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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC/SP

Programa de Estudos Pós-Graduados em Direito

A SUPRACONSTITUCIONALIDADE DOS TRATADOS DE DIREITOS


HUMANOS: UMA NOVA VIA DE MAXIMIZAÇÃO DA EFETIVIDADE DOS
DIREITOS FUNDAMENTAIS DO CONTRIBUINTE

São Paulo

2012
1

HISASHI TOYODA

A SUPRACONSTITUCIONALIDADE DOS TRATADOS DE DIREITOS


HUMANOS: UMA NOVA VIA DE MAXIMIZAÇÃO DA EFETIVIDADE DOS
DIREITOS FUNDAMENTAIS DO CONTRIBUINTE

Dissertação submetida ao Núcleo de Pesquisa


em Direito Constitucional do Curso de
Mestrado do Programa de Estudos Pós-
Graduados da PUC-SP como requisito parcial à
obtenção do Título de Mestre em Direito.

Professora Orientadora: Dra. Flávia Piovesan

São Paulo

2012
2

HISASHI TOYODA

Dissertação submetida ao Núcleo de Pesquisa


em Direito Constitucional do Curso de
Mestrado do Programa de Estudos Pós-
Graduados da PUC-SP como requisito parcial à
obtenção do Título de Mestre em Direito.

Aprovada em ______/_________/2012.

Professora Orientadora Dra. Flávia Piovesan


3

À minha amada esposa, Amanda Larissa, que


sempre me encorajando em momentos difíceis,
vibrando comigo em momentos de alegria e
acrescentando tanto à minha vida – eu amo
você, minha outra metade.

Aos meus filhos, Ana Carolina e Victor Akio,


que me fizeram conhecer a mim mesmo e,
assim, amadurecer e adquirir experiências que
jamais conseguiria se não fosse por vocês –
meus filhos preciosos, eu passaria todas as
lutas novamente só para tê-los!

Aos meus pais, Masaharu (in memorian) e


Alice Toyoda, por acreditarem em mim (mesmo
quando eu não acreditava), e por me ensinar o
estudo – a minha herança! Vocês me deram
tudo o que preciso. Obrigado.

Dedico.
4

Ao meu Senhor Jesus, pela força e coragem


ao decorrer desta longa e árdua caminhada
que quase foi interrompida por motivos de
saúde. Por um breve momento, imaginei finda
a minha história. Contudo, Deus foi mais, e
me fez ressurgir no inimaginável, me trazendo
a cura para que eu realizasse um dos meus
sonhos, a conclusão deste mestrado!
Obrigado meu amado e querido Deus;

À minha ilustríssima orientadora, Profa. Flávia


Piovesan, que, para mim, desde sempre, foi
uma honra tê-la como exemplo a ser seguido;

À professora Maria Garcia, sempre


iluminando meus pensamentos e idéias, com
sua maneira sensata e crítica de pensar;

Aos meus demais mestres e professores,


pelo encorajamento e apoio em cada fase
deste trabalho;

Ao Secretário de Fazenda, Dr. Isper Abrahim


Lima e ao Secretário Executivo da Receita,
Dr. Juarez Paulo Tridapalli, pelo apoio
incondicional a esta pesquisa;

Ao Dr. Afonso Lobo de Moraes, meu amigo,


pela sua amizade e solidariedade em todos
meus momentos difíceis.

Agradeço.
5

"O justo cai sete vezes, e levanta-se, mas os


ímpios tropeçam na desgraça."

Provérbios, 24:16
6

RESUMO

Este trabalho considera a supraconstitucionalidade como via inovadora, e


indispensável, para maximizar a efetividade dos direitos humanos do contribuinte,
considerando a sua vulnerabilidade frente à voracidade fiscal e às estratégias
estatais de finalística estritamente arrecadatória. Teve como objetivo geral
investigar como esses direitos podem ser materializados no campo das relações
mediadas pelo exercício estatal do poder de tributar, tomando-se como pressuposto
a aplicabilidade da supraconstitucionalidade dos tratados internacionais de direitos
humanos. Seus objetivos específicos foram delinear o percurso do pensamento
sobre o poder estatal e as inflexões político-jurídicas para as relações entre o Estado
e os indivíduos a ele sujeitos; diiscorrer sobre as relações assimétricas de poder entre
o Estado e o cidadão contribuinte vulnerando seus direitos; apresentar as bases
fundantes do reconhecimento internacional dos direitos humanos e o adensamento
protetivo alcançado por meio da construção de uma via supraconstitucional para a sua
garantia e efetividade derivada dos tratados internacionais; demonstrar como a
adoção da supraconstitucionalidade pode assegurar a maior efetividade dos direitos
humanos do cidadão contribuinte brasileiro. A pesquisa demonstra que o Estado,
firmando-se como ente peculiar frente aos indivíduos e à sociedade, a despeito
de um processo histórico de mudanças na concepção e na forma de exercídio do
poder, tem exaurido da soberania a sua força inconteste perante os indivíduos.
Embora esta ainda seja um paradigma na existência do Estado, e referência para
o exercício do poder de tributar, o cenário mais recente tem colocado em
evidência a sua desconstrução, em razão do desenvolvimento de mecanismos de
defesa e concretização dos direitos humanos que não levam em conta a
territorialidade como espaço de atuação do Direito. Em sua expressão mais
avançada, o direito comunitário europeu tem logrado alcançar importantes
conquistas, revelando o papel e a contribuição crescente da aplicação dos
tratados internacionais de direitos humanos para a máxima satisfatividade dos
direitos do contribuinte. Abandona-se a idéia de cidadania em termos de
vinculação ao Estado, e define-se uma nova condição para o contribuinte, como
sujeito do Direito Internacional. A definição de um espaço jurisdicional
extraterritorial permite o alargamento do campo de proteção dos direitos
humanos, com novas alternativas de acesso à tutela judicial, o que é
indispensável em razão das estratégias e dos mecanismos sub-reptícios
utilizados pelo Estado tendo em vista unicamente a praticidade fiscal e a
eficiência da arrecadação, ameaça que não tem sido adequadamente afastada
pelos mecanismos internos de jurisdição no trato dos direitos humanos do
contribuinte.

Palavras-chave: Supraconstitucionalidade. Direitos humanos. Contribuinte.


7

ABSTRACT

This work considers the supraconstitucionality as an innovative way, essential, to


maximize the effectiveness of human rights of the taxpayer, given its vulnerability to
the fiscal voracity and state strategies for purposive strictly collection. The general
aim was to investigate how these rights can be materialized in the field of relations
mediated by the exercise of state power to tax, taking for granted the applicability of
the supraconstitucionality of international human rights treaties. Its specific objectives
were to delineate the path of thinking about state power and the political-legal
inflections for relations between the state and individuals subject to it; discourse on
asymmetrical power relations between state and citizen taxpayers weakening their
rights; provide foundational bases of international recognition of human rights and
protective densification achieved through the construction of a supraconstitucional
way for their assurence and effectiveness derived from international treaties;
demonstrate how the adoption of supraconstitucionality can ensure greater
effectiveness of human rights of the Brazilian citizen taxpayer. The research shows
that the state, establishing itself as a peculiar entity to individuals and society, in spite
of a historical process of change in the design and form of power exercise, has
exhausted from sovereignty its strength unchallenged towards individuals. Although
this is still a paradigm in the existence of the State, and reference to the exercise of
the taxing power, the most recent scenario has put in evidence its deconstruction,
owing to the development of defense mechanisms and implementation of human
rights that do not take into account the territoriality as space of execution of law. In its
most advanced expression, the European Community law has managed to achieve
important victories, revealing the role and contribution of the increasing application of
international human rights treaties for maximum satisfaction of the rights of the
taxpayer. Abandons the idea of citizenship in terms of bonding to the state, and sets
up a new condition for the taxpayer, as a subject of international law. The definition of
an extraterritorial jurisdiction space allows the extension of the protection field of
human rights, with new alternatives for access to judicial protection, which is
indispensable because of the strategies and mechanisms surreptitious utilized by
state for convenience only and efficiency of tax collection, threat that has not been
adequately pushed by the internal mechanisms of jurisdiction in dealing with the
human rights of the taxpayer.

Keywords: Supraconstitucionality. Human rights. Taxpayer.


8

SUMARIO

INTRODUÇÃO............................................................................................. 10

1 O ENTE ESTAL COMO PRODUTO HISTÓRICO DO PENSAMENTO:

DO PODER ABSOLUTO À EMERGÊNCIA DA SUA

RELATIVIZAÇÃO.................................................................................... 17

1.1 MODERNIDADE E RAZÃO: CONCEPÇÕES TEÓRICAS SOBRE O

ESTADO E O DESENTRANHAMENTO DA SUA RELAÇÃO COM O

INDIVÍDUO.......................................................................................... 18

1.2 AUTONOMIA E UNIVERSALIDADE DO SER COMO REFERÊNCIAS

PARA O ESTADO: O INDÍVIDUO COMO FULCRO DO DIREITO.............. 45

2 A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS: DO

PENSAMENTO À PRAXIS POLÍTICA.............................................................. 53

2.1 CONSTITUCIONALIZAÇÃO E FUNDAMENTALIDADE DOS DIREITOS

HUMANOS: UM PERCURSO HISTÓRICO................................................. 53

2.2 A EFETIVIDADE DOS DIREITOS HUMANOS: QUESTÕES HODIERNAS 71

3 A SUPRACONSTITUCIONALIDADE DOS DIREITOS HUMANOS........... 80

3.1 OS DIREITOS HUMANOS E SUA FORÇA NORMATIVA: A

RELATIVIZAÇÃO DA SOBERANIA ESTATAL E A PRIMAZIA DO

DIREITO INTERNACIONAL..................................................................... 80

3.2 A SUPRACONSTITUCIONALIDADE: REVERBERAÇÕES NO DIREITO

PÁTRIO........................................................................................................ 85

3.3 A SOBERANIA DO CIDADÃO : AVANÇOS DOUTRINÁRIOS E

JURISPRUDENCIAIS NA RECEPÇÃO DA SUPRACONSTITUCIONALIDADE

- O CASO EUROPEU........................................................................................ 98
9

4 AS NORMAS TRIBUTÁRIAS COMO NORMAS DE DIREITOS HUMANOS 115

4.1 O PODER ESTATAL DE TRIBUTAR...................................................... 115

4.2 A IMPOSIÇÃO FISCAL E OS DIREITOS DO CIDADÃO

CONTRIBUINTE....................................................................................... 123

4.3 A SUPERAÇÃO DO LEGALISMO E A GARANTIA DOS DIREITOS DO

CIDADÃO CONTRIBUINTE....................................................................... 130

5 SUPRACONSTITUCIONALIDADE DOS TRATADOS SOBRE DIREITOS

HUMANOS: UMA NOVA VIA PARA A MAXIMIZAÇÃO DA EFETIVIDADE

DOS DIREITOS DO CIDADÃO CONTRIBUINTE......................................... 143

5.1 A OPÇÃO PELA SUPRACONSTITUCIONALIDADE: RAZÕES

FUNDANTES............................................................................................... 143

5.2 A SUPRACONSTITUCIONALIDADE NA PROTEÇÃO DO CIDADÃO

CONTRIBUINTE FRENTE À EXACERBAÇÃO DO PODER TRIBUTÁRIO 165

5.2.1 O exercício do poder de tributar e violação dos direitos humanos do

contribuinte: casos paradigmáticos ............................................................ 165

5.2.2 O direito de resistência frente aos excessos tributários: a

supraconstitucionalidade dos tratados e a satisfatividade dos direitos

humanos do contribuinte.............................................................................. 214

CONCLUSÃO.................................................................................................... 231

REFERÊNCIAS........................................................................................... 243
10

INTRODUÇÃO

A emergência do Estado moderno pode ser rastreada até o final da Idade

Média. Não representou apenas uma nova etapa na conformação de sistemas

políticos estáveis e soberanos. Foi também o ponto de partida para uma evolução

histórica que iria culminar com a emergência do reconhecimento e proteção legal

dos direitos humanos, alguns séculos mais tarde.

O poder soberano e institucionalizado, além de delimitar a natureza das

relações entre os Estados, definiu um campo específico de regulação normativa

sobre a qual firmou-se a autoridade estatal e delineou-se o controverso caminho do

exercício do poder frente aos súditos internos.

A trajetória desse processo político foi marcada por intensos e continuados

debates no campo do pensamento, que deram visibilidade às contradições entre a

crescente afirmação do poderio estatal, por um lado, e a singular debilidade do

indivíduo, sujeito à vontade e ao arbítrio do Estado.

O questionamento das bases do exercício do poder estatal colocou em

movimento as forças propulsoras da luta contra o absolutismo, culminando com

novos modelos de governo fundados em ordem jurídica e política de base

democrática, conduzindo ao reconhecimento jurídico dos direitos humanos e à sua

constitucionalização.

Essa foi uma etapa crucial, definindo um novo rumo para a relação entre

Estado e indivíduo, historicamente permeada pela questão do exercício do poder

político e suas inflexões no Direito.

A fundamentalidade dos direitos não foi decorrência de atos voluntariosos do

Estado, cedendo de bom grado às pressões derivadas da mobilização da sociedade


11

civil organizada. Do mesmo modo, a democracia não pode ser vista como um mero

processo de adensamento dos direitos que culminou, de imediato, em maior

liberdade política e na sujeição absoluta do Estado aos ditames constitucionais.

Nesse sentido a constitucionalização dos direitos humanos e o sucessivo

acolhimento de outros, novos, representa um processo inacabado. E como tal,

também deve ser vista a sistemática legal para a sua proteção e efetividade.

Partindo desse reconhecimento preliminar, este trabalho foi construído com

base na identificação de uma processualidade histórica das relações de poder,

definindo a imperatividade da soberania estatal, fonte originária do poder de tributar.

Quando se fala em poder de tributar a primeira idéia que emerge é sobre o

exercício de uma prerrogativa vinculada a certos propósitos, econômicos ou

políticos, basicamente envolvendo a manutenção das funções estatais e a resposta

às demandas coletivas, no contexto da dinâmica das relações entre sociedade e

governo que se desenvolvem no Estado de Direito.

Todavia, tem se firmado uma outra visão acerca da posição do indivíduo

frente ao Estado, o que confere um novo sentido às reflexões e aos debates sobre

a natureza e o significado do poder de tributar.

Ao invés da considerar a teleologia da tributação, segundo o viés pragmático

que tem orientado a criação e a aplicação das normas tributárias, optou-se, neste

trabalho, por uma análise centrada na dimensão valorativa da relação tributária, o

que permite discernir novas e importantes concepções, em contraponto a conceitos

e idéias paradigmáticas que têm norteado a construção doutrinária e as

interpretações judiciais no que se refere à efetividade dos direitos fundamentais do

contribuinte no campo da tributação.


12

O espaço das relações mediadas pelo poder de tributar tem sido,

historicamente, uma instância marcada pela discricionariedade do poder estatal,

amparada na condição de supremacia do ente tributante enquanto poder soberano,

ainda que inserido num sistema democrático e vinculado às determinações legais

quanto aos limites da capacidade de instituir e impor tributos.

Este trabalho trata da relação tributária que se estabelece nesse espaço

jurídico-político contraditório, no qual, por um lado, verifica-se a afirmação dos

direitos do contribuinte, e por outro subsiste uma indiscutível vulnerabilidade do

indivíduo sujeito à exação fiscal frente ao poder arrecadatório do Estado.

A pesquisa parte do entendimento de que essa relação de poder tende a

ser excessivamente assimétrica, uma vez que o fulcro da normatização tributária

importa, muitas vezes, em desproporcionalidade, mesmo minorada pela

Constituição Federal de 1988 quando estabeleceu princípios que limitam o

exercício desse poder.

Embora exista uma expressa previsão constitucional servindo como

referência basilar para a proteção do contribuinte frente ao Fisco, é inconteste que

o exercício do poder de tributar ainda mantém-se distante do propósito primordial

de assegurar a efetividade dos direitos humanos daqueles sobre os quais incide a

exação fiscal.

Na seara tributária, dentre as matérias que suscitam maior atenção a esse

propósito de buscar a concretude dos direitos humanos, ganham destaque aquelas

que evidenciam incontestes excessos por envolver uma disparidade entre a

tributação e a capacidade contributiva, e também as que envolvem a imposição de

obrigações acessórias estapafúrdias, desnecessárias, sendo fixadas por mero

capricho das autoridades tributárias.


13

De outra parte, a imposição tributária no Brasil contribui para o agravamento

das condições sócio-econômicas da população, em razão de um modelo de

tributação regressiva que prioriza os impostos indiretos, o que contribui para elevar

a concentração da renda nacional e a perpetuação da miséria. Por conseguinte, a

tributação não é apenas uma questão de caráter administrativo, segundo o

propósito de financiamento dos gastos governamentais.

Considerando a tênue linha que separa o exercício do poder de tributação e

as instâncias de defesa e garantia concreta dos direitos dos cidadãos, este

trabalho teve como objetivo geral investigar como esses direitos podem ser

materializados no campo das relações mediadas pelo exercício estatal do poder de

tributar, tomando-se como pressuposto a aplicabilidade da supraconstitucionalidade

dos tratados internacionais de direitos humanos.

Seus objetivos específicos foram delinear o percurso do pensamento sobre o

poder estatal e as inflexões político-jurídicas para as relações entre o Estado e os

indivíduos a ele sujeitos; diiscorrer sobre as relações assimétricas de poder entre o

Estado e o cidadão contribuinte vulnerando seus direitos; apresentar as bases

fundantes do reconhecimento internacional dos direitos humanos e o adensamento

protetivo alcançado por meio da construção de uma via supraconstitucional para a sua

garantia e efetividade derivada dos tratados internacionais; demonstrar como a

adoção da supraconstitucionalidade pode assegurar a maior efetividade dos direitos

humanos do cidadão contribuinte brasileiro.

Além de abordar a controversa posição de doutrinadores e aplicadores do

Direito pátrio em face das questões enfrentadas com a aceitação da supremacia de

normas internacionais, sobrepujando a Constituição e a soberania do Estado

brasileiro, este trabalho lança uma luz sobre o processo de judicialização dos
14

dispositivos dos tratados internacionais no Direito Comunitário europeu, levando

em conta o avanço paradigmático que ali alcançaram a garantia e a efetividade dos

direitos humanos em face do poder estatal.

Com esse enfoque, a pesquisa adentrou em novos espaços do

conhecimento, envolvendo debates doutrinários importantes por colocarem em

questão antigos dogmas e possibilitarem o redesenho do campo das relações entre

o Estado e os indivíduos.

Nesse mister, além de oferecer um olhar novo e alternativo sobre o campo

possível de construção de um Direito apto a maximizar a efetividade dos direitos

humanos em sentido amplo, a pesquisa contribui para lançar novos olhares sobre a

maior proteção e concretude dos direitos dos contribuintes, levando em conta sua

natureza indissociável como direitos imanentes a sua condição de seres humanos.

Com essa proposta, esta pesquisa partilha os mesmos propósitos das

correntes do pensamento hodierno preocupadas com a construção de caminhos

alternativos e mais ascendentes para o Direito, diante do questionamento

suscitado por novos cenários que exigem respostas inovadoras e ainda mais

ousadas para a real valorização do ser humano, seja como indivíduo, ou como

cidadão contribuinte.

Para a presente Dissertação foram levantadas as seguintes hipóteses:

a) A efetividade dos direitos humanos é um vir-a-ser, pois não se encontra

cristalizada nas instituições político-jurídicas, embora delas dependa,

transcendendo os modelos interpretativos sobre os quais foram

construídas as garantias constitucionais desses direitos;

b) A constitucionalização é instância fundamental, mas não derradeira, da

garantia e concretude dos direitos humanos, não impedindo o recurso a


15

outras vias satisfativas, fora da órbita jurídica interna, onde se torna

possível alcançar maior grau de concretude desses direitos;

c) A aplicação das normas supraconstitucionais de direitos humanos

derivadas dos tratados internacionais é um novo caminho para a

efetividade dos direitos humanos do contribuinte, permitindo superar as

limitações impostas pelo viés reducionista da soberania estatal e do

legalismo constitucional à ampla aplicação de princípios e valores que

ultrapassam o campo do Direito elaborado em determinado país.

Os resultados do exame das hipóteses estão expostos na presente

Dissertação, de forma sintetizada, como segue:

- no Capítulo 1 faz-se uma revisão histórica do desenvolvimento dos

conceitos e idéias sobre o Estado moderno, como momento precursor do

reconhecimento dos direitos humanos e produto da preocupação revisionista que

marcou a busca de relações menos assimétricas entre o ente estatal e seus súditos.

- no Capítulo 2 discorre-se sobre o transcurso do pensamento para a práxis

política, com o estabelecimento de novos modelos de governo, configurando-se as

bases do Estado do Direito e um campo relacional mais objetivo quanto aos limites

do poder estatal no âmbito do reconhecimento da cidadania.

- no Capítulo 3 aborda-se a supraconstitucionalidade dos direitos humanos,

tomando-se como referência o campo emergente de uma mudança conceitual e

doutrinária acerca da soberania estatal, do sentido e significado do poder do

Estado, em consonância com a construção de uma ordem jurídica internacional

cada vez mais imbricada com as questões internas dos Estados na busca da

máxima efetividade dos direitos humanos.


16

Adentra-se ainda no debate doutrinário e posição jurisprudencial sobre o

tema, aprofundado com estudo das decisões das Cortes Européias tendo como

panorama os avanços na construção de aplicação de um direito supranacional

que se coloca acima das cartas constitucionais dos Estados-membros.

- no Capítulo 4 é tratada a questão das normas tributárias como normas de

direitos humanos, tendo como fulcro dois aspectos interrelacionados: o poder

estatal de tributar e a imposição fiscal frente aos direitos do cidadão contribuinte.

- no capítulo 5, a partir das reflexões levantadas nos capítulos anteriores, o

pensamento converge para o adensamento do tema, tratando da necessária

aplicação das normas derivadas de tratados internacionais sobre direitos

humanos para alcançar uma nova e mais completa perfomance do Direito pátrio

na garantia e máxima efetividade dos direitos do cidadão contribuinte.

Este trabalho é encerrado com as Considerações Finais, nas quais são

apresentados pontos conclusivos destacados, seguidos da estimulação à

continuidade dos estudos, apontando-se aspectos considerados relevantes para

novas investigações e adensamento do conhecimento construído nesta pesquisa.

Quanto à metodologia empregada, registra-se que, na fase de investigação

foi utilizado o método indutivo, na fase de tratamento de dados o método

cartesiano, sendo que o relatório dos resultados, expresso na presente

dissertação, foi elaborado com base na lógica indutiva. Nas diversas fases desta

pesquisa, também foram acionadas as técnicas do referente, da categoria, do

conceito operacional e da pesquisa bibliográfica.


17

1 O ENTE ESTAL COMO PRODUTO HISTÓRICO DO PENSAMENTO: DO


PODER ABSOLUTO À EMERGÊNCIA DA SUA RELATIVIZAÇÃO

A acepção do termo ‘direito’ é bastante ampla, permitindo adentrar num

vasto campo de conceitos e significados, mas o sentido atual da sua imanência

ao sujeito somente veio a firmar-se no século XVIII.

A passagem do campo idealístico para o concreto se deu quando o

conceito de “direito” passou a mediatizar o próprio homem, fazendo com que o

ser em si, enquanto objeto e fim da tutela jurídica, fosse corporificado em

instrumentos e meios pelos quais o Estado assegurava a possibilidade de

vivência concreta daquilo que antes era apenas idealístico e abstrato.

Historicamente, isso ocorreu em um período de mudanças de impacto na

organização social e política européia, para as quais contribuiu uma práxis

política que derrubou paradigmas e substitui formas tradicionais de pensamento:

A principal distinção entre a moderna linguagem dos direitos que surge


com as Declarações e Constituições do final do século XVIII, e os
privilégios existentes no período medieval é a idéia de universalidade e
reciprocidade intrinsecamente ligada aos direitos (VIEIRA, 2001, p. 297).

A concepção de direitos universais apresenta-se como contraponto a um

modelo arbitrário de exercício do poder, corporificado no Estado, que marcou

historicamente a relação entre governantes e indivíduos desde a Antiguidade.

Para melhor compreensão de como se deu essa passagem, é oportuno

conhecer o percurso histórico da transformação das bases de exercício do poder,

condensadas em momentos e modos diferentes de pensar o Estado e a sociedade,

dos quais emergiram a constitucionalização dos direitos e sua força normativa,

definindo também novas e importantes transposições do conceito de direito, não


18

mais no plano interno dos Estados, mas em uma dimensão internacional e

supraestatal.

1.1 MODERNIDADE E RAZÃO: CONCEPÇÕES TEÓRICAS SOBRE O ESTADO E


O DESENTRANHAMENTO DA SUA RELAÇÃO COM O INDIVÍDUO

No final da Idade Média, as bases políticas do poder estavam subvertidas,

em razão da emergência do poder real amparado em um conjunto normativo

com força para se impor perante os senhores feudais, e também devido a uma

ruptura definitiva com as antigas concepções acerca do homem e do mundo.

Pode-se afirmar que ocorreu uma revolução no pensamento, sendo

Maquiavel apontado como o homem que estabeleceu definitivamente um rumo

inovador em relação ao modelo medieval de reflexão sobre as bases de ação e

de exercício do poder, e acerca das relações entre Estado e sociedade.

É importante situar esse momento no contexto de uma nova cultura

européia, na qual se delineou uma posição crítica sobre o conhecimento, como

a descreve Reale (1991, p. 645):

O homem coloca-se no centro do universo e passa a indagar da origem


daquilo que o cerca. Não recebe do alto qualquer explicação, porque
sujeita tudo a uma verificação de ordem racional, dando valor essencial
ao problema das origens do conhecimento, a uma fundamentação
segundo verdades evidentes.

Essa é a era do Renascimento, assim chamado porque houve um retorno às

fontes clássicas do humanismo, da Grécia e de Roma, colocando o homem como

centro das atenções, e não mais a religião como ocorrera na Idade Média.

Niccollò Machiavelli ou Maquiavel1 foi o precursor da ciência política, sendo

considerado o fundador de uma nova visão sobre o Estado enquanto instituição

1
Maquiavel (1469-1527) foi chanceler e secretário das relações exteriores da República de Florença,
tendo desempenhado o cargo de embaixador da cidade junto a Cesare Borgia por breve período.
19

jurídico-política e um dos precursores da modernidade como um novo momento do

pensamento sobre as grandes questões humanas.

Representante da racionalidade renascentista, em contraposição ao

teocentrismo2 medieval, Maquiavel desenvolveu uma concepção de poder que não

estava baseada no idealismo ou nos moldes dos debates teológicos medievais.

Maquiavel não elaborou suposições sobre a essência do poder, preocupou-se

com os aspectos práticos do seu exercício3, abandonando o modo de pensar

escolástico, então predominante. Buscou na realidade histórica elementos que

permitissem analisar as formas e meios pelos quais os governantes estabelecem

relações de autoridade com seus súditos ou governados.

Analisando o modo de pensar de Maquiavel voltado para a realidade,

Ricciardi (2005, p. 39) comenta: “Se o objetivo for uma ação política digna de êxito, é

necessário ler os tempos e suas contínuas mudanças, ainda que a realidade não

seja completamente disponível à ação consciente e virtuosa.”

Enfocando a imanência do poder político, historicamente situado na trama das

relações concretas e imediatas entre os homens, e não num plano transcendental,

metafísico, Maquiavel definiu o percurso do pensamento racional para se chegar à

compreensão das questões práticas relativas ao exercício do poder.

Em sua obra “O Príncipe”, deixou claro que não podia mais subsistir a

concepção de poder abstraída da realidade, idealizada filosoficamente ou com base

nas crenças religiosas da justificação da sua gênese e existência na vontade divina.

2
Comentam Arnaut; Bernardo que (2002, p. 94), “Os humanistas trataram desde o início em realizar uma
ofensiva contra a Escolástica, especialmente no que se refere à metodologia, baseada nas abstrações. O
humanismo repudiava tal metodologia, pois de acordo com sua tese, a filosofia deveria ter algum uso
prático na vida social e política, ou seja, todo conhecimento deveria servir para ser usado”.
3
Goyard-Fabre (2002) descreve o projeto político de Maquiavel como sendo “[...] embasado numa
vontade de ruptura com os pressupostos idealistas e as especulações utópicas da filosofia clássica”.
O autor afirma que, para o autor italiano, “é inútil dissertar sobre o ‘melhor regime’, cujos contornos
nunca farão compreender em que consiste a natureza do Poder político; essa natureza só se exprime
através dos empreendimentos que o chamam e que ele provoca”.
20

Ele proclamou a necessidade de se concentrar na “verdade efetiva”4, para daí se

extrair os elementos fáticos, os princípios que fundamentam o poder enquanto

práxis, e não como conjunto de valores ou dever-ser.

A construção lógica do pensamento maquiavélico caracterizou, portanto, um

modo próprio de abordar o poder político, deixando de lado tudo o que não fosse

aplicável como conhecimento útil para os atos e decisões de governo.

Esse propósito relacionava-se a um dos principais fundamentos do

pensamento renascentista: o entendimento de que o homem é dotado de

autonomia e vontade, como ser dotado de uma plenitude criadora e não mero

objeto de um destino traçado pelas mãos do Todo-Poderoso que não pode

alcançar a felicidade, aqui e agora, por seus próprios meios.5

Maquiavel (2000, p. 44), ao tratar da mobilização popular em prol da

construção de um Estado liberto das amarras do poder da Igreja, afirma: “Deus não

fará tudo para não nos retirar o livre arbítrio e a parte de glória que nos cabe”.

O poder em Maquiavel relaciona-se à virtu. Não era um conceito puramente

reflexivo, mera especulação filosófica, mas qualidade essencial do governante, a

partir da qual seria possível superar o acaso e direcionar as energias e recursos

para atingir finalidades práticas por intermédio do poder político.6

“A efetividade das coisas e a efetividade da ação política, portanto, somam-se para sintetizar não só
4

a análise correta do estado atual das coisas, mas também a capacidade de se adequarem àquilo que
as circunstâncias pedem por causa da sua incontestável objetividade” (RICCIARDI, 2005, p. 40).
5
Pico della Mirandola, filósofo neoplatônico do período inicial do Renascimento (1486), em sua obra
“Oratio de hominis”, ressalta a liberdade do ser humano, com total liberalidade para tomar decisões e
fazer suas opções, de maneira a atender a seus anseios e desejos e criar as suas próprias leis,
produzindo sua própria história (BIGNOTTO, 1992).
6
Na concepção maquiavélica, o príncipe deve conciliar a capacidade (virtu) da intransigência com o
senso de oportunidade, de modo que possa tirar proveito de qualquer situação e assim ter êxito político.
Essa qualidade pessoal “é aquela autoconfiança e firmeza de convicções que permite que o príncipe
aproveite as oportunidades mesmo quando a contingência inesperada o pega de surpresa; permite que
a fortuna (i. e., o acaso, a sorte) seja dominada” (MORRISON, 2006, p. 90). A idéia de virtude também
está relacionada à fidelidade ou disposição do povo para preservar as instituições políticas, sendo este
senso de civismo tão importante quanto a virtu do governante no entender de Maquiavel.
21

Por conseguinte, o pensamento maquiavélico excluiu qualquer interferência

divina, vinculando o poder a uma teleologia pessoal daquele que o exerce. Nesse

sentido, resgatou os antigos valores da ordem grega e romana fundados no eixo

cidadania e polis.7

Maquiavel não desconstruiu a ética, pelo contrário, substituiu a moral cristã,

que entendia ser incompatível com as exigências de construção e manutenção de um

Estado articulado em torno de um poder político forte, pela ética clássica. Distinguiu

então duas éticas, a cristã, “[...] fundada na revelação e na consciência, e outra antiga,

fundada no respeito ao bem público e às leis da polis.” (BIGNOTTO, 1992, p. 6).

Esse resgate do sentido político da polis para a reflexão sobre como deve se

conduzir o governante, invalidou a ética cristã, por considerá-la metafísica pura, e

não uma referência para a ação concreta. Para Maquiavel, somente por meio da

ação, decorrente da vontade e da liberdade do homem, e não de uma vontade

superior divina, é que seria possível formar o Estado. Substituiu o universalismo,

pautado nas regras e costumes do cristianismo, enquanto bases do exercício do

poder, pelo individualismo8.

A centralidade no subjetivismo marcou o pensamento de Maquiavel, para

quem o indivíduo, dotado de certas virtudes ou qualidades podia, por si mesmo,

alçar-se à condição de governante e, utilizando-as, manter-se no poder.

7
Conforme Silva (2010, p. 40), “Sendo o palco do ressurgimento de um conjunto de valores clássicos
associados ao republicanismo, a Florença da virada do século XIV para o século XV viu surgir uma
nova vaga de interesse em clássicos como Aristóteles e, principalmente, Cícero, cuja influência no
movimento intelectual do renascimento é enfatizada por Baron. O principal legado desses clássicos
da antiguidade para os humanistas do renascimento italiano teria sido a lição de que a plena
realização da humanidade dos indivíduos só seria possível mediante a participação desses indivíduos
– qua cidadãos – nos assuntos públicos.”
8
O Renascimento exalta o homem e sua liberdade, libertando-o das amarras da idéia de um destino
pré-determinado por Deus. Trazendo-o de volta à terra, exalta a razão, e não a crença religiosa, como
motor e ponto de partida para a construção dessa liberdade. Como conseqüência, o fim da existência
passa a ser visto como aquilo que cada homem entende ser adequado para a sua felicidade e bem-
estar, conforme lhe revela a razão.
22

As virtudes do governante, todavia, não deveriam, nem poderiam

negligenciar o sentido ou finalidade do exercício do poder político, que é a polis. A

vontade coletiva representava o fim e referência primeira do governante. Se este

devia e podia utilizar-se dos meios a sua disposição para manter-se no poder, não

menos necessário era que estivesse voltado para o atendimento do interesse geral.

De modo que a obra maquiavélica elaborou um significado próprio para a

ética, não mais aquele conferido pelo cristianismo, preocupado com o agir individual

e com a divindade como a suprema julgadora dos atos humanos. Sua ética dizia

respeito aos valores públicos. Não lhe interessava a abstração, mas o que podia ser

racionalmente deduzido da realidade9 ao se observar como se conduziam os

governantes enquanto homens concretos, vivendo em uma dimensão real.10

O agir do governante, na concepção de Maquiavel, só tinha sentido e

justificativa enquanto conduta baseada nas normas11, como Direito efetivo, não

ideal, visando a defesa do interesse público.

A ética política nesse caso não significava, necessariamente, agir conforme

os ideais cristãos, tais como fraternidade ou caridade. Em Maquiavel, a conduta

justificava-se pela exigência primordial de preservar o Estado, e como tal o

governante não precisa preocupar-se em abstrações de ordem filosófica, mas com

as questões práticas tendo em vista esse propósito precípuo.

O rigor lógico e a dimensão prática do pensamento político maquiavélico

mostram-se aqui em toda a sua força e significado. Nada há, fora desse objetivo,

que possa ser questionado ou submetido à luz de reflexões metafísicas.

9
Observa Reale (1984, p. 367) que “O Poder, para o qual Machiavelli atentara, passou a ser
examinado a uma nova luz, como fato ou relação de fatos”.
10
Refere Goyard-Fabre (2002, p. 66) que “[...] o florentino abre a via de uma compreensão moderna do
direito público, na medida em que o humanismo que o conduz se reporta à experiência e à história.”
11
“O Príncipe, fundador de uma ordem inteiramente nova, tem a seu cargo fazer de seu ‘principado
novo’ um sistema jurídico, isto é, um corpo de ordenações e de leis sobre o qual se edificará sua
prática política” (GOYARD-FABRE, 2002, p. 67).
23

Por isso afirma Goyard-Fabre (2002, p. 64) que Maquiavel não somente

adentra em um caminho novo “[...] ao associar a noção de ‘poder público’ ao seu

conceito de Estado, mas também lhe é impossível pensar o Estado

independentemente do sistema regulador que é a própria expressão do Poder”.

A prioridade na manutenção do Estado, na ótica do pensador florentino, era

necessária em razão da natureza humana, sujeita à corrupção. A ordem pública só

poderia ser mantida pela sagacidade, pelas qualidades do Príncipe, seja pela via da

atenção e dedicação ao povo, mas também, pelo uso da força e por atitudes

comedidas, de modo a evitar que a benevolência passasse a ser vista como

debilidade, favorecendo a intransigência e a insubordinação popular.

Evidente, portanto, a preocupação de questionar como os Estados podiam

subsistir, não mais nos termos do pensamento escolástico, isto é, pela força dos

costumes ancorados em um conjunto de valores religiosos, mas por meio da escolha

racional, da vontade autônoma dos sujeitos, e nesse caso ele não pensava no

governante como alguém que deve e pode agir apenas por si mesmo, mas a partir

da relação com os seus governados.

Por conseguinte, ao mesmo tempo em que louvava a virtude do Príncipe, não

deixava de reconhecer que acima deste estão as normas, o conjunto de leis,

expressão máxima da vontade do povo, afirmando em sua obra “Histoires

Florentines” que “[...] a ‘Cidade’ não tem necessidade de basear sua salvação na

virtude de um homem só” (GOYARD-FABRE, 2002, p. 69).

Não era a personalidade política superior à lei, embora Maquiavel entendesse

que o Príncipe deveria recorrer à força, quando necessário, para que não

triunfassem os interesses individuais e se desvirtuasse a supremacia do Estado em

favor de alguns.
24

Mesmo assim, Maquiavel vincula o exercício do poder ao interesse coletivo,

ressaltando que toda ação do governante deve ser realizada de modo a não onerar

a população, isto é, os governados. O Príncipe, para manter-se no poder,

precisava ser capaz de discernir entre o que constitui fruto da arrecadação

tributária interna, onerosa para os seus súditos, e o que ele poderia dispor sem

maiores preocupações por ser produto das suas políticas de conquista e das

guerras contra outros povos.

Se Maquiavel deixou transparecer a preocupação com a manutenção do

principado, tampouco ignorou a responsabilidade do governante em promover o

bem-comum, no sentido do Estado atender aos interesses gerais que se

traduzem na prosperidade coletiva. A grandeza do ente estatal não decorria do

interesse particular, mas da vontade coletiva (MAQUIAVEL, 1982).

Para o pensamento maquiavélico, a força do Estado era indispensável ao

desenvolvimento da sociedade, uma vez que

[...] o bem estar de todos estaria dependente do desenvolvimento das


relações sociais (Verkehr), do alargamento sem limites da capacidade
burguesa para o comércio e a indústria, do jogo livre das forças
econômicas (HORKHEIMER, 1970, p. 23).

A virtude para Maquiavel não era uma qualidade intrínseca ao governante,

destinada apenas a manter a estabilidade do Estado e a preservar as suas

instituições. Deveria conduzir os destinos do principado, conduzindo o seu exercício

do poder ao seu fim: o interesse geral.

O pensador expressa a sua preocupação com o exercício do poder segundo a

imponderável natureza humana, por ele considerada mesquinha, arrogante,

propensa à mentira, ao engano e à busca egoística dos próprios interesses. Em

razão desses caracteres fundantes do ser humano que a sociedade se tornou um


25

espaço de constantes conflitos. De modo que somente o Príncipe, dotado de certas

qualidades, poderia assegurar a ordem e fazer imperar a vontade estatal como

instrumento para a efetivação dos verdadeiros interesses coletivos.

O núcleo de tal pensamento, ou seja, o poder e os conflitos humanos também

foi o ponto de partida para o debate erigido por Hobbes12. Todavia, na sua obra

acentua-se a preocupação não com a natureza ou a essência do poder, mas com a

relação de forças entre o Estado e o indivíduo.

O pensamento hobbesiano comungou de certo modo da visão maquiavélica

acerca da natureza humana falível, sujeita às fraquezas de caráter, inconstante,

malévola, exigindo uma necessária contraposição para assegurar a ordem social e a

perenidade do Estado e das instituições políticas.

Todavia, Hobbes não considerou as qualidades individuais, mas a existência

do Estado, como instância maior de poder na sociedade. Numa visão de totalidade,

buscou situações comuns a todos os homens, das quais nasceria o Estado, e as

encontrou no temor dos homens à morte, à violência, ao caos, e na busca de uma

vida proveitosa e pacífica para desfrute dos próprios esforços.

Explicando a gênese desse ponto de vista que fundamentou sua obra

política, afirma Lessa (2002, p. 62):

13
Hobbes recusa a concepção montaigneana , assim como a de Maquiavel,
para quem a maldade humana é um teatro inesgotável de grandes e
pequenas vilanias, e procura entender o gênero humano a partir do que,
para ele, teria sido sua característica essencial. [...] Hobbes concluiu que há
um fundamento universal para a humanidade: o medo da morte violenta. A
morte violenta aparece, para os seres humanos, como o pior dos males.

12
Thomas Hobbes (1588-1679) foi secretário de Francis Bacon entre 1621 e 1626. Escreveu
“Elementos da Lei Natural” (1640). As lutas políticas inglesas o fizeram exilar-se em Paris, onde lançou
o ensaio “Sobre o cidadão”. Retornando à Inglaterra, publicou “O Leviatã” em 1651.
13
Michel de Montaigne (1533-1592), filósofo francês, autor de “Essaies”, foi um notório representante
do humanismo renascentista. Para ele o valor maior não é a recompensa do alcance de objetivos
pessoais, ao contrário do pensamento maquiaveliano. Contrapondo-se, também, ao pessimismo
hobbesiano, as suas idéias refletem uma visão otimista do ser humano, concebendo-o como alguém
capaz de fazer escolhas e que, ao portar-se segundo referências morais, não perde a sua autonomia
e a sua individualidade.
26

Ao contrário de Maquiavel, que se preocupou com a virtu como meio pelo

qual o governante conquista o poder e o preserva, Hobbes buscou as origens do

Estado e as causas para a sua manutenção, identificando-as na tendência natural

do ser humano para o conflito em uma existência de liberdades sem limites.

Postulou que os homens, vivendo em estado de natureza, tinham uma

liberdade sem limites, o que propiciou a ocorrência de conflitos que tornaram

necessária a instituição de um ente superior para refrear e conter as vontades

individuais. De um pacto comum surgiu O Estado, como uma força apta a

estabelecer regras ao convívio social e impor limites.14 Sem o ente estatal, os

homens retornariam à sua primitiva condição, digladiando-se em luta permanente15.

O governante adquiriu o status de representante, não de determinado povo,

mas da própria humanidade, ao personificar o que todos os homens ansiavam, isto

é, a paz, a tranqüilidade e a segurança individual. Esses propósitos transformam-se

em exigência e condição para o bom governo, pois “[...] aquele que irá governar a

nação inteira deve ler, em si mesmo, não este ou aquele indivíduo em particular,

mas o gênero humano” (HOBBES, 1974, p. 10).

Por conseguinte, enquanto Maquiavel se voltou para questões específicas do

poder e o seu exercício em um Estado em particular, a perspicácia de Hobbes está

em não levar em conta particularidades, mas a humanidade em seu todo.

Isso não invalida o rigor racional com que Hobbes estruturou suas idéias,

discutindo a assimetria que o Estado impõe, já que o seu poder é soberano frente a

todos os indivíduos. Se antes todos eram iguais, com o surgimento do ente estatal

14
“É este o fundamento daquele direito de punir que é exercido em todos os Estados. Porque não foram
os súditos que deram ao soberano esse direito; simplesmente ao renunciarem ao seu, reforçaram o uso
que ele pode fazer do seu próprio [...] para a preservação de todos eles” (HOBBES, 1974, p. 190).
15
Hobbes, no Leviatã (6:46), fala sobre a natureza humana, identificando o desejo como fonte dos
conflitos humanos, no confronto das paixões movidas pelos interesses divergentes, situação
inexorável durante a existência terrena (MORRISON, 2006).
27

firmou-se uma distinção essencial entre governante e governado, base para a

garantia da observância das normas de regulação do convívio social.

O pacto constitutivo do Estado16, no cenário das irrestritas liberdades,

representou a transcendência da igualdade, no dizer de Ribeiro (2003), como

passagem do estado de natureza para o de sociedade civil organizada em torno

de um poder superior, cuja força era indispensável à ordem e paz social: “A

função do Estado é dar consistência à diferença primeira, a que separa o

Leviatã17 dos súditos” (RIBEIRO, 2003, p. 31).

Para Hobbes, o contrato social firmou-se não de modo aleatório, mas em

conjunção de vontades orientadas pela razão. Sendo esta a fonte originária do

poder estatal e, por extensão, da propriedade, no pensamento hobbesiano não

se fala em um direito natural da propriedade, anterior ao Estado, pois apenas

com o pacto social18 é que se tornou possível (MORRISON, 2006).

Hobbes identificou no soberano o mediador necessário das relações

individuais de maneira a assegurar a igualdade que, no estado de natureza, havia

sido anulada pelos conflitos de interesses. O Estado tinha o direito legítimo de

intervir nas relações privadas, para assegurar a todos o acesso à propriedade:

16
Entende Hobbes que, por mútuo acordo (o contrato social), os indivíduos transferiram parte da sua
liberdade em troca da proteção do Estado, e para isso este foi dotado de soberania, tendo um poder
superior para atingir seus fins: “É como se cada homem dissesse a cada homem: Cedo e transfiro
meu direito de governar-me a mim mesmo a este homem, ou a esta assembléia de homens, com a
condição de transferires a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações.
Feito isto, à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, em latim civitas. É esta a
geração daquele grande Leviatã [...] Aquele que é portador dessa pessoa se chama soberano, e dele
se diz que possui poder soberano. Todos os restantes são súditos” (HOBBES, 1974, p. 109).
17
Hobbes usa o Leviatã (do latim Leviathan com derivação do hebraico, aparece no Livro de Jó, cap.
40, 20-22), monstro bíblico, como representação do Estado, figura onipresente, suprema que,
inspirando temor em todos, conduz os homens ao caminho da obediência às normas que com o ente
estatal surgem para o regramento da vida coletiva.
18
Importante destacar que nem Hobbes, nem outros contratualistas, consideravam o contrato social
como um fato histórico, utilizando-o como forma de referir-se a um momento em que os indivíduos,
por mútuo acordo, estabeleceram as bases para o surgimento do Estado. Como expõe Reale (1984,
p. 650) “[...] a referência a um contrato é antes de tudo uma forma de referir-se a um critério jurídico
para expressar um consenso coletivo, de onde derivou o aparecimento do Estado.”
28

Bem o sabiam os antigos, que chamavam nómos (quer dizer, distribuição)


ao que chamamos lei, e definiam justiça como a distribuição a cada um do
que é seu. Nesta distribuição, a primeira lei diz respeito à distribuição da
própria terra, da qual o soberano atribui a todos os homens uma porção,
conforme o que ele, e não conforme o que qualquer súdito [...] considera
compatível com a equidade e com o bem comum. [...] De onde podemos
concluir que a propriedade que um súdito tem de suas terras consiste no
direito de excluir todos os outros súditos do uso dessas terras, mas não de
excluir o soberano [...] (HOBBES, 1974, p. 150-151).

É compreensível a posição de Hobbes quanto ao direito à propriedade no

contexto histórico em que viveu, com a burguesia inglesa em ascensão frente à

nobreza em cujas mãos estava a maior parte das propriedades.

O Estado e o Direito possibilitaram o surgimento da propriedade. A

juridicidade desta justificou e legitimou a cobrança dos tributos descabendo, para

Hobbes, a tese de que seria um roubo ou expropriação do Estado, pois se a gênese

deste foi o contrato social, por extensão o tributo também teve origem no livre

consentimento de todos firmado nesse pacto coletivo.

No pensamento hobbesiano, o contrato foi decorrência da terceira lei

natural. Foi produto da razão, levando os homens a perceberem a inelutável

relação entre os desejos pessoais, a liberdade irrestrita e a perenidade dos

conflitos. Foi também a via pela qual surgiu um poder soberano, necessário para

impor certas condições indispensáveis à manutenção da autoridade estatal, como

as restrições à liberdade individual e o direito de cobrar impostos.

Portanto, a efetividade do contrato social estaria na garantia que Estado podia

oferecer de que o contrato não seria violado:

Embora possa haver alguma tendência natural a usar os contratos, estes


serão inúteis a menos que exista algum poder capaz de fazê-los cumprir – e
punir seu rompimento -, mas tal poder é, ele próprio, criado pelo pacto”
(MORRISON, 2006, p. 110).

A garantia estatal estabeleceu o direito à propriedade, pois sem a estabilidade

assegurada pela força superior do Estado era impossível qualquer posse perene
29

pacífica. Num estado de liberdade irrestrita, todos podiam fazer o que bem

entendessem. A ausência de regras tornava a posse violenta uma regra natural.

O contrato social criou o Direito, e com ele surgiu a figura do soberano, não

sendo este apenas uma pessoa, mas uma instituição que representava a vontade

dos que cederam parte da sua liberdade no pacto coletivo. O soberano representava

a vontade geral, desde o momento em que foi firmado o contrato social,

transformando-se em poder exclusivo e incontestável,

[...] de cujos atos cada um dos membros de uma grande multidão, por
acordos mútuos, transformou-se em autor, a fim de que ela possa usar a
força e os meios de todos eles, como lhe parecer oportuno, tendo em vista a
paz e a defesa comuns a todos (MORRISON, 2006, p. 112).

Há quem identifique no pensamento hobbesiano a glorificação do poder

irrestrito do soberano, a justificação do absolutismo inglês, pois Hobbes

considerava inadmissível que aquele que fora designado pelo pacto social para

sobrepor-se a todos os demais, a fim de garantir que os homens não fizessem o

que bem entendessem ficasse sujeito de algum modo a esses indivíduos:

O soberano de um Estado, quer se trate de um homem, quer de uma


assembléia, não tem de sujeitar-se às leis civis. Como tem o poder de criar
e revogar as leis, deve libertar-se dessa sujeição quando bem lhe aprouver,
revogando as leis que o incomodam e criando novas leis; e,
conseqüentemente, já era livre antes, uma vez que é livre todo aquele que
pode ser livre quando quiser (MORRISON, 2006, p. 112).

Embora essa afirmativa possa ser considerada como a validação da

imperatividade absoluta do soberano, deve-se observar que Hobbes não

pretendeu derrogar o direito individual ao afirmar que a vontade do rei se

sobrepunha a todas as vontades individuais. O que afirmava é que o soberano não

podia afastar-se do propósito que levou todos os homens a abdicarem de parte da

sua liberdade para o surgimento do Estado, isto é, a garantia da proteção de cada

indivíduo e da ordem social.


30

Assim, apesar de ser interpretado por muitos como um dos articuladores da

defesa do poder absoluto do rei ou de um Estado forte e autoritário, Hobbes é

considerado o portador de uma visão política que compreende a necessária defesa

dos direitos dos indivíduos sempre que não observados pelo soberano.

Na concepção hobbesiana, agindo o soberano de maneira a obstar a

efetividade dos direitos dos seus súditos, seu poder poderia ser contestado, pois não

mais subsistiria o pacto social originário: “Se os súditos devem agir conforme a lei e

de modo previsível, o soberano deve ver a si próprio em termos semelhantes”

(MORRISON, 2006, p. 115).

Evidencia-se aqui a preocupação em colocar o Estado, na pessoa do

soberano, como meio e fim para o desenvolvimento do indivíduo e da sociedade, e

assim o absolutismo a que se faz referência garante que a coletividade não seja o

cenário do caos que a natureza humana individualista pode gerar.

Trata-se de uma concepção racional do poder, suplantando o modo medieval

de pensar, o que explica a perenidade do trabalho de Hobbes para a posteridade em

razão do caráter inovador de seu trabalho, repercutindo em tempos mais recentes:

O convencionalismo jurídico de Hobbes é inimigo mortal do direito natural


clássico. Constata-se, pois, que a revolução epistemológica que Hobbes colocou
sob a égide do mecanicismo e do racionalismo introduz uma reviravolta radical na
filosofia e, particularmente, na maneira de conceber o direito. A metamorfose mais
espetacular reside nesse convencionalismo mediante o qual Hobbes transforma a
fonte, a forma e o sentido da juridicidade, uma vez que, a seu ver, cabe à forma
da lei definir o direito e conferir-lhe força obrigatória. Nessa metamorfose
antinaturalista, encontra-se o princípio do que, três séculos depois, se chamará
‘positivismo jurídico (GOYARD-FABRE, 2002, p. 50).

O Estado e sua origem, nos termos hobbesianos, foi questionado por outros

pensadores, destacando-se Jonh Locke19, que entendeu ser o pacto social não a

19
John Locke (1632-1704) nasceu na Inglaterra, estudou em Oxford e visitou a França e a Holanda,
retornando à Inglaterra por ocasião da Revolução Gloriosa de 1688. Notabilizou-se como um dos
mais importantes precursores do Iluminismo, tendo sido árduo defensor do liberalismo, que iria ser a
referência política para as lutas contra o Estado absolutista na Europa entre os séculos XVII a XIX.
31

busca da proteção individual em si, mas da garantia da propriedade20 pessoal a qual

era ameaçada no estado de natureza pela liberdade ou igualdade sem limites.

Na concepção de Locke, os homens, a partir do contrato social, renunciaram

ao direito de fazer justiça, mas preservaram os seus direitos naturais, tais como o

direito à vida, à liberdade e à propriedade.

Há uma diferença diametralmente oposta com relação ao modelo hobbesiano

quanto ao significado desse acordo coletivo:

[...] o pacto de instituição do poder público, o Estado, é muito diferente do


21
que Grócio imaginava e do que Hobbes prescrevia. O primeiro pensa num
contrato que liga os cidadãos entre si, por um lado, e, por outro, tais
cidadãos enquanto coletividade e a instância suprema; o segundo o
concebe como cessão integral que obriga os súditos e não implica nenhuma
obrigação por parte do Estado. Locke tem uma posição diversa na medida
em que, em sua opinião, a sociedade enquanto tal - no estado da natureza -
possui a capacidade de se organizar de modo harmonioso, sem que haja
necessidade de recorrer à ordem política. O que impõe a instauração dessa
ordem é a impotência a que se encontra reduzida uma tal sociedade,
quando sua organização natural é ameaçada por inimigos internos e
externos. Os direitos naturais não têm força: é indispensável constituir um
poder que os enuncie e formalize - que lhes dê força de lei - e que imponha
sua efetividade (mediante a coerção) (CHÂTELET, 1985, p. 122).

Colocando o estado natural como anterior ao Estado, a teoria lockeana

reinterpretou a questão do poder, identificando um propósito subjacente à ordem

coletiva, derivado do pacto social.

Para Locke, a natureza belicosa do ser humano em princípio foi mediada pela

razão. Porém, não sendo esta capaz de assegurar a igualdade entre todos,

20
Embora seja apontado como um dos representantes dos ideais do liberalismo, a concepção
lockeana sobre um poder político dissociado do direito de propriedade não faz nenhuma referência a
um modelo de economia pautado nas relações de mercado: “A propriedade é sempre pensada em
conexão com a necessidade de assegurar a preservação da humanidade (e não dos indivíduos
isoladamente) e condicionada a este objetivo. Não se trata, portanto de uma propriedade privada tal
como a conhecemos, ilimitada, pois a categoria propriedade não é abordada de um ponto de vista
exclusivamente econômico, mas essencialmente moral” (CERQUEIRA, 2000, p. 11).
21
Jurista holandês, também chamado Hugo Grotius (1549-1632), amparando-se no racionalismo,
entendia que a sociedade é o resultado natural da condição humana, ou seja, antecede ao Direito
positivo. Este surge em um grupo social, e se transforma em pacto coletivo do qual se originam o
Estado e as normas jurídicas positivas, as quais têm substrato no Direito natural que lhe é anterior. O
seu pensamento representa, portanto, o chamado contratualismo parcial, ao contrário de Hobbes, que
entende ser o contrato a origem da sociedade e, por extensão, do Estado, como decorrência natural
dessa vontade comum posta a serviço de um objetivo de interesse geral, que é a proteção de cada um.
32

principalmente quando a população aumentou e se estabeleceram os conflitos de

interesse envolvendo a propriedade, o Estado fez-se necessário.

De modo que a concepção lockeana não se refere a uma natureza humana

inelutavelmente determinante de um conflito social permanente, mas ao convívio

naturalmente harmonioso. Somente quando essa harmonia foi quebrada,

instalando-se a divergência de interesses em torno da propriedade, é que o Estado

se tornou indispensável (MORRIS, 2002).

A concretização da vontade coletiva estaria então na consecução do bem

comum, por intermédio dos poderes atuando segundo as suas competências e

limitações. Locke sugeriu uma relação direta entre o Estado e a vontade popular,

intermediada pelos representantes no legislativo, o qual, junto com o poder

executivo, deve assegurar “[...] tudo o que for útil à comunidade” (MORRIS, 2002,

p. 151).

A propriedade em Locke é anterior ao Estado, pensamento próprio da

corrente jusnaturalista. Trata-se, portanto, de direito natural, inerente ao ser

humano.22 A concepção lockeana concebeu a propriedade como produto do

trabalho individual23, não sendo algo que nasceu com o Direito, como supunha

Hobbes. Para Locke ela existia antes mesmo do Estado e das normas que dele

emergiram.

Na acepção jusnaturalista, o poder do Estado é restringido por um limite

externo, derivado

22
“A Escola do Direito Natural ou do Jusnaturalismo distingue-se da concepção clássica do Direito
Natural aristotélico-tomista por este motivo principal: enquanto para Santo Tomás primeiro se dá a lei
para depois se pôr o problema do agir segundo a lei, para aquela corrente põe-se primeiro o indivíduo
com o seu poder de agir, para depois se pôr a lei. Para o homem do Renascimento o dado primordial
é o indivíduo, como ser capaz de pensar e de agir. Em primeiro lugar, está o indivíduo, com todos os
seus problemas, com todas as suas exigências. É da autoconsciência do indivíduo que vai resultar a
lei” (REALE, 1991, p. 645-646).
23
Segundo Locke (2001, II, p. 35) “[...] a condição da vida humana, que requer trabalho e materiais
com o que trabalhar, introduz necessariamente a propriedade particular”.
33

[...] do fato de que, além do direito proposto pela vontade do príncipe (direito
positivo), existe um direito que não é proposto por vontade alguma, mas
pertence ao indivíduo, a todos os indivíduos, pela sua própria natureza de
homens, independentemente da participação desta ou daquela comunidade
política. Estes direitos são os direitos naturais que, preexistindo ao Estado,
dele não dependem, e, não dependendo do Estado, o Estado tem o dever
de reconhecê-los, não pode violá-los, pelo contrário, deve assegurar aos
cidadãos o seu livre exercício (BOBBIO, 1997, p. 16).

O pressuposto do pensamento lockeano estava no primado da propriedade

em relação ao Estado e às normas que instituiu para a regulação do viver coletivo.

O homem, em estado natural, estava voltado para o atendimento de suas

necessidades, assim o fazendo por intermédio do trabalho, daí surgindo a

propriedade. As regras jurídicas se tornaram necessárias como instrumento para a

sua preservação, com elas nascendo o estado civil.

A vontade individual não foi concebida por Locke no sentido egoístico

vislumbrado por Hobbes, como causa dos conflitos entre os homens, mas

enquanto resultado de necessidades individuais, as quais foram atendidas por

meio da posse e da propriedade. A garantia destas pelo Estado, tutelando o direito

natural de cada um, permitiu a consecução do bem-estar pessoal e coletivo.

As idéias lockeanas representam um panorama convergente no cenário

europeu da época, de intenso questionamento do absolutismo. Voltaram-se para o

indivíduo, identificando como seu atributo natural o direito à liberdade, ponto de

partida para discutir os fundamentos do exercício do poder político.

É oportuno considerar que Hobbes, embora criticado pelos opositores como

defensor do absolutismo, foi justamente o precursor dessa nova era no

pensamento político, pois nele já se identificava a preocupação com a

representação: o Leviatã, “[...] enquanto ‘pessoa única’ ou unum quid [...] é uma

pessoa representativa, um ser de razão cujo poder assume a personalidade da


34

multidão reunida – o povo – que ele representa” (GOYARD-FABRE, 2002, p. 91)

(grifado no original).

