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THE GHOST

Francisco Brandão

I am shouting my invisible words. I am getting so


weary, I am growing tired.
I am waving to you from here. I am crawling and looking for the aperture of
complete and final emptiness. I am vibrating in isolation among you. I am
screaming but it comes out like pieces of clear ice. I am signaling that the
volume of all this is too high. I am waving. I am waving my hands.
I am disappearing. I am disappearing but not fast enough.1

Trecho da obra de David Wojnarowicz, Untitled (Sometimes I Come to Hate People) ,de 1992

OBJETIVOS

Explicito o desejo de lixar a escultura de alumínio Narcissus, que desenvolvi em


2020, até que ela desapareça e eu possa recolher seu pó, para então embebedar um
tecido e testar sua pigmentação. Esse material, documentado em diferentes momentos,
encenações e vivências, compõe uma vídeo performance onde o pião (de 90cm x
60cm) passará a existir enquanto memória processual compartilhada.
Penso em Susan Sontag, em seu livro Diante da dor dos outros (2003)2 e A Doença
como Metáfora (1984)3. Penso no roteiro e apresentação de Aleph Antialeph em seu livro
Feitiço de soma (2020)4. Como que, contaminado, o real adquire elementos teatrais e
oníricos? Ações que mesclam um processo de brutalidade e demais afetos, psíquicos e
matéricos.
Qual a força necessária? Quanto do pó é capturável? Como fazer a extração entre
poeira e pó de alumínio?
A mortalha de seda tingida do pó varrido será usada para criar um pião inflável
de seda The Ghost, que é ativado por um sensor de presença (murchar e inflar como
outras ações possíveis). Na interação entre corpo e máquinas, ambos em movimentos, elas
em sua funcionalidade e o corpo em desintegração e desgaste. O projeto é então a
partilha de um corpo simbólico em coexistência com o objeto do pião inflável.

1
Estou gritando minhas palavras invisíveis. Estou ficando tão cansado, estou ficando cansado. Estou acenando
para você daqui. Estou rastejando e procurando a abertura do vazio completo e final. Estou vibrando
isoladamente entre vocês. Estou gritando, mas sai como pedaços de gelo claro. Estou sinalizando que o volume
de tudo isso é muito alto. Estou acenando. Estou acenando com as mãos. Estou desaparecendo. Estou
desaparecendo, mas não rápido o suficiente. (tradução livre)
2
SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia das Letras. 2003
3
SONTAG, Susan. A Doença Como Metáfora. Rio de Janeiro: Edições GRAAL, 1984.
4
ANTIALEPH, Aleph. Feitiço de soma. Cotia, São Paulo: URUTAU, 2020.

1
DESCRIÇÃO

“When I put my hands on your body on your flesh I feel the history of that
body. Not just the beginning of its forming in that distant lake but all the way
beyond its ending. I feel the warmth and texture and simultaneously I see the
flesh unwrap from the layers of fat and disappear. I see the fat disappear
from the muscle. I see the muscle disappearing from around the organs and
detaching iself from the bones. I see the organs gradually fade into
transparency leaving a gleaming skeleton gleaming like ivory that slowly
resolves until it becomes dust.5

Lixação do pião Brutus (2020)

Para que consigamos compreender esse projeto, num limite tênue de um eu


assujeitado para aquele, que por pessoalidades, cria rede de afetos, será preciso que
percorramos uma breve história da pesquisa realizada com essas formas, numa trajetória
de curiosidades e diálogos aparentemente ingênuos. Contarei então como os piões
apareceram em minha produção artística em 2016, logo após herdar meus brinquedos
guardados pela minha que acabava de falecer.
Seis meses antes do falecimento de minha mãe, eu descobri que vivia com hiv
há alguns meses, tempo suficiente para me deixar indetectável rapidamente. Meses
depois, um vírus leva minha mãe à morte, causada por uma gripe rápida e violenta.

5
“Quando coloco minhas mãos em seu corpo em sua carne sinto a história daquele corpo. Não apenas o início
de sua formação naquele lago distante, mas todo o caminho além de seu final. Sinto o calor e a textura e
simultaneamente vejo a carne desembrulhar-se das camadas de gordura e desaparecer. Vejo a gordura
desaparecer do músculo. Vejo o músculo desaparecer ao redor dos órgãos e se desprender dos ossos. Eu vejo
os órgãos gradualmente se tornarem transparentes, deixando um esqueleto reluzente brilhante como marfim
que lentamente se dissolve até se tornar pó ". (tradução livre)

