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O Avô Minguante

de Daniela Leitão
O meu avô chamava-se Mário. Antes de o conhecer, sei que foi muitos Mários. Foi Mário, o
carteiro, Mário, o marinheiro, e foi sempre Márinho para toda a gente. Mas antes de saber que tinha
sido carteiro ou marinheiro, só sabia que era Mário, o meu avô, e que tinha sempre as respostas
para todas as minhas perguntas. Eram sempre respostas muito curtas porque o meu avô Mário
gostava muito de palavras e, por isso, usava-as pouco e devagar, “para não lhes estragar a poesia”.
O meu avô era muito grande e muito alto. Tinha braços tão longos que um dia lhe perguntei
se poderiam dar a volta ao mundo. Respondeu-me que o mundo andava tão pequenino, que talvez
até fosse possível. O meu avô usava uma camisa aos quadrados com um bolso ao peito, onde
guardava um lápis de carvão. Tinha mãos enormes e ásperas que cheiravam a casca de laranja ou
a páginas de livros antigos, mas nunca aos dois ao mesmo tempo. O meu avô era muito calado e
muito sério. Vivia numa casa pintada de azul que de um lado tinha um pomar e do outro um campo
de trigo dourado de perder de vista. Do portão do jardim, via-se primeiro o pomar de laranjas onde o
meu avô nunca quisera plantar outra coisa. Um dia, perguntei-lhe se não se importava de só as poder
comer durante metade do ano. Respondeu-me que as laranjas lhe tinham ensinado a respeitar o
tempo das coisas. Dentro de casa, só existia uma divisão que servia para tudo. Ao centro estava
uma lareira que o meu avô acendia todos os dias no inverno. De um lado, via-se um fogão, um
lavatório e uma mesa que o meu avô usava para cozinhar e também para comer. A um canto, tinha
uma cama coberta de almofadas e, ao lado, um cadeirão onde se sentava para ler. Não tinha
televisão, só pilhas e pilhas de livros. Outro dia, perguntei-lhe se me podia contar as histórias
daqueles livros. O meu avô respondeu-me que eram todos de poesia e escolheu um para me mostrar
que se chamava mesmo assim. Eu estava habituado aos livros da escola com as páginas cheias de
palavras, como um grande nevoeiro, mas os livros de poesia não eram assim. Os poemas eram
nuvens pequeninas e às vezes até havia páginas só com três ou quatro palavras! O meu avô disse-
me que era mesmo isso que gostava na poesia. Explicou-me que existem palavras para quase tudo.
Palavras que dão nomes às pessoas, às coisas e aos animais. Palavras que são cores, têm cheiro
ou sabor. Palavras que carregam sentimentos e palavras que não dizem nada. Existem palavras que
só são precisas para colar umas palavras às outras. Cada pessoa aprende as palavras à sua maneira
e nem todas as palavras significam o mesmo para toda a gente. E embora haja uma palavra para
quase tudo, às vezes, pode acontecer-nos ficarmos sem palavras. O meu avô ensinou-me que a
poesia é o que acontece quando queremos falar, mas não queremos dar grandes explicações.
Quando era pequeno, passava muito tempo na casa do meu avô. A minha casa, onde eu
vivia com os meus pais, era demasiado grande, cheia de curvas e becos sem saída, por isso, gostava
mais da casa pequenina do meu avô. Lá, estava tudo à mão de semear - podia brincar em frente à
lareira e vê-lo sentado no cadeirão com um livro nas mãos, o lápis ao peito e o olhar em mim. A
minha mãe cansava-se rápido das minhas perguntas e, em vez de me responder, dizia para as fazer
ao meu avô. Eu fazia. O meu avô nunca se cansava e tinha sempre resposta para mim. Então, eu
ficava.
Nos dias de semana, o meu avô ia buscar-me à escola. Lanchávamos e fazíamos os
trabalhos de casa, mas eu não gostava de os fazer. Não percebia porque é que depois de um dia
inteiro na escola, ainda tinha de trazer a escola para casa. Os textos de português demasiado longos
cansavam-me. Os problemas de matemática cansavam-me. Os enigmas de ciências cansavam-me.