Para essa autora, o pensador inglês tem sido erroneamente interpretado,

quando se fala da forma como discutiu as bases do exercício do poder:

[...] longe de simbolizar, como muitos leitores pretenderam, um Poder


individualizado ou um monstro de tirania, o Leviatã sai, muito pelo contrário,
de uma democracia originária. O Estado não é uma entidade separável do
povo: no Poder do qual ele é a sede, a potência soberana, que pertence
originariamente ao povo, é mediada pela representação (GOYARD-
FABRE,2002, p. 91).

Portanto, o rei é o povo24, concepção que confere ao pensamento hobbesiano

outro sentido. Não era propriamente um defensor intransigente do poder absoluto do

rei, embora entendesse que o Estado devia estar dotado de um poder superior

irrepreensível, o que se justificava pela necessidade da garantia da paz social.

Apesar disso, a representatividade não era ainda ao tempo de Hobbes um

conceito acabado, talvez porque a idéia de uma necessária e inquestionável razão

imanente ao poder do soberano não se adequada a um poder que se espraiava para

além da pessoa do rei. Foi somente no século XVIII, com Sieyès25 (1988) que se

estabeleceu um entendimento objetivo sobre o liame essencial entre um governo

representativo e o Estado-nação.

Subindo a montanha da razão, Locke preparou o caminho para a edificação

de novas interpretações contratualistas, dentre elas a de Montesquieu26 e

24
Rex est populus.
25
Emmanuel Joseph Sieyès (1748-1836), escritor, eclesiástico e político francês, considerado o
precursor do constitucionalismo.
26
Charles Louis de Secondat, Barão de La Brède e Montesquieu (1689-1755), foi um dos principais
representantes do Iluminismo francês. Crítico mordaz do modelo absolutista, autor da obra “O Espírito
das Leis” -“L´Esprit des Lois”, de 1748, na qual comenta sobre a necessidade da separação dos
poderes, fundamentando a chamada “teoria dos freios e contrapesos”: Executivo, Judiciário e
Legislativo devem ser poderes autônomos, mas cada um atuando de maneira e impedir que os
demais se contraponham, de modo a se assegurar um equilíbrio necessário que permite evitar
abusos e melhor encaminhar a efetiva concentração no interesse coletivo.
35

Rousseau27. Ambos insignes representantes do Iluminismo28, traduziram a seu modo

a preocupação com um processo de transformação política para superar os entraves

de um modelo político retrógrado.

O espírito crítico desses embates com a “velha ordem” é bem caracterizado

por Foucault (2009), quando fala da pretensão de uma reforma penal, no bojo das

muitas aspirações do pensamento vanguardista no seio da sociedade francesa do

século XVIII, do qual emergiu uma nova consciência sobre o poder e seu exercício,

não mais firmada em uma vontade exclusiva, mas num interesse geral.

No campo da aplicação das penas, estavam presentes os anseios de uma

nova sociedade baseada na distribuição da justiça de modo coerente com os

requisitos da igualdade entre todos, sem imperar a vontade do soberano e suas

escolhas parciais, feitas de acordo com a posição do indivíduo no corpo social.

Buscava-se, segundo Foucault (2009, p. 79) fazer com que o poder de julgar

“[...] não dependesse mais de privilégios múltiplos descontínuos, contraditórios da

soberania às vezes, mas de efeitos igualmente distribuídos do poder público.”

Resgatando essa questão de uma nova forma de poder político, atrelado a

um corpo social coeso, conforme o conceito de Nação-Estado, encontra-se em

Montesquieu uma visão das exigências de mudança propugnadas pelos iluministas

em geral. Não concebeu o conflito como situação onipresente antes do

surgimento da sociedade civil, considerando o estado de natureza como

27
Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), tendo nascido em Genebra, Suíça, tornou-se um dos mais
influentes pensadores iluministas na França, participando da elaboração da Encyclopédie.
Transitando entre a razão e a fé calvinista, retornou em 1754 a Genebra pra professar sua fé, mas em
1755, de volta à França, se lança em um projeto pessoal para discutir as questões cruciais da época,
do qual nascem seus livros mais importantes: “Nova Heloísa” (1760); o “Contrato Social” (1762) e
“Emílio” (1762). Esse período, porém, foi marcado pela ruptura com os enciclopedistas e com as suas
próprias raízes suíças.
28
Os filósofos iluministas assim eram denominados porque entendiam que a razão, imiscuída nos
atos de governo, seria o instrumento de iluminação, do esclarecimento geral, dando origem a um
novo homem e a uma nova sociedade, liberta das amarras do obscurantismo, das crenças errôneas,
conduzindo a um patamar de desenvolvimento geral pautado na valorização da liberdade e do
potencial humano.
36

pacífico. Somente quando os homens se reuniram para viver coletivamente é

que se tornaram mais evidentes as paixões, as diferenças, ou o que ele chamou

de “estado de guerra”.29

Nesse entendimento, as leis positivas surgiram em razão de um cenário

marcado pela belicosidade e a ameaça ao equilíbrio da vida em sociedade. Mas

embora necessário, o poder estatal não estava necessariamente vinculado a

uma vontade exclusiva e indiscutível, na pessoa do soberano.

Era preciso definir um modelo de governo apropriado à efetivação do

primado da ordem natural, da lei e da justiça, o que significava a consagração

da vontade da sociedade civil a partir de um modelo representativo, que fosse

apto a realizar as mudanças que defendiam na ordem política e social vigente.

Montesquieu (1973, p. 180-181) considerou necessária uma tripartição do

poder: executivo, judiciário e legislativo. Discutiu a correlação de forças num

sistema de governo desse tipo, explicitadas na sua obra “O Espírito das Leis”:

Quando os Poderes Legislativo e Executivo se reúnem na mesma pessoa ou


no mesmo corpo de magistrados, não poderá haver liberdade, porquanto
sobrevirão apreensões de que o mesmo monarca ou o mesmo senado
promulguem leis tirânicas e executem estas leis de maneira tirânica. Também
não haverá liberdade se o Poder Judiciário não for separado do Legislativo e
do Executivo. Se unido ao Legislativo, a vida e a liberdade dos governados
estariam expostas à arbitrariedade, porquanto os juízes seriam legisladores.
Se unido ao Poder Executivo, os juízes poderiam portar-se com violência e
opressão.

No pensamento hobbesiano, a lei é a expressão da autoridade máxima do

soberano30. Para Montesquieu, a lei expressa o primado de uma vontade geral, a

qual não se confunde com o Poder Executivo, nem com o Legislativo ou o

29
“O Espírito das Leis”, Livro XI, cap. VI.
Bussuet, um dos teóricos do absolutismo francês, encontra em Hobbes inspiração para seu
30

entendimento sobre o poder absoluto do soberano, concentrado, como vontade única, representação
do Estado, na qual se dilui a vontade popular: “Bossuet descreve o essencial da soberania
monárquica numa subdivisão que traz o seguinte título: ‘O que é a majestade?’. Nela encontramos a
incorporação do povo no rei e a unificação das vontades da multidão, características da problemática
do Leviatã: ‘O príncipe, enquanto príncipe, não é considerado como um homem particular: é um
personagem público; todo o Estado está nele; a vontade de todo o povo está encerrada na sua’.”
(JAUME, 2005, p. 180).
37

Judiciário. Essa separação arbitrária possibilita fixar certos limites para o exercício

do poder.

Mais do que a separação, enfatizou Montesquieu que o principal seria uma

organicidade desses poderes, delimitando-se as suas competências ou atribuições

de tal forma que, em seu todo, pudessem concorrer para a consecução dos fins do

Estado por meio do equilíbrio entre as forças de cada instância de governo.

Para tanto, ele atribuiu à Constituição a primordial tarefa de definir

precisamente o campo de atuação de cada poder, conferindo-lhes as garantias de

sua atuação e, por outro lado, estabelecendo-lhes os devidos limites.

A força das normas constitucionais assumiu, em Montesquieu, um papel

fundamental para garantir que os poderes exercidos em nome do povo não

desvirtuassem a sua finalidade com desmandos, para isso atuando de forma

decisiva o controle recíproco dos poderes e dos seus órgãos.

Mesmo tendo Hobbes feito referência à lei e à sua supremacia, entendeu que

a força da norma emana da autoridade exclusiva do monarca, de modo que não

poderia haver uma limitação legal ao poder real. Em posição contrária, Montesquieu

afirmou que um bom governo exige um monarca cujos poderes encontram limites,

na força das leis e em outros poderes.

Do mesmo modo, Jean-Jacques Rousseau se contrapôs à submissão total da

vontade coletiva a uma só pessoa, afirmando que a soberania não é alienável, e

tampouco representável (DUSO, 2005).

A concepção de Rousseau estava centrada na representatividade, entendendo

ser o povo, e não o soberano, a fonte originária do poder. A vontade política não

estaria apenas no soberano, devendo ser partilhada com o povo, para o qual os atos

de governo devem se dirigir a fim de responder aos seus anseios e necessidades.


38

Portanto, o pensamento rousseauniano colocou a soberania popular como

sustentáculo necessário do Estado, não se confundindo este com o soberano. Para

Rousseau, “[...] é preciso demonstrar que o desnível quase ontológico entre o príncipe

e os súditos é a matriz de todos os elementos do arbítrio” (JAUME, 2005, p. 179).

O pensador pauta-se na transcendência do sujeito, pela ascensão da vontade

popular em detrimento do poder exclusivo do soberano. A soberania popular, além

de estabelecer regras para o convívio social, deveria ser ineterpretada

objetivamente, como expressão das necessidades e desejos do povo.

Para esse filósofo, a relação dialógica entre sujeito e norma era a condição

para que o contrato social31 refletisse a vontade de quem lhe deu origem, impedindo

o exercício absoluto do poder, dissociado dessa vontade originária: “Se as máximas

do juízo individual permitem a comunicação com aquilo que a lei ordena, eu estou,

ao mesmo tempo, livre e obrigado, eu só obedeço, como dirá no Contrato, à lei que

prescrevi a mim mesmo (JAUME, 2005, p. 185).

Portanto, Rousseau não compartilhava das ideias de Hobbes, nem de Locke.

Não admitiu a idéia da cessão da liberdade, feita por todos os homens para assegurar

a proteção comum, nos moldes do pensamento hobbesiano. E tampouco aceitou a

tese de que o pacto social nasceu da percepção dos ganhos decorrentes da criação

do Estado, com a garantia da propriedade individual, como entendia Locke.

Na concepção de Rousseau, o contrato social surgiu de uma necessidade

natural. Os homens, vivendo em estado de natureza, não podiam subsistir diante

dos desafios da sobrevivência isolada. A criação do Estado tornou-se necessária

para assegurar a todos as condições adequadas à sua sobrevivência.

31
Rousseau reconhece que a concepção de contrato social não pode ter conotação jurídica, já que
não se trata de um contrato propriamente dito, firmado em algum momento histórico, sendo
necessário considerá-lo mais apropriadamente como uma ficção necessária para a compreensão do
sentido e significado do Estado como instituição concreta e não abstração, afirmando assim que se
trata de um ato “puro de entendimento que raciocina” (GOYARD-FABRE, 2002, p. 222).
39

O contrato social proposto pelo pensador francês não eliminou a obediência

a um governo, mas não excluiu a supremacia da soberania popular, a qual, desde

o contrato social, passou a orientar as relações entre o Estado e a sociedade.

Em Rousseau o pacto social tinha como propósito assegurar a liberdade

individual que o homem já possuía vivendo em estado de natureza. O surgimento

da sociedade civil teria possibilitado garantir a liberdade, por intermédio do Estado

e do poder por ele exercido. Da vontade geral32, manifesta com a formação da

sociedade civil pelo contrato social, estabeleceu-se o primado dos interesses de

cada integrante, com o resguardo da liberdade originária, e a igualdade conexa:

Sendo os cidadãos todos iguais pelo contrato social, o que todos devem
fazer, todos podem prescrever, ao passo que ninguém tem o direito de
exigir que um outro faça o que ele próprio não faz. Ora, é justamente este
direito [...] que o soberano dá ao príncipe instituindo o governo
(ROUSSEAU, 1995, p. 98).

Comentando sobre a vontade geral no pensamento rousseauniano, quanto á

soberania popular e a relação com o governante, Durkheim (1980, p. 365) afirma:

[...] a vontade geral é infalível, quando é ela mesma. Ela é ela mesma
quando parte de todos e tem como objeto a coletividade em geral [...].
Ela não pode pronunciar-se nem sobre um homem nem sobre um fato.
Com efeito, o que a torna competente quando se pronuncia sobre o
corpo da nação indistintamente é que, então, é o árbitro e a parte de um
mesmo ser considerado sob dois aspectos. O soberano é o povo no
estado ativo; o povo é o soberano no estado passivo.

Rousseau admitiu um soberano ou um grupo de pessoas no governo, como

corpo distinto33, dotado de vontade própria, de modo que a igualdade entre todos

deixava de ser absoluta.

32
A concepção de vontade geral em Rousseau não significa anulação da vontade individual.
Comentando sobre a questão, afirma Jaume (2005, p. 186) que “[...] a vontade geral não é externa à
consciência do cidadão enquanto tal. Ela é, afinal, a vontade de se examinar do ponto de vista do
bem de todos: interiorizada individualmente por ser geral para todo o povo, mas universal por ser
apreensível a partir da interioridade pessoal.”
33
Rousseau utiliza o termos corpo político para referir-se a uma instituição ou indivíduo soberano, ou
seja, como elemento ativo, e Estado quando passivo; os indivíduos genericamente integrando o povo
são cidadãos quando participam da autoridade soberana, ou seja, quando ativos, e denominados
súditos quando sujeitos às normas estatais, isto é, na condição de sujeitos passivos (GOYARD-
FABRE, 2002, p. 223). Ainda segundo a autora, “[...] o Príncipe e o Estado são estruturalmente
corpos ou órgãos; enquanto que o Governo e o Soberano são funções ou potências” (p. 228).
40

Negou, todavia, que esse corpo pudesse assumir funções exclusivas de

acordo com a sua vontade, a qual deveria prender-se à lei enquanto expressão

da vontade geral, pois o soberano estaria na posição de representante da

população: “Não sendo a lei senão a declaração da vontade geral, está claro que,

no poder legislativo, o povo não pode estar representado; mas pode e deve sê-lo

no poder executivo, que outra coisa não é senão a força aplicada à lei

(ROUSSEAU, 1995, p. 96).

Nesses termos, o Legislativo foi considerado um poder que não podia ser

representativo pois, uma vez constituído esse corpo, a tendência seria a

usurpação da soberania, deixando os legisladores de serem simples mandatários

do poder a eles atribuído. Transformar-se-iam naquilo que o contrato social não

desejava, um obstáculo à liberdade de cada um (fazendo com isso referência ao

parlamento inglês, o qual, segundo ele, tornou-se um poder absoluto em si

mesmo) (JAUME, 2005).

Para Rousseau, a soberania é expressão da vontade individual, consistindo

em cada indivíduo examinar, a partir de sua própria consciência, as condições

pelas quais deve ser buscado um interesse comum. Sendo uma condição sine

qua nom pertinente a cada cidadão, não é possível delegá-la a um representante:

A soberania não pode ser representada pela mesma razão pela qual não
pode ser alienada; ela consiste essencialmente na vontade geral, e a
vontade não se representa: ela é a mesma ou é outra; não há nenhuma
solução intermediária. Com efeito, consiste na vontade, por parte do
sujeito político, de examinar-se do ponto de vista de todos, procurando
assim o bem de todos (JAUME, 2005, p. 192).

Fica evidente o pessimismo rousseauniano com relação à

representatividade, o que o levou a concluir que o contrato social, originariamente

pautado na defesa ampla da liberdade individual, se transformaria em instrumento

pelo qual essa mesma liberdade seria cerceada, de alguma forma, pelo poder
41

político. Analisando essa posição, Jaume (2005, p. 192) entende que o discurso da

soberania em Rousseau assume “[...] um acento trágico”.

Na concepção desse filósofo, o ato de governar é o exercício de uma

prerrogativa e, portanto, não pode constituir uma forma de dominação, amparada

em decisões arbitrárias (GOYARD-FABRE, 2002).

O referido pensador francês também fez menção a outra questão crucial,

intrinsecamente ligada à liberdade, debruçando-se sobre o tema do poder e das

relações entre indivíduo e Estado: a igualdade das pessoas na sociedade civil.

Para Hobbes a igualdade era uma capacidade equivalente entre todos os

homens, não sendo tolhidos por nenhuma norma nem pelo Estado ao viverem em

estado de natureza. Porém, em razão dessa mesma igualdade, criavam-se as

condições para a ocorrência dos conflitos e da violência, daí a imperiosa mediação

e intervenção do Leviatã, como poder superior a quem nada poderia resistir.

No mesmo caminho, Rousseau enveredou pela questão do estado de

natureza, mas construiu o seu pensamento de maneira a refutar a idéia da

igualdade originária hobbesiana. Em seu lugar, pressupôs a igualdade civil, que

seria, com base na soberania da vontade coletiva, uma igualdade substancial.

Essa liberdade, para Bastos (2001, p. 5), corresponde a um “[...] tratamento

uniforme de todos os homens. Não se cuida, como se vê, de um tratamento igual

perante o direito, mas de uma igualdade real e efetiva perante os bens da vida.”

A igualdade foi perdida, no entender de Rousseau, devido à maior

complexidade do viver humano, com o surgimento de sociedades mais avançadas,

tornando-se a propriedade privada o elemento diferenciador dos homens.

Sob esse ponto de vista, a igualdade ampla, na concepção rousseauniana, só

existiu antes do surgimento da sociedade civil, quando os homens viviam em estado


42

de natureza. Contrastando com Locke, para quem a norma devia atender a um fim

precípuo, que é aquele que deu origem ao Estado, isto é, garantir o direito à

propriedade, Rousseau tinha uma perspectiva mais ampla de igualdade, que não se

limitava à garantia do direito de posse de bens de qualquer tipo.

O que se depreende na tese rousseauniana, é que a igualdade passou a ser

formalmente produto de garantias normativas, como construção jurídica, ao mesmo

tempo em que, originariamente, no estado de natureza, havia outra espécie de

igualdade, consubstanciada na ausência dessas mesmas normas.

A distinção entre igualdade formal e material, encontrada em Rousseau, pode

então ser considerada como uma visão original e diferente daquela que se encontra

em Hobbes e Locke. Este, particularmente, representando a visão liberal da

sociedade, do Estado e dos indivíduos, tomou a propriedade como referência central

para caracterizar a igualdade.

Rousseau, todavia, trilhou outro caminho. Entendeu que a igualdade nasce do

contrato social, pressupondo este o bem-estar de todos, indistintamente, consoante

a vontade geral34 relativa ao corpo político considerado em sua posição soberana35

como totalidade das vontades individuais. Com esse pacto, as liberdades

individualmente consideradas deram lugar à liberdade civil tutelada pela lei.

O valor que tem sido atribuído ao pensamento original de Rousseau está

na singular proclamação da subjetividade como valor que deve ser preservado,

mesmo quando o pacto social substitui a vontade individual e a liberdade pessoal

34
“A vontade geral é um conceito específico; não se trata do simples cálculo matemático da ‘vontade
de todos’, como a mera manifestação empírica dos votos em qualquer sistema eleitoral simples. A
vontade de todos só se converte em vontade geral quando estiver em conformidade com os objetivos
do bem comum; em geral, é simplesmente a vontade de uma maioria, ou de uma minoria que tem
voto” (MORRISON, 2006, p. 190). Rousseau considera que a democracia verdadeira seria aquela na
qual o máximo de pessoas pode expressar diretamente a sua vontade, o que na prática dificilmente
pode se concretizar.
35
“[...] desse modo, cada qual se dá conta de que seu próprio bem e o bem comum estão
interligados.” (MORRISON, 2006, p. 190).
43

em uma vontade social e em uma liberdade coletivamente assegurada pela lei e

pelo Estado.

Para Morrison (2006), esse pensador francês deu destaque ao perigo da

legitimidade aparente conferida por um modelo ou sistema político, no qual se

enfatiza um poder representativo e uma autoridade adstrita a normas

garantidoras dos direitos individuais.

A mensagem de Rousseau é clara: a transferência das liberdades pessoais

em nome da segurança coletiva e do bem-estar de todos, por meio de uma vontade

geral totalizadora, é vista como algo que tanto pode levar a bom termo esse

propósito de satisfazer as necessidades individuais pelo corpo político, como pode

resultar numa subversão dos direitos elementares que deveriam ser tutelados.

Isso tanto é mais verdade, quanto mais difícil é o debate coletivo e o

consenso que deve nascer da participação direta36 de cada integrante da

sociedade civil, em razão da intervenção e intermediação de um corpo político

representativo.

O fulcro das contradições nesse caso está na dificuldade de conciliar a

vontade geral com as particularidades dos atos e decisões de governo inerentes a

seus propósitos, estrutura e organização.

Tratando Rousseau da relação entre Soberano e Estado, não os faz convergir

para o mesmo ponto; pelo contrário, os separa, em razão da mediação realizada

pelo Governo: “A mediação é ligação; mas une sem unificar. A relação

desesperançada entre Soberano e Governo é um ponto de fracasso ou, pelo menos,

sempre, de conflito” (GOYARD-FABRE, 2002, p. 231).

36
“[...] a seu ver, o único regime correspondente à relação correta que se pode imaginar entre o
Soberano e o Governo – regime no qual o Governo é a média proporcional entre o Soberano e o
Estado – é a democracia direta. Ora, não só, nessa ficção matemática, a própria idéia de Governo se
revela inútil, mas, de fato, esse regime é impossível [...]” (GOYARD-FABRE, 2002, p. 230).
44

A lição aportada por Rousseau continua válida ainda hoje: o governo, mesmo

legítimo, não é necessariamente o concretizador da vontade geral. Como mediador

entre o Estado e o povo, representa uma questão atormentadora. Constitui nesse

sentido um tema particularmente importante no campo da tributação e da efetividade

dos direitos humanos, como será abordado mais adiante.

A tensão permanente vislumbrada por ele refere-se à necessidade do homem

de valer-se do subterfúgio da liberdade política como espaço para garantia e

valorização da liberdade originária individual, diluindo-se essa no conjunto das

instituições políticas que, por meio de um poder difuso, passam a mediar as

vontades e necessidades coletivamente consideradas.

Rousseau sugere que a liberdade política muito bem pode ser vista como

uma ilusão, necessária, mas mesmo assim uma ilusão. Por isso tem sido apontada

como relevante e atual a posição crítica levantada por esse contratualista francês: “A

mensagem de Rousseau para nós pode muito bem ter sido simples: cuidado com

todas as teorias sociais que pretendem fazer com que a modernidade pareça

natural” (MORRISON, 2006, p. 193).

Destaca-se que essa questão da modernidade, levantada pelas análises

críticas de Rousseau sobre uma era da razão como elemento condutor da

sociedade, não nasceu com ele, tendo como precursor o filósofo Imannuel Kant.

Esse pensador alemão aportou especial contribuição para o debate e a

construção das bases do pensamento político-jurídico que iria desembocar na

constitucionalização dos direitos, particularmente ao tratar da responsabilidade

individual e coletiva, incluso o Estado, na construção de uma nova sociedade

amparada em valores e preceitos fundamentais, não de ordem metafísica, mas

diretamente revelados pela razão e expressos nas normas positivas.


45

1.2 AUTONOMIA E UNIVERSALIDADE DO SER COMO REFERÊNCIAS PARA O


ESTADO: O INDÍVUO COMO FULCRO DO DIREITO

Fazendo um recorte no processo histórico de afirmação do Estado e da

limitação constitucional dos seus poderes para a garantia dos direitos do cidadão,

é oportuno adentrar no pensamento kantiano, centrado numa visão racional que

definiu uma nova base na relação entre o homem e o Direito.

Kant postula uma ética que não é produto de uma intuição moral, mas da

própria razão. O pensamento kantiano desconfiou de tudo o que foi erigido antes

em dogma, tanto no campo religioso, como político. Por isso sua forma de pensar

foi rotulada de crítica37. O filósofo não negava a realidade, mas defendia o

emprego da razão para ir além das aparências criadas por modos não-racionais de

pensamento.

O sentido finalístico da sua filosofia tornou Kant um pensador típico da era

da subversão das instituições políticas e morais do seu tempo38. A visão kantiana

do mundo estava ancorada na superação de toda irracionalidade, por meio do que

chamava de “razão pura”, recurso essencial para atingir a realidade, despindo-a de

tudo aquilo que a cultura e as crenças e superstições humanas haviam estabelecido

como supostos retratos da realidade.

Em Kant não há lugar para a metafísica39. Ele postulou uma regra moral

universal que se desdobraria de uma razão universal, comum a todos, mas que não

37
“Somente a crítica é capaz de “[...] cortar pela raiz o materialismo, o fatalismo, o ateísmo, a
incredulidade dos espíritos fortes, o fanatismo e a superstição, que podem tornar nocivos a todos e,
por último, também o idealismo e o ceticismo, que são sobretudo perigosos” (KANT, 1994, p. 30).
38
Kant prefacia sua obra “Crítica da Razão Pura” observando que “Nossa época é, essencialmente,
uma época de crítica à qual tudo deve submeter-se. A religião, por conta de sua santidade, e a
legislação, por conta de sua majestade, tentam manter-se à margem do espírito crítico. Ao assim
procederem, contudo, despertam suspeitas contra si mesmas e não podem reivindicar aquele
respeito sincero que a razão confere a quem quer que consiga resistir a seu exame livre e aberto.”
39
O conhecimento só pode alcançar o que está no mundo sensível, nada além dele pode ser objeto
do conhecimento ou da demonstração racional. Mas Kant não refuta totalmente a metafísica, apenas
entende que ela não é o instrumento adequado para se chegar ao conhecimento da realidade, que
somente pode ser acessada pela via da razão.
46

seria produto de determinações anteriores ao sujeito enquanto ser dotado de razão,

sendo o homem, portanto, apto a fazer escolhas a partir dela.

Segundo o modo de pensar kantiano a moral não é externa, e sendo

intrínseca a cada homem apenas o Direito pode alcançar o propósito de estabelecer

condutas socialmente válidas e uniformes. O Direito, como produto da razão, é

direcionado para o foro exterior e não perquire sobre as intenções, mas apenas

sobre o concreto vivido através das ações dos homens (BERGEL, 2001).

Foi também na razão pura que Kant buscou uma explicação para o poder do

Estado. Nesse sentido, se afastou do naturalismo dos iluministas. Ele não se valeu de

supostas leis naturais justificadoras do poder estatal, mas tomou a razão universal

como referência para a compreensão da relação entre indivíduo e Estado.

Partindo do pressuposto que a razão não está nas coisas, mas no sujeito

que conhece, o pensamento kantiano concebe as bases da liberdade em sua

relação com a intencionalidade do sujeito:

A liberdade, de fato, indica que os motivos da ação provêm da razão, e,


portanto, só surge a partir do exercício da vontade. Esta, enquanto
origem e fonte da liberdade, não pode ser, por sua vez, qualificada como
livre. Se assim fosse, significaria que ela receberia seus motivos de uma
instância que lhe é superior, ao passo que ela mesma é a instância
donde se originam os motivos com base nos quais é possível qualificar
algo como ‘livre’ (RAMETTA, 2005, p. 261).

Portanto, a idéia de liberdade40 em Kant tem na razão um fundamento

determinante, ou seja, o agir individual somente pode ser entendido como

realmente livre quando há a mobilização para a ação pautada em motivos

apoiados pela razão.

40
A liberdade em Kant não é o produto de um direito natural, tampouco encerra uma origem
metafísica, proveniente de vontade divina superior. Também não é produto da princípios inferidos
racionalmente, mas o arbítrio, como expressão do sujeito autônomo. “Não é simples excogitação de
possibilidades para a ação, mas consciência da capacidade de realizar concretamente estas
possibilidades agindo em sentido causal sobre o mundo exterior” (RAMETTA, 2005, p. 260).
47

A razão prática é a própria vontade, da qual derivam tais motivos para a

ação. Não sendo determinada por eles, não pode ser “qualificada como livre”.

Somente o arbítrio expressa a liberdade.

Kant partiu de certas regras da moralidade, de validade universal, pelas

quais o livre arbítrio pode levar o indivíduo a agir, ou abster-se de agir,

sintetizadas em uma lei válida para todos, um imperativo categórico: “Age

externamente de modo que o livre uso de teu arbítrio possa coexistir com a

liberdade de todos de acordo com uma lei universal” (KANT, 1993, p. 50).

Da leitura dessa máxima universal, pode-se identificar como pressuposto

kantiano para a liberdade como direito inato, anterior a qualquer outro, a liberdade

dos demais: “A liberdade, na medida em que pode coexistir com a liberdade de

qualquer outro segundo uma lei universal, é este direito único, originário, que

corresponde a todo homem em virtude de sua humanidade” (KANT, 2003, p. 83).

É possível identificar uma relação entre a liberdade kantiana e a liberdade

segundo o entendimento de Locke e Rousseau, enquanto direito inato, não criado

por normas humanas ou pela simples vontade de uma autoridade.

No pensamento kantiano essa liberdade assumiu um tom profundamente

humanístico, o que é compreensível ao centrar-se na questão do ser em si, e não

do objeto do conhecimento, postulando assim uma liberdade da qual nascem

todos os outros direitos. A liberdade para Kant é anterior a eles, confunde-se com

o próprio sujeito que, dotado de razão, pode compreender o real significado da

sua liberdade e exigir a sua garantia pelo Estado, devendo este, por todos os

meios, assegurar esse direito natural originário41.

41
Sendo originário como direito, a liberdade é direito a priori, portanto Kant opõe-se a Hobbes quanto
à cessão plena de direitos a um soberano ou ao Estado, já que este não é superveniente à liberdade
enquanto “idéia a priori da razão prática” (RAMETTA, 2005, p. 277).
48

Por sua vez, centrando-se no homem, a verdadeira liberdade está na sua

“[...] sujeição à lei moral que ele próprio se outorga e atinge seu ponto mais alto

quando o homem reconhece a necessidade dessa lei e sua absoluta autoridade

sobre as ações do agente racional” (MORRISON, 2006, p. 179).

Kant aproximou-se do pensamento de São Tomás de Aquino42, ao

considerar o valor moral do ser humano, ou seja, ao entender que a liberdade é a

base sobre a qual se erigiu o sentido e significado de “ser humano”. Subvertendo

as teses deterministas, para ele a liberdade confere ao homem a

autodeterminação.

Apesar disso, Kant não aceitou a possibilidade de uma insubordinação civil

frente ao Estado. Embora isso não signifique que o direito à liberdade seja por

este alienado, entende esse pensador que:

É contraditório atribuir a um povo um direito de resistência contra quem


detém o poder de governo, porque só a existência deste último torna
possível a vigência concreta e a eficácia do direito; sustentar que o povo
possui o direito de rebelar-se contra um poder do Estado é absurdo,
porque o poder do Estado é a condição de que depende a possibilidade
de exercitar todo e qualquer direito (RAMETTA, 2005, p. 271).

Essas afirmações deixam evidente o rigor do pensamento kantiano e a sua

preocupação em colocar a razão como fundamento de tudo, inclusivo no plano

político. Em Kant identifica-se uma excessiva crença no Estado-razão, a quem

nada pode ou deve resistir por ser ele o mais apto a conduzir os destinos da

coletividade. Portanto, o pensador alemão postula um dever absoluto enquanto

produto da razão, devendo ser esta a gênese e a fonte de todas as ações43.

42
A dignidade do homem, para São Tomás de Aquino, está em sua transcendência, com ser dotado
de livre arbítrio, sendo criatura de Deus e que, tendo sido por ele criado à sua imagem, “[...] é
princípio de suas ações enquanto possui um livre-arbítrio e poder sobre suas ações”
(ANZENBACHER, 2009, p. 119).
43
Deleuze (1976) observa que a ênfase kantiana numa razão suprema acaba por tornar essa mesma
razão incriticável.
49

Embora Kant tenha destacado que não é o Estado em si, mas a razão que lhe

dá origem que justifica o dever inescapável, é possível estender seu pensamento a

certas condutas políticas dos tempos contemporâneos44, como já comentaram

outros autores com relação ao ‘espírito alemão’, baseado na observância estrita da

norma, na preocupação com o dever e no respeito à autoridade.45

Não admite Kant que o povo se oponha ao Estado no sentido de retirar-lhe o

poder supremo que detém; pode sim apresentar as suas queixas, sempre que os

interesses ou demandas da sociedade não estejam sendo adequadamente

respondidos pela autoridade.

Não há que se falar, para o filósofo, em insurreição, pois Estado foi escolhido

racionalmente pelos homens, e desde então se tornou o mediador dos interesses

individuais, realizando os fins para os quais essa mesma razão lhe deu origem e lhe

conferir poderes superiores à vontade de cada indivíduo:

Se o Governante ou Regente, como órgão do Poder Supremo, age violando


as Leis, como ao impor tributos, recrutar soldados, e assim por diante, de
forma contrária à Lei da Igualdade na distribuição dos encargos políticos, o
Súdito pode apresentar queixas e objeções a essa injustiça, mas não pode
opor-lhe resistência ativa. [...] É só pela submissão à Vontade Legislativa
Universal que é possível uma condição de lei e de ordem. Por isso não
existe qualquer Direito de Sedição, e menos ainda de rebelião, pertencente
ao Povo [...] é dever do Povo suportar qualquer abuso do Poder Supremo,
mesmo quando seja considerado insuportável [...] (MORRIS, 2002, p. 255).

44
Arendt (1999) ao discorrer sobre a conduta do oficial nazista Eichmann, responsável pela execução
das ordens de extermínio dos judeus na Segunda Guerra Mundial, comenta sua postura “kantiana”,
cujo discurso atribuiu a sua determinação e as suas escolhas pessoais à necessidade de cumprir as
ordens do Führer, fonte superior e inquestionável de toda lei.
45
Nietzsche (1844-1900), filósofo alemão, foi crítico contumaz do racionalismo, do iluminismo e das
idéias de Kant. Descreve o ‘imperativo categórico’ como uma forma de acorrentar o espírito humano,
diluir a liberdade verdadeira disfarçando-se em única via para sua efetividade. Entende que Kant na
verdade coloca o primado da razão e a torna um “senhor” acima de todas as existências individuais. É
possível antever nas suas críticas a esse “modo alemão de pensar e viver” uma contraposição ao
próprio regime nazista, marcado pela supervalorização do coletivo, do dever absoluto e anulação do
indivíduo. Apesar de ter sido celebrado pelo regime nazista, Nietzsche na verdade não era anti-semita
e criticava o regime político da Prússia (um dos estados alemães da sua época) por essa orientação
Mais do que ser um niilista, como muitos o interpretam, preocupou-se em fazer uma crítica acirrada
contra qualquer rigorismo de pensamento e conduta alçada em valores absolutos, destituindo a
subjetividade, daí ter se tornado um pensador polêmico, até mesmo desprezado, mas que de
qualquer forma continua atual por sua posição firme sobre a importância de resgatar o indivíduo, que
entendia ter sido destruído pelo racionalismo e pelas teorias de valor moral.
50

Da leitura de Kant fica evidente a preocupação na primazia da razão frente a

qualquer interpretação que se oponha à autoridade constituída, o que significa que,

nascendo o Estado da razão, não mais pode ser negada sua autonomia, como

condição necessária para preservar a liberdade de cada um. Essa autonomia tem

sua fonte na própria razão universal. Portanto, não há mais como retroceder.

O pensamento kantiano postula a validade da lei universal, que com o

contrato social (chamado pelo filósofo de “contrato original”) se torna imperativo

comum46 e, por extensão, assegura a liberdade de todos a partir da ordem social a

ser garantida pelo Estado.

Nesse sentido, é oportuno destacar que, a despeito das críticas sobre o

pensamento kantiano e sua relação com o nazismo, antes comentadas, um olhar

mais atento sobre o seu trabalho mostra que Kant não defendeu um Estado

totalitário ao colocar a necessidade da submissão irrestrita à vontade universal,

representada pelo ente estatal.

Pelo contrário, o dever moral para ele importa sempre em fazer com que cada

um e todos orientem as suas condutas pela razão, a fonte para a compreensão do

necessário respeito ao outro.

A constituição civil, como norma jurídica, não contraria a liberdade do indivíduo

pela supremacia da autoridade estatal, pelo contrário, ela apenas garante que essa

liberdade não resulte em abuso, contrariando o propósito da sociedade ao dar origem

ao Estado, que foi a superação das vontades individuais fazendo-as convergir para

46
Fichte (1762-1814), como Kant, uma lei moral nasce da consciência interna do sujeito, o que o leva a
reconhecer o outro como ser igualmente livre. “Na medida em que se reconhecem como livres, os
homens devem reconhecer reciprocamente também a possibilidade de decidir se instituem ou não entre
eles uma comunidade. Neste se está contido o caráter condicionado da lei, cuja obrigatoriedade
funciona somente a partir da hipótese de que os homens tenham efetivamente decidido estabelecer
uma forma de convivência recíproca e, portanto, de fazer parte de uma comunidade de seres racionais.
Por outro lado, se tal condição é possível, então a obrigatoriedade da lei deve necessariamente se fazer
presente. Ela é, com efeito, a condição a priori, isto é, universal e necessária, com base na qual
unicamente se torna possível uma convivência entre seres racionais [...]” (RAMETTA, 2005a, p. 287).
51

uma “[...] vontade universalmente válida de modo que todos possam ser livres”

(KANT, 2003, p. 11-12).

De qualquer forma, a preocupação de Kant com a afirmação da razão

superior no plano das relações entre Estado e sociedade traz o inconveniente de ser

usada como justificativa para a negação do próprio indivíduo, numa sociedade que

supervaloriza a autoridade em si mesma.

Por outro lado, o próprio pensamento kantiano fornece as bases para a

compreensão desse tipo de comportamento, pois Kant apontou dois elementos

decisivos para determinar a condição de liberdade em uma sociedade: a massa de

indivíduos (ein grosser haufen), que não prima pelo uso da razão, vivendo

passivamente, sob a tutela do Estado; e o homem esclarecido, pode concretizar a

sua liberdade e dar sentido a sua existência de forma plena.

O esclarecimento, para Kant, é a base de uma sociedade futura mais livre, e

nesse ponto ele faz referência a um progresso moral da humanidade, que tem na

razão superior a base de sua existência47.

Para isso, os Estados-nacionais devem ser substituídos por um Estado

universal, que seria o produto natural da evolução do homem ao encontro de uma

existência pautada na razão e no abandono dos antigos valores, crenças e

limitações impostas por práticas e costumes retrógrados.

Trata-se de uma idéia importante e de certo modo atual, pois pode ser

relacionada à temática da relativização da soberania dos Estados na era pós-

moderna e à emergência das idéias sobre a supraconstitucionalidade na aplicação

47
Pode-se compreender essa visão kantiana sobre um futuro para a humanidade a partir do seu
entendimento sobre uma disposição moral existente em todo homem, que lhe permite subtrair-se de
fazer o mal. De modo que, ao contrário de Hobbes, não é pessimista em relação ao homem. Se este é
capaz de comportar-se de modo extremamente cruel, também tem dentro de si a possibilidade de
escolher o bem, ou uma disposição moral para subjugar o mal em seu interior (LUTZ-BACHMANN,
2004, p. 102).
52

dos tratados internacionais frente às determinações internas de cada Estado, tema

que será oportunamente abordado mais adiante.

O conceito de pacto social por ele apresentada não pressupõe, como em

Rousseau, um contrato no sentido de determinação entre partes de direitos e

obrigações, mas é antes uma idéia que tem origem na vontade universal.

Para Kant, o Estado nasceu de uma obrigação moral de cada indivíduo como

ser dotado de razão, sendo a Constituição “[...] o ato da vontade geral através do

qual a multidão torna-se povo” (RAMETTA, 2005, p. 273).

O racionalismo kantiano teve grande repercussão nas críticas sobre o

absolutismo, emergindo num cenário marcado por novas tendências políticas e

sociais que exigiam a reformulação das bases de governo e das relações entre o

Estado e os indivíduos.

Pode-se afirmar que em Kant estão os fundamentos da relativização do poder

estatal, diante da ênfase do valor da liberdade e da autonomia do sujeito como fulcro

de uma sociedade sob o império da razão modernizadora. O teor desse pensamento

foi crucial para a constitucionalização dos direitos e os desdobramentos que

culminam na emergência de questões contemporâneas acerca do homem e do

Estado.
53

2 A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS: DO PENSAMENTO


À PRAXIS POLÍTICA

2.1 CONSTITUCIONALIZAÇÃO E FUNDAMENTALIDADE DOS DIREITOS


HUMANOS: UM PERCURSO HISTÓRICO

Kant viveu em um momento ímpar na história européia, marcado pelo

aprofundamento dos debates políticos que culminariam, no final do século XVIII, com

grandes transformações sociais, políticas e econômicas. Nesse cenário

tempestuoso, a Revolução Francesa foi o ponto culminante e decisivo para a

reformulação dos fundamentos do poder político e do próprio Estado.

Lançando um olhar sobre esse processo histórico do qual resultou o fim do

absolutismo na Europa, a implantação da primeira república liberal nos Estados

Unidos e as revoluções libertárias na Europa do século XIX, é possível afirmar que a

busca da igualdade de condições tornou-se uma via comum pela qual as sociedades

lutaram para se livrar das amarras de regimes retrógrados, rumo a modelos

democráticos, acompanhando um processo paralelo de crescimento da economia

sob as instâncias do capitalismo, incompatível com a rigidez dos controles

monárquicos tradicionais.

A cultura da legalidade48, formatada a partir da preocupação crescente da

sociedade com um espaço amplo de liberdade de pensamento e expressão, e em

especial, da possibilidade de livre escolha dos representantes no governo, não foi

construída de maneira direta pelo consenso de todos.

48
Comentando sobre a repercussão desse vínculo entre público e privado no âmbito capitalista,
Grau (2002, p. 173) afirma: “A legalidade consubstancia extensão da teoria da soberania popular e
da apresentação parlamentar. A Constituição contém a ação do Estado e a burguesia encontra, no
quadro da separação dos poderes, condições adequadas à defesa de seus interesses econômicos;
qualquer ‘atentado’ à liberdade econômica e à propriedade somente poderia ser consumado com o
consenso dos representantes da burguesia, isto é, através de uma lei. A legalidade assume desde
logo sua dupla face, como supremacia e reserva da lei. [...] à legalidade atribui-se o desempenho de
duplo papel: o de instrumento ancilar dessa preservação e o de substituto da legitimidade.”
54

Pelo contrário, o desenvolvimento do Estado do Direito foi um processo lento,

marcado por contradições e conflitos, inerentes à passagem das sociedades sob o

jugo autoritário dos Estados, para sistemas democráticos de maior ou menor grau de

participação política do conjunto da população.

A garantia de direitos não foi decorrência de atos voluntariosos do Estado,

cedendo de bom grado às pressões da sociedade civil organizada. Do mesmo modo,

a democracia não pode ser vista como um mero processo de adensamento dos

direitos que culminou, de imediato, em maior liberdade política e na sujeição

absoluta do Estado aos ditames constitucionais.

Nesse contexto, continuidades e descontinuidades caracterizaram a evolução

das instituições políticas49, imbricadas em um contexto social e cultural, culminando

com o reconhecimento e a garantia de certos direitos, que assumiram, por força da

lei, o caráter de fundamentais.50

Conexa aos direitos humanos está a cidadania, podendo esta ser

dissecada enquanto resultado dos avanços históricos no reconhecimento

daqueles, em um processo marcado por sucessivas mudanças no pensamento e

na práxis política ocidental.

Das relações calcadas na imperativa vontade do Estado, passou-se a uma

reversão das posições até então inconciliáveis entre o ente estatal e os cidadãos.

49
“[...] os Direitos Humanos, referidos à pessoa humana historicamente considerada, acompanharam
as vicissitudes do desenvolvimento da humanidade, desde tempos imemoriais. Em outras palavras,
impossível falar-se em Direitos Humanos sem reconhecer seu caráter histórico e contingente, ligados
que são ao próprio desenvolvimento cultural da humanidade” (CORRÊA, 2008, p. 23).
50
Distinguem-se os direitos humanos dos direitos fundamentais. Apesar de serem empregados
indistintamente, “[...] a explicação corriqueira e, diga-se de passagem, procedente para a distinção é
de que o termo ‘direitos fundamentais’ se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e
positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado, ao passo que a
expressão ‘direitos humanos’ guardaria relação com os documentos de direito internacional, por
referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal,
independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional, e que, portanto,
aspiram à validade universal, para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequívoco
caráter supranacional (internacional)” (SARLET, 2006, p. 35-36).
55

No seio desse processo, destaca-se, originariamente, uma assimetria de poder

em desfavor do indivíduo, como observa Dal Ri Júnior (2002, p. 53) ao sintetizar

o pensamento hobbesiano:

O soberano em Thomas Hobbes é já absoluto, tendo dizimado todos os


vínculos patrimoniais, corporativos e familiares que poderiam interferir na
sua relação direta com os cidadãos e com a cidade. Com o
desaparecimento destas interferências, o cidadão se vê sozinho de fronte
ao soberano.

Partindo desse raciocínio, pode-se afirmar que a cidadania, e a afirmação

dos direitos humanos, estão intrinsecamente conectadas a determinações de

ordem histórica. O conteúdo semântico do conceito se confunde com o sentido

que, na prática e na vivência dos homens, constitui o fundamento das suas

relações, na condição de seres coletivamente vinculados em um sistema político.

Sintetiza Silva (2007, p. 345-346) o conteúdo imanente da cidadania, em sua

direta relação com a mobilização do sujeito enquanto co-participante ativo, ao lado do

Estado, no processo de efetivação de direitos. Qualificando os participantes da vida do

Estado, representa o “[...] atributo das pessoas integradas na sociedade estatal,

atributo político decorrente do direito de participar no governo e direito de ser ouvido

pela representação política.”

No mesmo sentido, Nabais (2007, p. 190) considera a cidadania como uma

qualidade dos indivíduos, enquanto membros ativos de um Estado, sendo

titulares ou destinatários “[...] de um determinado número de direitos e deveres

universais e, por conseguinte, detentores de um específico nível de igualdade.”

A fundamentalização dos direitos do homem, portanto, não representa apenas

o adensamento de valores e princípios como normas. Tem, também, um caráter

instrumental, assegurando a coerência interna do sistema jurídico, conferindo ao

Estado de Direito uma relação direta com cada indivíduo que dele faz parte.
56

Bobbio (1986, p. 34-35) deixa explícita essa relação entre afirmação de

direitos e consolidação da democracia, ao afirmar que

A partir do momento em que o voto foi estendido aos analfabetos tornou-se


inevitável que estes pedissem ao estado a instituição de escolas gratuitas;
com isto, o estado teve que arcar com um ônus desconhecido pelo estado
das oligarquias tradicionais e da primeira oligarquia burguesa. Quando o
direito de voto foi estendido também aos não-proprietários, aos que nada
tinham, aos que tinham como propriedade tão-somente a força de trabalho,
a conseqüência foi que se começou a exigir do estado a proteção contra o
desemprego e, pouco a pouco, seguros sociais contra as doenças e a
velhice, providências em favor da maternidade, casas a preços populares,
etc. Assim aconteceu que o estado de serviços, o estado social, foi agrade
ou não, a resposta a uma demanda vinda de baixo, a uma demanda
democrática no sentido pleno da palavra.

Não se pode excluir, nesse processo histórico de emergência da práxis

política e sua consolidação como expressão dos diferentes interesses e grupos

sociais, a força das idéias enquanto substrato da ação.

O pensamento político construído por Rousseau, Montesquieu e Locke51,

entre outros, dirigiu os debates sobre o fim do Estado baseado em privilégios e do

exercício do poder alheio à vontade da coletividade, colocando em evidência a

necessidade de um sistema político baseado na vontade geral.

Especial atenção foi dada ao tema por Rousseau, ao tratar do poder

constituinte, como corpo político soberano. Analisando a sua obra, Duso (2005, p.

211) observa que a “vontade geral representativa” na visão do pensador francês

deve ser entendida não apenas no sentido do exercício do poder constituído, mas,

também, “[...] no nível mais alto do poder constituinte, uma vez que o povo, para se

51
Barberis (2005, p. 217) comenta que “Um velho lugar comum pretende que o liberalismo e
constitucionalismo – ou seja, teoria e práxis da limitação do poder – sejam oriundos da Inglaterra, e
que a contribuição continental, notadamente francesa-revolucionária, seria ou puramente negativa –
como no caso de Emmanuel Joseph Sieyès – ou amplamente tributária da tradição inglesa – como no
caso de Montesquieu, Benjamin Constant e Madame de Staël [...] O lugar comum em questão,
porém, possui, pelo menos, dois graves defeitos: um geral e outro particular. O defeito geral consiste,
obviamente, em subestimar a contribuição francesa-revolucionária ao liberalismo e ao
constitucionalismo; o defeito particular consiste em ocultar a derivação francesa-revolucionária de
algumas doutrinas atualmente consideradas liberais e/ou constitucionalistas por excelência, como as
de Constant e Madame de Staël.”
57

expressar, precisa sempre de um núcleo de pessoas, que é justamente a

Assembléia Constituinte.”

Vislumbra-se em Rousseau, e nos expoentes franceses da idéia da vontade

geral, os traços do racionalismo que conduziu à perspectiva de centralidade na

vontade do indivíduo e da coletividade, de modo que a Constituição seria sempre um

produto intencional.

Por outro lado, a tradição inglesa orientou-se pela idéia de que a constituição

seria o resultado de uma evolução natural, decorrência de uma “força invisível”, a

mesma encontrada na teoria de Adam Smith como base do equilíbrio econômico do

mercado.52

Compreende-se a divergência das duas correntes em razão dos diferentes

rumos que a relação entre Estado e sociedade tomaram na Inglaterra e na França, em

decorrência da forma como o poder estatal se estruturou em cada um desses países.

Como expõe Barberis (2005), os franceses em geral se mostraram reticentes

e contrários à adoção do modelo inglês parlamentarista. O que pode ser sido

motivado pelo temor da substituição do poder absoluto de um monarca, por um

modelo de separação dos poderes que, na prática, podia resultar em fortalecimento

excessivo do Legislativo, e por extensão, na situação contraditória de uma nova

forma de concentração de poder.

Os franceses também viam como excessiva e inadequada a interpenetração

dos interesses corporativos no sistema inglês, principalmente no caso dos nobres

que formavam a Câmara dos Lordes, parte do corpo legislativo. O que era

52
No livroTheory of Moral Sentiments (1759), Smith sugere que os indivíduos, ao buscarem a
satisfação de seus interesses e objetivos, promovem sem querer um interesse coletivo, em um
processo não-intencional que se transforma na base do progresso geral da sociedade (BARBERIS,
2005).
58

incompatível com os termos da mobilização revolucionária francesa53, exigindo o fim

das diferenças sociais no espaço da representação política, ou seja, o extermínio

dos privilégios da nobreza e clero.

Por isso a ênfase dos franceses numa Constituição escrita, como produção

racional e intencional, delimitando de forma precisa o espaço da representação

política, ao contrário da estrutura normativa inglesa, baseada apenas na tradição, o

que, na ótica francesa, seria um desvirtuamento da vontade geral do corpo

político54, pois a existência de um regramento superior seria essencial para fixar

garantias de direitos e limites ao exercício do poder que, sendo representativo,

tinha como titular o povo.

A trajetória de emergência do constitucionalismo francês, através do embate

violento entre as forças sociais, mais precisamente o “Terceiro Estado”, de um

lado, e os privilegiados do outro (nobreza e clero), definiu o maior rigor na

utilização de um instrumento de controle preciso dos poderes, por meio de uma

carta constitucional.

A soberania da nação, como expressão da vontade geral, encontra-se nessa

lei superior, da qual todas as outras leis devem nascer, definindo também o modo

de estruturação do Estado e das suas instituições.

A soberania nacional fundamenta a titularidade do poder constituinte, que se

encontra no povo. Mas por este é exercido, ganhando assim legitimidade para

representá-la na elaboração da carta constitucional:

53
Barroso (2010) refere que o constitucionalismo tem como elemento comum a revolução. Não
considera desta natureza a “Revolução Gloriosa” de 1688 na Inglaterra, não tendo criado um novo
Estado, e tampouco dela derivou uma carta escrita.
54
Para Sieyès (1988), uma carta constitucional justa, assegurando direitos fundamentais como
liberdade e igualdade de seus tutelados, não pode dar lugar a relações de força imperativamente
construídas em privilégio de um grupo ou certa classe.
59

Ao combinar poder constituinte com sistema representativo, Sieyès


admitiu que a Constituição fosse elaborada não diretamente pelo povo
(que via como uma entidade puramente numérica), mas por uma
assembléia constituinte, cujos órgãos representantes eram eleitos e que
expressava a vontade da nação. Sendo soberana a assembléia, a
Constituição por ela elaborada não precisava ser submetida à ratificação
popular (BARROSO, 2010, p. 108).

Os limites ao exercício do poder constituinte derivado têm sua gênese nos

escritos de Locke, Rousseau e Montesquieu. Justificam-se pela própria natureza do

poder constituinte, que não se confunde com o poder originário que lhe dá forma,

que está no povo55 e não pode ser transferido como observa Sieyès (1988, p. 117):

As leis constitucionais são consideradas fundamentais, não no sentido de


que elas possam se tornar independentes da vontade nacional, mas porque
os corpos que existem e agem por elas não podem tocá-las. Em cada uma
de suas partes, a constituição não é uma obra do poder constituído, mas do
56
poder constituinte.

O poder constituinte originário tem, portanto, a sua gênese na comunidade

civil, sendo essa fonte soberana que define as condições pelas quais ele deverá ser

exercido.57

É Importante determinar qual era a posição do indivíduo, na condição de

cidadão, nesse momento histórico da constitucionalização. Remete-se às análises

de Tocqueville58 (2005, p. 277), para quem

55
O povo não é um significado abstrato, mas um “complexo de forças políticas plurais” (CANOTILHO,
2011, p. 75).
56
Tradução livre do original: “Les lois constitutionnelles dont dites fondamentales, non pas en ce sens
qu’elles puissent devenir indépendantes de la volonté nationale, mais parce que les corps qui existent
et agissent pour elles ne peuvent point y toucher. Dans chaque partie, la constitution n’est pas
l’ouvrage du pouvoir constitué, mais du pouvoir constituant”.
57
“Essa concepção de poder constituinte surgiu primeiramente na experiência política norte-americana
ao final do século XVIII. Conforme o preâmbulo da Carta Constitucional dos Estados Unidos, o povo
adota uma Constituição e se apresenta como a única autoridade legítima capaz de definir as condições
e termos de exercício do poder. Essa apropriação da função constituinte pelo povo encontrou guarida
na França revolucionária de 1789. Com a diferença de que, nesse país, o rei foi associado ao processo
constituinte, pois no momento em que os Estados Gerais elaboravam a Declaração de Direitos não
havia sido ainda o soberano destituído de seus poderes” (LAVROFF, 1999, p. 101-102).
58
A. de Tocqueville (1805-1859) ficou conhecido pelos estudos sobre o modelo democrático norte-
americano, tendo visitado os Estados Unidos entre 1831 e 1832, e nos anos seguintes outros países
europeus. O conhecimento da realidade política norte-americana deu origem à obra “De la démocratie
em Amérique” (1835). Foi um teórico político e analista da nova era instalada com a
constitucionalização possibilitando a participação política, embora marcada pela estratificação social,
gerada não mais pelas forças arcaicas do feudalismo, mas pelo contexto econômico do liberalismo e
do capitalismo industrial.
60

Foi com a idéia dos direitos que os homens definiram o que eram a licença
e a tirania. Esclarecido por ela, cada qual pode mostrar-se independente
sem arrogância e submisso sem baixeza. O homem que obedece a
violência se dobra e se rebaixa; mas quando se submete ao direito de
comandar que reconhece a seu semelhante, eleva-se de certa forma acima
daquele mesmo que o comanda. Não há grandes homens sem virtude; sem
respeito aos direitos não há grande povo - pode-se dizer que não há
sociedade, pois o que e uma reunião de seres racionais e inteligentes cujo
único vínculo é a força?

O “espírito de cidadania” de que fala Tocqueville pode ser entendido como o

resultado de um processo de dinamização da vida política, consolidando o papel

de cada indivíduo na organização da sociedade. Tendo posto fim ao sistema

absolutista, a Revolução Francesa desencadeou uma nova tendência política na

Europa, rumo à constitucionalização de direitos,

O debate desse historiador francês, tratando das bases de uma sociedade

democrática, expressa a preocupação com o exercício do poder baseado na

substituição do despotismo dos reis por um sistema de governo orientado pela lei,

dela emanando o espaço simbólico e prático das relações entre Estado e indivíduo.

Embora essas relações passassem a ser mediadas pelo Direito, isso não

significou de imediato o amplo reconhecimento dos direitos humanos e a sua

integração e ampliação no interior do sistema jurídico.

As teorias elaboradas por Rousseau, Montesquieu, Locke, entre outros, não

trataram dos direitos humanos, embora tenham contribuído para as mudanças

políticas que favoreceram a consolidação do constitucionalismo, base para o

reconhecimento e a salvaguarda de tais direitos.

Em razão de uma visão política ancorada, principalmente, no interesse

econômico da burguesia em ascensão, direitos individuais, como a liberdade, a

igualdade e a propriedade, foram os primeiros a serem firmados e tutelados.

A despeito de ser erigida em um ideal e motor das lutas político-sociais no

espaço democrático emergente ao longo do século XIX, a igualdade, em sentido


61

político, não foi acompanhada da igualdade material, em termos de acesso a bens e

recursos essenciais a uma vida digna.

Como observa Scaff (2007), o constitucionalismo reconheceu primeiramente

os direitos de primeira geração (civis e políticos, liberdade), os quais se caracterizam

pela sua subjetividade e por serem oponíveis ao Estado. Apenas posteriormente os

direitos sociais, culturais e econômicos, ou direitos de segunda geração receberam a

garantia constitucional.

Houve, portanto, uma mudança de foco, passando-se do subjetivismo para o

coletivismo, substituindo-se a concepção de um Estado não-interventor tendo em

vista a plena liberdade individual, pela ídéia de um ente estatal com

responsabilidade na efetivação de direitos de relevante teor social.

Esse desenvolvimento de um pensamento coletivista sobre os direitos não

ocorreu senão a partir da emergência de uma consciência coletiva que exigia a

mediação do Estado para o atendimento a necessidades humanas essenciais, e isso

representou um avanço importante no reconhecimento de novos direitos.

A superação do viés restritivo sobre os direitos humanos deu-se em razão

do desvalor do indivíduo pela ordem capitalista emergente, atingindo a sua

essência, que é a dignidade humana, sendo esta a qualidade intrínseca do ser.

Ficou evidente a negação da dignidade quando o capital reduziu a existência

dos indivíduos a um sentido puramente econômico, somente sendo considerados

enquanto parcela indistinta do todo que constitui o objeto e o fim das estratégias e

relações definidas no interior do sistema capitalista de produção e consumo, ou

seja, como parte de um mercado e como motores do próprio capitalismo.

Num plano histórico, o século XIX desnudou as relações contraditórias entre

o capitalismo e o ser humano que lhe dava sustentação. Como resultado, não
62

tardou a se desenvolver uma perspectiva crítica sobre a necessidade de mudanças

na relação entre o Estado e o indivíduo, em dois campos distintos, porém

interrelacionados: do pensamento e da práxis política.

A ação deu-se com a organização e a mobilização dos trabalhadores. Nesse

cenário, foi a economia centrada no trabalho assalariado, explorado em proveito do

capitalismo, que conduziu ao desenvolvimento de uma identidade de grupo,

conduzindo a uma atuação política centrada na melhoria das condições de vida e

na defesa de direitos coletivos.

Como explana Pagliarini (212, p. 7):

[...] o desejo da classe trabalhadora e da grande massa de indivíduos


residentes num território estatal não era o de um Estado abstêmio, que
deixasse fazer ou que deixasse passar, pois só faziam os burgueses, só
passavam os burgueses. O que se queria era um Estado que fizesse, que
agisse, que não se omitisse.

