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CONSELHO EDITORIAL ACADÊMICO

Luna Antunes Costa


Monalisa Dias de Siqueira
Cláudio Umpierre Carlan

Cultura Acadêmica Editora


Praça da Sé, 108
CEP 01001-900 – São Paulo, SP
www.culturaacademica.com.br
Semíramis Corsi Silva
Flávia Regina Marquetti
Pedro Paulo A. Funari
organizadores

MAGIA, ENCANTAMENTOS E FEITIÇARIA


Copyright © 2023 organizadores

CIP – Brasil. Catalogação na fonte


Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ
_____________________________________________
M194

Magia, encantamentos e feitiçaria/ organização


Semíramis Corsi Silva ... [et al.]. São Paulo: Cultura
Acadêmica, 2023.

594 p.: il.; 16 x 23 cm.

Vários autores.

ISBN 978-65-5954-401-1 (DIGITAL)

1. Antiguidade Clássica. 2. Antropologia - História. 3.


Diversidade Cultural. 4. Rituais. 5. Práticas mágicas. 6.
Oráculos.

I. Silva, Semíramis Corsi, 1982- II. Marquetti, Flávia


Regina, 1960- III. Funari, Pedro Paulo Abreu, 1959
CDD 930
_____________________________________________
Índices para catálogo sistemático:

Praça da Sé, 108


01001-900- São Paulo – SP
Tel. (0xx11)3242-7171
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feu@editora.unesp.br
SUMÁRIO
Prefácio
Ivan Esperança Rocha ------------------------------------------------------------------------1
Introdução
Semíramis Corsi Silva, Flávia Regina Marquetti e Pedro Paulo A. Funari ----------18

Parte 1
Rituais, oráculos e objetos mágicos

Amuletos Mágicos Mesopotâmicos: entre religião e arte


Katia Maria Paim Pozzer -------------------------------------------------------------------21
Íynx: o feitiço de amor e a religião de Afrodite e Eros na iconografia dos
vasos ápulos (séc. IV AEC)
Fábio Vergara Cerqueira --------------------------------------------------------------------44
Feitiçaria e Alquimia na China Antiga
André da Silva Bueno ----------------------------------------------------------------------92
Escravidão e adivinhação no Império Romano: uma aproximação a
partir das Sortes Astrampsychi
Filipe Noé da Silva ------------------------------------------------------------------------119
Magia como Fenômeno transcultural: Lição I – como fazer um anel
mágico (Libro de Astromagia, séc. XIII)
Aline Dias da Silveira ---------------------------------------------------------------------133
Pomadas, poções e unguentos: as reuniões secretas diabólicas em
manuscritos Alpinos do século XV
Lívia Guimarães Torquetti dos Santos --------------------------------------------------165
Magia, truque e feitiço: as muitas faces do encantamento na literatura
oral de Ifá
Rogério Athayde ---------------------------------------------------------------------------194
Raios e ventos: narrativas mágicas sobre Santa Bárbara e Iansã
Debora Simões de Souza -----------------------------------------------------------------214
Mulheres encantadas e os lagos mágicos: as estatuetas femininas das
estearias do Maranhão
Alexandre Guida Navarro ----------------------------------------------------------------231
O uso da magia egípcia no ensino: os amuletos em sala de aula
Raquel dos Santos Funari -----------------------------------------------------------------263
Parte 2
Magos, feiticeiras e suas práticas

O Corpo encantado. Do mito aos contos maravilhosos


Flávia Regina Marquetti ------------------------------------------------------------------287
Gênero e Magia em Roma: as feiticeiras Canídia e Ságana na Sátira I, 8
de Horácio
Semíramis Corsi Silva---------------------------------------------------------------------327
Maria, a mãe de Jesus, como uma maga: gênero, poder e magia entre os
primeiros cristãos
Juliana Batista Cavalcanti ----------------------------------------------------------------361
As tabellae defixionum de Nomento, no Lácio (I AEC – I EC): um
estudo de caso sobre as inscrições e os lugares de depósito
Carlos Eduardo da Costa Campos -------------------------------------------------------376
Sem perdão: em busca de justiça (ou vingança?) usando defixiones na
antiga Mogontiacum (Mainz)
Renata Cazarini de Freitas ----------------------------------------------------------------398
Druidismo e Magia: Rituais Sagrados entre os Celtas
Silvana Trombetta -------------------------------------------------------------------------434
Barrados no baile. A Península Ibérica e a festa das bruxas
Carlos Roberto Figueiredo Nogueira ----------------------------------------------------466
“Essa é a mais perfeita e principal ciência, a mais sagrada e sublime
espécie de filosofia”: reflexões sobre as relações entre magia e scientia
nos renascimentos dos séculos XV-XVI
Francisco de Paula Souza de Mendonça Júnior----------------------------------------501
O Catimbó Nordestino
Sandro Guimarães de Salles --------------------------------------------------------------534
“Evoé”: do delírio dionisíaco em Eurípides à macumba antropofágica
na obra Bacantes do Teatro Oficina
Dolores Puga -------------------------------------------------------------------------------559
Prefácio
Ivan Esperança Rocha1

Toda a rica discussão apresentada nesse livro envolve os


processos de encantamento, desencantamento do mundo e suas
diversas abordagens religiosas, filosóficas, antropológicas e
sociológicas, indicando suas imbricações no passado e permanências
no presente, inclusive no Brasil.
O berço natural do encantamento do mundo pode ser
identificado nas sociedades primitivas, onde a relação dos indivíduos
com forças indômitas instigou o uso de ritos mágicos em seu
enfrentamento. A preocupação com a saúde das pessoas e dos animais,
com a fertilidade dos campos e dos rebanhos, com o enfrentamento
das adversidades climáticas e de vários outros obstáculos conduziu
naturalmente num primeiro momento, ao exercício de práticas
mágicas que, se por um lado, têm traços comuns a diferentes
sociedades, também apresentam nuanças que as distinguem no tempo
e no espaço, como visto nas culturas mesopotâmica, chinesa, romana,
grega, judaica, dentre outras.
Mesmo quando o movimento da “revolução urbana” exigiu o
desenvolvimento de tecnologias para responder aos novos desafios
sociais, políticos, administrativos, arquitetônicos, militares e
diplomáticos, a magia, aliada ou não à religião, foi um caminho

1 Possui doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo e livre


docência pela Universidade Estadual Paulista (UNESP/Assis). Atualmente é
Professor Doutor da Universidade Estadual Paulista (UNESP/Assis). É co-
coordenador do Núcleo de Estudos Antigos e Medievais da UNESP (NEAM). Foi
cofundador da Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR). De 2007 a
2011 foi vice-diretor e de 2011 a 2015 foi diretor da Faculdade de Ciências e Letras
da UNESP/Assis. Presidente do Conselho Curador da VUNESP de 2017 a 2022.
concomitante percorrido em busca de soluções. No entanto, quando as
práticas mágicas começaram a contradizer as expectativas dos
indivíduos, bem como das instituições políticas e religiosas, elas
começam a encontrar oposição formal e informal.
Neste livro, os autores tratam da presença da magia, do
encantamento e da feitiçaria ao longo da história e discutem as
diversas abordagens que foram feitas sobre o tema desde a
Antiguidade, passando pelos mundos oriental, grego, romano e cristão,
com uma ênfase no avivamento das discussões pautadas pelo
racionalismo iluminista, que por algum momento assumiu o papel de
responsável pelo desencantamento do mundo e combateu não apenas a
religião, mas outras formas de expressão mística consideradas
“irracionais” e até doentias.
Os autores transitam com maestria nas obras de importantes
autores que se debruçaram sobre o tema, como James Frazer que traça
a partir de uma perspectiva evolucionista uma trajetória que começa
na magia, passando pela religião e que culmina na ciência, e Weber e
Nietzsche, que propõem um desencantamento do mundo que inclui o
declínio das crenças mágicas e a dessacralização das atitudes
humanas. Entende-se, no entanto, que este alinhamento teórico se
distancia da realidade em que magia, religião e ciência não se excluem
mutuamente.
O movimento de banimento da magia inclui também tudo
aquilo que se contrapõe ao instituído, ao estabelecido, a um status quo.
O preconceito e a marginalização aumentam principalmente quando a
magia, o encantamento e a feitiçaria são associados à ação de
mulheres, minorias ou grupos subalternos, como visto claramente na
Inquisição, mas ainda hoje manifestos.
Há, portanto, uma longa e complexa história da magia e temas
relacionados que identificam os responsáveis pela sistematização
teórica mais densa do assunto nos primeiros autores cristãos. Justino,
já no século II EC inicia uma forte polêmica entre a vida cristã e o
paganismo, enfatizando as diferenças entre os milagres de Cristo e as
práticas mágicas consideradas demoníacas, como as dos gnósticos
Simão e Menandro da Samaria. Segundo este último, a gnose ajudava
a entender e controlar as forças da natureza. Em consonância com
Justino, Orígenes e Agostinho também se opõem às práticas mágicas.
Entre os fundamentos bíblicos que sustentavam ideias sobre a magia
está o episódio das pragas do Egito, em que a ação de Moisés se
confronta com as dos magos da corte do Faraó no longo relato de
Êxodo 8-11.
Na Idade Média, surge uma distinção entre certas magias de
índole natural, expressas por exemplo no exorcismo cristão, e magias
consideradas demoníacas, o que levará a reavivar a sua incriminação
pela Igreja a par da heresia e da bruxaria, responsáveis por alterações
climáticas, econômicas e sociais. Magos, hereges e bruxas – no
compasso da Reforma Protestante, sofreriam forte repressão,
juntamente com judeus e outros grupos minoritários sendo
demonizados e perseguidos, como registrado no Malleus Maleficarum,
ou O Martelo das Bruxas, que definia as estratégias de combate à
magia agora centrada na figura das bruxas, embora o Malleus fosse
criticado pela própria Igreja por exageros e heterodoxias.
Este trabalho mostra a presença abundante do tema da magia
na literatura, no teatro, no cinema e nos quadrinhos, o que mostra o
apelo que ainda desperta na sociedade atual, como é o caso dos livros
de Harry Potter traduzidos para o cinema e para o teatro, que
apresentam um embate entre práticas de bruxaria que mantêm a
oposição entre o “mundo das luzes” e o “mundo das trevas”.
A cultura material que emerge das escavações traz à luz
elementos ligados ao mundo mágico antigo, como é o caso dos
amuletos muito difundidos na Mesopotâmia e no Egito, prescritos para
superar problemas nas mais variadas situações da vida quotidiana
envolvendo todas as camadas sociais, e que se somam aos textos de
encantamentos e fórmulas mágicas em várias línguas como a suméria,
acádica e elamita. A Cabala judaica iria incorporar também muitos
aspectos dos amuletos.
O tema do encantamento e desencantamento do mundo tem
sido associado a um movimento de reencantamento, que rompe com
uma visão objetiva e causal do mundo, mas que ao mesmo tempo é
interpretado como derivado da ciência e da tecnologia.
Finalmente, é preciso dizer que esta coletânea reúne
contribuições de importantes pesquisadores em discussões que têm
levado a acalorados questionamentos e a buscas de alternativas para
um mundo positivista e mecanicista que vê a ideia de progresso
contínuo contraposta a fortes retrocessos em diversas frentes.
Ao final da leitura, sentimos que, apesar da ampla discussão
realizada pelos autores, ainda há espaços a serem explorados como a
forma com que o islamismo se relaciona com a magia, ou a serem
ampliados como a maneira com que as crenças e visões de mundo
colonialistas marcaram sua relação com as comunidades indígenas.
Introdução

Desde a Antiguidade Clássica, escritores tentam definir o que é


magia. Plínio, o Velho, escritor e oficial romano, já identificava a
magia como a arte composta pela medicina, religião e astrologia
(História Natural, XXX, 11). Lembrando que a medicina, em sua
origem grega, era associada à religião, possuindo diversas práticas e
ritos, e oficializada nos santuários de Asclépio. Segundo Hubert (1887,
p. 1494-1945), a palavra magia tem emprego variável, podendo
indicar a ocupação e a religião dos magos ou dos sacerdotes da seita
de Zoroastro. Mas a essa magia se opõe, geralmente, à pharmakeia,
ciência das plantas maravilhosas, da astrologia, da alquimia e da
adivinhação, e à goeteia, caracterizada pela prestidigitação e
necromancia, ou mesmo associada às carpideiras (HUBERT, 1904, p.
1494). Foi a partir do Império Romano que os ritos e as práticas
divergentes da religião oficial passaram a ser associados às práticas
maléficas e tornam-se ilegais (HUBERT, 1904, p. 1500).
O Dicionário Aurélio (1986, p. 1064) traz dentre as suas
definições três que nos interessam:

1. de arte ou ciência oculta com que se pretende


produzir, por meio de certo atos e palavras, e por
interferência de espíritos, gênios e demônios, efeitos e
fenômenos extraordinários, contrários às leis naturais. 2.
Religião ou doutrina dos magos. 3. Sociol. Instituição
baseada na crença da força sobrenatural, regulada pela
tradição, e constituída de práticas, ritos e cerimônias em
que se apela para as forças ocultas e se procura alcançar
o domínio do homem sobre a natureza.

A magia corresponde assim à tentativa de alterar uma ordem


estabelecida e tida como natural por meio de ações ou agentes que
operam em segredo. O aspecto maravilhoso, improvável e a
incompreensibilidade são características das visões sobre tais práticas.
Se observarmos a definição de milagre na religião dada pelo
Dicionário Aurélio (1986, p. 1133), vemos que é “qualquer
manifestação da presença ativa de Deus na história humana, ou sinal
dessa presença, caracterizado sobretudo por uma alteração repentina e
insólita dos determinismos naturais.” Grosso modo, o que difere a
mágica dos milagres religiosos aceitos como presença ou sinal de
Deus é ela estar fora dos cultos e religiões oficiais, regrados pelo
Estado e pela sociedade de forma mais ampla.
A magia assume contornos negativos ao longo dos séculos em
um longo caminho de demonização do conhecimento e cura pelas
ervas, dos ciclos da terra e, mesmo de saberes superiores que
possibilitavam a compreensão das leis do universo, há uma aversão ao
que é diferente, ao que não participa do mesmo grupo sócio-político-
religioso. O desejo de poder e manutenção do status quo fez surgir nas
sociedades, por meio de manipulação, o medo de culturas,
conhecimentos, visões de mundo e religiões díspares, levando ao
ataque a todo aquele que se encontra fora dos padrões adotados como
naturais ou normais pelo seu grupo.
Sabendo disso, este livro surge de uma inquietação: a bruxa
continua a assustar. O uso espontâneo da expressão corrente “ela é
uma bruxa” demonstra a persistência no imaginário do medo
irracional. Esse sentimento de medo irracional pode levar e tem
levado, ao longo do tempo, à estigmatização e mesmo a destruição do
diferente. Teme-se o diferente dotado de poderes sobrenaturais que
nos podem afetar. Esses sentimentos estão presentes em sociedades as
mais diversas, em todos os continentes e em diferentes épocas,
culturas e momentos. A morte de pessoas acusadas de bruxaria e que
prejudicariam os outros é atestada em toda parte. Isso se aplica às
sociedades atuais, em meio à difusão de que grupos ou indivíduos, por
seu comportamento ou convicções, têm o poder de prejudicar os
outros, o que chega a justificar a violência e até mesmo a sua
destruição.
Um exemplo brasileiro recente foi o famoso caso das Bruxas
de Guaratuba, divulgado em diferentes mídias, resultando em um
longo Podcast de 2018, em uma série de 2021 do canal de streaming
Globoplay e nos livros O Caso Evandro: Sete acusados, duas polícias,
o corpo e uma trama diabólica (2021) e Malleus: relatos de tortura,
injustiça e erro judiciário (2021). Tratou-se da acusação do brutal
assassinato de uma criança, ocorrido em 1992, contra um grupo de
sete pessoas, tendo duas mulheres, as chamadas Bruxas da cidade de
Guaratuba/PR, como principais mandantes e acusadas pelo crime.
Após sentenciados e presos por anos, em um processo que envolveu a
opinião pública em torno do tema da bruxaria e o preconceito contra
práticas de matriz africana no Brasil, foi descoberto que os acusados
confessaram sob tortura. Tal processo é o mais longo júri da história
da justiça brasileira. Em janeiro de 2022, as duas mulheres condenadas
receberam, por parte do estado do Paraná, um pedido de desculpas
pelas torturas e erros processuais. Esse caso atesta como ainda
permanecem vivas antigas crenças de bruxas assassinando crianças a
fim de realizar seus rituais, presentes já em uma literatura bem remota,
como em Horácio (Epodo 5) e Lucano (Farsália, VI, 558-559). Além
disso, o caso de Guaratuba mostra como, no Brasil, o imaginário
negativo em torno da magia se ressignifica cruzado com o preconceito
contra as religiosidades afro-brasileiras.
Sociedades ou grupos humanos auto definidos como
agnósticos ou ateus não deixam de apresentar a crença em poderes
ocultos de pessoas para prejudicar os outros. Esse tipo de sentimento
tem sido acentuado no ambiente virtual tão propício ao medo
conspiratório. A inquietação induziu-nos à reflexão, a pensar nos
múltiplos e contraditórios aspectos da bruxaria em suas manifestações,
narrativas e percepções.
Há uma grande diversidade de aspectos sobre o tema, a
começar por sua associação às mulheres, a tal ponto que chega a haver
títulos hilários como: Na Rússia ortodoxa, as bruxas eram homens
(https://zap.aeiou.pt/russia-ortodoxa-bruxas-homens-487307). “A
bruxas eram homens”, não eram bruxos! Isso mostra tanto que há um
viés de gênero, quanto sua delimitação cultural e histórica. Há bruxos
também, claro. Além disso, a bruxaria não precisa ser ameaça, pode
ser a favor do bem dos outros, às vezes chamada de “magia branca”, o
que remete a uma oposição entre negro/negativo e branco/positivo.
Negro não se refere, neste caso, à cor da pele, mas à dificuldade de
enxergar o perigo, e branco à luz que tudo esclarece, mas não muda o
uso racista de branco e negro aplicado à magia. Tudo isso inquieta-nos
e pareceu-nos apropriado e importante juntar um grupo de estudiosas e
estudiosos que pudessem refletir sobre os diversos e contraditórios
aspectos da bruxaria ou da mágica, em diferentes culturas e épocas, a
partir de diversas disciplinas acadêmicas, mas também tendo em vista
a repercussão social do tema hoje no mundo e no Brasil, em particular.
Convém tratar um pouco sobre como a magia/bruxaria foi
(mal)dita pela ciência acadêmica, em busca da objetividade e da
isenção. As últimas perseguições ou caça às bruxas oficiais ou
sancionadas pelas instituições, na Europa, ocorreram no século XVIII.
Isso já indica como o racionalismo iluminista foi marcante para a
substituição da estigmatização religiosa e institucional pela moderna
classificação cientificista da bruxaria como forma de perturbação
mental. O filósofo Michel Foucault trata bem dessa passagem de uma
sociedade moderna ocidental fundada no que chamou de poder
soberano para o poder disciplinar (MUHLE, 2002/2003). Este funda-
se na razão, na classificação e controle. Ainda que a bruxaria continue
a ser praticada em toda parte, inclusive na Europa, a razão iluminista
viria a moldar o estudo acadêmico do tema por longo tempo.
Prevaleceu uma contraposição entre religião e magia, ambas
consideradas irracionais e ilusórias, mas diferenciadas de algo
superior: a institucionalização da religião frente à atomização da
bruxaria. Também, e como consequência, a religião pôde ser
interpretada como normativa e estabilizadora das relações sociais, à
diferença da bruxaria e sua função destrutiva da ordem. Havia, ainda,
uma percepção imperialista e colonialista, para opor a religião
institucional, se possível ocidental, mas não só, frente às práticas de
indígenas africanas, americanas, asiáticas ou da Oceania. Napoleão
apresentou-se como defensor do Islã, no Egito, pelo princípio prático
de uma religião institucionalizada, qualquer uma, a favorecer o
domínio (SPILLMAN, 1969). A magia fugia do controle. Napoleão
defendia a religião institucionalizada, frente ao descontrole da magia.
Edward Burnett Tylor (2012) em seu Cultura Primitiva (1871)
teorizava a magia como perniciosa ilusão. James Frazer (1890), no seu
O Ramo Dourado (1890) estabelecia uma ordem em uma visão
evolucionista, da magia, para a religião, culminando na ciência. Os
primeiros sociólogos e antropólogos, como Durkheim (2003) (As
formas elementares da vida religiosa, 1912), Radcliffe Brown e
Malinowski enfatizaram as funções sociais das práticas mágicas
(HOMANS, 1941), com Evans-Pritchard (2013) completando com a
inclusão da magia no âmbito da religião e na cultura. Max Weber
(1919) chegou a propor um desencantamento (Entzauberung) do
mundo, um declínio das crenças mágicas, frente à racionalização da
modernidade ocidental. O conceito agenciado por Weber é Zauber,
relacionado com a noção de poder, dýnamis, daí mágica, encanto,
força superior. Até hoje, esse conceito weberiano de uma modernidade
desencantada tem gerado muita discussão. Como quer que seja, as
ciências sociais foram as grandes animadoras do estudo do tema, que
tardaria mais a chegar à História, Filologia, Filosofia ou Arqueologia,
sempre com grande influxo da teoria social proveniente da
Antropologia, da Sociologia e mesmo da Ciência Política. Alguns
momentos históricos mereceram particular atenção, com destaque para
a modernidade, quando os ambientes católicos e protestantes
perseguiram as bruxas (e os bruxos), aquelas pessoas todas acusadas
de bruxaria. Pouco a pouco, ampliou-se esse interesse para outras
épocas e culturas, da Sibéria e o seu xamanismo à África, Ásia,
América, do presente ao passado pré-histórico mais recuado.
Há, pois, muitos desafios ao tentar pensar sobre a inquietação
mencionada logo de início. São diferentes disciplinas, diversas
temporalidades e culturas, uma diversidade de perspectivas, o que
mostra bem, a nosso juízo, a fertilidade e relevância do tema. A
começar pelo fato de que a perseguição hoje, aqui e em muitas partes
do mundo, continua a apresentar-se como uma caça às bruxas, às
vezes com o uso aberto e explícito desse termo, outras vezes não, mas
sem deixar de usar os mesmos conceitos. O adversário ou inimigo
(satan, em hebraico, é o obstáculo, o advogado do diabo, aquele
encarregado de apresentar um obstáculo, aproximado do persa Angra
Mainyu, ou Espírito Destrutivo) é apresentado como manipulador de
forças sobrenaturais para prejudicar os outros. Por isso, deve ser
eliminado. Essas bruxas podem ser as de Salem, os judeus, os
comunistas, os pequenos agricultores (kulaks), os praticantes de
Umbanda e de Candomblés, entre tantos outros. Este volume insere-se
neste contexto acadêmico e social de estudo e reflexão sobre estes e
outros tantos aspectos da magia. Nossa reflexão parte, assim, tanto em
termos de representações, como também de práticas.
Os vinte capítulos que compõem este volume estão reunidos
em dois grandes grupos: “Rituais, oráculos e objetos mágicos” e
“Magos, feiticeiras e suas práticas”, buscando, desta forma,
congregar discussões que se complementam, apesar de abordarem
culturas e períodos divergentes.
Abrindo o primeiro bloco de textos, em Amuletos Mágicos
Mesopotâmicos: entre religião e arte, Katia Maria Paim Pozzer
analisa o amuleto conhecido como a “Placa dos Infernos”, objeto
artístico-mágico-religioso de grande excepcionalidade que pertence às
práticas religiosas no mundo mesopotâmico. A “Placa dos Infernos” é
uma placa em bronze fundido e esculpido, com duas faces e uma
complexa iconografia, associando, em um único amuleto, as entidades
demoníacas antagônicas Lamaštu e Pazuzu.
Abordando a Íynx, instrumento mágico, Fábio Vergara
Cerqueira nos brinda com um texto sobre essa pequena roda, por vezes
adornada de pássaros, usada em rituais propiciatórios ao amor. Em
Íynx: o feitiço de amor e a religião de Afrodite e Eros na iconografia
dos vasos ápulos (séc. IV AEC), o autor analisa a iconografia
encontrada no período e de como o objeto seria utilizado tanto por
prostitutas quanto por jovens nubentes para propiciar os dons de
Afrodite.
André da Silva Bueno apresenta um tema pouco conhecido do
público: Feitiçaria e Alquimia na China Antiga. Segundo o autor, a
feitiçaria é indissociável da história chinesa desde suas origens. Os
termos “feitiçaria”, “magia” e “bruxaria” são usados de forma
sinonímica, na China, para designar as tradições mágico-xamânicas
herdadas e desenvolvidas desde o neolítico, e que continuam a
acompanhar a sociedade até os dias de hoje.
No capítulo Escravidão e adivinhação no Império Romano:
Uma aproximação a partir das Sortes Astrampsychi, Filipe Noé da
Silva examina as Sortes de Astrampsico, um texto oracular composto
por 91 perguntas (elencadas entre os números 12 e 103) e 103 dezenas
de respostas, com o intuito de compreender os interesses associados à
consulta oracular realizada por pessoas escravizadas.
Já Aline Dias da Silveira brinda-nos com uma lição sobre
como fazer um anel mágico, ensinamento que se encontra no Libro de
Astromagia, século XIII. Produzido durante o reinado de Afonso X, de
Castela e Leão, o Libro de Astromagia também é um livro de imagens,
entendidas como talismãs, e esta é a função do anel de Mercúrio
analisado neste capítulo intitulado Magia como Fenômeno
transcultural: Lição I – como fazer um anel mágico (Libro de
Astromagia, séc. XIII).
Passando do século XIII para o XV, o capítulo Pomadas,
poções e unguentos: as reuniões secretas diabólicas em manuscritos
Alpinos do século XV, de Lívia Guimarães Torquetti dos Santos,
aborda os relatos oriundos de diversos julgamentos sobre os sabás e
feitiçaria, nos quais indivíduos são transportados pelos ares com a
ajuda de pomadas e unguentos.
Em um texto repleto de encantamento, Rogério Athayde nos
oferece uma visão sobre a literatura oral de Ifá em Magia, truque e
feitiço: as muitas faces do encantamento na literatura oral de Ifá.
Segundo o autor, são muitas as coisas que encontramos em Ifá: (i) Ifá
é outro nome de Orunmilá, a divindade iorubana da inteligência, do
conhecimento e da sabedoria; (ii) Ifá é igualmente o sistema de
divinação, organizado a partir de 256 Odu, ou “livros volumosos”; (iii)
Ifá é o corpo literário, onde podem ser encontradas as histórias e o
conhecimento ancestral dos iorubás; (iv) Ifá é a medicina tradicional,
o conhecimento do herbário iorubano; (v) Ifá são os poemas, os esé
Ifá, que os sacerdotes da religião são treinados a recitar longamente;
(vi) Ifá, por fim, é também a capacidade de proferir “palavras de
poder”, os ofó, encantamentos que assegurem a efetiva realização dos
rituais sagrados.
Em Raios e ventos: narrativas mágicas sobre Santa Bárbara e
Iansã, Debora Simões de Souza, utilizando a metodologia da
observação participante, analisa um conjunto de narrativas mágicas e
míticas que contêm possíveis acontecimentos da vida de Santa
Bárbara e Iansã, feitas por devotas da santa e da orixá, moradoras de
Salvador, na Bahia. Na leitura proposta pela pesquisadora, as
narrativas sobre a vida de Santa Bárbara e da orixá Iansã são forças,
ou seja, são expressões que se configuram como elementos da magia.
Com Alexandre Guida Navarro descortinamos o universo das
Mulheres encantadas e dos lagos mágicos presentes nas estatuetas
femininas das estearias do Maranhão. Fruto de seus últimos trabalhos
de campo nas estearias maranhenses, o autor discute as diferentes
possibilidades de interpretação sobre as estatuetas à luz das teorias
arqueológicas e etnológicas das Terras Baixas da América do Sul,
como, por exemplo, o xamanismo.
Fechando o primeiro grupo de textos, Raquel dos Santos
Funari nos oferece um material didático sobre como trabalhar O uso
da magia egípcia no ensino: os amuletos em sala de aula. A partir do
conceito de inventário das diferenças, a autora explora a
particularidade dos amuletos egípcios antigos e as diferenças com o
mundo contemporâneo, abordando, a partir deles, conceitos como
historicidade e diversidade.
O segundo grupo de capítulos, “Magos, feiticeiras e suas
práticas”, principia com o texto O corpo encantado. Do mito aos
contos maravilhosos, de Flávia Marquetti, que faz um levantamento,
desde a Antiguidade Clássica até o século XIX, da imagem de magos,
feiticeiras e do espaço que ocupam na sociedade. Correlacionando
informações históricas e antropológicas ao imaginário e à tradição
literária sobre as bruxas.
Na sequência, Semíramis Corsi Silva discute, em Gênero e
Magia em Roma: as feiticeiras Canídia e Ságana na Sátira I, 8 de
Horácio, a criação literária das primeiras feiticeiras de Roma e,
consequentemente, personagens de grande valor para nossa percepção
de elementos de gênero na criação do estereótipo da mulher praticante
de magia. Horácio é considerado o poeta romano que mais escreveu
sobre o tema da magia, sendo Canídia e Ságana personagens literárias
que contribuíram para o desenvolvimento de um imaginário sobre a
magia, mais especificamente sobre a mulher feiticeira, que acabou
ultrapassando as fronteiras do antigo Império Romano, constituindo-se
como um protótipo da bruxa velha e má.
Juliana Batista Cavalcanti aborda um tema pouco difundido e
de grande interesse: Maria, a mãe de Jesus, como uma maga: gênero,
poder e magia entre os primeiros cristãos. A partir da coleção de treze
códices contendo cinquenta e dois textos diferentes, todos escritos em
copta, oriundos da Biblioteca de Nag Hammadi, a autora explora
como Maria, a mãe de Jesus, personifica um dos três pares místicos
presentes na gnose valentiniana, carregando consigo mistérios ou
conhecimentos que estão disponíveis apenas aos iniciados por meio de
rituais como o batismo, a ceia, a câmara nupcial e a unção.
Carlos Eduardo da Costa Campos e Renata Cazarini de Freitas
abordam em seus respectivos capítulos as defixiones, textos de
conteúdo mágico, geralmente contendo maldições que eram escritas
em tábuas ou folhas de chumbo gravadas com incisões, do período
romano. Em As tabellae defixionum do Lácio (I AEC – II EC): uma
análise sobre os lugares de depósito, Carlos Eduardo da Costa
Campos mostra-nos os caminhos percorridos pelas inscrições
presentes nas áreas portuárias de Óstia e Minturno, assim como nas
Vias Ostiense, Ápia e Nomentana. A análise dos locais de depósitos
das defixiones indicam áreas de vinculação de forças energéticas que
eram consideradas capazes de transportar a solicitação materializada
na placa de maldição aos deuses ou espíritos, de modo a conectar os
agentes da magia.
Renata Cazarini de Freitas em Sem perdão: em busca de
justiça (ou vingança?) usando defixiones na antiga Mogontiacum
(Mainz), traduz e analisa seis placas encontradas em Mainz, estas
evocam a figura dos sacerdotes de Cibele (Mater Magna) conhecidos
como galli, que se castravam em rituais delirantes. Outros elementos
compositivos do repertório das defixiones de Mainz são a punição com
morte em espaço público e a impossibilidade de redimir-se pelo crime
cometido em um santuário murado.
Em Druidismo e Magia: rituais sagrados entre os celtas,
Silvana Trombetta analisa como eram feitas as predições do futuro
pelos druidas, realizadas através da leitura de vísceras de animais
sacrificados, voos de pássaros, utilização de plantas alucinógenas e
uso de objetos especificamente confeccionados para tal fim, como as
runas ou as colheres divinatórias. Essas práticas eram comumente
utilizadas entre os povos germânicos e escandinavos e seu uso
associava-se às práticas de cura.
Em Barrados no baile. A Península Ibérica e a festa das
bruxas, de Carlos Roberto Figueiredo Nogueira, o foco são os sabbats
e as crenças do final da Idade Média e início dos tempos modernos na
Espanha, quando todas as crenças que dão vida e solidez à existência
da bruxaria europeia inexistem ou estão deformadas. Em sua análise, o
autor estabelece a correlação entre bruxaria, grupos estrangeiros e
culturas diferentes das autóctones.
Francisco de Paula Souza de Mendonça Júnior nos brinda, em
seu texto “Essa é a mais perfeita e principal ciência, a mais sagrada e
sublime espécie de filosofia”: reflexões sobre as relações entre magia
e scientia nos renascimentos dos séculos XV-XVI, com a discussão
sobre as fronteiras entre religião, magia e ciência, apresentando o
quanto essa relação não é tão linear como geralmente alguns teóricos
apresentam. Com grande embasamento teórico, o autor faz um extenso
levantamento do pensamento sobre magia e alquimia no
Renascimento, demonstrando que a habilidade técnica era semelhante
à potência mágica no esforço de criação de maravilhas, ambas tinham
como objetivo compreender e direcionar as relações simpáticas que
moviam o mundo a fim de energizar seus próprios projetos.
Em O catimbó nordestino, Sandro Guimarães de Salles discute
o Catimbó, uma das primeiras manifestações da prática da Jurema em
contextos não indígenas, e que ainda se mantém como uma das
principais referências no cenário das religiões populares nordestina.
Sandro explica que a Jurema, cujo nome deriva de uma planta de igual
nome, consiste em um complexo semiótico e religioso, com origem
nos povos indígenas no Nordeste, fundamentado no culto a entidades
denominadas de mestres, caboclos ou reis. As imagens e os símbolos
presentes nesse complexo remetem a um lugar sagrado, descrito pelos
juremeiros como “reino encantado”, “encantos”, “cidades da Jurema”,
entre outros. A planta de cujas raízes ou cascas se produz a bebida
tradicionalmente consumida durante as sessões é o símbolo maior do
culto. É ela a “cidade” do mestre, sua “ciência”, simbolizando ao
mesmo tempo morte e renascimento. O Catimbó e a prática da Jurema
entre os povos indígenas (do período colonial à contemporaneidade)
expressam uma resistência à colonialidade, segundo o autor.
Fechando o segundo bloco de textos, Dolores Puga nos traz
para o contemporâneo e o universo da arte com “Evoé”: do delírio
dionisíaco em Eurípides à macumba antropofágica na obra Bacantes
do Teatro Oficina. Discorrendo sobre os ritos dionisíacos, thiasos, e as
tragédias gregas, sobretudo As Bacantes, de Eurípedes, Puga apresenta
o lado estrangeiro do mito/rito e de como ele chega ao Brasil atual
com o Grupo Oficina. O grupo do diretor Zé Celso Martinez Corrêa
construiu um vínculo de identificação sustentado pelo viés de práticas
culturais julgadas, como as religiosidades africanas e afro-brasileiras,
bem como os rituais Tupinambás. O exercício de apropriação cultural,
Grécia/Brasil, apontado pela autora, dialoga com vários textos
presentes na coletânea, ao apontarem a xenofobia e o desprezo por
culturas diferentes como mote para a feitiçaria, compreendida grosso
modo como coisa do demônio.
Este livro traz contribuições brasileiras ao tema, com textos de
pesquisadores e pesquisadoras nacionais. Esperamos, com isso,
desvendar algumas questões ligadas à magia e revelar que o correto
seria falarmos de atos mágicos e não de uma magia única, uma vez
que essas práticas existem em diferentes sistemas culturais e compõem
a trama de suas sociedades.
Semíramis Corsi Silva, Flávia Regina Marquetti e Pedro Paulo A. Funari

Semíramis Corsi Silva


Flávia Regina Marquetti
Pedro Paulo A. Funari

Referências

Documentação
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Parte 1
Rituais, Oráculos e Objetos Mágicos

O abstrato Ser em sua abstrata ideia


Apagou-se, e eu fiquei na noite eterna.
Eu e o Mistério — face a face.

FERNANDO PESSOA
Amuletos Mágicos Mesopotâmicos: entre
religião e arte
Katia Maria Paim Pozzer1

As práticas religiosas no mundo mesopotâmico legaram


abundantes registros na documentação textual, na cultura material e
em objetos artísticos. A crença em forças sobrenaturais que regiam a
vida humana se expressou em inúmeras preces e rituais mágicos. Eles
eram executados por especialistas, com o auxílio de amuletos que
adquiriam propriedades apotropaicas graças a enunciação de
encantamentos e a realização de gestos ritualísticos. Neste capítulo
propomos analisar um objeto artístico-mágico-religioso de grande
excepcionalidade, o amuleto conhecido como a “Placa dos Infernos”
(ENGLER; STANBERG, 2020).

Introdução

A configuração política baseada nas cidades-Estado


mesopotâmicas contribuiu para a formação de concepções religiosas
múltiplas, com inúmeros divindades. Cada cidade-estado possuía uma
divindade protetora e um panteão próprio, onde a sucessão no poder e
as características espirituais dessas divindades se alteravam ao longo

1 Bacharel e licenciada em História pela UFRGS, obteve Diplôme d'Études


Approfondies em Histoire et Civilisations de L'Antiquité pela Université Paris I
(Panthéon-Sorbonne) em 1993, concluiu doutorado em História na Université de
Paris I (Panthéon-Sorbonne) em 1996 e Pós-doutorado na Université de Paris X -
Nanterre em 2011. Atualmente é Professora Adjunta do Curso de História da Arte,
no Instituto de Artes e do Programa de Pós-graduação em História da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul.
Katia Maria Paim Pozzer

do tempo (POZZER, 2008). Segundo o imaginário mesopotâmico,


essas divindades estavam divididas em dois grupos: as que habitavam
os céus e aquelas que residiam no mundo inferior, também chamado
de infernos. O primeiro grupo era formado por deuses responsáveis
pelos acontecimentos na vida terrena dos homens. Já o segundo grupo
era composto por entidades de categoria inferior, que ali se
encontravam como punição por terem infringido regras morais e éticas
que regiam a vida divina e que eram o espelho para o comportamento
humano. Segundo essa concepção, o mundo inferior também era a
morada definitiva dos mortos, um lugar do qual ninguém poderia sair.
Na antiga Mesopotâmia, a magia fazia parte da vida cotidiana.
Ela era usada para proteção contra os demônios, curar doenças,
aumentar a potência sexual, conquistar a paixão de alguém, acalmar o
choro das crianças, impedir os malefícios oriundos das atividades de
divindades demoníacas, além de muitas outras funções. Assim, eles
acreditavam que o gesto e a palavra possuíam capacidade de
intervenção no meio natural que o cercava através da magia. Os
conjuros repousavam na força da palavra, uma vez que na tradição
semita, o verbo era criador. Assim, a enunciação de um bem ou de um
mal era suficiente para garantir sua gênese. Já os ritos manuais tinham
sua origem no poder do gesto, na capacidade destrutiva ou
transformadora de diversos produtos naturais ou elementos
primordiais como a água e o fogo (POZZER, 2017).

22
Amuletos Mágicos Mesopotâmicos

Muitos dos textos preservados são encantamentos e fórmulas


mágicas nas línguas suméria, acádica, elamita, entre outras, que
descrevem rituais dirigidos ao mago, as ações que ele deveria fazer, as
listas dos encantamentos a serem usados para cada caso, o que deveria
ser dito por ele ou pelo paciente, e os amuletos contendo excertos de
magia. Os encantamentos eram ritos orais complementares às
operações e gestos mágico-religiosos, realizados para combater o mal
que os afligia. Estes textos eram recitados por técnicos em
curandeirismo e magia, os exorcistas, āšipu2, encarregados também de
levar a cabo as ações ritualísticas mágicas que poderiam ser feitas em
domicílios privados ou no templo e receitar os ingredientes e os
fármacos (JOANNÈS, 2000, p. 43).
O propósito do ritual mágico era revogar o sofrimento que
impedia o bem-estar e o desfrute normal da vida concedida a cada um.
E eles eram executados com o auxílio de amuletos de caráter
apotropaico (BOTTÉRO, 1987-1990, p. 201). Os mesopotâmicos
acreditavam que esses infortúnios eram uma punição divina, causada
por uma ação contrária aos princípios éticos da sociedade ou, por
alguma ofensa aos deuses. Assim, a literatura mágica tinha por
objetivo a eliminação dos males que acometiam o homem, fossem eles
causados pela possessão demoníaca ou decretados por quem
administrava o destino, os deuses.

2CAD A/II 431, em sumério chamado de lú.maš.maš/lú.ka.pirig ou lú.mu7.mu7, e


em acádico de mašmaššu/(w)âšipu.

23
Katia Maria Paim Pozzer

Os Amuletos e o Poder das Imagens

A discussão sobre o status da representação visual na


Mesopotâmia é uma questão fundamental para a história da arte do
Antigo Oriente Próximo. A noção axiomática de que a representação é
um meio de imitação de coisas reais do mundo não é válida para
entendermos a arte da antiguidade oriental, uma vez que eles
acreditavam no poder dos significantes e de seu status como parte
integrante do real (BAHRANI, 2003, p. 122.)
No vocabulário mesopotâmico a palavra acádica Ṣalmu é
utilizada para se referir a representação, podendo ser traduzida por
estátua, relevo, monumento, pintura e imagem. A eminente assirióloga
Irene Winter (2010, p. 80) diz que a imagem não é uma réplica natural,
mas sim um código convencionado, culturalmente mediado, uma
representação idealizada da realidade. A imagem na antiga
Mesopotâmia não era considerada como semelhante à uma realidade
original que estava presente em outro lugar, mas ela continha a
realidade em si mesma (imagem). Esta noção de representação seja
possível era baseada na ideia que o domínio do real incluía, por
definição, múltiplas camadas e um complexo sistema de signos que
Bahrani (2003, p. 127) descreve como “realmetasemiótico”. O que
para o pensamento moderno é ilusão, para eles está no campo do
conhecimento empírico. Esta é a razão porque os textos de
adivinhação são lidos literalmente como os signos cuneiformes
incorporados ao real. Para os mesopotâmicos tudo pode ser lido com

24
Amuletos Mágicos Mesopotâmicos

um signo que se refere a algo além da superfície aparente. Assim, a


representação visual pode ser codificada, incorporada ao real e ter uma
influência profética.
Não existem palavras em língua acádica para nomear amuletos
ou talismãs. Os amuletos mesopotâmicos poderiam ter a forma de
colares de pedra, de placas em metal com cenas figurativas gravadas,
de pequenas estatuetas ou ainda de selos-cilindros. Estes objetos
adquiriam valor mágico a partir da sua consagração, através de
encantamentos e rituais realizados a este fim. O suporte material no
qual o amuleto foi confeccionado também conservava propriedades
apotropaicas que poderiam ser intensificadas pela aposição de
pequenas inscrições de conjuros. Estes talismãs serviam para obter a
proteção particular de uma divindade, para afastar elementos
maléficos e para influenciar beneficamente a vida cotidiana. Os deuses
citados nestes objetos estavam entre os mais importantes do panteão:
Anu (deus do céu), Enlil (rei dos deuses), Ea (divindade responsável
pela criação da humanidade), Adad (deus da tempestade), Šamaš (deus
sol), Ištar (deusa do sexo e da guerra) e Gula (protetora da saúde),
dentre outros (BLACK; GREEN, 1998).

A iconografia dos monstros


Nos estudos de arte mesopotâmica, a palavra demônio é usada
para identificar representações híbridas, antropozoomorfas, já o termo
monstro é utilizado para nomear criaturas formadas a partir de
composições de diferentes animais. Segundo E. Porada (1987, p. 2-3)

25
Katia Maria Paim Pozzer

o desenvolvimento da representação de monstros e de demônios na


arte mesopotâmica se deu ao longo de cinco fases cronológicas. O
período de Ubaid e Uruk (3700-2900 AEC) foi a fase formativa,
quando elementos de diferentes animais se combinaram pela primeira
vez para compor criações híbridas. No período acádico (2334-2004
AEC), os seres maléficos eram mostrados sendo capturados ou
julgados, evocando uma visão otimista da realidade, baseada na
estabilidade política. Na arte paleobabilônica (2004-1595 AEC) há
muitas representações mesclando motivos benéficos e maléficos da
humanidade. No período cassita e médioassírio (1796-1077 AEC) a
ênfase é dada às imagens de seres híbridos, com corpo humano e
cabeça de animal. Já a arte neoassíria e neobabilônica (911-539 AEC)
acentua a representação de divindades maléficas e de demônios que
seriam índices de um novo conceito de vida após a morte, onde o
mundo inferior era habitado por essas criaturas (GREEN, 2006, p.
1847).
Como seres irreais, os monstros são abstrações personificadas.
Essas abstrações podem ser derivadas de suas associações com certos
deuses e de seu comportamento descrito na arte e na literatura, onde
um conjunto de elementos, com valores simbólicos naturais, compõem
suas características. Em seu estudo sobre os espíritos protetores
mesopotâmicos, Wiggermann (1992, p. 150) conclui que a formação
de monstros foi um processo contínuo que começou no período
protoliterado (4000-3000 AEC) e continuou ao longo do terceiro e do
segundo milênio.

26
Amuletos Mágicos Mesopotâmicos

O antropomorfismo foi um processo longo e contínuo que não


afetou todo o panteão de uma única vez. A primeira divindade que
assumiu a forma humana foi Inanna, ainda que uma de suas origens
seja Vênus, a estrela da manhã. Um dos mitos que confere
legitimidade ao governante na cidade de Uruk é baseado no casamento
do rei com a deusa, e isto seria inconcebível sem o aspecto
antropomorfo da divindade. A iconografia deste mito é representada
no chamado Vaso de Uruk que mostra um homem trazendo presentes
para a deusa (ou sua representante humana) e recebendo em troca o
poder monárquico (BAHRANI, 2011, p. 136). No final do período
Akkad (2334-2200 AEC), os deuses mais importantes como Nanna,
Utu, Inanna, Enki, Ninurta, se tornaram antropomórficos.
O estabelecimento da complementaridade formal entre seres
divinos e animais revela uma característica essencial dos monstros e
dos fenômenos inspiradores que eles representam. Ao contrário dos
deuses antropomórficos, os monstros estão fora da ordem natural do
mundo, eles são aberrações sobrenaturais, inesperadas, imprevisíveis e
ameaçadoras. Essa alteridade determina as relações entre deuses e
monstros até o final da civilização mesopotâmica. O monstro é um ser
híbrido por natureza que tem como atribuição primordial perturbar a
ordem cósmica e, secundariamente, ter funções apotropaicas (OUMI,
2019/2020, p. 158).
Cada monstro está associado a um deus que opera no mesmo
campo de ação, mas enquanto a divindade abrange o todo, o monstro

27
Katia Maria Paim Pozzer

se restringe a uma parcela. Enquanto os deuses eram responsáveis por


uma estabilidade duradoura, os monstros intervinham nos assuntos
humanos, como a preservação da vida, a morte súbita e violenta, a
proteção da paz e também a guerra e as ocorrências climáticas.
Essa construção conceitual se organiza em torno da própria
noção de monstruosidade, que surge como resultado de questões
estéticas e críticas. A entidade mitológica aparece como uma
construção metafísica, ideológica e figurativa que se refere a uma
certa forma de ameaça, acidental e condicional, ou a um processo de
deformação que visa alterar a relação com os outros, bem como o
reconhecimento da humanidade desta alteridade. Assim, o conceito de
construção monstruosa gira principalmente em torno da ideia da
natureza do monstro e possibilita questionar sua relação com uma
determinada sociedade, permitindo uma análise histórica dessas
concepções e mentalidades (WIGGERMAN, 1992, p. 168).
Essas criaturas monstruosas aparecem como o espelho de
reflexos e concepções das sociedades antigas e como representação
simbólica da alteridade. No Oriente, os monstros se situam em um
território distante da comunidade de referência que veicula os mitos
sobre eles, ou em um ambiente ctônico infernal. Esta localização
geográfica do monstro remete à ideia de que o Outro é diferente,
porque não compartilha o mesmo espaço físico da civilização urbana.
Ainda que não tenham sido encontrados textos que orientem
modelos iconográficos para a composição dos amuletos e das imagens
dos demônios, verifica-se que os animais presentes nas composições

28
Amuletos Mágicos Mesopotâmicos

monstruosas fazem referências à fauna local, como por exemplo o


escorpião, o cão, a águia, o leão, entre outros.

Os Demônios Lamaštu e Pazuzu

Nos períodos neoassírio e neobabilônico, veremos surgir o


mito que evoca duas divindades malignas do submundo Lamaštu e
Pazuzu. A iconografia da deusa Lamaštu, filha de Anu, pode ser
reconhecida pela sua presença em placas de pedra e cobre, algumas
das quais com inscrições que a nomeiam. Da mesma forma, o deus
Pazuzu, filho do deus Hanbu e rei dos demônios do vento, é
representado por um grande número de estatuetas de pedra, cobre e
barro cozido, contendo encantamentos e se referindo ao seu nome. Na
Placa dos Infernos, o deus Pazuzu é mostrado ameaçando Lamaštu e
forçando-a a voltar para o submundo, claramente indicado pelo rio do
submundo em que seu barco flutua. Trata-se de um mito literário
perdido, mas que pôde ser inferido a partir da arte.
A iconografia dos amuletos mudou ao longo do tempo e
tornou-se cada vez mais complexa. No início do III milênio AEC, a
figura de Lamaštu ocupava toda a superfície do objeto, tinha poucos
detalhes e, às vezes era acompanhada de um friso de triângulos
profiláticos. No decorrer da segunda metade do II milênio AEC
surgem mais variantes de sua representação, sendo os triângulos
substituídos por emblemas simbolizando outras divindades. Masson
(2014/2015, p. 24) aponta que no I milênio AEC Lamaštu é

29
Katia Maria Paim Pozzer

acompanhada também de uma cena de exorcismo e uma série de sete


cabeças de animais em posição de ataque.
Não existe consenso quanto a origem desta divindade. Alguns
defendem que ela tenha origem em uma figura presente na mitologia
proto-elamita. Nos textos das lamentações há referências a ela como
“uma mulher elamita” ou “amorrita” que podem ser interpretados
como a constituição de uma alteridade, onde a figura do outro é
monstruosa. No período de Ur III (2140-2004 AEC) seu nome sumério
era DIM.ME, que pode ser traduzido por “corpo”, “figura” ou
“fantasma” e ela fazia parte de um grupo de sete demônios que não
possuíam características individuais. Seu nome acádico, Lamaštu,
aparece nos textos bilíngues do final do III milênio e início do II
milênio AEC e passa a receber o determinativo divino “dingir”
antecedendo o seu nome próprio como indicativo de sua condição
divina (MASSON, 2014/2015, p. 25, n. 85 e 86).
Lamaštu é uma divindade importante pois é filha de Anu, deus
dos céus e irmã de Ištar, a principal divindade feminina do panteão.
Segundo a mitologia, Anu, seu pai, decide expulsá-la dos céus por
mau caráter e afronta a princípios éticos e morais, quando ela pede
para jantar a carne e o sangue dos humanos. Lamaštu torna-se, assim,
uma divindade expulsa dos céus, por sua natureza malvada e cruel,
pois ao cair na terra ela passa a atacar e assassinar bebês recém-
nascidos. Esse ato é repudiado pelos deuses uma vez que, segundo a
mitologia mesopotâmica, os homens poderiam ser castigados por não

30
Amuletos Mágicos Mesopotâmicos

servirem corretamente os deuses, regra que não se aplica às crianças


evidentemente, incapazes de realizarem essas tarefas (WIGGERMAN,
2000, p. 243).
Atualmente o conceito de demônio é um termo com conotação
judaico-cristã, bastante diferente do imaginário antigo-oriental. Na
Bíblia, o demônio era um anjo caído do céu. Segundo J. Baschet
(2002, p. 321) a queda dos anjos constitui o ato de nascimento do
Diabo e marca o ingresso do mal no Universo:
(...) esse mito é narrado em 2 Pedro 2,4; Judas 6 e
explica que a queda dos anjos se deu porque foram
seduzidos pela beleza das mulheres e queriam se unir
carnalmente a elas. Assim, os demônios eram anjos que
habitavam os céus e foram punidos por seus desejos,
foram criados bons, mas transformaram-se em maus por
vontade própria. Os demônios levam os homens ao
pecado pela tentação e pelo vício.

Já os demônios mesopotâmicos são espíritos maus que


prejudicam os mortais, são seres sobrenaturais de segunda classe que
agiriam sob as ordens dos deuses para punir os homens por suas
ofensas (BOTTÉRO, 1987, p. 277). Os textos mencionam que
Lamaštu, às vezes, se fazia passar por ama-de-leite e seu leite era um
veneno, outras vezes ela estrangulava seus mártires. Ainda que os
recém-nascidos fossem suas vítimas favoritas, ela podia atacar pessoas
de todas as idades, provocar depressão e febre e ainda destruir o meio
ambiente (ARUZ, 2014, p. 264).
Lamaštu ocupa uma posição única no panteão mesopotâmico
como filha do deus Anu (céu) e arquétipo das forças do caos depois de

31
Katia Maria Paim Pozzer

sua expulsão do céu. Seus crimes específicos são desconhecidos, mas


o mito sugere que ela tenha pedido para se alimentar da carne dos
bebês. Acredita-se que ela teria sido enviada a terra como punição por
desrespeitar as regras da ordem cósmica, atacando mortais com
intencionalidade e sem causa evidente e que este também seria um
método de controle de natalidade, segundo o imaginário da época
(SAID, 2020, p. 102).
Outra entidade demoníaca da maior importância no imaginário
mesopotâmico é Pazuzu. Documentos de cunho religioso identificam
Pazuzu como filho do deus ctônico Hanbu e como rei dos demônios
alados. Wiggerman (1992, p. 72) sustenta que o nome de Hanbi/Hanpa
venha da raiz linguística oeste-semítica para HNP, significando
“claudicar, ser pervertido” e que essas características corresponderiam
a aparência monstruosa de Pazuzu. Existem algumas hipóteses que
tentam explicar a origem de seu nome. Uma delas propõe que seu
nome derivaria da raiz PZZ em aramaico e que pode ser traduzida
como “ser impetuoso, ágil”. Outra sugere originar-se do babilônico
“pessû”, cujo significado é anão. Esta interpretação propõe ainda uma
associação iconográfica com a divindade egípcia Bes, um anão
disforme, protetor das mulheres grávidas e dos recém-nascidos.
Pazuzu possui o determinativo divino dingir precedendo seu nome e
este é um caso único entre os demônios (BLOTTIÈRE, 2005, p. 42).

32
Amuletos Mágicos Mesopotâmicos

Masson (2014/2015, p. 74) avança que o demônio Pazuzu


surgiu no final do II milênio AEC3 como antagonista de Lamaštu, uma
entidade demoníaca feminina que se individualizou e ganhou destaque
na mitologia, neste mesmo período.
O mito de Pazuzu, constantemente evocado na documentação,
descreve uma confrontação dele com a “montanha potente” que resiste
à sua autoridade. Ele é comparado à um “vento furioso” que acaba por
submeter a montanha e seus habitantes maléficos. Assim, este
demônio-deus vence seus inimigos utilizando-se de forças da natureza
e de sua potência destruidora.

A Placa dos Infernos

Atualmente conservada pelo Departamento de Antiguidades


Orientais do Museu do Louvre, em Paris, a placa do conjuro,
conhecida como a “Placa dos Infernos” e identificada pelo código AO
22205, foi confeccionada na Assíria, entre 911 e 604 AEC e
encontrada na Síria, segundo o catálogo online do museu. Trata-se de
uma placa em bronze fundido e esculpido, com duas faces e uma
complexa iconografia, associando, em um único amuleto, as entidades
demoníacas antagônicas Lamaštu e Pazuzu (Musée du Louvre, 2022).

3 Ele está presente em um grande número de amuletos apotropaicos deste período.

33
Katia Maria Paim Pozzer

Figura 1: Placa dos Infernos c. 911-604 AEC


Bronze, 13,8 X 8,8 X 2,5 cm. Paris, Museu do Louvre
Fonte: Aruz; Graff; Rakic, 2014, p. 264

Esta placa de bronze apresenta, no verso, quatro registros,


demarcados com linhas entre eles. Na linha superior observamos um
friso com os símbolos4 de importantes divindades (da esquerda para a
direita): a tiara com chifres do deus Anu5; o bastão com cabeça de
carneiro de Enki6; o raio de Adad7; a pá de Marduk8; o duplo estilete
do deus Nabû9; a estrela de oito pontas de Ištar10; a lua crescente de
Sîn11; a lamparina de Nuska12 e os sete círculos das Pleiades13. A

4 O simbolismo associado às divindades é tema amplamente estudado e grande parte


deles está estabelecido (Black; Green, 1998).
5 Anu, rei dos deuses.
6 Enki, aquele que concebeu a humanidade.
7 Adad, o deus da tempestade.
8 Marduk, o deus supremo de Babilônia.
9 Nabû, o deus da escrita.
10 Ištar, deusa do sexo e da guerra.
11 Sîn, o deus-lua.
12 Nuska, deus associado ao fogo e à luz.
13 Pleiades, a constelação astral, símbolo dos 7 demônios.

34
Amuletos Mágicos Mesopotâmicos

segunda linha mostra sete demônios antropozoomorfos, com corpos


humanos e cabeças de animais (da esquerda para a direita): pantera;
leão; lobo; carneiro; íbex; águia e serpente. Os sete demônios, em
posição de ataque, são representados com a cabeça de perfil e o tórax
em posição frontal, portando um longo vestido, com o braço direito
levantado. O terceiro registro contém uma cena de exorcismo ou de
cura de um doente. Da esquerda para a direita vê-se uma lamparina
que repousa sobre um tripé, o doente está em decúbito dorsal, com o
braço direito elevado a frente, sobre uma estrutura que pode ser uma
cama ou mesa. Ele está cercado por dois ašipu, representados de perfil
e vestidos com a capa de homens-peixe14, segurando na mão esquerda
um pequeno balde, tendo a mão direita levantada à frente. Ao lado,
observa-se dois seres com corpo humano, cabeça de leão e garras de
ave de rapina no lugar dos pés, representados um de frente para o
outro, com as mãos direitas se tocando e a esquerda levantada, que
podem ser identificados como ugallu, figuras protetoras de doenças ou
demônios maléficos e ao seu lado vemos o deus Lulal-irra (BLACK;
GREEN, 1998, p. 119-121). A linha inferior possui muitos elementos,
mas destaca-se, no centro, a figura de Lamaštu, com cabeça de leão,
corpo recoberto de pelos e garras no lugar dos pés. Ela está com a
perna direita flexionada sobre um asno, que por sua vez, tem as patas
dianteiras ajoelhadas dentro de uma embarcação que flutua em um rio
com cinco peixes, e segura duas serpentes, uma em cada mão.
Lamaštu amamenta um cão e um porco e sob sua perna esquerda há
uma tênue figura de um escorpião, sua perna direita parece estar

14 Um tipo de exorcista, geralmente representado em dupla.

35
Katia Maria Paim Pozzer

amarrada a um pequeno arbusto na beira do rio e duas tamargueiras


(MASSON, p. 71, n. 325). No canto superior direito deste registro
observa-se uma jarra de óleo, um cálice, uma fíbula, um pé de asno,
um par de sapatos e um cobertor simbolizando as provisões
necessárias para Lamaštu realizar sua viagem ao mundo dos mortos.
Contudo, outro elemento traz grande originalidade a este amuleto.
Sobre a parte superior da placa, temos uma escultura de vulto
representando a cabeça e os dedos de Pazuzu, com a boca aberta em
posição frontal e ameaçadora, literalmente agarrando a placa. O
reverso mostra as costas de Pazuzu, suas quatro asas, o rabo de
escorpião, o pênis em forma de cabeça de cobra e as garras de águia
nas patas traseiras.
A confecção da placa foi realizada com uso de técnica mista.
Inicialmente o bronze foi derretido e depositado em um molde e,
posteriormente, com a escultura fria, foi feita a gravação da imagem
do reverso.
Podemos sugerir uma leitura simbólica da iconografia deste
amuleto, destacando alguns aspectos ali evocados. O primeiro
elemento que chama a atenção é a associação entre Lamaštu e Pazuzu
em um único objeto, onde a gestualidade deste último realça sua
função protetora, uma vez que ele “segura fortemente” a placa e grita
para espantar a demônio (sua boca aberta, com as presas à mostra
remete ao ato de gritar). O segundo elemento é composto pelas duas
primeiras linhas do verso, onde estão representados os principais
atributos de divindades supremas do panteão. Na primeira linha, a
evocação de símbolos e/ou objetos seriam suficientes para informar

36
Amuletos Mágicos Mesopotâmicos

todos aqueles que visualizassem a placa sobre os deuses envolvidos


nos rituais relacionados à Lamaštu. A segunda linha traz a versão
antropozoomorfa dos setes demônios da qual, segundo a mitologia do
período arcaico, Lamaštu fazia parte e estaria na sua origem, antes de
seu processo de individualização nos textos. O terceiro elemento
mimetiza um ritual de exorcismo, onde o paciente está cercado pelos
sacerdotes e guardiões, que representa uma prática mágico-medicinal
bastante difundida na Mesopotâmia. O último registo condensa os
principais conjuros contra a demônio, representando Pazuzu em gesto
de ataque. Lamaštu, por sua vez, está cercada de animais referenciados
nos textos de sua mitologia. A vegetação, os objetos e a embarcação
fazem uma clara alusão à viagem que Lamaštu é conjurada a realizar,
para o mundo inferior, desfazendo, assim, a ameaça aos humanos.
Ao contrário de outros demônios do antigo Oriente Próximo,
Lamaštu tem uma mitologia composta por uma série de
encantamentos e rituais em textos do II e do I milênio AEC
acompanhada de uma rica iconografia.
Em seu estudo sobre a Placa dos Infernos, Masson (2014/2015)
apresenta algumas das inscrições dos amuletos de conjuros contra
Lamaštu. O autor identifica três tipos de amuletos, segundo os
diferentes períodos históricos. O tipo 1, do período paleobabilônico ao
médio-babilônico e o tipo 2, do médioassírio contêm, em sua maioria,
um encantamento que apresenta os méritos de Lamaštu, depois
anuncia que ela é uma ameaça para a humanidade e encerra com um

37
Katia Maria Paim Pozzer

conjuro dirigido diretamente a ela. A seguir apresentamos um


excerto15 (MASSON, 2014/2015, p. 62):

Oh Lamaštu, filha de Anu, eminente entre os deuses.


Innin, a maior princesa
Mas também pegajosa, grande demônio asâkku,
Fantasma que oprime fortemente a humanidade:
Esta Lamaštu exaltada não deveria se aproximar do
homem,
Possas tu estares ligada pelo destino dos céus,
Ligada pelos destinos da terra!

O terceiro tipo, prevalente nos períodos neoassírio e


neobabilônico, apresenta a entidade maléfica diferentemente. O texto
enuncia os sete nomes de Lamaštu e depois dirige um conjuro
diretamente a ela, para enviá-la aos céus. A maioria dos conjuros
menciona sua viagem ao mundo dos mortos, nas profundezas da terra.
Exortá-la a ir para os céus rompe com a tradição textual, mas ao
mesmo tempo alude à sua situação original de divindade superior que
habitava os céus. O excerto16 diz (MASSON, 2014/2015, p. 62):
“Dimme, criança de Anu”, é seu primeiro nome,
O segundo é “irmã dos deuses das ruas”,
O terceiro é “espada que corta o crânio”,
O quarto é “ela que acende o fogo”,
O quinto é “deusa do rosto furioso”,
O sexto é “aquela que confiamos, a filha adotiva de
Irnina”,
O sétimo é “pelo poder dos grandes deuses tu possas ser
conjurada”
Com os pássaros do céu, voe!

Uma cabeça em terracota conservada no Museu do Louvre


(AO 2490) contém uma inscrição que diz: “Eu sou Pazuzu, o

15 Traduzido e adaptado pela autora.


16 Traduzido e adaptado pela autora.

38
Amuletos Mágicos Mesopotâmicos

deformado, filho de Hanpa, o rei dos maus demônios de lilû17 [...].”


Porém Pazuzu é uma criatura ambígua, ao mesmo tempo que ele é
considerado como uma entidade demoníaca assustadora, também é
tido como uma divindade protetora, venerada no âmbito doméstico.
Seu aspecto monstruoso seria responsável por sua eficaz capacidade
de espantar os males. Daí decorre, também, a importância de sua
iconografia e explicaria as centenas de amuletos encontrados em toda
a Mesopotâmia, com sua representação plástica. Inúmeros exemplares
de amuletos em argila, pedra, selos-cilindros, placas de bronze, etc.,
atestam seu caráter de devoção popular.

Conclusão

O antigo Oriente Próximo apresenta uma infinidade de práticas


religiosas ligadas ao aspecto apotropaico dos demônios, como os
rituais para afastar espíritos malignos e criaturas monstruosas que são
evocados na Placa dos Infernos.
Lamaštu, criatura híbrida, cujo corpo é o de uma mulher
dotada de garras de ave de rapina e cabeça de leoa, aterroriza a
humanidade, causando abortos e mortalidade infantil. A documentação

17 Tríade de demônios noturnos composto por Lilû e Lilitû, um par de entidades


demoníacas privadas de maridos e esposas, em busca de um parceiro. Lilû, demônio
masculino, ataca mulheres durante o sono enquanto Lilitû, figura feminina estéril,
ataca os homens. O terceiro membro é Ardat-Lili, uma virgem que nunca conheceu
nenhum dos aspectos do amor e está destinada à esterilidade perpétua. Ela representa
o fantasma de meninas que morreram antes de se casarem e terem filhos. Seus
ataques visam romper casamentos, mas também ataca crianças pequenas para
devorá-las (MASSON, 2014/2015, p. 74, n. 334).

39
Katia Maria Paim Pozzer

textual revelou ritos de conjuros, onde o sacerdote colocava um colar


de pedras no pescoço da mulher grávida a ser protegida, recitava um
encantamento para afastar o monstro e descrevia seus inúmeros
poderes. Um dos encantamentos dá a seguinte descrição do monstro:
"Grande é a filha do altíssimo que tortura bebês [...] seu abraço é
mortal, ela é cruel, furiosa, raivosa, predatória [...] ela toca as barrigas
das mulheres que dão à luz, ela arrebata seus bebês de mulheres
grávidas [...] sua cabeça é a cabeça de um leão, seu corpo é o corpo de
um burro, ela ruge como um leão, ela uiva incessantemente como uma
cadela demoníaca (WIGGERMAN, 2000, p. 242). A invocação lembra
a origem do monstro e seus poderes. A cerimônia encerra com a oferta
de provisões de comida ao monstro para que este deixe o corpo da
vítima e fuja para longe, encontrando, assim, a escuridão. O anverso
da Placa do Infernos celebra essa viagem de Lamaštu aos infernos,
com o deus Pazuzu em posição de ataque, forçando-a a voltar para o
submundo, representado pelo rio do mundo inferior, no qual seu barco
flutua.
O demônio Pazuzu é uma figura ambígua, pois ao mesmo
tempo que é um monstro disforme e perigoso, simbolizando os ventos
frios do Norte, é uma divindade popular com grande capacidade
protetora contra Lamaštu. Fontes epigráficas atestam encantamentos
usados para pedir sua proteção contra os ventos pestilentos vindos do
Oeste, que se destaca na inscrição: “Eu sou Pazuzu, filho de Hanpa,
rei dos demônios lilû. Eu mesmo subirei a poderosa montanha
trêmula, os ventos que sopram contra ela são direcionados para o

40
Amuletos Mágicos Mesopotâmicos

oeste. Eu mesmo quebrei suas asas […]” (FINKEL; GELLER, 1997,


p. 137). Outros conjuros, ainda, pedem que Pazuzu interfira no
contexto de práticas mágicas relacionadas à remoção do mal, e em
particular, no exorcismo para cura de certas doenças infecciosas. A
placa também evoca práticas de culto atestadas no antigo Oriente
Próximo, com os homens-peixe, exorcistas especializados em rituais
mágico-medicinais, como àqueles presentes na Placa do Infernos.
A Placa do Infernos se constitui em um objeto artístico ímpar
na iconografia mesopotâmica, pela sua beleza plástica, exímia técnica
e por evocar uma complexa mitologia de monstros e demônios que
aterrorizavam e protegiam a humanidade.

Referências

Documentação
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42
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43
Íynx: o feitiço de amor e a religião de Afrodite
e Eros na iconografia dos vasos ápulos (séc. IV
AEC)1
Fábio Vergara Cerqueira2

A íynx que propomos estudar aqui é um objeto circular


presente na iconografia antiga, e destacadamente na pintura dos vasos
ápulos do séc. IV AEC, associando-se a cenas de conotação amorosa,
ligadas com frequência a Eros e a Afrodite, de quem este é um
atributo, como em um loutrophoros conservado no Paul Getty
Museum, em que vemos a deusa, identificada por uma inscrição acima
de sua cabeça, em companhia de Zeus, identificado também por
inscrição, sentado sobre seu trono, no interior do seu palácio – ela
segura com a mão direita uma íynx, enquanto um pequeno Eros
repousa sobre seu braço (Fig. 1). No entorno, relatos míticos visuais
de várias das conquistas amorosas de Zeus, justificando assim por que

1 Agradeço o suporte financeiro recebido da Humboldt-Foundation, Alemanha /


Programa Pesquisador Experiente e Programa Alumni, da École française de Rome /
Programa Pesquisador Residente, e do CNPq / Programa Bolsa Produtividade -
PQ-1d em Arqueologia Histórica. Sou grato ao apoio institucional do Instituto de
Arqueologia Clássica e Arqueologia Bizantina / Universidade de Heidelberg, e ao
Centre Jean Bérard, Nápoles. Meu agradecimento especial à colaboração de
Reinhard Stupperich, Nicolas Laubry e Claude Pouzadoux. Os argumentos e
conclusões são de responsabilidade exclusiva do autor.
2 Professor Titular do Departamento de História da Universidade Federal de Pelotas
(UFPel). Bolsista Produtividade CNPq PQ1d em Arqueologia e Membro do
COSAE/CNPQ - Comitê de Assessoramento em Antropologia, Arqueologia, Ciência
Política, Direito, Relações Internacionais e Sociologia. Pesquisador Visitante na
Universidade de Heidelberg - Instituto de Arqueologia Clássica. Pesquisador da
Fundação Humboldt/Alemanha - modalidade Pesquisador Experiente - Arqueologia
Clássica (desde 2014). Chercheur résident / pesquisador residente na École française
de Rome.

44
Íynx

o pintor escolheu usar como atributo da deusa esta rodinha mágica que
simboliza seu poder de sedução.

Figura 1: Loutrophoros ápulo de figuras vermelhas. Pintor de Louvre MNB


1148. c. 330 AEC Malibu, J.Paul Getty Museu, 86.AE.680. Public Domain.
@ Paul Getty Museum - Open Content Program. Disponível em: https://
www.getty.edu/art/collection/object/103WEG. Acesso em: 30 mai 2023.

Um exemplo de como o objeto costuma ser representado na


iconografia ápula pode ser apreciado na peliké Dresden 526, datada de
340-330 AEC (Fig. 2a), em que uma mulher, à direita, no papel de
oficiante de ritual de iniciação amorosa de futuros noivo e noiva
(CASSIMATIS, 1993, p. 103-111; VERGARA CERQUEIRA, 2018a,
p. 190), segura um espelho, com a mão esquerda apoiada sobre o
joelho, e, com a direita estendida, uma íynx, suspensa por um fio
duplo.

45
Fábio Vergara Cerqueira

Figura 2a-b: Peliké ápula de figuras vermelhas. The Egnazia Group (RVAp
18/140). c. 340-330 BC. Dresden, Staatliche Kunstsammlungen, DR526.
CVA Dresden 1, pr. 4-5. ©Skulpturensammlung, Staatliche
Kunstsammlungen. Foto: Elke Estel/Hans-Peter Klut. Agradeço a
colaboração de Barbara Anderson.

A íynx que analisamos aqui, como parte do repertório


iconográfico ápulo, é um dos signos recorrentes na constituição da
semântica visual que representa o imaginário do amor na pintura de
vasos da Magna Grécia, integrando uma rede de signos/objetos que
compõem esta teia de significação (CASSIMATIS, 2000, p. 47;
BAGGIO,2013; VERGARA CERQUEIRA, 2013), tais como o sistro
ápulo, o espelho (VERGARA CERQUEIRA, 2018), a bola
(SCHNEIDER-HERRMANN, 1971), o leque (BAGGIO, 2018, p. 43;
SCHNEIDER-HERRMANN, 1977, p. 35), a phiale, a patera, a pia
lustral (louterion) (CASSIMATIS, 2014, p. 155; GIACOBELLO,
2020, p. 199), a fita (tainia), a coroa (stéphanos), as aves (como o
pato, o cisne, o pombo e o próprio passarinho chamado igualmente
íynx), as flores (como a rosa), as plantas (como o mirto, na forma de
arbusto ou ramalhete) e frutas (como a romã e a maça)
(GIACOBELLO, 2020, p. 199; LAMBRUGO, 2018, p. 248-249;
TOUZÉ, 2009). A peliké de Dresden exemplifica bem, em suas duas

46
Íynx

faces, a representação destes signos/objetos nas cenas de rituais de


iniciação amorosa (Fig. 2a-b).
O mesmo sistema de signos, com as variações de seus arranjos,
pode ser apreciado na pronochoe Londres F373, datada de 340-320
AEC (Fig. 3) O vaso do Museu Britânico apresenta a própria deusa
Afrodite, sentada, ao centro, como amante, com um cisne no colo, que
ela acaricia, diante da figura de seu amado Adônis, e, na sua
retaguarda, Eros com uma bola e uma íynx. Entre ele e o diphros
okladias (banco dobrável) em que se senta a deusa, um sistro ápulo,
instrumento musical que na iconografia ápula vale também como
atributo da deusa. No canto direito, no chão, uma rosa, no campo, uma
rosácea, e, ainda, uma tainia e um stéphanos de folhas aberto.

Figura 3: Pronochoe ápula de figuras vermelha. Proveniência: Ruvo, Apúlia.


Grupo de Copenhague 4223. c. 340-320 AEC Londres, BM, F373
(1856,1226.50).

Compreender melhor a íynx, em suas várias dimensões, pode


contribuir para uma melhor interpretação do imaginário do amor
representado de modo tão frequente na pintura de vasos de tradição
grega do Sul da Itália ao longo do século IV AEC – interpretação não

47
Fábio Vergara Cerqueira

só do imaginário, como da mística e das crenças, da magia e dos


rituais praticados na esperança da felicidade amorosa.

Figuras 4 e 5: pássaro íynx


4 e 5 prints de tela, do canal Animal Narrado, do youtube, minutagem 4’’48’
e 5’’20’

Na sequência veremos, porém, que o termo íynx não se referia


somente a este objeto, mas também a um animal (GOW, 1934), a uma
entidade religiosa (uma ninfa, que era uma maga) e a um feitiço
(SEGAL, 1973; DETIENNE, 1972, p. 160) – além de outros
significados que incorpora com o passar do tempo – e que esses
diferentes significados, ligados ao mesmo significante íynx,
articulavam-se em um mesmo campo cultural de significação. O
vocábulo íynx continha vários significados. A palavra, em si, era usada
também para encantamentos amorosos. O termo designava ao mesmo
tempo o objeto circular e um passarinho, que na verdade dava nome a
esta rodinha. O pássaro íynx pertence a uma espécie de pica-pau
eurasiano conhecida como Jynx torquilla, ou simplesmente
“torcicolo”, medindo cerca de 16cm de comprimento. Com frequência

48
Íynx

é visto com o pescoço esticado (Fig. 4) e se caracteriza por um


movimento singular ao torcer o pescoço em até 180º (Fig. 5), o que
lhe permite e até mesmo simular uma cobra quando precisa defender-
se (PIRENNE-DELFORGE, 1993, p. 283)3, como aponta a descrição
de Aristóteles (História dos Animais, II.12.504a ; cf. Eliano, Da
Natureza dos Animais, VI.19):

Poucas são as [aves] que têm dois dedos voltados para a


frente e dois para trás, como é o caso do chamado pica-
pau [íynx]. Esta é uma ave pouco maior do que o
tentilhão, com penas matizadas, e são seus traços
particulares a disposição dos dedos e a língua, que se
parece com a da serpente. De facto, pode projectá-la
numa extensão de quatro dedos, e voltar a dobrá-la
sobre si própria. É capaz de virar o pescoço para trás
sem mover o resto do corpo, como as cobras. Tem
garras grandes, mas de estrutura semelhante às da
gralha. Solta gritos estridentes.

A Íynx como objeto, como pássaro, como ninfa e


como encantamento

Como objeto mágico, podia ser usado por mulheres (Nico) ou


homens (Jasão), apesar de que, na pintura de vasos, este dispositivo
aparece como uma prerrogativa feminina (TORRES, 2002, p. 203).
Um epigrama amoroso anônimo (Antologia Palatina, V.205) nos
revela alguns aspectos sociais sobre a roda mágica:

3 Para uma descrição da espécie e seus movimentos singulares de cabeça, sugiro o


vídeo “Torcicolo – o pássaro que imita serpente?! (Jynx Torquilla)”, no Canal
“Animal Narrado” do Youtube (veja os movimento de pescoço a partir de 4’50’’).
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ro1YbQ5GCcU Acesso em: 30
mai 2023.

49
Fábio Vergara Cerqueira

A íynx de Nico, que sabia atrair um homem do além-mar


e tirar jovens do seu quarto, que era talhada na ametista
diáfana e toda cravejada de ouro, Nico lhe consagrou, ó
Cípria, como seu bem, seu tesouro,
com a lã vermelha de um cordeiro macio em que está
enrolada;
ela recebeu de presente de uma maga de Larinse4.

Assim, Nico era uma mulher, não uma maga, que recebeu a
íynx de presente de uma feiticeira. Ela sabia manuseá-lo para
satisfazer suas vontades sexuais, e, talvez quando o avanço da idade
impõe, ela a dedicou como oferenda a Afrodite. Então, tratava-se de
um objeto mágico usado por pessoas comuns, não exclusivamente por
magos ou magas. Possivelmente, Nico era uma cortesã, que fazia uso
da rodinha mágica para conquistar seus clientes sexuais, e assim, é
grata a Afrodite, a quem oferece o instrumento quando já não faz mais
uso dele.
Sobre a materialidade, o objeto se compunha de um pequeno
aro, perpassado por fios (Fig. 6), que, em sendo esticados, faziam-no
girar (Fig. 7) daí a relação com o movimento de torção da cabeça do
passarinho. Esticando e relaxando levemente os fios, girava para um
lado, e depois para outro (GOW, 1934, p. 3; PIRENNE-DELFORGE,
1993, p. 284). Esta roda giratória possuía uma finalidade mágica
diretamente ligada à natureza mítica do pássaro que lhe dá nome. No
mito narrado em Píndaro, Píticas 4.380, Afrodite presenteia esse
pássaro a Jasão, conferindo-lhe poderes mágicos para conquistar a
princesa Medeia. Esse poderoso encantamento de amor era do tipo
agoge, ou seja, que fazia a vítima do feitiço perder o controle, e ir ao

4 Tradução livre.

50
Íynx

encontro de quem aplicava a magia (FARAONE, 1999, p. 56-57).


Afrodite teria inventado este objeto mágico, prendendo o passarinho a
uma pequena roda giratória, suspensa por quatro ou seis fios, que
giraria e produziria um som.

Figura 6: Proposta de reconstituição de uma íynx de acordo com pintura de


vasos ápulos, em Gow, 1934, p. 1-13, fig. 4-5.

Figura 7a-b: Peliké ápula de figuras vermelhas. Pintor de Licurgo. c.


360-345 AEC Ruvo, Museo Jatta, inv. 36727 (J 415). Foto: Fábio Vergara
Cerqueira (2022).

No objeto em si, tal como testemunhado na iconografia da


pintura de vasos e de outros suportes, diferentemente do referencial
mitológico, não haveria um pássaro preso a ele (Fig. 2a, detalhe). Mas,
em alguns objetos de terracota remanescentes do período arcaico,
passíveis de identificação como a íynx enquanto roda mágica, há

51
Fábio Vergara Cerqueira

cabeças de passarinho ajustadas à roda (Fig. 8), que têm sentido


funcional e simbólico ao mesmo tempo, com base em referências
míticas.

Figura 8: Íynx. Cerâmica. Período geométrico tardio. Proveniência: Faleron,


Ática. 750–700 B.C. Boston, Museum of Fine Arts, 28.49. Disponível em:
www.mfa.org. Acesso em: 30 mai 2023.

Píndaro, Nemésias 4.56 relata ainda outra história, que teria


cronologia anterior ao mito envolvendo Afrodite: Íynx na origem seria
uma ninfa arcadiana, filha de Pan e de Eco, cujos encantamentos
teriam feito Zeus se apaixonar por Io (ou pela própria ninfa), razão
pela qual Hera a transformou neste pássaro. No loutrophoros de
Malibu (Fig. 1), a presença de Afrodite, junto a Zeus em seu palácio
no Olimpo, com a íynx, é ao mesmo tempo uma referência mítica à
conquista de Io por Zeus e à garantia de sedução que o encantamento
de amor provocado por este objeto propiciaria. Lembra ainda,
conforme Píndaro Píticas IV.10.212-215sq, que foi Afrodite que
inventou este objeto mágico, prendendo o pássaro íynx a uma roda de
madeira com quatro raios. Para Chantraine, o torcicolo seria um
pássaro apropriado para ser usado na “magia amorosa precisamente

52
Íynx

em razão deste movimento de torsão que ele pode fazer ao redor de si,
atrelado a uma roda que é posta em rotação para segurar a pessoa
amada” (CHANTRAINE, 1968, p. 473).

O vocábulo Íynx e seu campo de significação

Vale olharmos com mais atenção a semântica e etimologia


vinculadas à palavra ἴυγξ (íynx), bem como a termos a ela ligados por
derivação a partir de seu radical. Além disso, os termos trcochístos e
rhómbos são por vezes empregados com significados compartilhados
ou cruzados. O primeiro significado de íynx apontado por Little, Scott,
Jones (1940) é do pássaro chamado “torcicolo”, pica-pau eurasiano
descrito acima, que leva o nome científico Jynx torquilla, como
referência à denominação grega. Para Anatole Bailly, a designação
serviria também em geral para “passarinho”. Ao mesmo tempo, o
pássaro íynx, ao ser fixado a uma roda giratória, seria usado para
restaurar o amor entre amantes infiéis, corroborando o relato mítico
em Píndaro, Píticas, IV.10.212-215, que compreende também por
derivação a denominação do objeto em si, a roda mágica.
Por conseguinte, o termo designa ainda “encantamento”, como
em em Filóstrato, Vida de Apolônio de Tiana, VIII.7, onde usa ἴυγγας
(íyngas) como “feitiço” para cura de doença, mas também “encantar”
como poder de sedução, como aquele que o olhar da mulher exerce
sobre o homem para persuadi-lo (HELIODORO, Etiópicas, VIII.5).
Bailly (2020), mais explicativo, indica o uso do termo para designar

53
Fábio Vergara Cerqueira

“feitiço de amor”, “por que se serviam deste pássaro nos


encantamentos mágicos”, como em Píndaro, Píticas IV.380.
Xenofonte, Memoráveis, III.11.17 referia-se ao uso combinado das
rodas mágicas (iýngōn), das poções (phíltron) e dos mantras entoados
(epōdōn):
εὖ ἴσθι ὅτι ταῦτα οὐκ ἄνευ πολλῶν φίλτρων τε καὶ
ἐπῳδῶν καὶ ἰύγγων ἐστί.

eu garanto que estas coisas não acontecem sem a ajuda


de muitas poções mágicas, de encantamentos e de
rodinhas mágicas5.

Por extensão, o termo pode conotar atração, sedução,


capacidade de encantar (ARISTÓFANES, Lisístrata, 1110),
aproximando-se da deusa Peitó, elencada como sua mãe; ou, ainda,
desejo afetivo arrebatador por alguém, não necessariamente sexual
como em Ésquilo, Persas, 988-89. Ao longo do tempo, a sobrevida do
termo conheceu outras apropriações místicas. No período tardio,
encontra-se o uso do termo para designar divindades caldeias
(PROCLUS, Comentário à República de Platão, II.213.).
O substantivo ἴυγξ (íynx) deriva do verbo ἰύζω (iýzō), “emitir
um grito agudo” (BAILLY, 2020), e alto, conforme Homero, Iliada,
XVII.66, ἰύζουσιν (iýzousin), e Odisseia, XV.162, οἱ δ᾽ ἰΰζοντες
ἕποντο ἀνέρες ἠδὲ γυναῖκες, “e homens e mulheres saíram gritando”6.
Mais tarde, “gritos lamentosos”, lúgubres, de tristeza ou de dor, como
em Ésquilo, Persas, 280, pelo sofrimento diante da notícia da derrota
diante dos gregos, ou em Sófocles, Traquínias, 782, onde Héracles

5 Tradução livre.
6 Tradução livre.

54
Íynx

“uiva” de dor, ἰύζων (iýzōn), por causa da túnica envenenada


presenteada por Dejanira, em razão de sua traição.
O substantivo ἰυγή designa, na mesma direção, “grito de dor”
ou “lamento”, por exemplo em Heródoto, IX.43, mas também, um
sibilar nervoso de alguns animais marinhos em razão da dor causada
por um parasita (OPIANO DE APAMEIA, A Pesca, I.565). O
substantivo ἰυγµός (iygmós), derivando igualmente de ἰύζω (iúzō) pode
ser um grito de alegria (HOMERO, Ilíada, XVIII.572) Bailly (2020)
traz ainda ἰυκτά (iyktá), “aquilo que faz um barulho agudo”, que canta
gritando alto, como em Teócrito, Idílios, VIII.30, termo que deriva de
ἰύζω (iúzō).
Há dois outros termos que aparecem nas fontes com
características que possam ser associadas ao pequeno objeto circular
que analisamos aqui. O termo τροχίσκος (trochískos), diminuitivo de
trochos, refere-se a uma pequena roda ou pequeno círculo, como em
Apolodoro de Damasco, Poliorcéticas, 155.9. Neste caso, a
possibilidade de ser associado à íynx é pela sua forma. Aristóteles, em
Mecânica, 848a.25, emprega o termo trochískos como referência às
“pequenas rodas feitas de bronze e de ferro que oferecem como ex-
votos nos templos”.
O segundo termo é ῥόµβος (rhómbos), aqui havendo uma
sobreposição maior com o significado de íynx¸ visto que
compartilham, entre outros aspectos, a condição de objeto sonoro que
se faz soar na medida em que é posto em rotação. Era um instrumento
atado à extremidade de uma corda e assim se fazia girar (FARAONE,

55
Fábio Vergara Cerqueira

1993, p. 2), usado tanto no pastoreio, para atrair o gado, como nos
mistérios. Recebia o mesmo nome um brinquedo de criança que era
uma espécie de pião (Antologia Palatina [Leônidas], VI.309), incluído
entre os brinquedos de Dioniso (LEVANIOUK, 2007). Bailly (2020)
considera que todo objeto de forma circular seria, genericamente, um
rhómbos. A palavra sugere o ato de girar, dar a volta em torno de si
(ῥόµβον - rhómbon), em Píndaro, Ístmicas, IV.81[48]). Dada esta
característica, em diferentes ocasiões é lembrado como um termo
alternativo a íynx para designar a rodinha mágica. A confusão acontece
já em Teócrito, que emprega íynx em Idílio, II.17, e rhómbos em II.30.
Tavenner (1933) entende que o poeta usa os dois termos para se referir
ao mesmo objeto. Penso que, com o segundo termo, Teócrito tem em
mente mais a roda em si, que identifica a forma circular, do que o
nome que identifique o objeto propriamente.
Mas é principalmente em autores gregos e latinos do período
imperial que o termo se torna mais comum como designação da
rodinha mágica, como em Ovídeo, Arte de Amar, I.8.7, que usa
rhómbo para se referir a um dispositivo mágico, que a anciã chamada
Dipsa – conhecedora da arte da magia, dos encantamentos da
Cólquida e das virtudes das plantas – sabia como usá-lo, enrolando-o
em um linho vermelho. Com o tempo, entre os latinos, consolida-se a
forma rhómbus. Em Luciano, Diálogo das Cortesãs, IV.5, ao falar das
hetairas Melitta e Bacchis, comenta como esta tirou do seu peito uma
roda mágica (ῥόµβου - rhómbou) e a fez girar, recitando um
encantamento composto por palavras bárbaras que fazem estremecer.

56
Íynx

Como objeto sonoro circular, o termo rhómbos foi empregado


também para designar uma espécie de tambor ou pandeiro, como um
týmpanon de maiores dimensões, usado no culto à deusa Reia e a
Dioniso (Antologia Palatina [Faleco], VI.165; Ateneu. Banquete dos
Sábios, 636a.38). Ao se chamar o týmpanon sagrado de grandes
dimensões do culto de Cíbele como rhómbos, o foco está sendo
colocado sobre o seu grande aro. Vê-se que a sonoridade apropriada a
cultos mistéricos, assim como a práticas místicas e de magia, é um
traço em comum entre a íynx e o rhómbos, nada obstante, em sua
natureza musical, possam ser instrumentos distintos.

A evidência arqueológica da Íynx

Grace Nelson identificou uma íynx em um objeto circular


raiado de terracota, proveniente do distrito de Faleron na Ática,
decorado em estilo geométrico, datado do final do século VIII. A
autora identifica as onze cabeças de pássaro como sendo da íynx, com
“pescoço longo esticado e cordas vocais inchadas, que indicam que os
pássaros estão fazendo o seu chamado”, que, no caso da íynx, era um
“chamado claro, flautado e com tom elevado”, que “podia ser ouvido a
uma longa distância” (NELSON, 1940, p. 443). O grau de
conservação da peça de Boston permitiu a proposição de como se
apresentaria esta roda, com seus fios de suspensão, para fazê-la girar
(Fig. 9).

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Fábio Vergara Cerqueira

Figura 9: Proveniência: Faleron, Ática. 750–700 B.C. Boston, Museum of


Fine Arts, 28.49. Disponível em: www.mfa.org. Acesso em: 30 mai 2023.

Objetos semelhantes encontram-se conservados em outras


coleções (PASQUIER, 1977, p. 377-378). Vassos Karageorgis (1989)
publicou artigo acerca de duas rodas votivas encontradas em Chipre,
hoje em Nicósia, uma no museu arqueológico, outra em uma coleção
particular (Fig. 10a-b). De datação mais elevada que o exemplar de
Boston, têm uma estrutura diferenciada, pois são dois aros não
raiados. Mas, em comum, além dos pássaros ajustados sobre o aro,
possuem também furos de suspensão.

Figura 10a-b: Íynx, terracota (“Roda 2 de Chipre”). Período Geométrico


Cipriota III (850-750 AEC). Nicósia, Chipre, coleção particular.
Karageorghis, 1989, p. 263-268, esp. p. 268, fig. 4-5. Cf. Íynx, terracota
(“Roda 1 de Chipre). Período Geométrico Cipriota III (850-750 AEC).
Nicósia, Chipre, Cyprus Museum. Karageorghis, 1989, p. 263-268, esp. p.
266, fig. 1-2.

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Íynx

Uma rodinha beócia conservada no Museu do Louvre, de


dimensões reduzidas (altura de 8 cm e diâmetro de 13,2 cm), datada da
segunda metade do século VI AEC, é de estrutura mais simples, com
três pássaros ajustados ao aro, sem furos de suspensão (Fig. 11).

Figuras 11 e 12: Figura 11 - Roda de argila, com três pássaros. Prov.: Beócia.
550-500 AEC Paris, Louvre, CA 1512. © 2009 Musée du Louvre. Foto:
Anne Chauvet. Disponível em: https://collections.louvre.fr/ark:/53355/
cl010259386#. Acesso em: 31 mai 2023
Figura 12: Roda de bronze, com cinco aves. Proveniência: santuário de
Atena em Tegea. Dugas, 1921, p. 367, fig. 20, n. 201.

Também ocorrem rodas de bronze com cabeças de pássaro,


como o exemplar encontrado no santuário de Atena Alea em Tegeia
(Fig. 12). Nelson (1940) aponta como a roda enquanto tal, com seu
formato circular, simboliza o sol, o que lhe potencializa enquanto
objeto mágico. Em particular, a roda com quatro raios, enquanto
objeto místico, possuía poderes mágicos por sua associação com o sol,
sendo comum que estes objetos circulares se encontrassem em
templos, suspensos, assim girando e produzindo som. Um exemplo é a
rodinha de bronze do santuário de Dódona, com sua estrutura de

59
Fábio Vergara Cerqueira

suspensão, para fazer girar (Fig. 13) cujos efeitos sonoros são
analisados por Charalampos B. Charisis (2017): uma íynx fazia parte
das sessões oraculares, suspensa e girando ao vento, produzindo assim
um som.

Figura 13: Roda de bronze. Museu Arqueológico de Joanina (Épiro), inv.


617. Charisis, 2017, fig. 1. Foto: à esquerda, P.Tsikules - Museu
Arqueológico de Joanina; à direita, Χ. Charisis.

Aristóteles (Mecânica, 848a.25) menciona essas pequenas


rodas de metal dadas como oferendas nos templos. Assim, do ponto de
vista do papel místico destes objetos nos santuários, essas rodas
suspensas, combinadas ao uso também de sinos de vento (Fig. 14),
contribuíam para compor uma atmosfera sonora propícia às potências
espirituais que se auspicia nestes ambientes, do que se acreditava ser
uma música vinda do divino. Já no período arcaico, tornou-se uma
oferenda comum em santuários a divindades variadas esta rodinha, de
metal ou terracota, com número variado de passarinhos empoleirados
no aro, às vezes um só (NELSON, 1940, p. 346).

60
Íynx

Figura 14: Sino de vento, de bronze. Prov. Itália meridional, séc. VIII AEC
Charisis, 2017, fig. 2γ.

O ajuste do pássaro íynx a esta rodinha, que poderia ser


genericamente denominada um rhómbos – ou mesmo uma íynx, visto
que passou a significar simplesmente roda (em razão da prática de se
ajustar a ela a representação da ave de mesmo nome) – somaria a
potência mágica dos dois objetos (a ave e a roda), ganhando assim um
efeito mágico cumulativo (TAVENNER, 1933, p. 117). A
singuralidade desta ave, não só pela rapidez dos movimentos
circulares e histriônicos de sua cabeça, pela comprida e ágil língua
retrátil que faz pensar em uma serpente, por seus gritos altos, algo
flautados, algo sibilados, potencializou no imaginário grego antigo
uma interpretação mística de sua natureza, tornando-lhe uma ave
mágica.

61
Fábio Vergara Cerqueira

Não há um acordo entre os autores modernos sobre a ligação


entre estas rodas encontradas no registro arqueológico – com pássaros
empoleirados, feitas em metal ou cerâmica – e a íynx como roda
mágica conhecida da literatura (Píndaro, Teócrito), a qual pode ser
associada à rodinha presente na iconografia italiota. Enquanto alguns
encontram elementos suficientes para identificá-las como exemplares
da roda-íynx (NELSON, 1940; KARAGEORGIS, 1989), outros são
mais céticos (DETIENNE, 1972, p. 162; Genière, 1958), por exemplo
propõem tratar-se simplesmente de um kérnos. Percebe-se de qualquer
modo uma razoável variedade nestes objetos circulares reportados
pelo registro arqueológico, de metal ou terracota, com ou sem raios,
com um ou vários pássaros, ou mesmo desprovidos destes. Porém,
compartilham de um papel mágico-místico a eles associado, quer pelo
movimento giratório em ficando suspensos por fios (PASQUIER,
1977, p. 378), quer pelo som produzido (CHARISIS, 2017). É
possível se pensar em uma linha de ancestralidade entre as rodas
mágicas do período arcaico, arqueologicamente evidenciadas, e
aquelas evidenciadas iconograficamente, no período clássico e proto-
helenístico, pela pintura de vasos e outros suportes, como os brincos e
anéis, além dos espelhos etruscos. A estrutura raiada e a presença das
aves sobre o aro guardam semelhança visual importante. Mas estes
exemplares arqueológicos, alguns deles comprovadamente objetos
associados a santuários, giravam pendurados por fios (como nos sinos

62
Íynx

de vento), diferentemente do que ocorria com o objeto testemunhado


pela pintura de vasos.

A evidência iconográfica da Íynx

A evidência visual da íynx nos permite observar diferentes


aspectos, tais como sua estrutura física, seu uso e manuseio, assim
como as personagens e contextos a ela associados.
Forma física da íynx
Na pintura dos vasos ápulos, a íynx aparece como este objeto
circular raiado, por via de regra com quatro raios (Fig. 3 detalhe e Fig.
15), mas às vezes o pintor sugere a possibilidade de um número maior
(ou seria efeito do movimento?) (Fig. 1, detalhe). Pelo contraste de
coloração, parece que a roda seja de metal, de bronze ou dourada,
enquanto a estrutura raiada devia ser de outro material, provavelmente
madeira (Fig. 24). Essa rodinha é atravessada por uma longa cordinha
dupla – na verdade, um único fio amarrado em uma das pontas. Na
peliké Ruvo 36727 (Fig. 7), percebemos duas pontas do fio, na
extremidade que a moça segura com a sua mão direita, indicando que
ali foi dado o nó. Esse fio podia ser feito de uma “macia linha de lã
vermelha de um cordeiro macio”, como lemos em um epigrama
amoroso anônimo (Antologia Palatina, V.205).

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Fábio Vergara Cerqueira

Figura 15: Peliké ápula de figuras vermelhas. The Tarrytown Group (RVAp
p.542/354). c. 330-310 AEC Cremona, Museo Archeologico, D46. Castoldi;
Volonté, 2022, p. 261-262, n. 402, pr. XXVII-XXVIII.

A observação de um conjunto ampliado de iýnges aponta um


aspecto dentado no perímetro do círculo, o que sugere um elemento
estilizado que remete às cabecinhas do pássaro íynx (Fig. 16). Em
alguns vasos, porém, a aparência difere. A rodinha aparece como uma
circunferência com seu interior branco e rodeada por uma linha
circular preta (Fig. 7). Não se trata de outro objeto, mas do efeito
visual quando posta em movimento giratório. Interessante observar
que, mesmo ao representá-la em movimento, o pintor mantém o
cuidado de mostrar as cabecinhas do passarinho que ornamentaria a
roda mágica, como podemos constatar na peliké de Ruvo, apesar do
apagamento parcial deste detalhe feito com adição de branco.

64
Íynx

Figuras 16 e 17: Figura 16 - Desenhos de íynx de acordo com pintura de


vasos ápulos, em Gow, 1934, p. 1-13, fig. 4-5. Figura 17: Hydria ápula de
figuras vermelhas. The Tarpoley Painter (RVAp 3/58). 400-380 AEC
Londres, British Museum, F94 (1824,0501.20). CC BY-NC-SA 4.0 © The
Trustees of the British Museum.

Os pintores de vaso fazem referência também,


alternativamente, a íynx como pássaro, como na hydria Londres F94
(Fig. 17) onde sua presença, identificada pelo pescoço esticado, visa
ao mesmo efeito mágico que o uso da rodinha mágica.

Uso e manuseio da Íynx

Um aspecto bastante interessante, em que a análise


iconográfica permite avançar, é quanto ao modo de manuseio da íynx.
É pouco comum ela aparecer suspensa no campo – mais adiante
analisaremos um caso. Ela aparece mais usualmente sendo segurada
pela mão de uma personagem, e basicamente de dois modos: com uma
mão só, suspensa, quando notamos ser perpassada por um fio duplo
(Fig. 1, 2, 3), ou sendo segurada com as duas mãos, pelas pontas deste

65
Fábio Vergara Cerqueira

fio duplo. Neste caso, o pintor pode representar a íynx em repouso ou


sendo acionado o seu movimento giratório.
Quando uma personagem segura a íynx pelos fios, em repouso,
ela não pega a linha pela extremidade, como na peliké de Cremona
(Fig. 15). Nesta posição, claramente o dispositivo não pode ser posto a
girar. Já quando o pintor quer mostrar o dispositivo sendo usado na
prática da magia, para efetuar o feitiço de amor, vemos que o fio duplo
é preso aos dedos, especificamente com o indicador ou, às vezes, com
o médio. Na peliké proto-lucânica de Metaponto (Fig. 18), um dos
exemplares mais recuados da série italiota, datada do final do século V
AEC, a noiva prende as pontas do fio usando o dedo indicador das
duas mãos, mas o indicador da esquerda dobra-se para frente,
parecendo ser uma posição realizada com o intento de gerar uma
alteração no movimento giratório da íynx, ao puxar o fio. Na peliké de
Ruvo (Fig. 7), a noiva prende a extremidade direita do dispositivo com
o indicador e a extremidade esquerda com o dedo médio.

Figura 18a-b: Peliké proto-lucânica de figuras vermelhas. Proveniência:


Metaponto, tumba 798. Pintor de Creusa. Final do séc. V AEC Metaponto,
Museu Arqueológico. Foto: Fábio Vergara Cerqueira (2015).

66
Íynx

De excepcional interesse a cena representada em uma pyxis


ática atribuída ao Pintor de Erétria, datada do último terço do séc. V
AEC (Fig. 19). No entorno da kylix figuram cenas variadas de
interesse nupcial, mostrando preparativos da noiva, com as
personagens identificadas por inscrição. À direita da porta da casa,
vemos a matrona Pontomedeia instruindo a jovem noiva, chamada
Doso, em como manipular a roda mágica íynx.

Figura 19a-b: Pyxis ática de figuras vermelhas. The Eretria Painter. Londres,
British Museum, E744 (1874,0512.1). CCBY-NC-SA 4.0 - © The Trustees of
the British Museum.

O mais comum era a posição horizontal ou levemente inclinada


para esticar o duplo fio e fazer girar a roda. Mas encontramos também
representações em que o movimento é feito com uma inclinação
acentuada, praticamente vertical. Em um espelho etrusco hoje em
Berlim, datado da segunda metade do século IV AEC, uma moça,
sentada junto a um altar, faz a íynx girar, com os braços em uma
posição bastante inclinada (Fig. 20). Em outro espelho etrusco, hoje
em Perugia, datado do final do mesmo século, vemos no canto
esquerdo a figura de Eros sentado, fazendo a íynx girar, em uma
posição praticamente vertical (Fig. 21)

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Fábio Vergara Cerqueira

Figura 20: Espelho etrusco de bronze decorado com incisão. Proveniência:


Praeneste (Palestrina). Segunda metade séc. IV AEC Berlim, Staatliche
Antikesammlungen, Fr 54. Zimmer, 1995, p. 156, fig. 35a.

Figura 21- Espelho etrusco inciso. Perugia, Museo Archeologico Nazionale,


inv. 1004. 325-300 AEC Frascarelli, 1995, p. 74, fig. 6.

Figura 22: Cratera em cálice ápula de figuras vermelhas. Pintor de Dario.


340-330 AEC Boston, Museum of Fine Arts, 1989.100.

68
Íynx

A peliké de Ruvo (Fig. 7) informa ainda outro detalhe


importante: o duplo fio está enroscado (observamos com clareza na
metade esquerda, pois no restante a coloração branca adicionada não
se conservou). Isto resulta do seu movimento giratório, de sorte que a
rodinha, após a linha dupla ter sido esticada com veemência, girará
com força para um lado, até que o efeito deste movimento se esgote; e,
como o fio ficou enroscado, iniciará então um movimento no sentido
oposto, e assim por diante, a cada vez com menos força, até que o
impulso para este movimento giratório se esgote.

Personagens mitológicos associados à Íynx: Eros e


Afrodite

Como apontamos inicialmente, a íynx é um atributo


iconográfico da deusa Afrodite, como está claramente denotado no
loutrophoros de Malibu (Fig. 1). Em uma cratera atribuída ao Pintor
de Dario, hoje em Boston (Fig. 22), temos, no canto superior direito,
uma cena de diálogo entre um rapaz sentado, com sandálias aladas,
chapéu na mão esquerda e caduceu abaixado na mão direita, diante de
um gênio alado, com um bambolê, apoiando-se no joelho da mulher
sentada, à direita, que segura com a direita elevada um ramalhete e
com a esquerda abaixada uma íynx. Podemos identificar aqui uma
cena de diálogo entre Hermes e Afrodite, acompanhada por Eros.

69
Fábio Vergara Cerqueira

De tal modo a íynx se liga a Afrodite enquanto atributo, que


mesmo seu paralelo etrusco, a deusa Thalna (identificada por
inscrição), aparece representada com uma rodinha mágica em um
espelho gravado por incisão do segundo quartel do século IV AEC7.
Entretanto, é Eros que, tomando-a de empréstimo de sua mãe, aparece
com mais frequência empunhando a rodinha mágica, chegando a
tornar-se até mesmo um atributo seu, como veremos em alguns
exemplares da joalheria grega proto-helenística. Na pronochoe de
Londres (Fig. 3), nesta cena que representa o amor entre Afrodite e
Adônis, Eros tem numa mão a íynx e na outra uma bola, enquanto no
campo, suspenso, está um sistro ápulo. Aqui os três objetos se
combinam como símbolos da potência amorosa e funcionam assim
como metáfora de uma felicidade conjugal idealizada.
Já nestas cenas em que Eros se desloca, voando, por vezes
ocupando a narrativa de todo um lado do vaso, trazendo objetos
ligados ao culto a Afrodite, ele muitas vezes leva uma íynx entre estes
objetos8. É o caso da taça de Varsóvia (Fig. 23), em que, de um lado,
Eros voa para a esquerda, levando consigo um sistro ápulo e uma íynx,
dirigindo-se ao encontro da figura feminina do lado oposto da taça,
sentada no chão diante de uma planta arbustiva (mirto), portando um
stéphanos com fitas e uma bandeja com oferendas, entre elas um

7 Espelho de bronze etrusco, gravado por incisão. Segundo quartel do século IV AEC
Paris, Louvre, inv. 1723. Emmanuel-Rebuffat, 1988, 3a-d.
8 Eros na iconografia ápula com frequência funciona como uma ponte de ligação
entre Afrodite e Dioniso, e este papel cultual dele como articulador das esferas
destas duas divindades fica caracterizado pelos objetos que carrega, eventualmente
combinando atributos das duas divindades, ou enfatizando um ou outro
(HOFFMANN, 1966, p. 115-116; VERGARA CERQUEIRA, 2018, p. 291, 308).

70
Íynx

ramalhete de mirto. Aqui, o sistro ápulo e a íynx, em vez de símbolos,


são parte dos sacra enquanto instrumental de culto, utilizados na
performance do ritual a Afrodite – o primeiro, como instrumento
musical, o último, como um objeto mágico, mas ao mesmo tempo
sonoro. A janela ao fundo indica que o ritual, de natureza pré-nupcial,
ocorreria em um espaço externo próximo à unidade doméstica
(VERGARA CERQUEIRA, 2022, p. 171).

Figura 23: Taça ápula de figuras vermelhas. Varsóvia, Museu Nacional,


198126. CVA Varsóvia - Musée National V, pl. 10.3-4,7.

Em alguns casos, o sistro ápulo dá lugar ao espelho, como


objeto que acompanha a íynx. É o que nos mostra uma oinochoe
trilobada do Vaticano, na qual vemos Eros apoiado em uma pilha de
pedras, usando a íynx, ao mesmo tempo em que segura o espelho9.
Novamente, aqui, os objetos representados não são apenas símbolos
do domínio de Afrodite, mas sim parte do instrumental de culto. O que
o pintor nos mostra, então, é Eros na ação de usar a íynx como

9 Oinochoe trilobada ápula de figuras vermelhas. Vaticano, Museu Gregoriano


Etrusco, inv. 18070. c. 340-320 AEC The Patera Painter.

71
Fábio Vergara Cerqueira

dispositivo que alcança seu poder de magia da sedução ao girar, tendo


aqui também o espelho um papel ritualístico.

Figura 24: Peliké ápula em estilo di Gnathia. Grupo de Konakkis, Grupo de


Harpa de Nápoles (C) (Webster, 1968, n. 9 / 1). c. 340-330 AEC São
Petersburgo, Hermitage, B.4571. CVA Hermitage VI, pr. 2.1. Foto: Fábio
Vergara Cerqueira (2017).