2
Precisei queimar quase todos seus pertences cotidianos como uma forma de
esterilização. Revirei por algumas horas uma pilha em chamas, formada por suas colchas,
toalhas, utensílios de cozinha e outros objetos. Os escondidos, fora do contato do dia a dia,
foram por mim ensacados e vieram comigo. Nessa pilha, álbuns de fotos (batizado,
aniversários, formaturas e passeios), algumas peças de roupa, brincos (que ela quase
nunca usava).
Naquele momento habitavam em mim várias sensações estranhas, que se
misturavam com aqueles objetos. Num momento revirando esses guardados, li uma carta
do meu pai cooptada por minha mãe e removi uma frase: "Lucimar, cuide da Luziana a
nossa maneira. Não deixe nunca que ela se transforme na Fatinha, a não ser por um
coração maior que o corpo. Vou ficando por aqui, pois não tenho condições de pensar".
Não conseguia concatenar aquele monte de recortes e cacarecos que formavam sua vida
enquanto sujeito para além de mãe. Povoada de seus próprios segredos embolorados nos
outros alheios que nos moldam. A partir daí comecei a profanat sua sacralidade
imutável, como se fosse possível rearranjar o lugar dessas lembranças. Para fazer do
agora não uma outra situação milagrosa, mas um cotidiano comum. Isso seguiu até o
momento em que comecei a criar meus próprios brinquedos, como uma busca de
habitar a ruína que é o desejo de ser o outro.

Narcissus (2020/2021), 95x55cm, 40kg, Alumínio polido

3
BRUTUS / NARCISSUS 1 e 2

Derreter um minério e fazer dele uma forma acabou moldando parte de nossas
interações enquanto sociedade, desde as moedas, as armas, as grades ou os utensílios
que hoje consideramos banais pela larga escala do plástico. Essa extração, que hoje
machuca e consome montanhas, é de certa maneira reciclável, mas o que isso quer dizer
no mundo da exaustão?
Resolvi então criar um pião que discutisse todas as brutalidades que sentia
passar, e por vezes esbarrava num erotido, e interessado pelas formas prontas, decidi
crescer a escala de um pião até o insustentável doloroso. Daqueles que demandam ajuda.
Um socorro, talvez uma ação sadomasoquista. E, assim me meti com fundições, observei
os processos, suas manipulações mágico cuidadosas com o ferro em liga derretido e me
propus a fazer um pião que se deteriorasse com o processo de enferrujamento. Que
em certo momento fosse possível vê-lo por dentro (oco), em aspereza quase natural,
moldada no interno e escuro, furada pela mesma natureza que o quer de volta. No solo, no
toque.
Logo em seguida, em companhia e desintegração, substituí o ferro fundido do
primeiro pião por alumínio e fiz Narcissus, que foi polido espelhado. Nele consegui me
refletir, deturpado por nossas formas. Suas feituras me demandaram negociações
imprevistas, de ousadia desejante, desde sua feitura, passando pelo momento em que polia
a superfície fosca de alumínio. Desgastava pouco a pouco suas camadas e comecei a me
perguntar quais as possibilidades possíveis na construção de um espelho para o desejo
desviante e suas supostas aberrações. De onde e como construímos essas imagens? Por
não saber, propus vivenciar a distorção. Gosto de como o outro impregna superfícies.

Brutus cenográfico (2021). 90cm x 60cm. Isopor, massa de EVA e maquiagem.


BRUTUS CENOGRÁFICO

4
Após convivências e faltas (devido ao envio dos piões para exposições) resolvi
"refazer" Brutus, agora numa versão que chamei cenográfica. Ele era uma cópia feita de
isopor e EVA quase similar, resgatada por fotos e memória de nossos corpos em interação
(medi o tamanho através da minha memória corporal, do tamanho do abraço que eu
dava em Brutus).
Essa possibilidade mais lúdica, manuseável Nesse aparente trajeto peregrino, esses
instantes foram me direcionando à construção d'A última gota, que é o primeiro pião inflável
dessa produção. Nesse momento já conseguia conversar sobre esses momentos que
partilhei anteriormente sem o peso e incômodo sentidos. Vários outros objetos apareceram
nessa época, eles se acessoravam enquanto me faziam companhia. Falarei um pouco
desses processos enquanto falo d'A última gota.
Recentemente reencontrei Brutus, que está em Ribeirão Preto para a 30º Mostra de
Arte da Juventude do SESC. Acostumei a conviver com seu quase gêmeo, que é um
pouco maior e mais divertido.

A última gota (2022), 2,50m x,1,50m, lona vermelha e motor de ventilação, Rua São João - Juiz de Fora - MG

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A ÚLTIMA GOTA

A última gota de plástico vermelho, um gota inflável que poderia ser de sangue,
mede 2,5 metros quando infla. Quando esvaziada o pião cabe em uma mochila e pode ser
facilmente transportado. Desde então, consegui acioná-lo em diferentes pontos urbanos de
Minas Gerais e do Rio de Janeiro. As esculturas começam a se tornar mais transitórias,
momentâneas.
O projeto dessa gota vermelha viaja comigo para São Paulo, e oferece medida e
corpo para a confecção de The Ghost. Gosto de conviver com o barulho de seu motor,
como se pudesse ouvir o som invisível desse ar rodopiando em sua membrana de pano.