A consciência e a mobilização dos trabalhadores conduziu a um progressivo

alargamento da previsão legal dos direitos humanos. Esse devir histórico do seu

reconhecimento e tutela jurídica pode ser entendido como um processo de

transformação do próprio Direito, associado às condições materiais de vida e à

existência dos indivíduos.

Por isso entende Bobbio (1992, p. 5) que é preciso buscar a gênese dos

direitos humanos não no campo metafísico, do direito natural, mas em situações

concretas e objetivas:

Do ponto de vista teórico, sempre defendi - e continuo a defender,


fortalecido por novos argumentos - que os direitos do homem, por mais
fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas
circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades
contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez
e nem de uma vez por todas.

É na história que se dá a passagem do idealismo para a positivação, com a

afirmação e a tutela legal dos direitos humanos. Para outros, todavia, não se pode
63

negar a força e imanência de valores considerados essenciais e representativos do

próprio homem.

Seguindo esse entendimento, o debate filosófico dos teóricos do direito

natural contribuiu decisivamente para o reconhecimento de direitos firmados como

universais, atemporais e indissociados do homem, que foram consagrados,

preliminarmente, nas Cartas Constitucionais norte-americana e francesa.59

Apesar disso, foi o entendimento positivista que se firmou no decorrer do

século XIX e na primeira metade do século XX, definindo uma via pautada pela

objetividade jurídica, dela decorrendo, na ótica de Scaff (2007, p. 53), restrições ao

avanço das garantias constitucionais de novos direitos:

A dicotomia Direito Natural vs. Direito Positivo torna-se cada vez mais
desgastada, dissolvendo-se através da identificação hegeliana entre o real e
o racional, desaparecendo a disputa entre vontade e razão como
fundamentos distintos do Direito. A lei posta pelo Estado passou a ser a
fonte exclusiva do Direito, coincidindo esta fase histórica com o período de
esmaecimento dos Direitos Humanos.

Compreende-se a posição pelo momento histórico, ganhando força a

interpretação positivista, destacando-se Kelsen (1998), para o qual, além do dever-

ser, imanente à prescrição contida na norma positiva, nada mais seria pertinente

ao Direito.

A negação da importância e aplicabilidade dos valores, ou seja, de um fundo

axiológico passível de ser incorporado à aplicação do Direito, levou a uma visão

restritiva da relação entre Estado e indivíduo. Os valores assumiram a condição de

meras regras de conduta, sem valor jurídico, situando-se numa ordem metafísica.

59
Há consenso que a Proclamação dos Direitos do Homem e do Cidadão na França, em 1789, foi o
primeiro documento no qual se vislumbrou a universalidade dos direitos humanos. A Declaração da
Independência dos Estados Unidos da América em 1776, e antes dela, a Declaração da Virgínia,
também de 1776, embora contivessem dispositivos nos quais eram afirmados direitos inalienáveis do
indivíduo, não o fizerem no sentido de reconhecer sua universalidade, limitando-se a afirmá-los no
plano imediato das garantias aos habitantes das colônias inglesas na América do Norte.
64

O pensamento kelseniano estava fundado em um rigor lógico, excluindo o

que não fosse materialmente possível, daí definindo-se o conjunto normativo

positivo. A objetividade jurídica era a regra.

Ao lançar um olhar sobre esse sistema, excludente com relação aos valores,

e amplamente inclusivo quanto à pretensão de abarcar de forma total e singular os

indivíduos, como sujeitos-parte na relação formal e imperativamente construída,

desvela-se o sentido e o significado em termos de exacerbação da posição do

Estado perante o indivíduo.

É possível falar então numa desconstrução da cidadania, pois, apesar de um

reconhecimento, ainda que restrito, dos direitos humanos nas Constituições a partir

do século XIX, o que se seguiu foi a imperatividade do positivismo jurídico

culminando, para Ávila (2006), nos excessos do rigorismo formal da norma e na

anulação dos valores frente à lei no Estado alemão nacional-socialista. Esse autor

faz interessante observação sobre o dogmatismo positivista e legalista e suas

repercussões para a defesa dos direitos humanos, no plano da sujeição estrita aos

ditames da lei escrita no regime nazista:

A concepção de um Direito voltado para um modo de operar legalista,


destituído de qualquer reflexão sobre os detalhes do caso e que se
apresentava galvanizado pelo apego à legalidade estrita, mostrou toda
sua insuficiência pela inércia/colaboração do Judiciário alemão durante
os horrores de Auschwitz. Toda a tradição do direito romano-germânico
de observância dos “ditames” da lei e de procura pela “vontade do
legislador” se chocava diante da cumplicidade do Reichsgericht diante
dos arbítrios e atrocidades nazistas (ÁVILA, 2006, p. 40-41).

No final da Segunda Guerra Mundial, ficou evidente a necessidade de

mudanças nas normas internas e internacionais, diante dos excessos cometidos

pelos regimes totalitários, resultando na morte de milhões de pessoas e no

aviltamento da vida. Esse foi o momento em que os direitos humanos se

tornaram objeto de maior atenção e integração nos sistemas jurídicos nacionais:


65

Se a Segunda Guerra significou a ruptura com os direitos humanos, o


pós-guerra deveria significar a sua reconstrução. [...] A necessidade
de uma ação internacional mais eficaz impulsionou o processo de
internacionalização desses direitos, culminando na criação da
sistemática normativa de proteção internacional, que faz possível a
responsabilização do Estado no domínio internacional quando as
instituições nacionais se mostram falhas ou omissas na tarefa de
proteger os direitos humanos (PIOVESAN, 2010, p. 122-123).

O pressuposto da universalidade dos direitos humanos reconduziu à

concepção dos direitos naturais, negada pela corrente positivista que havia se

fixado no conteúdo da norma, a-valorativa segundo um pressuposto lógico-formal.

A retomada da constitucionalização dos direitos sob o viés da importância e

indissociável relação do Direito com certos princípios e valores conexos,

representou a superação da tese positivista de que somente possuíam caráter

informativo.

O debate moral contemporâneo tem contribuído para reforçar e dar maior

visibilidade a esses valores, principalmente em razão dos questionamentos acerca

do modelo de sociedade erigido a partir do iluminismo, como expressão de uma

visão otimista sobre o futuro do homem numa sociedade dirigida pela ciência e

pela razão.

Ao revisitarem a ética lançada pelo racionalismo na modernidade, e que

desembocou num mundo pós-moderno descrente acerca dos valores, pensadores

como McIntyre (2001) demonstram a necessidade de subverter a lógica e a ética

elaboradas a partir dessa ancoragem do pensamento que subtrai o homem do

processo de construção da sociedade, a pretexto de que uma “ordem racional”

superior60 é a força suficiente e necessária para pôr em movimento os mecanismos

de superação das diferenças, rumo a uma sociedade mais igualitária.

60
“A modernidade foi uma tentativa de criar uma sociedade justa, de estrutura organizada e
transparente – um mundo de práticas coerentes, organizado em torno de regras, onde as próprias
regras extraíssem sua legitimação da crença em alguma estrutura subjacente ou em sua
funcionalidade intrínseca, ou em termos de sua pureza” (MORRISON, 2006, p. 620).
66

A “razão prática” se transformou, em contraponto à antiga tradição moral.

Esta no entender de MacIntyre (2001) deve ser restada por ser a expressão

legítima de um senso de responsabilidade social diluído pelo racionalismo, e por

ser o produto de experiências históricas a partir das quais os homens podem

perceber que o viver em sociedade é mais do que uma mera convivência mediada

pelo Direito.

Para esse pensador, os indivíduos deixam perceberem a si mesmos como

entes cuja existência tem uma finalidade, definida por valores partilhados, que são

herdados das experiências do viver coletivo no passado.

E assim a responsabilidade pelo bem-estar do outro é transferida para o

Estado, que se vale da noção imprecisa de “interesse público” para fazer escolhas

segundo uma retórica que tende a ser justa apenas na aparência, segundo as

escolhas “racionais” dos governantes61 e segundo a suposta pretensão da vontade

geral representada nas instâncias de governo.

Portanto, o retorno à tese jusnaturalista implica em reconhecer um substrato

de valores éticos universais, que independem de previsão legal, mas que devem

nortear as normas positivas por serem imanentes à existência de todo ser humano.

Essa é uma questão que se tornou especialmente importante nos tempos atuais,

remetendo-se a César (2006, p. 188), para quem

61
O discurso político da democracia na pós-modernidade é construído em torno da pretensão de que
as escolhas dos governantes, seguindo as orientações gerais das leis elaboradas pelos
representantes do povo democraticamente escolhidos, adquirem um status moral por essa razão, e
sua legitimidade encontra-se, além disso, na capacidade do sistema político, assim estruturado, de
fazer escolhas em nome do povo, sugerindo que uma “racionalidade” superior está no controle e é
quem melhor pode definir o que é bom ou justo para todos. Todavia, trata-se de mais de uma retórica
do que verdade e certeza, como observa Lyotard (2002), afirmando que a ciência, transformada em
instância superior do conhecimento, precisa recorrer a narrativas tradicionais, pois é incapaz de
chegar a uma verdade última apenas pelo ‘método científico’, e o mesmo ocorre com o Estado, que
tem de utilizar o recurso de uma narrativa estruturada de maneira a parecer ancorada em coerência e
lógica, porém cada vez menos dotada de credibilidade.
67

[...] a meditação sobre a crise de nosso tempo e a reflexão sobre os valores


encontram seu ponto de convergência na compreensão do homem como
pessoa. O ser humano, referência contínua dos valores, é, na sua
universalidade, a garantia da transcendência destes em relação à sua
expressão, num momento dado.

A universalidade não elimina a indivisibilidade, ou seja, os direitos humanos,

pertinentes a todos os homens, em qualquer lugar e tempo, também devem ser

entendidos em sua unicidade, de forma que, violado um, também são atingidos

todos os outros direitos conexos.

Essa intrínseca relação entre eles implica “[...] conjugar o catálogo de direitos

civis e políticos ao catálogo de direitos sociais, econômicos e culturais” (PIOVESAN,

2009, p. 69).

Em 10 de dezembro de 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos

propugnou o sentido universal desses direitos, pertinente a todo ser humano,

independente de qualquer condição (como por exemplo, gênero, idade, ocupação,

preferência sexual, nacionalidade).

Tais direitos devem ser considerados nos diversos espaços em que se

configuram as relações e ações humanas: no campo econômico, social, cultural,

entre outros. Como signatário da Carta da ONU, o Brasil incorporou-os em suas

Constituições desde então, num processo de fundamentalização, sendo esta

entendida de duas formas consoante Sarlet (2006, p. 88):

A fundamentalidade formal encontra-se ligada ao direito constitucional


positivo e resulta dos seguintes aspectos, devidamente adaptados ao
nosso direito constitucional pátrio: a) como parte integrante da
Constituição escrita, os direitos fundamentais situam-se no ápice de todo o
ordenamento jurídico; b) na qualidade de normas constitucionais,
encontram-se submetidos aos limites formais (procedimento agravado) e
materiais (cláusulas pétreas) da reforma constitucional (art. 60 da C.F.); c)
por derradeiro, cuida-se de normas diretamente aplicáveis e que vinculam
de forma imediata as entidades públicas e privadas (art. 5º, par. 1º, da
C.F.). A fundamentalidade material, por sua vez, decorre da circunstância
de serem os direitos fundamentais elemento constitutivo da Constituição
material, contendo decisões fundamentais sobre a estrutura básica do
Estado e da sociedade.
68

Os direitos humanos, reconhecidos como fundamentais, passaram a ter

força normativa no plano do Direito interno, o que não se fez de forma completa,

mas paralelamente à ampliação do rol de direitos e da sua tutela jurídica.

A constitucionalização é um processo de progressivo adensamento da

força normativa desses direitos, tendo como primeira e mais importante base a

sua previsão em instrumentos internacionais, como as convenções e tratados, a

partir dos quais têm sido positivados nas Constituições nacionais.

A afirmação dos direitos humanos no âmbito das relações internacionais

ocorreu em diferentes momentos e instâncias de pactuação, destacando-se a

Convenção Européia para a Proteção dos Direitos Humanos e Liberdades

Fundamentais, formalizada em Roma em 1950, da qual se originou, por força do


62
artigo 19 desse instrumento, a Corte Européia de Direitos Humanos (CEDH) ,

com sede em Estrasburgo, França, e a Comissão Européia de Direitos

Humanos.

No plano internacional destacam-se ainda a Declaração Interamericana

de Direitos Humanos, de 22 de novembro de 1969 (também conhecida como

Pacto de San José da Costa Rica), ratificada pelo Brasil em 25 de setembro de

1992, e a Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos, de 28 de junho

de 1981.

62
A Corte Européia de Direitos Humanos (CEDH) foi criada pela Convenção Européia de Direitos
Humanos em 1959. Com sede em Strasbourg, França, esse órgão tem competência jurisdicional,
cabendo-lhe julgar os casos de violação dos direitos tutelados nessa Convenção. Suas decisões têm
caráter vinculante para os Estados submetidos à sua jurisdição. Explica Pagliarini (2012, p. 3), quanto
à jurisdição da Corte Européia de Direitos Humanos, que a ela se submetem “[...] não
necessariamente os Estados-membros da UE simplesmente por terem tal condição, mas os países
signatários da Convenção Européia para a Proteção dos Direitos Humanos e Liberdades
Fundamentais. A existência da Corte Européia de Direitos Humanos não esvazia a competência do
Tribunal de Justiça Europeu (Corte de Justiça das Comunidades Européias – CJCE) para também
julgar casos em que se tenha detectado condutas ofensivas aos Direitos Humanos.”
69

A Conferência dos Direitos Humanos realizada em Viena, em 1993,

consolidou a perspectiva de indivisibilidade dos direitos humanos, enfatizando a

aplicabilidade dos preceitos a eles vinculados, tanto no que diz respeito aos

direitos civis e políticos, como aos direitos sociais, culturais e econômicos,

conferindo especial atenção ao direito ao desenvolvimento, aos direitos

ambientais, de solidariedade e à paz.63

Pode-se considerar esse o momento da efetiva consagração dos direitos

humanos, uma vez que a Declaração Universal dos Direitos do Homem,

proclamada em 1945, ocorreu quando grande parte do mundo ainda estava sob

o jugo das políticas coloniais e muitos Estados hodiernos ainda não tinham se

constituído.

A Carta dos Direitos Fundamentais, aprovada pelos países da União

Européia em Nice, França, no ano 2000, estabeleceu um novo patamar nesse

percurso, reunindo num único documento os direitos humanos consagrados em

diferentes momentos e por instrumentos diversos, tais como aqueles firmados

nas convenções internacionais do Conselho da Europa, pela Carta da ONU e

pela Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Essa Carta é a culminância de um longo processo de alargamento das

bases de reconhecimento e garantias legais aos direitos humanos desenvolvida

paralelamente ao desenvolvimento e consolidação das bases comunitárias.

Duarte (2004, p. 2) utiliza o termo “Direito Europeu dos Direitos do Homem” para

63
Nos termos da Declaração de Viena: “5. Todos os Direitos do homem são universais, indivisíveis,
interdependentes e interrelacionados. A comunidade internacional tem de considerar globalmente os
Direitos do homem, de forma justa e equitativa e com igual ênfase. Embora se devam ter sempre
presente o significado das especificidades nacionais e regionais e os antecedentes históricos,
culturais e religiosos, compete aos Estados, independentemente dos seus sistemas político,
econômico e cultural, promover e proteger todos os Direitos do homem e liberdades fundamentais.”
70

referir-se ao conjunto de instrumentos protetivos transnacionais gerados nesse

processo, podendo ser interpretado em vários sentidos:

1) pretende designar o acervo de direitos previsto na Convenção para a


protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais e nos
seus protocolos adicionais; 2) este acervo nuclear tem sido completado e
desenvolvido através da aprovação pelo Conselho da Europa de outros
importantes instrumentos convencionais (v.g. a Carta Social Européia, de 18
de Outubro de 1961; a Convenção Européia para a prevenção da tortura e
das penas ou tratamentos desumanos ou degradantes, de 26 de Novembro
de 1987; a Convenção-quadro para a protecção das minorias nacionais, de
10 de Novembro de 1994; a Convenção sobre os Direitos do Homem e a
Biomedicina, de 4 de Abril de 1997); 3) num sentido ainda mais amplo, o
Direito Europeu dos Direitos do Homem integra também os direitos e
liberdades de fonte comunitária, previstos nos Tratados institutivos,
reconhecidos pelo Juiz comunitário e recentemente vertidos na Carta de
Direitos Fundamentais da União Européia.

Com a Carta de Direitos Fundamentais, a União Européia dispõe de um

instrumento de consagração dos direitos humanos com o mesmo valor dos tratados

institutivos da comunidade, podendo assim ser invocada nos Tribunais da União

Européia e tribunais nacionais, nos termos do artigo 51, n° 1, 1ª parte, da referida

Carta.

Esse instrumento inovou ao reconhecer a dignidade como direito

fundamental, bem como em abandonar a tradicional configuração tipológica de

direitos políticos, generacionais, sócio-políticos, agregando-os em seis valores

universais: dignidade, liberdades, igualdade, solidariedade, cidadania e justiça

(KOMPLAK, 2008).

Não se pode olvidar que esses avanços históricos estiveram entrelaçados não

somente a um processo de rupturas com padrões e modelos políticos, mas também

a modos de ser e pensar dos homens como atores do cenário social, sendo

necessário por isso adentrar nos debates sobre o papel e posição do indivíduo na

sociedade contemporânea, vislumbrando-se novas e importantes questões sobre o

caminho para a efetividade dos direitos humanos.


71

2.2 A EFETIVIDADE DOS DIREITOS HUMANOS: QUESTÕES HODIERNAS

A superação de um viés racionalista, que serviu como fio condutor do

pensamento e do Direito64 desde o século XIX, contraditoriamente, conduziu à

negação do próprio homem, ao dissociá-lo dos valores, tornando-o, por outro

lado, objeto e fim do Estado como instituição “racional”, portanto supostamente

capacitada a guiar os destinos da coletividade.

Como resultado, os direitos humanos foram esvaziados de seu significado

e importância, num mundo em que o racionalismo, sob a proposta iluminista,

tornou-se a única e mais adequada via para conduzir a humanidade a uma

existência plena e feliz.

Todavia, desfez singularmente essa possibilidade, alçando o Estado à

condição de ente com o qual a sociedade deve se confundir, porque nele estaria

a representação da vontade geral, ou nele se encontrariam os espíritos e valores

coletivos superiores e realmente indispensáveis ao avanço da civilização.

A sobreposição da consciência e vontade individual por um poder superior

ganhou força indiscutível ao vincular-se à razão, podendo assim mostrar-se apto

a conferir um sentido valoroso ao viver de cada indivíduo.

A preocupação com a lógica e a objetividade da perspectiva científica do

mundo levou à desconstrução das idéias sobre a necessidade de se considerar a

dimensão axiológica ou metafísica da vida. No campo político, legitimaram-se as

ações e propostas do Estado, o qual passou a atuar segundo uma racionalidade

64
Faz-se referência ao Direito enquanto produto dos legisladores. Nesse sentido, remete-se aos
comentários de Pontes (2004, p. 53-54): “Direito é aquilo que o Estado estabelece como direito, é o
que é a lei, é o que está na Constituição [...] com essa centralização normativa, o direito operou a
centralização da racionalidade. A modernidade assenta a sua organização cultural e social na
racionalidade do legislador. Quer dizer, os princípios jurídicos, as normas, elas serão o produto da
racionalidade do legislador. A lei, na visão dos oitocentistas, é a própria encarnação da razão; a
razão, o racional é aquilo que a lei estabelece, aquilo que a lei estabelece é o normativo. Portanto,
havia uma triangulação entre razão, normatividade e racionalidade.”
72

na qual não cabiam mais os valores e as referências da tradição humanista,

passando a serem anulados pelos propósitos “superiores” do poder estatal.

Contraditoriamente, como mostra Frankl (1989, p. 45), esse modelo

racional de Estado se tornou um devorador de homens e consciências:

Não foram apenas alguns ministérios de Berlim que inventaram as


câmaras de gás de Maidanek, Auschwitz, Treblinka: elas foram
preparadas nos escritórios e salas de aula de cientistas e filósofos
niilistas, entre os quais se contavam e contam alguns pensadores anglo-
saxônicos laureados com o Prêmio Nobel. É que, se a vida humana não
passa do insignificante produto acidental de umas moléculas de proteína,
pouco importa que um psicopata seja eliminado como inútil e que ao
psicopata se acrescentem mais uns quantos povos inferiores: tudo isto
não é senão raciocínio lógico e conseqüente.

É possível antever na recente afirmação de um Direito Internacional dos

Direitos Humanos uma reverberação das vozes dissonantes acerca do ente estatal,

mesmo no Estado de Direito, como legítimo e exclusivo representante do indivíduo.

Trata-se de uma continuidade de um processo de reflexão e

questionamento sobre as bases legais e morais da sociedade contemporânea, o

qual pode ser compreendido ao se considerar a sociedade como um sistema

complexo, no qual diferentes atores sociais e políticos coexistem, entram em

conflito, descobrem vias de consenso ou de afirmação de suas vontades perante

os demais. Nessa ótica, a luta pelo reconhecimento e a garantia dos direitos por

parte do Estado pode ser considerada um ponto de equilíbrio sistêmico.

Recorrendo à teoria de Luhmann (1983), a democracia pode ser entendida

como um sistema capaz de autodefinir-se, em um processo de mudanças no qual

ajustes continuados entre os atores no espaço político conduzem a novas

possibilidades65, rumo a estruturas menos marcadas pelas divergências e

65
“As expectativas normativas possibilitam, pelo menos em sociedades mais complexas e mais ricas
em alternativas, uma mais acentuada redução da complexidade e da contingência” (LUHMANN,
1983, p. 141).
73

adaptadas a novas condições definidas dentro do próprio sistema que lhes deu

origem:

À idéia tradicional de uma sociedade centrada sobre a política Luhmann


contrapõe a idéia de uma sociedade mental, capaz de auto-reflexão
constante que visa a assegurar a evolução de sistemas sempre mais
inteligentes, isto é, com sempre mais capacidade de selecionar e reduzir
complexidades (GIACOMINI, 2005, p. 482). (destaque da autora)

Partindo desse entendimento, o reconhecimento e a garantia dos direitos

humanos derivam de uma capacidade de mudança presente nas sociedades

democráticas. As condições que operam internamente no sistema democrático

atuam como mobilizadoras de formas de legitimação da vontade social, delas

resultando a maior funcionalidade do sistema democrático.

No retrospecto da emergência das sociedades democráticas, é possível

distinguir uma pretensão ética na política, preocupada com a superação da

perspectiva individualista, entendida como nefasta e contrária à igualdade de

oportunidades, da qual emergiram os direitos de segunda e terceira geração.

Tratando da relação entre democracia e individualidade, entende Touraine

(2009, p. 358) que:

Se a democracia é possível, é porque os conflitos sociais opõem atores


que, ao mesmo tempo que se combatem, referem-se aos mesmos
valores, aos quais eles procuram dar formas sociais opostas. Em lugar
de se entregar a um racionalismo generalizado, tentativa para retornar
ao reino da razão objetiva e estender o espírito das luzes, é preciso
voltar-se para o sujeito como princípio fundador da cidadania e definir os
conflitos sociais como um debate sobre o Sujeito – aposta cultural
central – entre os atores sociais opostos e complementares.

As críticas ao capitalismo, no que diz respeito à desqualificação do

indivíduo, não são recentes, mas se inserem nesse processo histórico, do qual

emergiram a democracia moderna e a Era dos Direitos.

Não foi algo isento de ilusões, anseios e decepções, vivenciando-se

experiências inéditas, caminhar este que muitas vezes convergiu para rotas sem
74

saída, tornando inconclusivos os propósitos mobilizadores dos embates que

visavam a busca de um mundo melhor.

Essa é a questão que pode ser discernida no processo histórico da

evolução do pensamento, resultando em variados modelos políticos e sociais: a

inspiração que se encontra no cerne da trajetória das idéias, em todas as suas

variantes, está na dificuldade de conciliar o propósito do progresso material de

cada sujeito, e a igualdade como aspiração maior coletivamente construída.

Morrison (2006, p. 533) sintetiza a ambigüidade desses dois objetivos,

materializada em diversificada produção teórica expressando os mais variados

pontos de vista, na busca de uma resposta satisfatória ao problema:

A modernidade envolve a ideia de que o homem pode assumir o controle


dos processos do mundo para criar as condições favoráveis a uma
sociedade progressista e feliz neste planeta. Uma questão da qual temos
nos ocupado é: ‘o que vai guiar o homem nesse projeto quando as bases
que forneceram a síntese medieval, isto é, a religião e o costume, foram
descartadas?’ ‘O que é que torna o empreendimento individual compatível
com um empreendimento geral?’ Vimos que Weber era extremamente
pessimista quanto a isso, e apresentamos a resposta do positivismo jurídico
– a saber, o utilitarismo -, bem como seus problemas. [...] a busca de um
princípio condutor de justiça social que substitua o utilitarismo (perseguido
de diversas maneiras nas obras de Marx, John Stuart Mill, John Rawls e
Robert Nozick, por exemplo), não resultou em nenhum consenso estável.

Nos tempos atuais, a idéia de um mundo transcendendo as desigualdades,

por intermédio de um compromisso moral comum, contrapõe-se firmemente ao

liberalismo e ao individualismo, cujos resultados, cada vez mais questionados,

parecem evidenciar que a sociedade chegou numa encruzilhada.

A questão é qual o caminho a seguir. Pela ótica de Habermas (2002), uma

aproximação entre as diferenças é possível a partir do adensamento do processo de

comunicação no interior da sociedade democrática, adquirindo importância as

relações intersubjetivas para a formação de uma via consensual ou crescente

aproximação e interface de vontades e pensamentos.


75

Por outro lado, entende Luhmann (2005) que as sociedades mais complexas

tornam mais difícil a manutenção da democracia. No espaço plural e multivariado da

sociedade pós-moderna, o que se verifica é um campo de tensões, no qual se

entrechocam normas e valores pertinentes à representatividade política;

interpretações da realidade transformadas em perspectivas político-ideológicas;

questões controversas quanto à maneira de atingir a legitimidade das propostas e

modos de operar do Estado, entre outros aspectos cruciais do nosso tempo.

Contradições levantadas por Touraine (2009, p. 353) quando fala da relação

entre a consolidação da democracia e modernidade, não necessariamente

convergindo para uma adequada solução dos problemas, mas, pelo contrário,

contribuindo para seu acirramento, em diferenciações mais agudas e evidentes:

[...] esta identificação com a sociedade liberal, isto é, com uma sociedade de
desenvolvimento endógeno onde a ação modernizadora confunde-se com o
exercício da própria modernidade, com a aplicação do pensamento racional à
vida social, através da maior diferenciação possível dos subsistemas –
econômico, político, judiciário, religioso, cultural – não traz nenhuma resposta à
dominação da vida política pelos donos da sociedade civil, notadamente pelos
donos do dinheiro, e não impede a sociedade liberal de ser, ao mesmo tempo
que uma sociedade de integração, uma sociedade de exclusão.

Situações contraproducentes no espaço democrático não significam,

necessariamente, a inviabilidade ou a recusa da validade e importância da

democracia, como espaço indispensável tanto para a garantia de direitos, como para

o exercício da cidadania, elo inafastável entre o sujeito e a possibilidade instrumental

de se concretizarem esses direitos.

É justamente nesse ponto que o pensamento de Touraine (2009) parece mais

próximo e coerente com a perspectiva de uma transformação construída a partir do

retorno ao Sujeito, como ser do qual emana a vontade e a determinação para dar

sentido e significado ao seu viver individual e, na interface com os demais, à

existência coletiva.
76

Ao contrário de Habermas (2002), que se volta para uma idéia de democracia

consubstanciando a convergência de vontades, o que equivale à superação da

subjetividade por uma ordem que, mesmo respeitando o indivíduo, se transforma em

entidade principal e superior a ele em certo sentido.

Em Touraine (2009), não é o coletivo, mas o Sujeito que deve ser valorizado e

fortalecido, para que a democracia se consolide e supere suas contradições. O que

significa compatibilizar a força imanente do coletivo, como base e sustentação do

sistema democrático, com as particularidades e distinções que persistem no grupo,

emanadas do indivíduo como ente único, insubstituível, condição essa que é a própria

essência do humano. Respeitá-la é dar atenção ao valor dignidade, que constitui,

também, o direito mais elementar do homem.

A posição desse autor é importante para se colocar em questão da força

superior dos direitos humanos e a sua fundamentalidade, como arcabouço a partir do

qual devem se definir as formas e as instâncias de exercício do poder, não somente

ao nível interno, mas internacional.

Sob esse ponto de vista, a cidadania pode ser entendida não como simples

participação num jogo comunicativo para a construção de relações consensuais, mas

como afirmação da liberdade e individualidade a partir da construção de um Direito

supranacional, ao mesmo tempo em que coexiste com a pluralidade e um senso

coletivo que expressa a vontade geral no interior das nações.

Por essa via de pensamento, a cidadania confunde-se com o sujeito, por isso

materializa-se no respeito à liberdade e à subjetividade, e não numa suposta vontade

superior e exclusiva de um ente coletivo indistinto.

Nesse último enfoque, a cidadania acabou travestindo-se em modo de ser

autoritário, transformando a democracia em “ditadura da maioria”, pois baseia-se na


77

idéia de que ser cidadão é participar, fazer parte de um todo maior, resultando, como

observa Touraine (2009), em um culto à coletividade política.

A exaltação de uma da sociedade nacional, como pressupõe a idéia comum de

cidadania “[...] traz em si mesma mais perigos do que apoios para a democracia. Ela

produz a rejeição do outro, justifica a conquista, exclui as minorias ou aqueles que se

apartam do ‘nós’ ou o criticam” (TOURAINE, 2009, p. 349).

Se a questão primordial dos tempos atuais é uma sociedade apta a reduzir as

desigualdades sociais e garantir a efetividade dos direitos de cada um, é necessário

adotar uma perspectiva de cidadania centrada no Sujeito, como entende esse autor.

A sua proposta é interessante porque não adota a visão reducionista do Sujeito

a simples ator do sistema democrático, cuja importância emerge somente quando

considerado como parte do todo, segundo pressupõe a idéia de participação política.

Pelo contrário, mantém o Sujeito como ator primordial que, preservando a

individualidade e identidade, pode utilizar a sua criatividade, expandir as suas idéias,

desenvolver conhecimentos críticos e portar-se segundo o seu entendimento,

contribuindo para que não sejam diluídas as múltiplas possibilidades de ação e

decisão. Estas existem em razão da diversidade de Sujeitos, porém, se reduzem e se

homogeneizam, transformando-se em algumas poucas opções, quando a

subjetividade é posta de lado, em nome de uma vontade coletiva transformada na

única expressão possível da sociedade democrática.

A via transversa das relações entre sociedade e indivíduo, rumo a uma

democracia plena passa pela valorização do Sujeito, não pela sua desconstrução,

como ocorre com a idéia de cidadania ancorada na visão estrita de participação e

integração a um grupo visando a formulação de consensos, dos quais emerge como

figura inconteste o Estado soberano e distinto daqueles sob seu governo.


78

Como expõe em sua vigorosa crítica Lorenz (1986), a personalidade do

indivíduo é desprezada pelos sistemas de governo, independentemente da sua

orientação ideológica. Não há lugar para decisões independentes, tomadas pelo

indivíduo, pois se tornam tanto mais indesejáveis quanto maior é o agrupamento que

dá forma ao Estado. O critério do pertencimento social é definido por certos tipos de

comportamentos, que devem se alinhar com um certo “padrão” considerado “normal”

e adequado para a vida em sociedade, sob o discurso que prioriza o coletivo.

Importa considerar aqui Garcia (2004, p. 259), para quem “O exercício da

cidadania requer, pois, mais e atualizadas formas de participação no poder de

decisão, o que equivale a dizer, mais e atualizados direitos e formas de garantia.”

A cidadania deve emergir da valorização do Sujeito, como ser livre e não

desconstruído pelo coletivo. Os direitos fundamentais precisam ser entendidos não

como produto de uma vontade política desenvolvida de cima para baixo, a partir do

eixo Estado-corpo político representativo, mas nascendo e se concretizando no

indivíduo. A cidadania confunde-se com a subjetividade, tendo a mesma importância

que os grupos no sistema democrático.

A valorização do Sujeito não significa priorizar o indivíduo em si mesmo, mas

resgatar o seu significado, a partir daquilo que se reconhece como o mais

essencialmente humano.

No momento em que estão sendo refutadas as idealizações de um progresso

material e de um homem superior, nascido das cinzas da derrocada de uma era das

trevas, como propunham o Iluminismo e o Modernismo; quando a ciência não parece

mais ter todas as respostas, e os caminhos para a construção de uma sociedade mais

justa e fraterna parecem ser um discurso vazio e irreal, mais do que uma via de luta

revolucionária, tudo o que resta é voltar-se para o Ser em si, redescobrindo o homem.
79

Trata-se de uma idéia de progresso, mas não no sentido clássico elaborado

segundo os ideais iluministas que lastrearam o discurso racional-capitalista. Rorty

(2007, p. 316) refere-se ao progresso moral, que se desenvolve rumo

[...] à maior solidariedade humana, mas essa solidariedade não é vista como
o reconhecimento de um eu nuclear – a essência humana – em todos os
seres humanos. É vista, antes, como a capacidade de considerar sem
importância um número cada vez maior de diferenças tradicionais (de tribo,
religião, raça, costumes, etc.), quando comparadas às semelhanças
concernentes á dor e à humilhação – a capacidade de pensar em pessoas
extremamente diferentes de nós como incluídas na gama do “nós”.

Nesse sentido, a valorização do Sujeito na sociedade democrática implica fazê-

lo descobrir a “[...] obrigação moral de nutrir um sentimento de solidariedade com

todos os outros seres humanos” (RORTY, 2007, p. 313).

Para isso, o caminho mais acertado é reconhecer a superior transcendência

das normas de direitos humanos frente a quaisquer ordenamentos jurídicos nacionais.

Somente a adoção de instrumentos dotados de uma efetiva e superior normatividade,

de caráter universal ou supranacional, não-estatal mas vinculando os Estados

nacionais, poderá concretizar os valores mais essenciais da condição humana,

garantindo que sejam integralmente respeitados e tutelados.

Nesse mesmo sentido Garcia (2004, p. 261) fala em “repensar o Estado”, o que

implica numa outra concepção de cidadania, uma nova práxis política e novas formas

de exercício do poder estatal.

O reconhecimento da supraconstitucionalidade dos tratados sobre direitos

humanos, como será demonstrado, é uma via que possibilita maximizar a sua

efetividade, por meio da superação do entendimento positivista e reducionista

imperante, no qual perde-se de vista o homem como fim primeiro da tutela jurídica

diante da preocupação de resguardar a posição e papéis do Estado segundo os

paradigmas político-jurídicos elaborados nos últimos séculos.


80

3 A SUPRACONSTITUCIONALIDADE DOS DIREITOS HUMANOS

3.1 OS DIREITOS HUMANOS E SUA FORÇA NORMATIVA: A RELATIVIZAÇÃO


DA SOBERANIA ESTATAL E A PRIMAZIA DO DIREITO INTERNACIONAL

Numa definição preliminar, um tratado, nos termos do artigo 2º, § 1º, “a”, da

Convenção de Viena de 1969, é

[...] acordo internacional concluído por escrito entre Estados e regido


pelo Direito Internacional, quer conste de um instrumento único, quer de
dois ou mais instrumentos conexos, qualquer que seja sua denominação
específica (BRASIL, 2009, p. 59).

A tese da superioridade do direito emanado dos tratados internacionais sobre

as Constituições pode ser delineada a partir da fundamentação positivista de Kelsen

que, ao abordar a questão, observou:

[...] partindo-se da idéia da superioridade do direito internacional frente às


diferentes ordens jurídicas estatais [...], o tratado internacional aparece
como uma ordem jurídica superior aos Estados contratantes [...] Desse
ponto de vista, o tratado em face da lei e mesmo da Constituição tem uma
preeminência, podendo derrogar uma lei ordinária ou constitucional,
enquanto que o inverso é impossível. Segundo as regras do direito
internacional, um tratado não pode perder sua força obrigatória senão em
virtude de outro tratado ou de certos fatos determinados por lei, mas não por
um ato unilateral de uma das partes contratantes, especialmente por uma
lei. Se uma lei, mesmo uma lei constitucional, contradiz um tratado, ele é
irregular, a saber, contrária ao direito internacional. Ela contraria
imediatamente o tratado, e mediatamente o princípio pacta sunt servanda
66
(KELSEN, 1928, p. 211-212).

Embora não tratando dos direitos humanos, a questão da força normativa dos

tratados em relação à pacta sunt servanda procede, e está vinculada diretamente à

66
Tradução livre do original: “[...] si l'on part de l'idée de la supériorité du droit international aux
différents ordres étatiques [...], le traité international apparaît comme un ordre juridique supérieur aux
Etats contractants [...] De ce point de vue, dit-il, le traité a vis-à-vis de la loi et même de la Constitution
une prééminence, en ce qu'il peut déroger à une loi ordinaire ou constitutionnelle, alors que l'inverse
est impossible. D'après les règles du droit international, un traité ne peut perdre sa force obligatoire
qu'en vertu d'un autre traité ou de certains autres faits déterminés par lui, mais non pas par un acte
unilatéral de l'une des parties contractantes, notamment par une loi. Si une loi, même une loi
constitutionnelle, contredit un traité, elle est irrégulière, à savoir contraire au droit international. Elle va
immédiatement contre le traité, médiatement contre le principe pacta sunt servanda.”
81

necessária subordinação das vontades nacionais ao pactuado em atenção ao

princípio pro homine, como leciona Gomes (2008, p. 499):

O princípio pro homine ainda encontra apoio em dois outros elementares


princípios do Direito internacional: princípios da boa-fé e da interpretação
teleológica. Por força do primeiro, os tratados de direitos humanos são
assumidos pelos Estados para que eles sejam cumpridos (pacta sunt
servanda).

Acerca das ponderações kelsenianas antes transcritas, Schuelter (2003, p.

63) entende que não é o pacta sunt servanda propriamente que confere

obrigatoriedade ao direito internacional no campo dos direitos humanos, pois o seu

fundamento de validade está no

[...] reconhecimento dos atores sociais, dos Estados e das organizações


internacionais, sujeitos a esta ordem jurídica que aceitam e aplicam esse
direito. É o consenso social que valida e torna obrigatório o direito
internacional.

Trata-se de comentário pertinente, pois o núcleo central da matéria relativa

aos direitos humanos e a sua satisfatividade está na legitimidade, não na hierarquia

normativa.

A obrigatoriedade da observância das normas nascidas do Direito

Internacional não decorre propriamente de uma vinculação por hierarquia, mas da

acolhida e consenso coletivo sobre a sua aplicação no âmbito interno do Estado, o

que se faz por via transversa, não com a mediação deste, mas a sua revelia como

entende Manes (2011).

Esse autor comenta acerca da afirmação da supraconstitucionalidade e da

força da Convenção Européia dos Direitos do Homem frente às normas internas e às

Constituições nacionais, tendo papel essencial a atuação pretoriana em instância

supranacional, mas voltada à construção de um direito pro homine sem fronteiras.

Trata-se de uma
82

[...] inversão gestáltica da imposição tradicional que quer a produção do


direito estalinista, positivista, monológica e declinada segundo a modalidade
top-down, porque o delineamento dos direitos humanos mostra-se sempre
mais desterritorializado, policêntrico e reticular: parte da base da pirâmide
das fontes, e não de um ato de “concessão” do absolutismo estatal; [...] é
confiado, em grande parte ao “protagonismo positivo” dos juízes – os
terminais mais próximos, de resto,do tecido conjuntivo da sociedade civil – e
a sua capacidade “universalizante”. (MANES, 2011, p. 92).

Lançando um olhar sobre o caso europeu, a supremacia das normas

internacionais de direitos humanos tem se firmado a partir da emergência de

circunstâncias alheias aos sistemas jurídicos fechados em si mesmos, conduzindo à

estruturação de um sistema normativo internacional de caráter mais inclusivo no que

se refere ao seu objeto, isto é, o ser humano. Categorias como nacionalidade e

limites espaciais de aplicação da lei são desconstruídas, a partir de normas de

validade irrestrita, aplicáveis em todos os lugares.

A pretensão universalizante, é certo, depende da manifestação expressa dos

Estados. Nesse caso, a pacta sunt servanda, consubstanciando acordos entre as partes,

não deixa de ser um ato personalístico do ente estatal.67 Mesmo sob o pressuposto de

que atua na condição de representante da vontade nacional, o Estado toma decisões

segundo a lógica e propósitos definidos no contexto do exercício do poder.

Todavia, a afirmação da supraconstitucionalidade dos direitos humanos não

encontra limites na vontade dos Estados, na sua condição de entes dotados de

personalidade e autonomia no plano internacional.

A primeira justificativa para firmar as bases de um Direito Internacional dos

Direitos Humanos e a sua supremacia sobre as Constituições dos países signatários

encontra-se em um pressuposto lógico, considerando a natureza sistêmica do

Direito, da qual se extrai a necessária vinculação do direito interno a normas

situadas em um plano imediatamente superior. Como explica Virally (1964, p. 497):

67
Para Mazzuoli (2010) a ratificação de um tratado é um ato discricionário e soberano do Estado.
83

Toda ordem jurídica confere aos destinatários de suas normas direitos e


poderes jurídicos [...] ele lhe impõe obrigações, que lhes vinculam [...] toda
ordem jurídica se afirma como superior a seus sujeitos [...] O direito
internacional é inconcebível senão sendo superior aos Estados, seus
68
sujeitos. Negar a sua superioridade implica negar a sua existência.

Sob o pressuposto de uma hierarquia normativa, a questão da

supremacia do Direito Internacional sobre o Direito interno, inclusive as normas

constitucionais, não é matéria recente. Consoante Carreau (1991, p.43):

O princípio da superioridade das normas de direito internacional sobre


as leis constitucionais foi firmado muitas vezes pela prática arbitral e
judiciária internacional. No que concerne à prática arbitral pode-se citar
o caso Montijo (1875). Nesse caso a Colômbia, pretendendo que as
disposições da sua Constituição a impediam de respeitar os termos de
um tratado regularmente concluído com os Estados Unidos, afirmou a
superioridade de sua Constituição sobre o direito internacional. A
sentença arbitral condenou essa concepção e afirmou claramente que
69
“um tratado é superior à Constituição”.

Outro precedente histórico foi o caso Georges Pinson (1928), envolvendo

a inobservância, por parte do México, das disposições de tratado firmado com a

França. O Estado mexicano recusou-se a reconhecer a superioridade desse

instrumento frente às disposições da sua Constituição. Todavia, ressalta

Carreau (1991, p. 43):

O árbitro fez triunfar o tratado franco-mexicano sobre a Constituição


desse último pais. Ele afirmou que “é incontestável e inconteste que o
direito internacional é superior ao direito interno [...]. As disposições
nacionais não são sem valor para os tribunais internacionais, mas eles
70
não estão vinculados a elas.”

68
Tradução livre do original: “[...] est inhérente à la définition même de ce droit et s'en déduit
immédiatement. Tout ordre juridique confère aux destinataires de ses normes des droits et pouvoirs
juridiques [...]; il leur impose des obligations, qui les lient. Par là même, tout ordre juridique s'affirme
supérieur à ses sujets, ou bien il n'est pas [...] Le droit international est inconcevable autrement que
supérieur aux Etats, ses sujets. Nier sa supériorité revient à nier son existence.”
69
Tradução livre do original: “Le principe de la supériorité des normes de droit international sur les lois
constitutionnelles a été affirmé maintes fois par la pratique arbitrale et judiciaire internationale. En ce
qui concerne la pratique arbitrale on peut citer l'affaire du “Montijo” (1875). Dans cette affaire la
Colombie, en prétendant que les dispositions de sa Constitution l'empêchaient de respecter les
termes d'un traité régulièrement conclu avec les Etats-Unis, a affirmé la supériorité de sa Constitution
sur le droit international. La sentence arbitrale a condamné une telle conception et affirmé clairement
qu’ un traité est supérieur à la Constitution.”
70
Tradução livre do original: “L'arbitre a fait triompher le traité franco-mexicain sur la Constitution de
ce dernier pays. Il a affirmé qu'«il est incontestable et incontesté que le droit international est
supérieur au droit interne [...] Les dispositions nationales ne sont pas sans valeur pour les tribunaux
internationaux, mais ils ne sont pas liés par elles.”
84

Aos precedentes das decisões de arbitramento de disputas entre os Estados

envolvendo questões pertinentes à inobservância de tratados por eles firmados, o

Direito Internacional avançou, o que pode ser considerado um processo natural de

fortalecimento das bases pactuais entre os Estados, baseado em garantias de um

compromisso efetivo com as disposições consensualmente firmadas nos

instrumentos internacionais.

Hodiernamente, a supremacia do Direito internacional sobre o Direito interno

tem sido justificada com base no artigo 27 da Convenção de Viena sobre o Direito de

Tratados de 1969, segundo o qual “[...] uma parte não pode invocar as disposições do

seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado” (BRASIL, 2009).

Para Carreau (1991, p. 42) “[...] esse princípio de superioridade significa que o

direito internacional [...] se impõe sobre o conjunto normativo interno, sejam as

normas constitucionais, legislativas, regulamentares ou decisões judiciais.”71

Com base nesse dispositivo tem sido defendida a superioridade da norma

internacional em relação à “[...] ordem interna dos Estados onde ela viesse a vigorar ou

por ratificação ou como costume internacional” (PEREIRA; QUADROS, 2001, p. 120).72

A partir do entendimento sobre o alcance das normas derivadas de tratados

internacionais firma-se a tese da supraconstitucionalidade dos direitos humanos, que

exaurem a sua força normativa maior e mais completa fora dos sistemas jurídicos

nacionais.

71
Tradução livre do original: “[...] ce principe de supériorité signifie que le droit international [...]
l'emporte sur l'ensemble du droit interne, qu'il s'agisse des normes constitutionnelles, législatives,
réglementaires ou des décisions judiciaires.”
72
Os doutrinadores portugueses Pereira; Quadros (2001) ressaltam que, para o Direito comunitário
vigorar no âmbito interno dos Estados-membros da União Européia. e se impor sobre o Direito
interno, não é necessária previsão expressa das Constituições nacionais, pois, uma vez que o Estado
adere à ordem comunitária a ela vinculando-se por meio dos instrumentos constitutivos da União,
implicitamente aceita a ordem jurídica que dela emana com todas as suas características basilares,
dentre elas o princípio do primazia do Direito Comunitário.
85

Todavia, a ela se contrapõem outros entendimentos, definindo um campo de

debate doutrinário e de controvérsias com importantes inflexões na jurisprudência

nacional e internacional, bem como nas relações internacionais entre os Estados.

3.2 A SUPRACONSTITUCIONALIDADE: REVERBERAÇÕES NO DIREITO PÁTRIO

Existem muitas divergências interpretativas quanto à aplicação do Direito

Internacional derivado dos tratados no plano interno, em razão de um viés

dogmático-legalista no que se refere à aplicação das normas internas.

Por muito tempo ficou relegada a um segundo plano a corrente que defendia

que a aplicação dos tratados internacionais sobre os direitos humanos teria status

constitucional, ou se estariam eles formal e hierarquicamente acima do direito

ordinário, possuindo então, valor supralegal.

Dentre os argumentos lançados para opor-se à tese, afirmava-se que a

natureza constitucional dos tratados de Direitos Humanos minimizaria a soberania

brasileira, e que os tratados internacionais não podiam, nem deviam, impedir o

Parlamento de legislar (GALINDO, 2006).

Essa posição foi superada, com o apoio dos aplicadores do Direito, como

se depreende da exposição da matéria por Gomes; Mazzuoli (2009, p. 12):

[...] examinando a matéria sob a perspectiva da supralegalidade, tal como


preconiza o eminente Ministro Gilmar Mendes que, cuidando-se de tratados
internacionais sobre direitos humanos, estes hão de ser considerados como
estatutos situados em posição intermediária que permita qualificá-los como
diplomas impregnados de estatura superior à das leis internas em geral, não
obstante subordinados à autoridade da Constituição da República.

A adoção da tese da supralegalidade das normas derivadas dos tratados

internacionais pode ser entendida como a superação de um viés positivista, limitador

da garantia dos direitos fundamentais, observando Sarlet (2006, p. 390) que:


86

[...] não há mais que se falar em direitos fundamentais na medida da lei,


mas, sim, em leis apenas na medida dos direitos fundamentais, o que – de
acordo Gomes Canotilho – traduz de forma plástica a mutação operada nas
relações entre a lei e os direitos fundamentais.

A plasticidade acima referida diz respeito às contingências da aplicação

das normas internas nos casos em que se vislumbra a impossibilidade de dar

ampla efetividade aos direitos humanos, inviabilizando não somente o sentido

idealístico contido na sua afirmação e previsão constitucional, mas, sobretudo, o

seu caráter finalístico, que é garantir a fruição desses direitos em qualquer lugar

e momento, conforme a sua natureza universal e imanência a todo ser humano.

O campo normativo criado pelo Estado, como observa Ferrajoli (2000, p.

35-36), não perfaz todas as exigências para a materialidade dos direitos

humanos. O reconhecimento e a garantia dos direitos humanos, por meio da sua

normatização interna, estão sendo alcançados por meio da qualificação dos

indivíduos, conforme o critério político do pertencimento ou não ao Estado

(condição cidadã), criando-se assim parâmetros inclusivos ou excludentes que

delimitam as possibilidades da satisfatividade ou concretude de tais direitos:

Nos ordenamentos internos dos Estados liberal-democráticos, os antigos


direitos naturais são consagrados e positivados pelas Constituições
como “universais” e, portanto, como base da igualdade de todos os seres
humanos. E, todavia, coincidindo seu “universo” jurídico-positivo com o
do ordenamento interno do Estado, os direitos do “homem” acabam de
fato por se achatar sobre os direitos do “cidadão”. Dessa forma, a
cidadania, se internamente representante da base da igualdade,
externamente age como privilégio e como fonte de discriminação contra
os não-cidadãos. A “universalidade” dos direitos humanos resolve-se,
consequentemente, numa universalidade parcial e de parte: corrompida
pelo hábito de reconhecer o Estado como única fonte de direito e,
portanto, pelos mecanismos de exclusão por este desencadeados para
com os não-cidadãos; e, ao mesmo tempo, pela ausência, também para
os cidadãos, de garantias supra-estatais de direito internacional contra
as violações impunes de tais direitos, cometidas pelos próprios Estados.

A defesa da supraconstitucionalidade das normas de direitos humanos

derivadas de tratados internacionais constitui uma afirmação de que o direito pro


87

homine depende do reconhecimento de que as normas ordinárias ou

constitucionais não são baluartes exclusivos para plasmar um campo normativo

amplo o suficiente em termos satisfativos.

Não se trata de um entendimento eivado de implicações doutrinárias e

legais, uma vez que nega a possibilidade de limites à força normativa dos

tratados internacionais sobre direitos humanos em razão da soberania estatal que

se materializa no direito interno.

Mas tanto a interpretação que postula a equivalência das normas do direito

internacional às normas constitucionais, quanto a que advoga o seu caráter

supraconstitucional, encontram seu fundamento no conceito materialmente aberto

de direitos fundamentais, consagrado no artigo 5º, § 2º, da Magna Carta brasileira

de 1988, que dá margem ao desvendamento de um amplo campo de

materialização dos direitos humanos, pois permite a

[...] identificação e construção jurisprudencial de direitos materialmente


fundamentais não escritos (no sentido de não expressamente positivados),
bem como de direitos fundamentais constantes de outras partes do texto
constitucional e nos tratados internacionais (SARLET, 2006, p. 101).

Se a satisfatividade é o objeto de convergência das duas correntes, não

há, todavia, consenso no que concerne à resolução de antinomias na seara da

proteção e concretude dos direitos humanos.

A interpretação sobre a equiparação às normas constitucionais pode ser

considerada como a reverberação, na Corte Suprema do nosso país, das teses

que preconizavam a indispensável revisão das bases dogmáticas e positivas do

Direito pátrio, para reconhecer a primazia dos direitos humanos e a sua força

normativa de modo mais abrangente.


88

Após reiteradas divergências manifestas pelos membros do Superior

Tribunal Federal em sucessivos julgamentos73, emergiu a Emenda Constitucional

nº 45, de 8 de dezembro de 2004, que, em consonância com o art. 60, § 2°, da CF,

adicionou o § 3° ao artigo 5°, dispondo que:

Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que


forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos,
por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes
às emendas constitucionais.

Com as novas regras estabelecidas pela referida Emenda, firmou-se a

aplicabilidade da tese da constitucionalidade dos tratados internacionais versando

sobre direitos humanos.

O Ministro Gilmar Mendes, que antes havia advogado reiteradas vezes a tese

da supralegalidade dessas normas, mudou seu entendimento, alinhando-se a essa

nova orientação constitucional na solução das antinomias relativas às normas

sobre direitos humanos:

[...] em decorrência do advento da EC n° 45/2004, e ressalvadas as


hipóteses a ela anteriores – considerado, quanto a estas a regra do § 2°
do art. 5° da Constituição – tornou-se possível atribuir, formal e
materialmente, aos tratados de direitos humanos, hierarquia jurídico-
constitucional, desde que observado o “iter” procedimental prescrito no §
3° do mesmo art. 5° (DIÁRIO DA JUSTIÇA, HC 90.172 SP – 17 ago.
2007 – Rel. Min. Gilmar Mendes).

Porém, o Ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello Filho foi

mais além74, entendendo terem status constitucional também os tratados aprovados

antes da referida emenda constitucional, citando para isso renomados doutrinadores

nacionais que sustentavam essa interpretação:

73
Sobre os tratados como equivalentes às normas internas – norma infraconstitucional: RE nº
80.004/SE, julgado em 01 jun. 1977; ADI nº 1.480-3/DF, julgada em 04 de setembro de 1997; HC nº
72.131/RJ, julgado em 22 nov. 1995; RE n° 206.482-3/SP, julgado em 27 maio 1998; HC n° 81.319-
4/GO, julgado em 24 abr.2002).
74
O Ministro Celso de Mello posicionou-se pela equiparação às normas constitucionais no julgamento
do HC 87.585/TO; prevaleceu, todavia, a tese do Ministro Gilmar Mendes, apoiado pelos votos dos
Ministros Ricardo Lewandowski, Ayres Britto, Carmén Lúcia e Menezes Direito, pela supralegadidade,
(BASTOS JÚNIOR; CAMPOS, 2001).
89

[...] há expressivas lições doutrinárias – como aquelas ministradas por


Antônio Augusto Cançado Trindade (‘Tratado de Direito Internacional de
Direitos Humanos’, vol. 1/513, item n. 13, 2ª ed.m 2003, Fabris), Flavia
Piovesan (‘Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional’, p.
51/77, 7ª ed., 2006, Saraiva), Celso Lafer (‘A internacionalização dos
Direitos Humanos: Constituição, Racismo e Relações Internacionais’, p.
16/18, 2005, Manole) e Valerio de Oliveira Mazzuoli (‘Curso de Direito
Internacional Público’, p. 682/702, item n. 8, 2ª ed., 2007, RT), dentre
outros eminentes autores – que sustentam, com sólida fundamentação
teórica, que os tratados internacionais de direitos humanos assumem, na
ordem positiva interna brasileira, qualificação constitucional, acentuando
ainda, que as convenções internacionais em matéria de direitos
humanos, celebradas pelo Brasil antes do advento da EC n. 45/2004,
como ocorre com o Pacto de São José da Costa Rica, revestem-se de
caráter de materialmente constitucional, compondo, sob tal perspectiva,
a noção conceitual de bloco de constitucionalidade (HC n. 87.585/TO,
julgado em 12 mar. 2008, voto do Ministro Celso de Mello Filho).

Comentando o tema, posiciona-se a doutrinadora Piovesan (2005, p. 72):

[...] todos os tratados de direitos humanos são materialmente constitucionais,


por força do § 2° do art. 5°, e agora, poderão, a partir do § 3° do mesmo
dispositivo, acrescer a qualidade de formalmente constitucionais,
equiparando-se às emendas à Constituição, no âmbito formal.

Com esse entendimento, firmou-se a validade das normas

infraconstitucionais segundo um duplo controle vertical: devem ser compatíveis

com as normas constitucionais e com os tratados internacionais sobre direitos

humanos, aprovados consoante o rito previsto no § 3º, do artigo 5º, da

Constituição Federal, e também com os tratados internacionais sobre direitos

humanos internalizados antes da Emenda Constitucional n° 45/04 (GOMES, 2008).

Todavia, Mazzuoli (2009, p. 764) mantém outra interpretação quanto à

exigência de quorum consoante o §3º do artigo 5º, da Constituição Federal:

Tecnicamente, os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos


ratificados pelo Brasil já têm status de norma constitucional, em virtude do
disposto no § 2.º do art. 5.º da Constituição. Portanto, já se exclui, desde
logo, o entendimento de que os tratados de direitos humanos não
aprovados pela maioria qualificada do § 3.º do art. 5.º equivaleriam
hierarquicamente à lei ordinária federal, uma vez que os mesmos teriam
sido aprovados apenas por maioria simples (nos termos do art. 49, inc. I,
da Constituição) e não pelo quorum que lhes impõe o referido parágrafo.
[...] O que se deve entender é que o quorum que tal parágrafo estabelece
serve tão-somente para atribuir eficácia formal a esses tratados no nosso
ordenamento jurídico interno, e não para atribuir-lhes a índole e o nível
materialmente constitucionais que eles já têm em virtude do § 2.º do art. 5.º
da Carta de 1988.
90

Embora avançando no reconhecimento sobre a aplicação das normas

internacionais de direitos humanos no direito interno, a posição dos Ministros do

Supremo Tribunal Federal manteve-se refratária à supraconstitucionalidade. Ficou

evidente a recusa em admitir normas com força superior à Constituição, o que

implicaria transformá-las em instrumentos externos de controle da

constitucionalidade, não somente das normas derivadas, mas também das

produzidas pelo constituinte originário.

Todavia, para Vedel (1993) a supraconstitucionalidade não está nem no

campo do direito natural, apenas nele se inspira, e tampouco situa-se no campo do

direito positivo. Ela evoluiu em um campo extrajurídico, podendo ser considerada

uma “perversão latente da lógica jurídica.” Em razão dessa natureza, é admissível

que a supraconstitucionalidade imponha limites materiais à intervenção do

constituinte, limites que não podem ser equiparados às regras do direito interno

pelos juristas de orientação positivista.

No mesmo sentido, comenta com perspicácia Torcol (2005, p.7):

O que é dificilmente concebível – e até mesmo suportável – para um


jurista constitucionalista, é constatar a desconstrução do poder
constituinte. Todavia, os diferentes tipos de internacionalização têm
colocado o poder constituinte ‘sob tutela’ e mesmo o confiscado
75
definitivamente.

A recusa em aceitar a supraconstitucionalidade tem sido feita a partir de

uma lógica jurídica, a qual se apresenta como dotada de razoabilidade suficiente

para embasar esse entendimento refratário. Nada mais falacioso, todavia. Por trás

da tese da supremacia do Direito interno, como sustentáculo da soberania e da

75
Tradução livre do original: “Ce qui est difficilement concevable – voire même supportable – pour un
juriste constitutionnaliste, c’est d’avoir à constater la dépossession du pouvoir constituant. Et pourtant,
les différents types d’internationalisations aboutissent toujours à mettre le pouvoir constituant «sous
tutelle» voire à le confisquer définitivement.”
91

própria existência do Estado, há um viés político-ideológico que permeia o sistema

jurídico.