Em uma ânfora ápula em estilo di Gnathia conservada em São


Petersburgo (Fig. 24), vemos Eros representado como adolescente, nu,
sentado sobre o manto vermelho jogado sobre o solo. Aparatado com
colar e braceletes no braço e perna direita, tem na mão esquerda
erguida um tympanon, enquanto, com a direita abaixada, traz uma
íynx. Um detalhe significativo aqui: a membrana do tympanon é
decorada com o desenho de um aro raiado, duplicando assim a
mensagem do aro com quatro raios, reforçando o valor mágico desta
forma, impregnado aqui também a este instrumento de percussão que
podia acompanhar a íynx em determinados usos ritualísticos. Seguindo
a interpretação de Gisela Schneider-Herrmann (1970, p. 100), aqui

72
Íynx

talvez tenhamos não propriamente a representação do gênio alado,


mas sim de um oficiante de culto.
A relação do objeto mágico íynx com Eros está evidenciada
não só na pintura de vasos, mas também em outros suportes, como no
brinco de ouro Museu Britânico 1877,0910.16 (Fig. 25), proveniente
de Cuma, na Eólia, do último terço do século IV, etruscos analisados
acima. Em cada brinco o ourives representou, como delicados
pingentes, pares de Erotes segurando uma íynx com as mãos, esticando
o fio e, portanto, no ato de fazê-la girar para alcançar seu efeito
mágico. Data da mesma época um anel de cobre dourado, encontrado
em uma tumba na necrópole da cidade grega de Náucratis, no Delta do
Nilo (Fig. 26), que representa Eros agachado, voltado para a esquerda,
enquanto aciona o movimento giratório da íynx, logo, performando
seu uso mágico para uma conquista amorosa.

Figuras 25a-b e 26: Figura 25 - Brinco em disco-pirâmide, com dois pares de


Erotes com íynx. Proveniente de Cuma, Eólia. c. 330-300 AEC Londres,
British Museum 1877,0910.16 (J1672-3). CC BY-NC-SA 4.0 - ©Trustees of
the British Museum. Figura 26: Anel de cobre dourado. c. 350-300 AEC
Proveniência: Necrópole de Náucratis, Egito. Londres, British Museum,
1888,0601.1. CC BY-NC-SA 4.0 - ©Trustees of the British Museum.

73
Fábio Vergara Cerqueira

Contextos associados à Íynx

Na iconografia dos vasos ápulos, a presença da íynx se dá na


maioria dos casos em cenas de rituais pré-nupciais, consorciando-se
assim a uma série de outros signos/objetos que são articulados nas
representações visuais destes rituais, os quais carecem de testemunho
literário (VERGARA CERQUEIRA, 2022, p. 150;. SCHENEIDER
HERRMANN, 1996, p. 113-116).
A peliké de Dresden (Fig. 2) mostra em sua face secundária um
ritual de iniciação amorosa do rapaz, oficiado por uma senhora. Nestas
cenas, a íynx não costuma ser representada. Na cena principal, noivo e
noiva já passaram pelos rituais próprios a cada gênero, e realizam uma
das etapas do noivado, ele com um strigilis, ela com um espelho,
objetos que indicam que ambos estão preparados para o casamento.
Na retaguarda da noiva, uma senhora acompanha o ritual, abençoado
pela presença de Afrodite (com sistro ápulo e espelho) e Eros,
dispostos no campo superior. A senhora que monitora esta fase inicial
do ritual de noivado, traz dois objetos usados em determinadas fases
do ritual, o espelho e a íynx. Está presente aqui não como símbolo de
Afrodite, mas como parte do instrumental ritualístico.
Na peliké de Ruvo (Fig. 7), novamente Afrodite e Eros
observam do alto o ritual, que agora é performado junto a uma pia
lustral, abaixo da qual vemos uma roseira e, mais à direita, um mirto,
plantas próprias ao reino da deusa do amor (TOUZÉ, 2009;
LAMBRUGO, 2018, p. 343, 347-349). Aqui o pintor representa

74
Íynx

exatamente o momento do ritual pré-nupcial em que a íynx é usada


pela noiva, fazendo-a girar, para mobilizar sua potência mágica em
prol da felicidade amorosa e sexual, a ser conquistada na vida conjugal
pelas graças de Afrodite. Percebe-se como seu uso nos rituais pré-
nupciais cabe à noiva e não ao noivo. Exemplo disto encontramos em
um lebes gamikos de Nova Iorque (Fig. 27a-b), que representa cenas
pré-nupciais em suas duas faces. Em um lado, temos (Fig. 27a) a
noiva sentada sobre uma pilha de pedras, ao centro, ostentando em
modo protocolar um espelho, diante do noivo, de pé, que lhe dirige
uma coroa, pausada no ar acima do espelho – observe-se que Eros se
aproxima para coroar o noivo. No lado oposto (Fig. 27b), estamos em
um estágio mais da união entre os nubentes.

Figura 27a-b: Lebes gamikos ápulo de figuras vermelhas. Group of New


York 28.57.10 (RVAp II 18/190). c. 335-320 AEC Nova Iorque, Metropolitan
Museum, 17.46.2. Domínio Público. Disponível em: www.metmuseum.org.
Acesso em: 30 ma 2023.

75
Fábio Vergara Cerqueira

Aqui a noiva, novamente a figura central, está sentada em um


thronos, que representa o reconhecimento de seu status social de
esposa – portanto avançou de nymphe para gyne. Quando o pintor
coloca a noiva no thronos, seria uma indicação de que a cena ocorra
no dia do casamento (SÖLDNER, 1993, 306; CAIN, 1989, p. 93;
VERGARA CERQUEIRA, 2023). Abençoados por Afrodite e um par
de Erotes dispostos no campo superior, noivo e noiva performatizam o
ritual junto a um louterion, em presença da oficiante de culto, uma
senhora, na retaguarda da noiva, com a mão levada ao espaldar do
thronos. Esta senhora tem na mão uma bola, que representa a vida de
infância que a futura esposa deixou para trás, mas o jogo de bolo
possui também uma relação com o amor (recordando seu papel como
ritual de transição de moças, para acessar à vida amorosa adulta), e até
com a íynx, com um efeito de magia do amor, pelo movimento
giratório (SCHNEIDER-HERRMANN, 1971, p. 125-126). O ato
ritualístico desta etapa avançada da união entre os noivos se dá pelo
encontro de dois objetos, a phiale, erguida pela noiva com a mão
direita, e um stephanos, que o noivo segura acima da tigela com a sua
direita. Cada um deles traz um objeto com a mão esquerda abaixada:
ele, uma tainia (fita); ela, a íynx, o que indica o uso deste objeto em
algum momento do noivado.
A peliké de Cremona (Fig. 15) mostra-nos uma etapa avançada
do noivado, realizada no espaço aberto, em que ambos, noivo e noiva,

76
Íynx

sentam-se, lado a lado, ele sobre um diphros okladias e ela sobre um


par de almofadas acomodadas sobre o solo10. O casal está flanqueado
por duas senhoras, oficiantes do culto. A senhora diante da noiva traz
uma bola e um sistro ápulo. Eros figura no campo superior, que é
usualmente o campo das entidades neste esquema iconográfico, onde
estas comparecem como símbolo visual de que as divindades aprovam
o ritual. O deus, representado na forma infantil, traz um ramalhete de
mirto e uma guirlanda, a qual ele aponta para um cisne, que simboliza
a presença de Afrodite. Quero destacar aqui que o pintor representou o
momento em que a noiva se prepara para acionar a íynx, pegando-a
pelas pontas, para em seguida prender as extremidades em seu
indicador ou médio, dar um estiraço no fio, e assim fazê-la girar.
Algumas imagens deixam mais claro o uso da íynx durante
ritual. Na peliké de Metaponto (Fig. 18), a noiva, sentada sobre um
thronos, faz a íynx girar, voltando-se para um thymiaterion
(incensário). Observe-se que o thronos e o incensário acomodam-se
sobre um tablado (bema). Vinda da esquerda, uma mulher aproxima-
se, trazendo uma phiale com oferendas. Também sobre o tablado,
entre a noiva e o thymiaterion, um garoto, no qual podemos identificar
a figura do pais amphitales. Este menino tem igualmente uma phiale

10A iconografia indica que a realização dos cultos a Eros e Afrodite podiam ocorrer
com frequência em santuários abertos, sem monumentalidade arquitetônica, na
natureza, em bosques, de uso não permanente (LIPPOLIS, 2001, p. 233-239;
SCHNEIDER-HERRMANN, 1971, p. 91; TODISCO, 2010, p. 267; VERGARA
CERQUEIRA, 2022, p. 170).

77
Fábio Vergara Cerqueira

na mão, de onde pega a oferenda fumegante que deposita sobre o


incensário. Mesmo que o thymiaterion e a fumigação sejam ligados à
veneração de diversas divindades, guardam uma relação especial com
Afrodite, pois seu culto envolve perfumes ligados a seu reino (PROST,
2008, p. 98-99; HERMANY et al., 2005, p. 68-69; SIMON et al.,
2005, p. 258-259). Assim, a peliké proto-lucânica metapontina mostra
a possibilidade de associação entre o uso mágico da íynx e a
fumigação, como formas de se buscar os favores de Afrodite para a
felicidade amorosa.
Em uma peliké hoje no Vaticano, vemos uma mulher, vestindo
chiton acinturado e aparatada com colar de pérolas no colo e
envolvendo o coque11. Ela avança na direção de um altar, sobre o qual
ela projeta, com a mão direita, um espelho. Com a mão esquerda, traz
uma cista, com um ramalhete de mirto, cujas folhas podem ser jogadas
sobre o altar, para exalarem sua fragrância apreciada pela deusa. Na
mesma mão, traz uma íynx, suspensa pelo fio duplo. Ela está se
dirigindo ao altar para usar estes objetos no ritual que incluirá, como
elemento central, o acionamento da íynx, colocando-a em rotação, para
obter da deusa Afrodite os favores amorosos desejados. Já no espelho
de Praeneste (Fig. 20), nós vemos a personagem feminina acionando a
íynx sentada ao lado do altar.

11Pelike ápula de figuras vermelhas. The Painter of Vatican Z3 (vaso epônimo). c.


340-320 AEC Vaticano, Museu Gregoriano Etrusco, inv. 18130 (Z3).

78
Íynx

Figura 28: Prato ápulo de figuras vermelhas. The Alabastra Group. c.


330-325 a. C. Leiden, Rijksmuseum von Oudheden, Coleção Schneider-
Herrmann, n. 198. Desenho: Lidiane Carderaro. Todisco, 2002, p. 99, pl.
XXVII.3.

O último testemunho visual que analisaremos neste estudo é


um prato da coleção de Gisela Schneider-Herrmann (Fig. 28), doado
em 1992 pela própria arqueóloga ao final de sua longa vida ao
Rijksmuseum von Oudheden, de Leiden12. Pertence na verdade a um
par de pratos com representação da dança com véu, que era uma dança
circular, caracterizada pelo movimento giratório do corpo envolvido
pelo manto esticado pelos braços escondidos sob este, e com o
interesse especial despertado pelos diferentes graus de ocultação do
rosto pelo véu ou pelo próprio manto (VERGARA CERQUEIRA,
2023; MARTIN, 2019; FRIESLÄNDER, 2001; HEYDEMANN,
1879). Era, portanto, uma dança que oscilava entre a pudicícia do
corpo ocultado e a sensualidade das curvas que se revelavam sob o

12Doação feita como agradecimento, pois foi aí que ela e sua coleção se esconderam
da perseguição nazista durante a Segunda Guerra Mundial.

79
Fábio Vergara Cerqueira

manto. O prato de Leiden é o único exemplar da pintura de vasos


ápulos que vincula esta dança claramente a um espaço sagrado, de
realização de culto, visto que a dança ocorre em frente a um pilar com
funcionalidade de altar (CASSIMATIS, 2014, p. 167-169;
SCHNEIDER-HERRMANN, 1971, p. 125; VERGARA
CERQUEIRA, 2018, p. 307-308), sobre o qual foram depositados dois
pequenos objetos como sacrifício (ovos?). O prato da coleção
Schneider-Herrmann mostra-nos que as comunidades do Sul da Itália
do século IV AEC conheciam o uso ritualístico da dança com véu
diante de altares. Mas o contexto espacial do prato ápulo não remete
necessariamente a um santuário com monumentalidade arquitetônica
edificada: o altar e a dançarina estão em um espaço aberto, na
natureza, como indica a planta no chão, um mirto, que remete ao
domínio de Afrodite. No entanto, no campo superior direito se vê uma
janela ao longe, assim como na taça de Varsóvia (Fig. 23), que alude
mais a um espaço edificado doméstico, como uma casa, do que a uma
edificação templária. É possível então que esta moça performatizasse a
dança com véu em um espaço religioso mais informal, ao ar livre e
fora dos muros de um santuário, em altar posicionado mais próximo à
residência (LIPPOLIS, 2001, p. 235; 2005, p. 95-101; VERGARA
CERQUEIRA, 2022, p. 170), do mesmo modo que em outros cultos
representados na pintura de vasos ápulos, sobretudo aqueles ligados à
iniciação amorosa e à esfera de adoração à Afrodite e Eros

80
Íynx

No prato de Leiden, seguindo o padrão de representação da


dançarina velada (VERGARA CERQUEIRA, 2023; MARTIN, 2019;
FRIESLÄNDER, 2001; HEYDEMANN, 1879), o manto cobre a
cabeça e esconde os braços, o que é um dos aspectos essenciais desta
coreografia. Mas, no momento da dança que o pintor quis representar,
o rosto está completamente livre, de modo a vermos inclusive sua
boca. Em frente à cabeça da dançarina, suspensa no campo, o pintor
representou a íynx.
Porém, tem mais um detalhe a ser observado: entre as cenas de
dançarina velada na pintura dos vasos ápulos, trata-se do único caso
em que a dançarina tem a boca claramente aberta, indicando que
enquanto dança pronuncia palavras cantadas ou faladas – talvez algum
encantamento, como aquele proferido pela cortesã Simaeta,
conhecedora dos feitiços de amor (FARAONE, 2021, p. 651) ,
personagem central do Idílio II (“As Magas”), de Teócrito (c. 310 –
250 AEC), poeta natural de Siracusa, que viveu certo tempo na Magna
Grécia, antes de se radicar por longo tempo em Cós, e, mais tarde, em
Alexandria. Lembremos que entre o prato de Leiden e o Idílio de
Teócrito a diferença é de pouco mais ou pouco menos de meio século.
Há então um compartilhamento de ambiente geográfico e cultural
próprio ao período helenístico inicial.
Vale analisarmos neste prato um grau mais concreto de
simbolismo do movimento giratório: gira a dançarina velada, gira a
rodinha mágica, gira o pássaro mágico. Assim, o rodopio da dançarina

81
Fábio Vergara Cerqueira

e da íynx aludem-se mutuamente, do ponto de vista simbólico, mas


reforçam-se um ao outro, duplicando suas forças no campo mágico-
místico. Há então um efeito mais profundo na associação entre a dança
velada e a íynx neste ritual de performance coreográfica, ligado à
finalidade mágica do objeto e à natureza mítica do pássaro que lhe dá
nome. A presença da íynx então indica que a performance dançada
diante do altar, representada no nosso prato, tem o escopo mágico-
místico de um feitiço de amor, sendo compatível com o campo de ação
de Afrodite e de Eros.

Considerações finais: a Íynx, o feitiço de amor e seu


uso ritualístico

Em diferentes ocasiões algum personagem segura uma íynx em um


ritual pré-nupcial, o que reforça a crença no seu poder místico
propiciatório às conquistas amorosas e à esperança de felicidade na
vida conjugal. O uso mágico da íynx, empregado em feitiços que
demandam dádivas amorosas (PÍNDARO, Píticas, IV.10.216-220.),
está exemplificado em Teócrito, Idílio, II.17sq., em que a palavra é
usada em um mantra repetido por nove vezes, ῏Ιυγξ, ἕλκε τὺ τῆνον
ἐµὸν ποτὶ δῶµα τὸν, “Íynx [roda mágica], traga para minha casa o
meu homem”13. Trata-se do feitiço de amor que Simaeta pronuncia por
dez vezes, evocando os poderes de íynx para trazer de volta o homem

13 Tradução livre pelo autor. “Ó îunks, arrasta tu aquele homem até minha casa!”, na
tradução de Giuliana Ragusa (2004, p. 22), muito próxima de “Ó íynx, arraste aquele
homem até a minha casa”, de Milton Torres (2002, p. 188-189).

82
Íynx

que ela ama, chamado Delphis. Cada refrão equivale a uma nova volta
da íynx, que completa assim dez voltas ao todo, enquanto o
encantamento é entoado (SEGAL, 1973, p. 33).
Os usos e representações da íynx indicam uma situação em que
as fronteiras entre magia e religião se dissolvem. Esse poder de
dissolver fronteiras é de resto algo que o amor tem a capacidade de
aplacar. E a natureza sonora da íynx guarda ainda um aspecto a ser
considerado quanto esta potência mágica. A sua genealogia, sendo
filha de Peitó e de Eco, a inscreve no domínio do som, aquele
articulado pela palavra que seduz e aquele que é todas as vozes
(DETIENNE, 1972, p. 162).
Como lembra Pierre Chantraine (1968, p. 473), quanto à
etimologia do termo, íynx é uma “formação expressiva, com em certos
nomes de pássaros ou de instrumentos musicais: πῶυνξ (pōynx),
στρίυξ (stríyx), σύρυνξ (sýrinx)”. De fato, o sufixo -ynx é recorrente
na denominação de instrumentos musicais: além da sýrinx (flauta de
Pã) apontada por Chantraine, podemos incluir a salpinx (trombeta) e a
phorminx (cítara de tradição homérica com base arredondada). Daí
que a natureza sonora é uma característica que é quase imanente à
íynx. É possível que o tipo de som produzido pelo movimento
giratório aplicado à íynx – som soprado, zumbido, flautado, sibilado,
como sugerem as qualidades sonoras associadas ao termo – tivesse
algum papel nos rituais ligados Afrodite e Eros, evocados pela

83
Fábio Vergara Cerqueira

iconografia italiota, ou a outras divindades, como Sêmele, Ártemis e


Hécate, evocadas no Idílio de Teócrito sobre as feiticeiras.
Para Vesa Matteo Piludo (2010), “a roda ao girar faz um
zumbido. A íynx produz um som acelerado, ventoso e zumbido. O
resultado final soa como uma respiração pesada, que, no contexto,
novamente tem conotações apaixonadas óbvias”. Ele acrescenta, “o
som ventoso da íynx pode ser associado com o pneuma divino (onde
se mesclam vento, respiração, espírito e, assim por diante,
inspiração)”. Acredito que estas qualidades sonoras se somaram a
outros aspectos analisados acima, para reforçar a crença na sua magia
do amor.
Nas fontes literárias, o poder mágico da íynx é solicitado para
satisfazer vontades sexuais externas ao casamento, relacionamentos
complicados, pouco duradouros, instáveis e malfadados, objetivando a
sedução sexual e o desejo de reconquistar um amor perdido
(TORRES, 2002, p. 195; p. 202; SEGAL, 1981, p. 76; 1973, p. 33). A
magia de amor da íynx, na análise de Marcel Detienne (1972, p.
159-172), marcaria a antítese entre o casamento e a sedução, entre o
amor legítimo e o ilegítimo. Ora, essa interpretação, balizada nas
referências mitológicas e na evidência literária não encontra respaldo
na iconografia dos vasos ápulos, que vincula o uso da íynx sim ao
amor matrimonial. A pintura dos vasos italiotas dá ênfase ao uso
mágico da íynx em rituais em que a futura esposa se prepara para a
vida conjugal, expressando sua crença na intercessão mágica de
Afrodite e Eros para alcançar sua felicidade amorosa... e sexual.

84
Íynx

Referências

Documentação
Imagens
Loutrophoros ápulo de figuras vermelhas.Pintor de Louvre MNB
1148. c. 330 AEC Malibu, J.Paul Getty Museu, 86.AE.680. Public
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Disponível em: https://collections.louvre.fr/ark:/53355/cl010259386#.
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85
Fábio Vergara Cerqueira

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Museum, E744 (1874,0512.1). CCBY-NC-SA 4.0 - © The Trustees of
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Antikesammlungen, Fr 54. Zimmer, 1995, p. 156, fig. 35a.
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Íynx

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Feitiçaria e Alquimia na China Antiga
André da Silva Bueno1

Introdução

Em 91 AEC, um sinistro caso de bruxaria iria abalar


profundamente a casa imperial de Han 漢. Wudi 武帝 [156-87 AEC],

monarca longevo que já governava a China havia décadas, estava


ficando velho e desconfiado. Ele já sentia que seu tempo de vida
estava acabando, mas continuava agarrado ao poder, e seguia agastado
pelos rumores de conspirações que apareciam ocasionalmente na
corte. Foi quando o ministro dos espiões Jiang Chong 江充 levou até o

imperador a suspeita de que atos de magia estavam sendo praticados


contra ele e, possivelmente, contra outros membros do governo. Wudi
autorizou uma busca no palácio por objetos que pudessem indicar a
prática da feitiçaria, e vários bonecos [‘Tongmu ouren’ 桐⽊偶⼈]

foram desenterrados no jardim, junto com pequenos retalhos de seda


com imprecações escritas. O soberano ficou apavorado: faziam anos
que ele tinha pesadelos recorrentes com fantoches mágicos que
vinham atacá-lo, e encontrar esses objetos apenas confirmava seus
receios mais profundos. Anos antes, Wudi já decretara leis mais

1Tem graduação em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1997),


mestrado em História pela Universidade Federal Fluminense (2002), doutorado em
Filosofia pela Universidade Gama Filho (2005) e Pós-Doutorado em História Antiga
pela UNIRIO. É professor adjunto de História Oriental na Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (UERJ).

92
Fei=çaria e Alquimia na China An=ga

severas para regular e supervisionar a prática da magia, e sentia que


isso deixara muitos feiticeiros descontentes, relegando-os a um papel
de segundo plano no cenário religioso. Parecia, pois, que o momento
de uma grande vingança ou golpe se desenhava. A histeria tomou
conta da corte, e as investigações tomaram proporções inimagináveis.
Acusações foram feitas contra a imperatriz Wei Zifu 衛⼦夫 e seu

filho, o príncipe herdeiro Liuju 刘据, e o processo descambou numa

guerra civil aberta pelas ruas da capital imperial, que culminou na


morte da imperatriz, do príncipe e de Jiang Chong, além de milhares
de pessoas. Pouco tempo depois, Wudi descobriu que as concubinas
do seu harém faziam avidamente os mais diversos tipos de feitiços
para serem favorecidas e prenderem sua atenção. Com a ajuda de
bruxos especialmente convocados para debelar esse ataque mágico,
foram identificadas as mulheres e outros membros da corte envolvidos
no caso, e mais centenas de pessoas – e até mesmo alguns clãs inteiros
– foram condenados e executados. Antes de falecer poucos anos
depois, Wudi ainda endureceria um pouco mais as leis contra
feitiçaria, praticamente afastando-a da esfera imperial durante um bom
tempo.
Esse episódio ficou bastante conhecido não apenas por suas
implicações políticas, mas por revelar a dimensão que a magia possuía
no imaginário chinês antigo. Ele foi extensamente analisado por
especialistas como Michael Loewe (1974), Hu Xinsheng 胡新⽣

93
André da Silva Bueno

(1997), Xin Deyong ⾟德勇 (2016) e Chen Chao 陈超 (2017), que

concordam que a feitiçaria teve aí um papel fundamental na definição


das acusações, medos e paranoias que conduziram o processo de
investigação do caso. Embora houvesse uma série de outras
conspirações envolvidas nessa trama, os atos mágicos serviram como
a grande causa e o problema fundamental a ser resolvido. Esse
episódio mostra um aspecto pouco conhecido pelos leitores ocidentais
sobre a história chinesa: a importância das práticas de feitiçaria
[Wushu 巫术]. Como veremos, elas estavam intimamente ligadas às

origens da civilização, e compunham um elemento importantíssimo na


construção das crenças religiosas. Seria no período Qin 秦 - Han 漢

que uma mudança gradual se imporia na relação da sociedade com a


feitiçaria, pelos mais diversos motivos. Nosso objetivo neste breve
ensaio será, pois, apresentar um pouco sobre esse tema tão rico nas
tradições culturais chinesas, fazendo um pequeno percurso histórico
na antiguidade e apresentando algumas de suas práticas mais
conhecidas.

Origens históricas

A feitiçaria é indissociável da história chinesa desde suas


origens. Os termos ‘feitiçaria’, ‘magia’ e ‘bruxaria’ [Wushu 巫术] são

usados de forma sinonímica, na China, para designar as tradições

94
Fei=çaria e Alquimia na China An=ga

mágico-xamânicas herdadas e desenvolvidas desde o neolítico, e que


continuam a acompanhar a sociedade até os dias de hoje [um outro
termo, ‘Mofa’ 魔法 tem sido usado para indicar ‘mágica’ ou ‘magia’

ocidental, tendo surgido somente no século 19 ou 20 EC, e por isso


não será usado aqui]. A historiografia tradicional chinesa produziu
trabalhos importantes sobre o tema (LIN, 2016; YANG, 2018), mas a
fundação da República em 1912 e depois, a ascensão do Marxismo em
1949 na China continental relegou as pesquisas sobre feitiçaria a um
segundo plano. Foi no final do século 20 que estudos como ‘Feitiçaria
na dinastia Han’ 漢代的巫者 de Lin Fujin 林富⼠ [1987], ‘Bruxaria

Chinesa’ 中国巫术 de Zhang Zichen 张紫晨 (1990) ou ‘História da

Feitiçaria Chinesa’ 中国巫术史 de Gao Guofan ⾼国藩 (1999)

marcaram uma renovação nas pesquisas sobre as conexões entre as


crenças mágicas chinesas e as origens ancestrais da cultura chinesa;
mais recentemente, o mesmo Lin Fuji publicou ‘O Mundo dos
Feiticeiros’ 巫者的世界 (2016), considerado o mais completo e

seminal trabalho sobre o tema na historiografia contemporânea, no


qual ele apresentava uma radiografia completa sobre a história e as
práticas da bruxaria na China. Dois anos depois, o destacado pensador
Li Zehou 李泽厚 publicou um importante estudo sobre as relações

entre o desenvolvimento da filosofia chinesa e o xamanismo,

95
André da Silva Bueno

ampliando esse campo em novas e férteis direções (LI, 2018;


ROSKER, 2021).
O que esses trabalhos têm em comum? Eles exploram como a
feitiçaria estava na base da organização cultural desde os primórdios
da civilização chinesa. Para eles, os xamãs contribuíram
significativamente para a construção do imaginário social e religioso,
elaborando as primeiras crenças religiosas e explicando suas
implicações no cotidiano da comunidade. Obras como O Xamanismo e
as técnicas arcaicas do êxtase, de Mircea Eliade (1998), serviram para
nortear nossa compreensão epistêmica sobre o papel dos xamãs nas
comunidades antigas; mas no caso chinês, elas precisam ser
modificadas e ampliadas em certa medida. Li Yujie 李禹阶 (2020)

mostrou como o crescente número de achados arqueológicos em


tumbas neolíticas revela uma forte identidade entre as lideranças
comunitárias e os xamãs, expressa por ornamentos e objetos
ritualísticos como joias de jade, ossos e marfins esculpidos, máscaras e
cerâmicas com pinturas de cunho mágico. Esses objetos integravam o
arsenal do qual o bruxo se valia para desempenhar seu papel junto à
sociedade, que se desdobrava em várias atividades diferentes [mas
integradas], como veremos agora.
Em primeiro lugar, cabia ao xamã a tarefa crucial de manter
contato com o mundo espiritual, tanto no nível divinal [manifesta nas
forças e símbolos naturais, como a Lua, o Sol, os rios, os ventos, o

96
Fei=çaria e Alquimia na China An=ga

trovão, os animais] quanto com as almas desencarnadas dos membros


da comunidade. Para isso, ele entrava em transe mediúnico, que podia
se dar de duas formas diferentes: saindo do corpo físico para conversar
diretamente com os espíritos e divindades, ou deixando que as
mesmas assumissem seu corpo para manifestar suas vontades e avisos
[usualmente conhecido como ‘possessão’]. Note-se que nesse
momento da história chinesa – que os especialistas estimam entre o
8.000 a 7.000 anos atrás – as pessoas escolhidas para serem xamãs
manifestavam desde a infância sinais de sensibilidade especial, e
iniciavam cedo o treino na tarefa de se tornarem especialistas em artes
mágicas, estudando-as ao longo de vários anos. Por isso, não havia
distinção de sexo, e tanto mulheres quanto homens podiam ser xamãs,
em chinês designados genericamente pelo termo ‘Wu’.
Mas continuemos com as atividades dos xamãs: o intercâmbio
com o mundo espiritual era fundamental para administrar a vida
comunitária. Zhao Rongjun (2004) afirmou que o contato com as
divindades servia para garantir a proteção e a continuidade da vida,
expressa pelo conhecimento dos ritmos da natureza [a variação das
estações, os ciclos dos astros], o desempenho das cerimônias e
sacrifícios às divindades, e pela invocação da chuva. Em uma
sociedade agrícola, tais conhecimentos eram cruciais para a
sobrevivência. No mesmo sentido, as divindades podiam ajudar em
processos de cura; elas podiam orientar o uso e a fabricação de
remédios e poções a partir de materiais naturais [dando partida a

97
André da Silva Bueno

milenar farmacopeia chinesa], ou auxiliar no tratamento de doenças


espirituais. Numa delas, por exemplo, a alma de uma pessoa ‘fugia’
para o mundo espiritual, e cabia ao xamã ir buscá-la em transe, guiado
pelas divindades e espíritos familiares, trazendo-a novamente para seu
próprio corpo. No dia-a-dia, xamãs também interpretavam sonhos,
aconselhavam as pessoas em suas dúvidas particulares, davam
orientações e agiam como uma espécie de ‘psicanalista’.
Quanto aos espíritos que foram membros da comunidade, eles
continuavam a supervisionar e auxiliar a vida de suas famílias,
desenvolvendo-se aí a base do culto aos ancestrais, que se tornaria um
pilar da mentalidade chinesa. Não raramente, eles vinham em sonhos
dar avisos, ajudavam no processo de cura das doenças espirituais e
auxiliavam os xamãs em suas tarefas. Ocasionalmente, eles podiam
interferir [até certo ponto] na vida cotidiana, atuando sobre os
indivíduos de modo benéfico ou maléfico, o que mantinha uma
relação contínua do mundo material com o espiritual. Isso teria
profundas implicações éticas, gradualmente delineando padrões de
moralidade e ritualidade que estruturaram as regras sociais (CHU,
2008; ROSKER, 2021).
Se xamãs podiam ser curandeiros, também podiam defender a
comunidade ou servir a interesses particulares por meio de ações
mágicas. Um dos conhecimentos que precisavam dominar era o da
produção de venenos e poções mágicas, como filtros amorosos ou

98
Fei=çaria e Alquimia na China An=ga

estimulantes para guerreiros. Também realizavam predições por meio


dos mais variados oráculos, tais como o transe, sonho, o jogo de ossos,
leitura de sinais da natureza, entre muitas outras formas. Além disso,
eles expulsavam fantasmas e espíritos malévolos da comunidade, mas
também sabiam como convocá-los para prejudicar alguém; e os
chineses já conheciam o feitiço de imantação, no qual uma pequeno
boneco de madeira [Tongmu ouren 桐⽊偶⼈] era produzido como

réplica de alguém para gerar efeitos mágicos indiretos mediante a


aplicação de agulhas, facas ou calor [o mesmo que teria sido usado
contra Wudi, como citamos no início]. A compreensão dos ciclos
naturais lhes permitiria, ainda, realizar feitiços para invocar pragas,
pestes, secas, inundações, provocar tempestades ou causar desastres
aos inimigos em meio a uma guerra.
Como podemos notar, a feitiçaria xamânica abrangia os mais
variados aspectos da vida, articulando as crenças em uma existência
espiritual após a morte com a condução dos negócios cotidianos.
Xamãs contribuíam dentro da comunidade para organizar os costumes,
definir conceitos éticos norteadores, estabelecer relações políticas e
econômicas e interpretar o imaginário religioso (WU, 1999; LI, 2020,
p. 170). Podemos conectar as raízes de várias tradições chinesas com
essas expressões da feitiçaria, tal como o culto aos ancestrais, derivado
do contato com os espíritos familiares; a tradição fitoterápica herdada
das experiências de curandeirismo; ou o pensamento cosmológico,

99
André da Silva Bueno

inferido pela gradual construção de sistemas que explicassem o ritmo


da natureza. Wu Jindong (2002) defendeu que a feitiçaria seria a base
das concepções religiosas e sociais da China antiga, e que teria
continuamente servido de alicerce para o imaginário religioso dessa
civilização; no mesmo sentido, Li Tiandao (2009) propôs que a
estruturação estética dos elementos culturais chineses teria uma
profunda conexão com a mundivisão cósmica do xamanismo chinês,
estabelecendo padrões simbólicos que se reproduziriam nos mais
diversos campos como música, poesia, arte e ciências naturais.

Entre o popular e o institucional

Em torno do terceiro milênio AEC, o processo de urbanização


levou a uma complexificação das relações sociais, com o surgimento
de novos grupos, classes e estamentos em ambientes cada vez mais
diversos. O surgimento de clãs governantes nessas cidades
gradualmente deslocou o espaço de poder do campo para as áreas
urbanas, embora a China se mantivesse uma civilização agrária. O
desenvolvimento tecnológico deu um grande salto, com um manejo
sofisticado de metais, escultura e cerâmica que deu aos chineses, em
torno do séc. 17 AEC, a capacidade de produção em massa de vários
objetos (LEDDEROSE, 2000, p. 25-50).
Os efeitos do surgimento das cidades e da formação de uma
classe política reconfigurou a relação da sociedade com os xamãs-

100
Fei=çaria e Alquimia na China An=ga

feiticeiros. Como vimos, a escolha desses especialistas se dava desde a


infância a partir de um perfil específico, e esse processo de
identificação-iniciação era evidentemente mais fácil de ser realizado
dentro de uma comunidade aldeã. Nas cidades, a situação tornara-se
diferente. O grande número de pessoas, bem como a formação de um
corpo administrativo com bases clânicas, ensejou mudanças nas
relações com os especialistas no sagrado. Eles mantiveram um
prestígio significativo, e continuaram a ser convocados nas cortes para
prestar sua assistência em assuntos mágicos, mas sua capacidade de
atuação e influência ficou reduzida, em face do seu número limitado.
Um dos resultados mais evidentes desse conjunto de mudanças foi o
surgimento da escrita e seu oracular em carapaças de tartaruga e
patelas bovinas no período Shang 商朝 [1500-1027 AEC], o que

transferiu a capacidade de realizar augúrios para as mãos de não-


feiticeiros (Keightley, 1985). Vários dos conhecimentos xamânicos,
como a astronomia, o calendário, o cerimonial e a farmacopeia se
disseminaram na sociedade, e passaram por um processo de
institucionalização [ainda que lento e relativamente limitado] que
transferia, para o governo, a sua manutenção, difusão e reprodução.
Ao longo da extensa dinastia Zhou [1027-221 AEC], a
feitiçaria cedeu espaço à formação de uma religião oficial
governamental, que pretendia conectar as divindades diretamente a
classe governante, instituindo uma visão racionalizada da natureza que
a compreendia como um sistema ecológico complexo, mas não

101
André da Silva Bueno

necessariamente mágico (BUENO, 2014). A atuação de xamãs ficou


bastante restrita aos ambientes extra-urbanos, e suas concepções
religiosas mantiveram-se mais presentes nos meios popular e rural.
Um texto do séc. 5 AEC, o Guoyu 國語, explicava numa breve
passagem como o desenvolvimento histórico da civilização chinesa
havia dissipado a importância dos xamãs, através da mudança dos
padrões religiosos:
Antigamente, pessoas e espíritos não se misturavam.
Nessa época, havia pessoas que eram sensíveis,
determinadas e reverentes, e elas conseguiam alcançar a
compreensão do que está acima e do que está abaixo, do
que estava longe e do que é profundo. Por essa razão, os
espíritos desciam neles. Os possuidores de tais poderes
eram, se homens, chamados Xi 覡, e, se mulheres, Wu 巫.
Eles cuidavam dos espíritos nos rituais, sacrificavam a
eles e ensinavam as coisas espirituais. [...] Assim, o
mundo dos espíritos e o mundo das pessoas permaneciam
separados. Os espíritos enviavam suas bênçãos sobre as
pessoas e aceitavam suas oferendas. Não havia
calamidades naturais, e os pedidos eram atendidos. Mas
no tempo do famigerado Shaohao 少昊 [imperador que
teria reinado no século 26 AEC] os Jiuli 九黎 [tribos
antigas semi-lendárias que teriam se tornado célebres por
suas práticas de feitiçaria malévola] transformaram a
virtude em desordem. Pessoas e espíritos começaram a se
misturar, e cada família começou a fazer rituais que até
então só os xamãs faziam. As pessoas passaram a
desrespeitar os espíritos, e os espíritos passaram a
incomodar as pessoas, surgindo aí as calamidades
naturais. O sucessor de Shaohao, Zhuanxu 顓頊 [2514
AEC? – 2436 AEC?] [...] encarregou Chong, Governador
do Sul, de cuidar dos assuntos do céu para determinar o
lugar apropriado dos espíritos, e Li, Governador do Fogo,
de cuidar dos assuntos da Terra, a fim de determinar o
lugar próprio dos humanos. E é isso que significa ‘cortar a
comunicação entre o Céu e a Terra’ (Guoyu 國語, 楚語下
10).

102
Fei=çaria e Alquimia na China An=ga

Como podemos notar, o xamãs teriam tido um papel


importante numa Era idealizada do passado chinês, mas a corrupção
dos costumes e do uso da magia havia feito sua posição declinar, e
fora necessário a intervenção de oficiais da corte para instituir o
monopólio sobre a conexão com o mundo espiritual, o ato de ‘cortar a
comunicação entre o Céu e a Terra’ [Jueditiantong 绝地天通]. Esse
conceito se tornaria uma peça chave nas políticas públicas sobre a
bruxaria no futuro, como veremos adiante. Mesmo assim, é preciso
cuidado em delimitar radicalmente essas diferenças; como podemos
perceber, mesmo a cultura ritual urbana derivava, em muitos aspectos,
das tradições surgidas na feitiçaria, e a religiosidade chinesa antiga
pode ser apropriadamente denominada como ‘Wujiao’ 巫教

[Ensinamento dos Xamãs] ou ‘Shenjiao’ 神教 [Ensinamento dos

Espíritos]. O que começaria a mudar então a partir do século 3 AEC,


durante o período Qin-Han?

A feitiçaria no período Qin e Han

A dinastia Qin [221-206 AEC] constituiu um breve, porém


importantíssimo, período da história chinesa. Após uma demorada
guerra civil, que se arrastou de 481 até 221 AEC [Zhanguo 戰國], o

estado de Qin conseguiu reunificar o país em torno de um estado


centralizado, imprimindo uma nova ordem burocrática de poder no

103
André da Silva Bueno

país. Nesse meio tempo, a China atravessou momentos importantes,


como a revolução do pensamento ético-político promovida por
pensadores como Laozi ⽼⼦[séc. 6 AEC], Confúcio 孔⼦[551-479

AEC], Mozi 墨⼦[470-391 AEC] e Hanfeizi 韓⾮⼦[280-233 AEC],

entre outros, que trouxeram a luz o problema da racionalização


filosófica sobre o conhecimento e a existência humana. Esse
movimento contribuiu fortemente para a formação de uma
intelectualidade atuante, que se distinguia dos xamãs por entender que
os problemas do mundo se situavam em um plano imanente, ou seja,
voltado para as relações entre os seres humanos e a natureza no plano
físico da existência.
Ainda que o primeiro monarca de Qin, Qinshi Huangdi 秦始皇

帝 [260-210 AEC] perseguisse as divergências políticas e filosóficas

ao seu regime (Bueno, 2015), o princípio fundamental de manter o


monopólio de uma razão de estado em suas mãos consolidou-se, e
suas políticas públicas se conduziram a partir de um pensamento
filosófico legalista. Isso significou um afastamento cada vez maior
entre a esfera religiosa tradicional e popular, representada pela
feitiçaria, e as instâncias governamentais urbanizadas. Qinshi Huangdi
tentou construir para si uma dimensão messiânica, pretendendo
reformular-se divinamente no imaginário chinês em um projeto
malsucedido, mas que gerou impactos significativos na ideologia de
governança (PINES, 2014). Mesmo assim, o soberano Qin não

104
Fei=çaria e Alquimia na China An=ga

desprezava a magia de forma alguma, e investiu assiduamente em


poções e remédios que pudessem estender sua vida [e que foram
provavelmente, a causa de sua morte] (NEEDHAM, 1970). Foi nesse
período que o governo imperial começou também a impor legislações
mais severas sobre as práticas mágicas, pretendendo controlar seus
efeitos e sua influência. Aparentemente, no desejo de controlar a
sociedade, Qinshi Huangdi entendia que os feiticeiros poderiam agir
de forma sutil contra o Estado e seu aparelho, e por isso, precisavam
ser vigiados de perto (DUAN, 2014; YANG, 2018). Essas ações
revelam que a elite burocrática imperial, apesar de intelectualizada,
continuava a acreditar firmemente na feitiçaria, e é provável que
recorressem a ela usualmente.
A pressão política e social sobre os feiticeiros pode ter sido
responsável pela disseminação mais intensa, nesse período, da magia
Gu 蠱, um conjunto de práticas e feitiços malévolos que se tornaram

muito comuns na China, como analisado por Li Hongru 李鸿儒, 2021,

cujo trabalho explica a cultura do veneno Gu na antiguidade. As


evidências da existência de Gu remontam ao período Shang e Zhou, e
aparecem pontualmente nos oráculos e textos, mas sem uma
explicação mais detalhada (LI, 2021; DU, 2016). É em Qin que
começamos a saber no que consistia exatamente a prática Gu:
acreditava-se que era possível produzir um veneno terrível a partir da
mistura de várias toxinas naturais. Para isso, os magos despejavam em

105
André da Silva Bueno

um mesmo recipiente fechado animais peçonhentos como cobras,


sapos, aranhas e escorpiões e deixavam que eles exterminassem uns
aos outros. No final, o animal que sobrevivesse deveria ser o mais
resistente, o mais venenoso, e seu corpo conteria uma mistura letal de
toxinas. Sua peçonha [ou seu sangue] seria então retirada, guardada e
usada em poções ou administrada contra as possíveis vítimas. Gu
podia ser usado para envenenar inimigos e eliminá-los de modo
fulminante, mas também podia ser diluído para criar feitiços de
amarração amorosa. Supõe-se que o veneno Gu podia ser usado para
dominar a mente das pessoas ou criar zumbis/vampiros [Jiangshi 殭

屍] sobre o controle do feiticeiro; para isso, deixava-se que lesmas

nascessem dos corpos dos animais mortos na produção da peçonha.


Elas eram recolhidas e então buscava-se um meio para que uma delas
fosse inserida no corpo da vítima, fosse por alimentos ou por uma
cavidade do corpo. Esse parasita, controlado magicamente a distância
pelo feiticeiro, passaria a habitar dentro da pessoa infectada, tomando
sua consciência e tornando-a submetida à vontade do mestre Gu. Para
combater o feitiço Gu, havia dezenas de meios diferentes, que
envolviam desde exorcismos aos mais diversos tipos de remédios
herbais e minerais, mas o tratamento era considerado difícil e sofrido
(YUAN, 1995). É possível que o grande número de parasitoses
causadas por alimentos contaminados fosse o principal subsídio para a
crença na efetiva ação dos feitiços Gu; seja como for, essa prática se

106
Fei=çaria e Alquimia na China An=ga

consolidou como uma das principais ameaças mágicas na civilização


chinesa.
O potencial de perigo representado pela magia Gu atravessou o
período Qin e chegou a dinastia Han [221 AEC – 206 EC], período em
que viveu Wudi, o soberano citado na abertura deste capítulo. Embora
a dinastia Han fosse muito mais condescendente e liberal do que Qin,
em grande parte graças a adoção do Confucionismo com ideologia
imperial, a feitiçaria continuou a ser uma preocupação central nas
instâncias políticas. Uma legislação severa foi criada e aplicada após o
incidente com o imperador, aumentando o controle e a supervisão
sobre xamãs e pessoas que praticassem bruxaria (XIN, 2016, p.
122-124). Pessoas que fossem pegas praticando Gu deveriam ser
executadas e esquartejadas, e as partes de seu corpo queimadas –
descobriu-se, com o tempo, que os praticantes de magia tentavam
obter partes desses mesmos corpos para realizar seus encantamentos e
poções, por acreditar que eles continham o poder acumulado em vida,
o Qi 氣[energia, pneuma] do feiticeiro. Ao mesmo tempo, a burocracia

incorporou feiticeiros ‘oficiais’ na corte, especialistas em detectar e


evitar ataques mágicos aos soberanos. Apesar deles serem recrutados
entre os tradicionais xamãs, a magia continuaria sobrevivendo cada
vez mais nos meios rurais, sendo rigorosamente filtrada nas práticas
religiosas institucionalizadas. Como Lin Fuji [1987] observou, a teoria
‘Jueditiantong’ [Cortar a comunicação entre o Céu e a Terra] se

107
André da Silva Bueno

tornaria o centro de uma mudança nas atitudes estatais em relação à


magia, marcando uma nova fase na vivência religiosa dessas crenças.
A dinastia Han demarca o mais baixo nível de status da bruxaria na
antiguidade chinesa frente a burocracia e as camadas intelectualizadas
da sociedade [HU, 1996; MA, 2001]. Wang Chong 王充 [27-100 EC],

uma dos críticos mais ativos desse longo período, afirmava que
‘quando se fala de exorcismos e sacrifícios, ele são inúteis; quando se
fala de feiticeiros, eles não têm poder; tudo depende do ser humano e
de suas virtudes, e não de fantasmas e de sacrifícios’ [Lunheng 論衡,

解除:12]. Tamanho desprestígio não era o único problema com que os

feiticeiros teriam que lidar. Eles ainda enfrentariam uma nova ameaça
a sua já combalida autoridade: os ‘Fangshi’ ⽅⼠.

Da Feitiçaria à Alquimia

Os eventos que atingiram a corte Han durante o reinado de


Wudi não apontavam somente para um ‘declínio’ da magia, mas
envolviam também a ascensão do ‘Fangshi’ ⽅⼠, um novo tipo de

especialista mágico que começou a frequentar as altas rodas da


sociedade chinesa.
Desde a época de Qin, surgira um interesse renovado em
métodos para prolongamento da vida e manutenção da saúde. Esse
movimento vinha tanto da racionalização intelectual, que ensejou a

108
Fei=çaria e Alquimia na China An=ga

construção de uma ciência médica, quanto da preocupação palpável


contra conspirações e envenenamentos, uma prática comum nos meios
políticos. Enquanto isso, o período de guerra civil que precedera a
ascensão de Qin havia lançado ao mundo milhares de pensadores que
estavam agora desempregados, com exceção daqueles que haviam se
submetido ao regime severo da nova burocracia imperial. Isso
significou um importante movimento de disseminação de saberes na
sociedade, disponibilizando ao público um imenso acervo de
conhecimentos e preocupações filosóficas, que permitiram a uma
vasta parcela de pessoas repensar suas relações com o imaginário
cultural e religioso.
Os Fansghi surgiram na esteira desses acontecimentos. Embora
seja difícil rastrear ou construir um perfil social de suas origens,
sabemos que eles compartilhavam um conjunto de saberes
estruturados de forma muito similar [para isso, podemos consultar o
ainda referencial trabalho de De Woskin, 1983]. Não por acaso, os
sinólogos ocidentais começaram a traduzir o termo como ‘alquimista’,
já que algumas das propostas dos Fangshi iriam coincidir, inclusive,
com seus homólogos da Europa. A concepção geral que permeava as
ações e ideias desse grupo era de uma racionalização cientificizada das
crenças e sistemas propostos pelos xamãs, afastando-as da esfera
espiritual para a do mundo material (ELIADE, 1995, p. 63-65). Ou
seja: segundo eles, seria possível elaborar medicamentos ou métodos
de cuidado com a saúde que não envolvessem relações com os

109
André da Silva Bueno

espíritos ou qualquer tipo de compromisso moral. Essa proposta


atendia diretamente a uma camada privilegiada da sociedade que
pretendia viver mais e melhor, mas sem ter que se preocupar com
deveres e ofícios religiosos mais austeros. Os Fangshi ainda elevaram
ao máximo o expoente do curandeirismo, afirmando que seria possível
obter alguma forma de imortalidade física [Xian 仙] pelos métodos

por eles defendidos; e isso, nem mesmo os feiticeiros ou os médicos


foram capazes de propor em qualquer momento.
Qinshi Huangdi permitiu que alguns Fangshi frequentassem
sua intimidade, e experimentou algumas de suas fórmulas. Depois
dele, o mundo chinês entrou na dinastia Han mais aberto e tolerante,
mas não menos desejoso de soluções miraculosas. O imperador Wudi,
de quem já falamos antes, foi também um vívido interessado nos
métodos Fangshi, e recebeu a visita de um mestre famoso, Li Shaojun
李少君, que teria explicado a ele alguns dos segredos da longevidade,

conforme nos conta Sima Qian 司⾺遷 (145-86 AEC) no capítulo 28

do Shiji 史記; contudo, a morte de Li alguns anos depois deixou no ar


a impressão de que os Fangshi poderiam ser charlatões.
Parece improvável para nós, hoje, que alguém realmente
acreditasse ser possível tornar-se imortal; mas naquela época a ciência
ainda engatinhava, e os relatos folclóricos de pessoas que haviam
conseguido obter esse privilégio abundavam na literatura. Por
exemplo, o livro Biografias dos imortais (Liexian Zhuan 列仙傳), de

110
Fei=çaria e Alquimia na China An=ga

Liu Xiang 劉向 (77-6 AEC) trazia uma série de relatos e personagens

históricos que teriam conseguido alcançar a longevidade ou a


imortalidade através de métodos secretos. Os Fangshi formavam uma
espécie de rede iniciática que compartilhava seus conhecimentos com
discípulos seletos e vendia suas artes a quem pudesse pagar bem;
apesar disso, temos algumas evidências de como funcionavam suas
ideias centrais, expressas no primeiro manual de alquimia chinesa, o
Cantongqi 參同契 (também chamado de Zhouyi Cantongqi 周易參同

契), de Wei Boyang 魏伯陽 (séc. 3 EC).

A diferença marcante entre a feitiçaria Wu e essa mesma


alquimia era o ponto de partida teleológico. Como vimos, a feitiçaria
entendia uma série de eventos físicos [como as doenças e as
dificuldades da vida] atrelados à influência dos espíritos, e somente
mediados pela intervenção dos xamãs/bruxas. Os Fangshi agiam de
forma diferente; para eles, a maior parte desses problemas poderia ser
resolvida pelo uso de técnicas que podiam ser compartilhadas com
pessoas sem qualquer habilidade mágica especial, e que se atinham
essencialmente à existência material. A busca pela imortalidade era um
processo físico, que pretendia reproduzir condições análogas a da
natureza.
Isso ficava evidente pelo objetivo central dos sistemas Fangshi,
a criação de um ‘elixir de ouro’ [Jindan ⾦丹]. Assim como o ouro

tinha qualidades especiais, como pureza e durabilidade, pretendia-se

111
André da Silva Bueno

uma transmutação do corpo físico em uma condição análoga a do


metal precioso. Isso podia ser feito de forma literal, com a ingestão de
pó de ouro; mas essa era apenas uma entre centenas de opções que
esses especialistas desenvolveram. Para uma descrição mais ampla dos
métodos alquímicos, veja meu texto (BUENO, 2022), sobre os quais
faremos um breve resumo a seguir.
Uma das formas mais comuns de produzir o elixir era a
cozedura de elementos herbais e minerais para a produção de pílulas
ou poções que conseguissem produzir o efeito de transformação do
corpo físico. Ouro, prata, cinábrio e jade eram apenas algumas das
muitas substâncias empregadas, além da vasta farmacopeia importada
dos xamãs e dos médicos. Uma teoria central no processo de
cozimento era tentar produzir um elemento novo que congregasse
todos os cinco estados da matéria – água, fogo, metal, madeira e terra
– e sua aparência deveria ser, ao final, similar ao dourado.
Outra proposta defendida pelos Fangshi era de que a harmonia
corporal poderia ser atingida pela combinação equilibrada das
essências yin 陰 e yang 陽 através de uma série de exercícios físicos

especiais, como as respirações Qigong 氣功, ou pela alquimia sexual,

que consistia em uma espécie de cópula técnica entre parceiros com o


fim de permutar energias. Uma notável literatura sobre essas técnicas
foi encontrada nas tumbas Han de Mawangdui ⾺王堆, e tem sido

112
Fei=çaria e Alquimia na China An=ga

continuamente estudada pelos seus aspectos inovadores no campo da


educação física, das artes marciais e da sexualidade.
Como podemos notar, os métodos alquímicos chineses iam
bastante além dos seus congêneres posteriores da Europa medieval, e
estiveram na raiz de várias formas e modalidades de conhecimento nas
ciências chinesas tradicionais. Um amplo diálogo com áreas como a
medicina e a química permitiram que algumas experiências alquímicas
fossem incorporadas aos saberes comuns, transformando-se numa
importante herança imaterial.

Desdobramentos históricos

E o que aconteceu com esses Fangshi? Apesar de inúmeros


ensaios e tentativas malsucedidas, os alquimistas chineses conseguiam
emprestar uma aura de credibilidade a suas ideias, oferecendo-as como
uma espécie de ‘magia racional’ ou ‘medicina sutil’, sem exigir
contrapartidas morais. É notável pensar que, apesar do seu desejo em
afastar-se dos feiticeiros, a alquimia acabou sendo gradualmente
absorvida pela religião daoísta, profundamente interessada nos
métodos de equilíbrio natural do corpo. Assim, quando Zhang Daoling
张道陵 [34?-156? EC] fundou o primeiro movimento religioso do

Daoísmo, o Caminho dos Mestres Celestias [Tianshidao 天師道], a

alquimia era já um elemento presente no corpo dos conhecimentos


religiosos, junto a uma série de práticas – como exorcismos –

113
André da Silva Bueno

emprestados diretamente da feitiçaria (BUENO, 2021, p. 30-33). As


crises no século 3 EC que envolveram a dinastia Han não diminuíram
o interesse pelas experiências alquímicas, ao contrário: elas se
tornaram um assunto profundamente estudado pelos intelectuais das
dinastias posteriores, se tornando um importante ramo do
conhecimento sagrado da civilização chinesa.
Quanto à feitiçaria, apesar de ter cedido muito de seus
conhecimentos para a construção de todas essas vertentes religiosas,
continuou a sofrer com um esvaziamento sistemático de seu poder por
parte das camadas privilegiadas da população. Para muitas pessoas,
era profundamente incômoda a sensação de depender de um
especialista ‘escolhido pelas divindades’ para resolver problemas que
pareciam não ter fundamento na esfera humana. Nas áreas rurais,
porém, onde o acesso à escola era reduzido, os xamãs continuaram a
desfrutar de certo prestígio, mas sem um papel de liderança como o
vivenciado do neolítico até o período Shang. Esses feiticeiros
angariaram para si uma função/imagem muito parecida com o que
conhecemos aqui no Brasil como o dos curandeiros e benzedeiras,
herdando e preservando tradições antigas e conhecimentos da natureza
que não foram filtrados pela cultura urbanizada e pela religiosidade
institucional. Por outro lado, os estudos de Zhao Xiaohuan 赵晓欢
[2016] e Yang Qianqian 杨千千 (2018) mostram um endurecimento
das leis, ao longo da história, contra a bruxaria, colocando-a em um

114
Fei=çaria e Alquimia na China An=ga

entrelugar problemático de marginalização e ao mesmo tempo, de


poder oculto e latente. Foi no período Han, por fim, que se
delineariam esses espaços de bruxos, alquimistas e das doutrinas
religiosas no imaginário chinês, fomentando uma estrutura relacional
que atravessaria os séculos e teria profundas implicações nas leis e na
sociedade.

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118
Escravidão e adivinhação no Império Romano:
uma aproximação a partir das Sortes
Astrampsychi
Filipe Noé da Silva1

Introdução

De acordo com os Atos dos Apóstolos (16:16), Paulo e Silas,


em suas missões na cidade de Filipos, teriam encontrado uma jovem
mulher em condição servil que, possuída por um espírito pitônico2

(πνεῦµα Πύθωνα), realizava adivinhações (µαντευοµένη) e assim


gerava lucros para seus proprietários. Após bradar por vários dias que
os apóstolos estariam a serviço da divindade judaico-cristã, a serva,
então, teria sido libertada (por Paulo) do espírito que a possuía.
Incomodados por já não mais poderem lucrar com os ‘serviços
oraculares’ da mulher escravizada, seus senhores voltaram-se, então,
contra os pregadores cristãos e, com o apoio da multidão e dos
estrategos locais, os submeteram à violência e ao cárcere.

1 Doutor em História Cultural pela Universidade Estadual de Campinas


(UNICAMP). Em sua tese de doutorado investigou as práticas de munificência
cívica (evergetismo) fomentadas por libertas e libertos nas cidades romanas da
Baetica. Durante o doutorado, foi pesquisador visitante no CEIPAC (Universitat de
Barcelona). Possui mestrado em História Cultural, também pela UNICAMP, com
estudos sobre sexualidade no Império Romano e teorias de gênero aplicadas à
Antiguidade Clássica. É professor universitário, atuante nas Faculdades Integradas
Maria Imaculada.
2 Sobre a suposta origem da serpente Píton, a subsequente vitória de Apolo, o deus
arcitenens, e a instituição de jogos sagrados em sua homenagem veja-se: Ovídio,
Met. I. 431-447.

119
Filipe Noé da Silva

Apesar de seu teor proselitista e teológico (NOGUEIRA, 2020,


p. 53), a narrativa dos Atos dos Apóstolos, repleta de elementos da
historiografia e da novela gregas, se ancorava (WICKHAM, 2019, p.
52) em experiências reconhecíveis, características de sua própria
época3 e repletas de “(...) informações que demonstram conhecimento
de primeira mão e antigo” (FUNARI; VASCONCELLOS, 2013, p.
20). Sua menção à prática da adivinhação oracular, bem como sua
referência à conhecida (COBB, 2019, p. 180) Pítia de Delfos, não é
fortuita e tampouco ocasional. Como demonstrado por Jean-Pierre
Vernant (1991, p. 304), as práticas divinatórias estavam atreladas à
religiosidade, à medicina, à lei e à política quotidianas, impactando de
maneira significativa sobre a vida coletiva nas cidades do
Mediterrâneo Antigo e em sua produção cultural.
Em decorrência de sua ubiquidade, as práticas de adivinhação
oracular constituíam uma manifestação da religiosidade popular
(JENNINGS, 2017, p. 193) que estava ao alcance dos mais distintos
grupos sociais (VERNANT, 1991, p. 311): inclusive das pessoas
escravizadas (EIDINOW, 2011). Além do já mencionado episódio
narrado pelo Atos dos Apóstolos (16:16), a proximidade entre oráculos
e escravizados também foi tema da Vida ou Romance de Esopo (G.
89-91 passim): a pedido da assembleia de Samos, Esopo (a

3 Embora narre as experiências das comunidades cristãs da década de 60 da Era


Comum, não há consenso quanto à datação da obra Atos dos Apóstolos. Entre os
estudiosos brasileiros, admite-se que a narrativa tenha sido produzida entre os anos
de 80 (FUNARI; VASCONCELLOS, 2013, p. 20) e 120 (NOGUEIRA, 2020) da Era
Comum.

120
Escravidão e adivinhação no Império Romano

contragosto de seu mestre, o filósofo Xanto, que foi obrigado a


conceder-lhe a liberdade nesta ocasião) teria interpretado um presságio
que anunciava guerra, derrota e escravização para a população desta
cidade.
Assumindo, portanto, o pressuposto de que as adivinhações
oraculares também eram manipuladas por pessoas em situação servil,
o presente capítulo examina as Sortes de Astrampsico com o intuito de
compreender os interesses associados à consulta oracular realizada por
pessoas escravizadas. Por meio desta empreitada, espera-se conhecer,
ainda que de maneira preambular, algumas das expectativas dessas
pessoas em relação à escravidão praticada no Império Romano.

As Sortes Astrampsychi e a escravidão romana

Composto por 91 perguntas (elencadas entre os números 12 e


103) e 103 dezenas de respostas, o livro das Sortes de Astrampsico é
um texto oracular, pseudoepigráfico, redigido em língua grega sobre
um papiro (EIDINOW, 2011) e que reivindica sua autoria para um
mago chamado Astrampsico4. Endereçado ao rei Ptolomeu, o tomo em
questão salienta que as previsões ali contidas teriam sido propostas
pelo filósofo Pitágoras e beneficiaram até mesmo Alexandre o Grande
em muitas de suas conquistas militares. Apesar da alegação favorável

4 Ao mencionar os chamados “filósofos bárbaros”, Diógenes Laércio (Prólogo I, II)


inclui Astrampsico em uma lista de magos e sábios persas: além de Zoroastro, são
apresentados pensadores que teriam vivido até o período anterior à conquista de
Alexandre, o Grande.

121
Filipe Noé da Silva

a uma datação mais longínqua, a crítica contemporânea tem


reconhecido que as Sortes Astrampsychi teriam sido compostas em um
período posterior, de modo que sua datação foi atribuída ao século II
da Era Comum (STEWART, 1995, STEWART; MORRELL, 1998;
EIDINOW, 2011; VLASSOPOULOS, 2021).
O oráculo de Astrampsico é apresentado como um sistema de
prognósticos a partir dos números e sua utilização, conforme as
instruções descritas no seu prólogo, ocorreria da seguinte forma: o/a
consultante deveria selecionar uma dentre as 91 questões (numeradas
de maneira crescente de 12 a 103) oferecidas de antemão pelo livro
oracular. Esta pessoa também deveria indicar (inspirada por uma
divindade!) um número de 1 a 10. O valor numérico da questão
escolhida seria, então, somado à quantia indicada pelo/a consultante, e
o resultado dessa soma deveria ser conferido em uma tabela numérica
do oráculo: esta última indicaria em qual dezena se encontrava a
resposta à adivinhação pretendida. Na dezena, a resposta do oráculo
seria aquela correspondente ao número “inspirado”, indicado pela
pessoa interessada na adivinhação.
Em geral, o funcionamento das Sortes de Astrampsico se
assemelha ao de outros oráculos antigos de base numérica, nos quais
as respostas já estavam fixadas de maneira prévia. Seu acesso aos
prognósticos, no entanto, prescindia da utilização dos dados
(ἀστράγαλος, ou alea, em latim): objetos confeccionados com ossos,
madeira, conchas, metal ou marfim, e que eram utilizados em
consultas oraculares com o intuito de assegurar randomização e

122
Escravidão e adivinhação no Império Romano

imparcialidade (PURCELL,1995) à mensagem transmitida pela


divindade (GRAF, 2005). Sua utilização requeria, ao que tudo indica,
a intermediação de um sacerdote, mago ou adivinho responsável por
operacionalizar, diante da pessoa consultante, a complexa e misteriosa
combinação numérica deste oráculo (BROWNE, 1970).
Como observado por Stewart e Morrell (1998), as questões
disponibilizadas pelo oráculo incluíam temas diversos, tais como:
busca por riqueza, amores, saúde, trabalho. As perguntas também se
mostram compatíveis com os interesses de indivíduos pertencentes a
distintos grupos sociais: homens e mulheres, livres e escravizados,
ricos e pobres. Em estudo recente, Kostas Vlassopoulos (2021, p.
154-155) identificou três adivinhações a serem utilizadas por pessoas
que se encontravam em servidão. A primeira delas, a questão 46 das
Sortes Astrampyschi, indaga sobre uma possível reconciliação entre a
pessoa escravizada e seus proprietários:
εἰ καταλλάσσοµαι τοῖς κυρίοις ;
Irei me reconciliar com os donos?
(Sortes Astrampsychi, 46. Tradução nossa).

O oráculo oferecia uma dezena de respostas a esta indagação.


O/A consultante, neste caso, saberia que sua proposta oscilava entre a
reconciliação imediata (ou posterior) com seus superiores, ou até
mesmo sua negativa (VLASSOPOULOS, 2021, p. 155). Diante dessa
indagação, é interessante questionar: por qual(is) motivo(s) uma
pessoa escravizada estaria interessada em reaver o convívio
harmonioso com seu proprietário?

123
Filipe Noé da Silva

Ainda que caracterizada por episódios de violência resultantes


de um poder exercido de maneira unilateral (PATTERSON, 1982), a
relação entre escravizados e proprietários se caracterizava por
negociações, imposições e resistências, sempre de acordo com os
interesses dos indivíduos envolvidos. Para além do uso indiscriminado
da força, a manutenção da escravidão também era realizada por meio
da concessão de benefícios, imediatos ou iminentes, às mulheres e aos
homens escravizados. A curto prazo, um proprietário poderia permitir
o arranjo de casamentos extraoficiais (contubernia) àquelas e àqueles
que, segundo seu juízo, se mantivessem produtivos e fiéis ao trabalho
e à disciplina da escravidão. Do mesmo modo, as alforrias eram
oferecidas aos indivíduos escravizados como forma de recompensar
(HOPKINS, 1978) sua suposta fidelidade e comprometimento.
Alguns exemplos preservados pela documentação epigráfica
latina, composta por inscrições transmitidas de maneira direta da
Antiguidade, tornam patente a complexidade subjacente ao convívio
entre proprietários e escravizados. A seguir, a título de exemplo,
apresentamos uma inscrição referente à união conjugal entre um
homem livre e uma mulher alforriada:
D(is) M(anibus) / C(aio) Prastinae Nereo / coniugi et
patrono / optimo fecit / Prastinia Quinta / cum quo
vixit / annis XVIII (CIL 14, 01506).

Local: Ostia.
Aos deuses manes. A Caio Prastina Nereu, o melhor
cônjuge e patrono. Prastinia Quinta, com quem viveu
por dezoito anos, fez [este sepulcro]. (Tradução nossa).

A inscrição funerária de Caio Prastina Nereu apresenta o caso


de um proprietário escravista que alforriou uma mulher e a ela se

124
Escravidão e adivinhação no Império Romano

juntou em uma união conjugal que perdurou por dezoito anos.


Conforme indicado pelo registro funerário, o indivíduo homenageado
nesta lápide, a um só tempo, ocupava a posição de patrono e cônjuge.
Embora utilize uma fórmula epigráfica recorrente, é interessante notar
a presença do adjetivo optimo (neste caso, significando para o
melhor), demonstrando sua reverência e sentimento à memória do
antigo companheiro. A harmonia pretendida pelo registro epigráfico,
contudo, negligencia a permanência de relações desiguais e
paternalistas (GENOVESE, 1974) entre os personagens envolvidos:
não sabemos por quanto tempo Prastinia Quinta esteve em situação de
submissão e dependência em relação ao seu proprietário, e tampouco
de que forma essa dominação era exercida.
Ademais, não se pode perder de vista que escravizados e
libertos também poderiam se indispor aos arranjos propostos por
patronos. De acordo com Tácito (Ann. 13.27), o Senado, à época de
Nero, discutiu a possibilidade de reescravizar os chamados libertos
ingratos (liberti ingrati), indivíduos egressos da servidão que resistiam
ao cumprimento das tarefas impostas por seus respectivos patronos.
Além das práticas de resistência, a eventual ascensão social e
econômica por meio do trabalho (FUNARI; SILVA, 2021), do
comércio (REMESAL, 2004) e das benfeitorias cívicas (SILVA,
2021), revela situações de protagonismo mesmo diante da exploração
e dominação a que estavam submetidos.
Considerados propriedade de outrem, os escravizados viviam
sob a iminente possibilidade de serem vendidos. Essa condição, como

125
Filipe Noé da Silva

destacou Vlassopoulos (2021, p. 156), poderia suscitar sentimentos


diversos (de medo ou esperança) entre os escravos que, em última
instância, viviam diante de um amplo repertório de incertezas e
desconhecimentos sobre seu próprio futuro. As Sortes de Astrampsico
apresentam uma questão sobre este tema aos consultantes desejosos de
uma resposta oracular:
εἰ πωλοῦµαι;
Serei vendido?
(Sortes Astrampsychi,74. Tradução nossa).

Além das já conhecidas respostas sobre a realização (ou não)


imediata ou posterior da previsão, o oráculo também predizia que o
indivíduo negociado poderia se deparar com prejuízos,
arrependimentos (VLASSOPOULOS, 2021, p.156), mas também ser
vendido e até libertado após sua venda (πωλῇ καὶ ἐλευθεροῦσαι.
Sortes Astrampsychi, 85.09). O tema da liberdade, aliás, ocupa papel
de destaque dentre as questões apresentadas pelas Sortes de
Astrampsico: ao dirigir esta pergunta ao oráculo, o consultante
esperava por uma uma predição positiva ou negativa sobre sua
eventual manumissão:
εἰ ελευθεροῦµαι τῆς δουλείας;
Serei libertado da servidão?
(Sortes Astrampsychi, 32. Tradução nossa).

Dentre as respostas relacionadas a essa pergunta, figuram,


como em outras predições oferecidas pelo oráculo, opções positivas
(em que a libertação ocorreria de maneira imediata ou no futuro) e
presságios negativos, sugerindo que o consultante não alcançaria sua

126
Escravidão e adivinhação no Império Romano

liberdade (VLASSOPOULOS, 2021, p.161). Em uma de suas réplicas


(Sortes Astrampsychi, 53.05), o oráculo prevê a alforria do indivíduo
mediante apelo e posterior realização de um pagamento em dinheiro:
fazendo referência explícita, portanto, à possibilidade de um
escravizado acumular peculium durante sua permanência sob o jugo
da servidão.
A presença desta questão em um documento oracular é
reveladora quanto às expectativas e esperanças de liberdade
(VLASSOPOULOS, 2021, p. 159) dos escravizados. Ainda que a
escravidão praticada no Império Romano seja reconhecida pela alta
incidência de manumissões, quando comparada a outros contextos
históricos escravistas (HOPKINS, 1978, p. 115; MOURITSEN, 2011,
p. 8), não se pode presumir que a efetivação da alforria estivesse ao
alcance de todo e qualquer indivíduo reduzido à condição servil, como
se a escravização constituísse um prejuízo temporário a ser superado
por uma manumissão iminente e inevitável. As prerrogativas
associadas à libertação de escravos tampouco foram imutáveis entre os
romanos: na época de Augusto, por exemplo, foram promulgadas leis
que diminuíram a quantidade de alforrias a serem concedidas dentro
de uma mesma casa (lex Fufia Canina), e que restringiam a eventual
transmissão da cidadania (lex Aelia Sentia) às pessoas egressas da
escravidão (BUCKLAND, 1908, p. 547; Joly, 2010, p. 70;
MOURITSEN, 2011, p. 84).

127
Filipe Noé da Silva

Submetidos à robustez da instituição escravista e à


arbitrariedade dos interesses e arranjos oferecidos por seus
proprietários, os escravizados romanos, contudo, nunca deixaram de
buscar alternativas que os permitissem superar as máculas
(MOURITSEN, 2011) advindas da servidão. O recurso ao oráculo, à
prática popular de adivinhação (JENNINGS, 2011), constitui uma
tentativa de se apoderar, tornar-se consciente, ainda que de maneira
parcial, de um destino marcado pelas múltiplas incertezas instauradas
pela escravização.

Considerações finais

No século XIX, sob o influxo do pensamento antropológico


evolucionista de James Frazer (1854-1941) e de tantos outros, as
práticas mágicas (e mesmo as religiosidades) foram colocadas em um
patamar intelectual inferior ao conhecimento advindo das ciências
(Gosden, 2020). A diferenciação entre religião, magia e ciência, como
demonstrado por Fritz Graf (1997) e Semíramis Corsi Silva (2014),
tiveram grande influência sobre os estudos que se dedicaram à
compreensão das múltiplas manifestações de práticas mágicas na
Antiguidade.
A Antropologia desenvolvida na segunda metade do século
XX, por sua vez, produziu os subsídios que permitiram à História da
Antiguidade e às demais Ciências Humanas uma compreensão sobre

128
Escravidão e adivinhação no Império Romano

as práticas mágicas antigas sem depender do crivo hierárquico de


outrora. Claude Lévi-Strauss (1962 [1989]) considerava que o
pensamento mágico e ciência ficavam lado a lado no que concerne às
operações mentais e à racionalidade:

O pensamento mágico não é uma estreia, um


começo, um esboço, a parte de um todo realizado; ele
forma um sistema bem articulado; independente, nesse
ponto, desse outro sistema que constitui a ciência (...)
(LÉVI-STRAUSS, 1962 [1989], p. 28).

Admitida como uma tentativa de humanização do universo a


magia, a tentativa de alinhar os desejos humanos com as forças
visíveis e invisíveis do universo, tem acompanhado a humanidade
desde o seu passado mais longínquo (GOSDEN, 2020): a Cultura
Material, objeto de estudo da Arqueologia, torna patente essa
consideração e oferece inúmeros exemplos. Gregos e romanos
acreditavam na eficácia de suas práticas mágicas: seus amuletos,
objetos apotropaicos e defixiones atestam seu apego e também seu
temor em relação à eficácia das forças espirituais: daí a recorrente
proibição de certas práticas mágicas sob força de lei. Por fim, pode-se
constatar que tampouco o futuro lhes parecia inacessível sem o auxílio
da magia, do recurso ao sobrenatural: a leitura correta dos agouros, a
ornitomancia, a oniromancia e os oráculos mereceram a atenção de
filósofos, sábios, médicos e gente de toda a sorte. Inclusive dos
escravizados: pessoas que facultavam ao futuro a esperança de uma
vida melhor e em liberdade.

129
Filipe Noé da Silva

Agradecimentos

Agradeço o apoio de Jessica Regina Brustolim, Claudio


Umpierre Carlan, Pedro Paulo Abreu Funari, Flávia Marquetti e
Semíramis Corsi Silva. Menciono também o apoio institucional do
IFCH/Unicamp e do CEIPAC (Universitat de Barcelona). A
responsabilidade pelas ideias restringe-se ao autor.

Referências

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132
Magia como Fenômeno transcultural: Lição I –
como fazer um anel mágico (Libro de
Astromagia, séc. XIII)
Aline Dias da Silveira1
“Dizemos e mostramos sobre as obras
que fazem os espíritos de Mercúrio
por força de palavras e de orações.
E agora queremos aqui mostrar outra obra de Mercúrio,
que se faz com anéis e chamam anel de Mercúrio”2
(Alfonso X, Astromagia, p. 286).

Introdução
“Observa quando o Sol estiver em Leão e Mercúrio em
Virgem, e que não esteja em combustão3”.4 Este é o momento exato e
auspicioso para a preparação da pedra para o anel mágico de
Mercúrio. Sobre a gema deve ser desenhado um belo jovem com
chapéu, sentado em uma cadeira, e na mão direita uma pena para
escrever e na esquerda uma carta, o redor da figura deve-se escrever
estas letras:

1 Fez graduação e o mestrado em História na Universidade Federal do Rio Grande


do Sul (UFRGs) e doutorado e pós-doutorado na Universidade Humboldt de Berlim/
Alemanha. Atualmente, é professora do departamento de História da Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC), responsável pela área de História Medieval,
coordenadora do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Medievais – Meridianum.
2 Tradução da autora do trecho: “Dicho e mostrado avemos de las obras que fazen
los espíritos de Mercurio por fuerça de las palabras e de oraciones. E agora
queremos aquí mostrar de otra obra de Mercurio, que se faze com anillos, e dízenle
anil[l]o de Mercurio” (Alfonso X, Astromagia, p. 286).
3 Combusto ou em combustão, na astrologia, refere-se ao estado de fraqueza das
características de um planeta por sua proximidade excessiva ao Sol (de 0° a 17°,
dependendo do planeta). Segundo esse pensamento, o Sol queimaria as
características positivas ou virtudes daquele planeta.
4 Tradução livre da autora do trecho: “Para mientres quando el Sol fuere em León e
Mercurio en Virgo, que non sea combusto” (Alfonso X, Astromagia, p. 286).

133
Aline Dias da Silveira

Figura 1: Letras do Anel de Mercúrio


Fonte: Alfonso X, Astromagia, p. 286.

Assim, inicia o Libro de Mercurio em seu capítulo 3, os


“Anéis de Mercúrio”, que compõe o manuscrito Reg. lat. 1283, fólios
1-36, encontrado por Aby Warburg em 1911 na Biblioteca Apostólica
Vaticana. Warburg pretendia editar o trabalho em colaboração com seu
amigo Franz Boll, o filólogo e historiador da astrologia, mas o projeto
nunca foi concluído. Anos depois, o manuscrito foi também
encontrado por Alfonso Garcia Solalinde.5 Na sequência, um de seus
orientandos de doutorado em Harvard, George Darby, escreveu uma
tese sobre esse texto (GARCÍA AVILÉS, 1996, p. 15). O manuscrito
pertence à fase final de atividade do scriptorium6 régio de Afonso X,
entre 1276 e 1284. Este foi, aliás, o período em que o rei castelhano
focou mais intensamente sua atenção nos assuntos que muito lhe
interessavam, resultando na produção de três coleções enciclopédicas
de obras sobre astrologia e magia astral. O primeiro, geralmente

5 García Solalinde escreveu o seguinte artigo sobre o manuscrito: Garcia Solalinde,


Alfonso. Alfonso X, astrólogo. Noticia del manuscrito vaticano, Reg. lat. núm. 1283.
Revista de filologia española, xiii, p. 350-356, 1926.
6 Scriptorium é termo utilizado no medievo e depois adotado por medievalistas para
se referirem tanto ao espaço, onde um conjunto de obras manuscritas eram
produzidas, como às próprias obras e às equipes que as produziam. O scriptorium
afonsino engloba, assim, todas as obras manuscritas produzidas em sua corte.

134
Magia como Fenômeno transcultural

conhecido como Libros del saber de Astrologia, compreende quinze


tratados sobre a construção e uso de instrumentos astronômicos e
sobre as estrelas. As outras duas compilações são o Libro de las
formas et de las ymagenes e o compêndio de magia astral encontrado
por Warburg e Garcia Solalinde. No entanto, ao longo de sua vida,
Afonso X patrocinou a tradução e a organização de muitas outras
obras de astrologia e magia.7
O manuscrito Reg. lat. 1283, fólios 1-36, do qual
analisaremos um trecho a seguir, ficou conhecido com o nome de
Libro de Astromagia, por abarcar compilações de obras sobre essa
temática produzidas anteriormente na corte afonsina8. Alfonso
d’Agostino editou e publicou o manuscrito em 1992, transcrevendo-o
e traduzindo-o para o italiano, será essa a edição que usaremos aqui. A
obra, como um todo, possui seis partes, cada uma chamada de Libro,
assim temos: I. Libro de los paranatellontas; II. Libro de los decanos;
III. Libro de la Luna; IV. Libro de las imágenes de los doce signos; V.
Libro de Marte; VI. Libro de Mercurio. Todos estes constituem o
Libro de Astromagia.
A especificidade deste manuscrito em relação aos de outras
obras é que este apresenta a prática da magia com pouca explicação

7 Como as Tablas Alfonsíes, o Picatrix, o Lapidario, o Libro de las Cruzes, Los


Canones de al-Battani, Quatripartitum, De judiciis astrologie, El libro del
quadrante sennero e Liber Razielis.
8 Uma das obras compiladas neste livro foi o Picatrix, outra obra de astromagia que
foi traduzida na corte de Afonso X no início de seu reinado. No prólogo da tradução
latina do Picatrix, é indicado o ano de 1256 para o término do texto.

135
Aline Dias da Silveira

filosófica e astrológica, diferenciando-se das outras obras dessa


matéria produzidas no scriptorium afonsino. O Libro de Astromagia
parece uma súmula prática e muito bem ilustrada do fazer mágico.
Apresenta uma narrativa direta, diferente do diálogo filosófico entre
mestre e discípulo presente nos quatro livros do Picatrix9, por
exemplo. Por isso, parte-se da hipótese de que o Libro de Astromagia
não foi elaborado para explicar e estudar a prática mágica, mas para
resumi-la, com foco nos aspectos que mais importavam para o rei.
Afonso X, de Castela e Leão, ficou conhecido como o rei
sábio, governou a maior parte do território ibérico entre 1252 e 1284,
ano de sua morte. As referências e trabalhos que mais encontramos
sobre ele, além de suas muitas biografias,10 tratam de suas obras
legislativas como o Fuero Real, o Especulo e as Siete Partidas, que
contribuíram para o entendimento da lei na Península Ibérica e na
América Espanhola (SILVA, 2013, p. 37) séculos depois de sua morte.
Também encontramos trabalhos sobre as obras historiográficas de seu
scriptorium, a General Estoria e a Estoria de España, bem como
sobre a grande obra poética de seu tempo, as mais de 400 Cantigas de

9 Picatrix é o nome latino da tradução do manuscrito árabe de astromagia Gāyat al-


hakīm, traduzido na corte de Afonso X no início de seu reinado.
10 Algumas dessas biografias são: Salvador Martinez, H. Alfonso X, el Sabio, una
biografía. Madrid: Ediciones Polifemo, 2003; Perez Algar, F. Alfonso X, El Sabio,
Biografía, Madrid: Studium Generalis, 1994; González Jiménez, M. Alfonso X, El
Sábio: 1252-1284, Palência: Disputación Provincial, La Olmeda, 1993; O
´Callaghan, J. F. The Learned King, The Reign of Alfonso X of Castile, Philadelphia:
University of Pennsylvania,1993; Ballesteros Beretta, A. Alfonso X, El Sabio, 2ª ed.,
Barcelona: El Albir, 1984.

136
Magia como Fenômeno transcultural

Santa Maria.11 No entanto, pouco se fala do rei Afonso, o estrellero,


ou seja, o astrólogo, como seus adversários eclesiásticos e nobres o
chamavam (SÁNCHEZ GONZÁLVEZ, 2011, p. 231)
A produção do scriptorium afonsino é vasta e não se propõe
neste ensaio falar sobre cada uma delas, mas entende-se que não é
possível analisar uma destas obras sem considerar as outras, pois é
compreendido que as obras elaboradas e traduzidas na corte de Afonso
X compõem um único projeto de saber. Existiria um conceito cultural
afonsino, como diria Francisco Márquez Villanueva (Márques
Villanueva, 1995), mesmo que a interpretação desse autor siga em
outra direção que a desenvolvida neste ensaio.12
A considerar este projeto ou conceito afonsino de saber,
propõe-se como metodologia a hermenêutica imaginativa apresentada
e desenvolvida por Márcia Sá Cavalcante Schuback na sua obra Para
ler os Medievais (2000), fundamentada na fenomenologia, que busca
compreender a experiência de tempo que constituiu a visão ou
percepção de mundo expressa na fonte. Compreende-se que essa
cosmo compreensão, como chamaremos aqui a racionalidade mágica
manifesta no Libro de Astromagia, perpassa todo o scriptorium
afonsino, pois fundamenta-se na relação micro-macrocósmica de
simpatia, harmonia, emanação, potência e movimento.

11 Para saber mais sobre as obras do scriptorium afonsino recomendo a obra de


Evelyn S. Procter: Alfonso X de Castilla, Patrono de las letras y del saber. Trad.
Manuel Gonzáles Jimenez. Murcia: 2002. (Biblioteca de Estudios Regionales, Bd.
38); e as já citadas biografia de Afonso X.
12 Francisco Márquez Villanueva centra seu conceito na pessoa de Afonso X de uma
forma laudatória e pouco crítica.

137
Aline Dias da Silveira

Toda religião é imbuída do fazer mágico, seja nas reuniões


que reatualizam as narrativas religiosas, seja nas comemorações,
símbolos, livros e utensílios sagrados ou nos ritos iniciáticos. Aqui e
ali está a concepção de emanação do sagrado, do redirecionamento da
vontade divina, através da prece e do moldar da realidade como essa
se apresenta. No Libro de Astromagia, essa indistinção entre a prática
mágica e a religiosa é evidente em diversas passagens, por exemplo,
quando o Libro de Mercúrio inicia com a “oração”: “Em nome de
Deus, oh tu, planeta verdadeiro e razoável, tu és notário do Sol”
(AFONSO X, Astromagia, p. 270).13
Por essa perspectiva, os estudos sobre magia estão na
encruzilhada de caminhos que podem nos conduzir à compreensão
mais ampla da experiência humana de tempo, de sua historicidade, e
das diferentes temporalidades da prática mágica e da agência humana
diante do inefável. Este fenômeno transcende fronteiras regionais,
linguísticas e religiosas, entrelaçando culturas e tradições em novas
reelaborações. A considerar esse movimento de cruzamentos e fusões,
será empregada uma interpretação heurística, a partir dos conceitos de
entrelaçamentos transculturais, vórtice histórico e da perspectiva da
história conectada (SILVEIRA, 2019, p. 620-622). Dessa forma,
busca-se perceber como aspectos locais, como as ressignificações e
propósitos, inserem-se em aspectos globais, no movimento dos saberes
pelos continentes asiático, africano e europeu.

13Tradução livre da autora a partir do trecho: “Em nombre de Dios, o tú, planeta
verdadeiro e razonable, tú eres notário del Sol”.

138
Magia como Fenômeno transcultural

Magia como fenômeno transcultural

Afonso pode ter sido chamado de rei estrellero por seus


adversários, mas não há dúvida que foi um rei cristão. Cristão,
astrólogo e mago-filósofo (GONZÁLVEZ SÁNCHEZ, 2015, p. 231).
O primeiro livro traduzido na corte afonsina foi o Picatrix14, por isso,
considera-se aqui, que essa obra é o ponto de partida para entendermos
as outras obras astromágicas do scripotrium afonsino. O governo de
Afonso começa em 1252 e a tradução do Gāyat al-hakīm, nome árabe
dessa obra, para o castelhano e o latim, é terminada em 1256. No
prólogo da versão latina, Afonso15 explica o motivo desta tradução:
Pelo louvor e pela glória do altíssimo e todo-poderoso
Deus, o qual revela aos seus predestinados a ciência
secreta, e esclarece aos doutores latinos que
desconheciam esse livro, que os antigos filósofos
editaram, Alfonso, pela graça de Deus ilustríssimo rei da
Espanha e de toda Andaluzia, ordenou a tradução deste
livro com grande estudo e máximo cuidado do árabe ao
espanhol, cujo nome é Picatrix (Picatrix, 1986, prólogo,
p. 1).16

Desse trecho do prólogo da versão latina do Picatrix, podemos


entender que Afonso atribuía ao deus cristão a revelação da ciência

14 O Lapidario, obra sobre a qual também trataremos aqui, foi traduzida quando
Afonso era infante.
15 Afonso dizia escrever o prólogo das obras de seu scriptorium e revisar se estava
escrita no castelhano correto, ver: Afonso X, General Estoria, Primeira Parte, ed.
Solalinde, 1930, 477b.
16 Tradução da autora a partir do trecho: “Ad laudem et gloriam altissimi et
omnipotentis Dei cuius est revelare suis predestinatis secreta scienciarum, et ad
illustracionem eciam doctorum Latinorum qui bus est inopia librorum ab antiquis
philosophis editorum, Alfonsus, Dei gracia illustrissimus rex Hispanie tociusque
Andalucie, precepit hunc librum summo studio summaque diligencia de Arabico in
Hispanicum transferri cuius nomen est Picatrix.”.

139
Aline Dias da Silveira

secreta (secreta scienciarum), aos seus predestinados, ou seja, os


filósofos antigos. Os doutores latinos desconheciam o livro, mas
Afonso, colocando-se como um desses escolhidos (SILVEIRA;
ANDRADE, 2018, p. 284-289), manda traduzir o texto, revelando a
verdadeira fé como ele expressa no Setenario:
E não tão somente pela lei velha, nem pelos ditos dos
sábios e dos profetas, mas também segundo natureza
dos céus e das outras coisas espirituais, queremos provar
que a nossa fé é lei direita e crença verdadeira e não
outra que não o fosse assim desde o começo do mundo,
nem será outra até que haja o fim (ALFONSO X,
Setenario, Ley XXXIV, p. 65).17

São os filósofos antigos que revelam os saberes mágicos do


Picatrix à humanidade. Pode-se perceber, nesse trecho acima, um
indício interessante de como a magia e seu estudioso-praticante
estavam inseridos no entendimento do que seria a filosofia. O Picatrix
é uma obra composta de 4 livros, sendo que os dois primeiros são
explicações filosóficas e astrológicas de como funciona o cosmos,
inclusive explicando o que seria a magia, chamada de a quinta
essência da filosofia. É importante salientar que o fundamento
filosófico dessa e de outras obras dessa matéria no scriptorium
afonsino é principalmente neoplatônico, baseado na emanação dos
corpos celestes sobre os corpos terrestres.

17 Tradução livre da autora a partir do trecho: “Et non tan ssolamientre por la ley
vieia nin por los dichos de los ssabios e de las prophetas, mas aun ssegunt natura de
los çielos e de las otras cosas spirituales, queremos prouar que la nuestra ssanta Ffe
es ley derecha e crençia verdadera, e non otra ninguna que ffuesse desde el
comienço del mundo nin sserá ffecha ffasta la ffin”.

140
Magia como Fenômeno transcultural

Saiba: A arte que será explicada não serviria de nada se


não fosse entendida a filosofia. E, por isso, essa arte foi
chamada de conclusio, pois é a conclusão da lógica de
outras obras, ou seja, a quintessência. (Picatrix, 1962,
Tratado I, cap. II, p. 6, § l e §6-10.).18

(...) Saiba: essa conclusio ou síntese é definida como


magia, que significa todas as palavras e práticas que a
mente encanta e conduz a alma no sentido que ela se
admira daquilo que lhe é mostrado, achando belo. (...)
Isso acontece porque ela é uma força divina, difícil de
entender, porque se precisa entender, anteriormente, as
causas atuantes e as condições para sua constituição.
Existe, no entanto, uma prática mágica que seu objeto é
de espírito para espírito. Na arte do talismã, a magia
atua do espírito sobre o corpo (talismã), e na alquimia é
de corpo sobre corpo (Picatrix, Tratado I, cap. II, p. 7, §
6-27).19

Como podemos entender no trecho acima, a magia é a


conclusão da filosofia, sua prática, conduzindo a alma. Existiriam, de
acordo com o Picatrix, três tipos de prática: a do espírito para o
espírito, a do espírito para o corpo (no sentido de objeto, ou seja, a arte
dos talismãs) e do corpo para o corpo, que seria a alquimia. O Picatrix
trata principalmente da arte dos talismãs ou das imagens como dito
nas obras astromágicas da corte afonsina.

18 Tradução livre da autora a partir do trecho da tradução alemã: “Wisse: Die Kunst
(natīğa) nun, die wir hier auseinandersetzen wollen, wäre nicht, wenn die
Philosophie nicht wäre. Mit Recht haben sie daher die Philosophen conclusio
(natīğa) genannt; denn die conclusio ist bei den Logikem das Ergebnis eines
Schlußverfahrens, und das ist die Quintessenz des in den Pramissen Enthaltenen.”
19 Tradução livre da autora a partir do trecho da tradução alemã: “Es kommt namlich
daher, daß er eine gotthche Kraft ist, wirkend aus vorausgehenden Ursachen, die die
Voraussetzung für sein Begreifen bilden. Er ist eine schwer zu verstehende
Wissenschaft. Es gibt aber auch einen praktischen Zauber; denn sein Gegenstand ist
die Wirkung von Geist auf Geist. (…), wahrend der Gegenstand der Talismankunst
die Wirkung von Geist auf Korper, und der der Alchemic die von Korper auf Korper
ist”.

141
Aline Dias da Silveira

O Libro de Astromagia também é um livro de imagens,


entendidas como talismãs, e esta é a função do anel de Mercúrio. A
imagem, enquanto talismã, não é uma ilustração ou uma representação
do poder. Uma imago é a manifestação e presença do poder. A imagem
deve ser construída em condições específicas, de correspondência e
harmonia com os espíritos que habitam a esfera celeste de cada
planeta para se tornar uma imago desses espíritos. Como explica o
título do capítulo 6, do livro II, do Picatrix:

Sobre as virtudes das imagens, e de que maneira elas


podem ser possuídas, e como as imagens podem receber
a força dos planetas, e como as obras são realizadas
pelas imagens; e esta é a raiz das ciências da
necromancia20 e das imagens” (Picatrix, L. II, cap. VI,
p. 51). 21

Nas obras astromágicas afonsinas, fica evidente a distinção


entre figura e imagem. Figura é, geralmente, uma referência ao
desenho como no caso da figura feita na gema para o anel de
Mercúrio, enquanto imagem é o termo usado para o talismã em si,
como um todo completo, bem como as imagens celeste, as
constelações. Essa relação simpática entre a imagem construída e as
imagens das efemérides astronômicas nos remete a uma temporalidade
anterior ao neoplatonismo manifesto nas fontes, à temporalidade dos

20Necromancia é entendida nos textos como a magia por invocação de espíritos.


21Tradução livre da autora a partir do trecho: De virtutibus ymaginum, et cuius
maneriei possunt haberi, et quomodo ymagines possunt recipere vim planetarum, et
quomodo opera fiunt per ymagines; et hec est radix scienciarum nigromancie et
ymaginum.”

142
Magia como Fenômeno transcultural

textos ominosos mesopotâmicos, há 5000 anos no passado22


(SETERS, 2008, p. 94-96; SILVEIRA, 2019b, p. 186-187). Por isso,
seria um grande erro de interpretação, se entendêssemos esses
conceitos e cosmoconcepções como algo particular do rei astrólogo e
seu scriptorium. As obras astromágicas afonsinas são traduções ou
compilações de obras árabes e judaicas, como o Libro Razielis, que,
por sua vez, fazem referências a obras mais antigas, egípcias,
babilônicas, persas e indianas.
David Pingree, no artigo intitulado Some of the Sources of the
Ghāyat al-hakīm (1980), propõe apresentar as fontes do Ghāyat al-
hakīm (Picatrix) para além das greco-romanas do neoplatonismo
clássico. Ele encontra referências ou elementos dos Papiros Gregos de
Magia (PGM); do Kitāb al-talāsim al akbar (Livro da Sabedoria), que
consiste em um livro de magia talismânica atribuído a um pseudo-
Apolônio de Tyana; do livro sânscrito Yavanajātaka, sobre
correspondências planetárias; entre mais outras dezenas de referências.
Se todos os lugares de produção dessas obras fossem colocados em
um mapa, mostrariam uma rede de rotas do movimento do saber tardo-
antigo e medieval, evidenciando muito mais continuidades, adaptações
e atualizações que rupturas.
O fenômeno histórico da prática mágica é transcultural
(SILVEIRA, 2019, p. 607-608) e, dentro desta transculturalidade,

22 Textos ominosos são escritos elaborados na Mesopotâmia, 20 séculos antes da Era


Comum, que estabeleciam a relação do movimento das estrelas com acontecimentos
terrenos, desde a melhor época para o plantio até a melhor conjunção planetária para
invadir uma cidade (SETERS, 2008, p. 94-96; SILVEIRA, 2019b, p. 186-187).

143
Aline Dias da Silveira

também há transtemporalidade e transespacialidade. O prefixo “trans”


nesses conceitos traz a ideia de movimento cultural e simultaneidade
manifesta na fonte. Se observarmos e seguirmos os elementos e
referências ali expressos, perceberemos a formação de uma rede de
conexões espaço-temporais reatualizadas e até mesmo transfiguradas,
mas que ainda revelam o entrelaçamento transcultural (BORGOTE;
TISCHLER, 2012) do tecido histórico. Por isso, chamo a fonte de
vórtice histórico, pois é o local onde esses fios entrelaçados tomam
forma e sentido ao olhar da historiadora (SILVEIRA, 2019, p. 610).

Sobre os anéis de Mercúrio

Hariadne da Penha Soares (2017), em seu artigo A atuação dos


magos e adivinhos como theioi andres no Egito tardo-antigo: práticas
e rituais de adivinhação nos Papiros Mágicos Gregos (séc. III e IV),
caracteriza os livros de magia da antiguidade greco-romana,
principalmente no início da era cristã, com muitos elementos que
poderíamos também caracterizar as obras medievais Picatrix e o Libro
de Astromagia do século XIII. A autora explica que, quando os
sacerdotes perdem seu espaço de poder nos templos egípcios, muitos
passam a oferecer serviços religiosos e mágicos de vaticínio e cura de
forma privada. Com o passar do tempo, esses exercícios de práticas
mágicas passam a ser escritos em forma de manuais de magia. Nessas
obras, pode-se encontrar receitas, fórmulas e instruções para a

144
Magia como Fenômeno transcultural

realização de rituais. Os magos-sacerdotes conheciam tanto hinos


sagrados como palavras secretas mágicas, diferentes tipos de plantas,
pedras e práticas medicinais (GARCÍA MOLINOS, 2015, p. 32, apud
SOARES, 2017, p. 150). Todas essas matérias encontramos nos livros
de astromagia afonsinos, o que os coloca, no mínimo, como obras dos
desdobramentos e reatualizações desses saberes que passaram ao
mundo romano, judeu, muçulmano e, por último, como enfatiza
Afonso X, aos cristãos latinos.
No mesmo artigo, Soares faz referência à confecção de um
anel de Hermes, descrita nos Papiros Gregos de Magia23 (que serão
referidos também com a abreviação PGM), provavelmente, dos
primeiros séculos da era cristã. Podemos encontrar alguns elementos
que aproximam o anel de Hermes egípcio do anel de Mercúrio (o
nome latino de Hermes) do Libro Astromagia:
Numa valiosa esmeralda está gravado um escaravelho;
perfure-o e passe um fio de ouro pelo orifício; na parte
inferior do escaravelho, grave uma Ísis sagrada e, depois
de consagrá-la, como prescrito acima, use-a (PGM, V,
239-243, p. 193).24

23 Os Papiros Gregos de Magia (PGM) são uma coleção de textos gravados em


papiros, mas também em conchas e tábuas que descrevem rituais, preces, simpatias e
encantamentos do século I ao século IV da Era Comum. A maioria é escrita em
grego, mas há também em copta e demótico (escrita egípcia mais simples e recente).
No início do século XIX, ricos colecionadores europeus, como Giovanni Anastasi,
consul da Suécia no Egito, o francês Mumaut e o inglês Salt, encontraram os PGM
na região de Tebas e El Fayum.
24 Tradução livre da autora a partir do trecho: “En una esmeralda valiosa graba un
escarabajo; perfórala y pasa un hilo de oro por el 240 agujero; en el envés del
escarabajo, graba una sagrada Isis y, después de consagrarla, como arriba está
prescrito” (PGM, V, 239-243, p. 193).

145
Aline Dias da Silveira

Aqui encontramos o elemento da gema mágica ou consagrada


a um deus. A mesma esmeralda valiosa prescrita no Libro de
Astromagia para a confecção do talismã. A tradição da gema mágica,
que pode atrair e até mesmo conter espíritos ou demons, para o
propósito do mago foi atestada no estudo de Hariadne Soares (2020)
em outro artigo, As Propriedades Apotropaicas das Gemas Mágicas
no Egito Tardio, segundo os “Papiros Gregos Mágicos”, onde ela
compara as pedras referidas nos PGM com os talismãs em pedra e em
outros materiais daquele período, encontrados hoje em museus.
Não é por acaso que Afonso cultivou o interesse por pedras e
suas relações astrológicas, mandando traduzir uma obra árabe, que
tratava sobre essa matéria, quando ainda era infante, o Lapidario
(1250), e organizar uma súmula desse conhecimento na fase final de
seu reinado, o Libro de las formas e imágenes que son en los cielos
(1277). Um fato que chama a atenção, por indicar o entrelaçamento
transcultural no momento da tradução dos livros, é que no prólogo do
Lapidario está escrito que o texto árabe foi traduzido para o
castelhano pelo judeu Hyuda Fy de Mosse al-Cohen Mosca. Aqui, a
longa e a curta duração também se entrelaçam, tecendo o tecido
histórico transtemporal e relevando a convivência entre judeus,
cristãos e muçulmanos na corte afonsina.
Carlinda Mattos (2008), em sua tese A Classificação dos seres
no Lapidário de Alfonso X, o sábio, descreve que a obra possui a
indicação de 360 pedras, que correspondem aos 360 graus do Zodíaco.
As pedras são associadas também a plantas e a animais e são indicadas
no emprego de variados objetivos curativos, na proteção contra os

146
Magia como Fenômeno transcultural

feitiços e na pigmentação do cabelo (MATTOS, 2008, p. 8). No


Lapidario, encontramos as imagens celestes construídas pelas
constelações e a correspondência destas com as pedras, bem como a
especificação do lugar onde as pedras podem ser encontradas –
informações que expandem o espaço da fonte, tanto pelo mundo dos
três continentes conhecidos pelos autores e tradutores na época, como
também expande a abrangência da relação da prática mágica ao
cosmos. O Lapidario e o Libro de las formas e imágenes que son en
los cielos, bem como a esmeralda do anel de Mercúrio, no Libro de
Astromagia, podem ser considerados como resultados dos
entrelaçamentos transculturais que possibilitaram a constituição de
elementos reatualizados.
Seguindo a leitura do mesmo encantamento do anel de
Hermes, aparece uma prece que deveria ser dita em direção ao sol,
sendo que aquele que entoa o encantamento assume a persona da
deidade Hermes-Thot, conhecida nos textos herméticos25:

Eu sou Thot, descobridor e criador de bálsamos e da


escrita; venha a mim você, o subterrâneo. Acorde para
mim você, o grande demon, o Fnun, o ctônico. (...) Eu
sou Héron, o famoso, o ovo de íbis, o ovo do falcão, o
ovo da fênix que vem e vai pelo ar (PGM, V, 248-253,
p. 194).26

25 O Corpus Hermeticum (150-300 E.C.) são textos também encontrados


originalmente no norte do Egito, que podem ser definido como partes de um tratado
filófico e mágico neuplatônico na voz de Hermes Trimegisto (três vezes mestre).
Hermes Trimesgisto passou a ser representado como o pai da alquimia nos tratados
alquímicos renascentistas.
26 Tradução da autora a partir do trecho: “Yo soy Toit, descubridor y creador de los
fármacos y de la escritura; ven a mí tú, el subterráneo, despierta para mí tú, el gran
demon, el Fnun, el ctónico (...). Yo soy Herón, el famoso, el huevo de ibis, el huevo
del halcón, el huevo del fénix que va y viene por el aire”.

147
Aline Dias da Silveira

Nos cultos greco-egípcios, o deus escriba, Thot, e o deus


mensageiro, Hermes, acabam se fundindo numa deidade do
conhecimento, da ciência revelada, o guia das almas, o mediador entre
os mundos, o praticante de magia entre os deuses. O seu poderoso anel
de esmeralda27 proporciona todo o conhecimento da verdade no
passado, presente e futuro:
Não permita que nenhum deus ou deusa preveja, até que
eu, fulano de tal, saiba o que há nas almas de todos os
homens, egípcios, sírios, helenos, etíopes, de todas as
linhagens e raças, daqueles que me perguntam e venha à
minha presença e dos que falam e dos que se calam,
para que eu lhes revele o passado, o presente e seu
futuro, e conheça suas artes, suas vidas, seus costumes,
seus ofícios e seus nomes, e os de seus mortos e todos, e
pode ler uma carta selada e que lhes revele todas as
coisas da verdade (PGM, V, 287-301, p. 195). 28

Na oração a seguir, encontramos mais elementos confluentes


entre o anel de Hermes egípcio e o anel de Mercúrio castelhano, do
Libro de Astromagia:
Oh Yaminel, oh Rafael, oh Laçoç, com juro-vos pela
primeira causa e pelo começo simples unir-se ou
misturar-se com outra coisa, que não é visto, nem se
esconde; e conjuro-vos por Tamasah, Çalehtamsah,
Mahrahasmah, Acdaheyxemah, Anor, Haxmaos,
Hacmaleh, Dadaros, Lafalyeh, Camalos, Daod,

27 Talvez, se possa estabelecer relação com a pedra de esmeralda dos tratados


renascentistas de alquimia.
28 Tradução da autora a partir do trecho: “No permitiré que ningún dios ni ninguna
diosa vaticine, hasta que yo, fulano, conozca lo que hay en las almas de todos los
hombres, egipcios, sirios, helenos, etíopes, de todo linaje y raza, de los que me
preguntan y vienen a mi presencia y de los que hablan y de los que guardan silencio,
para que les revele el pasado y el presente y su futuro, y conozca sus artes, sus
vidas, sus costumbres sus trabajos y sus nombres, y los de sus muertos y los de
todos, y pueda leer una carta sellada y les revele todas las cosas desde la verdade”
(PGM, V 287-301, p. 195).

148
Magia como Fenômeno transcultural

Daadaob, aquele que tem os governos do céu e da terra;


Oh Yemynel, oh Rafael, apareça com teu belo rosto e
mostra-me a tua bela forma e pousa em mim e mostra-te
a mim, venha até a mim teu espírito e que me guie nas
coisas obscuras. Conjuro-te com Artamiz e por aquele o
fez, por Mercúrio e a sutileza, aquele que é pai de toda
ciência, dirás esta oração (...) (ALFONSO X,
Astromagia, p. 290).29

A expressão “pousa em mim” faz referência a uma forma


alada, que de acordo com a iluminuras da fonte tem a aparência de um
anjo e não de uma ave, como está referido na oração nos PGM a
Hermes-Thot. Por outro lado, temos as características de “guia nas
coisas obscuras”, a “sutileza” e “pai da ciência” características
atribuídas ao Hermes-Thot dos PGM. Outro indício de uma
reatualização das práticas mágicas greco-romano-egípcias pode ser
encontrado na ideia de “primeira causa” e “começo simples” do
hermetismo neoplatônico dos primeiros séculos da Era Comum,
características essas associadas ao deus do monoteísmo judaico,
cristão e dos muçulmanos em suas correntes místicas, influenciadas
pelo neoplatonismo medieval. A invocação do Arcanjo Rafael
aproxima ainda mais essa oração da mitologia judaico-cristã-
muçulmana e do contexto ibérico medieval, da convivência das três
culturas religiosas monoteístas. A oração acima evidencia, assim, a
presença da magia, que Alejandro Garcia Avilés (1999) chama de

29 Tradução livre da autora a partir do trecho: “o Yemynel, o Rafael, parezca la tu


cara fermosa e amuéstrame la tu forma bela e posa en mí e demuéstrateme, e venga
en mí espírito de ti que. m guíe en las cosas escuras. Conjúrote por Artamiz e por el
que. l fizo, e por Mercurio e la sotilleza, aquel que es padre de toda scientia. Dirás
esta oratión (...)” (ALFONSO X, Astromagia, p. 290).

149
Aline Dias da Silveira

salomônica. Isso também evidencia o que outros autores, como o


próprio editor da fonte Alfonso d’Agostino (Afonso X, Astromagia,
Introduzione, p. 24-45) e García Avilés (1997, 1999; 2010), afirmam
quando dizem que o Libro de Astromagia é uma compilação bem
organizada e prática de partes das traduções de obras astromágicas
feitas na corte afonsina, principalmente, do Picatrix e do Libro
Razielis30. Ambos são produções das tradições orientais e greco-
romanas amalgamadas na cultura árabe e judaica através da expansão
islâmica no medievo. O hermetismo estudado na corte de Afonso X
provinha principalmente da interpretação árabe dessas tradições que
reunia também elementos do culto aos astros mesopotâmico, evidente
nas várias referências aos caldeus.

