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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAIS GERAIS

Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas


Departamento de Antropologia e Arqueologia

ALEX SOARES COSTA

UNICIDADE OU MULTIPLICIDADE?
Análise comparativa entre duas coleções cerâmicas da tradição Aratu-Sapucaí e suas
complexidades (Santa Luzia – MG)

Belo Horizonte
2022
ALEX SOARES COSTA

UNICIDADE OU MULTIPLICIDADE?
Análise comparativa entre duas coleções cerâmicas da tradição Aratu-Sapucaí e suas
complexidades (Santa Luzia – MG)

Monografia apresentada ao Curso de Graduação em


Antropologia com habilitação em Arqueologia da
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Federal de Minas Gerais como requisito
parcial à obtenção de título de Bacharel em Antropologia
com habilitação em Arqueologia.
Orientadora: Lílian Panachuk de Sá

Belo Horizonte, dezembro de 2022


AGRADECIMENTOS

Eu tenho uma vaga lembrança de, quando criança, ter assistido à um programa de
televisão em que estavam exibindo escavações arqueológicas. Essa é a recordação mais antiga
que tenho de ter contato com o trabalho de profissionais da arqueologia e neste momento foi
acesa uma faísca aqui dentro do peito: “eu quero fazer isso quando eu crescer”. O primeiro
passo para a concretização desse sonho foi realizado no final do ano de 2017, quando assinei
minha habilitação em Arqueologia no curso de Antropologia da Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas da UFMG e, desde então, comecei a trilhar este caminho que me
proporcionou experiências incríveis e me fez conhecer pessoas extraordinárias.

Agradeço enormemente minha orientadora Lílian Panachuk, que me levou pelos


caminhos das experimentações e tanto me ensinou. Agradeço por ter sido professora, mestra,
amiga e porto seguro. Obrigado por estar comigo ao longo destes anos, por todo o carinho e
amor, por ter acreditado em mim até mesmo quando eu próprio não acreditei.

À professora Mariana Petry Cabral, por ter me orientado nos primeiros passos para me
tornar um analista cerâmico, por ter me recebido como bolsista de iniciação científica no projeto
“Sobre as marcas do passado: arqueologia e conhecimento indígena na Amazônia”. Aos colegas
Hugo Sales, Ana Luiza e Clarice Maués que também fizeram parte desta Iniciação Científica,
cujas discussões reverberaram no modo como penso e faço arqueologia. À professora Maria
Jacqueline Rodet por ter sido a primeira professora a ver em mim um potencial para me tornar
um pesquisador. Ao arqueólogo Daniel Cruz por toda a ajuda com os registros fotográficos das
coleções e à Helena Panachuk e Cruz, minha grande pequena amiga.

À Letícia Teixeira, cuja amizade e companheirismo surgiu no ensino médio, no CEFET,


e se estendeu para a graduação. À Sara Toja, arqueóloga e amiga que tanto admiro, que tanto
discuto e com quem tanto aprendo, obrigado por se tornar parte da minha família. À Sílvia
Guedes, obrigado por todos os melhores abraços do mundo. À Luísa Lombardi por ser a melhor
companhia em todas as ocasiões. À Luiza Ferreira, por todas as boas risadas e por enfrentar as
dificuldades de dividir uma casa comigo. À Mariana Oliveira, guerreira que correu atrás de
vários ônibus comigo e sempre foi companheira para todas as horas. À Naíla Binicá que, por
mais que passemos meses sem nos ver, continuamos melhores amigos. Ao Fred, por ter se
tornado uma das amizades mais profundas que construí na minha vida e por me tirar dos trilhos
quando preciso. Ao Vit Leão, por ser um grande amigo e por compartilhar as alegrias e
frustrações de viver. À todas as amizades que construí ao longo da graduação, em especial à
Ana Matos, Lorrana Dauari, Júlia Castro, Elisa Martino, Gabriel Farace, Guilherme Tejada,
Cora Lima, Isabela Veiga, Nathália Menezes e tantas outras.

À Peruaçu Arqueologia Ltda, representada pelos arqueólogos Ângelo Pessoa Lima,


Adriano Carvalho e Clarisse Jacques. Obrigado por confiarem em mim e por me
proporcionarem tantas experiências enriquecedoras ao longo dos trabalhos de campo. Agradeço
também à todas as pessoas com quem trabalhei neste último ano, em especial ao professor
André Prous, por ter me ensinado a fazer os registros das urnas em planta baixa, à Lorena
Oliveira que se tornou uma grande amiga e parceira nos trabalhos de campo, assim como Thaíse
Rocha que me ensinou os métodos e técnicas de prospecção arqueológica. Aos queridos amigos
e amigas que conquistei, Francisco Gonzaga, Larousse Magalhães, Evelin Nascimento, Anaeli
Queren, Sarah Hissa que tanto me ensinaram ao longo das nossas conversas. Ao arqueólogo
Igor Rodrigues pelas conversas sobre as morfologias Aratu-Sapucaí.

Ao Grupo de Estudos do Simbólico e Técnico da Olaria (G.E.S.T.O.) e todas as


ceramistas que tive o prazer de conhecer, em especial à Laila Kierulff por toda doçura e leveza
que traz consigo. Obrigado por me ensinarem na prática aquilo que nem os melhores manuais
de análise cerâmica podem ensinar.

Às minhas irmãs, Nathalie e Gabi, por tanto me apoiarem e por serem meu porto seguro.
Às minhas sobrinhas, Laura e Lis que tanto amo. Aos meus pais, Maria Nilse e Alexandre. Aos
meus tios Ivanete e Rogério e minha prima Larissa por acompanharem de perto todos estes anos
de graduação. Ao meu cunhado Eduardo, onde quer que você esteja, obrigado por sempre me
incentivar e por acreditar em mim.

Agradeço, por fim, a banca examinadora pelas muitas sugestões relevantes. Não pude,
neste momento, incluir todas, mas espero retomá-las em breve em um futuro trabalho
acadêmico.

Sem vocês eu não teria chegado até aqui.


Resumo
Esta monografia tem por objetivo responder à uma hipótese levantada durante as
atividades de campo realizadas entre os meses de agosto e setembro de 2021 no município de
Santa Luzia – MG, de onde provém duas coleções cerâmicas associadas à tradição arqueológica
conhecida como Aratu-Sapucaí. Através de análises descritivas e comparativas entre estes
vestígios, fita-se compreender se estas coleções apontam para uma unicidade ou multiplicidade
de ocupações pré-coloniais. Além desta pergunta central, buscou-se evidenciar as
complexidades identificadas nos detalhes técnicos dos fragmentos associados à esta tradição.

Palavras-chave: Aratu-Sapucaí; cerâmica; Santa Luzia.

Abstract
This monograph aims to respond to a hypothesis raised during field activities carried
out between August and September 2021 in the municipality of Santa Luzia - MG, where two
ceramic collections associated with the archaeological tradition known as Aratu-Sapucaí come
from. Through descriptive and comparative analyzes between these remains, it is intended to
understand whether these collections point to a uniqueness or multiplicity of pre-colonial
occupations. In addition to this central question, I sought to highlight the complexities identified
in the technical details of the fragments associated with this tradition.

Keywords: Aratu-Sapucaí; pottery; Santa Luzia.