É preciso sempre considerar a carga de subjetividade envolvida na decisão

judicial, no sentido de que encerra um substrato ideológico que impregna a

formação, as experiências, o modo de pensar do julgador, o qual não está isolado

no mundo, mas vivendo nele. Conseqüentemente a sua decisão nunca pode

subtrair-se a isso. Como assevera Azevêdo (2009, p. 66), a decisão judicial provém

de um ator comprometido com a dogmatização do Direito. Esse ato representa um

[...] elemento constitutivo do subsistema social do direito, e que deve se


prestar a reproduzi-lo dentro do sistema social e, ao mesmo tempo,
diferenciá-lo dos demais subsistemas sociais, a exemplo da economia.
Quanto maior a diferenciação do subsistema social do direito, maior a
aparência da imparcialidade do ato de decisão judicial. Quanto maior a
reprodução do subsistema social do direito, maior a importância do ato de
decisão judicial, à medida que aumenta sua disseminação em meio ao
tecido social.

O referido autor ampara-se na teoria dos sistemas de Luhmann (1983), para

daí extrair fundamentos sobre a interrelação entre o Direito e outros subsistemas,

de modo que não se pode atingir uma isenção absoluta: a atuação do julgador

nunca é totalmente neutra.

Para Azevêdo (2009, p. 66),

[...] não se deve inferir destas ponderações que o fechamento operacional


do subsistema social do direito implique, necessariamente, isolamento do
direito autopoieticamente organizado e, por conseqüência, do ato de
decisão judicial em relação aos demais subsistemas sociais, como a
política, a economia, dentre outros. Fechamento operacional não significa
isolamento, mas estabelecimento de critérios para admissão das
influências desses outros subsistemas sociais. Critérios que são impostos
pelo próprio direito positivo ‘mediante seus procedimentos de modificação
e de adaptação, tais como novas legislações, jurisdição constitucional e
concretizações jurisprudenciais em geral.

Nesse contexto, pode-se ressaltar a natureza político-ideológica da

Constituição, como expõe Carvalho (2011, p. 16), afirmando que esse caráter
92

[...] torna difícil, senão impossível, estabelecer critérios absolutos de


interpretação. As normas constitucionais contêm uma plasticidade muito
grande, adequando-se às mutações sociais sem perder o seu caráter de
normas de orientação política do Estado. As considerações políticas na
interpretação constitucional são de importância bem maior do que na
interpretação das normas infraconstitucionais com necessidade de a
hermenêutica auxiliar na tarefa da interpretação constitucional de consagrar
os valores políticos insculpidos na Lei Maior.

Não se pode negar a influência ideológica de um conjunto de determinações

às quais o Direito, e seus aplicadores, não podem subtrair-se em razão da

permeabilidade entre os subsistemas nos quais estão inseridos.

Por outro lado, Dworkin (2007) não nega a possibilidade de um Direito que se

aproxima da sociedade, superando o problema de uma postura presa ao passado,

influenciada por situações e idéias cristalizadas. Sua perspectiva de aplicação dos

princípios é de uma prática em constante mutação, acompanhando as novas

tendências e necessidades sociais, num processo de comunicação constante.

Na exposição de Arêas (2005, p. 581):

O juiz, portanto, que aceita o direito como integridade está sempre apto a
abandonar princípios já seguidos no passado, pois, ora, é justamente esse
argumento que diferencia a tese de Dworkin do pragmatismo e do
convencionalismo. Nesse diapasão, o direito como integridade estaria a
consagrar que os juízos formulados no passado possam ser futuramente
modificados, conforme a melhor interpretação a ser no presente seguida.

O rigor formalista e conservador no Direito remete a um caráter utilitarista das

normas, que tem delimitado o sentido da aplicação das normas dos direitos

humanos, seguindo uma lógica segundo a qual eles “[...] devem ser respeitados se

isto convier à promoção do bem-estar geral – identificando-se este com os

interesses prevalecentes em cada sociedade” (SARMENTO, 2005, p. 62).

Por interesses prevalecentes entende-se aqueles pertinentes a uma parte

substancial da sociedade, não no sentido da maioria, mas da porção mais influente,

política, econômica ou por alguma outra via determinante no contexto das relações

no interior dessa sociedade.


93

Nesse sentido, Sarmento (2005) crítica a despersonalização do indivíduo,

numa sociedade que se diz pluralista, pautada na afirmação dos direitos da pessoa

humana, mas que, no contexto sociopolítico e, por extensão, jurídico, tem como

regra a negação de um efetivo centramento no indivíduo, superado pela sociedade

e o Estado.

Observa-se, tanto na doutrina, como nos julgados, a preocupação com a

construção de uma base racional-legal para a “supremacia” da Constituição,

segundo a justificativa da necessidade (“manutenção do Estado” enquanto

representante da vontade geral), daí derivando uma interpretação dogmática,

porque entendida como suficiente em si mesma. Essa “verdade incontestável”

nega a possibilidade de normas internacionais se sobreporem às normas

constitucionais.

Todavia, a despeito da tese da supremacia do Estado, e da soberania que

lhe é imanente como qualidade fundamental, trata-se de axioma76 de caráter

apriorístico, não se verificando nos julgados, e tampouco na doutrina pátria, uma

substancial fundamentação para validar de forma inquestionável o entendimento

de que as normas do Direito Internacional não podem transcender a supremacia da

Constituição.

Entende-se como axiomática essa posição que refuta a

supraconstitucionalidade das normas do Direito Internacional no campo dos

direitos humanos, porque se apresenta como óbvia ou autodemonstrável, excluindo

previamente quaisquer outras vias de raciocínio que possam tomar como ponto de

partida uma idéia oposta, ou seja, questionar se é possível a existência de normas

do Direito Internacional supraconstitucionais.

76
O axioma ou postulado denota “[…] uma proposição cuja veracidade é aceita por todos, dado que
não é nem possível nem necessário prová-la [...].” (ÁVILA, 2007, p. 5).
94

Analisando-se o conteúdo dos julgados e da doutrina, o que se observa é

um vazio argumentacional, para empregar os termos de Habermas (2003),

caracterizando um processo circular de argumentação, tautológico, construído em

torno da autosuficiência do conceito de norma constitucional originária, do qual

emerge como corolário a supremacia das normas constitucionais, como se não

houvesse nenhuma possibilidade de construir um raciocínio diferente, apto a

justificar a relativização da soberania estatal e admitir a superioridade de normas

supranacionais sobre as Constituições.

Todavia, à luz de uma análise mais acurada, o que se constata é uma

indeterminação semântica em razão da imprecisão do conceito de soberania:

[...] trata-se de uma daquelas idéias pelas quais os homens muito


combateram. Para obtê-la ou para defendê-la, tanto no seio da
comunidade nacional como nas relações internacionais [...] Tantos usos
não contribuíram em nada para precisar em que consiste: seu sentido é
nebuloso, suas origens são esquecidas, seu titular é incerto. Quanto aos
seus limites, eles variam segundo o interesse em questão; e é mesmo
preciso questionar porque os indivíduos e os Estados se prendem a esse
77
conceito?

Desconstruindo o referido raciocínio axiomático, Vedel (1993, p. 80) observa

com perspicácia que:

[...] não há, a nosso ver, objeção verdadeira a que certas regras de direito
internacional sejam superiores à Constituição nacional. [...] Que essa
superioridade da norma internacional sobre a norma nacional seja
considerado como abrangido pelo conceito de ‘supraconstitucionalidade’ é
78
gramaticalmente aceitável.

77
Tradução livre da resenha da edição n. 67 da revista francesa “Pouvoirs”, jan. 1993: “La
souveraineté est de ces idées pour lesquelles les hommes se sont beaucoup battus. Pour l’obtenir ou
pour la défendre, au sein de la communauté nationale comme dans les relations internationales [...]
Tant d’utilisations n’ont guère contribué à préciser la notion : son sens est brouillé, ses origines sont
oubliées, son titulaire est incertain. Quant à ses limites, elles varient au gré des intérêts en présence ;
et il faudrait peut-être se demander pourquoi les individus et les Etats y sont rattachés?
78
“[…] qu’il n’y a pas, à nos yeux, d’objection véritable à ce que certaines règles de droit international
soient supérieures à la Constitution nationale. […] Que cette supériorité de la norme internationale sur
la norme nationale soit regardée comme relevant du concept de « supraconstitutionnalité » est
grammaticalement acceptable.”
95

As observações de Ávila (2007, p. 4) sobre a indeterminação do conceito de

“interesse público” também podem servir para desconstruir esse dogmatismo

positivista, estruturado em torno de uma lógica fechada em si mesma e sobre a

qual repousa a refutação da supraconstitucionalidade das normas internacionais de

direitos humanos em favor da exclusividade jurisdicional interna:

A dogmática jurídica, em vez de descrever e explicar o ordenamento


jurídico, passa, em virtude da equivocidade dos seus enunciados, a
encobri-lo ou não desvendá-lo. As teorias jurídicas passam a padecer de
inadequação sintática, na medida em que utilizam termos iguais para
explicar fenômenos desiguais, instalando, na ciência do Direito, o germe
da ambigüidade. A interpretação e a aplicação do Direito, com a finalidade
de explicar aquilo que o ordenamento determina, proíbe ou permite, passa
a explicar, também, aquilo que não encontra sequer referibilidade indireta
ao objeto descrito. A teoria jurídica padece, nesse caso, de inadequação
semântica.

Confunde-se soberania e Direito nacional com dimensões basilares de

construção da normatividade garantidora dos direitos humanos, como se

quaisquer outras normas, fora da órbita do direito interno, só possam, no máximo,

equiparar-se às normas constitucionais, mas jamais situar-se acima delas.

As concepções sobre a soberania são divergentes, sendo para uns o

próprio poder do Estado, e para outros apenas a qualidade intrínseca ao

exercício do poder estatal.

Adota-se aqui o entendimento de Dallari (1995, p. 68), para quem a

soberania é essencialmente “[...] o poder de decidir em última instância sobre a

atributividade das normas, vale dizer, sobre a eficácia do direito.”

O que se verifica é que as interpretações contrárias ou favoráveis à

supraconstitucionalidade remetem a diferentes modos de compreender o Direito e

a relação de poder que permeia o campo das relações Estado e indivíduo. Nas
96

palavras de Torcol (2005, p.5), a “[...] internacionalização79 é, ao mesmo tempo, a

expressão de uma relação de forças dominador/dominado e uma certa ‘visão do

mundo’, a escolha [...] de uma definição da ordem política e da relação

governantes/governados.”80

Bastos Júnior; Campos (2011, p. 19) apresentam interessante análise crítica

sobre o entendimento da Suprema Corte brasileira nessa seara, que adota uma

posição refratária a um avanço mais radical quando se trata de reconhecer a

superioridade do Direito Internacional sobre o Direito pátrio. Para os autores, a

postura do Supremo Tribunal Federal é

[...] tímida e vacilante em torno do papel a ser desempenhado pelo sistema


interamericano de direitos humanos. Isto reflete uma atitude conservadora
(no sentido de pretensão de conservação de sua autoridade) e não-
dialógica (no sentido de recusa a que se leve a sério o pronunciamento dos
tribunais supranacionais a cuja jurisdição está sujeito o Brasil), e se traduz
em uma eloquente indiferença em relação às instâncias supranacionais,
transformando a referência ao elemento estrangeiro em seus julgados um
acentuado caráter retórico, como parte integrante (a par de outros fatores)
de sua estratégia argumentativa.

Esses autores identificam na posição do Supremo Tribunal Federal um viés

dogmático81, de caráter conservador, pelo temor de perder a posição de autoridade

judicial máxima e exclusiva, pois as decisões de instâncias internacionais passariam

a regular, no plano interno, questões relacionadas aos direitos humanos.82

79
O autor refere-se à internacionalização do Direito e à crescente afirmação da supremacia das
normas do Direito Internacional sobre o direito interno.
80
Tradução livre do original: “[...] l’internationalisation est à la fois l’expression d’un rapport de forces
dominant/dominé et celle d’une certaine « vision du monde », le choix [...] d’une définition de l’ordre
politique et du rapport gouvernants/gouvernés.”
81
“[...] o pensar dogmático, desenvolvido em circuito fechado, tratando das normas e dos conceitos
jurídicos, de seu arranjo e funcionalidade internos, de suas inter-relações e de sua sistematização na
ordem jurídica positiva, termina por esvair-se em considerações intra-sistêmicas, esquecendo ou
deixando de lado a circunstância por certo não negligenciável de que o direito existe para satisfazer
necessidades e interesses individuais e sociais. Desemboca-se, por essa forma, no reducionismo
logicista e formalista pelo qual se quer construir uma ciência jurídica tão perfeita que termina não
dever satisfação à vida e aos dramas humanos” (AZEVEDO, 1989, p. 29).
82
O entendimento dominante é que o ao princípio do pacta sunt servanda pode opor-se a
Constituição Federal. Essa posição é criticada por Mello (2000, p. 119), afirmando que “[...] sustentar
que nossa Constituição é omissa nesta matéria significa apenas que a jurisprudência passa a ter um
papel mais relevante, mas não que a jurisprudência possa ignorar a tendência atual do direito nesta
matéria adotando uma concepção de soberania que desapareceu em 1919, pelo menos entre os
juristas”.
97

Analisando as ponderações do Ministro Gilmar Mendes no HC 87.585-8/TO,

manifestando entendimento sobre a supralegalidade das normas do Direito

Internacional sobre direitos humanos, Bastos Júnior; Campos (2011, p. 26)

observam:

Estes argumentos consequencialistas genéricos bem demonstram que o


ministro se vale de um discurso eminentemente retórico para justificar a
atribuição (criação) do status supralegal aos tratados internacionais.
Deveras, dessume-se que se trata de uma posição sobremaneira norteada
por interesse político, cujo escopo subjacente é conservar a autoridade do
Supremo Tribunal Federal como detentor da última palavra no âmbito
interno, uma vez que, conferindo status constitucional aos tratados, o
Tribunal Constitucional pátrio teria de compartilhar tal autoridade, em tema
de direitos humanos, com a Corte Interamericana, intérprete suprema da
Convenção Americana de Direitos Humanos, em tese.

Há que se destacar ainda os inconvenientes do que, em princípio, parece ser

um avanço com relação a uma possível solução das antinomias. As críticas

levantadas por Mesquita (2005, p. 15) evidenciam que a exigência de quorum de

três quintos, em dois turnos, nas duas Casas do Congresso Nacional, para que um

tratado tenha o status de emenda constitucional, foi obra de zelo excessivo com os

aspectos formais, o que, todavia, não garante a máxima efetividade dos direitos

humanos. Pelo contrário:

Tal quorum aumenta ainda mais a dificuldade que o Brasil tem de incorporar
os tratados internacionais ao direito interno. O procedimento regular de
integração (art. 49, I, e art. 84, VIII, já apresentados) produz uma grande fila
de tratados que já foram pactuados pelo Brasil, mas que esperam os
procedimentos formais para a sua integração ao ordenamento jurídico
pátrio.

Portanto, a despeito das mudanças de entendimento entre os magistrados da

Suprema Corte brasileira, a posição pretoriana continua conservadora, e nesse

sentido é acompanhada pela doutrina dominante, ao contrário do que se verifica na

Europa, onde tem sido construído um entendimento doutrinário e jurisprudencial

favorável à supraconstitucionalidade dessas normas.


98

3.3 A SOBERANIA DO CIDADÃO: AVANÇOS DOUTRINÁRIOS E


JURISPRUDENCIAIS NA RECEPÇÃO DA SUPRACONSTITUCIONALIDADE
- O CASO EUROPEU

A tese da supraconstitucionalidade das normas internacionais sobre direitos

humanos tem como pressuposto o seu caráter centrífugo, como normas superiores,

cogentes, em face das normas constitucionais. Define-se com essa concepção um

Direito universalizado, tendo como fundamento a pretensão de, como jus cogens,

consagra-se como patamar superior da jurisdicidade internacional.

Solon (2005) aponta o caráter evolutivo do jus cogens, considerando a

supraconstitucionalidade como um novo locus para as relações entre Estado e

indivíduo, com base no reconhecimento de que, acima da personalidade estatal,

está o indivíduo.

A satisfatividade dos seus direitos vai além da órbita do direito interno. À sua

proteção não bastam mais as normas nacionais. Somente um conjunto normativo

internacional pode responder às exigências da efetividade83 dos direitos humanos,

sendo inaceitáveis os espaços exclusivos de validade desses direitos, resultando em

um reducionismo contrastante com o alargamento desejado na sua proteção.

É nesse contexto que ganha relevância a supraconstitucionalidade, a qual

encontra seus fundamentos na constatação de que, no campo dos direitos humanos,

há uma “[...] relação desigual entre Estado e indivíduos sob a sua jurisdição, que

bem pode caracterizar-se como uma relação vertical” (PINHEIRO, 2009, p. 8).

Na ótica da eficácia irradiante dos direitos fundamentais, estes não se

efetivam senão parcialmente no Direito interno; a sua maior concretude depende

de uma instância jurídica superior, supranacional.

83
Sobre a efetividade, comenta Sarlet (2006, p. 223): “[...] podemos definir a eficácia jurídica como a
possibilidade (no sentido de aptidão) de a norma vigente (juridicamente existente) ser aplicada aos casos
concretos e de – na medida de sua aplicabilidade – gerar efeitos jurídicos, ao passo que a eficácia social (ou
efetividade) pode ser considerada como englobando tanto a decisão pela efetiva aplicação da norma
(juridicamente eficaz), quanto o resultado concreto decorrente – ou não – desta aplicação.”
99

No que tange à construção desse campo normativo internacional ou

supranacional dos direitos humanos, adentra-se no terreno pantanoso das

relações assimétricas entre Estado e indivíduo.

Retomam-se os debates do passado acerca do Estado frente ao sujeito,

embora não mais no contexto das limitações internas ao exercício do poder, mas

em um novo contexto, ainda mais relevante, pois refere-se à ampliação das

bases protetivas dos direitos dos indivíduos, extrapolando os tradicionais e

fechados conceitos de cidadania e nacionalidade.

Há uma tendência para questionar o conteúdo e sentido da relação entre

indivíduo e Estado, a despeito do progressivo reconhecimento e constitucionalização

dos direitos humanos, tomando como referência o alcance efetivo das normas,

constitucionais ou não, para assegurar a sua ampla proteção e efetividade.

O tema é abordado pelo Ministro Gilmar Mendes, que ressalta o teor

originário dos instrumentos de afirmação dos direitos humanos, estabelecendo a

possibilidade de uma real contenção do poder estatal frente ao homem, alçado á

condição de objeto e fim dessas garantias:

[...] as Declarações de Direitos representaram, sempre, um poderoso


instrumento de tutela e de salvaguarda dos direitos e garantias individuais.
Era-lhes subjacente a idéia de conter, mediante limitações jurídicas, a
onipotência do próprio Estado. Essa visão do tema, derivada de uma
perspectiva “ex parte populi”, consagrou, iniludivelmente, o postulado da
liberdade e a primazia da pessoa humana, no campo delicado e complexo
das relações estruturalmente desiguais entre o Estado e o indivíduo (R. E.
466.343-1).

A supraconstitucionalidade dos tratados internacionais84 pode ser

considerada como uma nova via que se constrói para assegurar a primazia do

ente humano, já firmada no Direito interno, mas nem sempre concretizada,

mesmo quando estabelecida constitucionalmente.

84
Favoreu (1993, p. 74) chama de “normas supranacionais supraconstitucionais”.
100

O avanço proposto pela tese da supremacia do Direito Internacional sobre

os direitos humanos aponta para um caminho alternativo, pelo qual é possível

alcançar a sua maior satisfatividade,

Esse postulado, porém, não está infenso a críticas e resistências, o que é

compreensível, como será demonstrado, em razão de argumentos novos e dogmas

antigos, no embate entre diferentes modos de pensar o homem e o Estado.

A tese da supralegalidade, acolhida na Corte Suprema brasileira, e da

equiparação às normas constitucionais, defendida dentre outros por Piovesan (2010),

representou uma mudança paradigmática, mas a posição do doutrinador Mello (1996,

p. 25) vai mais além, posicionando-se a favor da supraconstitucionalidade, assim se

expressando sobre o tema:

[...] a norma internacional prevalece sobre a norma constitucional, mesmo


naquele caso em que uma norma constitucional posterior tente revogar uma
norma internacional constitucionalizada. A nossa posição é a que está
consagrada na jurisprudência e tratado internacional europeu de que se
deve aplicar a norma mais benéfica ao ser humano, seja ela interna ou
internacional.

Há maior adensamento do tema na Europa, em face da sua aplicação efetiva

para a garantia e a ampla tutela dos direitos humanos nesse continente. A

supraconstitucionalidade das normas dos direitos humanos e das normas derivadas

dos tratados internacionais tem sustentado diversas decisões do Direito europeu, por

meio de reiterados pronunciamentos da Corte de Justiça da União Européia85,

consolidando o entendimento da sobreposição da norma internacional inclusive

sobre as normas constitucionais:

85
Segundo Ost; Kerchove (2002, p. 69), “Os partidários da supranacionalidade podem seguramente se
fundamentar na jurisprudência pretoriana da Corte de Justiça que [...] pode descrever a ordem jurídica
européia como uma nova ordem de direito internacional em favor do qual os Estados têm limitado seus
direitos soberanos, de modo ‘incondicional e irrevogável’, em ‘domínios mais e mais extensos’.”
Tradução livre do original: “Les partisans de la supranationalité peuvent assurément faire état de la
jurisprudence prétorienne de la Cour de justice qui [...] a pu décrire l'ordre juridique européen comme un
nouvel ordre de droit international au profit duquel les États ont limité leurs droits souverains, et ce de
façon ‘inconditionnelle et irrévocable’, dans des ‘domaines de plus en plus étendus’.”
101

A preeminência do direito comunitário europeu sobre as ordens jurídicas


nacionais impõe a não aplicação das últimas sempre que com ele
colidam. O Tribunal de Justiça das Comunidades Européias há muito
o
reconheceu o princípio do primado (Processo n 6/642, Caso Costa c/
ENEL, j. em 15/07/1964, Acórdão, p. 1141), tendo deixado expresso, nos
o
Casos Internationale Handelsgesellschaft (Processo n 11/70, j. em
o
17/12/1970, Acórdão, p. 1135) e Simmenthal (Processo n 106/77, j. em
09/03/1978, Acórdão, p. 629), que o juiz nacional está autorizado a não
aplicar uma lei nacional que esteja em contraste com o Direito
Comunitário, ainda que referida lei encontre um fundamento
adequado na Constituição do Estado membro (CHAUTIEL, 1999, p.
395) (não grifado no original).

Existem divergências quanto à natureza do Direito Comunitário europeu.

Enquanto que Martins (2006) entende que a nova ordem jurídica comunitária é

autônoma e única não tendo vínculos com as ordens jurídicas nacionais, e tampouco

com a ordem jurídica internacional, Hartley (1988) considera que o Direito

Comunitário é subsidiário do Direito Internacional.

Para sustentar essa última tese, é possível recorrer às observações de Bergé

(2012, p. 9):

O direito internacional é muito frequentemente invocado no contexto do


direito europeu. As regras em matéria de invocabilidade das convenções
internacionais no seio do sistema jurídico da União Européia têm sido
86
essencialmente geradas pela jurisprudência da Corte de Justiça.

A despeito da natureza do Direito Comunitário e sua aplicação restrita ao

espaço da União Européia, é inquestionável que constitui parte importante do

processo de construção de uma ordem jurídica internacional, apta a conduzir o Direito,

por meio da supraconstitucionalidade, a produzir efeitos diretos e de maior alcance

não somente sobre os cidadãos tutelados, mas sobre os próprios Estados-membros.

Num retrospecto histórico, o primeiro reconhecimento da supremacia do

Direito Comunitário sobre o direito interno dos Estados-membros deu-se no caso

86
Tradução livre do original: “Le droit international est três fréquemment invoqué dans le contexte du
droit européen. Les règles en matière d’invocabilité des conventions internationales au sein du
système juridique de l’Union européenne ont été pour l’essentiel dégagées par la jurisprudence de la
Cour de Justice.”
102

Van Gend & Loos87, com a decisão pronunciada pela Corte de Justiça da

Comunidade Econômica Européia (CJEE) em 5 de fevereiro de 1963,

transcrevendo-se um trecho que consubstancia o teor inovador firmando

jurisprudência sobre o tema, com o reconhecimento do princípio do efeito direto:

[...] a Comunidade constitui uma nova ordem jurídica de direito internacional,


em favor da qual os Estados têm limitado, ainda que em domínios restritos,
seus direitos soberanos, cujos sujeitos são não apenas os Estados
membros, mas igualmente seus cidadãos; [...] O artigo 12 do tratado
instituindo a comunidade econômica européia produz efeitos imediatos e
gera por parte dos litigantes direitos individuais que as jurisdições internas
88
devem salvaguardar;

Mais tarde, outra decisão da Corte de Justiça da Comunidade Européia, no

caso Costa-ENEL89, consagrou o princípio da primazia das disposições do tratado

que deu origem à Comunidade frente a quaisquer normas internas, constitucionais

ou infraconstitucionais, dos Estados membros.

Nos termos do acórdão proferido por essa Corte90:

87
Decisão do Tribunal de Justiça da Comunidade Econômica Européia (CEE), proferida sobre a
contestação feita pela empresa transportadora belga van Gend en Loos perante o Tribunal
Administrativo holandês acerca de um novo imposto de importação estabelecido pela Holanda
incidindo sobre a uma carga de uréia proveniente da Alemanha. No acórdão, os julgadores
suscitaram o artigo 12 do Tratado de Roma (que deu origem à CEE) dispondo que "[...] os Estados-
Membros devem abster-se de introduzir entre si novos direitos aduaneiros de importação e de
exportação ou os encargos de efeito equivalente.” Na decisão, proclamou-se que os sujeitos de um
tratado entre nações soberanas não são apenas os Estados-membros, mas, também, os seus
cidadãos, incluindo-se aqui as empresas por terem personalidade jurídica.
88
Tradução livre do original: “[...] la Communauté constitue un nouvel ordre juridique de droit
international, au profit duquel les États ont limité, bien que dans des domaines restreints, leurs droits
souverains, et dont les sujets sont non seulement les États membres mais également leurs
ressortissants; [...] L’article 12 do traite instituant la communaute economique europeenne produit des
effets immediats et engendre dans le chef des justiciables des droits individuals que les jurisdictions
internes doivent sauvegarder.”
89
Em conflito com a Ente Nazionale Energia Eletrrica (E.N.E.L.), empresa estatal italiana criada com
a nacionalização da produção e distribuição de energia elétrica, M. Flamino Costa, na qualidade de
consumidor e de acionista da sociedade Edison Volta, afetado por essa nacionalização, demandou na
Justiça Italiana a aplicação do artigo 177 do Tratado da Comunidade Econômica Européia para obter
a interpretação dos artigos 102, 93, 53 e 37 do referido tratado que teriam sido violados pela lei
italiana que procedeu à nacionalização aludida. A decisão da Corte de Justiça da Comunidade
Econômica Européia manifestou-se favorável ao pedido, entendendo que nenhum ato unilateral
posterior ao tratado que deu origem à Comunidade poderia se opor às regras comunitárias firmadas.
90
Tradução livre do original: “Le transfert opéré par les États, de leur ordre juridique interne au profit
de l'ordre juridique communautaire, des droits et obligations correspondant aux dispositions du traité
entraîne donc une limitation définitive de leurs droits souverains”.
103

A transferência realizada pelos Estados, de sua ordem jurídica interna em


proveito da ordem jurídica comunitária, de direitos e obrigações
correspondentes às disposições do tratato conduzem, portanto, a uma
limitação definitiva de seus direitos soberanos.

Destaca-se ainda na jurisprudência da Corte de Justiça da Comunidade

Econômica Européia, o caso Simmenthal91, no qual foi reafirmada a primazia das

normas comunitárias, originárias ou derivadas, sobre as normas de direito

interno, inclusive as constituições nacionais.

A supraconstitucionalidade aparece como base jurídica elementar à

subsistência da comunidade de Estados que constituíram, por meio da ratificação

dos tratados, a Comunidade Econômica Européia, e em um segundo momento, a

atual União Européia92.

A existência de normas comunitárias em uma dimensão supracional

permite a maior efetividade dos direitos dos cidadãos da União Européia, pois a

sua garantia não está limitada pela soberania dos Estados-membros, tendo força

superior a aplicação do Direito Comunitário.93

O princípio da primazia confere maior grau de satisfatividade aos direitos

dos cidadãos europeus, tendo em vista que o Direito supranacional comunitário

vige sobre todo o território da União Européia. Representa uma inovação

inquestionável no Direito Internacional, ao colocar acima da soberania nacional a

91
Arrêt da Cour de Justice de la CEE du 28 juin 1978. Affaire 70/77. Recueil de la Jurisprudence de la
Cou).
92
Com a União Européia a Corte de Justiça da Comunidade Econômica Européia (CJEE)
transformou-se na Corte Européia de Justiça (ECJ), atualmente denominada Corte de Justiça da
União Européia, que tem jurisdição sobre os cidadãos da União Européia e trata dos direitos
humanos segundo a Carta de Direitos Fundamentais da União Européia. Por sua vez, a Corte
Européia de Direitos Humanos julga os casos dos cidadãos de 47 Estados-membros que constituem
o Conselho da Europa (Council of Europe), formado pela União Européia e também por outros
Estados, signatários da Convenção Européia de Direitos Humanos.
93
O Tratado de Lisboa, firmado em 13 de dezembro de 2007, constitui a mais recente etapa no
processo de afirmação de um Direito Supranacional, reforçando as bases de construção da União
Européia e definindo de forma mais precisa instrumentos e mecanismos de superação dos entraves
nacionais, tendo em vista a consolidação da comunidade de Estados europeus.
104

garantia do respeito aos direitos humanos. Reduz a distância entre os ideais

relativos à sua concretização, e a realidade, marcada por restrições derivadas de

sistemas jurídicos fechados em si mesmos, os quais muitas vezes limitam o campo

das possibilidades de satisfatividade dos direitos dos cidadãos.94

Em face da sua aplicabilidade irrestrita, o princípio da primazia pode ser

entendido como a afirmação da superioridade hierárquica do Direito Internacional,

destacando-se, no exemplo europeu, que, quando em risco o direito dos cidadãos

da União Européia, firma-se a primazia absoluta do Direito derivado dos tratados

e demais fontes emanadas da sua criação e consolidação, com força obrigatória

sobre quaisquer normas internas, inclusive constitucionais.

Remete-se às ponderações de Hofmann (2011, p. 5):

A Legislação da UE é uma "fonte independente de lei", característica de


que ficaria destituída se pudesse ser "substituída pela legislação
nacional". Portanto, a validade de uma medida da UE [...] não pode ser
afetada por alegações de que vai contra direitos fundamentais, tal como
formulada pela constituição de um Estado ou os Princípios da estrutura
95
constitucional nacional.

Nesse novo patamar de garantia dos direitos fundamentais, observa-se que

todas as fontes normativas, seja o Executivo ou o Legislativo, estão adstritas à

observância da determinação derivada do Direito da União Européia. O mesmo

94
As fontes do Direito da União Européia são três: primárias, derivadas e subsidiárias. As fontes do
Direito primário são os tratados que estabeleceram a união e seu funcionamento, definindo as
competências entre a União e os Estados-membros e fixando as bases de exercício do poder das
instituições européias. Eles determinam, também, o quadro jurídico no qual essas instituições
implementam as políticas comunitárias. São fontes primárias ainda, os tratados modificativos da
União Européia; os protocolos anexados aos tratados de fundação da união e aos tratados
modificativos, e os tratados de adesão dos Estados-membros da União Européia. Os Direitos
derivados compreendem os atos unilaterais dos Estados-membros e os atos convencionais. Por sua
vez, os Direitos subsidiários, além da jurisprudência da Corte de Justiça da União Européia,
abrangem também o Direito Internacional e os princípios gerais do Direito, fontes que possibilitam a
essa Corte superar as deficiências do direito primário e derivado possibilitando maior efetividade da
garantia dos direitos dos cidadãos da União Européia.
95
Tradução livre do original: “EU law is an ‘independent source of law’, the character of which would
be deprived if it could be ‘overridden by national law’. Therefore the validity of a EU measure […]
cannot be affected by allegations that it runs counter to either fundamental rights as formulated by the
constitution of that State or the principles of its national constitutional structure.”
105

ocorre com relação ao Poder Judiciário, sujeito ao princípio da primazia. O Direito

que ele cria, a jurisprudência nacional, deve respeitar o Direito emanado da Corte

de Justiça da Comunidade Européia.

Essa Corte, entendendo que as Constituições nacionais estão igualmente

sujeitas ao princípio da primazia, estabeleceu um entendimento basilar para a

consagração da supraconstitucionalidade na defesa dos direitos do homem.

Tem-se assim um inovador caminho para a garantia e ampla tutela desses

direitos, pois os juízes nacionais não podem aplicar as disposições de uma

Constituição quando contrárias ao Direito da União Européia.

O fundamento desse tipo singular de organização político-econômica está

no Direito Comunitário, que tem uma dupla gênese: convencional e unilateral,

explicando Campos; Campos (2004, p. 291):

Uma importante parcela das normas comunitárias emerge, com efeito, de


convenções concluídas quer no quadro comunitário quer na ordem
internacional; outras resultam de actos normativos emanados das
Instituições Comunitárias, destinados a assegurar a boa execução ou
aplicação dos Tratados que instituíram as Comunidades Européias; mas
os princípios gerais do direito e a própria jurisprudência do Tribunal de
Justiça das Comunidades Européias assumem no quadro comunitário
um especial relevo como fontes de direito.

No mesmo sentido, a sentença da Corte Européia de Direitos Humanos, de 23

de março de 1995, no caso Loizidou versus Turkia, estabeleceu que “[...] nenhuma

norma, nem mesmo constitucional, pode impedir a obrigação de qualquer Estado

de respeitar a Convenção” (MANES, 2011, p. 91). (não grifado no original)

Como essa Corte tem jurisdição não somente sobre os cidadãos da União

Européia, mas também sobre aqueles que pertencem aos Estados-membros do

Conselho da Europa, o princípio da primazia passa a ter um âmbito maior de

aplicabilidade.
106

A controvérsia sobre a soberania do Estado russo e a admissibilidade da

aplicação de decisões da Corte Européia de Direitos Humanos sem controle interno

foi tema de pronunciamento do Secretário Geral do Conselho da Europa, afirmando

que os direitos humanos têm prioridade sobre as normas nacionais, de modo que uma

sentença da CEDH postulando ser incompatível a lei nacional com a Convenção

Européia de Direitos Humanos deve conduzir a uma modificação da norma interna

(ISSAEVA; SERGEEVA; SUCHKOVA, 2011, p. 82).

A despeito da obrigação gerada da decisão da Corte Européia de Direitos

Humanos ou do Tribunal de Justiça da União Européia, não é possível a

derrogação da norma interna por norma derivada dos tratados internacionais de

direitos humanos.96

Há evidente resistência dos Estados-membros da União Européia e dos

que fazem parte do Conselho da Europa em abrir mão da sua soberania. A

preservação do que denomina Derosier (2011, p. 2) de um “[...] núcleo

constitucional identitário”97 tem representado um espaço ainda refratário à

aceitação definitiva da supraconstitucionalidade.98

96
As decisões dessas Cortes não podem revogar as normas internas, tendo sido firmada jurisprudência
nesse sentido, reconhecendo-se apenas a inaplicabilidade destas em face do princípio da primazia.
Apesar disso, as Cortes dos Estados-membros, amparando-se na força dos tratados, podem relegar a
aplicação do direito interno, inclusive constitucional, sempre que os direitos dos cidadãos forem
denegados ou ameaçados.
97
Segundo o autor, o núcleo constitucional identitário corresponde a um conjunto de princípios
constitucionais formando uma categoria específica de normas denominadas de limites constitucionais
à integração européia: trata-se de normas constitucionais que escapam a toda possibilidade de
supressão e que têm um impacto sobre o processo de integração européia, interditando a produção
de uma norma primária da União ou impedindo a aplicação de uma norma de direito derivado,
malgrado os princípios da primazia e do efeito direto (este último princípio permite que se invoquem
as normas do direito comunitário perante o juiz nacional, princípio consagrado pela jurisprudência da
Corte de Justiça Européia no caso Van Gend en Loos vs Netherlands, processo 26/62, decisão de 5
de fevereiro de 1963).
98
“[...] o Tribunal Constitucional Alemão, bem como a Corte Constitucional Italiana apresentam
resistências quanto à aceitação do controle exclusivo da constitucionalidade pelo Tribunal de Justiça
da Comunidade Européia e não o aceitam, no que tange aos direitos fundamentais” (SILVA, 2009, p.
324).
107

Todavia, em se tratando da proteção dos direitos humanos, os óbices à

relativização da soberania, pautados na autodeterminação estatal frente aos

entes internacionais, impedem a integral tutela desses direitos.

Sobre o tema, Bobbio (1992, p. 40-41) entende que somente será possível

[...] falar legitimamente de tutela internacional dos direitos do homem


quando uma jurisdição internacional conseguir impor-se e superpor-se às
jurisdições nacionais, e quando se realizar a passagem da garantia dentro
do Estado – que é ainda característica predominante da atual fase – para a
garantia contra o Estado.

A recusa em aceitar a supraconstitucionalidade das normas derivadas dos

tratados internacionais tem estabelecido um contraponto à relativização da

soberania99, mas na Europa, justamente pelos avanços jurídico-políticos, a

matéria tem suscitado progressivo alargamento das bases de afirmação do

Direito Internacional sobre o direito interno.

Para Torcol (2005, p. 2), embora muitos entendam ser inconcebível um novo

Direito de caráter transnacional e supraestatal, há evidente e inquestionável

processo de internacionalização das Constituições nacionais, o que “[...] é um

fenômeno observável, mensurável e a dinâmica da construção européia é

irreversível.”100

No mesmo sentido, Hesse (1998, p. 105-106) observa que:

99
Sob o aspecto normativo, a soberania pode ser entendida enquanto produção e validade de
normas, dela emergindo seu caráter autônomo, não se submetendo a nenhuma outra norma. Essa
absolutidade é desconstruída com a aceitação de normas de caráter supraconstitucional que têm
gênese no Direito Internacional dos Tratados.
100
Tradução livre do original: “[...] est un phénomène observable, quantifiable et la dynamique de la
construction européenne est irréversible.”
108

A transformação profunda é inequívoca: o desenvolvimento do Estado, do


Estado nacional tradicional, soberano, fechado em si, para o Estado atual,
internacionalmente entrelaçado e supranacionalmente atado, encontra sua
correspondência na perda da supremacia e do alcance, até agora, de sua
Constituição. Como Constituição de um Estado-membro da Comunidade
Européia, deve a Constituição respeitar os limites traçados pelo Direito
Europeu; seus conteúdos são co-determinados pelos cruzamentos com a
ordem comunitária européia.

A postura mais inovadora foi a da Holanda. Nas disposições do artigo 63 da

Constituição do Reino dos Países-Baixos, ainda em 1972, cujo teor foi mantido na

revisão constitucional de 1983, estabeleceu-se que “[...] quando a evolução da

ordem jurídica internacional o exige, poderá ser derrogada em uma convenção as

disposições da Constituição.”101

Apesar da contumaz defesa da absolutidade da soberania nacional por parte

dos Estados-membros da União Européia102, a aplicação do princípio da primazia,

em diversos julgados do Tribunal de Justiça da União Européia consubstancia

importante base jurisprudencial em favor da construção de um direito supracional e

da transcendência da aplicação das normas derivadas dos tratados sobre direitos

humanos para maximizar a sua efetividade.

101
Mello (2000, p. 121) comenta que “A Constituição holandesa é expressa no sentido de que os
tratados e, até mesmo, as decisões obrigatórias das organizações internacionais não podem ser
revogadas por legislação interna e revoga a esta. A norma internacional tem valor
supraconstitucional. Existe neste sentido o controle da convencionalidade e o D. Constitucional tem
que ser conforme ao DIP”.
102
“[...] o Tribunal Constitucional alemão enuncia toda uma série de proposições que vão muito além
da questão específica da garantia dos direitos fundamentais: na realidade o alto Tribunal suscita aí
toda a problemática de relações entre o direito constitucional nacional e o direito comunitário, em
termos que o levaram a recusar a aceitação da supremacia absoluta do direito comunitário derivado
sobre a Lei Fundamental” (CAMPOS; CAMPOS, 2004, p. 403). Apesar disso existem exceções que
levam em sentido contrário. Assim é o caso da decisão Solange: “Na decisão Solange I (BVerfGE
37, 271) de 29.05.1974, o Tribunal Constitucional Federal Alemão determinou que, enquanto a
ordem jurídica comunitária não dispusesse de um catálogo de direitos fundamentais equivalente ao
catálogo já previsto pela Lei Fundamental, todos os tribunais alemães estariam obrigados a não
aplicar qualquer ato jurídico comunitário que conflitasse com os direitos fundamentais reconhecidos
pela LF. Em sua decisão Solange II (2 BvR 197/83) de 22.10.1986, o Tribunal, contudo, reverte a
sua posição anterior ao declarar que, enquanto o direito comunitário garantisse uma efetiva
proteção dos direitos fundamentais e, equivalendo esta proteção àquela conferida pela LF, não
seria mais justificável o controle de constitucionalidade dos atos jurídicos comunitários por parte do
TCFA” (CEIA, 2009, p. 93). Apesar desse avanço, persiste a exigência de lei de aprovação como
“[...] fonte formal de validade e aplicabilidade dos tratados europeus no direito alemão. Em outros
termos, ainda que ditos tratados sejam de hierarquia superior às normas internas, o TCFA condiciona
a primazia do direito primário da União aos dispositivos constitucionais de recepção das normas de
direito internacional público” (CEIA, 2009, p. 92).
109

Derosier (2011) afirma que isso ocorre por meio de transferências

progressivas de competências103, um processo de alargamento das bases de

aplicação do Direito da União Européia, com a redução, por outro lado, do campo de

ação dos Estados nacionais no âmbito da regulação de matérias vinculadas a

tratados por eles firmados dispondo sobre questões de interesse comunitário.

Reportando-se a Manes (2011), a proteção dos direitos humanos, por

intermédio da aplicação da força normativa dos tratados internacionais, caracteriza-

se como um descentramento do Direito. A construção de um Direito Internacional

dos Direitos Humanos não tem se processado com a mediação estatal, mas a partir

de decisões judiciais universalizando garantias fundamentais, que se tornam cada

vez mais fontes originárias da obrigação que se impõe aos Estados de acolher e

concretizar um conjunto normativo supranacional.

Mello (2000, p. 123-124) em defesa da supraconstitucionalidade, observa que:

Tem ocorrido uma revisão indireta da Constituição, como é o caso das


consequências dos princípios comunitários. Assim, a soberania ‘absoluta’ do
Parlamento inglês foi abolida nas áreas integradas. Já houve caso em que o
‘Common Law’ nesta área foi alterado por decisão da CJCE.

Favoreau (1993, p. 468-469), expressão tese da supraconstitucionalidade na

França, aponta o ativismo judicial como fundamento da afirmação das normas de

103
Na França, o Conselho Constitucional já admitiu a primazia das decisões das Corte de Justiça da
União Européia sobre o Direito francês, inclusive constitucional. Mello (2000, p. 120) cita como
precedente o entendimento do doutrinador francês VedeI (1993), “[...] que argumentou que se
qualquer tratado que limitasse a competência do Estado tivesse que ser por lei constitucional, o
Estado acabaria sem poder concluir tratados.” Segundo Zaine (2012), dois julgados, de 08 de
fevereiro de 2007, alteraram a tendência da jurisprudência francesa, reconhecendo a primazia do
Direito Comunitário sobre o direito constitucional francês (Societé Arcelor Atlantique et Lorraine et
outres; M. Gardedieu), marcando o fim de um processo de afirmação da ordem internacional sobre o
direito interno na França. Na Inglaterra, apesar do princípio constitucional da soberania parlamentar
(Parliament's sovereignty), tem sido admitida a discricionariedade do magistrado para aplicar a norma
comunitária, devendo o juiz pronunciar-se sobre a incompatibilidade das normas internas e externas,
embora não invalide ou anule ato do Parlamento. Mas a supremacia das normas da Comunidade
Européia sobre direitos humanos tem sido aceita por meio das decisões dos juízes locais na
aplicação das normas internas e seu ajustamento ao conteúdo normativo comunitário versando sobre
direitos humanos.
110

direitos humanos dos tratados comunitários sobre o direito interno francês, inclusive

constitucional:

Há toda uma série de hipóteses nas quais se pode fazer apelo a essas
normas supraconstitucionais internacionais: por exemplo, se houvesse
norma constitucional estabelecendo discriminações raciais, ou suprimindo
proibição de discriminações raciais. Parece difícil não considerar que França
não seria condenada por essa lei constitucional [...] O juiz nacional poderia
ele mesmo utilizar as normas supraconstitucionais internacionais para
controlar as leis constitucionais. Assim, se poderia conceber que ele opõe a
uma lei constitucional suprimindo a interdição das discriminações raciais
104
pelas normas supraconstitucionais internacionais.

Nesse contexto, a soberania relativizada representa um ponto de

convergência entre a ampliação das bases protetivas dos direitos humanos e a

construção de uma via jurídica própria, no âmbito das normas derivadas não de um

sistema constitucional interno, mas supraconstitucional.

Convém destacar nesse sentido que, antes da edição da Resolução nº

11/1988, os cidadãos europeus não tinham legitimidade processual ativa perante a

Corte Européia de Direitos Humanos. Somente podiam fazer denúncia à Comissão

Européia de Direitos Humanos, instando ela, preliminarmente, desde que admitido o

pleito, a manifestação dos Estados para a resolução do caso. Não sendo possível o

entendimento, a Comissão encaminhava a questão para a Corte Européia de

Direitos Humanos. A partir da referida resolução, todavia, qualquer cidadão da

Comunidade Européia pode acionar diretamente a Corte Européia de Direitos

Humanos.105

104
“Il y a toute une série d’hypothèses dans lesquelles on pourrait faire appel à ces normes
supraconstitutionnelles internationales: par exemple s’il y avait une loi constitutionnelle établissant des
discriminations raciales, ou supprimant l’interdiction des discriminations raciales. Il paraîtrait difficile de
ne pas considérer que la France pourrait être condamnée pour cette loi constitutionnelle […]. Le juge
national pourrait lui-même utiliser des normes supraconstitutionnelles internationales pour contrôler
les lois constitutionnelles. Ainsi, on pourrait concevoir qu’il oppose à une loi constitutionnelle
supprimant l’interdiction des discriminations raciales des norms supraconstitutionnelles
internationales.”
105
Além dos cidadãos da Comunidade Européia, tem sido alargado o acesso à Corte Européia com a
inclusão de cidadãos de outros Estados europeus que aderiram à Convenção Européia de Direitos
Humanos.
111

O mesmo avanço na participação ativa dos cidadãos em defesa dos seus

direitos não se verifica, contudo, na América Latina. Por força do artigo 61, item 1, da

Convenção Interamericana de Direitos Humanos, “[...] apenas os Estados-partes e a

Convenção Interamericana podem submeter casos à decisão da Corte” (PIOVESAN,

2010, p. 356).

No âmbito europeu, verifica-se um processo revisional dos dogmas sobre o

exercício do poder estatal no plano interno, e por outro, uma transformação do

paradigma jurídico-político, consubstanciando um processo de mudanças de caráter

instrumental e legal, em favor da supremacia das normas internacionais.

Com a superação das barreiras nacionais ocorre, também, a mudança do

foco, do sujeito em sua condição de cidadão, definida segundo seu pertencimento

territorial, para a de ser humano, independentemente da nacionalidade.

A tendência para a superação da tese da soberania estatal, pela da

capacidade jurídica internacional do ser humano, quando o objeto a ser tutelado

são os seus direitos, pode ser relacionada ao que Canotilho (2011, p. 1.350)

chama de supranacionalização do Direito:

O território [...] constitui o ponto de referência do agir estatal e, por isso, de


grande relevância jurídica e política. Quanto mais o direito estiver
‘supranacionalizado’ ou internacionalizado, tanto menos o território
constituirá as margens de um mundo jurídico soberano.

Diante da inafastável exigência da efetividade dos direitos humanos, o

conceito tradicional de soberania não tem mais lugar no plano de uma construção

de uma nova ordem jurídica que possa concretizá-los.

Como referem Pereira; Quadros (2001) é preciso considerar a existência

de regras que ultrapassam a vontade dos Estados-nacionais, e por essa razão

devem ser observadas.


112

A matéria sobre os direitos humanos, de natureza substancialmente

diversa daquela que envolve questões como a soberania e a supremacia da

Constituição, determina a necessária vinculação do Estado a normas

supranacionais quando obstada a sua efetividade no Direito interno, como refere

Trindade (2007, p. 272):

Há que ter sempre presente que, distintamente das questões regidas pelo
Direito Internacional Público, em sua maioria levantadas horizontalmente
sobretudo em nível inter-estatal, as questões atinentes aos direitos
humanos situam-se verticalmente em nível intra-estatal, na contraposição
entre os Estados e os seres humanos sob suas respectivas jurisdições. Por
conseguinte, pretender que os órgãos de proteção internacional não
possam verificar a compatibilidade das normas e práticas de direito interno,
e suas omissões, com as normas internacionais de proteção, seria um
contrassenso.

Continuando, o referido autor coloca o Direito Internacional dos Direitos

Humanos como o espaço hodierno da concretização dos valores indissociados do

ser humano, tornando-se, desde o momento da pactuação, a via superior inconteste

para a garantia e tutela dos direitos do homem (TRINDADE, 2007, p. 272-273):

Também aqui a especificidade do Direito Internacional dos Direitos


Humanos torna-se evidente. O fato de que este último vai mais além do
Direito Internacional Público em matéria de proteção, de modo a abarcar o
tratamento dispensado pelos Estados aos seres humanos sob suas
jurisdições, não significa que uma interpretação conservadora deva se
aplicar; muito ao contrário, o que se aplica é uma interpretação em
conformidade com o caráter inovador - em relação aos dogmas do passado,
tais como o da “competência nacional exclusiva” ou domínio reservado dos
Estados, como emanação da soberania estatal, - das normas internacionais
de proteção dos direitos humano. O Direito Internacional dos Direitos
Humanos vem assim afirmar a aptidão do Direito Internacional Público para
assegurar, no presente contexto, o cumprimento das obrigações
internacionais de proteção por parte dos Estados vis-à-vis todos os seres
humanos sob suas jurisdições.

Por isso fala-se na doutrina européia em “soberania do cidadão”, termo que

expressa muito bem o avanço alcançado com relação às questões relativas à ampla

tutela dos direitos humanos, para além do dogmático conceito tradicional de soberania.

A soberania do cidadão está atrelada a uma perspectiva de satisfatividade de

uma demanda personalística, qual seja, de garantia e de efetividade dos direitos


113

vinculados à pessoa humana, e não decorrentes da qualidade de cidadão na

condição de nacional de um Estado ou pertencendo a um Estado.

A qualidade intrínseca ao indivíduo, isto é, sua essência humana, lhe confere

posição peculiar, transcendendo a quaisquer status que lhe sejam conferidos ou

reconhecidos segundo a ótica da exlusividade do Direito interno.

A condição do ser-em-si é o que importa, não mais o pertencimento a um

Estado. A essência do reconhecimento da soberania do indivíduo deriva da sua

condição de sujeito de direito internacional, não mais no sentido tradicional, de pessoa

reconhecida pela ordem jurídica nacional, sendo esta a expressão do Estado.

Retornando às bases de afirmação dos direitos humanos nas doutrinas

iluministas, é interessante observar que os avanços na concepção do indivíduo

como sujeito de direito internacional expressam uma releitura do homem. Se

anteriormente postulava-se que a soberania estava na universalidade dos cidadãos,

agora se entende que os direitos universais se encontram na universalidade dos

seres humanos, na sua substância humana (AVIGDOR, 2007).106

Portanto, à luz da exigência superior da concretude dos direitos humanos, o

poder do Estado não pode mais ser concebido no sentido tradicional. A soberania

não pode ser mais absoluta, mas relativa. Deve prevalecer a aplicação da norma

supraconstitucional emanada dos tratados internacionais, em face do propósito

envolvido, sobrepondo-se às disposições do Direito interno, inclusive sobre as

normas constitucionais.

106
Tradução livre: “Au siècle des Lumières les philosophes déclaraient que la souveraineté réside
dans l’universalité des citoyens. Aujourd’hui, je dirai que les droits universels résident dans
l’universalité de l’humain, en d’autres termes de la substance humaine de l’individu.” (AVIGDOR,
2007, p. 13).
114

Deixa de ter sentido o cidadão nos termos do pensamento hobbesiano, que

se apresentava como um homem dividido, entre a lógica da obediência cívica e a

consciência pessoal sobre direitos que o foro íntimo fazia emergir.

Na condição de pessoa singular e única, caráter que define por si só a

necessária garantia e efetividade dos direitos humanos, não tem mais relevância o

critério da relação de poder para estabelecer o que lhe é devido ou não como direito.

Essas conclusões têm repercussões importantes para a efetividade dos

direitos humanos em um campo específico das relações entre Estado e indivíduo,

que é o da tributação. Impende, preliminarmente, avançar no tema considerando as

normas tributárias como sendo normas de direitos humanos.


115

4 AS NORMAS TRIBUTÁRIAS COMO NORMAS DE DIREITOS HUMANOS

4.1 O PODER ESTATAL DE TRIBUTAR

Na seara da tributação, o reconhecimento dos princípios e valores conexos

representa uma ruptura com um modelo dogmático de aplicação do Direito, e

também reflete uma questão histórica de buscar soluções ao embate entre Estado-

arrecadador e indivíduo como sujeito-cidadão contribuinte.

A tributação é fenômeno intersistêmico, abrangendo elementos na seara da

Política, da Economia e do Direito. Diz respeito a um aspecto do poder, mais

especificamente à relação decorrente do caráter impositivo da norma tributária

(CALIENDO, 2009).

Intermediando o vínculo entre indivíduo e Estado, o poder tornou-se o

elemento basilar na criação de um campo obrigacional, do qual emergem questões

relevantes quanto à natureza e sentido dessa relação.

No Estado de Direito, as decisões no campo tributário encontram limites na

lei, mais precisamente na Carta Constitucional, e em particular no campo normativo

dos direitos fundamentais: "[...] o poder de tributar nasce no espaço aberto pelos

direitos humanos e por ele é totalmente limitado” (TORRES, 1995, p. 13).

O poder de tributar em princípio não se confunde com o poder do Estado,

mas, sendo competência deste segundo a lei, sua materialização se dá segundo o

que o ente estatal está autorizado a fazer.

Em sentido amplo, pode-se considerá-lo como parte do poder do Estado,

destacando Valadão (2000, p. 22) que “À parte de discussões que podem ser

suscitadas, parece que a capacidade impositiva do Estado, a priori, é ampla, e não

há porque não entendê-la como um ‘poder’ do Estado, inerente à sua soberania.”


116

O exercício do poder tributário conduz à questão da relação contraditória

entre Estado e sociedade civil, particularmente porque se trata, historicamente, de

uma trajetória marcada por embates constantes entre os interesses do fisco e as

garantias legais conferidas aos cidadãos. Nesse sentido, como afirma Machado

(2010, p. 33), “[...] a relação de tributação não é simplesmente relação de poder

como alguns têm pretendido que seja. É relação jurídica, embora seu fundamento

seja a soberania do Estado.”

O Leviatã107 fiscal foi diversas vezes confrontado pelos indivíduos, por meio

de uma resistência organizada, nascida não do desassombro heróico de um

momento, mas de uma consciência coletiva, que se desenvolveu em razão de

recorrentes injustiças e dos excessos da vontade estatal em sua voracidade

arrecadatória.

Os exemplos mais importantes são a Revolução Americana e a Revolução

Francesa, no final do século XVIII, para as quais contribuíram motivações de

ordem tributária, com a mobilização da sociedade disposta a afrontar o poder

supremo do Estado absolutista.

Nesse sentido, Schama (1989, p. 360) destaca a preocupação com a

capacidade contributiva, corolário da igualdade, presente nos debates dos

revolucionários franceses que tomaram o poder em 1789, e que se tornou um

princípio fundamental do moderno Direito Tributário, acolhido na Magna Carta

brasileira com a previsão do artigo 145, § 1°:

107
Monstro bíblico que Hobbes (1588-1679) utilizou para representar o Estado e o seu poder em razão
de um cenário de liberdade irrestrita, no qual se instalaram o caos e a violência, somente superados
com o pacto social, dando origem ao ente estatal soberano, em relação assimétrica de poder para com
seus súditos.
117

O tumulto foi imprevisível, pois a Assembléia discutia a necessidade urgente


de manter – não suspender – as taxas vigentes até que se legislassem
novas. O visconde de Noailles, cunhado de Lafayette, transformou então um
debate específico numa peça de oratória revolucionária. O reino, disse,
‘oscila entre as alternativas de uma completa destruição da sociedade e um
governo que fosse admirado e seguido em toda a Europa’. Para concretizar
a segunda alternativa era preciso tranqüilizar o povo mostrando-lhe que a
Assembléia se preocupava ativamente com sua felicidade. Com isso em
mente propôs a obrigação formal de todos os cidadãos pagarem impostos
de acordo com seus recursos, a abolição de todas as obrigações feudais e
a eliminação de quaisquer remanescentes de servidão pessoal, como a
108
mainmorte e a corvée.

Nesse processo de ruptura com a ordem instituída, redefiniram-se os rumos

da vida política e social, lançando-se os fundamentos da cidadania, reconhecida

como princípio maior de organização da vida social e política e uma das bases da

constitucionalização dos direitos.

A construção de marcos legais regulatórios da relação entre contribuinte e

Estado definiu-se inicialmente com base na preocupação de assegurar os objetivos

arrecadatórios do ente estatal. Com o alargamento das bases de proteção dos

direitos humanos e maior adensamento dos direitos fundamentais com a sua

constitucionalização, também se desenvolveram mecanismos e instrumentos para

vincular a tributação à observância e garantia desses direitos.

Liberdade e igualdade foram, essencialmente, os dois eixos originários sobre

os quais foi construída a nova ordem político-jurídica tendo em vista a necessidade

de redefinir as bases da relação entre Estado e indivíduo, com repercussão sobre as

bases legais de construção dos modernos sistemas tributários.

Consoante o ensinamento de Torres (1995, p. 3):

108
“Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a
capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para
conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da
lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte” (art. 145, § 1°, da
CF/1988). O princípio da capacidade contributiva já estava inserido no ordenamento constitucional
desde a Constituição do Império de 1824: “Art. 179 – A inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos
cidadãos brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual e a propriedade, é
garantida pela Constituição do Império, pela maneira seguinte: [...] 15) Ninguém será isento de
contribuir para as despesas do Estado em proporção dos seus haveres”.
118

Com o advento do Estado Fiscal de Direito, que centraliza a fiscalidade,


tornam-se e até hoje se mantêm, absolutamente essenciais as relações
entre liberdade e tributo: o tributo nasce no espaço aberto pela
autolimitação da liberdade e constitui o preço da liberdade, mas por ela se
limita e pode chegar a oprimi-la, se o não contiver a legalidade.

Embora o reconhecimento dos limites e alcance da tributação esteja

associado ao desenvolvimento das sociedades democráticas, tendo como núcleo um

sistema de direitos expresso nesses dois princípios basilares, da liberdade e da

igualdade, Tocqueville (2005) vislumbrou na ênfase da liberdade uma via

contraditória, porque, segundo ele, estimularia a passividade dos indivíduos,

preocupados em seu bem-estar material.

Para esse pensador, a sociedade democrática das massas, firmando a

primazia do privado, desconstrói os liames essenciais da consciência coletiva, ao

oferecer segurança e condições para a livre iniciativa e o resguardo das liberdades

individuais.

Na visão tocquevilleana a democracia das massas representa o triunfo de

uma liberdade aparente, pois o homem acaba sendo aprisionado em seu próprio

mundo egoístico, perdendo-se os valores essenciais ao regime democrático, como

o desprendimento pessoal e o interesse em participar ativamente da vida política,

deixada a cargo de seus representantes.