As temporalidades da magia

Parte-se do entendimento que a magia, como um fenômeno


histórico em si, converge diversos aspectos socioculturais e que,
consequentemente, não pode ser explicada ou pensada historicamente
apenas como um artifício político ou um adendo cultural (SILVEIRA,
2019b, p. 176-177). A magia, enquanto fenômeno histórico, merece
protagonismo, pois evidencia cosmoconcepções complexas em seu

30O libro Razielis, ou o livro do Arcanjo Rafael, é um tratado de cabala prática ou


magia salomônica, traduzido na corte de Afonso X, de Castela. Segundo a tradição,
o Arcanjo Rafael teria ditado o livro para Salmão. Ver: GARCÍA AVILÉS,
Alejandro. Alfonso X y el Liber Razielis: imágenes de la magia astral judía en el
scriptorium alfonsí Alfonso X. Bulletin of Hispanic Studies, v. 74, 1, p. 21-40, 1997.

150
Magia como Fenômeno transcultural

desdobramento histórico e, em certos aspectos, mais autênticas31 que


os cânones discutidos por uma pequena elite sacerdotal e impostas
pelas instituições religiosas públicas. A considerar essas premissas,
trataremos agora das temporalidades experienciadas na prática mágica
descrita na confecção do anel de Mercúrio presente no Libro de
Astromagia. No entanto, faz-se necessário definir melhor o que é
entendido aqui como temporalidade.
Quando Heidegger escreve sua obra mais conhecida, Ser e
Tempo, em 1927, busca entender e definir o que é o Ser, começando
pelo Ser humano. Ele, como um filósofo da escola fenomenológica,
não está em busca da definição do ser biológico, mas do Ser que
desperta quando toma consciência si no mundo. Essa consciência de si
se dá a partir da consciência de sua existência limitada pela morte. Por
isso, a consciência de Ser não pode ocorrer fora da experiência
temporal que evidencia os limites. Essa experiência temporal, que não
pode ser medida com o tempo físico cronológico, é chamada de
temporalidade e é inerente ao processo de despertar da consciência do
Ser. Assim, quando pensamos e analisamos a experiência proposta e
descrita na prática mágica, podemos evidenciar, por uma perspectiva
fenomenológica, múltiplas temporalidades, como a temporalidade do
contexto histórico da fonte, a das referências temporais e espaciais
passadas expressas na obra, a temporalidade cósmica dos astros e a
temporalidade cotidiana da realização das práticas.

31A expressão “mais autênticas” refere-se, aqui, ao fato de que essas cosmovisões
fundamentavam a forma como as pessoas experimentavam o mundo ao seu redor.

151
Aline Dias da Silveira

Consequentemente, a fonte entendida como histórica deixa


revelar sua transtemporalidade.

Temporalidade cósmica

Mesmo que o título Libro de Astromagia seja uma nominação


tardia ao manuscrito Reg. lat. 1283, fólios 1-36, astromagia define
bem a prática descrita no texto, já que é toda dependente do
movimento nas esferas celestes, ou planetárias, como foi demonstrado
acima. A prática astromágica exige o conhecimento das formas de
medição do movimento dos astros, ou seja, da astronomia. Talvez, por
isso, Afonso manda traduzir, também do idioma árabe, o Libro del
Saber de Astronomía e manda elaborar a compilação e correção de
antigos tratados no Libro de las Tablas Alfonsíes. No entanto, não
apenas o conhecimento da posição e dos movimentos dos astros são
necessários para a prática mágica, pois também são exigidos o
conhecimento de como os astros interferem na esfera terrestre e as
correspondências entre os corpos sublunares (terrenos) e supralunares
(celestes). Dessa forma, Afonso manda traduzir o Picatrix e o
Lapidario. No Libro de Astromagia podemos encontrar o “conclusio”
ou a “quinta essência”, como a prática mágica é definida no Picatrix.
Em outras palavras, a prática mágica teria como objetivo final a
agência humana sobre uma realidade regida pelos astros. Aliás, a obra

152
Magia como Fenômeno transcultural

árabe, cujo Picatrix é a tradução, tem o nome de Gāyat al-hakīm, que


quer dizer o objetivo do sábio.
O tempo cósmico é apenas uma denominação para múltiplos
ciclos em ritmos ainda mais diversos. Cada efeméride propícia para
uma prática mágica específica precisa ter conjugado esses diversos
ciclos e ritmos, que é um espaço de tempo único, uma temporalidade
prenha de sentidos, significados e expectativas. Vejamos o tempo
cósmico para a confecção do anel de Mercúrio:
Observa quando o Sol estiver em Leão e Mercúrio em
Virgem e que não seja combusto. (...) Se puderes
terminá-lo durante a hora de Virgem, está bem, mas, se
não, o faça quando durar Virgem no ascendente e
Mercúrio nele. Quando passar Virgem deixa para fazê-lo
no outro dia, na hora de Virgem, e trabalha até terminá-
lo (ALFONSO X, Astromagia, p. 286).32

Nesse trecho, encontramos conjugados dois astros


considerados fastos (benéficos) pela tradição mágica, principalmente
mediterrânica: Sol e Mercúrio. Ambos estão associados, de certa
forma, à virtude do conhecimento, mas enquanto Mercúrio é o “pai de
todas as ciências”, como lembra a oração, e o guardião dos segredos
não revelados, o Sol, por sua vez, releva tudo, é o senhor da verdade
revelada por excelência. Nas orações gerais do Libro de Mercúrio, no
Libro de Astromagia, temos evidenciada a relação de Mercúrio com o

32Tradução livre da autora a partir do trecho: “Para mientes quando el Sol fuere en
León e Mercurio en Virgo, que non sea conbusto. (...) Si lo pudieres conplir en una
hora, bien; si non, fazlo quanto durare Virgo en el ascendent e Mercurio en él.
Quando passare Virgo, déxalo tro a otro día a tal hora e labra fata que lo cumplas”
(Alfonso X, Astromagia, p. 286).

153
Aline Dias da Silveira

Sol: “Em nome de Deus, oh tu, planeta verdadeiro e razoável, tu eres


notário do Sol, tu eres fortuna com as fortunas (...)”33 (ALFONSO X,
Astromagia, p. 270). O Sol é regente do signo de Leão, e Mercúrio é
regente do signo de Virgem, assim ambos estão em exaltação, quando
posicionados nessas constelações zodiacais. A hora de Virgem, ou
quando Virgem estiver no ascendente, seria o momento em que o Sol,
no seu movimento diário, passa pelo signo de Virgem, o que pode
durar aproximadamente duas horas do tempo físico cronológico. Na
“hora de Virgem”, a emanação do poder de Mercúrio é potencializada
e canalizada com o ritual através das orações e das figuras desenhadas.
O Talismã ou imagem, como o chama Afonso, incorpora, prende e
retém esse poder que é direcionado para um objetivo. Assim, temos no
anel mágico a conversão do tempo cósmico nas efemérides dos ciclos
astrais e o tempo cotidiano do direcionamento do poder cósmico para
um objetivo mundano.

Temporalidade cotidiana

Na confecção do anel, depois de se fazer a oração de Mercúrio


e repeti-la por 46 vezes, o texto diz que se deveria ir dormir para se ter
a visão do que se quisesse saber. Porém, caso não ocorresse o
esperado, se deveria jejuar por sete dias e fazer a mesma oração a cada

33Tradução da autora do trecho: “En nombre de Dios. O tú, planeta verdadero e


razoable, tú eres notario del Sol, tú eres fortuna con las fortunas” (ALFONSO X,
Astromagia, p. 270).

154
Magia como Fenômeno transcultural

dia. No sétimo dia, melhor que fosse no dia de Mercúrio (quarta-feira),


se deveria, mais uma vez, usar os defumadores e rezar. Então,
apareceria um espírito que encheria o recinto de luz e perfume. Este
espírito perguntaria: “qual é o teu pedido?” e o mago-filósofo deveria
responder: “o meu pedido é que me dês o espírito de todos os
espíritos, que me guie em toda obscuridade e que eu possa saber tudo
que quiser”34 (Alfonso X, Astromagia, p. 290). O espírito, então,
colocaria sua mão sobre o peito do demandante e, desse momento em
diante ele saberia todas as ciências e saberes que nunca soube antes.
O pedido revela o objetivo pragmático da prática mágica:
conhecimento e informação, assim como no anel de Hermes, nos PGM
e no Picatrix. O contexto, no entanto, marca a diferença na intenção.
Enquanto nos PGM e no Picatrix é explicitado a vontade do mago
profissional que quer impressionar o governante e alcançar uma boa
posição por seus serviços de informações vaticinadas, no Libro de
Astromagia, é o próprio rei sábio (astrólogo) o interessado no poder do
anel precioso.
As orações e talismãs dos livros astromágicos do scriptorium
afonsino servem aos interesses de aplicações cotidianas. Quanto à
Mercúrio, encontramos pedidos, principalmente, relacionado aos
conhecer, ver ou revelar informações, esconder coisas ou esconder-se,

34Tradução da autora do trecho: “La mi petición es que me des spírito de los tus
espíritos, que me guíe en todas las escuridades, y con que pueda saber todo lo que
quisiere” (ALFONSO X, Astromagia, p. 290).

155
Aline Dias da Silveira

bem como ter poder sobre plantas e pedras de Mercúrio (ALFONSO


X, Astromagia, p. 270-299). No Picatrix, encontramos no capítulo V,
do primeiro livro, por exemplo, as instruções para a confecção de
talismãs para unir amantes e para que a intimidade dure; para retirar o
inimigo de algum lugar; para a ruína de uma cidade; para favorecer
uma cidade ou um lugar; para que aumente a fortuna e o comércio;
para conseguir altos cargos; para dispor um soberano à vontade de
alguém; para quem quer se casar e lhe é impossível; para impedir a um
homem que peça uma mulher em matrimônio; para libertar um peso
(PICATRIX, 1986, Livro I, cap. V, p. 15-25).
Bem, mesmo que essas instruções para a elaboração dos
talismãs tenham sido traduzidas, copiadas, compiladas, atualizadas e
passadas ao longo de séculos, pode-se pensar nas circunstâncias
possíveis que criaram as demandas para tais práticas mágicas e o
interesse permanente em seus resultados. Nessa cosmopercepção, a
experiência humana cotidiana não está à deriva ou ao acaso. Mesmo
que não se pudesse compreender o plano divino ou o emaranhado de
conexões chamado de destino ou fortuna, ele estava lá e determinaria
uma existência de imprevistos, com limitações desconhecidas. No
entanto, por meio do conhecimento do movimento dos astros e suas
atuações no plano terrestre, das emanações das virtudes celestes e da
sua canalização nos talismãs, seria possível conhecer as regras do jogo
cósmico, prever e evitar tragédias ou, até mesmo, alterar resultados. A

156
Magia como Fenômeno transcultural

prática mágica possibilitaria a agência humana numa temporalidade


cotidiana e determina, mas não imutável.

Conexões espaço-temporais no material ritualístico

No início da explicação sobre a confecção do anel de Mercúrio


há a especificação: “Toma gema de esmeralda prasme, sendo
ascendente em Virgem e na hora de Mercúrio”35 (ALFONSO X,
Astromagia, p. 286.). Porém, o que seria e onde poderia ser encontrada
a “esmeralda prasme”? Antes mesmo de assumir a coroa de Castela e
Leão, o Infante Afonso já havia solicitado os serviços da equipe de
tradutores do judeu Hyada Fy Mosse al-Cohen Mosca para a tradução
do árabe para o latim do Lapidario de Abolays, como nos conta o
prólogo da obra. Como explicado anteriormente, neste lapidário, além
da descrição e classificação de pedras de acordo com a influência que
sofreriam dos astros, é identificada a relação daquelas com algumas
constelações, ou imagens celestes, suas virtudes (propriedades
mágicas para o uso) e onde elas seriam encontradas. Sobre a
esmeralda prasme, conhecida em árabe por “zavarget”, como explica o
Lapidario, podemos ler, entre outras informações: “assemelha-se em
cor com a esmeralda e é encontrada naquelas mesmas minas de ouro
em que as outras são encontradas. (...) sua cor verde e seu esplendor é

35 Tradução da autora do trecho “Toma yema de esmeralda prasme, seyendo el


ascendente Virgo e la hora de Mercúrio”.

157
Aline Dias da Silveira

muito maior que o da outra esmeralda” (ALFONSO X, Lapidario, 47,


p. 50).36 No trecho anterior a esse, que trata da esmeralda simples, é
especificado que essas minas de ouro são encontradas mais no
Ocidente que em outros lugares. Porém, de que Ocidente estamos
falando? Não é possível definir, exatamente, qual seria o lugar de
referência de quem escreveu o texto, no entanto, podemos construir
alguma hipótese a partir do prólogo do Lapidario. Os tradutores e
organizadores da obra contam que o “sábio Abolays”, que amava os
gentis, pediu para um amigo buscar da terra de seus avós caldeus o
livro do lapidário que falava de 360 pedras, segundo os graus dos
signos que estão na oitava esfera. Abolays teria traduzido do caldeu
para árabe (ALFONSO, Lapidario, p. 9-11). Se considerarmos que
Abolays e os tradutores afonsinos foram honestos em seus escritos e
que as traduções se mantiveram fiéis aos referenciais geográficos do
texto caldeu, supostamente original, seria possível dizer que as minas
do Ocidente referidas no texto se localizariam no noroeste da África,
mais especificamente Egito e Abissínia, pois são as minas de ouro
ocidentais mais próximas da Caldeia, região ao sul da Mesopotâmia.
No entanto, essa é apenas uma hipótese, a partir de indícios do texto,

36Tradução da autora a partir do trecho: “Del decimoséptimo grado del signo de


Touro es la piedra a que dicen zavarget en arábigo, y en latín prasme. Semeja en
color a la esmeralda y es hallada en aquellas minas mismas del oro que las otras de
hallan (...) Y su verdura y su resplandor es mucho mejor que el de la outra
esmeralda”

158
Magia como Fenômeno transcultural

que nos serve como exercício para pensarmos as conexões espaciais e


temporais presentes na fonte.
Em relação ao sacrifício ritualístico, o Libro de Astromagia diz
que se deve degolar uma ave que em árabe se chama “orsem” e
explica que o “translador” identifica esse pássaro como uma calandre.
Calandre ou Calhandra em português é um pássaro que vive
principalmente no norte da África e na África tropical e que
sazonalmente voa para o sul da Europa, inclusive, o sul da Península
Ibérica. Se o mago, artesão do anel de Mercúrio, vivesse na região
mediterrânica, ele teria relativa facilidade em contar com esse
elemento sacrificial para a transformação do anel em um talismã. No
entanto, podemos perceber que a obtenção do principal material do
anel, a esmeralda prasme, não seria tão fácil, a pedra precisaria ser
minerada, comercializada e lapidada, empreendimentos esses que só
poderiam ser pagos por quem tivesse poder político e/ou econômico. A
prática do conhecimento mágico, como expressa no Libro de
Astromagia, no Picatrix e no Lapidário, seria muito cara e restrita a
um pequeno grupo dentro de um grupo ainda menor de uma elite
política, econômica e intelectual. Em outras palavras, o praticante de
astromagia precisaria estar associado à alta nobreza ou ser um membro
dela.

159
Aline Dias da Silveira

Conclusão

A ideia de conexões e redes definem bem o movimento na


história humana, as experiências coletivas humanas que ocorrem a
partir de conexões espaço-temporais. Vários elementos culturais e
matérias presentes no anel mágico de Mercúrio podem revelar essas
conexões. A própria matéria astromágica, fundamentada na
cosmoconcepção da influência dos corpos celeste sobre os corpos
terrestres, que nos remete ao culto aos astros na antiguidade
mesopotâmica, foi reatualizada diversas vezes ao longo de milênios,
movimentando-se pelos três continentes, até compor a matéria dos
livros astromágicos no scriptorium afonsino. Nessas conexões espaço-
temporais, temos as diversas tradições linguísticas, religiosas,
filosóficas e mágicas que confluem na fonte, seguindo um movimento
do saber e da cultura ao longo de rotas comerciais, por vezes,
concentrando-se em centros convergentes desse fluxo, como escolas
de tradução, cortes e bibliotecas. Esses centros medievais
convergentes do fluxo do movimento de um saber textual foram
também espaços de compartilhamento e articulação de pessoas que
buscavam o conhecimento secreto da natureza e do divino, como seria
o caso dos colaboradores do scriptorium afonsino.
Nesse scriptorium, podemos definir uma cronologia
progressiva dos estudos astromágicos afonsinos. O Lapidario (1250)
que informa onde encontrar o material para canalizar as virtudes das

160
Magia como Fenômeno transcultural

esferas celestes; O Picatrix (1256) que oferece o fundamento


filosófico e prático da magia astral, reunindo fontes de diferentes
culturas orientais; o Libro Razielis (1259) que oferece uma
transposição da magia astral para a leitura da tradição mística judaica
e, finalmente, o Astromagia (entre 1276-1284), que reúne todos esses
saberes de forma objetiva e harmônica, focado em aspectos que
poderiam interessar diretamente um rei em meio a revoltas da alta
nobreza, como Afonso X na final de seu reinado e vida. Pois, em um
contexto como esse, a magia aplicada ao conhecimento de todos os
segredos, como no Libro de Mercúrio, viria ao encontro de suas
necessidades.
Ana González Sánchez (2011, p. 231), em sua tese de
doutorado, coloca que a preocupação científica, juntamente com a
ideia de basear a ação política no conhecimento apurado, não teria
sido alheia aos empreendimentos astronômicos afonsinos, mas haveria
outras motivações, como o pragmatismo de guiar as ações do rei pelas
estrelas. No entanto, os estudos astromágicos afonsinos indicam o
interesse de ir além do deixar-se guiar pelos astros, pois evidenciam a
vontade de manipular e ter agências sobre uma realidade em potencial.
A busca pela agência humana e manipulação das leis cósmicas/
naturais é o impulsionador da história da magia. Por isso, ela está na
área de encruzilhada ou de intersecção com a religião, a ciência e a
política ou simplesmente com o viver cotidiano e a resistência aos
caprichos mutáveis da fortuna ou da vontade (igualmente caprichosa)

161
Aline Dias da Silveira

do Inefável. Assim, cada fonte analisada aqui é um vórtice histórico


que manifesta ou revela uma concentração de áreas de intersecções, ao
mesmo tempo que nos conduz, como o fio de Ariadne, na trama da
História.

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164
Pomadas, poções e unguentos: as reuniões
secretas diabólicas em manuscritos Alpinos do
século XV
Lívia Guimarães Torquetti dos Santos1
Paolo Grillando que viveu no ano de 1532, escreveu
sobre um pobre homem de Sabina, morando perto de
Roma, que foi persuadido pela sua esposa a untar-se
como ela, com alguns unguentos, para ser transportado
junto com alguns bruxos [...] ele se viu ser levado até o
Condado de Benevento, uma das terras mais bonitas do
Papa, para debaixo de uma grande nogueira, onde havia
inúmeros bruxos que bebiam e comiam, ao bel prazer.
Ele fez como eles, e pedindo o sal várias vezes, do que
os demônios têm horror, no final trouxeram-lhe, então
ele disse em italiano: ‘Louvado seja Deus que o sal
chegou’. Assim que o nome de Deus foi pronunciado,
toda a companhia de demônios e bruxos, e todas as
carnes, desapareceram repentinamente, e o pobre
homem foi deixado nu e voltou para sua região a cem
léguas de distância, mendigando seu próprio pão
(BODIN, 1580).

Esse relato, a respeito da mulher indo participar do que seria


um sabá, contido no Tractatus de hereticis et sortilegiis (1536) escrito
pelo juiz eclesiástico Paolo Grillando, é apenas mais uma dentre as
inúmeras narrativas sobre indivíduos sendo transportados pelos ares,
com a ajuda de pomadas e unguentos. Em outro relato, o juiz narra
sobre um homem que tinha uma esposa acusada de ser bruxa; como o
marido não tinha certeza do fato, decidiu observá-la de perto, o que
fez durante doze noites. Quando mais tarde ela foi presa, acabou

1 Doutora em História Cultural pela Universidade Estadual de Campinas –


UNICAMP (2015-2021), mestrado em Estudos Literários pela Université Paris
Ouest Nanterre La Défense (2012), é graduada em História pela Universidade
Federal de Minas Gerais – UFMG (2009). É integrante do Modernitas – Núcleo de
Estudos em História Moderna vinculado ao Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas (IFCH) da UNICAMP.

165
Lívia Guimarães Torquetti dos Santos

confessando ter ido ao sabá em um determinado dia e horário. Seu


marido querendo salvá-la jurou solenemente que ela estava ao lado
dele na cama. O que se concluiu é que ela estava participando do sabá
em espírito (GRILLANDUS, 1547). Grillando teve grande
notoriedade porque testemunhou muitas confissões de bruxaria sem
que o uso da tortura fosse empregado (TREVOR-ROPER, 2001) e seu
texto, se tornou uma obra de referência, sendo citado constantemente
por teólogos e por juristas importantes.
Grillando reuniu em sua obra diversos julgamentos cheios de
outros elementos correlatos ao sabá, como as metamorfoses em
animais, as fórmulas mágicas para voar e o unguentum paganus –
unguento pagão. A frequência com que esses elementos aparecem na
documentação é considerável, tanto nos processos que lidavam com o
crime de bruxaria quanto nos tratados demonológicos dos séculos XVI
e XVII. Jean Bodin em seu tratado De la démonomanie des sorciers
(1580), por sua vez, elencou vários desses relatos e, assim como ele,
outros juristas da primeira modernidade – como Nicholas Rémy,
Henry Boguet e Pierre de Lancre, também referenciaram esses eventos
como forma de comprovar a bruxaria em solo francês. Essas narrativas
estruturaram um debate mais amplo, no qual se questionava se a
participação no sabá, e seu deslocamento até ele, se dava “em espírito”
ou se os participantes compareciam corporalmente. Nesses textos,
geralmente os unguentos eram fornecidos pelo diabo aos participantes
do sabá, para que pudessem voar longas distâncias até essas reuniões
diabólicas. Deve-se observar que essa discussão não era apenas sobre
o unguento em si, como vimos nos relatos acima; ela revela para os
historiadores, diversas nuances de crença de um debate maior, em que

166
Pomadas, poções e unguentos

se discutia a possibilidade física ou não do voo, ou seja, sobre o


deslocamento de corpos via êxtase ou sonho. Esse deslocamento aéreo
tinha como referência o episódio bíblico em que Jesus foi levado ao
deserto2 e, restava a esses homens, compreender os artifícios de que o
diabo se utilizava para fazê-lo – as pomadas e unguentos – e, se era
ilusão ou se ele ocorria de forma concreta.
Esse tema tem raízes muito anteriores relativas às perseguições
às diversas correntes heréticas dos séculos XI e XII, que foram
acusadas das práticas mais terríveis, como canibalismo e infanticídio
e, por isso, estavam sempre reunidas na clandestinidade. A ordem dos
valdenses ou os “pobres de Lyon”, por exemplo, era acusada de todas
essas práticas; condenados à clandestinidade, seguiam o modo de vida
apostólica, itinerante e mendicante, executando pequenos trabalhos
por onde passavam. Ocupando regiões do sul da França, norte da Itália
e algumas partes da Bohemia Germânica, se instalaram também na
região dos Alpes Suíços, região que nesse período, vivenciou diversas
perseguições contra a “sinagoga Valdense”. Sendo também chamada
de seita imaginária de bruxos e bruxas, acabou por receber um
importante legado das seitas heréticas do final da Idade Média, seja
em termos de terminologia ou de práticas (OSTORERO, 2011). Seus

2 Mateus 4:1 ao 6. “Então Jesus foi levado pelo Espírito ao deserto, para ser tentado
pelo diabo. Por quarenta dias e quarenta noites esteve jejuando. Depois teve fome.
Então, aproximando-se tentador, disse-lhe: ‘Se és Filho de Deus, manda estas pedras
se transformarem em pães.’ Mas Jesus respondeu: ‘Está escrito: Não só de pão vive
o home, mas de toda palavra que sai da boca de Deus.’ Então o diabo o levou à
Cidade Santa e o colocou sobre o pináculo do Templo e disse-lhe: ‘Se és Filho de
Deus, atira-te para baixo (...).” Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002, p.
1708.

167
Lívia Guimarães Torquetti dos Santos

ritos de iniciação e seus comportamentos religiosos distintos da


ortodoxia, geraram ações inquisitoriais nos vilarejos e condenações à
fogueira. Esses julgamentos de bruxaria na região dos Alpes
ocidentais, conduzidos pelas inquisições itinerantes do final do século
XIV e início do XV, estavam relacionados a essas histórias de voos
noturnos, mas sobretudo à perseguição desses grupos. A eles eram
atribuídas práticas de adoração do diabo ou reuniões de orgias sexuais.
Antes da década de 1430, esses tribunais geralmente mantiveram uma
distinção entre acusações de heresia e magia, mas essa distinção foi
gradualmente corroída quando foi surgindo aos poucos a ideia de um
culto às bruxas (BAILEY, 2013). O que se tinha nesse momento era
uma preocupação com seitas heréticas, o conceito de sabá, sendo
assim gestado a partir de bases intelectuais que teorizavam sobre essas
mesmas seitas, que eram acusadas de se reunir com motivos de
idolatria e práticas mágicas. Com isso se quer dizer que o sabá das
bruxas deve ser entendido como um construto resultante do olhar
erudito a partir de vários substratos culturais, tendo a sua gênese
estruturante em relatos anteriores à primeira modernidade.
Os juristas e teólogos dos séculos XVI e XVII se concentraram
bastante na teorização do que viria a ser conhecido como essa mítica
reunião noturna de adoradores do diabo e quatro manuscritos
medievais, de importância variada, foram fontes fundamentais para
essa elaboração: os relatórios dos julgamentos de Valais (1428), na
Suíça, de Hans Fründ; o Formicarius (1436-1438), de Johannes Nider;
o Errores gazariorum (1435-1438), de autoria anônima; e o Ut

168
Pomadas, poções e unguentos

magorum et maleficiorum errores (1436), de Claude Tholosan. Essas


obras poderiam ser inseridas em um recorte temporal de crise da Igreja
e fim do papado de Avignon, até o fim da Idade Média; nesse espaço
de tempo de pouco mais de cem anos, foi possível constatar uma
transformação considerável no que era teorizado como bruxaria: temas
antes considerados como heresia dos demonólatras na tradição
inquisitorial (PARAVY et al., 1999) passaram a ser incluídos na
discussão da bruxaria como tema principal dessa tratadística.
Novamente, o mapeamento desses textos nos permite observar o
imaginário do sabá sendo germinado a partir de substratos da bruxaria
popular, magia erudita e heresias, sendo amalgamadas ao longo do
processo histórico.

O relatório de Hans Fründ

Hans Fründ foi um cronista de Lucerne, na região do Valais, na


atual Suíça e autor de um relatório a respeito dos julgamentos de
bruxaria nessa região, ocorridos entre os anos de 1428 e 1436. O
documento, datado de 1431 está repleto de elementos muito comuns
na literatura demonológica, tais como a adoração ao diabo, o
assassinato, a heresia e a reunião em lugares secretos. A ideia de sabá
– agregação de indivíduos com o propósito de subverter a Igreja e a
ordem social –, entretanto, não estava ainda formalmente completa,
pois nesse momento seus elementos constitutivos ainda estavam
atrelados sobretudo à ideia do maleficium e às heresias.

169
Lívia Guimarães Torquetti dos Santos

Eles também confessaram como o espírito maligno


carregava-os à noite de uma montanha para outra, como
ele ensinava-os a fazer pomadas que eles colocavam em
cadeiras e, então, com isso, cavalgavam de uma vila
para outra, de um castelo para outro, e depois para as
adegas daqueles que tinham o melhor vinho; lá, eles se
divertiam e depois iam para onde queriam (CHÈNE et
al., 1999).

Com efeito, a ideia do transporte pelo ar facilitado pelo diabo


era tema central no debate medieval e viria a ser também no debate
moderno, pois remetia ao movimento de cavalgar, fazendo eco à
tradição do canon Episcopi, documento que caracterizou como
superstição e ilusória a ideia do voo noturno (PARAVY et al., 1999).
Além disso, o voo diabólico era entendido como uma versão paródica
de Jesus: o diabo na impossibilidade de fazer como Deus, conseguia, a
partir da manipulação de unguentos e poções transportar os
indivíduos. No caso acima, o transporte se deu por meio de uma
cadeira – em alguns casos também em banco – o que era uma
particularidade da região de Valais (CHÈNE et al., 1999). A discussão
sobre o deslocamento não era tanto sobre o voo ser falso ou
verdadeiro, mas sobre a possibilidade de o indivíduo participar desses
eventos em espírito. Esse tema parece também se relacionar com
alguma frequência à discussão sobre a metamorfose, afinal, se está
pensando nas condições materiais concretas desses fenômenos. Fründ
relata o caso de pessoas que aprendiam a se transformar em lobo,
corriam atrás de ovelhas e cabras e as comiam crus. Segundo ele,
através de várias ervas, o espírito maligno também os ensinou a se
tornarem invisíveis, de tal maneira que ninguém poderia mais vê-los

170
Pomadas, poções e unguentos

(CHÈNE et al., 1999). Mas a confecção dessas substâncias, como


confessou uma bruxa a esse relator, dependia do infanticídio e também
de canibalismo: “havia entre eles quem matasse seus próprios filhos,
assava, comia, cozinhava, levava-os para a sociedade e lá também os
comiam” (CHÈNE et al., 1999). Essa menção às ervas e unguentos é
importante porque representou uma mudança, na medida em que a
cavalgada mítica com Diana descrita no canon Episcopi não se fazia
mediante uso de unguento; agora, o diabo fornecia ao final dos rituais,
aos participantes, instrumentos para o seu comparecimento nas
próximas assembleias: unguentos (ou pós) e objetos para o
deslocamento pelos ares.

Formicarius (1436-1438)

Um texto muito influente na demonologia medieval por ter


começado a sistematizar os elementos fundantes do imaginário do
sabá é o Formicarius – “O Formigueiro” –, do teólogo dominicano
Johannes Nider. O texto tem caráter didático, em forma de diálogo
entre dois personagens, o Teólogo e o Preguiçoso, e a proposta do
autor era apresentar os milagres e maravilhas que se produziam à sua
época. Escrito entre os anos de 1436 e 1438, o texto é composto de
cinco livros que abordam os atos excepcionais dos homens de bem,
passando pelas boas revelações, visões falsas ou ilusórias e tocando na
questão dos bruxos e seus erros. Após uma reflexão teórica dos temas
baseada nas escrituras e em autores da Antiguidade, o autor ilustra as

171
Lívia Guimarães Torquetti dos Santos

situações com exemplos de julgamentos contemporâneos à sua escrita.


Como Nider afirma na introdução, ele apresenta exempla e
ensinamentos que ele aprendeu com os doutores da sua faculdade em
Viena; com a experiência de um juiz laico, homem honesto e digno de
fé que, através de questões e confissões e de experiências privadas e
públicas, aprendeu sobre muitas coisas (CHÈNE et al., 1999). Para
alguns especialistas, o Formicarius se constitui mais como um
catálogo de exempla e não um tratado demonológico nem uma obra de
atestação da realidade da bruxaria. Dessa forma, seria dizer que na
brevidade de suas narrativas existe um modelo de moralidade, de
comportamento. Os capítulos do Formicarius são introduzidos por
uma análise comparativa das características das formigas às
características humanas. Para elucidar, tomamos como exemplo o
Livro V, precisamente o capítulo III, intitulado “Aos bruxos e seus
erros”. No referido texto, Nider abordou a temática do canibalismo
praticado pelos bruxos que comiam seus filhos nas assembleias. O
autor iniciou sua argumentação explicando como o frio impedia que os
ovos das formigas fossem formados e exemplificando como a neve
impedia a geração da vida. Por analogia, associou o frio aos bruxos,
que afastados do calor e claridade do sol, praticavam canibalismo
interrompendo a vida das crianças: “o frio que é nocivo à proliferação
das formigas nos parece sinalizar para a figura dos bruxos, entendidos
como aqueles que causam mal aos outros através de obras
supersticiosas” (CHÈNE et al., 1999). Nesse mesmo capítulo, Nider
narra outro relato sobre canibalismo:

172
Pomadas, poções e unguentos

Em seguida, [eu] soube pelo inquisidor, que me contou


esse ano, que no ducado de Lausanne, alguns bruxos
tinham cozinhado seus próprios filhos recém-nascidos e
os tinham comido. Agora, a maneira de aprender uma
arte assim, de acordo com o que ele disse, era a
seguinte: os bruxos tinham ido a uma determinada
assembleia e, graças ao seu trabalho, eles viram, de
maneira visível, o demônio que assumiu a aparência de
um homem. O discípulo devia obrigatoriamente dar sua
palavra de negar o cristianismo, de nunca adorar a
eucaristia e, algo que deveria fazer secretamente, pisar
no crucifixo (CHÈNE et al., 1999).

Esse relato entrelaça o tópico comum do canibalismo e a ideia


das assembleias/seitas com a negação da fé. A suspeita das atividades
da seita e suas práticas horríveis aparecem em variadas situações
narradas por ele e um forte acento sempre recai sobre movimentos de
renegar os ritos comuns da ortodoxia. Enquanto nos relatos anteriores
de Fründ, a utilização da gordura de crianças não era tão clara e a
descrição permanecia só no ato canibal, encontramos em Nider essa
confirmação pela confissão de uma bruxa:
Em seguida, os cozinhamos em um caldeirão até que os
ossos se soltem, toda a carne se torne comestível ou
bebível. Da parte mais sólida deste material, fazemos
uma pomada que seja conveniente às nossas vontades,
nossas artes e nossas metamorfoses. Com a matéria
líquida ou humor, enchemos uma garrafa ou uma outra
coisa; aquele que a beber, após a realização de algumas
cerimônias, torna-se imediatamente mestre e cúmplice
de nossa seita (CHÈNE et al., 1999).

Por essa descrição, na perspectiva da totalidade dos crimes, o


infanticídio era o meio pelo qual se tornava então possível a execução
de malefícios e de magia, o que fez do canibalismo não mais
necessariamente um fim em si mesmo. Os unguentos além de selar a

173
Lívia Guimarães Torquetti dos Santos

adesão dos indivíduos, propiciavam o voo, e como veremos mais a


frente, implicavam também na realização das metamorfoses.
No livro II, o Teólogo expõe para o Preguiçoso as diferentes
categorias de sonhos e suas causas. Ele se baseia na explicação
tomística, segundo a qual, os sonhos poderiam ter causas internas e
externas (AGOSTINHO, A Cidade de Deus, I, 95). Essa discussão é
importante, pois nela o Teólogo explica para o Preguiçoso quem
deveria se ocupar da interpretação de cada um desses tipos de sonho.
A causa interna seria dupla: por um lado, corporal, em que o sonho
seria aquilo que se pensou e desejou em estado de vigília; por outro,
imaginária e afetada pelos humores, de tal maneira que caberia aos
médicos interpretarem esse tipo de sonho. Do mesmo modo, a causa
externa também era dupla: corporal e espiritual. A primeira se daria
pela influência dos elementos naturais e dos astros e, por isso, caberia
ao filósofo natural o seu exame. Quanto à causa espiritual que poderia
ser tanto divina quanto diabólica, a explicação é que “Deus produz o
sonho na imaginação e na mente dos homens graças aos ministérios
dos bons anjos; quando diabólica, o diabo mobilizaria a imaginação
para criar no pensamento o conhecimento de algo oculto ou futuro”
(CHÈNE et al., 1999). Após essa explicação, Nider relata o exemplum
que ouviu de seu preceptor a fim de ilustrar os perigos que os sonhos
diabolicamente inspirados representavam para os cristãos. O autor
conta que ao passar por uma aldeia, um dominicano descobriu que

174
Pomadas, poções e unguentos

uma senhora acreditava que durante a noite era transportada aos ares
com a deusa Diana e outras mulheres:
Quando o padre decidiu expulsar a perfídia com
palavras salutares, essa mulher teimosa disse que
acreditava mais em sua própria experiência. O padre
disse-lhe: “Então, deixe-me estar presente quando tu
fores partir da próxima vez.” Ela respondeu: “Me agrada
a ideia e se quiseres, tu me verás partir na presença de
testemunhas idôneas.” Assim, para que o defensor das
almas conseguisse convencer a delirante mulher, no dia
da partida previamente fixado pela velha, o padre estava
presente acompanhado por homens de confiança. A
mulher então sentou-se num recipiente, esses usados
normalmente para fazer pão, que estava em uma
banqueta. E depois de aplicar unguento e proferir
palavras maléficas, adormeceu com a cabeça inclinada
para trás. E imediatamente, pela obra do demônio, ela
sonhou intensamente com Vênus e outras coisas
supersticiosas. Sua alegria era tão intensa que ela gritava
em voz grave, batia palmas e os movimentos que fazia,
sacudiam tanto o recipiente em que estava sentada que,
de repente, tombou da banqueta e o recipiente caiu
pesadamente em sua cabeça. E então o padre questionou
a mulher, que agora estava acordada e deitada imóvel no
chão: “Com licença, onde tu estás? Por acaso, estiveste
com Diane, tu que nunca saíste da gamela, segundo o
depoimento dessas pessoas aqui presentes?” Assim, por
meio desse processo e dessas palavras salutares, ele a
levou a reconhecer seu erro (CHÈNE et al., 1999).

Este exemplum ilustra o argumento de que o voo noturno teria


caráter ilusório, conforme o ensino do cânone Episcopi; no entanto,
assim como no relato das reuniões em adegas narrado por Fründ,
vemos aqui a mudança na percepção da crença. Antes de “decolar”, ou
seja, antes de adormecer, a mulher revestiu o corpo com um unguento
e a partir desse feito passou a experimentar as fantasias diabólicas.
Nesse relato, mais importante ainda é o testemunho do padre que,
mediante autorização da mulher e juntamente com outros

175
Lívia Guimarães Torquetti dos Santos

observadores, presenciou o evento. Esse ponto é fundamental, pois


expressa que esse religioso foi testemunha ocular da ação diabólica,
contexto em que o diabo havia produzido imagens de “Vênus e outras
coisas supersticiosas”. Além disso, nesse relato temos a presença de
um homem revestido de autoridade religiosa que atesta o caráter
ilusório do voo; ele confirma como o diabo é capaz de sugestionar
aquilo que não é, assim como confirma o não-deslocamento corporal
da mulher. No plano moral, o evento fez a mulher reconhecer seu erro
o que, em termos narrativos, corresponde ao objetivo dessa obra de
esclarecer e convencer. Dois outros relatos muito semelhantes a esse
figuram em textos posteriores de Nider. O primeiro deles se encontra
no tratado Praeceptorium divine legis e narra a ocasião em que um
pregador tenta convencer, sem sucesso, uma senhora de que o voo era
ilusão.
Ele foi à casa dela, conforme combinado, quando ela lhe
disse que seria transportada em um recipiente, em
direção a Herodíade e Vênus. E naquele momento, sem
que houvesse qualquer movimento, a velha [prendeu os
próprios cabelos] e, então sonhava que se dirigia para
Herodíade. Alegremente, ela estendia as mãos para a
frente e o recipiente, por causa do movimento, caiu e
jogou-a no chão cheia de vergonha (CHÈNE et al.,
1999).

A outra versão faz parte de um sermão integrante de textos


organizados em torno do decálogo. Nessa versão, uma senhora
também aparece sentada em um recipiente em cima da mesa, por meio
do qual ela queria se deslocar até Heuberg.

176
Pomadas, poções e unguentos

E então ela se sacudiu com força no recipiente e caiu,


em nome do diabo, debaixo da mesa e o recipiente caiu
sobre ela. Ela certamente não caiu em nome de Deus!
Quem não riria dessa gente, que portanto, está em erro.
Essas são as bruxas (CHÈNE et al., 1999).

A referida versão reforça ainda mais o caráter instrutivo do


relato, pois ridiculariza aqueles que se prestavam à experimentar o
voo, nomeando-os como bruxas. O fato de a senhora cair no chão
cheia de vergonha ou reconhecendo seu erro, tal como na primeira
versão tem caráter de conversão, de arrependimento. A partir desses
relatos de Nider, vemos que o testemunho ocular do observador é
sempre o último recurso que, por sua vez, é decorrente do insucesso
do convecimento por meio da palavra. Logo, é quase como uma
espécie de dever, isto é, uma obrigação do pregador, testemunhar o
fato diabólico para provar seu caráter ilusório. Ao pedir autorização
para presenciar o voo, ele não se compromete com o fenômeno e
conclui sua tarefa de doutrinação.
Aos poucos o substrato cultural de rituais de canibalismo, de
infanticídio, de homenagem e adoração ao diabo, além da
metamorfose animal, todos aspectos atribuídos aos heréticos foram
sendo assimilados pela demonologia medieval no exercício de
teorização da bruxaria. Os relatos a partir das confissões nos
processos, demonstram que os fundamentos sabáticos estavam ali
presentes embora ainda em fase gestacional. O caráter fragmentário
desses trechos e o entendimento de que o imaginário do sabá estava

177
Lívia Guimarães Torquetti dos Santos

em plena elaboração, nos permitem perceber a operação de todos esses


elementos constitutivos. De um lado, os malefícios tradicionais de
uma bruxaria atrelada à vida cotidiana, nos quais são incrustados
elementos emprestados dos rituais de magia e que ressaltam a relação
do bruxo com os demônios. De outro lado, elementos que foram
apropriados do debate sobre heresia, seitas, canibalismo e apostasia.
Por fim, como vimos, há também elementos de outras crenças, a
exemplo do voo noturno (CHÈNE et al., 1999). Ainda que dispersos e
não totalmente sintetizados nesse imaginário, estavam assentadas aqui
as bases intelectuais para a elaboração concreta do sabá nos séculos
seguintes.

Errores Gazariorum seu illorum qui scobam seu


baculum equitare probantur (1435-1438)

Outro texto que exemplifica a assimilação medieval de


elementos estruturantes nesse imaginário é o tratado Errores
Gazariorum seu illorum qui scobam seu baculum equitare probantur –
“Os erros dos heréticos, ou seja, daqueles que são tentados a cavalgar
vassoura ou bastão”. Ainda que o subtítulo pareça bastante limitante e
sublinhe o voo na vassoura, esse texto abrange muitos outros temas
ligados às heresias. Pouco é sabido sobre esse tratado, que é de autoria
anônima. Dele existem apenas dois manuscritos, um (manuscrito B)
localizado na Biblioteca da Universidade da Basiléia, na Suíça, e outro

178
Pomadas, poções e unguentos

(manuscrito V) (OSTORERO et al., 1999) descoberto na década de


1970, na Biblioteca Apostólica Vaticana.
Na introdução do tratado, existe um aspecto significativo e que
merece ser destacado, pois ilustra como as características atribuídas à
bruxaria foram sendo construídas e elaboradas ao longo do tempo, de
modo que não eram determinantes. É possível notar que o autor
aborda os participantes das assembleias noturnas mediante ausência da
feminização do crime de bruxaria e isso é sugestivo, pois nesses textos
anteriores ao Malleus maleficarum, esse crime ainda não estava
atrelado às mulheres somente. Como pontua o autor, “quando uma
pessoa de um sexo ou de outro é corrompida por alguém”
(OSTORERO et al., 1999), é levada a cometer os malefícios. Dessa
forma, ainda que esses crimes fossem comumente associados aos
bruxos e bruxas, a palavra no latim maleficus – sorcier na tradução
aqui utilizada – não aparece no tratado, mas, ao contrário, aparecem
“corrompidos” e “pessoas corrompidas”. No tocante aos crimes,
seriam mormente aqueles concernentes à existência cotidiana das
pessoas e reportavam ao ato de fazer chover e/ou destruir as
plantações. A partir dessa noção de maleficium, o autor elaborou
outras categorias criminais em que os indícios comuns de heresia –
canibalismo e infanticídio – aos poucos foram sendo incorporados aos
relatos. Esses, por sua vez, culminaram em uma descrição muito
próxima do sabá conforme ele fora concebido pelos eruditos
modernos:

179
Lívia Guimarães Torquetti dos Santos

Esse inimigo aparece às vezes na forma de um gato


preto, às vezes na forma humana, embora imperfeita, ou
com características de outro animal, mas na maioria das
vezes na de um gato preto. O indivíduo corrompido,
depois que o diabo perguntou se ele queria permanecer
na sociedade e servir a quem desviou-o, diz que sim.
Após o que o diabo exige dele um juramento de
fidelidade do seguinte modo: primeiro, ele jura que será
fiel ao mestre da assembleia e a toda a sociedade; [...]
que até sua morte ele não revelará os segredos da seita;
[...] que ele matará e trará para a sinagoga todas as
crianças que ele puder estrangular e matar [...] Depois
de fazer esses juramentos e promessas, o infeliz que foi
corrompido adora o chefe prestando-lhe homenagem; e
como sinal de homenagem, ele beija o diabo, que se
mostra em forma humana ou não, na parte posterior ou
no ânus; [...] Da mesma forma, assim como aquele que
foi corrompido e homenageou o diabo, este último, que
preside a assembleia, dá-lhe uma caixa cheia de
unguento, um graveto e tudo o que ele precisa para ir à
sinagoga, e ele ensina-o como ungir o graveto. Esta
pomada é feita através de malignidade diabólica, a partir
de gordura de crianças assadas e fervidas e com outros
ingredientes (OSTORERO et al., 1999).

Novamente a designação dos criminosos pode ser entendida


como um indício dessa aproximação entre o crime de heresia e a
bruxaria. Como é possível perceber no trecho acima, a designação
mais comum é “corrompido” – seductus – ou “o novo herético” –
novus hereticus. Esses adeptos se reuniam nas sinagogas onde
aconteciam suas assembleias. É preciso realçar que no século XV, o
termo sabbat ainda não tinha o significado que viria a adquirir
somente em época posterior. Além disso, o emprego do termo
“sinagoga” evidencia de maneira acentuada um anti-judaismo, visto
que os judeus eram vítimas recorrentes de perseguições e de grandes
massacres. Exemplo disso é a Grande Peste de 1348 (OSTORERO et

180
Pomadas, poções e unguentos

al., 1999), em que os judeus foram acusados de serem os responsáveis


por espalhar a peste através da feitura de venenos. Associado a isso, o
infanticídio era então uma clara (e terrível) inversão das coisas:
arrebatada pelo diabo, a inocência ou pureza da criança era
transformada em uma substância formidável, capaz de causar a morte
(OSTORERO et al., 1999). Aqui é necessário salientar que,
anteriormente, a acusação de infanticídio era largamente empregada
pelos romanos contra os cristãos; essa é uma tópica longeva e que,
portanto, fora reapropriada pela própria tradição cristã e aplicada,
periodicamente, a judeus e hereges. Talvez o que seja inovador nessa
obra é a precisão dos detalhes e o fato de a codificação dos elementos
ter sido feita com muito rigor. Tudo gira em torno da “sinagoga”, que
ocupa um lugar de primeira ordem e que pretende dar à organização
uma existência bastante concreta (OSTORERO et al., 1999).
A noção do juramento tem uma dimensão de segredo e esse
aspecto é muito relevante para a análise de narrativas sobre o sabá.
Além da fidelidade ao diabo ser sinal de apostasia, em razão de ele
impedir que se falasse sobre a assembleia, a importância das
confissões foi reforçada, pois eram a única forma de as autoridades
saberem o que acontecia nessas reuniões. A comprovação do crime
para a investigação inquisitorial viria pelos testemunhos oculares ou
pelas confissões. O maleficium era um crime que só se testemunhava
pelas suas consequências: péssimas colheitas, doenças, abortos
espontâneos tanto nas mulheres quanto nos rebanhos, etc. A bruxaria

181
Lívia Guimarães Torquetti dos Santos

era um crime sem testemunhos, sendo assim, o peso sobre a confissão


era muito grande e, nesse contexto, o recurso à tortura era plenamente
aceitável, afinal, se o diabo impedia o acusado de falar, a tortura seria
capaz de proporcionar a sua fala. Confessar o crime não significava
apenas afirmar a ação maléfica, mas, sobretudo – e talvez o mais
importante nesse contexto – conseguir a remissão para si próprio, era a
tentativa de salvar a alma antes da morte pelo fogo.
O Errores é o texto que ampliou bastante a inversão dos ritos
cristãos. A sucessão de etapas para a realização dos rituais, assim
como suas práticas – fidelidade, vingança, malefícios, luxúria,
infanticídio, etc. – se opõem aos mandamentos divinos – fidelidade a
Deus, amor ao próximo, caridade, castidade, etc. A seita concretiza o
contrário dos dogmas cristãos. E nesse esquema invertido, o diabo do
Errores não é mais um instrumento de Deus, como no texto de Nider3;

aqui ele é a autoridade, tem poder e discurso próprio, por vezes


chamado de mestre ou chefe, está no ápice de uma relação de
submissão e, por isso é o inverso de Deus. Enquanto nos textos
precedentes, o diabo fornecia os unguentos ou ensinava fazê-los, no
Errores, o diabo dá uma caixa de unguento para o adepto da seita, e

3 “À pergunta do juiz: 'Como você causa chuvas e tempestades de granizo?’ o


acusado respondeu: 'Em primeiro lugar, invocamos com algumas palavras, em um
campo, o príncipe de todos os demônios, para que ele envie um dos seus para atacar
a pessoa a quem designamos. Então, quando um demônio chega, sacrificamos uma
galinha negra em uma encruzilhada, jogando-a no ar. Uma vez que o demônio a
agarra, ele obedece e imediatamente causa uma tempestade, nem sempre nos lugares
que designamos, mas de acordo com a permissão do Deus vivo, enviando
tempestades de granizo e relâmpagos” (OSTORERO et al., 1999, p. 181).

182
Pomadas, poções e unguentos

nesse texto a riqueza de detalhes sobre os ingredientes vai além da


composição de cadáveres. Seria uma mistura de gordura infantil com
animais venenosos – serpentes, sapos, lagartixas, aranhas – todos
misturados com a ajuda do diabo (OSTORERO et al., 1999). Ainda,
um outro tipo de unguento podia ser feito a partir da gordura de
cadáveres mortos pela forca. Por trás dessa diversidade toda de
ingredientes e, por mais estranhas que possam parecer essas
descrições, existia uma intencionalidade de provocar o horror através
desses relatos, sobretudo porque eles fizeram eco a outros
julgamentos, como foi o caso das acusações de envenenamentos dos
poços, feitas contra os leprosos (GINZBURG, 2012).
De toda forma, existe nesses textos um estreito atrelamento
entre a utilização da gordura das crianças mortas e cozidas –
infanticídio – com o voo e a execução de malefícios. Uma dinâmica
circular começou a se fechar nesse imaginário: para se chegar até a
assembleia, era preciso um meio de transporte, esse, por sua vez, só
era possível através da obtenção do unguento, o qual era adquirido
através do assassinato de crianças, ou antes ou durante as reuniões,
para as quais era preciso um meio de transporte. Essas assembleias
medievais diabólicas não tinham ainda o contorno político que vieram
a adquirir posteriormente, de seita rebelde contra a ordem
estabelecida, configurando uma inversão do mundo normal; nessa
circularidade, elas tinham finalidade em si mesmas e, como um

183
Lívia Guimarães Torquetti dos Santos

incipiente construto intelectual, foi enriquecido por diversos tipos de


autores, tanto teólogos, como vimos os autores dominicanos acima,
mas também por juízes seculares.

Ut magorum et maleficiorum errores manifesti


ignorantibus fiant (1436)

Por vezes, o afastamento no tempo dificulta ao historiador


entender como o crime de bruxaria pôde inquietar de forma tão
ostensiva tanto as autoridades políticas e religiosas quanto os estratos
sociais mais baixos. O maleficium era um crime que só se detectava
pelas suas manifestações “concretas”: o leite que talhava, uma vaca
estéril, um instrumento agrícola quebrado, uma doença repentina
associada ao mau-olhado e uma série de outros infortúnios
relacionados aos meios de sobrevivência. Dessa forma, antes de se
chegar a um julgamento existiam muitas tensões prévias nos vilarejos
em que, geralmente, os acusados e as acusadas já tinham reputação de
bruxaria dentro de suas comunidades. Para serem acusados de
bruxaria, por vezes, apenas um rumor bastava. Nesse contexto, o papel
das autoridades era investigar a ocorrência do crime em busca de sua
comprovação. A tortura era o meio frequentemente utilizado e
dependendo das jurisdições, além das inquisições itinerantes, os juízes
seculares também tinham a oportunidade de julgar esse tipo de crime.

184
Pomadas, poções e unguentos

Como veremos na sequência, o próximo texto é testemunho dessa


situação.
Claude Tholosan foi um juiz que atuou na região de Briançon,
no Dauphiné – França – entre os anos de 1426 e 1449; em meados de
1436, ele finalizou seu Ut magorum et maleficiorum errores manifesti
ignorantibus fiant ou “Para que os erros dos magos e bruxos se tornem
óbvios para os ignorantes”. Desse texto restou apenas o quinto livro –
Quintus liber fachureriurum –, pois os quatro anteriores
desapareceram. Através dessa obra, que se inicia com uma lista de
bens confiscados e sentenças do ano anterior, é possível vislumbrar o
conteúdo dos livros que haviam desaparecido: nomes de 126 culpados,
suas paróquias de origem, datas dos processos, as condenações
anunciadas e o valor da venda dos bens (PARAVY, 1993).
O “Quinto livro de bruxaria” (PARAVY, 1993) é uma
compilação de casos julgados por Tholosan mais as discussões sobre
as jurisdições dos crimes, elementos esses com um forte apelo
doutrinário. A moralidade relacionada aos malefícios é bastante
evidenciada quando o autor discute a natureza desses crimes e suas
punições. No terceiro capítulo, Tholosan aborda o ponto de vista dos
juristas discutindo a jurisdição do crime e qual tribunal deveria ser
responsável pelas condenações, ou seja, o tribunal eclesiástico ou o
secular. Um primeiro ponto que nos parece importante, mas que não
apareceu tanto nos textos precedentes, é a distinção entre heréticos e

185
Lívia Guimarães Torquetti dos Santos

idólatras. Tholosan reconhecia que os procedimentos descritos eram


aplicados aos hereges e que os acusados de quem ele falava naquele
momento não eram somente hereges, mas verdadeiros idólatras que
abandonaram a fé. A tênue assimilação entre heresia e bruxaria da qual
falamos, aparece aqui como uma extrapolação da categoria de
herético, pois, para esse juiz, existia uma distinção bem nítida entre o
que seria a simples utilização dos poderes do diabo e a sua adoração.
Essa última era considerada muito mais terrível, uma vez que
denotava o mau exercício da fé. Assim sendo, enquanto para o herege
havia a possibilidade do arrependimento, para os participantes dessas
assembleias não podia haver perdão. Para Tholosan, a
intencionalidade era importante e a impossibilidade do perdão advinha
justamente dessa voluntariedade do participante. É interessante notar
que contrariamente a essa distinção entre o perfil herético e o do
bruxo, as categorias dos acusados parecem coincidir no que concerne
às punições, sobretudo, no tipo de punição admitida por cada
jurisdição. O tribunal eclesiástico puniria o bruxo de acordo com o
poder do bispo local; o tribunal inquisitorial aplicaria as penas tal
como são prescritas para os casos de heresias; e, em última análise, o
tribunal secular seria responsável pelas penas corporais e pelo
confisco de bens. Para Tholosan, não era questão de punir três vezes o
mesmo crime, mas seria dizer, em termos práticos, que um tribunal
terminaria o que o outro começou. Assim como o Errores, que se

186
Pomadas, poções e unguentos

centrou em questões relativas ao maleficium, aqui a participação do


diabo era primordial nas seitas:

para [fazer] um testemunho universal e convincente,


apoiado por muitos argumentos e concebido com o
propósito de extirpar esse erro execrável e essa seita de
bruxos, decidi e tentei apresentá-los em uma exposição
geral. [...] Em primeiro lugar, os bruxos, chamados
assim por causa da extensão de seus crimes, como
evidenciado pelas duas instâncias do direito, devem, de
acordo com o juramento que fizeram nas mãos do diabo,
converter à seita os inocentes que eles sabem ser
completamente inclinados, para a revelação do diabo
[...] eles lhe dão seu corpo e sua alma, bem como um de
seus filhos, geralmente o primogênito, a quem eles
imolam e oferecem a ele em sacrifício de joelhos [...]
descobri que os autores desses crimes vinham da
Lombardia, sob o disfarce de médicos, de Lyon como
proxenetas e casamenteiros, do Champsaur, como
mendigos e adivinhos, todos participantes e seguidores
da seita execrável em questão (PARAVY, 1993).

A ideia da existência de uma seita à parte é discutida ao longo


dos vários relatos, reforçando então a atribuição do caráter herético
aos crimes de bruxaria. A região da Lombardia e a cidade Lyon não
foram indicações aleatórias nesse trecho, pois naquele momento eram
locais tidos como heréticos e licenciosos. Os itinerantes que passavam
por Briançon vinham principalmente dessas duas regiões, com ênfase,
em particular, para a Lombardia que era uma terra considerada
herética no século XIII (PARAVY, 1993). O tom de suspeita é
explícito quando se afirma que os acusados se disfarçavam de ruffian
– proxeneta – ou de casamenteiros, mendigos e adivinhos. Em
analogia com os valdenses, esta seita herética também teria seus
missionários, disfarçados, vindo de outros locais. Uma ideia clara de

187
Lívia Guimarães Torquetti dos Santos

conspiração parecia pairar nos seus comentários, mas ela não havia
adquirido ainda maiores contornos políticos.
Tholosan também se ocupou dos unguentos, suas funções e
seus ingredientes como, por exemplo, citando a urina do diabo, ovos e
também sangue menstrual. Entretanto, diferentemente daqueles que
lhe sucederiam, Tholosan não subscreveu a ideia do voo como
realidade; para o referido autor, o voo em bastões untados de gordura
de criança seria ilusão ou se daria pelo sonho, o qual em virtude de sua
semelhança com o real fazia com que essas pessoas acreditassem que,
de fato, estariam se deslocando fisicamente durante a noite
(OSTORERO, 1999). Tholosan, de modo muito similar aos autores
dos textos que lhe antecederam, afirmava que dentro dessas sinagogas
os adeptos participavam de orgias. Havia também o juramento de
fidelidade que era seguido pelos banquetes proporcionados pelo diabo
quando esse abria as casas de outras pessoas, conforme foi mostrado
nos relatos de Fründ.

O sabá como um construto diabólico

O conceito de “bruxaria conspiratória” (KIECKHEFER, 1989) só


apareceu de fato quando os temas do pacto e do sabá foram adquirindo
contornos distintos da noção medieval de bruxaria. Nos parece notória
que a primazia do diabo e das forças do mal se tornaram
fundamentais, assim como a associação de ambos com aqueles

188
Pomadas, poções e unguentos

acusados de praticar magia. Não se trata, em absoluto, de explanar que


o sabá, enquanto tal, teve suas raízes nos Alpes ocidentais; a
importância desses textos alpinos está atrelada à propagação do que
veio a ser um novo conceito de heresia atrelado à bruxaria. A título de
exemplo, relatos semelhantes sobre metamorfoses, unguentos e voos
noturnos circulavam em outras regiões da Itália e Espanha.
Em 1427, na Piazza del Campo de Siena na Itália, em seu sermão
o orador franciscano Bernardino de Siena relatou a ocasião em que
esteve em Roma e ordenou a prisão de uma bruxa que tinha
confessado ter matado e comido seu próprio filho depois de ter
reduzido seu corpo a pó. A bruxa também confessou ter matado outras
trinta crianças sugando-lhes o sangue, ao qual ela adicionava algumas
ervas e, posteriormente, usava como unguento. Segundo a bruxa, esse
processo lhe dava a impressão de se transformar em uma gata. O
sermão proferido por Bernardino de Siena e que visava a heresia dos
valdenses da região do Piemonte (OSTORERO, 1999), teve ecos no
julgamento de Matteuccia di Francesco di Ripabianca, ocorrido em
1428, no vilarejo de Todi. A mulher foi acusada de usar gordura de
abutre, sangue de coruja e sangue de recém-nascido para produzir um
unguento que a levaria até a reunião das bruxas no Benevento. Após a
invocação de um demônio, a mulher teria se metamorfoseado em
mosca e nas costas do demônio que se apresentava na forma de bode,
ela foi a esse encontro. O sermão e o julgamento são

189
Lívia Guimarães Torquetti dos Santos

cronologicamente anteriores a toda a literatura alpina que foi


discutida, mas o ponto que consideramos interessante perceber é
justamente as variantes regionais tanto no uso de ingredientes –
sangue de abutre e coruja – quanto no tipo de metamorfose – em gato
e em mosca –, além da própria utilização do unguento, mais vinculado
à metamorfose do que necessariamente ao voo. No caso específico de
Mateuccia, talvez isso tenha acontecido porque ela era conhecida por
ser manipuladora de ervas e remédios, o que explica a variação da
função dos unguentos.
Quatro anos antes desse evento, na região da Catalunha, na
Espanha, autoridades locais foram convocadas ao vale de Aneu para
agir contra habitantes que acompanhavam bruxas à noite para
homenagear o diabo. Tais habitantes eram acusados de roubar crianças
de suas casas, matá-las e também de usar substâncias tóxicas para
prejudicar outras pessoas. Alguns desses habitantes já haviam sido
detidos e confessado esses crimes, de tal maneira que a condenação
tinha sido a morte pela fogueira (HUTTON, 2017). Com pequenas
variações, todos esses eventos aglutinam elementos muito semelhantes
que apareceram nas acusações de heresias e magia, assim como na
conclusão de que os condenados estavam praticando atos contra as
populações locais e contra a ortodoxia. Para além das questões de
crença muito restritas a cada localidade, o vínculo entre esses aspectos
todos era muito concreto. Além disso, devemos pensar na circulação

190
Pomadas, poções e unguentos

de informações pela rede de pregação dos eclesiásticos e na figura dos


frades: Bernardino cita um frade franciscano que lhe falara de um
grupo de hereges assassinos de crianças em Piemonte, no noroeste da
Itália, que usava os corpos para uma poção que conferia invisibilidade
(HUTTON, 2017). Encontramos o mesmo em Nider, que também era
dominicano e apoiou seu relato em duas fontes, a saber, o ex-
necromante que virou beneditino e o inquisidor de Autun.
Esses textos e os julgamentos, tiveram uma relação
interdependente na elaboração de um quadro em que essas narrativas
se entrelaçaram no que era o imaginário incipiente do sabá. Discorrer
sobre a circulação de ideias nessas regiões não significa excluir outros
lugares que experimentavam o mesmo fenômeno; além disso, se
referir ao mesmo fenômeno não implica reportar às mesmas crenças.
Como vimos, no século XV, a bruxaria não era um construto
intelectual unificado, dessa maneira, as variações regionais
funcionaram e influenciaram de forma diferente. Nossa chave
interpretativa entende que essas narrativas moldavam as realidades e
essas realidades específicas conformavam as narrativas. A ação das
ordens monásticas pregadoras foi fundamental nessa dinâmica. As
ordens dos Dominicanos e Franciscanos, em suas funções itinerantes
de inquisidores e pregadores, eram grandes propagadores dessas
narrativas. Ainda no que tange à reflexão sobre a circulação dessas
ideias, os concílios também representaram ocasiões nas quais essas

191
Lívia Guimarães Torquetti dos Santos

narrativas eram elaboradas. Para além da região dos Alpes, outros


também escreveram trabalhos propagando a crença na nova
conspiração diabólica das bruxas, a qual constituiu parte de um
extenso corpo de publicações de autores franceses, italianos, espanhóis
e alemães que debateram a realidade da conspiração e, cada vez mais,
apoiaram essa ideia (HUTTON, 2017). Assim, como observamos, um
imaginário de assembleias secretas de adoração ao diabo foi sendo
construído e difundido tanto por meio da elaboração desses textos
quanto pela difusão dos julgamentos que se intensificaram nos séculos
seguintes. Essas variações regionais acabaram por ser aglutinadas e
reelaboradas, culminado nesse construto que veio a ser o sabá, a
reunião mítica de adoradores do diabo.

Referências

Documentação
AGOSTINHO. A Cidade de Deus. Petrópolis: Editora Vozes, 2012.
AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. v. I, parte I, questão 95, 6. 2ª
ed. São Paulo: Edições Loyola, 2001.
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Coninx, 1580.
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omnifariam coitu eorumque penis. Item de Questionibus et tortura ac
de relaxatione carceratorum. Giunti: Lugduni, 1547.

Bibliografia
BAILEY, Michael. The Medieval Concept of the Witches' Sabbath.
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192
Pomadas, poções e unguentos

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BAGLIANI, Agostino; TREMP, Kathrin; CHÈNE, Catherine (Colab.)
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HUTTON, Ronald. The Witch. A History of Fear, from Ancient Times
to the Present. New Haven/ Londres: Yale University Press, 2017.
KIECKHEFER, Richard. Magic in the Middle Ages. Cambridge:
Cambridge University Press, 1989.
OSTORERO, Martine; BAGLIANI, Agostino; TREMP, Kathrin;
CHÈNE, Catherine (Colab.) L’imaginaire du sabbat. Édition critique
des textes plus anciens (1430c. – 1440c.). Lausanne: Cahiers
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OSTORERO, Martine. La répression de la sorcellerie aux marges du
royaume de France à la fin du Moyen Âge. Cahiers de recherches
médiévales et humanistes, Lausanne, vol. 22, 2011. Disponível em:
http://journals.openedition.org/crm/12541. Acesso em: 19 abr. 2019.
PARAVY, Pierrette. De la chrétienté romaine à la Réforme en
Dauphiné. Évêques, fidèles et déviants (vers 1340-vers 1350). Rome:
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PARAVY, Pierrette. Le traité de Claude Tholosan, juge dauphinois
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sabbat. Édition critique des textes plus anciens (1430c. – 1440c.).
Lausanne: Cahiers Lausannois d’Histoire Médiévale, 26, 1999.
TREVOR-ROPER, Hugh. The Crisis of the Seventeenth Century:
Religion, the Reformation and Social Change. Indianapolis: Liberty
Fund, 2001.

193
Magia, truque e feitiço: as muitas faces do
encantamento na literatura oral de Ifá
Rogério Athayde1

Dizem os mais velhos, sem a redundância dos tolos, que para

todo início é preciso haver começo. Então, para este texto


despretensioso, que deseja somente falar uma coisa ou outra sobre a
literatura oral de Ifá e a magia que pode conter, quem sabe de seus
limites e virtudes, é necessário dar um passo de cada vez.
Que me perdoe o leitor, mas quero começar contando uma
história. Uma que fala sobre andar, ou andança e andadura. É apenas
uma das inumeráveis histórias que compõem o extenso repertório da
tradição oral de Ifá. Ela pode ser encontrada no Livro de Ogbe Yono,
também conhecido como Ogbe Ogunda. E é mais ou menos assim:
Há muito tempo atrás, havia um homem raivoso, que desejava
vingança. Não sabemos qual o motivo de sua zanga, ou mesmo se
tinha razão em trazer consigo o coração pesado. Sabemos que para
realizar seu desejo era preciso fazer uma longa jornada e encontrar seu
oponente. Esse homem, certo de sua vontade, procurou Orunmilá, a
divindade da inteligência, do conhecimento e da sabedoria, para que

1Formado em História pela UFRJ em 1994. Foi professor de Teoria, Metodologia e


Epistemologia da História na UFRJ em 1994. Durante muitos anos foi Professor
Titular de Antropologia em universidades particulares. Foi professor de pós-
graduação do curso “África e Brasil: laços e diferenças”, com o curso “Mito e
mitologia yorubá”. Vem se dedicando aos estudos de religião yorubá nos últimos
quinze anos. Possui Pós-Graduação em Pedagogia e Mestrado em Literaturas
Africanas de Língua Portuguesa pela UFRJ.

194
Magia, truque e feitiço

consultasse o oráculo de Ifá e garantisse o sucesso de sua desforra.


Mas Orunmilá, antes mesmo de encontrar seus instrumentos
divinatórios, disse ao homem que não deveria fazer a viagem. Eu vou!,
respondeu o ofendido com tensão na voz. Entendendo que não haveria
modo de demovê-lo, Orunmilá disse: Então ouça meu conselho: se
encontrar um buraco no caminho, não passe por ele, não o contorne,
não o atravesse; se encontrar uma árvore no caminho, não passe por
ela, não a contorne, não a atravesse; se encontrar um rio no caminho,
não passe por ele, não o contorne, não o atravesse. Agradecido, ele foi
buscar compensação de seu ultraje.
O homem partiu no dia seguinte bem cedo. Andou muitos dias
até encontrar um buraco no caminho. Lembrando a recomendação de
Orunmilá, ele parou. Parou e esperou. Esperou muito, até que o buraco
inteiro se cobrisse de folhas. Só assim se permitiu seguir.
O homem, cego pelo desejo de vingança, continuou andando
muito. Tanto andou até que se viu detido por uma árvore tombada no
caminho. Lembrando o que havia dito Orunmilá, ele sentou e esperou.
Esperou muito, até que a árvore inteira se consumisse em pó. Só assim
ele foi adiante.
O homem, andador de seu caminho, continuava seu
andamento. Andou até que seus pés encontraram a umidade de um rio
que atravessava o caminho. Lembrando o que havia aconselhado
Orunmilá, ele sentou e esperou. Esperou muito, até que o rio estivesse
seco por completo. Só assim seguiu em frente.

195
Rogério Athayde

Mas quando, finalmente, chegou do outro lado, na margem


antiga do curso d’água, o homem deteve o passo e pensou: O que é
mesmo que vim fazer? E então ele voltou para casa.
Assim acaba a história desse personagem sem nome, que a
rigor, poderia ser qualquer um de nós.
Ouvi esta fábula ser contada pela primeira vez há quase vinte
anos, por um antigo sacerdote de Ifá, um babalawo, durante uma
cerimônia de iniciação. Ouvi encantado pela beleza de sua contação e
também pela capacidade plástica de vê-la a serviço de uma consulta
oracular. Lembro que ela coube como um aviso sobre ter paciência e
não desistir de seus propósitos. Mas preciso confessar que me
incomodou esta leitura. O homem que desejava vingança nunca me
pareceu paciente ou obstinado, mas obsessivo e atormentado por sua
vontade. Antes, porém, de seguir adiante, e como faz o personagem
desta narrativa do Livro de Ogbe Yono diante dos obstáculos que vai
encontrando pelo caminho, preciso fazer uma pausa para depois voltar.
O repertório das histórias de Ifá é praticamente inesgotável. Há
alguns anos atrás, antes que o mundo inteiro parasse assombrado com
o curso da doença e da morte, entrevistei um sacerdote da Santeria
afro cubana, a quem chamamos Obá Oriatê. Seu nome era Ivan
Candido Martinez Quintana. Falamos sobre muitos assuntos
pertinentes às religiões de matrizes africanas, em Cuba e no Brasil, e,
no final de nossa conversa, perguntei como definiria Ifá. Sua resposta

196
Magia, truque e feitiço

continua em meus ouvidos até agora. Ele disse: “Ifá é como um


deserto...” e parou um tempo sem tempo, como se brincasse com
minha ansiedade. Depois sorriu e terminou a frase: “... nós nunca
saberemos quantos grãos de areia ele tem”. Confesso que não esperava
aquela conclusão. As metáforas do deserto sempre me sugeriram
outras ideias, como aridez, infertilidade, solidão e perda. Mas Ivan
Candido Martinez Quintana me falou de diversidade, multiplicidade e
infinitude. É claro, ele tinha razão.
São muitas as coisas que encontramos em Ifá. De fato. O
filósofo e babalawo nigeriano Kola Abimbola aponta pelo menos seis
usos da palavra. Segundo ele, (i) Ifá é outro nome de Orunmilá, a
divindade iorubana da inteligência, do conhecimento e da sabedoria;
(ii) Ifá é igualmente o sistema de divinação, organizado a partir de 256
Odu, ou “livros volumosos” (AYOH’OMIDIRE, 2005); (iii) Ifá é o
corpo literário, onde podem ser encontradas as histórias e o
conhecimento ancestral dos iorubás; (iv) Ifá é a medicina tradicional,
o conhecimento do herbário iorubano; (v) Ifá são os poemas, os esé
Ifá, que os sacerdotes da religião são treinados a recitar longamente;
(vi) Ifá, por fim, é também a capacidade de proferir “palavras de
poder”, os ofó, encantamentos que asseguram a efetiva realização dos
rituais sagrados (ABIMBOLA, 2005).
Estive com Kola algumas vezes nestes últimos anos. Em uma
dessas ocasiões falávamos sobre esta variedade de usos da

197
Rogério Athayde

compreensão de Ifá e me atrevi a acrescentar mais uma em nossa


conversa. Sugeri que Ifá também é um modo de pensamento. Não uma
filosofia, porque não desejo cair no equívoco que Paulin Houtondji
denunciou daqueles que confundem filosofia e cultura (HOUTONDJI,
1977). Mas um certo modo de orientar o pensamento, acostumado a
gerar interpretações sucessivas, relações inesperadas, como em um
jogo em que brincam a hermenêutica e a gnosiologia. Kola concordou
comigo.
Então, são muitas as coisas que Ifá pode ser. E certamente uma
delas é conhecimento; ou, melhor dizendo, um repositório de
conhecimentos. Entenda, quando mencionamos a palavra
conhecimento talvez cheguem com ela algumas imagens quase banais
de bibliotecas, laboratórios, quadros de escola com fórmulas
incompreensíveis de matemática ou física, gente apertada em roupas
com talhe formal, ou outras representações assim aparentadas. Se o
leitor pensou desta maneira é porque, e provavelmente sem o saber,
associou a palavra conhecimento àquilo que os gregos de antanho
chamavam de logos. Então, vejamos.
É comum traduzir logos como ciência. Assim obtemos
biologia, como ciência da vida, arqueologia, como ciência do que é
antigo, antropologia, como ciência do homem, sociologia, como
ciência da sociedade, e assim por diante. A melhor maneira, porém, de
usar o logos é como discurso, e, ainda melhor, discurso racional

198
Magia, truque e feitiço

acerca de alguma coisa. Perceba que se traduzimos desta forma o


logos grego, abrimos espaço para outras formas de conhecimento.
Sim, porque como discurso, e ainda melhor, como discurso racional
acerca de alguma coisa, poderemos pensar em outras formas
discursivas que não tenham na razão o seu principal substrato, e então
já não seria suficiente usar o logos para esses casos. É neste sentido
que os gregos – novamente eles – usam a palavra gnose. Esta
expressão é traduzida como conhecimento, de maneira ampla,
agregadora e generosa, a ponto de nela poderem ser incluídas as
tradições orais, os mitos e as fábulas. O pensador camaronês Valentin
Yves Mudimbe, em seu livro A invenção de África: gnose, filosofia e a
ordem do conhecimento, estabelece a diferença fundamental entre
episteme e gnose (MUDIMBE, 2013). Segundo o autor, episteme é
conhecimento assumidamente racionalista, com diversas instâncias de
controle institucionais – em particular através de meios científicos e
acadêmicos – que definem o que é aceito como válido ou não.
Portanto, a epistemologia, como área do conhecimento, dá conta das
imagens de bibliotecas, laboratórios, fórmulas de matemática e física e
gente apertada em paletó, gravata, colete e tailleur. Já sobre gnose,
Mudimbe esclarece que a palavra dá conta de conhecimentos,
racionalistas ou não, podendo ser aí incluídos também os
conhecimentos consuetudinários e mágicos, capazes de ações
dinâmicas e não controladas por instâncias institucionais. Ainda para

199
Rogério Athayde

Mudimbe, a gnose africana teria dois problemas graves a serem


enfrentados, ou seja, conhecimento racionalista através da
antropologia e o conhecimento racionalista através da história
(MUDIMBE, 2013, p. 231-236). Mas isso já seria assunto para outra
oportunidade.
Para o uso que pretendo fazer aqui, Ifá tanto pode ser um
conhecimento mediado, ou acessado, pela episteme – na medida em
que se transforma em matéria de desenvolvimento acadêmico,
obedecendo a todo o lastro de exigências de seu meio – quanto pela
gnose – se tomarmos o conhecimento de Ifá como algo que não se
quer explicar, e muito menos ainda entender, com os recursos
racionalistas, que as tradições europeias nos disciplinaram a crer nos
últimos dois mil e quinhentos anos. Se entendermos gnose como todo
o conhecimento, racional ou não, que aceita em seu seio o
consuetudinário e o mágico, então precisamos estabelecer
corretamente do que estamos falando aqui.
As histórias que compõem o extenso repertório da literatura
oral de Ifá (GOODY, 2012) são mitos e fábulas, cujos personagens ou
são humanos ou assumem uma condição humana, ou seja, são
antropomorfizados. Estou me referindo a histórias de gente comum,
pobres ou ricos, jovens ou velhos, homens, mulheres e crianças,
felizes ou desvalidos, que vivem os dramas cotidianos que qualquer
um de nós viveria. Mas além destes, existem os deuses, que aqui são

200
Magia, truque e feitiço

chamados de orixás. Eles são os filhos de Olodumare, divindade maior


da criação do universo, responsáveis pela gestão do mundo e todas as
coisas que ele contém. Estas divindades possuem o duplo caráter
anímico e antropomórfico, são associadas a algum aspecto da
natureza, como também possuem traços que os deixam aparentados
com os humanos. Para seguir o raciocínio com o recurso dos exemplos
– mesmo que aqui sejam apenas simplificações – posso dizer que
Ogum é a divindade do ferro, e também é o ferreiro, o guerreiro e o
executor; Xangô é identificado ao trovão, e também é o rei mais
bonito, o homem irresistível e o martelo da justiça; Oxum é a deusa
das águas doces e a dona dos metais preciosos, e também é a mulher
sedutora, a guerreira furiosa, a velha e a nova, a esposa, a mãe e a
filha. E assim se multiplicam estas divindades e suas muitas facetas.
Mas além dos deuses, as histórias de Ifá contam as fábulas de
objetos, plantas, árvores, animais, partes do corpo e conceitos. Então
podemos encontrar narrativas de amigos, como Hoje e Amanhã (no
Livro de Ogbe Iwori Ifá), ou de inimigos, como a Verdade e a Mentira
(no Livro de Otura Meji Ifá); histórias da sabedoria do Macaco (no
Livro de Obara Ejiogbe Ifá), da ambição do Chacal (no Livro de Odi
Oyekun Ifá), e da inteligência da Abelha (no Livro de Okana Oshe
Ifá); ou do Pelo e da Pele, que se separaram depois de um longo
casamento e voltaram a se casar novamente (no Livro de Iwori Iroso
Ifá), ou da Panela de Ferro e da Panela de Barro, que eram amigas,

201
Rogério Athayde

que saíram para passear e a história terminou mal (no Livro de Oshe
Okana Ifá), ou da Palmeira orgulhosa, que se achava bonita demais e
acabou sendo cortada para servir aos humanos (no Livro de Iroso
Oshe Ifá). Acho que o leitor paciente já entendeu o argumento.
Estas são histórias exemplares, na maior parte das vezes muito
bonitas e emocionantes. Elas bem podem ser percebidas como
alegorias estéticas, na medida em que se prestam ao prazer da boa
contação, capazes de nos transportar momentaneamente para o país
encantado da ficção e da fantasia. Mas, acima de tudo, estas histórias
devem ser compreendidas como alegorias existenciais, porque de uma
forma misteriosa, revelam nossas próprias histórias no momento de
uma consulta oracular a Ifá (ATHAYDE, 2022). Sim, porque a matéria
de que é composta a divinação em Ifá é basicamente esta: suas
histórias, seus mitos e fábulas, e a interpretação que delas se
depreende.
É provável que o leitor a esta altura já tenha entendido pelo
menos um ponto que desejo tratar aqui. Afinal, pode parecer
desnecessário explicar onde reside a magia em um conhecimento ou
prática oracular. Ora, diriam os apressados, a revelação, ela mesma, é
mágica. E isso é verdadeiro. A extraordinária capacidade de
desvelamento que se atribui aos oráculos já bastaria para classificá-los
entre as experiências que somente o pensamento mágico poderia
supor. Mas, lamento dizer, as coisas são um pouco mais complicadas.

202
Magia, truque e feitiço

A primeira e talvez decepcionante observação que se poderá


fazer acerca dos oráculos é dizer que sua principal tarefa não é a
adivinhação. Veja, a palavra oráculo traduz tanto o local em que se
realiza uma profecia quanto o objeto profético, que pode ser uma
pessoa ou os instrumentos da consulta. Importa saber que esta profecia
deve nos chegar como uma fala divina, um diálogo com os deuses.
Como explica o filósofo italiano Giorgio Colli, o oráculo se revela
através de uma revelação mistérica, uma sentença que nunca é
evidente, porque “os deuses amam o enigma” (COLLI, 2019, p. 35).
De tal maneira que, mesmo tendo a vocação de adivinhar, coisa que
sempre poderá ocorrer em uma consulta aos oráculos, sua definição é
a de um diálogo com os deuses. Por isso caberá melhor nesses casos o
termo divinação.
A adivinhação oracular pode ser interessante como
demonstração de que algo extraordinário está ocorrendo. Não resta
dúvida. Mas, entenda, se este fosse o maior interesse dos oráculos
então todos os sacerdotes e “olhadores”, os mais respeitáveis, sábios e
criteriosos, poderiam se apresentar em teatros, circos e festas de
aniversários. E, claro, não se trata disso. A consulta oracular, portanto,
não deve satisfazer o interesse pitoresco de encontrar a magia no
mundo – mesmo que a magia se encontre lá; deve fundamentalmente
servir como um instrumento de ajuda, uma ferramenta para pensar
melhor sobre as decisões mais importantes que devemos tomar em

203
Rogério Athayde

nossas vidas. E se é verdade que são os deuses que falam conosco


através dos oráculos, se confirmamos que se trata de divinação, não
deveríamos mesmo esperar que sua fala fosse desperdiçada com jogos
de divertimento.
Bem, se concordamos que a consulta oracular é uma divinação,
uma fala dos deuses, que pretendem nos fazer pensar em quais seriam
os melhores caminhos a seguir, então já teríamos o material suficiente
para admitir a prática da consulta oracular como algo que se encontra
na esfera da magia. Isto serviria, salvo engano, para a maioria, se não
para todos os casos. Em Ifá, porém, devemos acrescentar outros
elementos que expressam os aspectos mágicos que queremos apontar
aqui.
A segunda observação a ser feita sobre os oráculos em geral, e
o de Ifá em particular, é sobre a previsão do futuro. Perdoe-me o leitor
por fazer mais uma citação, mas é irresistível. Sobre os tempos que
contém o tempo muito já se escreveu. Há mais de um milênio, porém,
um filósofo que veio a se tornar santo da igreja cristã, escrevia sobre o
tema dizendo que existe apenas o tempo presente. Que do passado
temos a lembrança presente do que se foi; do presente, temos a visão
presente do que é; e do futuro temos a “esperança presente das coisas
futuras” (AGOSTINHO, Confissões, XI). Santo Agostinho falava
assim no Livro XI de suas Confissões: “a esperança presente das
coisas futuras”. Repeti, sei bem. E o fiz porque esta ideia me parece

204
Magia, truque e feitiço

poderosa. O futuro, para Agostinho, não era um tempo para onde


seguimos – esta, aliás, é uma percepção sobre o tempo desenvolvida a
partir da modernidade, com o advento do iluminismo e da revolução
industrial; tempo como progresso e percepção progressiva. Não:
Agostinho pensava em um tempo que nos chega, portanto, um tempo
que ainda não existe. E, de fato, podemos admitir que do passado
conhecemos os vestígios; que do presente temos o convívio fugidio de
sua constante passagem; mas do futuro. Não temos nenhuma certeza
de sua existência. Com algum exagero podemos inclusive dizer que o
futuro não existe. Então do futuro podemos pensar o mesmo que
Agostinho, que é a “esperança presente das coisas futuras”, ou ajustar
a sentença, afirmando que temos dele um “conjunto de futuros
possíveis”.
O oráculo, então, não determina, ou desvela, ou revela o futuro
– no sentido de algo que está em algum lugar, escondido, e então se
mostra. Não poderia se tratar disso, com o risco de considerarmos a
prática oracular atividade redundante. O oráculo deve apontar futuros
possíveis e promover ajustamentos para viver o melhor dos futuros
possíveis. Logo, a magia não está em adivinhar o futuro, mas em criar
as condições para que o melhor dos futuros possíveis seja vivenciado
por cada um daqueles que procura o apoio da consulta oracular. Mas
como isso ocorre? Como o oráculo de Ifá cria essas condições
favoráveis? Aqui chegamos onde deveríamos ter chegado.

205
Rogério Athayde

É comum encontrar entre os mais importantes autores que se


dedicaram ao estudo do oráculo de Ifá, e a religião que dele se
depreende, a afirmação de sua base mágica (BASCOM, 1969;
LUCAS, 2001; DEWUYI, 2018; ABIMBOLA, 1997; AWOLALU,
2001). E não somente porque se trata de divinação e da suposta
percepção de futuros possíveis; mas acima de tudo, da capacidade de
ajustamento, de correção, de aprimoramento desses futuros possíveis.
Para isso, a tradição de Ifá admite o princípio fundamental de ìrúbó, a
prática do sacrifício. O professor norte-americano Maulana Karenga
nos ensina que a compreensão de ìrúbó deve ser dividida em duas
direções, ou seja, o da performance ritual e o da prática moral. Para
melhor expor seu argumento, ele nos informa que a performance ritual
– èbó – representa o sacrifício material, e a prática moral – íló –
significa o sacrifício de si mesmo (KARENGA, 1999, p. v-viii).
Èbó é palavra bem conhecida entre nós, americanos da
diáspora. Por èbó se sabe, tanto no Brasil como em Cuba, México,
Colômbia, Venezuela, República Dominicana, EUA e mais outros
tantos países deste continente, que se trata de oferenda, ou sacrifício,
para divindades ligadas às tradições iorubanas, os orixás. Como já nos
ensinava Marcel Mauss, quando escrevia sobre o sacrifício entre os
hebreus e os hindus, que esta prática sagrada – ou mágica, se o leitor
preferir – é realizada para propiciar algo, corrigir ou impedir algo e
agradecer por algo (MAUSS, 2005). Não é diferente no caso do èbó

206
Magia, truque e feitiço

que conhecemos, onde a oferenda, ou sacrifício, pode ser feita com


objetivos semelhantes. Tendo isto em mente podemos admitir com
facilidade o aspecto mágico do èbó, particularmente quando
relacionamos sua realização à conquista do objetivo desejado. Então a
magia estaria aí, na relação talvez apofênica entre uma ação e seu
efeito. Mas sobre isto é preciso dizer algo grave: se toda a vontade
pudesse ser satisfeita com recursos desta natureza, então não haveria
necessidade de boa conduta. E nada pode ser mais estranho ao
pensamento iorubano que isto. O conceito de ìwàpèlè – o bom caráter,
ou caráter brando – nos ensina que não podemos viver uma boa vida
sem que saibamos reconhecer nossos limites, bem como nossas
potências (ABIMBOLA, 1975). Então a magia do èbó não pode nos
servir para a validação de nossos desejos.
Ainda sobre isso, é preciso dizer que não importa a motivação
do èbó, ou tampouco o volume e a grandeza dos materiais oferecidos
nele se não houver uma correção de conduta, que só é possível com o
íló, o sacrifício de si mesmo. Íló pode ser traduzido literalmente como
costume, uso ou hábito. Mas para o entendimento que fazemos de seu
significado análogo, devemos admitir a ideia de ouvir o conselho, para
que o costume, uso ou hábito, seja ajustado, alterado ou corrigido.
Com isso estamos habilitados a presumir que uma boa conduta
dispensaria a necessidade do sacrifício. Mas èbó e íló são duas noções
complementares, não havendo razão para dispensar uma em favor da

207
Rogério Athayde

outra. Com èbó podemos restituir o equilíbrio necessário para que íló
se cumpra; ou, com èbó propiciamos as condições requeridas para que
íló possa se apresentar; ou ainda, com èbó corrigimos o que era
preciso para que possamos fazer uso de íló. Então a magia está neste
procedimento dialógico, modificando a realidade com recursos
extraordinários que ela parece supor e, de modo equivalente,
promovendo os efeitos demasiadamente humanos que a ética indica.
Antes de seguir em frente, quero que o leitor observe aqui a
existência na tradição de Ifá de uma significativa diferença entre
magia e feitiço. Por magia e feitiço podemos entender, ainda que de
maneira precária, a transformação extraordinária de alguma coisa, uma
desobediência, suspensão ou quebra, digamos assim, das leis naturais.
Dessa forma, a noção de èbó caberia como magia, e igualmente como
feitiço. Mas a noção de íló já não teria a mesma desinência, porque
ela obriga a uma mudança de comportamento, a um ajuste ético.
Então, por magia, também devemos incluir a mudança de uma má
conduta, ou de uma conduta inadequada, visando o aprimoramento
pessoal. O mesmo não se aplica ao feitiço, que produziria o efeito
mágico para a simples satisfação do desejo, não havendo qualquer
limite para a realização da vontade individual. Acredito que o leitor
entenda que existam inúmeros exemplos passíveis de serem oferecidos
neste sentido. Não pretendo fazer isso, sequer com o interesse de
tornar claro o argumento. Afinal, o que a tradição de Ifá requer, e

208
Magia, truque e feitiço

todos os seus sacerdotes devem estar comprometidos, é com o


princípio ético que deve desassociar a magia do feitiço.
O que temos até aqui? Argumentei que Ifá é muitas coisas e
que dentre tantas a que me interessaria neste pequeno texto é sua
expressão como um repositório de conhecimentos. Tentei explicar a
diferença que deve ser notada entre episteme e gnose, com o objetivo
de reivindicar gnose para a compreensão da tradição oral de Ifá, na
medida em que admite uma ampla gama de saberes, para além
daqueles apontados como racionais. Pretendi deixar bem claro que em
Ifá o conhecimento é acessível através de suas inumeráveis histórias,
seus mitos e fábulas; que a consulta oracular de Ifá, e a interpretação
que se faz com ela, é operada a partir destas histórias. Disse também
que o oráculo de Ifá realiza divinação, como um diálogo com os
deuses, e não prevê o porvir, mas projeta futuros possíveis, como
forma de gerar estratégias inteligentes para nossas tomadas de decisão.
Enfim, sugeri que, para além de inúmeras possibilidades, a magia em
Ifá pode ser encontrada através das transformações que èbó e íló
promovem. Acredito que temos agora o necessário para voltar à
história do Livro de Ogbe Yono, que tomo aqui como bom exemplo
para a argumentação em torno dos temas da magia e da ética na
tradição de Ifá.
Contamos a história de um homem que desejava consultar o
oráculo de Ifá para executar seu desejo de vingança. Ele procurou

209
Rogério Athayde

Orunmilá, a divindade da inteligência, do conhecimento e da


sabedoria. Orunmilá sempre é apresentado na literatura oral de Ifá
como um babalawo, um sacerdote de Ifá, que consulta o oráculo e dá
bons conselhos, íló, a quem quer que procure sua ajuda. Orunmilá
também indica receitas mágicas, os èbós, para que os consulentes
resolvam os problemas que têm e encontrem a felicidade. O leitor
atento deve se lembrar que na história que contamos, Orunmilá não
chegou a consultar o oráculo, do qual é o patrono habilidoso. Atitude
aparentemente estranha para esta divindade, sempre disposta a ajudar
na solução dos problemas humanos. O que podemos depreender deste
ponto da narrativa é que Orunmilá aconselhou o homem a não fazer a
viagem. E isto não nos deve causar espanto, visto que buscar vingança
não parece ser boa conduta, em qualquer situação. E oferecendo este
conselho, Orunmilá sutilmente respondeu à demanda do homem que
bateu em sua porta, dizendo que sua motivação não era correta. O que
Orunmilá não fez – devemos pensar assim – foi ceder à vontade
daquele que desejava realizar algo aparentemente errado. Orunmilá é
sacerdote de Ifá; não é feiticeiro.
Com a insistência do homem que desejava sua revanche,
Orunmilá ofereceu o conselho na forma de um enigma, uma revelação
mistérica. Falou sobre três obstáculos, um buraco, uma árvore e um
rio, que atravessariam seu caminho sem que ele pudesse passar por
eles ou contorná-los. Entenda, com este tipo de adversidades, o que

210
Magia, truque e feitiço

faria alguém razoável, alguém que não estivesse perturbado pelo


sentimento de vingança, senão desistir da viagem e voltar para casa? A
intenção de Orunmilá era fazê-lo perceber que seu projeto era de todo
insensato. Mas não foi esse o entendimento que teve.
O homem seguiu sua sanha e decidiu enfrentar o buraco, a
árvore e o rio com a obstinação dos fortes, ou com a tolice dos
mentecaptos. Perceba leitor, que para um buraco sozinho se encher de
folhas muitas estações teriam que passar. E que, da mesma maneira,
para que uma árvore virasse pó e um rio secasse, muitos anos
deveriam correr. Note então que esta história fala de um arco de tempo
extenso, que poderia durar toda uma existência. O homem, portanto,
envelheceu, obcecado por seu desejo de vingança, a ponto de não se
lembrar das razões pelas quais sua existência foi empenhada. Ou
desperdiçada.
É uma história triste. E bonita também. Ela nos ensina algumas
coisas sobre a diferença entre obstinação e propósito. E, se assim nos
for permitido pensar, sobre a diferença ética entre magia e feitiço.
Espero que os aspectos mágicos da consulta oracular de Ifá
tenham ficado claros. Pelo menos um ou outro deles. Como uma
história, feito esta que recontei aqui, é capaz de se revelar uma história
nossa, orientando-nos e nos fazendo tomar decisões acertadas sobre
nosso destino, isso jamais saberemos. E talvez esteja aí o sentido
muito elementar do que se pretende e se reconhece como mágico. Mas

211
Rogério Athayde

existem outras perspectivas que tentei deixar esboçadas, com as ideias


de èbó e, principalmente, íló. Se o èbó, como sacrifício material,
encanta quando o efeito pretendido por ele é alcançado, com o íló a
mudança talvez seja ainda mais interessante, porque é capaz de
interferir na produção de futuros possíveis através da conduta acertada
e, em última instância, promover condições para a felicidade. A
correção ética, que muitas vezes obriga a um ajustamento do que
pensamos, fazemos ou até mesmo sentimos, permite entender que a
magia em Ifá não se dobra à vontade individual, se mostrando bem
diferente daquilo que entendemos como feitiço.

Referências

Documentais
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Bibliográficas
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212
Magia, truque e feitiço

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213
Raios e ventos: narrativas mágicas sobre Santa
Bárbara e Iansã
Debora Simões de Souza1

Os estudos sobre a magia, ocupam um lugar central no que


configura o campo de saber antropológico, assim, como outros temas
clássicos: teoria do parentesco e organização das diferentes
sociedades. Autores centrais na antropologia como Durkheim,
Malinowski, Evans-Pritchard, James Frazer, Marcel Mauss, entre
outros, se concentraram na magia por meio de diferentes abordagens,
linhas conceituais e até escolas antropológicas.
James Frazer no livro O Ramo de Ouro, publicado
originalmente em inglês em 1890, foi o primeiro antropólogo que
sistematizou e problematizou a relação entre magia e religião.
Seguindo a perspectiva em voga na época, o autor elencou a razão
como principal maneira de compreensão dos sujeitos sobre suas
realidades. Frazer construiu uma hierarquização entre ciência, religião
e magia e, nessa ordem, a primeira seria uma forma mais evoluída de
entender e explicar a realidade humana e a última uma forma arcaica.
Reforçando assim, a primazia da ciência (FRAZER, 1996).

1 Doutora (2020) pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da


Universidade Federal do Rio de Janeiro pertencente ao Museu Nacional (PPGAS/
UFRJ/MN), bolsista do CNPq. Professora Efetiva de História do IF Baiano. Mestre
(2014) em História Social, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ/
FFP), bolsista Capes. Possui pós-graduação lato sensu em Ensino de História e
Cultura Africana e Afro-brasileira, pelo Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ).
Licenciou-se em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, na
Faculdade de Formação de Professores (UERJ/FFP, 2011).

214
Raios e ventos

Após cinquenta anos dos escritos de James Frazer, ocorreu


uma inovação nos estudos sobre a magia na antropologia, com a
presença do trabalho etnográfico de Malinowski compilado no livro
Coral Gardens, publicado em dois volumes. Nesta obra, Malinowski
concentrou-se na relação entre a magia e as práticas da agricultura
desenvolvida pelos moradores das Ilhas Trobriand, arquipélago
localizado na costa oriental da Nova Guiné.
Há muitos outros aspectos que poderiam ser mencionados
acerca da importância das teorias sobre magia na antropologia. Seria
possível que este texto fosse um exercício de revisitar os autores e
estudos clássicos com ênfase na magia. Porém, este capítulo, em
diálogo com os demais da coletânea, será estruturado a partir de um
trabalho etnográfico para chegarmos no conceito, a magia.
Utilizamos aqui a metodologia da observação participante. O
criador desse método foi Malinowski ao aprender a língua, conviver
intensamente com os povos estudados e abordar a totalidade de
aspectos da vida social na qual tinha interesse. Ouvindo, vendo e
conversando, o antropólogo tenta compreender as características
explícitas e implícitas presentes no contexto em foco. Além das longas
conversas, podem ser realizadas entrevistas com indivíduos
previamente escolhidos, aqueles que são guardiões dos
conhecimentos, autoridades em relação a temas pertinentes à situação
estudada.

215
Debora Simões de Souza

O contexto etnográfico delimitado é o conjunto de narrativas


que contêm possíveis acontecimentos da vida de Santa Bárbara e
Iansã. Essas narrativas foram feitas por devotas, moradoras de
Salvador, na Bahia. Chegamos a este recorte a partir de uma pesquisa
mais longa realizada sobre as comemorações em torno de Santa
Bárbara e Iansã na capital baiana, tema do meu doutoramento. A
grande festa de rua acontece dia 4 de dezembro, no Pelourinho e na
Baixa dos Sapateiros, momento no qual a cidade veste-se de vermelho
e branco para homenageá-las. Este evento festivo tem forte presença
de frequentadores, adeptos e líderes das religiões de matrizes afro-
brasileiras na festa. Indivíduos ligados (em diferentes níveis)
principalmente ao universo do candomblé e também à umbanda
produzem no contexto festivo formas específicas de ocupação do
espaço público, numa dinâmica religiosa complexa que congrega
homenagens à santa e à orixá. A incorporação de entidades na Festa de
Santa Bárbara pode ser concebida como um traço dessa dinâmica
religiosa. A festa estrutura-se a partir de uma missa e procissão. Em
2008 a festa de Santa Bárbara foi registrada como patrimônio imaterial
do Estado pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia
(Ipac), inscrita no livro das celebrações, marcando o reconhecimento e
a importância dessa prática para os baianos e sinalizando a
importância do festejo para a população. Parte significativa do festejo
é organizado pelo grupo de devoção à Santa Bárbara pertencente à
Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos situada no
Pelourinho.

216
Raios e ventos

Nossas análises aqui estão centradas nos textos (nem sempre


escritos) que contam as histórias de Santa Bárbara e de Iansã. Isto é,
trabalharemos com a hagiografia da santa e o conjunto de mitos sobre
Iansã como sendo narrativas mágicas, que são acionadas pelas devotas
e pelos líderes religiosos em diferentes contextos e por eles são
atualizadas. Essas narrativas mágicas são fundamentais no processo
devocional. Vemos claramente como a utilização das narrativas
estabelece e restabelece laços entre a santa e a devota. Ao insistir no
feminino devota e não devoto, estamos considerando que a maioria
significativa de pessoas que têm relações com Santa Bárbara são
mulheres. O grupo é composto, principalmente, por mulheres negras,
que estão tanto no universo religioso do catolicismo como do
candomblé, possuem dupla pertença.
Dois importantes alertas devem ser feitos. Primeiro, a magia
aqui não é categoria nativa e sim categoria analítica. Ou seja, magia é
um conceito antropológico, aplicado aqui como tal e não como
categoria êmica (própria dos sujeitos da pesquisa, que emerge do
grupo social). Segundo, nos distanciamos veemente de qualquer noção
que trata magia como sinônimo de religião. Voltaremos a esse aspecto
mais adiante.

A magia de Marcell Mauss

A teoria da magia construída por Marcel Mauss (2003) nos


ajuda como uma espécie de guia geral. O antropólogo francês indica
que a magia e a religião pertencem ao campo sagrado. Na citação a

217
Debora Simões de Souza

seguir é possível distinguir e definir os agentes da magia e os atos


mágicos.
A magia compreende agentes, atos e representações:
chamamos mágico correspondem aos atos mágicos;
quanto aos atos, em relação aos quais definimos os
elementos da magia, chamamo-los ritos mágicos [...] Os
atos mágicos, e a magia como um todo são, em primeiro
lugar, fatos de tradição. Atos que não o indivíduo que
efetua atos mágicos, mesmo quando não é um
profissional; chamamos representações mágicas as
ideias e as crenças que se repetem não são mágicos
(MAUSS, 2003, p. 55).

Sobre a complexa potencialidade mágica, Mauss (2003, p.


141) explica:
É a ideia de uma força da qual a força do mágico, a
força do rito, a força do espírito são somente as
diferentes expressões, conforme os elementos da magia.
Pois nenhum desses elementos age enquanto tal, mas
precisamente enquanto é dotado, seja por convenção,
seja por ritos especiais, desse caráter mesmo de ser uma
força, e uma força não mecânica, mas mágica. Desse
ponto de vista, aliás, a noção de força mágica é
inteiramente comparável à nossa noção de força
mecânica. Assim como chamamos a força a causa dos
movimentos aparentes, também a força mágica é
propriamente a causa dos efeitos mágicos: doença e
morte, felicidade e saúde etc.

As narrativas sobre a vida de Santa Bárbara e de Iansã são


forças, ou seja, são expressões que se configuram como elementos da
magia. E ainda seguindo a teoria de Mauss, essas narrativas não têm
ação em si mesmas, elas são investidas, pelas devotas, de uma força
mágica que causa, como resultado primeiro, efeito mágico.

218
Raios e ventos

Santa Bárbara

Segundo um conjunto de textos hagiográficos e sermões,


Bárbara viveu2 na Ásia Menor, na cidade de Nicomédia, no século III
(talvez entre os anos 236 e 260). Seu pai, Dióscoro, um homem rico e
influente, mantinha-a presa em uma torre. Porém, certo dia, ele
permitiu que a filha saísse.3 Na ocasião, ela conheceu pessoas que a
apresentaram ao cristianismo e sua conversão foi quase que imediata.
Bárbara contrariava a sua própria família e a sociedade, pois, na
época, a religião cristã era perseguida politicamente.
Determinado dia, seu pai anunciou que inúmeros príncipes
pretendiam casar-se com ela. Muito irada com o anúncio do pai,
recusou-se. Pois seu maior desejo era entregar-se por completo, corpo
e alma, à religião.
Após o anúncio do possível casamento, Dióscoro viajou.
Aproveitando essa oportunidade, a jovem foi olhar a construção de

2 Na compilação da vida dos santos, publicada originalmente no final do século XIX,


Alban Butler ([1883] 1999, p. 173) exibe as contradições e informações falsas
presentes na biografia de Bárbara. “Barónio prefere as actas que nos dizem que ela
foi aluna de Orígenes e que sofreu o martírio em Nicomédia, no reinado de Maximio
I, o qual foi o autor da sexta perseguição geral, em 235. Mas José Assemani mostra
que as actas que nos deixaram Matrafaste e Mombrício são mais exatas e fidedignas.
Estas actas informam-nos de que Santa Bárbara sofreu o martírio, no Egipto, cerca
de ano 306. Este relato conforma-se com a Menologia do Imperador Basílio e com o
Sinaxário Grego”. Vagner Santos (2019), em artigo recente, sistematiza diferentes
versões dos possíveis acontecimentos da vida de Bárbara. Em uma espécie de
cartilha voltada para devotos e sacerdotes, a teóloga Tarcila Tommasi (2014) narra
episódios da vida de Bárbara relacionando-os constantemente a sua conversão e
martírio.
3 Há referências de que ela havia escapado.

219
Debora Simões de Souza

uma nova sala de banho em sua torre, e, notando que só havia duas
janelas, imediatamente pediu que abrissem mais uma. Assim que o seu
pai voltou, desejou saber o motivo disso e ela explicou o que
representavam: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Para muitos, desse
episódio em diante teve início o martírio de Bárbara. Ela foi
denunciada ao imperador pelo próprio pai. Foi presa e torturada a fim
de que negasse a fé cristã, o que não sucedeu. Em consequência, ela
foi condenada à morte em praça pública. Com uma espada, seu
próprio pai arrancou seus seios e, em seguida, degolou-a. Neste
instante, um raio fulminante atingiu-o. E, em função disso, ocorre a
associação da santa com os raios.
Os parágrafos anteriores, os quais apresentaram episódios da
vida de Bárbara, não são importantes por sua veracidade ou não, mas
sim pelas interpretações que as devotas constroem a partir dessas
informações. Em outras palavras, estamos interessados na força
mágica que elas colocam nesses episódios extraordinários. A
excepcionalidade dos episódios da vida da figura sagrada desdobra-se,
para cada devota, num conjunto de possibilidades de interpretação e
de criação de novos sentidos.
A hagiografia é um gênero literário que, de forma geral,
promove o culto aos santos ao contar sua vida. São documentos
escritos que apontam para a exemplaridade da figura religiosa. Já a
biografia dos santos (canonizados ou não) é a ligação das ações, dos

220
Raios e ventos

locais e dos assuntos. Esse tipo de biografia tem uma estrutura


específica, a qual se relaciona, não particularmente com aquilo que de
fato aconteceu, mas com aquilo que é exemplar. Nessa espécie de
escrito, a veracidade dos ocorridos não é comprovada e, em certo
sentido, a verificação não cabe. A vida do santo precisa ser antes
“considerada como um sistema que organiza uma manifestação graças
à combinação topológica de ‘virtudes’ e de ‘milagres”’ (CERTEAU,
2007, p. 266).
Questões sobre o ordinário e o extraordinário na vida dos
santos possuem um léxico próprio dentro da hagiografia (CERTEAU,
2007, p. 266), um universo que oscila entre as virtudes, os milagres e
o martírio que marcam a vida e a morte dos sujeitos canonizados.
Michel de Certeau (2007) trata das múltiplas formas de apropriação
das hagiografias pelos religiosos, diferentes das dos “livros canônicos”
que, segundo o autor, encontravam-se ligados à norma pedagógica do
dogma, “a vida dos santos traz à comunidade um elemento festivo. Ela
se situa do lado do descanso e do lazer. Corresponde a um ‘tempo
livre’, lugar posto à parte, abertura ‘espiritual’ e contemplativa. [...]
Ela ‘diverte’” (CERTEAU, 2007, p. 270). Para o autor, a combinação
do extraordinário com o possível dentro da hagiografia forma uma
“poética do sentido”, narrativas do “tempo livre”, histórias que
preenchiam os tempos de “vacância” dos religiosos. Esse “tempo
alegre” assume as feições de “uma exceção e de um desvio (pela
metáfora de um caso particular), o discurso cria uma liberdade com

221
Debora Simões de Souza

relação ao tempo cotidiano, coletivo ou individual, mas constitui um


não lugar” (CERTEAU, 2007, p. 269-270). O extraordinário e o
possível se relacionam para alicerçar uma narrativa que sempre nos
direciona para a questão da exemplaridade.
As narrativas sobre a vida da santa ganham múltiplas
possibilidades de sentido e as lacunas na biografia viabilizam seu
preenchimento pelos devotos, segundo nos informa Clerc-Renaud
(2014; 2016). A autora, em diálogo com o texto de Certeau citado
anteriormente, afirma que
[...] a descrição das representações locais de santidade
mostra que a prática narrativa da vida do santo [...] é
indissociável das imagens, lugares, temporalidades
extraordinárias, necessárias à compreensão dessas
figuras, construídas sobretudo como princípios de
agenciamento a serviço da ação da história (CLERC-
RENAUD, 2016, p. 42, tradução nossa).

