirei. Que Ele
nos aumente as ânsias de entrega, de fidelidade à sua chamada divina - com naturalidade, sem
ostentação, sem ruído -, no meio da rua. Agradeçamos-Lhe do fundo do coração. Elevemos uma
oração de súditos, de filhos!, e a nossa língua e o nosso paladar experimentarão o gosto do leite e do
mel, e nos saberá a favo cuidar do reino de Deus, que é um reino de liberdade, da liberdade que Ele
nos conquistou.

180 Gostaria que considerássemos como esse Cristo - terna criança -, que vimos nascer em Belém, é o
Senhor do mundo: pois por Ele foram criados todos os seres nos céus e na terra; Ele reconciliou todas
as coisas com o Pai, restabelecendo a paz entre o céu e a terra, por meio do sangue que derramou na
Cruz. Hoje Cristo reina à direita do Pai, como declararam os dois anjos de vestes brancas aos
discípulos atônitos que contemplavam as nuvens, depois da Ascensão do Senhor: Homens da Galiléia,
por que estais aí olhando para o céu? Esse Jesus que vos foi arrebatado ao céu, virá do mesmo modo
como acabais de vê-lo subir ao céu.

Por Ele reinam os reis , com a diferença de que os reis, as autoridades humanas, passam; e o reino de
Cristo permanecerá por toda a eternidade , seu reino é um reino eterno e seu domínio perdura de
geração em geração.

O reino de Cristo não é um modo de falar nem uma figura de retórica. Cristo vive também na sua
condição de homem, com aquele mesmo corpo que assumiu na Encarnação, que ressuscitou depois da
Cruz e que subsiste glorificado na Pessoa do Verbo, juntamente com a sua alma humana. Cristo, Deus
e homem verdadeiro, vive e reina, e é o Senhor do mundo. Só por Ele se conserva com vida tudo o que
vive.

Mas, então, por que não se apresenta agora em toda a sua glória? Porque o seu reino não é deste
mundo , embora esteja no mundo. Replicou Jesus a Pilatos: Eu sou rei. Para isso nasci: para dar
testemunho da verdade. Todo aquele que pertence à verdade escuta a minha voz. Os que esperavam
do Messias um poderio temporal, visível, enganavam-se, porque o reino de Deus não consiste no
comer e no beber, mas na justiça, paz e gozo no Espírito Santo.

Verdade e justiça; paz e gozo no Espírito Santo. Esse é o reinado de Cristo: a ação divina que salva os
homens e que culminará quando a História terminar e o Senhor, que se senta no mais alto do Paraíso,
vier julgar definitivamente os homens.

Quando Cristo inicia a sua pregação na terra, não oferece um programa político, mas diz
simplesmente: Fazei penitência, porque o reino dos céus está próximo. Encarrega os discípulos de
anunciarem essa boa nova , e ensina a pedir na oração o advento do reino. Eis o reino de Deus e a sua
justiça: uma vida santa; isso é o que temos que procurar em primeiro lugar , a única coisa
verdadeiramente necessária.
A salvação pregada por Nosso Senhor Jesus Cristo é um convite dirigido a todos: O reino dos céus é
semelhante a um rei que celebrou as núpcias de seu filho e enviou os criados a chamar os convidados
para as bodas. Por isso, o Senhor revela que o reino dos céus está no meio de vós.

Ninguém é excluído da salvação, se livremente abre as portas às amorosas exigências de Cristo: nascer
de novo , tornar-se semelhante às crianças, com simplicidade de espírito , afastar o coração de tudo o
que afasta de Deus. Jesus quer fatos, não apenas palavras , e um esforço denodado, porque somente os
que lutarem serão merecedores da herança eterna.

A perfeição do reino - o juízo definitivo de salvação ou de condenação - não se dará na terra. O reino
agora é como uma semente , como o grão de mostarda em crescimento ; seu fim será como a pesca
com rede de arrastão, da qual - uma vez trazida para terra - serão retirados para diferentes destinos os
que praticaram a justiça e os que cometeram a iniqüidade. Mas, enquanto aqui vivemos, o reino
assemelha-se ao fermento que uma mulher tomou e misturou com três medidas de farinha, até que toda
a massa ficou fermentada.