Reis (2004, p. 76) sintetiza as críticas de Tocqueville ao homem comum, dito

“cidadão”, o qual, tendo-lhe sido assegurados certos direitos, torna-se

politicamente passivo, fechando-se no mundo que lhe é assegurado pelo sistema

do qual faz parte:

[...] a análise de Tocqueville nos leva a compreender que o individualismo


acomoda-se perfeitamente à fraqueza dos sentimentos cívicos: o homem
da sociedade democrática é como um estranho aos seus concidadãos; o
destino público acredita, não lhe concerne. Deseja a proteção do estado
para o gozo tranqüilo de seu bem-estar, mas nega-se a compartilhar a
responsabilidade sobre o que diz respeito à coletividade como um todo.
Existe apenas em si mesmo e para si mesmo.
119

O temor de Tocqueville era que o foco na individualidade resultasse numa

cidadania negativa, com a crescente passividade dos indivíduos em razão do

superdimensionamento das liberdades, em detrimento da participação comunitária.

Apontava, portanto, uma contradição no modelo de amplas liberdades das

democracias representativas, decorrente da força e da permeabilidade das idéias e

estratégias do sistema capitalista ao privilegiar esforços individuais e a busca da

satisfação pessoal no consumo ou na obtenção de riquezas.

As idéias de Tocqueville continuam atuais. Contraditoriamente, ao lado da

valorização da diversidade e da proteção das diferenças, que tem sido priorizada

nas sociedades democráticas, há um estímulo aberto ao individualismo, por parte

do modelo capitalista voltado para o consumo de massa. Centrado na valorização

do indivíduo, a partir da posse ou capacidade aquisitiva, daí emerge um espaço

propício para a construção de um insidioso, e eficaz, modelo tributário sobre o

consumo.

O êxito do sistema capitalista, retratado nos avanços na ciência e na técnica,

na produção em massa e no amplo acesso aos bens e serviços, tem sido

propugnado como prova inconteste da sua superioridade em relação a quaisquer

outras escolhas ou vias possíveis de organização da sociedade. Sugere-se que

somente o capitalismo permite ao indivíduo maximizar sua liberdade de escolha e,

ao mesmo tempo, aproveitar as oportunidades em prol de seu bem-estar e

desenvolvimento como ser livre.

Pondera, porém, Lorenz (1986), que há tão somente uma ilusão de

liberdade, que torna aceitável o sistema no qual o sujeito vive, ao sugerir-se que

este é livre e pode fazer escolhas em razão da sua consciência e


120

autodeterminação, quando, na verdade, os mecanismos subreptícios de

dominação estão plenamente operantes.

Para esse autor, a partir de uma ampla aceitação social desse discurso, bem

adequado à idéia de “consenso”, onipresente nos debates sobre a democracia, a

individualidade perde seu valor, substituída pela noção imprecisa do coletivo e sua

necessária preponderância.

No campo da tributação, esse fenômeno é perceptível. O tributo incidente

sobre o que é consumido permite travestir o contribuinte em participante ativo, mas

inconsciente, do processo de captação de recursos para financiamento das

atividades estatais.

No Brasil, como em muitos outros países, a partir da criação de inúmeros

impostos de valor agregado, modelo transplantado da Europa e aqui transformado

em mecanismo substancial de constituição dos fundos arrecadatórios do Estado,

paga-se tributos sem ter consciência disso e, sobretudo, sem saber precisamente o

quanto é arrecadado e qual a destinação dos recursos tributários.

Por via reflexa, a necessidade de controle e participação ativa dos cidadãos,

pela visibilidade, é condição para reverter um quadro sintomático de denegação do

necessário comedimento na pretensão arrecadatória, a qual se estabelece em

razão da impossibilidade dos cidadãos conhecerem precisamente o quanto estão

contribuindo, e de que forma são aplicados os recursos.109

109
Rothbard (2010, p. 260) comenta que "[...] em uma democracia, o público só pode decidir sobre
questões públicas e votar em representantes públicos se eles tiverem total conhecimento das
operações do governo; e (2) que uma vez que os pagadores de impostos pagam as contas do
governo, eles deveriam ter o direito de saber o que o governo está fazendo. O argumento libertário
acrescentaria que, uma vez que o governo é uma organização violadora dos direitos e das pessoas
de seus cidadãos, logo a completa transparência de suas operações seria no mínimo um direito que
seus súditos poderiam arrebatar do Estado, e que eles poderiam utilizar para resistir ou reduzir o
poder do Estado.”
121

O valor do tributo é embutido no preço da mercadoria, e como tal se torna

praticamente invisível, tornando o ato de consumir politicamente alienado110, no

sentido de que, sem perceber o ônus que deve suportar no consumo com o tributo

agregado ao valor da compra, o consumidor também não tem consciência de que

aquilo que lhe traz prazer é, também, uma forma de contribuição para a

constituição dos fundos estatais.

Torres (1995, p. 7) sintetiza essa situação contraditória, observando que “[...]

o relacionamento entre liberdade e tributo é dramático, por se afirmar sob o signo

da bipolaridade: o tributo é garantia da liberdade e, ao mesmo tempo, possui a

extraordinária aptidão para destruí-la [...].”

A tributação sobre o consumo, por ser inconsciente, é uma pérfida forma de

manipulação do sujeito, estabelecendo uma relação indireta com o Estado, de

modo que o indivíduo deixa de ter consciência da sua condição de contribuinte. A

consciência do ser passa a ser determinada pela relação direta e imediata com a

coisa consumida enquanto objeto e fim da sua existência.

A dissociação entre a consciência de ser contribuinte, e o ato de consumir,

possibilita o mais eficiente dos mecanismos de arrecadação, fundado na condição

pós-moderna do existir, segundo a qual, para ser feliz, é preciso adquirir coisas.

O hiperconsumo não é apenas substrato ou condição para o

desenvolvimento de uma nova etapa do capitalismo, sob as instâncias do processo

de globalização econômica, mas também um meio paradoxal de oferecer sensação

de liberdade, controle de si pelo livre exercício da vontade, através da possibilidade

de múltipla escolha de bens e serviços.

110
Nabais (2007) chama isto de anestesia fiscal, entendendo que a tributação sobre o consumo faz-
se de maneira invisível, não é sentida, embora onipresente, alcançando a todos.
122

Pelos mecanismos subreptícios da oferta, são fixadas as condições ideais

do mercado, com a maximização do consumo, sob o pressuposto de que quanto

mais se consome, maior é o nível de satisfação pessoal - felicidade, ou gozo do

consumo111 como denomina Ramos (2007). E, obviamente, isso tem repercussões

favoráveis para o Estado: quanto maior o consumo, maior a arrecadação do Fisco.

Por essa ótica, o consumismo tem sido utilizado pela retórica

desenvolvimentista liberal, como expressão de um progresso material, confundido

com prosperidade e identificado com a possibilidade de redução das

desigualdades: incrementar o consumo, incorporar novos grupos de consumidores

à economia de mercado.

Ao lado das estratégias e do discurso capitalista-liberal, a redução do

indivíduo cidadão à condição de consumidor opera também por outros mecanismos

sutis, mais especificamente, e contraditoriamente, no campo do Direito, no qual,

supostamente, deveriam ser reforçadas e estimuladas as bases de exercício da

cidadania ativa.

Esse embate de forças e interesses torna-se mais evidente atualmente, em

razão de novas situações e cenários. Os mecanismos que o Estado utilizava para

concretizar seus fins ou objetivos já não servem mais, em razão da crescente

complexificação das relações intersubjetivas e sociais do mundo pós-moderno. Os

desafios de uma economia globalizada, com atores e atividades diversificadas, não

mais limitadas ao espaço local, mas muitas vezes dispersos geograficamente,

impõem novas sistemáticas de controle, fiscalização e de incidência tributária.

111
Segundo Ramos (2007, p. 1) “[...] a sociedade do consumo produz um saber sobre o gozo que
afirma a alienação narcísica.”
123

Em função desse cenário em mutação, é interessante enfocar o contexto

histórico no qual se definiram as bases da relação tributária, convergindo para

novas formas de articulação das estratégias e interesses do Estado frente à

sociedade em razão do alcance e dos limites impostos aos objetivos arrecadatórios

pela ampliação das bases legais de garantia dos direitos humanos.

4.2 A IMPOSIÇÃO FISCAL E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO CIDADÃO


CONTRIBUINTE

A maneira como a relação tributária se apresenta hoje pode ser compreendida

como resultado da evolução conceitual dos tributos, que permeia a trajetória do

desenvolvimento social, político e econômico a partir do século XVIII, culminando com

um período de maximização da garantia e tutela dos direitos fundamentais.

A fundamentalidade dos princípios e valores a eles vinculados, como fulcro

das decisões no campo das relações entre Fisco e contribuinte, definiu um novo

caminho para a construção das bases da imposição tributária. Foi um produto de

mudanças no campo político-jurídico, entre os séculos XVIII e XIX, tendo como

eixo central o desenvolvimento econômico capitalista e como desdobramento o

desenvolvimento de um sistema de tributação moderno.

A legalidade tributária tem origem na história da constitucionalização dos

direitos, em especial da liberdade e da propriedade privada, que marcaram a

superação do estado absolutista pela afirmação dos valores políticos e

socioeconômicos ancorados no liberalismo.

Como assevera Teixeira (2006, p. 32):

De outra sorte, com o Estado fiscal, as liberdades individuais tomam maior


importância frente ao Estado, pois, nesta nova ordem, o tributo necessita de
limitações em nome do respeito à liberdade do indivíduo e à propriedade
privada deste, conforme propugnavam as declarações de direitos do homem
e o constitucionalismo, que se desenvolvia a passos largos.
124

O Direito passou a representar um arcabouço racional de organização e

manutenção da coesão social, sem eliminar a supremacia das vontades individuais,

dentro dos limites necessários para a manutenção da integridade do corpo coletivo.112

A relação entre o Fisco e o contribuinte foi construída em torno de uma

modernidade racionalizadora, considerada por Foucault (2006, p. 53) como o

desenvolvimento de mecanismos sutis de exercício do poder visando a manutenção

da ordem capitalista e sua afirmação frente aos indivíduos:

Podemos ver que a razão de Estado, no sentido de um governo racional


capaz de aumentar a potência do Estado de acordo com ele mesmo, passa
pela constituição prévia de um determinado tipo de saber. O governo só é
possível se a força do Estado for conhecida; só assim poderá ser mantida. A
capacidade do Estado e os meios para aumentar devem também ser
conhecidos, assim como a força e a capacidade de outros Estados.

A lei tornou-se o instrumento racionalizador por excelência da atuação do

Estado, e por extensão, das suas estratégias de arrecadação tributária, no contexto

de um sistema político pautado no interesse privado e na maximização da iniciativa

individual:

Para o devido entendimento acerca da legalidade no direito tributário,


deve-se analisá-lo inserido na idéia de Estado de Direito e em sua feição
liberal. A legalidade surge justamente diante do esforço de ascensão
política por parte da burguesia, no contexto do século XVIII, e de sua
necessidade de impor mais controle à atuação estatal, para permitir a
livre fruição de bens e a segurança das relações jurídicas privadas
(ANDRADE, 2006, p. 71).

Os direitos constitucionais da propriedade individual e da liberdade,

erigidos em garantias indissociadas do indivíduo como forma de contrapor-se á

112
Interessante reflexão sobre o Direito entrelaçado às condições sociais de existência e às regras do
poder e legitimação do seu exercício por um grupo é feita por Morrison (2006, p. 619): “Kafka situa os
sujeitos do seu conto num dilema sutil: o estado de direito é dado por certo, mas em termos práticos
isso significa que o domínio da nobreza é inquestionável. Uma vez que o segredo do direito só é
conhecido pela nobreza, só eles podem alegar saber o que é preciso fazer e, na verdade, o que deve
ser feito; a população – como admitiu Hart (1961) só precisa, em última instância, confiar na
integridade com que as autoridades desempenham sua tarefa. (É tentador substituir a nobreza de
Kafka por ‘especialistas’, obtendo a imagem de dominação numa modernidade supostamente
racional fundada sobre a mais profunda irracionalidade).”
125

discricionariedades da autoridade estatal, não significaram irrestrita concessão de

privilégios.

No que se refere à reserva de um campo possível e específico de ação

conferido ao Estado, este se manteve, ainda que sob a égide do Direito, em

posição superior enquanto poder soberano.

A soberania é o fundamento da imposição tributária e, portanto, base da

existência e continuidade do Estado. O constitucionalismo estabeleceu os limites

e espaços possíveis de atuação estatal, inclusive na criação e cobrança de

tributos, ampliando e consolidando um conjunto de direitos.

Não foi, todavia, nos primórdios do constitucionalismo, mas apenas há

poucas décadas que se desenvolveu a compreensão da indissociável relação

entre tributação e direitos humanos.

À luz da imperiosa necessidade de arrecadação do Estado, firmou-se uma

perspectiva manifestamente centrada na vontade soberana do ente estatal para

estabelecer as bases e instrumentos arrecadatórios, ainda que sob a exigência

constitucional da previsão prévia em lei. Todavia, como lembra Ergec (2005, p. 5):

[...] atos e normas fiscais podem atingir seriamente os direitos dos


contribuintes no seu patrimônio, na sua atividade profissional, em sua
reputação e honra, na sua vida privada e na sua liberdade individual. À
medida que a imposição fiscal se intensificou e se diversificou, envolvendo
quase todas as facetas da atividade humana, a necessidade de apelar aos
113
direitos do homem gradualmente ganhou força.

A fundamentalização dos direitos, porém, não impediu que, na seara

tributária, se observasse a sobreposição do interesse da arrecadação, da

113
Tradução livre do original: “Pourtant, les actes et normes fiscaux peuvent gravement affecter les
droits des particuliers dans leur patrimoine, dans leur activité professionnelle, dans leur reputation
et honneur, dans leur vie privée et dans leur liberté individuelle. Á mesure que la pression fiscal
s’est accrue et s’est diversifiée, embrassant presque toutes les facettes de l’activité humaine, la
nécessité de faire appel aux droits de l’homme a graduellement gagné les esprits.”
126

consecução de metas fiscais, finalística essa que tem sido priorizada e

exacerbada em detrimento dos direitos do cidadão.

Um exemplo atual é a criação de sistemas de tributação padronizantes ou

de massa114, pela média, desconsiderando situações individuais, deixando-se de

observar a pessoalidade, e até mesmo a capacidade contributiva.

Em nome da praticidade, a eficácia e eficiência da Administração Pública,

cada vez mais são adotadas sistemáticas de tributação centradas em

presunções, em critérios não objetivos, num “[...] modo de raciocinar

administrativamente padronizante [...]” (DERZI, 2010, p. 1271).

Evita-se assim o tratamento individual dos casos, no intuito de tornar mais

rápida e operante a atuação do Fisco, o que, todavia, acaba por subverter a

relação tributária, transformando-a em relação assimétrica de poder, centrada no

interesse arrecadatório do Estado, e não no princípio da justiça fiscal. Como

explica Derzi (2010, p. 1269):

Essa tensão entre princípios básicos e contrários tende a se acentuar


com a crescente elevação dos custos administrativos, o progresso
econômico e o aumento em escala geométrica da massa de
contribuintes. O processamento dos dados tributários e o lançamento do
tributo por meio de computadores na aplicação da lei em massa são
necessidades que pressionam no sentido de uma simplificação da
execução.

Continuando suas reflexões, assevera Derzi (2010, p. 1275) que:

114
Derzi (2010, p. 1262-1263) observa que a simplificação encerra pensamento padronizante: “O ‘tipo’,
esquema ou padrão – quer resulte de características comuns, médias ou freqüentes de uma
multiplicidade de fenômenos, quer de um caso isolado erigido como modelo do normal – nesse
processo, altera o programa da norma e substitui os fatos isolados por uma presunção. Daí resultou a
expressão, atribuída pela doutrina estrangeira, de modo de ‘pensar tipificante’, que serve para designar
essa técnica de simplificar a execução da lei [...] Entretanto, desse modo de pensar não resultam
verdadeiros tipos jurídicos, como ordens abertas, graduáveis, transitivas, de características
renunciáveis. Nesse processo, ao contrário, são produzidos rígidos padrões, esquemas fixos, em regra
numericamente definidos, não raro funcionando como presunções iuris et de iure. A criação de tipos
propriamente ditos é meio que abstrai e generaliza [...] o objetivo da padronização simplificadora é
exatamente evitar a aplicação individual do Direito (que o tipo, no sentido próprio do termo, propicia),
estabelecendo, através da uniformidade rígida e fixa, a aplicação da lei a milhares de casos.”
127

[...] a abstração, o universalismo, a unidade da razão, a axiomatização, a


simplicidade e a segurança não são características modernas? O que não se
pode admitir é a objetivação extrema, que tais fórmulas abrigam, com
desprezo pelo subjetivismo, pela capacidade contributiva individual e pessoal.
Sobretudo não se pode admitir a sobreposição da praticidade sobre a justiça,
o abandono dos compromissos do Estado Democrático de Direito.

Infere-se das ponderações da referida doutrinadora que a tributação tende

cada vez mais a utilizar estratégias subreptícias, as quais possibilitam, mesmo

sob a legalidade imperante, estabelecer vantagens para a máquina fiscal, a

despeito dos direitos assegurados aos contribuintes.

Esse cenário evidencia um acirramento da relação assimétrica de poder,

com repercussão sobre a possibilidade de desenvolvimento de uma democracia

substancial, em substituição à democracia formal.

Desconstruída a idéia de alteridade115, que nasce do reconhecimento de

uma posição equivalente no jogo de forças e relações entre o Estado e o

indivíduo, substitui-se a noção de responsabilidade moral do ente estatal pela

consecução da justiça fiscal e social, por uma justificava de “estado de

necessidade administrativa”, como denomina Derzi (2010, p. 1270), o que permite

tornar o discurso do “Leviatã tributário” dotado de aparente legitimidade e

conformidade com os interesses da sociedade.

A aparência, no discurso político, é fundamental ao Estado na

contemporaneidade como assevera Lyotard (2002), pois é preciso cada vez mais

recorrer à força dos argumentos para assegurar uma via de consenso no mundo

pós-moderno, no qual se instalou a descrença nas grandes narrativas do passado.

A utilização de instrumentos de persuasão é parte essencial do discurso

político, e isso tem sido utilizado pelo Estado para atingir certos propósitos,

115
A alteridade refere-se ao reconhecimento do outro como igual; a consciência de si é, também, a
consciência acerca do outro, fundamento de toda relação ética e, nesse sentido, delimita a posição
do Estado frente ao indivíduo cidadão.
128

inclusive no campo da tributação, quando o objetivo primordial é assegurar o

aumento da eficácia e da eficiência arrecadatória.

O discurso é mais do que um jogo de palavras, uma estrutura lógica

aparentemente dotada de coerência e relação objetiva com certa realidade, “[...]

não podendo ser entendido como um fenômeno de mera expressão de algo:

apresenta regularidades intrínsecas a si mesmo, através das quais é possível

definir uma rede conceitual que lhe é própria” (FISCHER, 2001, p. 200).

No propósito maximizar a eficácia e a eficiência do modelo de tributação,

justifica-se a criação de novas sistemáticas arrecadatórias como, por exemplo, o

emprego da tipificação na simplificação tributária, consoante as críticas de Derzi

(2010).

Em nome do interesse público definem-se os instrumentos pelos quais a

finalística da arrecadação é alcançada, mesmo que em detrimento dos direitos

elementares dos contribuintes.116

Ressalta-se que o termo “interesse público” encerra múltiplos sentidos, o que

facilita a sua apropriação pelo discurso estatal, para construir justificativas coerentes

com a racionalidade exigida para as decisões administrativas, e também, com uma

perspectiva democrática de vínculo entre as ações do Estado e a vontade coletiva.

Não se está atacando a utilização de instrumentos essenciais à gestão

moderna, em razão da necessidade de se adaptar o ente estatal ao cenário de maior

complexidade do mundo pós-moderno, no qual se apresentam mais diversificadas e

116
Rothbard (2010, p. 239) refletindo sobre o papel da ideologia na construção de discursos
legitimadores do Estado, afirma: “O teor específico das ideologias tem obviamente mudado com o
passar do tempo, de acordo com as mudanças das condições e culturas. Nos despotismos orientais,
o imperador era freqüentemente sustentado pela Igreja sob o argumento de ele próprio ser divino; em
nossa época mais profana, o argumento inclina-se mais para ‘o bem público’ e o ‘bem estar geral’.
Mas o propósito é sempre o mesmo: convencer o público de que o que o Estado faz não é, como
alguém poderia pensar, crime em uma escala descomunal, mas uma coisa necessária e vital que
deve ser apoiada e obedecida.”
129

imprecisas as relações e interesses exigindo novas sistemáticas de tributação, como

é o caso da simplificação tributária, que possibilita a melhor execução da lei fiscal.

Todavia, inafastável também é a preservação do direito individual, como

pressupõe a relação de alteridade que deve permear a tributação, pois mesmo o

propósito da arrecadação de tributos, vinculado à satisfatividade do interesse público,

não pode ser argüido como justificativa para construção de assimetria relacional em

detrimento do respeito à primazia dos direitos fundamentais, base do Estado de Direito.

Como sintetiza Derzi (2010, p. 1275):

De modo algum se nega que o legislador possa criar presunções jurídicas


por razões as mais diversificadas (praticidade, prevenção da sonegação
etc.). Mas nunca iuris et de iure, contra o princípio da realidade e da
capacidade econômica. O que se afirma apenas é que, em qualquer caso,
seja nas ficções e presunções, seja no estabelecimento de somatórios,
pautas, tipos ou conceitos fechados, o legislador tem de ser fiel à
Constituição, aos seus valores e princípios. Sua liberdade está restringida
por aqueles valores e princípios, sua discricionariedade não se confunde
com o arbítrio de um querer qualquer que não encontra justificação
naquelas normas superiores da Constituição. A praticidade não tem
primazia sobre a justiça (que é sempre individual). (grifos da autora)

Nesse caso, para transpor a fronteira entre o dito e o não-dito, é

necessário definir mais precisamente o que se pode entender por “interesse

público”, tomando como referência o conceito basilar de cidadania.

O recurso a noções carregadas de sentido e significado no contexto das relações

sociais caracteriza-se como a produção de um discurso, no qual o Estado aparece

como o ator mais capacitado a determinar o que é bom ou não para a sociedade.

Transformam-se assim as bases da cidadania e da representatividade,

excluindo os indivíduos do processo decisório, embora o núcleo do discurso que

permeia as decisões políticas, inclusive as que tratam da tributação, esteja centrado

na consecução do interesse público.

Deve-se resgatar o sentido da relação tributária e a sua vinculação originária

a direitos fundamentais do indivíduo considerado em sua singularidade, e não


130

enquanto mero integrante da massa indistinta do coletivo, condição essencial para

assegurar a efetividade dos direitos humanos em todos os campos, inclusive na

seara tributária.

Para isso deve-se adotar uma perspectiva centrada nos valores universais,

como substrato axiológico e força imanente dos direitos de todo ser humano, que

também fundamenta a busca da sua satisfatividade para além do campo do direito

formal interno.

4.3 A SUPERAÇÃO DO LEGALISMO E A GARANTIA DOS DIREITOS DO


CIDADÃO CONTRIBUINTE

Se a constitucionalização foi crucial para o reconhecimento da

fundamentalidade dos direitos humanos, outro marco para sua garantia e efetividade

é o reconhecimento dos valores no Direito, com o pós-positivismo que, na exposição

de Neves (1995, p. 32), expressa um “[...] profundo cepticismo quanto à autonomia

do direito e à capacidade materialmente regulativa da juridicidade.”

Nessa concepção hodierna, a carga valorativa é tão importante quanto o

conjunto normativo concretamente efetivado no sistema jurídico. O reconhecimento

dos princípios e valores influencia cada vez mais a forma como é pensada a relação

entre o Estado e os cidadãos, inclusive na sua condição de contribuintes.

A relação entre Estado e contribuinte, sob o ponto de vista principiológico, não

pode se resumir a regras de imperatividade, nas quais o dever-ser tem objetivo

arrecadatório, gerando a obrigação consequente de contribuir.

No Direito ancorado nos princípios e no reconhecimento da sua força normativa,

a relação tributária não tem mais um caráter absoluto e inquestionável, no sentido de

obrigação que se justifica por si mesma porque nascida da determinação legal.

Nogueira (2008, p. 42) observa que “No campo específico do direito tributário,

os ‘princípios’ têm, em todas as épocas, servido de suporte para a estruturação do


131

sistema jurídico como um todo e, ainda, para preencher o conteúdo das normas

jurídicas.”

O fortalecimento dos princípios de proteção tributária, inseridos na Declaração

dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, e abraçados fortemente pelas

Constituições, permitiram, por corolário, a robustez da cidadania tributária, muito

embora seja um processo doloroso, vagaroso e de constante sentinela.

Com o reconhecimento da força normativa dos princípios cria-se uma ponte

entre o valor e a norma em seu sentido positivo, superando-se a interpretação

juspositivista, segundo a qual todo valor encontra-se num campo puramente

especulativo e subjetivo, e a norma é objetiva e aplicável, pois deriva não de posição

interpretativa, mas do que é concreto e determinado.

Toda imposição tributária supostamente está ancorada em metodologia

racional, com o emprego de instrumentais estatísticos e cálculos que conferem

adequada determinação dos valores devidos pelo contribuinte. A própria estrutura do

sistema tributário, as regras de incidência, alíquotas e outras especificidades relativas

à cobrança dos tributos apresentam-se segundo uma organização lógica e racional,

supostamente apta a assegurar a justa arrecadação do que é devido ao Fisco.

Todavia, confunde-se eficiência com justiça fiscal117, segundo a ótica

distorcida dos paradigmas tributários construídos pelo Estado, os quais, mesmo se

amparados na observância de requisitos legais, tendem a ser definidos segundo o

viés unilateral do ente estatal em sua voracidade arrecadatória.

117
Segundo Aveline (2007, p. 253) “[...] se o objetivo da tributação é também o de possibilitar a
ampliação da liberdade, com o conseqüente aumento da riqueza da nação, não parece haver
qualquer incompatibilidade entre eficiência e justiça fiscal. Ao contrário, a eficiência parece ser
atributo inerente à idéia de liberdade em um Estado Fiscal.” Obviamente o autor refere-se a uma
situação ideal, que está longe de ser a realidade brasileira no momento. A crítica feita aqui sobre a
identificação da justiça fiscal com eficência é no sentido de que o Estado brasileiro, ao priorizar o
emprego de instrumentos e mecanismos fiscais tendo em vista tão somente seus objetivos
arrecadatórios, tem buscado apenas maximizar a entrada de recursos por meio da tributação, sem
uma real contrapartida, com o atendimento das necessidades individuais e sociais baseado na
observância da finalística que lhe é inerente como agente concretizador das demandas coletivas.
132

Assim, por exemplo, o discurso da justiça social tem sido construído pelo

Estado a partir da tributação progressiva, preocupando-se em destacar que os

ricos pagam mais tributos, mas o que se verifica é cada vez mais o emprego do

subterfúgio do imposto invisível, que incide sobre todos, não sendo percebido

pelos mais pobres como uma carga tributária que lhes é muito mais onerosa.

Sobre a questão, Reichman; Planté (2012, p. 1) afirmam:

Tal é a regra da maior parte das democracias ocidentais. Ela tem por
nome ‘justiça social’ e apresenta, para os homens do Estado, a imensa
vantagem de ocupar os sentimentos do povo, dispensando-o de se
questionar sobre o que não vai bem no país, começando pelos impostos
que ele paga evidentemente, mas de modo tão pouco visível quanto
118
possível, pois é necessário que nossos príncipes e seu Estado vivam.

Seguindo essa linha de pensamento, há apenas uma ilusão de justiça social,

satisfazendo o sentimento coletivo de inveja.119 O que se entende por consenso, ou

vontade da maioria, segundo a idéia tradicional de democracia, é, na verdade, a

manifestação da inveja transformada em mobilização coletiva (SCHOEK, 1969). Nasce

de um sentimento de inferioridade, da impossibilidade de usufruir as mesmas benesses

que os ricos em razão de sua capacidade econômica. E assim, confunde-se a justiça

com uma imposição tributária mais gravosa para os níveis de renda mais altos.

Apesar dos avanços na vinculação da vontade estatal à vontade geral da

sociedade, estabeleceram-se novas formas de assimetria do poder na relação

entre o Estado e indivíduo, marcando também o campo da tributação.

118
Tradução livre do original: “Telle est la règle de la plupart des ‘démocraties’ occidentales. Elle a
pour nom ‘justice sociale’ et présente, pour les hommes de l'État, l'immense avantage d'occuper les
sentiments du peuple, le dispensant de s'interroger sur ce qui va mal dans le pays, en commençant
par les impôts qu'il paie évidemment, mais de façon aussi peu visible que possible, car il faut bien que
nos princes et leur État vivent.”
119
“Calcadas num sentimento de injustiça pelas diferenças (sejam elas quais forem: financeiras, estéticas,
filosóficas) e na idéia de que todos deveriam ser igualmente contemplados, muitas políticas de
expropriação foram conduzidas. Desde o sec. XVIII, com o emblemático lema da revolução francesa
‘igualdade, fraternidade e liberdade’ até as revoluções socialistas (sec. XIX e XX) apregoa-se esta filosofia
da igualdade, um ópio para o sentimento de inveja, que ganha força demagógica nesta, aparentemente
justa, indignação.” (COUKIER, 2011, p. 14).
133

O poder de tributar passou a ser um produto de discursos racionalizadores,

os quais transformaram a idéia de representatividade do regime democrático em

um suposto consenso geral que dá “cartas brancas” à atuação dos

governantes.120

Todavia, a racionalidade pretendida se esvai em fumaça ao ser

contraposta a um conjunto de elementos axiológicos, intrínsecos ao sistema

jurídico como um todo, os quais, uma vez considerados, evidenciam um conflito

inexorável entre os dois eixos da relação tributária: a intenção ou busca da

praticidade fiscal, e a preservação dos direitos do contribuinte.

O subsistema tributário não está fechado em si mesmo, mas interrelaciona-

se com outros subsistemas, integrando-se ao sistema jurídico como um todo. De

forma que os aplicadores do Direito não podem deixar de adotar essa

perspectiva, sob pena de denegarem direitos elementares, pois tal postura

implica em visão fragmentada do real, substituindo-se a realidade mesma pela

ficção, como ocorre, por exemplo, no emprego da presunção tributária para a

determinação do valor arrecadatório.

A obstinada imposição tributária torna evidente a vulnerabilidade do

cidadão contribuinte, e imprescindível a proteção da confiança, basilar na relação

tributária. Sobre o tema, explana Derzi (2009, p. 397-398):

120
Comentando a conduta do Estado perante os indivíduos, Rothbard (2010, p. 238-239) ressalta que
a legitimação do exercício do poder faz-se por meio de argumentos próprios da democracia, com
base numa suposta representatividade, o que possibilita a aceitação inconteste do seu poder, mesmo
quando fundada em atos coercitivos, como na imposição de tributos: “Mas o Estado, em contraste
com uma quadrilha de ladrões de estrada, não é considerado uma organização criminosa; ao
contrário, seus subordinados em quase toda parte tem lhe assegurado as posições de status mais
elevados da sociedade. Este é um status que possibilita que o Estado se alimente de suas vítimas
enquanto faz com que pelo menos a maioria delas o apóie, ou ao menos aceite este processo
explorador. Este apoio é obtido com o Estado sendo uma ‘democracia’, uma ditadura ou uma
monarquia absolutista. Pois o apoio depende da disposição da maioria (e não, novamente, de todos
os indivíduos) de acompanhar o sistema: de pagar os impostos, de ir sem muita reclamação lutar as
guerras do Estado e de obedecer às regras e decretos do Estado.” (destaques do autor)
134

A fundamentação mais recente do princípio da proteção da confiança não se


satisfaz com a invocação difusa da segurança jurídica, da estabilidade das
relações e da previsibilidade inerentes ao Estado de Direito. Ela ainda se
enriquece com os seguintes argumentos: a) a relação de dependência das
pessoas privadas em relação ao Estado tem sido cada vez mais invocada. Já
há mais de quarenta anos, O. Bachof [...] profetizou uma ‘quase total
dependência do indivíduo ao Estado todo poderoso’, o que projeta os deveres
do Estado de transparência, lealdade, publicidade, constância e continuidade
com muito mais força do que antes.

Evidentes, portanto, as contradições na relação tributária, pois o propósito da

praticidade que tem levado a novas e variadas estratégias fiscais que não se

adequam às exigências da garantia e da efetiva concretização dos direitos

fundamentais do contribuinte. Pelo contrário, a assimetria relacional resulta em

quebra da confiança, sendo inobservadas as garantias121 constitucionais, de modo

que deixa a tributação de pautar-se na alteridade.

Quando se fala em relação de alteridade, faz-se referência à confiança e à

boa-fé objetiva122, que devem ser observadas na relação tributária, a ser construída

de modo a garantir a certeza123 ou a segurança jurídica para o contribuinte, tanto

quanto buscar a certeza ou praticidade por parte do Fisco. Qualquer outro modo de

construção dessa relação implica em desconstrução da cidadania. Pode-se afirmar,

portanto, que este representa a própria essência da relação tributária.

121
Como explica Garcia (2004), garantias não se confundem com direitos, mas são instrumentos
assecuratórios destes, constituindo assim bases da sua efetividade; o direito, para concretizar-se não
depende apenas do seu reconhecimento com a previsão normativa que o estabelece, sendo
necessário instrumentos que lhe conferem possibilidade de concretude, para além da declaração
formal. Ainda segundo Bastos (1986, p. 231-232), “Enquanto os direitos individuais asseguram bens
da vida (a liberdade, a igualdade, a propriedade) [...] as chamadas garantias individuais cingem-se ao
asseguramento, à proteção jurídica daqueles bens, mas não podem ser valorados senão a partir do
sistema jurídico.” Por outro lado, em sentido amplo, garantias não deixam de ser direitos, uma vez
que “[...] todos são direitos por se caracterizarem na outorga de prerrogativas ou na proteção de
interesses tutelados pela ordem jurídica.”
122
Derzi (2008) comenta acerca das ações da Fazenda Pública no intuito de ameaçar e constranger o
contribuinte, por meio da divulgação de listas de supostos devedores, pedidos de prisão e de falência,
caracterizando má-fé e evidente desrespeito à confiança do contribuinte.
123
O Estado de Direito está fundado em padrões estruturantes e princípios, sendo dois deles
elementares a sua preservação: o princípio da segurança jurídica e o princípio da confiança do
cidadão (CANOTILHO, 2011).
135

Sob o ponto de vista principiológico, a relação entre Estado e contribuinte não

pode se resumir a regras de imperatividade, nas quais o dever-ser tem objetivo

arrecadatório, gerando a obrigação consequente de contribuir.

No Direito ancorado nos princípios e no reconhecimento da sua força

normativa, a relação tributária não tem mais caráter absoluto e inquestionável, no

sentido de obrigação que se justifica por si mesma porque nascida da determinação

legal da autoridade estatal. Acima desta se encontram os princípios e valores a eles

conexos, irradiando-se por todo o sistema jurídico e, portanto, com inflexão direta

sobre o conjunto normativo tributário, delineando as bases de concretização dos

direitos do cidadão contribuinte e os limites da imposição fiscal.

A indivisibilidade e a fundamentalização dos direitos fundamentais do

contribuinte têm como alvo imediato a dignidade humana, princípio e valor

constitucional basilar.

O termo “dignidade humana” é polissêmico, o que dá ampla margem à

discussão quando se trata da construção de conceito objetivo e sua relação com os

direitos fundamentais.

Na concepção de Sarlet (2006, p. 60), a dignidade da pessoa humana é

[...] a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz


merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da
comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres
fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de
cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições
existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover
sua participação ativa co-responsável nos destinos da própria existência e
da vida em comunhão dos demais seres humanos.

Também é considerada como fundamento de validade universal dos direitos

humanos, concepção segundo a qual, a despeito da relativização dos valores

derivada das diferenças culturais, existe um substrato irredutível e comum a todos os

homens, que é a sua dignidade. Não se admite nenhuma afronta a esse valor
136

universal e inerente ao ser humano, ainda que sob a justificativa de estar sendo

observada prática associada à cultura elaborada por determinada sociedade e que

se apresenta com a sua própria essência identitária.

Independente de ser a dignidade humana um conceito difuso situado na vasta

dimensão axiológica, no campo dos ideais e de interpretação carregada de

subjetividade, é certo que tem um papel importante na discussão da conformação do

Direito Tributário à essencialidade do homem, ontologicamente124 considerado.

Enquanto princípio, a dignidade representa a

[...] elevação do ser humano ao centro de todo o sistema jurídico, no sentido


de que as normas são feitas para a pessoa e sua realização existencial,
devendo garantir-lhe um mínimo de direitos fundamentais que sejam
vocacionados para lhe proporcionar vida com dignidade (FARIAS, 2005, p.
96).

Em sua dimensão principiológica, a dignidade tornou-se referencial da busca

de efetivação dos direitos fundamentais. Representa a ruptura com a ênfase na

centralidade do direito positivo, alargando as possibilidades de estabelecer critérios

para a clarificação da aplicabilidade das garantias constitucionais, diante da

diversidade e complexidade de situações vivenciadas pelo homem contemporâneo.

Comentando sobre a consagração do universalismo sobre as peculiares e

intransigentes posições relativistas quanto aos direitos humanos, Piovesan (2010)

aponta a Declaração de Direitos Humanos de Viena (1993), como um marco no

reconhecimento de um mínimo ético universal, a partir do qual não se pode transigir

quando se trata da proteção e garantia aos direitos do indivíduo, mesmo que seja

necessário reconhecer a existência da diversidade cultural e das diferenças de

interpretação sobre os direitos humanos em sentido amplo.

124
A Ontologia é a parte da filosofia que se dedica ao estudo do ser enquanto objeto do
conhecimento e das suas características e essência.
137

No campo do Direito Tributário é importante adotar essa perspectiva do

“mínimo ético” como critério de análise da flexibilização das garantias aos direitos

fundamentais, que tem sido imposta pela afirmação da vontade soberana do Estado

no campo tributário, a despeito das garantias constitucionais que visam proteger o

cidadão do arbítrio tributário.

O Estado tem utilizado uma retórica que serve tanto para justificar, como para

conferir aparente legitimidade a suas estratégias arrecadatórias, e para isso tem sido

útil a associação entre sua soberania e a capacidade de assegurar o bem-estar

comum. Apresenta-se então como aquele que pode realizar as melhores escolhas

para o indivíduo, dotado das necessárias competências para a consecução do bem-

estar geral.

A referência ao “interesse público” tem servido para justificar uma gama de

ações e decisões estatais, apresentando-se o Estado como a real expressão do

interesse geral e, por extensão, aquele que pode concretizar o que, inicialmente,

situa-se na dimensão puramente subjetiva dos anseios e expectativas individuais.

Portanto, transforma-se o que seria o fim ou o objeto das ações estatais em

essência do próprio Estado, caracterizando-o como a personificação do coletivo, o

que dá margem para a imposição fiscal sob a justificativa da inafastável consecução

do interesse público.

Nada mais enganador, todavia. Moraes (1999), ao tratar da questão da

indeterminação conceitual na seara jurídica, vislumbra na vaguidade semântica125 a

possibilidade de interpretações diversas, caracterizando o que denomina de

125
Como explica Di Pietro (2001, p. 97), conceito indeterminado é o termo relativo aos vocábulos ou
expressões jurídicas “[...] que não têm um sentido preciso, objetivo, determinado, mas que são
encontrados com grande freqüência nas normas jurídicas dos vários ramos do direito. Fala-se em
boa-fé, bem comum, conduta irrepreensível, pena adequada, interesse público [...].”
138

“intelecções diferentes” (p. 23), “[...] sem que, por isto, uma delas tenha de ser

havida como incorreta, desde que quaisquer delas sejam igualmente razoáveis”.

Quando se fala em supremacia do interesse público, portanto, é necessário

clarificar em que consiste tal “interesse”. A intelecção do conteúdo da norma nesse

caso precisa ser feita de modo a realizar o que Andrade (2009) considera um

processo cognitivo, por meio do qual, numa dinâmica de criação e reconstrução da

situação factual chega-se a um pressuposto normativo de caráter abstrato, mas

vinculando-se a certas referências definidas a partir da escolha do agente entre

diferentes alternativas, que definem uma valoração própria.

Meirelles (1996, p. 81) apresenta o interesse público como fim primeiro da

Administração Pública, o qual se concretiza nas “[...] aspirações ou vantagens

licitamente almejadas por toda a comunidade administrada, ou por uma parte

expressiva de seus membros”.

À primeira vista, o interesse público remete à força imanente da sociedade,

todavia, com brilhante acuidade, ressalta Mancuso (2000, p. 29) que, “Quando se

lê ou se ouve a expressão ‘interesse público’, a presença do Estado se nos afigura

em primeiro plano”.

Tratando do tema, Lambert (1985, p. 111) afirma que a Administração é “[...]

intrinsecamente baseada na força: ela organiza e age em uma perspectiva global –

onde o motor é a ideologia do interesse geral que justifica tudo e explica tudo - sem

jamais definir seu conteúdo.”126

O ente estatal emerge com toda a sua força quando se fala em interesse

público porque este remete a uma aspiração que não está no plano puramente

126
Tradução livre do original: “L'administration intrinsèquement contraint; elle classe et agit dans une
perspective globalisante - dont le moteur est I'idéologie de l’intérêt général qui justifie tout et explique
tout - sans jamais définir son contenu [...]”
139

metafísico, mas constitui uma vontade coletiva a ser efetivada, o que, todavia,

depende essencialmente da mediação do Estado.

Buscando apoio nas reflexões de Mazzilli (2000), o conceito de interesse

público não se encontra numa dimensão abstrata, generalista, mas na realidade

relacional que contrapõe dois entes elementares, o Estado e o indivíduo.

Mello (2009), seguindo a linha de pensamento da doutrina italiana, aponta

duas dimensões distintas do termo: o interesse público primário, que remete à

vontade geral, e o interesse público secundário, pertinente ao campo restrito da

vontade do ente estatal.

Diferentes quanto ao sentido, mas não excludentes, de forma que a

supremacia do interesse primário é condição sine qua non para definir o alcance e

limites da discricionariedade127 da Administração Pública.

Trazendo para este campo a ponderação necessária para resolução de

conflitos interpretativos, não é admissível a sobreposição do interesse secundário

sobre o primário porque isso implica desvirtuar todo o arcabouço sobre o qual

repousa a Administração Pública, como observa com acurácia Mello (2009).

O interesse primário, como interesse geral ou manifesta vontade coletiva,

não exclui a fundamentalidade do ser em si a quem ela diz respeito, ou seja, não

existe um grupo senão na somatória de indivíduos. De modo que o interesse

primário, em sua essência, é o interesse de cada indivíduo enquanto elemento

heterogêneo e distinto no conjunto a que se denomina coletividade.

Observa Mello (2009, p. 60) que, apesar de haver um interesse público

127
“[ ...] embora seja comum falar em ‘ato discricionário’, a expressão deve ser recebida apenas como
uma maneira elíptica de dizer ‘ato praticado no exercício de apreciação discricionária em relação a
algum ou alguns dos aspectos que o condicionam ou compõem’. Com efeito, o que é discricionária é
a competência do agente quanto ao aspecto ou aspectos tais ou quais [...]. O ato será apenas o
‘produto’ do exercício dela. Então, a discrição não está no ato, não é uma qualidade dele; logo, não é
ele que é discricionário, embora seja nele (ou em sua omissão) que ela haverá de se revelar”
(MELLO, 2009, p. 18).
140

[...] contraposto a um dado interesse individual [...] não pode existir um


interesse público que se choque com os interesses de cada um dos
membros da sociedade. Esta simples e intuitiva percepção basta para exibir
a existência de uma relação íntima, indissolúvel, entre o chamado interesse
público e os interesses ditos individuais. [...] o interesse público, o interesse
do todo, do conjunto social, nada mais é que a dimensão pública dos
interesses individuais, ou seja, dos interesses de cada indivíduo enquanto
partícipe da Sociedade (entificada juridicamente no Estado), nisto se
abrigando também o depósito intertemporal destes mesmos interesses [...].

Os valores vinculam-se à comunidade ou aos indivíduos que nela vivem,

conferindo um significado e sentido à sua existência, com a partilha de aspirações

e projetos. O Estado não é senão aquele que, de forma reflexa, deve realizar esses

valores.128

O desvelamento da indeterminação conceitual do termo “interesse público”

torna evidente a necessidade superar a interpretação comumente adotada sobre a

inafastável sobreposição da Administração Pública a interesse ou direito de

particular, reconhecendo-se a relativização da supremacia do interesse público em

face do interesse maior do indivíduo contribuinte quando relacionado a direito que

lhe deve ser assegurado.

Em razão da ampla aplicabilidade e da força do termo, não somente para o

discurso político, mas para a flexibilização interpretativa, favorável ao Fisco, o

argumento do interesse público tem sido comum na construção de estratégias

arrecadatórias, especialmente porque confere um sentido lógico e racional às

decisões estatais.

Esse conceito indeterminado permite operar a força perversa do Estado, a

partir de uma construção político-ideológica que define o sentido semântico de

“público”, não enquanto comunidade formada por indivíduos, mas como

128
O que não significa que o Estado não deva enveredar pela seara da moral. Se a ele cabe realizar
os valores dos indivíduos e da sociedade, não se pode esquecer que ele é constituído por pessoas
enquanto entes morais, formando a comunidade estatal como a denomina Edith Stein, e é nessa
condição se define a via a ser trilhada pelo Estado na condução de suas decisões (ROMANO, 2010).
141

coletividade, conceito generalizador e abstrato no qual se dilui a existência distinta

e concreta do indivíduo e se firmam as bases de sistemáticas arrecadatórias

atentatórias aos direitos fundamentais do contribuinte.

Operando a desconstrução do sujeito, esse conceito impõe a idéia de que

somente na vontade do Estado estão as bases garantidoras do coletivo, e por

extensão, a força concretizadora dos interesses e necessidades do indivíduo.

Como contraponto, o reconhecimento da fundamentalidade dos direitos do

cidadão contribuinte implica considerar a não-absolutidade do interesse público,

especialmente porque não se pode tornar absoluto o que deve ser apreciado à luz

dos fatos, segundo os princípios constitucionais envolvidos e os valores que lhes

são pertinentes.

Pode-se afirmar, com base nessas questões hodiernas no campo da

tributação, que a condição do sujeito frente ao Estado precisa ser resgatada, por

intermédio da construção de um Direito mais aberto a novas possibilidades

interpretativas e a sistemas mais abrangentes de proteção.

A busca de alternativas para uma sociedade pautada na efetiva valorização

da pluralidade de vontades passa pelo reconhecimento e respeito à

individualidade. É a isso que Bobbio et al. (1998, p. 707) se referem quando falam

sobre um princípio pelo qual “[...] as outras pessoas são reconhecidas em sua

dignidade, diante da própria pessoa, e a cada uma delas se atribui um direito igual

ao próprio direito".

Para tanto, faz-se necessária a superação das incongruências destruidoras

do ser, erigidas em bases fundantes do pensamento, sob a roupagem de uma

lógica e de uma racionalidade que, apenas na aparência, são capazes de

conduzir às melhores soluções jurídicas.


142

Destaca-se como condição crucial para a viabilidade dessa proposta, a

efetivação dos valores e princípios inerentes ao que se entende por democracia

concretamente vivenciada por todos, o que não será possível sem a passagem

de um plano ideal e formal, para o real e vivido, tornando-se os direitos que são

assegurados ao indivíduo o meio e o fim de uma existência plena.

Nesse contexto, a supraconstitucionalidade dos direitos humanos constitui

uma nova interface entre o Estado fiscal e os contribuintes que, por estar

ancorada em valores atemporais e universais, possibilita maximizar os direitos do

cidadão e superar os limites impostos pela normatização interna segundo a ótica

positivista do legalismo constitucional.


143

5 SUPRACONSTITUCIONALIDADE DOS TRATADOS E DIREITOS HUMANOS:


UMA NOVA VIA PARA A MAXIMIZAÇÃO DA EFETIVIDADE DOS DIREITOS
DO CIDADÃO CONTRIBUINTE

5.1 A OPÇÃO PELA SUPRACONSTITUCIONALIDADE: RAZÕES FUNDANTES

A efetividade dos direitos humanos na seara tributária é temática atual e

matéria de indiscutível relevância, especialmente pelas implicações político-sociais,

morais e jurídicas envolvidas.

Ao se propugnar a supraconstitucionalidade dos tratados internacionais de

direitos humanos para um adensamento das bases protetivas e efetividade dos

direitos do cidadão contribuinte, faz-se necessário delinear as razões dessa escolha,

o que implica considerar preliminarmente o debate contrapondo as correntes

universalista e relativista.

Para Bobbio (1992), a questão crucial do nosso tempo não está em um

discurso filosófico sobre os direitos humanos, mas assegurar a sua proteção e

efetividade na vida de todo homem, o que passa da órbita do pensamento puro para

o campo da práxis.

Por essa via de pensamento, não se trata mais de reconhecer os direitos

humanos, mas de dar-lhes efetividade, o que é questão atual e premente, num

cenário de incertezas, que se mostra contraditório pois vive-se na era da supremacia

da razão e de um pretenso progresso superior gerado pelo avanço do conhecimento

e a expansão da democracia no mundo.

A literatura jurídica converge para o mesmo entendimento acerca da relação

entre a garantia dos valores e princípios que embasam os direitos humanos, e o

sistema democrático, no qual se encontram as diferenças e se constroem melhores

vias de entendimento e convívio.


144

Por outro, não há consenso quanto à forma como o Direito pode ampliar as

bases de efetividade dos direitos humanos, variando as opiniões de um otimismo

extremo ao mais puro ceticismo ou, pelo menos, dirigindo-se para um

posicionamento inconclusivo.

Tem contribuído para isso a emergência de novos e conturbados cenários.

Em tempos de crise econômica, de mobilizações que ultrapassam o espaço local,

configuram-se movimentos de caráter nacional e transnacional, no qual despontam

como exemplos as revoltas nos países árabes e as tempestades sociais em países

desenvolvidos, confrontados com inusitadas manifestações, ainda incompreendidas

em suas causas e significados.

Na Europa, por exemplo, além da expressividade de grupos étnicos, não

integrados social e economicamente, há uma crescente mobilização coletiva, com a

participação de muitos cidadãos até então insuspeitos por integrarem a “massa” de

beneficiários das benesses do consumo e das garantias sociais do Welfare State

(Estado do Bem-Estar Social).

Parece distante o tempo em que se proclamou o “fim da história”129, e, por

outro lado, tão atuais as situações tormentosas que marcaram, naquela época, o

início de um ciclo de mudanças globais, iniciado com o fim da União Soviética e o

desmoronamento dos sistemas socialistas em vários países do mundo.

Essas transformações, no seio da proclamada globalização, foram apontadas

como efeitos de um modelo liberal capitalista exitoso, que teria progressivamente

inflexão sobre sistemas mais retrógrados economicamente, pondo em movimento

129
Francis Fukuyama (1952- ), norte-americano, PhD. em Ciência Política pela Universidade de
Harvard, autor de “Fim da história e o último homem”, postulou nessa obra que o liberalismo econômico
seria a culminância de um processo evolutivo da economia, ao qual estaria atrealado o desenvolvimento
de novas de organização social, de cunho democrático, favorecendo uma crescente igualdade de
oportunidade e a autonomia como base do desenvolvimento pessoal (FUKUYAMA, 1992).
145

um processo de mudanças políticas e sociais com tendência irreversível para uma

“democratização” mundial.

Assim o entendeu Fukuyama (1992), quando postulou que o liberalismo seria

a última e melhor expressão de uma sociedade articulada em torno de bases

econômicas que permitiriam o adequado assentamento dos interesses

interindividuais, sustentando o sistema democrático por excelência. A força

irresistível da conveniência e da excelência dos seus resultados, em termos

econômicos, sociais e políticos, acabaria por derrubar outros modelos sem a mesma

capacidade de repercussão para a vida dos indivíduos, a exemplo dos regimes

totalitários remanescentes, como a China, a Coréia do Norte e os Estados

teocráticos islâmicos.

Para Santos (2002), todavia, o chamado “fim da história’, pressupondo a

supremacia inconteste do capitalismo como a culminância de um percurso

humano em busca de um modo de vida ideal, é idéia que repousa na descrença

de alternativas e no desconhecimento do valor das experiências sociais.

Esse autor afirma que o capitalismo e o liberalismo têm as suas origens no

que chama de “razão indolente”, produto de um conhecimento gerado nos últimos

duzentos anos, o qual tem possibilitado a transformação de interesses

hegemônicos em dogmas e verdades incontestáveis, ou suficientes enquanto

conhecimento adequado para interpretar o mundo e o homem, e conferir

significado e sentido às relações e modos de ser no interior das sociedades.

Os argumentos de Santos (2002) conduzem a uma conclusão inevitável: a

crise do pós-modernismo, a desesperança e a descrença no próprio homem

enquanto ser no qual se encontra a potência para encontrar alternativas, levando

à perspectiva niilista do “fim da história”, são produtos dessa razão indolente que,
146

contraditoriamente, pressupunha poder levar a humanidade a um ápice existencial,

sintetizado na idéia de “progresso”.

Em sentido contrário, há quem entenda estar em curso um processo de

aproximação progressivo e inevitável das sociedades. No plano jurídico, essa tese

do universalismo identifica um núcleo originário de direitos, anterior a qualquer

reconhecimento do Direito positivo, por isso válidos em todos os lugares e tempos,

vinculados ao que é comum a todos, a essência humana.

Por essa via de pensamento, é possível a construção de um Direito

Internacional como instância superior de garantia e efetividade dos direitos

humanos.

A tese, porém, é atacada por não se adequar ao cenário hodierno de um

mundo marcado por conflitos, diferenças e incertezas. Os relativistas consideram

que a noção de direitos varia conforme a cultura. O multiculturalismo é traço

essencial das comunidades humanas, haurindo suas forças de uma natureza

humana primordialmente propensa às diferenças e que se torna mais evidente no

mundo globalizado e a diluição das fronteiras nacionais.

A conclusão dos relativistas é que não é possível a construção de um Direito

Internacional que possa servir a todos. A dinâmica das relações internacionais, e mesmo

dentro dos Estados, coloca em evidência o multiculturalismo. As diferenças subjacentes à

formação de grupos com valores e modos de pensamento locais apontam para a

impossibilidade de um reducionismo unificador, de caráter mundial e transnacional.

Santos (1997, p. 22) sintetiza a posição contrária ao universalismo,

observando que “[...] a incompletude provém da própria existência de uma

pluralidade de culturas, pois, se cada cultura fosse tão completa como se julga,

existiria apenas uma só cultura”.


147

Para o referido autor, particularismos e singulares posições contraditórias no

interior dos Estados apontam um caminho inverso ao universalismo. De modo que, ao

contrário de uma tendência para uma unificação mundial, lastreada em Direito

comum, o que se vislumbra, nesse ponto de vista, é a consolidação de uma dupla via

jurisdicional no campo dos direitos humanos.

Não se admite, portanto, uma concepção linear da história, ou o devir do

Direito enquanto produto de uma processualidade histórica, na qual os conflitos

possam ser resolvidos pela transposição de paradigmas diversos rumo à construção

de um sistema mais homogêneo e superior.

Nega-se a possibilidade de um “campo unificado do Direito”130, no qual a

supraconstitucionalidade dos tratados dos direitos humanos possibilitaria passar do

campo idealístico, ou meramente declaratório de direitos universais, a uma práxis

maximizadora da sua efetividade para qualquer indivíduo, independentemente do

local onde se encontra.

Em posição mediadora, a tese do diálogo das fontes propõe a superação

dos debates entre universalismo e relativismo cultural, propondo uma

interlocução entre o Direito Internacional e o Direito interno.

Pode-se então resolver as tensões decorrentes da antinomia das fontes,

por intermédio de um processo comunicativo, como expõe Jayme (1996, p. 259):

[...] o fenômeno mais importante é o fato de que a solução do


conflitos de lei surge como resultado de um diálogo entre
a maioria das fontes heterogêneas. Os direitos humanos, constituições,
convenções internacionais, os sistemas nacionais: todas estas fontes não
são mutuamente exclusivas, elas "falam" uma à outra. Os juízes são
131
necessários para coordenar essas fontes, ouvindo o que elas dizem.

130
Recorre-se aqui à teoria de Einstein, que não logrou jamais completar, sobre um sistema
matemático capaz de abarcar todas as forças fundamentais do Universo em um único campo.
131
Tradução livre do original: “Les droits de l’homme, les constitutions, les conventions internationales, les
systèmes nationaux: toutes ces sources ne s’excluent pas mutuellement ; elles ‘parlent’ l’une à l’autre. Les
juges sont tenus de coordonner ces sources en écoutant ce qu’elles disent.”
148

Trata-se de uma abordagem pós-modernista, objetivando estabelecer novos

parâmetros para a capacidade satisfativa do Direito frente às requisições que se

apresentam no campo da maior complexidade das relações sociais, fenômeno que

ultrapassa as fronteiras nacionais quando se trata dos direitos humanos.

O “diálogo das fontes” é concebido como via possível e necessária para

resolução mais adequada das as antinomias, propugnando a coordenação dos

campos jurídicos interno e internacional.

O expoente principal dessa proposta, Erik Jayme (1996)132, afirma que o

pluralismo jurídico deve ser transposto por meio da verticalização do diálogo.

Pressupõe a coexistência entre as normas do Direito interno e Internacional,

tomando como referência os direitos humanos e a sua força normativa que se irradia

para além dos limites nacionais e as fronteiras arbitrárias do Estado-nação.

Mazzuoli (2010, p. 166), analisando essa proposta, comenta que a dialogia

entre as fontes pressupõe

[...] uma nova hierarquia (em nada semelhante ao modelo positivista


formalista) pautadas em valores e no conteúdo substancial dos direitos
fundamentais, que consegue coexistir e transigir quando necessário com a
ordem doméstica.

A dialogicidade como meio inerente à superação das antinomias pode ser

entendida como um refinamento da teoria monista, ajustada a uma nova visão sobre

a efetividade dos direitos humanos, levando em conta a possibilidade de transigirem

os dois sistemas, ou seja, deve-se priorizar a maximização da efetividade dos

direitos humanos a qualquer tempo, a despeito de conflitos normativos entre o

Direito Internacional e o Direito interno.

132
Erik Jayme é expoente do Direito Pós-Moderno, vertente que considera a emergência de novas
possibilidades no campo da afirmação e imperatividade dos direitos humanos no contexto do
pluralismo das fontes do Direito.
149

Por essa proposta, a tutela jurídica dos direitos humanos implica afastar-se do

debate sobre hierarquia normativa, coexistindo o Direito Internacional e o Direito

interno. A soberania estatal pode ser relativizada para a aplicação da norma mais

apta a maximizar a efetividade desses direitos for o tratado internacional.

Essa interpretação transpõe, portanto, a tradicional perspectiva dos limites

precisos da aplicação das normas definidos pela territorialidade, que embasa a

teoria dualista, para a qual existem campos diferentes e limítrofes, no plano do

Direito interno e Internacional. Apesar da interface entre eles, um não pode adentrar

o espaço do outro, configurando-se estruturas estanques e incomunicáveis.

A problemática da antinomia das fontes e a sua superação pela postura

dialógica foi levantada pelo Ministro Gilmar Mendes, por ocasião da manifestação

do Supremo Tribunal sobre a aplicação da lei pátria que prevê a prisão por

dívida133, vedada expressamente pela Convenção Americana de Direitos

Humanos ou Pacto de San José da Costa Rica134, assim se pronunciando em seu

voto sobre a matéria no Recurso Extraordinário nº 466.343-1/SP:

Posta a questão nesses termos, a controvérsia jurídica remeter-se-á ao


exame do conflito entre as fontes internas e internacionais (ou, mais
adequadamente, ao diálogo entre essas mesmas fontes), de modo a se
permitir que, tratando-se de convenções internacionais de direitos humanos,
estas guardem primazia hierárquica em face da legislação comum do
Estado brasileiro, sempre que se registre situação de antinomia entre o
direito interno nacional e as cláusulas decorrentes de referidos tratados
internacionais.