Podemos ver essa lógica em operação, por exemplo, a respeito


da guerra que Santa Bárbara travou. Consonantes diversas narrativas,
ora foi contra o pai, ora contra a sociedade. Ou seja, ela é guerreira
porque enfrentou a força masculina, personificada na figura do pai, em
nome do seu desejo de seguir o cristianismo. Para muitas devotas, a
espada tanto pode ser a arma que o pai da santa usou para executá-la
como símbolo da luta espiritual que ela travou. Esse objeto é ao
mesmo tempo símbolo da tortura sofrida pela santa e da sua força.
Em determinado momento durante as entrevistas realizadas no
trabalho de campo, as devotas começam a citar, em ordem, possíveis
aspectos atribuídos à vida de Bárbara. Nos intervalos, em que citam
pontos altos, como o início do processo do martírio, ou até mesmo o

222
Raios e ventos

final, elas percebem um vento mais intenso (força da natureza


atribuída a ela). Em geral, após o ocorrido, elas complementam: “é
porque estamos falando dela”, ou colocações semelhantes. As
narrativas mágicas não só têm força em si, mas são também forças
motoras, elas movimentam.

Iansã

“Iansã” em iorubá significa mãe de nove filhos. Foi esposa de


Xangô (rei de Oió) e de Ogum (guerreiro e que tem o domínio da
metalurgia) e mãe dos Ibejis. Senhora dos raios, ventos e tempestades.
O fogo é um elemento ligado à ela. Conhecida por sua força e
destreza. No conjunto iconográfico, a divindade, em geral, é
representada como uma mulher negra formosa com curvas acentuadas,
com vestes vermelhas, numa mão sua espada (alfanje) e na outra seu
eruexim (semelhante a um espanador, confeccionado com cabo de
madeira, detalhes em búzios e crina de cavalo) que são suas principais
ferramentas. Adora acarajé e nas grandes festas dos templos de
candomblé os distribui. Também conhecida como Oiá, ela é
denominada de Matamba ou Bamburucema pelos adeptos de
candomblé das nações angola e congo.
Esta síntese foi elaborada a partir de palavras-chave retiradas
do meu caderno de campo, que eu registrava logo após uma conversa
ou entrevista e destacava. Por isso, são ao mesmo tempo

223
Debora Simões de Souza

características gerais e restritas sobre as divindades, uma vez que


foram organizadas a partir das construções discursivas dos
interlocutores desta pesquisa.
“Iansã tem uma energia diferente, é mais agitada, já chega
mostrando para o que veio” e “as filhas de Iansã são mulheres fortes”
– são frases que sintetizam características atribuídas à orixá (também
conhecida como Oiá) e suas filhas. Não pretendemos realizar uma
análise de Iansã e suas variações no complexo universo das religiões
de matrizes afro-brasileiras, mas sim abordá-la a partir das falas das
interlocutoras.
Iansã controla e tem o domínio do vento, da tempestade, do
trovão, do relâmpago, do raio e do fogo. Em Salvador, seu dia é a
quarta-feira e suas cores são o branco e o vermelho. Dizem que ela
possui uma personalidade autoritária e combativa. Xangô foi seu
grande amor, a quem está associada, mas antes dele teve outros
amores. Na Bahia, falaram-me inúmeras vezes que “onde está Iansã
também está Xangô”, e complementaram essa ideia, “não se pode
fazer nada para Iansã que não se faça para Xangô”. Adiante, voltarei a
mencionar a relação entre eles.
Seu caráter guerreiro e seu envolvimento com certos elementos
da natureza estão presentes na compilação de seus mitos (PRANDI,
2001). Podemos denominá-la de Iansã, Oiá ou Matamba (no
candomblé angola). O primeiro nome é de origem iorubá e significa
“senhora dos nove, porque ela tem nove filhos e ela é senhora dos

224
Raios e ventos

nove mundos”, como me explicou o professor Ordep Serra, durante a


nossa primeira conversa.
Do conjunto mitológico que envolve Iansã e seus amores,
selecionamos um mito no qual ela pega os atributos deles. Com
Ogum, Iansã adquiriu o direito de usar a espada; com Oxaguiã, obteve
a posse do escudo; com Exu, conseguiu o direito de usar o poder do
fogo e da magia; com Oxóssi, conquistou o conhecimento da caça. Em
dado momento, aperfeiçoou-se nos ensinamentos sobre magia para
transformar-se em búfalo. Com Logum Edé, conseguiu o direito de
pescar. Depois da conquista e do desenvolvimento dos atributos, Iansã
foi para o reino de Xangô, alcançou o poder de encantamento e o
domínio dos raios (PRANDI, 2001, p. 296-297). Acredito que esta
compilação reflete um tipo feminino acionado pela maioria das
interlocutoras da pesquisa, as quais são filhas de Iansã, isto é, são
mulheres independentes, articuladoras, criativas, batalhadoras, etc.
Na sequência mostraremos dois mitos nos quais ela
transformou-se, no primeiro no rio Níger:
Oiá foi aconselhada a prosseguir sua jornada ao lado do
seu marido Xangô. Enquanto amasse esse homem, não
deveria retornar a Irá, sua terra natal, onde vivia com a
família. Dividida sentimentalmente, Oiá não seguiu as
recomendações e voltou a Irá. Um dia recebeu a notícia
da morte de Xangô. Sentindo grande tristeza pelo
ocorrido, usou seus poderes sobrenaturais e
transformou-se em um rio, Odô Oiá, o rio Níger
(PRANDI, 2001, p. 302).

No segundo, uma outra transformação, dessa vez num elefante:

225
Debora Simões de Souza

Ao dar à luz Oiá, sua mãe morreu e a menina foi criada


por Odulecê, não se sabendo ao certo se este era seu pai
biológico ou adotivo. Aos doze anos, Oiá já era uma
mulher linda e inteligente, que encantava todos os
homens. Nem mesmo seu pai conseguiu sublimar sua
atração por ela. Numa noite, Odulecê quis possuí-la e
ela, desesperada, fugiu de casa. Quanto mais corria,
mais obstáculos lhe surgiam. Oiá não conseguia escapar
de seu pai. No seu desespero, seus poderes sobrenaturais
afloraram e ela transformou-se em pedra, em madeira e
em cacho de dendê. Mas seu pai continuava a
perseguição. Desesperada, Oiá transforma-se num
grande elefante branco, que atacou Odulecê. Odulecê
fugiu em disparada, desistindo de agarrar Oiá
(PRANDI, 2001, p. 302-303).

No candomblé, é possível afirmar que sua “cosmologia se


desdobra em uma mitologia” (GOLDMAN, 2005, p. 109) e em um
conjunto de entrelaçados sistemas de classificação que, de forma
geral, relacionam natureza e sociedade numa filosofia complexa
própria dessa religião e de sua concepção do ser. Sobre as mitologias e
as especificidades dos orixás:
Os mitos apresentam, sobretudo, o caráter polívoco das
divindades: simultaneamente essências imóveis, forças da
natureza (raios, trovões, rios etc.), instituições culturais
(guerra, justiça...), indivíduos que viveram no passado
(reis, rainhas, guerreiros...). E não se trata aqui apenas –
talvez seja preciso advertir – de representações (o raio
representando a orixá Iansã), relações de propriedade (o
mar pertencendo à orixá Iemanjá) ou controle (a doença
sendo provocada e controlada por Omolu), mas de uma
forma muito complexa de agenciamento. Em certo
sentido, o mar é Iemanjá, o raio e o vento são Iansã, e a
doença é Omolu. Natureza, cultura, seres humanos, o
cosmos, tudo parece articulado nesse sistema. Os
componentes desses diferentes planos podem, assim, ser
agrupados em classes de acordo com o orixá ao qual
pertencem, ou seja, de acordo com a modulação de axé
que os constitui (GOLDMAN, 2005, p. 109).

226
Raios e ventos

Um orixá, de forma geral, possui diversas variações. Iansã, por


exemplo, pode ser Iansã Balé4, é a divindade que comanda os Eguns
(espíritos ancestrais) e, por isso, está ligada ao controle do mundo dos
mortos.
Para além das diversas qualidades de um orixá, há também a
relação e constituição das pessoas (tanto indivíduo quanto orixá).
Estas construções estão intimamente ligadas às personalidades e
ajustam-se e reajustam-se no decorrer de uma relação que se espera
ser para a vida toda. Esse ajuste foi descrito por uma ialorixá em um
dos nossos muitos encontros. Na casa de axé, sentada no sofá, ela
falou da ligação com seu orixá, destacando que “a minha Iansã é
assim, calma; e eu sou assim, calma, por causa dela”. Essa
característica da divindade influencia na personalidade da líder
religiosa, que complementa ao dizer que nem sempre ela foi tranquila,
contudo Iansã foi o motivo dessa mudança. Mais uma vez, vemos um
movimento de ajuste entre o orixá e seu filho. Ao longo da vida, o
adepto vai se moldando, se construindo enquanto filho de seu orixá. A
ialorixá está aprendendo a cada dia a ser de Iansã, entretanto não é
qualquer Iansã, é especificamente a dela.

4 Icú Oyá traz a morte, Oyá Onirá está relacionada com Oxum, Oyá Jegbê é a mais
velha, Oyá Padá gera os Eguns, Oyá Jimudá é associada a Oxalá e Oyá Cará é o
fogo (COSSARD, 2008). Bastide (1971, p. 200) apresenta que “cada orixá é
múltiplo: há, por exemplo, doze Xangôs, dezesseis Oxun, dezessete Yansan, vinte e
um Exú”, são alguns exemplos. O autor estabelece um paralelo entre os números dos
orixás com as nações que vieram para o Brasil, na época do tráfico transatlântico de
escravizados. Todavia, a teoria dos algarismos não dá conta de explicar a
complexidade das divindades e também não é o cerne da interpretação do autor, que
está mais interessado nas relações do que nas classificações.

227
Debora Simões de Souza

A relação entre Iansã e seu esposo, Xangô, apareceu em


inúmeras narrativas. Um babalorixá, por exemplo, falou da relação
entre essas divindades:
Iansã é mulher de Xangô, é a esposa mais interessante
do rei de Oió. Teve uma mudança aqui no Brasil da
visão sobre Iansã. Essa visão é absolutamente estranha,
ou melhor, diferente do que se pensa de Iansã na África.
Primeiro, porque ela é um orixá das águas, isso não veio
muito para cá. O nome de Iansã é exatamente uma
menção, é uma referência às nove desembocaduras do
Rio Níger, que é um dos rios mais importantes da região
da Nigéria, e a história dela começa exatamente nessa
travessia, quando ela se apaixona por Xangô. Na
verdade, antes, teve uma briga. Ela era esposa de Ogum,
que vivia nas terras de Xangô. E Xangô, ao passar por
Ogum, viu aquela mulher bonita do diabo e disse assim:
‘é ela, não fica para Ogum não. Ogum é um ferreiro e eu
sou rei’. Então, eles brigaram, eles lutaram na verdade.
Em certo momento, Ogum disse: ‘nós somos irmãos,
vamos deixar para lá, você leva essa mulher, você
merece’. Inclusive na festa de Iansã, com Xangô, há um
ritual de uma dança, é uma coreografia que está bem no
contexto mítico e litúrgico mesmo. Eles dançam
insinuando uma briga e depois se abraçam.

De forma geral, as devotas destacam o casamento entre Iansã e


Xangô, rainha e rei de Oyó, mãe e pai dos Ibejis. Muitas dessas
narrativas mágicas são apresentadas em momentos rituais ou nos
preparatórios rituais. Falar de Iansã, dos orixás de maneira geral, é
chamar o sagrado para perto, é agir com as palavras, é um ato mágico.
De fato, o seguidor do candomblé pode simplesmente
tomar os atributos do seu orixá como se fossem os seus
próprios e tentar se parecer com ele, ou reconhecer
através dos atributos da divindade bases que justificam
sua conduta. Os padrões apresentados pelos mitos dos
orixás podem assim ser usados como modelo a ser
seguido, ou como validação social para um modo de
conduta já presente. Um iniciado pode, ao familiarizar-

228
Raios e ventos

se com seus estereótipos míticos, identificar-se com eles


e reforçar certos comportamentos, ou simplesmente
chamar a atenção dos demais para este ou aquele traço
que sela sua identidade mítica. Mudar ou não o
comportamento não é importante; o que conta é sentir-se
próximo do modelo divino (PRANDI, 1995, p. 16).

As narrativas mágicas mobilizam seres, coisas, fenômenos da


natureza, etc. A organização de acontecimentos que, possivelmente,
ocorreram na vida de Bárbara e Iansã forma uma linguagem
compartilhada entre fiéis e líderes religiosos e por eles também
legitimados. Podemos concluir que, ao falar da santa e da orixá, as
devotas manipulam forças importantes no processo devocional. Falar
também é fazer.

Referências

BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil (2 vols.). São


Paulo: Pioneira. 1971.
BUTLER, Alban. Vida dos Santos. Lisboa: Dinalivro, 1999.
Certeau, Michel de. A escrita da história. Tradução de Maria de
Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
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créolisation d’histoires de saints. Brésil (Nordeste). In: Cahiers de
littérature orale [En ligne], v. 80, p. 21-51, 2016.
CLERC-RENAUD, Agnès, À l’épreuve des certitudes: récits d’une
sanctification locale (Ceará, Brésil). In: Social Compass, v. 4, n. 61, p.
524-536, dez. 2014.
COSSARD, Gisèle Omindarewá. Awó: o mistério dos orixás. 2ª. Ed.
Rio de Janeiro: Pallas, 2008.
FRAZER, James George. La rama dorada. Magia y religión. México,
D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1996.

229
Debora Simões de Souza

GOLDMAN, Marcio. “Formas do saber e modos do ser: observações


sobre multiplicidade e ontologia no candomblé”. In: Religião e
sociedade, v. 25, n. 2, p. 102-120, 2005.
MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. Tradução de Paulo
Neves. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
PRANDI, Reginaldo. Deuses africanos no Brasil contemporâneo:
introdução sociológica ao candomblé de hoje. Horizontes
Antropológicos. Porto Alegre, n.3, p. 10-30, 1995.
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia
das Letras. 2001.
MALINOWSKI, Bronislaw, Coral gardens and their magic. A study
of the methods of tilling the soil and of agricultural rites in the
Trobriand Islands, London, George Allen & Unwin Ltd., 1966.

230
Mulheres encantadas e os lagos mágicos: as
estatuetas femininas das estearias do Maranhão
Alexandre Guida Navarro1
Os que devem comparecer ao festim reúnem-se todos no
dia designado. Já na véspera, à noite, começam a
preparar-se, vestindo seus mais belos adornos de penas
de variegadas côres e dançando em tôrno de suas casas,
com seus maracás nas mãos, cantando e pulando sem
cessar (D’ABBEVILLE, 2008 [1614], p. 238).

Introdução

O tema das estatuetas na Arqueologia é fascinante. Por


definição, uma estatueta é uma escultura de pequenas dimensões
confeccionada em cerâmica, osso, marfim ou em lítico, sendo um
artefato mobiliário, ou seja, que pode ser transportado (EMBER et al.,
2004).
Geralmente, as estatuetas são femininas e por isso apresentam
um amplo significado semântico que está associado desde as correntes
teóricas mais conservadoras, como a associação com o erotismo ou
fecundidade, até posicionamentos feministas que as colocam como

1 Professor Associado III do Departamento de História (DEHIS) do Programa de


Pós-Graduação em História Social (PPGHIS) da Universidade Federal do Maranhão
(UFMA), do Programa de Pós-Graduação em Diversidade Sociocultural (PPGDS)
do Museu Paraense Emilio Goeldi (MPEG), líder do Grupo de Pesquisa Religião,
História e Cultura Material (REHCULT) e bolsista de produtividade do CNPq nível
2 (processo 303620/2021-8). Mestre em Arqueologia pelo Museu de Arqueologia e
Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE/USP), doutor em Antropologia pela
Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM) e possui dois pós-
doutoramentos: um pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) em 2008
e outro na University of Illinois at Chicago em 2017, onde foi, também, Professor
Visitante com bolsa da Fulbright Institution (modalidade Visiting Professor Award).

231
Alexandre Guida Navarro

representações de chefes políticas. Deste modo, o estudo das


estatuetas é uma agenda atual, sobretudo pelo teor político que carrega
consigo, evidenciando o papel do gênero na formação política
contemporânea mundial.
Este texto nasce de uma reflexão após seis trabalhos de campo
nas estearias maranhenses de onde foram coletados 74 exemplares de
estatuetas inteiras e fragmentadas. As estearias são sítios
arqueológicos formados por palafitas erguidas dentro de rios e lagos e
que serviam de sustentação para os pilares ou esteios de madeira das
aldeias indígenas, um tipo peculiar de ocupação pré-colonial na região
conhecida como Baixada Maranhense, a aproximadamente 200 km da
capital do estado, São Luís (NAVARRO, 2017a, 2017b, 2018a, 2018b,
2020) (Figuras 1 e 2). Construídas desde o início da era cristã até o
século XIII, estes sítios arqueológicos vêm ganhando repercussão na
arqueologia brasileira por causa da boa preservação do material que se
encontra em meio à turfa do leito aquático onde foram descartados
(NAVARRO, 2018b).
Estudos arqueológicos realizados por Navarro desde 2014
demonstram que estes assentamentos não são simples acampamentos
como até então se pensava. A grande quantidade de artefatos com
marcas de fuligem e cocção evidenciam uma ocupação de longa
duração (NAVARRO, 2018a). A existência de muiraquitãs nesses
sítios, como o exemplar coletado por Navarro (2017a) no sítio Boca
do Rio em 2014 e aqueles coletados por Raimundo Lopes (1924) e

232
Mulheres encantadas e os lagos mágicos

estudados por Navarro e Prous (2020) no Museu Nacional antes do


incêndio que o consumiu, corroboram para a vida sedentária destes
grupos, uma vez que indicam o comércio de longa distância entre
viajantes do Baixo Amazonas e, possivelmente, das Antilhas e Caribe.

Figura 1: Mapa com a localização das estearias do rio Turiaçu. Acervo


LARQ-UFMA.

Figura 2: Estearia do Cabeludo na época da seca, ainda com lâmina de água.


Fotografia Acervo LARQ-UFMA.

233
Alexandre Guida Navarro

Práticas universais da representação de estatuetas

As estatuetas vêm sendo estudadas com recorrência, haja vista


o recente manual The Oxford Handbook of Prehistoric Figurines,
organizado por Timothy Insoll (2017). Talvez as mais famosas
estatuetas sejam as “estatuetas de Vênus” do Paleolítico Superior
europeu, ca. 30.000 anos atrás. Geralmente foram confeccionadas de
rocha calcária sendo a de Wilendorf, atualmente depositada no Museu
de História Natural de Viena, Áustria, a sua maior expressão. Outras
foram feitas de osso e marfim, refletindo uma arte relacionada com os
caçadores glaciares (MARINGER, 1989). Esses artefatos suscitam
ainda calorosas discussões e são uma evidência de como os usos do
passado vão se delineando ao longo do tempo.
A associação com a sexualidade é uma vertente mais
tradicional nos estudos e vem sendo criticada por seu discurso acrítico,
sendo que a própria designação vênus tem uma conotação erótica
(MARINGER, 1989). Nelson (2001), só para citar um caso, sugere
que as estatuetas foram elaboradas para fins de prazer masculino, um
“pin-up” feminino associado ao erotismo. Nesse sentido, as estatuetas
seriam como vasilhames com a função de abrigar o esperma
masculino com o objetivo de prover novos seres humanos.
No entanto, segundo Nakamura e Meskell (2019), os estudos
focados nas estatuetas do Neolítico da Europa em sua maioria são
visões ocidentalizadas da mulher enquanto metáfora de sexualidade e
fertilidade. Dentre essas acepções estão a evocação de “deusa mãe”,

234
Mulheres encantadas e os lagos mágicos

em que esses artefatos são vistos como evidência de veneração divina


utilizados em rituais ou cultos levados a cabo por essas sociedades
neolíticas. Uma vez que a mulher é a progenitora, dentro do contexto
tradicional, as estatuetas poderiam representar, portanto, a
materialização da reprodução feminina e, por extensão, do lar. Para as
autoras em questão, as estatuetas de Çatalhöyük não foram
encontradas majoritariamente em habitações domésticas e sim em
templos, e representariam não corpos individuais de mulheres, mas
sim “body kind”, ou seja, puderam ser utilizadas como instrumentos
de narrativas coletivas, de jogos ou ainda como instruções. Portanto,
as estatuetas não seriam manifestações da fertilidade feminina. Elas
contariam, portanto, a história daquele grupo e legitimavam, desse
modo, as experiências sociais e memória identitárias vivenciadas pelos
moradores da cidade ao longo do tempo.
Na Mesoamérica as estatuetas existem em praticamente todos
os sítios arqueológicos. O repertório é muito grande, mas, em geral,
esses artefatos revelam seres em movimento representando musicistas,
guerreiros, elite com rica indumentária acrobatas, xamãs com
máscaras rituais ou com o par enamorado, cenas de amamentação e
crianças brincando com animais de estimação (LESURE, 1999;
JOYCE, 2005). Ou seja, representam seres individuais, “retratos
únicos” de múltiplas identidades do modo de figurar o corpo (JOYCE,
2005). Nesse sentido, o corpo é a forma mais visual de se construir a
identidade, assim, ornamentos, postura, modificação corporal
representam a habilidade de vestir uma “pele social”, construindo uma

235
Alexandre Guida Navarro

autoidentificação da sociedade que se define pelos diferentes grupos


sociais aos quais os diferentes indivíduos negociam suas identidades
(FISHER; LOREN, 2003).
Já no Caribe um dos mais importantes estudos sobre as
estatuetas é o dos arqueólogos María Magdalena Antczak e Andrzej
Antczak (2006), que produziram um volumoso livro sobre esses
artefatos. Seus trabalhos de campo no arquipélago de Los Roque, no
Caribe venezuelano, proporcionaram a descoberta de uma grande
quantidade de estatuetas-chocalho ou ocarinas datadas entre os séculos
IX e X EC A forma de figurar o corpo nesses artefatos parece
evidenciar a importância do gênero que está bem marcado nos corpos
produzidos. A obra de Arroyo et al. (1999) também mostra as
estatuetas como uma rede de relações sociopolíticas e econômicas,
traços esses observados nas culturas do istmo panamenho e nas
amazônicas.
Na América do Sul, tanto nas terras altas como nas baixas, o
repertório de produção de estatuetas cerâmicas também é extenso. As
mais antigas estatuetas pertencem à cultura Valdívia (3500 a 1500
a.C.). Foram confeccionadas tanto em pedra quanto em cerâmica. A
maioria das ocorrências é do sexo feminino com genitália e seixo à
mostra e se destaca a frequente quebra intencional dos artefatos,
indicando, segundo Blower (2001), seu uso em rituais domésticos.
Já as estatuetas La Tolita, na costa equatoriana e colombiana,
estão associadas a cultos em que são representados personagens de

236
Mulheres encantadas e os lagos mágicos

prestígio e seres mitológicos. Algumas são antropozoomorfas,


possuem o corpo humano em que se destaca um rico peitoral com
adornos e com a cabeça de felino, sendo esse animal a metáfora de
poder, um atributo bastante conhecido na América pré-colombiana em
geral. As estatuetas de Jama-Coaque, no Equador, por sua vez,
ostentam pessoas de algum rango que portam uma elaborada
indumentária formada por tocados decorados com pássaros e gêneros
alimentícios, especialmente as leguminosas, máscaras faciais,
peitorais, brincos e adornos para o nariz. A posição sentada em bancos
cerimoniais atesta a cena de poder em que os indivíduos são imbuídos.
Vale aqui citar um exemplo de figurar o corpo em práticas
mortuárias de crenças na vida após a morte. Chamam à atenção as
estatuetas de cerâmica femininas e masculinas associadas às cenas de
veneração dos ancestrais que predominam entre os Chimus (1000 a
1450 EC) (LAU, 2008). Geralmente os indivíduos representados estão
em procissão em direção a uma múmia apresentando-lhe um
prisioneiro de guerra que será sacrificado. Tanto na costa como nos
Andes setentrionais, centrais e meridionais (i.e Moche; Gallinazco;
Nazca) as estatuetas de cerâmica, muitas delas fabricadas em larga
escala através de moldes, se apresentam dentro de práticas rituais que
legitimam o status quo do poder estatal e definem, também, as
identidades que agenciam os mortos esse complexo cultural
(BOURGET, 2001; Donnan, 2004).

237
Alexandre Guida Navarro

Indo para a costa atlântica, é necessário deter-se nas estatuetas


das terras baixas da Venezuela, Suriname e Guianas. Na região do
Orinoco, Venezuela, as estatuetas estão presentes nas três fases que
definem a sequência cronológica dessa área: Saladoide, Barrancoide e
Arauquinoide (CRUXENT; ROUSE, 1982). Grande parte desses
artefatos aparece na fase Comoruco (800-1000) e foram estudados por
Roosevelt (1980, 1997) na região de Parmana e Corozal. Geralmente
esses artefatos são marcados pelo gênero sendo, em sua maioria,
femininas com os olhos, narizes e bocas formadas por uma incisão, às
vezes há a presenças dos olhos em forma de grãos de café.
Nas Guianas a cultura arauquinoide Hertenrits (700 EC)
caracterizou-se pela construção de mounds, campos cultivados,
comércio de longa distância, cerâmica de tradição Inciso-Ponteada e
atividade ritual em que se destacam as estatuetas. Elas são parecidas
com as da Venezuela: são mulheres, com o braço fletido na região do
abdômen sem o vão entre os braços e o corpo, têm seios, vulva,
umbigo, algumas parecem estar grávidas e outras parecem que
sofreram decapitação ritual (ROSTAIN, 2008). No Suriname, a
maioria das estatuetas é feminina e também pertence à cultura
Hertenrits, que, segundo Versteeg (2008) são chocalhos usados em
cerimônias religiosas.
Percebe-se, portanto, nessa breve incursão que as narrativas
construídas sobre as estatuetas são realizadas sobre as ontologias do
corpo, sendo que a agenda mais importante nos estudos

238
Mulheres encantadas e os lagos mágicos

contemporâneos é a fabricação dos corpos e as identidades sociais por


eles produzidas.

Aterrissando na Amazônia brasileira

Na Amazônia brasileira, quase todos os estudos sobre


estatuetas foram feitos exclusivamente por mulheres, indicando uma
importante agenda política: Helen C. Palmatary (1950, 1960),
Conceição G. Correia (1965), Anna C. Roosevelt (1988, 1991), Denise
Schaan (2001a, 2001b, 2009), Denise Gomes (2001, 2019) e Cristiana
Barreto (2009, 2014, 2017), centrando-se nas duas sociedades pré-
coloniais com maior destaque: Santarém e Marajó.
Segundo Palmatary (1950, 1960), as estatuetas santarenas se
diferenciam das marajoaras pelo fato de as primeiras serem mais
variadas, representando tanto o sexo masculino quanto o feminino,
que as femininas não possuem pés sugerindo que estão sentadas e que,
quando colocadas de cabeça para baixo, formam uma base em forma
de meia lua crescente a extremidade da base pontiaguda. Nas de
Marajó, as estatuetas femininas estão agachadas sendo que os joelhos
são mais proeminentes e, embora as bases também formem uma meia
lua crescente quando colocadas de cabeças para baixo, diferentemente
das santarenas, as marajoaras as têm mais arredondadas.
No catálogo de estatuetas confeccionado por Conceição Correa
(1965), a autora analisa a morfologia e o aspecto decorativos de 119

239
Alexandre Guida Navarro

das estatuetas. Destaca que à diferença das peças marajoaras, as


estatuetas de Santarém são caracterizadas pelo “realismo da
modelagem manifestado na reprodução de posturas e gesto dos
personagens que tentavam retratar” (CORREA, 1965, p. 7).
Os estudos de Anna C. Roosevelt (1988, 1991) foram
inovadores no sentido de que introduzem o conceito de complexidade
social às sociedades amazônicas, uma vez que até então essa
complexidade era atribuída ao difusionismo andino na região
(MEGGERS, 1957). Para essa autora, as estatuetas podem revelar
aspectos importantes da organização social e da ideologia das
sociedades pretéritas. Destaca-se que a maioria são mulheres
ornamentadas e grávidas, com a genitália e seios à mostra, algumas
são “eróticas”, possuem forma fálica e a maioria provém de contexto
doméstico, refugo ou enterramento. Segundo a autora, esses aspectos
exaltam as qualidades de fertilidade e maternidade em sociedades de
tipo cacicado ou estados incipientes.
Para Schaan (2001) os estudos sobre as estatuetas da Amazônia
acompanham a discussão mundial sobre seu ressignificado. Ou seja,
esses artefatos não seriam somente exemplos de fertilidade e
matriarcado, mas proporcionam uma agência de representação de
individualidades dentro de um contexto de desigualdade social. Assim,
essa autora propõe que as estatuetas marajoaras “devem ser entendidas
como objetos simbólicos relacionados a discursos contextuais sobre

240
Mulheres encantadas e os lagos mágicos

identidade social e gênero” (SCHAAN, 2001a, p. 3) ligadas a rituais


funerários.
Essa posição social de destaque da mulher também foi
postulada por Gomes (2001). Baseando-se em registros etnohistóricos,
como na obra de Betendorff, essa autora destaca o papel feminino
proeminente na sociedade tapajônica, que pôde ter tido uma
organização matrilinear. A autora discorre sobre os ornamentos dessas
estatuetas, indicando a existência de masculinas também. Assim como
Schaan (2001), Gomes pensa que esses artefatos representam
indivíduos em sua posição social que são indicados pelo tipo de
adereços que usam, assim como os cocares Bororo como distinção de
status social. Nesse sentido, a pintura preta aplicada ao corpo, os
brincos e adornos capilares formados por pedras verdes de tipo
muiraquitã, típicas das sociedades da Tradição Inciso-Ponteada,
poderiam indicar “an adolescent female whose eleganted, enlongated,
pierced ear lobes perhaps inidicate her status in the community as a
member of a prestigiuos lineage” (GOMES, 2001, p. 140).
Em recente trabalho, Barreto (2014) analisou 86 estatuetas
marajoaras e santarenas procedentes de várias coleções definindo
como principal atributo a corporeidade representada nos artefatos. A
discussão sobre gênero também é realizada por Barreto que ratifica o
estudo anterior de Schaan de que as estatuetas são fálicas com a
diferença de que para ela uma estatueta é “um falo humanizado, e não
um corpo em forma de falo” (BARRETO, 2014, p. 51) porque uma
das primeiras concepções da cadeia operatória é o próprio falo. A

241
Alexandre Guida Navarro

autora realizou até mesmo Raio X das peças que evidenciou uma
surpresa forma de falo do preenchimento interno de uma estatueta.
Cabe ressaltar, por último, as etnografias da produção de
estatuetas nas terras baixas da América do Sul (STAHL, 1986) e,
sobretudo, ao que diz respeito às bonecas Karajá como referência de
transmissão de saberes e não somente brinquedos (CAMPOS, 2002),
que, mesmo não estando na Amazônia, contribuem para o amplo
significado que esses artefatos tiveram.

A fabricação dos corpos na Amazônia: metodologia


de estudo

Como metodologia de estudo, o enfoque se dá através do


conceito etnológico das terras baixas da América do Sul, focado na
fabricação dos corpos ou da “social skin” definida por Turner (1980).
As artes visuais, nesse sentido, são uma maneira de ordenação das
práticas rituais (LAGROU, 2007). Arqueólogos cada vez mais
utilizam as teorias antropológicas e a etnografia para ratificarem seus
argumentos. Embora aplicar essas teorias etnológicas ao registro
arqueológico possa ser interpretado com anacronismo, a agência
destes artefatos também pôde desempenhar funções semelhantes no
passado, como salientou Barreto (2017).
Desse modo, Seeger et al. (1979, p. 2) consideram a
corporalidade uma linguagem simbólica em que “a noção de pessoa e
uma consideração do lugar do corpo humano na visão que as

242
Mulheres encantadas e os lagos mágicos

sociedades indígenas fazem de si mesmas são caminhos básicos para


uma compreensão adequada da organização social e cosmologias
dessas sociedades”. Nesse sentido, as identidades sociais, assim como
as diversas manifestações culturais das sociedades indígenas, como os
mitos, cerimônias, ancestralidade, são construídas sobre os seus
corpos. Os corpos são instáveis, transformacionais, agenciados, por
isso são fabricados. O corpo nesse contexto é constituído como uma
diversidade tangível da vida material e imaterial em que o corpo físico
“não é a totalidade de corpo; nem o corpo a totalidade da pessoa”
(SEEGER et al. 1979, p. 11). O corpo é, portanto, o local da vivência
social.
Neste sentido, o corpo adquire diversos significados
semânticos caracterizados por uma ontologia chamada de
multinaturalismo ou perspectivismo por Viveiros de Castro, em que “o
mundo é habitado por diferentes espécies de sujeitos ou pessoas,
humanas e não humanas que o apreendem segundo pontos de vista
distintos” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002). Assim, a corporalidade
implica na fluidez cosmológica dos seres dependendo da agência a que
estão submetidos, sendo eles pessoas, animais, seres sobrenaturais ou
coisas.
No que tange à aplicação das teorias etnológicas à
Arqueologia, os materiais arqueológicos, como os vasilhames e as
próprias estatuetas cerâmicas podem ser interpretados como corpos
humanos ou de animais, uma vez que muitos deles possuem traços da
corporalidade física desses seres, como os olhos e boca, sendo alguns,

243
Alexandre Guida Navarro

inclusive, dotados de alma e consciência podendo ser agenciados


como pessoas (SANTOS GRANERO, 2012; BARRETO, 2014).
Nesse sentido, o corpo é o lugar da experiência vivida, que é
compartilhada pelo grupo, gerando identidades sociais, pois “Today,
the body as a site of lived experience, a social body, and site of
embodied agency, is replacing prior static conceptions of an
archaeology of the body as a public, legible surfasse” (JOYCE, 2005,
p. 139).

Resultados e discussão

Os sítios pesquisados que sofreram intervenção a partir de


coleta de superfície foram Armíndio (ARM), Boca do Rio (BR),
Caboclo (CAB), Lago do Sousa (SOU), Cabeludo (CBL) e Formoso
(FOR), localizados na bacia hidrográfica do rio Turiaçu e o último foi
encontrado na bacia do Mearim-Pindaré. Todos estes sítios estão
datados entre 800 e 1000 AD, sendo o Lago do Souza uma exceção,
datado do início da era cristã.
Ao todo, portanto, o corpus de estatuetas apresentadas neste
artigo corresponde a 74 exemplares, sendo 62 antropomorfos, quatro
antropozoomorfos e oito zoomorfos. Com relação à metodologia de
coleta de superfície, à medida em que os esteios eram mapeados e
georreferenciados, os objetos ao redor dos esteios eram também
coletados, para que se formasse uma coleção arqueológica. Desse
modo, se poderia estudar a variabilidade artefatual desses

244
Mulheres encantadas e os lagos mágicos

assentamentos, buscando criar quadros hipotéticos de ocupação do


território, de inserção na paisagem e das formas dos vasilhames
cerâmicos, com o intuito de inferir os usos sociais (NAVARRO, 2017,
2018a, 2018b; NAVARRO; SILVA JÚNIOR, 2019) (Figura 3).

Figura 3: Coleção de estatuetas do LARQ-UFMA. Acervo LARQ-UFMA.

Embora esses artefatos não tenham sido obtidos a partir de


escavações estratigráficas, há o controle da procedência e do local
exato do registro da planta do sítio, o que pode oferecer subsídios de

245
Alexandre Guida Navarro

análise comparativa entre os sítios arqueológicos, por meio das


diferenças e das semelhanças da variabilidade desse tipo de artefato.
Isso também ocorre na maioria dos casos das coleções de estatuetas
estudadas pelos diversos pesquisadores apresentados neste texto, o
que, portanto, não impossibilita as análises. Ressalta-se, pelos motivos
já descritos, a inviabilidade da descrição de todos os atributos da
variabilidade artefatual. Somente aqueles elementos diagnósticos de
maior destaque tiveram ênfase neste trabalho.
A partir da discussão sobre a arqueologia do corpo, a descrição
contemplou: 1) a variabilidade artefatual tecno-estilística de cada
conjunto identificável pelo; 2) tipo de manufatura, com alusão ao tipo
de queima, se acordelado, alisado, moldado ou modelado, se oco ou
compacto; 3) características técnico-tipológicas, como os tipos de
antiplásticos, se há presença de incisão e excisão, de pintura e demais
elementos constitutivos da peça.
A revisão da literatura acerca das estatuetas amazônicas e a
análise tecno-tipológica e tecno-estilística das estatuetas das estearias
revelam que o corpo parece ter sido um lugar de experimentação
social (JOYCE, 2005).
A maioria das estatuetas figura o sexo feminino e possui
características peculiares no que tange aos aspectos tecno-tipológicos,
como os olhos aplicados em forma de botão, a recorrência do rosto
zoomorfo de coruja e as panturrilhas deformadas pelo uso de adornos

246
Mulheres encantadas e os lagos mágicos

corporais. Chama a atenção a variabilidade desses diferentes modos de


fabricação corporal, que podem ser deformados, metamorfizados,
escarificados ou, ainda, pintados. Sendo assim, essas características
fazem das estatuetas das estearias uma forma inédita de figurar o
corpo na porção oriental da Amazônia.
Os elementos de figuração corporal que se assemelham aos
povos da fase Marajoara parecem pertencer a um conjunto de práticas
de sociabilidade compartilhada. Conforme ressaltou Barreto (2014),
fluxos estilísticos são decorrentes dessas redes de esferas de interação
social. Provavelmente, tanto os povos da fase Marajoara como os das
estearias estavam inseridos em redes de sociabilidade comuns, uma
vez que também compartilharam objetos de pedras verdes, como os
muiraquitãs. Um exemplo deste fluxo estilístico poderia ser o
modelado em forma de T, que aparece na região da sobrancelha e do
nariz das figurações humanas, recorrente nas estatuetas de urnas
funerárias Marajoaras e em alguns exemplares das estearias. Segundo
Mikkola (2020), o T seria o disco facial da espécie Pulsatrix
perspicillata, ou murucututu, uma das maiores aves de rapina da
Amazônia. A sua principal característica corporal em comparação às
demais espécies de corujas é a ausência de grandes orelhas. Trata-se
de uma coruja de grande porte, predadora de hábitos noturnos,
segundo este pesquisador. Observa-se que, neste tipo de estatueta, a
figuração das orelhas também está ausente (Navarro, 2020). Assim,

247
Alexandre Guida Navarro

essa semelhança entre a cultura material de ambas as regiões se refere


às interações sociais existentes entre estes dois povos ameríndios.
Além disso, alguns exemplares, como os evidenciados nas estatuetas
CBL 104 e ARM1 407 possuem um coque atrás da cabeça que é
parecido com aquele usado pelos indivíduos figurados em urnas
funerárias Maracá (MEGGERS; EVANS, 1957). Embora mais tardias,
a figuração das urnas Maracá pode indicar que os povos das estearias
participaram de fluxos estilísticos mais amplos no baixo Amazonas.
A análise formal possibilitou fazer as seguintes comparações:
as estatuetas antropomorfas representam 83,7% da coleção,
geralmente, apresentando mulheres com a figuração do sexo, sendo
alguns desses objetos chocalhos. As estatuetas antropozoomorfas
correspondem a 5,4% dos exemplares e evidenciam, em geral, o ser
humano com cabeça de coruja; e também são chocalhos e nem sempre
trazem a representação do sexo. Já os exemplares zoomorfos
correspondem a 10,8% da coleção e destacam-se pelas figurações de
coruja e macaco.
Esta análise propiciou vislumbrar quatro tipos de fabricação do
corpo: 1) figuração humana individualizada; 2) figuração humana com
pintura corporal, escarificações ou tatuagens e deformações corporais
nas pernas pelo uso de adornos do tipo jarreteira; 3) figuração
transmutacional do corpo, evidenciada pelo hibridismo corporal entre

248
Mulheres encantadas e os lagos mágicos

seres humanos e animais, e capacidade agentiva das estatuetas-


chocalho; e 4) figurações zoomorfas.
Com relação ao primeiro tipo, as estatuetas com figuração
humana que não remetem a características metamorfóricas e agentivas
parecem figurar seres individualizados na sociedade palafítica, assim
como também constatou Barreto (2014) e Schaan (2001a), com base
nas estatuetas marajoaras. Por outro lado, o exemplar FOR (0601)
apresenta pintura corporal abstrata em cor preta, que pode se referir a
status sociais, como o pertencimento a determinados clãs, aos tipos de
rituais ou, ainda, ao pertencimento a grupos sociais específicos
(SCHANN, 2001a; MÜLLER, 2000) (Figura 4). Essa forma de
figurar o corpo refere-se também a um sistema de comunicação visual
que evidencia a socialização dele em práticas culturais de uma
determinada coletividade (VIDAL, 2000b).
Já em relação ao segundo grupo, chamam a atenção alguns
exemplares com uma deformação intencional nas pernas,
possivelmente pelo uso de jarreteiras (Figura 5). A partir da
comparação etnográfica, durante os rituais da menarca entre os
Kalapalo, um grupo Karib, as meninas têm os tendões abaixo do
joelho amarrados, provocando o aumento de volume da perna.
Formam-se, então, bulbos em suas panturrilhas na fase da puberdade,
provocando uma estética agradável para esse grupo indígena (LIMA,
2011).

249
Alexandre Guida Navarro

Figuras 4 e 5: Reprodução da pintura corporal do fragmento FOR (061) e


jarreteiras presentes nas pernas das estatuetas. Fonte: acervo do LARQ-
UFMA.
Este modo de figurar o corpo nas sociedades amazônicas é
construtivista, como bem lembrou Santos-Granero (2012). Nesse
sentido, possivelmente, o significado do conjunto destas estatuetas é o
xamânico, assim como pontuaram Roosevelt (1988), Gomes (2001),
Schaan (2001a, 2001b) e Barreto (2014, 2017) para as estatuetas
amazônicas em geral. Logo, o xamanismo é um “... sistema coherente
de creencias y prácticas religiosas, que trata de organizar y explicar las
inter-relaciones entre el cosmos, la naturaliza y el hombre”
(REICHEL-DOLMATOFF, 1988, p. 23). O xamã, nesse contexto, é
quem tem um conhecimento sensível das ações humanas sobre a
natureza, como os curandeiros e rezadeiros que, a partir das tradições

250
Mulheres encantadas e os lagos mágicos

mitológicas, atuam sobre os cosmos através de danças, cantos e


reuniões coletivas, momentos em que essa narrativa se consagra e se
perpetua na memória social do grupo. Práticas xamanísticas com
estatuetas foram registradas por Basso (1973), entre os grupos Karib e
Arawak; para os mesmos grupos, Carneiro (1982) e Gregor (1977)
etnografaram o uso de estatuetas para o reestabelecimento da saúde do
enfermo. Stahl (1986) atribui a hibridez de seres humanos e animais
das estatuetas xamânicas aos rituais com uso de substâncias
alucinógenas que presenciou na América do Sul, uma vez que “... the
figurines may hav served as mundane abodes for summoned spitits
within the contexto of an analogous prehistoric religion” (STAHL,
1986, p. 146).
As estatuetas-chocalho, por sua vez, possuem bolotas de argila
em seu interior, sugerindo o uso como maracás. Zerries (1981, p. 11)
assinala que o maracá sempre foi o instrumento xamânico mais
importante nas culturas das terras baixas da América do Sul não
andinas, uma vez que “... el ruido de las piedritas o semillas en su
interior es interpretado como la voz de los espíritus y las piedras e sí
como su manifestación”. O maracá, portanto, faz parte da parafernália
xamânica porque é capaz de emitir som, forma de comunicação
presente entre os diferentes mundos onde o xamã atua. Esses
instrumentos sonoros estão presentes em grande parte dos registros
etno-históricos do período colonial na região do Maranhão, a exemplo
das obras de Daniel (2004), D’Abbeville (2008 [1614]) e D’Évreux

251
Alexandre Guida Navarro

(2007 [1864]), e também foram etnografados por antropólogos do


início do século XX (NIMUENDAJÚ, 1941), como observam alguns
relatos, por exemplo o que segue, neste caso, entre os Tupi do
Maranhão:
Para dançar usam apenas a cantoria. Para observar a
cadência e marcar o compasso, usam um instrumento ou
chocalho chamado maracá; é feito de um fruto pequeno,
alongado e semelhante a um melão de tamanho médio,
mas inteiramente liso; esse fruto cresce na região, e
dentro dele colocam os índios inúmeros grãozinhos
pretos e muito duros (D’ABBEVILLE, 2008 [1614], p.
237).

Em uma análise feita por meio de microscópio de varredura


RAMAN, pôde-se perceber que, dentro da estatueta-coruja
correspondente ao exemplar ARM1 454 foram colocadas sete
pequenas bolotas de argila dentro de sua cabeça (Figura 6). Chama a
atenção a forma de confecção do artefato. Obedecendo à tecnologia de
modelado empregada, a colocação das bolotas de argila na cabeça do
exemplar deveria ter ocorrido através da base da cabeça, que depois
seria fechada. Mas a microscopia de varredura RAMAN mostrou que
as bolotas foram introduzidas pela boca, após a base da cabeça ter sido
selada. Por que a boca? Entende-se que esse processo não obedeceu à
tecnologia esperada, e sim ao cognitivo, cuja boca é uma das
expressões do poder xamânico, um tubo sinestésico por onde a energia
viaja. Desse modo, o poder de cura se dá também pela fala do xamã.
Nesse sentido, sobre os pajés no Maranhão colonial, D’Évreux (2007
[1864], p. 237) relatou que “. . . seu instrumento é somente a voz, tão
estranha aos que não estão acostumados”.

252
Mulheres encantadas e os lagos mágicos

Figura 6: Análise com RAMAN em estatueta evidenciando bolotas de argila


em seu interior, colocadas pela boca. Acervo LARQ-UFMA.

Conclusão

Este texto apresentou uma análise das estatuetas das estearias


maranhenses. A análise tecno-tipológica e os modos de fabricar o
corpo das estatuetas dos povos das estearias revelaram uma história de
longa duração, que começa no início da era cristã e se estende até o
ano 1000.
A partir de uma perspectiva arqueológica regional, apesar da
semelhança com o modo de figurar estatuetas com os povos da fase
Marajoara, aquelas das palafitas parecem constituir um estilo mais
local e próprio. Nesse sentido, alguns traços compartilhados, como o
modelado em forma de T na fronte de alguns exemplares, revelam

253
Alexandre Guida Navarro

movimentos de fluxos estilísticos que estavam operando entre esses


grupos. Tais traços possivelmente não se restringiram à ilha de Marajó
e parecem estar presentes também em uma esfera de interação social
entre diversos povos indígenas que ocuparam o baixo Amazonas.
Os sítios de estearias parecem compreender uma sociedade
homogênea do ponto de vista cultural e com identidade bem definida.
Os elementos tecno-tipológicos e estilísticos apresentados, como a
presença do antiplástico de caco moído em todos os exemplares
estudados, ratificam essa unidade cultural, como vem afirmando
Navarro (2018a, 2018b). Assim, o modo de fabricar o corpo entre os
povos das estearias está em consonância com a ontologia cosmológica
amazônica, que recai sobre o perspectivismo ameríndio e o animismo.
A maioria das estatuetas pertence ao sexo feminino. Seus
corpos podem ser pintados, intencionalmente deformados ou, ainda,
metamorfizados. Nesse sentido, são fabricados de acordo com a
agência da pluralidade de seres que atuam no cosmos, sendo eles
humanos, não humano, híbridos e, ao que parece, também
sobrenaturais, revelando a importância do xamanismo.
Outrossim, a maioria das estatuetas da coleção do LARQ-
UFMA é antropomorfa. Esses exemplares figuram seres
individualizados, como as mulheres que possivelmente utilizaram
adornos do tipo jarreteiras para deformar as panturrilhas. Assim como
foi descrito pela comparação etnográfica, as mulheres Karib
praticavam essa deformação corporal em rituais de puberdade. As

254
Mulheres encantadas e os lagos mágicos

estatuetas antropozoomorfas parecem evidenciar processos de


metamorfose corporal. As estatuetas-chocalho podem ter sido
utilizadas em rituais xamânicos de cura, assim como também revelou
a analogia etnográfica. O som parece ter tido um poder agentivo
importante.
Já as estatuetas híbridas, com traços humanos e não humanos,
também podem evidenciar os modos transmutacionais de figurar o
corpo de diferentes seres que povoaram distintos mundos, as quais
podem aludir à própria transformação corporal do xamã para alcançar
essas esferas a partir do uso de alucinógenos.
Finalmente, a variabilidade artefatual composta pelas
estatuetas dos povos das estearias parece figurar os traços identitários
que foram fabricados no corpo, local da vivência social. Nesse
sentido, as estatuetas femininas legitimam a história das memórias
coletivas dos lagos mágicos e encantados do Maranhão.

Agradecimentos

Gostaria de agradecer à minha maior incentivadora para


escrever este artigo, a Profa. Dra. Anna C. Roosevelt, da University of
Illinois at Chicago. À Dra. Flávia Marquetti pelo convite para
participar da obra. Agradeço ao Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (IPHAN), pela autorização e pelas renovações da
coleta arqueológica, através do processo 01494.000442/2013-37. A
Fullbright Commission, pela bolsa concedida na modalidade Visiting

255
Alexandre Guida Navarro

Professor Award, na University of Illinois at Chicago. Às instituições


onde pesquisei: Smithsonian Institution (Washington), Penn Museum
(Filadélfia) e American Museum of Natural History (Nova York), onde
pude consultar as estatuetas marajoaras e santarenas. À Fundação de
Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do
Estado do Maranhão (FAPEMA), pela concessão de diversos editais
que fomentaram as pesquisas das estearias. Ao Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pela bolsa de
produtividade (processo 303620/2021-8). Ao Prof. Dr. Heimo Mikolla,
zoólogo da University of Eastern Finland, quem me ajudou na
identificação da espécie Pulsatrix perspicillata, que figura várias
estatuetas zoomorfas e antropomorfas. Aos Profs. Drs. Taran Grant e
Miguel Trefault, zoólogos da Universidade de São Paulo (USP), pela
análise de varredura em microscopia RAMAN. Ao museólogo Helder
Bello de Mello (LARQ-UFMA), pelo zeloso trabalho de catalogação
das peças. À Mayara Dias, colaboradora do LARQ-UFMA, pelo
esmero no trabalho de diagramação das estatuetas.

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262
O uso da magia egípcia no ensino: os amuletos
em sala de aula
Raquel dos Santos Funari1

Introdução

A magia pode ser considerada um dos temas mais


controversos. Neste capítulo, discuto o uso de amuletos egípcios
antigos para o ensino fundamental e médio e para o público em geral.
Começo por inserir a magia no contexto da religiosidade, para chegar
aos amuletos. Em seguida, discuto como os amuletos em acervos
podem estar a serviço da educação e do convívio, a partir da
Arqueologia Pública e da Educação Pública. A partir do acervo do
Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo
(MAE-USP), apresento quatro amuletos por sua relevância e
ubiquidade: ankh (vida), djed (coluna vertebral da vida), escaravelho e
olho de Hórus. Apresento as particularidades criativas desses amuletos
e mostro como podem ser usados no ensino formal e informal, por
meio de atividades lúdicas, para propor o convívio, frente à destruição.
Concluo por tornarmos os amuletos vivos para a cooperação e o
convívio frutífero.

1 Licenciada em História pela Faculdade de Filosofia de Belo Horizonte (1986),


mestre (2004) e doutora (2008) em História também pela Unicamp, em curso de
excelência. Atualmente é líder do Grupo de Pesquisa do CNPq, cadastrado na
Unicamp, sobre Ensino de História, pós-doutora também no Departamento de
História da UFPR (2017/19), sob supervisão da Profa. Dra. Renata Senna Garraffoni.
Pós-doutorado no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo
(MAE-USP), desde 10/03/2021, sob supervisão de Vagner Carvalheiro Porto.

263
Raquel dos Santos Funari

Religiosidade, magia, amuletos

Como tratar da magia na sala de aula? As crianças sempre


estão ávidas pelo tema, a família nem sempre: sem família e
comunidade o ensino encontra obstáculos às vezes intransponíveis.
Isso é tanto mais válido, quanto a magia, no senso comum, pode vir
carregada de preconceitos, confundida com a magia negra:
Prática na qual se invoca a intervenção dos espíritos
maus, principalmente do demônio, para causar o mal a
outrem (Dicionário Michaelis, 2022).

Ou feitiço, de acordo com o Houaiss (2001):


Utilização de hipotéticas forças mágicas, com
finalidades divinatória e intenções malfazejas.

Nessas definições, aparecem conceitos como espíritos maus e


demônio, que podem ser relacionados a passagens bíblicas como esta:
E desceu a Cafarnaum, cidade da Galiléia, e os ensinava
aos sábados.
E admiravam a sua doutrina porque a sua palavra era
com autoridade.
E estava na sinagoga um homem que tinha o espírito de
um demônio imundo, e exclamou em alta voz,
Dizendo: Ah! que temos nós contigo, Jesus Nazareno?
Vieste a destruir-nos? Bem sei quem és: O Santo de
Deus.
E Jesus o repreendeu, dizendo: Cala-te, e sai dele. E o
demônio, lançando-o por terra no meio do povo, saiu
dele sem lhe fazer mal.
E veio espanto sobre todos, e falavam uns com os
outros, dizendo: Que palavra é esta, que até aos espíritos
imundos manda com autoridade e poder, e eles saem?
E a sua fama divulgava-se por todos os lugares, em
redor daquela comarca (Lucas 4:31-37, Tradução
Almeida, 2009, corrigida).
A associação com o Egito Antigo também está explicitada no
Êxodo:

264
O uso da magia egípcia no ensino

Então Moisés e Arão foram a Faraó, e fizeram assim


como o Senhor ordenara; e lançou Arão a sua vara
diante de Faraó, e diante dos seus servos, e tornou-se em
serpente.
E Faraó também chamou os sábios e encantadores; e os
magos do Egito fizeram também o mesmo com os seus
encantamentos.
Porque cada um lançou sua vara, e tornaram-se em
serpentes; mas a vara de Arão tragou as varas deles
(Êxodo 7:10-12, Tradução Almeida, 2009, corrigida).

Neste contexto, antes de chegar a como tratar dos amuletos


mágicos egípcios antigos, é necessário introduzir estudantes e
familiares ao tema. Sem isso, corre-se o risco de rejeição ou mesmo
hostilidade, não só contraproducente, como mesmo deletéria, ao
reforçar preconceitos ou estereótipos e ao dificultar o convívio social
da diversidade de ideias e comportamentos. Convém começar com os
termos mais difundidos: fé e crença, de onde fiéis e crentes, as
palavras mais usadas pelas pessoas. Ambas se ligam à confiança, fé
(fides, em latim, fidelidade), fiel (confiante), crença (credo, em latim,
dou o coração, confio, creio), crente (o confiante). Esses conceitos
referem-se, na origem e no dia-a-dia, à relação entre seres humanos, a
sentimentos necessários para que as pessoas possam conviver. A
confiança na palavra dada, no comportamento prometido, no respeito
contratado está na base da vida humana em sociedade. Como já
propunha Aristóteles (Política, 1, 1253, 9-10), o ser humano é um
animal político, que vive na cidade (pólis), convive, o que depende, de
forma direta, da confiança. Destes sentidos humanos, resultantes dos
laços sociais, a confiança pode ser transposta a divindades, espíritos,

265
Raquel dos Santos Funari

forças. Neste aspecto, pode dizer-se que a fé ou crença em relações


extra-humanas está em direta correspondência com a confiança social.
Esta observação inicial é importante, para mostrar que todos somos
fiéis e crentes, que esses são sentimentos humanos universais.
A esses conceitos básicos e de uso cotidiano, fé e crença,
outros são também bem conhecidos e usados, mas de sentidos mais
ambíguos: religião, denominações religiosas ou mesmo igreja.
Religião é o mais amplo e vago, do mais específico (ordem religiosa
beneditina) ao mais genérico (a democracia é sua religião).
Denominação religiosa é um termo meio técnico: luterano, anglicano,
católico romano. Igreja é tão vago quanto preciso: minha igreja é tal
(El shaddai) ou qual (Universal do Reino de Deus), mas também bem
genérico (não faço parte de nenhuma igreja). Essas são as palavras
usadas, no dia-a-dia, por estudantes e famílias, são esses os conceitos
com os quais estudantes e professores devem interagir. Frente a essa
variedade de termos e definições, em potencial conflitivas,
religiosidade pode induzir à convivência. O conflito pode advir da
contraposição entre religiões (cristãos, judeus, muçulmanos), entre
denominações (católicos e luteranos) e igrejas (trotskistas e
anarquistas). Aí pode entrar um conceito desestabilizador:
religiosidade.
Religiosidade é um conceito distante do uso quotidiano, é um
neologismo, como se dizia, um termo inventado e de não tão grande
difusão. Hoje, religiosidade tem sido utilizada em campos tão variados

266
O uso da magia egípcia no ensino

como a Psicologia, a Filosofia, a História ou a Arqueologia e a


Educação, como uma maneira de ser tanto individual, como não
institucional. Individual, na medida em que num mundo de indivíduos,
como o nosso, a espiritualidade e as crenças podem expressar-se fora
de contextos institucionais, de igrejas, partidos ou outras associações
de compartilhamento de ideias e rituais. Há certa concorrência ou
sobreposição dos conceitos próximos: religiosidade e espiritualidade.
Ambas compartilham os atrativos de certa falta de precisão: são
sentimentos subjetivos (PELLINI; ZARAKIN; SALERNO, 2015) em
relação a como o mundo e as pessoas interagem. Em certo sentido,
então, tanto faz religiosidade ou espiritualidade. Se diferença se quiser
fazer, espiritualidade pode ser relacionado ao espírito (sopro, a
respiração dos animais vivos), enquanto religiosidade pode ser posto
em relação com o conceito ainda mais genérico de “preocupar-se
(lego) de forma reiterada (re)”. Se assim for, religiosidade pode ser um
conceito útil, para tratar de tudo que preocupa, que leva a ações e
pensamentos reiterados, a rituais. George Simmel (MOTAK, 2012) foi
inovador, no final do século XIX, ao usar o termo religiosidade para
tratar de sentimentos e ações reiteradas, muito além de denominações
religiosas, dogmas ou afiliações: Religion does not create religiosity
but religiosity creates religion (SIMMEL, 1898, p. 150), “a religião
não cria a religiosidade, mas a religiosidade cria a religião”.

267
Raquel dos Santos Funari

O termo religiosidade tem sido usado por estudiosos em


diversas disciplinas, com definições variadas e mesmo contraditórias
entre si, às vezes mais restrita a crenças em forças sobrenaturais, mas
também para se referir a crenças de qualquer tipo, como são as
convicções políticas. Esse amplo espectro de sentidos permite
compreender melhor crenças, em geral, e aquelas de uma sociedade
antiga como a egípcia. Tanto pode dar conta da diferença entre
egípcios antigos e pessoas, hoje, como estabelece bases para a
necessária empatia. Os egípcios eram diferentes, mas, hoje, somos
também mais diferentes uns dos outros do que se costuma dar conta,
algo de particular relevância para tratar com estudantes e familiares.
Religiosidade pode ser útil para facilitar a compreensão de que a
crença é algo humano e, portanto, universal, mas sempre de maneira
específica, cultural e contextual. Em grupos humanos agnósticos ou
ateus, a crença continua presente na forma de crença na humanidade,
na natureza, na amizade, no progresso, no comunismo ou no que quer
que seja. Neste sentido, aqueles que constatam a morte de Deus não
deixam de crer (HANEGRAAF, 2003).
No contexto da religiosidade, pode tratar-se da magia, tema
precoce na Antropologia com os estudos e Hubert e Mauss (2005, or.
1902) e de Malinowski (2014, or.1925), sempre estudado (MIRECKI;
MEYER 2002; MIRECKI, 2015), mais atual do que nunca (DAVIES,
2012; GOSDEN, 2012; 2020). A magia é um termo indo-europeu cuja

268
O uso da magia egípcia no ensino

raiz indica “ser capaz”, “poder”, “ajudar”. Os egípcios antigos


(BAKOS, 2018; GRALHA, 2009) partiam de outra percepção: heka
(BRITANNICA, 2018). Aí, dois aspectos devem ser ressaltados: a
presença de Ka (a força da vida) e o poder da palavra falada
(RIBEIRO, 2018). Daí que seja uma força cósmica (FUNARI, 2011),
na própria origem de tudo que foi criado pela sua nomeação, à
semelhança do que está no livro do Gênesis: criar é falar com a força
da vida. Assim, heka pode ser entendida como algo inteligível,
análogo ao hebraico bíblico, mas diferente e único. A interpretação de
heka como magia por hebreus e gregos indica aspectos comuns, mas
também diferentes e nem sempre bem entendidos por outros povos e
culturas (DAVID, 2002). Há uma diferença importante: heka é uma
força criativa e protetiva da ordem cósmica, magia podia ser
considerada, ao contrário, força com potencial destrutivo (RIGGS,
2021). Heka estava presente em rituais, unia pensamento, ação,
imagem e poder. Esse conceito é necessário para que se possa entender
os amuletos egípcios e o poder da palavra, implícito na expressão oral
do que está representado no amuleto (LECOUTEAUX, 2014).
O termo amuleto é de origem incerta, mas não parece estar
relacionado ao termo egípcio antigo sa (ANDREW, 1994), grafado
com um hieróglifo que parece ter origem em uma cabana
(HERRMAN; KEEL; STAUBLI; 2010), um abrigo ou, então, como
uma corda atada. O conceito já está em relação com proteção

269
Raquel dos Santos Funari

(CLAZILLI, 2012) e talvez possa ser relacionado ao hebraico hasa


(correr para proteger-se, daí ter esperança ou confiar; GERMOND,
2005).
Ambos os idiomas, egípcio antigo e hebraico, fazem parte de
um mesmo grupo linguístico, das línguas afro-asiáticas ou hamito-
semíticas (SHAW, 2000). Sal (ZUCCONI, 2007; TEETER, 2011) é
aquele que lida com a proteção, daí a tradução como mago, feiticeiro,
bruxo, mas também médico mágico (ARAB, 2004; ROCCATI, 2017).
Esses aspectos protetivos devem ser bem esclarecidos, para que se
possa entender os sentimentos envolvidos em amuletos (KOLTA;
SCHWARZMANN-SCHAUFHAUSER, 2000). Os amuletos egípcios
uniam símbolos, como hieróglifos (sa) e imagens (ROCCATI, 2017),
como o escaravelho. As mensagens escritas, ao serem lidas em voz
alta, intensificavam o efeito mágico. Embora poucos fossem capazes
de ler, quando da confecção do amuleto o texto mágico devia ser
decorado e repetido em voz alta, de modo que era, assim, de
conhecimento geral. Esse é outro aspecto a ser ressaltado, pois, às
vezes, se associa a magia a algo secreto, o que não era o caso, aqui. Os
amuletos (RAVEN, 1991) podiam vir com textos ou apenas com
símbolos, com múltiplas referências a divindades e a diversos
atributos e valores. Os mais recorrentes referem-se à vida e seus
aspectos, como o renascimento recorrente, a cada dia (dia e noite), a
cada semana (ciclos da lua), a cada estação do ano, a cada ano. Vida e

270
O uso da magia egípcia no ensino

morte, esta como parte do ciclo da vida, esse o princípio mais


recorrente e que podem ser dos mais férteis para interagir com
estudantes, familiares e com todas as pessoas.

Amuletos em acervo, a serviço da educação para o


convívio

Armazena-se uma infinidade de artefatos arqueológicos, dentre


os quais amuletos (BOSCHUNG; BREMMERM, 2015), a imensa
maioria em depósitos, não em exposição. Há recomendação por parte
tantos dos órgãos patrimoniais, como educacionais, no mundo e no
Brasil, no sentido de tornar público o material arqueológico
conservado em museus e outras instituições de guarda. Isso se explica
pela crescente tomada de consciência da importância de divulgar, ou
ainda mais, permitir a interação da ciência com as pessoas em geral.
Desde o final do século XX, surgem disciplinas voltadas para isso,
como no caso da Arqueologia Pública. Antes, já existiam Arqueologia
e educação, atividades práticas para o público (hands-on activities)
que acabou por juntar-se a outras diversas abordagens no que viria a
ser chamado de Arqueologia Pública. Do lado da Educação, a abertura
para a Arqueologia é antiga, em particular em atividades extra-classe,
como nas visitas a sítios arqueológicos. Quem não se lembra de uma
saída para conhecer um sítio ou museu? Nem todos os museus são
arqueológicos, mas poucos deixam de ter a cultura material como

271
Raquel dos Santos Funari

parte da sua atração e, neste sentido, incluem a Arqueologia, como


museus de arte, mas mesmo de ciências, medicina ou biologia, que
incluem artefatos antigos, arqueológicos. Essas tendências
acentuaram-se, também, desde as últimas décadas. Mencione-se,
ainda, a Educação Pública, entendida como Educação formal e
informal, de modo a atingir a crianças e a adultos, na escola ou fora
dela. A Arqueologia, o mundo concreto e material, é imbatível como
instrumento didático, na sala de aula ou fora dela. O Egito Antigo é,
mais ainda, atrativo e os seus amuletos (BUDGE, 1930), como
veremos a seguir, nem se fale.
O acervo do Museu de Arqueologia e Etnologia da
Universidade de São Paulo custodia um acervo de amuletos egípcios
(DIELEMAN, 2015) e, neste capítulo, apresentarei apenas quatro dos
temas presentes e que têm não só potencial, mas já produzem
resultados criativos com crianças e público em geral: ankh (vida), djed
(coluna vertebral da vida; FILLER, 2007), escaravelho
(DEVANCHELLE, 2003) e olho de Hórus, estes dois últimos
associados à vida, via renascimento, como veremos. Antes de
tratarmos de cada um desses quatro símbolos, mencionemos, de forma
breve, os métodos, de como levar as pessoas, as crianças em primeiro
lugar, a refletir e agir. Método significa “caminho por meio do qual”
se pode chegar a algum lugar. Neste caso, para mostrar o imenso
potencial educativo dos amuletos egípcios antigos para a convivência.

272
O uso da magia egípcia no ensino

Esses caminhos passam pelo jogo, pela brincadeira. Hoje, com a


imensa importância dos jogos virtuais, fica evidente o papel do lúdico,
que pode ser usado tanto para instruir, como para destruir. Não
importa, ou melhor, o que importa é constar a importância da
brincadeira e do lúdico para o engajamento de crianças e adultos. O
lúdico, a brincadeira, liga-se, em termos biológicos, ao aprendizado:
serve para aprender a como enfrentar os desafios do mundo e, ao
mesmo tempo, isso só pode acontecer se houver uma certa
recompensa, um prazer. Brincar é aprender, como diz Tânia Ramos
Fortuna (2018). Há, entre as atividades lúdicas, as bem conhecidas,
como caça-palavras, palavras-cruzadas, jogo de questões, entre outros,
associados, agora, a atividades e práticas digitais ou virtuais. Cada vez
mais importante, atividades lúdicas virtuais difundem-se, no mundo e
no Brasil. O Laboratório de Arqueologia Romana Provincial da
Universidade de São Paulo, LARP-USP, no qual atuo, hoje, em 2022,
destaca-se nisso também. O tema foi por mim tratado em diversos
artigos, capítulos e livros, aqui cabe apenas lembrar que cada
brincadeira pode servir para educar.
O sinal e o conceito de ankh, a vida, é antigo e persistente. Já
presente desde a Primeira Dinastia, no quarto milênio a.C., usa-se o
sinal de um nó com laço, à semelhança de algo usado para fixar as
sandálias no pé; outra hipótese seria associar à imagem de uma
vértebra torácica de um bovídeo. Como todos os conceitos abstratos

273
Raquel dos Santos Funari

ou genéricos, objetos concretos serviam para uma abstração como a


vida. A persistência pode ser relacionada à cruz ansata dos cristãos
coptas egípcios. A raiz tri-consonantal a-n-h (ankh) significava vida,
estabilidade, prosperidade, como substantivo, e, como verbo, viver,
em provável ligação com a respiração, o sopro (BUDGE, 1920, p.
124). O termo era usado em inúmeras expressões quotidianas, do tipo
“esteja bem” e estava presente em nomes próprios, como Tutancamon
(imagem viva de Amon). A vida, para além de um sopro, era
considerada uma força primordial, como manifestação em tudo que
vive. Na tumba, o morto podia esperar o sopro de vida de ankh, na
forma de amuletos.
Djed, o segundo conceito tratado aqui, é mais concreto na
origem, significa coluna ou pilar, ao representar a estabilidade, o que
permite a segurança. Num lugar sem árvores, como às margens do
Nilo, um tronco, com o tempo, foi, também, associado à coluna
arquitetônica. O sentido de sustentar (GARDINER R 11), apoiar é
fundamental, daí a ressurreição (FILLER, 2007). Djed dá continuidade
ao sentido de ankh como vértebra toráxica, ao poder significar o osso
grande e triangular localizado na base da coluna vertebral, símbolo
também associado ao osso sacro de Osíris (BUDGE, 1920, p. cxxiii).
O mito de Osíris, já presente em ankh (vértebra) é reapresentado aqui.
Osíris é um mito da ressurreição ou renascimento por excelência e de
ressonância universal, em partição nas religiões abraâmicas

274
O uso da magia egípcia no ensino

(Judaísmo, Cristianismo, Islam). Há muitas versões e detalhes, mas


convém reter apenas os dados mais gerais: Osíris é morto, de forma
injusta, mas ressuscita, ao vencer a morte e a injustiça. Os detalhes são
muitos, divergentes, mutantes, no tempo, mas esse é o esquema
básico, que remonta, como em outras crenças, ao ciclo da agricultura
(MORENZ, 2013). A cada ano, sucedem-se as estações, entre
semeadura (vida) e colheita (morte), que se sucedem, como pais e
filhos, e tudo o mais. Antes mesmo da agricultura, nos milhões de
anos de caçadores e coletores, sem o ciclo anual das plantas
domesticadas, havia a passagem da morte à vida, da vida à morte: de
geração a geração, mas também de animal morto e comido, a animal
vivo (PÉREZ, 2018). Isso pode ser observado em tribos atuais nas
quais se comem os pais de diversos animais e adotam-se os filhotes
como membros da família, como mostra Gustavo Politis (1995).
O escaravelho, hepper, deriva da raiz hpr, criar (BUDGE,
1920, p. 542), talvez relacionado à raiz semítica para cavar. O
escaravelho, kheper, como verbo significa ser, estar, existir, surgir,
acontecer, formar, criar, moldar-se. Vir a existir é uma tradução
corrente, a mostrar a imensa potência do besouro. Havia, pois, uma
associação entre o bicho escaravelho e a formação da vida, o
renascimento. Com o tempo, associou-se ao sol nascente, entre outras,
mas o princípio básico era sua força desproporcional a seu tamanho, a
brevidade da sua vida individual, mas sua continuidade como espécie.

275
Raquel dos Santos Funari

O besouro era a forma mais usada em amuletos egípcios, no correr dos


milênios. Por isso mesmo, predominam nos acervos mundo afora. Por
meio do comércio, já na antiguidade, escaravelhos egípcios eram
utilizados da Mesopotâmia ao Mediterrâneo Oriental e mesmo
Ocidental, como a Península Ibérica (MARTÍN RUIZ, 2017), com
imitações gregas e etruscas. Era comum a presença de asas de pássaro
junto ao besouro, articuladas ao escaravelho, de modo a incrementar o
sentido de ressurreição (BUDGE, 1920, p. cxvii; 275). Os egípcios
associavam a ação de fazer rolar bolas de esterco pelos besouros ao
movimento do sol (deus Rá), que seria empurrado pelo escaravelho.
Impressionante o êxito desse símbolo de algo tão humilde e
corriqueiro, não só no Egito, mas muito além.
O olho de Hórus (utchait) (BUDGE, 1920, p. cvi; 194),
também olho de Rá, amuleto que fortalece é outro muito frequente e
retomado, hoje, pela facilidade de compreensão, ao representar um
olho, direito (sol, força, daí proteção) ou esquerdo (lua, cuidado, daí
também proteção). A forma apresenta ainda uma silhueta que lembra o
falcão, associado ao deus Hórus. Heru é o nome do falcão (BUDGE,
1920, p. cxiv), daí do deus Hórus, Falcão. Na mitologia egípcia,
aparece como aquilo que está no céu, sol e lua, dia e noite, o lugar da
vida, frente ao deserto (deus Set) (BUDGE, 1920, p. civ; cxi),
personificação de tudo de ruim, ainda que não só isso e de forma
ambígua, sendo Set também a vida em meio ao deserto. No mito,

276
O uso da magia egípcia no ensino

Hórus perdeu seu olho esquerdo em uma luta com Set, para tê-lo
restaurado, de forma mágica, pela deusa Hátor, a simbolizar, assim, a
restauração e a cura. Hátor, apresentada como uma vaca, mas cujo
nome, Hether (BUDGE, 1920, p. 455), significa “casa de Hórus (ou do
Falcão)” apresenta diversos aspectos, em particular em torno da
fertilidade ou maternidade e do amor. A popularidade desse símbolo
também se deve à facilidade de sua compreensão, o olho, e de suas
muitas conotações, que vão da vigilância à atenção e ao cuidado.
Os amuletos egípcios com esses quatro símbolos mágicos
fornecem oportunidades para tratar, no ensino formal e informal, de
temas perenes, nem sempre associados à magia: vida, renascimento,
cuidado e proteção. A componente curricular História, neste aspecto,
fornece possibilidades várias, para atividades lúdico educativas. Pode
discutir-se, primeiro, como a magia pode servir à vida, em contraste
com a reiterada noção do senso comum que a identifica apenas com
maldições. Reserva-se toda a conotação positiva da mágica em grande
parte ao seu lado fraco e metafórico, como em “a mágica de um
parque de diversões”. Em segundo lugar, os amuletos egípcios
permitem tratar da relação entre a materialidade e a espiritualidade ou
subjetividade, se preferirmos outro termo. A Arqueologia adquire,
aqui, a sua relevância para a educação lúdica. Os amuletos egípcios
antigos servem para o jogo comparado com outros objetos símiles em
outras épocas e culturas, a começar do presente conhecido pelos

277
Raquel dos Santos Funari

estudantes, como são as simpatias de conhecimento e uso geral. Em


seguida, há que usar outros momentos históricos nos quais a magia
está presente, com destaque, no estudo histórico escolar, como na
Inquisição ou na caça às bruxas, nos séculos passados ou mesmo ainda
hoje. Por fim e para além da História, pode colocar-se em interação
com outras disciplinas, com destaque para a literatura e as artes, nas
quais a magia está sempre presente. O mesmo pode ser dito da
Filosofia, Matemática e o estudo das religiosidades, como atestam
Pitágoras, a astrologia ou a cabala, entre outras. Esses amuletos podem
inserir-se bem em atividades e dinâmicas interdisciplinares,
multidisciplinares mesmo, sem esquecer, claro, os idiomas, pois há
muito em inglês e espanhol, as línguas mais estudadas no ensino
fundamental e médio.
Os amuletos egípcios podem servir para o desenvolvimento do
aprendizado sócio emocional, como parte integral da educação para o
desenvolvimento humano. Este é um processo pelo qual jovens e
adultos adquirem e aplicam o conhecimento, habilidades e atitudes
para levar a cabo cosmovisões e comportamentos cooperativos, para
controlar as emoções e atingir uma harmônica integração de objetivos
individuais e coletivos, com empatia, ao manter e apoiar relações de
apoio mútuo, ao adotar decisões responsáveis e cooperativas
(JAGERS; RIVAS-DRAKE; BOROWSKI, 2018). Para isso, é
importante envolver, na comparação entre os amuletos egípcios e os
comportamentos, hoje, no Brasil, as práticas majoritárias, como as

278
O uso da magia egípcia no ensino

católicas e evangélicas, mas também afro-descendentes, espíritas e,


claro, também as ateias ou agnósticas. Para isso, mencionem-se os ex-
votos católicos, a glossolalia (falar em línguas angélicas) evangélicas,
os búzios afro, as mesas brancas espíritas, o culto ateu coreano do
Norte ao fundador da dinastia, que nunca sequer morreu! Neste caso,
num país tão crente como o Brasil, melhor não citar um exemplo
nacional. De todo modo, os amuletos egípcios servem para mostrar
como o presente pode aprender muito com o passado egípcio, em
particular no seu aspecto prospectivo. E isso pode ser feito de maneira
tanto lúdica, quanto crítica. Lúdica, pois são atividades que estimulam
o jogo, a brincadeira, a cooperação e a competição. Convém esclarecer
que competir é uma atividade lúdica e construtiva, não sendo
entendida como a competição destrutiva tão difundida nos dias de hoje
pelos apologistas do capitalismo ou neoliberalismo, como se preferir
designar.

Conclusão: amuletos vivos

O antropólogo indiano Arjun Appadurai contribuiu para


difundir o conceito de “vida social das coisas” (APPADURAI, 1986).
Tanto educadores como arqueólogos utilizam-se de conceitos
semelhantes, para além do mundo das mercadorias analisado pelo
estudioso asiático. Uma atividade didática como a construção de um
jogo de percurso, por parte dos próprios estudantes, em grupos, mostra
como papel, canetas e ideias podem transformar-se em um novo

279
Raquel dos Santos Funari

artefato, o jogo, indutor de ação, a brincadeira, e de reflexão, já que


para construí-lo e jogá-lo é necessário estudo de um tema. Também na
Arqueologia passa-se do antes inexistente para algo vivo, no sentido
de indutor de ações e reflexões, hoje. Antes de uma escavação, coisas
estão inertes enterradas ou afundadas, se for na água. Quando trazidas
à luz pela investigação arqueológica, passam a produzir efeitos no
mundo atual. Como já mencionado, a grande maioria desse material
arqueológico volta à inércia, quando armazenado em reservas técnicas
ou depósitos, tendo o potencial de voltar à vida social numa exposição
ou, como propusemos aqui, em atividades educativas.
Os amuletos egípcios custodiados em instituições brasileiras
voltam à vida social de maneira relevante, ao permitir o combate ao
preconceito e ao ódio e ao favorecer a historicização de usos e
costumes (GREENWOOD, 2020). São objetos de imediato
entendimento (HOFFMAN, 2015), como o besouro ou os olhos, ou
outros menos óbvios, mas nem por isso menos atrativos, como o ankh,
sinal da vida, e o djed, a sustentação ou o apoio (JÖRDENS;
HARRASSOWITZ, 2015). Vida, cuidado, apoio são valores
importantes para a convivência e nem sempre associados à magia. As
crianças constituem os futuros cidadãos e podem mudar o mundo
nessa direção. Se os amuletos egípcios puderem contribuir para isso,
terão mais uma vez se mostrado vivos e mágicos: frente à destruição a
mágica do convívio!

280
O uso da magia egípcia no ensino

Agradecimentos

Agradeço ao Vagner Carvalheiro Porto, supervisor do Pós-


Doutoramento na Universidade de São Paulo e menciono o apoio
institucional do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de
São Paulo (MAE-USP). Agradecimento especial ao Pedro Paulo A.
Funari e, também, às organizadoras Semíramis Corsi Silva e Flávia
Regina Marquetti e, ainda, a Margaret Bakos, Júlio César Gralha, José
Roberto Pellini e Andrés Zarankin. A responsabilidade pelas ideias
restringe-se à autora.

Referências

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285
Parte 2
Magos, Feiticeiras e suas Práticas

Meu ser vive na Noite e no Desejo


Minha alma é uma lembrança que há em mim.

FERNANDO PESSOA
O Corpo encantado. Do mito aos contos
maravilhosos
Flávia Regina Marquetti1

Os mitos e os contos maravilhosos ou folclóricos

Quando se aborda o universo das metamorfoses ou dos corpos


encantados é inevitável o retorno às suas origens clássicas, os mitos, e
seu posterior desdobramento no que se convencionou chamar de
contos infantis. Tanto os mitos, quanto os contos, trabalham com um
mundo aparentemente “fantástico”, longe da realidade, mas em ambos
se encontra um percurso bascular entre a natureza selvagem e o
mundo civilizado, das cidades e das trocas regradas por códigos
sociais. Os personagens metamorfoseados nos mitos, ou encantados
nos contos, geralmente são os que romperam ou transgrediram as
normas de seus grupos sociais.
Os mitos e os contos possuem um eixo comum, sendo o mito a
base ancestral dos contos. Pode-se definir mito enquanto uma
narrativa de significação simbólica, ou semi simbólica, na qual as
partes constitutivas só possuem um verdadeiro sentido a partir de um
processo de relação mútua. Entre as inúmeras definições dadas por

1 Formada em Letras, Grego/Alemão pela FCLAr/UNESP, com Doutorado e


Mestrado em Letras, Estudos Literários, pela FCLAr/UNESP, bolsista CAPES e
FAPESP; Pós-Doutorado na área de Literatura e Teoria Literária pela UNESP/
FCLAR, bolsista FAPESP; Pós-Doutorado realizado junto ao NEE (Núcleo de
Estudos Estratégicos) UNICAMP. Atualmente desenvolve pesquisa junto ao Grupo
de Pesquisa Arqueologia Histórica – UNICAMP, e junto ao Grupo LINCEU, Visões
da Antiguidade Clássica, da UNESP – FCLAr.

287
Flávia Regina Marquetti

estudiosos ao conjunto de mitos de uma sociedade, a de Marcel


Detienne em A escrita de Orfeu (1991, p. 113) é exemplar: “É no
rumor, e somente nele, que se aloja o segredo da unanimidade
profunda, das crenças mudas partilhadas em comum, da adesão inteira
de uma cidade a princípios, as narrações fundadoras, a isso
denominamos mitologia”
Os contos maravilhosos ou folclóricos têm sua origem na
tradição oral, muito anterior à sua transformação literária com
Perrault. Tanto nos contos de Charles Perrault, quanto nos contos
compilados pelos irmãos Grimm, há um traço de continuidade de
velhas narrativas, que remontam aos mitos e às obras literárias da
antiguidade clássica. Assim sendo, esses contos não eram voltados,
especificamente, para as crianças, pois a denominação “contos de
fadas” ou “contos infantis” é resultado de uma transformação
ideológica ocorrida no final do século XVII, quando já se definiam as
características sociais que levariam à Revolução Industrial.
Oriunda da necessidade de perpetuar a ideologia dominante
através da educação dos filhos, a burguesia viu na literatura infantil
elaborada por Perrault a melhor forma de realizar o intento de
conjugar os valores burgueses às raízes rurais. Tanto Perrault quanto
os irmãos Grimm recorrem a fontes populares para comporem seus
contos, Perrault, sob a máscara de Mamãe Gansa, reelabora as
narrativas orais, muitas vezes deixando apenas um leve traço do relato
original, adaptando-as aos interesses e valores da época. Já os irmãos
Grimm vão buscar nas velhas senhoras, contadoras de histórias da

288
O Corpo encantado

Alemanha, a fonte para suas publicações. A influência do Romantismo


é sentida nos contos, pois muitos têm os seus finais alterados para
finais felizes, ou têm cenas abrandadas, diminuindo a violência
contida nos mitos/relatos originais.
Alguns aspectos são bastante significativos, tanto nos mitos
quanto nos contos, como os deslocamentos espaciais, marcando uma
oposição entre o civilizado/cultural/cidade e o selvagem/natural/
campo; ou detalhes ligados à alimentação: fome/fartura, corpos
deformados/corpos belos – indicando que o corpo, a partir da condição
social: trabalhador/aristocrata2, leva a um julgamento de valor moral e
a uma noção de perigo contida nesses corpos deformados antes
ausente nas metamorfoses e/ou encantamentos da Antiguidade
Clássica. Após o paganismo e o início da era cristã encontramos uma
ambiguidade no discurso sobre o corpo, como apontam autores como
Jacques Gélis (2010, p. 19-130) e Nicole Pellegrin (2010, p. 131-216).
Nesta nova noção o corpo pobre, magro, sujo, deformado pelo
trabalho braçal3 e, geralmente, habitando o interior das florestas é

2 Embora os contos sejam escritos no século XVIII, estes mantêm enquanto valor a
ser alcançado os princípios aristocráticos, que eram os almejados pela nova classe
emergente e abastada, que possuía bens, mas não títulos de nobreza. Nos mitos,
apenas a elite e os deuses são personagens, o silenciamento sobre a população pobre,
escravos, trabalhadores diz muito sobre a ideologia do período Clássico. Portanto,
não vemos corpos feios e sujos, salvo exceções, quando são heróis ou deuses
disfarçados.
3 O trabalho foi desprezado pelos cristãos por ser consequência do pecado original,
torna-se valor da sociedade com o crescimento econômico das cidades no período
burguês, mesmo assim, os trabalhos braçais, mais desgastantes, eram tidos como
ignóbeis (LE GOFF, 2002, p. 160).

289
Flávia Regina Marquetti

visto como mau e perigoso, opondo-se ao corpo belo, delicado, limpo,


bem torneado, de pele clara e que habita a cidade - bom e virtuoso.

O espaço da transgressão e o espaço da ordem

Nos mitos e narrativas clássicas, como a Odisseia, de Homero,


o espaço das florestas, dos campos incultos e selvagens são sempre o
espaço das metamorfoses ou encantamentos. Isso se dá por serem eles
o que Paolo Scarpi (1982, p. 213-225) denomina como o espaço da
transgressão – marcado pela violência sexual e pelo derramamento de
sangue, ou ainda pelas uniões exogâmicas, que levam à perda da
identidade cívica, a dissolução do grupo e, consequentemente à
metamorfose em animais, ou elementos da natureza, indicando o fim
da identidade humana. O espaço da ordem, em oposição, é o da
cidade, ou agrupamento sócio-político ligado à uma religião comum –
o grupamento é mantido e ampliado por meio da cultura, que se opõe à
bestialidade.
A natureza é vista, enquanto selvagem, fechada ao homem,
infestada de feras e não organizada, ao passo que a natureza purificada
e dedicada à agricultura é tida como aberta ao homem, estruturada
socialmente. Os heróis civilizadores, como Héracles, são geralmente
os que enfrentando as feras, purificam a natureza e transformam-na
em espaço da ordem, civilizado.
Os deuses, sob sua feição terrível, e/ou as bruxas habitam
invariavelmente os espaços selvagens ou de transgressão. Os deuses

290
O Corpo encantado

cultuados na cidade ao contrário, de feição compassiva, são benéficos


ao grupo, estabelecendo uma relação de troca essencial para a
manutenção do conjunto social.
Dentre os mitos gregos que abordam a metamorfose de um ser
humano em animal ou em algo associado à natureza há inúmeros
relacionados às plantas míticas, como Narciso, Jacinto, Mirra, Adônis
entre outros. Personagens que por ira de um deus/deusa ou por
desrespeitarem as regras do grupo, são transformados em plantas
propiciadoras do grupo. Em vários casos, como no de Narciso, a
planta que resulta de sua metamorfose é utilizada em diversos cultos
iniciáticos, como os de Dioniso, Deméter, Perséfone, Hécate, Ártemis
e Afrodite. O deslocamento empreendido por Narciso mostra seu
distanciamento do grupo, dos espaços habitados e culturais para o
ermo, a floresta, aprofundando-se na selvageria até chegar à fonte
onde se cumpre os desígnios dos deuses4.
No mito de Atalanta, a metamorfose é em animal, no caso, a
jovem e seu esposo são transformados em leões por Zeus por terem
cometido o sacrilégio de se unirem sexualmente em um templo de

4 O mito de Narciso é paradigmático por estar ligado à recusa do jovem Narciso em


estabelecer a troca sexual com o outro, o que inviabiliza a manutenção do grupo. No
mito, Narciso rejeita a todos os seus pretendentes, sejam humanos ou deuses, até ser
punido pela divindade, Eros, deus do amor, na versão de Conon, ou Nêmesis, deusa
ligada aos excessos, à hybris, na versão de Ovídio. Narciso é punido apaixonando-se
por sua imagem em um lago perdido no interior da floresta em que caçava. Incapaz
de afastar-se do reflexo suicida-se, na versão de Conon, ou definha junto à margem,
na versão de Ovídio; sendo metamorfoseado na flor narciso pela divindade. Para
análise completa do mito de Narciso ver Marquetti, F. R. Perseguindo Narciso. Um
estudo da protofiguratividade no mito de Narciso. Saarbrücken: NEA - Novas
Edições Acadêmicas, 2016.

291
Flávia Regina Marquetti

Cibele5, ou de Zeus, enquanto o casal caçava nas florestas (GRIMAL,


2000, p. 51). Novamente há o afastamento do grupo e das regras
civilizatórias, a interiorização na floresta, área selvagem, e a
metamorfose em animais em decorrência da quebra de um contrato
sócio religioso. Neste mito, a punição serve de alerta aos que ousam
não respeitar aos deuses e seus espaços sagrados. Tanto em Narciso
como no mito de Atalanta os corpos são transmutados em elementos
da natureza selvagem como forma de regrar o grupamento social, não
há, como veremos nos contos, uma depreciação dos corpos com o fito
de indicar a índole dos personagens, tanto Atalanta, quanto Narciso e
os demais personagens míticos, são de extrema beleza e pertencentes à
classe dominante e/ou semidivinos, descendentes dos deuses. A
punição/metamorfose ocorre em função não de um caráter ruim, mas
pela ação desmedida (hybris) dos personagens junto à sua sociedade,
não sendo eles julgados a partir de sua aparência ou condição social.

A primeira maga - Circe

Na Odisseia, surge pela primeira vez a figura da maga que usa


de poções e varinha mágica para encantar os corpos, nos mitos os
deuses ou deusas intervêm, metamorfoseando os mortais, mas sem uso

5 Os leões são animais ligados à Cibele, aparecem na iconografia ladeando a deusa


frígia ou puxando seu carro. Os templos de Cibele eram geralmente erigidos no meio
de florestas.

292
O Corpo encantado

de qualquer instrumento ou poção, apenas pela sua vontade6. Pode-se


dizer que Circe é a precursora das bruxas dos contos maravilhosos,
exceto pelo fato de ser uma deusa e de extrema beleza.
Circe habita em um vale, no meio da floresta e é cercada por
animais selvagens:
Num vale foram achar a morada de Circe, construída
toda com pedras polidas, num sítio ao redor abrigado.
Por perto viam-se lobos monteses e leões imponentes
(HOMERO, Odisseia, X, 210-213).

Nos versos adiante, Euríloco, ao falar com Odisseu, informa


que o palácio de Circe fica na floresta:
Como ordenastes, ó glorioso Odisseu, fomos pela
floresta,
onde num vale encontramos um belo palácio, construído
todo com pedras polidas, num sítio ao redor abrigado
(HOMERO, Odisseia, X, 251-253).

O espaço em que Odisseu e seus companheiros se encontram é


uma ilha longe da civilização, nem Oriente nem Ocidente, mas
encontra-se no limite do mundo, é o último posto antes do ingresso no
reino do deus Hades, senhor dos mortos. Espaço selvagem, sem terras
cultivadas ou com grupos sociais que possuem uma cultura e religião.
O palácio de Circe é localizado espacialmente no centro de três eixos
de selvageria: a ilha perdida e desconhecida; o centro da floresta,
cercada por leões e lobos; e sem respeito às regras de hospitalidade,

6Exceção, Palas Atena usa também da varinha mágica para transformar Odisseu em
velho (Homero, XIII, 129-138) e converter-lhe novamente jovem (HOMERO, XVI,
172-176). Mas é apenas nestas duas passagens da Odisséia que isso ocorre, no geral,
Atena não precisa de nenhum instrumento para as metamorfoses.

293
Flávia Regina Marquetti

que marcam, para os gregos, um indicativo de civilidade, uma vez que


Circe os ilude e os transforma em animais.
Circe ao receber os companheiros de Odisseu, embora sirva-
lhes bebidas e alimentos, o faz com artimanhas, transformando-os em
porcos:
Sem se fazer esperar, veio Circe e o portão lhes
franqueia,
belo e brilhante; os estultos, então para dentro a
seguiram,
com exceção só de Euríloco, por suspeitar de algum
dolo.
Ela os levou para dentro e ofereceu-lhes cadeiras e
tronos,
e misturou-lhes, depois, louro mel, queijo e branca
farinha
em vinho Pirâmnio; à bebida, assim feita, em seguida
mistura
droga funesta, que logo da pátria os fizesse esquecidos.
Tendo-lhes dado a mistura, e depois que eles todos
beberam,
com uma vara os tocou e, sem mais, os meteu na
pocilga.
Tinham de porcos, realmente, a cabeça, o grunhido, a
figura
e as cerdas grossas; mas ainda, a consciência anterior
conservavam.
Dessa maneira os prendeu, apesar dos lamentos,
lançando-lhes
Circe bolotas, azinhas e frutos que dá o pilriteiro,
para comerem, quais porcos que soem no chão rebocar-
se
(HOMERO, Odisseia, X, 231-243).

A transformação dos companheiros de Odisseu em porcos


chama a atenção primeiro pelo uso das drogas e da varinha, Circe é
uma maga, conhecedora de todas as plantas, como nos informa
Odisseu: “Mas, quando estava no vale sagrado e do grande palácio/
me aproximava, de Circe que todas as plantas conhece,/ Hermes me

294
O Corpo encantado

veio encontrar....” (HOMERO, Odisseia, X, 275-277). Ao contrário


dos demais deuses que metamorfoseiam os personagens míticos sem o
uso de elementos externos, Circe precisa da poção mágica e da varinha
para encantar os corpos, é apenas após os homens consumirem a
beberagem dada por Circe e ela tocá-los com a varinha, que eles se
transformam em animais. Quando Circe tenta encantar Odisseu, ela o
faz usando os mesmos expedientes, mas é acrescida uma frase: “Para o
chiqueiro, vai logo deitar-te com teus companheiros” (HOMERO,
Odisseia, X, 320). Dessa forma, completa-se a tríade do encantamento
que será visto nas bruxas: poção (comida e/ou bebida), varinha e
fórmula mágica.
Outro ponto relevante é o animal no qual os homens se
transformam, porcos. Embora a epopeia não explicite, fica
subentendido que Circe transforma os que ali chegam de acordo com
sua índole, uma vez que alguns foram transformados em lobos, outros
em leões e todos os companheiros de Odisseu em porcos, tidos como
animais ignorantes, movidos pela luxúria, gula e egoísmo7,
antecipando um motivo que será bastante explorado nos contos
maravilhosos, no qual o personagem encantado assume formas
animalescas ou bestiais revelando seu verdadeiro caráter.

7 Segundo Touchefeu-Meynier (1961, p. 264-270), há outra versão sobre o


encantamento dos companheiros de Odisseu, retratado na iconografia do século V
AEC, na qual os homens de Odisseu foram transformados em vários animais, não
respeitando a versão mais antiga da epopeia.

295
Flávia Regina Marquetti

Os companheiros de Odisseu escapam da forma animal, graças


a Hermes que orienta Odisseu a como proceder com Circe e fazê-la
desencantar seus homens, mas estes infringindo novamente as
recomendações divinas e o juramento feito a Odisseu, matam e
comem as vacas do deus Hélios na ilha Trinácria, morrendo todos
afogados no mar (HOMERO, Odisseia, XII, 320-419). O desrespeito
às regras divinas, à civilidade, leva os homens à bestialidade e à
morte.
Hermes é outro deus que antecede aos bruxos, tal qual Circe,
ele conhece todas as ervas, no canto X da Odisseia, é ele quem auxilia
Odisseu revelando-lhe os artifícios de Circe e fornecendo ao herói a
planta que o impedirá de ser enfeitiçado, a Móli:
Tendo isso dito, arrancou o correio de lúcido aspecto
da terra a planta e ma deu, explicando-me suas virtudes.
Tinha a raiz de cor negra, mas branca era a flor, como
leite.
Móli chamavam-lhe os deuses; difícil aos homens seria,
de vida curta, arrancá-la; mas tudo os eternos
conseguem
(HOMERO, Odisseia, X, 302-306).

Além do oferecimento da planta, Hermes instrui Odisseu para


que não perca a virilidade ao deitar-se com Circe. A sexualidade livre
de uma mulher é um perigo ao homem, assim como Circe. Ou as
mulheres consideradas bruxas na Idade Média, jovens ou velhas, eram
vistas como muito lascivas e deveriam ser temidas pela sua capacidade
de emascular os amantes.

296
O Corpo encantado

O tema da Potnia Theron ou Senhora dos Animais, bela,


cercada de animais e de grande poder de sedução é recorrente na
Antiguidade Clássica. Afrodite é outra deusa cujos traços são comuns
à Senhora dos Animais. Com o passar dos séculos, o que era um
temor/veneração, mas ainda positivo, pois associado à capacidade das
deusas de promover a fecundidade e fertilidade dos grupos sociais e
dos campos, passa a ser um mau associado ao demônio, sem qualquer
benefício ao grupo.
Recorrente também é a ligação do deus/mago/bruxa com os
caminhos ermos, com as encruzilhadas, com as sombras, com o reino
dos mortos, com a adivinhação e sua ligação, tal qual Circe, com
animais selvagens ou peçonhentos, no caso de Hermes as serpentes,
presentes em seu caduceu. Outro elemento constante nos mitos é a
capacidade do deus/deusa em deslocar-se através dos ares, percorrer
longas distâncias em segundos ou se materializar nos locais. Hermes,
enquanto mensageiro dos deuses, possui asas, ora representadas em
seu elmo, ora em suas sandálias. Essa capacidade de deslocamento
pelos ares surgirá nos contos como uma prática dos bruxos e bruxas,
eventualmente, auxiliados por vassouras encantadas.
Não sem razão, Circe, Hermes e Hécate, outra deusa ligada à
magia e às encruzilhadas, são deuses “menores”, que não possuem o
mesmo status dos demais, geralmente realizando serviços para os
outros deuses, como é o caso de Hermes. Ou são deuses primitivos
ligados às forças da natureza e “incivilizados” que serão substituídos

297
Flávia Regina Marquetti

pelos Olímpicos, caso de Hécate, da geração dos Titãs. Em algumas


versões mais tardias, Circe é dada como filha de Hécate (GRIMAL,
2000, p. 92-93). Portanto, os deuses gregos ligados à magia habitam as
florestas ou estão ligados aos caminhos, às encruzilhadas, ao vaguear,
associados a animais selvagens ou peçonhentos, ao uso de poções, de
ervas e drogas.

Apuleio e as bruxas romanas

No romance de Apuleio8, O Asno de Ouro, escrito no período


romano, século II EC, observa-se que a exceção vista na figura de
Circe torna-se regra, nele vemos surgir várias bruxas, que possuem
alguns traços em comum com Circe, como a lubricidade, o uso de
unguentos, de palavras mágicas para metamorfosear desafetos,
amantes infiéis ou mesmo toda uma cidade. Acrescido a isso, nota-se
uma forte ligação das bruxas aos cemitérios, aos mortos e,
aparentemente, elas tornam-se citadinas, não mais habitam as
florestas, porém ocupam espaços fora do âmbito social, oculto aos
olhares, como terraços e cemitérios, localizados nos limites das
cidades.

8 Lúcio Apuleio foi escritor e filósofo do período romano. Nascido em família


abastada e influente, teve uma educação esmerada e interessava-se pelos ritos
esotéricos, pelos mistérios de Esculápio, deus da medicina, e pelos mistérios
Eleusinos, da deusa Deméter. Sua obra mais importante é Metamorfoses ou o Asno
de Ouro, na qual o personagem Lúcio vive aventuras fantásticas e/ou burlescas
metamorfoseado em asno. Em sua jornada para retornar à forma humana, iniciada na
Tessália, intercalam-se diversas narrativas, até Lúcio chegar à região de Corinto,
onde em uma festa dedicada à deusa mãe, descrita no texto sob vários nomes, mas se
auto proclamando como Ísis, finalmente retorna à forma humana e torna-se um
iniciado nos mistérios da deusa.

298
O Corpo encantado

Durante sua viagem, o personagem Lúcio apresenta diversas


narrativas envolvendo bruxas. No Livro I o personagem Sócrates, após
ser roubado, abriga-se na casa de uma velha9 estalajadeira, Méroe,
feiticeira temida e lasciva, com amantes não só na Tessália, mas
também na Etiópia e Índia10 (APULEIO, L I, VII). Mesmo descrita
como velha, ela prende Sócrates pelo sexo e o reduz a mendigo. Ao
narrar suas desventuras ao amigo Aristômenes, diz ser Méroe uma
maga e advinha, capaz de descobrir qualquer trama contra ela, o que
se comprovou na sequência, quando ela e Pância, sua irmã, irrompem
no quarto de ambos com o uso de artifícios mágicos, transformam
Aristômenes em tartaruga e Méroe degola Sócrates, retirando-lhe o
coração. Na sequência, Pância tampa o corte com uma esponja
dizendo: “Esponja, tu que nasceste no mar, guarda-te de atravessar um
rio” (APULEIO, L I, XII). Na saída, as duas feiticeiras urinam sobre
Aristômenes devolvendo-lhe a forma humana. Assustado, Aristômenes
tenta fugir, mas ao amanhecer, Sócrates está vivo, sem a marca da
degola no pescoço. Ambos saem da estalagem e ao pararem para
comer, Sócrates ao beber água de uma fonte cai morto, pois a esponja
absorve a água e salta fora do pescoço (APULEIO, L I, VII – XX).
As transformações que Méroe impõe aos seus desafetos, sejam
Aristômenes em tartaruga; o ex-amante em castor, animal que se

9 A média de idade para as mulheres pobres na Antiguidade e no medievo era entre


35 a 40 anos em função da vida bastante difícil, da má alimentação, dos problemas
decorrentes do parto. Muitas morriam muito jovens.
10 Em O Asno de Ouro, a Tessália, cidade de Méroe, é tida como terra de feiticeiras,
igualmente a Etiópia e a Índia, todas associadas ao requinte e aos prazeres sexuais.

299
Flávia Regina Marquetti

castra para fugir aos caçadores; ou ainda ao dono do prostíbulo


concorrente em rã, e o advogado em carneiro (APULEIO, L I, IX) –
não são marcadas propriamente pelo caráter dos personagens, mas sim
por uma certa malícia e sarcasmo da feiticeira que, ardilosamente, se
vinga e evita ser punida pelo grupo. A punição imposta aos desafetos
implica no conhecimento prévio do que os amedronta ou de traços de
personalidade, mas não há julgamento moral.
Tanto no relato de Aristômenes, quanto no de Telifrão, de
como ele ficou sem as orelhas e nariz após guardar um defunto e ser
enganado pelas feiticeiras (APULEIO, L II, XXI- XXX); ou ainda na
metamorfose de Lúcio em burro (III, XVI- XXV) por engano de
Fótis11, observa-se o uso e o conhecimento de unguentos, de palavras
mágicas e encantamentos para a transformação em animais, além do
uso de entranhas, água da fonte, leite de vaca, mel das montanhas,
broto de aneto, louro, rosas – substâncias vindas da natureza e de uma
natureza mais selvagem, ou no limite entre esta e a natureza cultivada.
Os animais nos quais elas se transformam também estão associados ao
inferativo, o mundo subterrâneo e dos mortos: como a doninha, do
relato de Telifrão, que vive em tocas no chão ou em troncos de árvores
(II, XXV), ou em mocho – ave dos cemitérios, ligada ao mau agouro,
no qual se metamorfoseia Panfília (III, XXI).

11Fótis é a jovem serva de seu hospedeiro avarento, Milão, casado com Panfília,
descrita como uma bruxa velha e lasciva e com grandes poderes (L, III, XVIII), a
quem Lúcio é orientado a evitar se deitar, quer por respeito ao hospedeiro, quer pelos
perigos que correrá ao fazer isso.

300
O Corpo encantado

Lúcio é transformado em burro, aparentemente, por engano de


Fótis12, com quem mantém um relacionamento sexual. Fótis o enreda
sexualmente em várias passagens, mas é na cozinha, enquanto Fótis
mexe um caldeirão que se inicia a sedução de Lúcio: “com que lindo
movimento do traseiro, e com que graça, adorável Fótis, tu mexes essa
caçarola!” (APULEIO, L II, VII). Descrita como bela, Fótis é uma
serva, faz trabalhos pesados, não condiz com a figura da velha
desgrenhada e rabugenta dos contos, Lúcio a descreve: “É uma moça
bonita, gosta de rir e é viva” (APULEIO, L II, VI); mas não possui a
beleza delicada e aristocrática das fadas ou das deusas.
O local de esconderijo/metamorfose de Panfília é o terraço, um
local acima da habitação comum, e no meio da noite. A escolha do
terraço, sótão, ou telhado, embora ocupe uma posição superativa, é um
símile do porão, ctônico e inferativo. Ambos os ambientes são
marcados pelo isolamento, acima ou abaixo da área comum das casas
– compondo um espaço limítrofe entre o mundo social e civilizado, da
convivência do grupo, e o fora do alcance, ligado à natureza – seja o
espaço aéreo, terraço, ou ctônico, porão. Portanto, embora habitem na
cidade, o espaço da magia é, simbolicamente, fora dos limites sociais.
É o espaço cosmogônico, onde se efetua a ruptura e a fusão dos níveis
cósmicos: o alto, a terra e o ctônico. Espaço de conjunção de
extremos, no qual se estrutura um cosmos saído do caos primitivo e no

12 Aparentemente porque ao que tudo indica, Fótis não quer que Lúcio, ao se
transformar em pássaro, voe para longe dela (APULEIO, L, III, XXII-XXIII),
indicando a malícia de Fótis, presente nas demais feiticeiras também.

301
Flávia Regina Marquetti

qual se conjugam os três grandes medos do homem: a vida, a noite e a


morte. Todas as metamorfoses ou aparições em O Asno de Ouro
ocorrem à noite, mais exatamente no meio dela; apenas quando é uma
deusa, Cibele ou Ísis, responsável por devolver a forma humana a
Lúcio, que a ação ocorre durante o dia claro (APULEIO, L, XI, VII –
XIII). O retorno de Lúcio à forma humana marca também seu
posterior ingresso, como iniciado, no culto da deusa, ele não mais
busca a magia e os feitiços marginais, das bruxas, mas se insere em
um conjunto socialmente organizado e regrado, dentro do espaço
civilizado da cidade e da ordem.
O percurso do ser humano é o horizontal, essencialmente
social, prático e comunicativo; o espaço vertical, divino, une o mundo
celeste e o subterrâneo. Ao fundir os dois espaços, as bruxas
inscrevem o homem no cosmo original, em um mundo mal conhecido
e de suas agonias, do qual não possuem o controle.
É perceptível nos relatos de Apuleio algumas das
características que se tornarão motivos recorrentes nos contos
maravilhosos e de suas bruxas: elas são peritas na arte da adivinhação;
usam de palavras mágicas para promover os encantamentos; são
geralmente velhas e lascivas; usam de elementos escatológicos, da
natureza e/ou ligados aos mortos; metamorfoseiam-se em animais; e,
sobretudo, são de classe social baixa e movimentam-se em espaços
fora do convívio social.

302
O Corpo encantado

A bruxa nos contos maravilhosos

A bruxa, geralmente, possui a aparência de uma mulher pobre,


trabalhadora braçal, portanto, “suja”, de vestes puídas, cabelos
desgrenhados, com corpo não delicado, habituado ao trabalho bruto na
terra ou na cozinha, pele queimada pelo calor do sol ou do fogo, e com
mãos grosseiras, opondo-se à imagem de Circe, deusa bela, ocupada
apenas em fiar e cercada de servas. Há nessa transformação da
imagem da maga/feiticeira um duplo repúdio, que se acentuará ainda
mais na óptica cristã e burguesa: a da “velha” pobre, que insiste em
manter-se sexualmente ativa, apesar de não mais poder procriar. Vista
como pervertida e transgressora, ela é um mal que deve ser banido do
social, deve ser temida. Marina Warner (1999) apresenta, em sua
obra, todo um estudo sobre essa figura transgressora da velha:
o tipo de mulher que ameaçava a sociedade por ser
sozinha e dependente nem sempre era o das mães
apegadas aos filhos ou das viúvas desesperadas e cruéis.
Podia se tratar de uma solteirona, uma mãe solteira, uma
velha ama ou criada da família – qualquer mulher que
envelhecesse desacompanhada era vulnerável [...]. Pois
não havia, num sentido radical, nenhum lugar para a
solidão feminina no arcabouço conceptual da época [...].
As velhas solteironas ou viúvas, aparecem como uma
velha anômala, uma mulher sem marido, desligada das
amarras do porto patriarcal (WARNER, 1999, p.
262-263).