Quem compreende o reino que Cristo propõe, percebe que vale a pena arriscar tudo para consegui-lo: é
a pérola que o mercador adquire à custa de vender tudo o que possui, é o tesouro achado no campo. O
reino dos céus é uma conquista difícil, e ninguém tem a certeza de alcançá-lo ; mas o clamor humilde
do homem arrependido consegue que as suas portas se abram de par em par. Um dos ladrões que
foram crucificados com Jesus suplica-lhe: Senhor, lembra-te de mim quando entrares no teu reino. E
Jesus respondeu-lhe: em verdade te digo: hoje estarás comigo no Paraíso.

181 Como és grande, Senhor nosso Deus! Tu és quem dá à nossa vida sentido sobrenatural e eficácia
divina. Tu és a causa de que, por amor de teu Filho, possamos repetir com todas as forças do nosso ser,
com a alma e com o corpo: Convém que Ele reine!, enquanto ressoa a canção da nossa fraqueza, pois
sabes que somos criaturas - e que criaturas! - feitas de barro, não apenas nos pés , mas também no
coração e na cabeça. De forma divina, vibraremos exclusivamente por Ti.

Cristo deve reinar, acima de tudo, na nossa alma. Mas que resposta lhe daríamos se nos perguntasse:
como me deixas reinar em ti? Eu lhe responderia que, para que Ele reine em mim, necessito da sua
graça abundantemente: só assim é que o último latejo do coração, o último alento, o olhar menos
intenso, a palavra mais intranscendente, a sensação mais elementar se traduzirão num hosanna ao meu
Cristo Rei.

Se pretendemos que Cristo reine, temos que ser coerentes, começando por entregar-lhe o nosso
coração. Se não o fizermos, falar do reinado de Cristo será palavreado sem substância cristã,
manifestação externa de uma fé inexistente, manejo fraudulento do nome de Deus para barganhas
humanas.

Se a condição para que Jesus reine em minha alma, na tua alma, fosse contar previamente com um
lugar perfeito dentro de nós, teríamos motivos para desesperar. Mas não temas, filha de Sião: eis que o
teu Rei vem montado sobre um jumentinho. Vemos? Jesus contenta-se com um pobre animal por trono.
Não sei o que se passa convosco; quanto a mim, não me humilha reconhecer-me aos olhos do Senhor
como um jumento: Sou como um burrinho diante de Ti; mas estarei sempre a teu lado, porque me
tomaste pela tua mão direita , Tu me conduzes pelo cabresto.

Pensemos nas características do jumento, agora que vão ficando tão poucos. Não no burro velho e
teimoso, rancoroso, que se vinga com um coice traiçoeiro, mas no burrinho jovem, de orelhas esticadas
como antenas, austero na comida, duro no trabalho, de trote decidido e alegre. Há centenas de animais
mais belos, mais hábeis e mais cruéis. Mas Cristo escolheu esse para se apresentar como rei diante do
povo que o aclamava. Porque Jesus não sabe o que fazer com a astúcia calculista, com a crueldade dos
corações frios, com a formosura vistosa mas oca. Nosso Senhor ama a alegria de um coração jovem, o
passo simples, a voz sem falsete, os olhos limpos, o ouvido atento à sua palavra de carinho. É assim
que reina na alma.

182 Se deixarmos que Cristo reine na nossa alma, não nos converteremos em dominadores; seremos
servidores de todos os homens.

Serviço. Como gosto dessa palavra! Servir ao meu Rei e, por Ele, a todos os que foram redimidos pelo
seu sangue. Se nós, cristãos, soubéssemos servir! Confiemos ao Senhor a nossa decisão de aprender a
realizar essa tarefa de serviço, porque só sentindo poderemos conhecer e amar Cristo, dá-lo a conhecer
e conseguir que outros mais o amem.