O meu avô conhecia-me bem e quando via o meu cansaço a chegar, levantava-se da mesa
devagarinho, escolhia um livro e punha-se a lê-lo em voz alta. Uma vez, disse-me que acreditava
que a poesia também era uma forma de aprender.
Aos sábados de manhã, o meu avô ia buscar-me a casa dos meus pais. Segurava a minha
mão direita com a sua mão esquerda e subíamos até à vila. Começávamos pela padaria do Manel,
onde comprávamos o pão e um pastel de feijão, que não chegava sequer até ao talho da D. Isaura.
À entrada, o meu avô perguntava à D. Isaura então, como é que vai isso. A D. Isaura chamava-o
logo pelo carinho, Márinho!, e perguntava-lhe o que é que ia ser. Nos dias em que a mãe não
precisava de nada para a canja de galinha, o meu avô respondia nada, só os bons dias.
Continuávamos pela rua acima, até chegarmos à peixaria do Sr. Hermínio. O meu avô pescava muito
e, por isso, do Sr. Hermínio só trazia o isco. O Sr. Hermínio piscava-me o olho e dizia sempre que o
isco estava tão fresco, tão fresquinho, que todo o peixe o ia querer trincar. A seguir, comprávamos o
jornal no quiosque da Maria e do Zé e terminávamos a volta no café do Sr. Jorge, para o meu avô
beber uma bica. Se lhe pedisse muito, deixava-me lamber a colher e inventar palavras na sopa de
letras do jornal. Certo sábado, estávamos sentados no café e perguntei-lhe: Porque é que o Manel
sempre tinha sido padeiro? E a D. Isaura talhante e o Sr. Hermínio peixeiro? A Maria e o Zé sempre
foram donos do quiosque? E o Sr. Jorge? Já tinha nascido sentado atrás do balcão? Sem tirar os
olhos do jornal, o meu avô respondeu que há pessoas que a vida que têm é a vida que lhes basta.
Depois do passeio pela vila, almoçávamos em casa dos meus pais e íamos à praia. Lembro-
me muito bem da primeira vez que fomos ver o mar. Às vezes há memórias que temos porque vimos
uma fotografia ou porque alguém nos contou a história - mas este não é o caso. O meu avô disse-
me que toda a gente sabe que o sol na praia brilha com mais força e até havia histórias de pessoas
que de tanto olhar o sol, queimavam os olhos. Por isso, na primeira vez que fomos ver o mar, levava
uma mão sobre os meus. Quando a tirou devagarinho e vi o mar pela primeira vez, pensei que era
grande - tão grande quanto o meu avô! Naquele dia, o meu avô pediu-me para não me esquecer de
que lado da memória guardava o mar. É por isso que sei que esta memória é minha: nunca me
esqueci onde é que a guardei. Quando chegámos a casa, lembrei-me de lhe perguntar se tinha sido
perigoso ser marinheiro. Disse-me que tinha sido cozinheiro da Marinha, mas que até na cozinha se
sentia o medo. Pedi-lhe que me mostrasse os sítios onde tinha ido. Abriu um mapa cheio de pó em
cima da mesa e traçou com o dedo um círculo à volta de um continente só. Disse-me que se chamava
África. Perguntei-lhe o que é que tinham feito em África. A esta pergunta o meu avô não respondeu
logo. Guardou devagar o mapa por entre as páginas de um livro. Olhava para mim, ainda mais sério
do que o costume quando me disse que em África, em África não tinham feito nada de bom. Pelo
silêncio que se seguiu, percebi que era melhor não fazer mais perguntas sobre as viagens e as
marés. Quis saber sobre quando tinha sido carteiro. O meu avô contou-me que distribuía cartas pela
vila numa lambreta vermelha e, às vezes, para lhe fazer companhia, levava o cão preto dos vizinhos
entre as pernas com as patas apoiadas no guiador. Perguntei-lhe onde levava as cartas. Respondeu
que umas iam na mala da lambreta, mas que as mais importantes as encontrava no meio dos livros.