Essas mulheres, sem aporte masculino, eram obrigadas a


afastarem-se das cidades, passavam a habitar os limites destas e/ou as
florestas em cabanas abandonadas, ou ainda em cavernas, sujas,
desgrenhadas e com vestes rasgadas, famintas e desfiguradas; sem ter

303
Flávia Regina Marquetti

de onde retirar o sustento eram obrigadas a viver de raízes e urzes,


com as quais faziam sopas em caldeirões sustentados por tripés sobre
fogueiras.
Nicole Pellegrin (2008), ao comentar a questão dos jejuns e da
alimentação na Idade Média, informa que as raízes e urzes eram
alimentos opostos aos cereais e à charcutaria, consumidos pelas
pessoas abastadas. Os pobres e mendigos eram obrigados a recorrer às
plantas “ignóbeis”, não cultivadas, e de baixo valor alimentar, o que
tornava sua aparência doentia e esquálida. Por serem tubérculos e
herbáceas, uma forma de consumi-los era cozê-los juntos, fazendo
uma sopa.
A importância dessa variabilidade alimentar
(quantitativa e qualitativa) é dupla para corpos
constantemente famintos: de um lado, existem alimentos
de substituição, certamente, por serem próprios à
estação, podem atenuar a raridade de grãos; de ouro
lado, a busca e a preparação desses alimentos aumentam
o esforço físico e multiplicam as tarefas das pessoas
encarregadas, isto é, as mulheres e as crianças da casa,
dedicadas à colheita e à recuperação dos alimentos
“ignóbeis”, porque não cultivados. Esses alimentos
“selvagens” são essenciais, mas sempre invisíveis nas
descrições dos recursos locais: as “raízes” arrancadas
com muito esforço por “alguns animais selvagens” de
face humana, descritos por La Bruyère, só serão
mencionadas nas descrições horrendas dos tempos de
calamidades públicas, quando essas plantas
funcionavam como complementos regulares do cardápio
habitual (PELLEGRIN, 2008, p. 152).

A comparação dos pobres a “animais selvagens de face


humana”, alimentando-se de plantas selvagens, não cultivadas, expõe
a situação miserável e fora do social dessas pessoas, a necessidade de
coletar lenha nos bosques, a falta de casas, o uso de vestes andrajosas,

304
O Corpo encantado

junta-se ao aspecto sujo e deformado do corpo, submetido a um


trabalho penoso, e desfigurado pelas doenças e fome. Outro elemento
que segrega privilegiados de pobres, mulheres e homens, cidade de
campo, são os sapatos. Segundo Pellegrin,
enquanto os ricos andam o mínimo possível e seus
sapatos de tecido ou couro fino só permitem
movimentos contados, pouco numerosos e criadores de
movimentos e elasticidade calculada [...]. Os pobres
andam descalços ou em tamancos grosseiros,
guarnecidos de embocadura de um círculo de ferro e
embaixo de duas placas do mesmo metal fixas com
pregos cuja cabeça podia ter até meia-polegada de
diâmetro (PELLEGRIN, 2008, p. 164-165).

O esforço pelas longas caminhadas, os pés machucados e grossos, ou


com calçados toscos semelhantes a “ferraduras”, conferem aos mais
pobres um aspecto animalesco, completamente diverso dos abastados,
de peles limpas, claras, devido à pouca exposição ao sol, de braços e
pernas delicados (não musculosos como os dos pobres), belos cabelos
penteados e adornados, vestes limpas – não sem motivo, as boas e
belas fadas dos contos surgem em suas carruagens douradas e
assemelham-se à classe dominante.
No conto d’A gata Borralheira (PERRAUT, 1941, p. 75-83) os
sapatos de cristal, oferecidos pela fada madrinha à jovem, são um dos
melhores exemplos de um calçado inviável para caminhadas. Além de
todo simbolismo sexual presente nele13, ressalta o status nobre da
personagem, o cristal impossibilita a movimentação; o tamanho do pé,
muito pequeno, é outro dado relevante: o sapato, experimentado em

13 Ver Marquetti (2013, p. 309-366).

305
Flávia Regina Marquetti

todas as jovens presentes no baile, grupo seleto de princesas


convidadas, não serve em nenhuma, após isso, o príncipe passa a
experimentá-lo nas outras jovens da corte, “...começando pelas
princesas, passando para as duquesas e marquesas e baronesas. Como
não servisse no pé de nenhuma, começou a experimentá-lo no pé de
moças comuns” (PERRAULT, 1941, p. 81). Até chegar à mais
humilde, Gata Borralheira, suja e vestida com andrajos, mas na qual o
sapatinho serve. A excelência de Gata Borralheira é marcada pelo seu
diminuto pé, que mesmo as mais nobres não possuíam.
No conto Branca de Neve (GRIMM, 1994), a madrasta é
punida ao entrar no salão de baile de casamento de Branca com o
príncipe. Ali aguarda-a um par de sapatos de ferro, quentes em brasa,
que ela é obrigada a calçar para dançar14 com todos os homens da
festa até cair morta. A dança, assim como os sapatos, meias, têm uma
conotação sexual. Obrigar a Rainha/madrasta a dançar com sapatos de
ferro quentes até cair morta, conota um estupro coletivo, uma punição
à mulher/bruxa por querer manter uma sexualidade ativa após a
“velhice”. A mulher saída do período fértil, ou que não pode conceber,

14 Segundo Pellegrin, citando J-P. Desaive, “a dança é a única linguagem do corpo


que permite à mulher exprimir-se de modo igual ao homem e em perfeita
complementaridade com ele”. O jogo de sedução e mesmo camuflagem dos atos
sexuais em textos de inúmeras culturas é substituído pela dança. Além do fator
histórico dos bailes, enquanto atividade recreativa que abrange desde o topo à base
da sociedade, a dança permite a aproximação dos corpos, o contato mais íntimo e em
diversas comunidades compõem parte dos rituais de escolha de parceiro para o
casamento. Não é sem razão que as jovens heroínas sempre dançam com seus
consortes. Tanto para católicos como para protestantes, a dança é uma invenção
própria de Satã, pois incita à volúpia (DANEAU, 1579, p. 33).

306
O Corpo encantado

é obrigada a ceder seu lugar à mais jovem, que pode gerar filhos ao
homem.
Tanto em A Gata Borralheira como em Branca de Neve, a
figura da bruxa e da fada estão intimamente imbricadas. Na primeira,
a Fada Madrinha transforma elementos da natureza, abóboras, ratos,
lagartos, em bens dignos da sociedade, da ordem do cultural. Embora
esteja sob o cariz de boa, a fada madrinha é uma velha, mora na
floresta ou fora do núcleo social e manipula elementos selvagens, da
ordem do natural, com sua varinha. O fato de ela ser a madrinha da
jovem, papel que lhe outorga o lugar da mãe, na ausência desta, é
relevante, indicando ser Gata Borralheira uma sua igual, partilhando
de seus conhecimentos e costumes, pois cabe às mães a instrução dos
filhos.
Excluída do social/civilizado, Gata Borralheira vive na
cozinha, junto ao fogão, nas cinzas, portanto, suja. Seu quarto é um
canto do sótão e ela dorme sobre um monte de palha, enquanto suas
irmãs têm belos quartos atapetados, camas e guarda-roupas com
espelhos nos quais podem se mirar. O espelho é um símbolo da
sociedade, um paralelo do olhar do outro sobre nós mesmos. O espaço
ocupado por Gata Borralheira é um símile da floresta selvagem,
mesmo porque ela não possui um nome, uma desinência social que a
identifique junto ao grupo, seu nome, ou mais precisamente sua
alcunha, gata, remete a um animal entre o doméstico e o selvagem,
diferente do cão, considerado fiel e completamente domesticado, os
gatos transitam entre o espaço da casa e o da natureza, são caçadores,
associados às bruxas, e animais psicopompos, condutores dos mortos,

307
Flávia Regina Marquetti

em inúmeras culturas. Embora boa, Gata Borralheira guarda, como


todo feminino, a possibilidade de ser uma bruxa, mesmo sem o saber.
Em Branca de Neve a ligação da Rainha com a bruxa da
floresta é mais explícita do que a da Fada Madrinha, ela transita entre
o mundo civilizado, do castelo, do uso do espelho, para o selvagem,
onde realiza seus encantamentos, descritos como fora dos olhares, ora
em espaços ctônicos, porões, ora em cabanas na floresta, dependendo
das versões. Sob as vestes de rainha, ela é uma mulher bela e poderosa
que teme perder seu lugar de primazia junto ao grupo para a mais
jovem, sob o aspecto de bruxa, feia e desgrenhada, ela trama os
malefícios para matar a jovem concorrente. Após mandar assassiná-la
e pedir seu coração, a Madrasta, frustrada pela desobediência do
guarda florestal, envenena com poções mágicas dois objetos da ordem
do cultural: um cinto e um pente, elementos que visam conter a
aparência selvagem, não elegante, de Branca. Mas Branca é salva
pelos anões, que a livram desses adornos, fazendo-a retornar ao
aspecto/estatuto selvagem. Como último recurso, a bruxa utiliza um
elemento da natureza, a maçã, fruta associada ao sexo tanto entre os
pagãos como entre os cristãos, conseguindo seu intento. É na floresta,
junto dos anões e com o auxílio da Madrasta/mãe/bruxa, que Branca
de Neve completa a iniciação feminina. A morte ritual e a exposição
no caixão de vidro, completa a passagem da jovem Branca selvagem
para a domesticada, apta a assumir seu lugar na sociedade junto do
príncipe, por meio do casamento regulado pelo social.
Como as demais bruxas e fadas, Branca de Neve vagueia pela
floresta, por espaços limítrofes do social. Une-se a consortes
animalescos, os anões, com uma sexualidade livre e selvagem, mas

308
O Corpo encantado

assim como outras heroínas são auxiliadas a passarem do espaço


transgressor para o espaço da ordem pelas fadas madrinhas, a Bruxa
auxilia Branca em sua transição. O medo do feminino, associado ao
Diabo, aos marginais e aos espaços de exclusão é uma constante no
medievo e períodos posteriores, como aponta Jacques Le Goff (2020,
p. 158-160).
A floresta, local de refúgio dos indigentes, assume uma
conotação perigosa em função do medo de assaltos e das doenças,
como a lepra, já que os doentes eram banidos para longe das cidades,
obrigados a seguirem errantes, sem poderem se abrigar nos povoados.
Segundo Le Goff (2020, p. 160), para os cristãos do medievo o corpo
é o lugar de encarnação do pecado; transformando, automaticamente,
os enfermos e os doentes em pobres, fazendo dos leprosos imagens
vivas do pecado, assim como as prostitutas. Em um movimento de
báscula, o pobre passa a encarnar os pecados, sendo temido física e
espiritualmente. Por isso as jovens heroínas pobres são igualmente
perigosas, quer pela beleza que desvirtua o homem, quer por sua
sexualidade livre, assemelhando-se às bruxas
Paulatinamente, a pobreza transforma-se em um mal, no qual a
aparência conota um caráter ruim, dando lugar no imaginário medieval
à bruxa, mulher velha, ou desmazelada, pobre que habita os limites da
cidade ou interior das florestas, pronta a encantar os corpos dos
incautos. Opondo-se às fadas, retratadas à maneira da elite, em suas
carruagens douradas puxadas por cavalos brancos, ou mesmo dragões,

309
Flávia Regina Marquetti

a bruxa tem como transporte uma velha vassoura, objeto ligado ao


trabalho humilde, de limpeza, vinculado ao vulgacho.
No manual inquisitorial Malleus Maleficarum (2004),
publicado pelos religiosos dominicanos Heinrich Kraemer e James
Spreenger em 1486 ou 1487, encontra-se na primeira parte um rol de
ações ligadas às bruxas, principalmente em como lançar bruxaria
sobre os atos sexuais e a gestação:

Existem, conforme se lê na Bula Papal, sete métodos


pelos quais elas contaminam, através da bruxaria, o ato
venéreo e a concepção; primeiro: fomentando no
pensamento dos homens a paixão desregrada; segundo:
obstruindo a sua força geradora; terceiro, removendo-
lhes o membro que serve ao ato; quarto, transmutando-
os em bestas pela sua magia; quinto, destruindo a força
geradora das mulheres; sexto, provocando o aborto;
sétimo, oferecendo, em sacrifício, crianças aos
demônios, além de outros animais e frutas da terra, com
o que causam enormes males. Cada um desses métodos
será considerado ulteriormente; concentremo-nos por
ora nos males causados aos homens. (L1, q.5)
[...]
Mas é por bruxaria que [os demônios] realizam tais
obras quando para tal se utilizam de bruxas, por virtude
do pacto com elas firmado. [...] Quantos adúlteros já não
repeliram a mais linda das esposas para se entregarem
lascivamente à mais perversa das mulheres! Sabemos do
caso de uma velha mulher que, segundo o relato dos
irmãos de um certo mosteiro, dessa forma não só
enfeitiçou sucessivamente três abades como os matou e,
da mesma maneira, fez enlouquecer a um quarto. Pois
confessou ela publicamente e sem medo: “Assim fiz e
assim faço, e não me podem resistir pelo muito que
comeram do meu estrume”, disse ela, pondo à mostra
uma parte de seu braço. Devo admitir que, como não
dispúnhamos de argumentos evidentes para processá-la
ou para trazê-la a julgamento, ainda está viva até hoje
(L1, q.6).

310
O Corpo encantado

Embora o Malleus Maleficarum diga abordar os feiticeiros de


ambos os sexos, o foco está no feminino e como apontado nos grifos
acima, as bruxas seduzem os homens, mesmo sendo velhas, levando-
os a perderem-se tanto física quanto espiritualmente, possuem
capacidade de torná-los estéreis, emasculá-los ou transformá-los em
animais. Sistematizando um perfil desenhado desde a Antiguidade,
sobretudo no período romano, e ratificando a exclusão das mulheres,
principalmente as pobres e, em especial, das velhas e fora do jugo
masculino.
Nas narrativas há uma desigualdade no tratamento dado pelas
bruxas aos personagens femininos e masculinos. Nos contos em que a
personagem principal é uma jovem mulher, as bruxas são geralmente
madrastas, substituem as mães, e são personagens ativos por todo o
conto, elas tramam a morte das rivais/heroínas jovens, mas não as
metamorfoseiam em animais, como nos dois contos citados
anteriormente. Há nesse conjunto de contos um embate entre iguais,
um jogo complementar que remete aos antigos rituais de iniciação das
jovens em sociedades arcaicas.
Neste duplo: heroína/bruxa, as jovens são apresentadas como
obedientes e belas, de peles alvas e macias, cabelos sedosos e muito
mais belas, em sua simplicidade, destituída de joias e adornos, que
suas irmãs ou madrastas, repletas de rendas e adornos; ao passo que a
madrasta e a bruxa escondem seu verdadeiro aspecto, de velha

311
Flávia Regina Marquetti

desgrenhada e suja, sob a face de uma mulher madura, mas bela e


sedutora15, capaz de atrair o desejo do pai da jovem ou do rei,
subjugando-o com seus poderes mágicos, que, em última instância,
revelam-se como expedientes da sedução, da luxúria selvagem e
natural. Essas Senhoras perigosas e sedutoras são ávidas de poder e
não se submetem ao jugo masculino ou social, à margem da
sociedade, pois não respeitam suas regras e códigos morais, elas são
mostradas como demônios disfarçados. Mas nem a madrasta é tão má
assim, nem a jovem heroína é tão dócil e tola. Sob a máscara
romântica e cristã ainda é possível divisar a união de mãe e filha e de
como a “velha” auxilia a jovem a passar de virgem a mulher. E como
não poderia deixar de ser, essa passagem transgressora e feminina se
dá fora dos limites sociais/patriarcais, na floresta.
Quando o personagem principal dos contos é masculino, o
príncipe, geralmente as bruxas são apenas nomeadas ao final, elas
surgem como a justificativa para a forma animalesca do príncipe.
Formam com a jovem heroína, que o salva de sua face animal,
novamente um duplo. É pelas mãos do feminino que o grupo é
regrado, a bruxa pune o jovem de seu mau caráter metamorfoseando-o
em animal, enquanto a jovem, abnegada e bondosa, o desencanta. Vale
observar que a jovem, muitas vezes tida como pobre ou humilde, traz

15 Há um conflito na descrição da madrasta e da bruxa, não se pode definir


exatamente se ela é bela e se disfarça de velha, ou o contrário. De qualquer forma, as
duas faces, a da beleza e a da velha bruxa, compõem a identidade perigosa da
madrasta.

312
O Corpo encantado

todos os traços da elite, compactua com os códigos morais e religiosos


de seu grupo, por isso sempre vem como bondoso, obediente e
temente a Deus nesses contos.
Dentre os inúmeros contos, um dos mais conhecidos é A Bela e
a Fera, que na sua versão mais antiga recebia o nome de O Monstro
Peludo, edição alemã de Von K. O Beetz (1939, p.132-158)16.
Diferentemente das versões atuais, sobretudo dos desenhos da Disney,
na qual o monstro não inspira repulsa, na versão original ele é bastante
repugnante17:
[...] um corpo desengonçado e coberto de espessa
camada de pelos, terminando por uma cauda enorme
e cabeluda. As quatro patas davam ideia de um
lagarto gigantesco de garras poderosas. O pescoço
coberto de escamas terminava numa cabeça
alongada e as queixadas enormes apresentavam uns
dentes aguçados através dos quais escorria uma baba
pegajosa (BEETZ, 1939, p. 136).

Neste conto, como em outros, o Monstro vive em um castelo,


porém este se localiza no interior de uma floresta cercada de espinhos
e muito distante das cidades. A bruxa o transformou em um ser
horripilante, assim como metamorfoseou todos seus familiares e
habitantes do reino em animais e/ou plantas. O motivo do

16 Utilizaremos as versões mais antigas dos contos em função de serem elas mais
próximas dos mitos e narrativas orais, menos abrandadas e atenuadas no que
concerne à indicação de possíveis ritos iniciáticos arcaicos. Sobre este tema,
conferir: Marquetti (2013, p. 309-366).
17 Ver a correlação da descrição do monstro com os semas sexuais masculinos em
Marquetti (2013, p. 309-366).

313
Flávia Regina Marquetti

encantamento é revelado no final do conto, após o jovem príncipe


retornar à forma humana e bela:
[…] Queres saber porque caiu sobre nós a terrível
maldição? [diz o príncipe a Augusta]
Meus pais eram fracos com seus filhos e jamais
corrigiram nossos defeitos. Tornamo-nos orgulhosos e
maus e o pior de todos fui eu, sofrendo, por este motivo,
o castigo mais rigoroso. Fui transformado num monstro
peludo devendo velas pelos meus, tornados em flores
silvestres (BEETZ, 1939, p. 152).

Surge assim nos contos, a punição em decorrência da conduta


moral dos personagens, sobretudo daqueles da classe dominante, os
príncipes e reis. Mas de forma mais ampla, dita uma norma de conduta
moral para toda a sociedade.
Um dos poucos contos no qual a bruxa é substituída pela
própria mãe dos personagens é Os sete corvos, também apresentado
por Beetz. No conto, os sete irmãos de uma família muito pobre são
descritos como vadios e maus, em oposição à única filha, Hilda, boa e
obediente, e por desejo da mãe são metamorfoseados em corvos. O
texto nos informa que eles moram na floresta, em uma choupana,
paupérrimos, os pais labutam arduamente para alimentar e vestir os
filhos. É durante um inverno rigoroso, enquanto a mãe prepara uns
pães e os filhos a atormentam em algazarra, impedindo-a de trabalhar,
que ela os encanta sem querer:
- Oxalá vos transformásseis em corvos e voásseis para
longe daqui a fim de que eu tenha sossego!
[...] Apenas ela acabara de falar, os rapazes começaram
a encolher. Suas roupas viraram penas negras, os braços
tomaram a forma de asas e rrr rrr bateram o ar,
grasnando; sete corvos saíram voando pela porta afora.

314
O Corpo encantado

A infeliz mãe ficou paralisada de terror...


A pobre mãe arrancava os cabelos de desespero e
clamava, sem cessar:
- Meus filhos, meus queridos filhinhos! Voltai! Não foi
por mal! Vinde que eu cozerei um pãozinho para cada
um de vós (BEETZ, 1939, p. 96-97).
Embora o narrador isente de culpa a mãe, parecendo fazer o
encantamento algo acidental com o seu desespero, observa-se na
camada mais profunda do discurso a relação da mulher pobre,
moradora da floresta e habituada ao trabalho pesado, com a da bruxa.
Paira uma dúvida no texto: se ela ignora ser capaz de transformar os
filhos, portanto, ela é uma bruxa e não o sabe; ou se ela é uma bruxa e
sabe disso, mas inadvertidamente, em um momento de fúria encanta
seus próprios filhos.
Há aí um triplo julgamento, o dos rapazes, o da mãe e o de
Hilda, a única filha, a caçula, a quem caberá empreender uma dura
jornada até o fim do mundo e desencantar os irmãos. Estes, após
voarem para fora de casa, passam a habitar uma cabana, só com
janelas, sobre a única árvore de uma montanha inexpugnável nos
confins do mundo. Hilda para os desencantar, além de mutilar as
mãos, arrancando com os próprios dentes quatro dedos para compor a
escadinha que tece para alcançar o cume da montanha; faz, após se
reencontrar com os irmãos, um voto de silêncio de sete anos, enquanto
tece sete camisas para jogar sobre eles e desfazer o encantamento da
mãe. É parte da crença popular ocidental que a filha nascida após sete
filhos homens seguidos será uma bruxa.

315
Flávia Regina Marquetti

O percurso realizado por Hilda pressupõe um ritual iniciático,


de aprendizagem com seres divinos, da natureza e fora do rol humano
comum, comprovando o caráter mágico da jovem. Segundo Chevalier
e Gheerbrant (1989, p. 826-831), o sete é um número místico e está
associado em quase todas as culturas a uma renovação positiva, um
ciclo concluído, assim como uma totalidade em movimento,
implicando os sete estados da matéria, os sete graus da consciência e
as sete etapas da evolução. Hilda, enquanto maga/feiticeira, passa pela
iniciação até tornar-se detentora de todo saber.
Como no caso de Augusta, do conto O Monstro Peludo, é a
boa índole de Hilda, o coração bom e obediente, além de sua ação
abnegada e carinhosa que restitui a forma humana aos encantados. Em
O Monstro Peludo são as lágrimas de Augusta que transformam o
monstro em humano, não sem antes a jovem percorrer toda a floresta a
pé, lacerando o corpo nos espinhos; em Os sete corvos o desencanto
dos jovens ocorre também com o sacrifício físico da jovem acrescido
do tecer, tema recorrente nos contos e mitos da Antiguidade,
associados ao feminino e à função de gerar.
Se o encantamento ocorre geralmente no meio da noite, a
reversão deste se dá no final da tarde, no crepúsculo, como em O
Monstro Peludo; ou com os primeiros raios de sol, em Os sete corvos.
As jovens heroínas, opondo-se à figura da bruxa má, desencantam os
corpos na fronteira entre o dia e a noite, aurora e crepúsculo. Marcadas

316
O Corpo encantado

pelo mesmo sema das bruxas, a capacidade de encantar/desencantar,


mas no extremo oposto, elas não trabalham na escuridão, mas sim no
limite entre a luz e a escuridão, o que revela poderem transitar entre
estes dois polos. A imagem das jovens é também ambígua, como a de
algumas bruxas, embora trabalhem dia e noite fiando, escalem
montanhas, percorram grandes trajetos a pé, são descritas como belas,
delicadas, de peles claras, cabelos loiros, muito mais próximas das
classes abastadas e das fadas. Não é fortuito que essas belas e
abnegadas jovens se tornarão rainhas ao final dos contos.
Há, portanto, um duplo limite no qual as bruxas, fadas e
magas transitam: entre o mundo civilizado, das cidades, e o selvagem,
geralmente ligado às florestas; o outro é o crepúsculo, quando sombra
e luz se fundem. Da mesma forma, no nível profundo da narrativa há
um outro ponto de convergência no qual as personagens femininas se
encontram: o limiar entre a castidade e a sexualidade. Como em um
pântano, elas transitam entre a terra firme da castidade imposta pelo
social e o fluido, manante da sexualidade livre e temida pelo grupo
social, sobretudo dentro das religiões cristãs e sociedades patriarcais.
Augusta, Hilda, Branca de Neve, entre muitas outras, coabitam
com seus consortes monstruosos por um ano ou mais em casas na
floresta, realizando os serviços domésticos, zelam pela ordem da casa,
cuidam do fogo e fiam. Propp (1997, p. 125-68) vê nos contos uma
reprodução do espaço e dos ritos iniciáticos para jovens. Segundo o

317
Flávia Regina Marquetti

autor, isso indicaria um casamento grupal, que deve sua origem à


prática da poliandria e tende a terminar em casamento a dois: “ela
escolhe um companheiro ou amante, do qual é nominalmente senhora;
este é responsável por seu pagamento ou recompensa” (PROPP, 1997,
p. 141).
As jovens presentes na casa dos homens eram chamadas de
irmãs, os homens (irmãos) as tratam bem e não forçam seus favores,
geralmente, presenteiam-nas com flechas e arcos para os parentes,
fumo, colares etc. As mulheres ficam apenas temporariamente nas
casas, em seguida elas se casam.
A coletividade masculina da casa dos homens vive
exclusivamente da caça, pois os produtos agrícolas lhe são proibidos,
como os animais selvagens, eles caçam juntos e realizam tudo em
comum. A aparência de animais, assumida pelos irmãos, decorre,
segundo Propp, do fato de eles serem iniciados e, para o grupo, os que
viviam nas casas masculinas ou casas da floresta eram imaginados
como animais e mascaravam-se como tais (PROPP, 1997, p. 148).
Observa-se nesses ritos iniciáticos traços comuns com os mitos e
contos.
No espaço selvagem, fora do civilizado, das regras da cidade,
há a possibilidade de sexo livre, enquanto nos ritos iniciáticos aludidos
por Propp isso não desabona as jovens; já nos contos, ao ser velada a
defloração da jovem, observa-se a depreciação do sexo livre. Ela

318
O Corpo encantado

figura nos contos camuflada de violência, pelo ferir-se das próprias


jovens, como o arrancar dos dedos das mãos com os dentes (Hilda), o
lacerar-se na corrida pela floresta (Bela), apontando para práticas
muito antigas às quais os contos aludiam em sua origem oral.
O aspecto erótico no episódio de Circe e Odisseu, ou os
presentes nas narrativas de Apuleio, são exemplos claros do temor que
a sexualidade feminina livre inspirava na Antiguidade Clássica e
continuou a inspirar. Segundo Chiara Pilo (2014, p. 213), na
iconografia mais antiga, Circe é representada nua no embate com
Odisseu, encarando-o enquanto ele se prepara para desembainhar sua
espada, a presença de flores de lótus na cena confirma o simbolismo
sexual. O poder sedutor de Circe e outras magas funciona como um
feitiço afrodisíaco e constitui uma fonte de perigo porque perturba as
relações habituais homem/mulher, dominador/dominado, invertendo-a.
Segundo Pilo (2014, p. 220),
[...] para enfrentar os perigos que estão por trás do
charme sedutor da deusa [como também das bruxas], o
herói deve usar ferramentas e expedientes de tempos em
tempos adaptados às armas que a feiticeira mítica usa: a
erva moly contra a pharmaka lygra, a espada contra a
varinha, as palavras sagradas e obrigatórias do
juramento contra o encantamento erótico. O aspecto que
mais nos interessa é claramente a justaposição da espada
à varinha, o que se confirma a nível iconográfico no
lekythos do Pintor Nikon onde a varinha de Circe
corresponde numa construção simétrica da imagem à
arma de Ulisses. A espada, que com uma alusão não
muito velada a feiticeira convida a colocar na bainha,
funciona como símbolo fálico. A varinha, que constitui
sua contraparte, não pode deixar de pertencer ao mesmo
sistema de referências simbólicas.

319
Flávia Regina Marquetti

A mulher sexualmente livre, detentora de um conhecimento


que ultrapassa o regulado pela sociedade, equivale a um oponente
masculino, a varinha da bruxa, símile da espada e também do falo, é
conotada como poder e perigo para o grupo estruturado sob o poder
masculino. As jovens heroínas dos contos, ao vagarem pelos campos
selvagens, incivilizados, são potencialmente perigosas, pois sob a face
da boa filha, obediente e abnegada, pode-se esconder uma bruxa,
como de fato se esconde. Elas enfeitiçam eroticamente os homens,
torna-nos submissos a elas; capazes de os desencantar da forma
animal, conhecem, portanto, os segredos dos encantamentos, não
sendo totalmente confiáveis. É por isso que, apesar de todo o controle
ao qual os contos foram submetidos, a bruxa surge como personagem
explícito na narrativa quando o foco é a jovem heroína e não o
príncipe. Ao colocá-las em pólos opostos, as narrativas fazem-nas se
encontrarem no outro extremo do círculo.

A floresta, a invisibilidade e a sexualidade

Notadamente a floresta é o espaço da bestialidade, das relações


livres entre os pares, da transgressão. Semelhante ao deserto do Antigo
Testamento, a floresta não é um lugar de solidão, mas de provas, de
um vagar sem se fixar (LE GOFF, 2020, p. 36; 105-106). O jovem
príncipe encantado pela bruxa, animaliza-se, troca as armas de
cavaleiro pelas do caçador/predador, despoja-se dos hábitos

320
O Corpo encantado

civilizados, da roupa, da memória, da própria forma humana, não mais


alimenta-se de pão, mas de caça. A metamorfose corporal à qual a
bruxa o submete explicita a desordem, o aviltamento, o não controlar
das paixões, é o corpo de um pecador, opondo-se ao corpo harmonioso
ao qual retornará após purgar seus pecados. O príncipe desencantado é
o do jovem temente a Deus, sem paixões nem pulsões, mas que aceita
as coerções sociais, da mesma forma que a jovem heroína é salva de
sua índole perigosa de jovem bruxa, pelo casamento com o príncipe.
Ao serem apresentados como animais, ou sujos, os
personagens banidos para fora da esfera do social, apresentam tanto
um estágio de invisibilidade, pois aquele que se cobre de poeira, cinza,
fuligem ou barro oculta-se sob uma camada de terra, tal qual os
mortos e as sementes, tornando-se invisíveis aos vivos; quanto uma
forma de disfarce, estabelecendo uma relação entre o que é encoberto
pela sujeira e a representação do aspecto animal, espécie de máscara,
do mundo selvagem, não civilizado. A mudança de aspecto associa-se
à estada no outro mundo, o personagem retorna ao convívio social
após uma longa peregrinação, ao fazê-lo, vem sob o aspecto de morto,
sujo e decomposto, ou como natural, selvagem, ligado aos animais,
porém, quando reassume o seu lugar na sociedade, livra-se dos
andrajos e ressurge belo e íntegro.
Esse outro mundo, ctônico e selvagem, entre os gregos, está
associado ao reino dos mortos18, e tem um desdobramento interessante

18 Cf. retorno de Odisseu a Ítaca após sua viagem ao Hades (HOMERO, Odisseia).

321
Flávia Regina Marquetti

após o cristianismo, a natureza associada ao ctônico, reino das deusas,


passa a ser reduto do demônio. Vê-se a floresta/bosque como área de
atuação do mal, uma extensão do inferno na terra. Dessa forma, o
outro mundo dos contos não é mais o reino dos mortos, a terra fecunda
do mito, mas o inferno cristão, com todos os seus pecados,
principalmente, a luxúria, que se associa à prática sexual livre e,
portanto, à fertilidade e a fecundidade tão presentes nos mitos das
grandes deusas.
É por isso que a oposição /alto/ x /baixo/ ⬄ /brilho/ x /sujeira/,
tão bem apontada por Courtés (1986, p. 116-121, p. 201-204), mostra
a bruxa ligada ao /baixo/ e ao /sujo/, ou seja, ao mundo ctônico, da
pobreza, enquanto as fadas, ao /alto/ e ao /brilho/, que por sua vez
associam-se ao mundo civilizado, da aristocracia e cristão.
A sujeira assume, portanto, uma conotação moral, de pecado
latente, igual àqueles que não foram salvos pelos sacramentos do
batismo ao nascer. Esses, embora inocentes, estão fora do mundo
cristão, ordenado por Deus e pela Igreja, portanto, no outro mundo,
ctônico e demoníaco, que se opõe ao celeste. Visão idêntica é dada às
relações amorosas não sancionadas pelos ritos do casamento, os
amantes vivem em pecado, estão “sujos” perante Deus, são movidos
pela luxúria e pelo demônio.
Os ritos do batismo e do casamento, no cristianismo, apontam
claramente para a necessidade de purificar e trazer para junto do social
a criança e os nubentes, pois se não passarem pelos ritos, serão como

322
O Corpo encantado

animais, bestas selvagens, impuras e que põem em risco a sociedade.


É por isso que o recém-nascido deve ser banhado na pia batismal,
limpo de sua “sujeira” selvagem e natural, ligada ao demônio.
Se a união da jovem e seu consorte era norteada pelo exalçar
sexual, a união mediada pela sociedade é purificada desse excesso
natural, ela é moderada e se inscreve no âmbito das relações
socioeconômicas. O casamento deixa, portanto, de ser o encontro de
dois amantes e passa a figurar o contrato entre dois clãs ou famílias. A
sexualidade assume, dessa forma, um papel negativo e transgressor à
vista da sociedade.
A transformação do animal em príncipe, ou da jovem em
princesa encerra ainda uma mudança de código, de status social. Ao
deixarem para trás a pele animal ou os andrajos e surgirem em belos
trajes, os personagens são retirados do status da pobreza, relacionada à
vilania, e alçados à elite dominante, portanto, à dignidade.
Vindas da natureza e semelhantes a ela, as mulheres, embora
ocupem um lugar no universo patriarcal da sociedade, não pertencem
a ele. Perigosas e transgressoras, elas devem ser confinadas e vigiadas
por seus pais, tutores ou maridos. Anjos que salvam e que perdem o
homem, delas vem toda a vida e todo o mal.
O verdadeiro corpo encantado dos contos é o corpo dos pobres,
dos excluídos. O medo da sublevação daqueles que foram deixados à
margem do social, que vivem animalizados, da caça e da coleta de
urzes e raízes, que conhecem as ervas e as usam como remédio, das

323
Flávia Regina Marquetti

relações sem a coerção religiosa ou moral dos dominantes, fez surgir a


figura da feiticeira e do mago, temidos pelo seu conhecimento dos
astros, das plantas, dos ciclos da natureza, mas que, ao fim e ao cabo,
são os que sustentam a elite, labutam para alimentá-la, limpar seus
castelos, casas, roupas. O medo do encantamento é o medo da
pobreza, ser encantado, transformar-se em animal é tornar-se pobre,
excluído da sociedade e de seus meios de produção de riqueza. As
práticas mágicas, tão temidas pela elite dominante, visam, na verdade,
modificar a ordem estabelecida das coisas, subverter o destino dos
pobres.

Referências

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324
O Corpo encantado

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Flávia Regina Marquetti

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narradores. Tradução de Thelma M. Nóbrega. São Paulo: Companhia
das Letras, 1992.

326
Gênero e Magia em Roma: as feiticeiras
Canídia e Ságana na Sátira I, 8 de Horácio
Semíramis Corsi Silva1

Introdução

Magia é uma palavra latina advinda do termo grego µαγεία,


que, inicialmente, era usada para definir as práticas religiosas dos
sacerdotes persas, os magos (magi no latim e µάγοι, no grego), como
vemos em Cícero (De divinatione, I, 46; I, 91) e Catulo (Poema 90).
Ao longo do Principado Romano, a palavra vai tomando um sentido
de ritual e de arte comum ao universo latino, o que é possível ver, por
exemplo, nos escritos de Virgílio (Eneida, IV, 492; Écloga 8, 66) e
Plínio, o velho (História Natural, VIII, 106; XI, 203), além de ir se
configurando em algo nefasto, como na acusação de crimen magiae
contra Apuleio (Apologia, 25, 5), em meados do século II EC.
A literatura greco-romana traz variados termos para se referir
às práticas que podemos englobar sob a rubrica magia, tais como:
φαρµακεία, γοητεία, veneficium, maleficium, carmen e excantare. Da
mesma forma, além do termo µάγος, em grego, e magus, em latim,
temos nomes diferentes para identificar os praticantes da magia, tais

1 Professora Adjunta do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação


em História da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Possui Doutorado
(2014), Mestrado (2006) e Graduação (2003) em História pela Universidade
Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - UNESP/Franca. Foi bolsista CAPES
durante o mestrado e o doutorado. Realizou estágio de doutorado na Universidad de
Salamanca, Espanha (com bolsa do Programa de doutorado sanduíche no exterior -
PDSE, CAPES). Também realizou estágio de pesquisa na École des Hautes Études
en Sciences Sociales de Paris - EHESS - Centre ANHIMA.

327
Semíramis Corsi Silva

como as palavras gregas ἐπῳδός, γόης e φᾰρµᾰκεύς e as latinas vates,


mathematicus, maleficus, hariolous, philosophus, mantis, veneficus,
entre outras. Em relação às mulheres praticantes de magia, temos
termos como: φαρµακίς, em grego, e venefica, anus, striga, saga,
entre outros, em latim. Na literatura greco-romana, os termos
dependiam da situação na qual as feiticeiras eram representadas2.
Nos estudos modernos, a palavra magia tem sido usada como
uma categoria heurística (RIVES, 2003). Ou seja, como um amplo
conceito definidor de práticas imorais e inaceitáveis ou, em uma
definição que achamos bastante pertinente, de uma série de
procedimentos que têm em comum a utilização de uma técnica correta
(ars, em latim, τέχνη, em grego) a fim de agir sobre a ordem do
universo.3 Técnica essa que, ao mesmo tempo em que destaca a
agência humana na busca de domínio da natureza, envolve crenças,
esconjuros e também orações, súplicas, piedade, etc. Dessa forma,
apenas colocar as práticas mágicas como uma tentativa de controle do
universo e superação do mundo material não responde totalmente à
complexidade do fenômeno.

2 Sobre esse assunto, ver Spaeth (2014, p. 41-42).


3 Destaca-se o importante papel do antropólogo James Frazer em O ramo de ouro
que, ao teorizar sobre as leis que regiam o pensamento mágico, frisou que magia era
uma espécie de “falsa ciência”, uma prática destinada a produzir efeitos especiais
pela aplicação das duas leis da chamada simpatia universal: a lei de similaridade/
magia imitativa (semelhante atrai semelhante e produz seus efeitos práticos) e a e lei
de contiguidade/magia contagiosa (identificação da parte com o todo). No entanto, a
perspectiva evolucionista de Frazer o fazia perceber a existência de diferenças entre
o pensamento mágico, o religioso e o científico, separando esses domínios, o que
tem sido bastante questionado.

328
Gênero e Magia em Roma

Em linhas gerais, as práticas classificadas como mágicas não


se desenvolvem sem a religiosidade, mas uma diferença fundamental
que os estudiosos do tema costumam aceitar é que, por um lado o
homem religioso oferece sua admiração com humildade e submissão à
uma divindade e, por outro lado, o mago busca forçar os poderes
sobrenaturais para conseguir o que deseja através das técnicas
adequadas, o que, no entanto, é algo bastante complexo, pois em um
rito considerado mágico é possível perceber, muitas vezes, oração
(tom de súplica) e esconjuro (tom imperativo em relação aos seres
evocados) juntos.4 A pesquisadora Anne-Marie Tupet (1976, p. VIII)
acrescenta: a religião implora ao deus sua ajuda, a magia obriga, mas
quando o fiel pratica o culto aos mortos, por exemplo, ele aplica os
mesmos ritos do mago. Assim, é importante admitirmos a existência
de um campo de ação comum, um conjunto de rituais e liturgias que se
interferem no que diz respeito ao que podemos considerar de forma
generalizante pela categoria magia e pela ideia do que seria religião.
A partir disso, é possível perceber que a principal diferença
entre magia e religião não está nas práticas em si, mas na forma como
determinadas sociedades conceberam os ritos, como no caso da
romana, por exemplo, em que se concebeu a existência de rituais e
crenças ilícitas e supersticiosas (superstitio) e devoção e piedade aos
deuses aceitas (religio). Assim sendo, podemos considerar que muitos
textos advindos das sociedades mediterrânicas irão conceber a magia

4Como, por exemplo, nos rituais das defixiones 6, 19, 20, 23 e 30 do Catálogo de
defixiones laciais elaborado por Carlos Eduardo da Costa Campos (2021).

329
Semíramis Corsi Silva

enquanto alteridade (CAMPOS, 2021, p. 22, 26), apresentando a


mesma como uma série de procedimentos técnicos para fins cotidianos
que podiam estar presentes mesmo na religiosidade oficial, mas que se
configuraram como uma alteridade
Os escritores romanos de diversos gêneros escreveram sobre as
práticas consideradas aqui sob a rubrica de magia. Em relação à
literatura, os escritores do contexto romano criaram personagens,
descreveram rituais em seus pormenores, a partir de seu olhar,
biografaram e recriaram personagens envolvidos em magia e se
mostraram muito originais. Podemos citar vários autores e suas obras,
entre ele: Virgílio (em Eneida, IV, 450-705 e na Écloga 8), Ovídio
(em Os fastos, Remédios para o amor, A arte de amar e nas Elegias),
Horácio (nos Epodos e nas Sátiras), Propércio (nas Elegias), Petrônio
(no Satyricon), Lucano (em Farsália), Sêneca (na tragédia Medeia),
Apuleio (nas obras Apologia e O asno de ouro), Pseudo-Quintiliano
(nas Declamações Maiores 14 e 15), Luciano (em Alexandre ou o
falso profeta e Diálogo das cortesãs) e Filóstrato (em Vida de
Apolônio de Tiana), por exemplo.
Neste texto nos concentraremos em Horácio (Quintus Horatius
Flaccus), escritor romano que viveu entre 65 e 8 AEC, considerado o
poeta romano que mais escreveu sobre a temática da magia.
Buscaremos analisar elementos da importante criação literária de
Canídia e Ságana, consideradas as primeiras feiticeiras literárias de
Roma e, consequentemente, personagens de grande valor para nossa
percepção de elementos de gênero na criação do estereótipo da mulher

330
Gênero e Magia em Roma

praticante de magia. Além disso, tais personagens são importantes


também para o desenvolvimento de um imaginário sobre a magia,
mais especificamente sobre a mulher feiticeira, que acabou
ultrapassando as fronteiras do antigo Império Romano, constituindo-se
como um protótipo da bruxa velha e sábia, encontrado futuramente em
diversas representações artísticas de outros contextos históricos como,
por exemplo, em algumas pinturas do artista espanhol Francisco de
Goya (1746-1828), tais como: Vuelo de brujas (1798), El aquelarre
(1798), El conjuro (1798), La cocina de las brujas (1798), Linda
maestra (1799), Mucho hay que chupar (1799), El aquelarre ou El
Gran Cabrón (1819-1823), Sueño de hechicera (1819-1823) e Mala
mujer (1819-1823).
Em relação aos poemas de Horácio, as personagens de Canídia
e Ságana aparecem juntas na Sátira I, 8 e no Epodo 5. Canídia ainda
aparece sozinha no Epodo 3, quando ela é referida como uma mulher
pérfida que produz venenos/magias (venena); na Sátiras II, 1, na Sátira
II, 8 e no Epodo 17, sendo esse último um poema dedicado somente a
ela, quando o poeta se redime perante a feiticeira (verso 1 ao 52) e lhe
deixa falar (verso 53 ao 81).
Cumpre ressaltar que os dois livros das Sátiras de Horácio
foram publicados entre 35 e 30 AEC e os Epodos foram publicados em
30. O Livro I das Sátiras foi o primeiro publicado por Horácio, embora
seja possível que alguns Epodos tenham sido escritos antes de algumas
Sátiras. Não podemos precisar, portanto, a ordem exata de aparição

331
Semíramis Corsi Silva

das personagens de Canídia e Ságana na poesia horaciana, havendo


pesquisadores que apontam o Epodo 5 como tendo sido escrito antes
da Sátira I, 8, os dois principais poemas em que elas são protagonistas
(TUPET, 1975, p. 318; PAULE, 2017, p. 44). Segundo Maxwell Teitel
Paule (2017, p. 44), seguindo os autores que defendem que a escrita
do Epodo 5 foi anterior à escrita da Sátira I, 8: “a menção de um
cemitério no Esquilino no Epodo 5 sugere que o poema foi escrito (ou
talvez simplesmente definido) antes das renovações de Mecenas que
aparecem na Sátira 1.8”. Tais renovações transformam o cemitério em
um jardim, como mostra a Sátira em questão.
Neste texto, nos centraremos na Sátira I, 8, a fim de analisar
melhor os elementos e o estilo do poema.

A representação de Canídia e Ságana na Sátira I, 8


de Horácio

A Sátira I, 8 tem como cenário o antigo cemitério de plebeus e


escravos nas Esquílias, local em que Mecenas, o futuro patrono das
artes do imperador Augusto (27 AEC - 14 EC) e amigo pessoal de
Horácio, transformou em um jardim, como comentado acima. O
narrador, um ponto importante do tom satírico do poema, é o deus
itifálico Priapo, colocado ali como uma espécie de espantalho que,
além de trazer proteção divina para o jardim, ainda serve para de fato
espantar passarinhos e ladrões. Priapo nos conta que:

332
Gênero e Magia em Roma

Olim truncus eram ficulnus, inutile lignum,


cum faber, incertus scamnum faceretne Priapum,
maluit esse Deum. Deus inde ego, furum aviumque
maxima formido; nam fures dextra coercet
obscaenoque ruber porrectus ab inguine palus,
ast inportunas volucres in vertice harundo
terret fixa vetatque novis considere in hortis.
huc prius angustis eiecta cadavera cellis
conservus vili portanda locabat in arca;
hoc miserae plebi stabat commune sepulcrum;
Pantolabo scurrae Nomentanoque nepoti
mille pedes in fronte, trecentos cippus in agrum
hic dabat, heredes monumentum ne sequeretur.
nunc licet Esquiliis habitare salubribus atque
aggere in aprico spatiari, quo modo tristes
albis informem spectabant ossibus agrum.

Uma vez eu fui um tronco de figueira, uma madeira sem


valor. Na ocasião, o carpinteiro esteve em dúvida se
fazia um banquinho ou um Priapo, escolheu que eu seria
um deus. Um deus, então, eu me tornei, de ladrões e
passarinhos, o terror; com uma estaca vermelha,
obscenamente projetada da virilha, com a mão direita,
atemorizo os ladrões. Uma cana pendurada na minha
coroa, assusta os pássaros travessos e os impede de
pousar novamente no jardim.
Neste lugar, outrora, o escravo colocava os cadáveres
rejeitados de seus companheiros, que tinham que ser
carregados em pobres esquifes. Era um sepulcro comum
da plebe miserável, para o parasita Pantolabo e para o
esbanjador Nomentano. O pilar marcava no campo, à
mil pés na frente e trezentos ao fundo, o monumento
não podia ser herdado. Agora é bom morar nas Esquílias
e se aglomerar em passeios ao sol, onde, outrora, os
tristes somente viam um campo deformado de ossos
brancos (HORÁCIO, Sátira I, 8). 5

Na passagem acima, pela figura de Priapo, já temos um


importante elemento da sátira. Como vemos, Priapo ameaça ladrões,
como as feiticeiras que vão ao cemitério buscar ervas e ossos, com seu

5A tradução do latim para o português da Sátira I, 8 é de Semíramis Corsi Silva e


Gabriel Freitas Reis. Trouxemos toda tradução do poema para este texto,
apresentando-a na sequência do poema.

333
Semíramis Corsi Silva

enorme pênis, sugerindo a penetração (stuprum). A partir de passagens


como essa da poesia latina, a historiadora Amy Richlin (1992)
desenvolveu o chamado Priapic Model, analisando Priapo como uma
figura central de todo humor sexual romano encontrado na literatura e
uma metáfora para o papel do próprio poeta satírico. O narrador dos
poemas sexuais de humor, assim, aparece sendo Priapo, que na
posição de um homem ameaçador, narra sobre suas vítimas de forma
ativa, às vezes ameaçando-as de exposição ou penetração, seja
vaginal, anal ou oral, liberando, com isso, os sentimentos hostis do
poeta em relação às personagens em cena. O falo, nesse sentido, é a
arma do narrador e o tom poético da narrativa faz com que as
invectivas obscenas de Priapo se tornem aceitáveis.
Ainda que pese tal percepção sobre a presença e o sentido do
deus Priapo nestes poemas satíricos enquanto metáfora do próprio
poeta e de suas denúncias, perspectivas como a de Richlin (1992)
endossaram uma visão da importância do papel penetrativo para a
masculinidade hegemônica romana, pensando as práticas sexuais dos
romanos guiadas pela ideia de que ser penetrado era algo humilhante,
especialmente ao cidadão. A partir desse modelo, Priapo seria o
reflexo do ideal de masculinidade romana agressiva e penetradora.
O modelo penetrativo de análise da sexualidade romana tem
sido bastante questionado diante das outras masculinidades possíveis
(WILLIAMS, 2010; GODOY, 2015), bem como da análise das
diferentes potências do deus Priapo (COZER, 2018). Embora não
caiba nesta apresentação entrar neste debate, cumpre destacar que

334
Gênero e Magia em Roma

penso Priapo na Sátira I, 8 como parte do elemento satírico do poema.


Se Priapo também faz rir, sua masculinidade também é criticada, ele é
parte do descontrole. Paradoxalmente, ele é uma ameaça masculina,
mas uma ameaça engraçada na Sátira.
No antigo cemitério onde hoje nosso Priapo se encontra, as
feiticeiras Canídia e Ságana vão em busca de ossos e ervas para seus
encantos, dando a oportunidade ao poeta para, por meio do deus-falo,
descrever sua visão sobre o aspecto dessas mulheres:
cum mihi non tantum furesque feraeque suetae
hunc vexare locum curae sunt atque labori
quantum carminibus quae versant atque venenis
humanos animos: has nullo perdere possum
nec prohibere modo, simul ac vaga luna decorum
protulit os, quin ossa legant herbasque nocentis.
vidi egomet nigra succinctam vadere palla
Canidiam pedibus nudis passoque capillo,
cum Sagana maiore ululantem: pallor utrasque
fecerat horrendas adspectu. scalpere terram
unguibus et pullam divellere mordicus agnam
coeperunt; cruor in fossam confusus, ut inde
manis elicerent animas responsa daturas.

Neste momento, para mim, os ladrões e as feras


acostumadas a perturbar o lugar, não me causam tanto
trabalho e problema quanto aquelas que com seus
encantamentos e venenos transformam as almas
humanas. De modo algum, eu posso impedir ou proibir
que elas venham aqui buscar mirrados ossos e ervas
nocivas, assim que a vaga lua traz à luz sua bela face.
Eu mesmo vi Canídia caminhando com uma longa toga
negra, de pés descalços e com o cabelo desgrenhado,
uivando com Ságana, a mais velha. A palidez lhes dava
um aspecto horrendo. Elas começaram a escavar a terra
com as unhas e a rasgar violentamente uma cordeira
negra com os dentes. O sangue foi derramado na cova
para atrair os Manes, as almas que trarão as respostas
(HORÁCIO, Sátira I, 8).

335
Semíramis Corsi Silva

O cenário, portanto, é noturno, pelo próprio caráter ilícito da


prática. Horácio sublinha a palidez das feiticeiras e o uivo que elas
emitem, o que poderia demonstrar uma identificação com os cães de
Hécate. O estado das feiticeiras é animalesco. Canídia e Ságana uivam
(ululantem), escavam a terra com as unhas e rasgam a cordeira com os
dentes. No Epodo 5, Horácio compara Ságana a um javali (aper) em
fuga, enquanto Canídia traz serpentes em seus cabelos e Ságana tem
seus cabelos eriçados como um ouriço-do-mar ou uma jibóia. Também
como no Epodo 5, o poeta coloca Canídia com os cabelos em
desordem na Sátira I, 8, o que talvez fosse uma forma usada pelo
poeta para lhe conferir um aspecto horrendo, mas, da mesma maneira,
engraçado, lembrando que se trata de uma sátira. Canídia usa uma
longa toga preta e tem os pés descalços. Assim, já em Horácio
notamos um estereótipo comum de feiticeiras que dura até os dias
atuais em certas representações. E, neste momento, Horácio se refere à
verdadeira intenção do ritual: interrogar a alma dos mortos (manis/
animas/umbrae) em um rito de necromancia. Mas, mais do que apenas
interrogar os mortos, elas querem seu auxílio em um ritual. O cordeiro
sacrificado poderia ser uma forma de atrair os mortos ou de agradecê-
los pela ajuda.
Em seguida, vemos Horácio descrever um rito consagrado na
magia de todos os tempos que é o uso de figuras com a finalidade de
representar o que se quer atingir.

336
Gênero e Magia em Roma

lanea et effigies erat altera cerea: maior


lanea, quae poenis conpesceret inferiorem;
cerea suppliciter stabat, servilibus ut quae
iam peritura modis. Hecaten vocat altera, saevam
altera Tisiphonen: serpentes atque videres
infernas errare canes lunamque rubentem,
ne foret his testis, post magna latere sepulcra.
mentior at siquid, merdis caput inquiner albis
corvorum atque in me veniat mictum atque cacatum
Iulius, et fragilis Pediatia, furque Voranus.

Havia duas bonecas, uma de cera e outra de lã, a maior,


que aplicava castigos à menor. A de cera estava parada
em posição suplicante, como escravos prestes a morrer.
Uma chama Hécate, a outra invoca a selvagem Tisífone.
Era possível ver serpentes e cadelas errarem sob a lua
avermelhada que, para não testemunhar o acontecido, se
escondia atrás de uma grande sepultura. Se eu estiver
mentindo, que minha cabeça seja suja pela merda dos
corvos brancos e venham mijar e cagar em mim Júlio, o
frágil Pediacia e o ladrão Vorano (HORÁCIO, Sátira I,
8).

Portanto, as feiticeiras trazem duas estátuas, uma de cera e


outra de lã, objetos que nos remetem à Lei da Similaridade de James
Frazer – imagem e objeto semelhante que serve para sua
representação. A arqueologia tem encontrado muitas bonecas de magia
em contextos de práticas em todo o entorno do Mediterrâneo antigo.
Tais bonecas foram produzidas em um arco cronológico longo, desde
os períodos mais recuados, como o etrusco, até a Antiguidade Tardia.
Outro material que nos traz o uso dessas bonecas é o Papiro IV da
coleção de Papiros Mágicos gregos, onde é ensinado como
confeccionar essas figuras de cera ou argila para a prática amorosa
(PGM IV. 296-334).

337
Semíramis Corsi Silva

A cera tem uma maior recorrência neste tipo de boneca mágica,


vemos mais referências a este material nas descrições mágicas em
diversas obras. No Idílio II de Teócrito, a jovem feiticeira Simaeta faz
um filtro amoroso acompanhado de uma figura de cera que representa
o seu amado Delfos. Também no Epodo 17, dedicado às súplicas do
poeta à Canídia e à resposta da feiticeira, Horácio cita o uso de
bonecas de cera em rituais mágicos. Já a lã é um elemento novo,
pouco conhecido. De acordo com J. Pley (1911, apud TUPET, 1976, p.
303), a lã seria usada em práticas mágicas com valores medicinais,
religiosos e mágicos por fornecer o material para as bandagens
empregadas em curativos, estando associada com o desatar de magias.
Essa colocação de Horácio nos faz supor que o rito descrito na Sátira
I, 8 seria um ritual que busca desfazer uma magia. Horácio não
descreve, como faz no Epodo 5, a vítima da magia, nos permitindo
levantar várias suposições, podendo o rito ser de magia amorosa ou
vingativa. O que é fato é que a figura de lã se mostra superior,
podendo representar Canídia ou a pessoa que quer desatar uma magia,
e a de cera, amedrontada, sendo a pessoa que se quer atingir, o feitor
do outro ritual. Mas a feitiçaria também poderia ser para Ságana ou
para alguém que contratou o serviço das feiticeiras. Ao evocar a fúria
Tisífone, a magia pode demonstrar ter um valor de vingança, assim o
boneco de cera representa o suplicante temeroso, vítima da feiticeira
representada no boneco de lã. Mas pode ser que a boneca de cera

338
Gênero e Magia em Roma

representasse a vítima da amarração amorosa e a de lã a feiticeira na


visão de Horácio. Tanto a magia vingativa quanto a amorosa foram
comuns em Roma, como demostram as defixiones.
Canídia chama por Hécate, Ságana invoca Tisífone. O nome de
Tisífone, de criação alexandrina, estaria relacionado a um “castigo
mortífero”. As feiticeiras soltam um grito e se preparam para enterrar a
barba de um lobo e os dentes de uma víbora, este rito parece
neutralizar os efeitos dos encantamentos adversos preparados por
feiticeiras mais poderosas contra possíveis ataques dos mortos.
singula quid memorem, quo pacto alterna loquentes
umbrae cum Sagana resonarint triste et acutum
utque lupi barbam variae cum dente colubrae
abdiderint furtim terris et imagine cerea
largior arserit ignis et ut non testis inultus
horruerim voces Furiarum et facta duarum?

Por que eu deveria lembrar cada detalhe? De que


maneira, falando de forma alternada com Ságana, os
fantasmas proferiam gritos lúgubres e penetrantes?
Como, por furto, elas colocavam na terra a barba do
lobo e o dente de uma cobra malhada? Como um grande
clarão surgiu na imagem de cera? Fiquei chocado com
as vozes e ações dessas duas Fúrias, mas de forma
alguma fui incapaz de realizar uma vingança
(HORÁCIO, Sátira I, 8).

É muito possível que os praticantes de magia da Antiguidade


conhecessem as propriedades de substâncias tóxicas de origem
vegetal. O uso destas substâncias poderia ser a causa dos estados de
transe e movimentação rápida durante os rituais mostrados em
representações literárias (TUPET, 1976, p. 291-292), como no poema
de Horácio. Tal representação, mais do que uma fantasia do poeta,

339
Semíramis Corsi Silva

portanto, poderia reproduzir certos elementos das práticas mágico-


religiosas antigas. Tupet (1976, p. 301) percebe que este era um gesto
ritual comum, praticado pelas bacantes que usavam vinho para entrar
em êxtase. O estudo desses ritos extáticos, experimentados no âmbito
religioso e que podem ser classificados como estados alterados de
consciência, é algo que os pesquisadores têm dado pouca atenção em
detrimento do estudo dos aspectos externos do rito (sociais, políticos,
literários e teológicos) (USTINOVA, 2009, p. 14). Tal frenesi
religioso é, então, usado de forma bem negativa como um elemento de
alteração dos padrões físicos e psíquicos pela retórica dos escritores,
ainda que os valores quanto à compreensão desses fenômenos
pudessem ser muito diferentes dos contemporâneos.
Vendo a cena, Priapo, então, prepara a vingança. No final da
Sátira I, 8, o espantalho do deus emite sonidos engraçados para causar
o aspecto cômico, parecidos com um flato. Com esse som, Priapo
coloca em fuga as duas feiticeiras. Como nas famosas simbologias
apotropaicas dos falos romanos, aqui o deus-falo coloca as feiticeiras
para correr, metaforizando, em nossa leitura, o espantar de maus
agouros.6
Aqui Horácio expõe as feiticeiras ao ridículo. Canídia perde os
dentes e Ságana, de cabelos arrepiados, deixa o material que elas
recolheram cair de seus braços.

6Sobre os sentidos apotropaicos dos falos em Roma, ver Funari; Marquetti (2011) e
Garraffoni (2017).

340
Gênero e Magia em Roma

nam, displosa sonat quantum vesica, pepedi


diffissa nate ficus; at illae currere in urbem.
canidiae dentis, altum Saganae caliendrum
excidere atque herbas atque incantata lacertis
vincula cum magno risuque iocoque videres.

Pois, como a bexiga cheia faz barulho, abri as nádegas


do meu corpo de figueira fendido e emiti um alto roído.
Mas, elas correram para a cidade. E com grande riso,
verías cair os dentes de Canídia, a eriçada peruca de
Ságana, as ervas e os nós encantados dos braços
(HORÁCIO, Sátira I, 8).

O fato de os dentes de Canídia caírem no final do poema pode


nos indicar o uso de uma dentadura, o que poderia se referir à
personagem como uma mulher velha (TUPET, 1976, p. 290). Portanto,
as feiticeiras de Horácio são mulheres idosas, um modelo que será
comum em outras representações de feiticeiras da literatura latina,
como a Proselenos de Petrônio (Satyricon), a Erictho de Lucano
(Farsália) e Méroe e Pância de Apuleio (O asno de ouro). Os próprios
nomes das feiticeiras horacianas podem nos demonstrar algo nesse
sentido. De acordo com estudos filológicos, o nome de Canídia
poderia vir de canis (cão, cadela). Ou, talvez, do termo canus, branco,
acrescentado ao sufixo idius/idia, dando a ideia de ser uma mulher de
cabelos brancos, já envelhecida, no sentido figurado (TUPET, 1976, p.
296).
A identidade da possível Canídia que teria inspirado Horácio
suscitou diversas hipóteses. Uma delas seria que Canídia era Cecília
de Como, que aparece em poemas de Catulo sob o pseudônimo
Mecília (HERRMANN, 1958). Em outra interpretação, também de

341
Semíramis Corsi Silva

Leon Herrmann, Canídia poderia ser a irmã de Canídio Craso, um


político romano da gens Canídia que se tornou cônsul em 40 AEC
(TUPET, 1976, p. 294). Ou ainda, ela poderia ser Cecília, filha de
Clódia Metelli (PAULE, 2017, p. 5). Conforme outra hipótese bastante
popular e advinda de informações de Pompônio Porfírio, um escritor
do século II EC que comenta as obras Horácio, Canídia seria uma
fabricante de unguentos napolitana chamada Gratídia, talvez uma ex-
amante que o poeta tinha raiva. Assim, os unguentos de Gratídia
seriam identificados com poções mágicas pelo poeta. Horácio não a
atacaria diretamente porque isso poderia lhe trazer problemas legais.
Sendo possível, por isso, que Horácio tenha empregado uma prática
usada pelos poetas elegíacos romanos de dar às mulheres sobre as
quais escreviam um pseudônimo de mesmo padrão métrico do nome
real. Maxwell Paule (2017, p. 3), no entanto, acredita que essa
informação de Porfírio pode ter confundido os estudiosos, não
havendo nenhuma Gratídia por trás da Canídia literária. Para esse
pesquisador, é mais interessante abordar Canídia como uma
personagem puramente ficcional, cujos detalhes foram moldados de
forma consciente pelo poeta.
Ságana, por sua vez, poderia ter seu nome vindo do vocábulo
saga/ae, que significa feiticeira em latim, dessa maneira, ela seria a
feiticeira por excelência. Segundo Cícero (De Divinatione, I, 30),
sagire significava ter uma percepção profunda e, por isso, mulheres

342
Gênero e Magia em Roma

idosas eram chamadas de sagae anus, aquelas que conheciam muitas


coisas, também os cachorros (canes) podiam ser chamados de sagaces.
Ságana é referida na Sátira I, 8 como Sagana maiore, o que poderia
dar-nos a entender que ela era uma mulher velha ou que haveria duas
feiticeiras com esse mesmo nome, uma mais jovem e a mais velha que
acompanha Canídia na Sátira I, 8. Sobre Ságana, Pompônio Porfírio
diz que ela teria sido uma liberta de um senador chamado Pompônio
(TUPET, 1976, p. 297).
O termo latino saga era um dos termos usados para denominar
a praticante de magia, como lemos em uma inscrição encontrada no
Esquilino em Roma, no túmulo de Iucundus, uma criança de quatro
anos, escravo de uma mulher chamada Lívia. Tal inscrição nos remete
à crença em assassinatos de crianças realizados por feiticeiras, as
sagae.7 Na inscrição temos a seguinte mensagem:
Iucundo, o escravo de Lívia, a esposa de Draco César,
filho de Gryphus e Vitalis. À medida que cresci para o
meu quarto ano, fui preso e morto, quando tive potencial
para ser doce para minha mãe e pai. Eu fui arrebatado
pela mão de uma feiticeira [saga manus], sempre cruel
desde que permaneça na terra e prejudique sua arte. Pais,
protejam bem seus filhos para que a tristeza desta
magnitude não se implemente em seu peito” (CIL, VI,
19747, Roma, dat. 1 a 50 EC).

Tibulo (Elegias, 1, 5) e Apuleio (O asno de ouro, 1, 8) também


chamam as feiticeiras de sagae. Vemos, assim, como Horácio, ao

7 Lembremos que a morte de uma criança é assassinato forçosamente premeditado,


recaindo sobre a Lex Cornelia de sicariis et veneficis, que vigorava na época de
escrita dos poemas e que pautou o crime contra praticantes de magia (veneficus/
venefica).

343
Semíramis Corsi Silva

nomear Ságana dessa forma, caracteriza suas feiticeiras como modelo


da mulher praticante de magia em sua ótica, corroborando uma
tradição anterior que coloca a mulher como agente mágico por
excelência, ainda que forneça uma grande contribuição nova para a
caracterização desse modelo de personagem, como mostrarei. Porém,
antes de entrar nesse tema, é importante trazermos um pouco do
debate em relação à questão de gênero e as práticas mágicas, para
depois voltarmos ao poema de Horácio em análise aqui.

Algumas considerações sobre gênero e magia na


Antiguidade greco-romana

Como na poesia horaciana analisada, de maneira geral, a


mulher será a personagem da magia nos textos da literatura antiga,
ainda que tenhamos algumas narrativas como as histórias em torno de
Apolônio de Tiana e as representações de Alexandre de Abonoteico,
feita por Luciano (Alexandre ou o falso profeta), por exemplo. No
entanto, tais personagens não são literários, mas sujeitos da vida real.
Assim como tais personagens da vida real são em geral homens, a
historiografia, com base em análises de material arqueológico, tem nos
trazido um contraponto à representação literária majoritária de
mulheres como feiticeiras. Os grandes praticantes de magia dos
papiros mágicos gregos são homens, especialmente da magia erótica,
onde é comum termos a agência masculina sobre uma vítima feminina
(WINKLER, 1991, p. 215, GRAF, 1994, p. 211). Também em relação

344
Gênero e Magia em Roma

às imprecações mágicas (defixiones), é comum termos homens


praticando ritos que envolviam disputas (jurídicas, comerciais,
esportivas) e práticas de magia erótica (GRAF, 1994, p. 211-212). Os
achados arqueológicos apontam que aproximadamente um quarto das
tabuinhas de magia existentes diz respeito à magia erótica (GAGER,
1992, p. 78, apud STRATTON, 2014, p. 165). E, nessas práticas de
magia erótica, os homens constituem a esmagadora maioria dos
peticionários, sendo que 86% das tabuinhas gregas estudadas pelo
pesquisador Christopher Faraone são de homens buscando conquistar
uma mulher (FARAONE, 1991, p. 8, apud STRATTON, 2014, p.
168).
Não há como sabermos exatamente qual a intenção da magia
da Sátira I, 8, mas é possível que fosse uma magia com finalidades
amorosas, uma vez que os nós encantados que caem dos braços das
feiticeiras, ao final do poema, podem aludir a práticas de magia erótica
(OGDEN, 2009, p. 116). No Epodo 5, temos claramente a intenção do
ritual das feiticeiras, fazer um filtro amoroso (amoris poculum) com os
órgãos de um menino sequestrado por elas, a fim de conquistar Varro,
o amado de Canídia. Embora as feiticeiras da literatura latina tivessem
diversas habilidades, a magia amorosa foi a principal prática que elas
foram representadas realizando.8
No entanto, a arqueologia nos mostra o contrário, como vimos.
Então, se a cultura material atesta a presença superior de homens

8Como o caso da feiticeira da Écloga 8, de Virgílio, ou de Dido, a rainha de Cartago,


que busca destruir seu amado Enéias após ter sido abandonada por ele nas descrições
desse mesmo poeta na Eneida, IV, 507-521.

345
Semíramis Corsi Silva

praticantes de magia, qual a razão de as mulheres serem as


personagens proeminentes da literatura romana?
O primeiro pesquisador a apresentar uma tese sobre a
preponderância de homens praticantes de magia e a discrepância da
literatura no contexto da Antiguidade Clássica, especificamente nos
casos de magia erótica (ἀγωγαί), foi John Winkler (1991), o que ele
faz através da percepção psicanalítica da projeção. De forma
resumida, esse pesquisador pontua que os homens lançavam feitiços
sexuais sobre as mulheres por conta de sua avidez sexual, buscando o
que Winkler chama de cura para Eros, pensando Eros agindo sobre o
corpo com efeitos doentios. As mulheres, para o pesquisador, também
podiam cair nos mesmos problemas de Eros, porém, suas práticas
eram sempre muito mais vigiadas do que as dos homens, o que nos
leva a ter menos exemplos de magia erótica realizada por e para
mulheres. Além disso, nessas práticas mágicas, é possível ver homens
buscando uma espécie de sofrimento para suas amadas.9 Winkler
interpreta isso como uma busca de controle do desejo sexual feminino
pelo masculino através de uma projeção de seu próprio sofrimento.

9 Um exemplo interessante dessa busca de sofrimento da amada por meio da magia


erótica é a famosa Boneca do Louvre (Inventário E27145b), uma estátua de
amarração de cerca de 9 cm., produzida de barro não assado e datada do contexto do
século III ou IV EC, encontrada em Antinópolis, no Egito. A boneca representa a
figura feminina de Ptoleme, a vítima da amarração, e a prática é realizada por um
homem chamado Sarapamon. A boneca é violentamente perpassada por 13 pregos
(cabeça, olhos, boca, peito, mãos, vagina, ânus e pés). Essa boneca foi encontrada
em um vaso de cerâmica contendo junto uma placa de chumbo. Na magia em
questão, o espírito de Antínoo é evocado. Pelo local em que esta amarração foi
encontrada, Antinópolis, acreditamos que se trata do jovem Antínoo, o amado do
imperador Adriano, morto prematuramente no rio Nilo.

346
Gênero e Magia em Roma

Já em relação à literatura, segundo Winkler (1991) também


seguindo a teoria da projeção, temos os escritores oprimidos pelo
desejo sexual por mulheres inalcançáveis e, por meio de um processo
de negação, transferindo esse sentimento para as mulheres, constroem
as personagens feiticeiras. Portanto, tais criações literárias são
projeções do próprio comportamento dos homens nessa leitura. No

entanto, como vemos, o foco de Winkler é nas magias eróticas e não


na preponderância de homens em práticas mágicas de forma geral e
seu contraponto literário.
Depois de Winkler temos os estudos de Fritz Graf (1994), que
observa a problemática da preponderância masculina nas antigas
práticas de magia como um todo a partir de uma perspectiva das
relações de gênero e as competições e disputas por poder nas
sociedades greco-romanas antigas. Para Graf (1994, p. 212), no caso
das magias por questões jurídicas, esportivas e comerciais, fica visível
que tais disputas eram realmente mais comuns aos homens, pois eram
eles que, principalmente, tramitavam no âmbito jurídico, comercial e
esportivo da sociedade romana, ainda que as mulheres se fizessem
presentes nestes espaços, porém de maneira menor e mais
subalternizada. No segundo tipo de prática, a magia amorosa, a mais
frequente no contexto greco-romano, o caso mais comum é de homens
que ensaiam para possuir um casamento com uma mulher. Nesse caso,
Graf (1994, p. 212) também sugere que analisemos a superioridade

347
Semíramis Corsi Silva

masculina no âmbito das relações de poder, já que os casamentos eram


uma forma do homem adquirir bens e status social.
No entanto, Graf (1994, p. 214-215) também percebe que esse
modelo de transferência dos bens via mulher não resolveria toda
problemática, uma vez que tal transferência não se fazia nunca pela
vontade das mulheres, mas de seu pai. Observando que os papiros e
defixiones mostram a busca por um amor louco e descontrolado, o
autor acredita, então, que as práticas de magia erótica serviam às
paixões mais íntimas e àquelas não aceitas socialmente, o que, no
entanto, não responderia ao problema de termos mais homens
praticando magia na cultura material que chegou para nós. Sobre as
razões de as mulheres serem as feiticeiras por excelência da literatura
greco-romana, Graf (1994, p. 215-216) aponta que os discursos
queriam mostrar o perigo que o amor de uma mulher poderia oferecer
à autonomia dos homens. Além disso, tais narrativas literárias de
magia erótica praticadas por mulheres poderiam fornecer uma
explicação sobre o amor desenfreado de um homem por uma mulher e
perda de controle.
Em um estudo mais recente, voltando às teorias psicanalíticas
das quais, de certa forma, Winkler também buscou subsídios para sua
análise, Kimberly Stratton (2014) visa responder a questão sobre a
preponderância feminina nas representações literárias de feiticeiras
antigas por meio da teoria da abjeção de Julia Kristeva. Tal proposta

348
Gênero e Magia em Roma

sugere que as mulheres são frequentemente associadas à abjeção


através da ideia de um abjeto primordial, que seria à recusa ao corpo
da mãe e sua rejeição por parte do ego do indivíduo em seus primeiros
anos. Isso acontece a fim de que a pessoa se desenvolva e para que a
identidade individual possa surgir. Assim, Stratton defende que as
bruxas da literatura latina seriam colocadas sempre como mulheres,
uma vez que representações exageradas e hiperbólicas de mulheres
praticando magia sugerem que esses retratos de gênero comunicavam
a qualidade abjeta da magia. A alteridade feminina concretizou, assim,
a alteridade da magia e vice-versa, segundo Stratton.
Não acreditamos que as propostas de viés psicanalítico de
Winkler e Stratton estejam erradas na tentativa de analisar as razões de
as personagens mulheres serem regra nos textos da literatura greco-
romana. Mas, como historiadores, talvez não seja necessário ir tão
longe apoiando-se na Psicanálise para dar respostas à questão
sugerida. Por ser considerada uma prática negativa e proibida –

lembrando que com a primeira lei romana escrita, a Lei das doze
Tábuas já temos a criminalização da magia10 – é comum que essa

prática seja vista como algo do universo feminino por poetas homens
em meio a uma sociedade misógina. Não se admitia, assim, ser o
homem antigo, guerreiro e conquistador, um praticante da nefasta arte
da magia. Se a magia era algo fora da normalidade e da ética, ela só

10 Sobre as leis romanas e o crime de praticante de magia, nas diferentes


terminologias que aparecerão nas leis, ver Silva (2019).

349
Semíramis Corsi Silva

podia ser prática de mulheres. Além do mais, pela dimensão de poder


que o ritual oferecia ao praticante, a capacidade de mudar o curso dos
eventos, ele era ainda mais terrível quando ligado ao universo
feminino.
Também é preciso considerar que as feiticeiras romanas
literárias são muito mais negativas e horrendas do que as gregas, essas

descritas como jovens e bonitas. E, neste sentido, Horácio, com suas


feiticeiras Canídia e Ságana, pode ser considerado precursor na
criação de um novo modelo de mulher feiticeira que será, a partir de
então, comum em Roma, o da feiticeira feia, velha e muito mais
abjeta.
Em relação à mudança de perfil da feiticeira literária das
gregas para as romanas, corroboro com Barbette Stanley Spaeth
(2014) que, ao buscar perceber as razões pelas quais as feiticeiras
romanas literárias são muito mais negativas e horrendas do que as
gregas, acredita que na sociedade romana, a partir da República
Tardia, as mulheres tiveram consideráveis papéis em aspectos
econômicos e nos trâmites do poder político, embora esse poder fosse
não oficial e altamente contestado, enquanto seu papel na religião do
Estado era altamente restrito. Assim, para a historiadora citada, a ideia
de que as mulheres romanas pudessem exercer um poder religioso
ilegítimo seria algo altamente ameaçador ao controle masculino da
sociedade. Esse medo, portanto, levou aos retratos altamente negativos
de mulheres praticantes de magia nos textos latinos, produzindo a

350
Gênero e Magia em Roma

imagem da feiticeira cujo poder podia destruir a “lei natural”


(SPAETH, 2014, p. 53-54). Spaeth (2014, p. 54) também considera o
contexto que a imagem desses praticantes de magia emerge, um
momento em que houve certo declínio nos padrões sócio-morais,
afetando os papéis tradicionais de gênero que poderão ser vistos nas
leis de Augusto em relação ao casamento, por exemplo.11 Sua
conclusão é que as feiticeiras literárias representam um modelo
altamente negativo para o comportamento feminino e, assim, ajudam a
reafirmar os papéis femininos tradicionais da sociedade, o que
concordamos.
Lembremos também que pouco antes da escrita dos poemas de
Horácio sobre as feiticeiras, em 81 AEC, foi instituída pelo cônsul
Lúcio Cornélio Sula a Lex Cornelia de sicariis et veneficis, que daí em
diante passou a pontuar as ações legais contra a magia ao incluir na lei
a punição contra o uso de substâncias com o poder de afetar outrem
negativamente (venena mala), provocando a morte, emparelhando a
magia ao envenenamento e agravando o crime dos praticantes.12
Na análise específica das feiticeiras criadas por Horácio
devemos considerar outros elementos do contexto de produção, por
volta de 40 e 30 AEC. Sabemos que em 33 AEC, Agripa, então edil,
proíbe a permanência de astrólogos e magos em Roma (Dião Cássio,
História Romana, 49, 43). Pouco tempo depois, a ascensão de Otávio

11Sobre tais leis, ver Azevedo (2017).


12James Rives (2003, p. 318), no entanto, acredita que esta lei não foi uma criação
de Sula propriamente, mas uma reorganização simplificada de leis já existentes
sobre questões de assassinatos.

351
Semíramis Corsi Silva

como Augusto e Príncipe inaugura um novo ciclo, em que o


governante se vê como único intérprete dos deuses (Grimal, 1992, p.
37) e passa a promover uma série de pautas morais. Além disso,
Augusto “em seu processo de apoderamento político sobre os quattuor
amplissima collegia sacerdotum Romanorum13 (29 AEC – 14 EC),
buscou controlar as práticas de adivinhação em Roma, visando tirar de
circulação aquelas que não estivessem sob seu poder” (Campos, 2021,
p. 35).
Era um período de transformações políticas intensas, no qual
era preciso controlar os romanos, seus atos e as grandezas do Império
conquistado. Assim, a magia estaria como a cobiça, a avareza, o
adultério, também criticados por Horácio em sua obra, colocando em
risco o patrimônio ético sobre o qual se estrutura a sociedade romana.
Lembremos ainda que Horácio será um poeta da corte de Augusto, um
divulgador de seus feitos e de suas perspectivas. No período de escrita
das Sátiras, Horácio já era próximo de Mecenas e de Otávio (o futuro
Augusto). Horácio é apresentado a Mecenas pelos amigos, e também
poetas, Virgílio e Vário, no ano de 39 AEC. Na Sátira I, 6, Horácio
descreve o primeiro contato com o amigo Mecenas e diz que, nove
meses depois do primeiro encontro, ele foi convidado para fazer parte
do círculo de poetas que louvariam os feitos de Otávio, o entorno de

13 Colégios sacerdotais de Roma.

352
Gênero e Magia em Roma

Mecenas. Nesse momento, Otávio ainda não havia se tornado


Augusto, era a época do Segundo Triunvirato (43-33 AEC).
Voltando ao poema em análise, a própria ambientação da cena
das práticas mágicas de Canídia e Ságana na Sátira I, 8, o antigo
cemitério no Esquilino que Mecenas transformou em um jardim, pode
nos dizer algo sobre o contexto e a mensagem que Horácio quis
passar. Dessa maneira, seguindo a interessante análise de Arlete José
Mota (2010), podemos pensar que:
Na sátira, Horácio opõe o passado ao presente,
informando para que servia o local, antes cemitério e, no
tempo da narrativa, jardim. As feiticeiras para lá se
dirigem, resgatando a utilização do lugar no passado,
com intentos maléficos, e são afugentadas por um
medroso Priapo, que consegue tal façanha de forma
inesperada. Metaforicamente, podemos relacionar a
alusão à transformação do lugar a renovações
provocadas pelos novos ideais da época de Augusto.
Nesse caso, entendemos ainda mais o distanciamento: a
própria figura do deus é enfraquecida em sua atribuição
original e, defendendo o jardim de forma inesperada,
representa uma mudança. [...] O passado é representado
pela utilização do local como cemitério e o presente se
caracteriza pela construção dos novos jardins – quando
há uma alusão aos ideais de Augusto (MOTA, 2010, p.
115-117).

Assim sendo, concordamos com Carlos Eduardo da Costa


Campos (2021, p. 38) ao propor que pensemos os textos literários
latinos do período augustano, no que tange às representações de
mulheres feiticeiras, como exemplum de padrões de comportamento
aos cidadãos romanos, visando “encorajar o jovem romano, bem-
nascido, a se conformar aos padrões positivos incorporados pelos seus

353
Semíramis Corsi Silva

ancestrais” e, em nossa leitura, os desencorajando a seguirem


comportamentos execráveis, como as práticas de magia.
Portanto, ao escrever seus poemas sobre as feiticeiras, Horácio
estabelece um diálogo com a camada social que faz parte e mostra que
não admite ser a magia algo masculino, isso contraria o ideal guerreiro
romano, indo em oposição à construção do austero, resistente e
verdadeiro cidadão de Roma. Da mesma forma, o poeta corrobora as
pautas morais que em breve seriam colocadas em cena pelo imperador.
As ímpias práticas de magia se opunham aos costumes ancestrais
(mores maiorum), só podendo ser uma prática de mulheres,
consideradas desmedidas, especialmente no que diz respeito à libido e
ao amor. Porém, mesmo sendo considerada uma prática feminina, a
magia de Canídia e Ságana era cruel e digna de maldição, como
mostram as palavras do menino morto no Epodo 5, mas também era
ridícula, desprezível e motivo de risada, como vemos na Sátira I, 8.

Considerações finais

Para encerrar este texto, é importante perceber que a Sátira I, 8


é considerada por alguns críticos da obra de Horácio como a sátira de
caráter mais agressivo escrita pelo poeta, o que demonstra o quão
terriveis eram as práticas mágicas na visão do poeta, ao mesmo tempo
que também é considerada uma das mais divertidas do corpus
(MOTA, 2010, p. 107). Pelo seu caráter satírico, esse poema,

354
Gênero e Magia em Roma

especificamente, visou expor questões comportamentais, podendo,


com isso, servir como veículo dos ideais político-sociais da época,
contrapondo atitudes inaceitáveis aos padrões considerados aceitáveis
(MOTA, 2013). É neste sentido que, seguindo o Priapic Model de
Richlin (1992), vemos justamente a figura de Priapo como
componente importante do poema, pois, como um deus itífálico, ele
torna a narrativa engraçada, mas ao mesmo tempo metaforiza a
dominação masculina e fálica sobre as feiticeiras, velhas criminosas
que subvertem papéis de gênero, em especial pelo seu desejo amoroso
desenfreado.
Por fim, como bem observou Stratton (2014, p. 152) em
relação à feiticeira Erictho da Farsália de Lucano, podemos também
perceber que as feiticeiras de Horácio transgridem princípios básicos e
até mesmo assentados em valores universais da civilidade ao
desrespeitarem os mortos que elas incomodam em seus rituais
necromânticos e ao recolher seus ossos no Esquilino. O cemitério, ou
um antigo cemitério como no caso da Sátira I, 8, era o local dos
antepassados, as sepulturas pertenciam aos mortos e por isso eram
consideradas também sagradas (res religiosae). Ao violar esse espaço,
as feiticeiras também estariam de alguma forma infringindo os
costumes ancestrais, o que resultou em leis de Augusto contemplando
a violação de sepulturas como crime.

355
Semíramis Corsi Silva

Além disso, as feiticeiras literárias de Horácio transgridem os


limites entre humano e divino ao visarem mudar a ordem das coisas
com suas próprias mãos por meio da magia. Dessa forma, Canídia e
Ságana invertem a própria ordem da natureza, transgredindo o limite
da piedade e da devoção aos deuses e, diante disso, lhes cabe a
representação como bestas em estado animalesco.

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360
Maria, a mãe de Jesus, como uma maga:
gênero, poder e magia entre os primeiros
cristãos
Juliana Batista Cavalcanti1

Falar em uma Maria histórica é de fato um verdadeiro desafio.


As dificuldades encontram-se na escassez de documentação literária e
material. Do ponto de vista da documentação textual, praticamente
tudo o que temos sobre a mãe de Jesus é relativamente tardio, sendo
até mesmo o seu nome atribuído apenas no material sinótico2 (Quadro
1).

Documentação Nomeada Não nomeada


Carta aos Gálatas - 4:4
Evangelho de Marcos 6:3 3:31
Evangelho de Mateus 1:16; 1:18; 1:20; 2:11; 13:55 -
1:27; 1:30; 1:34; 1:38-39; 1:41;
Evangelho de Lucas 1:46; 1:56; 2:5; 2:16; 2:19; 1:34 -

Atos dos Apóstolos 1:14 -


Evangelho de João - 2:1-12; 19:25-26

Quadro 1. Menção ao nome da mãe de Jesus na documentação canônica.

1 Possui graduação em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2013),


mestrado em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(2016) e doutorado em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (2021). Atualmente é pesquisadora da Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Atualmente realiza o estágio pós-doutoral no Museu Nacional sob
supervisão do professor Dr. André Leonardo Chevitarese. É coordenadora do curso
de Ciências das Religiões no UNISIGNORELLI.
2 Ainda assim, chama atenção as pouquíssimas menções a Maria em Marcos, sendo
nomeada apenas uma única vez (ver Quadro 1).

361
Juliana Batista Cavalcanti

Isso significa dizer que até a década de 50, do século I EC,


cristãos não estavam interessados em trazer dados sobre a família de
Jesus. A única menção feita por Paulo, em Gl 4:4, deixa isso evidente
e sua lembrança está diretamente ligada ao interesse de Paulo de
evidenciar que Jesus era judeu!3 Olhando atentamente as citações
listadas no Quadro 1 percebemos que o desinteresse pela personagem
se perpetuou ao longo de todo o primeiro século, estando seu nome
associado a reforçar as origens tanto históricas e principalmente
teológicas de Jesus.
É no segundo campo que, a partir do século II EC, observamos
um alargamento de informações sobre Maria, especialmente com o
Proto-Evangelho de Tiago4. Assim sendo, se, de um lado, temos uma
impossibilidade para os estudos históricos sobre Maria, a mãe de
Jesus, por outro, temos um campo fértil para o estudo sobre as
recepções dessa personagem, como uma forma, inclusive, de se
compreender vozes e agências femininas entre os primeiros séculos de
cristianismo.
Isso fica ainda mais claro quando nos voltamos para os séculos
III e IV EC e rastreamos ao menos três retratos de Maria:
(a) O binômio Eva-Maria: trabalhados por autores da patrística,
como Tertuliano, Justino e Irineu. Essa categoria funcionava como

3 As duas lembranças feitas por Paulo na Carta aos Romanos (1:3; 9:5) sobre as
origens judaicas de Jesus reforçam ainda mais a nossa tese.
4 Dos capítulos do 1 ao 10 vemos uma grande explanação sobre as origens de Maria.
O texto apresenta os pais de Maria e possui um profundo diálogo com a Septuaginta.
Esses elementos deixam claro os interesses do autor em apresentar uma Maria que
atenda as intenções teológicas que virão a seguir: quem era Jesus.

362
Maria, a mãe de Jesus, como uma maga

forma de reforçar como as mulheres eram compreendidas e qual


deveria ser o seu papel nesses cristianismos;
(b) A virgindade perpétua de Maria: percepção presente tanto
no Proto-Evangelho de Tiago como autores da patrística. Esse retrato
visava garantir o status divino de Jesus e simultaneamente eliminar o
debate sobre os irmãos de Jesus;
(c) Maria como uma maga: há uma extensa documentação,
literária e cultura material, que aponta Maria como detentora de
conhecimentos mágicos e sua proteção é invocada. Além de ser
utilizada como argumento de poder e autoridade para lideranças
femininas.
Nesse sentido, é sob o viés da recepção que trabalharemos o
presente capítulo, dando especial atenção à Maria maga, por entender
que ela é o caminho para se pensar vozes e papéis femininos nas
primeiras comunidades cristãs. Para tal empreitada teremos sempre em
mente o método indiciário proposto pelo historiador italiano Carlos
Ginzburg.

Maria, a mãe de Jesus, na literatura extracanônica e


na cultura material

Em 1945 foi descoberto, no Alto Egito, a chamada Biblioteca


de Nag Hammadi. Uma coleção de treze códices contendo cinquenta e
dois textos diferentes, todos escritos em copta e muitos deles até então
desconhecidos. Dentre os diferentes gêneros literários presentes (como
cartas, evangelhos e apocalipses), esses materiais contribuíram para

363
Juliana Batista Cavalcanti

uma melhor compreensão dos gnosticismos. Além disso, esses textos


trazem uma enorme referência a mulheres e a figuras femininas, o que
gerou uma empolgação inicial aos pesquisadores pela possibilidade de
se ilustrar um outro retrato do papel das mulheres entre as primeiras
comunidades cristãs.
Porém, essa percepção foi paulatinamente percebendo5 que,
apesar dos importantes papéis atribuídos às mulheres e outros seres
femininos nesses textos, muitos dos pressupostos patriarcais do antigo
mundo mediterrâneo permaneceram operantes nas comunidades
cristãs que produziram essa literatura. Dentre as mulheres
frequentemente citadas, uma é Maria, a mãe de Jesus.
Maria é comumente descrita com outras Marias nessa
literatura, assumindo tributos similares aos de outras Marias,6 tal como
é relatado no Evangelho de Filipe 28: “Três mulheres costumavam
andar sempre com o senhor – Maria, sua mãe, sua irmã, e a Madalena,
que é chamada sua companheira. Pois “Maria” é o nome de sua irmã e
de sua mãe, e é o nome de sua parceira.”
Segundo Hans-Josef Klauck (2007, p. 159), a ênfase do autor
do Evangelho de Filipe de afirmar que todas tinham o mesmo nome
seria o meio encontrado para apontá-las como as três manifestações da

5 Especialmente a partir de trabalhos como de Mary D’Angelo (1999).


6 François Bovon recorda que no transcurso do tempo diferentes personagens
femininas na literatura cristã se viram com tributos, feitos e semelhantes, criando um
horizonte literário comparativo. Porém, esses paralelos não implicam em afirmar,
por exemplo, que Mariamne, Maria Madalena e Maria, mãe de Jesus, fossem a
mesma pessoa.

364
Maria, a mãe de Jesus, como uma maga

verdadeira consorte do Jesus Cristo, Redentor ou Salvador (como


Jesus é constantemente denominado na literatura gnóstica): a Sofia!
Sofia é a divindade responsável por trazer a instabilidade ao
Pleroma, o que resultou na criação, e sem ela o Salvador não estaria
completo. Segundo Einar Thomassen (1989, p. 226-227), a Exposição
Valentiniana 39 é outro texto que corrobora para a compreensão de
que a metade perfeita de Sofia foi separada e tornou-se seu filho
Cristo:
Quando Sofia, então, recebe o seu parceiro, e Jesus
recebe Cristo, e as sementes são unidas entre os anjos,
então a perfeição recebe Sofia em alegria, e tudo é
reunido e reintegrado. Pois então os reinos eternos
receberam a sua abundância, pois eles compreenderam
que, mesmo que mudem, permanecem imutáveis.

Assim sendo, Maria, a mãe de Jesus, personifica um dos três


pares místicos (szígias) presentes na gnose valentiniana7, carregando
consigo mistérios ou conhecimentos que estão disponíveis apenas aos
iniciados por meio de rituais como o batismo, a ceia, a câmara nupcial
e a unção, quando estes ficam preenchidos pela palavra ou o logos de
Sofia (MEYER, 2007, p. 124, 194).
Esse conhecimento era transmitido também pelo processo de
repetição de palavras que remetiam à ideia de um retorno e encontro
entre o Salvador e a Sofia em diferentes estágios da vida do Jesus
terreno, como se lê (Exposição Valentiniana 42): “[Do] mundo ao

7 Seguimos a leitura de autores como Klauck (2002) e Layton (2002) que inserem o
Evangelho de Filipe no corpus valentiniano, devido ao elevado número de menções
feitas a esse material por autores vinculados a esse tipo de cristianismo.

365
Juliana Batista Cavalcanti

[Jordão], das [coisas] do mundo para [a visão] de deus, do [carnal] ao


espiritual, do físico ao angelical, da [criação] à perfeição, do mundo ao
reino eterno.”
O fragmento acima oferece um relato sobre a origem do
universo e como o equilíbrio do universo está diretamente associado
ao retorno de Sofia para o reequilíbrio do Pleroma, por meio do seu
reencontro com o Salvador.
A mãe de Jesus também é retratada como uma das
representações de Sofia em Pitis Sofia e Diálogos do Salvador.
Diferentemente dos textos anteriores, nem sempre fica evidente a qual
das Marias o documento se refere. Esse amálgama parece ser fruto
também do fato de elas compartilharem os tributos que as identificam
como Sofia, assim sendo, o leitor/ouvinte desses textos poderia
interpretar a Maria tanto como a Madalena ou a mãe de Jesus, por
exemplo8. Em todo caso, podemos afirmar que Maria, mãe de Jesus, é
apontada como aquela que compreendeu e era uma profunda
conhecedora dos mistérios, a tal ponto de o próprio Salvador lhe dizer,
após esta explicar o significado do canto de Sofia: “Bem dito, Maria!
Tu és abençoada” (Pitis Sofia 34).
Esse retrato parece ter impactado uma comunidade cristã na
Arábia Saudita em que mulheres justificavam a sua liderança a partir

8 Alguns autores como Antti Marjanen (1996, p. 63-64) tentaram por meio da forma
de escrita diferenciar as Marias. Porém, essa hipótese rapidamente se revelou
facilmente refutável por ausência de referências internas e de a mesma grafia se
apresentada em outros casos para ambas as Marias, a Madalena e a mãe de Jesus.

366
Maria, a mãe de Jesus, como uma maga

da figura de Maria, segundo o relato de Epifânio de Salamina


(PANARION, 59.1-7):
Outra seita veio a público depois disso, e já mencionei
algumas coisas sobre ela na carta sobre Maria que
escrevi à Arábia (...) Pois como, há muito tempo,
aqueles que, por uma atitude insolente em relação a
Maria, acharam por bem suspeitar dessas coisas estavam
semeando suspeitas prejudiciais nas mentes das pessoas,
também essas pessoas que se inclinam na outra direção
são culpadas de fazer o pior tipo de dano (...) Pois o mal
causado por ambas as seitas é igual, pois uma
menospreza a Santa Virgem enquanto a outra, por sua
vez, a glorifica em excesso. E quem, senão as mulheres,
são as professoras disso? As mulheres são instáveis,
propensas ao erro e mesquinhas (...). Pois certas
mulheres decoram uma cadeira de barbeiro ou um
assento quadrado, estendem um pano sobre ele, colocam
o pão e o oferecem em nome de Maria em um
determinado dia do ano, e todos partilham do pão (...)

É interessante observar que Epifânio deixou escapar que não


era a primeira vez que ele escrevia contra esse grupo de mulheres,
além do tom da carta ser de bastante irritação. Esses elementos se
revelam como verdadeiros indícios de um poderoso culto feminino
centrado na figura de Maria, sendo ela invocada para a realização do
ritual da ceia. Esse é um dado fantástico, pois quando nos voltamos
para os chamados amuletos mágicos cristãos, identificamos ainda mais
a notoriedade da mãe de Jesus no cotidiano dos primeiros cristãos. No
Egito foram encontradas mais de 400 referências a ela com o objetivo
de se obter curas, proteção contra o mau olhado, ajuda no parto e
combater maldições.
Segundo Theodore de Bruyn (2017, p. 109), essas referências à
Maria revelam as origens das primeiras práticas de ver Maria como

367
Juliana Batista Cavalcanti

uma intercessora, como se percebe na leitura do encantamento


produzido por um monge ou clérigo cristão (ACM 13):
(...) e que curou novamente, que ressuscitou Lázaro dos
mortos ainda no quarto dia, que tem curou a sogra de
Pedro, que também realizou muitas curas não
mencionadas além das relatadas nos evangelhos
sagrados: cure aquela que usa este amuleto divino da
doença que a aflige, por meio das orações e intercessão
da sempre mãe virgem, Theotokos e tudo (...)

Essa visão de Maria como intercessora é contemporânea ao


culto aos santos para obtenção de curas. Em Oxirrinco, diferentes
igrejas estavam sendo dedicadas a figuras como João Batista, Justo,
Sereno, Filoxeno e à própria Maria, revelando a força que o culto aos
santos se estabeleceu entre os séculos V-VI EC. Isso também ajuda a
explicar amuletos em que Maria aparece junto com o mártir Jorge.
Contudo, a imagem de Maria como uma maga parece ter sido
poderosa o suficiente para a produção de amuletos em que apenas o
seu nome é mencionado, como o caso desse (ACM 13):
Todas as coisas estejam sujeitas a mim [isto é, Maria],
aquelas do céu e aquelas da terra, e aquelas que estão
abaixo da terra.
Eu sou Maria, eu sou Miriam, eu sou a mãe da vida de
todo o mundo, eu sou Maria.
Deixe a pedra [quebrar], deixe a escuridão se dissipar
diante de mim.
[Deixe] a terra rachar. Deixe o ferro se dissolver.
Deixe os demônios recuarem diante de mim. Deixe o
[...] aparecer para mim.
Deixe os arcanjos e anjos virem e falarem comigo até
que o Espírito Santo limpe o meu caminho.

Segundo Theodore de Bruyn (2017, p. 217-18), o


encantamento acima, escrito em copta, é uma tradução do grego. Isso
significa dizer que ele já estava anteriormente em circulação. Além

368
Maria, a mãe de Jesus, como uma maga

disso, o texto incorpora elementos judaicos, gnósticos, canônicos e


litúrgicos, onde Maria é vista como uma poderosa maga capaz de
proteger o portador do amuleto.
Outro bom exemplo de que Maria detinha tais conhecimentos
pode ser encontrado no Evangelho de Bartolomeu, que tem seus
estratos mais antigos contemporâneos ao EvFl. Nesse Evangelho,
Maria, apesar de não ser apresentada como Sofia, é descrita como uma
visionária poderosa, tendo tido a oportunidade de vivenciar os
mistérios do ritual da ceia com um anjo descrito como o pai de Jesus
(EVBART 2:15-21):
Quando eu vivia no templo de deus e recebia meu
alimento de um anjo, um dia apareceu-me alguém na
forma de um anjo, embora seu rosto fosse indescritível,
não trazendo em sua mão nem pão nem cálice, o que o
diferenciava do outro anjo que até então se aproximava
de mim. Imediatamente o véu do templo se rompeu e a
terra tremeu intensamente. Eu caí com o rosto por terra,
pois não podia suportar a visão de sua face. Ele, no
entanto, estendeu-me sua mão, erguendo-me. Elevei
meus olhos para o céu. Uma nuvem de neblina caiu
sobre mim, umedecendo-me, umedecendo-me da cabeça
aos pés. Ele enxugou-me com sua túnica e disse-me:
“Salve, cheia de graça, ó vaso escolhido! Bateu então
sobre o lado direito de sua túnica e surgiu um pão
extremamente grande, que ele depositou sobre o altar do
templo. Primeiramente ele próprio comeu, oferecendo
depois também a mim. Bateu mais uma vez, desta vez
sobre o lado esquerdo da túnica, surgindo um cálice
extremamente enorme, cheio de vinho. Ele o colocou
sobre o altar do templo, bebeu dele e depois ofereceu a
mim. Eu olhei e vi que do pão nada faltava e que o
cálice continuava cheio como antes. Ele disse-me então:
“Dentro de três anos enviarei minha palavra a ti e tu
conceberás meu filho. Por meio dele toda criação será
salva, e tu trarás a salvação para o mundo. A paz esteja
contigo, amada, minha paz sempre estará contigo”. Com
essas palavras ele desapareceu de meus olhos e o templo
voltou a ser como era antes.

369
Juliana Batista Cavalcanti

Hans-Josef Klauck (2007, p. 127) destacou que, segundo o


relato, Maria é a primeira a conhecer os mistérios que mais tarde
seriam reproduzidos por Jesus a seus discípulos, sendo que ela foi
iniciada por um anjo, o que a colocava num grau acima dos demais e
tão poderosa quanto o seu próprio filho. Outro ponto interessante é
que a explanação é precedida de falas em hebraico, o que remete ao
ambiente da magia, haja vista há outros exemplos na literatura cristã:
(a) A cura da filha de Jairo feita por Jesus em Mc 5:41;
(b) O relato da ressurreição de Dorcas por Pedro em At
9:26-42;
(c) Mariamne, a irmã de Filipe, quando é descrita como uma
oradora carismática capaz de realizar curas (AF 9:115).

Além disso, a revelação ou os ensinamentos de Maria sempre


são feitos em contexto de disputa entre Pedro, Maria Madalena e
Bartolomeu para ver qual deles conseguiria falar com a mãe de Jesus.
Como os episódios se dão após a morte de Jesus, podemos então aferir
que, para as comunidades que leram/ouviram esse texto, a mãe de
Jesus é apontada como a continuadora do movimento. Um retrato
interessante que reúne misticismo e poder atribuídos a uma mulher e
que também se faz presente na cultura material, tal como se verifica
no afresco e no marfim apresentados abaixo:

370
Maria, a mãe de Jesus, como uma maga

Figura 1: Afresco, abside de Maria, Capela 17 do Mosteiro Bawit, Egito,


entre os séculos V e VII EC.

Figura 1A: detalhe do afresco. Maria com os dois braços levantados, o pano
pendurado em um cinto em sua cintura.

371
Juliana Batista Cavalcanti

Figura 2: Maria, a mãe de Jesus, com indumentária de bispa, 720-970 EC,


Palestina ou Egito.

Segundo Ally Kateusz (2019, p. 91), o afresco de Maria


encontrado na Capela 17 do Mosteiro Bawit provavelmente é a mais
antiga arte sobrevivente retratando Maria com os dois braços
levantados e tendo um pano pendurado em um cinto na cintura. A
relevância da imagem se dá pela forma como Maria foi representada.
Ela está no meio de treze homens e, como sempre, de pé diretamente
abaixo de um jovem Jesus imberbe entronado. Nesta cena dos Seis
Livros na abside oriental, o simbolismo da liderança associado ao
pano pendurado no cinto de Maria evoca sua autoridade litúrgica.
O marfim (Figura 2), datado entre os anos de 720 e 970 EC,
amplia ainda mais a concepção de como cristãos viram Maria como
uma liderança estando abaixo apenas de seu filho. Isso fica evidente
por meio de sua indumentária própria de bispos. A possibilidade de
esse marfim ser proveniente do Egito o torna ainda mais fantástico,

372
Maria, a mãe de Jesus, como uma maga

pois revela como os cristianismos egípcios não tiveram problema


algum em dar e reconhecer autoridade a Maria, tanto “eclesiástica”
como mágica.
Segundo Richard Maguire (2012, p. 56), um mosaico
(atualmente bastante danificado) de abside de altar, do século VI EC,
em uma igreja dedicada à Maria em Livadia, Chipre, retrataria Maria
de igual forma que os exemplos anteriores: Maria de pé em uma
plataforma baixa contra um fundo de tesselas de ouro abaulado apenas
por dois anjos, seus braços levantados e duas tiras brancas de pano
pendurado, sendo nesse sentido similar ao mosaico presente na
Catedral de Cefalù, Sicília e datado do século XIII (Figura 3 e 3a).
Nesse caso, teríamos uma longevidade de um retrato de Maria, mas
com o apagamento do sentido dado nos casos anteriores.

Figura 3 e 3a: Mosaico, Catedral de Cefalù, Sicília, 1240. Detalhe para


Maria.

373
Juliana Batista Cavalcanti

Entre a Maria maga e a virgem do silêncio: retratos


conflitantes da mãe de Jesus

No transcurso da leitura do texto de Epifânio de Salamina fica


evidente o seu profundo descontentamento com o culto estabelecido
na Arábia. Simultaneamente, o autor também explicita por quais
razões ele não consegue admitir a ideia de Maria como sacerdotisa:
Mas também passarei ao Novo Testamento. Se isso
fosse ordenada por Deus que as mulheres deveriam
oferecer sacrifício ou ter qualquer função canônica na
igreja, a própria Maria, se alguém, deveria ter
funcionado como sacerdote no Novo Testamento. Ela
foi considerada digna de carregar o rei de todos em seu
próprio ventre, o Deus celestial, o Filho de Deus
(PANARION 59.3.1).

Para Epifânio, o papel das mulheres na história do cristianismo


estava limitado aos mesmos papéis sociais patriarcais presentes na
antiga bacia mediterrânica. Todo e qualquer movimento que tivesse
como protagonista uma mulher que ensinasse, falasse ou fosse “uma
transgressora” deveria ser combatido.9 Nesse sentido, os estudos
centrados na perspectiva de uma Maria como uma maga podem ser
um excelente oportunidade para os historiadores dos Cristianismos
antigos para revisitar o papel das mulheres nessas no interior dessas
comunidades e simultaneamente para se repensar os caminhos e
estratégias de silenciamento de um retrato da mãe de Jesus
amplamente disseminado, mas que paulatinamente se tornou uma

9 Uma conclusão similar que cheguei ao confrontar a cultura material com a


documentação literária sobre Tecla. Ver: Cavalcanti (2021, p. 71-92).

374
Maria, a mãe de Jesus, como uma maga

memória subterrânea em detrimento da memória oficial apresentada


pela patrística: a Maria como a virgem do silêncio.

Referências

BRUYANT, T. Making Amulets Christian: Artefacts, Scribes, and


Contexts. Oxford: Oxford University Press, 2017.
CAVALCANTI, J. Mulheres nos cristianismos paulinos. Rio de
Janeiro: Kliné, 2021.
DANGELO, M. (Re)Presentations of women in the Gospel of
Matthew Luke-Acts. In: KRAMMER, R.; DANGELO, M. (Orgs.).
Women & Christian Origins. New York: Oxford University Press,
1999.
BOVON, F. Mary Magdalene in the Acts of Philip. In: JONES, F.
Which Mary? The Marys of Early Christian Tradition. Atlanta:
Society of Biblical Literature, 2002.
BOVON, F. The Tomb of Jesus. SBL Forum, n.p. [cited March 2007].
Disponível em: http://sbl-site.org/Article.aspx?ArticleID=656. Acesso
em: 05 dez. 2021.
KATEUSZ, A. Mary and Early Christian women. London: Palgrave
Macmillan, 2019.
KLAUCK, H. Evangelhos apócrifos. São Paulo: Edições Loyola,
2007.
MAGUIRE, R. A Fertile Crescent? Some Sources for the Orant Virgin
in Livadia in Cyprus. Pages 434–53 in PoCa (Postgraduate Cypriot
Archaeology), 2012.
MARJANEN, A. The woman Jesus loved. New York: Brill, 1996.
MEYER, M. Mistérios gnósticos: as novas perspectivas. São Paulo:
Pensamento, 2007.
THOMASSEN, E. The valentinianism of the Valentinian Exposition
(NHC XI,2). Le Muséon, 102, p. 225-236, 1989.