Índice de gráficos
Gráfico 1: Amostra de fragmentos cerâmicos por sítio arqueológico ................................................. 47
Gráfico 2: Triagem do material cerâmico analisado e não analisado .................................................. 47
Gráfico 3: Representação das porções de recipientes inteiros a partir da amostra analisada ............. 48
Gráfico 4: Espessura mínima e máxima dos fragmentos cerâmicos ................................................... 48
Gráfico 5: Variação de espessura em milímetros ............................................................................... 49
Gráfico 6: Tamanho dos fragmentos ................................................................................................. 50
Gráfico 7: Técnica de manufatura observada nos fragmentos cerâmicos ........................................... 50
Gráfico 8: Ocorrência na pasta cerâmica ........................................................................................... 51
Gráfico 9: Combinação de elementos presentes na pasta cerâmica por densidade............................ 52
Gráfico 10: Aspecto do quartzo ......................................................................................................... 53
Gráfico 11: Porcentagem e diâmetro dos grãos ................................................................................. 53
Gráfico 12: Distribuição da carga na pasta cerâmica .......................................................................... 54
Gráfico 13: Resultado visual da ação do fogo .................................................................................... 55
Gráfico 14: Tratamento aplicado à superfície .................................................................................... 56
Gráfico 15: Modificações de croma e relevo...................................................................................... 57
Gráfico 16: Técnicas de alteração de croma observadas na coleção. ................................................. 58
Gráfico 17: Localização das modificações de relevo e croma ............................................................. 59
Gráfico 18: Morfologia do lábio......................................................................................................... 60
Gráfico 19: Espessura do lábio .......................................................................................................... 60
Gráfico 20: Espessamento da borda em porcentagem total e em relação aos fragmentos de borda .. 61
Gráfico 21: Morfologia da borda ....................................................................................................... 61
Gráfico 22: Relação entre espessamento e morfologia da borda ....................................................... 61
Gráfico 23: Diâmetro dos fragmentos de borda................................................................................. 62
Gráfico 24: Morfologia da base ......................................................................................................... 62
Gráfico 25: Projeção de recipientes inteiros ...................................................................................... 63
Gráfico 26: Vestígios de uso observados nos fragmentos analisados ................................................. 63
Gráfico 27: Vestígios de produção observados nos fragmentos cerâmicos ........................................ 64
Gráfico 28: Estado de conservação dos fragmentos cerâmicos .......................................................... 65
Gráfico 29: Triagem do material analisado e não alisado ................................................................... 67
Gráfico 30: Comparação entre as porções de recipientes entre as coleções SI e CF ........................... 68
Gráfico 31: Comparação entre as espessuras mínimas ...................................................................... 68
Gráfico 32: Comparação entre as espessuras máximas...................................................................... 69
Gráfico 33: Comparação entre as variações de espessura em milímetros .......................................... 69
Gráfico 34: Comparação entre as espessuras do lábio ....................................................................... 70
Gráfico 35: Comparação entre o espessamento dos fragmentos de borda ........................................ 70
Gráfico 36:Comparação entre a morfologia das bordas ..................................................................... 71
Gráfico 37: Comparação entre a projeção de recipientes inteiros ...................................................... 71
Gráfico 38: Comparação entre as técnicas de manufatura identificadas nos fragmentos ................... 72
Gráfico 39: Comparação das cargas entre as pastas de argila ............................................................ 73
Gráfico 40: Comparação do aspecto do quartzo ................................................................................ 73
Gráfico 41: Porcentagem de inclusão e diâmetro dos grãos .............................................................. 74
Gráfico 42: Comparação entre as distribuições da carga nos fragmentos .......................................... 74
Gráfico 43: Comparação dos aspectos visuais da ação do fogo nos fragmentos ................................. 75
Gráfico 44: Comparação entre o tratamento de superfície aplicado nas faces internas dos fragmentos
......................................................................................................................................................... 75
Gráfico 45: Comparação entre o tratamento de superfície aplicado nas faces externas dos fragmentos
......................................................................................................................................................... 76
Gráfico 46: Comparação entre técnicas de alteração de croma e relevo nas faces internas ............... 76
Gráfico 47: Comparação entre técnicas de modificação de croma e relevo nas faces externas .......... 77
Gráfico 48: Comparação entre as técnicas de modificação de relevo nas faces externas ................... 77
Gráfico 49: Comparação entre as técnicas de modificação de croma nas faces internas .................... 78
Gráfico 50: Comparação entre as técnicas de modificação de croma nas faces externas ................... 78
Gráfico 51: Comparação entre os vestígios de uso identificados nas faces internas ........................... 79
Gráfico 52: Comparação entre os vestígios de uso identificados nas faces externas .......................... 79
Índice de figuras
Figura 1: Urnas funerárias Aratu. Extraído de Calderón, 1969............................................................ 14
Figura 2: Vasilhame com borda ondulada. Extraído de Calderón, 1969. ............................................. 15
Figura 3: Planta baixa com projeção das áreas de escavação. Acervo: Peruaçu Arqueologia Ltda. ..... 21
Figura 4: Lílian Panachuk indicando localização de representação de duas urnas no quadro exposto
na casa principal da Chácara da família Gualberto. Acervo: Peruaçu Arqueologia Ltda, 2022............. 23
Figura 5: Material organizado em caixas da família Gualberto. Acervo: Peruaçu Arqueologia Ltda,
2022 ................................................................................................................................................. 23
Figura 6: Cristaleira com expografia de materiais organizados pela família Gualberto. Acervo: Peruaçu
Arqueologia Ltda, 2022 ..................................................................................................................... 24
Figura 7: Croqui de localização das áreas de escavações e benfeitorias na chácara de Jussara
Gualberto. Acervo: Peruaçu Arqueologia Ltda, 2022 ......................................................................... 25
Figura 8: Croqui do final da escavação da área Hebe I. Acervo: Peruaçu Arqueologia Ltda, 2022 ....... 26
Figura 9: Croqui área Hebe II, distribuição dos vestígios arqueológicos. Acervo: Peruaçu Arqueologia
Ltda, 2022 ......................................................................................................................................... 28
Figura 10: Detalhes das quadras O-1 e O-2 aos 30cm de profundidade (superior), delimitação da
quadra O-3 (inferior esquerda) e detalhe da quadra O-3 aos 50cm de profundidade (inferior direita).
Acervo: Peruaçu Arqueologia Ltda, 2022 ........................................................................................... 29
Figura 11: Estruturas de concreto com tampos de vidro e metal instalados pela família Gualberto
para proteção e expografia das urnas. Acervo: Peruaçu Arqueologia Ltda, 2022 ............................... 29
Figura 12: Detalhes das atividades de escavação da Urna 1 (esquerda) e Urna 2 (direita). Acervo:
Peruaçu Arqueologia Ltda, 2022 ....................................................................................................... 32
Figura 13: Participação do arqueólogo André Prous nas escavações. Acervo: Peruaçu Arqueologia
Ltda, 2022 ......................................................................................................................................... 32
Figura 14: Registro em croquis das retiradas de materiais provenientes das urnas 1 (esquerda) e 2
(direita). Acervo: Peruaçu Arqueologia Ltda, 2022............................................................................. 33
Figura 15: Desenho de campo da retirada 1, Urna 1. Acervo: Peruaçu Arqueologia Ltda, 2022 .......... 33
Figura 16: Digitalização das retiradas realizadas na Urna 1. Acervo: Peruaçu Arqueologia Ltda, 2022 34
Figura 17: Detalhes da escavação da Urna 2 e desenho de campo. Acervo: Peruaçu Arqueologia Ltda,
2022 ................................................................................................................................................. 35
Figura 18: Digitalização das retiradas feitas na Urna 2. Acervo: Peruaçu Arqueologia Ltda, 2022 ....... 35
Figura 19: Face interna do fragmento com presença de decoração plástica na face externa .............. 57
Figura 20: Face externa do fragmento com decoração plástica ponteada .......................................... 58
Figura 21: Fragmento com aplicação de engobe branco na face interna ............................................ 59
Figura 22: Fragmento com aplicação de aguada vermelha na face externa ........................................ 59
Figura 23: Detalhes para quebras de fragmento com evidências de junção (esquerda) e
movimentação de argila para obliteração de roletes (direita)............................................................ 64
Figura 24: O "cálice". Recipiente associado à tradição Aratu-Sapucaí exposto no MAC, Pains - MG.
Perfil (esquerda) e visão superior (direita)......................................................................................... 82
Figura 25: Recipiente associado à tradição Aratu-Sapucaí exposto no MAC, Pains - MG. Perfil
(esquerda) e vista da abertura para o interior do recipiente (direita) ................................................ 82
Figura 26: Urna funerária Aratu-Sapucaí exposta no MAC, Pains - MG .............................................. 82
Índice de tabelas
Tabela 1: Código de identificação atribuído aos elementos observados na pasta cerâmica ................ 51
Tabela 2: Tratamento aplicado à superfície por quantidade e porcentagem ...................................... 55
Tabela 3: Marcas de uso por quantidade e porcentagem nas faces internas e externas..................... 63
Sumário

Introdução ........................................................................................................................................ 11
Capítulo 1: A tradição arqueológica Aratu-Sapucaí ............................................................................ 13
1.2 A tradição Aratu de Valentin Calderón ..................................................................................... 13
1.3 A tradição Sapucaí de Ondemar Dias Jr. ................................................................................... 15
1.4 Os estudos de Igor M. M. Rodrigues sobre o sítio arqueológico Vereda III ............................... 16
1.5 Aratu-Sapucaí: uma tradição de cerâmicas simples? ................................................................ 19
Capítulo 2: O Sítio Santa Inês Jussara ................................................................................................ 21
2.1 Relatos de Jussara: contextualizando o sítio arqueológico ....................................................... 22
2.2 As escavações realizadas ......................................................................................................... 24
2.2.1 Área Hebe I....................................................................................................................... 25
2.2.2 Área Hebe II...................................................................................................................... 26
2.2.3 Orquidário ........................................................................................................................ 28
2.2.4 Retirada das urnas ............................................................................................................ 29
2.3 As atividades de laboratório .................................................................................................... 36
Capítulo 3: Santa Inês I, II e III ........................................................................................................... 38
3.1 As pesquisas de Paulo Junqueira e Ione Malta ......................................................................... 38
3.2 Curadoria ................................................................................................................................ 39
3.3 Metodologia de análise ........................................................................................................... 40
3.3.1 Identificação ..................................................................................................................... 40
3.3.2 Medidas ........................................................................................................................... 41
3.3.3 Aspectos produtivos primários ......................................................................................... 41
3.3.4 Resultado visual da ação do fogo ...................................................................................... 44
3.3.5 Tratamentos aplicados à superfície ................................................................................... 44
3.3.6 Técnicas de modificação de croma e relevo ...................................................................... 45
3.3.7 Dados morfológicos .......................................................................................................... 46
3.3.8 Vestígios de produção, gestos e uso ................................................................................. 46
3.4 Análise descritiva .................................................................................................................... 47
Capítulo 4: Unicidade ou multiplicidade? .......................................................................................... 67
4.1 Análise comparativa ................................................................................................................ 67
4.2 Ocupação ceramista Aratu-Sapucaí no bairro Chácaras Santa Inês, município de Santa Luzia –
MG ............................................................................................................................................... 79
4.3 Considerações finais sobre as ceramistas Aratu-Sapucaí .......................................................... 81
Bibliografia ....................................................................................................................................... 84
Introdução
Durante as atividades de campo para resgate de vestígios arqueológicos associados à
tradição cerâmica Aratu-Sapucaí, realizadas pela empresa Peruaçu Arqueologia Ltda, na
propriedade de Jussara Elias Gualberto, no município de Santa Luzia – MG, em decorrência do
processo de licenciamento para obtenção de Licença Prévia (LP) do empreendimento de
responsabilidade da construtora AP Ponto (Processo IPHAN 01514.004837/2017-57), o
arqueólogo André Prous informou à equipe de campo que, na década de 1970, os pesquisadores
Paulo Junqueira e Ione Malta, à época vinculados ao Museu de História Natural da UFMG,
prospectaram uma área próxima, realizando uma coleta superficial de vestígios cerâmicos que
foram armazenados na reserva técnica do MHNJB-UFMG. As informações referentes à
proximidade entre os locais de concentração destes vestígios fizeram surgir a hipótese de que
as coleções provenientes do resgate arqueológico e da coleta superficial realizada por Junqueira
e Malta seriam provenientes de uma mesma ocupação pré-colonial desta comunidade de
prática1 nomeada como Aratu-Sapucaí. Objetivando responder à esta hipótese central e melhor
compreender as complexidades identificadas nos detalhes técnicos dos fragmentos cerâmicos,
esta monografia foi organizada em quatro capítulos.

Em um primeiro momento, foi preciso revisitar as bibliografias pertinentes que definem


a tradição Aratu-Sapucaí. Apesar de haver outros pesquisadores que contribuíram para os
estudos dos vestígios cerâmicos que originaram tal tradição, priorizei àqueles que influenciaram
diretamente na nomenclatura desta: Valentin Calderón e Ondemar Dias. Em seguida, como
referência contemporânea e regional, contextualizo os trabalhos realizados por Igor Rodrigues
(2011) sobre os vestígios provenientes do Sítio Arqueológico Vereda III. Grande parte das
bibliografias, em especial aquelas de pesquisadores pronapianos2, apresentam descrições rasas
sobre os remanescentes cerâmicos, definindo-os como “simples” pela ausência de modificações
de croma e relevo consideradas complexas. Já na última sessão do primeiro capítulo trago uma
reflexão sobre estes estereótipos atribuídos às cerâmicas Aratu-Sapucaí e, ao longo deste
trabalho, busco evidenciar as complexidades identificadas nos detalhes técnicos destes vestígios
que, até então, não estavam sendo observados de maneira sistemática.

1
O termo “comunidade de prática”, cunhado por Etienne Wenger-Trayner (2015) é utilizado para se referir a
grupos de indivíduos que se envolvem em processos de aprendizado coletivo no domínio de atividades
compartilhadas pela comunidade.
2
Associados ao PRONAPA (Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas).

11
O segundo capítulo foi destinado a descrever as atividades de campo e laboratório
realizadas sobre o material proveniente da propriedade de Jussara Gualberto. Todavia, optei por
uma narrativa que se baseia nos processos de ensino-aprendizagem que foram estabelecidos
durante cada etapa realizada. Neste capítulo tomo a liberdade de evidenciar como os
conhecimentos teóricos adquiridos ao longo da graduação foram aplicados na prática, relatando
as dificuldades, frustrações, dilemas e meu próprio amadurecimento enquanto profissional em
formação.

No capítulo seguinte, me dedico a contextualizar e descrever os vestígios coletados por


Paulo Junqueira e Ione Malta armazenados no MHNJB-UFMG. Relato como foram as tratativas
com o Setor de Museologia, que concedeu a autorização para a análise do material, a
metodologia escolhida, as definições conceituais adotadas nesta pesquisa bem como os
resultados obtidos através das análises tecnológicas realizadas sobre a coleção.

O quarto e último capítulo traz os resultados das análises comparativas entre as coleções
que, alinhados às informações que se referem a proveniência dos vestígios analisados, alicerçam
a argumentação que pretende responder à hipótese central desta monografia, discutindo a
possibilidade de ambas as coleções apontarem para uma unicidade de ocupação pré-colonial no
bairro Chácaras Santa Inês, município de Santa Luzia – MG. Por fim, trago minhas
considerações finais sobre os vestígios associados à tradição Aratu-Sapucaí, por muito tempo
definidos e descritos pela ausência e pormenorizados em seus detalhes técnicos onde repousam
as complexidades da cadeia operatória dos remanescentes cerâmicos.

12
Capítulo 1: A tradição arqueológica Aratu-Sapucaí
Durante a década de 1960, no Brasil, foi criado o Programa Nacional de Pesquisas
Arqueológicas (PRONAPA) que fitava identificar a maior quantidade possível de sítios
arqueológicos e estabelecer correlações entre os vestígios encontrados através de suas
similaridades, dando origem a novas tradições 3 culturais (PROUS, 1992). Foi através das
atividades realizadas pelo PRONAPA que várias tradições ceramistas foram criadas, incluindo
a que é alvo desta monografia: Aratu-Sapucaí.