Eu e o meu avô Mário passámos muitos anos assim. Durante todos eles, sempre achei que
o meu avô muito grande, com braços de abraçar o mundo e mãos-de-laranja e poesia, nunca havia
de envelhecer mais. O meu avô seria aquele avô para sempre. Mas as horas somam-se sempre em
dias, os dias multiplicam-se em semanas, depois em meses e os meses aninham-se nos anos.
Quando fiz 8 anos, a minha mãe deixou-me ir brincar para casa do Miguel. Saímos sozinhos
da escola e tudo. Foi tão divertido que comecei a pedir à minha mãe para ir brincar a casa do Miguel
mais vezes. Aos poucos, o meu avô deixou de me ir buscar à escola e já só me ia buscar a casa dos
pais ao sábado de manhã. Dávamos a nossa volta pela vila e, depois de almoço, ficávamos a ver o
mar. Num desses sábados, a seguir ao pão do Manel e aos bons dias da D. Isaura, reparámos que
o Sr. Hermínio não abriu a peixaria. No sábado seguinte, a peixaria continuou fechada e o avô sem
isco para pescar. O meu avô tinha passado aquela semana muito sério e mais calado que o costume
e olhava o horizonte com os olhos semicerrados como se procurasse qualquer coisa. Achei que
estava triste por não poder pescar e que olhava o horizonte com saudades. Quando ao terceiro
sábado a peixaria continuou fechada, perguntei ao meu avô o que tinha acontecido ao Sr. Hermínio.
Sentou-se devagarinho numa cadeira da esplanada e disse-me ainda mais devagarinho que às
vezes há pessoas que levam a vida que lhes basta, mas que não lhes basta o tempo que tiveram
para a viver. Não percebi o que ele quis dizer, mas senti-me muito triste, como se o mundo tivesse
encolhido de repente. No sábado seguinte, a peixaria voltou a abrir e ao balcão estava o filho do Sr.
Hermínio. O peixe vendeu-se como sempre, mas o meu avô disse-me depois que o isco nunca mais
foi tão fresco.
Tinham-se passado poucos meses deste último sábado, quando o meu avô me pediu que o
fosse ajudar a colher as laranjas. Achei estranho, porque ele nunca tinha precisado de ajuda antes.
Quando cheguei ao pomar, vi-o ao longe, em cima de um banco e de braços esticados. Perguntei-
lhe logo porque é que precisava da minha ajuda. Apoiou uma mão no meu ombro para descer do
banco, colocou as laranjas que tinha nas mãos dentro de um saco de plástico e só depois é que
disse que já não tinha força para chegar onde era preciso. De repente, achei-o menos grande do que
o costume, mas abanei a cabeça para afastar um pensamento tão tonto. O meu avô era enorme e
seria sempre enorme.
Não voltei a pensar mais no assunto até ao dia em que o encontrei a dormitar no cadeirão,
com um livro aberto no colo. Bati devagar na porta da entrada, para o avisar que tinha chegado.
Acordou logo e sorriu-me. Desta vez, pareceu-me mesmo pequenino. Antigamente, o cadeirão
parecia quase não ter espaço para tanto avô, mas agora, parecia engoli-lo quase inteiro. Pediu-me
que me sentasse ao seu lado e que o ajudasse a acabar de ler aquele poema. Disse-me que já não
via bem o suficiente para dar conta das letras mais miudinhas. Naquele dia, ganhei muitas perguntas
novas. Se eu estava a crescer, será que o meu avô estava a diminuir? Seria possível que o meu avô
enorme, pudesse algum dia ficar mais pequenino? Será que poderia ficar pequenino até
desaparecer? E se desaparecesse, quem é que ia responder às minhas perguntas? Precisava muito
de saber todas as respostas, mas naquele dia, guardei as perguntas todas para mim.