375
As tabellae defixionum de Nomento, no Lácio
(I AEC – I EC): um estudo de caso sobre as
inscrições e os lugares de depósito
Carlos Eduardo da Costa Campos1

Introdução

Os estudos sobre as práticas da magia se tornaram, no século


XX e XXI, um tema recorrente nas pesquisas da Antropologia e essa
área impactou as produções no campo dos Estudos da Antiguidade. Na
Antiguidade, é perceptível que o sagrado regia diversas esferas da vida
dos cidadãos de Roma. Logo, verificamos que os romanos, entre
outros povos do Mediterrâneo, recorriam às práticas mágicas para
solucionar os problemas do cotidiano.
Segundo George Luck (1995, p. 11), a magia está situada num
espaço ambíguo. Ela faz uso de elementos da esfera religiosa oficial
de uma sociedade, porém apregoa resultados mais eficazes para o
individual. É interessante refletir que nem os sacerdotes, nem os
filósofos conseguiram estabelecer, precisamente, quais eram as
práticas religiosas que deveriam ser consideradas proibidas. Sendo
assim, os limites entre a religião e a magia tornam-se nebulosos pelas

1Professor Adjunto de Pré-História, História Antiga e Arqueologia da Universidade


Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS); coordenador do grupo de pesquisa, no
CNPQ, ATRIVM / UFMS e membro do conselho de pesquisa do Museu de
Arqueologia da UFMS. É graduado, mestre e doutor em História pelo PPGH/UERJ e
doutor em Letras Clássicas, com ênfase em Epigrafia Latina pelo PPGLC/UFRJ.
Campos possui estágios de pesquisa no ANHIMA, na Universidade Paris I,
Sorbonne; na École Française D’Athenes; na Universidade de Coimbra.

376
As tabellae defixionum de Nomento, no Lácio (IAEC – I EC)

ambiguidades e diversos usos inerentes a essas práticas em várias


regiões do Mediterrâneo Antigo.
A documentação para o tema não se limita ao campo literário.
Assim, encontramos informações preciosas que residem na cultura
material para a construção das pesquisas históricas. Isso pode ser
corroborado a partir dos papiros mágicos encontrados em vários
pontos do Mediterrâneo. Entretanto, nos inquieta para análise neste
texto as defixiones, que podem ser pensadas como superstitio, ou seja,
como uma prática não aceita pelo mos maiorum; portanto, essa magia
não passava pelo controle religioso dos colégios sacerdotais romanos.
Vale destacar que o seu ritual era composto pela oralidade e a prática
material, pois se valia da inscrição e desenhos em suportes materiais
(chumbo, cobre, liga de metais etc.), bem como se realizava
performances orais, em alguns casos podendo haver sacrifícios de
animais. Logo, objetivamos analisar as defixiones laciais de Nomento,
entre os séculos I AEC- I EC, assim refletindo sobre a importância dos
lugares de depósito dessas placas de maldição.

As defixiones laciais

Os estudos das defixiones possuem uma trajetória que remonta


ao século XVIII com Nicolo Ignarra, em Nápoles, depois ganhando
maior fôlego com Richard Wünsch, em finais do séc. XIX e se
consolidando no começo do séc. XX com Auguste Audollent. É
importante salientar que, na década de 1980, houve um aumento das

377
Carlos Eduardo da Costa Campos

descobertas arqueológicas de tabletes de imprecação e orações


jurídicas, como no caso da Inglaterra, nos templos de Bath. Barry
Cunliff, entre 1979-1980, listou cerca de cento e trinta tabletes, muitos
deles fragmentários, e alguns aparentemente sem inscrição. A
disseminação de detectores de metais entre arqueólogos amadores e
caçadores de tesouros forneceu um incentivo para essas pesquisas,
assim como um alerta às autoridades locais e científicas para o perigo
dos roubos de peças arqueológicas. Devido ao aumento dos relatórios
e publicações sobre o tema, os quais se encontravam, porém, de forma
dispersa e em vários tipos de produções (livros, revistas, monografias),
impôs-se a necessidade de uma sistematização e registro das
defixiones latinas, sob a forma de um banco de dados, para facilitar o
acesso à informação. Essa questão foi resolvida por meio do empenho
de Amina Kropp (2008), pois seu árduo trabalho possibilitou
compreendermos as características das defixiones, bem como acessar
os dados sobre esses objetos, além de formar parte de nosso corpus
documental.
No campo dos Estudos da Antiguidade, é um consenso que as
defixiones integram uma tipologia documental de matriz epigráfica
(KROPP, 2008). Para John Bodel (2001, p. 5), aquele que se dedica ao
campo epigráfico deve alargar as suas perspectivas sobre a área, pois
há uma variedade de suportes materiais para o desenvolvimento de
pesquisas, entre os quais temos as defixiones. Logo, partilhamos das
premissas de R. Tomlin (2010, p. 270), que há uma abundância dessas

378
As tabellae defixionum de Nomento, no Lácio (IAEC – I EC)

inscrições mágicas pelo Mediterrâneo Antigo e que necessitam ser


problematizadas nos estudos epigráficos, para além dos tradicionais
olhares sobre as inscrições honoríficas e fúnebres.
Daniel Ogden (1999, p. 4) evidencia que as primeiras placas de
maldição, no modelo que estamos analisando, eram gregas. Destarte,
notamos a presença desta prática mágica a partir de finais do século VI
AEC (vinte e duas placas), bem como o seu incremento a partir de V
AEC, na colônia grega de Selino, na Sicília (OGDEN, 1999, p. 4).
Ogden (1999, p. 5) explica que não havia, na Antiguidade, um termo
unificado para se referir a essas inscrições mágicas. Em sua
perspectiva, o vocábulo mais aproximado seria o grego katadesmos
(pl. katadesmoi) – pois a palavra expressa a ideia de amarração2. A
palavra derivaria do verbo katadein que significa prender ou amarrar.
Daniel Ogden (1999, p. 4-5) acrescenta que na cultura latina o
termo mais apropriado seria defixio, plural defixiones. Defixio deriva
do verbo latino defigere fixar ou pregar. O verbo composto pela
preposição de, cujo sentido geral é distância a partir de, é o radical do
verbo figo (figo, is, fixi, fictum, figere), ou seja, fincar, atar e/ou
prender. Para Ogden (1999, p. 4-5), também há termos que poderiam
ser utilizados como: execratio (maldição); devotio (dedicação,
maldição ou encantamento); commonitorium (memorando); petitio

2 Neste texto compreendemos o termo amarração com o sentido de prender ou


limitar algo ou alguém no ato mágico. Afinal, consideramos que esse vocábulo é
mais amplo, assim como de uso corrente entre os especialistas de História da Magia.

379
Carlos Eduardo da Costa Campos

(petição); donatio (doação/dedicação)3. Quanto à historiografia


moderna de origem anglo-saxã, há preferência para o uso do termo
inglês curse tablets, o que causaria alguns problemas, pois nem todas
as placas encontradas no local são de maldição (Beard; North; Price,
2002, p. 210-212). Observa-se uma distinção etimológica no grego e
latim em Ogden (1999, p. 4-5), da qual partilhamos, pois, as palavras
possuem sentidos que são peculiares em cada sociedade.
Destacamos que a palavra defixio (pl. defixiones) é utilizada
nas expressões defixionum tabellae, defixionis tabellae ou tabellae
defixionum, geralmente, por epigrafistas e historiadores. Vale
mencionar que tabellae é nominativo plural feminino de primeira
declinação e defixionum genitivo plural feminino de terceira
declinação. É tradução vernacular usarmos tablete, tábuas, placas ou
lâmina para esse objeto.
Ao trabalharmos com as defixiones, estamos atentos ao fato de
que esses tabletes são oriundos da esfera da cultura material. Vale
ressaltar que o conceito de cultura material, apesar de toda a sua
aplicabilidade, é polissêmico pelo próprio uso da conceituação de
cultura ou de categorização em elementos materiais e imateriais, como
ressaltou o historiador Marcelo Rede (1996, p. 273). O referido
historiador também argumenta que devemos estar atentos para a
constituição da sociedade na qual o nosso objeto de análise
encontrava-se inserido. Em virtude disso, verificamos que as análises

3 Vale destacar que esse termo seria mais apropriado ao contexto britânico das
orações para justiça (OGDEN, 1999, p. 5-6).

380
As tabellae defixionum de Nomento, no Lácio (IAEC – I EC)

variam de acordo com cada contexto temporal e espacial que


problematizamos nas pesquisas.
No que tange ao corpus documental e o seu tratamento
metodológico, contamos com um total de cinquenta e duas inscrições
latinas que foram produzidas na região do Lácio, entre os finais do
século I AEC – V EC. Destacamos que este material foi traduzido,4
revisado5 e catalogado, assim estando disponível para acesso no
Catálogo das Defixiones Laciais (CDL) I AEC – V EC, o qual se
encontra no apêndice da tese As tabellae defixionum da região do
Lácio (I AEC – II EC): tradução e análise textual de Carlos Eduardo
da Costa Campos (2021, p. 143-210). Numericamente, temos uma
defixio de Minturno (Minturnae)6; três inscrições de Nomento
(Nomentum)7; duas defixiones de Óstia (Ostia)8. A maior parte das
inscrições são oriundas de Roma com um total de quarenta e seis
defixiones9. Essas inscrições mágicas podem ser observadas com
textos em latim, bem como híbridas, assim contendo o grego e o latim.
Há placas que consideramos imprecisas linguisticamente pelo seu
desgaste material.

4 Foram traduzidas somente quarenta e seis lâminas, pois seis placas estão
impossibilitadas de compreensão do texto pelo desgaste do material, apenas havendo
a catalogação destas inscrições.
5 O processo de tradução e revisão foi o resultado de debates estabelecidos pelo Prof.
Dr. Anderson de Araujo Martins Esteves – UFRJ e o Prof. Dr. Arthur Rodrigues –
ATRIVM / UFRJ.
6 CDL, dfx: 01.
7 CDL, dfx: 02 a 04.
8 CDL. dfx: 05 a 06.
9 CDL dfx: 07 a 52.

381
Carlos Eduardo da Costa Campos

É importante destacar que em nossa pesquisa foi elaborado um


conjunto de quatro mapas que possibilitam compreender a
geoespacialização das defixiones no Mediterrâneo Antigo, na antiga
Itália e no Lácio. As coordenadas necessárias para a geoespacialização
do objeto de pesquisa foram obtidas através do Sistema de Referências
Geocêntrico para as Américas (SIRGAS - 2000), tendo como fonte de
dados a Eurostat (O Gabinete de Estatísticas da União Europeia). A
elaboração foi realizada em parceria com a cartógrafa Juliana Souza,
da empresa Geo & Cia, em Goiás, Brasil. Ressaltamos que as cores
utilizadas nos mapas apenas tratam de elementos para distinção
regional. A geoespacialização dessas defixiones podem ser verificadas
através da imagem 1, no Mapa da Distribuição pelo Lácio das
Defixiones com Textos em Latim (2021, p. 83).

Figura 1: Mapa da distribuição pelo Lácio das defixiones latinas


Fonte: Campos, 2021, p. 83.

382
As tabellae defixionum de Nomento, no Lácio (IAEC – I EC)

Retomando o mapa da imagem 1, ele fornece questões


importantes sobre a circularidade das inscrições pelo Lácio. Nele é
possível observar que os caminhos percorridos pelas inscrições
passam tanto pelas áreas portuárias de Óstia e Minturno, assim como
pelas Vias Ostiense, Ápia e Nomentana. Essa circularidade mágico-
religiosa é oriunda da extensa mobilidade no mundo antigo, em nível
individual ou coletivo (ISAYEV, 2017, p. 16). O Lácio ocupou um
importante papel, devido à cidade de Roma, na expansão territorial,
política e econômica da antiga Itália. Logo, as redes de conexão foram
se acentuando desde o século III AEC e se intensificaram internamente
e no contexto mediterrânico, no período do Principado.
Norberto Guarinello (2014, p. 208) elucida que as
comunidades do Mediterrâneo viviam numa ampla rede de conexões,
assim elas não estavam isoladas em cada região, pois faziam parte de
uma teia de relações. Nesse sentido, os portos e estradas por onde
circulavam azeite, vinho, lã, grãos e cerâmica, também estabeleciam
trocas culturais religiosas e mágicas, como as defixiones.

As defixiones de Nomento e os lugares de depósito

Nessa parte nos deteremos ao quantitativo de três inscrições,


devido ao recorte temporal e regional para este texto, ou seja, a cidade
de Nomento, no Lácio, entre os séculos I AEC e I EC. Nomento
(Nomentum) ficava no Lácio, em uma região localizada na fronteira

383
Carlos Eduardo da Costa Campos

com os sabinos. A cidade se situa a 6,4 km do rio Tibre e


aproximadamente 22 km de Roma10.
Os textos clássicos narram que Nomento integrava o território
dos sabinos e foi considerada como uma cidade sabina, apesar de sua
matriz ser latina. Virgílio e Dionísio de Halicarnasso apontam que essa
cidade estava próxima colônia de Alba (Aen. 6. 773; Ant. Rom. 2.53).
Nomento também é listada como uma das trinta cidades que integram
a Liga Latina contra Roma em 493 AEC (Liv. Hist. Rom. 1.38; Dion.
Hal. Ant. Rom. 3.50, 5.61). Nomento se juntou às outras cidades do
Lácio na Guerra Latina de 338 AEC e pelos tratados de paz conseguiu
obter a cidadania romana (Liv. Hist. Rom. 8.14.). Seu território era
fértil e produzia excelentes vinhos (Plin. H. N. 14.4; Marc. Epig.
10.48). Fragmentos arquitetônicos e outros vestígios existentes
provam a prosperidade contínua de Nomento sob o Império Romano.
O local é agora ocupado por uma aldeia que leva o nome de Mentana.
A estrada que vai de Roma a Nomento era conhecida na Antiguidade
como Via Nomentana. Ela saía da Porta Colina, onde se separava da
Via Salária, cruzava o rio Anio por uma ponte e dali seguia quase em
linha direta a Nomento (Liv. Hist. Rom. 3, 52.).

10 Os dados podem ser confrontados através dos escritos de William Smith, no


Dictionary of Greek and Roman Geography (1854). Disponível em:
h t t p : / / w w w. p e r s e u s . t u f t s . e d u / h o p p e r / t e x t ?
doc=Perseus:text:1999.04.0064:entry=nomentum-geo. Acesso em: 28 jun. 2021.

384
As tabellae defixionum de Nomento, no Lácio (IAEC – I EC)

Nesse contexto de conectividade entre Nomento e as regiões


do Lácio, verificamos três defixiones que analisaremos a seguir. Esse
breve panorama nos auxilia para a compreensão das defixiones 2, 3 e 4
de Nomento, disponível no CDL.
A dfx 2 foi encontrada numa sepultura em Urnes e pode ser
datada como do século I AEC. Não há como categorizarmos essa
defixio a partir do seu texto. Quanto à composição, o material é o
chumbo e não há descrições sobre sua forma (CDL, 2021, p. 147-148;
EDH: HD032769; KROPP, 2008, dfx. 1.4.2/2)

Texto estabelecido:
Titus Octavius sermone, Marcus Fidustius [---] mutus
sermone, Fidustius mutus, Irena Plautiae defigere:
extam, umeros, nisum, quaestum, caput, oculos describo
cilos [---] membra omnia: latus, lingua, flatus, coria,
talus, extase, ungues, viscera ex hoc [---] Ma.
Trebonius. Quaestum, vestigia, flatus, faciam, latus,
bona ira [---]

Tradução:
Que Tito Otávio perca a fala, que Marco Fidústio [---]
fique mudo, Fidústio mudo, Irene de Pláucia, que você
seja fixada: entranhas, ombros, esforço, rendimento,
cabeça, olhos, descrevo cilos [---] todos os membros: o
flanco, a língua, a respiração, a pele, o tornozelo, as
entranhas, as unhas, os órgãos deste [---] Marco (?)
Trebônio. O rendimento, as pegadas, a respiração, que
eu faça, o flanco, a boa ira [---]

A motivação e o nome do emissor são indetectáveis. O


enunciado da inscrição permite-nos inferir que os receptores são: Tito
Otávio, Marco Fidústio, Irene de Pláucia, Marco (?) Trebônio. O tom
discursivo desse ato de fala é imperativo como vemos no excerto:
Titus Octavius sermone, Marcus Fidustius [---] mutus sermone,

385
Carlos Eduardo da Costa Campos

Fidustius mutus, Irena Plautiae defigere / “Que Tito Otávio perca a


fala, que Marco Fidústio [---] fique mudo, Fidústio mudo, Irene de
Pláucia, que você seja fixada”. Há uma lista de partes do corpo a
serem atingidos nessa magia: (...) extam, umeros, nisum, quaestum,
caput, oculos describo cilos [---] membra omnia: latus, lingua, flatus,
coria, talus, êxtase, ungues, viscera ex hoc [---] Ma. Trebonius /
“entranhas, ombros, esforço, rendimento, cabeça, olhos, descrevo
cilos [---] todos os membros: o flanco, a língua, a respiração, a pele, o
tornozelo, as entranhas, as unhas, os órgãos deste [---] Marco (?)
Trebônio”. Em outro trecho a lista continua mencionando o flatus /
respiração e o latus /flanco. Demarcamos que não encontramos uma
tradução para a palavra cilo que se contextualize com a inscrição,
assim mantemos o termo no original.
A dfx 3 também foi encontrada numa sepultura em Urnes e da
mesma forma pode ser datada como do século I AEC. Não há dados
para categorizarmos essa defixio a partir da inscrição. A composição
do material é o chumbo e não há descrições sobre sua forma (CDL,
2021, p. 149-150; EDH: HD032766; KROPP, 2008, dfx. 1.4.2/3).
Texto estabelecido:
Malchio Niconis: oculos, manus, digitos, bracchia,
ungues, capillum, caput, pedes, femur, ventrem, nates,
umbilicum, pectus, mamillas, collum, os, buccas, dentes,
labia, mentum, oculos, frontem, supercilia, scapulas,
umerum, nervos, os, merilas, ventrem, mentulam, crus,
quaestum, lucrum, valetudines defigo in his tabellis.
Rufa publica: manus, dentes, oculos, bracchia, ventrem,
mamillas, pectus, os, merilas, ventrem, [---], crus, os,
pedes, frontes, ungues, digitos, ventrem, umbilicum,
cunnum, quaestum Rufae publicae defigo in his tabellis.

386
As tabellae defixionum de Nomento, no Lácio (IAEC – I EC)

Tradução:
Malquião, filho de Nico, eu fixo nestas tábuas: seus
olhos, mãos, dedos, braços, unhas, cabelo, cabeça, pés,
coxa, estômago, nádegas, umbigo, peito, mamilos,
pescoço, boca, bochechas, dentes, lábios, queixo, olhos,
testa, sobrancelhas, espáduas, ombro, nervos, boca,
medula (?), barriga, pênis, perna, rendimentos, lucro,
saúde. Rufa ordinária (?), eu fixo nestas tábuas: suas
mãos, dentes, olhos, braços, estômago, seio, mamilos,
boca, medula (?), estômago, [---], perna, boca, pés, testa,
unhas, dedos, estômago, umbigo, vagina, os
rendimentos de Rufa ordinária (?)

A motivação para realização dessa imprecação e o nome do


emissor do discurso não são apresentados pelo texto. Os receptores da
magia são Malquião e Rufa “ordinária” (?). O tom discursivo desse ato
de fala é imperativo, pois o redator impõe aos deuses que: defigo in
his tabellis / “eu fixo nestas tábuas”. O verbo defigo aparece duas
vezes nessa inscrição. Uma lista de partes do corpo são citadas como
relativas às partes de Malquião a serem atingidas: oculos, manus,
digitos, bracchia, ungues, capillum, caput, pedes, femur, ventrem,
nates, umbilicum, pectus, mamillas, collum, os, buccas, dentes, labia,
mentum, oculos, frontem, supercilia, scapulas, umerum, nervos, os,
merilas, ventrem, mentulam, crus / “seus olhos, mãos, dedos, braços,
unhas, cabelo, cabeça, pés, coxa, estômago, nádegas, umbigo, peito,
mamilos, pescoço, boca, bochechas, dentes, lábios, queixo, olhos,
testa, sobrancelhas, espáduas, ombro, nervos, boca, medula (?),
barriga, pênis, perna”. A valetudines / “saúde” também é mencionada
como alvo dessa magia. O redator, ao inscrever as partes do corpo de

387
Carlos Eduardo da Costa Campos

Rufa, não apresenta os itens de forma igual, assim invertendo algumas


partes como os olhos e dedos na estrutura frasal: Rufa publica:
manus, dentes, oculos, bracchia, ventrem, mamillas, pectus, os,
merilas, ventrem, [---], crus, os, pedes, frontes, ungues, digitos,
ventrem, umbilicum, cunnu / “Rufa ordinária (?), eu fixo nestas tábuas:
suas mãos, dentes, olhos, braços, estômago, seio, mamilos, boca,
medula (?), estômago, [---], perna, boca, pés, testa, unhas, dedos,
estômago, umbigo, vagina”. Tanto para Malquião e Rufa os
rendimentos /quaestum são alvos de ataques. Entretanto, apenas os
lucros / lucrum de Malquião aparecem no texto sendo atacados.
Os nomes de ambas as vítimas, mencionados no início da
maldição como Malquião e Rufa, estão no nominativo. Ademais, as
partes do corpo amaldiçoadas dependem sintaticamente do verbo
defigo mencionado no final do texto e estão listados em formas
acusativas. Embora muitas dessas placas contenham traços do latim
vulgar, é claro que o autor usou uma construção do latim clássico
como o acusativo ao nomear as partes do corpo. Contudo, a parte mais
importante da maldição, ou seja, o nome das vítimas, ficou no
nominativo (Luciani; Urbanová, 2019, p. 421-442).
A dfx. 4 foi encontrada em uma sepultura, porém não temos
informações sobre a localização e sua datação seria do século I EC.
Não há dados para categorizarmos essa defixio a partir da inscrição. A
composição do material é o chumbo e na sua forma vemos a presença

388
As tabellae defixionum de Nomento, no Lácio (IAEC – I EC)

de um furo (CDL, 2021. p. 151; EDH: HD032769; KROPP, 2008, dfx.


1.4.2/1).
Texto estabelecido:
Titus Octavius Titi libertus, Publius Fidustius,
Postumius, Gavia, si quis adversarius aut adversaria.

Tradução:
Tito Otávio, liberto de Tito, Públio Fidústio [?],
Postúmio, Gávia, se algum deles for um adversário ou
adversária.

A motivação para realização dessa imprecação e o nome do


emissor do discurso não são apresentados pelo texto. Os receptores da
magia são Tito Otávio, Públio Fidústio [?], Postúmio e Gávia. O tom
discursivo, as divindades evocadas e as partes do corpo não são
detectáveis pelo enunciado da inscrição. Como se trata de uma série
de nomes, si quis apresenta um sentido próximo a “se algum deles”. O
verbo “ser”, no caso, está subentendido pelo que notamos na frase. Há
falta de análise historiográfica sobre essa inscrição.
Evidenciamos que as três defixiones foram encontradas em
sepulturas, duas em Urnes e uma com a localização não especificada.
Dessa forma, vemos a sepultura como um dos locais importantes para
o ritual mágico, pois nele se conectava o mundo dos vivos e dos
mortos. Entretanto, o depósito das defixiones vai muito além desse
debate, afinal o ato final de elaboração de uma defixio é o depósito
dela em local adequado. Consonantes com Zeny Rosendahl,
apontamos que

389
Carlos Eduardo da Costa Campos

O espaço sagrado possui uma relação íntima com o


grupo religioso que o frequentou. As imagens espaciais
desempenham um papel importante na memória
coletiva, porque cada aspecto, cada detalhe desse lugar
possui um sentido que só é inteligível para os membros
do grupo (ROSENDHAL, 2002, p. 34).

A partir das concepções teóricas de Rosendahl (2002, p. 30),


sobre o espaço sagrado, percebemos os locais de depósitos das
defixiones como áreas de vinculação de forças energéticas que eram
consideradas como capazes de transportar a solicitação materializada
na placa de maldição aos deuses ou espíritos, de modo a conectar os
agentes da magia. A performance ritual de depositar as defixiones teria
uma conotação de colocar o amaldiçoado à frente da divindade a quem
foi enviado, de modo que a ação gravada seria reafirmada com os atos
de fala e as oferendas. Ademais, a prática de esconder a defixio
também ajudaria a evitar que a maldição viesse a perder a sua eficácia,
bem como proteger a identidade daqueles que realizaram essa ação
mágica.
Dessa forma, uma vez que o tablete foi inscrito, ele deveria ser
inserido em lugares considerados sagrados ou próximos da vítima, os
quais eram escolhidos de propósito. Devemos ter em mente que o ato
de enterrar ou submergir significa esconder, em primeira escala.
Assim, a ação de depósito das placas mágicas corresponde a essa
necessidade de sigilo e proteção. Afinal, essa ação mágica era
percebida como negativa socialmente, assim precisava ser ocultada.
Ademais, o texto não poderia cair nas mãos dos adversários do

390
As tabellae defixionum de Nomento, no Lácio (IAEC – I EC)

solicitante da magia, ou alguém que poderia neutralizar esse ritual


mágico.
Os Papiros Mágicos Gregos (7, 451-52), fornecem uma lista
típica de tais lugares: “(...) ter [a placa] enterrada ou [colocada em] um
rio ou terra ou mar ou riacho ou caixão ou em um poço”. Outros
lugares incluíam, para feitiços de amor, a casa do alvo desejado; para
corridas, o piso do anfiteatro; os santuários associados a divindades
ctônicas. Muitos túmulos parecem ter sido o lugar mais comum de
depósito. Locais de sepultamento daqueles que morreram jovens ou
por meios violentos foram as escolhas preferidas. Três eram os lugares
para a inserção desse material, que são mais usuais:

1) Próximo de templos, santuários e recintos sagrados;


2) Cemitérios; riachos, fontes, nascentes, poços, aquedutos, banhos
públicos;
3) Lugares próximos da vítima da magia: casa, locais de trabalho,
áreas de atletismo e comércio.

Daniel Ogden (1999, p. 15-22) menciona que as sepulturas e os


lugares dos mortos foram os primeiros espaços a serem utilizados
nessa modalidade de magia. Logo, se nota o uso dos santuários e
templos para o depósito das defixiones, assim prosseguindo para os
demais espaços. A mudança de lugares de depósito pode estar
relacionada com o grau de risco que mago e solicitante detinham para

391
Carlos Eduardo da Costa Campos

a sua ação mágica. Na Antiguidade, o vilipêndio e manipulação de


cadáveres é algo reprovado socialmente, incorrendo seu perpetrador
em crime de impiedade na sociedade romana (BERNARD, 1991, p.
364-369; Ogden, 1999, p. 15-22). Raol Elia (2014, p. 55) argumenta
que na cultura romana as sepulturas pertencem aos deuses Mani e por
isso elas são consideradas juridicamente res religiosae. Dessa maneira,
a violação de sepulturas era vista como um delito. Esse crime foi
contemplado pela Lex Iulia, no Principado de Augusto. Portanto, a
inserção das defixiones em lugares de enterramento era uma ação
execrável do ponto de vista religioso, assim como um crime social.
Ogden (1999, p. 15-22) menciona que, no período romano de
governo sobre o Mediterrâneo, os percursos subterrâneos de água se
tornaram espaço de larga utilização para as defixiones. Um dos
motivos apontados para essa predileção era pela água ser fria, assim
relacionando-a com os mortos.
No caso do enterramento próximo da vítima, em seu trabalho,
casa ou local de atividades a intenção se dava pela proximidade, ou
seja, maior capacidade de contágio da vítima. Quanto mais próxima da
pessoa, mais eficácia essa magia teria (OGDEN, 1999, p. 15-22).
Na perspectiva de Gager (1992, p. 21), infelizmente, há poucas
evidências sobre quem realizaria o ato de depósito: o mago ou o
solicitante da magia. Em alguns casos, o depósito certamente não
exigia nenhuma habilidade especial – como colocar o tablete em um
poço ou fonte – assim, se pode imaginar que o solicitante poderia

392
As tabellae defixionum de Nomento, no Lácio (IAEC – I EC)

realizar essa tarefa sozinho. Entretanto, em outros casos, envolvendo


defixiones colocadas em túmulos, na porta de pistas de corrida, a
probabilidade é muito maior que os feiticeiros ou seus assistentes
realizassem esta tarefa como parte de seu serviço para o cliente. É
improvável que um cidadão entrasse nas áreas cemiteriais à noite,
desenterrasse as sepulturas e colocasse o tablete na mão do cadáver
com tanta facilidade, como no caso dos lugares de depósito de
Nomento.
Considerações finais

No cenário acadêmico internacional, ainda se nota uma


negligência sistêmica sobre o estudo das defixiones. Em muitos casos,
ele é relegado ao campo do curioso ou do exótico, havendo poucas
teses e análises sobre o tema. Essa marginalização científica ocorre
devido à visão etnocêntrica que temos da Grécia e de Roma, que nos
direcionam para assuntos que reproduzam o esplendor e poder dessas
sociedades. Dessa maneira, com a mudança dos paradigmas no campo
dos Estudos da Antiguidade, buscamos romper com essa agenda
conservadora que não abarca as práticas culturais populares. Logo,
procuramos em nosso estudo ir além das análises resumidas sobre a
religião oficial romana e contemplar ações e interações culturais
através do campo da História da Magia e da cultura material.
Há diversas possibilidades a serem exploradas sobre o tema
das defixiones, como localizações, questões linguísticas e de materiais,

393
Carlos Eduardo da Costa Campos

além de formas de interpretação para essas inscrições epigráficas


itálicas e de outras regiões do Mediterrâneo Antigo. Ressaltamos, por
exemplo, que nem sempre é possível compararmos inscrições de uma
mesma cidade, devido à falta de dados ou ao desgaste do material, o
que inviabiliza uma comparação e perspectiva de análise sobre o
hábito epigráfico. Entretanto, também a partir da leitura em
contraponto das inscrições, foi possível observarmos padrões de locais
para a deposição das placas em Nomento. Ou seja, cada área epigráfica
apresenta uma especificidade que deve ser levada em conta.
Na primeira metade do século XX, a prática de depósito das
defixiones foi correlacionada com o sepultamento, como vimos em
Nomento. Entretanto, esse não seria o único caminho e método de
realização dessa magia, como vemos em Amina Kropp (2008) e D.
Urbanová (2017). Como se pode inferir, a prática de depósito das
defixiones é heterogênea, no que tange à topografia das áreas
utilizadas para magia. Em virtude dessa variabilidade, nota-se diversas
interpretações quanto aos lugares de depósito das placas mágicas.
Ressaltamos que os locais sagrados de depósito das defixiones
e de proximidade com as vítimas são construções sociais, pelas quais
os grupos humanos conferem poder sobre-humano para esse ritual
mágico. Há muitas dúvidas sobre o que deu origem a função de
depósito das defixiones, porém não há nada de conclusivo (ELIA,
2014, p. 65). Nesse sentido, apresentamos nossas interpretações, pois
diversos são os lugares, ocasiões, motivações e atores que

394
As tabellae defixionum de Nomento, no Lácio (IAEC – I EC)

caracterizam a ação de depósito e não é nosso objetivo delimitar uma


única forma. O único fato concreto que temos é que uma placa ao ser
inscrita e ritualisticamente ofertada ao sagrado acabava sendo
depositada em algum lugar.

Referências

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Cary. Vol. I (L. I-II). Cambridge: Harvard University Press; London:
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London: William Heinemann Ltd., 1939.
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URBANOVÁ, D; LUCIANI, F. Cursing not Just the Body. Some
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Female Public Slaves in the Roman World. Epigraphica, LXXXI, 1-2,
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397
Sem perdão: em busca de justiça (ou
vingança?) usando defixiones na antiga
Mogontiacum (Mainz)
Renata Cazarini de Freitas1

Vingança e justiça não são a mesma coisa. Revidar uma ação


percebida como um malfeito não é o mesmo que demandar reparação
pelas vias legais. Também justiça e justiçamento diferem, já que este
consiste na busca de compensação fora do sistema judicial,
configurando uma iniciativa individual ou coletiva à margem do
Estado. Já vingança e justiçamento parecem se confundir desde os
tempos mais remotos.

Introdução

Na Antiguidade, uma notória forma de justiçamento foi o uso


disseminado de pequenas lâminas de chumbo inscritas como
execração contra alguém cuja atitude havia sido considerada deletéria.
As inscrições eram endereçadas, na forma de rogos, a divindades
executoras das penas. Tratava-se de impor a vontade de um sobre o
outro – note-se bem – à distância, sem intervenção direta, mesmo

1 Professora de língua e literatura latina na Universidade Federal Fluminense (UFF).


Doutora (2019) e mestre (2015) em Letras Clássicas pela USP. Graduada em Latim
(2012) pela USP e em Jornalismo (1990) pela Faculdade Casper Líbero. É
orientadora nos campos dos Estudos Críticos de Recepção dos Clássicos e Estudos
de Tradução. É membro eleito do Conselho Consultivo e Deliberativo da Sociedade
Brasileira de Estudos Clássicos (SBEC).

398
Sem perdão

quando era conhecida a identidade do alvo. Não apenas o rogante


funcionava como agente, mas também o rogado, a divindade, singular
ou plural, chamada a intervir para executar a punição pré-determinada,
que a ela cabia apenas referendar.
O recurso às chamadas tabellae defixionum, em latim, ou
katádesmoi, em grego, têm sido interpretados como uma prática de
magia – associado ao fantasioso, pode-se pensar – e não como uma
atitude religiosa, ou seja, é percebido, em geral, como um desvio da
norma social. Richard Gordon (2015, p. 134) desacredita da
possibilidade de distinguir conceitualmente magia e religião, ao passo
que admite a viabilidade da discussão de práticas mágicas específicas
em contextos culturais restritos.
Considerando-se as 1.700 placas já resgatadas,2 a maioria
inscrita em grego, mais de 500 em latim, cobrindo o extenso período
do fim do século VI AEC até o V EC, esse parece ter sido um hábito

2 O mais completo banco de dados é o TheDefix (Thesaurum Defixionum), que pode


s e r a c e s s a d o e m h t t p s : / / h e u r i s t . f d m . u n i - h a m b u rg . d e / h t m l / h e u r i s t / ?
db=The_dema&website&id=41774. Deve-se registrar a ocorrência rara de defixiones
em mármore (Mérida, Espanha) ou em lâminas de uma liga metálica contendo
estanho (Bath, Inglaterra). A maioria das placas dos períodos clássico e helenístico
continha apenas os nomes dos alvos, textos são mais comuns posteriormente.
Também animais de competição eram amaldiçoados. As primeiras coletâneas foram
publicadas por Richard Wünsch em 1897 como Defixionum Tabellae Atticae (DTA)
e por Auguste Audollent em 1904 como Defixionum Tabellae (DT). Após décadas de
desinteresse por esses artefatos, a publicação de “A survey of Greek defixiones not
included in the special corpora” em 1985, por David R. Jordan, motivou outros
pesquisadores e epigrafistas. Um breve histórico da pesquisa nessa área pode ser lido
em Faraone; Tovar 2022.

399
Renata Cazarini de Freitas

social3 em todo o Mediterrâneo antigo, ainda que os objetivos


pudessem variar. Por exemplo, exercendo função profilática ou
apotropaica, muitas inscrições pleiteavam aos deuses a derrota de
adversários tanto em disputas esportivas (defixiones agonisticae)
quanto judiciais (defixiones iudiciariae) ou mesmo amorosas
(defixiones amatoriae).
A categoria que interessa particularmente a este capítulo
carrega certa polêmica, pois tanto pode ser encarada como hostil a
malfeitores (defixiones criminales) quanto pode ser classificada, por
exercer função reparadora, como uma prece por justiça (judicial
prayer), conforme o conceito de Henk Versnel (1991; 2010).
Gordon julga irrealista a tentativa de aplicar rótulos sem
analisar o contexto existencial do rogante e sua estratégia de gestão de
riscos, para a qual, certamente, contava com a intervenção divina
como garantidora da justiça no mundo. Para ele, as defixiones eram
“uma forma meio institucionalizada de induzir os deuses a intervirem
quando se foi injustiçado” (GORDON, 2014, p. 784).
O modo de expressão podia, então, combinar uma fórmula de
prece com idiomatismos execratórios – todos os dispositivos retóricos

3 A locução em português ecoa o conceito de Pierre Bourdieu, na leitura atualizada


de Setton (2002, p. 63): “Habitus é então concebido como um sistema de esquemas
individuais, socialmente constituído de disposições estruturadas (no social) e
estruturantes (nas mentes), adquirido nas e pelas experiências práticas (em condições
sociais específicas de existência), constantemente orientado para funções e ações do
agir cotidiano”. E ainda (Setton, 2002 p. 64): “Habitus é um instrumento conceptual
que auxilia a apreender uma certa homogeneidade nas disposições, nos gostos e
preferências de grupos e/ou indivíduos produtos de uma mesma trajetória social”.
Cf. Gordon, 2015, p. 137-8.

400
Sem perdão

eram válidos para incrementar o poder de convencimento da


mensagem – e as inscrições ganhavam autoridade quando depositadas
nos santuários das divindades locais invocadas.
Soa paradoxal, como bem argumenta Gordon (2014), que as
defixiones das outras categorias, imbuídas da aura da magia,
demandassem, muitas vezes, apenas o fracasso do oponente, enquanto
as preces por justiça, aparentemente mais próximas à religião,
propusessem sofrimentos terríveis e até mesmo a morte em público,
expondo o lado mais pernicioso do rogante. Gordon sintetiza sua
interpretação:
Se quisermos, podemos considerar a adoção de
estratégias “religiosas” (‘prayerful’) como uma maneira
de proteção pessoal contra o discurso institucionalizado
sobre a magia e a feitiçaria, mas sou extremamente
cético quanto à ideia de que os autores das defixiones se
enxergassem praticando magia: a convicção de que
tinham sido injustiçados legitimava a escolha da
execração como ferramenta (GORDON, 2014, p. 784).4

Em 1996, num artigo para a Revista do Museu de Arqueologia


e Etnologia da USP, baseado em seminário de 1992, Maria Luiza
Corassin registra a renovação do interesse pelo material epigráfico das
defixiones, mas ainda não se fala ali das preces por justiça, embora a
nomenclatura já circulasse no meio acadêmico de língua inglesa: em
1988, haviam sido publicadas as placas de execração de Aquae Sulis,
na província romana da Britannia, hoje a cidade de Bath, no sudoeste

4As traduções de citações em inglês e dos textos execratórios, diretamente do latim,


são todas minhas.

401
Renata Cazarini de Freitas

da Inglaterra, assim classificadas pelo epigrafista Roger Tomlin com


base em Versnel. O que ainda estava por vir eram mais defixiones do
período imperial romano, encontradas na Alemanha.

Mainz

Um santuário murado da segunda metade do século I EC,


englobando dois pequenos templos justapostos de mesmas dimensões,
foi parcialmente escavado entre os anos de 1999 e 2000 no que havia
sido um assentamento civil conhecido como Mogontiacum, capital da
antiga província romana da Germania Superior, hoje a cidade de
Mainz, centro-oeste da Alemanha. As construções eram dedicadas às
deusas frígia Cibele, identificada como Mater Magna, e egípcia Isis
Panthea, veneradas em outros pontos do império romano, o que
permite falar em “cultos diaspóricos” (ANDO, 2008, p. 102), pois
transitavam pelas rotas marítimas, instalando-se nas cidades com os
fiéis.
Os documentos epigráficos dessa escavação somam nove
inscrições latinas em pedra e 34 placas em chumbo (tabellae
defixionum), com datação entre 70 e 130 EC. Uma parte expressiva
das placas legíveis (71%) foi escavada atrás da cella dedicada a Mater
Magna, de 2 m², num recipiente feito de pedra (favissa), de 1 m², com
muitas camadas de cinzas e resíduos de vegetais e animais ofertados
ao fogo, bem como lamparinas a óleo (lucernae) e incensários

402
Sem perdão

(turibula). Em toda a área, estratigraficamente escavada, com cerca de


1.000 m², mapeou-se mais de 100 covas para queima de oferendas e
15 áreas circulares em pedra com a mesma finalidade. As fogueiras
sacrificiais parecem ter sido tão importantes que dois blocos de
calcário no formato tabulae ansatae, com dedicatórias gêmeas dos
templos gêmeos, foram reutilizados na estrutura em pedra de uma
lareira.
Como o sítio arqueológico se encontrava no espaço de duas
quadras de lojas no centro da cidade, onde seria erguido um shopping
center, as escavações, que alcançaram 5 metros de profundidade, não
se expandiram até a área residencial de Mainz, provável localização
do templo principal do período romano. Na Idade do Ferro, o local
havia sido ocupado por um cemitério, já sendo considerado, portanto,
espaço sagrado à época da construção dos templos, no início da
dinastia flaviana.
É justamente nessa época, num Mediterrâneo integrado por
rotas de comércio e comunicação, que se espraiam os cultos
diaspóricos, com o assentimento do imperador Vespasiano (Titus
Flauius Vespasianus), que esteve à frente do Império Romano por dez
anos a partir de 69 EC, sucedido pelos filhos Tito e Domiciano,
ocupando o poder, respectivamente, até 96 EC.
Segundo Clifford Ando (2008, p. 102), “a estabilidade política
e a ordem social que favoreceram o ápice da migração e do comércio
também possibilitaram a expansão dos cultos, destacadamente os de
origem oriental: Cibele, Ísis, Atargatis, Mitras, Júpiter Doliqueno e

403
Renata Cazarini de Freitas

Cristo”. Mas muito antes os romanos tinham desenvolvido


mecanismos sofisticados de importação e naturalização de cultos
estrangeiros, bem como de controle da vida religiosa dos povos
subjugados (ANDO, 2003, p. 325).
A relação de Roma com o culto de Mater Magna remonta ao
ano 204 AEC, quando adentra a cidade o meteorito que representaria a
deusa frígia Cibele, trazido de Pessino, na Anatólia, hoje Turquia,
cumprindo um oráculo sibilino relacionado à ansiada vitória sobre os
cartagineses nas guerras púnicas. Em homenagem à deusa ocorriam os
ludi megalenses ou megalesia entre 4 e 10 de abril.5 A data de início
das festividades, incluindo competições, encenações teatrais e
banquetes, celebrava o aniversário da recepção temporária da “deusa”
no santuário da Vitória, no monte Palatino, ainda em 204 AEC, e a
data de encerramento dos jogos comemorava a dedicação do santuário
próprio, também no Palatino, treze anos depois, em 191 AEC. O
meteorito, que se concebia ser a deusa mesma, teria sido incrustrado
numa imagem de culto (BORGEAUD, 2004, p. 60).
Pressuposto para a dispersão do culto é o princípio da
imanência, isto é, que a divindade não participa exclusivamente de um
elemento material, no caso, o meteorito levado a Roma, mas está em
todos os objetos sagrados, possibilitando a liturgia em diferentes
localidades: “adoradores de Cibele em Pessino e em Roma
provavelmente entendiam que a deusa estava e não estava em
coexistência com aquela rocha preta, portanto, reconheciam que, de

5 O amplo relato poético de Ovídio nos Fastos (IV, 179-372) merece a leitura.

404
Sem perdão

alguma forma, ela podia ser ou não idêntica a outras rochas pretas”
(ANDO, 2008, p. 103).
A arqueóloga que chefiou as escavações em Mainz, Marion
Witteyer, trata os documentos materiais inventariados como indícios
de que havia prática de magia para além do culto tradicional,
salientando os “depósitos de placas de chumbo”, muitas delas
incineradas nos locais de oferenda (WITTEYER, 2005, p. 105). O
epigrafista Jürgen Blänsdorf, encarregado das transcrições das placas
de execração, computou doze invocações a Mater Magna e quatro ao
seu consorte, Átis, formuladas como “analogias mágicas”
(BLÄNSDORF, 2005a, p. 11).
Num balanço da sua pesquisa, Blänsdorf descarta a atuação de
profissionais, isto é, sacerdotes e escribas, na concepção e inscrição da
grande maioria dos textos (BLÄNSDORF, 2005a, p. 12), apesar da
concentração de documentos num espaço religioso coletivo. Talvez o
mais instigante seja o que não foi encontrado ali: “Em Mainz, até
agora, não há caso evidente de uma invocação a Ísis, embora se
esperasse encontrar alguma no santuário compartilhado”
(BLÄNSDORF, 2005a, p. 17).
As placas de chumbo de Mainz estão especialmente conectadas
ao santuário, tal como acontece em Bath, na Inglaterra, antiga Aquae
Sulis. Essa vinculação, atestada tanto pelos vocativos às respectivas
divindades locais quanto pela concentração espacial dos achados, é
forte indício de uma prática ritualística aceita na comunidade

405
Renata Cazarini de Freitas

específica: performance social não marginal, talvez até mesmo


normativa, conforme a pesquisadora Sarah Veale (2017, p. 279).
As execrações revelam um ritual do tipo similia similibus,
como argumentado em pesquisas recentes (VEALE, 2017, FRANEK;
URBANOVÁ 2019): a placa de chumbo ofertada deve derreter e,
similarmente, deve se desfazer o alvo da execração, ao qual são
vetados os meios de se redimir do malfeito, por vezes, um roubo ou
uma fraude. “A execração se efetiva quando a placa de chumbo é
lançada na fogueira do sacrifício. Que ela não tenha se derretido deve-
se, provavelmente, ao fato de ter caído entre as cinzas já frias,
embaixo do fogo”, especula Blänsdorf (2005a, p. 15).
As placas de execração que puderam ser resgatadas sem
grandes danos causados pelo fogo revelam terem sido enroladas ou
dobradas, uma delas até perfurada com prego, outra envolvendo um
osso de pássaro, certamente uma oferenda, mas sem qualquer texto
inscrito.
Como observa Veale (2017, p. 280), talvez se possa considerar
essa prática ritualística em Mainz não necessariamente como desviante
da normatividade religiosa, mas assimilada no espaço do santuário,
não apenas pela concentração das placas junto a vestígios de oferendas
de animais e vegetais, mas também pelo teor das execrações, que, em
termos gerais, buscam a reparação de algum mal sofrido. Ela defende
que é preciso abandonar o antagonismo “religioso” e “não-religioso”,
porque os costumes locais devem ter estabelecido os parâmetros do
que era aceitável no santuário: “o ambiente jurídico pode ter,

406
Sem perdão

paradoxalmente, favorecido o recurso às imprecações por parte de


quem não tinha acesso formal à Justiça” (VEALE, 2017, p. 280).
Dentre as seis inscrições de Mainz que vêm traduzidas em
português neste capítulo, cinco usam o verbo latino “rogo”, assim, o
“defigens”, pressuposto autor de uma “defixio”, é também um
“rogans” – pode-se falar em “suplicante” na esfera religiosa e um
“pleiteante” no âmbito judicial – que dirige à divindade uma rogativa,
um pedido caracterizado pela veemência, segundo o dicionário
Houaiss, o que se pode constatar facilmente do material. A sigla
adotada para a identificação das “rogativas” de Mainz é DTM
(Defixionum Tabellae Moguntiacenses) mais o número atribuído na
editio princeps,6 além do registro do inventário da escavação
arqueológica.
Nessa pequena amostra, constituída das DTMs numeradas de 1
a 6, verifica-se em alguns exemplares a prática da escrita
opistográfica, isto é, a utilização de ambos os lados da placa de
chumbo. As inscrições nos lados externo e interno, se enrolada ou
dobrada, ou frente e verso, caso não, constam de uma mesma tabela,
com as linhas numeradas ao longo da tradução. O sinais adotados são:
[ ] letras ilegíveis, ( ) letras faltantes, < > letras a serem excluídas,

6 A publicação alemã de 2012, reunindo todas as placas editadas por Jürgen


Blänsdorf, inclusive um DVD com imagens, está esgotada e não consta de acervos
bibliográficos no Brasil. Para esta pesquisa, as transcrições latinas das placas de
Mainz são tomadas de artigos em três revistas acadêmicas (BLÄNSDORF, 2005;
2005a; Veale 2017) e de um capítulo de livro (BLÄNSDORF, 2010), inseridos nas
Referências Bibliográficas. Além dessa leitura comparativa entre as quatro
publicações, fez-se a confrontação das transcrições com as imagens digitais
disponíveis de desenhos de cinco das seis placas.

407
Renata Cazarini de Freitas

além de sequências de letras sem sentido, que vêm em maiúsculas,


mas que não se caracterizam como uoces magicae. O texto em
português procura preservar a estrutura sintática latina e as repetições
características das fórmulas de execração, embora não tente mimetizar
ortograficamente a elocução do latim mais popular. Seguem-se
comentários linguísticos e estilísticos sobre cada placa.

Figuras 1 e 2: Reprodução desenho inv. 72,3. Fonte: Blänsdorf, 2005, p. 677.

DTM 1 inv. 72, 3

408
Sem perdão

[face interna]
01. Grande Mãe, rogo-te,
Mater Magna, te rogo,
02. pelo que te é sagrado e numinoso,
p(e)r (t)ua sacra et numen tuum,
03. que a Gemela que meus broches
Gemella fib(u)las meas qualis
04. roubou, assim também ela...
sustulit, sic et illam REQVIs [rogo?]
05. separe pra não ter parte saudável.
adsecet ut nusquam sana si(t).
06. Tal como os galli se mutilaram,
Quomodo Galli se secarunt,
07. assim também ...ela se mutile pra
sic e[t ? uelis nec?] se secet sic, uti
08. que tenha seu lamento. Tal como
planctum ha[be]at. Quomodo
09. eles entregaram suas oferendas
et sacrorum deposierunt
10. no templo, assim também tua vida,
in sancto, sic et tuam uitam
11. tua saúde, Gemela, [entregues].
ualetudinem, Gemella.
12. Nem com sacrifícios, nem com
Neque hostiis neque au(- ouro,
ro neque argento redi(- 13. nem com prata, possas
<i>mere possis a matre 14. te redimires junto à mãe
deum, nisi ut exitum 15. dos deuses a não ser que
tuum populus spectet. 16. o povo veja a tua morte.
Verecundam et Pater(- 17. Verecunda e Paterna,
nam, sic illam tibi com(- 18. a ti a[s] confio,
mendo, Mater deum 19. Grande Mãe dos deuses,
Magna, rem illorum 20. a situação delas...
in AECRVMO DEO VIS qua(- 21. ...
le rogo co(n)summent(u)r 22. ...rogo que sejam destruídas
quomodo et res meas uire(- 23. como também as minhas coisas
sque fraudarunt, nec se 24. e recursos expropriaram, e que não
possint redimere 25. possam se redimir
nec hosteis lanatis 26. nem com oferendas de ovelhas,

409
Renata Cazarini de Freitas

[face externa]
nec plum<i>bis 27. nem com placas de chumbo,
nec auro nec ar(- 28. nem com ouro, nem com
gento redimere 29. prata redimir-se
a numine tuo, 30. junto a teu nume,
nisi ut illas uorent 31. a não ser que as devorem
canes, 32. os cães,
uermes adque 33. vermes e
alia portenta, 34. outros flagelos,
exitum quarum 35. [a não ser] que sua morte
populus spectet. 36. o povo veja.
Tamquam quae <C> FORRO (MO L?) 37. Como...
auderes comme[ndo] 38. ...confio
duas 39. duas
TAMAQVANIVCAVERSSO 40. ...
scriptis istas 41. com escritos essas
AE RISS . ADRICIS . S . LON 42. ...
a . illas, si illas cistas 43. ...aquelas, se aqueles cestos
caecas, aureas, FECRA 44. secretos, dourados...
E[..] I [.]LO[..]AS 45. ...
OV[.]EIS . mancas A 46. ...

Comentário:
A placa, com inscrição de grandes dimensões, enrolada, traz 26
linhas na face interna e 20 na face externa. Blänsdorf assevera que se
trata de mãos diferentes em cada lado, mas a mensagem é continuada.
Na face interna, são cursivas maiúsculas de 5 mm de altura; na face
externa, letras de até 10 mm. O que se pode dizer, a partir do desenho
publicado, é que há uma melhor distribuição e regularidade da escrita
no início da inscrição, onde ocorre a invocação a Mater Magna, em
seguida, a expansão gradual das letras com traços menos precisos e
incisivos dificulta a leitura.

410
Sem perdão

Assim, embora seja possível confrontar e confirmar, a partir do


desenho publicado, a transcrição quase integral, um número de
palavras é de difícil identificação a olho nu na tela do computador e,
por isso, a tradução teve de confiar nos documentos publicados
(BLÄNSDORF, 2005; 2005a; 2010, VEALE, 2017). Mesmo
Blänsdorf, o epigrafista da editio princeps, publica transcrições
distintas de algumas passagens. Adota-se, neste capítulo, a transcrição
de Blänsdorf publicada em artigo de Sarah Veale, que reproduz a
editio princeps Die defixionum tabellae des Mainzer Isis- und Mater
Magna-Heiligtums: defixionum tabellae Mogontiacenses (DTM).
Esta placa, classificada pelo renomado pesquisador Richard
Gordon com um dos “textos competentes” entre as DTMs (Gordon,
2014, p. 779), breve seleção que inclui as demais traduções deste
capítulo, evoca do imaginário coletivo da Roma antiga a figura dos
sacerdotes de Cibele (Mater Magna) conhecidos como galli, que se
castravam em rituais delirantes. Outros elementos compositivos do
repertório das defixiones de Mainz são atestados já neste primeiro
exemplar: a punição com morte em espaço público e a impossibilidade
de redimir-se pelo crime cometido.
A mesma placa toma como alvo três mulheres acusadas de
furto, numa partição dupla da execração: primeiro contra Gemela, até
a linha 16, em seguida, contra Verecunda e Paterna, supostamente até
o final do texto, que se torna indecifrável. Nos dois recortes, as
estruturas se assemelham: há invocações a Mater Magna e rogativas
baseadas na analogia persuasiva entre crime e punição com uso da
fórmula “quomodo... sic et...”, além das praticamente invariáveis

411
Renata Cazarini de Freitas

construções “nec redimere posse” e “nisi ut exitum tuum populus


spectet”. Um ponto alto da inscrição é a variação da apóstrofe: no
início, à deusa (l. 1), depois, ao primeiro alvo da execração, Gemela (l.
11), então, de volta a Mater Magna (l. 19).
Este documento epigráfico preenche os requisitos
compositivos de uma defixio, identificando a divindade rogada, o(s)
alvo(s) da rogativa, o(s) motivo(s) da execração, a oferenda como
retribuição, sendo esta, muitas vezes, a morte mesma do execrado.
Mas nem todas as placas apresentam esses quatro elementos.
Não é inverossímil considerar que a autoria intelectual desta
placa seja de uma mulher, mas não há como confirmar. Por outro lado,
a DTM3, certamente, tem como rogante uma mulher não nomeada,
esposa ou viúva de um Floro, como se verá adiante.

Figura 3: Reprodução desenho inv. 182,18. Fonte: Blänsdorf, 2005, p. 675.

412
Sem perdão

DTM 2 inv. 182,18


[face única]
01. quisquis dolum malum adm(isit de) hac pecun(i)a [---nec]
02. ille melior et nos det(eri)ores sumus (---------------)
03. Mater deum, tu persequeris per terras, per (maria, per locos)
04. ar(i)dos et umidos, per benedictum tuum et o(mnes ---. Qui de hac)
05. pecunia dolum malum adhibet ut tu perse(quaris---. Quomodo)
06. galli se secant et praecidunt uirilia sua, sic il(le--) R S Q
07. intercidat MELORE pec(tus?...)BISIDIS (ne)que se admisisse nec(...)
08. hostiis si(n)atis nequis t(...) neque SUT[ . ]TIS neque auro neque
09. argento neque ille solui (re)fici redimi possit. Quomodo galli,
10. bellonari, magali sibi sanguinem (fe)ruentem fundunt, frigid(us)
11. ad terram uenit, sic et (...) copia, cogitatum, mentem. (Quem-)
12. admodum de eis gallo(r)u(m, ma)galorum, bellon(ariorum sanguinem?)
13. spectat, qui de ea pecunia dolum malum (admisit, sic illius)
14. exitum spectent, et a(d qu)em modum sal in (aqua liques-)
15. cet, sic et illi menbra m(ed)ullae extabescant. Cr(a)s (ueniat)
16. et dicat se admisisse ne(fa)s. D(e)mando tibi rel(igione)
17. ut me uotis condamnes et ut laetus libens ea tibi referam,
18. si de eo exitum malum feceris.

01. Quem admitiu a malversação deste dinheiro...


02. ele está melhor e nós estamos piores...
03. Mãe dos deuses, tu persegues através de terras, (mares, lugares)
04. áridos e úmidos, pelo teu abençoado [Átis] e t(odos)... (Quem deste)
05. dinheiro acolhe a malversação que tu o persigas... (Tal como)
06. os galli se mutilam e amputam seus testículos, assim ele...
07. rasgue... o peito (?) e não o perdoais por ter admitido, nem
08. com oferendas para que ninguém... nem... nem com ouro nem
09. com prata nem que ele possa livrar-se, refazer-se, redimir-se. Tal como os
galli,
10. bellonari, magali vertem seu sangue fervendo e frio
11. chega ao chão, assim também... eloquência, pensamento, mente. (Do mesmo)
12. modo que desses galli, magali, bellonari o sangue (?)
13. ele vê, quem admitiu a malversação desse dinheiro, assim também
14. vejam a morte dele, e do mesmo modo que o sal na (água dissol-)
15. ve, assim também definhem seus membros e suas forças. Que venha o dia
16. em que ele diga ter admitido o sacrilégio. Pelo que é sagrado, em ti confio
17. que me atendas os votos e que eu te retribua satisfeito e disposto,
18. se deres a ele uma morte ruim.

413
Renata Cazarini de Freitas

Comentário:
A placa, na qual consta o maior texto entre as DTMs, inscrito
apenas em uma face, foi enrolada, depois dobrada e bastante
danificada pelo fogo, apresentando sinais de derretimento na parte
inferior. Cerca de um-terço das cinco primeiras linhas e da sequência
de 12 a 16 dessa escrita elegante em maiúscula cursiva é irrecuperável.
A dimensão dos danos torna parte da conjectura, exibida entre
parênteses, muito especulativa, como admite o epigrafista
(BLÄNSDORF, 2005a, p. 21).
A expressão latina “dolus malus de pecunia” (no acusativo:
dolum malum) ocorre três vezes (l. 1, 5 e 13) na inscrição de apenas 18
linhas e configura o malfeito denunciado na placa de execração. O
responsável pelo crime nefasto (l. 16: nefas) não é nomeado. A
punição é delineada em analogias persuasivas (quomodo /
quemadmodum... sic et...) e uma vez mais é evocada a imagem dos
galli, mas também de outras duas categorias de sacerdotes, os da
deusa romana da guerra Belona e, supostamente, uma versão
localizada em Mainz de discípulos de Magna Mater, os magali. A
ubiquidade da deusa (l. 3-4) é valorizada como eficaz para impor a
punição e a ela é associado Átis, segundo a leitura da expressão latina
“benedictus tuus” (l. 4, no acusativo) como epíteto de uma pessoa
falecida estimada (BLÄNSDORF, 2010, p. 182).
A metáfora da morte como paralisia dos atributos intelectuais
(l. 11) é construída a partir da fortíssima imagem do sangue derramado
pelos sacerdotes ao se castrarem, que chega frio ao chão (l. 10-11).

414
Sem perdão

Três motivos que se repetem em algumas DTMs ocorrem aqui: a


impossibilidade de redenção, a morte ruim à vista de todos e a
dissolução física como o sal na água.

DTM 3 inv. 1, 29

[frente]
Rogo te, domina Mater 01. Rogo-te, senhora, Grande
Magna, ut tu me uindices 02. Mãe, que me compenses
de bonis Flori coniugis mei. 03. pelos bens do meu marido, Floro.
Qui me fraudauit Ulattius 04. Quem me expropriou, Ulácio
Seuerus, quemadmod(um) 05. Severo, do mesmo modo que
hoc ego averse scribo, sic illi 06. eu escrevo isto às avessas, assim,
[verso]
omnia, quidquid agit, quidquid 07. tudo pra ele, faça o que fizer,
aginat, omnia illi auersa fiant, 08. tudo aconteça às avessas pra ele,
ut sal et aqua illi eueniat. 09. que seja pra ele como o sal na água.
Quidquid mi(hi) abstulit de bonis 10. O que ele me roubou dos bens
Flori coniugis mei, rogo te, 11. do Floro, meu marido, rogo-te,
domina Mater Ma(g)na, ut tu 12. senhora, Grande Mãe, que tu
de eo me uindices. 13. me compenses por isso.

Comentário:
Dentre as placas selecionadas, desta única não foi possível
obter um desenho para contrastar com a transcrição em latim, mas as
quatro publicações consultadas são convergentes quanto ao texto. Por
outro lado, seria de se esperar que pelo menos alguma parte da
execração refletisse a informação de que a escrita foi feita ao revés,
como sugerido na linha 6, configurando analogia persuasiva numa
correlação com a linha 8, no entanto, isso não se confirma
(FARAONE; KROPP, 2010, p. 390), ou seja, a escrita é regular, da
esquerda para a direita. Daí que a analogia não se realiza.

415
Renata Cazarini de Freitas

A autoria intelectual pode ser claramente atribuída a uma


mulher, a esposa ou viúva de um tal Floro, que foi espoliada por um
homem conhecido e nomeado como alvo da execração. Ocorrem duas
locuções idiomáticas nesta breve inscrição que se repetirão na DTM 4:
“agit, aginat” e “ut sal et aqua”. A primeira, registrada no Satíricon
61.9, de Petrônio, obra paradigmática para os estudos do latim popular
na Antiguidade, significa fazer algo a qualquer custo.7 A segunda,
como esclarece Gordon (2014, p. 781), é uma metáfora do esperado
fracasso dos planos do alvo da execração, que eles se desfaçam como
o sal na água.
Sobressai-se nesta rogativa a dupla ocorrência de “me
uindices” (l. 2 e 13), acarretando certa ambiguidade, pois tanto pode
levar a uma tradução banal como “me vingues” quanto a “intercedas
por mim”, numa leitura especializada do jargão jurídico de uma
reclamação em juízo para retomada da posse de bens. Ambas as
acepções são possíveis e qualquer opção é ideológica, seja no sentido
de implicar que prevalece na rogante o desejo de vingança, seja
priorizando o legalismo, pouco condizente com o teor do pedido
funesto (l. 4 a 9), que vem entremeado na dupla invocação à deusa.
A mensagem subliminar é que a pleiteante busca justiça fora
dos tribunais, o que seria mais apropriadamente tratado como
justiçamento do que como pura vingança, daí a preferência pela
expressão “me compenses”. Blänsdorf (2005a, p. 21) comenta que “as

7O latim “egi, aginaui” (Sat. 61.9), na tradução de Sandra Bianchet (Petrônio, 2004,
p. 103): “eu fiz o possível e o impossível”.

416
Sem perdão

mulheres tinham especialmente razão em buscar compensação fora


dos tribunais, onde nem deviam aparecer, recorrendo aos deuses”.

Figura 4: Reprodução desenho inv. 11,53. Fonte: Blänsdorf, 2005, p. 685.

DTM 4 inv. 111, 53


[face interna]
Tiberius Claudius Adiutor. 01. Tibério Cláudio Adjutor.
In megaro eum rogo te, M[a](- 02. No templo, rogo-te, Grande
t[e]r Magna, megaro tuo re(- 03. Mãe, no teu templo o
cipias, et Attis, domine, te 04. recebas, e Átis, senhor, te
precor ut hu(n)c (h)ostiam accep(- 05. peço que como oferenda o
tum (h)abiatis et quit aget agi(- 06. tenhais em conta, e faça ele o que
nat, sal et aqua illi fiat. Ita tu 07. fizer seja pra ele como sal na água.
facias, dom(i)na, it quid cor 08. Que assim faças, senhora, ...coração,
[eoconora [fígado...
c(a?)edat 09. corte(?)
[face externa]
deuotum defictum 10. ofertado, execrado
illum menbra, 11. ele, membros,
medullas, aa (?) 12. forças...
nullum aliud sit, 13. Que não haja nada mais,
attis, mater magna. 14. Átis, Grande Mãe.

Comentário:

417
Renata Cazarini de Freitas

Na face interna, a escrita é em maiúsculas romanas, com traços


e linhas irregulares, porém, na externa, a letra é cursiva, de uma mão
treinada, revelando dois participantes do mesmo ritual, já que a
mensagem é continuada. Em ambas as faces, contudo, há evidências
do latim popular, como a ausência do “h” inicial em “ostiam” (linha 5)
e “abiatis” (l. 6), que seria “habeatis”, ainda assim, uma mudança
abrupta da 2ª pessoa do singular para a do plural. Também a
ocorrência de “eoconora” (l. 8) como variação ortográfica de
“iecinora” (iecur, iecinoris n.) indica o uso do latim popular
(BLÄNSDORF, 2010, p. 175). As grafias de “domna” (l. 8: domina),
“defictum” (l. 10: defixum) e “menbra” (l. 11: membra) são
marcadores adicionais.
O alvo da rogativa é identificado na primeira linha, no caso
nominativo, como um título. A punição é definida pelo próprio
rogante: a morte como vítima sacrificial, que, pelos indícios do texto,
envolveria a mutilação de membros. Não é fornecida uma razão para
tamanha execração.
A associação de Átis com o termo “megaron”, palavra grega
para templo ou mesmo local de sacrifício aos deuses ctônicos
(BLÄNSDORF, 2005a, p. 18), não é isolada e pode ser confirmada
pela placa de chumbo de Salacia Vrbs Imperatoria (hoje, Alcácer do
Sal, em Portugal), encontrada em 1995 e datada do século II EC, na
qual “Mégaro” é identificado pelo rogante como uma divindade que
recebeu o corpo de Átis e, da mesma maneira, deve receber o do
ladrão, ofertado em troca da recuperação dos bens. Ao mesmo tempo,

418
Sem perdão

é ofertada a Átis uma vítima de quatro patas para que o ladrão seja
localizado (FREITAS, 2015, p. 79, GORDON, 2012, p. 5). Na placa
de Mainz, a rogativa é dirigida a Átis e a Mater Magna.

Figuras 5 e 6: Reprodução desenho inv. 201 B 36. Fonte: Blänsdorf,


2005, p. 681.
DTM 5 inv. 201 B 36
[face interna]
Bone sancte Att<h>is tyran(- 01. Bondoso, santo Átis tirano,
ne, adsi(s), aduenias Libera(- 02. que te apresentes e achegues
li iratus per omnia te rogo, 03. irado ao Liberalis, rogo-te por tudo,
domine, per tuum Castorem, 04. senhor, pelo teu Cástor e
Pollucem, per cistas penetra(- 05. Pólux, pelos cestos sagrados,
les, des ei malam mentem, 06. que a ele concedas mente enferma
malum exitum quandius 07. e uma morte ruim ao fim da
uita uixerit ut <et> omni cor(- 08. vida de forma que se veja
pore uideat se emori prae(- 09. definhar de corpo inteiro,
ter oculos. 10. exceto os olhos.
[face externa]
Neque se possit redimere 11. E que ele não possa se redimir
nulla pe<r>cunia nullaque re 12. com dinheiro algum e coisa alguma,
neq(ue) abs te neque ab ullo deo 13. nem junto a ti nem a outro deus,
nisi ut exitum malum. 14. senão com uma morte ruim.
Hoc praesta rogo te per ma(- 15. Atenda a isto, rogo-te, pela tua
iestatem tuam 16. majestade.

419
Renata Cazarini de Freitas

Comentário:
A dimensão desta placa é 10 x 11,5 cm, com margem de 1,2
cm de cada lado, inscrita em letras de 0,6 cm na escrita cursiva
romana antiga, muito legíveis. Foi elaborada num latim de fácil
compreensão, com sintaxe convencional. O motivo da rogativa a Átis
não é informado, mas a punição é determinada pelo rogante à
divindade, tratada prestigiosamente com quatro epítetos no caso
vocativo: bone, sancte, tyranne, domine. Além disso, é invocado a
comprovar sua majestade, como ocorre também na única defixio latina
dirigida a Ísis, que será apresentada mais adiante.
Para Blänsdorf (2005a, p. 16), o texto tem “a forma de uma
prece solene a Átis”, nome peculiarmente grafado com “h” medial
(Atthis), o que é atestado numa outra placa, localizada em Gross-
Gerau, próxima a Mainz, numa caligrafia semelhante. Mais ainda, a
solenidade dos epítetos na placa de execração de Mainz é corroborada
pela referência a Cástor e Pólux nas linhas 4 e 5, “elevando Átis ao
nível de Júpiter” (BLÄNSDORF, 2005a, p. 17), imagem reforçada
pela invocação a “deus max<s>ime Atthis” em Gross-Gerau.
O pesquisador alemão não aborda o henoteísmo, o culto de
uma só divindade embora reconhecendo a existência de outras, um
meio termo entre o monoteísmo e o politeísmo. H. S. Versnel (1990)
afirma que o henoteísmo é um dos mais importantes fenômenos
religiosos dos períodos helenístico e imperial. É o que se constata, por
exemplo, em relação ao culto de Ísis como é “romanceado” na obra

420
Sem perdão

Metamorfoses, de Apuleio, do século II EC, mais conhecida como O


asno de ouro.

Figura 7: Reprodução desenho inv. 31,2. Fonte: Blänsdorf, 2005, p.


687.
DTM 6 inv. 31,2
[face única]
01. Quintum in hac tabula depono auersum
02. se suisque rationibus uitaeque male consum(-
03. mantem. ita uti galli bellonariue absciderunt concide(-
04. runtue se, sic illi abscissa sit fides fama facul<i>tas. nec illi
05. in numero hominum sunt, neque ille sit. quomodi et ille
06. mihi fraudem fecit, sic illi, sancta Mater Magna, et [relegisti ?]
07. cuncta. ita uti arbor siccabit se in sancto, sic et illi siccet
08. fama fides fortuna facul<i>tas. tibi commendo, Att<i>hi d(o)mine,
09. ut me uindices ab eo, ut intra annum uertent(em..) exitum
10. illius uilem malum.
[lateral]
11. ponit nom(en) huius mari(-
12. tabus. si agatur ulla
13. res utilis, sic ille nobis
14. utilis sit suo corpore.
15. sacrari horr(e)bis.

421
Renata Cazarini de Freitas

[face única]
01. Nesta tábula, entrego o Quinto, avesso
02. a si e às próprias razões, que se vai destruindo em vida.
03. Assim como os galli ou os bellonari se dilaceraram ou se cortaram
04. assim fiquem fé, fama, faculdade mental dele dilaceradas.
05. Nem eles são considerados humanos, nem ele o seja.
06. Tal como ele me expropriou, Grande Mãe sagrada, assim
07. retomes tudo dele. Bem como a árvore secará no templo, assim
08. também sequem fama, fé, fortuna, faculdade mental dele.
[Confio a ti, Átis, senhor,
09. que me vingues dele, que dentro de um ano... a morte
10. dele vil e ruim.
[lateral]
11. [Alguém] entrega o nome dele para as
12. esposas. Se for de alguma forma
13. útil, assim nos seja
14. útil seu corpo.
15. De seres amaldiçoado, terás horror.

Comentário:
Trata-se da mais sofisticada inscrição desta seleção, num latim
clássico em maiúscula cursiva, com elaboração retórica, contendo os
elementos esperados de uma execração, ausente, contudo, o verbo
“rogo”: identificação do alvo do pleito (l. 1), causa da execração (l. 6),
invocações a divindades (l. 6 e 8), morte ruim como punição (l. 9-10).
Ela dista, porém, de outros registros do repertório ao não cobrar a
morte em espaço público nem determinar a impossibilidade de
redimir-se.
As analogias persuasivas retomam, primeiro, a imagem da
automutilação dos sacerdotes de Cibele (Mater Magna) e Belona (vide
DTM 2), associando-a à perda de atributos muito valorizados na
cultura romana antiga como a confiança, o renome, a boa sorte e o
talento (l. 4 e 8: tricolon e tetracolon aliterativos), depois, introduzem

422
Sem perdão

a imagem do tronco de árvore no ritual a Átis conhecido como “arbor


intrat” (l. 7). A fórmula “me uindices” (l. 9) aparece também nesta
placa (vide DTM 3). Para Blänsdorf (2010, p. 162), trata-se de um
“blending” de mágica e religião.
Como o epigrafista constatou, há vestígios na placa de chumbo
de duas tentativas de inscrição, a primeira, abandonada após inscritas
três palavras, incluindo o nome do alvo da execração.8 O texto que
prevaleceu revela conhecimento do léxico judicial, como “tabula” (l.
1), o registro formal de um documento, “fraudem fecit” (l. 6), jargão
jurídico para prejuízo causado a outrem, “me uindices” (l. 9), verbo
que implica reclamação em juízo para recuperação de bens,
consistente com o crime denunciado, bem como o uso do sufixo “-ue”,
da linguagem legal (BLÄNSDORF, 2010, p. 187).
O trecho complementar, inscrito na lateral, deslocado do texto
principal, é de uma segunda mão. Como aponta o epigrafista, é um
resumo da execração. Aceitando a proposição de que as “maritabus”
sejam as duas deusas do santuário (BLÄNSDORF, 2010, p. 188),
haveria, afinal, uma defixio dirigida a Ísis também em Mainz.

Baelo Claudia

Há um só registro de defixio dirigida à deusa de origem egípcia


e ele foi localizado em 1970 num pequeno templo dedicado a Isis
Myryonima, a que tem uma miríade de nomes, em Baelo Claudia,

8Faraone e Kropp (2010, p. 386) fazem leitura parcialmente distinta, seguidos por
Gordon (2012, p. 10).

423
Renata Cazarini de Freitas

cidade da antiga província da Baetica, hoje, Andaluzia, extremo sul da


Espanha, chamada Hispania Ulterior no período romano.
Ali, longe do fogo, a peça foi encontrada nos degraus de acesso
a uma cisterna, provavelmente destinada a rituais. A associação das
placas de execração com a água está bem documentada também em
Aquae Sulis, onde soldados romanos ergueram no século II EC um
templo em torno de uma fonte de água quente, local de culto da deusa
autóctone Sulis, interpretada a partir de então como Minerva.
Talvez não seja excessivo especular que a aparente ausência
das rogativas dirigidas diretamente a Isis Panthea em Mainz seja
decorrente da prática local de incinerar as placas de chumbo em franco
contraste com a caracterização da deusa como protetora das águas, dos
navegantes e do rio Nilo, cultuada com frequência em entrepostos
marítimos, como era o caso de Baelo Claudia.

Figura 8: Reprodução desenho. Fonte: Ribeiro, 2006, p. 246.

424
Sem perdão

Isis muromem 01. Ísis Miriônima,


tibi conmendo 02. a ti recomendo
furtu(m) meu(m). Mi(hi) fac 03. o furto que sofri. Me dê,
tu<t>o numini ma(i)es(- 04. da tua majestosa divin-
tati ex<s>emplaria 05. dade, exemplos,
ut tu evide(s) immedi(- 06. tirando em público a vida
o quis fecit, autulit 07. de quem fez, melhor, roubou
aute(m) res: opertor(i)u(m) 08. essas coisas: uma coberta
albu(m) nou(um), stragulu(m) 09. branca nova, um tapete
nou(um), lodices duas de 10. novo, dois lençóis
uso. Rogo, domina, 11. usados. Rogo, senhora,
per maiestate(m) tua(m) 12. pela tua majestade,
ut (h)oc furtu(m) repri(- 13. que este furto repre-
ndas. 14. endas.

Comentário:
A inscrição de 14 linhas expõe o registro em latim popular do
pleiteante, com perda sistemática do /m/ final do acusativo singular, o
caso lexicogênico do português – vide as linhas 3, 8-10, 12-13. Outras
ocorrências de registros alternativos ao latim culto são “mi” pelo
dativo “mihi” (l.3), a sonorização do verbo “evito, evitare” em
“evide(s)”, presente do subjuntivo (l.6), “autulit” ao invés de
“abstulit”, pretérito perfeito do indicativo (l.7), bem como “reprindas”
por “repreendas”, presente do subjuntivo (l.13).
Ísis é invocada a fazer justiça: o “caso de polícia” é atribuído à
divindade, mas a sentença é decidida pelo pleiteante, e é a morte à
vista de toda gente (l.6: in medio = immedio). A divindade é instigada
a comprovar sua majestade não uma, mas duas vezes (l.4 e l.12). O
verbo que encerra a inscrição tem dupla acepção: tanto recuperar o
material do furto como condenar o autor do furto. Os quatro objetos

425
Renata Cazarini de Freitas

furtados, listados na placa, indicam que devem ter sido levados de um


local onde se lavava roupas, como sugere também uma inscrição
localizada em Augusta Emerita, antiga capital da Lusitania, que traz
uma lista de roupas.

Considerações finais

Em linha com comentários recentes de pesquisadores


renomados (FARAONE; GORDON 2019; FARAONE; TOVAR 2022)
e abordagens de pesquisadoras que propõem novas leituras sobre o uso
disseminado das tabellae defixionum (VEALE, 2017; URBANOVÁ,
2018; EIDINOW, 2019), é pertinente a aproximação às existências
humanas desses agentes, privados de recursos pessoais e sociais diante
de situações críticas e que, por isso mesmo, instauram a comunicação
com agentes “não imediatamente plausíveis”,9 como as divindades,
deles cobrando a intervenção direta na solução dos seus conflitos.
Quatro das seis inscrições deste capítulo apelam pelo
restabelecimento do equilíbrio de forças, fácil de ser constatado pela
formulação convencional “Tal como... assim também...”, identificada
nas DTMs 1, 2, 3 e 6. Nessas placas, a gravidade da compensação

9 Veale (2017, p. 295), por exemplo, adota a expressão “non-immediately plausible


agents”, que engloba divindades, heróis e ancestrais, mas também animais, lugares e
objetos, tal como foi cunhada por Jörg Rüpke (2015, p. 344): “A religião é
compreendida como uma estratégia de atribuir agência a agentes que não parecem
imediatamente plausíveis”. Entenda-se “plausível” como o que recebe o
assentimento de outros (RÜPKE, 2015, p. 5). Rüpke vai mais longe e propõe ver a
religião como um fenômeno de comunicação, em que o agente humano conquista
ainda mais agência ao atribuir agência a agente implausíveis, tal como as divindades,
veja-se o caso dos profetas (RÜPKE, 2015, p. 352).

426
Sem perdão

demandada é indício da seriedade com que foi percebido o malfeito


sofrido pelo rogante. Já as DTMs 4 e 5, ainda que mantenham a forma
de uma prece, porém sem expor o motivo da execração, aparentam ser
manifestação de extrema rivalidade ou inimizade, daí que não se possa
nem falar em vingança. Outro marcador da virulência do rogante é a
vinculação pela fórmula “que não possa se redimir”, impossibilitando
eventual redenção do alvo, quer dizer, não haverá arrependimento
algum, nenhuma compensação financeira, que o libere da execração.
Visto que o diminuto corpus selecionado para este capítulo não
traz a identificação de nenhum dos rogantes, por outro lado, apresenta
os alvos das rogativas e alguns dos malfeitos assim percebidos, há
mais subsídios para alinhavar uma ordenação das placas pelo grau de
severidade da punição cobrada. Não há como estabelecer critérios
unânimes nesse tipo de análise, já que a interpretação decorrerá da
impressão que uma imagem mais ou menos vívida possa causar no
leitor do século XXI.
Parece legítimo considerar a DTM 3 a menos agressiva das
seis execrações, levando-se em conta que a esposa ou viúva do tal
Floro não demanda expressamente a morte de Ulácio Severo, apenas
roga que tudo dê errado na vida desse usurpador de bens. Assim, o
tom da inscrição também justifica que a tradução opte pela ideia de
compensação ao invés de vingança. Contudo, uma possível ressalva a
este julgamento será feita mais adiante.
A seguir, vem a DTM 6, que introduz outro homem que
também cometeu fraude, um tal Quinto, que é entregue como oferta

427
Renata Cazarini de Freitas

votiva ao ter seu nome inscrito na placa. É cobrada das divindades a


morte do alvo, mas não chega a haver descrição do aniquilamento
físico, apenas moral, dispensando inclusive a fórmula de vinculação.
A DTM 4 constitui-se oferta votiva formulada como uma
prece, mas, diferente das duas anteriores, não menciona um dolo, daí
ficar prejudicada a leitura da execração como apelo à justiça fora das
instâncias oficiais. O terceiro nome do alvo, Tibério Cláudio Adjutor,
talvez aluda a uma função burocrática de assistente ou se refira a ele
como o comparsa em algum malfeito. Para os rogantes, ele estava
meticulosamente identificado como uma vítima sacrificial a ser
desmembrada, no entanto, não se recorre à fórmula de vinculação.
A morte em espaço público, à vista de todos, traz um gravame
para o teor da execração, como acontece nas DTMs 2 e 1, que adotam
a fórmula vinculante e denunciam os malfeitos sofridos, envolvendo,
mais uma vez, patrimônio. Contudo, a DTM 2 não identifica o alvo,
por desconhecimento de quem seja o responsável. A fragmentação do
texto, consumido parcialmente pelo fogo, não deixa saber se seriam
ainda mais cruéis as retaliações. Já a DTM 1, embora nem sempre
legível, descreve com muita energia o desejo de ver as vítimas
ofertadas, os próprios alvos da execração, devoradas pelos cães ou
pelos vermes.
Por fim, a DTM 5 aparente ser a de maior impacto, pela
formulação perversamente maldosa de desejar a um tal Liberalis, do
qual se desconhece o malfeito contra o rogante, que testemunhe o
próprio corpo definhar, restando-lhe apenas os olhos para isso. A

428
Sem perdão

fórmula que veta a redenção do alvo é ampliada para todos os deuses,


além de Átis, o rogado.
Conclui-se com bastante segurança que não havia um texto
padrão para a execução das placas, mas formulações que
frequentavam o imaginário coletivo naquele contexto social específico
e das quais os agentes se apropriavam individualmente para obter o
justiçamento ou a vingança numa situação em que enxergavam um
desequilíbrio de forças que seria sanado só pela agência divina. É
interessante observar como as duas placas que pedem a morte dos seus
alvos à vista de todos, emulando, possivelmente, a execução pública
como função social corretiva, resgatam do imaginário coletivo os
sacerdotes de Cibele (Mater Magna), figurantes do cortejo ruidoso
anunciando o festival de abril em homenagem à deusa, quando se
emasculavam.
Um dispositivo retórico de que cada um dos agentes fez uso à
sua maneira é o da analogia, com o efeito esperado da ação divina
sobre os alvos listados: a mutilação (1, 2, 4 e 6), a devoração (1), o
sangramento (2), o definhamento (5 e 6). Menos explícita é a fórmula
de dissolução “ut sal et aqua”, que vinha associada às atividades e
planos futuros do alvo da execração, portanto, apenas indiretamente ao
seu fim (3 e 4), ou simbolizando, sem margem para dúvida, a sua
morte (3). Outras placas do acervo de Mainz (10, 11 e 12) trazem a
analogia explícita de que o corpo do execrado deve se desfazer como a
placa de chumbo se desfaz no fogo.

429
Renata Cazarini de Freitas

O debate improfícuo sobre se o uso das defixiones é mágica ou


religião perde o protagonismo quando se adota a perspectiva das
relações entre os agentes, humanos ou não imediatamente plausíveis,
em contextos sociais restritos. Trata-se agora de abordar a complexa
dinâmica social entre indivíduos e os recursos a eles disponíveis,
dentro e fora do sistema, para administrar riscos, garantir a segurança
econômica, física ou emocional, corrigindo um aparente ou real
desequilíbrio de forças. Decidir-se pela confecção e inscrição das
placas de execração é pôr à parte a inação diante de circunstâncias
percebidas como injustas ou desfavoráveis e munir-se de ferramenta
de comunicação e instrumento de poder.10

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10Eidinow (2019, p. 771) propõe a abordagem das práticas chamadas “mágicas”


como discursos sobre as tensões sociais em contextos da Antiguidade, assegurando
agência e poder de intervenção nas relações: “magia pode não ser o ato desesperado
do perdedor, como gostaríamos de imaginar, mas uma forma de empoderamento de
grupos marginalizados em resposta a estruturas ou normas sociais opressivas”.

430
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433
Druidismo e Magia: Rituais Sagrados entre os
Celtas
Silvana Trombetta1

Os Druidas e os rituais sagrados

Os druidas pertenciam à camada social de maior prestígio entre


os povos celtas2. Eles podiam atuar como juízes, filósofos, professores
e eram responsáveis por organizar e executar os ritos sagrados. A
própria palavra “druida” contém em si mesma um elemento
relacionado ao divino uma vez que seu significado na língua indo-
europeia seria “carvalho”, uma árvore sagrada para esses povos. Visto
que não há fontes textuais escritas pelos próprios celtas, os ritos,
cerimônias e festividades presididas pelos druidas são conhecidos
principalmente pelo relato de escritores antigos como César (Guerra
Gálica), Plínio, o Velho (História Natural), Políbio (Histórias),
Diodoro Sículo (Biblioteca Histórica), Estrabão (Geografia) e por
textos vernaculares (principalmente da Irlanda e do País de Gales) que

1 Possui bacharelado em História pela PUC de São Paulo e mestrado e doutorado em


Arqueologia do Mediterrâneo Antigo pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da
USP. É pesquisadora associada do LARP (Laboratório de Arqueologia Romana
Provincial/MAE/USP). Realizou escavações arqueológicas em Portugal (2005-2007)
no sítio de Tongobriga (numa parceria entre a Brown University e o IGESPAR -
Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico) e também em
Israel (2000) enquanto participante do Projeto Apollonia (TEL AVIV UNIVERSITY/
UFRG/UNICAMP/USP) na localidade de Herzilia.
2 É necessário salientar que os celtas não possuíam uma identidade étnica enquanto
grupo único e homogêneo e o mais provável é que vários grupos distintos
(principalmente os que habitavam as áreas próximas ao Atlântico) tornaram-se
“celtas” ao longo do tempo devido ao contato cultural. Examinaremos neste texto as
práticas rituais presentes em grupos comumente associados aos celtas e que
povoavam as regiões da Gália, Bretanha e Hibernia.

434
Druidismo e Magia

apesar de datados como pertencentes ao período medieval são


compilações de uma história oral muito anterior como, por exemplo, o
Ciclo de Ulster, saga irlandesa na qual um dos personagens principais
é o druida Cathbad. A arqueologia, por sua vez, nos proporciona uma
série de documentos materiais (cetros, caldeirões, esculturas,
estatuetas) que, aliados às fontes textuais, nos permite formular um
quadro geral sobre os significados das práticas mágicas entre os celtas.
Serão examinados neste texto vários rituais e cerimônias
sagradas visando determinar sua intencionalidade e sua importância
para a manutenção da ordem social e do bem estar coletivo, atos
sacros estes nos quais era fundamental a presença do druida: mediador
entre os deuses e os homens e exímio conhecedor das etapas
imprescindíveis para a realização dos cultos divinos.

Os ritos divinatórios e o dom da profecia e da magia

A predição do futuro era uma das funções mais significativas


exercida pelos druidas. Ela poderia ser feita através da leitura de
vísceras de animais sacrificados, voos de pássaros, utilização de
plantas alucinógenas e uso de objetos especificamente confeccionados
para tal fim. Analisaremos, a seguir, alguns ritos adivinhatórios.
Uma prática bastante interessante diz respeito ao uso de runas
para prenunciar o futuro. Elas eram comumente utilizadas entre os
povos germânicos e escandinavos, mas haveria entre os celtas tal

435
Silvana Trombetta

prática? Com relação aos germânicos, o texto de Tácito nos informa


que:
Nenhum povo pratica mais diligentemente o augúrio e a
adivinhação pela sorte. A predição é simples. Um
pequeno ramo de uma árvore frutífera é quebrado e
cortado em pedaços. Estes últimos serão diferenciados
uns dos outros por marcas incisas e depois serão jogados
ao acaso sobre um pano branco. Nas questões públicas,
o sacerdote (e nas particulares o chefe da família)
invoca os deuses e com os olhos voltados para o céu
pega três pedaços do ramo, um de cada vez, e neles
encontra um significado de acordo com as marcas
previamente incisas. Se forem desfavoráveis, não haverá
mais consulta naquele dia sobre o assunto e se forem
favoráveis ainda será necessária a confirmação do
augúrio (TÁCITO, Germania, 10).

Seria possível atestar arqueologicamente na Bretanha, Gália ou


Irlanda a presença de algum objeto com marcas similares às existentes
nas runas germânicas? Green (2021, p. 115), menciona uma haste em
bronze pertencente à coleção romano-bretã do museu de
Peterborough. Este objeto foi encontrado no fundo do leito do rio
Nene (Inglaterra), perto da ponte de Milton Ferry e tem paralelo com
objetos da Bretanha Romana, particularmente com três outros
exemplares menores (em ferro) encontrados durante a escavação da
rua Moorgate, em Londres. Podemos presumir que tais artefatos eram
sistros usados em cerimônias religiosas devido ao fato de que
continham estruturas anelares numa das extremidades (possivelmente
para a inserção de guizos). A deposição no rio provavelmente foi ritual
e o grande interesse na haste justifica-se porque ela contém riscos
horizontais e transversais que se agrupam ao longo do eixo vertical:
esses caracteres compunham mensagens numa linguagem arcana que

436
Druidismo e Magia

somente os sacerdotes poderiam compreender. “Se as marcas


presentes no sistrum de Milton Ferry tiverem sido corretamente
identificadas, então elas têm uma clara relação com as runas
esculpidas nas hastes de madeira usadas pelos sacerdotes germânicos
conforme o registro de Tácito” (GREEN, 2021, p. 115). Isto nos leva a
supor que runas eram utilizadas na Bretanha com finalidade
premonitória e a presença em enterramentos de hastes medicinais
juntamente com objetos relacionados a jogos (como veremos a seguir)
enfatiza o entrelaçamento entre o vaticínio, a convalescência e a
atuação divina.
A função divinatória no mundo antigo nem sempre ocorria de
forma isolada, mas sim associada às práticas de cura. Green (2021, p.
117), discorre sobre objetos encontrados na tumba de cremação do
“Druida de Colchester” (50 EC) em Stainway (perto de Colchester,
Inglaterra), cujo defunto pode ter tido uma dupla função social:
xamânica e medicinal. Além dos restos de cremação, o mobiliário
funerário continha 13 instrumentos cirúrgicos, um tabuleiro de jogo,
26 peças de jogo (13 em vidro azul e 13 em vidro branco), um
vasilhame de liga de cobre e 8 hastes de metal (4 em latão e 4 em
ferro, duas maiores e duas menores de cada metal). As hastes
supostamente tinham fins premonitórios, pois apesar de possuírem
uma terminação em espátula (o que estaria em consonância com a
função medicinal) encontravam-se espalhadas de modo deliberado
sobre um tabuleiro de jogo e não sobre o solo. Além disso, a análise
dos restos de pólen presentes no coador do vasilhame identificou a

437
Silvana Trombetta

presença da Artemísia (usada tanto com propósitos de cura quanto


alucinatórios). O vasilhame pode ter sido utilizado para a infusão de
ervas (preparo de bebidas medicinais) e também para a queima de
incenso (cuja fumaça teria efeito alucinógeno). É bastante provável,
portanto, que o morto fosse ao mesmo tempo médico e sacerdote. Não
raro, o mesmo indivíduo exercia essas duas funções no mundo antigo
como veremos mais adiante ao examinar os objetos encontrados no
santuário de Sulis-Minerva em Bath (Inglaterra).
A presença de um tabuleiro de jogo num enterramento não é
exclusiva da tumba do “Druida de Colchester”, pois o mesmo tipo de
objeto foi identificado noutro sepultamento da localidade de Stanway,
denominada de “Sepultura do Guerreiro” (43-46 EC). Entretanto, uma
diferença bastante significativa é visível no posicionamento das peças
de jogo: na “Sepultura do Guerreiro” as peças estavam agrupadas e
colocadas diretamente sobre a terra enquanto que na tumba do “Druida
de Colchester” elas estavam alinhadas na borda do tabuleiro, com
algumas das peças de cor azul e de cor branca dispostas “casas” à
frente, como no início de um jogo. Simbolicamente, isto pode
representar algo “em andamento”, talvez o início de uma nova vida no
mundo dos mortos. Para Green (2021, p. 117), os dois “jogadores
fantasmas” poderiam representar a dupla personalidade do “médico”:
como curador e como mensageiro xamânico entre os dois mundos. O
fato de uma das peças de cor azul ter sido (quase certamente)
deliberadamente virada ao contrário seria mais uma evidência desta
dupla função.

438
Druidismo e Magia

Como foi dito, incensos eram queimados ou bebidas ingeridas


com o propósito de provocar um estado de transe e possibilitar a
comunicação com o outro mundo. O uso de plantas alucinógenas é
comprovado pela existência de recipientes para queimar incensos
(thuribula) encontrados, por exemplo, no santuário galo-romano de
Chartres (século II EC), no norte da França. Outro objeto que explicita
a junção entre a função sacerdotal e o uso de plantas alucinógenas é o
cetro (século III a.C.) encontrado no oppidum de Manching, na
Bavária. Ele foi arqueologicamente reconstruído e originalmente
consistia num bastão de madeira (em formato de galho de árvore)
revestido por lâminas de ouro das quais pendiam folhas feitas em
bronze que se assemelhavam à planta Glória-da-manhã (da família
Convolvulaceae), cujas sementes possuíam poder alucinógeno. A
transcendência proporcionada pelas ervas liberava a entrada no além e
a consequente interlocução com os deuses. Era necessário que o
sacerdote tivesse completo domínio sobre a utilização das plantas
(dosagem, modo de preparo) para que seu uso fosse apropriado e não
rompesse o tênue limite entre a vida e a morte. Os druidas eram os
emissários dos desígnios das divindades e efetuavam os processos de
cura física e espiritual através do encantamento proporcionado pelas
ervas.
Outro tipo de predição do futuro era feito através das colheres
divinatórias. Um par de colheres em bronze (fig. 1), pertencente à
Idade do Ferro foi encontrada (por um fazendeiro) em 1829 no
assentamento fortificado de Castell Nadolig, (Penbryn, País de Gales).

439
Silvana Trombetta

Uma delas possui um furo próximo à borda lateral enquanto que a


outra tem uma divisão em quadrantes (que pode ser uma referência
aos quatro pontos cardeais). Três dos quadrantes possuem pequenas
incrustações circulares ao centro: uma em ouro, outra formada por
uma liga de cobre e estanho e a terceira feita com um metal cuja
composição não é possível identificar. As incrustações circulares
provavelmente existiam em todos os quadrantes e podem ter sido
feitas com metais diferentes devido a alguma especificidade deste tipo
de predição. A hipótese mais provável é a de que o sacerdote dispunha
uma colher abaixo da outra, de modo que o líquido gotejasse através
do orifício da colher posicionada acima e caísse sobre a colher que
tinha os quadrantes incisos. A predição do futuro possivelmente seria
feita de acordo com o significado de cada quadrante atingido pelo
gotejamento do líquido (óleo, vinho, sangue?), levando em conta a
proximidade ou não da incrustação central e o material usado em sua
confecção (a gota que caísse sobre a incrustação em ouro seria um
sinal de bom augúrio?). Ambas as colheres são decoradas no cabo com
motivos da arte La Tène que se assemelham ao visgo ou broto de
lótus, plantas com caráter medicinal e/ou alucinógeno, o que
potencializava o caráter divino do objeto e do ato profético,
principalmente ao pensarmos que as mãos do sacerdote durante o ato
repousavam sobre representações de ervas terapêuticas ou
psicotrópicas.

440
Druidismo e Magia

Figura 1: Colheres divinatórias encontradas em Penbryn. Datação:


Idade do Ferro. Acervo do Museu Ashmolean. Autor: Ethan Doyle White.
Fonte: Wikimedia Commons.

O druida tinha o papel crucial de conduzir as ações


premonitórias de modo a antever as circunstâncias ulteriores. De
acordo com Anne Ross:
Além da função proeminente como sacerdote, o druida
colocava em ação poderes mágicos, o que se verificava
por seus encantamentos e sua habilidade de prever o
futuro e predizer o resultado dos acontecimentos. Seu
conhecimento de astrologia deve ter sido considerável,
bem como suas habilidades relacionadas aos cálculos do
calendário. Acreditava-se que ele tinha poderes de se
transmutar, bem com transmutar outras pessoas,
transformando humanos em animais ou pássaros
segundo sua vontade. Portanto, ele deve ter sido o
mestre da ilusão. Ele também tinha habilidades
curativas, com um vasto conhecimento das propriedades
terapêuticas das ervas e outras substâncias. E, talvez o
mais importante, ele era o professor dos filhos dos
nobres, guardião da tradição oral e do conhecimento
transmitido de geração em geração (ROSS, 1997, p.
425).

Cabe lembrar que além dos druidas (cujo aprendizado durava


cerca de vinte anos), outras ordens como a dos vates e bardos

441
Silvana Trombetta

possuíam prestígio no mundo celta. Embora não tivessem o mesmo


poder do druida para presidir os rituais e o dom de conhecer
intimamente os desejos dos deuses, eles também tinham poderes
mágicos e proféticos. O aprendizado de um vate durava cerca de doze
anos. Eles possuíam o dom da profecia e “eram mestres da poesia e da
métrica” (ROSS, 1997, p. 428). No entanto, a ordem mais duradoura
historicamente foi a dos bardos.
Seu período de treinamento era de sete anos. Uma de
suas mais importantes funções era a composição do
louvor poético que poderia trazer grandes benefícios aos
seus superiores ou ao povo em geral. Eles também
possuíam o temido poder da sátira, que poderia causar
defeitos físicos, má sorte ou mesmo a morte contra
aquele a quem a sátira era cantada (ROSS, 1997, p.
428).

Druidas, vates e bardos dividiam (com maior ou menor grau


de poder) o dom da predição e da magia embora o druida fosse o
detentor das maiores habilidades, regendo rituais temporal e
espacialmente determinados que eram essenciais para perpetuar a
estabilidade dos grupos aos quais pertenciam.

O lugar do sagrado – a deposição votiva e o


sacrifício

Espaços como lagos, rios, clareiras, fontes, cavernas e grutas


eram considerados “soleiras” entre o mundo material e o sobrenatural.
As grutas e cavernas, por serem locais escuros por natureza, eram
visto como tocados pelo poder divino. O próprio mundo natural era
por vezes utilizado para mimetizar grutas. Um exemplo é o da enorme

442
Druidismo e Magia

estrutura composta por 200 toras de carvalho (árvore considerada


sagrada pelos celtas) em Co.Armagh (Irlanda) que possivelmente
lograva imitar uma gruta. Localizada no alto de uma colina dentro do
conjunto cerimonial de Navan Fort, esta construção circular (século I
a.C.) continha em seu interior blocos de pedra cujas análises
arqueológicas revelaram vestígios de combustão. De acordo com
Green (2021, p.44), isto pode ser um forte indício de que tal “gruta
artificial” foi ritualmente queimada. A finalidade do rito envolvendo o
fogo pode ter sido a destruição da construção por um elemento da
natureza visando sua consagração aos deuses. Não fortuitamente,
próximo a este local, no lago Loughnashade, foi “encontrado um
depósito votivo contendo quatro soberbos trompetes de bronze, dos
quais somente um sobreviveu, sendo seu bocal decorado com motivos
da arte La Tène” (GREEN, 2021, p.44). O caráter “mágico” deste
objeto se fazia presente tanto pelo som que emitia quanto por seus
motivos decorativos.

Figura 2: Trompete de Bronze encontrado em Loughnashade. Datação:


século I a.C. Acervo do Museu Nacional da Irlanda. Autor: Sailko. Fonte:
Wikimedia Commons.

443
Silvana Trombetta

Esse instrumento era utilizado em batalhas sendo representado


em dois documentos materiais bastante significativos. O primeiro é a
cópia romana em mármore (século III d.C) de uma escultura
helenística em bronze (infelizmente, perdida) denominada The Dying
Gaul que retrata um gaulês derrotado e praticamente à beira da morte.
Na composição imagética o gaulês (ou gálata) aparece ferido e há dois
trompetes no nível do chão, um deles perto da perna direita do
personagem e outro próximo ao seu pé esquerdo.
O segundo documento material é o famoso Caldeirão de
Gundestrup (século II - I a.C.) que numa de suas placas retrata
guerreiros portando trompetes bélicos. Ao compararmos a imagem do
trompete na escultura acima descrita com a figuração existente no
Caldeirão de Gundestrup, vemos uma iconografia claramente oposta.
Na escultura o que é posto em destaque é o aniquilamento do povo
gaulês pelos romanos ao passo que no caldeirão o uso do trompete é
feito por combatentes enfileirados e prontos para a batalha. Embora o
caldeirão, como corretamente aponta Flemming (2011, p. 107),
provavelmente tenha sido produzido por artesãos trácios que possuíam
uma tradição altamente desenvolvida em prata, suas imagens
“retratam a cultura material celta – trompetes de guerra, escudos
retangulares, capacetes com representações de animais” (CUNLIFFE,
2010, p. 45). Afora as controvérsias sobre a origem do caldeirão, suas
imagens apresentam divindades e rituais celtas, o que o torna um

444
Druidismo e Magia

documento material bastante relevante para a análise da práxis


ritualística deste povo. Segundo Hatt (1989, p. 94), a cena do caldeirão
na qual aparecem guerreiros com trompetes remete a uma série de
preparativos para a guerra, dentre as quais um ato sacrificial. Na
imagem da imolação, uma figura de maiores dimensões
(provavelmente um druida) segura um indivíduo de ponta cabeça, de
modo a direcioná-lo para o interior de um grande recipiente,
provavelmente um caldeirão. Tal sacrifício humano teria como
finalidade conseguir êxito na batalha e a morte ritual poderia ser tanto
por afogamento (na qual o sacrificado era imerso num caldeirão com
água) quanto por golpeamento na cabeça (sendo o sangue do indivíduo
posteriormente recolhido num objeto sagrado). A cena tomada em
conjunto - guerreiros sobre cavalos ou enfileirados (portanto lanças e
escudos ou tocando trompetes), representação do sacrificador e do
sacrificado - conecta a esfera religiosa à função política e marcial.
A descrição de uma ação bélica na qual ocorre o uso do
trompete é relatada por Políbio:

Os romanos, no entanto, estavam por um lado


encorajados por terem capturado o inimigo, encurralado
entre seus dois exércitos, mas por outro estavam
aterrorizados com a boa ordem do exército celta e o seu
terrível barulho, pois havia inúmeros tocadores de
chifres e trompetes e, ao mesmo tempo, todo o exército
soltava seus gritos de guerra. Havia um som tão
retumbante que parecia que não apenas os trompetes e
os soldados, mas tudo ao redor tinha uma voz
(POLÍBIO, Histórias, II, 29).