Ainda em meados do século passado pesquisas realizadas por C. Ott na Bahia, J. Pereira Jr.
em São Paulo, J. V. César em Minas Gerais e Petrullo no Mato Grosso já apontavam para a
existência de urnas funerárias não decoradas que não poderiam ser atribuídas aos Tupiguarani
(PROUS, 1992). Todavia, é a partir dos trabalhos de Valentin Calderón (Bahia) e Ondemar
Dias (Minas Gerais) que se inicia uma definição de atributos característicos destas urnas
ocasionando a criação de tradições com denominações distintas para fenômenos semelhantes
(idem). É na década de 1980, durante a reunião para apresentação dos resultados obtidos, que
os pesquisadores do PRONAPA chegaram à um consenso sobre a necessidade de unificar estas
coleções sob uma única tradição (PROUS, 1992).

Apesar de existirem outros artefatos associados à tradição Aratu-Sapucaí estes não serão
alvo de discussão neste texto, no qual me debruçarei exclusivamente nas discussões sobre os
artefatos cerâmicos que são de interesse desta pesquisa. A seguir, apresentarei as definições
apresentadas pelos dois pesquisadores acima citados a respeito das coleções que deram origem
a tradição que, posteriormente, foi nomeada como Aratu-Sapucaí e, como referência
contemporânea, apresentarei brevemente o trabalho realizado por Igor M. M. Rodrigues (2011)
na região de Lagoa Santa-MG. Ainda outros pesquisadores contribuíram para o conhecimento
desta tradição, entretanto não serão aqui tratados, focando o contexto regional e local. Na
sequência trago algumas reflexões a partir da experiência prática na produção cerâmica que
transformaram a minha percepção sobre o material arqueológico e me fizeram questionar a
classificação que define Aratu-Sapucaí como uma tradição de cerâmicas “simples”
exclusivamente pela raridade de relevo e pinturas em superfície.

1.2 A tradição Aratu de Valentin Calderón


As pesquisas realizadas por Valentin Calderón (1969) nas regiões do litoral e recôncavo
baiano resultaram no registro de vinte e quatro sítios da fase Aratu dos quais foram realizadas

3
As tradições arqueológicas são definidas por Chmyz (1976, p. 145) como um conjunto de “elementos ou
técnicas com persistência temporal” e fases são compreendidas como expressões regionais das tradições.

13
prospecções em três deles: Beliscão, Guipe e Piratacase. Ao todo foram reunidas vinte e sete
coleções, totalizando mais de oito mil fragmentos além de oito urnas funerárias inteiras que
permitiram a Calderón estabelecer alguns parâmetros gerais para a caracterização da fase Aratu
(CALDERÓN, 1969).

Os sítios estudados por Calderón apresentam uma extensão de 300 x 200m e 200 x 100m
para Guipe e Beliscão, as datações resultaram em A.D. 870 ± 90 e A.D. 1360 ± 40
respectivamente. Todos os sepultamentos encontrados consistiram em urnas piriformes, sempre
apresentando-se em grupos de duas, três ou mais com aproximadamente 75cm de altura, 65cm
de diâmetro máximo do bojo e 45cm de abertura da boca (CALDERÓN, 1969). Em grande
parte dos enterramentos foram encontrados vasilhames em posição invertida que serviram como
uma espécie de proteção aos restos humanos sepultados e outros objetos como lâminas de
machado polido e fusos de cerâmica que, segundo o autor, possivelmente teriam pertencido à
pessoa sepultada (CALDERÓN, 1969; RODRIGUES, 2011).

A cerâmica foi classificada em tipos simples e decoradas, sendo estas últimas menos
expressivas. De acordo com Calderón (1969) a técnica de decoração mais frequente é a
aplicação de engobo com grafite, já as decorações corrugadas e roletadas representam uma
percentagem diminuta. As morfologias mais frequentes são as globulares e hemisféricas,
seguidas de vasilhames de pouca altura que se assemelham a pratos, tendo a ocorrência de
tigelas com bordas onduladas. A composição de pasta cerâmica apresenta areia grossa, areia
fina e grafite, já para o tratamento de superfície é predominante o alisamento e aplicação de
engobo com grafite (idem).

Figura 1: Urnas funerárias Aratu. Extraído de Calderón, 1969.

14
Figura 2: Vasilhame com borda ondulada. Extraído de Calderón, 1969.

1.3 A tradição Sapucaí de Ondemar Dias Jr.


Durante o quarto ano de pesquisas do PRONAPA, os trabalhos realizados por Ondemar
Dias Jr (1971) estenderam-se pela bacia do Rio Grande e seus afluentes: Rio Verde e Sapucaí,
em território mineiro. Neste ano, foram localizados trinta e cinco sítios arqueológicos tendo
sido trinta e quatro classificados como pertencentes à uma mesma tradição não-Tupiguarani,
esta foi dividida em três fases: Jaraguá, Itaci e Sapucaí que foram determinadas pela variação
de carga na pasta cerâmica de amostras provenientes de dezenove sítios (DIAS JÚNIOR, 1971;
RODRIGUES 2011).

As amostras associadas a fase Jaraguá foram localizadas em Nepomuceno, tendo sua


ocorrência restrita a este município. A composição da pasta cerâmica apresentou quartzo
(também presente na superfície dos cacos), feldspato, hematita e mica. O tratamento de
superfície varia entre o “rudimentar” e alisamento fino, tendo como técnica de manufatura a
sobreposição de roletes e a espessura dos fragmentos apresenta variação entre 3mm e 15mm. A
decoração, pouco recorrente, predomina o engobo vermelho, a pintura sem engobo, em alguns
casos o estriado e uma única ocorrência de digitado (DIAS JÚNIOR, 1971). Para o aspecto de
queima, o autor descreve a presença de fragmentos com núcleo reduzido que muitas vezes
ocorre em toda a espessura da peça. Sobre a morfologia foi mencionada a ocorrência de peças
globulares.

15
A fase Itaci foi estabelecida a partir da análise de 5084 cacos cerâmicos provenientes de
nove sítios arqueológicos cuja dimensão varia entre 50x50 e 500x300 metros (DIAS JÚNIOR,
1971). A composição da pasta cerâmica apresenta predominantemente o quartzo, com
ocorrência de feldspato e mica; o tratamento de superfície foi definido como “regular”, a
espessura dos fragmentos varia entre 3mm e 30mm e a queima foi considerada como “mau
controlada com predominância de oxidação incompleta” (DIAS JÚNIOR, 1971, p. 138). Para
a fase Sapucaí, definida a partir da análise de 2496 cacos provenientes de sete sítios
arqueológicos apresenta na composição da pasta cerâmica o feldspato associado ao quartzo,
mica na superfície dos fragmentos e em casos mais raros há a ocorrência de hematita (DIAS
JÚNIOR, 1971). A espessura varia entre 2mm e 20mm, assim como na fase Itaci o autor
descreve a queima que apresenta oxidação na face externa com núcleo reduzido. Em ambas as
fases se observou a presença de banho vermelho como técnica decorativa, em menor proporção
foram identificadas técnicas de decoração plástica, tais como ungulado e digitado, e a presença
de engobo branco (idem).

1.4 Os estudos de Igor M. M. Rodrigues sobre o sítio arqueológico Vereda III


A dissertação de mestrado de Igor Rodrigues (2011) nos traz informações relevantes
para o estudo da tradição ceramista alvo desta pesquisa. Além de discutir temáticas mais
contemporâneas, com uma sessão dedicada exclusivamente às relações sociais performadas
pela materialidade a partir de dados etnográficos e etnológicos dos povos ameríndios
brasileiros, o autor se dedica a correlacionar os atributos técnicos dos vestígios cerâmicos e
apresenta uma descrição muito mais elaborada que os trabalhos anteriores mencionados acima
como veremos a seguir, utilizando tecnologias como a difratometria de Raios X (DFRX) e
microscopia eletrônica de varredura (MEV). Cabe ainda ressaltar que o autor também destinou
sua atenção à análise do material lítico, entretanto, não o mencionarei aqui pois, como já foi
exposto, meu interesse está nas materialidades feitas a partir da argila.

O sítio arqueológico Vereda III está localizado na Área de Proteção Ambiental do carste de
Lagoa Santa, mais precisamente no município de Prudente de Moraes – MG, inserido em uma
“zona aberta que mede aproximadamente 70m de comprimento, leste-oeste, com trechos entre
10 e até 30 metros de largura, em sentido norte-sul” (RODRIGUES, 2011, p. 114). A primeira
intervenção realizada no sítio data do ano de 2003, quando a equipe do Laboratório de Estudos
Evolutivos Humanos da USP realizou uma coleta de superfície e, apenas em 2010, a equipe do
Setor de Arqueologia do MHNJB da UFMG realizou a segunda etapa dos trabalhos de campo
por meio de escavações (id., ibid.).

16
Ao todo foram coletados 3682 fragmentos cerâmicos dos quais 1795 foram utilizados para
tratamento estatístico, considerando aqueles fragmentos maiores que 5cm cuja espessura era
maior que 10mm e maiores que 3cm para aqueles fragmentos cuja espessura não ultrapassava
10mm (RODRIGUES, 2011). Através destes fragmentos foi possível realizar a reconstituição
de 24 recipientes com morfologias variadas: piriforme, hemisférica, cônica, meia-calota e
globular.

Através da Difratometria de Raios X e Microscopia Eletrônica de Varredura foram


identificados três tipos de pasta utilizadas para a produção dos vestígios cerâmicos, nomeadas
pelo autor como A, B e C. A pasta do tipo A ocorre em 16 dos 24 potes reconstituídos, sendo
descrita como uma pasta fina, cuja granulometria é inferior a 3mm e baixa densidade de cargas
(5%), sendo composta por partículas de chamote (caco moído), cauxí, matéria orgânica, quartzo
e argila vermelha. A pasta do tipo B ocorre em 492 cacos analisados que correspondem a 2
vasilhames reconstituídos, apresentando uma granulometria que varia entre fina e grossa com
presença de chamote, quartzo, matéria orgânica, cauxí e argila vermelha em uma proporção
entre 5% e 10% (RODRIGUES, 2011). Portanto, o tipo de pasta B apresenta os mesmos
elementos encontrados no tipo de pasta A, variando em granulometria e densidade de carga.
Por fim, o tipo C ocorre em 95 fragmentos que correspondem a 6 potes, sendo descrito como
uma pasta com cargas de granulometria fina, inferiores a 3mm, e proporção que varia entre 20%
a 30% apresentando quartzo, feldspato e matéria orgânica (RODRIGUES, 2011). Assim,
percebemos que o chamote, cauxí e argila vermelha são elementos exclusivos das pastas do tipo
A e B, o feldspato como elemento exclusivo do tipo C e o quartzo e matéria orgânica como
elementos presentes em ambos os tipos.

Através da Microscopia Eletrônica de Varredura foi constatado que o cauxí ocorre apenas
na argila vermelha, indicando que o cauxí não foi utilizado como tempero, mas sim a argila
vermelha pois, caso contrário, as espículas seriam encontradas em ambos os tipos de argila
(RODRIGUES, 2011). Outro fato que corrobora com esta hipótese é o tamanho destas espículas
que não são visíveis a olho nu:

Devido ao diminuto tamanho das espículas (variando de 100 a 12 µm de


comprimento) fica difícil afirmar que indígenas coletavam estas argilas por
enxergarem as espículas. No entanto, com certeza conheciam as
características específicas das argilas, através das coceiras provocadas pelas
espículas, sabendo que aquela argila irritante propiciaria benefícios para a
cerâmica tais como porosidade, leveza e dureza (VolkmerRibeiro & Viana,
2006: 313 apud Rodrigues, 2001: 139).