133
Julgamento do R.E. 466.343-1/SP tendo como Relator o Ministro Cezar Peluso, o Banco Bradesco
S/A como recorrente e o Luciano Cardoso Santos como recorrido. O recurso extraordinário foi
interposto pelo referido banco com arguição do artigo 102, inciso III, alínea “a” da Constituição
Federal, contra o acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que negou provimento ao
recurso de apelação n° 791031-0/7, manifestando-se pela inconstitucionalidade da prisão civil do
devedor fiduciante em contrato de alienação fiduciária em garantia, frente à previsão da Carta
Constitucional em seu artigo 5º, inciso LXVII: “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do
responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário
infiel;”
134
Firmado em San José, Costa Rica, em 1969, entrou em vigor em 1978. Tem como signatários os
Estados-membros da Organização dos Estados Americanos (OEA). O Brasil aderiu oficialmente à
Convenção apenas em 1992. Dispõe a referida pactuação: “7. Ninguém deve ser detido por dívidas.
Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de
inadimplemento de obrigação alimentar.” (BRASIL, 2012).
150

Apesar da alusão ao diálogo das fontes, a solução emanada da

interpretação majoritária do Supremo Tribunal Federal pendeu para a

supralegalidade dos tratados internacionais sobre direitos humanos. Por outro

lado, a proposta de constitucionalistas como Mazzuoli (2010) e Piovesan (2010)

considera que se trata de entendimento restritivo.

Na opinião dos insignes doutrinadores, as normas de tratados

internacionais de direitos humanos equiparam-se às normas constitucionais, de

modo que, verificada a sua maior adequação para a garantia e máxima

efetividade dos direitos humanos, devem ser aplicadas automaticamente, não

havendo necessidade de observância de trâmites congressuais.135

Mazzuoli (2010) assevera que o princípio internacional pro homine136 exige

a prevalência dos interesses humanos, conforme sua natureza e a finalidade

precípua de sua garantia e efetividade. Deve ser considerada a aplicação da

norma mais favorável às vítimas que têm seus direitos humanos violados ou

ameaçados, para harmonizar os contrários, rumo a uma nova contextualização do

Direito nos planos interno e externo, pautada no primado dos direitos humanos

como referência primeira da atividade judicial.

A intransigência que tem marcado a aplicação das normas é hoje questão

que exige essa comunicabilidade entre os sistemas, para que se estabeleça uma

complementaridade entre as fontes, operando “[...] ipso facto e sem a

necessidade de se buscar qualquer outra justificativa fora do contexto da

135
Segundo o entendimento da aplicabilidade automática, os tratados internacionais versando sobre
direitos humanos, desde o momento da sua ratificação pelo Executivo, ficam incorporados
automaticamente à legislação interna, tendo equiparação às normas constitucionais, não dependendo
de aprovação por maioria qualificada no Congresso Nacional como prevê a Emenda Constitucional n°
45/2004 que acrescentou o parágrafo 3º ao artigo 5º da Carta Magna.
136
Bonavides (2000) denomina de princípio da proporcionalidade, entendendo-o como um princípio
que possibilita compatibilizar realidades não captadas, pautando a escolha daquela que for menos
nociva aos interesses do cidadão.
151

integração dos tratados de direitos humanos no plano do direito interno”

(MAZZUOLI, 2010, p. 159-160).

A integração de que fala esse autor implica desconsiderar a hierarquia

normativa, para centrar-se objetivamente no telos em questão, que é ultrapassar o

âmbito meramente territorial e estabelecer maior amplitude tutelar aos direitos

humanos. Trata-se, como observa Piovesan (2003, p. 61), de uma “garantia

adicional de proteção” aplicável quando “[...] o Estado se mostra falho ou omisso

na tarefa de implementar direitos e liberdades fundamentais” (não grifado no

original).

A interlocução entre as fontes é considerada o caminho para a superação das

antinomias, como explicita Mazzuoli (2010, p. 112-113):

Esta natureza objetiva da proteção internacional dos direitos humanos e dos


respectivos tratados requer novos métodos de harmonização entre o direito
internacional dos direitos humanos e o direito interno, ante a ineficácia dos
critérios tradicionais de solução antinomias. O problema é que muitos
tribunais locais parecem ainda não ter compreendido o funcionamento e o
telos da proteção internacional dos direitos humanos, criando assim um
problema gnosiológico (ou seja, de conhecimento) a ser resolvido.

Esse “diálogo das fontes” consiste em construir uma uniformidade

interpretativa, possibilitando superar as divergências que obstam a ampla tutela

jurídica daqueles que têm seus direitos violados ou ameaçados.

A dialogicidade seria então a possibilidade de passar da consagração

internacional dos direitos humanos, e do compromisso formal dos Estados que

aderem aos instrumentos de pactuação, para um maior grau de proteção e

efetividade no âmbito das suas respectivas jurisdições a partir de uma comunicação

mais estreita entre o Direito Internacional e o Direito interno.

O fio condutor da proposta da comunicação entre as fontes é a pretensão

emancipatória dos indivíduos, a partir do reconhecimento das suas diferenças e


152

da necessária busca de um entendimento comum entre os campos do Direito,

possibilitando maior grau de efetividade dos direitos humanos.

Todavia, se o diálogo entre as fontes pressupõe uma conexão mais direta

entre o Direito interno e o Direito Internacional, contraditoriamente, preserva a

dualidade do Direito, interno e internacional, embora propugnando a aplicação da

norma mais favorável para a máxima efetividade dos direitos humanos.

Por conseguinte, o que se verifica é que a dialogicidade das fontes pressupõe

a continuidade de uma dupla racionalidade, no campo interno e internacional, a

despeito de propor um processo dinâmico de aproximação e “entendimento”.

A fragmentação, pela coexistência de múltiplas racionalidades no campo do

Direito, tem sido considerada insuperável, destacando-se nesse sentido as

observações de Koskenniemi (2005, p. 15), para o qual a tendência é uma

crescente divisão em áreas especializadas, dotadas de lógicas internas próprias,

expressão de uma crescente racionalidade sistêmica do mundo pós-moderno, de

modo que “Muito longe de unificar o mundo, isso iria intensificar o embate entre

regimes legais e modos de pensar, alguns mais centrais do que outros, cada qual

organizado por meio de uma hierarquia interna”.137

Günther (2001) refuta essa ideia, postulando a possibilidade de superação da

fragmentação rumo à construção de um Direito Internacional unificado. Entende que

os teóricos da fragmentação não consideram que as racionalidades, embora

aparentemente fechadas em si mesmas, são dinâmicas e, para além da aparente

autonomia, podem atingir um adequado grau de coordenação entre si.

137
Tradução livre do original: “Far from unifying the world, this would intensify the clash of legal
regimes and modes of thought, some more central than others, each organized through an internal
hierarchy.”
153

Mas além do pressuposto da comunicação, como no diálogo das fontes, existe

a possibilidade de superação da aparente dicotomia entre os sistemas normativos. É

possível o desenvolvimento de uma ordem constitucional supranacional, se for

considerado que as especificidades culturais não são absolutas, mas convergentes

para uma maior interpenetração das sociedades humanas.

Reporta-se aqui à transição paradigmática para uma sociedade mundial

pautada em valores comuns. Neste particular, observa Canotilho (2011), uma

aproximação crescente das culturas humanas, o que está em consonância com a

teoria das redes de Castells (2002), que aponta o desenvolvimento de uma nova

ordem mundial, de natureza inovadora no sentido de constituir-se a partir de um

substrato cultural comum que permeia todas as comunidades humanas do planeta.

O viés do multiculturalismo, que tem sido invocado como impedimento a uma

ordem supraconstitucional, pode ser assim derrubado. Ao invés de múltiplas

racionalidades fechadas em si mesmas, vislumbra-se o desenvolvimento de um

sistema único, baseado em uma metalinguagem, de caráter centralizador.

Essa metalinguagem passa a fundamentar o caminho do Direito Internacional,

servindo de “ponte” para a superação de sistemas racionais fragmentados. Pode-se

assim construir um sistema único, com base num substrato comum a todas as

sociedades e culturas, envolvendo valores mínimos138, que delimitam um conteúdo

normativo elementar em matéria de direitos humanos, a despeito de diferenças

culturais ou múltiplas racionalidades dos sistemas jurídicos nacionais.

138
Walzer (2001, p. 17) postula a existência do que chama de moralidade mínima, comum às
diferentes culturas humanas, consistindo em “[...] princípios e regras que são reiterados em diferentes
épocas e locais, e que são vistos como similares ainda que sejam expressos em diferentes idiomas e
reflitam diferentes histórias e diferentes versões de mundo”. Tradução livre do original: “[…] principles
and rules that are reitered in different times and places, and that are seen to be similar even though
they are expressed in different idioms and reflect different histories and different versions of the world”.
154

A adoção de regras supraconstitucionais sobre direitos humanos sobrepondo-

se às Constituições nacionais faz-se de modo a estabelecer, como inovação, um

ponto de partida de uma nova tradição no Direito, a qual não tem como origem

experiências da sociedade nacional, mas da comunidade internacional.

E como as normas constitucionais representam um campo normativo derivado

da vida dos indivíduos em um Estado, as normas do Direito Internacional se

estabelecem a partir de uma experiência que ultrapassa as fronteiras nacionais, a qual

passa a constituir uma nova tradição jurídica que adquire consistência e se torna parte

essencial dos sistemas jurídicos nacionais, configurando a marcha da humanidade

para a construção de elos fundamentais comuns.

O conteúdo das regras supraconstitucionais adquire mais significado à

medida que o Direito Internacional participa da criação de nova tradição

metaconstitucional. Tradição essa que substitui racionalidades diferentes, relativas a

dois sistemas jurídicos, por uma racionalidade unificadora, ou nos termos da teoria

dos sistemas, como uma forma de redução da complexidade por intermédio da

introdução de uma nova experiência no sistema, consoante os comentários de

Hijikata (2003, p. 111):

Esta experiência é uma cognição correlativa. A experiência é conectada a


uma outra reduzindo ainda mais a complexidade. O caráter provisório desta
cognição correlativa que atende ainda mais a conexão, é uma definição final
da cognição. O que significa que ela não existe senão quando é possível
uma conexão constante. A conexão se apresenta-se assim como um nó ou
139
um acoplamento que liga o passado com o futuro no presente.

É certo que a dialogicidade entre as fontes pode abrir caminho para a

construção de novos paradigmas jurídicos, aptos a dar concretude aos direitos

139
Tradução livre do original: “Cette expérience est une cognition corrélative. L’expérience est
connectée à une autre en réduisant encore la complexité. Le caractère provisoire de cette cognition
corrélative qui attend davantage de connexion, est une définition finale de la cognition. C’est-à-dire
qu’elle n’existe qu’en tant que constamment possible de connecter. La ‘connection’ se présente ainsi
comme une nodosité ou un couplage qui lie le passé et le futur dans le present”.
155

humanos em uma dimensão plural, entrelaçando o Direito Internacional e o interno

de forma inédita.

Mas essa perspectiva também pode ser interpretada como uma recusa para

um avanço mais radical. Se Kant realizou o que se chamou de “revolução

copernicana” na filosofia, é necessário uma outra, no campo dos direitos humanos,

com o abandono dos critérios pautados no status inquestionável do Estado supremo

e autodeterminado, porque, como foi exposto, em relação aos direitos humanos só

se pode admitir a primazia destes.

A centralidade do sujeito é incompatível com a sua vinculação dogmática ao

poder estatal, mesmo no Estado de Direito, e isso é ainda mais indispensável no

campo das relações assimétricas envolvendo o exercício do poder de tributar.

Nesse sentido, faz-se necessária a superação da tendência de preservação a

todo custo da força inquestionável das Constituições, com a criação de uma

constitucionalidade maior, enquanto campo extranacional de normas comuns que

passam a definir com maior alcance o campo de proteção e as bases da efetividade

dos direitos humanos, considerando os seus titulares não como cidadãos-súditos de

um Estado, mas unicamente por sua condição primordial de seres humanos.

Portanto, embora a idéia de uma constituição supranacional possa ser vista

como idealista, todavia, se torna factível se analisada do ponto de vista do Direito

interno não como sistema fechado em si mesmo, mas como um subsistema

integrando um sistema maior.

À luz da teoria sistêmica de Lühmann (1983), o Direito não está adstrito a

conceitos fechados, pois, em sua interrelação com a dinâmica social, não é uma

construção totalizadora e acabada, mas um contínuo devir, acompanhando a própria

fluidez do tempo e do homem sendo, portanto, um sistema aberto.


156

Remete-se aqui à perspectiva sistêmica, pela qual sujeito e Estado podem ser

compreendidos em razão das funções que lhe são inerentes em um complexo maior

ou sistema. A manutenção do sistema não pode prescindir de certa margem de

flexibilidade, o que no Direito significa a possibilidade de mudanças como parte de

um processo de constante redefinição da ordem posta, a partir de decisões que não

são imutáveis, mas que se adaptam a novas situações e conduzem a novas

interpretações como escolhas dentre alternativas possíveis e necessárias.

Por conseguinte, não há que se falar em postulados dogmáticos, mas na

necessidade de transcender os limites impostos por raciocínios esquemáticos,

típicos do modo de pensar juspositivista, ainda presente em boa parte do trabalho

jurídico, e mesmo nas decisões dos tribunais, inclusive na seara dos direitos

humanos como foi exposto.

O pensamento jurídico dogmático “[...] influi sobre os demais, transmite-lhes

uma convicção e converte-se em prescrição de conduta” (ROESLER, 2004, p. 58).

Tanto a tese da supralegalidade, como a constitucionalista, envolvem raciocínio

jurídico dogmático, e podem ser interpretadas como a preocupação de ajustamento

a novas realidades sem que isso implique em abrir mão da ordem posta.

No campo dos direitos humanos, a finalidade da proposta de uma

comunicação entre a Constituição e fontes internacionais do Direito, parece ser mais

do que a escolha de uma via racional e objetiva para resolver as antinomias entre o

Direito Internacional e o interno.

Pelo contrário, evidencia a preocupação de ajustar o sistema jurídico pátrio a

novas tendências e realidades que extrapolam o campo da atuação jurisdicional e

sistema normativo interno e, ao mesmo tempo, preservar o constitucionalismo, a

despeito da crescente internacionalização do Direito.


157

De forma que o caráter dogmático e conservador das decisões judiciais tem

sido transformado em baluarte da defesa intransigente de funções e papéis que o

Estado já não pode sustentar, em face da reverberação dos movimentos

contraditórios e da fluidez das situações do meio social na era pós-moderna, o que

ocorre por meio do que Cadermatori; Duarte (2009, p.19) chamam de “mecanismo

de controle da contingência”, observando os autores a existência de uma “[...]

institucionalização da expectativa de tratamento da desilusão que possa controlar as

conseqüências dos comportamentos não esperados.”

Por outro lado, na defesa da supraconstitucionalidade no campo dos direitos

humanos, o que pode se antever é uma tendência para a amalgamação de modelos

constitucionais diversos, de modo que deles possa emergir uma ordem jurídica

transnacional, dotada de identidade própria, distinta do sistema normativo

Internacional tradicional e operando de modo peculiar sobre o Direito interno, a

despeito das suas Constituições.

Não se pode esquecer, como observa Pagliarini (2012), que o Estado, a

soberania e o próprio poder constituinte são abstrações, produtos culturais. E como

tal, não são conceitos jurídico-políticos imutáveis.

Nessa condição, nada obsta a passagem de uma cultura nacional para outra,

supranacional, redefinindo as bases de aplicação das normas sobre direitos

humanos, transferindo-se a um poder internacional aquilo que antes era

exclusividade do poder soberano do Estado e matéria eminentemente constitucional.

É na União Européia que se observa concretamente essa transformação,

operando a partir de mecanismos exógenos de criação de normas internacionais,

dotadas de força impositiva sobre o direito interno dos países-membros. É

compreensível assim porque a tese da supraconstitucionalidade é mais forte e mais


158

presente na doutrina européia, ao contrário da brasileira. Justificada também a

resistência do nosso Judiciário em acolhê-la, já que as referências que pontuam o

Direito brasileiro ainda são, em grande parte, construídas no contexto do legalismo e

do constitucionalismo tradicional.

Nesse sentido, entende Oliveira Júnior (2007, p. 9) que a formação da União

Européia não caracteriza nem mesmo uma soberania relativizada, mas a construção

de uma ordem comunitária baseada em um poder supranacional, frente ao qual os

Estados nacionais abrem mão de parcela considerável da sua soberania, transferida

para os órgãos supranacionais. Para esse autor:

[...] os doutrinadores que insistem em caracterizar a soberania desses países


como relativa, assim o fazem por adotarem um conceito de soberania
limitado, nos termos que a tratavam os antigos teóricos do Estado, e que não
condiz com a realidade atual.

Engle (2012, p. 1) comenta sobre a necessidade da mudança paradigmática

na compreensão do poder estatal frente a questões que ultrapassam o conceito

reducionista de soberania absoluta:

Pode-se afirmar que as origens da idéia de soberania encontram-se na


Idade Média. Esta concepção de um poder estatal absoluto e arbitrário foi
tornada obsoleta por diferentes fatores – como os desenvolvimentos
tecnológicos, econômicos, políticos e sociais. Todavia, ela continua a ser o
fundamento da idéia ocidental de poder estatal. Trata-se de melhor
circunscrever a idéia de soberania, impondo certos limites (como os direitos
do homem) ao seu poder absoluto. Por esta razão, nos parece errado
conceber o desaparecimento - mais especificamente a cessão teoricamente
revogável – de uma parte da soberania estatal para uma organização
internacional como um atentado ao princípio da legalidade. Uma cessão
desse tipo no sentido de uma execução do poder soberano, constituiria uma
das mudanças jurídicas necessárias para que a nova idéia de poder estatal
140
limitado possa surgir.

140
Tradução livre do original: “On peut avancer que les origines de l'idée de souveraineté se trouvent
au Moyen-Age. Cette conception d'une puissance étatique absolue et arbitraire a été mise en
obsolescence par différents facteurs - comme notamment des développements technologiques,
économiques, politiques, et sociaux. Néanmoins, elle demeure toujours le fondement de l'idée
occidentale de la puissance étatique. Il s'agit désormais de mieux circonscrire l'idée de souveraineté,
en amenant certaines limitations (comme les droits de l'homme) à son pouvoir absolu. Pour cette
raison, il nous semble erroné de voir la disparition - plus correctement la cession théoriquement
révocable - d'une partie de la souveraineté étatique vers une organisation internationale, comme une
atteinte au principe de légalité. Une telle cession, dans le sens d'une exécution du pouvoir souverain,
constituerait l'une des transformations juridiques nécessaire pour que l'idée nouvelle d'une puissance
étatique limitée puisse émerger.”
159

O abandono de certas concepções mostra-se, portanto, parte de um

necessário processo de revisão do Direito como produto imediato do Estado, e isso

em razão da possibilidade de estabelecer novas formas de garantia e efetividade

dos direitos humanos considerados em relação à condição humana do indivíduo, da

qual podem ser extraídos valores fundamentais.

Embora não se conteste a validade e aplicabilidade do diálogo vertical das

fontes como um modo de superação das antinomias entre o Direito interno e

internacional, no âmbito de matérias que envolvem os direitos humanos, essa

alternativa pode ser contraditória, se for considerada a relativização dos valores que

fundamenta essa tese. O resultado, dialeticamente falando, é a síntese dos opostos,

ou seja, a acomodação dos conflitos entre o Direito interno e internacional por

intermédio do “diálogo das fontes”.

Esse diálogo nada mais é do que a expressão da perspectiva pós-moderna

de um Direito menos objetivo, envolvendo uma posição mais flexível, descentrada,

da práxis jurídica na solução dos conflitos resultando, porém, sob um olhar crítico,

em uma diluição dos valores que deveriam, eles mesmos, serem absolutos, em

razão do caráter substancial dos direitos humanos, que é o “ser em si”, ao qual

eles estão adstritos.

Essa crítica pode ser ancorada especialmente na “Ética das Virtudes”, de

Alasdair MacIntyre, embora outras contribuições possam ser buscadas em

expoentes críticos do pós-modernismo, em especial, Habermas.

Resgatando o raciocínio que se desdobra na “Ética das Virtudes”, o

posicionamento pós-moderno tem como um dos seus fundamentos a negação das

tradições e rejeição de uma teleologia que poderia ser identificada em uma matriz

universal de valores consubstanciando uma herança coletiva humana. Em razão


160

disso, “[...] todos os juízos valorativos e, mais especificamente, todos os juízos

morais não passam de expressões de preferência, expressões de sentimento ou

atitudes” (McINTYRE, 2001, p. 30) (não grifado no original).

Tendo como fundo a relativização dos valores, segundo a perspectiva de um

multiculturalismo imanente às sociedades e, portanto, justificador da existência de

sistemas jurídicos diferenciados, no campo interno e internacional, o “diálogo das

fontes” pode resultar, de maneira contraditória, em interpretações que acabam por

restringir o conceito de direitos humanos.

A título de exemplo, no Direito pátrio, pode-se apontar o parecer PGFN/CRJ

nº 1732/2007 emitido pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN)

favorável à aplicação do diálogo das fontes na seara do Direito Tributário em face

das antinomias, neste caso, envolvendo a extensão das alterações na Lei Geral de

Execuções de Títulos Extrajudiciais às execuções fiscais (ANDRADE FILHO,

2012).

O entendimento foi que a Lei de Execução Fiscal (Lei Federal 6.830/80) teve

por fulcro a concessão de tratamento privilegiado ao crédito fazendário, de maneira a

prover sua maior satisfatividade em proveito da Fazenda Pública (nos termos da

exposição de motivos da LEF). Por extensão, quaisquer mudanças no Código de

Processo Civil, mesmo contrariando a LEF, quando em proveito do crédito fazendário,

tornando mais célere a sua cobrança, devem ser aplicadas à execução fiscal.

Como resultado, o diálogo das fontes serviu como base para uma

interpretação discricionária do magistrado, a qual acabou contrariando o propósito

firmado pela tese da “dialogicidade”, que é o de avançar na efetivação dos direitos

humanos em todas as suas dimensões.

A esse respeito, transcreve-se a crítica Andrade Filho (2012, p. 1):


161

Apesar de a satisfação dos créditos da Fazenda atender ao bem comum,


ou seja, aos interesses de toda a coletividade, a expropriação de bens dos
particulares via atividade tributária, aí incluída a fase executiva, se
submete ao respeito dos direitos fundamentais envolvidos. Daí o equívoco
hermenêutico cometido quando se confunde o interesse público com o
interesse da Fazenda Pública.

Continuando suas incisivas e coerentes ponderações, o autor afirma:

Por esse raciocínio resulta a improcedência do entendimento sobre a


ausência de suspensividade automática dos embargos à execução, depois
de garantido o juízo. A aplicação das novas disposições da lei civil ao
processo executivo, em especial aquelas que dizem respeito à ausência de
suspensividade automática dos embargos à execução, na realidade, não
proporcionam a aplicação sequer equitativa das disposições da lei civil à
LEF. De fato, criam situações de desigualdade ainda maiores entre o
contribuinte-executado e a Fazenda-exeqüente. Isso se deve em parte em
razão do modo de formação do título executivo extrajudicial entre
particulares e o processo de formação da CDA. Enquanto no primeiro caso
a formação é em regra bilateral (acordo de vontades), ou unilateral, quando
formado pelo devedor, na cobrança do crédito tributário a formação se dá
de modo unilateral pela Fazenda. O contribuinte apenas participa na sua
formação, se instaurado processo administrativo fiscal, no âmago de órgãos
da administração fazendária, nem sempre revestidos da tão desejada
imparcialidade e independência (ANDRADE FILHO, 2012, p.1).

Nesse caso, houve uma evidente relativização dos valores, posto que os

direitos humanos, visceralmente ligados ao cidadão contribuinte enquanto

pessoa, devem ser ponderados no julgamento de matéria tributária frente aos

interesses legítimos do Estado. O que, todavia, não ocorreu.

Ao fundamentar a sua decisão no “diálogo das fontes”, o magistrado optou pela

premissa do “inafastável interesse público” na cobrança do crédito relativo ao tributo,

colocando a coletividade como o objeto da tutela judicial. Restou evidente uma

interpretação desvirtuada, em prejuízo dos direitos elementares do contribuinte.

Por fim, à justificativa de que o “diálogo” é necessário e a melhor via, em

razão do multiculturalismo como barreira a ser superada, pode-se opor com a

adoção da perspectiva habermasiana de um mundo global em transformação, no

qual apesar das diferenças, o que se observa não é uma fragmentação inevitável,

mas, ao contrário, o estabelecimento das bases de uma crescente integração das


162

sociedades humanas imposta pelas forças exógenas que impõem uma revisão

das bases de vida e coexistência tradicionais:

[...] o conflito de culturas dá-se dentro da moldura de uma sociedade


mundial na qual os atores coletivos, independentemente das suas diferentes
tradições culturais, devem concordar, quer queiram quer não, quanto às
normas da vida em comum. Pois a proteção autárquica contra as influências
externas não é mais uma opção na atual conjuntura mundial (HABERMAS,
2001, p. 161).

Tratando desse cenário de complexidade e indeterminação, com inflexões

para o Direito, Borgeat; Giroux (1997, p. 307) descrevem um cenário de ajustes e

necessária adaptação do Estado frente a novas solicitações que estão além do

plano imediato da ordem jurídica posta, no contexto sociopolítico e cultural do qual

faz parte o ente estatal:

Os governos da maior parte dos países ocidentais têm implementado nos


últimos anos mudanças profundas quanto ao seu papel, sua estrutura e
modo de funcionamento [...] Essas transformações não são somente o
resultado da crise das finanças públicas pelas quais passam os países
ocidentais mas [...] são também o produto de uma transformação de valores
individuais e de um processo de transformação sociopolítica que desta
resulta. O direito, enquanto expressão formal da vontade política, não pode,
evidentemente, manter-se à parte dessa evolução. Efetivamente, os novos
valores que se impõem à sociedade civil e à Administração Pública colocam
grandes desafios ao direito aplicado à Administração [...] três fenômenos
rompem com a racionalidade tradicional do Direito: são exceções aos
regimes gerais, flexibilização das regulamentações e modos alternativos de
141
resolução dos conflitos.

A dinâmica econômica fundada na interpenetração das economias nacionais

e na constituição de objetivos consensuais comuns, ao lado de um processo

comunicativo mais forte propiciado pelo desenvolvimento tecnológico, podem ser

apontados como fatores decisivos para uma aproximação entre os Estados,

141
Tradução livre do original: “Les administrations publiques de la plupart des pays occidentaux ont
entrepis au cours des dernières années des changements profonds quant à leur role, leur structure e leur
mode de fonctionnement. [...] ces changements ne son pas seulement le résultat de la crise des finances
publiques que traversent les pays occidentaux, mais [...] sont tout autant le produit d’une mutation des
valeurs individuelles et du processus de transformation sociopolitique que celle-ci engendre. Le droit, em
tant qu’expression formelle de la volonté politique, ne peut evidemment rester à l’ecart de cette évolution.
En effet, les nouvelles valeurs qui s’imposent à la societé civile et à l’appareil public posent des défis de
taille au droit appliqué à l’administration [...] trois phénomènes rompant avec la rationalité traditionelle du
droit: il s’agit des dérogations aux regimes généraux, des assouplissements à la réglementation et des
modes alternatifs de résolutions des conflits.”
163

constituindo forças alheias e acima dos voluntarismos dos governos nacionais. Isso

se traduz, também, em mudanças no Direito Internacional que tendem a se irradiar

em um sentido planetário.

Na Europa, esse processo é mais forte em razão de estar em curso há muitas

décadas, tornando-se assim o espaço por excelência de formação de uma ordem

supranacional, no qual o Direito exógeno passou a definir de modo mais completo as

bases da supraconstitucionalidade dos tratados de direitos humanos.

Há quem negue um conteúdo supranacional efetivo na União Européia, no

sentido de uma nova entidade soberana face aos Estados-nacionais, todavia contra

isto argumentam Marchiori Neto; Araújo (2006, p. 10):

Por mais coerentes que possam parecer as teses nacionalistas, há boas


razões para crer que elas pecam pelo reducionismo e linearidade com que
tratam do tema. A sociedade altamente complexa da atualidade não é a
mesma dos séculos anteriores, de onde ainda hoje se retira boa parte dos
conceitos para se compreender as relações sociais. Não parece razoável
olhar o futuro buscando apregoar-se a padrões do passado, fechando-os em
teorias que simplesmente não fornecem respostas aos fenômenos cada
vez mais globais. Escrever longas laudas acerca da natureza jurídica da
Constituição Européia certamente não solucionará o problema da integração
continental; no máximo, acalmará o espírito daqueles que ainda se mantêm
firmemente agarrados no positivismo jurídico dominante nas Academias.

Com o espírito aberto para essas mudanças, e demonstrando a disposição

para aceitar e rever os velhos dogmas, Canotilho (2011, p. 1.370) vislumbra a

emergência e a consolidação de um Direito Internacional que se sobrepõe às ordens

internas e estabelece uma nova arena global para a ampla satisfatividade dos

direitos humanos:

Com efeito, as relações internacionais devem ser cada vez mais relações
reguladas em termos de direito e de justiça, convertendo-se o direito
internacional numa verdadeira ordem imperativa, à qual não falta um núcleo
material duro – o jus cogens internacional – vertebrador, quer da política e
relações internacionais, quer da própria construção constitucional interna.
Para além deste jus cogens, o direito internacional tende a transformar-se
em suporte das relações internacionais através da progressiva elevação dos
direitos humanos – na parte em que não integrem já o jus cogens– padrão
jurídico de conduta política, interna e externa. Estas últimas premissas – o
jus cogens e os direitos humanos –, articuladas com o papel da organização
internacional, fornecerão um enquadramento razoável para o
constitucionalismo global.
164

A respeito da supremacia do Direito comunitário sobre o interno dos

Estados-membros, e sobre as suas Constituições, Canotilho (2011) comenta que,

apesar das limitações derivadas dos princípios da subsidiariedade, atribuição e

da proporcionalidade142, o que se verifica é uma redução da força normativa das

Constituições, em detrimento de um empoderamento do Direito comunitário, de

modo que as Cartas nacionais deixam de ser dirigentes, para se tornarem

ordenamentos dirigidos nesse novo sistema supranacional.143

Portanto, a construção de uma sociedade transnacional importa na

substituição de conceitos tradicionais, não somente os relativos à soberania dos

Estados, mas acerca do próprio funcionamento do sistema jurídico nacional e, por

outro lado, impõe a preservação ou reconhecimento de valores substanciais e

universais que passam a fundamentar um Direito Internacional mais influente e

atuante na efetividade dos direitos dos indivíduos como seres habitando um

mesmo planeta.

Nesse sentido, a supraconstitucionalidade não representa somente uma

escolha ou opção do Estado, mas a sua sujeição a um processo de reconstrução

da ordem nacional a partir de situações exógenas que se impõem aos integrantes

da comunidade internacional.

142
De acordo com o princípio da atribuição, as competências da União Européia são estritamente
aquelas que lhe são conferidas nos Tratados. A subsidiariedade e a proporcionalidade são princípios
corolários do princípio da atribuição. Determinam o âmbito do exercício das competências da União,
delimitado nos Tratados. Em razão do princípio da proporcionalidade, a atuação da UE não pode ir
além do estritamente necessário para concretização dos propósitos convencionados. O princípio da
subsidiariedade determina o nível de intervenção compatível com as competências compartilhadas
entre a União Européia e os Estados-Membros. A UE somente pode intervir quando sua mobilização
se revelar mais adequada ou eficaz do que a ação dos Estados-Membros.
143
Segundo esse autor português, a despeito dos princípios de atribuição, de subsidiariedade e de
proporcionalidade, a Constituição Europeia tem logrado estabelecer uma nova forma de aplicação de
normas definidas num espaço supracional, mas que ambém assum o caráter de direito constitucional
por força da sua aplicação no âmbito interno dos Estados-membros da Comunidade (CANOTILHO,
2012). Quando fala em Constituição Européia, este doutrinador entende que já existe uma ordem
constitucional para a União, mesmo que ainda não tenha sido formalizada em um documento,
derivada dos institutos formadores e de toda uma estrutura jurídica que tem possibilitado a efetividade
das normas comunitárias no interior de todos os Estados-membros.
165

Compelido a abdicar o ente estatal da sua soberania, torna-se cada vez mais

um co-participante no processo de transformação das bases de aplicação do Direito

para assegurar a máxima efetividade dos direitos humanos. Importa considerar as

repercussões desse movimento centrífugo do Direito para a ampla tutela e

efetividade dos direitos humanos no campo da tributação.

5.2 A SUPRACONSTITUCIONALIDADE NA PROTEÇÃO DO CIDADÃO


CONTRIBUINTE FRENTE À EXACERBAÇÃO DO PODER TRIBUTÁRIO

5.2.1 O exercício do poder de tributar e violação dos direitos humanos do


contribuinte: casos paradigmáticos

Impende considerar preliminarmente que o reconhecimento da relação

intrínseca entre direitos humanos e direitos do contribuinte é uma questão que ainda

não recebeu total atenção, e tem sido tratada de forma pouco contundente no

campo da judiciliazação desses direitos. Como lembra Ergec (2005, p. 5):

A penetração no Direito pelos direitos humanos não se fez sentir senão


progressivamente depois da Segunda Guerra Mundial, a favor de
instrumentos universais como o Pacto Internacional relativo aos direitos civis
e políticos e regionais, no topo dos quais figura a Convenção Européia dos
Direitos do Homem. O avanço se manifestou primeiramente no Direito Penal,
depois no Direito Civil, nos domínios onde a liberdade individual se expõe às
ingerências arbitrárias. Na época, ninguém sonhou que isso ocorresse no
Direito Tributário. O pagamento de impostos não corresponde a um dever
cívico de primeira ordem e o direito de estabelecer e cobrar impostos não
144
constitui uma prerrogativa elementar à idéia do poder público?

Tomando os direitos humanos como foco, e afastando-se da justificativa da

finalística tributária, ou em termos mais sutilmente empregados pelo Estado, do

144
Tradução livre do original: “La pénétration du droit par les droits de l’homme ne s’est fait sentir que
progressivement après la seconde guerre mondiale, à la faveur des instruments universels comme le
Pacte international relatif aux droits civils et politiques et régionaux au premier rang desquels figure la
Convention européenne des droits de l’homme. La percée s’est manifestée d’abord en droit penal,
puis em droit civil, dans les domaines où la liberte individuelle s’expose le plus aux ingérences
arbitraires. À l’époque, personne n’aurait songé au droit fiscal. Le paiement de l’impôt ne correspond-il
pas à um devoir civique de premier ordre et le droit d’établir et de collecter des impôts ne constitue-t-il
pas une prérogative consubstantielle à l’idée de puissance publique?”
166

propósito de realização do “interesse público”, identifica-se um campo extenso de

objeções à imposição fiscal.

Para isso é necessário considerar a tributação não como fim em si mesmo,

mas segundo a sua imbricação com o sistema de garantia e proteção aos direitos

humanos em sua conformação mais extensa, ou seja, levando em conta a

construção de um Direito supranacional e a aplicação da supraconstitucionalidade

para dar efetividade a tais direitos.

A supraconstitucionalidade permite substituir pela centralidade no indivíduo o

que, na objetividade do modelo jurídico tradicional, tem privilegiado as sistemáticas

tributárias de caráter pragmático e finalidade arrecadatória. Apesar de fundadas na

racionalidade e na legalidade, se esvaem em fumaça diante de um conjunto de

elementos axiológicos, intrínsecos ao sistema jurídico como um todo, que desvelam

o conflito entre dois eixos: a intenção ou busca da praticidade, e a preservação dos

direitos humanos intrínsecos ao indivíduo, o qual, além de contribuinte é,

primordialmente, um ser humano.

Engle (2012, p. 1) questiona a rigidez dos sistemas tributários e,

principalmente, o problema do não-reconhecimento judicial da inafastável

supremacia dos direitos humanos inclusive no campo da tributação.

Para esse autor, a posição recalcitrante dos juízes (embora fazendo alusão à

França), não deixa de ser aplicável ao nosso país, vislumbrando-se traços comuns

de uma tradição jurídica fundada na justificação de uma imprecisão no campo dos

direitos humanos, o que pode ser também interpretado como um apego à

objetividade jurídica, em face do aspecto axiológico imanente a esses direitos, e que

justifica o foco na finalística fiscal consoante seu caráter prático e imediato.

Nesse sentido, pode-se constatar


167

[...] um formalismo rígido e uma recusa sistemática de admitir inovações


jurídicas para garantir os direitos dos contribuintes. A nosso ver, a fonte
desse formalismo é a ambiguidade e ambivalência inerentes ao conceito de
direitos humanos. Esse formalismo nos parece ser a reposta prática da
Administração em face à incerteza teórica inerente à idéia dos direitos
humanos. A consequência desses dois fatos é que os direitos do homem
podem ter pouco peso para a proteção das pessoas. Todavia, a defesa dos
contribuintes pelos direitos humanos permanece possível. Mas nosso
estudo mostra que uma transformação real desses direitos potenciais se
mostra problemática – ao menos sem colocar em causa radicalmente os
145
fundamentos do sistema, como a soberania (não grifado no original).

No excerto destacado, observa-se a mesma idéia que norteia este trabalho,

ou seja, a soberania aparece como restrição à ampla satisfatividade dos direitos

humanos do contribuinte, justamente porque a ela se vincula o sistema jurídico

interno sob a égide da judicialização, a qual não ocorre de forma aberta, mas

segundo uma visão fechada do Direito interno e da sua relação exclusiva com as

normas constitucionais.

É possível avançar mais, e afirmar que, além da recalcitrância dos tribunais

em aceitar as normas internacionais como fundamento da efetividade dos direitos

humanos do contribuinte, adotando a relativização da soberania, também se

encontram óbices à plena satisfatividade dos direitos humanos do contribuinte no

âmbito do processo hermenêutico.

E a razão para isso é uma postura dúbia, situada entre a estrita preocupação

com o legalismo constitucional e uma interpretação pretoriana sujeita às ingerências

políticas, o que torna questionável a idéia de uma efetiva separação entre os

Poderes no Brasil. Nesse caso, cabe ressaltar que a separação dos poderes não

elimina a necessária interrelação entre eles, mas sem que a influência determinante

145
Tradução livre do original: “[...] un formalisme rigide et un refus systématique d'admettre des
innovations juridiques pour garantir les droits des contribuables. Selon nous, la source de ce
formalisme est l'ambiguïté et l'ambivalence inhérentes au concept des droits de l'homme. Ce
formalisme nous paraît être la réponse pratique de l'administration face à l'incertitude théorique
inhérente à l'idée des droits de l'homme. La conséquence de ces deux faits est que que les droits de
l'homme peuvent avoir peu de poids pour la protection des personnes. Néanmoins, la défense des
contribuables par les droits de l'homme reste toujours possible. Mais notre étude montre qu'une
transformation réelle de ces droits potentiels s'avère problématique - du moins sans une remise en
cause radicale des fondements du système, tel que la souveraineté.”
168

de um Poder se faça sentir além do que lhe é inerente nos termos constitucionais,

passando a adentrar no campo exclusivo de atuação dos demais, o que contraria o

necessário equilíbrio do modelo de tripartição.

O que se observa, todavia, é que são frequentes as decisões do Supremo

Tribunal Federal baseadas em critérios questionáveis à luz de uma ampla e

adequada interpretação da Constituição Federal, resultando em evidente

inobservância das regras elementares da hermenêutica constitucional.

A pretexto de viabilizar uma rápida solução do caso, a postura dos julgadores

acaba por subverter a lógica da necessária apreciação de todos os aspectos e

valores envolvidos, desconstruindo o próprio sentido da existência dessa instância

decisória última, que é a de perscrutar ao máximo a questão sob julgamento, e

assim oferecer a melhor solução possível.

Melhor possível não significa neste caso limitar-se a um mínimo admissível de

coerência com o sistema legal e o processo racional de sua interpretação, consoante

o permissível para a tarefa da hermenêutica constitucional, mas buscar o máximo

refinamento do processo intelectivo e analítico debruçando-se sobre o texto

constitucional, para dele extrair elementos suficientes e adequados à solução do

caso tendo em vista não somente a garantia das expectativas normativas, como

também a sua concretude por meio da decisão judicial.

As normas constitucionais não terão sentido, especialmente quando se fala

em direitos humanos, se não puderem ser materializadas em situações fáticas,

deixando de ser meras expectativas de direitos para se corporificarem na existência

dos cidadãos.146

146
Não se pode esquecer que as normas constitucionais são elaboradas pelo poder constituinte
derivado, mas o seu fulcro está na vontade do poder originário que consubstancia a própria idéia de
Constituição, estando este no povo.
169

Para isso é oportuno valer-se das idéias de Häberle (2002) e o seu

entendimento de que a interpretação da Constituição deve ser um processo

dinâmico e integrativo, no qual também é preciso “ouvir” a sociedade; ela é fonte

elementar, mas importante, de interpretação das normas constitucionais.

Por conseguinte, a Corte Suprema deve considerar todas as interpretações

possíveis, não somente aquelas emanadas dos órgãos jurisdicionais, como também

as oriundas do amplo espectro de atores do corpo social, embora não façam parte

do ente estatal, tais como a opinião pública, os estudiosos do Direito Constitucional,

e as entidades representativas de classe, entre outros.

Indo em direção contrária a esse avanço do pensamento constitucional

representado pela perspectiva häberliana acerca da necessidade de uma

interpretação plural da Constituição, o Supremo Tribunal Federal, em diversos

julgados sobre matérias tributárias, tem preterido o adensamento do processo

hermenêutico em favor da satisfatividade dos interesses estatais e da exação fiscal,

desconhecendo os direitos humanos dos contribuintes, em evidente afronta às

normas e aos princípios constitucionais, bem como aos valores a eles conexos.

Cai por terra assim a afirmação recorrente de que o Superior Tribunal é o

“baluarte” da Constituição, constatando-se que essa retórica assume um conteúdo

axiomático, no sentido de negar qualquer outra possibilidade de reconhecimento dos

direitos fora do âmbito da interpretação a cargo dos julgadores.

A teoria häberliana afirma que a ordem constitucional é um sistema aberto, no

qual o processo comunicativo permite intermediar e integrar idéias, fornecendo um

amplo material para a análise e a orientação do pensamento, rumo a uma síntese

que, abarcando as várias possibilidades hermenêuticas, resulta numa intepretação

muito mais alinhada com as situações concretas vivenciadas pelos jurisdicionados,


170

conferindo assim à Constituição o caráter de instrumento primordial de ligação entre

o Direito e a realidade.

Nesse sentido, o excessivo apego ao formalismo jurídico e à interpretação

estrita da norma dá lugar a uma atuação criativa dos julgadores, a qual não

desvirtua a força imanente da norma constitucional, apenas lhe confere maior

possibilidade de resposta às expectativas de direitos, com o acolhimento das

múltiplas opiniões, para delas construir uma resposta adequada à solução do

problema jurídico em causa.

Não basta desenvolver uma interpretação consistente lógica e legalmente,

primeiro porque nem sempre a norma é estritamente racional, e depois porque não é

suficiente que a motivação do julgador seja aceitável sob o ponto de vista da

racionalidade, pois não se pode deixar de levar em conta os valores envolvidos.

Nesse sentido, particularmente no campo tributário, além da influência política

nas decisões do Supremo Tribunal Federal, também se fazem presentes questões

relacionadas à forma como tem sido abordada a questão dos princípios e valores

para a formulação das decisões da Corte.

A constatação é que, quando se trata de questões tributárias, ainda há uma

firme recusa em admitir a aplicação dos princípios constitucionais como forma de

alcançar maior efetividade dos direitos dos contribuintes.

Conceitualmente, o princípio consiste em um elemento basilar, ordenador de

uma estrutura de pensamento, e no campo jurídico, de comportamento. Consoante a

exposição de Mello (2002, p. 808), representa um

[...] mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele,


disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-
lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e
inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalização do sistema
normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico.
171

Mais do que instrumento informativo, o princípio é dotado de força e eficácia

normativa, como observa Espíndola (2002, p. 60) ao comentar que

[...] existe uma unanimidade em se reconhecer aos princípios jurídicos o


status conceitual e positivo de norma de direito, de norma jurídica. Para este
núcleo de pensamento, os princípios têm positividade, vinculatividade, são
normas, obrigam, têm eficácia positiva e negativa sobre comportamentos
públicos ou privados bem como sobre a interpretação e a aplicação de
outras normas, como as regras e outros princípios derivados de
generalizações mais abstratas.

O caráter normativo dos princípios representa um retorno a sua valorização

como substrato necessário à eficácia e amplitude das normas, observando Joseph

Esser apud Bonavides (2000, p. 243) que, ainda que não tenham natureza e caráter

de lei, “[...] como ratio legis – prossegue o abalizado jurista – são, possivelmente ,

direito positivo, que pelos veículos interpretativos se exprimem, e assim se

transformam numa esfera mais concreta.”

Compreende-se nessa exposição o teor e alcance dos princípios na ordem

jurídica contemporânea, momento em que se tornam mais evidentes e necessárias

as relações entre a aplicação do direito em sentido amplo e a resposta a variadas e

complexas situações sociais.

É preciso levar em conta que os princípios em sua aplicação devem ser

vinculados a situações fáticas, mas levando-se em conta outros princípios. Alexy

(1993, p. 62) arrazoa sobre o tema:

El punto decisivo para la distinción entre reglas y principios es que los


principios son mandatos de optimización mientras que las reglas tienen el
carácter de mandatos definitivos. En tanto mandatos de optimiziación, los
principios son normas que ordenam que algo sea realizado en la mayor
media posible, de acuerdo con las posibilidades jurídicas y fácticas. Esto
significa que puden ser satisfechos en grados diferentes y que la medida
ordenada de su satisfacción depende no sólo de las posibilidades fácticas
jurídicas, que están determinadas no sólo por reglas sino también,
esencialmente, por los principios opuestos.

Larenz (1989) entende que os princípios, por fundamentarem a

interpretação e aplicação do direito, definem o sentido do ordenamento jurídico


172

em sua aplicabilidade, o que impende considerá-lo como espécie diretiva de

norma ou fundamento normativo, tendo nesse sentido uma função normativa

como as normas em sentido estrito.

Orientam os princípios a busca da regra que se pode considerar mais

apropriada para aplicação em um caso específico, embora os princípios em si

mesmos não sejam diretamente aplicados no sentido de substituir a norma para a

resolução de uma situação específica.

Habermas (2002), ao tratar da comunicação entre os sujeitos, apresenta a

razão comunicativa como via necessária para a superação da perspectiva

racionalista ao extremo dos iluministas, e, por outro lado, na negação absoluta da

racionalização nos termos postos por Nietzsche147, entre outros.

Assim, entende ser possível encontrar na comunicação elementos comuns

para uma efetiva aplicação dos princípios, superando o problema da relativização

dos valores que opera pela via de interpretações subjetivas e de níveis diferentes de

valoração do fato.

Esse pressuposto conduz à identificação de “consensos de fundo” como

elementos basilares comuns de entendimento, constituindo o que ele denomina de

“idéia de mundo da vida” (HABERMAS, 2002a, p. 83).

A solução desse filósofo aponta para a necessária confluência das razões

particulares, ínsitas em cada indivíduo, de maneira a se criar uma ponte por meio da

prática dialógica, o que permitirá superar as barreiras da relativização dos valores

que influencia mentes e comportamentos no mundo pós-moderno.

147
Filósofo alemão, crítico contumaz do racionalismo, do iluminismo e das idéias de Kant. Descreve o
‘imperativo categórico’ como uma forma de acorrentar o espírito humano, diluir a liberdade verdadeira
disfarçando-se em única via para sua efetividade.
173

A questão que se coloca nesse caso é quanto à resistência dos

julgadores com relação ao caráter normativo elementar dos princípios,

considerando-os como sendo irrelevantes juridicamente, denotando assim um

dogmatismo de caráter positivista.

Esse problema é comentado por Guimarães (2006) ao referir-se às

decisões do Supremo Tribunal Federal, remetendo também à posição do

doutrinador Canotilho (2011, p. 1.160): “[...] os princípios, por serem vagos e

indeterminados, carecem de mediações concretizadoras, enquanto as regras

são susceptíveis de aplicação directa [...]

Em direção oposta, o entendimento predominante tende a firmar a

primariedade dos princípios em sua força normativa, como necessário caminho para

que não se dissociem as normas do alcance necessário desejado para a

satisfatividade dos direitos, que de outro modo deixam de ser efetivamente

usufruídos para se tornarem meros objetos idealísticos.148

Nesse sentido, os princípios podem ser considerados não como expressão

apriorística do direito natural e como postulados de ordem meramente metafísica

enquanto conteúdos relacionados às aspirações humanas, mas instrumentos para

que a positivação do direito tenha real efetividade no vínculo com a realidade

humana, a qual não se restringe a questões de ordem fática, mas a anseios, a

necessidades imateriais indissociáveis do que se entende por pessoa humana.

Para Espíndola (2002, p. 34), os princípios devem ser considerados como

normas jurídicas “[...] vinculantes, dotados de efetiva juridicidade, como quaisquer

148
“Deve-se ter claro que a Constituição, como documento jurídico-político, está submersa em um
jogo de tensões e poderes, o que não pode significar como querem alguns, a sua transformação em
programa de governo, fragilizando-a como paradigma ético jurídico da sociedade e do poder, ao invés
de este se constitucionalizar, pondo em prática o conteúdo constitucional” (STRECK; MORAES, 2006,
p. 153).
174

outros preceitos encontráveis na ordem jurídica; consideram as normas de direito

como gênero, dos quais os princípios e as regras são espécies jurídicas.”

Em decorrência, se depreende que os princípios passam a ser vistos como

dotados de imperatividade. Não se trata de negar a força da norma positiva, como

expressão imediata e concreta de uma vontade social transposta pela via

legislativa na forma de lei escrita que, por força da estrutura normativa na qual se

inscreve, dotada de legitimidade e conforme as exigências da sua validade

jurídica, não pode deixar de ser observada e aplicada.

Todavia, os princípios não podem ser considerados apenas como

referências secundárias ou sem caráter normativo, por encerrarem valores. Não

somente a norma jurídica em si de alguma forma traz em seu bojo referência a

um mundo de valores, como os princípios não podem ser dissociados da vontade

coletiva, ainda que representam valores em sua mais alta abstração, sendo mais

difusos quanto ao conteúdo e genéricos quanto aos casos em que podem ser

aplicados.

Consoante a explanação de Rothenburg (2003, p. 18), os princípios são

dotados de “um significado determinado, passível de um satisfatório grau de

concretização [...]”.

Seus efeitos têm caráter restritivo para a aplicação das regras, e também

fixam conteúdos específicos para as normas. Ao se debruçar sobre a questão,

Clève (2006, p. 33) afirma:

A dimensão objetiva também vincula o Judiciário para reclamar uma


hermenêutica respeitosa dos direitos fundamentais e das normas
constitucionais, com o manejo daquilo que se convencionou chamar de
filtragem constitucional, ou seja, a releitura de todo o direito
infraconstitucional à luz dos preceitos constitucionais, designadamente
dos direitos, princípios e objetivos fundamentais (grifo nosso).
175

A dimensão de peso (dimension of weight) concebida por Dworkin (2007) é

apontada por ele como o núcleo da diferenciação entre princípios e regras. Estas, ao

contrário dos primeiros149, em caso de conflito entre si, não podem ser ponderadas,

pois só existe uma solução: ou a regra é válida, e aplicável, ou é inválida não

cabendo sua aplicação (é o que ele chama de modo do tudo ou nada).

Assim, com relação ao conflito entre princípios, Dworkin (2007) aponta como

solução a ponderação entre eles, entendendo que cada um tem peso diferenciado.

Em casos difíceis, deve-se dimensionar o peso ou importância dos princípios

envolvidos, para escolher o que tem mais peso no caso em questão150.

Embora em geral admita-se como relevante essa ponderação da teoria de

Dworkin, pois fundamenta o que chamou de teoria da integridade do Direito, uma

alternativa ao dogmatismo positivista, não se pode deixar de considerar que existem

ressalvas à idéia da possibilidade de uma decisão adstrita a um valor supremo,

ínsito nos princípios, que por si só é suficiente para dar bom termo a cada caso

concreto.

Essa crítica consubstancia o entendimento da carga de subjetividade

envolvida na decisão, no sentido de que toda decisão tem sempre um substrato

ideológico que impregna a formação, as experiências, o modo de pensar do julgar,

que não está isolado no mundo, mas vivendo nele. Conseqüentemente a sua

decisão nunca pode subtrair-se a isso.

149
Conforme a idéia da concordância, os princípios não se sobrepõem hierarquicamente: "Na
hipótese de colisão entre bens constitucionalmente protegidos, o intérprete deverá fazer a redução
proporcional do âmbito de aplicação de cada um deles, de maneira que a afirmação de um não
implique o sacrifício total do outro" (NOVELINO, 2008, p. 78).
150
A atividade “de sopesamento de regras ocorre, com certa freqüência, no sistema common law, na
medida em que os precedentes, embora não sejam nem autodefiníveis, tampouco autoaplicavéis,
também possuem um elemento descritivo, que somente é superado mediante a ponderação de
razões e fins” (SOARES, 2008, p.37).
176

Nesse sentido, afirma Azevêdo (2009) que a decisão judicial nunca é isenta

ideologicamente, especialmente porque o juiz, como parte do sistema jurídico, está

orientado para a construção de dogmas essenciais à sua manutenção.

O autor ampara-se na teoria dos sistemas de Lühmann (2005), para daí

extrair fundamentos sobre a interrelação entre o direito e outros subsistemas, de

onde não se pode pretender a construção de uma isenção absoluta, concluindo-se

que existe sempre a influência ideológica de todo um conjunto de determinações às

quais o Direito, e seus aplicadores, não podem subtrair-se em razão da

permeabilidade entre os subsistemas nos quais estão inseridos.

Impende considerar também que a pretensão da total neutralidade (que não

se confunde com imparcialidade do juiz) seria, nesse caso, voltar ao dogma

kelseniano da pretendida cientificidade pura do Direito, que levou à busca de

alternativas para a superação desse entendimento juspositivista.

Todavia, sob o ponto de vista da aplicação dos princípios, nos termos

propostos por Dworkin (2007), a operacionalidade do Direito reside em um constante

processo reconstrutivo de si mesmo, o que significa não somente aprimoramento da

produção legislativa, mas, igualmente, da atuação do Judiciário, como instância

essencial à passagem da norma abstratamente considerada para a regulação

efetiva das situações concretas em que se faz necessária a tutela dos direitos de

cada um.

As questões em comento, sobre o Direito em permanente transformação e o

papel dos juízes, têm direta relação com a aceitação da supraconstitucionalidade

como um inovador caminho para a maior satisfatividade dos direitos humanos, e

também, em sentido oposto, com as decisões do Supremo Tribunal Federal, o qual,

mesmo na sua condição de intérprete da Constituição, não tem assegurado a


177

efetividade desses direitos para os contribuintes, justamente por manter um

posicionamento conservador na seara das decisões sobre matérias envolvendo

interesses do Fisco e dos contribuintes.

Interessante reflexão sobre a matéria é feita por Engle (2012, p. 1),

comentando sobre a resistência dos julgadores em se apegar às normas e adotar

uma interpretação restritiva em desfavor dos contribuintes:151

[...] isso pode ser criticado como sendo um formalismo sistemático e cego. A
limitação das proteções dos contribuintes tem uma justificação prática – a
diversidade de fontes dos direitos [...]. Mas, pode-se avançar que essa
recusa sistemática de considerar as interpretações inovadoras se parece
com uma perspectiva distorcida. A recusa da proteção dos contribuintes
pelos juízes não é o resultado de um poder diminuído – e não é produto dos
mecanismos jurídicos. A não-realização dos direitos nos contenciosos
fiscais é o resultado de uma escolha voluntária; em efeito, em decorrência
de um problema prático – o fato que todo contribuinte procura se defender –
os juízes impõem regras destinadas a favorecer a Administração.

Todavia, não é admissível que as decisões judiciais sejam manifestas apenas

com base na preocupação com os aspectos formais, em uma interpretação estrita da

norma. Os princípios constitucionais precisam ser aplicados de modo amplo no

campo das relações tributárias, em razão do pressuposto da imanência do sujeito,

indissociada da figura do contribuinte. Não se trata aqui de ficção jurídica, mas de

consubstanciação da pessoa humana em relação específica, na esfera dos direitos e

obrigações frente ao Estado e vice-versa.

De onde se conclui que a admissibilidade da força normativa dos princípios

constitucionais em geral, deve ser acompanhada de igual incidência no campo da

regulação das relações entre Estado e contribuintes.

151
Tradução livre do original: “Néanmoins, ceci peut être critiqué comme étant un formalisme
systématique et aveugle. La limitation des protections des contribuables a une justification pratique -
la multitude des sources des droits [...]. Mais, on pourrait avancer que ce refus systématique de
considérer des interprétations novatrices s'assimile à un aveuglement. Le refus de la protection des
contribuables par les juges n'est pas le résultat d'un manque de pouvoir - et n'est pas issu des
mécanismes juridiques. La non-réalisation des droits dans les contentieux fiscaux est le résultat d'un
choix volontaire; en effet, suite à un problème pratique - le fait que tout contribuable cherche à se
défendre - les juges imposent des règles destinées à favoriser l'administration.”
178

A força normativa não é somente dos princípios expressos na Constituição,

mas de outros, implícitos, que também podem ser extraídos do caráter substancial

do direito para além da positivação e do imediato pressuposto de sua aplicação a

partir da norma constitucional.

É impensável reduzir a força normativa dos princípios tributários à

exclusividade daqueles que podem ser inferidos de maneira imediata do texto

constitucional, tais como os princípios da legalidade152, da igualdade153 e da

capacidade tributária.154

É necessário adentrar mais profundamente na dimensão axiológica dos

valores humanos, para que se possa dar maior efetividade aos direitos dos

contribuintes, entendidos em sua condição de seres humanos, e não de meros

sujeitos-parte na relação tributária.

Traz especial contribuição para este raciocínio a teoria tridimensional do

Direito, de Miguel Reale (1994, p. 119): “[...] o Direito é uma integração normativa de

152
O princípio da legalidade está expresso nos artigos 5º, inciso II, da Constituição Federal de 1988:
“ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei”, e 150,
inciso I, que dispõe a vedação de “exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça.” Esses
dispositivos definem o chamado princípio da reserva absoluta da lei formal. O princípio da legalidade
está relacionado ao princípio da anterioridade, como se depreende do disposto no artigo 150, inciso
III, alínea b, da Constituição Federal, determina que a cobrança de um tributo só pode ocorrer no
exercício seguinte ao da publicação da lei que o instituiu ou aumentou. A mesma atenção foi
dispensada no artigo 150, inciso III, alínea a, quando a Constituição dispõe que a cobrança de
tributos não pode ocorrer com relação a fatos geradores supervenientes à vigência da lei que os
instituiu ou aumentou. Existem exceções à irretroatividade, porém, somente em casos previstos na lei
e quando for beneficiário o contribuinte.
153
Artigo 5º da Constituição Federal: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza [...] II – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações [...]”).Igualdade esta transposta
para a relação tributária entre Estado e indivíduos na sua condição de sujeitos contribuintes, sendo
vedada a discriminação ou qualquer status conferido a eles que implique em diferenciação de
tratamento, como se depreende do artigo 150 da Constituição Federal de 1988: “Sem prejuízo de outras
garantias asseguradas aos contribuintes, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos
Municípios: II- instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação
equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida,
independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos [...]”.
154
A capacidade tributária tem relação com a igualdade. Uckmar (1999, p. 67-68) discorre sobre a
relação entre a igualdade como direito genérico nas Constituições, e sua imanência na relação
tributária: em sentido jurídico, “como paridade de posição, com exclusão de qualquer privilégio [...]”
para que “[...] os contribuintes que se encontrem em idênticas situações sejam submetidos a idêntico
regime fiscal.”; na esfera econômica, definindo o “[...] dever de contribuir aos encargos públicos em
igual medida, entendida em termos de sacrifício, isto é, [...] em relação à capacidade contributiva dos
indivíduos”.
179

fatos segundo valores [...].” Ainda segundo essa fonte: “Se o ser não passa para o

dever ser, o inverso é verdadeiro: os valores se realizam, mesmo que relativamente,

e essa realização é que tem significado para o homem.”