445
Silvana Trombetta

Além do aspecto sonoro exposto acima, a ornamentação dos


trompetes é um importante elemento a ser observado. No trompete
encontrado em Loughnashade (fig. 2) vemos que seu bocal é decorado
com motivos da arte La Tène que representam brotos de lótus ou
visgo, provavelmente o mesmo motivo presente nas colheres
divinatórias (fig.1). A decoração dos trompetes no caldeirão de
Gundestrup é distinta da ornamentação do trompete de Loughnashade,
mas é igualmente repleta de significados simbólicos: no caldeirão de
Gundestrup, três guerreiros tocam seus respectivos carnyxes,
trompetes de guerra cujo bocal possui formato de cabeça de javali,
animal que metaforicamente alude à ferocidade e à força,
características apreciadas numa luta contra o inimigo. Quando em uso,
seu caráter “mágico” se fazia sentir através da imbricação entre seus
elementos visuais e sonoros visto que o carnyx, ao ser tocado, além de
compelir as tropas para o embate também tinha o propósito de
intimidar o inimigo (como é evidenciado pela descrição de Políbio).
O trompete de Loughnashade (fig. 2), como já foi dito,
encontrava-se no fundo de um lago e fazia parte de um conjunto de
seis trompetes depositados ritualmente. A deposição tinha a intenção
de retirar os objetos do mundo real, destinando-os ao mundo divino e
a inacessibilidade das profundezas do lago pelos habitantes tornava-o
um elemento da natureza propício para a comunicação com o outro
mundo.
Lagos, fontes e rios eram frequentemente locais onde as águas
eram utilizadas para estabelecer uma interlocução com as divindades e

446
Druidismo e Magia

o fato de que certos “trechos de rio parecem conter mais artefatos do


que outros é um indício de que pode ter havido locais específicos para
a deposição ritual” (CUNLIFFE, 2010, p. 33). Este autor menciona a
existência de plataformas de pedra (como a do lago de Llyn Cerrig
Bach em Anglesey, no País de Gales) e de madeira (no rio Witham, em
Fiskerton, na Inglaterra), das quais os objetos votivos eram lançados.
Em Llyn Cerrig Bach, além de ossos de animais, foram encontrados
181 artefatos cuja cronologia abrange os séculos II a.C. a I EC e dos
quais se destacam: sete espadas, seis pontas de lança, fragmentos de
dois caldeirões, parte de um trompete de bronze, parte de uma roda de
carro de guerra, arreios de cavalo, uma placa em bronze com formato
de crescente lunar, uma corrente para prisioneiros. Em Fiskerton,
foram encontrados vários ossos animais e humanos (dentre estes
últimos, partes de um crânio), além de joias e de ferramentas e
armamentos em ferro e bronze, dos quais se sobressai uma placa
decorativa em bronze (século IV a.C.) com motivos da arte La Tène
que recobria um escudo de madeira. Havia no local uma intensa e
duradoura atividade ritual visto que a análise cronológica dos objetos
revela uma deposição contínua tanto na Idade do Ferro quanto no
período após a conquista romana. Além disso, o exame da plataforma
de madeira de Fiskerton por meio da dendrocronologia revelou “que
ela foi reparada a cada 16 ou 18 anos, o que sugere um intervalo de
renovação regular, que talvez possa estar relacionado com um ciclo

447
Silvana Trombetta

lunar de 19 anos” (CUNLIFFE, 2010, p. 34). O calendário lunar era


fundamental para os ritos celtas e sua importância será detalhada
posteriormente.
Um lago em particular é sumamente importante,
principalmente por ter revelado um grande conjunto de objetos cujos
traços estilísticos em comum viriam a caracterizar a denominada
Cultura La Tène, que é frequentemente associada aos celtas. Trata-se
do lago Nêuchatel (Suiça), próximo à localidade de La Tène. Durante
as consecutivas escavações arqueológicas que ocorreram no século
XIX, foram descobertos no local cerca de 3.000 objetos (cuja datação
abrange os séculos III - I a.C.) como espadas de ferro, pontas de lança,
fíbulas, caldeirões de bronze. O conjunto perfaz nitidamente uma série
de depósitos votivos que foram lançados nas águas do lago a partir de
uma plataforma de madeira. Porém, a existência de objetos como
correntes para aprisionar indivíduos e de ossos animais e humanos,
“dentre os quais os de mais de cem pessoas, algumas decapitadas”
(GREEN, 2021, p. 47), faz com seja possível aventar a hipótese de que
além de abarcar objetos ofertados em tempos de paz, o lugar também
seria destinado a conter troféus de guerra. É possível conjecturar,
portanto, que o mesmo tipo de deposição ligado ao caráter militar
também ocorreu no já citado lago de Llyn Cerrig Bach e no rio
Witham, que além de artefatos continham ossos humanos e de
animais.
Diante do exposto acima, vemos que os atos rituais realizados
nos lagos e rios podiam ter mais de um propósito no mundo celta e a

448
Druidismo e Magia

deposição dos objetos juntamente com o sacrifício animal e humano


compunham um ato cerimonial que requeria a presença do druida,
responsável, dentre outras coisas, por ser capaz de transmutar a
energia negativa do prisioneiro de guerra em energia positiva e
benfazeja para a comunidade.
Além dos lagos e rios é necessário destacar a importância das
fontes, principalmente das que possuíam propriedades curativas e
eram consideradas sobrenaturais. Embora seja difícil encontrar
vestígios arqueológicos em fontes no período anterior à presença
romana, a construção do santuário de Aquae Sulis (em 60 EC) revela
dados bastante significativos. A atividade pré-existente no local foi
provavelmente o fator determinante para erigir o santuário visto que o
poder de suas águas termais (principalmente para casos de gota e
artrite) era amplamente conhecido antes da conquista da Bretanha
pelos romanos. Isto é comprovado pelo achado arqueológico de 18
moedas pré-romanas que durante a Idade do Ferro foram ofertadas à
deusa Sulis (que após a conquista romana foi associada à deusa
Minerva) por habitantes “que visitaram as fontes e construíram uma
passarela ao longo de seu terreno pantanoso” (GREEN, 1997, p. 112).
Cabe lembrar que pântanos também eram considerados lugares que
propiciavam a comunicação com o divino uma vez que possuíam uma
composição mista de terra e água (não fortuitamente, vários corpos
humanos encontrados em pântanos, como o do famoso Homem de
Lindow, possuem marcas sacrificiais). A presença da fonte e do

449
Silvana Trombetta

pântano, portanto, afirmava duplamente o caráter divino da localidade


onde futuramente seria erguido o santuário.
Dentre os objetos votivos achados no complexo termal
dedicado a Sulis-Minerva (na atual cidade de Bath, na Inglaterra) foi
descoberta uma placa com a imagem de um olho e o nome de Titus
Janianus, provavelmente um médico ou sacerdote que atendia os
peregrinos. Outras placas foram encontradas em Bath e embora
algumas também contivessem imagens de olhos sua função não era a
de identificar o curador, mas de atuar como um ex-voto, pois os que
ali se dirigiam ofereciam tais placas ou imagens representando órgãos
humanos (olhos, braços, pernas, genitais masculinos e femininos) à
deusa no afã de conseguir a cura divina. O princípio desta ação era o
da reciprocidade: os devotos dedicavam à divindade réplicas de seus
órgãos humanos com funcionamento anômalo para que em troca
obtivessem a graça da regeneração.
No reservatório da fonte principal foram encontradas moedas
(cerca de doze mil) e joias lançadas às águas pelos peregrinos, mas a
maior peculiaridade do santuário de Bath reside no fato de terem sido
encontrados no local cerca de 130 tabletes de maldição. “Eles eram
pequenos pedaços de chumbo ou estanho cujas mensagens invocavam
a vingança da divindade por causa de injustiças cometidas contra seus
dedicantes” (GREEN, 1997, p. 114). A escrita da maldição deveria ser
feita corretamente para que fosse atendida, pois “visto que ela
envolvia a magia, a invocação tinha que ser absolutamente exata”
(GREEN, 1997, p. 114). Isto pressupõe a existência de escribas ou

450
Druidismo e Magia

sacerdotes em Bath, conhecedores da “fórmula” exata para que a


maldição tivesse o efeito desejado.
No templo junto ao complexo termal, foi encontrada uma
cabeça em bronze da deusa Sulis Minerva e num dos escoadouros dos
banhos uma máscara de cobre que pode representar um deus ou
sacerdote. Além disso, foram encontrados na fonte sagrada um
pendente em forma de Lua (provavelmente a extremidade de um cetro
sacerdotal), parte de um diadema em bronze e vasilhames de cobre
com nítidos sinais de desgaste que devem ter sido “usados por oficiais
religiosos por algum tempo antes de serem jogados na água enquanto
oferendas à deusa” (GREEN, 1997, p. 114). Tendo em mente que o
local era um importante centro religioso (com a presença de um
templo acoplado ao complexo termal) era imprescindível a presença
do sacerdote, uma vez que a cura envolvia tanto a dimensão humana
quanto a divina.
Outro santuário bastante conhecido era o de Sequana, a deusa
gaulesa do rio Sena e das águas. Seu santuário (construído no final do
século I EC perto de Dijon, na França) era próximo à fonte do Sena e
escavações na área “revelaram uma coleção extraordinária de ex-votos
de madeira” (CUNLIFFE, 2010, p. 40). Os ex-votos (grande parte
pertencente aos séculos I a.C. - I EC) representavam figuras humanas
inteiras (algumas com vestimentas longas e capuzes), braços, pernas,
seios, olhos, cabeças. “Os modelos em madeira do santuário de
Sequana falam tão eloquentemente sobre as múltiplas doenças sofridas
pelos peregrinos que não seria surpresa encontrar ali ajuda médica e

451
Silvana Trombetta

espiritual” (GREEN, 1997, p. 116). Tal qual em Bath, muito


provavelmente havia no santuário de Sequana sacerdotes que
proporcionavam a melhora física através do sobrenatural. Tomados em
conjunto, os documentos materiais encontrados nas fontes indicam
fortemente a presença e a importância da atuação de oficiais religiosos
nestes locais sagrados para intermediar a conexão com o divino e
possibilitar que o indivíduo recuperasse sua saúde.
Não somente pelas águas adentrava-se o outro mundo: o elo
com o divino também podia ser determinado pelas profundezas da
terra. Um exemplo são os objetos de bronze, electro, prata e ouro
encontrados na localidade de Snettisham em Norfolk (Inglaterra).
Produzidos durante a Idade do Ferro e enterrados por volta de 100 a.C,
vários deles possuem marcas de quebra ritual, fator determinante para
que sejam associados principalmente a oferendas destinadas aos
deuses e não a entesouramentos que visavam ser resgatados
posteriormente. Dentre os achados arqueológicos (braceletes,
moedas), destacam-se torques ricamente trabalhados em ouro. “Foram
encontrados no local 75 torques completos bem como fragmentos de
outros 100 torques” (GREEN, 1997, p. 65). Este objeto ornamentava o
pescoço de guerreiros celtas e também é visto em figurações de
divindades: no caldeirão de Gundestrup, uma das placas representa um
deus com galhada (provavelmente Cernunos), segurando um torque
em sua mão direita e usando outro em seu pescoço. No santuário celta
de Entremont (século IV – III a.C.), na França, uma escultura de pedra

452
Druidismo e Magia

representa um deus ou guerreiro sentado com as pernas recolhidas


(postura semelhante à de Cernunos no caldeirão de Gundestrup). Ele
usa um torque em seu pescoço e segura uma cabeça em sua mão
esquerda (uma referência ao aprisionamento de inimigos). O torque
era, portanto, um símbolo de prestígio e de poder, o que o tornava um
objeto excepcional para ser destinado aos deuses.
Outros locais no solo destinados a fazer a conexão entre o
mundo dos vivos e o mundo sagrado eram poços que originalmente
tinham o propósito de armazenar grãos e sementes. Após o fim de sua
vida útil, os poços “eram abandonados e, em muitos casos, tinham um
uso secundário enquanto repositório para depósitos votivos que
compreendiam grupo de artefatos, pedaços de carne, carcaça de
animais e restos humanos” (CUNLIFFE, 2010, p. 34). A agricultura
era uma atividade essencial à vida das comunidades e as oferendas às
divindades tinham o intuito de propiciar uma boa colheita e perpetuar
o ciclo da natureza. No assentamento fortificado da Idade do Ferro em
Danebury (Hampshire, Inglaterra) temos um exemplo “bem
documentado da reutilização dos poços para armazenar grãos como
repositórios para corpos humanos e animais” (GREEN, 2021, p. 52).
Os esqueletos humanos (na maior parte, jovens do sexo masculino)
apresentam-se completos ou contendo somente parte dos ossos do
corpo, principalmente do crânio. A presença em maior número desta
parte do esqueleto é significativa quando verificamos que num dos
pilares do santuário de Entremont (que será analisado no decorrer do
texto) há imagens de cabeças humanas e de espigas de trigo, de modo

453
Silvana Trombetta

a correlacionar a oferenda da cabeça ao ciclo da vida. Existe, portanto,


uma clara relação entre “o uso original dos poços enquanto silos e seu
posterior uso como sepulturas” (GREEN, 2021, p. 52).
Por fim, os locais nitidamente consagrados às divindades eram
os santuários. Nos santuários de Sulis-Minerva e de Sequana a
presença de sacerdotes, que por vezes cumpriam igualmente as
funções médicas, era fundamental e interligava o plano terreno e o
espiritual para que os devotos recuperassem a higidez física. Em
outros santuários como os de Gournay-sur-Aronde (Oise, França),
Ribemont-sur-Ancre (Somme, França), Hayling Island (Hampshire,
Inglaterra), Entremont (Aix-en-Provence, França) e Roquepertuse
(Velaux, França) a presença do druida era igualmente necessária tendo
em vista os tipos de oferendas e sacrifícios ali encontrados.
Em Gournay-sur-Aronde (século IV-I a.C.), foram achadas
“mais de 2.000 armas ritualmente quebradas e evidências de um
comportamento complexo associado ao sacrifício de animais e,
possivelmente, também de humanos” (GREEN, 1997, p. 120). A
análise dos ossos da cabeça dos bois sacrificados neste santuário (que
foram depositados num poço de formato oval) demonstra que eles
foram golpeados de modo semelhante ao serem mortos e que,
portanto, os passos ritualísticos eram seguidos de modo minucioso e
previamente estabelecidos. Uma paliçada retangular de madeira
delimitava o santuário e um dado importante é a existência de um

454
Druidismo e Magia

riacho nos arredores conectando, assim, a força de um elemento


natural com o local construído para o culto.
Tal qual em Gournay-sur-Aronde, havia nos santuários de
Ribemont-sur-Ancre, Hayling Island, Entremont e Roquepertuse
visíveis sinais de ritos ligados à ação marcial. No santuário de
Ribemont-sur-Ancre (situado a cerca de 50 quilômetros de Gournay e
construído na Idade do Ferro) foram descobertos armas e ossos
humanos. O elemento “mais significativo deste sítio era a presença de
quatro grandes “ossuários”: estruturas retangulares similares a altares
compostas por grandes ossos de cavalo e de humanos” (GREEN,
2021, p. 51). Outro ponto intrigante neste local diz respeito à ausência
de crânios. Green (2021, p. 155), supõe que os corpos decapitados
tiveram seus braços e pernas desmembrados do resto do corpo tendo
em vista seu uso para a construção dos ossuários. O objetivo do
degolamento poderia ser a subjugação do inimigo e o ato era
provavelmente a consequência de “algum tipo de rito funerário no
qual os ossos dos mortos em batalha eram coletados enquanto
oferendas para o culto” (GREEN, 1997, p. 111).
O santuário de Hayling Island, na Inglaterra, começou a ser
construído em madeira durante o século I a.C. e após a conquista
romana adquiriu um aspecto monumental com o uso de materiais não
perecíveis (telhas, mosaicos) em sua estrutura. Os vestígios de
atividade ritual na construção original foram encontrados, em sua
maior parte, fora do santuário circular, mas dentro dos limites da área
sacra (demarcada por uma estrutura quadrangular que englobava o

455
Silvana Trombetta

santuário) e consistiam em “moedas, uma grande quantidade de


equipamento militar enterrada em poços e abundantes ossos animais, a
maioria de ovelhas, cabras e porcos, presumivelmente restos de
sacrifício e banquetes rituais” (GREEN, 2021, p. 49).
Os santuários de Entremont (século IV-III a.C.) e de
Roquepertuse (século V-III a.C.), também eram locais onde o caráter
bélico e o caráter divino claramente imbricavam-se. A existência de
portais de pedra com crânios humanos incrustados em nichos
(Roquepertuse) ou com representações em relevo de crânios
(Entremont) bem como as esculturas de guerreiros, deuses ou heróis
segurando cabeças em ambos os santuários eram uma referência à
sujeição do inimigo não somente em seu aspecto físico (decapitação)
como também no aspecto espiritual, de modo a aprisionar sua força e
sua alma uma vez que para os celtas a cabeça era o lugar do
conhecimento.
Os fossos e poços dos santuários acima descritos contendo
ossos animais e humanos assim como as armas usadas na guerra
referem-se a dois tipos de rituais intimamente concatenados: a vitória
na batalha e a perpetuação e coesão da comunidade. A presença nos
locais de crânios humanos separados do restante do corpo caracteriza
um sacrifício no qual a energia do cativo era convertida (tornando-se
positiva e favorável ao vencedor) e a existência nos santuários de
ossos de animais, principalmente de bichos domésticos como cabras,
ovelhas, porcos e bois pode indicar tanto uma imolação oferecida às
divindades quanto a existência de banquetes nos quais a comunidade

456
Druidismo e Magia

era convidada a participar. Não seria possível executar tais rituais sem
a presença do druida, sabedores das etapas que deveriam ser
rigorosamente efetuadas para asseverar a integralidade do ato sagrado.

A Ordem Cósmica – as cerimônias, os ritos e a


perpetuação do ciclo da vida

Os rituais e a ordem cósmica estavam estreitamente


interligados. Um exemplo são as celebrações sazonais cuja intenção
era a de oportunizar uma próspera colheita agrícola. Os quatro
festivais mais conhecidos (citados na literatura vernacular irlandesa)
relacionavam-se às estações do ano: Imbolc (primavera), Beltane
(verão), Lughnasadh (outono) e Samain (inverno).
O festival de Imbolc ocorria “no dia primeiro de fevereiro e
celebrava o parto das ovelhas e a lactação de suas crias” (GREEN,
1997, p. 35). Ele era provavelmente um festival de “purificação, feito
talvez para evitar qualquer mal que uma ovelha prenha, seus cordeiros
e seu leite viessem a sofrer” (GREEN, 1997, p. 35). Esta festa
marcava o fim do período invernal e o “início da renovação da
vegetação e da vida com o nascimento dos cordeiros e o leite das
ovelhas” (KRUTA, 2000, p. 617).
Beltane, cujo nome provavelmente derivava de “bil” (sorte) ou
“bel” (luz), era comemorado no dia primeiro de maio e marcava o
início do verão. Neste festival, o gado era conduzido entre duas

457
Silvana Trombetta

grandes fogueiras, de modo a obter uma proteção mágica contra as


doenças. De acordo com Grenn (1997, p. 35), o Livro das Invasões
(coleção de poemas e prosas sobre a história da Irlanda compiladas
por um autor anônimo no século XI ou XII EC) contém uma história
sobre o druida Mide, fundador do condado de Meath na Irlanda, que
foi o primeiro druida a acender o fogo de Beltane. Segundo o texto
irlandês conhecido como Dinnschenchas, o fogo espalhou-se por toda
a Irlanda, fato que fez com que Mide ganhasse a inimizade dos druidas
das outras regiões tendo, então, que cortar e queimar as línguas de
seus opositores para vencê-los. Este ato possui uma grande simbologia
relacionada à vitória, pois um druida despossuído do dom da palavra
não poderia executar os rituais visto que era pela fala que as profecias,
as maldições e os encantamentos eram proferidos.
Lughnasadh (cujo nome remete a Lug: deus da guerra, da luz e
das habilidades manuais) acontecia no dia primeiro de agosto,
abrangendo também a quinzena anterior e a seguinte. Ele era um
festival ligado à colheita e marcava o início do outono. O
Dinnchenchas descreve-o como uma cerimônia na qual a assembleia
se reunia não só para resolver questões legais e políticas, mas também
para outras atividades pã tribais como jogos e festas. Durante o
Império Romano, “ela tornou-se a festa de Augusto e a data marcava a
reunião do conselho dos gauleses em Lião” (KRUTA, 200, p. 617).
Durante a cerimônia, havia rituais executados pelos druidas com o
intuito de promover a abundância da safra agrícola.

458
Druidismo e Magia

O festival de Samain era celebrado entre 31 de outubro e


primeiro de novembro e marcava o início do inverno. Uma grande
assembleia em Tara (Irlanda) ocorria nesta época e a origem do
festival pode estar relacionada com a seleção dos animais domésticos
para o abate de inverno, fornecimento de alimentos ou reprodução.
Samain era um período perigoso, no qual “as fronteiras do tempo e do
espaço eram temporariamente suspensas e os espíritos do Outro
Mundo se imiscuíam no mundo dos vivos” (GREEN, 1997, p. 36).
Neste sentido, a presença do sacerdote era fundamental para controlar
a energia que provinha do além num momento em que os limites entre
os dois mundos eram suprimidos.
Samain era o único festival explicitamente mencionado no
famoso Calendário de Coligny (século I – II EC). Nele, o nome
Samonios aparece como o primeiro mês do ano celta e a festa das três
noites de Samain (trinox samoni) marca uma celebração que tinha
lugar no “segundo dia da segunda quinzena do mês de Samonios”
(KRUTA, 2000, p. 806). Este documento material é “a nossa maior
evidência para supor que os festivais irlandeses de Imbolc, Beltane,
Lughnasadh e Samain foram celebrados em todo o mundo celta”
(GREEN, 1997, p 37). Podemos dizer que tal inferência é possível
uma vez que Samain é mencionado nas fontes literárias irlandesas e o
nome Samonios aparece inscrito no calendário gaulês, ou seja, em
regiões e épocas bastante distantes no tempo e no espaço.

459
Silvana Trombetta

Figura 3: Fragmento do Calendário de Coligny. Ao alto é possível ver a


referência a Samonios (SAM) e abaixo a palavra ATENOVX (que marcava o
fim da primeira quinzena do mês). Datação: século I – II EC. Acervo do
Museu Galo-Romano de Lião. Fonte: Wikimedia Commons.

O calendário de Coligny foi feito em bronze e sofreu uma


quebra ritual antes de ser enterrado (provavelmente num templo) ao
norte da região de Coligny (França). Sua inscrição “era em idioma
gaulês e compunha um calendário de cinco anos divididos em meses,
quinzenas e dias, cada mês precedido pela abreviação MAT ou
(AN(Mat)) significando bom/completo ou mau/incompleto para
atividades rituais como os procedimentos sacrificiais” (GREEN, 2021,
p. 125). Cada mês era dividido “a partir do décimo quinto dia pela
palavra ATENOUX, que significava o fim do período luminoso e o
início do período escuro” (CUNLIFFE, 2010, p. 47). Assim, o tempo

460
Druidismo e Magia

mais favorável para os ritos sagrados era a primeira quinzena do mês,


que coincidia com a fase da lua crescente.
O princípio da fase lunar exposto acima aparece na fonte
textual de Plínio, o Velho, que descreve um rito destinado a curar a
infertilidade:
Nesta ocasião, não devemos deixar de mencionar a
admiração que é prodigalizada a esta planta pelos
gauleses. Os druidas - pois esse é o nome que eles dão
aos seus magos - não consideravam nada mais sagrado
do que o visgo e a árvore que o carrega, supondo sempre
que essa árvore seja o carvalho. O carvalho é
selecionado por eles para formar bosques inteiros, e eles
não realizam nenhum de seus ritos religiosos sem
empregar seus ramos; tanto que é muito provável que os
próprios sacerdotes tenham recebido seu nome do nome
grego para aquela árvore. De fato, é consenso entre eles
que tudo o que cresce nela foi enviado imediatamente
do céu, e que o visgo sobre ela é uma prova de que a
árvore foi selecionada pelo próprio deus como objeto de
seu favor especial.
O visgo, no entanto, raramente é encontrado no
carvalho; e quando encontrado, é colhido com ritos
repletos de reverência religiosa. Isso é feito mais
particularmente no quinto dia da lua, o dia que é o início
de seus meses e ano [...] Este dia eles escolhem porque a
lua, embora ainda não esteja no meio de seu curso, já
tem poder e influência consideráveis; e eles a chamam
por um nome que significa, em sua língua, a cura total.
Tendo feito todos os devidos preparativos para o
sacrifício e para um banquete sob as árvores, eles trazem
para lá dois touros brancos, cujos chifres são amarrados
pela primeira vez. Vestido com uma túnica branca, o
sacerdote sobe na árvore e, com uma foice de ouro,
corta o visgo que cai sobre um manto branco. Eles então
imolam as vítimas, clamando a deus para que ele
conceda sua graça. Eles acreditam que o visgo, colocado
na bebida, dará fecundidade a todos os animais estéreis,
e que é um antídoto para todos os venenos (PLÍNIO,
História Natural, XVI, 95).

Quando nos reportamos à documentação material, vemos


que as representações do visgo aparecem constantemente na arte La

461
Silvana Trombetta

Tène (como nas colheres divinatórias e no trompete de guerra) e que a


importância da lua é enfatizada pela existência de objetos como o
crescente lunar encontrado em Bath (certamente parte de um cetro ou
algum outro instrumento ritual usado pelo sacerdote). A coleta do
visgo pelo druida na lua crescente unia, portanto, dois elementos
naturais de grande magia, fortalecendo o encantamento rogado.
Coligny era um calendário lunar e a passagem do tempo entre
os celtas era calculada mais pelas noites do que pelos dias. De acordo
com o relato de César.
Todos os gauleses dizem que descendem de Dis Pater e
dizem que essa tradição foi transmitida pelos druidas.
Por esta razão eles computam as divisões de cada
estação não pelo número de dias, mas de noites; eles
celebram os nascimentos e inícios de meses e anos de
modo que o dia siga a noite (CÉSAR, Guerra Gálica,
VI, 18).

Seguramente os druidas foram os responsáveis pela elaboração


do calendário de Coligny, um objeto que marcava as ocasiões
auspiciosas ou não auspiciosas para as festividades e cultos religiosos.
Mesmo em regiões distantes da influência romana, nas quais
não há objetos materiais que comprovem como era feita a contagem
do tempo, os sacerdotes eram os responsáveis pela organização dos
cultos de acordo com os ciclos anuais. Neste ponto, cabe lembrar que
a razão pela qual a escrita muitas vezes não era utilizada pelos druidas
tinha como propósito manter seu conhecimento oculto dos demais
indivíduos. De acordo com César:

462
Druidismo e Magia

Eles parecem ter adotado essa prática por duas razões:


porque não desejam que suas doutrinas sejam
divulgadas entre a população e nem que aqueles que
aprendem se dediquem menos aos esforços da memória
(CÉSAR, Guerra Gálica, VI, 14).

A manutenção da tradição oral era, portanto, uma forma de


preservar o caráter secreto dos ensinamentos druídicos que eram
passados aos futuros sacerdotes. Esse aprendizado e erudição podem
ser vistos na própria confecção do calendário de Coligny, que embora
tenha sido produzido num período em que o poder dos druidas era
cerceado pelos romanos resultava de “longos séculos de observação
astronômica, de medidas e de cômputos de certa complexidade. Nestas
condições, somente os druidas possuíam os conhecimentos necessários
para assegurar os cálculos exigidos para seu funcionamento”
(KRUTA, 2000, p. 510).

Conclusão

Os druidas eram essenciais para a manutenção do tecido social.


As festividades, as cerimônias e os ritos regidos por eles realizavam-se
em locais e tempos pré-determinados, marcados pela interlocução com
o divino. Em lugares de deposição cultual como rios, lagos, pântanos,
grutas, poços e santuários, os objetos ou sacrifícios (animais ou
humanos) eram destinados às divindades e, consequentemente, deviam
passar por etapas ritualísticas nas quais o sentido que possuíam no
mundo dos vivos transformava-se ao penetrarem o além. Certos rituais

463
Silvana Trombetta

eram feitos em períodos específicos, de acordo com um ciclo que


seguia o próprio ritmo da natureza, sendo pautados por calendários
calcados em observações astronômicas. Para tanto, era essencial a
presença do sacerdote, cujo saber transmitido de geração em geração
garantia a eficácia dos ritos e dos encantamentos a eles associados,
assegurando o bem estar coletivo.

Referências

Documentais
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McDevitte e W.S. Bohn. Nova Iorque: Harper & Brothers, 1869.
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www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus:abo:tlg,0543,001:2.
Acesso em: 19/05/2022.
PLÍNIO, o velho. The Natural History. Tradução de John Bostock.
Londres: Taylor and Francis/Red Lion Courtey, 1855. Disponível em:
http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?
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%3D95. Acesso em: 06/06/2022.
TÁCITO. Germany and its tribes. Tradução de Alfred John Church e
William Jackson Brodribb. New York: Random House, 1942.
Disponível em: http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?
doc=Perseus%3Atext%3A1999.02.0083%3Achapter%3D10. Acesso
em: 02 jun. 2022.

Bibliográficas
CUNLIFFE, Barry. Druids: a very short introduction. 1ª. Ed. New
York: Oxford University Press, 2010.

464
Druidismo e Magia

FLEMMING, Kaul. The Gundestrup Cauldron: Thracian Art, Celtic


Motifs. Etudes Celtiques, Lyon, vol. 37, p. 81-110, 2011.
GREEN, Miranda. Rethinking the Ancient Duids: an archaeological
perspective. 1ª. Ed. Cardiff: University of Wales Press, 2021.
GREEN, Miranda. The World of the Druids. 1ª. Ed. Londres: Thames
and Hudson, 1997.
HATT, Jean Jacques. Mythes et Dieux de la Gaule: les grandes
divinités masculines. 1ª. Ed. Paris: Picard, 1989.
KRUTA, Venceslas. Les Celtes: histoire et dictionnaire. 1ª. Ed. Paris:
Robert Laffont. 2000.
ROSS, Anne. Ritual and the druids. In: GREEN, Miranda. The Celtic
World. 2ª. Ed. London/New York: Routledge, 1997, p. 423-444.

465
Barrados no baile. A Península Ibérica e a
festa das bruxas
Carlos Roberto Figueiredo Nogueira1

O sabbat é a festa do Mal. Festa da transgressão, da inversão


absoluta. Cerimonial da Traição, foi lentamente elaborado e o seu
ritual minuciosamente preenchido desde inícios do século XV até
chegar à toda pompa de um mundo às avessas, da sordidez e da
malignidade dos traidores de Cristo, na descrição de Pierre de Lancre.
Trata-se efetivamente de uma construção, da elaboração de uma
fantástica conspiração contra o gênero humano, repleta de imprecisões
e indecisões com respeito à sua denominação, conteúdo e participantes
do século XV ao XVI que contaminou quase toda Europa.
Contudo, ao nos referirmos a esta realidade fortemente
impressa no imaginário da Cristandade além-Pirineus, não a podemos
encontrar a não ser esparsa e fragmentada para a Península Ibérica,
como demonstram os inúmeros estudos sobre o universo mágico no
contexto mental do mundo ibérico. Trata-se de um espaço cultural
singular que atua como filtro de crenças e representações mentais
extraordinariamente uniformes na maioria das regiões que compõem a
parte ocidental do Velho Mundo.

1 Possui graduação em História pela Universidade de São Paulo (1971) e doutorado


em História Social pela Universidade de São Paulo (1981). Atualmente é professor
titular da Universidade de São Paulo e Decano do Departamento de História.

466
Barrados no baile. A Península Ibérica e a festa das bruxas

Navarra, século XVI. O licenciado Lombera, um dos


encarregados no caso dos bruxos do vale navarro de Arraiz, informa,
em 1527, que “nos negócios de bruxos e bruxas, houve alguma dilação
... E nos pareceu que não deve ser tratado por hora pelo Santo Ofício”
(IDOATE, 1973, p. 66-67). Estranha opinião em um momento que
tribunais religiosos e laicos esquadrinham as comunidades, à caça dos
mais temíveis inimigos do rebanho cristão: os seguidores do Demônio.
Renegados da verdadeira fé, que se reuniam no culto do sabbat, para
entregarem-se e renovar a sua fidelidade ao mestre demoníaco.
O sabbat das bruxas neste contexto aponta muito mais para
uma importação de um estereótipo modelado pela atuação de juízes
franceses em regiões fronteiriças, o qual, se alguma penetração teve no
universo mental ibérico, foi a influenciar juízes bascos, navarros e
aragoneses pela sua situação especial de regiões limítrofes com a
França que provocava o transbordamento da “praga” para as
coletividades espanholas. Nas palavras de um crédulo sacerdote vasco
da “Muy Noble e Muy Leal” província de Guipúzcoa, que clamava em
1618, ao Santo Ofício que castigasse os apóstatas “e se limpasse
aquela terra, que a suspeita era dos estrangeiros franceses” (ISASTI,
1850, p. 145). Fenômeno, aliás que “La Suprema” o Conselho da
Inquisição tinha plena consciência, como o demonstra o pedido feito
em 1611 pelo Inquisidor Geral ao Bispo de Pamplona que fizesse uma
visita a Logroño para averiguar notícias de uma epidemia de bruxaria

467
Carlos Roberto Figueiredo Nogueira

nesta região navarra. A resposta deste, após a visita, é esclarecedora,


pois: “havia chegado à conclusão de que a maior parte do mal era
advindo do desassossego que havia produzido na França, um juiz
“atropelado” (sic) ao qual se impediu de ir adiante, mas antes já havia
feito morrer a muitos” (AHN, legajo 1679, n. 26, fol. 2v). E reitera o
bispo ao final da carta:
... realmente Senhor Ilmo. tenho para mim por certo
com todas as demais razões que existem e foram
verificadas, que neste negócio não há tanto mal
verdadeiro como se encarece [...] ainda que exista algo é
ficção e ilusão [...] de gente ignorante que falaram
destas matérias, e aprendido os termos delas pelo que
ouviram e da comunicação que tiveram do que como
disse, aconteceu em França (AHN, legajo 1679, exp.
2.10, n. 31, fl. 1r).

Em território espanhol, acusados de bruxaria são


frequentemente julgados pelo Tribunal da Inquisição como inocentes,
objetos das calúnias e do rancor popular. Acusações tão misteriosas e
fragmentadas, que comparadas àquelas existentes nos abundantes
processos do resto da Europa – tão semelhantes entre si – pensaríamos
estar, no mundo ibérico, em presença de uma outra personagem, vaga
e indistinta do mundo da superstição. Aqui não encontramos o sabbat
e o seu ritual específico: a inversão do ritual católico, o renegar a Deus
e à Virgem Maria, as danças e o festim noturno e nem mesmo a maior
das obscenidades – o “beijo infame” ofertado ao traseiro do Diabo.
Não podemos negar que, posteriormente, estas crenças passem
a fazer parte desse mesmo imaginário, em particular de um imaginário

468
Barrados no baile. A Península Ibérica e a festa das bruxas

popular, em um momento – extremamente singular – em que a cultura


das classes dirigentes relega a crença na demonomania para o terreno
da superstição. Mas trata-se de um momento posterior, marcado pela
notável circulação de informações e ideias e por uma certa
homogeneização da assim chamada cristandade ocidental, motivada
talvez por uma “catequização” da Cristandade pós-tridentina. O que
nos interessa neste momento é por que ao final da Idade Média e no
início dos tempos modernos todas as crenças que dão vida e solidez à
existência da bruxaria europeia, inexistem ou estão deformadas a tal
ponto que resulta muito difícil, no começo da Modernidade, falar-se
em bruxaria na Espanha2.
Seria talvez mais exato levantar a hipótese de uma migração,
de um aportamento ao imaginário ibérico de crenças estrangeiras que
recebem tratamento e leitura específicos, cuja variação regional pode
ser explicada pela existência ou não de crenças tradicionais passíveis
de serem combinadas com as novas, ou da maior ou menor
possibilidade de serem influenciadas pelos acontecimentos ocorridos
em terras francesas. Contudo, o rastreamento da totalidade deste
processo, implicaria em uma investigação exaustiva e aprofundada
que não está em nossos horizontes, devido a enormidade do trabalho

2 Em trabalho anterior, tivemos a oportunidade de examinar a questão no tocante à


antiga região de Castela, a Nova. Agora, através de documentação coletada mais
recentemente, e da contribuição de outros pesquisadores, procuramos expandir
nossas interpretações para todo o conjunto do mundo hispânico (NOGUEIRA,
1989).

469
Carlos Roberto Figueiredo Nogueira

exigido e que não poderia estar limitado a um único pesquisador.


Nesta perspectiva, nosso objetivo é fornecer elementos para uma
reflexão, através de um mapeamento das crenças nas distintas regiões
ibéricas.

A zona pirenaica

Tendo como horizonte a hipótese de uma migração a partir da


influência francesa, começaremos a examinar as crenças naquelas
regiões onde se tem notícias de perseguições às seitas de bruxas, nos
séculos XV e XVI. Regiões territorialmente limítrofes ou que, como
Navarra, estiveram por longo tempo sob o domínio da França.
A localização das “pragas de bruxas”, limitava-se a estas
características regiões: Navarra, a região vascônica e alguns pontos
dos Pirineus Catalões, conforme o testemunho de um teólogo de
Pamplona, “fray” Martin de Arles que em seu Tractatus de
superstitionibus se referia à ilusão da bruxaria como “um mal próprio
da região vascônica ao norte dos Pirineus” (ARLES Y ANDOSILLA,
1510, f. IIIv e IIIIr). Da mesma região vasca acrescentem-se uma
renomada tradição de paganismo, sendo os vascos considerados
gentiles pelos teólogos ainda em pleno século XV (CHABÁS, 1902, p.
5)!
José Berruezo, em um estudo sobre a Bruxaria vasca, nos
informa que, na província de Guipúzcoa nas Ordenanzas de 1375 e de

470
Barrados no baile. A Península Ibérica e a festa das bruxas

1453, que constituem na verdade em um código penal destinado a


acabar com as desordens e a anarquia das lutas feudais, não se faz a
mínima alusão aos delitos de bruxaria ou à demonolatria: o sabbat
propriamente dito (BERRUEZO, 1973, p. 161).
Estranha ausência em uma região que forneceu à língua
castelhana a palavra “aquelarre” – o prado do bode – para designar o
conciliábulo das bruxas. Contudo, o diabo no País Vasco adotou outros
avatares antes de assumir a encarnação caprina, comum ao restante da
Europa. Em um dos mais antigos “aquellarres” registrados, o de Peña
de Amboto em 1500, o “Cabróo”, aparecia sob a pele de um asno, só
assumindo a figura estereotipada no século XVII (BERRUEZO, 1973,
p. 167-168). Do mesmo modo, o termo “sorguiña” ou “xorguina”
utilizado pelos juízes na região para designar as bruxas, só aparece ao
final do século XV, ao mesmo tempo que o neologismo “bruja”
designando, contudo, uma atividade mágica bem distinta, com o
envolvimento de seres lendários – as “lâmias”, práticas de adivinhação
e a utilização de procedimentos mágicos adquiridos pelo trato com
estes seres sobrenaturais (BARANDIARAN, 1973, p. 31-36).
Estas regiões do norte da Espanha eram vistas por muitos
teólogos espanhóis com as mesmas suspeitas que despertavam a
presença muçulmana nas regiões de Valência e Granada. Clérigos e
posteriormente os inquisidores tinham consciência de uma falta de
evangelização adequada, e que a única maneira de lutar contra a

471
Carlos Roberto Figueiredo Nogueira

superstição era buscar uma autêntica conversão cristã. O universo


mental dos eclesiásticos, longe de procurar modelar sobre estas
populações o paradigmático ritual demoníaco, buscou inicialmente
reprimir as influências provocadas pelas perseguições europeias. E por
isto, em 1550, o inquisidor Sarmiento de Barcelona, foi destituído por
relaxar a seis pessoas como bruxas, sem verificar as provas (KAMEN,
1984, p. 233).
As montanhas e regiões isoladas eram o local favorito do
demônio, para o teólogo Alfonso de Castro que escreve em 1541:

Há uns dez anos na região da Cantábria agora chamada


de Navarra, e em Vizcaya, descobriram-se entre a gente
das montanhas muitas superstições e idolatrias [...] O
mesmo, mas não com tanta intensidade, foi descoberto
em outras montanhas de Espanha, em Astúrias e Galícia
e outras, onde a palavra de Deus raramente havia sido
pregada. Entre eles existem muitas superstições e ritos
pagãos, pela única razão da falta de pregadores
(Adversus haereses, KAMEN, 1984, p. 234. Grifo
nosso).

Para inquisidores e doutores da fé, esta era a verdadeira ação


do demônio nas montanhas ibéricas: manter as comunidades em uma
situação de “gentios”, vivendo rituais tradicionais e muito pouco
ortodoxos. Rituais que no delírio demonológico de um juiz ou num
aprendizado de “ouvir dizer”, das confissões modelares produzidas
pelas perseguições francesas, prontamente seriam convertidos em
rituais de submissão e adoração ao demônio: os sabbats. Contudo,

472
Barrados no baile. A Península Ibérica e a festa das bruxas

faltara perseguição e doutrinação sistemática que convertesse aquele


fundo cultural tradicional em uma “bruxomania” organizada.
Não obstante, as regiões pirenaicas forneciam um admirável
repertório de costumes tradicionais passíveis de serem revestidos à luz
de uma interpretação demonológica, com a marca do ritual satânico.
Em particular as danças, objetos de uma extrema suspeita dos
eclesiásticos, estigmatizadas pelo Decreto de Reforma do Concílio de
Trento e proibidas pelas leis de Navarra que vedavam a realização de
danças em que participassem “homens e mulheres com jograis, gaitas
e guitarras depois de haver anoitecido” (Ley IX, Libro V, Título X.
BERRUEZO, 1973, p.173). Proibição que se estendeu no País Vasco
até o século XVIII, dando origem a intermináveis polêmicas sobre o
caráter moral dos bailes.
Estamos, pois, frente a um universo mental extremamente
adequado para a irrupção de “pragas de bruxaria”. No entanto, em que
pese a existência de alguns processos na região, sente-se uma
inconsistência teórica, quando não um extremo ceticismo por parte de
doutores da Igreja e inquisidores, muito antes da legendária atuação do
Inquisidor Salazar y Frias no processo de Logroño. Por exemplo, a
junta de Granada, convocada em 1526 para discutir um surto de
bruxaria descoberto em Navarra, colocou a culpa destes surtos na
ignorância da população, como demonstra a resolução apresentada por
“fray” Antonio de Guevara: “Que se devem fazer os seguintes

473
Carlos Roberto Figueiredo Nogueira

remédios: primeiro, que se ponham pregadores por aquelas partes. O


segundo, que os inquisidores e os juízes seculares procedam com
muita diligência” (KAMEN, 1984, p. 233).
Por outro lado, os estudos de Caro Baroja nos demonstraram
que a maior densidade de bruxos e bruxas no País Vasco estava
vinculada aos graves problemas políticos de fronteira e nacionalidade
naquela região. No século XVI, com a consolidação das antigas
monarquias feudais em Estados centralizados, as lutas civis e os
interesses locais ganham novas cores. As vilas passam a enfrentar as
prerrogativas dos senhores locais, sendo a acusação de bruxaria uma
excelente forma de ofensiva, manejada ao sabor das velhas questões e
interesses. Por outro lado, tem que se levar em conta que o país vasco-
navarro não era uma terra que pudesse ser considerada um bastião de
fidelidade à coroa castelhana. Ora, as incursões por este território em
busca de bruxas possibilitavam à administração central assentar e
consolidar seu poder, intimidando com seu aparato repressivo a
inimigos políticos e silenciando possíveis querelantes. Do mesmo
modo, a atuação francesa além dos Pirineus e o seu decorrente
transbordamento para o reino espanhol pode ser vista dentro da mesma
perspectiva.
Para o restante da região lindante com a França, a situação é a
mesma: excetuando-se alguns casos exemplares, onde um estudo
biográfico dos juízes talvez pudesse esclarecer as origens da sua

474
Barrados no baile. A Península Ibérica e a festa das bruxas

“ortodoxa” e milimetricamente acurada construção, ou seja, é na


personalidade destes que deve ser rastreada maior ou menor
conformidade com o modelo “clássico” da bruxaria. As investigações
de José Cabezudo nos antigos Archivos Secretos da Inquisición de
Zaragoza nos mostram dois processos da primeira metade do século
XVI, o primeiro de 1511 e o outro de 1534. A acusação em ambos os
casos é a mesma: bruxaria. No entanto, o segundo processo instaurado
contra uma velha coxa traz a marca demonolátrica: voos noturnos,
juramento de vassalidade ao diabo, relações sexuais com o diabo e até
um ilustrativo interrogatório sobre a natureza do membro diabólico –
que era de ferro (sic!) – e de suas dimensões, as quais, talvez para
desgosto dos interrogadores, não eram tão descomunais, como
conviria ao Príncipe da Luxúria (CABEZUDO ASTRAIN, 1973. p.
241-244). O primeiro, da mourisca Catalina Aznar, apesar da
acusação, vai tratar apenas de conjuros amatórios e sortilégios, e foi
condenada a jejuar sete sábados e a visitar a Virgen del Pilar
(CABEZUDO ASTRAIN, 1973. p. 244-245). Em outras palavras,
temos em primeiro lugar, um processo de bruxaria onde o “aquellarre”
simplesmente não existe, e um segundo mais de trinta anos depois que
concorda com as descrições dos tratados de maneira exemplar.
Insólita situação, se nos reportarmos à primeira metade da
centúria seguinte, quando caçadores profissionais de bruxas, atrevem-
se a discordar de todas as autoridades sobre o tema ao denunciar 64

475
Carlos Roberto Figueiredo Nogueira

suspeitos. Esquecendo a doutrinária propensão feminina ao comércio


diabólico em virtude de sua natural malignidade, do total dos
suspeitos, 42 são homens(!), e se nos restringirmos apenas aos
denunciados provenientes do Alto Aragón, a proporção ainda é mais
espantosa, nos 16 relacionados, apenas 3 são mulheres(!) (GARI
LACRUZ, 1973, p. 41-43).
Como em Navarra e Rioja – terras clássicas de bruxas e de
permanente intromissão francesa – a Inquisição, procede com cautela
e uma boa dose de ceticismo, e se usa de mão forte, será para castigar
os delatores de bruxos e bruxas.
A proximidade com a França é determinante. Angél Gari, ao
estudar estes processos aragoneses, nos mostra que uma parte
significativa dos acusados são estrangeiros, viveram fora de Espanha
algum tempo, ou tinham amizade ou relações com estrangeiros,
fundamentalmente com franceses. Os livros apreendidos, em especial
“O Livro de São Cipriano” ou a Clavicula Salomonis, procedem em
sua maioria da França, editados em espanhol ou francês (GARI
LACRUZ, 1973, p. 45). Singularidade que além de corroborar nossa
hipótese de contágio e migração, talvez possa explicar essa inusitada
situação de uma inegável predominância masculina.
Influência externa que data de um remoto passado, como nos
relata o primeiro documento escrito sobre o assunto – uma carta do
bispo Oliba a Sancho o Maior em 1023: “Mas agora ante vossos olhos,

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Barrados no baile. A Península Ibérica e a festa das bruxas

os estrangeiros devoram vossa região que é assolada de péssimas


maldades, a saber: matrimônios incestuosos, embriaguez e augúrios”
(Cartulario de San Juan de la Peña, p. 141-142, GARI LACRUZ,
1973, p. 39-40).
Invasão de crenças estrangeiras que parece ser compreendida
(ou intuída) pela mentalidade popular. Em 1611, após a decisiva
atuação de Salazar y Frias junto à Inquisição de Logroño, ocorre o
último processo por bruxaria do país vasco, que termina pela
absolvição de todos os acusados: o processo de Fuenterrabía, na
fronteira com a França. Ali, a população descontente com a plena
absolvição dos delatados, resolve, após obter uma permissão real,
devolver os seus males à sua verdadeira origem: as bruxas foram
embarcadas em uma lancha e lançadas ao mar, em direção da
França(!) (BERRUEZO, 1973, p. 174). No imaginário desta
comunidade, as bruxas de fato existem, mas como um corpo estranho,
uma presença alienígena, que uma vez removida ao seu verdadeiro
lugar eliminava os males produzidos na comunidade.

Astúrias e Galícia

Em Astúrias, o seu isolamento e a situação geográfica


excêntrica, leva os pesquisadores a definir um universo mágico de
caráter episódico e individualizado, onde campeiam os sortilégios e o
curandeirismo. Ali, o que se poderia chamar de bruxaria, remete a um

477
Carlos Roberto Figueiredo Nogueira

fundo folclórico tradicional, como já o advertia com grande agudeza


Alfonso de Castro, o teólogo acima mencionado.
As primeiras notícias remontam aos começos do século XIII,
quando uma peregrina endemoniada chamada Oria, que havia sido
batizada pelo bispo Gonzalo de Oviedo, confessou que possuía um
véu mágico que a fazia invisível e a permitia voar, o que era
confirmado por vários testemunhos. Contudo, perdeu sua condição de
“striga”, quando arrependida, confessou os seus pecados e se
submeteu ao batismo. Do mesmo modo, em 1342, o arcebispo de
Silves ao escrever seu Speculum Regnum, insinuava veladamente à
Alfonso XI, que era necessário e muito urgente, proibir toda uma série
de práticas mágicas – sortilégios, malefícios, encantamentos, augúrios,
necromancia e outros magos... – notadamente em Astúrias e Andalucía
(RICO-AVELLO, 1973, p. 124-126).
As referências são bastante claras: trata-se de práticas que, no
mínimo, remontam aos godos e à preservação de um substrato cultural
romano onde pontificam os “arúspices” e as “strigae”. A estas
representações produzidas por uma cultura dominante acrescente-se
uma enorme quantidade de seres sobrenaturais, anões vingativos ou
pacíficos como os “nuberos” e “ventolines”, velhas desatinadas como
as “lavanderas” e ninfas de extraordinária beleza como as “xanas”.
Universo mental prenhe de sobrevivências, testemunhado pela
singularidade do processo datado de 1460, contra Teresa Prieto.

478
Barrados no baile. A Península Ibérica e a festa das bruxas

Processo levado a cabo na Justiça Real, usualmente muito menos


cautelosa em matéria de bruxaria e mais “rigorosa” na punição da
mesma (RICO-AVELLO, 1973, p. 126-127). Acusada pelo ofício de
bruxa ou “estría” (por andar de noite nas casas alheias, chupando o
sangue dos fiéis cristãos) e condenada à morte escapou do cárcere e
compareceu vinte anos depois, para refutar a sentença sendo anulada a
sentença e a ré absolvida.
Ainda mais significativo, é que inexistem referências a sabbats
em Astúrias e suas vizinhanças. Apenas no século XIX, de modo
significativo, aparecem referências de que as bruxas asturianas
acompanhadas das “meigas” galegas, ao Arenal de Sevilha:

Aun en las noches de lo sábados


las brujas de esta comarca
en el infernal aquelarre
hacia Sevilla se marcham...
(RICO-AVELLO, 1973, p. 129).

Estamos frente a uma bruxaria sui-generis: bruxas de Astúrias


e Galícia, que vão a Sevilha – onde de resto, também, não existe o
Sabbat – pela “falta” de opções locais para realizar o ritual satânico.
Para as montanhas da Galícia, a situação se repete. Os
inquisidores tinham a convicção na ignorância da população, que
explicava a atitude suave em relação a “estes reinos onde há muita
falta de doutrina especialmente entre lavradores e rústicos que dizem à
tonta e sem saber o que dizem e por ignorância e não com ânimo de
hereticar” (CONTRERAS, l982, p. 629). Região onde se processam e

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Carlos Roberto Figueiredo Nogueira

condenam menos bruxas que em outras regiões peninsulares


(ALONSO DEL REAL, 1973, p. 21), apesar do que foi decantado por
uma literatura romântica, como podemos perceber pelo trabalho de
Lisón-Tolosana (l983).
Dos oito processados, cujas acusações tivemos acesso,
encontramos invocação do demônio, curandeirismo, feitiços amatórios
e uma infeliz portuguesa que, presa pela justiça real, foi levada à
fogueira após confessar sob tormentos haver tido comércio carnal com
o diabo (1579), mas em nenhum momento existe qualquer menção ao
sabbat (VARELA, 1973, p. 73-95).
Trata-se de uma “bruxaria” de cunho medicinal, associada a
alguns animais, como gatos e aranhas. As bruxas são as “sábias”, ou
“lumias” (lâmias?) ou mais frequentemente “meigas” – um possível
cruzamento etimológico entre mágica e medicina (ALONSO DEL
REAL, 1973, p. 20-28). Há que se levar em conta também uma
extraordinária diferença existente na Galícia entre o litoral e o interior,
onde predominavam (e predominam) superstições muito mais antigas
frente a uma racionalização de crenças no litoral permanentemente em
contato com o exterior (em particular com a França). Dentro do país
galego encontram-se, até os nossos dias, figuras que nos remetem a
Ovídio e a Apuleyo: as já mencionadas “sábias”, que podem aparecer
como “menciñeiras” – a sua designação enquanto curandeira – ou
“vedoira”, cujo nome traz implícito a capacidade de visualizar o

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Barrados no baile. A Península Ibérica e a festa das bruxas

futuro; ou então em seu caráter mais maligno, as “xuxonas” uma


chupadora de sangue, ou das vísceras de uma pessoa (ALONSO DEL
REAL, 1973, p. 20-28). “Estría” asturiana ou “lúmia” galega, a
primeira menção de que temos notícia desta atividade na Galícia, é um
processo datado de 1602, onde Constanza do Pazo foi denunciada por
três mulheres que diziam que era “bruja”, “hechicera”, e que “chupaba
los niños” (VARELA, 1973, p. 97-98).
Neste último caso nos encontramos em presença de “lâmias”,
ou seja, os demônios femininos da mitologia greco-romana, que
sedentas de sangue, atacavam os seres humanos, em especial as
crianças, e às quais eram atribuídos todos os males sucedidos às
mesmas. Personagem sobrevivente de crenças mais remotas e
adaptado às cores locais – as “lumias”.

As “bruxas” castelhanas

Após nossa peregrinação pelas montanhas “pagãs”,


direcionemos nossa atenção na região mais central da Península, onde
se concentram os órgãos de poder que tentam – nem sempre com
eficácia – controlar toda a Espanha. Nesta região que tivemos
oportunidade de estudar demoradamente a documentação, passaremos
a examinar a especificidade do universo mágico de uma região que
não conheceu a bruxaria, pelos menos enquanto demonolatria – a
antiga Castela, a Nova.

481
Carlos Roberto Figueiredo Nogueira

No século XVI, no Tribunal do Santo Ofício de Toledo,


encontramos escassas denúncias por bruxaria: dos 45 processos sob a
rubrica Feitiçaria existem 6 processos envolvendo a 8 mulheres, dos
quais nenhum traz a referência ao “aquelarre” (AHN, legajo 82, n. 7 e
24; 86, n 73-74; 88, n. 128(13); 91, n. 1; 96, n. 1). Olalla Sobrina,
viúva de El Casar, que pedia esmolas às mulheres recém paridas
confessou sob tormento “que as bruxas juntavam-se mas não iam ao
sabbat (AHN, legajo 96, n. 1, f. 5-5r. Grifo nosso). Juana “La
Izquierda”, também de El Casar nos apresenta uma versão um tanto
imoral, mas nada demonolátrica da reunião de bruxas, embriagando-se
à noite nas bodegas em companhia de homens e fazendo muito
barulho (AHN, legajo 88, n. 128(13), f. 16-17). No século seguinte,
outras três confessam o mesmo “ritual satânico”, andando à noite,
bailando e embriagando-se na companhia de homens, sendo acusadas
de bruxas, porque “llebaban pandero y latinetas haciendo mucho ruido
y algaçara” (AHN, legajo 87, n. 106(13), f. 10-11).
Em Cuenca, seu número é bem maior, para o mesmo período:
25 documentos, apesar de boa parte (13 destes) ser constituída apenas
por informes, causas suspensas, ou o que é bastante significativo,
terminam com a absolvição dos acusados.
As bruxas castelhanas são em sua imensa maioria mulheres
velhas, como diz uma jovem criada em 1530 em sua defesa, apelando
ao bom sentido e à filosofia das gentes que “ser bruja era cosa de

482
Barrados no baile. A Península Ibérica e a festa das bruxas

viejas no de mozas de poca edad” (ADC, legajo 109, n. 1536, f. 21r).


Mulheres que, avançadas em idade, eram objeto de suspeita da
população e se aproveitavam da “fama pública” como um meio de
subsistência. Catalina Mateo dizia que “la mayor parte la tienen por
bruja y se murmura entre ellos de suerte que quando llega a pedir
alguna cosa de pan, dineros e otras cosas a las casas desta villa, la
persona a quien lo pide se lo da teniendo por cierto, que si no diese le
mataría sus hijos” (AHN, legajo 91, n. 1, f. 5). E, a já referida Olalla
Sobrina mulher de mais de 60 anos aproveitava-se do medo que
despertava na coletividade “pedindo esmolas às mulheres
recentemente paridas” (AHN, legajo 96, n. 1, f. 5-5r).
Este é o universo da bruxaria castelhana em toda a sua
singularidade. Além da reduzida quantidade de processos, as bruxas
são tratadas muitas vezes como inocentes, objetos de calúnias e
rancores populares, ao passo que suas companheiras de práticas
mágicas, as feiticeiras, são tratadas como delinquentes. Contra elas se
fazem acusações díspares, desconexas e tão misteriosas e
fragmentadas que parecem tratar de outros atores do mundo da
participação mágica se comparadas às existentes no resto da Europa,
oriundas de arquétipos populares e modeladas pela cultura dirigente –
que justificam, nomeiam e culpabilizam as bruxas.
Tentemos, através da fala dos acusados, entender a nossa
personagem: a mesma Catalina que esmolava junto às parturientes,
dizia ao Tribunal: “que quiseram ensinar-lhe o ofício de bruja,

483
Carlos Roberto Figueiredo Nogueira

prometendo-lhe saias, camisas e ducados; de vestir, de comer e beber


todos os dias de sua vida, mas ela não queria aprender. ‘Habras de
serlo aunque no quieras!’, replicou-lhe a Olalla e a untou com um
certo unguento do qual bastava molhar um cabelo para ser
bruxa(!)” (AHN, legajo 96, n. 11, f. 4r. Grifo nosso). Bruxaria
involuntária é também o que ocorreu a Agueda Garcia anciã de quase
70 anos, que confessava ser bruxa porque “o havia herdado de sua
mãe, e não pecou a Deus, pois vinha de linhagem de bruxas que não
podiam fazer outra coisa” (AHN, legajo 87, n. 13, f. 10-11. Grifo
nosso).
Estranhas crenças. Se nos reportarmos aos tratados e
compilações sobre a bruxaria fica patente a ideia de uma vontade, um
desejo de entrega da bruxa para o Diabo, e o consequente e consciente
ato de abjuração e apostasia. Ora, dos relatos acima, encontramos uma
bruxaria sem ritual e imposta, sem haver vontade expressa da iniciada,
o que desrespeita a crença formulada e estabelecida da existência de
bruxas. Onde estão os sabbats, as reuniões onde se confirmava a
apostasia, as cerimônias de inversão do ritual católico, renegando e
blasfemando a Deus e à Virgem Maria, as danças e o festim noturno, o
“beijo infame” prestado ao Diabo?
Todas estas crenças que dão vida e solidez à existência de toda
a bruxaria europeia inexistem nas denúncias e no decorrer dos
processos inquisitoriais, exceção feita quiçá a um tour de force de

484
Barrados no baile. A Península Ibérica e a festa das bruxas

algum juiz ou qualificador, impregnado por ideias francesas. Exceção


representada por um único processo instaurado em Cuenca em 1519,
que parece tão somente motivada pelo imaginário do inquisidor, onde
Ilana de Peñalver foi interrogada com a utilização de tormentos “como
costumavam ser os de bruxas” e perguntada sobre as coisas que a
“fama pública” e os “libros norteños”, (em especial o Malleus
Maleficarum) atribuíam às bruxas – prevalecendo ao final, o “bom-
senso” que a condenou à abjuração de vehementi pela prática de
feitiços e sortilégios (ADC, legajo 75, n. 1095, f. 35-36).
Singularmente as únicas referências ao “aquelarre”, o nome
vasco para designar o sabbat das bruxas, encontram-se em Cuenca em
três processos, dois que se referem ao legendário Campo de Barahona
(ADC, legajos 96, n. 1425; 99, n. 1441) e outro na laguna de Gallo
Canta (ADC, legajos 109, n. 1536). Neste último caso, Águeda de
Luna declarava que havia sido iniciada por sua bisavó, que era uma
experta em confeccionar unguentos e que lhe ensinou a transformar-se
em um gato. Porém, e mais singular, é que ao ser chamada perante o
Tribunal, declara que tudo é certo e que ela era uma autêntica
bruxa!
Nestes processos, o “aquelarre” encontra-se claramente
delineado e definido como uma reunião de bruxas em um local
determinado, faltando, contudo, certas características fundamentais
dos rituais praticados no restante da Europa. A própria palavra
“aquelarre”, como vimos, não é de origem castelhana, sendo

485
Carlos Roberto Figueiredo Nogueira

incorporada à língua após o século XVII, em virtude de sua citação no


processo de Logroño em 1610.
Acreditamos que é razoável supor que a utilização de uma
palavra importada junto a um universo mental de uma coletividade
distinta implica na inexistência de um significante próprio no contexto
referido onde se insere tal significação. Ou melhor, a importação de
um vocábulo sugere a importação e a imposição de uma ideia
estrangeira. E como complemento, poderíamos acrescentar que na
Espanha, os “aquelarres” são tradicionalmente conhecidos como uma
característica do País Vasco e das regiões limítrofes com as terras
francesas.
Por outro lado, tendo-se em conta o imaginário comum à
Europa cristã, que batizou de sinagoga àquele ritual demonolátrico,
equiparando-o à conhecida e odiada assembleia dos Judeus (Entre
outros, RÉMY, 1930, p. 47-56) e associando assim, por transposição, a
imagem do sabbat a este “culto perverso”; poderíamos perguntar
porque na Espanha, onde os judeus tiveram grande influência e
participação e onde um esquema religioso-político-repressivo foi
criado para extirpar a sua presença e influência da sociedade e
mentalidade espanholas, inexistem quaisquer referências a estas
denominações?
As bruxas castelhanas são mais “xorguinas” (outro vocábulo
vasco!) que bruxas, consideradas como responsáveis por voos
noturnos e, como em Galícia e Astúrias, pela morte de crianças. Em

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Barrados no baile. A Península Ibérica e a festa das bruxas

uma época de alta taxa de mortalidade infantil, especialmente de


recém-nascidos e da persistência da prática do infanticídio, estas
mulheres aparecem como excelentes “bodes expiatórios” para o fato,
implicando em que ao acontecerem as tragédias, as calamidades, o
medo e as apreensões, levava a coletividade a buscar uma culpa
imediata, materializada e tipificada, e, portanto, passível de ser
compreendido pela mente humana. Situação admiravelmente
compreendida por La Lorenza em seus 70 anos: “Acostámonos
borrachas, e matamos nuestros hijos e dezimos que nos los matam
bruxas” (ADC, legajo 76, n. 1108, f. 26. Grifo nosso).
A própria evolução dos processos o demonstra. Em 21 de
novembro de 1519, os inquisidores do Tribunal de Cuenca mandaram
que se fizesse informação de ofício sobre os feitos atribuídos às bruxas
na diocese: “porque veio ao seu conhecimento que nesta dita cidade, e
em outros lugares de seu bispado, foram encontradas algumas crianças
mortas e marcadas de golpes, de onde se tem a suspeita, terem sido
mortas e feridas de xorguinos y xorguinas” (ADC, legajo 230, n.
2902). As providências foram tomadas e resultaram em denúncias
contra mais de 30 mulheres, sendo instruídos processos em apenas 4
casos, um deles suspenso por falta de provas.
As declarações destes processos são contraditórias e ambíguas,
evidenciando a pouca solidez das crenças que apresentam seja para os
juízes como para denunciantes e acusados. Denúncias vagas, pouco

487
Carlos Roberto Figueiredo Nogueira

articuladas, recobrem as “bruxas castelhanas”, personagens estranhos


e singulares, marginalizados no universo mágico, cuja primazia é
ostentada por uma personagem forte e bem tipificada na mentalidade
espanhola: a feiticeira. Situação que pode ser constatada nos
processos: iniciando por denúncias de bruxarias, e de crimes
horrendos contra o rebanho cristão que terminam – quando se encontra
alguma culpa – em sentenças por superstição e feitiçaria. O objetivo
da acusação é deslocado e mesmo atenuado, considerando-se o
contexto ortodoxo e a natureza gravíssima do delito imputado, que
envolve a traição à Cristandade e a participação explícita do Demônio.
De 1570 a 1600 foram feitas outras acusações contra bruxas
(xorguinas?) de várias localidades da província, mas o Tribunal de
Cuenca já não fazia caso de tais denúncias e todos os processos,
menos um – pois não se tratava apenas de uma bruxa imaginária, mas
de uma feiticeira e conjuradora real – foram suspensos. No Tribunal
de Toledo, as causas são mais raras e tardias, mas sem assistência ao
sabbat, pois se trata de acusações de bruxaria e de prática de feitiçaria,
o que vai justificar, em princípio, o prosseguimento dos processos e a
punição da transgressão.
É na província de Cuenca, portanto, onde encontramos uma
maior densidade de processos de bruxaria em Castela, a Nova. A
explicação parece residir em uma migração de crenças. Migração que
pode ser explicada por um lado pela sua localização geográfica mais a

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Barrados no baile. A Península Ibérica e a festa das bruxas

Leste, e, mais próxima das regiões ibéricas contaminadas pela “caça às


bruxas” de além-Pirineus, a partir do século XV. Situação que o tardio
e o pouco significativo aparecimento de denúncias de processados,
junto ao Tribunal de Toledo no século XVI, parece ratificar,
demonstrando que uma posição geográfica mais isolada poderia servir
de filtro à penetração de crenças. Por outro lado, em Cuenca, existe
uma imigração de vascos a partir do século XV, que se mais bem
estudada poderia demonstrar inequivocamente esta importação de
ideias francesas e a presença de vocábulos da região para designar
atividades mágicas em terras castelhanas.
Em Castela, as bruxas são “xorguinas”, o termo vasco que foi
entendido por magistrados do País Vasco como o equivalente regional
à “maléfica” dos tratados demonológicos. No entanto, a “xorguina” ou
“sorgina”, encontra-se associada a um imaginário mais tradicional,
que remonta às crenças pagãs, significando as pessoas que praticavam
a adivinhação e, mais especificamente, encarnavam seres elementais,
“númenes” das cavernas e as sempre presentes nas tradições
espanholas, as “lâmias”.
Do mesmo modo que a palavra “aquelarre”, trata-se de uma
outra importação para a língua (e para o universo mental castelhano).
Importação que está relacionada, como foi visto em Galícia e Astúrias,
com a sobrevivência de mitos greco-romanos, talvez mesclados no
folclore espanhol a lendas orientais, incorporados pelos mouriscos e

489
Carlos Roberto Figueiredo Nogueira

judeus – compare-se a atividade das “xorguinas” com uma das


atribuições da Lilith talmúdica, a quem os rabinos apresentavam como
causadora de malefícios aos recém-nascidos. É neste processo de
sedimentação e cristalização de distintas influências culturais, junto ao
imaginário castelhano – talvez espanhol – que parece residir o
incipiente fenômeno da “bruxaria castelhana”.
Tomando-se as palavras como representação do existente, a
existência de bruxas, bem como a sua reunião em sabbats, que é uma
crença bastante generalizada e igual em si mesma em quase toda a
Europa, aqui encontra-se diluída e modificada, quando não
inexistente. É extremamente significativo que, ao abandonarmos o
âmbito da Inquisição, e nos reportamos ao âmbito das dioceses
castelhanas, cujos tribunais sabidamente atuam com mais rigor nestas
matérias, esta realidade é ainda mais patente. As Constituciones
Synodales, determinações impostas às dioceses e que expressam,
fixam e determinam os objetivos e procedimentos a serem aplicados às
paróquias para assegurar a vigência e a manutenção da ortodoxia
católica, não trazem nenhuma menção à bruxaria ou a práticas
similares nos séculos XVI ou XVII. Para o século XVI, nas três
editadas pelo Arcebispado de Toledo (1536, 1566, 1583) apenas a de
1566, traz sob o título De Sortilegiis, alguma menção a sortilégios e
augúrios, misturados a recomendações contra falsos beatos e
peregrinos “que debaixo de bom hábito e prodígios fingidos, fazem

490
Barrados no baile. A Península Ibérica e a festa das bruxas

muitas fraudes e astúcias” (Constituciones Synodales, 1566, l. 5, f.


73r). Mesmo para a diocese de Cuenca, onde o número de acusados de
bruxaria é muito mais significativo, não existe qualquer menção a
“aquelarres”, “bruxas” ou “xorguinas”. Por outro lado, a única
Constitución do século XVI, a de 1571, apesar de mais preocupada
com os “ensalmadores” e os adivinhos, menciona explicitamente a
feitiçaria como um delito que preocupa o Bispado no mesmo item De
Sortilegiis dispunha-se sobre a pena
de los que usan hechicerias y consultó alos adeuinos:
[...] são excomungados todos os feiticeiros, agoreros, ou
adivinhos, e os que vão consultá-los. [...] e ademais das
outras estatuídas em direito, qualquer um que constar
haver cometido alguns dos ditos delitos será castigado
rigorosamente” (Constituciones Synodales, 1571, t. 7, f.
75r-76).

Aqui, não existem “xorguinas” ou “aquelarres”, apresentando


singulares lacunas que vem corroborar nossa hipótese de que a crença
em bruxas é uma preocupação ausente do imaginário castelhano.
Ausência, implícita e marcada pela dureza da realidade que aparece no
lamento de uma acusada a uma das mulheres que lhe dava esmola por
temer pela vida de seu filho: “Estáis vos espantadas de bruxas; las
mugeres de bien no temen bruxas ni bruxos, porque no hay bruxas ni
bruxos [...] se oviérades de tener cuidado de buscar un pan, no
dixérades que hay bruxas” (ADC, legajo 293, n. 4157, f. 5).
Já sublinhamos o papel que as rivalidades fronteiriças ocupam
na determinação e repressão das “epidemias de bruxas”, enquanto em

491
Carlos Roberto Figueiredo Nogueira

outras regiões, destituídas de problemas sociais e políticos gerados


pelos conflitos de interesses e poderes, inexistem as denúncias de
bruxedos, até que o contágio mental se estabeleça através do
aprendizado pragmático e imitativo das crenças de regiões vizinhas.
Assim, ao nosso ver, a crença em bruxas, em Castela,
representa a resultante de uma migração mal assimilada, passada pelo
crivo das tradições presentes nas regiões pirenaicas e acrescida das
representações tradicionais da coletividade, confundidas e unificadas
através de uma instituição supranacional e universalizante: a Igreja.
Enquanto imperava nas cidades e aldeias, a “hechicera”, a
bruxa vai retornando à sua primitiva obscuridade em terras
castelhanas, enquanto na Europa a sua caça ferve e se assanha. A
coletividade as desconhece e impinge, por vezes, esta caracterização a
pessoas com quem, de algum modo, estão ressentidas. Retirando suas
acusações de um “ouvir dizer” aprendido, mas na caracterização dos
atos demonolátricos vão buscar em um imaginário tradicional os
referenciais para a explicitação de suas crenças e temores. A bruxaria
inexiste em Castela, a Nova, como um produto de uma elaboração
mental da coletividade, constituindo um misto de contatos externos e a
utilização de palavras que, em realidade, demonstram-se inadequados,
quando não muitas vezes deslocados para designar os fenômenos e a
presença da bruxaria.

492
Barrados no baile. A Península Ibérica e a festa das bruxas

Em “tierra de morros” e além-fronteiras

Para o restante da Península a situação, conforme nos


afastamos da fronteira francesa, é de total inexistência de bruxas, e,
portanto, do sabbat. Para Granada, “tierra de morros”, os trabalhos de
Fernández García (1989) e García Fuentes (1981) nos demonstram
claramente esta ausência, mesmo nos casos em que o réu confessa
abertamente ter “pacto implícito com o demônio” (GARCÍA, 1989, p.
197). Estamos conscientes de que a documentação inquisitorial não
reflete toda a dimensão do fenômeno da bruxaria, pois esta constituía a
princípio um delito mixti fori, submetido tanto ao tribunal secular
quanto ao eclesiástico. Contudo, o argumento legal de que havendo
“pacto tácito como o demônio”, a instância de julgamento do delito
era o Tribunal do Santo Ofício, acaba por produzir a exclusividade
inquisitorial no julgamento das práticas mágicas. Assim é que, em não
havendo nenhum caso de bruxaria no Tribunal de Granada, em dois
séculos, podemos afirmar com toda a segurança a ausência da crença
em bruxas.
Aqui campeia o Islã, mas um Islã contaminado por práticas
supersticiosas e feitiços. Opinião generalizada era que “echar suertes”
eram “criancices”, que não era pecado nem alguém devia ser
denunciado por isto. E era prática generalizada, como diz Margarita de
Nápoles “que isto não era pecado, que todas as mulheres o faziam”
(GARCÍA, 1989, p. 199). Aqui predomina, a magia e a sexualidade
que, se revolta contra a monogamia e a necessidade do casamento para

493
Carlos Roberto Figueiredo Nogueira

a satisfação dos apetites carnais, oriunda de um universo mental ainda


dominantemente muçulmano, o que possivelmente explica um grande
número de mulheres jovens envolvidas nos processos de feitiçaria.
Para Córdoba, a situação se repete. O catálogo de Gracia Boix
(1983), não registra nenhuma denúncia por bruxaria, mas sim, a
mesma feitiçaria erótica, e na maioria dos casos, sem qualquer
intervenção dos demônios.
Seria extremamente oportuno rastrear este movimento
migratório de crenças e sua tipologia em solo português, completando
o périplo peninsular, mas não é nosso objetivo estudar a situação no
reino lusitano. Não queremos igualmente sugerir que ali tenha
ocorrido o mesmo processo que rastreamos em terras espanholas, mas
acreditamos ser possível que Portugal esteja inserido em um diferente
contexto, uma vez que se tem notícia que na própria capital do reino
foram queimadas 5 bruxas em 1559, o que jamais ocorreu em terras
espanholas.
Entretanto, embora literalmente transbordando os limites deste
artigo, nos permitimos citar o testemunho de uma daquelas
supliciadas, constante em documento publicado por Yvonne da Cunha
Rego, o qual é extremamente precioso para corroborar a
especificidade do imaginário espanhol no tocante à configuração da
bruxaria.
Resultado de uma devassa do Juízo Secular, onde foram
acusadas 27 mulheres e 1 homem provenientes da vila de Aveiro, uma

494
Barrados no baile. A Península Ibérica e a festa das bruxas

das confissões está marcada por nítida orientação demonolátrica,


desde a entrega ao Diabo até uma luxuriosa descrição da orgia do
sabbat. Parece haver uma descrição similar para as outras, uma vez
que o próprio escrivão delata a existência de um modelo
demonológico impresso no universo mental dos juízes ao dizer: “não o
trato dos testemunhos das mais Bruxas acima, porque todas elas vão
por este teor: que nisto se parecem com os Judeus, de todo
simbolizarem nos ditos com outro de ordinário” (REGO, 1981, p. 21.
Grifo nosso). É sob esta perspectiva, que podemos entender o caráter
paradigmático do que a bruxa relata: que nos seus ajuntamentos os
demônios,
em pouco espaço de tempo, dormiam com elas muitas
vezes carnalmente, quantas vezes elas queriam e pelo
lugar que elas queriam ou traseira ou pela dianteira, e
por sua confiança diz que o gosto que eles dão e causam
às mulheres é mui grande, sem comparação com os
homens (REGO, 1981, p. 16).

Contudo, o que é muito mais significativo nesta confissão é


que compareciam ao festim diabólico, além de alguns muito fidalgos
com algumas filhas moças e formosas, “outra muita gente de muitas
partes; a saber: Portugueses, de todo este Reino, Mouros, Judeus,
Franceses e de outras muitas nações” (REGO, 1981, p. 16. Grifo
nosso). Uma vez que Mouros e Judeus, pertencem às “raças do
Diabo”, sua presença está plenamente justificada, mas – e essa é uma
questão que nos parece fundamental para a nossa hipótese – por que os
Franceses são explicitamente mencionados? Não seria mais
justificada a menção das gentes espanholas, dada a sua convivência

495
Carlos Roberto Figueiredo Nogueira

peninsular e proximidade física e até cultural? Estaria ausente do


imaginário português a ideia da Espanha como terra de bruxas?
As respostas a estas perguntas demandam um estudo
aprofundado, que poderia aclarar a especificidade do universo mental
lusitano e talvez mostrar uma outra via migratória, não passando pelo
território espanhol, mas bebida diretamente de um imaginário
extrapeninsular.
Assim, o sabbat é um estranho no imaginário espanhol. Bruxas
e sabbats encontram-se ausentes e as tradições resgatadas pelos
estudos históricos e folclóricos o confirmam plenamente. O que
sobressai deste imaginário tradicional é o caráter “estrangeiro” das
crenças que, no limite, referendam a ideia de que existe uma migração
de crenças para a Península Ibérica. Na Espanha não haverá um
espaço no universo mental da coletividade para a construção e
afirmação de um discurso demonológico, permanecendo os
“colaboradores de Satã” com o estigma da alteridade, da sua feição
estranha, porquanto estrangeira.
Em suma, em terras espanholas, o demônio – ao menos o
Diabo teológico – não consegue estabelecer o seu absoluto domínio
sobre os homens. Veja-se o curioso relato apresentado em sua Historia
de la Muy Noble y Muy Leal Provincia de Guipúzcoa pelo doutor
Martínez de Isasti: em Rentería, na província de Guipúzcoa, uma
“doncella vieja” (sic), e muito perseguida pelo Inimigo, que na figura

496
Barrados no baile. A Península Ibérica e a festa das bruxas

de um coelho subia em sua cama lhe tirava a fala e a atormentava. Em


seu auxílio, acudiram dois valentes marinheiros, que se deitando com
seus vestidos na cama junto com a donzela, lograram espantar o
demônio. Entretanto, deixando de perseguir a donzela, o demônio
passou a perseguir um dos marinheiros e o fatigou por várias noites,
até que por puro aborrecimento partiu dali para as Índias e se soube
que o diabo nunca mais o importunou(!) (ISASTI, 1850, p. 141-42).
Mesmo um sacerdote como o doutor Martínez de Isasti,
embriagado pelas leituras do Malleus, Martín del Rio, e outros tantos
“dignos de inteira credibilidade” e que, portanto, tinha uma fé absoluta
no imenso poder do demônio, não acreditava que o Diabo estendesse a
sua influência até as Índias. Como se, autenticando a condição
estrangeira das crenças demonológicas, enxergasse desde sua cidade
fronteiriça, a difícil penetração das ideias francesas em terras
espanholas e a consequente barreira intransponível representada pelo
oceano. Dificuldade na Metrópole, impossibilidade na Colônia. O
isolamento da Península do restante do continente, se não
impossibilitou, ao menos filtrou a penetração maciça de crenças,
criando espaços culturais singulares, amálgama de influências greco-
romanas, elementos semíticos e conteúdos anímicos primitivos. Aqui
as crenças se misturam, se interpenetram, formando uma argamassa
cultural, onde já não se reconhecem mais as origens das personagens
pelo nome que lhes é emprestado.

497
Carlos Roberto Figueiredo Nogueira

A maior ou menor proximidade das terras francesas é decisiva,


justificando a progressiva diluição das crenças ao caminharmos em
direção contrária aos Pirineus. “Tierra de hechiceras”, a Espanha
apresenta um testemunho esclarecedor de um universo mental
específico que faz os homens dizerem: “Acreditamos nas bruxas (e
como não acreditar, já que a Igreja nunca negou a sua existência?),
mas elas vêm de fora”.
Enfim, a bruxaria no mundo hispânico é uma crença
conjuntural, resultado de um imaginário mágico-religioso singular,
engendrado talvez em uma semiconsciência, talvez no limiar da
consciência, que o suprassumo da maldade e da perversão – o ritual
demoníaco – era uma cerimônia europeia, e acima de tudo, um terror
advindo da publicidade e da tirania, secular ou eclesiástica, imposta de
além-Pirineus.

Referências

Documentação
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CONSTITUCIONES SYNODALES DEL ARÇOBISPADO DE
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copiladas, y añadidas, por el illustre señor Don Gomez Tello Girón.
Toledo, 1566.

498
Barrados no baile. A Península Ibérica e a festa das bruxas

CONSTITUCIONES SYNODALES DEL OBISPADO DE CUENCA:


hechas por el Ilustrissimo y Reverendissimo Señor, don fray Bernardo
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500
“Essa é a mais perfeita e principal ciência, a
mais sagrada e sublime espécie de filosofia”:
reflexões sobre as relações entre magia e
scientia nos renascimentos dos séculos XV-XVI
Francisco de Paula Souza de Mendonça Júnior1

Um dos temas mais clássicos das ciências humanas versa sobre


a definição das fronteiras entre religião, magia e ciência. Essa temática
esteve na aurora das ciências sociais e serviu a objetivos distintos. Na
passagem do século XIX para o XX tal discussão atendeu a um
esforço de justificar um discurso civilizador e evolucionista, conforme
o qual o estágio inicial da evolução humana coincidiria com a
predominância da religião e seu ápice viria com a ascensão da ciência,
sendo a magia um tipo de ponto médio. Na antropologia temos vários
exemplos dessa percepção, como a obra de James Frazer ou a do
sociólogo Émile Durkheim.
Em História podemos citar, pelo menos, duas obras muito
importantes: A History of Magic and Experimental Science (1923) de
Lynn Thorndike e Giordano Bruno e a Tradição Hermética (1964) de
Frances Amelia Yates. São dois trabalhos paradigmáticos: o primeiro é
uma obra de muito fôlego com vários volumes que buscam fazer uma

1É graduado em História pela UFMG, com mestrado e doutorado em História e


Culturas Políticas pela mesma instituição, tendo realizado estágio sanduíche na
Université Paris-Est Créteil. É professor adjunto na UFSM, onde também atua no
PPGH e no ProfHistória. É codiretor do Centro de Estudios sobre el Esoterismo
Occidental de la UNASUR, membro da Rede Brasileira de Estudos em História
Moderna e criador e coordenador do Virtù - Grupo de História Medieval e
Renascentista.

501
Francisco de Paula Souza de Mendonça Júnior

compilação de tudo que foi produzido desde a Antiguidade, ao menos


no Ocidente, em termos de magia e ciência; a segunda, um dos
primeiros trabalhos a considerar o impacto do pensamento mágico,
principalmente o hermetismo, nos Renascimentos dos séculos XV e
XVI. Apesar da grande contribuição de ambos os trabalhos, contudo,
eles apresentam um mesmo olhar: a percepção de que a magia
antecede imediatamente o surgimento da chamada ciência moderna.
A questão é que essa relação entre magia e ciência não é linear
como se colocou nessas análises. A tese de Thorndike é frágil, pois ela
parte de premissas mais ideologizadas do que fruto da reflexão a partir
dos documentos. A ideia de evolução como sucessão de etapas não é
verificável e muito menos se percebe na documentação que o
surgimento do que chamamos de ciência se deu pelo desaparecimento
da magia. Por outro lado, ainda que o hermetismo tenha contribuído
para uma percepção renovada da natureza, como as afirmações
heliocentristas de Giordano Bruno, ele não foi a única influência e
nem a mais importante.
Essa ideia de que houve nos Renascimentos dos séculos XV e
XVI um abandono de toda superstição em prol de um pensamento
estritamente científico não se restringiu a essa historiografia do início
do século passado. Um exemplo é a famosa obra de Keith Thomas
intitulada Religião e o Declínio da Magia (1971). A tese defendida
nessa obra é de que a Inglaterra teria conhecido um desencantamento
do mundo fruto de uma racionalização consequente da vitória do ethos
protestante, leitura profundamente weberiana. Há também uma

502
“Essa é a mais perfeita e principal ciência, a mais sagrada e sublime
espécie de filosofia”

afirmação de que as pessoas recorriam à magia muito em função da


ausência do acesso a soluções médicas formais e que, na medida em
que essas foram se disseminando na sociedade inglesa, a magia foi
perdendo espaço e credibilidade. Contudo, tais hipóteses têm bases
deveras frágeis. Como apontam Hildred Geertz e E. P. Thompson
(TAMBIAH, 1990, p. 23), Thomas construiu uma generalização a
partir de um recorte documental muito específico e enviesado. Tal
corpus documental, altamente elitista, carece de vestígios capazes de
apresentar a dimensão simbólica da magia, central ao pensamento
mágico. Estão ausentes, por exemplo, romances, ensaios e afins,
enfim, documentos nos quais a dimensão simbólica da magia se faz
bem perceptível.
Outro problema do trabalho de Keith Thomas reside na forma
em que se apoia nas teorias weberianas. O antropólogo Stanley
Jeyaraja Tambiah, em sua obra Magic, science and religion in Western
thought: anthropology's intelectual legacy, faz uma profunda crítica a
como as ciências humanas lidaram com tais tópicos. Seu ponto de
partida é a influência da obra de Max Weber A Ética Protestante e o
Espírito do Capitalismo (1905). A grande crítica de Tambiah é que a
hipótese central weberiana de que o sucesso do capitalismo só foi
possível em função da consolidação da ética do protestantismo, e o
consequente desencantamento da experiência cotidiana, foi
desvirtuada ao ser generalizada. A contribuição weberiana estava
preocupada em dar conta de um fenômeno social específico, e perdeu

503
Francisco de Paula Souza de Mendonça Júnior

força ao ser esgarçada para servir de base a toda reflexão acerca das
relações entre religião, magia e ciência. Um exemplo desse mau uso
está na obra de Keith Thomas que justifica um desencantamento do
mundo a partir de um recorte documental muito enviesado e de uma
base teórica weberiana que não se aplicaria ao recorte temporal por ele
estudado. Assim, seguimos a proposta de Tambiah de que a hipótese
weberiana não é universal, bem como de que as relações entre magia,
religião e ciência devem ser compreendidas a partir de cada contexto
sócio-histórico específico. Somente assim, fugiremos do teleologismo
que marca grande parte dos estudos sobre esses temas.
Seguindo a sugestão de Jaume Aurell (2016), tratemos o
passado como um continente distante, portanto, o mesmo somente se
torna acessível pelos vestígios que nos legou. Destarte, é hora de
apresentar os principais documentos que guiarão a presente reflexão.
O nosso recorte documental é composto pelas obras de Giambattista
dela Porta, Giordano Bruno, Isabella Cortese e Heinrich Cornelius
Agrippa von Netteshein, respectivamente Magia Naturalis (1558), De
Magia (1590-1591), I secreti de la Signora Isabella Cortese (1561) e
De Occulta Philosophia Libri Tres (1533). A partir de tais
documentos, construiremos uma reflexão sobre as relações entre
magia e ciência no Rinascimento, buscando contribuir para esse
debate.
O primeiro ponto de reflexão é justamente o que podemos
chamar de ciência durante os Renascimentos dos séculos XV e XVI.
Uma parte significante da historiografia, como o já citado Keith

504
“Essa é a mais perfeita e principal ciência, a mais sagrada e sublime
espécie de filosofia”

Thomas, por exemplo, consideram que o Renascimento foi o momento


no qual houve uma virada definitiva em função do nascimento da
ciência moderna. Já autores como Lynn Thorndike viram uma
incompatibilidade natural entre o humanismo e a ciência, dado que os
humanistas teriam mais interesse no estilo do que em ciência. Isso
porque, em um momento de grande valoração do passado, haveria
pouco espaço para as inovações. Contudo, a historiografia mais
recente tem mostrado que essa relação possui muito mais tons de cinza
do que de preto e de branco.
A primeira questão a ser apontada é que os humanistas não
buscaram reviver a Antiguidade como ela foi, mas, revestir seus
próprios discursos e visões de mundo com a autoridade dos textos
antigos, como a historiografia já provou fartamente (SKINNER, 1996;
WEISS, 2006). Outro elemento é que a crítica textual que marcou tão
profundamente a ação intelectual desses indivíduos não se resumiu
apenas aos textos literários. Para além da conhecida crítica de Lorenzo
Valla à Doação de Constantino, vários humanistas se dedicaram aos
textos de outras naturezas, como os científicos da Antiguidade, tal qual
Poggio Bracciolini, que trouxe de Constantinopla uma cópia do De
rerum naturae de Lucrécio. Tais posturas são consequência direta de
um dos motes principais desses indivíduos, a busca pela vita activa.
Em oposição à vida contemplativa proposta pela escolástica, os
humanistas defendiam que o conhecimento sem aplicação prática para
a transformação da vida não teria sentido. Vários desses sujeitos se

505
Francisco de Paula Souza de Mendonça Júnior

dedicaram a produzir e publicar textos que discutiram temas indo da


metalurgia à destilação, além de editar textos antigos voltados a
necessidades modernas. Tal esforço construiu uma relação renovada
entre a filosofia e as artes mecânicas, buscando claramente reabilitar a
última. Isso se daria dando uma dimensão filosófica à ação prática
(EAMON, 2007, p. 404).
Lembremos que a partir do século XVI são redescobertos pela
Europa um grande número de textos da Antiguidade tratando de
matemática, astronomia, medicina e história natural. Esse movimento
foi profundamente impactado pela disseminação do aprendizado do
grego pela Europa, permitindo não apenas a leitura como também a
tradução dos textos da Grécia Clássica, como o Almagesto de
Ptolomeu, que versava sobre matemática e astronomia. William
Eamon (2007, p. 405) insistiu que quase todos os astrônomos
renascentistas tiveram tal obra como base de seus trabalhos, incluindo
Copérnico.
Associado a isso, ainda tem a relação dos humanistas com a
nascente imprensa. Rapidamente, estes sujeitos perceberam a
potencialidade do texto impresso e das relações que se estabeleciam a
partir dela. Logo, se associaram com editores e tradutores, pois viram
que a impressão possibilitava uma divulgação dos textos científicos
até então impossível. Com isso, conseguiam fazer tais textos circular
não apenas entre os seus pares, mas também para indivíduos que
formavam um público distinto do convencional. E, mais do que isso, a
impressão destes textos tornava a sua recuperação permanente,

506
“Essa é a mais perfeita e principal ciência, a mais sagrada e sublime
espécie de filosofia”

solidificando uma base a partir da qual os filósofos naturais poderiam,


inclusive, questionar a autoridade antiga (EAMON, 2007, p. 405).
A percepção de mundo que embalava esse pensamento
científico tinha como influências centrais a filosofia natural de
Aristóteles e a astronomia matemática de Ptolomeu. Isso implicava na
compreensão de que o universo seria uma grande esfera em cujo
centro estaria imóvel a Terra, em torno da qual os demais corpos
celestes circulavam em uma órbita uniforme. Assim, seria possível
prever o movimento destes corpos e suas consequências, justificando a
centralidade da astrologia e da astronomia. Essa mesma organização
cósmica também gerava uma hierarquia dos elementos: terra, ar, fogo
e água, sendo estes os elementos que formava todas as coisas e lhes
dava propriedades físicas. Em verdade, todos os seres e coisas do
mundo criado seriam uma mistura destes elementos, o que faria o
movimento cósmico ser profundamente devedor das relações de
simpatia e antipatia das qualidades dos elementos do mundo
(EAMON, 2007, p. 406).
A base aristotélica dessa ciência é abalada pelo reavivamento
neoplatônico que tem no hermetismo um dos seus grandes motores. A
tradução de Marsilio Ficino, feita por encomenda de Cosimo de
Médicis, do Corpus Hermeticum reabilitou a Hermetica no
pensamento europeu dos séculos XV e XVI e impactou
profundamente a compreensão do mundo e do papel do ser humano no
cosmos (EAMON, 2007, p. 407). Frances Yates foi a primeira

507
Francisco de Paula Souza de Mendonça Júnior

historiadora a perceber esse impacto, apesar de ter superlativizado a


importância do hermetismo para a formação da ciência moderna2.
A mensagem hermética3 recolocava o ser humano no centro da
criação do cosmos, isso porque ele passava a ser visto como um
possível operador das qualidades ocultas presentes em toda a natureza.
Assim, a ideia de que tudo possuiria virtudes secretas regidas por
relações de simpatia e antipatia, fruto das influências dos astros sobre
o mundo sublunar, não apenas poria o cosmos em movimento como
também tornaria o ser humano um deus em potencial, capaz de
realizar prodígios.
Falando em prodígios, o Renascimento também foi movido
pela curiosidade. Sublinhemos que nos referimos ao período das
navegações, tendo a chegada de Colombo nas Índias Ocidentais, em
1492, sido um ponto de inflexão na busca pelo novo. As viagens
trouxeram uma torrente de novos espécimes animais e vegetais, bem
como proporcionou o contato com novos povos e culturas, o que
implicou em uma mudança na forma como o mundo deveria ser
experimentado e explorado. Além disso, os textos clássicos foram
postos na berlinda: as novidades que se tornavam conhecidas então
estavam deles ausentes porque eles não tinham todas as respostas ou
porque os humanistas viviam uma era ímpar?

2 Uma crítica clássica a tese de Frances Yates pode ser vista em: Hanegraaff, Wouter
J. Beyond the Yates Paradigm: the Study of Western Esotericism Between
Counterculture and New Complexity. Aries, 2001, p. 5-37.
3 Uma síntese da mesma pode ser encontrada em Yates, Frances. Giordano Bruno e a
tradição Hermética. Ver capítulo II.

508
“Essa é a mais perfeita e principal ciência, a mais sagrada e sublime
espécie de filosofia”

Os Gabinetes de Curiosidades foram um exemplo dessa


mudança de comportamento em relação à natureza. De forma geral, se
tratava de uma justaposição de naturalia e artificialia, pretensamente
reunidos por meio de viagens por todo mundo conhecido, um conceito
em pleno alargamento. Ali havia espécimes animais e vegetais,
artefatos tidos como raros e exóticos, como gemas esculpidas.
Borrando os limites entre arte e natureza, o objetivo de tais coleções
eram demonstrar que havia muito a ser descoberto ainda no mundo,
implicando uma maior devoção à busca pelo novo (EAMON, 2007, p.
417).
Fruto da mesma ânsia foram os livros de segredo, como o
popular Secrets (1555), atribuído a Alessio Piemontese. Os textos de
Isabela Cortese e Giambattista della Porta mencionados anteriormente
podem ser classificados nessa categoria literária. Esses livros eram
organizados como coletâneas de segredos, sendo estes receitas de tipos
variados: remédios famosos, fabricação de perfumes e óleos, técnicas
de tingimento, metalurgia e também alquimia, entre outras coisas.
Havia todo um “mercado consumidor” de tais textos, fomentando o
surgimento de um circuito produtor e disseminador dessas obras.
Assim, tais livros eram encomendados a autores profissionais e
produzidos em certa quantidade, inclusive reformatando a mesma base
de informações veiculadas (RAY, 2015, p. 46-49). Sublinhe-se que o
plágio não é um conceito aplicado a esse momento da História
(BORCHARDT, 1986). Eles são demonstrativos de que o pensamento

509
Francisco de Paula Souza de Mendonça Júnior

científico de então compreendia que a natureza funcionava por meio


de um grande leque de mecânicas secretas, sendo a grande meta não
apenas compreender a natureza, mas desvelar tais mecanismos ocultos
e instrumentalizá-los.
Pensando que a natureza possuía uma dimensão secreta, e
profundamente relevante para compreendê-la e agir sobre ela, havia
igualmente o entendimento de que o mundo natural seria metafórico e
simbólico. Os naturalistas renascentistas acreditavam que para
compreender o mundo seria preciso acessar toda essa dimensão
simbólica. Não bastava apenas conhecer um pavão, como aponta
Eamon (2007, p. 418), mas saber o significado de seu nome, suas
associações proverbiais, suas simbolizações históricas e mitológicas,
bem como as relações de simpatia e antipatia a que se ligava. Tal visão
emblemática do mundo somente cairia em desuso com a filosofia
baconiana e a ampliação do mundo conhecido.
Ainda havia a crença nas assinaturas conforme a qual as
qualidades ocultas de uma coisa são explícitas em sua aparência de
alguma forma. Essa seria a estratégia do Criador para que o ser
humano fosse capaz de descobrir as qualidades ocultas das coisas,
conforme Sua vontade. Essa correlação seria resultado da ação do
influxus celestial sobre o mundo sublunar, assim, a natureza se
entrelaçava ainda mais com o plano dos astros. Dessa forma, a
doutrina das assinaturas defendia a crença em poderes ocultos por
natureza, mas que também seriam manifestos por meio de sua
aparência (DAWES, 2013, p. 43-44)

510
“Essa é a mais perfeita e principal ciência, a mais sagrada e sublime
espécie de filosofia”

O pensamento científico renascentista buscou por uma


compreensão ativa do mundo, ou seja, por maneiras de não apenas
entender a natureza, mas, principalmente de atuar sobre ela. Devemos
pensá-la em uma chave operativa, não contemplativa, bem distinta da
alternativa escolástica. Discutamos agora as relações entre o
pensamento científico e o pensamento mágico nos Renascimentos dos
séculos XV e XVI. Comecemos compreendendo o que era a filosofia
natural e qual seu papel nessa relação empírica com o mundo natural.
De forma objetiva, podemos entender a filosofia natural como
um esforço de compreender a natureza através de observação e
empirismo. Tal ramo filosófico não foi uma invenção dos humanistas,
sendo mais um dos elementos da Antiguidade recuperado e
reapropriado por eles. Os gregos antigos praticavam esse tipo de
filosofia, sendo um bom exemplo a obra platônica, conforme a qual o
cosmos era um organismo vivo, portador de uma alma que animaria
todo o universo. A filosofia natural praticada pelos humanistas pode
ser classificada como neoplatonista, pois perseguiria, principalmente,
essa força vital que daria movimento ao mundo natural.
Os humanistas, defensores de uma vida ativa, como dito
anteriormente, rejeitaram uma filosofia pautada pela busca do “mundo
das essências”. Para eles, o mundo deveria ser compreendido por meio
da observação e da experiência diretas, ou seja, o empirismo deveria
ser a ferramenta central dessa vida ativa. As repercussões dessa
postura foram bem amplas, atingindo vários campos do conhecimento.

511
Francisco de Paula Souza de Mendonça Júnior

Rejeitando a ideia da finitude cósmica, Giordano Bruno afirmou que o


universo era infinito, com vários mundos como o nosso e que a Terra
não seria o centro do universo. Essa afirmação foi influenciada pelo
trabalho de Nicolau Copérnico, que defendeu o heliocentrismo e a
inifinitude do universo. Tal concepção seria melhor burilada por
Johannes Kepler que, influenciado também por Tycho Braher,
proporia na obra A Harmonia dos Mundos, um modelo astronômico
pautado pela ideia de música das esferas pitagóricas (DAMIÃO, 2018,
p. 37-38).
Consideremos que estas alterações na percepção do cosmos
tiveram repercussões não apenas na astronomia, mas igualmente na
astrologia. Era habitual que consultas astrológicas fossem base para
decisões importantes e procuradas por mercadores, humanistas,
príncipes e mesmo papas. Johannes Kepler praticou astrologia na corte
do imperador do Sacro Império Romano-Germânico, Rudolf II, e fez
horóscopos para o conde Albrecht von Wallenstein. A rainha Elizabeth
I apenas escolheu o dia da sua coroação após John Dee apontar qual
seria o dia mais propício para tal ato (EAMON, 2007, p. 409). Popular
nas cortes, a astrologia igualmente era importante para o restante da
população, impulsionando a publicação de prognósticos em
almanaques baratos. Um dos temas mais recorrentes era o do novo
dilúvio, previsto por inúmeros astrólogos para ocorrer entre o fim do
século XV e o começo do século XVI.
Para esse esforço de compreensão da natureza, velhas
ferramentas foram reabilitadas. Uma matemática mais realista, não

512
“Essa é a mais perfeita e principal ciência, a mais sagrada e sublime
espécie de filosofia”

mais apenas hipotética e abstrata, permitia tornar o universo


mensurável, portanto, controlado. Através dos cálculos matemáticos, o
cosmo seria demonstrado tal como ele seria, não como se especularia
que fosse. Ela permitia universalidade e previsibilidade (Damião,
2018, p. 38). Nesse mesmo sentido, surgiram várias obras de
anatomia, fisiologia e botânica, pois elas permitiram a compreensão da
realidade natural. Mais do que isso, elas seriam basilares para duas
práticas fundamentais para a filosofia natural renascentista: a
descrição dos fatos e dos movimentos naturais e a prescrição dos
mesmos, ou seja, a capacidade de apresentar soluções aos problemas.
Uma obra significativa dessa postura foi a do italiano André Vesálio,
Humani Corpus Fabrica (1543), que tratava do funcionamento
fisiológico do corpo humano. Mas, era preciso ir um pouco mais além
(DAMIÃO, 2018, p. 41).
Liderando a fundação de uma nova filosofia natural,
Bernardino Telesio (1509-1580) defendeu que a observação da
natureza, sem a intervenção da razão ou da autoridade, produziria o
verdadeiro conhecimento. Assim, seria possível perceber que a
natureza era um ente vivo e senciente. Portanto, o desafio dos
naturalistas seria compreender os ritmos e movimentos de um cosmos
vivo, bem como as forças que o animavam. Girolamo Cardano se
lançou no desafio de catalogar todas essas forças e correlações,
marcadamente em seus De subtilitate (1550) e De rerum varietate
(1557), esforços enciclopédicos sobre filosofia natural. Cardano

513
Francisco de Paula Souza de Mendonça Júnior

acreditava estar vivendo em uma época de maravilhas, o que seria


visto nas grandes obras naturais como também nos menores detalhes
da natureza (EAMON, 2007, p. 420).
Havia alguns humanistas mais radicais, que consideravam que
isso ainda seria pouco. Posturas como a acima descrita ainda não seria
o suficiente para abandonar o mundo das essências. Esse esforço seria
por demais livresco, demasiado teórico. Era preciso ler o livro da
natureza de forma direta, ao invés de livros velhos com novos olhares.
Um dos grandes nomes dessa postura mais radical foi o suíço
Philippus Aureolus Theophrastus Bombastus von Hohenheim
(1493-1541). Esse médico, físico, químico, alquimista e astrólogo,
ficou conhecido como Paracelso, nome que já é em si muito
significativo, pois significa “Além de Celso”, sendo este um famoso
médico romano. Paracelso afirmava que os remédios oriundos do
saber puramente livresco seriam mais danosos do que sanativos, pois
não partiam do mais essencial, ou seja, do corpo como ente vivo.
Assim, a única anatomia útil seria a anatomia viva, ou seja, aquela que
teria como fonte de análise e reflexão o corpo vivo, em pleno
funcionamento. Além disso, ele também considerava que as doenças
eram situações espirituais com repercussões físicas, logo, sua cura
somente seria possível ao tratar-se a causa espiritual para sanar o
efeito físico. Contudo, essas posturas eram calcadas nos textos
clássicos, ou seja, se mantinha o padrão humanista de cobrir da
autoridade antiga um discurso moderno (EAMON, 2007, p. 413-414).

514
“Essa é a mais perfeita e principal ciência, a mais sagrada e sublime
espécie de filosofia”

A defesa paracelsiana de um conhecimento construído a partir


e em função de uma natureza viva, reflete com clareza relação entre a
filosofia natural e a magia natural. Enquanto a filosofia natural se
dedicava a compreender, mensurar e explicar uma natureza viva e em
movimento, vários indivíduos consideraram que ela era incapaz de
intervir na natureza. Para isso, era preciso ir além, buscar uma
ferramenta adequada a tal ato. Esse papel estaria reservado para a
magia, especificamente a de tipo natural. Quentin Skinner (1996, p.
119) aponta que o magus era o sujeito capaz de transformar o mundo
físico. E, o faria ao conciliar o conhecimento (filosofia natural) e
prática (magia natural) capazes de domar a Fortuna.
Não é possível avançar nessa reflexão sem inquirir como os
documentos que elencamos como fontes principais definiam tanto o
magus quanto a magia. Agrippa terminou sua obra entre 1509 e 1510,
ainda que a primeira versão impressa date de 1530. Em seu De
Occulta Philosophia, ele pretendeu apresentar todos os meandros da
magia, qual sua natureza e quem estaria apto a performá-la. Agrippa,
ao descrever o magus, o insere naquilo que Daniel P. Walker (2000, p.
23) descreveu como prisca teologia, ou seja, o discurso de que a
revelação de uma verdade universal fora feita desde o princípio dos
tempos, sendo absorvida de forma incompleta, contudo vital para sua
manifestação completa: a mensagem do Cristo. Agrippa (1550, p. 4)
enumerou como nomes dessa linhagem de sábios Zalmoxis, Zoroastro,
Eudóxio, Mercúrio Trismegistos, Porfírio, Jâmblico, Plotino, Proclo,

515
Francisco de Paula Souza de Mendonça Júnior

Dardano, Orfeu, Apolônio de Tiana, Demócrito, Pitágoras, Platão,


entre outros. Podemos ver listas semelhantes no Magia Naturalis de
Giambattista della Porta, publicado em 1558, e no De Magia ditada
por Bruno a seu discípulo Jerônimo Besler entre 1590 e 1591. Bruno
assim se pronunciou sobre a questão:
Antes de se tratar da Magia, como de qualquer outro
assunto, deve-se da palavra subdividir os seus sentidos:
pois existem tantos sentidos da palavra magia quanto
tipos de magos. Mago significou, inicialmente, sábio:
tais eram os trimegistos entre os egípcios, os druidas na
Gália, os gimnosofistas na Índia, os cabalistas entre os
hebreus, os magos entre os persas (depois de Zoroastro),
os sofistas entre os gregos, os sábios entre os romanos
(GIORDANO BRUNO, 1590-1591 (2008), p. 29).

Essa imagem do magus como um sábio é uma representação


constante nos discursos renascentistas a respeito do tema. Outra
questão que não conheceu grande variação é a presença de Zoroastro,
Platão e Hermes ou Mercúrio Trismegistos nessa lista dos primevos
teólogos. Isso tornava o magus um sábio tributário da dualidade
zoroastrista (e oriental), bem como da “cadeia de ouro” platônica e da
relação intrínseca entre os mundos supralunares e sublunares da
cosmogonia hermética.
Cornelius Agrippa (1550, p. 1) descreveu o magus como
alguém capaz de compreender as três dimensões que compõem o
mundo: elementar, celestial e intelectual, bem como as relações entre
tais níveis. Além disso, o verdadeiro sábio que é o magus tem
compreensão de que seria possível se alcançar o Criador ou Causa
Primeira ao navegar por meio dos diversos níveis da Natureza. Para
tanto, o magus deveria estar pronto para lidar com todos os recursos

516
“Essa é a mais perfeita e principal ciência, a mais sagrada e sublime
espécie de filosofia”

disponíveis, tais como plantas, pedras, metais, animais, estrelas e


mesmo anjos. A grande ferramenta para realizar essa proeza seria a
Filosofia Natural:
Assim, quem desejar se primar nessa faculdade, se não
for versado em Filosofia natural4, pela qual se descobre
a qualidade das coisas e na qual se encontram as
propriedades ocultas de todo ser, e se não for versado
em Matemática e nos aspectos e cifras das estrelas,
sobre as quais depende a sublime virtude e a
propriedade de tudo; e se não for versado em Teologia,
na qual se manifestam as substâncias imateriais que
dispensam e ministram todas as coisas, não será capaz
de entender a racionalidade da Magia. Pois nenhuma
obra é feita por mera magia, tampouco é meramente
mágica, sem abranger essas faculdades (Heinrich
Cornelius Agrippa von Nettesheim, 1550, p. 5).5

Ora, para Agrippa, então, o magus é um sujeito capaz de


conjugar o conhecimento da lógica que move a Natureza – a Filosofia
Natural –, a astrologia, a matemática e a teologia. Este autor colocou
como fundamental para a atuação mágica o conhecimento do Deus
verdadeiro, sendo este o cristão, pois Ele seria a Causa Primeira,
motor de todos os movimentos de simpatia e antipatia que dariam
dinâmica ao mundo natural, porque Ele é o Criador de tudo, e tudo
Nele está contido. As Causas Segundas não teriam potência natural –

4 Optou-se por essa tradução, pois Physica se refere nesse caso à filosofia natural e
uma tradução literal poderia induzir a interpretações anacrônicas.
5 Quicunq; igitur nuc in hac facultate studere affectat, si nõ fuerit eruditus in
Physica, in qua declarantur qualitates rerum, & in qua reperiuntur proprietates
occultae cuiuslibet entis, & si non fuerit opifex mathematicae, & in aspectibus, &
figuris stelarum, ex quibus cuiuslibet rei sublimis virtus & proprietas dependet: & si
non fuerit doctus in teologia, ubi manifestatur substantiae immateriales, quae
dispensant & administrant omnia, nõ poterit intelligere Magiae rationabilitatem:
nullum enim opus ab ipsa Magia perfectum extat, nec est aliquod opus vere
magicum, quod has tres facultates non complectatur.

517
Francisco de Paula Souza de Mendonça Júnior

ou seja, os planetas e seus anjos ou demônios planetários –, elas nada


mais seriam do que retransmissoras refratárias da potência primeira
(HEINRICH CORNELIUS AGRIPPA VON NETTESHEIM, 1550, p.
360). Agrippa insiste que para praticar a boa magia, o sujeito deve
estar livre das afeições carnais, das paixões materiais. Também é
necessário que se mantenha puro, seja por inflexão astrológica natural
ou pelo cuidado de não entrar em contato com agentes poluentes,
como a mulher viúva ou menstruada, a lepra ou a carcaça morta
(HEINRICH CORNELIUS AGRIPPA VON NETTESHEIM, 1550, p.
352).
O magus, conforme Agrippa, é esse sujeito capaz de conjugar
saberes diversos, tudo arbitrado pela concepção de que o ato mágico
só é possível pela mediação de Deus. Giambattista della Porta
apresentou uma imagem semelhante, contudo, mais conectada aos
prodígios divinos por meios da ação na Natureza do que por meio da
ação direta da divindade. Della Porta definiu o magus da seguinte
forma.
Uma tal personagem que pesquisa as causas dos
começos e os primeiros elementos das coisas, e expõem
aos olhos de todo as riquezas maravilhosas daí
decorrentes; ele indica a ligação reciproca e a conjunção
dos elementos, donde provem a fonte das causas e
donde deriva seu fim ou sua morte (GIAMBATTISTA
DELLA PORTA, 1562, p. 2).6

6 Iure quidem primùm qui tanta debet maiestate pollere, exactum, et consummatum
in Philosophia, rerumq´naturae disetissimum optarem, causas enim principia, et
rerum elementa rimatur, mirificas earum dotes depromit, mutuum elementorum
nexum, combinationem, unde mixtorum scaturigo et interitus.

518
“Essa é a mais perfeita e principal ciência, a mais sagrada e sublime
espécie de filosofia”

Ao definir os interesses do magus, Della Porta (1562, p. 2)


afirmou que este teria como objeto de estudo as marés do mar irritado,
os cegos movimentos que agridem a terra, bem como o motor da ação
dos animais do ar e da terra. Seria igualmente de seu interesse a
natureza dos metais, bem como a composição de misturas benéficas ao
ser humano, levando-o a ser um estudioso das plantas locais ou
estrangeiras. Assim como Agrippa, della Porta insistiu na ideia de que
o magus deveria ser sabedor de matemática e de astrologia, as
ferramentas para conhecer os movimentos dos céus e a influência das
estrelas, bem como sua influência no plano sublunar. Concluindo,
Della Porta (1562, p. 2) apontou que não haveria nada mais
problemático que se ignorar a ferramentas por meio da quais se opera.
Della Porta (1562, p. 2) via o magus como um artesão da
Natureza (Sit Magus naturae dono artifex), não como seu mestre.
Assim, ele seria um operário, um trabalhador manual por natureza, e
ao mesmo tempo um sábio, pois se ele fosse um sábio sem artifício ou
um artesão ignorante, jamais atingiria o objetivo da magia natural,
uma vez que esta disciplina exigiria a habilidade do artesão e a ciência
do sábio.
Tanto o homem de fé de Agrippa e Bruno, como o “artesão da
Natureza” de della Porta têm em comum a ideia de que o magus é
capaz de realizar prodígios não por um poder próprio, mas pela
capacidade de colocar os movimentos compelidos pela Causa Primeira
nas relações de simpatia que moveriam mundo natural a favor de sua

519
Francisco de Paula Souza de Mendonça Júnior

agenda secreta. Dito isso, para completar nosso panorama, não basta
definir o magus, é central conceituar igualmente a magia.
Giambattista della Porta (1562, p. 1) definiu a magia de forma
breve, ao afirmar que essa magia, dotada de uma considerável
potência, abunda em mistérios ocultos, e faz conhecer as coisas que
repousam no seio da natureza, com suas qualidades e suas
propriedades: é o ápice de toda a filosofia. Inclusive, na opinião dele,
a magia é escrava da Natureza, tal qual o magus é seu servo. Giordano
Bruno e Cornelius Agrippa são mais detalhistas ao definir a magia. Na
verdade, ambos construíram verdadeiras “taxonomias” mágicas.
Comecemos por Giordano Bruno.
A primeira categoria foi a magia dos prestígios, cujas ações
pareceriam obras de uma inteligência superior, causadora de
admiração em quem a presenciasse. A magia natural veio na
sequência, ou seja, a arte por meio da qual se agiriam as antipatias e
simpatias presentes em toda a Criação – ou o espírito das coisas, em
termos brunianos – para se atuar. A magia descrita por della Porta seria
um misto do primeiro tipo com esse último. A filosofia oculta ou
magia matemática se valeria de palavras, cantos, números, imagens,
selos, caracteres ou letras para atuar. Ela estaria, conforme Bruno, em
um estágio intermediário entre a magia natural e a teúrgica, sendo
muito tributária da cabala. Avançando nessa direção, a próxima
categoria mágica apresentada foi a própria teurgia. Ela utilizaria
fumigações, preces, consagrações, cerimônias, sacrifícios e ritos a fim

520
“Essa é a mais perfeita e principal ciência, a mais sagrada e sublime
espécie de filosofia”

de atrair espíritos e potências superiores ou exteriores ao magus.