Como havemos de mostrá-lo às almas? Com o exemplo: que sejamos suas testemunhas em todas as
nossas atividades, mediante a nossa voluntária servidão a Jesus Cristo, porque Ele é o Senhor de todas
as realidades da nossa vida, porque é a única e a última razão da nossa existência. Depois, quando
tivermos prestado esse testemunho do exemplo, seremos capazes de instruir com a palavra, com a
doutrina. Cristo agiu assim: Coepit facere et docere , primeiro ensinou com obras, e depois com a sua
pregação divina.

Servir os outros, por Cristo, exige que sejamos muito humanos. Se a nossa vida for desumana, Deus
nada edificará sobre ela, pois normalmente não constrói sobre a desordem, sobre o egoísmo, sobre a
prepotência. Temos que compreender a todos, temos que conviver com todos, temos que desculpar a
todos, temos que perdoar a todos. Não diremos que o injusto é justo, que a ofensa a Deus não é ofensa
a Deus, que o mau é bom. No entanto, perante o mal, não responderemos com outro mal, mas com a
doutrina clara e com a ação boa: afogando o mal em abundância de bem. Assim Cristo reinará na nossa
alma e nas almas dos que nos rodeiam.

Alguns tentam construir a paz no mundo sem semear amor de Deus em seus corações, sem servir por
amor de Deus as criaturas. Assim, como será possível realizar uma missão de paz? A paz de Cristo é a
paz do reino de Cristo; e o reino de Nosso Senhor deve cimentar-se no desejo de santidade, na
disposição humilde de receber a graça, numa esforçada ação de justiça, num derramamento divino de
amor.

183 Não é um sonho irrealizável ou inútil. Se nós, os homens, nos decidíssemos a albergar o amor de Deus
em nossos corações! Cristo, Senhor Nosso, foi crucificado e, do alto da Cruz, redimiu o mundo,
restabelecendo a paz entre Deus e os homens. Jesus Cristo recorda a todos: Et ego, si exaltatus fuero a
terra, omnia traham ad meipsum , se vós me colocardes no cume de todas as atividades da terra,
cumprindo o dever de cada instante, dando testemunho de mim no que parece grande e no que parece
pequeno, omnia traham ad meipsum, tudo atrairei a mim. Meu reino entre vós será uma realidade.

Cristo, Nosso Senhor, continua empenhado nesta semeadura de salvação dos homens e de toda a
criação, deste nosso mundo, que é bom porque saiu bom das mãos de Deus. Foi a ofensa de Adão, o
pecado da soberba humana, que rompeu a divina harmonia da Criação.

Mas Deus Pai, quando chegou a plenitude dos tempos, enviou seu Filho Unigênito, que, por obra do
Espírito Santo, tomou carne em Maria sempre Virgem para restabelecer a paz, para que, redimindo o
homem do pecado, adoptionem filiorum reciperemus , fôssemos constituídos filhos de Deus, capazes
de participar da intimidade divina; para que assim fosse concedido a este homem novo, a esta nova
estirpe dos filhos de Deus , o poder de libertar todo o universo da desordem, restaurando em Cristo
todas as coisas , que por Ele foram reconciliadas com Deus.

Foi para isso que nós, os cristãos, fomos chamados, essa é a nossa tarefa apostólica e a preocupação
que deve consumir a nossa alma: conseguir que o reino de Cristo se torne realidade, que não haja mais
ódios nem crueldades, que estendamos pela terra o bálsamo forte e pacífico do amor. Peçamos hoje ao
nosso Rei que nos faça colaborar humilde e fervorosamente com o propósito divino de unir o que se
quebrou, de salvar o que está perdido, de ordenar o que o homem desordenou, de levar a seu termo o
que se extraviou, de reconstruir a concórdia entre todas as coisas criadas.