A força normativa dos princípios tributários emerge justamente da

necessidade desse encontro entre os valores e a sua transposição fática, na

garantia de direitos elementares a todo cidadão enquanto ser humano. Assim

ocorre, por exemplo, na limitação do poder de tributar, como se verifica no

ordenamento norte-americano, distinguindo-o do poder de polícia, com base em

propósitos diferenciados: a fiscalidade, que visa o financiamento das atividades

estatais, e a extrafiscalidade, voltada para a obtenção de recursos indispensáveis à

satisfação de interesses coletivos relevantes.

A despeito dos fins da tributação, é certo que a finalística arrecadatória não

pode definir uma relação impositiva entre o Estado e os contribuintes. Para Machado

(2010, p. 33), a relação tributária, embora não seja estritamente uma relação de

poder, mas relação jurídica, firmou-se em torno do fortalecimento da posição

soberana do Estado, o que define o sentido que ainda hoje é conferido às decisões

em face do contribuinte:

Sua origem remota foi a imposição do vencedor sobre o vencido. Uma


relação de escravidão, portanto. E essa origem espúria, infelizmente, às
vezes ainda se mostra presente em nossos dias, nas práticas arbitrárias
de autoridades da Administração Tributária. Autoridades ainda
desprovidas da consciência de que nas comunidades civilizadas a
relação tributária é relação jurídica, e que muitas vezes ainda contam
com o apoio de falsos juristas, que usam o conhecimento e a
inteligência, infelizmente, em defesa do autoritarismo.

Com referência a esse cenário, Garcia (2004) fala numa “perversão tributária”,

termo que define bem sua posição quanto à afronta indiscutível do Estado no

exercício do seu poder de tributar o qual, mesmo como qualidade da sua soberania,

não pode nunca exceder o aceitável e o justificável, não somente nos termos da lei
180

posta, mas também diante dos princípios e dos valores a eles adstritos, num campo

supramaterial ou metafísico, mas não menos concreto quando se trata de considerar

situações fáticas, como as que envolvem o cidadão, na condição de contribuinte e,

sobretudo, de ser humano. Como bem se posiciona a referida autora:

Uma das áreas em que, por excelência, exsurge a perversão da


autoridade estatal é na questão tributária e, nesse campo, a
Constituição de 1988 veio concretizar a possibilidade do legislador
considerar a condição pessoal do contribuinte, prevenindo o abuso do
poder: a capacidade contributiva, estabelecida no § 1º do art. 145,
quando inaugura o sistema tributário nacional (GARCIA, 2004, p. 217).

A condição pessoal referida por Garcia (2004) não significa apenas o

sujeito enquanto contribuinte, indivíduo-parte na relação tributária, mas como

pessoa humana. Se é certo que o Estado tem suas competências fixadas nas

normas constitucionais, de onde exsurge o poder de tributar como indiscutível

força vinculante de sujeição dos cidadãos à obrigação tributária, não se pode

negar que os seus atos, nesse amplo campo da relação que nasce dos tributos,

não podem ser dissociados de um sentido ou conteúdo valorativo intrínseco aos

princípios tributários, sejam eles expressos ou não.

Inobstante essa visão estendida dos direitos do contribuinte, na prática se

observa que até mesmo o Supremo Tribunal Federal tem reiteradas vezes

desconsiderado a necessária efetivação dos princípios na decisão dos casos

sujeitos à excelsa Corte155.

Em interessante estudo sobre o tema, com base na jurisprudência do STF,

envolvendo setenta acórdãos nos quais é citado ou argüido o princípio da capacidade

contributiva, Pessôa (2009), constatou que existe uma grande distância entre

155
Em suas reflexões sobre a aplicação ampla dos princípios tributários, observa Torres (2009, p.
167) que “[...] temos uma tradição positivista no País de só reconhecer a existência dos princípios
quando eles aparecem formalmente no texto básico”.
181

reconhecer o princípio e a sua efetiva aplicação na garantia dos direitos dos

contribuintes.

Analisando os casos julgados nesse Tribunal, o autor acima afirma que,

enquanto os contribuintes fazem alusão ao princípio da capacidade contributiva

em sua defesa,

Os ministros, ao contrário, em sua maioria, rejeitam a aplicação do


princípio. Por isso, os acórdãos em que isso ocorre foram classificados
em um grupo autônomo, composto de acórdãos em que o princípio da
capacidade contributiva foi utilizado não pelos ministros do STF, mas
pelos contribuintes (PESSÔA, 2009, p. 98). (grifo nosso)

Prosseguindo, o autor afirma que as decisões do STF não deixam margem

de dúvida para uma tendência de não efetivação do princípio da capacidade

contributiva, e nos casos em que ocorre, é acolhido em favor do interesse do ente

estatal tributante:

Algumas poucas exceções em que o princípio foi efetivamente aplicado na


defesa do interesse do contribuinte podem ser encontradas nos votos
vencidos do ministro Ilmar Galvão, segundo o qual não se justifica um
tributo sobre movimentações financeiras, por elas não exprimirem nenhuma
manifestação de capacidade contributiva, e no voto vencido do ministro
Marco Aurélio, de acordo com o qual a inclusão do tributo, somado ao preço
para determinação da base de cálculo do ICMS, violaria o princípio da
capacidade contributiva. Na grande maioria das vezes em que foi utilizado
pelos ministros do STF, no entanto, o princípio da capacidade contributiva
foi utilizado na defesa do interesse do fisco (PESSÔA, 2009, p. 104).

Evidente, portanto, que ainda há um extenso caminho a ser trilhado em

direção à integral aplicação dos princípios tributários, e por extensão de todos os

demais, explícitos ou implícitos. A acolhida da idéia da força normativa desses

princípios não tem se materializado, no sentido da passagem do plano dos ideais

para a resposta jurídica mais adequada à efetividade do direito dos contribuintes.

Ainda que os ideais possam ser refutados como inacessíveis ou

impraticáveis, o caminhar do Direito na busca da justiça não pode ser visto como

idealismo vazio e inconseqüente.


182

Se o dogmatismo positivista deve ser superado, isso não significa adotar a

relativização do real, mas buscar no encontro entre valores e normas o caminho

necessário para alcançar a maior eficácia do Direito em resposta aos anseios da

sociedade por um mundo melhor, objetivo ao qual não pode estar alheio o Estado na

condição de ente tributante.

Não basta a norma positiva. Não cabe a interpretação judiciária restrita ao

que pode ser diretamente dela extraído. É preciso adentrar no campo axiológico, ir

de encontro aos valores. Superar a visão restritiva destes é indispensável para que a

idéia da força normativa dos princípios não acabe sendo retórica, a favor não da

efetividade do direito, mas da sua negação.

À luz dessas reflexões, pode-se questionar a interpretação dos julgadores,

como no grande número de julgados do STF analisados por Pessôa (2009) e aqui

comentados. Embora manifestem uma tendência quase uniforme com relação à

aplicação do princípio da capacidade contributiva por esse Tribunal, isso não

significa que a interpretação geral é acertada.

Pelo contrário, tomando como referência as palavras de Maximiliano (1990, p.

183): “É certo que o julgado se torna fator de jurisprudência somente quanto aos

pontos questionados e decididos, não quanto ao raciocínio, exemplificações e

referências".

Surge aqui a indagação: será que o raciocínio e as referências utilizadas

para justificar a não-aplicação do princípio da capacidade contributiva, ou para

utilizá-la em desfavor do contribuinte, podem ser validados à luz da força

normativa dos princípios aqui abordada?

E mais: será que essa tendência manifesta pelos excelsos julgadores do

STF não retrata de forma explícita um ranço ideológico, ou para sintetizar, o


183

resquício juspositivista que continua a permear a visão restritiva dos direitos dos

contribuintes ao denegar aos princípios a sua força imanente, situada num plano

metafísico e, portanto, não positivo?

Cabe lembrar que nenhuma interpretação judicial pode ser considerada

completa em si mesma, ainda que busque amparo na jurisprudência e no

conjunto normativo em vigor, uma vez que, como observa o eminente jurista

antes citado "A jurisprudência auxilia o trabalho do intérprete; mas não o substitui,

nem dispensa. Tem valor; porém relativo" (MAXIMILIANO, 1990, p. 183).

Essas reflexões permitem afirmar que a sistemática da hermenêutica

constitucional não tem sido consistente para contemplar adequadamente as

questões pertinentes à ampla satisfatividade dos direitos humanos dos

contribuintes.

Além da recusa de um alargamento das bases interpretativas no campo

das decisões judiciais em matéria tributária, tomando por referência os princípios

e os valores a eles adstritos, igualmente tem sido obstáculo à plena

concretização desses direitos o caráter político das decisões do Supremo

Tribunal Federal.

Sobre a questão, oportuno mencionar algumas matérias cujas decisões

deixam evidente o caráter contraditório da posição do Supremo Tribunal Federal,

que se arvora na condição de garantidor do cumprimento da Constituição, todavia

estabelece uma via dupla na qual, por vezes, em razão de ingerências políticas

oriundas de outros poderes, deixa de lado a preocupação com o adensamento do

processo hermenêutico para proceder segundo o fim precípuo de suas funções

jurisdicionais, ou seja, a busca da justiça.


184

Se assim não procede, não há porque não buscar no Direito Internacional a

proteção aos direitos não reconhecidos e a sua satisfatividade. Sobre a questão,

um trecho extraído do voto do juiz Cançado Trindade na decisão da Corte

Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), com sede na Costa Rica, no caso

“Cinco Pensionistas versus Peru” (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS

HUMANOS, 2012, p. 1):

De la presente Sentencia de la Corte se desprende el amplio alcance del


derecho de acceso a la justicia, en los planos tanto nacional como
internacional. Tal derecho no se reduce al acceso formal, stricto sensu, a
la instancia judicial; el derecho de acceso a la justicia, que se encuentra
implícito en diversas disposiciones de la Convención Americana (y de
otros tratados de derechos humanos) y que permea el derecho interno
de los Estados Partes, significa, lato sensu, el derecho a obtener justicia.
Dotado de contenido jurídico propio, configúrase como un derecho
autónomo a la prestación jurisdiccional, o sea, a la propia realización de
la justicia.

Na decisão está explícito que a finalística envolvendo os direitos humanos

não diz respeito ao aspecto formal das questões a eles relacionadas, mas ao

conteúdo material, que remete à busca da realização da justiça, e nesse sentido

a busca da efetividade desses direitos no plano internacional é o caminho natural

e inquestionável quando o cidadão vê-se impossibilitado de ser reconhecido o

seu direito pelas Cortes nacionais.

A satisfatividade dos direitos humanos não está sujeita a restrições, não

sendo admissível o esgotamento das possibilidades da sua concretização no âmbito

interno dos Estados, sob pena de privilegiar arcabouços jurídicos transformados em

baluartes da defesa de uma visão do Direito ultrapassada, incompatível com a

natureza e o significado desses direitos para o indivíduo e a humanidade da qual faz

parte, que não podem ficar à mercê de interpretações fechadas.

Todavia, vários julgados do Supremo Tribunal Federal sobre matéria

tributária carregam um viés político intrínseco. Por meio de discursos de


185

fundamentação, conferem às decisões um caráter hermenêutico tendencioso,

uma vez que, sob o manto de um verniz jurídico, escondem determinações de

ordem política decorrentes do enredamento entre o Judiciário e os demais

poderes, mormente o Executivo. O resultado é evidente desconsideração ao

contribuinte e aos seus direitos, como cidadão e como pessoa.

Esse é o caso da Emenda Constitucional n° 39/02, a qual, por força do

artigo 149-A da Constituição Federal, estabeleceu que “Os Municípios e o Distrito

Federal poderão instituir contribuições, na forma das respectivas leis, para o

custeio do serviço de iluminação pública, observado o disposto no art. 150 I e II”.

O referido dispositivo pode ser considerado um artifício pelos quais os

legisladores buscaram dar à taxa de iluminação pública um caráter constitucional,

alterando sua denominação para “contribuição”, uma vez que, como taxa, era

inconcebível a sua cobrança dado o caráter da determinação constitucional

contida no artigo 145 e inciso II, determinando que os Municípios, como os

demais entes federativos, somente pode instituir taxas para exercer o seu poder

de polícia ou quando oferecerem serviços públicos divisíveis e específicos que

poderão ser utilizados pelos contribuintes.

Ocorre que o serviço de iluminação pública não corresponde a essa

tipificação, não sendo nem divisível, e tampouco específico. A divisibilidade e a

especificidade dos serviços são definidas nos termos do artigo 79, incisos I e II,

do Código Tributário Nacional: são específicos aqueles que podem ser

distinguidos em razão da sua utilidade específica e atendimento a necessidades

públicas autônomas e diferenciadas de outras; e divisíveis se podem ser

utilizados por cada usuário individualmente. O que não é o caso da iluminação

pública, atendendo ao conjunto de cidadãos, e não a um ou alguns isoladamente.


186

Por conseguinte, a natureza uti universi do serviço não se coaduna com os

requisitos constitucionais para a instituição da taxa de iluminação pública cobrada

pelos municípios e o Distrito Federal, gerando-se aí uma afronta aos direitos dos

contribuintes sob o ponto de vista constitucional.

Todavia, para atender aos interesses dos erários municipais, a solução dos

legisladores no Congresso Nacional foi instituir a contribuição para o custeio do

serviço de iluminação pública. A pretexto de tornar constitucional o que não era, e

nem poderia ser, foi elaborada a Emenda 39/2002, inserindo o dispositivo do

artigo 149-A na Carta Constitucional.

O Supremo Tribunal Federal, que já havia declarado anteriormente, em

diversos julgados, a inconstitucionalidade da taxa de iluminação156, posicionando-

se sobre a questão entendeu ser constitucional a contribuição para o custeio dos

serviços de iluminação pública, assim se manifestando:

EMENTA: CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. RE INTERPOSTO CONTRA


DECISÃO PROFERIDA EM AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE ESTADUAL. CONTRIBUIÇÃO PARA O
CUSTEIO DO SERVIÇO DE ILUMINAÇÃO PÚBLICA - COSIP. ART. 149-A
DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. LEI COMPLEMENTAR 7/2002, DO
MUNICÍPIO DE SÃO JOSÉ, SANTA CATARINA. COBRANÇA REALIZADA
NA FATURA DE ENERGIA ELÉTRICA. UNIVERSO DE CONTRIBUINTES
QUE NÃO COINCIDE COM O DE BENEFICIÁRIOS DO SERVIÇO. BASE
DE CÁLCULO QUE LEVA EM CONSIDERAÇÃO O CUSTO DA
ILUMINAÇÃO PÚBLICA E O CONSUMO DE ENERGIA.
PROGRESSIVIDADE DA ALÍQUOTA QUE EXPRESSA O RATEIO DAS
DESPESAS INCORRIDAS PELO MUNICÍPIO. OFENSA AOS PRINCÍPIOS
DA ISONOMIA E DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA. INOCORRÊNCIA.
EXAÇÃO QUE RESPEITA OS PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E
PROPORCIONALIDADE. RECURSO EXTRAORDINÁRIO IMPROVIDO. I -

A título de exemplo: EMENTA: TRIBUTÁRIO. ESTADO DO RIO DE JANEIRO. IPTU. AUMENTO


156

DA RESPECTIVA BASE DE CÁLCULO, MEDIANTE APLICAÇAO DE ÍNDICES GENÉRICOS DE


VALORIZAÇAO, POR LOGRADOUROS, DITADOS POR ATO NORMATIVO EDITADO NO MESMO
ANO DO LANÇAMENTO. TAXA DE ILUMINAÇÃO PÚBLICA. SERVIÇO PÚBLICO QUE NÃO SE
REVESTE DAS CARACTERÍSTICAS DE ESPECIFICIDADE E DIVISIBILIDADE. Somente por via de
lei, no sentido formal, publicada no exercício financeiro anterior, é permitido aumentar tributo, como
tal havendo de ser considerada a iniciativa de modificar a base de cálculo do IPTU, por meio de
aplicação de tabelas genéricas de valorização de imóveis, relativamente a cada logradouro, que torna
o tributo mais oneroso. Caso em que as novas regras determinantes da majoração da base de cálculo
não poderiam ser aplicadas no mesmo exercício em que foram publicadas, sem ofensa ao princípio
da anterioridade. No que concerne à taxa de iluminação pública, é de considerar-se que se trata de
serviço público insuscetível de ser custeado senão por via do produto dos impostos gerais. Recurso
não conhecido (RE nº. 234.605/RJ. Rel. Min. Ilmar Galvão, julgado em 08 ago. 2000).
187

Lei que restringe os contribuintes da COSIP aos consumidores de energia


elétrica do município não ofende o princípio da isonomia, ante a
impossibilidade de se identificar e tributar todos os beneficiários do serviço
de iluminação pública. II - A progressividade da alíquota, que resulta do
rateio do custo da iluminação pública entre os consumidores de energia
elétrica, não afronta o princípio da capacidade contributiva. III - Tributo de
caráter sui generis, que não se confunde com um imposto, porque sua
receita se destina a finalidade específica, nem com uma taxa, por não exigir
a contraprestação individualizada de um serviço ao contribuinte. IV - Exação
que, ademais, se amolda aos princípios da razoabilidade e da
proporcionalidade. V - Recurso extraordinário conhecido e improvido.
(RE 573.675, Relator: Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno,
julgado em 25/03/2009).

O legislador constituinte derivado agiu em conformidade com as suas

atribuições, uma vez que procedeu à correção legislativa utilizando a Emenda

Constitucional, instrumento adequado para assegurar a retificação de disposições

anteriores, compatível com o pressuposto da separação dos poderes, que é o

necessário equilíbrio entre eles, sendo admissível nesse caso um

[...] radical repúdio à interpretação judicial, pela edição de norma


intencionalmente contrastante com a jurisprudência e na retificação da
norma anterior, que, por ambigüidade ou falta de clareza, tenha levado o
Judiciário a adotar interpretação incompatível com os pressupostos
doutrinários da matéria (TORRES, 1993, p. 12).

Todavia, a correção legislativa desviou-se de seus fins quando criou uma

espécie tributária apenas para responder aos desígnios arrecadatórios dos

municípios e do Distrito Federal, tendo assim um sentido e significado plenamente

questionáveis, principalmente se for considerado que a finalística era o pragmatismo

fiscal, sem qualquer consideração pelo contribuinte que deveria arcar com o ônus de

mais uma espécie tributária.

Cabe indagar qual seria o fim ensejador da utilização da emenda

constitucional, enquanto instrumento adequado à correção legislativa, no processo

de ajustamento da cobrança dos serviços de iluminação pública às exigências da

legalidade e superação da inconstitucionalidade da taxa de iluminação pública?


188

A resposta é que, embora constitua uma atividade compatível com as

atribuições dos legisladores constitucionais derivados, é possível vislumbrar uma

distorção finalística no emprego da correção legislativa, em função da prioridade

conferida a certos objetivos, neste caso vinculados ao propósito arrecadatório, sem

ter sido embasada numa análise mais profunda dos fatos, necessária para atender

tanto às exigências constitucionais, como aos princípios e valores que

consubstanciam os direitos humanos na tributação.

Isso é compreensível, levando em conta que foi empregado um raciocínio

esquemático, segundo o qual a arrecadação pretendida pelos municípios e o Distrito

Federal estaria relacionada ao interesse público e, portanto, era necessário assegurar-

lhes os recursos indispensáveis à prestação dos serviços de iluminação pública.

Com base nessa perspectiva reducionista sobre a matéria tratada, assegurou-

se a aprovação da referida emenda constitucional, e com ela a instrumentalização

do Fisco para alcançar o propósito da exação sem óbices.

Porém, o termo “interesse público” encerra generalidade, conduzindo a uma

visão indistinta do sujeito, que se confunde com o todo, o coletivo. É condição típica

do mundo pós-moderno, onde, como coloca Derzi (2010), a generalização e o

raciocínio abrangente desconsideram o indivíduo, para referir-se a um conjunto

impreciso de pessoas. Isso permite construir um sistema de tributação eficaz, sob o

ponto de vista da obtenção de recursos do modo mais rápido e menos oneroso,

perdendo-se, todavia, a perspectiva das situações individuais envolvidas e dos

direitos de cada contribuinte segundo a sua condição peculiar e diferenciada.

Assim, sob o pretexto de se atender às necessidades de recursos da

Administração Pública, os legisladores instituíram a referida contribuição utilizando-

se da correção legislativa.
189

Porém, o que a Emenda Constitucional 39/2002 estabeleceu foi uma mera

mudança de designação e, portanto, não afastou o vício imanente à faculdade

ensejada pelos municípios e o Distrito Federal de estabelecer um novo mecanismo

arrecadatório que encerrava os mesmos vícios da taxa anteriormente instituída, no

que se refere à impossibilidade de atribuir o fato gerador a um contribuinte

específico. Essa questão é tratada pelo artigo 4º do Código Tributário Nacional:

A natureza jurídica específica do tributo é determinada pelo fato gerador da


respectiva obrigação, sendo irrelevantes para qualificá-la: I - a
denominação e demais características formais adotadas pela lei; II - a
destinação legal do produto da sua arrecadação. (não grifado no original)

Martins (2003, p. 64) aponta as mesmas objeções ao observar que a

referida contribuição é

[...] pura e simplesmente, tributo destinado a cobrir prestação de serviço,


nem se furtando o desajeitado constituinte a reconhecer que sua cobrança
‘é para o custeio de serviço de iluminação pública’. O pouco versado
legislador supremo em teoria ou doutrina constitucional – e, possivelmente,
desconhecedor das decisões do pretório Excelso sobre o conteúdo dos
vocábulos utilizados na elaboração legislativa – não percebeu que chamar
de ‘contribuição’ uma ‘taxa’, isto é, uma contraprestação a um serviço
público, não transforma a taxa em contribuição, visto que a natureza do
tributo é dada por seu perfil e não por sua denominação.

Essas considerações levam a concluir que a atividade legislativa dos

constituintes derivados constituiu uma ilegalidade eficaz, abrindo uma nova porta

para que os municípios e o Distrito Federal pudessem exercer o seu poder

arrecadatório de forma mais incisiva, sem levar em conta os direitos do contribuinte

que estariam sendo atingidos pela medida.

Ficou assim o contribuinte aviltado em seu direito fundamental de não ter

agravada sua condição econômica, pois foi criada uma exação à revelia dos

preceitos constitucionais que vedam a instituição de tributos levando em conta

unicamente os desígnios do Fisco.


190

Nesse sentido, remete-se às reflexões de Machado (1993, p. 447-448), ao

comentar que uma Emenda Constitucional não tem o poder de anular ou reduzir a

força normativa das limitações constitucionais ao poder de tributar, as quais visam

justamente preservar os direitos do contribuinte frente ao Estado por meio da ampla

tutela e assim possibilitar a sua satisfatividade.

A Carta Constitucional veda o confisco, porém ao gravar alguns contribuintes,

os consumidores de energia elétrica, escolhidos para arcar com o ônus do

pagamento da referida contribuição, conhecendo-se os altos valores das tarifas de

energia elétrica que se impõem à população usuária, é inquestionável que a medida

também configura exacerbação da imposição fiscal.

Cabe citar nesse sentido o entendimento de Martins (1998, p. 125-126) sobre

os tênues limites entre exação e confisco tributário:

Não é fácil definir o que seja confisco, entendendo eu que sempre que a
tributação agregada retire a capacidade de o contribuinte se sustentar e se
desenvolver (ganhos para suas necessidades essenciais e ganhos a mais do
que estas necessidades para reinvestir ou se desenvolver), estaremos diante
do confisco.

Apesar disso, o Supremo Tribunal Federal, com a decisão proferida no

Recurso Extraordinário 573.675-0, nada mais fez do que afirmar a

constitucionalidade da referida Emenda por decisão quase unânime, sobressaindo o

entendimento de que a correção legislativa em questão não feria cláusula pétrea,

além de afirmar o Ministro Gilmar Mendes (BRASIL, 2009) que era costumeiro o

recurso da Emenda Constitucional para tratar de matérias tributárias anteriormente

declaradas inconstitucionais, raciocínio questionável, pois essa “tradição” por si só

não assegura que o ato normativo do Legislativo adquira status de norma

constitucionalmente válida.
191

Deve-se considerar ainda, que uma emenda constitucional pode ser

declarada inconstitucional. No caso em tela, é possível vislumbrar vício de

inconstitucionalidade formal, uma vez que não foram cumpridos os requisitos da lei

para a tramitação da matéria.

Toda proposta de emenda constitucional deve ser discutida e votada pelos

Deputados e Senadores, em dois turnos, sendo considerada aprovada quando a

propositura receber voto favorável, em ambas as Casas do Congresso Nacional, de

três quintos dos seus membros.

Tem-se aqui uma limitação formal ao poder constituinte derivado,

estabelecida na Constituição Federal de 1988 como forma de assegurar que os

processos legislativos tratando de disposições constitucionais não ocorressem de

maneira inconsequente e sem a devida apreciação legislativa.

A despeito dessa exigência, o rito procedimental na aprovação da referida

Emenda não foi observado, asseverando Alexandre (2007, p. 81) evidente

inconstitucionalidade, uma vez que,

Na votação da Emenda Constitucional 39, todavia, a regra [do regimento


interno da Câmara dos Deputados e do Senado] foi flagrantemente violada.
[...] os dois turnos de votação ocorreram na mesma sessão, sem o intervalo
exigido implicitamente pela Constituição Federal e explicitamente pelo
Regimento Interno da Casa.

Em face do exposto, no que tange à Emenda Constitucional 39/2002, a

decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a sua constitucionalidade pode ser

considerada mais uma adequação às circunstâncias e um alinhamento à vontade

política que sobressaía sobre a matéria, do que uma posição resultante de um

profundo e equilibrado processo hermenêutico, baseado na análise de todos os

aspectos envolvidos, formais e materiais, em detrimento não somente da


192

observância dos ditames constitucionais, mas também da parte vulnerada pela nova

exação, ou seja, o contribuinte.

São relevantes aqui as observações de Dworkin (2007, p. 154), quando

comenta que:

[...] o Tribunal deve tomar decisões de princípio, não de política - decisões


sobre que direitos as pessoas têm sob nosso sistema constitucional, não
decisões sobre como se promove o bem-estar geral -, e que deve tomar
essas decisões elaborando e aplicando a teoria substantiva da
representação, extraída do princípio básico de que o governo deve tratar as
pessoas como iguais.

Na pretensão de preservar os interesses da arrecadação dos municípios e do

Distrito Federal, a aprovação da Emenda Constitucional nº 39/02 constituiu um

evidente ato de má-fé para com os contribuintes, atingindo diretamente a boa-fé

objetiva, princípio basilar da relação entre o Estado e o contribuinte.157

A medida instituidora da exação em análise representou uma frustração das

expectativas dos contribuintes, impondo-lhes nova exigência tributária a partir de

procedimentos sub-reptícios que caracterizam vícios de inconstitucionalidade

indubitáveis como foi exposto.

Espera-se do Estado, e das próprias instituições que o integram, Legislativo e

Judiciário, o respeito à lei e à íntegra observância das regras de conduta em suas

respetivas atividades e atribuições, o que, no caso em tela, não ocorreu. Quebrou-se

a confiança que o contribuinte deposita nessas instituições. Como afirma Wedy

(2006, p. 256):

[...] aquele que se comporta reiteradamente de um modo, despertando a


confiança em outrem e, posteriormente, altera o seu agir, agindo de forma
oposta, causando prejuízo ao destinatário do comportamento anteriormente
confiável, está violando o princípio da boa-fé objetiva.

157
O princípio recebeu especial acolhida no Direito Alemão e Suíço, e também é recepcionado de
modo especial no Direito Comunitário Europeu, particularmente na França. Irradiando-se por todo o
sistema jurídico, na área tributária se apresenta como requisito para uma relação confiável entre
Estado e contribuinte. O princípio da boa-fé objetiva é corolário do princípio da proteção da confiança,
que se efetiva na segurança jurídica e constitui fundamento do Estado de Direito, e tem relação direta
com a justiça enquanto valor que também deve ser buscado pelo Direito Tributário.
193

Nesse sentido, Martins (2006, p. 46-48) entende que a Emenda 39/2002 criou

um precedente perigoso, uma vez que:

Se é válida, porque autorizada por Emenda Constitucional, uma


'contribuição' que tem as características essenciais de um imposto, poderá
então o constituinte reformador substituir todos os impostos por
contribuições, contornando assim a vedação do art. 167, IV. E por que não
poderia então instituir contribuições sem obediência ao princípio da
anterioridade ao exercício financeiro de cobrança? E por que não poderia
assim, aos poucos, destruir todas as garantias que a Constituição outorgou
ao cidadão contribuinte?

Não foi apenas a boa-fé objetiva que foi atingida com a criação da

contribuição em comento. Também foram feridas frontalmente a liberdade e a

dignidade do contribuinte, como observa Moraes (2003), o aumento da conta de

energia elétrica afeta o orçamento familiar, alterando a capacidade de manutenção

da qualidade de vida, impondo restrições sobre a higiene, o lazer, as condições

essenciais de consumo e livre disposição de bens.

Restringe-se assim a liberdade e a dignidade com excessiva exação sobre o

consumo de eletricidade. Não se trata de questão meramente patrimonial, mas de

afetamento das condições de existência, com ofensa ao direito à vida, uma vez que

a energia elétrica tornou-se um recurso essencial aos indivíduos e famílias.

Um outro caso no qual o contribuinte teve seus direitos preteridos, e onde

também ficou evidente a posição contrapudocente do Supremo Tribunal Federal, em

detrimento dos direitos humanos do contribuinte, foi o pertinente à Emenda

Constitucional 3/93, a qual dispunha sobre a substituição tributária, espécie de

regime de arrecadação tributária.

O instituto tem relação com o disposto originariamente no artigo 128, do

Código Tributário Nacional:


194

Sem prejuízo do disposto neste Capítulo, a lei pode atribuir de modo


expresso a responsabilidade pelo crédito tributário a terceira pessoa,
vinculada ao fato gerador da respectiva obrigação, excluindo a
responsabilidade do contribuinte ou atribuindo-a a este em caráter supletivo
do cumprimento total ou parcial da referida obrigação.

Todavia, não havia previsão constitucional sobre a matéria, o que levou os

legisladores constitucionais derivados a inserirem na Constituição Federal de 1988

dispositivo sobre o instituto, através da Emenda Constitucional 3/93, artigo 1º,

acrescentando ao artigo 150, o § 7º o seguinte teor:

A lei poderá atribuir a sujeito passivo a condição de responsável pelo


pagamento de imposto ou contribuição, cujo fato gerador deva ocorrer
posteriormente, assegurada a imediata e preferencial restituição da quantia
paga, caso não se realize o fato gerado presumido.

Comentando sobre o tema, Melo (2008, p. 194) ressalta que a Constituição

Federal de 1988 não estabeleceu “[...] um modelo que pudesse permitir um

disfarçado confisco de bens, estribado em negócios inexistentes, situações, estados

ou circulações eventuais e imagináveis.”

Ocorre que a substituição tributária constitui um instrumento de simplificação

padronizante, focalizando a massa indistinta de contribuintes, ao invés dos casos

individuais, para fins de facilitar e agilizar a arrecadação do Imposto sobre

Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e Sobre Prestações de Serviços

de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS).

Por intermédio da substituição tributária progressiva do ICMS, ou tributação

para frente, estabeleceu-se um método de cálculo presumido do valor do tributo,

antecipando-se o fisco à materialização do fato imponível, que poderá vir ou não a

ocorrer, assegurando-se, porém, a captação dos recursos tributários.

Na análise de Carrazza (2009, p. 343):


195

Na substituição tributária para frente há falta de valores efetivos a serem


considerados como base de cálculo do ICMS. Como não se sabe quando e
como ocorrerá o fato imponível, o Fisco “estima” o preço da operação
mercantil que, provavelmente, um dia virá a ocorrer. Ora, nada disso se
compadece com a segurança e a certeza que devem presidir o fenômeno
da tributação.

Também neste caso criou-se um artifício tributário envolvendo pragmatismo

arrecadatório, em evidente afronta a segurança jurídica, princípio basilar do sistema

jurídico, afirmando Melo (2008, p. 194) que:

Não se estará diante de uma autêntica presunção legal (juris et de jure)


estabelecendo uma verdade jurídica, pois supor que um fato tributário
acontecerá não é jamais o mesmo que tornar concreta sua existência, de
modo a conferir segurança e certeza a uma exigência tributária. Inaceitável
sua aplicação na cobrança de tributos sobre a circulação e a prestação de
serviços, uma vez que os comerciantes/industriais e prestadores de serviços
podem deixar de praticar fatos geradores de IMCS por inúmeros motivos
(insolvência, desistência, perdimento do bem). Não se pode nunca ter certeza
absoluta de que as mercadorias venham a ser objeto de inexorável circulação
em mera presunção, cria situação jurídica insegura para o contribuinte, pois
não se funda em fato concreto, mas em suposição de que poderá ocorrer,
não existindo certeza de direito, contrariando a Constituição Federal. Para
Carrazza (2009, p. 331), a criação do instituto afastou o princípio da
segurança jurídica, o que é inconcebível, pois este vincula-se aos “[...]
direitos individuais e suas garantias. É, assim, ‘cláusula pétrea’, e nessa
medida, não poderia ter sido amesquinhado por emenda constitucional (cf.
art. 60, § 4º, da CF).”

Não bastasse esse vício de inconstitucionalidade, a referida Emenda 3/93

também atinge vários princípios constitucionais basilares, além da segurança jurídica:

desrespeita os princípios da capacidade contributiva, da boa-fé pública, da confiança

sistêmica, da igualdade, da capacidade tributária, da tipicidade, da legalidade, da não-

cumulatividade do tributo, da vedação do confisco, e da anterioridade, bem como

contraria o fim precípuo do Direito Tributário, que é a busca da justiça fiscal, valor

fundamental e referência para a relação entre Estado e contribuinte.

Sobre o tema, Pinto Júnior (2007, p. 191) conclui:


196

Não haverá ‘constitucionalização’, senão por meio de comando


constitucional originário da Assembléia Constituinte. Nesse sentido, vale
repetir o que os mais renomados estudiosos do Direito Tributário dizem à
exaustão em suas obras: a Emenda Constitucional não tem o condão de
passar por cima dos princípios constitucionais e de inserir no contexto
tributário brasileiro uma exigência que não participa do sistema legal vigente
na Carta Suprema. A substituição tributária ‘para frente’ é uma aberração
jurídica que deve ser expulsa da estrutura normativa nacional por meio
de declaração de inconstitucionalidade da Emenda Constitucional nº
3/93. (não grifado no original).

A despeito da opinião de grande parte dos doutrinadores, e dos vícios

apontados, a Emenda Constitucional 3/93 não foi atacada por sua inconstitucionalidade

pelo Supremo Tribunal Federal. E tampouco o fez com relação à Lei Complementar

87/96, que passou a disciplinar a referida exação tributária do ICMS em todo o território

nacional, embora essa norma tenha delegado158 à lei ordinária dos Estados-membros e

do Distrito Federal a competência para disciplinar a matéria, contrariando requisito

formal, que remete a regulação apenas à lei complementar, em observância à

hierarquia normativa, conforme Carrazza (2009, p. 334):

[...] ‘ex vi’ do citado art. 155, § 2º, XII, b, da CF. Não poderia, destarte, ser
objeto de delegação, se por mais não fosse em razão do princípio geral de
Direito Público contido no aforisma delegatur delegare non potest. [...] De
fato, quanto o Texto Magno outorga uma competência, visa a promover um
interesse público, que só considera atingível, v.g., por meio de lei
complementar. É justamente o caso. Inconstitucionais, portanto, os aludidos
artigos quando delegarem à lei ordinária dos Estados e do Distrito Federal
competências para esmiuçar a substituição tributária no ICMS.

Desse modo, em face dos vícios formais e materiais, a regulação da

substituição tributária progressiva do ICMS é inconstitucional, o que não foi

questionado pelo Supremo Tribunal Federal, o qual, também neste caso, em

evidente preocupação de encaminhar a questão segundo as conveniências

políticas (que eram fortes em razão de ser matéria crucial para os interesses dos

fiscos estaduais fortemente representados nas instâncias superiores do

158
Segundo o artigo 9º da Lei Complementar 87/96, “A adoção do regime de substituição tributária
em operações interestaduais dependerá de acordo específico celebrado pelos Estados interessados.”
197

Congresso Nacional e do próprio Executivo), passou por cima das questões de

fundo.

Pelo contrário, as decisões do Supremo Tribunal Federal deixaram

evidente a preocupação em justificar a substituição tributária para a frente como

instituto legal e plenamente admissível, tendo como fundamento a idéia da

necessidade da exação para assegurar a consecução dos fins da Administração

Pública, ou seja, a praticidade foi alçada à condição de objetivo primordial (em

detrimento de todos os direitos do contribuinte afrontados por essa sistemática de

arrecadação).

Essa mesma linha de arguição sobre a prevalência do interesse público,

atingindo frontalmente os direitos dos contribuintes, fica evidenciada na leitura do

acórdão do julgamento da ADIn 1.851-AL, consoante a exposição do Relator,

Ministro Ilmar Galvão, com a declaração da constitucionalidade da Cláusula

Segunda do Convênio do ICMS159 nº 13, de 21 de março de 1997:

O fator gerador presumido, por isso, não é provisório, mas definitivo, não
dando ensejo à restituição ou complementação do imposto pago, senão, no
primeiro caso, na hipótese de sua não-realização final. Admitir o contrário
valeria por despojar-se o instituto das vantagens que determinaram a sua
concepção e adoção, como a redução, a um só tempo, da máquina-fiscal e
da evasão fiscal a dimensões mínimas, propiciando, portanto, maior
comodidade, economia, eficiência e celeridade às atividades de tributação e
arrecadação (DERZI, 2010, p. 1273).

Em voto vencido, e destacando a afronta ao princípio da não-

confiscatoriedade, o Ministro Marco Aurélio remete ao disposto no artigo 150,

parágrafo 7º, da Constituição Federal de 1988, assim se manifestando:

159
Convênio celebrado, no intuito de prevenir a guerra fiscal, derivada de eventuais concessões de
benefícios tributários, relativos à restituição do ICMS cobrado a maior, quando a operação final é de
valor inferior ao do fato gerador presumido.
198

[...] interpretamos uma regra inserida na Carta, a partir do poder constituinte


derivado, que estaria para a ilustrada maioria, a admitir a cobrança do tributo
sem o fato gerador; ou, melhor dizendo [...] a partir de um fato gerador pela
metade; de um fato gerador que não corresponderá ao cobrado, de forma
precária, anteriormente, a partir de uma simples presunção. Porém, as regras
que revelam o sistema, que emprestam uma envergadura maior ao fato
gerador, também estão lançadas na Carta a ponto de beneficiar o próprio
Estado. Constatamos, no artigo 155, § 2º, inciso II, da Carta da República,
que ‘a isenção ou não-incidência, salvo determinação em contrário da
legislação: a) não implicará crédito [...]’. Mas poderemos ter cobrança maior
do tributo à margem do fato gerador, do conteúdo econômico por ele ditado?
O que é isso senão o enriquecimento sem causa, por parte do Estado, já que
a diferença notada estará fora dos parâmetros da definição constitucional do
próprio tributo contida no inciso II do artigo 155. Se não enquadro a hipótese
no inciso II do artigo 155, tenho uma cobrança indevida.

O confisco que caracteriza a aplicação do referido instituto se afigura não

somente em termos econômicos, mas também como afronta visceral à dignidade do

contribuinte, lançando-se por terra as garantias constitucionais e deixando-o à mercê

da sanha arrecadadora do Fisco. Sujeitando-o não somente à indeterminação

jurídica, mas à exacerbação do poder arrecadatório, que se auto-justifica, quando

deveria se adequar às normas e aos princípios constitucionais em respeito ao

contribuinte em sua condição de cidadão e de pessoa humana, referência para

legitimar qualquer decisão e atividade realizada pelo Estado.

O terceiro caso no qual se observa uma posição política do STF, deixando de

salvaguardar os direitos humanos dos contribuintes, diz respeito à declaração de

constitucionalidade da disposição normativa tornando obrigatório o desconto da

previdenciário dos benefícios de aposentados e pensionistas.

Na decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADIn

3.105-8 (BRASIL, 2005), proposta pela Associação Nacional dos Membros do

Ministério Público – CONAMP, questionando a constitucionalidade do disposto pela

Emenda Constitucional nº 41/2003 acerca da contribuição previdenciária de inativos

e pensionistas, os julgadores, por decisão majoritária, manifestaram-se favoráveis à


199

exação tributária em questão, julgando improcedente a ação em relação ao caput do

artigo 4º da referida emenda. Dispôs o referido dispositivo constitucional:

Artigo 40 - Aos servidores titulares de cargos efetivos da União, dos


Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e
fundações, é assegurado regime de previdência de caráter contributivo e
solidário, mediante contribuição do respectivo ente público, dos servidores
ativos e inativos e dos pensionistas, observados critérios que preservem o
equilíbrio financeiro e atuarial e o disposto neste artigo.
[...]
§ 18 - Incidirá contribuição sobre os proventos de aposentadorias e pensões
concedidas pelo regime de que trata este artigo que superem o limite
máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de previdência
social de que trata o art. 201, com percentual igual ao estabelecido para os
servidores titulares de cargos efetivos.

Por sua vez, o citado artigo 4º, caput, da Emenda Constitucional n° 41/2003

estabeleceu que:

Os servidores inativos e os pensionistas da União, dos Estados, do Distrito


Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, em gozo
de benefícios na data de publicação desta Emenda, bem como os
alcançados pelo disposto no seu art. 3º, contribuirão para o custeio do
regime de que trata o art. 40 da Constituição Federal com percentual igual
ao estabelecido para os servidores titulares de cargos efetivos.

Também neste caso o Legislativo aprovou, como ocorrera outras vezes,

consoante o que já foi comentado neste trabalho, uma Emenda Constitucional

conferindo nova roupagem à lei que, anteriormente, em razão de óbices à sua validade,

havia sido reputada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal. Conseguiu, por

essa via transversa, alcançar o propósito do incremento da arrecadação fiscal, nesse

caso para carrear recursos para os cofres da Previdência Social.

A legislação anterior em questão era a Lei Federal n° 9.783/99, dispondo

sobre a mesma matéria tratada pela Emenda Constitucional nº 41/2003 em seu

artigo 4º. Todavia, neste caso o Supremo Tribunal Federal, em decisão unânime,

havia refutado a sua validade reputando-a inconstitucional.160

160
STF - ADInMC 2010/DF, Min. Diário da Justiça 12.04. 2002.
200

A Emenda nº 41/2003 reiterou a disposição dos legisladores em obter

autorização para os propósitos arrecadadores do fisco, agora de forma a criar

obrigação abrangente, reunindo ao mesmo tempo, na condição de contribuintes

previdenciários, tanto os servidores no exercício efetivo de suas funções, como

aqueles que se tornaram, por força da aposentadoria, beneficiários dos rendimentos

da aposentadoria conquistada.

A controvérsia estava no artigo 4º da Emenda Constitucional 41/200, o qual

estabeleceu aos servidores públicos aposentados e aos pensionistas a obrigação de

pagar a contribuição previdenciária em percentual equivalente ao fixado para os

servidores no exercício de cargos efetivos.

O referido artigo 4º não respeitou o direito adquirido dos aposentados e

pensionistas, assegurado pela Magna Carta a todos os cidadãos consoante o

disposto no artigo 5º, inciso XXXVI, onde estabelece a irretroatividade das leis,

princípio pelo qual nenhuma lei pode atingir o direito adquirido, o ato jurídico perfeito

e a coisa julgada.

Bastos (1994, p. 43) ao discorrer sobre a irretroatividade das leis, afirma que

constitui um dos instrumentos

[...] de que se vale a Constituição para limitar a retroatividade da lei. Com


efeito, esta está em consoante mutação; o Estado cumpre o seu papel
exatamente na medida em que atualiza as suas leis. No entretanto, a
utilização da lei em caráter retroativo, em muitos casos, repugna porque fere
situações jurídicas que já tinham por consolidadas no tempo, e esta é uma
das fontes principais da segurança do homem na terra.

Trata-se de cláusula pétrea, pois diz respeito a direitos individuais, tutelados

pela Constituição Federal nos seguintes termos:

Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:


§ 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a
abolir:
[...]
IV - os direitos e garantias individuais.
201

A determinação constitucional estabelece, com a irretroatividade das leis,

uma base fundamental de segurança jurídica aos cidadãos, a qual está vinculada

ao princípio tributário da não-surpresa, óbice à edição de norma tributária

regulando fato passado, como observa Carrazza (2006, p. 348) ao afirmar que

[...] é por todos os títulos, inconstitucional a lei tributária "ex post facto"
(Araújo Castro). Outra inteligência justificaria a instalação do império da
incerteza, nas relações entre o Fisco e o contribuinte, o que contrariaria
o regime de direito público e o próprio princípio republicano.

Como garantia constitucional, o princípio da irretroatividade traduz uma

limitação ao poder de tributar e um direito oponível do contribuinte frente ao

Fisco. E como tal é compreensível que, uma vez afrontado, é plenamente

admissível a arguição da inconstitucionalidade frente à norma que desconstrói

esse requisito fundamental a ser observado na relação tributária.

A segurança jurídica, como princípio basilar do sistema jurídico, não pode

ser preterida em nome da vontade estatal, mesmo se arguido um suposto

interesse público, como foi o caso da justificativa levantada pelos legisladores

para aprovação da Emenda Constitucional n° 41/03, afirmando ser indispensável

diante da precária situação das finanças públicas e da necessidade de mudanças

para aumentar o ingresso de recursos para financiamento da previdência no

Brasil.

A negação da segurança jurídica não atingiu apenas os aposentados e

pensionistas no seu direito conquistado, mas também a própria ordem

constitucional, como se depreende das afirmações de Souza (1996, p. 84),

quando assevera que esse princípio essencial ao próprio ordenamento jurídico

atua como elemento de coesão do sistema, preservando sua estabilidade ao

longo do tempo, sendo nesse sentido, mais do que um princípio, um valor-meio,

pois é resultado
202

[...] de um conjunto de técnicas normativas dispostas a garantir a


completude do sistema; ou seja, o ordenamento jurídico tem, na Segurança,
uma autocorreção, um corretivo dele próprio, como 'meios predispostos
para assegurar a observância, e, portanto, a conservação de um
determinado ordenamento constitucional.

Compreende-se o caráter de princípio inamovível e indissociado da

segurança ao sistema jurídico, quando se observa que em sua condição de valor-

meio representa uma exigência fundamental, considerada por Silveira (2005, p. 75)

como uma

[...] radicalização oriunda do princípio que ela própria conforma, instituindo-


se pela possibilidade permanente de sua materialização em seu valor e na
sua validade. Ou seja, na medida em que o princípio torna-se presente,
resulta afastada a possibilidade de arbítrio. Portanto, vincular o princípio da
segurança jurídica a uma avaliação subjetiva de um eventual aplicador, ou
ao ambígüo conceito de desejabilidade, caracterizam-se como posturas de
cunho fortemente reducionistas, capazes de impedir a materialização do
princípio na sua indispensável transcendentalidade.

Afrontou-se tanto a segurança jurídica, como seu corolário, o princípio da

estabilização jurídica. Por meio do reducionismo típico da legislação oportunista

criou-se um dispositivo de emenda à Constituição que estabeleceu a obrigatoriedade

da contribuição aos inativos, os quais, tendo contribuído por muitos anos para a

Previdência, no momento da aposentadoria, quando deveriam receber a

contrapartida pelo que haviam pago, viram-se novamente na obrigação de arcar com

o ônus previdenciário.

Não foi apenas atingido o direito adquirido, mas essa situação também

configura uma evidente bitributação, uma vez que a exação incide novamente sobre

aqueles que já haviam cumprido com a sua responsabilidade de contribuintes,

pagando as contribuições previdenciárias exigidas para que pudessem se

aposentar.

Também é evidente o atentado aos princípios da confiança e da boa-fé

objetiva, neste caso com uma medida incompatível com o mínimo ético a nortear as
203

decisões dos governantes que deve conferir a elas um significado e um sentido

fundamentais na relação com os governados.

Nesse sentido, a Emenda nº 41/2003, ao desconsiderar os direitos dos

aposentados e pensionistas, transformou essa relação de confiança em instrumento

de exercício arbitrário de poder, não somente incompatível com os ditames da

república democrática, mas também com o princípio da moralidade administrativa.

Esse princípio, como asseverou o Ministro Celso de Mello na ADIn n° 2.661-5-

MA (BRASIL, 2002) é mais do que mera referência idealística, constituindo um

parâmetro concreto de aferição da adequação das ações do Estado frente aos

cidadãos, uma vez que “[...] legitima o controle jurisdicional de todos os atos do

Poder Público que transgridam os valores éticos que devam pautar o

comportamento dos órgãos e agentes governamentais.”

O mínimo ético foi certamente foi transgredido com a norma em comento, a

qual, apesar de seguir os trâmites formais, não pode subsistir sob o ponto de vista

da matéria disciplinada, particularmente por versar de questão sobre a qual não

cabia nem a imposição de exação, e tampouco a livre disposição dos legisladores,

que usurparam das suas atribuições constitucionais atingindo também o sistema

democrático, que pressupõe a fiel observância dos limites legais para não atingir

nenhum dos direitos do cidadão.

Os direitos humanos dos contribuintes nesse caso estão intrinsecamente

ligados aos direitos violados, pois é inconcebível que se venha a onerar aqueles

que, muitas vezes com sacrifício pessoal e familiar, pagaram a previdência na

certeza de que, um dia, teriam o retorno justo da sua contribuição, e sequer

imaginaram que, pelo contrário, justamente daqueles de quem esperavam que essa

garantia não seria de modo nenhum afetada, nasceria uma norma reduzindo o valor
204

do seu benefício por força da continuidade do desconto previdenciário sobre os

rendimentos previdenciários.

Reduz-se com essa medida o valor que os aposentados e pensionistas

passam a receber, o qual, em muitos casos, nem mesmo pode ser considerado justo

benefício, se confrontadas as contribuições econômicas e, sobretudo, sociais, na

sua condição passada de indivíduos produtivos para a sociedade.

O encargo previdenciário sobre esses parcos valores das aposentadorias e

pensões representa nesse sentido um ônus inconcebível e desumano, porque impõe

novos sacrifícios, dificultando ainda mais o acesso a direitos constitucionais

sagrados, como o lazer, a saúde, a moradia digna, entre outros, os quais remetem

à necessária qualidade de vida do ser humano quando adentra nos anos e se torna

vulnerável, muitas vezes dependente de outrem, não tendo mais as condições

necessárias para que possa garantir por si mesmo a sua subsistência.

E retirar-lhes tal possibilidade é também atentar contra a sua dignidade e a

sua vida, direitos imbricados e indissociados da condição humana. Mais uma vez,

a força imperativa da vontade do Estado, por meio dos legisladores constitucionais

derivados, estabeleceu uma situação de negação dos direitos humanos,

fundamentada no conceito impreciso do “interesse público” que permeia de forma

recorrente o discurso político, e também tem se imiscuído nas decisões judiciais.

Sobre o tema explana Sarmento (2005), ao referir-se à criação da uma regra

informadora das decisões judiciais, a qual estabelece uma fórmula que se ajusta às

mais variadas situações, o que, pode-se concluir, é muito conveniente aos

interesses políticos, tanto quanto à praticidade fiscal visada pelo Estado, para

quem a pacificação judicial de matérias questionadas pelos contribuintes é crucial

para fazer valer seus propósitos e interesses.


205

Nas palavras do autor, a indeterminação do termo “interesse público”

encerra indubitável valor pragmático, porém, às custas do respeito e da

satisfatividade dos direitos dos cidadãos:

Na verdade, a admissão de cláusulas muito gerais de restrição de direitos


fundamentais – como a da supremacia do interesse público – implica também
em violação aos princípios democráticos e da reserva de lei, em matéria de
limitação de direitos, já que transfere para a Administração a fixação concreta
dos limites ao exercício de cada direito fundamental. Ademais, dita
indeterminação pode comprometer a sindicabilidade judicial dos direitos
fundamentais, por privar os juízes de parâmetros objetivos de controle
(SARMENTO, 2005, p. 96).

E é justamente a partir da fluidez e indeterminação do termo “interesse

público” que foi edificada a decisão do Supremo Tribunal Federal, na ADIN nº 3.105-

8 (BRASIL, 2005).

Como se verifica na leitura do posicionamento do Ministro Eros Grau na

referida decisão, em seu voto a favor da constitucionalidade da exigência da

contribuição previdenciária dos inativos:

O que há, na hipótese, é relação institucional, adstrita a normas cogentes


de Direito Administrativo, sendo perfeitamente possível a revisão de suas
regras, a fim de resguardar-se o interesse público e a continuidade da
prestação por parte do Estado. É no quadro desta relação que haveria de
ser considerada a referibilidade direta da contribuição a uma atuação
concreta-atual ou potencial do Estado (BRASIL, 2005, p. 138) (não grifado
no original)

A singular flexibilidade do termo também possibilitou estender o raciocínio dos

julgadores para justificar a decisão favorável à constitucionalidade da famigerada

Emenda Constitucional nº 41/2003, sob a ótica da “solidariedade”, no sentido de

vínculo obrigacional comum derivado justamente do pertencimento á comunidade

plural, ao conjunto de indivíduos sintetizado no “interesse público”.

É na idéia da solidariedade que o Ministro Gilmar Mendes, relator da referida

ADIN, pauta seu entendimento, asseverando em sua decisão (BRASIL, 2005, p.

183-184):
206

[...] a par do caráter contributivo, vigora o princípio da solidariedade. Nesse


sentido o preciso ensinamento de Luís Roberto Barroso, em parecer juntado
aos autos, verbis: “[...] o sistema de previdência social é fundado,
essencialmente, na idéia de solidariedade, especialmente quando se trata
do regime próprio dos servidores públicos. Em primeiro lugar, existe
solidariedade entre aqueles que integram o sistema em um dado momento,
como contribuintes e beneficiários contemporâneos entre si. [...] À vista de
tais premissas, a contribuição previdenciária de ativos e inativos não está
correlacionada a beneficios próprios de uns e de outros, mas à solvabilidade
do sistema. [...] Contribuição social é um tributo fundado na solidariedade
social de todos para financiar uma atividade estatal complexa e universal,
como é a Seguridade.”

Depois de apresentar o excerto doutrinário acima, o excelso julgador finaliza

expondo o seu entendimento sobre a matéria, afirmando (BRASIL, 2005, p. 185):

Em suma, o compromisso do contribuinte inativo ou pensionista, ao pagar


esse específico tributo, é com o sistema como um todo, e não apenas com a
sua conta junto ao órgão previdenciário. Daí não haver qualquer incoerência
na inclusão dos inativos e pensionistas entre os contribuintes do sistema.
Tal fato obviamente sequer desnatura o que é peculiar à contribuição
previdenciária, qual seja a vinculação dos seus recursos à manutenção do
regime de previdência, com a solvabilidade do sistema e, em última
instância, com a capacidade econômica do sistema em honrar os
benefícios previdenciários. (não grifado no original)

Vincula-se então à solidariedade a obrigação de aposentados e pensionistas

de continuarem a contribuir para a previdência, travestindo uma imposição criada

pelos legisladores em uma mera decorrência natural e substancial de um liame

essencial entre os cidadãos, o qual, nessa ótica, afasta de pronto quaisquer

possíveis distinções entre os indivíduos, ativos ou inativos, no que se refere à

obrigação previdenciária, subordinando-os todos à vontade superior, expressa no

“interesse público”.

Na exposição do referido julgador observa-se a referência à vinculação da

contribuição previdenciária com a “solvabilidade do sistema” e a “capacidade

econômica do sistema em honrar os benefícios previdenciários”, sugerindo que a

responsabilidade deve ser solidária para a manutenção do sistema de seguridade.

O raciocínio, simplista, elimina de pronto quaisquer elucubrações mais

profundas, constituindo nesse ponto a culminância do pensamento do referido


207

magistrado sobre a questão, por meio de uma visão fechada do problema: a

Previdência precisa de recursos para se manter, e, por atender a interesses que não

são apenas de uma pessoa, mas da sociedade, a solidariedade é suficiente para

justificar a exação imposta aos aposentados e pensionistas.

Cabe ressaltar que a aplicação de um princípio não pode nunca ser feita

considerando-se unicamente a sua adequação imediata à solução ao problema.

Como afirma Kaufmann (2004, p. 272-273), não se pode aplicar um principio

[...] como se de uma receita culinária se tratasse; e não se pode neles


‘subsumir’ como se faz sob o tipo de furto. Eles são demasiado gerais para
que tal seja possível. Mas tais princípios são importantes tópicos de
argumentação e assumem um especial relevo, sobretudo, quando está em
causa tutela das minorias e dos mais fracos. Está claro que tais princípios são
tanto mais contingentes quanto mais concretamente os concebemos e
raramente se poderá fundamentar uma decisão apenas em um desses
princípios.

Inobstante a aparente obviedade e adequação do raciocínio que fundamentou

a decisão dos julgadores do STF, não é impossível questioná-la, a partir de uma

reflexão mais ampla das situações envolvidas.

Seguindo essa linha de pensamento, uma indagação exige resposta: não

seria necessário investigar as causas das dificuldades de financiamento da

Previdência, para só então determinar se a contribuição dos aposentados e

pensionistas é efetivamente inafastável?

Nesse caso, cabe destacar, não foi sequer apresentada uma projeção

atuarial, como informação subsidiária para evidenciar, segundo demonstração

matemática e estatística, a razoabilidade do risco alegado à manutenção futura do

sistema previdenciário. Tampouco foram analisadas todas as causas, como uma

possível ingerência inadequada dos recursos por parte do Estado, o que mudaria o

foco da resolução do problema, passando-se a considerar outras medidas antes de

simplesmente exigir a contribuição dos aposentados e pensionistas.


208

Além disso, outra questão importante deve ser aventada: pode-se dissociar os

valores das questões pragmáticas, para que não prevaleçam, sem questionamento,

as regras estabelecidas pelo sistema?

Quanto aos valores envolvidos, observa-se que, a pretexto de dar concretude

a eles, os julgadores, valendo-se da identificação e aplicação dos princípios como

ponte para a sua concretude no cotidiano dos cidadãos, muitas vezes acabam

gerando soluções contraditórias, em desfavor dos indivíduos, ainda que sob o rigor

de uma lógica estruturada das suas decisões.

Esse é o caso em tela, onde se erigiu o princípio estruturante da solidariedade

como instrumento basilar para a definição das responsabilidades mútuas dos

indivíduos na efetividade dos direitos de todos, afirmando-se que o usufruto dos

benefícios previdenciários somente pode ser assegurado com a contribuição

indistinta dos cidadãos, inclusive dos aposentados e pensionistas.

Solução rápida e adequada; todavia, há que se questionar: não caberia

considerar, igualmente, o princípio-matriz da dignidade do contribuinte, inafastável

na busca da melhor solução ao caso?

Discorrendo sobre a apropriação de um princípio para, contraditoriamente, não

tutelar direitos, mas afastá-los segundo conveniências atreladas a pragmatismos, com

base na idéia de que os valores somente podem assumir significados numa dimensão

prática e objetiva que se desenvolve alheia a eles, afirma Oliveira (2007, p. 122):

A aplicação de um princípio da proporcionalidade, a compreensão dos


princípios como valores otimizáveis, assim como a compreensão dos
direitos como bens ou interesses sujeitos a um cálculo de utilidade,
confunde "argumentos de princípio" com "argumentos de política",
perspectiva jurisdicional e perspectiva legislativa. E, por isso, não garante
direito algum, nem legitimidade à Jurisdição.