17
Além de analisar a composição das pastas cerâmicas, Igor Rodrigues correlacionou estes
dados com as morfologias e tratamentos de superfície dos recipientes reconstituídos. Dos 16
recipientes produzidos com a pasta do tipo A oito apresentam morfologia cônica; três com
morfologia hemisférica, sendo que dois deles apresentam a aplicação de engobe nas faces
interna e externa e receberam polimento em ambas as faces como tratamento de superfície; um
recipiente com morfologia globular; dois vasilhames de morfologia meia-calota e dois
piriformes. Todos receberam uma adição de argila fina para tratamento de superfície e foram
confeccionados através da sobreposição de roletes.

Apenas dois vasilhames de morfologia globular foram confeccionados com a pasta do tipo
B através da sobreposição de roletes. Estes são os maiores recipientes da coleção, apresentando
volumetrias entre 200 e 417 litros. O autor ainda descreve que “receberam uma camada de
argila adicional, sobreposta aos roletes em ambas as faces, com uma espessura média de 1mm
e alisamento médio nas duas faces” (RODRIGUES, 2011, p. 146). Em um dos potes constatou-
se a presença de engobe vermelho e uma faixa preta margeando a área com aplicação do engobe
vermelho (id, ibid). Através da análise das marcas de uso o autor acredita que estes recipientes
foram utilizados para a produção de bebidas fermentadas.

Por fim, a amostra correspondente a pasta do tipo C é composta por 6 vasilhames, sendo 4
de morfologia hemisférica com aplicação de engobo vermelho nas faces interna e externa e dois
de morfologia globular, sendo que um deles apresenta aplicação de engobo vermelho na face
externa. Em todos os recipientes observou-se um alisamento fino como tratamento de superfície
em ambas as faces (RODRIGUES, 2011).

Quanto à utilização destes recipientes, o autor sugere que os vasilhames confeccionados


com a pasta do tipo C foram utilizados como pequenas panelas, aqueles produzidos a partir da
pasta do tipo B utilizados como panelões que foram levados ao fogo enquanto os recipientes
produzidos a partir da pasta do tipo A:

existe uma grande variabilidade de formas. Devido a uma baixa densidade de


antiplásticos e temperos (5%), associada em grande parte com potes espessos
(15 a 20mm) pode-se interpretar esta pasta como fina. De modo geral, ela foi
utilizada em oito grandes panelas, em duas pequenas panelas com tratamento
de superfície polido e engobo vermelho nas duas faces, em dois pequenos
pratos, uma tigela e um grande vasilhame possivelmente utilizado para
armazenamento (RODRIGUES, 2011, p. 175).

18
1.5 Aratu-Sapucaí: uma tradição de cerâmicas simples?
A partir do exposto acima podemos compreender que a cerâmica classificada como
pertencente à tradição Aratu-Sapucaí é caracterizada pela ocorrência de urnas funerárias de
morfologia piriforme encontradas em grupos de duas ou mais e recipientes de morfologias
variadas que foram classificadas pelos pesquisadores pronapianos como “simples” em seu
tratamento de superfície e decoração, sendo o aspecto de queima dessas cerâmicas
recorrentemente definido como uma queima “incompleta” ou “mau controlada” devido a
ocorrência de núcleo acinzentado. Os aspectos decorativos são predominantemente a ocorrência
de coloração avermelhada com pouca ocorrência de decoração plástica e a técnica de
manufatura é predominantemente através da sobreposição de roletes.

A classificação desses vestígios, mencionados nas bibliografias pronapianas como


“cerâmicas não-Tupi”, se deu a partir de uma imposição comparativa com as cerâmicas
Tupiguarani, conhecidas pelas suas decorações plásticas e pintadas. Todavia, toda comparação
se dá entre elementos diagnósticos arbitrariamente escolhidos por pesquisadores geralmente
alheios à produção, significação e utilização desse tipo de materialidade entre comunidades
ceramistas. O emprego de uma classificação simplista devido à ausência de técnicas de
modificação de croma e relevo consideradas complexas é negligenciar a heterogeneidade de
percepções e motivações sobre a materialidade entre diferentes povos. O belo, o admirável, o
desejado nem sempre será demonstrado através de elementos que sejam chamativos aos nossos
olhos que operam sob uma lógica ocidental moderna. Como sugerem Ribeiro e Milheira (2015)
a ausência de determinados elementos que, no nosso entendimento, são classificados como
“decorativos” não pressupõe uma inaptidão para sua produção, mas sim uma escolha. O não-
fazer também deve ser interpretado como resultado da intencionalidade da ceramista.

Vale ressaltar também que por trás da ideia de ceramistas simples e incapazes,
reside uma perspectiva preconceituosa sobre as populações indígenas,
compreendidas como “marginais”, em um cenário de baixo desenvolvimento
cultural. (RIBEIRO; MILHEIRA, 2015, p. 117)
Na contramão das pesquisas pronapianas que definem a cerâmica Aratu-Sapucaí por
aquilo que elas não são, Igor Rodrigues lança um olhar mais atento às técnicas produtivas e
suas correlações entre morfologia, composição da pasta cerâmica e utilização destes recipientes,
enfatizando que existe uma escolha consciente e intencional destas comunidades de prática em
suas produções.

Como veremos nos capítulos seguintes, sobretudo nos resultados das análises realizadas
sobre coleções provenientes do município de Santa Luzia - MG, a cerâmica desta tradição

19
apresenta características que exigem um elevado grau de habilidade técnica para serem obtidas.
A queima, etapa produtiva fundamental, exige um controle extremo do fogo: este deve alcançar
progressivamente uma temperatura suficientemente alta e, geralmente, durante um período de
várias horas para que haja a transformação da argila em cerâmica. A composição da pasta
cerâmica bem como a morfologia dos vasilhames deve ser interpretada como uma escolha e
não uma mera ocasionalidade. Ao descrever a materialidade produzida por outras gentes
devemos nos esforçar em ter a sensibilidade de compreender que suas percepções, rigores
técnico-sociais e motivações também são outros. O conhecimento teórico desvinculado do
conhecimento prático causa a falsa sensação de que a produção de objetos cerâmicos em geral
é simples e que a complexidade está apenas na aplicação de técnicas de alteração de croma e
relevo que sejam chamativas aos olhos de pesquisadores.

Foi, sobretudo, a partir do meu conhecimento prático enquanto aprendiz de ceramista no


Grupo de Estudos do Simbólico e Técnico da Olaria4 (G.E.S.T.O.) que pude, através do auxílio
e ensinamentos de diferentes mestras ceramistas, transformar a minha percepção sobre o
material arqueológico. A produção cerâmica exige destreza, empenho e maestria em todas as
etapas de sua cadeia operatória e, por isso, o ponto de partida desta pesquisa é a concepção da
tradição Aratu-Sapucaí como um conjunto de vestígios com alto rigor técnico e complexidade
em todas as etapas de sua cadeia operatória.

4
Que desde 2022 figura como grupo de pesquisa cadastrado ao CNPq

20
Capítulo 2: O Sítio Santa Inês Jussara
O Sítio Arqueológico em questão está localizado em propriedade privada no bairro
Chácaras Santa Inês, município de Santa Luzia – MG, com acesso pela Av. Professor Djalma
Guimarães. Trata-se de uma chácara com aproximadamente 15.350m² de área. A pesquisa na
área indicada foi realizada em decorrência do processo de licenciamento para obtenção de
Licença Prévia (LP) do empreendimento de responsabilidade da construtora AP Ponto
(Processo IPHAN 01514.004837/2017-57), todavia o financiamento foi realizado pela atual
proprietária do terreno, Jussara Elias Gualberto, sendo a Peruaçu Arqueologia Ltda a empresa
de arqueologia responsável pela pesquisa (Relatório de Avaliação de Impacto ao Patrimônio
Arqueológico na Área do Condomínio Ponto Amarilis, 2019).

Figura 3: Planta baixa com projeção das áreas de escavação. Acervo: Peruaçu Arqueologia Ltda. Os quadrados e retângulos
em vermelho e preto, na parte superior, indicam as áreas de escavação; as duas linhas em vermelho e preto indicam um
antigo muro de pedras localizado no terreno

As atividades de campo, em que participei como estagiário, foram realizadas pela


empresa Peruaçu Arqueologia Ltda em parceria com a Prefeitura Municipal de Santa Luzia
entres os meses de agosto e setembro de 2021 e foram coordenadas pela arqueóloga Lílian
Panachuk, sendo o arqueólogo Ângelo Pessoa Lima o coordenador geral do projeto. Também
estavam presentes a arqueóloga da Prefeitura Municipal de Santa Luzia, Giuliana Castiglioni e
os auxiliares Paulo Henrique Chaves, Messias Feliciano Ribeiro e Gledson Cristiano de Souza
além de outras visitas pontuais tais como do arqueólogo André Prous. Ao longo dos dias de

21
trabalho recebemos a visita da proprietária do terreno, Jussara E. Gualberto com a qual foi
realizada uma entrevista, registrada em vídeo por Alexandre Nery (Prefeitura Municipal de
Santa Luzia), em que narra sua história familiar atrelada a própria história do sítio arqueológico.
Doravante, antes de adentrar nos detalhamentos sobre as atividades de campo e laboratório, faz-
se necessário tomar conhecimento sobre as narrativas apresentadas por Jussara para melhor
compreender o contexto do próprio sítio.

2.1 Relatos de Jussara: contextualizando o sítio arqueológico


A história contada por Jussara remonta à época de sua avó que comprara o terreno para
receber a família aos finais de semana. De acordo com Jussara o terreno foi comprado de uma
pessoa cujo sobrenome era “Lara”, dono de uma grande fazenda que ocupava toda a região que
fora loteada e vendida para diferentes pessoas, entre elas sua avó. No início não havia nenhuma
estrutura urbana, nem mesmo estradas de acesso tinham sido construídas e para acessar o sítio
era necessário chegar até o bairro São Benedito e percorrer o restante do caminho a pé. A
primeira melhoria realizada foi o cercamento do terreno e a construção de uma “casinha”. A
construção de estrada de acesso foi realizada depois.

Jussara: Quando abriu a rua eles começaram a achar aquelas marcas redondas na rua...
E meu tio pegou essas marcas e tirou o que ele conseguiu tirar na época e guardou. São
esses guardados que tem aí. Depois disso, aqui a gente andava sempre olhando pra baixo
porque a gente procurava esses caquinhos pequeninhos... E meu tio achou muita coisa!
É o que tá ali naquele armário, e que estão nas caixas que vão pro Museu. (Trecho
extraído da entrevista realizada com Jussara em setembro de 2021).

O estreitamento entre a história familiar de Jussara e o sítio arqueológico começa, como


pode-se notar no relato transcrito acima, com a abertura da estrada de acesso para o sítio da
família. Durante as obras para abertura da via de acesso começam a aparecer os primeiros
vestígios arqueológicos que, de acordo com a descrição informada, aparentam ser urnas
funerárias. Hipótese que é reforçada por um quadro pintado à mão localizado na sala da casa
principal do sítio. Neste quadro está a representação da abertura da estrada de acesso na qual é
possível notar a presença de duas marcas redondas citadas por Jussara cujo material foi coletado
pelo seu tio, Júlio Pinto Gualberto, e permaneceu guardado pela geração seguinte. A partir de
então, outros vestígios arqueológicos foram encontrados nos caminhamentos realizados no
terreno e guardados pela família.