Abraçar a fé cristã é comprometer-se a continuar entre as criaturas a missão de Jesus. Cada um de nós
tem que ser alter Christus, ipse Christus, outro Cristo, o próprio Cristo. Só assim poderemos
empreender essa tarefa grande, imensa, interminável: santificar por dentro todas as estruturas
temporais, levando até elas o fermento da Redenção.

Nunca falo de política. Não encaro a tarefa dos cristãos na terra como se tivesse por fim fazer brotar
uma corrente político-religiosa - seria uma loucura -, nem mesmo com o bom propósito de infundir o
espírito de Cristo em todas as atividades dos homens. O que é preciso situar em Deus é o coração de
cada um, seja ele quem for. Procuremos falar a cada cristão, para que lá onde estiver - nas
circunstâncias que não dependem apenas da sua posição na Igreja ou na vida civil, mas também do
resultado das mutáveis situações históricas -, saiba dar testemunho da fé que professa, com o exemplo
e com a palavra.

Por ser homem, o cristão vive no mundo com pleno direito. Se aceitar que Cristo habite em seu
coração, que Cristo reine, a eficácia salvadora do Senhor estará intensamente presente em todas as suas
ocupações humanas. E não interessa que sejam ocupações altas ou baixas, como se costuma dizer,
pois um ápice humano pode ser aos olhos de Deus uma baixeza; e o que chamamos baixo ou modesto
pode ser um ápice cristão, de santidade e de serviço.

184 Quando trabalha, como é de sua obrigação, o cristão não deve iludir nem esquivar-se às exigências
próprias da natureza das coisas. Se pela expressão abençoar as atividades humanas, se entendesse
anular ou escamotear a sua dinâmica própria, negar-me-ia a usar essas palavras. Pessoalmente, nunca
me convenci de que as ocupações habituais dos homens devessem ostentar um qualificativo
confessional, à moda de um letreiro postiço. Embora respeite a opinião contrária, parece-me que se
correria o perigo de usar em vão o santo nome da nossa fé, e de utilizar, além disso, a etiqueta católica
- como já se tem visto em certas ocasiões - para justificar atitudes e operações que, às vezes, nem
sequer são honradamente humanas.

Se, à exceção do pecado, o mundo e tudo o que nele se contém é bom, por ser obra de Deus Nosso
Senhor, o cristão, lutando continuamente por evitar as ofensas a Deus - uma luta positiva de amor -,
deve dedicar-se a todas as realidades terrenas, ombro a ombro com os outros cidadãos; e defender
todos os bens derivados da dignidade da pessoa.

E existe um bem que, de forma especial, deverá promover sempre: o da liberdade pessoal. Só se
defender a liberdade individual dos outros, com a correspondente responsabilidade pessoal, poderá
defender igualmente a sua própria, com honradez humana e cristã. Repito e repetirei sem cessar que o
Senhor nos concedeu gratuitamente um grande dom sobrenatural, que é a graça divina; e outra
maravilhosa dádiva humana, a liberdade pessoal, que - para não se corromper, convertendo-se em
libertinagem - exige de nós integridade, empenho eficaz em desenvolver a conduta dentro da lei
divina, pois onde se encontra o Espírito de Deus, lá se encontra a liberdade.

O Reino de Cristo é reino de liberdade: não existem nele outros servos além dos que livremente se
deixam aprisionar, por amor a Deus. Bendita escravidão de amor, que nos torna livres! Sem liberdade,
não podemos corresponder à graça; sem liberdade, não nos podemos entregar livremente ao Senhor,
pelo motivo mais sobrenatural de todos: porque nos apetece.