Nesse ponto, Bruno fala de um tipo de operação mágica que teria
como intuito permitir ao operador se tornar “vaso desse espírito” ou
mesmo comandar os demônios inferiores através dos demônios
superiores. Tal ação seria feita por meio da sedução e da lisonja, como
também ao tornar tal entidade vassala do magus por meio de
conjurações ou adjurações. Depois da teurgia, Bruno descreveu a
necromancia como a comunicação não apenas com os mortos, mas
com demônios e heróis do passado, por meio de adjurações e
invocações, para destes receber oráculos das coisas ausentes e das
coisas futuras. A próxima categoria mágica comunga da clássica ideia
de “magia por contágio”, apresentada por Frazer e refinada por Mauss.
Bruno descreveu um tipo de ato mágico que usa qualquer elemento
que tenha mantido contato com o objeto da ação mágica (vestuário,
objetos, excrementos, secreções) para reproduzir no paciente da
cerimônia aquilo que o agente efetua em tal elemento. Curiosamente,
Bruno repetiu a concepção de della Porta de que a magia e a medicina
atuam da mesma maneira, ou seja, a cura mágica e a médica se dão
pela ação de semelhante sobre semelhante, onde se busca gerar efeito
pela apresentação de seu oposto. Aqui, Bruno falou claramente da
potencialidade maléfica da magia, dado que a mesma ação que pode
curar pode matar. As técnicas de adivinhação foram o próximo tópico
abordado. Bruno as ligou aos quatro elementos naturais, tratando
então da piromancia, hidromancia, geomancia e aeromancia. Assim, os

521
Francisco de Paula Souza de Mendonça Júnior

fenômenos físicos ou os elementos naturais se tornavam os


instrumentos da divinação. O último tipo mágico seria o daqueles que
realizariam predições por meio dos nomes divinos, cálculos e análise
de conjunções (GIORDANO BRUNO, 1590-1591 (2008), p. 29-33).
Contudo, essa extensa taxonomia dos atos mágicos não foi
exclusividade da obra bruniana. Podemos considerar que Bruno se
inspirou em Agrippa ao realizar sua classificação das categorias
mágicas, pois tal se encontra também distribuída pelos três livros do
De Occulta Philosophia, escrita aproximadamente oitenta anos antes.
Agrippa (HEINRICH CORNELIUS AGRIPPA VON NETTESHEIM,
1550, p. 80), também apresentou uma definição acerca da magia:
A Magia é uma faculdade de maravilhosa virtude, cheia
dos mais nobres mistérios, contendo a mais profunda
contemplação das coisas mais secretas junto à natureza,
ao poder, à qualidade, à substância e às virtudes delas,
bem como o conhecimento de toda a natureza, e elas nos
instrui acerca da diferença e da concordância das coisas
entre si, produzindo assim maravilhosos efeitos, unindo
as virtudes das coisas pela da aplicação delas em uma
em relação a outra, unindo-as e tecendo-as bem
próximas por meio dos poderes e da virtudes dos corpos
superiores. Essa é a mais perfeita e principal ciência, a
mais sagrada e sublime espécie de filosofia e, por fim, a
mais absoluta perfeição de toda a excelentíssima
filosofia.7

7Magica facultas potestatis plurimae composita, altissimis plena mysteriis,


profundissimam rerum secretissimarum contemplationem, naturam, potentiam,
qualitatem, substantiam et uirtutem totiusque; naturae cognitionem complectitur et
quomodo res inter se differunt et quomodo conueniunt nos instruit, hinc mirabiles
effectus suos producens, uniendo uirtutes rerum per applicationem earum ad
inuicem et ad sua passa congruentia inferiora, superiorum dotibus ac uirtutibus
passim copulans atque maritans. Haec prestantissima summaque scientia, haec
altior sanctiorque philosophia haec denique totius nobilissimae filosofia
consummatio.

522
“Essa é a mais perfeita e principal ciência, a mais sagrada e sublime
espécie de filosofia”

O princípio mais amplo que alicerça as concepções de magia


apresentadas por Bruno, dela Porta e Agrippa foi o das qualidades
naturais do cosmos. Essa é uma ideia oriunda concepção cosmogônica
hermetista, conforme a qual o Criador ou Causa Primeira seria a força
motriz da criação, as Causas Segundas – planetas e seus anjos ou
demônios planetários – criariam por refração da potência original,
fazendo com que suas criações possuíssem dois graus de afinidade: de
atração à causa primeira e a causa segunda que lhe originou e de
repulsa às demais causas segundas. É a isso que della Porta se referia
quando falou da “cadeia de ouro” de Platão. Eis a ideia de “universo
vivo” à qual Antoine Faivre (1994, p. 12-14) afirma como um dos
elementos centrais do esoterismo renascentista. Agrippa classificou
tais virtudes naturais em elementares, tais como o amadurecer, o
queimar, o evaporar e o digerir (HEINRICH CORNELIUS AGRIPPA
VON NETTESHEIM, 1550, p. 22) e ocultas, pois estas não seriam
perceptíveis de forma direta, mas apenas pelos efeitos causados, como
os vapores nocivos dos minerais, a atração dos metais, a resistência
das salamandras ao fogo e a ressurreição da fênix.
Della Porta tratou das qualidades manifestas e das ocultas da
substância natural, estas compreendidas da mesma maneira por
Agrippa. Contudo, della Porta (1562, p. 9) tem uma concepção mais
"materialista" do que seria a substância, como podemos ver a seguir.

523
Francisco de Paula Souza de Mendonça Júnior

chamo substância natural (pois chamo de substancia,


aquilo que é compacto de ambos), isso que tem ligação
de uma e de outra: a matéria e a forma, como princípios
e começo de todo, e não rejeitemos as propriedades das
qualidades que, desde a origem, estavam ocultas nos
elementos.8
Mas, essa percepção da constituição da substância que forma o
mundo criado não exclui a ideia de Deus como Causa Primeira. Nas
palavras de Della Porta (1562, p. 4-5):
Daqui que essa virtude que é chamada propriedade da
coisa, não vem do temperamento, mas da forma, como a
mais excelente de todas, depois do movimento supremo,
e depois da inteligência, e finalmente do próprio Deus,
de sorte que o mesmo nascimento que está na forma,
aparece nas propriedades.9

Isso implica na aceitação, por parte de della Porta (1562, p. 5),


do esquema já descrito acima, da criação do mundo pela ação da
Causa Primeira, intermediada pelas Causas Segundas, tornando todo o
universo interconectado, o que justificaria a influência dos astros na
vida humana. Ideia com a qual estão de acordo tanto Agrippa quanto
Bruno. Portanto, sejam mais ou menos materialistas, as concepções de
magia de todas essas personagens concordam que a influência divina –
a Causa Primeira – é primeiro intermediada pelas Causas Segundas,
fazendo com que ela sofra uma difração, resultando que cada elemento
absorva tal força de forma distinta, gerando as relações de simpática

8 Cuiscunque naturalis substantie (nam substantiam voco id, quod est ex utraque
compactum) compositioni matéria, formaque uti principia eueniunt: nec qualitatum
functiones eiicimus, qua ex primordiis in elementis latitabant.
9 Unde vis ea, quae rei dicitur proprietas, non à temperamento, seda b ipsa euenit
loco: à suprema igitur vertigine, proximè, huic ab intelligentis illis, denique ab ipso
Deo, sic quae formae eadem est, & proprietarum origo.

524
“Essa é a mais perfeita e principal ciência, a mais sagrada e sublime
espécie de filosofia”

que moveriam o universo. Em última instância, o magus seria o atento


artesão capaz de redirecionar causas naturais ao manipular as relações
entre as qualidades – ocultas ou não – que as originam.
Sobre essa conjunção de sábio e artesão, nenhuma disciplina
representaria isso melhor que a alquimia. A arte da transmutação
buscava uma transformação espiritual, com reflexos físicos,
possivelmente por isso teve tamanho impacto em figuras como
Paracelso. A busca pelo Elixir da vida eterna ou mesmo da Pedra
Filosofal seriam alegorias do que realmente era o objetivo: a
purificação espiritual do alquimista. A alquimia comungava da mesma
concepção de que o universo é um jogo de espelhos, onde cada parte
reflete o todo, cuja força motriz estaria pautada pelas relações
simpáticas entre as qualidades ocultas da matéria.
A aceitação da alquimia foi muito variada. O abade alemão
Johannes Trithemius (1518, p. 499), notoriamente envolvido com
magia, chamava a alquimia de casta meretriz, pois ela prometia tudo
aos seus amantes, não entregando nada e levando-os à ruína. Paracelso
não aceitava que houvesse eficácia em medicamentos produzidos por
vias outras que não as alquímicas. O rei Felipe II montou em El
Escorial um grande laboratório alquímico, bem como uma
reconhecida biblioteca de mesmo tema, onde patrocinava alquimistas
a fim de abastecer sua corte dos produtos dessa arte (BUBELLO,
2010). Os alquimistas foram várias vezes protegidos pelas coroas

525
Francisco de Paula Souza de Mendonça Júnior

europeias, seja pelo interesse nos elixires alquímicos ou pela promessa


de enriquecimento rápido pela transmutação de metais. O fato é,
conforme Eamon (2009, p. 408-409), que o laboratório alquímico se
tornou um símbolo do experimentalismo da filosofia natural.
Ainda que a obra de della Porta tenha se debruçado sobre
processos alquímicos, ela não era primordialmente dedicada a essa
arte. Caso contrário vê-se na obra atribuída a Isabella Cortese.
Personagem polêmica, sobre a qual não há consenso se existiu
realmente ou foi apenas uma persona literária, a obra de Cortese, cujo
nome é um possível anagrama de Secreto (RAY, 2015, p. 55), é
composta por quatro livros. No primeiro estão compiladas várias
receitas médicas, incluindo tratamento para praga, antídotos para
venenos e vários remédios contra a sífilis. No segundo, estão presentes
temas centrais da alquimia, como a produção de ouro, elixires e da
pedra filosofal. Contudo, ao contrário da enigmática alquimia de matiz
medieval, a alquimia proposta por Cortese era altamente pragmática e
apresentada de maneira acessível (ISABELA CORTESE, 1565, p. 19).
Ainda que não tenha se centrado em práticas alquímicas, o terceiro
livro apresentava os chamados “segredos maravilhosos” muito
populares à época, como a fabricação de espelhos, tingir couro e
removedores de manchas. Por fim, o quarto livro dedicou-se a
cosmética.

526
“Essa é a mais perfeita e principal ciência, a mais sagrada e sublime
espécie de filosofia”

Exemplar muito representativo de dois tipos de livro de


segredos, os de natureza alquímica e os que versavam sobre o
feminino, I secreti de la Signora Isabella Cortese... nos permite
afirmar que os segredos dos livros de segredo eram um tipo de saber
até bem conhecido naquele período, representativo de um esforço de
ampliação da disseminação de tais conhecimentos. Lembremos que
estes livros representavam um importante e lucrativo nicho das
incipientes redes livreiras (RAY, 2015, p. 47).
Na última etapa de nosso esforço, discutiremos os mecanismos
da racionalidade da magia renascentista, menos com a intenção de
mostrar que tais práticas seriam racionais e mais com o intuito de
demonstrar que seriam demonstrativos de estruturas de racionalidades
inerentes àquela sociedade. Para Gregory Dawes (2013, p. 33), uma
crença pode ser considerada racional se ela pode ser racionalmente
explicada a partir de um dado conjunto de crenças; formada por meios
confiáveis e resultado de processos coletivamente racionais. Dawes
(2013, p. 38-39) aponta que a racionalidade está no ato de formar ou
manter uma crença, não em seu conteúdo. Logo, a racionalidade é uma
característica de pessoas – ou instituições em alguns casos – mas não
das proposições em si. Ao invés de falar em crença racional, o mais
adequado seria discutir atos racionais de crença.
Assim, uma crença racionalmente defensável seria aquela que
se dá em um cenário de existência de recursos intelectuais em uma

527
Francisco de Paula Souza de Mendonça Júnior

cultura que a sustente. No caso da magia, a única coisa necessária é


um ambiente que permita a construção de um argumento que defenda
sua validez. Isso independendo do mesmo ser mobilizado para a
defesa da eficácia mágica. A existência disso dá credibilidade às
experiências em primeira mão da magia, bem como aos relatos de
operações mágicas. Explicaria ainda a sobrevivência da crença na
magia mesmo quando esta falha, independentemente da existência de
ceticismo em relação à magia, como havia no movimento
renascentista (DAWES, 2013, p. 40).
A crença renascentista na magia estava ancorada na ideia de
mecanismos nos quais se apoiava a confiança na sua eficácia, sendo
eles em número de cinco: influência celestial no mundo sublunar por
meio de seu influxus ou influentia; a ideia de que palavras e rituais, se
executados de forma adequada pelos indivíduos habilitados, tem a
capacidade de gerar efeito tangível, a vis imaginativa; a doutrina das
assinaturas; a ideia de que o corpo humano refletiria
microscopicamente as relações macroscópicas do universo; por fim, a
crença na eficácia da ação dos daemones ou demônios (DAWES,
2013, p. 40-46).
Para Dawes (2013, p. 49-50), a crença renascentista na magia
seria de tipo não-inferencial. Seriam, portanto, resultado de uma
percepção sensorial esse indivíduo, ou seja, esse testemunhou
fenômenos que foram compreendidos como resultado de operações

528
“Essa é a mais perfeita e principal ciência, a mais sagrada e sublime
espécie de filosofia”

mágicas, ainda que o autor defenda que as crenças mágicas


renascentistas seriam fruto de cognição inconsciente, como aquelas
que nascem da memória. Não cabe avaliar se tais crenças são
formadas racionalmente, pois por serem instantâneas não abririam
margem para racionalização. Já manter a crença nas mesmas, abre a
possibilidade de se questionar se tal atitude é racional. O autor aponta
que sim, pois acreditamos em nossos sentidos até que haja um motivo,
racional, para pô-los em dúvida.
Haveria duas razões para pôr uma “crença básica” na magia em
dúvida: uma a posteriori, derivando do entendimento de que os atos
mágicos repetidamente falham em obter sucesso, logo, não estaria
observando um fato magico, mas algum tipo de ilusão; outro a priori,
um ato mágico bem sucedido é tão improvável que, certamente, foi
presenciado um fenômeno não mágico. Dawes aponta que o problema
dessa dúvida a posteriori é que a magia funcionava, em alguns casos.
As pessoas morriam, se curavam ou se apaixonavam após a realização
do ato mágico. Como não havia preocupação – ao menos generalizada
– em separar o ato ritual mágico dos seus acompanhamentos
(remédios tradicionais, causas naturais ou dietas), o resultado final era
a associação do ato mágico com algum nível de eficácia. Sobre a
dúvida a priori, ela era uma possibilidade complicada no
Renascimento, pois havia um bem disseminado conjunto de “crenças
de fundo” que as tornava perceptíveis como eficazes. Como havia

529
Francisco de Paula Souza de Mendonça Júnior

ambas as possibilidades, crença e ceticismo, não se pode dizer qual


das duas soluções seria a mais racional (DAWES, 2013, p. 50-51)
Junto da crença por inferência e da crença por experiência,
ainda haveria a categoria da crença por testemunho. Um exemplo é a
crença em predicados científicos. A maior parte das pessoas acredita
na ciência não por ser particularmente capaz de reproduzir os
raciocínios por detrás de um dado predicado científico, mas por
acreditar no testemunho de sujeitos tidos como habilitados para julgar
a sua credibilidade (autoridades). Tal crença não é irracional. De
acordo com Dawes, a crença por testemunho parece ter pautado a
confiança renascentista na magia. Isso porque havia um amplo
conjunto de documentos que forneciam tal alicerce de crença. Obras
como o Corpus Hermeticum, atribuídas a aurora dos tempos, estavam
inseridas em uma linhagem de autoridade que as cobria de
credibilidade. Vários magi renascentistas, como Agrippa, se valeram
desse expediente para obter validação (DAWES, 2013, p. 51-52)
Feitas essas considerações, retornamos a nossa questão
principal, discutir as relações entre magia e ciência no Rinascimento.
Um dos primeiros elementos a ser ponderado é como tais sujeitos que
discutimos viam essa relação. Os engenheiros se viam como
semelhantes aos magi, capazes de alterar e direcionar a natureza para
servir aos interesses humanos. Assim, a habilidade técnica (ingegno)
era semelhante à potência mágica no esforço de criação de maravilhas.

530
“Essa é a mais perfeita e principal ciência, a mais sagrada e sublime
espécie de filosofia”

Ambas tinham como objetivo compreender e direcionar as relações


simpáticas que moviam o mundo, a fim de energizar seus próprios
projetos (DAWES, 2013, p. 35). Por outro lado, vimos que com
frequência, as definições renascentistas evocam-na como uma
scientia. Pico dela Mirandola definiu a magia como a parte prática da
ciência natural e Giambattista dela Porta definiu magia a partir de uma
complexa mistura de poderes ocultos e produção de híbridos botânicos
e animais.
E lembremos que a crença na magia era um recurso racional
por parte dos indivíduos envolvidos com ela. Uma das provas da
racionalidade da magia renascentista é ela ter sido alvo de crença e
ceticismo, ambas pautadas por processos de racionalização
semelhantes, porém com objetivos distintos. Não bastava negar ou
defender a eficácia do ato mágico por si, era preciso apontar as bases
de seu sucesso ou fracasso.
De acordo com o Dicionário Gaffiot, Scientia é um
conhecimento. E é esse o ponto importante. O que importava para os
humanistas, no geral, era a capacidade das ferramentas de perceber,
interpretar e domar o mundo natural do que a natureza delas. Não é
por acaso que vimos que várias personagens transitaram por diversas
áreas do saber daquela época. Mineralogia, física, matemática,
astronomia, astrologia, medicina, alquimia, música e outras são os
instrumentos por meios dos quais estes indivíduos buscam atingir dois

531
Francisco de Paula Souza de Mendonça Júnior

ideais entrelaçados: viver uma vida ativa e construir uma Virtù capaz
de domar a Fortuna. Na busca por esse esforço duplo, muitos deles
viram a magia como a scientia que une todas as scientiae, ou seja, a
ferramenta perfeita para tornar a filosofia natural um instrumento para
a aventura suprema de desbravar e atuar empiricamente em um mundo
repleto de maravilhas.

Referências

Documentação
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miraculis rerum naturalium libri IIII. Antuerpiae: In aedibus Ioannis
Steelsii, 1562.
GIORDANO BRUNO. Tratado da magia. São Paulo: Martins Fontes:
2008.
HEINRICH CORNELIUS AGRIPPA VON NETTESHEIM. De
occulta philosphia, Libri III. Lugduni: apud Godefridum & Marcellu,
fratres, 1550.
ISABELLA CORTESE. I secreti de Isabella Cortese ne'quali si
contengono cose minerali, medicinali, arteficiose, & alchimiche, &
molte de l'arte profumatoria, appartenenti a ogni gran Signora. Con
altri bellissimi Secreti aggiunti. Venetia: Apresso Giovanni Bariletto,
1565.
JOHANNES TRITHEMIUS. Polygraphiae libri sex, Ioannis Trithemii
Abbatis Peapolitani, quondam Spanheimensis, ad Maximilianum
Caesarem. Oppenheim: Haselberg, 1518.

Bibliografia

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literatura. Valencia: Publicacions de la Universitat de València, 2016.
BORCHARDT, Frank L. Forgery, false atributtion, and fiction: early
modern german history and literature. Res Publica Litterarum, IX, p.
27-35, 1986.

532
“Essa é a mais perfeita e principal ciência, a mais sagrada e sublime
espécie de filosofia”

BUBELLO, Juan Pablo. Esoterismo y política de Felipe II en la


España del Siglo de Oro. -Reinterpretando al círculo esotérico filipino
en El Escorial: Juan de Herrera, Giovanni Vicenzo Forte, Diego de
Santiago, Richard Stanihurst. Veredas da História, III, 2, 2010.
DAMIÃO, Abraão Pustrelo. O Renascimento e as origens da ciência
moderna: Interfaces históricas e epistemológicas. História da ciência e
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DAWES, Gregory W. The Rationality of Renaissance Magic.
Parergon, v. 30, n. 2, p. 33-58, 2013.
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YATES, Frances Amelia. Giordano Bruno e a tradição hermética. São
Paulo: Cultrix, 1995.

533
O Catimbó Nordestino
Sandro Guimarães de Salles1

Introdução

Durante o século XVIII, surgem as primeiras referências a uma


bebida consumida por indígenas no Nordeste, em contextos religiosos,
denominada de jurema. Dois séculos depois, Rodrigues de Carvalho
(1928), em seu Cancioneiro do Norte, publicado pela primeira vez em
1903, referindo-se às manifestações populares da Paraíba, faz um dos
primeiros registros, ainda que breve, sobre a prática da jurema em
contextos não indígenas. Nas décadas de 1930 e 1940, diversos
estudos realizados sobre a religiosidade popular na Paraíba
(ANDRADE 1983; FERNADES, 1938; BASTIDE, 1945) e no Rio
Grande do Norte (CASCUDO, 1978) descrevem a bebida no contexto
do chamado Catimbó, fenômeno religioso que consistia basicamente
em sessões de mesa/consulta, mantendo, além da jurema (bebida),
diversos elementos dos rituais indígenas. A maior parte das referências
ao Catimbó, bem como à prática da Jurema, até meado da década de
1970, refere-se ao Litoral Sul da Paraíba, mais precisamente ao
município de Alhandra. Ainda hoje, a presença da Jurema nos terreiros

1 Professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE/CAA). Pós-Doutorado


(PNPD) na área de Antropologia da Religião (CAPES/UFPE). Professor do
Programa de Pós-Graduação em Educação Contemporânea - UFPE/CAA e do
Programa de Pós-Graduação em Música (Música e Sociedade) - UFPE/CAC.
Coordenador do Laboratório de Antropologia, Arqueologia e Bem Viver (UFPE/
NCV). Coordena atualmente a Licenciatura Intercultural Indígena (UFPE).

534
O Catimbó Nordestino

afro-brasileiro do Recife, passando pela Mata Norte de Pernambuco,


até o Rio Grande do Norte (ASSUNÇÃO, 1999), apesar das
reinterpretações observadas em sua prática, é marcada por uma
memória mítica e ritual do Catimbó praticado em Alhandra (SALLES,
2010).
O presente texto é resultado de uma etnografia realizada entre
2000 e 2010, que teve como campo empírico diversos terreiros e casas
de Jurema, localizados no município de Alhandra e na Mata Norte de
Pernambuco. Nosso objetivo é discutir o Catimbó, uma das primeiras
manifestações da prática da Jurema em contextos não indígenas, e que
ainda se mantem como uma das principais referências no cenário das
religiões populares nordestina.
As referências à jurema em contextos indígenas, registradas
em dezenas de documentos no século XVIII, tornam-se exíguas a
partir do século XIX, acompanhando a invisibilização das
comunidades indígenas no Nordeste, com a política de integração e
assimilação desses povos. Nesse cenário, em áreas onde a assimilação
foi exitosa, como a Mata Norte de Pernambuco e o Litoral Sul da
Paraíba, a identidade indígena praticamente desaparece, como
resultado da extinção dos aldeamentos e de políticas como a Lei de
Terras de 1850. No entanto, a prática da Jurema se mantém, a partir de
um conjunto de crenças e rituais indígenas, sobretudo com a presença
das mesas de Catimbó.

535
Sandro Guimarães de Salles

A Jurema, cujo nome deriva de uma planta de igual nome,


consiste em um complexo semiótico e religioso, com origem nos
povos indígenas no Nordeste, fundamentado no culto a entidades
denominadas de mestres, caboclos ou reis. As imagens e os símbolos
presentes nesse complexo remetem a um lugar sagrado, descrito pelos
juremeiros como “reino encantado”, “encantos”, “cidades da Jurema”,
entre outros. A planta de cujas raízes ou cascas se produz a bebida
tradicionalmente consumida durante as sessões é o símbolo maior do
culto. É ela a “cidade” do mestre, sua “ciência”, simbolizando ao
mesmo tempo morte e renascimento.

Definindo o Catimbó

Inicialmente, gostaríamos de destacar dois dos muitos sentidos


que podem adquirir o termo Catimbó, sendo um mais específico e
outro mais genérico. O primeiro, largamente empregado na literatura
sobre o tema – desde os estudos pioneiros de Andrade (1983) e
Fernandes (1938), passando por Cascudo (1978), Bastide (1971),
Motta (2005) e Vandezande (1975) –, designa um culto praticado em
diversas cidades do Nordeste, tendo sido registrado em Pernambuco,
Paraíba e Rio Grande do Norte. Suas características seriam,
principalmente, o uso do fumo e da Jurema. As sessões ocorriam em
uma mesa, onde o mestre atendia seus consulentes. Descrevendo o
Catimbó por ele observado na década de 1930, Fernandes escreveu:

536
O Catimbó Nordestino

Vendo o Catimbó, de uma maneira geral, o aparato


consiste na mesa estreita, forrada ou não, onde se
misturam garrafadas de jurema, cachimbos, novelos de
linha, agulhas, botões, imagens de santos... A sessão tem
início com a abertura da mesa feita em invocações
cantadas, as velas acesas. Distribuem entre os presentes
a jurema (FERNANDES, 1938, p. 87).

Em um sentido genérico, encontrado na linguagem corrente do


Nordeste, Catimbó pode significar magia negra, feitiçaria, bem como
qualquer forma de manipulação do sobrenatural, com fins “maléficos”
ou “diabólicos”, como “coisa-feita”, “mau-olhado”, entre outros.
Mesmo nos terreiros e centros contemporâneos que apresentam uma
maior influência das antigas mesas de Catimbó, o termo apresenta um
sentido bastante genérico, não se referindo, portanto, a uma religião ou
uma prática específica. Os juremeiros o empregam, em uma
linguagem mais espontânea, tanto para designar o culto por eles
praticado quanto para designar o espaço de celebração. Assim, termos
como Xangô, Macumba e Catimbó são, em algumas casas,
frequentemente empregados como sinônimos.
Catimbó também designa trabalhos para a “esquerda” (o que,
no contexto da Jurema, seriam “trabalhos” para “fazer o mal”).
Vejamos, nesse sentido, o relato de dona Rita, do terreiro Oxossi Pena
Branca, de Goiana, Mata Norte de Pernambuco:
O catimbó é quando a pessoa faz o catimbó, né? Esse
negocio de catimbó é porque a pessoa trabalha e faz
aquele catimbó, aí o povo diz: “ah, catimbozeiro, que tá
fazendo um catimbó pra fulano de tal, pra sicrano...”
Eu? Deus me livre! Eu não gosto de fazer essas coisas,
não... Deus que me livre tirar a vida dos outros [...]
Trabalho pra direita, eu não trabalho pra catimbó. Deus
me livre. Jesus que me abençoe.

537
Sandro Guimarães de Salles

No presente trabalho, empregaremos o termo Catimbó no


primeiro sentido, ou seja, designando um fenômeno religioso
específico, como descrito pelos pesquisadores acima mencionados.
Em que pesem o caráter diverso e a ausência de aprendizado
sistemático e ostensivo, é possível afirmar que as sessões assim
denominadas mantêm um conjunto de elementos comuns, encontrados
em uma área relativamente extensa. Com efeito, os registros feitos por
Andrade (1983), e Cascudo (1978) sobre o Catimbó no Rio Grande do
Norte são bastante próximos daqueles feitos na Paraíba por Fernandes
(1938), pela Missão de Pesquisas Folclóricas2 (CARLINI, 1993) e, na
década de 1970, por Vandezande (1975). Podemos mencionar, ainda, a
existência de um mesmo panteão de mestres, caboclos e reis; um
repertório de cânticos (em geral denominados de linhas) de invocação
a essas entidades; a presença de objetos litúrgicos característicos; além
da referência a um mesmo universo mítico e simbólico, como
registrou Luiz Assunção (1999) em sessões de Jurema realizadas nos
sertões da Paraíba, do Piauí, Ceará e Pernambuco.
Na literatura, desde as referências mais antigas (ANDRADE,
1983; FERNANDES, 1938; CASCUDO, 1978; BASTIDE, 1945), o
uso da jurema (bebida) é apresentado como uma das principais
características das sessões de Catimbó, o que levou alguns

2 A Missão foi criada por Mário de Andrade, em 1938, no período em que esteve
como diretor do Departamento de Cultura e Recreação da Prefeitura Municipal de
São Paulo. Na Paraíba, que foi o estado mais coberto pela equipe, foram registrados
três casos de Catimbó.

538
O Catimbó Nordestino

pesquisadores a usar o termo como sinônimo de Jurema. Como


observou Assunção3, o termo Jurema, referindo-se a uma religiosidade
específica, passa a ser utilizado pelos pesquisadores a partir da década
de 1970, quando as mesas de Catimbó desaparecem do cenário
religioso e a Jurema passa a ser praticada em outros contextos, como o
das religiões afro-brasileiras.
Quanto à etimologia da palavra Catimbó, não há um consenso.
Cacciatore (1977), em seu Dicionário de Cultos Afro-Brasileiros, o
define como sendo de origem tupi, significando planta venenosa: caá,
planta; timbó, venenosa. Em seu Grande Dicionário Etimológico,
Francisco Bueno, apoiando-se em von Martius, apresenta a expressão
tupi catimbao repoty, significando sarro ou cinza do cachimbo. Para
esse autor, a analogia do termo com os “negros feiticeiros” estaria
ligada ao fato de esses usarem tradicionalmente o cachimbo. Cascudo
(1978) e Bastide (1971) apontam a possibilidade da palavra ser uma
corruptela de cachimbo. O primeiro investiga as possíveis relações na
origem do vocábulo com os termos Catimbau – que aparece em alguns
dicionários significando prática de feitiçaria e, em outros, homem
ridículo ou cachimbo pequeno – e Catimbao – de origem tupi,
podendo estar relacionado a fumo, ou significando cachimbo de tubo
comprido. Por fim, o termo Catimbau, designando feitiçaria, assim
como catimbauseiros, referindo-se aos seus praticantes, era usado no
Recife, tanto quanto o termo Catimbó, no início do século XX, como

3 Ver prefácio do autor em Salles (2010).

539
Sandro Guimarães de Salles

sugere uma matéria publicada no “Jornal do Recife”, em fevereiro de


1918.

Influência da magia europeia

Outro aspecto que merece ser analisado é a presença de


elementos advindos da tradição mágico-religiosa europeia no
Catimbó. Câmara Cascudo foi o primeiro a chamar atenção para este
fenômeno, que é o leitmotiv do seu clássico Meleagro. Cascudo
procura mostrar que muito do que se pensava ser de origem africana
nas práticas mágico-religiosas do Brasil tem, na verdade, origem na
magia greco-romana: “os processos de feitiçaria, catimbó, bruxaria, no
Brasil, são mais de oitenta por cento de origem europeia”
(CASCUDO, 1978, p. 174). No referido livro, descrevendo
inicialmente o Catimbó, afirma: “[...] é uma soma de influências e
convergências, como todos os cultos. A feição mais decisiva é da
feitiçaria europeia” (CASCUDO, 1978, p. 19). Já nas conclusões, ao
referir-se à “ciência catimbozeira” de um mestre de Serraria, que
empregava o Sino Salamão e outros elementos da “feitiçaria branca”,
o autor escreveu: “Felinto Saldanha, o catimbozeiro de Serraria, só
empregou magia branca e europeia, fácil e sabida. Nem uma
reminiscência da África negra ou da América indígena” (CASCUDO,
1978, p. 207).
Cascudo fundamenta seus argumentos tanto na presença de leis
“universais” da magia, como as formuladas por James Frazer, por ele

540
O Catimbó Nordestino

citado, quanto pela presença de elementos de origem europeia:


esconjuros, como o “vai-te pro mar coalhado”, orações, como a da
Cabra Preta, e símbolos, como a chave de aço virgem e o Selo de
Salomão.
Em pesquisas realizadas sobre a prática da Jurema na Mata
Norte de Pernambuco e no Litoral Sul da Paraíba, registrei diversos
elementos advindos das antigas mesas de Catimbó que remetem à
magia europeia. Assim, denominei de “complexo de Salomão” um
conjunto de símbolos religiosos, composto pelas referências ao Rei
Salomão, ao Rio do Jordão – rio considerado sagrado e milagroso,
localizado no centro do Reino de Salomão – e ao Selo de Salomão,
que juremeiros e juremeiras chamam de “Sino Salamão”.
As referências ao Rio do Jordão aparecem em orações e
diversas toadas, como no exemplo seguinte, registrado em uma sessão
de mesa branca no Centro Espírita Rei Malunguinho, em Alhandra:
O Rio e o Rio
E o Rio do Jordão
E tão bonito é o Rio
E viva o Rei Salomão (Bis)
E quem quiser ciência
Vá buscar lá no Rio do Jordão
Salomão me deu ciência
Lá no Rio do Jordão...

Câmara Cascudo, em Meleagro, registrou, no contexto dos


catimbós do Rio Grande do Norte, uma “oração do Rio do Jordão”,
que tinha como finalidade a proteção contra inimigos. Eis a primeira
parte:

541
Sandro Guimarães de Salles

Estavam no Rio do Jordão ambos os dois. Chegou o


Senhor João. Levanta-te, Senhor! Lá vêm os nossos
inimigos! Deixa vir, João! Que todos vêm atados de pés
e de mãos, almas e corações... (CASCUDO, 1978, p.
152.)

No município de Alhandra, Vandezande registrou a seguinte


linha de abertura, cujas estrofes terminam sempre com o estribilho
“neste mundo e noutro mundo lá no Rio do Jordão”.
A junçá pripioca
Quando neste mundo andou
O padre Santo Antônio
Neste mundo e noutro mundo
Lá no Rio de Jordão... (VANDEZANDE, 1975, p. 54.)

Descrevendo uma sessão de Catimbó por ele observada,


Fernandes (1938) registra uma referência ao Rio do Jordão, onde
existiria um pé de “angico seco”. No contexto da Jurema de Alhandra,
o Angico é descrito como uma das sete cidades que compõem o Reino
Sagrado da Jurema (SALLES, 2010). Vejamos a referência de
Fernandes:
Doutra banda do Rio do Jordão
Doutra banda do Rio do Jordão
Doutra banda do Rio do Jordão
Tem um pé de angico seco!

Angico seco será?


Angico seco será?
Angico seco será! (FERNANDES, 1938, p. 87.)

Por fim, em uma toada de abertura de mesa, cantada por dona


Joana, juremeira de Bayeux, município da Região Metropolitana de
João Pessoa, iniciada na Jurema de Alhandra, a referência ao Rio do
Jordão aparece associada ao Selo de Salomão e à “Barquinha de Noé”.

542
O Catimbó Nordestino

Abre-te Jurema
No Rio do Jordão
A Barquinha de Noé
Com três Sino Salamão

O Selo de Salomão (ou Sino Salamão, como preferem os


juremeiros), de uso frequente no Catimbó, é um dos símbolos mais
presentes na Jurema de Alhandra, seja nos pontos riscados (influência
da Umbanda), seja nas rezas e cânticos de diversos rituais. O Selo é
composto por dois triângulos equiláteros entrecruzados, formando
uma estrela de seis pontas. Os triângulos podem representar forças
opostas, o negativo e o positivo, que se unem para formar um universo
equilibrado. “A redução do múltiplo ao uno, do imperfeito ao perfeito,
sonho dos sábios e dos filósofos, está expressa no selo de Salomão”
(CHEVALIER; GHEERBRANT, 2005, p. 813).
O Selo é o símbolo do judaísmo, tendo sido considerado o
Escudo de Davi e utilizado como talismã em batalhas. É, ainda, uma
das expressões da pedra filosofal dos alquimistas, aproximando o
microcosmo e o macrocosmo. No Brasil, sua inserção nas religiões
afro-brasileiras se deu através dos negros maometanos, sobretudo por
meio da Cabula4. Muitos dos elementos dessa religião, como a própria
utilização do Selo como ponto riscado, foram incorporados pela
Umbanda. Contudo, é possível que sua inserção no contexto do
Catimbó deva-se à mencionada influência da magia europeia,
sobretudo através de livros como o de São Cipriano, do qual

4 Religião que funde elementos de tradição cabinda-angola com tradição malê.

543
Sandro Guimarães de Salles

registramos alguns exemplares nos terreiros de Alhandra. Na Idade


Média, a tradição esotérica e mágica dos judeus da Palestina,
especialmente a Cabala5, foi amplamente difundida em países da
Europa, através de livros como o Lemegeton, supostamente escrito por
Salomão.
Sendo o selo de Salomão um dos mais importantes símbolos
do judaísmo, há de se considerar também a presença significativa de
cristãos novos no Nordeste, muitos degredados de Portugal, acusados
de práticas judaizantes. Essas práticas, aliás, seriam o principal motivo
das denuncias na ocasião da primeira visitação do Santo Ofício às
capitanias de Pernambuco, Itamaracá e Paraíba, de 1593 a 15956. O
Brasil, que fora lugar de degredo até meados do século XVII, recebeu
não apenas pessoas acusadas de terem cometido crimes ou atos
judaizantes, mas também aquelas acusadas de práticas de bruxarias e
feitiços, penitenciados pelo Santo Ofício. Quando aos cristãos-novos,
estar no Brasil significava fugir às perseguições do mesmo Santo
Ofício. Como escrevera Rodolpho Garcia (1984, p. XX), “Na colônia
vastíssima, despoliciada dos zeladores do credo oficial, uns e outros,
sem o temor da repressão imediata, voltavam natural e instintivamente

5 Cabala é a base do conhecimento esotérico dos rabinos, cuja fundação remonta aos
judeus da antiga Palestina e do Egito (CACCIATORE, 1977, p. 71).
6 MENDOÇA, H. F. D., MELLO, J. A. G. D., SILVA, L. D.; MENDOÇA, H. F. D.
Primeira visitação do Santo Ofício às partes do Brasil: denunciações e confissões de
Pernambuco, 1593 – 1595. Coleção Pernambucana, 2ª fase, vol. XIV. Recife, 1984.

544
O Catimbó Nordestino

às crenças ancestrais”
Nas denúncias e confissões por ocasião da primeira visitação
do Santo Ofício, por exemplo, são registradas diversas acusações de
bruxaria. Uma delas é a denuncia contra Anna Jacome, considerada
feiticeira, que teria “embruxada” uma criança, usando a saliva,
causando-lhe a morte. Antes de lançar o feitiço, a própria teria feito a
seguinte advertência à mãe da criança:
[...] se quereis que não vos venham as bruxas a casa,
toma uma mesa e ponha com os pés virados para cima, e
uma trempe também virada com os pés para cima, e
com uma vassoura em cima tudo detrás da porta, e dessa
maneira não vos virão bruxas a casa.
(MENDONÇA et al., 1984, p.25)

Outra denúncia acusa a “mulata” Brisida Lopez, que teria


informado ao denunciante sobre um feitiço à base de água e chumbo,
com o qual previa o futuro. Há também uma acusação feita por
Magdalena de Calvos contra Lianor Martins, que, como escreveu o
notário do Santo Ofício, Manoel Francisco, “veio do Reino degradada
segundo ela própria lhe disse por feitiçaria” (MENDONÇA et al.,
1984, p.108). Lianor possuía uma “mendracola”, um “buço de lobo”,
uma carta de “Santo Arasmo” e uma “semente do feito”, que ela e
umas amigas colheram em uma noite de São João. Como se lê nos
autos da Inquisição:
As quais coisas dizia que trazia para fazer querer bem os
homens as mulheres, e as mulheres aos homens que ela
quisesse e para os maridos não verem o que suas

545
Sandro Guimarães de Salles

mulheres fizessem e para outras coisas semelhantes...


[...] a propósito de induzir a ela denunciante que
quisesse usar dela nas ditas feitiçarias e cousas para um
homem lhe querer bem... (MENDONÇA et al., 1984, p.
108)

Essas práticas lançam mão de um vasto repertório de orações,


conjuros e ensalmos do mundo Ibérico, marcado pelo dinamismo e
variabilidade, que são adaptados e ressignificados em diferentes
línguas, culturas e crenças. Esse repertório, desde o início da
colonização, se expande pela colônia, chegando às chamadas mesas de
Catimbó.

O Catimbó como fenômeno mágico-religioso

O Catimbó vai, portanto, se configurando como um conjunto


de crenças e práticas que subvertem o campo religioso
institucionalizado, fazendo uso, inclusive, de elementos desse mesmo
campo. Ele pertence aos fenômenos religiosos que se manifestam
como um conjunto de crenças e rituais que uma sociedade não pode
integrar dentro desse campo religioso institucionalizado.
Muitos autores, no entanto, têm procurado mostrar a tênue
fronteira existente no binômio, magia e religião. Manoel Pedrosa
(2000), por exemplo, nos lembra que tanto os fenômenos “mágicos”
quanto os “religiosos” possuem perfis variáveis e específicos dentro
de cada tradição cultural, que fixa seus limites e alcances segundo seus
próprios critérios. Estes, geralmente, são estabelecidos pelas elites

546
O Catimbó Nordestino

dominantes. As práticas normalmente designadas como mágico-


religiosas, como o Catimbó, são classificadas e interpretadas
historicamente em um contexto marcado por relações de poder,
seguindo os critérios estabelecidos pela religião dominante, a religião
do colonizador. Assim, como procurou mostrar Pedrosa, ao distinguir
o mágico do religioso, se distinguiria, do mesmo modo, o vergonhoso
do não vergonhoso, o heterodoxo do ortodoxo, o marginal do
institucional, o legal do ilegal.
[...] las definiciones más precisas de la magia y de la
religión puede que sean las que ponen énfasis sobre la
imprecisión, la variedad y la apertura de significados de
ambos conceptos, y, de modo especial, sobre la
contigüidad que hay entre ambos (PEDROSA, 2000, p.
13).

As definições clássicas, portanto, se chocam frequentemente


com a complexidade dos fenômenos religiosos. Como mostrou
Bourdieu (2008), para a maioria dos estudiosos a magia visa objetos
concretos e específicos, parciais e imediatos, se opondo à religião,
cujos objetos seriam mais abstratos, genéricos e distantes. As práticas
mágicas, nesses estudos, estariam assentadas na intenção de coerção
ou manipulação dos poderes sobrenaturais, se opondo, por exemplo, às
disposições propiciatórias e contemplativas da oração. Por fim, elas
estariam voltadas para o formalismo e o ritualismo do “toma lá da cá”.
Os catimbozeiros, no entanto, também estavam inseridos em
um contexto mais abstrato, genérico e distante, que caracterizaria a
religião, sobretudo pela presença de elementos complexos, como a

547
Sandro Guimarães de Salles

crença em um reino encantado da Jurema. Por outro lado, eles também


se diziam católicos. Nesse caso, os elementos cristãos eram
subvertidos e reinterpretados, o que aproxima o Catimbó das religiões,
práticas e crenças profanadoras, descritas por Bourdieu, seguindo de
perto as ideias de Max Weber. A profanação consiste em uma
contestação objetiva – embora sem qualquer intenção de profanação –
do monopólio da gestão do sagrado e da legitimidade dos detentores
desse monopólio. Como mostrou Bourdieu, os chamados feiticeiros
[...] levam às últimas conseqüências a lógica da
contestação do monopólio quando reforça o sacrilégio
provocado pelo relacionamento de um agente profano
com um objeto sagrado, invertendo ou caricaturando as
delicadas e complexas operações a que devem se
entregar os detentores do monopólio da manipulação
dos bens religiosos no intuito de legitimar tal
relacionamento (BOURDIEU, 2008, p. 45).

Essa dupla pertença observada no Catimbó é continuada pelos


mestres e mestras da jurema hoje. Vejamos o que diz Dona Maria de
Cachimbo, juremeira e mãe de santo do Terreiro de Umbanda São
Jorge, de Condado, Mata Norte de Pernambuco:
Eu sou católica porque creio em Deus também, né? Aí,
sou católica e, mas, assim, vou na igreja quando preciso.
[...] bem, sou católica porque eu não posso ser crente.
Sou espírita e sou católica.

A definição do Catimbó como um culto voltado


exclusivamente para as aflições e urgências do cotidiano, como a
solução para problemas amorosos, a cura de enfermidades etc., em que
pese o fato desse caráter terapêutico ser central no culto, parece
contrastar com a complexidade de um universo mítico e simbólico

548
O Catimbó Nordestino

nele presente. A referência a um reino encantado (encantos ou cidades


da Jurema) expressa uma preocupação com o post mortem. Esse reino,
de acordo com os juremeiros de Alhandra, seria composto por sete
cidades, sete ciências: Vajucá, Junça, Catucá, Manacá, Angico, Aroeira
e Jurema. Andrade foi o primeiro a relatar a existência de uma
mitologia no Catimbó, fundamentada no “Reino da Jurema”, que seria
“uma das grandes regiões maravilhosas dos ares” (ANDRADE, 1983,
p. 30). Esse reino se dividiria em outros onze: Juremal, Vajucá,
Ondina, Rio Verde, Fundo do Mar, Cova de Salomão, Cidade Santa,
Florestas Virgens, Vento, Sol e Urubá (ANDRADE, 1983).
Cascudo, em Meleagro, também menciona a existência de um
“mundo dos encantados”, que seria dividido, segundo alguns, em sete:
Vajucá, Urubá, Juremal, Josafá, Tigre, Canindé e o Fundo do Mar, e
cinco, segundo outros, que seriam os quatro primeiros, mais Tanema,
ou o Reino de Iracema. Esse “mundo do além”, segundo ele, seria
dividido em Reinados ou Reinos, cuja unidade seria a aldeia. Cada
aldeia, por sua vez, teria três mestres. Assim, 12 aldeias formariam um
Reino, composto de 36 mestres. Nesse reino, haveria cidades, serras,
florestas e rios (CASCUDO, 1978).
Bastide, sem informar de onde tirou os dados, transcreve
literalmente as cidades mencionadas por Cascudo, assim como a
mesma divisão confusa por ele apresentada. Ao tratar esse último
aspecto, apenas substitui os termos aldeias por comunidades e mestre

549
Sandro Guimarães de Salles

por chefe. Desse modo, escreveu: “Esses reinos por sua vez
compreendem um certo número de estados e cada Estado 12
comunidades. Cada comunidade tem três chefes, o que faz com que
um Estado tenha um total de 36 chefes” (BASTIDE, 1971, p. 249).
Dona Rita, da Mansão de Iemanjá, de Goiana, fala do reino da
Jurema como um lugar onde poucos podem ir e para onde vão os
juremeiros após a morte. Vejamos o que nos diz a juremeira:
É um lugar sagrado, bem bonito que só. A jurema é
entrançada uma na outra e embaixo é só forrado com
capim-veludo... é um terreno muito grande, muito
bonito, e com a jurema ali por cima entrançada que não
entra ninguém... nem os passos [pássaros] não passam
naquele reino, que chama Reino da Jurema Encantada.
Embaixo é capim-veludo e em cima é a Jurema. E os
caboclos, só tem aquela porta pros caboclo entrar, reinar
dentro, pra dormir, pra viver, pra viver ali em baixo. [...]
aí é o reino da Jurema. Reino encantado da Jurema. Aí,
nem todo mundo tem o direito de ir lá. Nós vamos lá em
sonho, né? Os mestres é quem vai, os caboclo, Tupã,
Tupi, aqueles caboclo forte, aí é quem vai e leva a gente
em sonho pra gente ver como é o Reino da Jurema...
mas quando a gente tá lá em trabalho, porque tem a
sessão de mesa, e tem trabalho de chão, aí é que manda
aqueles mestres ir no reino da Jurema pra saber aonde
é... Ele [um juremeiro após a morte] vai, tem o direito
de ir pra lá e de lá Jesus é quem sabe onde bota ele, né?
Primeiro tem que ir na Jurema... o espírito, né?

Nas toadas cantadas nas antigas mesas de Catimbó de


Alhandra, que tive oportunidade de registrar no sítio Acais, os
Encantos se faziam presentes através das referências às “sete chaves”,
aos “sete portões reais”, que levam às “sete cidades”, às “sete
ciências”. Vejamos os seguintes trechos extraídos de três linhas
cantadas no sítio Acais, em Alhandra:

550
O Catimbó Nordestino

Princesa me dê a chave
Que eu quero abrir os sete portões
Eu quero ver a ciência do nosso Rei Salomão

Quem tem a chavinha do Vajucá


Ora me dê para abrir os portões reá [reais]

Abre-te porta do Juremá


Abre-te com as forças
Do Caboclo de Urubá

As cidades continuam ocupando um lugar importante para os


juremeiros no contexto da Umbanda. Em Goiana, pai Dedo faz
constantemente referência a esses lugares sagrados, embora alegue
não poder explicar nada sobre o assunto, pois seria um segredo dos
iniciados na Jurema. Ele descreve as cidades como sete linhas, sete
caminhos, os quais seriam o fundamento do seu trabalho. Das sete,
costuma citar cinco, sendo a principal delas a cidade de Heron. Como
diz o próprio: “Aqui eu trabalho com Jurema, Junça, Angico, Vajucá e
cidade do reis Heron... é uma cidade muito rica, mais rica que a
Jurema, analisando isso”.
Os relatos sobre o tema feitos por autores como Andrade e
Cascudo, entre outros, sempre diferem em número e nos nomes das
cidades que compõem o Reino da Jurema. Em todas as referências, no
entanto, desde as primeiras, feitas por Andrade, até as registradas na
atualidade, no contexto da Umbanda, as cidades da Jurema (ou
Juremal) e a cidade do Vajucá são sempre citadas7.

7 Vajucá pode ser uma corruptela de Ajucá, que significa amassar, sovar (TIBIRIÇÁ,
1984). O termo é usado para designar uma festa entre os Pankararu, cujos primeiros
registros foram feitos na década de 1930, por Carlos Estevão (1942) e Estevão Pinto
(1938). Ambos descrevem o momento do preparo do vinho da jurema, em que a raiz
da planta é raspada, depois macerada com uma pedra, até ser obtida a bebida.

551
Sandro Guimarães de Salles

Catimbó como resistência

Finalmente, podemos dizer que o Catimbó e a prática da


Jurema entre os povos indígenas (do período colonial à
contemporaneidade) expressam uma resistência à colonialidade. São
evidências das diferentes formas de resistências e estratégias de
negociações acionadas pelos povos indígenas.
Estes tenderiam a aceitar as instruções e doutrinas
cristãs, sem rejeitá-las diretamente, mas empregando-as
seguindo seus próprios interesses, ou seja, com
finalidades contrárias àquelas propostas pelos
missionários (SALLES, 2021).

Essa resistência, em diferentes momentos e de diferentes


maneiras, nem sempre foi percebida pelos historiadores e
antropólogos. A prática da Jurema, contrariando a historiografia
modernista, colonial, mostra que esses povos não são atores
secundários. Revela, assim, a força de quem não permitiu ter seus
rumos traçados pelos colonizadores.
Em pesquisa realizada em antigos jornais do Recife, encontrei
diversas matérias, algumas publicadas há mais de um século, que
evidenciam tanto as perseguições da polícia aos chamados
catimbozeiros quanto o preconceito que havia (como ainda há, em
relação às religiões afro-brasileiras e indígenas) entre jornalistas e
intelectuais da época. Em geral, os textos procuravam ridicularizar os
catimbozeiros, acusando-os de charlatanismo e exploração, alertando a
sociedade dos riscos do envolvimento com o Catimbó. Em uma

552
O Catimbó Nordestino

matéria no jornal “A Pimenta”, de 1902, encontrei a seguinte matéria,


denominada “Feitiçaria”:
Na rua do Gerimú, em Afogados, existe uma casa
conhecida por Catimbó, onde se pratica toda a sorte de
bandalheiras, relativamente a bruxedos, descidas de rei,
subidas de príncipes, e caboclos de loandas... O chefe,
um tal Paulino, conhecido gury do pateo do Carmo,
anuncia que assim arranja-se todos os meios de fazer
fortuna, tirar nos bichos, alcançar o que deseja, curar
espinhela caída, olhos maus, quebrantos moléstias do
mundo, etc. Seria bom que o digno delegado daquele
distrito, comparecesse ao Catimbó, para ver se o tal
mestre D. Carlos livra toda gentinha do xilindró. Duro
com eles, capitão Ponciano, duro com eles...8

Até meados da década de 1970, a perseguição aos


catimbozeiros ainda era praticada em todo o Nordeste. Em Alhandra,
ouvi do seu Inácio da Popoca que era comum a polícia invadir as casas
de Catimbó, obrigando o mestre a levar sua mesa de trabalho na
cabeça, pelas ruas da cidade, até a delegacia. Seu Inácio também me
contou histórias sobre um delegado de Alhandra que aterrorizava os
catimbozeiros. Sua perseguição à mestra Chica Ramalho era
conhecida na cidade. Travara uma batalha contra a mestra, ele com
seus soldados, suas armas e a patente de delegado, e ela com sua
ciência, seus mestres e caboclos. Acometido de uma enfermidade no
final da vida, desenganado pelos médicos da capital, o delegado
procurou a cura, ironicamente, no Catimbó. Seu Inácio atendeu seu
antigo adversário, que agora prometia uma boa recompensa em

8 Jornal “A Pimenta”. Recife, 13 de dezembro de 1902.

553
Sandro Guimarães de Salles

dinheiro pela sua cura. O mestre, no entanto, recusou o pagamento,


informando-o que para o seu caso não haveria mais jeito.

Considerações finais

No presente artigo, procurei situar preliminarmente o Catimbó,


tendo como referência os dados produzidos durante minhas pesquisas
entre os juremeiros da Paraíba e Pernambuco, além da literatura sobre
o tema. Procurei mostrar que, embora descrito como um fenômeno
religioso assentado no “toma lá da cá”, sem aprendizado sistemático e
ostensivo, o Catimbó possui um sistema de crenças complexo,
compartilhado por um número significativo de pessoas, em uma área
relativamente extensa, que vai do litoral ao sertão. Também tratei da
influência de elementos europeus no Catimbó e da sua prática
enquanto uma subversão do campo religioso institucionalizado. No
último tópico, abordei brevemente o Catimbó enquanto resistência,
sobretudo frente ao preconceito religioso. Ainda sobre a questão do
preconceito, gostaria de acrescentar a resistência dos próprios
pesquisadores em reconhecer a importância do Catimbó e dos demais
fenômenos relacionados à prática da jurema. Com efeito, o tema ainda
é pouco explorado pela Antropologia no Brasil, o que está relacionado,
como procurei mostrar em outra ocasião (SALLES, 2010), ao tardio
interesse dos pesquisadores e pesquisadoras das religiões afro-
brasileiras pela Jurema. Desde Nina Rodrigues, o interesse pelas

554
O Catimbó Nordestino

religiões de tradição jeje-nagô e nagô-queto estaria relacionado ao que


Beatriz Góis Dantas (1988) denominou de busca incessante da África
no Brasil. Sobre essa ênfase nas religiões consideradas mais “puras”,
Roger Bastide, referindo-se aos congressos sobre o negro, realizados
em Salvador e Recife, na década de 1930, afirma que o interesse dos
pesquisadores no Brasil pelo afro-brasileiro era sempre mais pelo afro
que pelo brasileiro. Contudo, o próprio Bastide, quando se refere à
presença dos negros no Catimbó da Paraíba, argumenta que, sendo
esses de origem Banto, teriam uma mitologia menos “desenvolvida” e
mais propensa à magia do que os povos negros da Guiné. O eminente
antropólogo francês ainda argumenta que o povo Banto, como não
teria ultrapassado o estado de “animismo ou manismo”, não possuindo
“uma mitologia tão ricamente organizada como a dos Yorubá,
aceitaram com mais facilidade as divindades da nova pátria” (1945, p.
188). Do mesmo modo, o antropólogo René Ribeiro, referindo-se ao
cenário religioso do Recife dos anos 1930, escreveu:
Inúmeras outras casas, não mais com o caráter de grupos
de culto estruturados, com hierarquia de dignitários e
fiéis, rituais de iniciação e calendário religioso, porém
de afiliação flutuante polarizada apenas em torno da
figura de um sacerdote mágico-adivinho, funcionavam
nessa época. Eram centros de catimbó, e de caboclos,
onde o sincretismo religioso parece ter avançado mais, e
em que parecem ter se transformado as antigas “casas de
angola” seguindo rumo um tanto diversificado do que
no Rio de Janeiro viria resultar na macumba (1978, p.
57).

555
Sandro Guimarães de Salles

Finalmente, a antropologia nas últimas décadas tem sido


marcada por uma tendência à autorreflexão e desconstrução, pondo em
questão a epistemologia modernista, colonial. Nesse contexto, a
emergência de novas conceptualizações tem posto em questão
conceitos fundantes, como cultura, tradição, comunidade e a própria
noção de sociedade (BHABHA, 1998), os quais exigiriam hoje uma
ampla discussão sobre seus limites e alcances. Nessa perspectiva, a
própria representação etnográfica, como uma prática objetiva e neutra,
dá lugar ao debate sobre a imagem essencializada e reificada que
criamos e reproduzimos do “Outro” (SAID, 1996). Só a partir desses
deslocamentos, fenômenos culturais de grupos silenciados, marcados
pelas desigualdades sociais e epistêmicas, como a religiosidade afro-
brasileira e indígena, podem ocupar um lugar outro nas pesquisas
antropológicas.

556
O Catimbó Nordestino

Referências

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557
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Boletim do Museu Nacional, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1942.
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VANDEZANDE, René. Catimbó. Dissertação de Mestrado defendida
na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), 1975.

558
“Evoé”: do delírio dionisíaco em Eurípides à
macumba antropofágica na obra Bacantes do
Teatro Oficina
Dolores Puga1
“Os amantes d santo d Dyonyzios no Brazil
Foram castigados, recuados, miserabilizados, quase castrados.
Mas a democracia social,
A revolução cultural,
A prosperidade no Brasil
São impensáveis se a paixão coletiva q o teatro desencadeia
Não for libertada
Num 2º nascimento como fato coletivo.
Artistas e povos
Vamos botar pra phoder”
(Festival Brazyleyro de Teatro - Bacantes, Teatro Oficina).

Em sua obra Modern performance and adaptation of greek


tragedy, Helene Foley aponta a existência de uma grande quantidade
de encenações de tragédias gregas, fato que demarcou principalmente
o teatro mundial dos anos de 1990. A autora reflete sobre a recepção
do teatro da antiguidade pelo público contemporâneo, procurando
entender essa grande relevância na busca por uma constante revisão ou
revivificação da tragédia grega (FOLEY, 1999, p. 2). Tratava-se de
uma necessária problematização entre os estudos clássicos, pois
envolvia compreender as razões da força que constituía as obras
gregas na cena moderna.

1 Possui graduação em História pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU),


mestrado em História Social pela mesma instituição (PPGHS/UFU) e doutorado em
História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC/UFRJ). É
Professora Adjunta da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campus de
Três Lagoas (UFMS/CPTL). Líder do Grupo de Pesquisa “Usos e Desusos das
Linguagens Artísticas” e Vice-líder do Grupo de Pesquisa “História Antiga e Usos
do Passado: novas perspectivas entre o passado e o presente.” Integrante do Grupo
“ATRIVM/UFMS - Espaço Interdisciplinar de Estudos da Antiguidade”.

559
Dolores Puga

Nesse ínterim, alguns poetas são ainda mais lembrados nas


montagens. Dentre os tragediógrafos da antiguidade, Eurípides é um
dos mais conhecidos nos dias atuais. Suas obras foram as que mais
chegaram até nós, demonstrando o impacto que as temáticas de suas
peças repercutiram para os sujeitos históricos que o elegeram ao longo
do tempo. Na contemporaneidade, Eurípides é um dos poetas mais
apresentados para o público, devido especialmente à intensidade de
suas personagens. Essas questões refletem diretamente na constante
busca pela encenação de suas tragédias, sobretudo no Brasil, como a
própria escolha do “Teatro Oficina Uzyna Uzona”, um dos grupos
dramáticos brasileiros mais antigos ainda ativos, com reconhecimento
internacional.
Sobre a presença da mitologia trágica grega no teatro brasileiro
dos últimos 30 anos, Carlinda Nuñez afirma que o mito é um
privilegiado dispositivo de transferência cultural, um intermédio que
permite imbricações culturais ao modo de uma “memória latente”
(NUÑEZ, 2015, p. 38). Mas o que a autora chama de memória latente
é compreendida dentro do reprocessamento artístico de um tema, no
que ela chama de “agon autoral entre o escritor e seus adaptadores [ou
recriadores ou ainda tradutores]”, e, nesse sentido, existe sempre uma
“contestação ideológica” (NUÑEZ, 2015, p. 39), que marca os
sentidos de sua apropriação. Pensando as questões apresentadas por
Helene Foley, assim pontua o diretor teatral e filósofo Gilson Motta:

560
“Evoé”

A tragédia possibilita a construção de um discurso


político estrategicamente não localizado em relação às
questões não resolvidas e às situações extremas. Quando
encenada num passado imaginário que oferece poucas
possibilidades de descrição física, a tragédia estabelece
uma dissolução das referências acerca da jurisdição, dos
elementos étnicos, raciais e culturais, possibilitando uma
resposta política às questões não resolvidas e às
situações extremas, sem localizar nitidamente esta
resposta (MOTTA, 2006, p. 106).

Em outras palavras, pensando o mito trágico como memória


latente de um discurso político que parece não ser tão localizado,
permite-se envolver questões humanas importantes com um
posicionamento questionador, uma contestação ideológica que
constrói respostas estratégicas a partir de situações extremas. No caso
da obra As Bacantes de Eurípides (Bakxai – 406/5 AEC), se de um
lado coroa-se e impõe-se a valorização de encantamentos e rituais
estrangeiros e estranhos aos atenienses pela figura de Dioniso, na
apropriação do Teatro Oficina, sustenta-se a busca por legitimidade
das religiões de matriz africana e dos rituais indígenas, envolvidos em
meio ao carnaval, símbolo de uma resistência e liberdade contra
perspectivas sociopolíticas conservadoras. Mas, é preciso pontuar por
partes.

A intensa carga ritualística de Bakxai, As Bacantes


de Eurípides

A obra Bakxai se caracteriza por um texto dramático


questionador. Possui traços da discussão religiosa de Tebas e o império
Persa no conflito entre o rei Penteu e Dioniso, focando, sobretudo, nos

561
Dolores Puga

rituais estrangeiros e nas atitudes das mulheres em transe. A


linguagem se propõe como denúncia. Trabalha o espaço de Atenas de
fins do século V AEC a partir da imagem ficcional de Tebas,
denunciando a intolerância dessa comunidade para com os rituais e a
fé dos estrangeiros sob a figura de Dioniso.
Eurípides apresenta a vinda de Dioniso da Ásia Menor – lugar
onde triunfou como deus – a Tebas para conseguir reconhecimento dos
tebanos, uma vez que era um deus filho de Zeus com Sêmele, princesa
da região. Com exceção de Cadmo (o fundador da cidade) e do velho
adivinho Tirésias, todo o restante da população de Tebas não
reconhece Dioniso como deus, uma vez que não acreditam em sua
paternidade, incluindo o rei Penteu. Dioniso, então, hipnotiza todas as
mulheres que o rejeitam e as fazem contemplar o coro das bacantes –
suas mênades: adoradoras do culto a Dioniso (ou também chamado de
Baco) – as quais são vistas como “enlouquecidas” pelo encantamento
do deus, que dançam em sua honra na obra de Eurípides.
Após a tentativa de prendê-las como também o profeta de
Dioniso – que era o próprio deus disfarçado –, Penteu se vê também
hipnotizado pela curiosidade de ver os estranhos cultos das bacantes e,
por conselho de Dioniso, resolve se travestir de mulher para
contemplá-las das montanhas. Então Agave, mãe de Penteu, que,
entorpecida pelo deus junto às bacantes, dilacera seu próprio filho,
imaginando ser um leão selvagem, e carrega consigo sua cabeça,
ostentando sua façanha até a cidade. Cadmo e sua mulher são
transformados em “dragões-serpente”, coagidos a lançar chamas

562
“Evoé”

contra templos e tumbas gregas, e Agave e suas irmãs são obrigadas a


se exilarem de Tebas.
Eurípides utiliza uma simbologia diferenciada da figura de
Dioniso e de seu culto, em uma concepção mais orgiástica do que o
antigo Dioniso de Creta (FOUCART, 1904, p. 20-34), este último,
uma perspectiva pela qual a Ática e Atenas tiveram contato.
Fundamenta-se como questionamento social e demonstração
metafórica das mudanças políticas e culturais ocorridas em Atenas ao
longo do século V, quando a cidade-estado estava entre busca de
alianças e recrudescimento com lutas por conquista de ideias
favoráveis à sua perspectiva de democracia nas demais regiões.
Essa diferenciada visão acerca de Dioniso foi um dos
elementos introduzidos pelos ritos thiasos na Grécia e em Atenas, e as
mudanças ocorridas em seus elementos para a mitologia abordada
pelos atenienses foram tentativas de uma “helenização”, bem como a
aprovação de práticas dos cultos por parte das famílias mais
tradicionais. Para Paul Foucart, quando se trata de elementos thiasos
entre os gregos é preciso enxergá-los para além das cores sombrias da
perspectiva construída das sociedades de bacanais, influência de
etruscos e das campanhas que introduziram raiva, crimes, deboches e
uma ferocidade sensual nas cerimônias greco-orientais que não
existiam nos primórdios.
De acordo com Richard Seaford, aproximadamente no mesmo
período de As Bacantes, houve evidência de hostilidade e perseguição
ateniense a determinados tipos de cultos de origem estrangeira ou que

563
Dolores Puga

assim se pensava os quais possuíam características de iniciação e


busca de êxtase. Havia, segundo o autor, objeções morais quanto à
perspectiva de embriaguez e o que se imaginava serem licenças
sexuais; o mesmo tipo de objeção de Penteu a Dioniso e suas mênades
na obra de Eurípides. Para Seaford, a motivação a essa hostilidade se
devia a uma busca de controle e um discurso ateniense de “coesão
social” (SEAFORD, 2006, p. 35), o que, na realidade, refletiria uma
tentativa de domínio dos mais tradicionais líderes da cidade-estado ao
suscitarem a busca por autoridade simbólica. Segundo Courtney
Friesen:
Eurípides também explora a distintiva ambiguidade
étnica da identidade de Dioniso. Na mitologia e no
ritual, ele é consistentemente representado como
bárbaro ou estrangeiro na Grécia. [...] Eurípides
emprega essa ambiguidade como um meio de explorar a
tensão religiosa dentro da Atenas contemporânea, onde,
ele nota, poderia ser processado por impiedade em
relação à introdução de deuses novos ou estrangeiros.
Existem, no entanto, muitos outros “deuses
estrangeiros” que foram introduzidos em Atenas durante
o século V, frequentemente associados com rituais de
êxtase. [...] a desconexão entre a real prática ateniense
da religião dionisíaca e o excesso, violência, e subversão
com o qual é retratado na obra As Bacantes é em parte o
resultado da projeção de Eurípides do caráter percebido
dos recém-chegados cultos estrangeiros (FRIESEN,
2015, p. 55).

Embora Courtney Friesen aponte a peça como projeção do que


o poeta percebe como sendo a maneira em que a sociedade ateniense
tradicional enxerga “recém-chegados cultos estrangeiros”, seria, de
fato, uma tradução da obra desse misto de elementos, buscando
suscitar, em meio à violência característica exposta, uma determinação
e valorização de cultos antigos exteriores à região de Atenas, os quais

564
“Evoé”

a cidade-estado e a Ática tiveram contato por meio da reelaboração de


outros povos. Segundo Foucart, a origem do mito de Dioniso se dá na
Trácia e na Frígia, mas a maior parte das fontes vêm do culto da
Trácia. Entre os nativos, Dioniso era chamado de Sabázio, e era
considerado o deus da vegetação (em sua origem, vegetação da
montanha), das árvores frutíferas e do vinho. A orgia noturna na Trácia
era feita em lugares altos, prática essencial de adoração. Quando cedeu
lugar aos ritos estabelecidos, eram admitidas cerimônias de preparação
e iniciação (FOUCART, 1904, p. 20; 21; 22).
Nas festas do século V, especialmente as mulheres se
envolviam no culto a Dioniso, substituindo as mênades do mito (as
bacantes companheiras do deus lendário). Usavam vestidos longos
com coroas de hera, um tirso na mão e na outra uma cobra
familiarizada. Passavam a noite na montanha e excluíam o lado
profano; tais como orgias e elementos considerados “selvagens” – o
culto oriental abarcava a realização de corridas frenéticas, danças
desordenadas, sons de pratos, tambores e flautas frígias. Havia
também gritos repetidos de “evohe” – chamadas entusiastas ao deus –,
movimentos violentos do corpo e especialmente da cabeça. Insensíveis
à dor e à fadiga, às vezes se jogavam ao chão, às vezes saltavam. Com
apreensões de fúria, pegavam pedaços de animais e comiam a carne
sangrenta em delírio de possessão divina (FOUCART, 1904, p. 23-24).
Segundo Foucart, As Bacantes de Eurípides possuem a imagem da
orgia das mulheres da Trácia.

565
Dolores Puga

O mito de Dioniso da Trácia se espalhou pela Macedônia e


pelo norte da Grécia, como Delfos e Tebas – dois centros religiosos
mais importantes, os quais mantiveram o caráter original do deus, com
algumas mudanças: a perspectiva de Dioniso como filho de Zeus com
Sêmele teria sido uma transformação trácia da figura dionisíaca em
Tebas, embora esta região tenha se imortalizado como local de
nascimento do deus no mito. Em Delfos, no período clássico, Dioniso
teve um lugar importante ao lado de Apolo (no templo deste deus –
Parnassus). Na parte frontal do templo representavam-se mulheres em
danças noturnas e o deus Dioniso era o mesmo trácio, com seu cortejo
de bacantes (FOUCART, 1904, p. 27; 33).
Dioniso trácio era representado como um deus poderoso,
impiedoso em sua vingança. Exatamente o oposto da criança indefesa
do mito cretense, perspectiva que definiu as lendas em Delfos, em que
Dioniso havia sido assassinado pelos Titãs e que Zeus havia ordenado
que Apolo em Delfos deveria transportar os restos mutilados do filho
para o templo (FOUCART, 1904, p. 29).2 O sacrifício tinha a mesma
finalidade que as cerimônias das Antestérias de Atenas,3 com a

2 Sobre a ideia da ordenação de Zeus no mito, Foucart aponta que teria sido
desenvolvida na Alexandria (FOUCART, 1904, p. 33).
3 Essa relação de Dioniso com a morte e o renascimento (perspectiva desenvolvida
em Creta e Delfos), foi mantida nas cerimônias das Antestérias em Atenas. O culto
poliade ligado à Dioniso possuía características comedidas e oficializadas pela
cidade-estado – bem divergentes da representação do culto trácio. Nessas cerimônias
atenienses, Dioniso já renascido e crescido, está pronto para desposar-se. Nas
Antestérias, têm-se o envolvimento de homens, mulheres e crianças; e a encenação
do casamento dionisíaco conta com a participação do arconte basileus
(CERQUEIRA, 2011, p. 153; 154-155). É digno de nota que o basileus é um cargo
religioso importante em Atenas, arconte esse que deveria pertencer à famílias que
descendessem de “heróis fundadores”; ou seja, de representantes da tradicional
aristocracia ateniense. Fica elucidado o domínio simbólico poliade imposto em
detrimento do culto estrangeiro dedicado à figura dionisíaca.

566
“Evoé”

intervenção e auxílio de Deméter nas tradições de Creta: recompor o


corpo do deus para garantir seu renascimento – uma vez que, em
Creta, Dioniso era filho de Deméter e não de Sêmele (FOUCART,
1904, p. 33). Para o autor, foi deixado um traço das relações de Delfos
e Creta no hino homérico a Apolo (FOUCART, 1904, p. 29).
Assim chegamos a dissipar algumas das confusões que
deram origem a tendências de unificar os personagens
divinos, no longo trabalho de séculos. Houve em Delfos,
dois Dionisos separados, e nem um nem o outro é filho
de Sêmele. A partir dos pontos mais opostos eles se
encontraram aos pés de Parnassus [templo de Apolo em
Delfos]. Um deles é o deus trácio no delírio profético,
associado com honras a Apolo, ele precedia na posse do
oráculo. O outro é o deus morrendo e renascendo, que
provisoriamente o chamamos de Dioniso cretense, mas
que se reunirá ao culto na Ática [...]. O deus trácio foi
descrito como um homem de barba feita; e o filho de
Sêmele era adolescente, uma beleza afeminada, cujo
longo cabelo flutuava sobre seus ombros. Este tipo
jovem encantava os gregos, sempre apaixonados pela
beleza física. Poetas e artistas o popularizaram à
vontade. Os mitógrafos gregos admitiram três Dionisos,
a participação dos dois mais antigos é bastante baixa;
para um, a vinicultura; para outro, a agricultura; nada
mais. Todo o resto foi o filho de Zeus e Sêmele
(FOUCART, 1904, p. 29; 31).

Embora o mito de Dioniso em Creta tenha o associado com


Deméter, havia sido justamente a imagem cretense criada do deus a
referência para a Ática e Atenas, mas agora determinando a filiação de
Dioniso à Sêmele – lenda que mais se determinou ao longo do tempo,
não apenas por Tebas, mas também em obras tais quais a Teogonia de
Hesíodo.4

4 “[...] Sêmele, filha de Cadmo, se juntou a ele [Zeus] em amor e lhe deu um filho
esplêndido, Dionísio jubiloso, uma mulher mortal, um filho imortal. E agora ambos
são deuses” (HESÍODO, Theogonia, 940-942).

567
Dolores Puga

As relações com Creta se realizaram com as invasões gregas na


região ainda no período Minóico, mas se determinaram quando os
Aqueus, cansados de pagar tributos à talassocracia cretense,
instituíram o período micênico com a ocupação definitiva de Creta. De
acordo com Pierre Lévêque: “Cerca de 1.400, Gregos vindos do
Peloponeso saquearam os palácios [cretenses] e destruíram o poderio
minóico. Contrariamente ao que tinham feito os seus antepassados em
1.700, ocuparam o país: Creta perdeu sua independência e estiolou até
ao fim do Minóico Recente, por volta de 1.200”. (LÉVÊQUE, 1967, p.
46). Provavelmente, esse domínio teria embebido os gregos e a ática
da cultura simbólica na figura dionisíaca de Creta5 – versão já
diferenciada dos rituais orgiásticos da Trácia –, em uma concepção
posteriormente apropriada para usos atenienses nos oficiais cultos
poliades.
Apesar da oficialidade desses cultos na Ática, a obra de
Eurípides carrega, então, um questionamento avassalador sobre as
raízes de crenças cujas características ritualísticas de poder, magia e
encantamento denotam a busca pela valorização da existência de
povos muito diferentes. Pela força não apenas poética, mas também
sociocultural da mensagem, não é difícil, pois, entender as razões
dessa representação simbólica reverberar até os nossos dias.

5Yidy Páez Casadiegos aponta que evidências epigráficas conduziriam a pensar que
o contato da Ática com o mito de Dioniso teria sido justamente no século XV a.C.,
devido às relações com o oriente próximo (CASADIEGOS, 2008, p. 169), assim
como Lévêque ao apontar o contato grego com Creta.

568
“Evoé”

O poder mágico das Bacantes à moda brasileira

Sejam os rituais orgiásticos da Trácia, ou a referência cultual


das flautas frígias, ou ainda a característica de “selvageria” e liberdade
das mulheres encantadas por Dioniso, todos esses elementos foram
importantes inspirações para José Celso Martinez Corrêa, em conjunto
com Catherine Hirsch, Denise Assunção e Marcelo Drummond na
construção de um texto de adaptação e recriação da obra As Bacantes
de Eurípides para a realidade brasileira dos anos de 1987.6 O formato
escolhido: aquilo que o Grupo Oficina denominou de
“tragycomediorgya eletrocandonblaica” – uma maneira de não se
sistematizar em nenhum estilo dramático específico, transformando o
bacanal dionisíaco em carnaval brasileiro, regado à ideia de um teatro
que é, ao mesmo tempo, um “terreiro eletrônico”.
Dentro das análises de Peter Burke em sua obra “Hibridismo
Cultural” (2003), é possível conceber a ideia do estudo de objetos
híbridos, povos híbridos, como também de práticas híbridas, nesse
último caso, tais como música, religião, festividades e o teatro. A obra
teatral do Grupo Oficina poderia ser considerada como uma prática
que contém referências de hibridismo cultural, pois se norteia de uma
releitura não apenas das perspectivas teatrais em Eurípides, como
também de concepções religiosas e de culto. Partindo das idéias de
Burke (2003, p. 56-60), as Bacantes do Oficina pode ser considerada

6 O texto teatral Bacantes do Grupo Oficina teria sido retomado a partir de 1995 e
reconstruído para nova encenação em outro momento histórico, em 2011 (em várias
cidades do país) e em 2016-17.

569
Dolores Puga

uma prática de tradução cultural – termo que Burke toma emprestado


de um conceito antropológico de Bronislaw Malinowski –, uma vez
que a obra lança mão de ideias de uma cultura estrangeira, traduzindo-
as para o melhor sentido cultural brasileiro.
Nesse ínterim, o próprio arcabouço cultural de quem traduz se
sobrepõe ao traduzido, de maneira que esse sistema cultural se
“acomoda” no olhar do outro. Assim, por exemplo, é possível
“traduzir deuses”, construindo perspectivas sincréticas, que
fundamentam a construção cultural e ideológica daquele que vê. A
tradução cultural, nesse caso, dialogaria com as ideias de apropriação
de Roger Chartier, que requer a compreensão das interpretações
daquele que traduz uma cultura, interpretações essas “[...] inscritas nas
práticas específicas que as produzem” (CHARTIER, 1988, p. 26).
Segundo Burke:
Para os doadores [culturais, no caso: uma peça trágica
da antiguidade grega do século V AEC], uma adaptação
ou tradução de sua cultura parece ser um erro, enquanto
que os receptores [como o Oficina] podem igualmente
perceber seus próprios ajustes como correção dos
enganos. Em uma deliciosa e esclarecedora evocação de
sua área de trabalho, a antropóloga Laura Bohannan
descreveu o que aconteceu quando contou a história de
Hamlet para um grupo de africanos ocidentais. Os mais
velhos insistiam em corrigir “os enganos” e em explicar
a ela o “verdadeiro significado” da história, adaptando-a
à sua cultura (BURKE, 2003, p. 60).

Sem ter a intenção de “corrigir os enganos” da tragédia


euripidiana, mas antes, se atentar aos enganos de uma não valorização
cultural diferenciada – como o não reconhecimento de Dioniso no
enredo da peça, cujas raízes se fundamentariam de práticas religiosas

570
“Evoé”

estrangeiras à Tebas – o Oficina construiu um vínculo de identificação


sustentando o viés de práticas culturais julgadas e não reconhecidas na
perspectiva cultural brasileira, como as religiosidades africanas e afro-
brasileiras, bem como os rituais Tupinambás. Esses seriam os
elementos de tradução e imposição de um “verdadeiro significado”,
dos sentidos que estabelecem o exercício da apropriação. Sobre o
texto teatral do Grupo Oficina em 1987, assim caracteriza o diretor e
crítico de teatro Fernando Peixoto:
José Celso é mais dionisíaco que Eurípedes [sic]. Seu
texto, proposta para um espetáculo, estímulo para a
encenação, partitura de palavras em busca de uma
partitura musical com estrutura de ópera, avassalador e
criativo vômito de frases poéticas que incorporam até
mesmo como citação explícita elementos da vida
nacional e popular do Brasil de hoje, não é nem uma
acadêmica tradução e muito menos uma livre e
desenfreada adaptação. As Bacantes que ele elabora
como texto ou pré-texto para um projeto de espetáculo
capaz de integrar o terreiro de nossas religiões afro com
a múltipla presença de aparelhos de vídeo, necessitando
música que mescle o atabaque com o sintetizador
eletrônico, é fruto de uma insólita e mediúnica parceria:
Eurípedes[sic]-José Celso. Direitos autorais a serem
divididos 50% para cada um, ainda que historicamente
separados por dois mil trezentos e noventa e poucos
anos. E ambos devem parte de seus direitos às mais
autênticas, espontâneas e transgressoras religiões-
tradições de seus povos: Eurípedes [sic] seria pobre sem
os mitos da religião grega, assim como José Celso seria
mais pobre sem os rituais das religiões negras
(PEIXOTO, 1987, p. 10).

As perspectivas das religiosidades de matriz africana e afro-


brasileira são fundamentadas até mesmo no cenário apresentado no
texto teatral do Grupo Oficina. A caracterização do “carro naval” que
“Dyonyzios” e suas bacantes possuem para chegar à “TebaSP” é um

571
Dolores Puga

espetáculo à parte: um navio negreiro, cheio de “Balagandãs”, “Velas


Brancas Enroladas D[Sic] Hera Preta” (ASSUNÇÃO; CORRÊA;
DRUMMOND; HIRSCH, 1987, p. 27). Em um outro momento do
texto, a rubrica assim retrata o que ocorre no carro naval: “yemanjás
namoram iansãs fudileiros [sic] navais e sereias”, e o coro assim
sistematiza palavras de ordem: “phoder e felicidade” (ASSUNÇÃO;
CORRÊA; DRUMMOND; HIRSCH, 1987, p. 91).
O navio negreiro, símbolo da escravidão no Brasil, ilustra logo
ao início, e imageticamente, a crítica do Oficina pela maneira sócio-
histórica em que o país lidou com a vinda dos povos africanos, com a
diáspora negra e sua cultura. Na obra, logo ao chegar em TebaSP e
anunciar sua chegada junto às bacantes, Dyonyzios desce ao morro
para lá realizar seus ritos – tendo o morro uma das representações
basilares da desigualdade étnico-racial e sócio-histórica brasileira.
Mesmo assim, o navio negreiro criado na peça detém uma forte
concepção de poder na figura da personagem “dyonyzíaca”, na
ostentação sexual da “orgya” e na valorização dos orixás nele
demonstrados.
Nos rituais do morro, é quando o coro “xama para baixar”,
momento em que se prepara “tyrsos e coroas para incorporar”
(ASSUNÇÃO; CORRÊA; DRUMMOND; HIRSCH, 1987, p. 48).
Nesses e em outros pontos do texto é possível identificar, assim,
questões de negritude e religiosidade afro-brasileira fundamentados
em meio a um hibridismo cultural com a antiguidade grega, indicando
elementos tais como a hera (usada nos tirsos das mênades dionisíacas)

572
“Evoé”

enrolada nas velas brancas. O mesmo ocorre em outras partes da obra,


como na representação do “nascimento d [sic] Zeus”,7 quando ocorreu
a “invenção do pandeiro, da flauta, da gira, da farra” e quando
“sopraram flautas frígias, melodiaram este luxuoso auxílio d
pandeiros” (ASSUNÇÃO; CORRÊA, DRUMMOND; HIRSCH,
1987, p. 51). O pandeiro e a gira – esta última, a denominação do
encontro espiritual dos orixás na Umbanda – é mesclado ao som das
flautas frígias, povos da antiguidade.
Semelhante hibridismo cultural é identificado na definição que
o adivinho Tirésias faz de Dyonyzios para o rei Penteu: “[...] deus
ligado a marte, santo guerreiro” (ASSUNÇÃO; CORRÊA,
DRUMMOND; HIRSCH, 1987, p. 65) – em uma alusão à Marte/Ares,
deus da guerra, que as religiões afro-brasileiras fundamentaram como
Ogum/São Jorge, justamente considerado o santo guerreiro. Também
Penteu vai falar sobre o “dragão da barbárie” que “vomitou fogo”
(Assunção; Corrêa, Drummond; Hirsch, 1987, p. 65), se referindo
provavelmente ao mesmo dragão de São Jorge, visto como elemento
simbólico de religiosidades pré-julgadas, carregadas de perspectiva de
preconceitos e não aceitas – assim como o rei não aceita Dioniso como
deidade grega em Tebas. A valorização dessas religiosidades
hostilizadas é ressaltada na obra de Zé Celso e demais autores, da
mesma maneira em que é possível continuar a perceber o hibridismo

7Como é possível perceber, o texto teatral do Grupo Oficina é repleto de “erros” de


português propositais. Por isso, as demais citações diretas da obra as quais
contenham problemas formais da língua continuarão sendo apresentadas como
escritas, sem a indicação de que assim se encontravam em sua originalidade.

573
Dolores Puga

cultural, como a exemplo da caracterização de Rhea, Semele e as


Mênades ou Bacantes, no início da peça teatral:
RHEA: NANÃ. MÃE DE SANTO INICIADORA D
DYONYZIOS E MÃE D SANGUE D HERA, D ZEUS
E D CHRONOS. MENININHA. FEITICEIRA
AFRICANA E OU HAVAIANA. BRINCO D OURO.
[...].
SEMELE: FILHA DE KADMOS, OVELHA NEGRA.
MORENA ESCURA, PRETA. VIVE COM OS COROS
N A S Q U E B R A D A S . N Ã O F R E Q U E N TA A
SOCIEDADE COMO SUAS 3 IRMÃS [Agave, Hino e
Autônoe]; É A QUARTA. SANTA. É A PRÓPRIA
TERRA NO Q HÁ DE MAIS TERRA. APAIXONADA
E ILUMINADA PELO CÉU. É EDULÉIA DO
M I S T É R I O G O Z O Z O D E O S WA L D ,
SEMELEDULÉIA. É TAMBÉM A CORYPHEA,
ARIADNE, EURÍDICE, PERSEPHONA, AFRODITA,
MÊNADE LÍDER DO CORO. VINDA DO MAR,
DITIRAMBISTA. MORRE FULMINADA MAS
FELIZ: “AI, BRÔMIOS... MORRO DE GOZO OU DE
DOR...”. VAI PRO INFERNO E DE LÁ VOLTA PRA
APARECER COMO UMA N. S. APARECIDA D
BACANAL. XIFRE DE POMBA GIRA, CALCINHA
PRETA E BOTAS D COBRA OU D RÃ BABADOS E
ROSA NO CABELO CHARUTO NA BOCA.
AFRODITA: OU DE ROXO E AMARELO PULSEIRA
DE PRATA, BRINCO D OURO, ANEL DE
BRILHANTE CRINAS E CAUDAS. MANTO DE N.
S. APARECIDA TÚNICA AZUL CLARA DE
YEMANJÁ ESTRELA NA TESTA E CONCHAS.
ROUPAS D CARMEM MIRANDA.
[...]
As MÊNADES (em grego “mulheres possessas”) e as
BACANTES (em grego, pessoas furiosas ou
enfurecidas); em brazyleiro: a pomba gira [...] Baixantes
Participantes. Representações nas cerâmicas e esculturas
antigas descabeladas, fogosas, vestidas com peles d
bixos ou vestidos leves e transparentes, plumas, urukum,
brilhos, bassas (ASSUNÇÃO; CORRÊA,
DRUMMOND; HIRSCH, 1987, p. 33; 34; 38).

Prestigiando o público com uma miscelânea de referências


religiosas ou da tradicionalidade poética grega, afro-brasileira e

574
“Evoé”

brasileira, o texto Bacantes do Grupo Oficina nos apresenta


antecipadamente Dyonyzios como pertencente a uma linhagem de
crenças africanas pela representação de Rhea – mãe de seu pai, o deus
Zeus – como Nanã e mãe de santo iniciadora. Sugere a concepção de
“Semele” (sua mãe) como negra, mistura das principais figuras
femininas do panteão grego, tais como Perséfone e sua ida ao hades
para, de tempos em tempos retornar, e Afrodite, com sua simbologia
do amor – que aqui é representada pela força sexual e como Nossa
Senhora do bacanal. Ainda enfatiza que Semele simboliza a líder das
Mênades, todas pomba-giras, e por isso é como “Eduléia, do mistério
gozozo de Oswald” (ASSUNÇÃO; CORRÊA, DRUMMOND;
HIRSCH, 1987, p. 34), uma referência direta à prostituta Eduléia – de
Oswald de Andrade, de meados do século XX –, uma obra que retrata
a zona de baixo meretrício do Rio de Janeiro, conhecida como
Mangue.8
Sem adentrar, por enquanto, nas questões que dizem respeito às
referências modernistas de Oswald de Andrade, bem como a presença
da cultura indígena em Bacantes – nesse último caso como a
caracterização das Mênades pelo uso do urucum – ainda é preciso
compreender a força encantatória na figura das pombas-gira, da

8 A peça teatral Santeiro do Mangue, de Oswald de Andrade, fala da “história de


amor entre seu Olavo, que vende imagem de santos, e a prostituta Eduléia.”
(FERREIRA, 2021, p. 141), e foi publicada em formato de livro apenas na década de
1990. Em 1994, o Teatro Oficina teria feito a primeira montagem da obra, com o
título “Mistérios Gozozos” (FERREIRA, 2021, p. 141).

575
Dolores Puga

Umbanda, como elementos escolhidos para a representação dessas


Mênades. Assim descreve Cristiane de Barros:
Considerada a mais sedutora, exótica e sensual entidade
de todo o panteão umbandista, Pomba-gira desde o
princípio foi associada a uma nefasta e inconveniente
imagem de sexualidade feminina, exacerbada aos
moldes de uma sociedade que ainda preserva forte
conteúdo moralista, conservador e machista. Pomba-gira
sempre esteve relacionada à marginalidade, feitiçaria e
prostituição como relatam as histórias que fundamentam
e modelam este seu estereótipo pela literatura religiosa.
[...] Seu simbolismo de mulher-Exú, mulher perigosa,
mulher das trevas, das ruas, das beiradas, dos limites e
das margens representa um lado obscuro e sombrio de
ser abordado – a sexualidade feminina (BARROS, 2006,
p. 117).

É de forma semelhante que encontramos em Eurípides essa


retratação de perigo, de sexualidade exacerbada e da marginalização
dos ritos das mênades, considerados bárbaros dentro da construção
estética da tragédia, uma vez que os tebanos associam essa imagem
encantatória obscura com o oposto aos ritos áticos tradicionais. Essa
representação sombria do poder da sexualidade feminina é
sistematizada na peça teatral do Grupo Oficina como um discurso de
resistência, que, em 1987 (seu ano de criação), representa também
uma vontade libertária diante do autoritarismo ditatorial.
O viés conservador, da censura e do exílio pelo qual passaram
os artistas brasileiros durante o regime militar vem a ser demonstrado
como a própria concepção do reinado de Penteu em Tebas. O cenário
do palácio de Penteu é representado pela ideia de um palco italiano em
cima de um tanque de guerra – clara alusão ao controle militar. O
palco italiano, símbolo de um teatro tradicional, traz a metáfora de
uma arte convencional, aceita pelo seu padrão estético. Como pode ser

576
“Evoé”

observado, até mesmo dentro da perspectiva estética a obra Bacantes


do Oficina se propõe libertária e não apenas pelo formato do palco. De
acordo com Maria Angélica de Sousa: “[...] a arte do grupo rejeita a
encenação e o raciocínio lógico-linear característico do pensamento
ocidental. Logo, as peças constituem-se mais através da atuação do
coro em relação com o público que pela encenação de textos”
(SOUSA, 2013, p. 72). Essa é bem a ideia contemporânea dos grupos
de teatro, sobretudo o Oficina, que reconstrói o texto teatral para cada
encenação e prevê – como parte fundamental de sua característica
como grupo teatral – a atuação improvisada do coro no contato direto
com o público.9 Mas, adentrando ao conteúdo libertário da peça
Bacantes, assim descreve o site do Teatro Oficina:
O rito vive a chegada de Dionyzio, filho de Zeus e da
mortal Semelle,10 em sua cidade natal, TebaSP, que não
o reconhece como Deus. Trava-se o embate entre o
mortal Penteu, filho de Agave, que, através de um golpe
de estado, tomou o poder do avô, o Governador Kadmos
e tenta proibir a realização do Teatro dos Ritos Báquicos
oficiados por Dionyzio e o Coro de Bacantes e Sátiros
nos morros da cidade. Penteu é a personagem mais
contemporânea da peça. Ele incorpora o pensamento
dominante, herança do legado racista, patriarcal,
escravocrata e sexista, que tem na propriedade privada a
legitimação de genocídios [...] (Bacantes, 2020).
Penteu é concebido como a representação do golpe civil-
militar. A partir dele se estrutura toda e qualquer vinculação ao

9 Maria Angélica de Sousa afirma que, na estética do Grupo Oficina, há um


abandono do texto dramatúrgico em nome do que se experimenta em cena. O coro é
o elemento de contato direto com o espectador, e por isso, se recusa à passividade. A
performance é vista, assim, como um ritual (SOUSA, 2013, p. 77; 80).
10 Os nomes das personagens no site, escritos de forma diferenciada do texto teatral
de 1987, encontram-se já no texto de 2016, quando o Oficina já havia construído
modificações estruturais. Para cada momento histórico, o grupo realiza mudanças
que se adequam às questões sociopolíticas e culturais do novo período.

577
Dolores Puga

autoritarismo, ao controle das práticas religiosas, à dizimação dos


povos originários11 e, consequentemente, às suas práticas rituais, ao
viés ideológico e político pelo qual a obra fundamenta uma análise
crítica.
Voltando-se à peça teatral: “Dyonyzios – [Eu sou] O que traz a
vinha, o vinho, o prazer, o tyato pros mortais. / Penteu – E quem traz
esse vinho, esse prazer, esse tyato, eu já censurei. / Dyonyzios – A
usura da censura é glória pra Dyonyzios!” (ASSUNÇÃO; CORRÊA,
DRUMMOND; HIRSCH, 1987, p. 81). Trata-se da resposta da obra à
ditadura militar que até pouco tempo antes assolava o país com a
censura aos artistas, uma vez que, seja Dioniso (grego) ou Dyonyzios
(brasileiro), estes representam o teatro. Igualmente é possível
identificar falas do coro que retratam a opressão pelo viés religioso:
“Coro – [...] o castigo do malho do deus [Dyonyzios] / ele castiga o
enchristado / o emproado mortal que trabalha pra injustiça / em vez de
trabalhar / pra adoração / do coração bacanal” (ASSUNÇÃO;
CORRÊA, DRUMMOND; HIRSCH, 1987, p. 90). Mostra a oposição
entre a religiosidade da libertação, do prazer e da “orgya” e a
religiosidade tradicional, cristã, autoritária, séria e controladora.
Também é possível verificar a referência a um Brasil popular que
busca liberdade: “[...] na orgya na boca da voz do morro / numa

11É digno de nota que essa perspectiva da peça teatral foi ressaltada nas encenações
mais recentes: uma crítica contundente do Oficina aos movimentos sociais
conservadores que sustentaram o golpe de 2016 e balizaram cada vez mais as
práticas de genocídio indígena brasileiro, além da ascensão do pensamento fascista e
da extrema direita ao poder.

578
“Evoé”

canção popular” (ASSUNÇÃO; CORRÊA, DRUMMOND; HIRSCH,


1987, p. 90).
Na mesma perspectiva, se atentando à uma religiosidade cristã
tradicional, Agave afirma – quando volta a si, após cair no
encantamento hipnotizante de Dyonyzios: “agora eu compreendi / fui
usada por Dyonizios / pra ele acabar com a casa do senhor”
(ASSUNÇÃO; CORRÊA, DRUMMOND; HIRSCH, 1987, p. 109).
Kadmos é retratato como um político que busca apaziguar as
divergências, mas mesmo ele sofre as consequências do não
reconhecimento do deus. Assim, Kadmos discursa para “a sociedade
civil e militar”: “[...] vou ser exilado no escândalo, na corrupção, na
desonra. Eu, Kadmos, o íntegro, o sério, o honesto, o reconciliador, o
aliancista” (ASSUNÇÃO; CORRÊA, DRUMMOND; HIRSCH, 1987,
p. 110). Ao início da obra (p. 35), Kadmos, em sua caracterização
como personagem, é comparado à imagem de Tancredo Neves,
governador de Minas Gerais durante o movimento das “Diretas Já”
(poucos anos antes da criação do texto teatral) e o presidente eleito
com votos indiretos após o regime militar, porém, que nunca teria sido
empossado, devido ao seu falecimento.
A perspectiva de crítica política do Grupo Oficina, ideia de
fundamentação de uma liberdade religiosa e de atuação traduzida pela
figura de Dyonyzios e suas bacantes, vem de suas raízes no
movimento tropicalista na passagem dos anos de 1960 para 1970. O

579
Dolores Puga

Tropicalismo do grupo, encabeçado por Zé Celso, se inspirou


sobretudo no Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade que por
sua vez possui essa ideia estética advinda da “prática de ingestão ritual
da carne humana pelos índios tupis – sobretudo os Tupinambás”
(SOUSA, 2013, p. 73).
No caso do Teatro Oficina, a antropofagia – traduzida ao final
da peça com as bacantes dilacerando e devorando a carne de Penteu
(ASSUNÇÃO; CORRÊA, DRUMMOND; HIRSCH, 1987, p.
102-105) – seria o desejo de deixar-se afetar pelo outro em seus
corpos, absorvendo-os no corpo (mas essa absorção é transformadora).
Para Oswald de Andrade, as artes brasileiras deveriam se deixar afetar
pelo outro (pelo europeu) através da identificação com a antropofagia
indígena. Dever-se-ia engolir o outro e ressignificá-lo no contexto da
cultura nacional, essencialmente tupi e antropofágica (SOUSA, 2013,
p. 73). Partindo das análises do antropólogo José Jorge de Carvalho,
Maria Angélica de Sousa aponta que é preciso ter cuidado com uma
leitura sociologicamente hierarquizante que é possível ter na proposta
oswaldiana, de modo que o “outro”, o europeu, é quem controla os
meios de difusão do produto cultural resultante de uma suposta síntese
estética nacional (SOUSA, 2013, p. 74). Mas a “macumba
antropofágica”, proposta estética do Grupo Oficina não traduz um
“interesse pelo outro” de forma a hierarquizá-lo como o mais
importante. Pelo contrário, ela busca “[...] eclipsar a dicotomia entre a
cultura branca (oswaldiana) e a matriz africana expressa nos rituais de

580
“Evoé”

macumba.” (SOUSA, 2013, p. 74). O grupo possui forte ligação com o


candomblé e o utiliza com frequência no teatro em todos os rituais.
Essa característica sincrética de elementos ritualísticos afro-
brasileiros e indígenas se adequa ao pensamento antropofágico em que
é preciso “deglutir” de todas as referências possíveis para, a partir
delas, produzir algo totalmente renovado. A linguagem satírica
antropofágica mistura metáforas, metonímias e demais elementos e
essa mesma linguagem refletirá personagens polissêmicas, mesclando
“seres míticos, históricos, políticos, etc.” (SOUSA, 2013, p. 76).
O ritual de devorar Penteu finaliza-se em um banquete em que
está presente muita folia: a “folia das vadias” (Assunção; Corrêa,
Drummond; Hirsch, 1987, p. 102), uma referência não apenas à
liberdade sexual feminina, quanto ao carnaval brasileiro, constituído
da perspectiva antropofágica/tropicalista, questões que dialogam com
as ideias de Mikhail Bakhtin (2008). A exemplo, é possível apontar a
cena em que Agave – responsável por matar e degolar Penteu – traz a
cabeça do filho como fera selvagem, ostentando-a no “tyrso”, com
muita alegria, como uma “porta-bandeira” (ASSUNÇÃO; CORRÊA,
DRUMMOND; HIRSCH, 1987, p. 102; 104) – revelando ainda mais
elementos carnavalescos.
Segundo Maria Angélica de Sousa (2013, p. 75), a “sátira, o
grotesco, a carnavalização” presentes no Grupo Oficina dialogam com

581
Dolores Puga

a perspectiva bakhtiniana. Estão igualmente presentes o exagero, a


hiperbolização, o ventre, o falo à mostra. O corpo nu, característica do
Oficina, seria um ponto estratégico para Zé Celso, que consideraria
sermos como gregos e “índios” por adorarmos a nudez – afirmação
feita em entrevista concedida a uma jornalista de Campinas e
apresentada por Sousa (2013, p. 79). Sobre a festa carnavalesca em
Bakhtin e àquela fundamentada na identidade cultural brasileira, assim
aponta Dilmar Miranda:
A festa carnavalesca é o momento da total inversão do
regime dominante: a liberação, ainda que provisória, a
abolição das hierarquias, regras e tabus, o
congraçamento pagão. [...] Nas festas oficiais, as
distinções hierárquicas, com insígnias, títulos, discursos
e pompas, marcavam intencionalmente as
desigualdades. [...] Com o correr dos séculos, o carnaval
consubstanciou uma linguagem e procedimentos
próprios, uma percepção peculiar e carnavalizada do
mundo por parte do povo. A forma simbólica da
linguagem carnavalesca caracteriza-se principalmente
pela lógica “ao avesso”. A linguagem do segundo
mundo é a paródia da vida ordinária, do “mundo ao
revés”. [...] Na festa brasileira, são várias as ocorrências
do “mundo ao revés”: troca-se o dia pela noite, a vida do
bairro pelo centro da cidade, o território do trabalho e da
fadiga dá lugar para o território da dança e do prazer.
Trocam-se os papéis sexuais e sociais – homens
machistas vestem-se de mulher, adultos usam fraldas e
chupetas, cantam “mamãe eu quero mamar”; homens
graves fantasiam-se de malandro; negros e brancos
fantasiam-se de índios; pobres vestem-se de aristocratas;
pessoas da classe média vestem-se de “sujos”; animados
foliões cobrem-se com mortalhas (MIRANDA, 1997, p.
129-130; 134).
O “mundo às avessas” fundamentaria perfeitamente a
composição cênica e temática das Bacantes do Grupo Oficina.

582
“Evoé”

Ressalta-se o prazer, a festa, a “orgya”. Até mesmo Penteu, que,


curioso, resolve assistir as bacantes, é representado na obra brasileira
dentro da perspectiva simbólica da festa carnavalesca ao se travestir de
mulher. Os elementos socioculturais, ora rechaçados, agora são
exaltados – como a própria representação da macumba ou dos rituais
indígenas de antropofagia.
E é assim que a peça teatral termina: não apenas com um
banquete em meio à grande folia, como, posteriormente, com a
glorificação cultural de povos originários brasileiros e suas lendas ao
cantarem a canção “Mandu Sarará”, nome adaptado do poema
sinfônico “Mandú-Çarará” de Heitor Villa-Lobos.12 Em um catálogo
com reunião de obras do musicista, havia uma nota de sua autoria para
explicar a personagem principal de seu poema sinfônico: “Mandú-
Çarará: era um jovem índio misterioso, forte, belo e alegre, que
dançava por amor. Todos o julgavam a encarnação da magia da dança”
(VILLA-LOBOS, 1972, p. 220). De acordo com Nicolás Salaberry:
A partir de lendas indígenas recolhidas por João Barbosa
Rodrigues [botânico, antropólogo e etnólogo] durante
sua expedição científica no Amazonas, Villa-Lobos
elaborou um argumento – publicado no catálogo Villa-
Lobos: sua obra (1972) –, que serviu como fonte de
inspiração para a realização deste Poema sinfônico.
Obra bastante representativa dentro das peças com

12 Um dos expoentes compositores e musicistas brasileiros, Heitor Villa-Lobos é


conhecido também pela música modernista brasileira. Inspiração para o movimento
tropicalista e para Zé Celso no Teatro Oficina, Villa-Lobos passa então a ser também
elemento de apresentação simbólica da peça Bacantes.

583
Dolores Puga

temática indígena do compositor, é cantada por dois


coros – misto e infantil [como na peça do Oficina]– e
utiliza somente texto em nheengatu [também como no
grupo teatral. Trata-se de uma língua amazônica,
originária do século XVIII do desenvolvimento histórico
do tupi antigo], encontrados em trechos deste mesmo
material recolhido por Rodrigues. [...] O argumento
divulgado por Villa-Lobos como inspiração para o
Poema sinfônico trata da história de dois irmãos
ameríndios – uma linda jovem e um rapaz vivo e arguto
– que, por serem muito gulosos e sedentos de amor, são
levados pelo pai para o interior da floresta como castigo.
Um dos objetivos dele é afastar a sua própria filha do
índio misterioso Mandú-Çarará, considerado a
encarnação da magia da dança, por quem ela está
apaixonada. Perdidos na floresta, os dois irmãos sobem
em uma grande árvore, vêem [sic] uma fogueira e
encontram-se com o manhoso Curupira. Os irmãos
conseguem enganar o Curupira e sua velha mulher que
planejavam comê-los; assim, na ausência dele, os dois
matam a velha índia, colocando seu corpo dentro da
refeição do próprio Curupira. Ao retornar, Curupira
come por engano a carne da mulher; em seguida,
percebe a desgraça sucedida e, na sua tristeza, invoca
todas as almas e gênios da floresta – ligados à força do
mal – que, de súbito, vagam sobre a terra. Depois da
fuga, os jovens índios se refugiam na casa paterna, onde
os aguarda Mandú-Çarará (SALABERRY, 2017, p. 62;
71-72).

Como artista do movimento modernista antropofágico, Villa-


Lobos se utiliza de três lendas indígenas diferentes e de regiões
brasileiras diversas – tais como Tefé (município do interior do
Amazonas), Rio Branco (capital do Acre) e Rio Negro (noroeste
amazônico) (SALABERRY, 2017, p. 72) – para agregá-las e criar, a
partir delas, algo inovador. A própria história de Mandú-Çarará e de
Curupira é repleta de elementos das lendas antropófagas indígenas,

584
“Evoé”

como pode ser observado no argumento de Villa-Lobos apresentado


por Nicolás Salaberry.
Ao lançarem mão desta obra sinfônica cunhada por Villa-
Lobos, o Teatro Oficina coroa o final de sua “tragycomediorgya”. O
poder encantatório de Dyonyzios e suas mênades é uma festa de
carnaval libertadora, que reúne a força simbólica de religiosidades
relegadas, mas que são parte importante da cultura brasileira as quais
não corroboram do mesmo viés cristão autoritário, aceito e
oficializado – assim como se sustenta como fundamento questionador
de uma opressão política. Seja de elementos da feitiçaria negra – dos
povos africanos que no país chegaram –, seja da riqueza lendária
indígena e sua força representativa de rituais antropofágicos, as
Bacantes do Grupo Oficina é um espetáculo que faz jus não apenas a
uma apropriação à altura das tragédias de Eurípides, como se tornou
uma referência de engajamento contra o regime militar e que continua
representando questões de cunho sociocultural e político brasileiros
até os dias de hoje.

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SOBRE O LIVRO

Catalogação
Paulo Pires Duprat CRB7 5091

Preparação dos originais e Revisão


Flávia Regina Marquetti
Semíramis Corsi Silva

Diagramação
Sammy Riether
Rodrigo dos Santos Oliveira

Capa
Semíramis Corsi Silva
Sammy Riether

Imagem da capa
Wichcraft Scene with DwarvesArtist, atribuído a: Pseudo Bocchi
(Itália, 1700-1749). Domínio público. Disponível em: https://
commons.wikimedia.org/wiki/File:Pseudo_Bocchi_-
_Witchcraft_Scene_with_Dwarve_-_1954.58.5_-_Yale_University_Art_Gallery.jpg.
Acesso em: 27 jul 2023.

Formato: 16x23

Número de páginas: 594

A qualidade das imagens reproduz a dos originais fornecidos (N.do E.)

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