22
Figura 4: Lílian Panachuk indicando localização de representação de duas urnas no quadro exposto na casa principal da
Chácara da família Gualberto. Acervo: Peruaçu Arqueologia Ltda, 2022

Com o passar dos anos a família de Jussara, ao realizar benfeitorias no terreno, decide
construir uma piscina. É a partir das movimentações de solo para terraplanagem necessária para
tal construção que a parte superior de duas urnas funerárias foi exposta. Com tal acontecimento,
a família decide por alterar a localização da piscina e constrói duas estruturas circulares de
concreto com tampos de vidro e metal para promover a preservação e expografia das urnas. Os
demais materiais arqueológicos que foram encontrados pela família, tais como os fragmentos
das “marcas redondas” citadas por Jussara foram armazenados em quatro caixas em um dos
cômodos do terreno.

Figura 5: Material organizado em caixas da família Gualberto. Acervo: Peruaçu Arqueologia Ltda, 2022

Ainda foi organizado, pela família, um armário com portas de vidro composto por quatro
prateleiras contendo vestígios arqueológicos com exemplares pré e pós-coloniais. Também
estavam expostos materiais de cunho etnográfico, bibliográfico, paleontológico, botânico e
faunístico. A fama da família por armazenar estes “vestígios antigos” fez com que demais

23
pessoas da vizinhança, ao encontrarem vestígios semelhantes, os entregassem para compor a
expografia da família Gualberto.

Figura 6: Cristaleira com expografia de materiais organizados pela família Gualberto. Acervo: Peruaçu Arqueologia Ltda,
2022

Todo o envolvimento da família Gualberto, repassado entre as gerações, e toda a


curiosidade despertada sobre a materialidade exposta e cuidada indica que a relação de afeto
entre pessoas e coisas no território inclui o patrimônio cultural enquanto patrimônio familiar
que se conecta à vida das pessoas (BIANCHEZZI, et al. 2021). Mais do que guardar fragmentos
Jussara Elias Gualberto preserva a memória de seu tio, Júlio Pinto Gualberto, através das
materialidades arqueológicas que se atrelam à vida familiar.

2.2 As escavações realizadas


As escavações foram realizadas em diferentes áreas de interesse: Hebe I, Hebe II e
Orquidário além da retirada das urnas localizadas próximas à piscina.

24
Figura 7: Croqui de localização das áreas de escavações e benfeitorias na chácara de Jussara Gualberto. Acervo: Peruaçu
Arqueologia Ltda, 2022

2.2.1 Área Hebe I


A primeira etapa das escavações foi dedicada a esta área de interesse, nomeada como Hebe
I, onde foram delimitadas 15 quadrículas de 1m² cada. Localizada próxima à entrada da chácara
a área testou positivo na prospecção realizada pela equipe da empresa Peruaçu Arqueologia em
etapas de trabalhos anteriores – ocorrência de material cerâmico – e se configura como um
jardim aberto com plantação de grama e estruturas de irrigação (PERUAÇU ARQUEOLOGIA
LTDA, 2019). As quadrículas foram nomeadas seguindo um padrão alfanumérico: no eixo
norte-sul foram nomeadas J, K, L, M e N, já no eixo leste-oeste foram nomeadas 10, 11 e 12.
Durante as escavações todo o solo retirado das quadras foi peneirado para conferir a presença
ou ausência de material arqueológico.

As escavações começaram pela quadra J-10 com a utilização de ferramentas pesadas


(enxada e chibanca) para retirada da camada superficial. O nível artificial estabelecido foi de
10cm, todavia, antes de terminarmos a primeira retirada da quadra J-10 o manuseio das
ferramentas ocasionou o rompimento de um canal de irrigação com dispersão de água. Neste
momento o caseiro do sítio, chamado de “Seu Souza”, nos informou que realizou algumas
poucas benfeitorias na área, como a instalação do sistema de irrigação e revolvimento do solo
para plantação de grama. Diante do exposto e informados da localização do canal de irrigação
mudamos de estratégia e começamos a escavação da quadra N-10. A partir de 10cm de
profundidade ocorre uma variação na cor do solo devido a ocorrência de filito. Entre 20 e 30cm,
com o solo composto majoritariamente por filito, identificamos a ocorrência de um único
fragmento cerâmico. Prosseguindo nas escavações o solo apresentou-se demasiadamente

25
compacto e por isso decidimos começar a escavar a quadra adjacente, M-10, todavia não
localizamos nenhum vestígio de interesse arqueológico.

Analisando os resultados parciais da primeira etapa de escavação da área Hebe I optou-se


por adotar uma estratégia de escavação em xadrez na malha de quadrículas. Retomamos a
escavação da quadra J-10 (desta vez com o sistema de irrigação desligado) e começamos a
escavar, num primeiro momento, as quadras J-12, K-11, L-10, L-12, M-11 e N-12 e, em um
segundo momento, as demais quadras. Ao retomar a escavação da J-10 o aparecimento de
artefatos arqueológicos ocorreu no nível estratigráfico de base em 20cm de profundidade em
relação a superfície. A partir disso, somado com os relatos do caseiro de revolvimento do solo,
constatamos que os primeiros centímetros de profundidade tratava-se de um aterro. Optamos
por seguir uma metodologia na qual as demais quadras foram rebaixadas até 15cm de
profundidade com a utilização de chibanca. A partir de então os vestígios arqueológicos
revelaram-se em maior densidade na porção sul da área, ocorrendo entre 15cm e 20cm de
profundidade, com exceção do fragmento localizado na porção norte, quadra N-10, a 25cm de
profundidade.

A única quadrícula não escavada foi N-11 devido a ocorrência de filito aflorado nas quadras
adjacentes N-10 e M-10. Na quadra M-10 ainda abrimos um poço teste com 60cm de
profundidade atestando a constância do afloramento de filito sem ocorrência de material
arqueológico. Ao todo foram coletados 100 fragmentos cerâmicos.

Figura 8: Croqui do final da escavação da área Hebe I. Acervo: Peruaçu Arqueologia Ltda, 2022

2.2.2 Área Hebe II


A princípio havia sido planejada uma quadrícula na atual horta do caseiro da chácara, na
porção leste do terreno. Todavia, nas obras de benfeitoria para a construção da horta foi
realizado um corte no terreno, deixando esta área com 2m de desnível em relação à rua. Tal

26
manejo de solo certamente causou impactos ao nível arqueológico e, por isso, a arqueóloga
coordenadora de campo, Lílian Panachuk, sugeriu que eu escolhesse uma nova área para relocar
a quadrícula.

O pedido foi claro, eu poderia escolher a nova localização da quadrícula, mas, para isso,
precisaria apresentar argumentos convincentes de minha escolha. Realizei caminhamentos na
área de entorno para tentar identificar porções do terreno que aparentavam ter sofrido menos
alterações durante a própria construção e melhorias do sítio. Seguindo para a porção sudoeste
o terreno apresentava um declive acentuado, o que direcionou a minha escolha para a porção
Norte, em uma área que aparentava ter sido menos revolvida. Na porção Norte, nas
proximidades da piscina, era possível observar afloramentos de filito e como as escavações na
área Hebe I demonstraram pouca probabilidade de ocorrência de vestígios arqueológicos neste
solo tal área foi desconsiderada. A área escolhida estava à poucos metros da Área Hebe I,
próxima ao muro e em mesmo nível que a rua, indicando que a movimentação de solo naquela
área teria sido menor. Também estava suficientemente distante de uma árvore grande próxima
à piscina, cujas raízes representam bioturbações ao solo e, consequentemente, possíveis
inversões de perfis estratigráficos.

As argumentações foram convincentes e Lílian aceitou a nova localização para intervenção


em subsuperfície na área que foi nomeada como Hebe II. A escavação da área se demonstrou
promissora visto que foram evidenciados 31 vestígios, entre fragmentos cerâmicos e alguns
cristais de quartzo a aproximadamente 15cm de profundidade. A quadrícula também recebeu
uma identificação alfanumérica: H1 – a primeira quadrícula cuja localização foi decisão
inteiramente minha.

27
Figura 9: Croqui área Hebe II, distribuição dos vestígios arqueológicos. Acervo: Peruaçu Arqueologia Ltda, 2022

2.2.3 Orquidário
As escavações na área do orquidário resultaram na abertura de três quadras, nomeadas como
O-1, O-2 e O-3. Nas duas primeiras as intervenções em subsuperfície seguiram até os 40cm
enquanto na terceira chegamos aos 50cm de profundidade sem a ocorrência de nenhum vestígio
de interesse arqueológico. Através da observação do solo pode-se constatar que nesta área havia
sido realizado um aterro e, devido ao alto grau de alteração do solo, uma das quadras apresenta
eletrodutos e encanamento de água, as escavações desta área foram finalizadas.

Mesmo que as escavações não tenham obtido um retorno positivo quanto a ocorrência de
material arqueológico, tais quadras também foram fonte de aprendizado na minha formação
enquanto profissional. Durante a delimitação da área plana de escavação em Hebe I pude
observar a aplicação deste método tão caro a arqueologia, auxiliando as demais pessoas que
estavam fazendo tal atividade. Entretanto, quando voltamos nossa atenção à área do orquidário
a delimitação das quadras foi direcionada a mim, também com a ajuda da arqueóloga Giuliana
Castiglione. Talvez esta etapa possa parecer demasiadamente elementar aos profissionais que
já carregam uma bagagem de experiência de campo com escavações, entretanto, gostaria de
mencionar esta ocasião interpretando-a como a oportunidade de um estudante aplicar, na
prática, o conhecimento obtido previamente sobre os métodos e técnicas da arqueologia, pouco
recorrente durante o meu curso de graduação.

28
Figura 10: Detalhes das quadras O-1 e O-2 aos 30cm de profundidade (superior), delimitação da quadra O-3 (inferior
esquerda) e detalhe da quadra O-3 aos 50cm de profundidade (inferior direita). Acervo: Peruaçu Arqueologia Ltda, 2022

2.2.4 Retirada das urnas

Figura 11: Estruturas de concreto com tampos de vidro e metal instalados pela família Gualberto para proteção e expografia
das urnas. Acervo: Peruaçu Arqueologia Ltda, 2022

A etapa final das escavações foi reservada à retirada das urnas localizadas próximas à
piscina da chácara. Como citado acima, as urnas foram evidenciadas durante os trabalhos de
terraplanagem do terreno para a construção da piscina que fora remanejada de localização em
decorrência dos achados (PERUAÇU ARQUEOLOGIA LTDA, 2022). A família, interessada

29
nos remanescentes cerâmicos, construiu duas estruturas circulares de concreto com tampos de
vidro e metal permitindo, ao mesmo tempo, a proteção e expografia das urnas.

Ao chegarmos no local, foi possível observar que a parte superior das urnas estava visível,
mesmo que recoberta por uma vegetação rasteira que foi retirada para que pudéssemos inferir
o tamanho dos recipientes: o maior contendo aproximadamente 70cm de diâmetro, nomeado
como Urna 1, e 55cm de diâmetro para o menor, nomeado como Urna 2. Durante as atividades
de campo, minha coordenadora, Lílian Panachuk, permitiu que eu realizasse a escavação da
urna maior enquanto ela própria escavava a urna menor ao meu lado.