Depois daquele dia, o mundo não parou de girar. As horas viravam-se em anos e eu não
parava de crescer. A mãe queixava-se que a roupa não me servia. Os ténis magoavam-me os dedos
gordos dos pés. Já não brincava só no parque, podia ir com os meus amigos onde quisesse. Até
podíamos ir à vila comer bolos com as moedas de dois euros que o pai dizia que eram raras. Às
vezes, os meus amigos combinavam ir andar de bicicleta no bosque ao sábado de manhã. Ficava
sempre muito dividido, porque queria muito ir com eles, mas também queria muito ficar com o avô.
Só que sempre que eu não ia eles subiam às maiores árvores, as raposas saiam das tocas e
deixavam-se ver e os sapos davam os maiores saltos para o lago. Por isso, eu não resistia. Quando
lhe perguntei, o meu avô disse-me que não se importava porque agora era a minha vez de conhecer
o mundo.
Houve um sábado, em que disse aos meus pais que ia ao bosque, mas decidi fazer uma
surpresa ao meu avô. Saí de casa e fui até ao pomar. Havia muitas laranjas caídas no chão e eu
achei muito estranho, o meu avô nunca desperdiçava uma laranja que fosse. Entrei em casa, mas
não o encontrei. Dei a volta ao jardim até ao campo de trigo. Muito lá ao fundo, pequenino como uma
miragem, lá estava ele. Chamei-o três vezes, mas ele não ouviu nenhuma. Corri na sua direção e
quando cheguei ao pé dele, aninhei a minha mão direita na sua mão esquerda. Senti que a minha
mão já não cabia tão bem na dele. Foi neste momento que lhe perguntei porque é que sempre me
tinha parecido tão grande e agora me parecia tão pequeno. No meio da seara de trigo, o meu avô,
sem nunca deixar de olhar em frente, contou-me que começamos a vida rodeados de estímulos.
Queremos conhecer tudo: todas as cores, todas as flores e animais, todos os objetos, todas as
pessoas, todas as histórias. Devagarinho, começamos a conhecer o mundo pelas palavras e, por
isso, temos muitas perguntas. À medida que vamos crescendo, vamos encontrando as respostas
que procurávamos. Vamos guardando todas dentro de nós. Quando começamos a envelhecer,
percebemos que afinal não sabemos tudo, mas o que sabemos, queremos partilhar com quem não
sabe ainda nada. É só a quem não sabe nada que ainda parecemos muito grandes e com muita
sabedoria. Contou-me que os avós parecem grandes quando os netos precisam que se pareçam
grandes, e que têm as respostas todas quando os netos são só perguntas. Quando os netos
começam a apanhá-los em tamanho e sabedoria, estão prontos para começar a minguar. Disse-me
que todos os avós são minguantes, porque todos os netos são crescentes, e é nesse cruzamento
que se encontram tão bem. Apertei-lhe a mão com força e quis ficar ali para sempre. Queria que o
meu avô fosse aquele avô para sempre, mas lembrei-me que já um dia tinha desejado o mesmo e
que a mão que me segurava agora era já uma mão diferente da mão que um dia me segurou. Apertei-
lhe a mão ainda com mais força e quis fazê-lo prometer que não ficaria mais pequenino, que não
desapareceria. Lá de cima, olhou para mim, ainda cá em baixo e disse-me que não podia prometer-
me uma coisa dessas, mas que me podia contar um segredo: “O tempo vai continuar a passar. Tu
vais continuar a crescer e eu vou continuar a minguar. Um dia vou ser muito pequenino, vou deixar
de ser um livro inteiro e passarei a ser apenas um poema, ou talvez várias palavras. Mas para ti,
serei apenas uma. Daqui a muitos anos, essa palavra pode ganhar significados diferentes, mas eu
serei essa palavra primeiro e para sempre. E, por isso, é certo que nunca vou desaparecer”.

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