Alguns dos que me escutam já me conhecem há muitos anos. Podem testemunhar que tenho passado
toda a minha vida pregando a liberdade pessoal, com igual responsabilidade pessoal. Procurei-a e
procuro-a por toda a terra, como Diógenes procurava um homem. E cada dia que passa amo-a mais,
amo-a sobre todas as coisas da terra: é um tesouro que nunca saberemos apreciar suficientemente.
Quando falo de liberdade pessoal, não me valho disso como desculpa para abordar outros problemas,
talvez muito legítimos, mas que não dizem respeito ao meu ofício de sacerdote. Sei que não me
compete tratar de temas seculares e transitórios, que pertencem à esfera temporal e civil, e são matérias
que o Senhor deixou à livre e serena controvérsia dos homens. Sei também que os lábios do sacerdote,
evitando por completo parcialidades humanas, somente devem abrir-se para conduzir as almas a Deus,
à sua doutrina espiritual salvadora, aos sacramentos que Jesus Cristo instituiu, à vida interior que nos
aproxima do Senhor, dando-nos a consciência de sermos seus filhos e, portanto, irmãos de todos os
homens sem exceção.

Celebramos hoje a festa de Cristo-Rei. E não me afasto do meu ofício de sacerdote quando digo que,
se alguém entendesse o reino de Cristo em termos de programa político, não teria aprofundado no fim
sobrenatural da fé e estaria a um passo de oprimir as consciências com cargas que não são de Jesus,
pois seu jugo é suave e sua carga leve. Amemos de verdade todos os homens; acima de tudo, amemos
Cristo; e, então, não teremos outro remédio senão amar a legítima liberdade dos demais homens, numa
convivência pacífica e sensata.

185 Talvez me digam que são poucos os que querem ouvir estas coisas e menos ainda os que desejam pô-
las em prática. Consta-me que a liberdade é uma planta forte e sã, que se aclimata mal entre as pedras
e os espinhos, ou nos caminhos calcados pelos homens. Já o sabíamos antes de Cristo ter vindo à terra.

Lembremo-nos do Salmo II: Por que se amotinaram as nações, e os povos traçaram planos vãos?
Sublevaram-se os reis da terra e os príncipes coligaram-se contra o Senhor e contra o seu
Cristo. Como vemos, nada de novo. Opunham-se a Cristo antes de Ele ter nascido; a Ele se opuseram
enquanto seus pés pacíficos percorriam os caminhos da Palestina; perseguiram-no depois e agora,
atacando os membros do seu Corpo místico e real. Por quê tanto ódio, por quê este encarniçar-se
contra a cândida simplicidade, por quê este universal esmagamento da liberdade de cada consciência?

Quebremos as suas cadeias e sacudamos de nós o seu jugo. Quebram o jugo suave, sacodem das
costas a sua carga, maravilhosa carga de santidade e justiça, de graça, de amor e paz. Enfurecem-se
diante do amor, riem-se da bondade inerme de um Deus que renuncia ao uso das suas legiões de anjos
para se defender. Se o Senhor admitisse a barganha, se sacrificasse um punhado de inocentes para
satisfazer uma maioria de culpados, ainda poderiam tentar um entendimento com Ele. Mas não é essa a
lógica de Deus. Nosso Pai é verdadeiramente pai, e está disposto a perdoar milhares de fautores do
mal, se houver somente dez justos. As pessoas dominadas pelo ódio não podem entender esta
misericórdia, e afincam-se na sua aparente impunidade terrena, alimentando-se da injustiça.

Aquele que habita nos céus, ri-se, e o Senhor zomba deles. Ele lhes fala então na sua ira, e no seu
furor os aterroriza. Como é legítima a ira de Deus, como é justo o seu furor, e como é grande também
a sua clemência!

Eu, porém, fui constituído por Ele Rei sobre Sião, seu monte santo, para promulgar a sua Lei. Disse-
me o Senhor: Tu és meu filho, eu te gerei hoje. A misericórdia de Deus Pai deu-nos por Rei o seu
Filho. Quando ameaça, ao mesmo tempo se enternece: anuncia-nos a sua ira e entrega-nos o seu amor.
Tu és meu filho: dirige-se a Cristo e dirige-se a ti e a mim, se estamos decididos a ser alter Christus,
ipse Christus, outro Cristo, o próprio Cristo.