Antes de prosseguir gostaria de fazer uma observação pontual sobre sentimentos que me
atravessam ainda hoje. Se é importante contextualizarmos nossas produções, gostaria de
expressar para quem leia este texto uma experiência que não cabe na objetividade científica que
torna nossos corpos invisíveis nas leituras acadêmicas/científicas. Durante toda a graduação eu
imaginava como seria se algum dia eu precisasse escavar uma estrutura funerária pois, para
mim, toda materialidade aponta para alguém, afinal de contas a arqueologia estuda os vestígios
materiais para compreender as dinâmicas sociais das pessoas, todavia, a ideia de lidar com
sepultamentos que, como sugere Cabral (2020) estabelecem redes de socialidade que englobam,
para além de pessoas humanas, outros seres e lugares despertava, e ainda desperta, em mim um
certo incômodo, uma sensação de profanar aquilo que é sagrado. Não imaginava que meu
primeiro trabalho em arqueologia seria justamente escavar não uma, mas duas urnas. Conforme
os dias iam passando e as escavações das demais áreas avançavam essa inquietude de escavar
as urnas se tornava maior e a cada dia eu me questionava se era certo retirarmos um
enterramento para encaixotá-lo em alguma prateleira de museu ou transformá-lo em um ícone
dentro de vitrines para exposições. Constantemente me perguntava como eu, Alex, me sentiria
se soubesse que o enterramento de uma pessoa próxima a mim fosse exumado e guardado em
caixas ou expostos em vitrines. Ao se tratar dos vestígios arqueológicos a indagação que me
surge a partir disso é outra: quanto mais antigo menos humano e mais objeto? Quanto mais
antigo é um enterramento mais liberdade temos para tomar posse dele? São perguntas que não
tenho resposta, mas entendi que, no caso deste sítio, estávamos realizando um salvamento: estes
enterramentos estavam sob risco de destruição para a construção de um condomínio e a retirada
destes remanescentes se fez imprescindível para não deixar que a história dessas pessoas (que
eu nunca conheci) acabasse ali. Entendendo a importância do trabalho realizado, mas sem
perder a sensibilidade de reconhecer a complexidade que é lidar com tais tipos de vestígios
arqueológicos cheguei à conclusão de que era preciso, no mínimo, pedir licença. Pedir licença

30
como quando entramos na casa de alguém, como quando atravessamos a linha que separa o
espaço que é nosso/meu/seu e o espaço que é de outro. E assim o fiz: verbalizei, mesmo que na
forma de um sussurro que mal pudesse ser percebido ao redor, um pedido de licença e prossegui.

Antes que eu pudesse escavar, de fato, Lílian me instruiu em como eu deveria prosseguir:
com o auxílio da colher de pedreiro e demais instrumentos de madeira era preciso retirar os
sedimentos da parte interna das urnas, coletando os fragmentos que fossem encontrados e
sempre deixando a “quadra” nivelada. Percebi o nível de compactação do solo quando vi o
esforço que era empregado pela minha mestra e pude confirmá-lo logo na primeira tentativa de
extração de sedimento. Ajoelhado e utilizando as estruturas de concreto construídas pela família
como apoio me debrucei sobre a Urna 1 e comecei a escavá-la. O solo estava tão compactado
que foi preciso utilizar a ponta mais afiada da colher de pedreiro para conseguir avançar:
começamos fazendo um movimento que partia do centro da urna para as extremidades,
entretanto, tamanho era o empenho físico necessário para que o sedimento fosse desmontado
que, quando rompia, a força que era empregada na colher de pedreiro fazia com que nossos
corpos (tanto o meu quanto de Lílian) avançassem para frente ocasionando uma colisão entre o
instrumento metálico e as paredes das urnas. Diante disso, optei por mudar de estratégia e
comecei a escavar de uma forma diferente da que me foi mostrada: deixei de escavar do centro
para as extremidades da urna para fazer o movimento contrário. Passei a utilizar instrumentos
de madeira para, num primeiro momento, retirar o sedimento próximo às paredes da urna
(escolhi os instrumentos de madeira por eles causarem menos risco de criar ranhuras na
cerâmica se comparados com os instrumentos metálicos). Dessa forma, minha “quadra” ficou
irregular, o centro estava mais elevado que as extremidades e tal feito não passou despercebido
por Lílian que estava escavando a Urna 2 ao meu lado e logo me chamou atenção, perguntando
por que minha escavação não estava nivelada e havia um ponto mais alto que outro. Expliquei
que optei por retirar o sedimento das extremidades primeiro pois poderia acompanhar melhor a
própria morfologia da urna e, delimitando o espaço, poderia utilizar a parte traseira da colher
de pedreiro para retirar o sedimento da parte central em um movimento que partisse da
extremidade para o centro e não ao contrário, do centro para as extremidades como havíamos
começado a escavar. Ela permitiu que eu continuasse dessa forma, me parecendo um pouco
desconfiada. Algum tempo depois percebi que ela própria começou a escavar dessa maneira e
me disse algo como “estou utilizando a metodologia de um amigo meu”, uma espécie de
comentário que foi, ao mesmo tempo, jocoso e afetuoso.

31
Figura 12: Detalhes das atividades de escavação da Urna 1 (esquerda) e Urna 2 (direita). Acervo: Peruaçu Arqueologia Ltda,
2022

Nos últimos dias de campo o arqueólogo André Prous fez uma participação pontual nas
escavações das urnas e concedeu uma entrevista que fora registrada por Alexandre Nery, do
setor de comunicação da Prefeitura de Santa Luzia. Neste dia tive a oportunidade de aprender
com André a fazer o registro das retiradas das escavações das urnas em planta baixa. Dias antes
Lílian já havia insistido para que eu realizasse croquis expeditos das escavações e, novamente,
encontrei muita dificuldade em realizar tarefas corriqueiras para profissionais da arqueologia,
mas que eram completamente novas para mim. O aprendizado foi marcado por tentativas e erros
que alimentavam um sentimento de frustração, mas ao fim e ao cabo a prática foi uma aliada
ao aprendizado e registrei em croquis todas as retiradas das escavações das urnas, identificando
também a profundidade que cada fragmento estava considerando a borda das estruturas como
marco 0.

Figura 13: Participação do arqueólogo André Prous nas escavações. Acervo: Peruaçu Arqueologia Ltda, 2022

32
Figura 14: Registro em croquis das retiradas de materiais provenientes das urnas 1 (esquerda) e 2 (direita). Acervo: Peruaçu
Arqueologia Ltda, 2022

Figura 15: Desenho de campo da retirada 1, Urna 1. Acervo: Peruaçu Arqueologia Ltda, 2022

33
Figura 16: Digitalização das retiradas realizadas na Urna 1. Acervo: Peruaçu Arqueologia Ltda, 2022

34
Figura 17: Detalhes da escavação da Urna 2 e desenho de campo. Acervo: Peruaçu Arqueologia Ltda, 2022

Figura 18: Digitalização das retiradas feitas na Urna 2. Acervo: Peruaçu Arqueologia Ltda, 2022

Ao todo, foram retirados 122 fragmentos, 66 associados à Urna 1 e 56 associados à Urna


2. Cada um dos fragmentos recebeu um número de identificação ainda em campo, sendo
indicado nos croquis. Outras materialidades foram encontradas no interior das urnas, tais como
um recipiente de plástico encontrado na Urna 1 e em ambas foram identificados cacos de vidro
em diferentes camadas de retirada de material, reforçando o argumento de que o solo já havia
sido revirado e os tampos de vidro e metal sofreram quebras ao longo dos anos. Os fragmentos
de vidro foram retirados e acondicionados em sacos plásticos ziplock com etiquetas de
identificação do projeto de licenciamento e então foram enterrados na Área Hebe I.

35
2.3 As atividades de laboratório
As atividades de laboratório iniciaram-se pela curadoria do material que foi lavado em
água corrente com exceção dos fragmentos provenientes das urnas. Após a lavagem, os
vestígios coletados pela família Gualberto foram expostos em mesas para que pudéssemos ter
uma visão ampla da coleção, agrupando os fragmentos cerâmicos em conjuntos baseados em
suas semelhanças e até mesmo remontagens. Na etapa seguinte os fragmentos receberam uma
identificação alfanumérica com a sigla do sítio (SI), seguida de sigla de indicação da
proveniência do material organizado em Coleta da Família (CF) ou escavação (neste caso, após
a sigla do sítio foi marcado o nome da quadra em que o fragmento foi retirado) e por fim uma
identificação numérica sequencial. Seguindo esta metodologia, um fragmento proveniente da
coleção familiar foi identificado como SI.CF.01, e um fragmento proveniente das escavações
realizadas pela equipe de arqueologia, tendo como exemplo a quadra J10, foi identificado como
SI.J10.01.

Os vestígios provenientes da coleta da família configuram a amostra mais expressiva da


coleção, sendo composta por 859 cacos. A seleção dos fragmentos que foram submetidos às
análises tecnológicas e daqueles que foram analisados de forma qualitativa se deu da seguinte
maneira:

Como resultado da triagem, organizamos grupos de fragmentos - por


remontagens ou por suas semelhanças físicas - envolvendo 512 cacos que
foram analisados em seus detalhes técnicos (60% da amostra). Outros 192
fragmentos (22% da amostra) não formaram conjuntos e não foram
designados à análise tecnológica, mas foram analisados de maneira qualitativa
durante a triagem, através de aspectos físicos dos artefatos. Retiramos da
amostra 155 fragmentos (18% da amostra) muito pequenos (cerca 2cm) ou
sem uma das faces, pois trariam pouca informação tecnológica. (PERUAÇU
ARQUEOLOGIA LTDA, 2022 P.33).
Para a análise tecnológica foi utilizada lupa binocular com aumento de 40 vezes
seguindo a ficha de análise da arqueóloga Lílian Panachuk e Daniel Cruz (2015) que engloba
as categorias de dados de coleta, classe e medidas, características tecnológicas, morfológicas,
aspectos de produção, uso e processos pós-deposicionais. A discussão detalhada da ficha e
interpretação dos dados obtidos através de tais análises será apresentada no próximo capítulo
com os resultados obtidos no estudo da coleção localizada no Museu de História Natural e
Jardim Botânico da UFMG.

Ao longo das atividades de laboratório tive a oportunidade de aprender a utilizar o


programa CorelDraw para a digitalização dos croquis realizados em campo. Lílian Panachuk e
eu fizemos algumas reuniões online e até mesmo presenciais nas quais a arqueóloga me instruiu

36
em como utilizar determinadas funções do software e, enquanto ela foi responsável por fazer a
digitalização dos desenhos referentes às retiradas de material da Urna 2, eu fui responsável por
fazer o mesmo para a Urna 1. Aqui, gostaria novamente de salientar os desafios no processo
de aprendizagem: foram necessários vários dias para que eu conseguisse finalizar a
digitalização de apenas uma das retiradas. Sem dúvidas, para mim, foi a etapa mais desgastante
das atividades de laboratório pois a cada tentativa falha o sentimento de frustração se tornava
maior. Agradeço a paciência de minha orientadora que soube me acolher nos momentos em que
a vontade de desistir de aprender parecia maior que a motivação de adquirir conhecimentos
técnicos necessários para a prática arqueológica. Durante todo o meu curso de graduação não
fui apresentado em sala de aula à tais metodologias de registros de campo.

Para a análise tecnológica dos fragmentos cerâmicos começamos pela discussão da


própria ficha de análise. Em nossos encontros, a arqueóloga Lílian Panachuk e eu discutimos
cada um dos itens presentes na ficha para que pudéssemos balizar nossas interpretações. De
início, analisamos alguns cacos juntos e a maestria de Lílian permitiu que eu aprendesse a
identificar aspectos que antes passariam despercebidos. Em outras palavras, o “olhar analista”
requer treino prático. Participar do Grupo de Estudos do Simbólico e Técnico da Olaria
(G.E.S.T.O.) e realizar experimentações na produção de artefatos cerâmicos utilizando técnicas
tradicionais permitiu que eu criasse certa familiaridade com alguns aspectos técnicos destes
vestígios, tais como a identificação da porção do pote (lábio, borda, bojo, base, etc), faces
interna e externa, algumas marcas deixadas pelo tratamento de superfície (facetas de polimento,
estrias de alisamento, etc), técnicas de produção a partir das quebras evidenciando a
sobreposição de roletes, a diferenciação entre engobe (tinta a base de argila), barbotina (uma
espécie de nata de argila mais fina aplicada à superfície dos recipientes), aguada (tinta a base
de água) e outras marcas que pude conhecer não só através de textos, mas através do meu
próprio corpo atuando na construção de outros corpos feitos de argila. Por fim, todos os
conjuntos foram fotografados utilizando câmera Nikon D7000 seguindo as sugestões de
fotografia para artefatos (LANGFORD, et al., 2009; LANGFORD & BILISSI, 2013;
FREEMAN, 2012).

