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Uma história fundadora da representação do eu

Lenda de narciso

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Narciso era filho da bela ninfa Liríope e de Cefiso1. Ao nascer, os pais consultaram
o adivinho Tirésias, perguntando-lhe se o filho teria uma vida longa. Tirésias respondeu:
«Sim, se não se conhecer». Durante muito tempo as palavras
do profeta pareceram desprovidas de sentido. Seriam, porém,
10 justificadas pela maneira como as coisas vieram a acontecer,
com a morte de Narciso e a sua estranha loucura.
Aos dezasseis anos, Narciso tinha o aspecto de uma
criança e, simultaneamente, de um jovem adulto. A sua beleza
delicada despertava paixões sem fim e a todas ele respondia
15 com um frio desdém. Eco e muitas outras ninfas nascidas nas
ondas e nas montanhas acalentaram, assim, um amor sem esperança por Narciso.
Então, uma das vítimas dos seus desdéns, erguendo as mãos ao céu, lançou sobre ele
uma maldição: «Possa ele amar e jamais possuir o objecto do seu amor!» A deusa de
Ramnunte2 acolheu favoravelmente esta justa prece.
20 Um dia, Narciso, fatigado da caça e do calor, veio deitar-se junto de uma nascente
de água límpida. Era um lugar de encanto: nem os pastores, nem as cabras que pastam
nas montanhas, nem qualquer outro tipo de gado, se tinham jamais aproximado dessas
águas brilhantes e prateadas; cercadas de relva, a floresta em volta protegia-as do calor
dos raios de sol. Narciso debruça-se sobre a água, tentando apaziguar a sede, mas, ao
25 fazê-lo, uma outra sede cresce dentro dele: enquanto bebe, fica seduzido pela imagem
que vê reflectida na água. Fica em êxtase diante de si próprio e, sem se mexer, com o
olhar fixo, parece uma estátua de mármore de Paros 3. Contempla, estendido no solo,
dois astros, os seus próprios olhos, os seus cabelos dignos de Baco, dignos também de
Apolo, as suas faces imberbes, o seu pescoço de marfim, a sua boca singular, o rubor
30 que tinge a brancura nevada da sua tez. Admira tudo aquilo que nele inspira admiração.
Deseja-se, ignorando-o, a si próprio. Os desejos que sente, é ele próprio que os inspira.
É ele o alimento do fogo que o incendeia. Quantas vezes atirou beijos à onda
enganadora! Quantas vezes para agarrar o pescoço que vê, mergulhou os braços na
água sem conseguir enlaçá-lo! Para quê esses esforços vãos para agarrar uma fugitiva
35 aparência? O objecto do teu desejo não existe! Afasta-te, e tu farás desaparecer o
objecto do teu amor! Essa sombra que vês é o reflexo da tua imagem. Ela não é nada

1
Deus-rio da Fócida, desprezado pelas ninfas.
2
Nemésis: deusa da Vingança divina.
3
Ilha Grega no Egeu.
em si própria. Foi contigo que ela apareceu, é contigo que persiste, e a tua partida
dissipá-la-ia, se tivesses a coragem de partir.
Mas nem a necessidade de comer nem a de repousar o arrancam dali. Estendido
40 sobre a erva espessa, contempla, sem se cansar, a enganadora imagem, e torna-se ele
próprio o causador da sua perda. Soerguendo-se levemente, estende os braços para a
floresta que o cerca: «Já alguém, ó florestas, experimentou mais cruelmente o amor?
Entre tantos amantes que, ao longo dos séculos, procuraram o vosso refúgio, algum
sofreu tanto como eu? Aquele que vejo seduz-me, mas não posso tocar-lhe e, no
45 entanto, não nos separa a imensidão do mar, nem um longo caminho, nem a montanha,
nem uma muralha de portas cerradas. Uma fina camada de água, é tudo o que se
interpõe à nossa união. Ele próprio também me deseja, pois sempre que estendo os
lábios para estas ondas límpidas, ele procura também com a boca estendida, tocar a
minha. Julgaria quase tocar-lhe, tão frágil é o obstáculo aos nossos desejos. Quem quer
50 que sejas, sai, vem! Porquê, criança sem igual, porque troças de mim? Quando te
procuro, onde te refugias? Não é, certamente, pelo meu aspecto, nem pela minha idade
que te faço fugir! Muitas ninfas me amaram. No teu rosto querido deixas-me ler não sei
que esperança e, quando estendo os braços, tu também mos estendes; ao meu sorriso
responde o teu sorriso e, muitas vezes, vi correr as tuas lágrimas, quando deixava correr
55 as minhas; com a cabeça respondes aos meus sinais e, tanto quanto o adivinho pelos
movimentos da tua boca encantadora, dizes-me palavras que não chegam aos meus
ouvidos!»
- Entendo agora: tu não és senão eu próprio. É por mim que ardo de amor, e este
fogo, sou eu que o ateio ao mesmo tempo que o sinto. O que eu desejo, trago-o em mim,
60 a minha miséria vem da minha riqueza. Oh! Se eu pudesse separar-me do meu corpo!
Voto insólito num amante: o que eu amo é o mesmo de que quero separar-me. A dor tira-
me as forças; já não me resta muito tempo de vida, extingo-me na flor da idade. Mas não
é o morrer que me aflige, pois, ao morrer, libertar-me-ei do fardo da minha dor; para
aquele que é o objecto da minha ternura, teria desejado, porém, uma vida mais longa.
65 Agora, nós dois, unidos pelo coração exalaremos em conjunto o último suspiro.
Perde a cor da tez, perde o vigor e as forças, nada resta desse corpo que outrora
fora amado por Eco. As últimas palavras de Narciso, com os olhos mergulhados na água
tão familiar, foram: «Pobre de mim! Criança querida, meu vão amor!». As suas irmãs, as
Náiades, choraram-no longamente, mas não puderam prestar-lhe as honras fúnebres: o
70 corpo de Narciso tinha desaparecido. No seu lugar, encontraram uma flor amarela tom
de açafrão, com o centro rodeado de folhas brancas.
Ovídio (escritor latino), As Metamorfoses. Traduzido e adaptado por Ana Garrido et alli, autoras de
Antologia, Lisboa, Lisboa Editora, a partir da edição francesa Les Métamorphoses, Paris, Garmer, 1996.
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