As palavras não conseguem acompanhar o coração, que se emociona perante a bondade de Deus. Diz-
nos: Tu és meu filho. Não um estranho, não um servo benevolamente tratado, não um amigo, que já
seria muito. Filho! Concede-nos livre trânsito para vivermos com Ele a piedade de filhos e também -
atrevo-me a afirmar - a desvergonha de filhos de um Pai que é incapaz de lhes negar seja o que for.
186 Há muita gente empenhada em comportar-se injustamente? Sim, mas o Senhor insiste: Pede-me, e eu
te darei as nações por herança, e em teu domínio as extremidades da terra. Tu as governarás com
vara de ferro, e qual vaso de oleiro as quebrarás. São promessas fortes, e são de Deus: não podemos
disfarçá-las. Não em vão Cristo é o Redentor do mundo; Ele reina, soberano, à direita do Pai. É o
terrível anúncio do que nos espera a cada um - quando a vida passar, porque passa - e a todos - quando
a História acabar -, se o coração se endurecer no mal e na falta de esperança.

No entanto, Deus, que pode vencer sempre, prefere convencer. E agora, ó reis, atendei; instruí-vos,
vós que governais a terra. Servi o Senhor com temor, e louvai-o com tremor. Abraçai a boa doutrina,
não seja que no fim o Senhor se aborreça e pereçais fora do bom caminho, quando daqui a pouco se
inflamar a sua ira. Cristo é o Senhor e o Rei. Nós vos anunciamos que Deus cumpriu a promessa feita
a nossos pais; cumpriu-a diante de nossos filhos ressuscitando Jesus, como também está escrito no
salmo segundo: Tu és meu Filho, eu te gerei hoje...

Agora, pois, meus irmãos, sabei que por Ele vos é anunciada a remissão dos pecados e de todas as
manchas de que não pudestes ser justificados pela lei de Moisés: por Ele é justificado todo aquele que
crê. Tomai, pois, cuidado, para que não recaia sobre vós o que foi dito pelos profetas: Vede, ó
desprezadores, admirai-vos e desaparecei, que eu faço uma obra nos vossos dias, uma obra em que
não acabareis de acreditar, por mais que vo-la contem.

É a obra da salvação, o reinado de Cristo nas almas, a manifestação da misericórdia de Deus. Bem-
aventurados todos os que a Ele se acolhem!. Nós, os cristãos, temos o direito de enaltecer a realeza de
Cristo, porque - embora a injustiça seja abundante, embora muitos não desejem este reinado de amor -
na própria história da humanidade, que é o cenário do mal, se vai tecendo a obra da salvação eterna.

187 Ego cogito cogitationes pacis et non afflictionis. Eu penso pensamentos de paz, e não de tristeza, diz o
Senhor. Sejamos homens de paz, homens de justiça, praticantes do bem, e o Senhor não será para nós
Juiz, mas amigo, irmão, Amor.

Que os anjos de Deus nos acompanhem neste caminhar - alegre! - pela terra. Antes do nascimento do
nosso Redentor, escreve São Gregório Magno, nós tínhamos perdido a amizade dos anjos. A culpa
original e os nossos pecados cotidianos tinham-nos afastado da sua pureza... Mas desde o momento
em que nós reconhecemos o nosso Rei, os anjos nos reconheceram como seus concidadãos.

E como o Rei dos céus quis assumir a nossa carne terrena, os anjos já não se afastam da nossa
miséria. Não se atrevem a considerar inferior à sua esta natureza que eles adoram, vendo-a exaltada,
acima deles, na pessoa do Rei do céu; e já não têm inconveniente em considerar o homem como seu
companheiro.

Maria, a Mãe santa do nosso Rei, a Rainha do nosso coração, cuida de nós como só Ela o sabe fazer.
Mãe compassiva, trono da graça: nós te pedimos que saibamos compor na nossa vida e na vida dos que
nos rodeiam, verso a verso, o poema singelo da caridade, quasi flumen pacis , como um rio de paz.
Pois tu és um mar de inesgotável misericórdia: Os rios vão dar todos ao mar, e o mar não transborda.

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