37
Capítulo 3: Santa Inês I, II e III
3.1 As pesquisas de Paulo Junqueira e Ione Malta
Na segunda metade do decênio de 1970, Paulo Junqueira e Ione Malta publicaram na terceira edição
da revista Arquivos do Museu de História Natural um compilado dos resultados de pesquisas realizadas
na região cárstica de Lagoa Santa, Minas Gerais, constituída pelos municípios de Lagoa Santa, Santa
Luzia, Vespasiano, Pedro Leopoldo, Matozinhos e parte de Belo Horizonte e Jaboticatubas
(JUNQUEIRA; MALTA, 1978). Ao todo, foram coletados 6466 cacos cerâmicos provenientes de 29
sítios arqueológicos, incluindo os sítios Santa Inês I, II e III que, segundo os autores, estão localizados à
aproximadamente 2,5km do Rio das Velhas, em sua margem esquerda (id., ibid.) no município de Santa
Luzia – MG.
Junqueira e Malta (1978) informam que ambos os sítios estão localizados em uma mesma colina com
800m de altitude média em área que fora loteada em chácaras. O material cerâmico foi coletado em
superfície “pelos quintais e jardins” e descrito como “cerâmica simples, com engobo vermelho e um único
caso de roletado ungulado (possivelmente intruso em Santa Inês I)” (JUNQUEIRA; MALTA, 1978, p.
140). Os autores também informam que tomaram conhecimento de outros vestígios encontrados nas
proximidades tais como fusos, uma urna inteira e machados polidos, mas nenhuma outra informação é
trazida a respeito destes artefatos.
Com 300m de diâmetro, o sítio Santa Inês I está localizado no topo do morro, há aproximadamente
100m de um córrego já seco na época da publicação de Paulo e Ione que coletaram 212 fragmentos
cerâmicos do sítio em questão. A única descrição relativa aos vestígios coletados é uma pequena frase em
que diz “Predomínio de quartzo e ocorrência de filito.” (JUNQUEIRA; MALTA, 1978, p. 140). O sítio
Santa Inês II é descrito como tendo 200m de diâmetro e localizado “desde o sopé da colina, onde corre
água ainda hoje, até as margens de um segundo córrego que cortava em diagonal a parte média da colina”
(id., ibid.). Deste sítio foram coletados 249 fragmentos cerâmicos que foram descritos apenas como
contendo o mesmo tipo de tempero que aqueles encontrados no Santa Inês I. Por fim, o sítio Santa Inês III
é descrito como tendo 100m² na média encosta da colina, estando situado entre os sítios Santa Inês I e II.
Neste sítio foram coletados 84 fragmentos que, de acordo com os autores, estavam concentrados em
“pequenas manchas escuras de 10m² e 20m², sugerindo conjunto de cabanas.” (JUNQUEIRA; MALTA,
1978, p. 141). O número de manchas que sugerem a existência de cabanas em períodos passados não foi
explicitado. A respeito da caracterização dos vestígios coletados os autores apenas informaram que
apresentavam tempero igual aos demais vestígios coletados em Santa Inês I e II.
Apesar da publicação de Paulo e Ione conter mais de 50 páginas, menos de duas delas são destinadas
à descrição dos sítios Santa Inês I, II, e III, pouco tendo sido informado sobre as características tecnológicas
do material coletado. Durante as etapas do processo de licenciamento ambiental descritas no capítulo

38
anterior, o arqueólogo André Prous (Comunicação pessoal, 2021), nos informou de que os sítios
pesquisados por Junqueira e Malta estavam localizados a poucas centenas de metros de distância da
chácara de Jussara Gualberto e que o material coletado na década de 1970 foi armazenado no Museu de
História Natural e Jardim Botânico da UFMG (doravante, MHNJB-UFMG). Em dezembro de 2021 entrei
em contato com o Setor de Museologia e fui informado de que o material em questão estava armazenado
em sete caixas arquivo e, a partir de então, solicitei autorização para analisar tal material.

3.2 Curadoria
Após aprovação do Setor de Museologia do MHNJB-UFMG o material coletado por Paulo Junqueira
e Ione Malta foi transportado para a Casa da Cerâmica, no Setor de Arqueologia, onde foram realizadas
as atividades de curadoria e análise. Ao abrir as primeiras caixas que armazenavam o material me deparei
com sacos plásticos sujos, assim como o próprio material, portanto, a primeira etapa realizada na Casa da
Cerâmica foi a lavagem de todos os fragmentos que foram higienizados em água corrente com auxílio de
escova de dentes de cerdas macias. Após a lavagem, todo o material foi exposto em bandejas para
secagem. Nesta etapa me deparei com outra curiosidade: as etiquetas de identificação do material não eram
originais de campo, elas foram refeitas em algum momento da história do Museu e as informações
registradas contemplam apenas o nome do sítio (Santa Inês I, II ou III), uma breve descrição do material
que varia entre “Simples grosso”, “Simples fino” e “Engobe vermelho”, o nome “Déborah”, e a data de
coleta do material. Como as etiquetas originais não foram localizadas não posso afirmar que estas
informações são as mesmas registradas por Paulo Junqueira e Ione Malta. Nenhum outro material, tal
como relatório ou anotações de campo, estava junto às caixas.
Após a higienização em água corrente os fragmentos cerâmicos foram triados em conjuntos
estabelecidos pelas suas similaridades em espessura, curvatura, croma e demais características
morfológicas permitindo algumas remontagens respeitando a separação estabelecida por
Junqueira e Malta entre Santa Inês I, II e III. Durante esta etapa pude realizar uma análise visual
de todos os fragmentos e assim conhecer melhor a coleção, separando os cacos muito pequenos
e/ou sem uma das faces que eram pouco informativos. Estas escolhas foram baseadas nos
aprendizados adquiridos durante as atividades de laboratório realizadas com Lílian Panachuk
sobre o material proveniente da coleção familiar de Jussara Gualberto.

O Setor de Museologia orientou que o material fosse marcado com a utilização de um


composto de Paraloid diluído em Xilol como substituição à base de unhas, cuja utilização fora
vetada, todavia o material não foi providenciado. Frente a impossibilidade de realizar as
marcações nos cacos cerâmicos, a solutiva adotada foi registrar as identificações atribuídas a
cada um dos fragmentos na planilha de análise e anotá-las com caneta permanente nos sacos

39
plásticos em que tais vestígios foram guardados. Todo o material analisado foi devidamente
fotografado e cada fragmento foi organizado sequencialmente de acordo com a numeração
atribuída.

3.3 Metodologia de análise


As análises sobre os vestígios cerâmicos foram realizadas a partir de uma adaptação da ficha
de análise elaborada por Lílian Panachuk e Daniel Cruz em 2015. Cada um dos fragmentos
analisados teve suas características tecnológicas registradas em uma tabela de Excel seguindo
os tópicos estabelecidos na ficha de análise que serão explicitados a seguir.

3.3.1 Identificação
O primeiro conjunto de informações registrados na ficha de análise se refere à proveniência
e identificação dos fragmentos. No caso desta coleção, cada fragmento foi discriminado de
acordo com a divisão estabelecida por Paulo Junqueira e Ione Malta entre Santa Inês, I, II ou
III, em seguida os fragmentos receberam uma identificação alfa-numérica com a sigla do sítio
e um número sequencial. Assim, a identificação dos fragmentos provenientes de Santa Inês I
foi iniciada pela sigla SI1, a identificação dos fragmentos provenientes de Santa Inês II recebeu
a sigla SI2 e, por fim, os fragmentos de Santa Inês III receberam a sigla SI3. Também foram
discriminados o número do conjunto5 ao qual o fragmento faz parte, conjuntos estes que foram
triados a partir das similaridades e remontagens entre os cacos em laboratório, bem como a
quantidade total de fragmentos que compõe cada conjunto, a quantidade que fora analisada em
seus detalhes técnicos e a que porção do pote que cada fragmento se refere seguindo a seguinte
ordem:

- Nome do sítio;

- Número do conjunto;

- Identificação da amostra;

- Quantidade total;

- Quantidade analisada;

- Porção do pote:

- Lábio;

5
Os conjuntos representam agrupamentos de fragmentos que, devido suas similaridades e remontagens,
foram considerados como possivelmente provenientes de um mesmo vasilhame.

40
- Borda;

- Bojo (superior, mesial ou inferior);

- Base.

3.3.2 Medidas

Os dados referentes às medidas dos fragmentos foram coletados através da utilização de um


paquímetro analógico. Para as espessuras mínima e máxima e espessura do lábio este dado foi
coletado utilizando como unidade de medida milímetros (mm), já as medidas referentes a
largura e comprimento foram expressam em centímetros (cm). A variação de espessura foi
calculada subtraindo o valor da espessura mínima da espessura máxima e o diâmetro do
fragmento foi projetado com o auxílio de um ábaco. As espessuras mínimas e máximas dos
fragmentos nos permitem avaliar o comportamento do recipiente sobre resistência térmica e
mecânica: paredes finas proporcionam baixa resistência ao impacto e alta capacidade de
aquecimento, já as paredes mais espessas proporcionam uma maior resistência ao impacto, mas
baixa capacidade de aquecimento (SCHIFFER; SKIBO, 1997).

- Espessura mínima;

- Espessura máxima;

- Variação de espessura;

- Espessura do lábio;

- Tamanho mínimo (comprimento/largura);

- Tamanho máximo (comprimento/largura);

- Diâmetro do fragmento.

3.3.3 Aspectos produtivos primários


A cerâmica é uma transformação da argila pelo fogo, material terroso de granulometria
refinada que desenvolve plasticidade quando misturado com água (SHEPARD, 1956). Em
outras palavras, “argila” é um termo utilizado na classificação de solos que apresentam
partículas com espessura inferior a 0,004mm na escala de Wentworth (PANACHUK, 2021),
compostos por sílica, óxido de alumínio e água, podendo também apresentar outros
componentes tais como o óxido de ferro (SHEPARD, 1956). A argila não é modelada logo após
a sua coleta, ela precisa ser preparada para aquilo que se deseja fazer, seja um pote para o
armazenamento de líquidos ou uma panela para o preparo de alimentos. A primeira etapa para

41
essa preparação é o processamento da matéria-prima: muitas vezes, ao ser retirada da jazida, a
argila vem acompanhada de galhos, folhas, grãos muito espessos de minerais e outros resíduos
indesejados que precisam ser retirados (MACHADO, 2006).

Tendo sido processada e com a exclusão dos elementos indesejados, é preciso adicionar
outros elementos minerais e/ou orgânicos a essa massa de acordo com as propriedades que a
ceramista deseja para o vasilhame a ser construído: para construir um vasilhame destinado ao
armazenamento de líquidos é ideal que haja a inclusão de elementos fibrosos na pasta, tais como
palhas e raízes, que ajudam a obter uma massa porosa que, permitindo a troca gasosa com o
ambiente, confere ao líquido armazenado uma temperatura amena (PANACHUK, 2021). Caso
o intuito seja o de confeccionar uma panela, é preciso que a pasta de argila tenha resistência
térmica elevada uma vez que o objeto construído estará em constante contato com o fogo para,
por exemplo, a cocção de alimentos. Tal característica pode ser obtida através da inclusão de
elementos minerais (idem). A distribuição da carga na pasta de argila, se homogênea ou não,
nos ajuda a entender sobre os processos de tratamento da argila com a inclusão destes materiais
orgânicos e/ou minerais (BALFET; FAUVET; MONZON, 1983).