O que ocorreu no caso em comento parece ter sido uma decisão pautada,

sobretudo, na autoridade dos magistrados, alinhavando a sua decisão a partir da


209

possibilidade de justificar a exação tributária com base em um princípio específico, o

da solidariedade.

Não foram consideradas todas as opções valorativas possíveis, reduzindo-se

assim a fundamentação da decisão a um raciocínio fechado. É essa pobreza

argumentativa que torna possível questioná-la, e mesmo refutá-la.

Costa (2008) sintetiza muito bem esse problema ao afirmar que é sempre

necessário tomar decisões aceitáveis pela sociedade, pois a elas se destinam; não

basta que a decisão seja emitida unicamente por força da autoridade, presumindo-

se que isso seja suficiente. Pelo contrário, as decisões devem ser justificadas,

principalmente quando envolvem opções valorativas. Mesmo que a decisão pareça

ajustada aos valores sociais, ou aos valores aceitos pelos juristas, normalmente é

possível criticar o modo como procedeu-se à tomada de decisão pelo órgão

judiciário.

Ainda segundo o autor, em diversos casos o STF não apresenta uma

argumentação adequada para explicar os motivos da decisão, de modo a apontar

claramente os critérios empregados; ampara-se apenas na justificativa de que a

interpretação anterior contrariava o princípio da razoabilidade, porém, sem

apresentar os motivos que fundamentaram essa conclusão.

Outro caso a ser analisado, envolvendo a relação tributária no campo

previdenciário e a desconsideração de direitos imanentes à pessoa do contribuinte,

diz respeito aos efeitos moduladores da Súmula Vinculante nº 8.

Com a edição da referida súmula, o STF estabeleceu que são

inconstitucionais “[...] o parágrafo único do artigo 5º do Decreto-lei 1569/77 e os

artigos 45 e 46 da Lei 8.212/91, que tratam de prescrição e decadência de crédito

tributário” (BRASIL, 2008).


210

O entendimento firmado foi que a referida súmula trouxe um importante

benefício para os contribuintes, possibilitando uma redução no prazo prescricional e

decadencial, em conformidade com o disposto no Código Tributário Nacional, que os

fixa em cinco anos, reputando inconstitucional o prazo de dez anos estabelecido

pela Lei nº 8.212/91, consoante os seus artigos 45 e 46.

Ocorre que o STF adotou o efeito modulador, pelo qual estabeleceu-se uma

situação nitidamente atentatória aos direitos de muitos contribuintes. Gerou uma

situação evidentemente contrária às regras elementares do tratamento isonômico na

tributação, uma vez que ficou decidido, que somente os contribuintes cujos

recolhimentos previdenciários foram realizados até a data do julgamento da matéria

por essa instância suprema teriam direito à restituição.

De modo que, pela Súmula Vinculante nº 8, apenas uma parcela dos

contribuintes foi beneficiada com a declaração de inconstitucionalidade dos artigos

45 e 46 da Lei Previdenciária nº 8.212/91161, sendo-lhes permitido reclamar os

créditos relativos aos recolhimentos indevidos das parcelas concernentes a valores

prescritos ou que caducaram desde o momento do pagamento. Por outro lado,

aqueles que não tinham ajuizado ações até o dia do julgamento ficaram excluídos

desse benefício.

A modulação temporal passou a ser empregada no intuito de dar efetividade à

segurança jurídica em situações envolvendo interesse público excepcional, de modo

a determinar se os efeitos da declaração de inconstitucionalidade seriam ex tunc, ex

nunc ou pro futuro, estabelecendo assim um direcionamento judicial dos efeitos da

decisão.

161
A inconstitucionalidade foi arguida pelo fato da Lei n° 8.212/91 ter estabelecido prazos
decadenciais e prescricionais, o que não pode ser tratado por lei ordinária, mas por lei especial, no
caso da matéria pela norma tributária maior, o Código Tributário Nacional que tem natureza de Lei
Complementar à Constituição Federal.
211

Embora prevaleça o entendimento de que a medida foi vantajosa para as

duas partes, Previdência e contribuintes, pois de um lado evitou-se a devolução de

todos os valores pagos indevidamente, o que teria excepcional impacto financeiro

para o sistema previdenciário, e por outro lado foi beneficiado um grande

contingente de contribuintes, que puderam obter o ressarcimento dos valores

recolhidos indevidamente nos termos da decisão firmada.

Todavia, apesar desses efeitos, no caso em tela ficou evidente a

desconstrução de princípios basilares, constitucionais e tributários, pois foi criado um

tratamento diferenciado e injusto. Muitos contribuintes foram lesados, deixando de

receber o que haviam recolhido à previdência, enquanto que os maus pagadores

foram beneficiados com a extinção do seu débito.

A referida modulação temporal, sob o ponto de vista econômico ou fiscal, foi

evidentemente adequada e vantajosa. Mas numa leitura constitucional mais

profunda, optou-se pela finalística fiscal, e isso remete a mais uma decisão política

do Supremo Tribunal Federal, dentro da casuística levantada neste trabalho,

desconsiderando-se a ampla tutela e efetividade dos direitos dos contribuintes.

A Súmula Vinculante n° 8 também pode ser interpretada como um recurso

simplificador da realidade, que acabou por ferir o princípio da igualdade, ainda que

conveniente em certo sentido para muitos contribuintes e para a saúde financeira da

Previdência garantindo a sua capacidade de resposta às demandas coletivas que

deve atender.

Assim o fazendo, porém, sem ressarcir a todos os contribuintes, a decisão da

Súmula nº 8 deixou de dar uma resposta justa e compatível com os mandamentos

constitucionais, pelos quais os princípios e valores que delimitam o campo dos

direitos humanos não podem ser afastados, ainda mais quando se trata de conceder
212

benesses fiscais ao Estado e, ao mesmo tempo, responder aos direitos apenas de

parte dos contribuintes, em relação dúbia e diferenciada incompatível com o

tratamento isonômico exigido pela Constituição.

Desrespeitado o princípio constitucional da isonomia tributária, foi priorizada

a práxis tributária, visando reduzir os impactos derivados da declaração de

inconstitucionalidade da norma previdenciária ordinária. Tendo esta permitido o

ingresso de vultosa receita aos cofres previdenciários, a modulação temporal mitigou

a responsabilidade estatal de ressarcir a todos os prejudicados, reduzindo-se assim

o rigor dos efeitos de uma eventual observância fiel da Constituição, que deveria

ocorrer se fossem preservados os direitos de todos os contribuintes.

A mitigação dos efeitos para o Estado nesse caso é questionável, sob o ponto

de vista das escolhas realizadas pelos julgadores, transitando entre o propósito

fiscal, também neste caso sob a alegação de excepcional interesse público,

vinculado à manutenção da capacidade financeira da Previdência, e a efetividade

apenas parcial dos direitos dos contribuintes.

A justificativa de evitar danos à capacidade financeira da Previdência,

atrelada a interesse coletiva relevante, não confere nenhuma legitimidade aos

efeitos moduladores, pois envolve uma finalística econômica, não diretamente

vinculada à questão de direito. Nela não se encontra a razoabilidade, nem a

justificabilidade.

A matéria em questão não é estritamente de natureza financeira, e tampouco

a consecução de propósitos ficais ou orçamentários, como pressupõe uma ênfase

na garantia de recursos tributários, mas diz respeito ao conteúdo da relação

tributária, na qual devem ser clarificados, sempre, os direitos e deveres das duas

partes, Fisco e contribuinte, pois “[...] seria um contrassenso jurídico permitir que o
213

saldo positivo dos cofres públicos prevaleça aos direitos e garantias constitucionais”

(HARET, 2010, p. 286).

Ainda que indispensável a vinculação do intérprete autêntico, no Direito

Tributário, ao princípio da legalidade estrita, isso não invalida a regra de que a

norma é produzida por ele, “[...] não apenas a partir de elementos que se

depreendem do texto (mundo do dever-ser), mas também a partir de elementos do

caso ao qual será ela aplicada, isto é, a partir de elementos da realidade (mundo do

ser)” (GRAU, 1998, p. 123).

Diante do exposto, pode-se afirmar que as interpretações “pragmáticas” do

Supremo Tribunal Federal são evidentes nas decisões dos julgadores versando

sobre matéria tributária. O que se compreende se forem consideradas as análises de

Grau (1998), observando que uma norma é sempre expressão de poder, e isso, para

além da praticidade alcançada, também representa um problema a ser superado

quando se utiliza a interpretação autêntica.

Existe uma relação entre a interpretação e a aplicação da norma. Mas por não

ser o conteúdo da norma idêntico ao conteúdo do texto, isso leva o “[...] intérprete a

interpretar também o caso, necessariamente, além dos textos, ao empreender a

produção prática do direito” (GRAU, 1998, p. 123).

Todavia, embora estribada em interpretação coerente com o sistema legal, a

decisão do STF não contemplou a necessária relação entre a legalidade estrita e o

adensamento da matéria, para considerar, também, o campo mais amplo dos

princípios e valores envolvidos, ampliando o grau de capacidade satisfativa da

decisão no que se refere à concretização dos direitos de todos os contribuintes.

Mais do que suscitar questionamentos sobre quão flexíveis podem ser as bases

hermenêuticas no propósito de apreciar as grandes questões nacionais sujeitas ao seu


214

julgamento, as decisões analisadas permitem identificar as limitações do sistema

constitucional, particularmente no que se refere à satisfatividade dos direitos humanos

dos contribuintes, num espaço em que atuam com toda sua potência as forças

irradiantes do sistema político, e que se espraiam, muitas vezes de forma acintosa, para

o Judiciário, conduzindo a perversidades tributárias como as já comentadas.

Nesse cenário, torna-se imperiosa a busca de um caminho novo para

assegurar e dar concretude aos direitos humanos dos contribuintes, e aí se

apresenta em toda a sua importância e plenitude a aplicação da

supraconstitucionalidade, por meio de sistemática inovadora, que assim pode se

desenvolver por estar livre das amarras de modelos político-jurídicos tradicionais e

das restrições inerentes ao seu funcionamento.

5.2.2 O direito de resistência frente aos excessos tributários: a


supraconstitucionalidade dos tratados e a satisfatividade dos direitos
humanos do contribuinte

A não-satisfatividade dos direitos humanos do contribuinte, apesar dos

princípios e normas constitucionais e da existência de uma atuação judicante intensa

na sua interpretação e aplicação, ainda é uma das principais questões a serem

enfrentadas sob um olhar atento de quem busca a efetividade dos direitos humanos,

especialmente porque as decisões judiciais, no campo tributário, não têm sido

capazes de abarcar a dimensão não-patrimonial ou econômica da relação entre

Estado e contribuinte.

Deve-se levar em conta, mesmo na relação tributária, que o primado é sempre

do contribuinte, na condição de ser humano, e não dos elementos patrimoniais ou

pecuniários envolvidos. Essa referência deve orientar as decisões judiciais, sob pena

de serem desconstruídas as bases fundantes do Estado de Direito.


215

Por conseguinte, os direitos humanos, implícitos ou explícitos na Constituição,

balizam toda a atividade jurisdicional, estabelecendo as regras gerais informadoras

da interpretação e da aplicação de todas as normas, inclusive no campo tributário.

A despeito disso, observam-se limitações inerentes ao modo de

funcionamento dessa tutela jurisdicional aos direitos humanos do contribuinte,

muitas vezes resultando no esgotamento das vias possíveis de resistência frente às

imposições do Fisco.

Por isso emerge uma crescente preocupação com o desenvolvimento de

mecanismos que permitam responder, de forma ágil e incisiva, às afrontas

recorrentes aos direitos humanos dos contribuintes por parte da Administração

Pública, as quais têm se tornado mais evidentes e exacerbadas em razão das

políticas fiscais e das estratégias desenvolvidas no intuito de maximizar a eficiência

e eficácia arrecadatória.

Além disso, como foi demonstrado, uma das questões de fundo no confronto

entre a voracidade fiscal do Estado e o contribuinte é a parcialidade dos tribunais.

Consoante os casos paradigmáticos apresentados, os mecanismos tradicionais de

proteção jurisdicional dos contribuintes se esgotam na convergência de interesses

políticos, interpretações fechadas e posturas dogmáticas do Judiciário. Este tem se

mostrado resistente às mudanças, particularmente quando isso implica abdicar da

exclusividade da função de controle da constitucionalidade, em favor de um poder

“externo” no que tange às decisões relacionadas aos direitos humanos.

A aplicação da supraconstitucionalidade pode ser considerada não como uma

via idealista, mas como uma práxis jurídica alicerçada em experiências

internacionais e num crescente reconhecimento da força cogente dos direitos

humanos, consubstanciando um novo entendimento acerca da aplicação dos


216

tratados internacionais de direitos humanos independentemente da disposição

interna oriunda da interpretação dos tribunais nacionais.

Quanto à questão de como fazer com que seja alcançada a satisfatividade

dos direitos humanos em face da sistemática tradicional, é preciso uma mudança

paradigmática, pois hoje depende da atividade jurisdicional interna, a quem compete

determinar o sentido da norma segundo a Constituição, processo esse sintetizado

por Barroso (1999, p. 107):

[...] a superlegalidade, a supremacia da Constituição é a nota mais essencial


do processo de interpretação constitucional. É ela que confere à Lei Maior o
caráter paradigmático e subordinante de todo o ordenamento, de forma tal
que nenhum ato jurídico possa subsistir validamente no âmbito do Estado
se contravier seu sentido. Essa supremacia se afirma mediante de
diferentes mecanismos de controle de constitucionalidade.

Ainda sobre a forma como poderá ser promovida a força cogente dos direitos

humanos diante de situação que configure sua violação ou simples ameaça, é

importante ressaltar que o direito de resistência é oponível sempre, mesmo quando

o órgão judicial máximo venha a negá-lo, e o faça sob uma argumentação pautada

em uma hermenêutica constitucional considerada consistente.

Häberle (2002) postula que a Constituição Federal não é um sistema lógico

perfeito, refutando o axioma jurídico tradicional que norteia o exercício do poder

jurisdicional e conduz a uma interpretação fechada, desenvolvida de forma exclusiva

por um corpo de magistrados, em evidente distanciamento e dissociação com a

sociedade que supostamente representam, posição esta que também tem permitido

rechaçar a aceitação da supraconstitucionalidade como via para a concretude dos

direitos humanos.

Ainda sob a inspiração dessas idéias, pode-se afirmar que a interpretação

constitucional deve ser um processo democrático. De forma que o poder dos juízes,
217

em sua suposta competência exclusiva para interpretar a Constituição, não é

absoluto, e tampouco pode ser justificado em razão da sua posição e função na

sociedade, pressupondo que, na condição de “detentores de conhecimento

especializado”, são os “mais aptos” a dizer o Direito.

De modo que, ao se adotar a supraconstitucionalidade, é possível assegurar

ao cidadão um alargamento da sua possibilidade de defesa, cabe dizer, maximizar o

seu direito de resistência, hoje restrito em função das limitações da aplicação

exclusiva da jurisdição nacional ou da sua primazia sobre decisões internacionais.

No Direito Comunitário europeu, a jurisprudência firmada a partir de

sucessivas decisões da Corte Européia dos Direitos Humanos consolidou uma base

supraconstitucional de ampla tutela e satisfatividade dos direitos dos contribuintes da

Comunidade Européia, com interpretações recorrentes que subverteram os poderes

do Fisco nacional e tornaram inaplicáveis as normas do Direito Tributário interno.

Masson (2002, p. 1) explica o fundamento dessa proteção dos contribuintes

europeus por meio das normas comunitárias emanadas dos tratados de direitos

humanos:

A expressão da soberania dos Estados é uma ameaça constante para os


direitos e liberdades dos cidadãos, a fiscalidade podendo estar sujeita ao
exame da Corte Européia dos Direitos Humanos, e mesmo diretamente
posta em causa frente às jurisdições nacionais com base unicamente na
162
Convenção.

O feixe normativo que encerra as bases da proteção supraconstitucional no

Direito Comunitário apresenta-se assim como um alargamento do sistema jurídico,

desentranhando conteúdos de caráter plural quanto ao seu sentido e significado,

os quais não encontram restrições em nenhum espaço normativo, a despeito da

162
Tradução livre do original: “Expression de la souveraineté des États et menace constante pour les
droits et libertés des citoyens, la fiscalité pourrait désormais être soumise à l'examen de la Cour
européenne des droits de l'homme, voire être directement remise en question devant les juridictions
nationales sur le seul fondement de la Convention.”
218

idéia de que existe, por força da Constituição, limites que determinam certos

parâmetros para a admissibilidade de uma norma derivada de decisão

internacional.

Cita-se, a título de exemplo, a decisão do caso Ravon versus França

(Processo n° 18.497/03), de 21 de fevereiro de 2008, a Corte Européia de Direitos

Humanos considerou ilegais, com fulcro no artigo 6º, § 1º, da Convenção de

Garantia dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, as buscas em

domicílio como procedimento investigativo sobre evasão fiscal, conforme previsto

no artigo L16B do Livro de Procedimentos Fiscais (LPF) francês.

O julgado da Corte Européia obrigou o governo francês a rever essa norma

interna, tornada inaplicável por força da decisão, dando nova solução processual

para a garantia de defesa do contribuinte, assegurando-lhe o direito de interpor

recurso contra decisão judicial que autoriza a visita domiciliar e as operações

envolvidas nesse procedimento (COUR EUROPÉENE DES DROITS DE

L’HOMME, 2012a).

No caso brasileiro, com a aplicação da norma supraconstitucional de direitos

humanos o cidadão não dependerá mais do voluntarismo do Judiciário, nem da

vulneração da autonomia decisória deste por força das relações que mantém, no

0interior do sistema, as quais nunca são absolutamente isentas, seja por força da

convicção pessoal dos julgadores enquanto produto de um viés cultural inerente à

sua formação, seja em razão da dinâmica inerente à divisão dos poderes, a qual

não é absolutamente estanque, ocorrendo sempre inflexões mútuas que tendem a

influenciar a interpretação e a posição dos tribunais na decisão dos casos a eles

sujeitos. O que é especialmente comum no caso de questões tributárias, conforme

demonstrado nos casos paradigmáticos anteriormente comentados.


219

A satisfatividade dos direitos humanos do contribuinte não pode ficar sujeita

à dependência de um Direito cristalizado em torno de posições dogmáticas, o qual

confere ao Judiciário a competência exclusiva para tomar decisões, segundo as

suas atribuições constitucionais. Jardim-Rocha (2005, p. 17) entende que:

[...] a principal idéia a reter é a de que se afigura absolutamente


impertinente a intenção de alguns de configurar um modelo de jurisdição
constitucional lógico e fechado, que forneça soluções para todos os
problemas que decorrem do exercício, nos Estados Unidos como no Brasil
ou em qualquer outro quadrante, por parte dos juízes, em especial de
juízes de um tribunal de cúpula, do poder de invalidar normas
elaboradas pela maioria de um corpo legislativo eleito pela maioria dos
membros de uma comunidade política. Por o exercício de um tal poder,
primeiro, jamais se reconduzir isento de contestação ao que
tradicionalmente se entende seja a função jurisdicional — a de decidir
casos e controvérsias concretos com base em um dado direito —; depois,
em conseqüência, por implicar o exercício desse poder que as cortes
constitucionais façam política — já que, por evidente, somente por meio
de juízos políticos poderão ser confrontadas com uma Carta Política as
decisões políticas de um corpo político. (não grifado no original).

Com a admissão da força cogente dos tratados internacionais de direitos

humanos deixam de prevalecer as regras internas, mesmo as constitucionais, pois

não se trata de matéria que pode ser limitada por regras vinculadas a um sistema

fechado, como ocorre com a apreciação constitucional feita pelos tribunais,

segundo o paradigma da soberania nacional.

Por meio da supraconstitucionalidade é possível afastar os óbices à

satisfatividade dos direitos humanos, os quais determinam um pragmatismo

jurídico invertido. A pretexto de oferecer maior possibilidade de defesa e

efetividade desses direitos, o sistema jurídico nacional em vários casos tem

limitado, e até mesmo impedido, a sua concretização.

Remetendo a questão ao sistema pátrio, há que se perquirir: porque a busca

da satisfatividade dos direitos humanos do contribuinte deve ocorrer apenas dentro

do sistema nacional, fechado, segundo as determinações do eixo Direito

Interno/controle concentrado de constitucionalidade?


220

Caso fosse aplicada imediatamente a norma do Direito Internacional, seria

reduzida a complexidade, por meio do alargamento das possibilidades de judicialização

dos direitos humanos diante da possibilidade do juiz nacional pautar a sua decisão nas

disposições de tratados internacionais de direitos humanos em que o Brasil é signatário.

Nesse caso, existindo dois subsistemas – Direito Interno e Internacional - a

supraconstitucionalidade possibilita a comunicação entre eles, não no sentido do

diálogo das fontes, mas da criação de uma ponte de unificação – o juiz, em qualquer

instância, pode passar diretamente de um subsistema para outro quando verificar

que é possível a maior satisfatividade no Direito Internacional, sem se prender à

Constituição ou depender da aprovação de um dispositivo legal para a incorporação

da norma derivada de tratado ao texto constitucional.

Por conseguinte, a adoção da supraconstitucionalidade representaria uma

evolução do Direito pátrio, a qual, em suas bases gerais, pode ser descrita com base

na teoria sistêmica, comentada por Neves (2008, p. 18-19):

Na esfera jurídica, a variação evolutiva, que diz respeito aos elementos,


apresenta-se como ‘comunicação de expectativas normativas inesperadas’.
Isso significa que o respectivo comportamento não é previsto nas estruturas
normativas preexistentes, desaponta expectativas contrafácticas
dominantes [(i)]. O desvio pode ser seletivamente rejeitado ou tratado com
indiferença. É possível, porém, que a repetição ou difusão do desvio
conduza à produção de novas estruturas normativas que venham a
condicionar a continuidade da inovação. A seleção significa, portanto, que a
conduta inicialmente desviante passa a ser prevista no plano das
expectativas normativas [(ii)]. Não importa necessariamente a
restabilização. Esta só ocorre quando a nova expectativa é inserida como
norma jurídica vigente no modelo estrutural de reprodução do direito.
Refere-se à unidade do sistema jurídico e, portanto, ao problema da
inserção consistente da nova norma no ordenamento jurídico [(iii)].

À luz da teoria sistêmica, a aplicação da supraconstitucionalidade pode ser

interpretada como uma evolução da juridicização dos direitos humanos, constituindo

uma normalização do improvável. Inicialmente caracteriza-se como uma

comunicação desviante do sistema (variação), ou seja, não é cogitada a


221

possibilidade de uma norma emanada de tratado de direito internacional sobre

direitos humanos ter força supraconstitucional e aplicabilidade imediata, sem ser

internalizada no sistema jurídico nacional.

A idéia acerca dessa possibilidade, ou a sua propositura, aparece então para

o Direito vigente como um desapontamento ou desvio das expectativas dominantes,

pois contraria as condições impostas para a defesa dos direitos humanos segundo o

dogma constitucionalista, tendo como corolário a soberania nacional.

Todavia, a despeito da imprevisibilidade de norma supraconstitucional, estão

surgindo precedentes, destacando-se, pela anterioridade e grau de adensamento

jurídico, a aplicação das normas de tratados de direitos humanos no Direito

Comunitário europeu, surgindo assim uma variação sistêmica, ou seja, um

procedimento inovador, que passou, num segundo momento, a constituir uma

tendência recorrente, como se verifica no Direito Comunitário com o

desenvolvimento de uma crescente jurisprudência consolidando a proteção dos

direitos humanos pela prevalência das normas derivadas dos tratados sobre o

Direito interno dos Estados-Membros.

Apesar do exemplo paradigmático europeu, e da recusa em se admitir a

supraconstitucionalidade no Brasil, as inflexões da sua aplicação estão se fazendo

sentir num campo mais próximo e em íntima conexão com o Direito pátrio.

Trata-se das decisões emanadas da Comissão Interamericana de Direitos

Humanos (CIDH), cujos efeitos já se fazem sentir no plano interno dos países que

integram a Organização dos Estados Americanos (OEA)163, embora não tenham a

mesma força cogente das decisões da Corte Européia de Direitos Humanos (que

163
A CIDH foi criada em resolução emitida pelos países participantes da Quinta Reunião de Consulta
dos Ministros das Relações Exteriores, realizada em Santiago, no Chile, em 1959.
222

tem sido maximizada em razão da construção da Comunidade Européia e a

crescente interpenetração dos Direitos nacionais).

Cabe destacar as limitações procedimentais no caso americano, pois não é

possível submeter a demanda diretamente à Corte Interamericana de Direitos

Humanos, passando pelo filtro da Comissão Interamericana de Direitos Humanos,

que decidirá pelo envio ou não da matéria a julgamento.

Ao contrário do que ocorre na Europa, onde é possível ao cidadão postular

diretamente junto à Corte Européia de Direitos Humanos, no sistema americano isso

não ocorre, sendo possível somente peticionar perante a Comissão Interamericana

de Direitos Humanos, a qual compete, após o trâmite inicial da demanda, decidir se

deverá adotar medidas próprias ou se deverá remeter o caso para a apreciação pela

Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Esse procedimento, previsto no artigo 61 da Convenção Interamericana sobre

Direitos Humanos, limita aos Estados e à Comissão a capacidade de submeter um

caso à jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos, a qual tem

competência para conhecer de questões envolvendo a interpretação e a aplicação

das disposições da Convenção Americana.

Cabe ressaltar que essa competência da Corte somente se aplica nos casos

em que os Estados-partes expressamente reconhecem a sua jurisdição, como

determina o artigo 62 da Convenção, constituindo, no entendimento de Trindade;

Robles (2004, p. 91), uma situação incompatível com os avanços indispensáveis à

consagração do “[...] automatismo da jurisdição obrigatória da Corte para todos os

Estados-partes da Convenção.”164

164
No sistema comunitário europeu, qualquer indivíduo pode apresentar seu pleito à Corte Européia,
independentemente da aceitação, pelo Estado-membro, da Convenção Européia de Direitos
Humanos.
223

Essa limitação, que expressa a dependência da apreciação dos casos pela

Corte Interamericana de Direitos Humanos ao voluntarismo dos Estados, reduz a

capacidade de defesa dos direitos ameaçados ou violados, somando-se à

impossibilidade de acesso direto dos cidadãos à apreciação das suas demandas

diretamente pela Corte Interamericana, uma vez que não é admitido o jus standi, que

garantiria a universalidade do direito de postular, ao contrário da seletividade atual.

Santos (2012, p. 1), comentando sobre o sistema europeu, ressalta o grau

evolutivo da admissibilidade do jus standi165 como capacidade de postulação direta

dos cidadãos na Corte Européia de Direitos Humanos, definindo um importante

processo de mudanças por meio da constituição de um mecanismo muito mais

adequado para a defesa dos direitos humanos:

Nesta Convenção as petições individuais passavam obrigatoriamente por


complexo procedimento de análise de pertinência ou não, inclusive sobre
questões de mérito. A mudança passou a permitir não somente a
apresentação de demandas individuais diretamente a Corte Européia como
também passou esta a ser obrigatória em relação aos Estados, o que antes
era facultativo. Alguns argumentos para a mudança fundamental que
efetivou o jus standi aos indivíduos no sistema europeu originaram de
avaliações de limitações das instituições e do funcionamento dos órgãos
europeus, especialmente a Comissão Européia. Partindo de uma
competência facultativa sobre os Estados em 1950, a Comissão teve
expandiu suas atividades nos anos 1990, sobretudo pelo aumento do
número de países que integraram o grupo de países componentes do
sistema e, em especial, pelo grau de consciência alcançado pelos
indivíduos quanto aos seus direitos. Isso passou a exigir maior dinamismo
da Comissão que, pelos formalismos e excessos no controle das petições
individuais encaminhadas já não mais se adequava às exigências da
sociedade européia. Com isso, inevitavelmente, fez-se necessária esta
mudança que notadamente solidificou o conceito de sujeitos de direitos aos
indivíduos, inclusive redefinindo os mecanismos de garantia que ampliou,
definitivamente, o acesso ao tribunal sem mais a intermediação e controle
da Comissão Européia.

165
O jus standi para representação direta na Corte Européia de Direitos Humanos foi consagrado por
intermédio do Protocolo nº 11, de 01 de novembro de 1998, inserindo o artigo 34 na Convenção
Européia: “A Corte pode receber petições de qualquer pessoa, organização não governamental ou
grupo de indivíduos que se considere vítima de violação por qualquer Alta Parte Contratante dos
direitos reconhecidos na Convenção ou nos seus protocolos. As Altas Partes Contratantes
comprometem-se a não criar qualquer entrave ao exercício efetivo desse direito”.
224

O autor referido identifica uma importante questão de fundo nas mudanças

procedimentais visando a maior satisfatividade dos direitos humanos na Europa, de

modo que as transformações operando no interior do sistema jurídico não ocorreram

por simples decisão dos Estados-membros, mas também por força dos próprios

jurisdicionados, em razão de um crescente nível de conscientização individual sobre

os direitos que lhes são pertinentes.

A força atuante dos indivíduos como fator de mudanças no sistema de

garantia e ampla tutela dos direitos humanos é expressão da cidadania ativa. Pode-

se relacionar a admissibilidade jurídica da supraconstitucionalidade a uma mudança

necessária no nível de conscientização dos indivíduos, e a sua consequente

mobilização na defesa dos seus direitos.

Por esse critério de diferenciação pode-se compreender as singularidades

dos sistemas europeu e americano, no que se refere à possibilidade individual de

peticionar nos tribunais internacionais.

O baixo nível de consciência cidadã, principalmente nos países latino-

americanos, reflete-se na capacidade dos indivíduos de induzir mudanças

substanciais no sistema, representando assim um fator redutor na velocidade de

evolução do Direito, favorecendo modelos mais rígidos e fechados quanto à forma

de acesso e aos mecanismos de tutela e satisfatividade dos direitos.

Isso pode explicar a recusa do sistema americano de aceitar a capacidade

postulatória do indivíduo, negando a sua legitimidade para atuar na produção de

atos judiciais válidos, em todas as fases do processo, tema já que foi superado no

Direito Comunitário europeu.

Além de não ser reconhecida a autonomia do indivíduo para defender seus

próprios direitos, atribui-se ao Estado a condição de sujeito de direito, sob a


225

alegação de que os indivíduos não têm capacidade postulatória direta no âmbito

internacional por não serem os produtores das leis, incumbência do Estado, que

celebra os tratados internacionais.

Por essa linha de raciocínio, as pessoas singulares somente podem ser

representadas, o que tem justificado a posição da Comissão Interamericana de

Direitos Humanos como órgão intermediador das petições individuais.

Analisando a questão, Santos (2012, p. 1) comenta a incongruência dessa

sistemática face à irredutibilidade dos direitos humanos, imanentes ao próprio

indivíduo, o que o legitima a postular diretamente nos tribunais internacionais:

Embora conste como parte a pessoa ou pessoas que tiveram seus direitos
violados, a presença no pólo ativo da ação é condição de aceitação e
prosseguimento da ação, não se admitindo atuação dos indivíduos de forma
autônoma e independente em todas as fases dos procedimentos judiciais.
Portanto, não se viabiliza o jus standi como se vê na Corte Européia.
Partindo da compreensão que incapacidade processual tem a ver com
impossibilidade de exercer atos jurídicos válidos, necessitando de
assistência ou representação, temos que na esfera internacional vis a vis o
direito processual interno, a Comissão Interamericana tem atuado como
representante ou assistente dos indivíduos, o que enfatiza a incapacidade
individual de praticar atos válidos no processo.

Além da questão procedimental, é importante ressaltar uma diferença

substancial quanto às matérias que são apreciadas na instância européia e

americana, sendo possível delinear outra questão de fundo, relativa ao que tem sido

de modo mais recorrente objeto de apreciação nas cortes supranacionais na seara

dos direitos humanos.

Um levantamento das petições encaminhadas para a apreciação da Comissão

Interamericana de Direitos Humanos em 2011 e para a Corte Européia de Direitos

Humanos, revela que a maior parte dos casos encaminhados para apreciação da

CIDH diz respeito a violações graves dos direitos humanos no campo penal

envolvendo arbítrios e excessos do poder Estatal, ao contrário dos casos remetidos

ao referido órgão supranacional europeu, os quais versam sobre múltiplas matérias,


226

consubstanciando atenção integral ao vasto campo de direitos que podem ser

afetados: regimes penitenciários e detenção provisória, casos de servidão urbana,

asilamento de doentes mentais, direitos de defesa e procedimento judiciário, entre

outros.

A esse respeito, observa-se que uma crescente parcela das petições

encaminhadas à CEDH são oriundas do Leste Europeu, Turquia e Rússia, envolvendo

principalmennte violações aos direitos humanos em razão dos excessos do poder

estatal, característica de sociedades onde a democracia ainda é frágil. Sobressaem os

atentados ao direito a tratamento digno ou não degradante no caso de prisão, e ao

direito à liberdade de expressão.

Todavia, nos países ocidentais, de democracia avançada, são poucos os

casos de violações de direitos humanos relacionadas à arbitrariedade estatal, pelo

menos no que se refere a violências diretas contra a pessoa humana, mais

comumente envolvendo limitações ao exercício pleno da cidadania, como restrições

aos direitos das minorias, à liberdade religiosa, à orientação sexual, à livre disposição

do próprio corpo (aborto), aos direitos de propriedade, entre outros.

A despeito dessas diferenças, no geral observa-se um avanço na Europa, com

relação ao reconhecimento e proteção dos direitos humanos do contribuinte. Se for

considerado apenas o ano de 2011, constata-se que nenhuma petição versando

sobre questões tributárias foi julgada pela Comissão Interamericana de Direitos

Humanos, ao passo que na Corte Européia de Direitos Humanos, de um total de

1.815 decisões proferidas nesse exercício, 464 envolviam questões sobre direitos

humanos dos contribuintes, representando 25% do total.

Esses dados deixam evidente que, no âmbito americano, os direitos humanos

dos contribuintes ainda não adquiriram o status equiparado a outras matérias


227

relevantes, o que já não ocorre na Europa. Certamente um avanço ainda maior nessa

área irá se verificar, caracterizando uma nova etapa no desenvolvimento do Direito

europeu, tanto pela força cogente de aplicação da jurisprudência da Corte Européia

de Direitos Humanos, como pela crescente confiança dos cidadãos de outros Estados

não-integrantes da Comunidade Europeia, signatários da Convenção Européia de

Direitos Humanos, que cada vez mais buscam assegurar os direitos que as Cortes

nacionais têm preterido ou desconsiderado reiteradamente.

É no avanço e consolidação da cidadania fiscal, seja na Europa, no Continente

Americano ou em outras partes do planeta, que se pode vislumbrar o alargamento das

bases protetivas e de satisfatividade dos direitos humanos do contribuinte, passando

este a buscar nas normas de tratados internacionais de direitos humanos as garantias

e o reconhecimento dos direitos que lhes são denegados internamente.

Pode-se falar neste caso num novo caminho para a afirmação do direito de

resistência dos cidadãos, tema tratado pela eminente doutrinadora Garcia (2004) na

sua obra “Desobediência Civil”.

Essa autora comenta sobre a questão, observando que o direito à resistência é

imanente à liberdade, ou mais precisamente, condição para a sua efetividade, e por

extensão, para que a cidadania seja concretamente vivenciada, e não mera

proclamação legal.

No mesmo compasso, Arendt (1979) afirma que a cidadania tem como

substrato a liberdade. Na tessitura da relação entre a pessoa singular e sua condição

de ser social e político devem se estabelecer as condições pelas quais poderá agir

para que os seus objetivos pessoais e os coletivos sejam alcançados. De modo que

toda forma de controle ou limitação a essa busca e propósito transforma-se em objeto

da resistência ativa dos cidadãos.


228

Esse é o direito de resistência comentado por Garcia (2004), para quem a

culminância da liberdade é a cidadania, tendo esta fundamento tanto na lei, enquanto

instrumento garantidor de direitos, como na oposição à determinação legal quando por

meio dela o governante distancia-se da vontade coletiva, fonte da legitimidade do

exercício do poder.

A referida autora entende que o direito à desobediência civil já está

consubstanciado na lei constitucional, no artigo 5º, parágrafo 2º, da Magna Carta: “Os

direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do

regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a

República Federativa do Brasil seja parte.”

É precisamente por esse dispositivo constitucional que se alinham, lado a lado,

o direito à resistência e a aplicação de direitos que não os expressamente previstos na

Constituição Federal, dentre os quais os emanados de tratados internacionais dos

quais o Brasil é signatário.

A oposição à norma injusta, por meio do direito à resistência, embora apenas

implícitamente expresso na Constituição Federal, conforme o teor do referido

parágrafo 2º, do artigo 5º, pode assumir diferentes formas, seja a desobediência civil,

consoante o pensamento da referida autora, ou a busca da satisfatividade dos direitos

no plano internacional, entendimento exposto neste trabalho, caso em que a

supraconstitucionalidade parece ser um recurso potencialmente novo166 e cada vez

mais importante para superar as limitações do cenário descrito por Garcia (2004, p.

259) que justificam o direito de resistência:

166
Qualquer ação que esteja relacionada ao direito à resistência é um ato inovador, uma vez que
visa alcançar um propósito: demonstrar a injustiça da lei e levar a uma mudança no quadro legal em
vigor (GARCIA, 2004).
229

O cidadão, propriamente, encontra-se desprovido de instrumentos de


intervenção no processo legislativo e no controle da constitucionalidade da
lei sendo ele, primacialmente, o destinatário da norma posta pelo Estado e a
unidade-padrão da sociedade política.

Ao se falar em inovação no campo da defesa dos direitos humanos, retorna-

se à questão da evolução do Direito sob o ponto de vista sistêmico: à medida que a

supraconstitucionalidade for aplicada com mais intensidade, como remédio para

alcançar a concretude dos direitos dos cidadãos, ter-se-á atingindo o ponto da

seletividade; passando a constituir um instrumento comum de defesa dos direitos

humanos, com a sua aplicação em decisões reiteradas dos tribunais brasileiros,

também se verificará a sua reprodução no interior do sistema, em face da

comunicabilidade entre os subsistemas, difundindo-se para as diversas áreas do

Direito, dentre elas o Tributário.

Será possível então, por meio de decisões judiciais internas, aplicar a

supraconstitucionalidade para potencializar a maximização do direito do contribuinte

de opor resistência ao Fisco, quando os seus direitos humanos forem atingidos.

Para isso, ao invés da atividade jurisdicional concentrada, como ocorre

no Brasil, será necessário adotar uma nova sistemática, mais adequada ao propósito

da satisfatividade imediata dos direitos humanos lesados ou ameaçados, o que

poderá ser alcançado por intermédio da atividade jurisdicional difusa, como já ocorre

na Europa.

Por essa sistemática de aplicação da supraconstitucionalidade, seria possível

abreviar o curso do tempo, o que é importante tanto para fazer valer a sua eficácia o

mais breve possível, como para eliminar a necessidade de um longo e sinuoso

percurso pelas cortes internas. O custo de recorrer nas diversas instâncias, e em

especial para que um processo seja julgado no Supremo Tribunal Federal, é muito
230

alto, o que impede muitos cidadãos de terem a sua causa devidamente apreciada

nessa Corte Suprema.

No caso europeu, uma instância supracional, dotada dos instrumentos que a

capacitam a reconhecer e a julgar rapidamente os casos de violação ou ameaça aos

direitos humanos dos cidadãos, pode aplicar o remédio jurídico mais adequado, por

intermédio de decisões cuja efetividade não depende da criação de norma interna,

nem de adequação prévia às normas constitucionais.

Assim, o juiz nacional encarregado de aplicar, no âmbito da sua competência,

as disposições do Direito Comunitário, tem a obrigação de garantir a plena eficácia

dessas normas, não aplicando, se necessário e pela sua própria autoridade,

qualquer disposição contrária da legislação nacional, mesmo posterior, sem que

tenha de pedir ou esperar a sua revogação prévia por via legislativa ou por qualquer

outro procedimento constitucional.167

167
Tradução livre da Decisão da Corte Européia de Direitos Humanos no caso Krzysztof Filipiak
contra Dyrektor Izby Skarowej w Poznaniu: “81. Selon une jurisprudence bien établie, le juge national
chargé d’appliquer, dans le cadre de sa compétence, les dispositions du droit communautaire, a
l’obligation d’assurer le plein effet de ces normes en laissant au besoin inappliquée, de sa propre
autorité, toute disposition contraire de la législation nationale, même postérieure, sans qu’il ait à
demander ou à attendre l’élimination préalable de celle-ci par voie législative ou par tout autre
procédé constitutionnel” (COUR EUROPÉENE DES DROITS DE L’HOMME, 2009, p. I-11049).
231

CONCLUSÃO

A fixação de limites ao exercício do poder político, com base na

constitucionalização dos direitos, foi produto de um processo histórico, no bojo do

qual também foi definida a identidade do ente estatal, atrelada à soberania, corolário

do exercício do poder enquanto forma de afirmação da identidade e da vontade do

Estado frente aos seus súditos.

A trajetória histórica demonstra que o Estado moderno firmou-se a partir de

um conjunto de fatores, delineando-se a figura do ente estatal num cenário marcado

por transformações estruturais envolvendo uma conjuntura econômica, política e

social, as quais se acentuaram no final da Idade Média.

Analisando a forma como passaram a ser pensadas as relações entre o

Estado e os indivíduos nesse período, observa-se a passagem de conceitos

puramente metafísicos para a concepção racional do exercício do poder e seus

efeitos para os indivíduos.

No decorrer da Idade Média aprofundou-se o questionamento sobre as

origens do poder, particularmente sobre a sua suposta gênese divina. As

divergências entre o poder religioso e temporal se tornaram mais evidentes em

razão de diferenças envolvendo interesses econômicos e políticos, agravando-se

com a maior proeminência do poder real frente à autoridade da Igreja que culminou

com o aparecimento do Estado moderno.

Essas mudanças não foram decorrência apenas da resolução dos conflitos

em torno do poder, tendo contribuído para sua ocorrência o desenvolvimento do

pensamento político, levando à desconstrução de antigos conceitos sobre a posição

do homem frente aos poderes e as estruturas sociais tradicionais.


232

A racionalidade, erigida em nova promessa da redenção da humanidade,

abriu caminho para o reencontro dos antigos valores, particularmente quanto à

significância da capacidade criadora do homem e da sua autodeterminação, até

então tolhidas pela doutrina da Igreja.

O precursor, no campo da teoria política sobre o Estado, foi Maquiavel, o qual

estabeleceu um modo inovador de pensar em relação à forma e justificativas para o

exercício do poder.

Na perspectiva maquiavélica observa-se a preocupação em identificar como

os Estados podem subsistir, não mais pela força dos costumes ancorados em um

conjunto de valores religiosos, mas por meio da escolha racional, da vontade

autônoma dos sujeitos, e nesse caso ele não pensa no governante como alguém

que deve e pode agir unicamente por si, mas a partir de uma relação com os seus

governados. Por conseguinte, ao mesmo tempo em que louva a virtude do Príncipe,

não deixa de reconhecer que acima deste estão as normas, o conjunto de leis,

expressão máxima da vontade do povo.

Essa é a tônica do pensamento que se desenvolveu a partir de então, a

despeito das teorias sobre a origem divina do pode real e outras que adotaram uma

linha semelhante para justificar o absolutismo.

Mesmo em Hobbes, ao contrário do que se costuma pensar, o poder do

soberano não deixa de ser sempre contraposto a uma vontade coletiva que,

mesmo transferindo seu poder ao rei, subsiste, de modo que, tendo sido

transferido todo o poder ao soberano por meio do pacto social, visando a

segurança de todos, a ele cabe assegurar as condições para a estabilidade social.

Quando isso se torna inviável, é admissível que o povo destitua o governante,

porque o pacto foi violado.


233

Com Hobbes o Estado assume uma feição mais distinta, impessoal, ao

contrário de Maquiavel, que conferiu especial atenção à personificação do ente

estatal num governante. O modelo hobbesiano de Estado, mesmo referindo-se a um

soberano, centrou-se num ente distinto, dotado de características e modos próprios

de ser e pensar, cuja vontade se tornou absoluta desde a constituição do pacto

social.

Nesse ponto estabeleceu-se uma distinção essencial entre governante e

governado, na qual o Estado tomou forma como um ente dotado de poder soberano,

irresistível, determinando assim a subordinação irrecusável de cada indivíduo, o que

passou a ser considerado indispensável para a manutenção e a continuidade da

sociedade, que estaria sob a ameaça de dissolução caso o pacto fosse quebrado.

Em sentido contrário, observa-se o reconhecimento da existência de valores e

princípios supostamente anteriores ao Direito. Foi sob o pressuposto de um Direito

Natural, imanente à ontologia humana, que se estabeleceu um consenso crítico em

relação ao exercício do poder absoluto na Europa. No final do século XVIII, a idéia

de certos direitos inalienáveis tornou-se a referência basilar para a defesa de um

novo ordenamento jurídico-político.

Nesse cenário, despontaram diferentes teorias contratualistas, com destaque

para Montesquieu e Rousseau, que propugnavam a inadmissibilidade de um poder

supremo e inquestionável nascido de um pacto coletivo, e a indispensável

transposição do modelo absolutista por um modelo baseado na representatividade

popular.

Essa proposta era expressão de uma tendência crescente de oposição ao

Estado absolutista, e sintetizava uma questão crucial para a época: a substituição da

vontade estatal pela vontade soberana do povo.


234

Foi na tessitura das relações entre o público e o privado, mediadas pelo

Estado, que se definiram as diferentes atribuições e os limites ao poder dos

governantes. Por intermédio da constituicionalização dos direitos expressamente

previstos foram erigidas as bases da relação entre o Estado e os indivíduos,

firmando-se o reconhecimento expresso da sua condição cidadã.

Não foram apenas reconhecidos e tutelados direitos, mas, principalmente,

buscados instrumentos para reduzir a assimetria de poder entre o ente estal e os

cidadãos, condição imprescindível para que o Estado de Direito estivesse,

efetivamente, comprometido com os indivíduos.

A mediação da lei consubstancia a emergência do Estado de Direito, a qual

não se corporifica somente por intermédio do primado da vontade geral que deverá

ser seguida pelos governantes, mas, sobretudo, pela demarcação objetiva do modo

como devem ser estabelecidas as relações entre o ente estatal e os cidadãos.

Portanto, a cidadania tornou-se uma referência-chave para estabelecer o

sentido e o significado da soberania estatal sob o ponto de vista do exercício do

poder, frente aos interesses e às demandas coletivas que o Estado deveria

considerar no exercício das suas funções e prerrogativas.

Sob o pressuposto de que a vontade geral não pode ser considerada senão

como somatório das vontades individuais, tornou-se uma condição sine qua nom a

questão da legitimidade do poder alicerçada no respeito ao indivíduo, e por extensão

aos direitos que lhe são inerentes, tanto quanto a legalidade dos atos dos

governantes.

Para isso foram decisivos os parâmetros estabelecidos no âmbito

constitucional, através da tessitura dos valores, princípios e normas, tornando

objetivas e explícitas as regras que deveriam conduzir o Estado a realizar seus fins.
235

Nesse sentido a constitucionalização não permitiu somente a passagem do

idealismo para a positivação dos direitos humanos, como também estabeleceu os

instrumentos e mecanismos necessários para que pudessem ser concretizados na

vida de cada cidadão. O paradigma do exercício do poder baseado no controle

constitucional dos excessos que poderiam ocorrer em razão da inexistência de freios

à discricionariedade dos governantes foi importante para a afirmação da alteridade a

ser alcançada na relação entre Estado e indivíduo.

Se a consagração constitucional dos direitos humanos foi crucial para esse

propósito, o maior adensamento dos valores reconhecidos como parte indissociável

do homem no plano internacional do homem representou um novo e decisivo passo.

O reconhecimento da universalidade e da indivisibilidade dos direitos

humanos firmou-se em diversos instrumentos de pactuação entre os Estados, tendo

como primeira expressão a Declaração Universal dos Direitos do Homem,

proclamada em 1948.

A partir desse momento a busca da efetividade desses direitos ultrapassou

os limites tradicionais da positivação interna baseada no reconhecimento de

direitos fundamentais, delineando-se um percurso inovador por intermédio da

acolhida e consagração dos direitos humanos pelo Direito Internacional.

O que inicialmente tinha mero sentido declaratório, como referência para o

desenvolvimento de normas protetivas cada vez mais abrangentes no Direito interno

dos Estados, com o tempo resultou num conjunto de instrumentos internacionais

visando oferecer novos campos de proteção e satisfatividade aos direitos humanos.

Tendo por objeto um amplo conjunto de direitos, inclusive os que não estão

referenciados em nenhuma regra jurídica em particular, uma vez que surgem com

o próprio homem, considerado em si mesmo e não em razão do local em que


236

nasce, os instrumentos internacionais permitem superar a questão da

territorialidade que tradicionalmente estabeleceu os limites jurisdicionais dos

Estados enquanto espaços exclusivos de competência para decidir sobre esses

direitos.

Isso representa uma ruptura com o paradigma da soberania estatal e a sua

intrínseca ligação com o conceito tradicional de Estado, o qual tem exaurido da sua

condição soberana o sentido e significado de sua existência, interna e

externamente.

A supraconstitucionalidade, considerada por alguns como a relativização da

soberania, pode ser entendida em sentido ainda mais abrangente, uma vez que,

como foi explicitado, não se prende à perspectiva dogmática de espaços

exclusivos de jurisdição.

Pelo contrário, estabelece, de maneira inovadora, uma nova concepção do

Direito como instrumento para a concretização dos direitos humanos, na qual deixa

de ter importância a questão da territorialidade, de forma que as decisões judiciais

sobre os direitos humanos não estão mais limitadas pelo sistema jurídico-político

interno, podendo ser apreciadas e asseguradas com a pactuação entre os Estados

e o reconhecimento internacional desses direitos.

Embora a corrente que advoga o relativismo cultural ignore a possibilidade

de concretização de um direito supranacional ou supraconstitucional, o processo

de interpenetração e de aproximação das sociedades humanas ocorre de modo a

propiciar uma crescente superação da fragmentação.

Ao invés de múltiplas racionalidades, que apenas em parte podem convergir

para entendimentos comuns, é possível divisar o desenvolvimento de uma

metalinguagem favorável um verdadeiro e concreto universalismo.


237

Esse processo universalizante das relações humanas permeia cada vez

mais os múltiplos espaços dos territórios nacionais, estabelecendo sentidos

uniformizadores para o viver coletivo, seguindo uma dinâmica inusitada na forma e

velocidade como está ocorrendo.

No bojo desse processo, os valores universais deixaram de ser meras

abstrações ou idealismos, tornando-se, cada vez mais, referências determinantes

para que o Direito, no seu modo de atuar, deixe de vincular-se às estruturas e aos

mecanismos rígidos da jurisdição nacional determinada pela territorialidade e pela

idéia da soberania como condição inafastável do Estado.

Transpondo essas questões para o campo do Direito Tributário, também fica

evidenciada uma processualidade histórica marcada pela dialética do confronto das

idéias, dela resultando, num segundo momento, a construção de um ordenamento

jurídico no qual o exercício do poder de tributar ficou clarificado e os direitos dos

contribuintes assegurados.

Não foi primeiramente no plano fático, mas no mundo das idéias, que se

estabeleceram os fundamentos do que viria a consubstanciar, na norma positiva, a

regulação do interesse estatal em estabelecer e cobrar tributos, definindo-se os

limites a serem observados, sob o ponto de vista dos direitos reconhecidos como

parâmetros necessários da relação entre o Fisco e os contribuintes.

Nesse mesmo plano histórico, os avanços na relação entre Estado e

contribuinte não se deram de forma linear, mas num processo dialético, entre indas e

vindas, num desenlace histórico que resultou na afirmação de direitos individuais,

embora sempre sob a ameaça da onipotente presença do Estado e da sua sanha

arrecadadora.
238

A resolução desse embate deu-se por meio da constitucionalização dos

direitos fundamentais do cidadão. A garantia de direitos ao contribuinte teve como

principal suporte a uma relação fundada no sistema normativo fundamental.

A lei tornou-se o instrumento racionalizador por excelência da atuação do

Estado, e por extensão, do processo de arrecadação tributária por ele realizada, no

contexto de um sistema político pautado no interesse privado e na maximização da

iniciativa individual:

Todavia, o desenrolar histórico desse processo conduziu a novas

contradições. A despeito das garantias constitucionais, a relação tributária tem se

caracterizado por uma profunda assimetria entre o Estado e o contribuinte,

situação que tem sido exacerbada por sistemáticas fundadas em prioridades e

interesses fiscais, em detrimento dos direitos humanos do contribuinte.

O excessivo apego ao legalismo deixa de considerar aspectos valorativos,

subtraindo-se a uma análise mais profunda do conteúdo e significado das normas

tributárias, bastando o apelo comumente feito ao interesse público, termo que por

sua imprecisão oferece ampla base de justificação para medidas discutíveis sob o

ponto de vista da legitimação da vontade estatal.

São criadas justificativas sobre a admissibilidade das práticas arrecadatórias,

apesar de resultarem em evidente desconsideração para com os direitos humanos

do contribuinte.

Nesse cenário desponta a indiscutível necessidade do reconhecimento dos

valores e de um campo axiológico imanente à normatização tributária, para que se

possa alcançar os desígnios da justiça fiscal e da real concretude dos direitos

humanos.
239

No mesmo plano do dogmatismo jurídico que resulta na aplicação das normas

em desfavor do contribuinte, a pretensão de soberania estatal, considerada requisito

para a existência e continuidade do Estado, profundamente arraigada no Direito

pátrio, tem afastado a possibilidade de apreciação judicial fora das vias tradicionais,

mesmo que viabilize a maior efetividade aos direitos humanos.

A judicialização no campo tributário, como opera hoje, constitui um problema,

pois representa uma séria restrição para a satisfatividade desses direitos, observando-

se muitas vezes uma nítida ingerência dos interesses políticos e um desvio evidente

da função jurisdicional, priorizando-se a finalística arrecadatória, o que leva a

desconsiderar quaisquer possíveis análises dos conteúdos valorativos envolvidos.

Nesse sentido, um rompimento com o modelo de aplicação tradicional da

justiça parece ser um caminho não somente possível, mas necessário, para

maximizar a proteção e a efetividade dos direitos humanos.

E para isso a supraconstitucionalidade deve ser vista não como uma

abstração teórica, mas como via efetiva e factível. Quando se analisa o modo como

tem evoluído a aplicação do Direito Comunitário europeu, percebe-se que existe um

elo vital entre a busca premente da satisfatividade dos direitos humanos e um

sistema supraconstitucional de normas protetivas desses direitos, o qual tem se

caracterizado por uma progressiva e evidente quebra de paradigmas de poder e de

aplicação restritiva das normas, segundo a perspectiva tradicional da soberania dos

Estados nacionais.

Nesse contexto, a irradiação da força cogente dos tratados internacionais

constitutivos da União Européia para o campo tributário tem representado a passagem

do idealismo para a realidade fática, por meio de decisões que conduzem à maior

satisfatividade dos direitos humanos em face do poder tributário estatal.


240

Ainda que as resistências a uma instância supraconstitucional sejam

evidentes e se mantenham mesmo na Europa, as barreiras estão sendo quebradas,

como demonstram as inúmeras decisões da Corte Européia de Direitos Humanos

que conseguiram se impor, levando os Estados-membros a alterarem suas

legislações e a acatarem o resultado dos julgados, alcançando-se assim a eficácia

pretendida quanto à satisfação dos direitos humanos atingidos.

A desconstrução da concepção histórica e paradigmática sobre a

territorialidade e a soberania estatal tem possibilitado encontrar novos caminhos

para a relação entre Estado e indivíduo, mediada por uma nova via na aplicação do

Direito no propósito de dar concretude aos direitos humanoas, o que passou a ser

feito sem as amarras da sujeição dos pleitos dos cidadãos à apreciação única dos

órgãos judiciais nacionais.

As mudanças nas relações entre os Estados europeus tem permitido assim

estabelecer uma crescente afirmação dos dispositivos dos tratados internacionais

versando sobre direitos humanos sobre o poder de tributar dos Estados,

configurando um novo paradigma de relações internacionais, a reinvenção do

território, algo que no contexto latino-americano ainda situa-se no plano meramente

idealístico.

Pode-se afirmar, portanto, que a constituição de uma instância

supranacional, a Corte Européia, perante a qual todos os indivíduos podem

postular a defesa e efetividade dos direitos humanos ameaçados ou lesados,

representa um passo importante na evolução dos mecanismos de judicialização

desses direitos, transpondo-se as defesas férreas da soberania estatal para

responder de forma mais efetiva ao que deve ser o objeto primeiro do Direito, o

homem e os valores a ele imbricados.


241

Por meio da supraconstitucionalidade é possível abandonar uma sistemática

interna de apreciação judicial que, como foi demonstrado, muitas vezes não tem

respondido adequadamente às exigências do reconhecimento da primazia dos

direitos humanos do contribuinte.

Pelo contrário, as decisões judiciais no Brasil afastam-se de tal possibilidade,

ao estabelecerem soluções que caracterizam uma mera acomodação dos conflitos,

seja por meio de interpretações limitadas, seja por intermédio de postulados

axiomáticos e raciocínios circulares que acabam por conduzir à negação dos direitos

que deveriam ser reconhecidos e assegurados.

O Judiciário tem restringido a sua ação a uma legalidade restrita, que

exaure as possibilidades de uma defesa ampla dos direitos humanos do

contribuinte, contrariando os próprios ditames do Estado de Direito,

A ponderação judicial, para além da isenção que norteia a decisão dos

casos concretos, não pode sujeitar-se ao exercício de conjecturas de teor

utilitarista, partindo do eixo custo-benefício para decidir sobre direitos. Assim o

fazendo, está o aplicador da norma adentrando no campo indevido da fixação

de critérios pessoais para definir o que é bom, ou o que deve ser, imiscuindo

questões de ordem política no campo do Direito, o que não pode ocorrer.

Não é o que, todavia, se verifica, à luz das análises apresentadas neste

trabalho, a exemplo dos diversos casos relacionados a direitos humanos dos

contribuintes, cabalmente negados ao serem postos à apreciação do Supremo

Tribunal Federal.

Ancorada na pretensão de suficiente e adequada lógica interpretativa, os

julgados deixam transparecer não a preocupação com a efetividade do Direito,

mas com a busca da adequação metodológica da interpretação, sopesando-se o


242

interesse do Estado e o direito do cidadão contribuinte, preferindo-se adotar

argumentos supostamente coerentes com certos princípios, dentre os quais se

destacam a solidariedade e a primazia do interesse público. Na prática, porém,

aproveitando-se da imprecisão decorrente da sua polissemia, as decisões

judiciais acabam levando a confundir o interesse público com o próprio interesse

do Estado.

As argumentações colocam em evidência a necessidade e o valor da

supraconstitucionalidade para que o contribuinte possa buscar nos tratados

sobre direitos humanos, e na apreciação destes por parte dos juízes nacionais,

em qualquer instância, uma via de resposta mais rápida, menos onerosa e com

maior eficácia, maximizando a efetividade desses direitos sem a vulneração que

sofrem sob as instâncias dos mecanismos e instrumentos vinculados ao Estado

e às normas protetivas internas.

A defesa da supraconstitucionalidade, em síntese, é mais do que uma

aventura intelectual por espaços puramente teóricos, pois pode ser considerada um

avanço moral.

Esse avanço ocorre não quando o homem se aproxima um pouco mais do

justo e do correto, mas quando se torna mais imaginativo. O desafio intelectual para

o Direito, como ficou demonstrado, é a superação de conceitos dogmáticos, das

idéias paradigmáticas que embasam o conservadorismo e limitam os avanços

indispensáveis no campo da concretização dos direitos humanos, uma missão

inacabada e meta a ser incansavelmente buscada por fazer parte do próprio

significado e sentido do sistema jurídico como expressão das vicissitudes humanas e

da possibilidade da sua superação.


243

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