THE GHOST

O processo de criação de The Ghost deverá passar por diversas etapas e


questionamentos teóricos e práticos de diversas ordens e dimensões.
Inicialmente, a moenda de Brutus deverá oferecer uma poeira fina de alumínio que
será utilizada em uma tentativa de tingimento metálico um tecido de seda (escolhido a priori
por sua ligação com a morte e a transformação).
A moenda será documentada em câmera, considerando as suas possíveis locações
na cidade de São Paulo.
Após essa primeira etapa, haverá a elaboração do corpo de The Ghost, e os
questionamentos sobre suas dimensões, formas e resistências.
Como se trata de uma transformação em memória processual compartilhada, a
criação visual, supostamente documental, considera o cenário da dissolução do peão como
parte da obra, exigindo escolha deste local-ritual e suas perambulações.
No processo de feitura de The Ghost será preciso encontrar maneiras de moldar sua
forma com leveza, supor os possíveis caminhos do vento, criar moldes, experimentar
dimensões e algumas conexões tecnológicas para executar um movimento mais ou menos
programado. Conhecer, através do convívio, formas de registrá-lo e assim escolher onde
performar essa dissolução e acontecimentos

NECESSIDADES MATERIAIS E HUMANAS

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Após pesquisa bibliográfica, material e cinematográfica, haverá necessidade possível dos
seguintes equipamentos, descritos de maneira generalizada:

Equipamentos fotográficos
Equipamentos de captação de áudio
Iluminação
Lixadeiras com lixas de diferentes espessuras
Assistência em locomoções (feitas de carro)
Equipamento de costura e para o tingimento do tecido

Dada a dimensão das ferramentas necessárias para o polimento do Narcissus, e


considerando a criação artística decorrente do ato de sua transformação em memória
processual compartilhada, haverá necessidade humana do:

Corpo do autor, que irá executar o polimento e recolher seus resíduos em performances
mantidas em arquivo multimídia
Equipe eventual de processamento de mídias e seu tratamento

CRONOGRAMA

Mês 1

1 Ambientação, vivência e aprendizado do desapego e nuances da transformação


(assessorado por encontros e leituras).

2 Experimentos para a gravação do vídeo performance que será formado pelo


registro das ações propostas ao longo do processo de residência

3 Primeira experimentação no atêlie, para depois levar a performance para o espaço


urbano (que será realizado em pontos distintos de São Paulo).

4 Partilha com os outros membros da residência e com Anderson de Oliveira (curador


de minha primeira mostra individual e que acompanha carinhosamente essa
produção)

Mês 2

7
5 Primeira experimentação do polimento num espaço urbano ( arredores da
Residência FAAP).

6 Efetivação das performances ( programada para ocorrer pelo menos uma vez por
semana) e organização (catalogação do vídeo, anotação das sensações e
programação dos locais futuros, que podem entrar em diálogo com possíveis
espaços artísticos)

Mês 3

7 Outra lixação em atêlie (já compreendendo a energia necessária para que o pião
perfure e gaste)

8 Outras lixações em espaços públicos

9 Mais um momento de partilha, comparando estágios e conversando sobre os


instantes do trabalho (Aqui já será possível uma conversa menos empoeirada, num
percurso do meio e do fim)

10 Pausa para pensar possíveis diálogos e conexões duma matéria em


desaparecimento

11 Edição do material em vídeo, organizando a vídeo performance final

12 Ateliê aberto e performático

13 Encerramento da performance e finalização do vídeo

14 Apresentação VÍDEO + Pião inflável de seda

+infos

Bibliografia

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8
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9
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POD CAST

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FILMOGRAFIA

A PAIXÃO de JL. Direção de Carlos Nader. Produção de Flávio Botelho; Kátia Nascimento.
São Paulo: Instituto Itaú Cultural; Já Filmes, 2014. On-line, YouTube. Disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=Z7phI2w34Z8. Acesso em 07/mar/2019.

BLUE. Direção de Derek Jarman. Produção de Takaishi Asai/James Mackay. Inglaterra:


Magnus Opus, 1993. 1 DVD, 74 minutos.

CARAVAGGIO. Direção de Derek Jarman. 1986. 1 DVD, 93 minutos.

NICHT der Homosexuelle ist pervers, sondern die Situation, in der er lebt. Direção de
Rosa von Praunheim. Produção de Werner Kließ. Alemanha: Bavaria Atelier, 1971. 1 DVD,
67 minutos.

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