A presença de quartzo é algo comum nas pastas de argila, todavia apesar da recorrência nos
materiais cerâmicos, nem sempre podemos interpretar a presença deste mineral como uma
inclusão proposital da ceramista visto que é um elemento historicamente presente nas jazidas.
Uma forma de deduzir se este elemento está naturalmente ou culturalmente associado à argila
é a partir da observação de sua morfologia: apresentando um aspecto anguloso, os fragmentos
de quartzo podem indicar que passaram por uma trituração para a inclusão proposital na pasta
cerâmica, em contrapartida a observação de um aspecto mais arredondado, como um seixo, é
indicativo de uma origem natural (PANACHUK, CRUZ, 2015).

Assim como o quartzo, outros elementos observados na pasta de argila podem não ter sido
resultado de uma escolha proposital da ceramista e, por isso, como sugere Lilian Panachuk
(2021), a terminologia utilizada para se referir à estas partículas deverá ser “carga”, um termo
que engloba tanto aqueles elementos adicionados pela ação humana quanto aqueles
naturalmente encontrados na argila. Outra terminologia recorrentemente utilizada para se referir
aos elementos presentes na pasta é a de “antiplástico”, mas este termo exprime uma ideia de
que tais elementos são acrescentados no intuito de reduzir a plasticidade da argila o que nem
sempre é verdade, como no caso das inclusões de outras argilas com alto nível de plasticidade
(PANACHUK, 2021).

42
Após a preparação da pasta a construção dos recipientes pode ser realizada a partir de
diferentes técnicas de manufatura, tais como o acordelado, a utilização de placas, beliscado,
modelado à mão livre entre outras (LA SALVIA, BROCHADO, 1989). A técnica de produção
utilizada na confecção destes objetos é denunciada pelas quebras e trincas paralelas (RICE,
1987), geralmente observadas nos pontos de fragilidade das junções entre os roletes (ORTON;
HUGHES, 2013). Dentre as técnicas observadas nos registros arqueológicos o acordelado, que
consiste na sobreposição de roletes de argila (LIMA, 1987; CHMYZ, 1976), é recorrentemente
identificado nas coleções pré-coloniais brasileiras (PANACHUK, CRUZ, 2015). Os
fragmentos dos recipientes confeccionados por esta técnica são caracterizados por quebras
paralelas, em alguns casos sendo perceptível a junção dos roletes.

Doravante, na ficha de análise estes aspectos foram observados na ordem a seguir:

- Técnica de produção;

- Acordelado;

- Modelado;

- Placas;

- Beliscado;

- Moldado;

- Torneado.

- Tipo de carga;

- Porcentagem da carga e diâmetro dos grãos:

- Baixa (grãos finos, médios ou grossos);

- Média (grão finos, médios ou grossos);

- Alta (grãos finos, médios ou grossos);

- Distribuição da carga:

- Homogênea;

- Intenso no núcleo;

- Intenso na face interna;

43
- Intenso na face externa.

3.3.4 Resultado visual da ação do fogo


O próximo tópico alvo de interesse na ficha de análise está nomeado como “aspecto de
queima”, sendo adaptado de Rye (1981) foram estabelecidos seis tipos de queima: oxidante,
oxidante com núcleo reduzido, reduzida com núcleo oxidante, reduzida, oxidante interna e
reduzida externa e oxidante externa e reduzida interna. Um fragmento que apresenta as faces
com coloração ocre e o núcleo acinzentado poderia ser descrito, em seu aspecto de queima,
como “oxidante com núcleo reduzido”. Todavia, há alguns meses, em uma conversa com o
também arqueólogo Francisco Gonzaga, fui questionado sobre o porquê nomear os núcleos
acinzentados como núcleo reduzido e desde então esta indagação me fez perceber que ainda
sabemos muito pouco sobre os processos físico-químicos que ocorrem durante a queima de
artefatos cerâmicos. Posteriormente, em discussões com a arqueóloga Sara Toja e a ceramista
Laila Kierulff percebi que este certo “incômodo” não assombrava apenas os meus pensamentos.
Em conversas recentes com Lílian Panachuk compartilhei que, devido a este incômodo, não
descreveria os fragmentos com núcleo acinzentados como núcleo reduzido pois não sabemos
se, de fato, os processos que ocasionaram a coloração do núcleo podem ser classificados como
uma redução. Afinal, a redução é um processo que envolve movimentação de elétrons e não
sabemos, com precisão, como ocorre essa dinâmica dos elementos químicos com o fogo nos
processos de queima. A partir disso, percebemos que descrevemos estes aspectos não pelo
conhecimento dos processos físico-químicos que ocorrem durante uma queima, mas sim pelo
aspecto visual ocasionado pela ação do fogo. Dessa forma, alteramos a nomenclatura deste
tópico para “Resultado visual da ação do fogo” e estabelecemos seis tipos de aspectos nos
baseando nas categorias descritas por Rye (1981), são eles: totalmente ocre/clara, faces ocre e
núcleo acinzentado, faces acinzentadas e núcleo ocre, completamente acinzentadas, ocre interna
e acinzentado externa e ocre externa e acinzentado interna.

3.3.5 Tratamentos aplicados à superfície


Na sequência foram analisados os tratamentos de superfície aplicados aos recipientes. Estes
tratamentos foram discriminados tanto para a face interna quanto para a face externa dos
fragmentos, sendo divididos entre alisamento, polimento, tratamento carbônico pós-queima,
barbotina (caldo de argila) e reboco (adição de uma massa de argila para regularização de
superfície). O alisamento ainda pode ser subdividido em três categorias: fino médio ou grosso.
A definição dessa subcategoria do alisamento foi realizada através de uma comparação entre os
fragmentos da mesma coleção, pautada na subjetividade da pessoa analista que utiliza a visão

44
e o tato para definir em qual categoria este caco melhor se enquadra. Um mesmo caco pode
apresentar mais de um tipo de tratamento de superfície, portanto, na ficha de análise este campo
permite uma resposta múltipla. Em suma, os tratamentos superficiais foram organizados da
seguinte maneira:

- Alisado (fino, médio ou grosso);

- Polido;

- Tratamento carbônico pós-queima;

- Barbotina;

- Reboco;

3.3.6 Técnicas de modificação de croma e relevo


É comum nos depararmos com os conceitos de “decoração plástica” e “decoração
crômica” nas bibliografias de análise de material cerâmico, entretanto é importante ressaltar
que muitas das terminologias empregadas nos estudos clássicos deste tipo de vestígio são
baseadas em categorias técnicas e aspectos visuais que nem sempre são norteadoras das oleiras.
A terminologia “decoração”, por si só, é um conceito moderno e não me parece adequado
aplicá-la às produções de comunidades pré-coloniais (PANACHUK, 2021). Portanto, as
terminologias utilizadas durante as análises buscaram uma descrição das características
observadas no material sem inferir um juízo de valor e por isso esta sessão foi nomeada como
“técnicas de modificação de croma e relevo”. Tais modificações foram discriminadas tanto para
a face interna quanto para a face externa dos fragmentos.

As modificações de relevo podem ser obtidas de diferentes maneiras, através de incisos ou


excisos ou até mesmo a valorização da movimentação da argila na obliteração dos roletes
(corrugado). Na ficha de análise são discriminadas quatorze possibilidades de alteração de
relevo, apesar de ser uma característica raramente observada nas coleções tratadas nesta
monografia. As técnicas de modificação de croma variam em tipo e em cor. Tais técnicas foram
distinguidas entre dois tipos: I- a aguada, caracterizada pela utilização de uma tinta à base de
água que não cria espessura nas superfícies em que é aplicada e II- o engobe, tinta feita à base
de argila cuja utilização gera espessura nas superfícies em que é aplicada (PANACHUK, 2021).
Cabe ressaltar que nas bibliografias de pesquisas arqueológicas as tintas feitas à base de argila
são classificadas como “engobo”, todavia, esta monografia utilizará o termo “engobe” para se
referir à esta mistura visto que é o termo utilizado nas artes plásticas (id. Ibid.) As cores

45
normalmente variam entre o vermelho, preto e branco. Além de identificar e descrever o tipo
de técnica de modificação de croma e/ou relevo a ficha de análise reserva um campo destinado
a registrar em qual porção do pote tal modificação se encontra.

3.3.7 Dados morfológicos


Os fragmentos de lábio, borda e base, sempre que possível, foram analisados em seus
detalhes morfológicos. Em alguns casos, os fragmentos possibilitaram a projeção da morfologia
de recipientes inteiros baseando-se nas formas já conhecidas da tradição Aratu-Sapucaí. Para a
morfologia do lábio foram consideradas quatro possibilidades: plana, arredondada, apontada e
biselada. As bordas foram descritas em sua morfologia como diretas, introvertidas ou
extrovertidas. A projeção dos recipientes inteiros considerou as morfologias piriforme, cuia
(alta, média ou baixa), tigela e globular.

3.3.8 Vestígios de produção, gestos e uso


A utilização de corpos humanos para a confecção de outros corpos feitos em argila ocasiona
uma série de estigmas que relevam etapas da cadeia operatória da produção oleira e os gestos
aplicados pela ceramista. Nesse sentido, o olhar analista buscou identificar vestígios da ação do
corpo da ceramista sobre o corpo de argila, tais como impressões de dedo, estrias de alisamento
ou fixação de roletes, facetas de polimento, entre outros. As diversas possibilidades de uso dos
recipientes cerâmicos também ocasionam diferentes marcas, tais como desgastes em formatos
petalares na face interna de um recipiente que pode ser resultado de processos de fermentação,
a presença de depósito carbônico, faixas com aspecto acinzentado ou ocre a partir da cocção de
alimentos e contato com o fogo. A identificação destes estigmas nem sempre é fácil ou óbvia e
o conhecimento teórico precisou ser alinhado ao conhecimento prático para melhor entender
essas marcas.

Gostaria de explicitar aqui meu profundo agradecimento à minha orientadora e mestra


ceramista, Lílian Panachuk, e ao Grupo de Estudos do Simbólico e Técnico da Olaria
(G.E.S.T.O.) que me instigaram a conhecer a cerâmica não apenas pelas páginas dos livros e
artigos científicos, mas sim incluindo o meu próprio corpo como instrumento de análise ao
fabricar recipientes utilizando as técnicas tradicionais observadas nos vestígios arqueológicos.
Foi a partir das experimentações que pude conhecer (não só na teoria, mas na prática), os
estigmas deixados pelos gestos aplicados na argila. A metodologia de análise desta monografia
não se limita à textos, mas se expande para as experimentações que transformaram a maneira
com que me relaciono com a argila, com a cerâmica e com os cacos.

46
3.4 Análise descritiva
Ao todo, foram coletados, por Paulo Junqueira e Ione Malta, 545 fragmentos cerâmicos
provenientes dos sítios arqueológicos Santa Inês I, II e III. A quantidade mais expressiva é
referente ao Santa Inês II, onde foram coletados 249 fragmentos, seguido do Santa Inês I (212
fragmentos) e Santa Inês III (84 fragmentos).

50% 46%
39%
40%

30%

20% 15%

10%

0%
Santa Inês I Santa Inês II Santa Inês III

Gráfico 1: Amostra de fragmentos cerâmicos por sítio arqueológico

A partir da triagem realizada em laboratório, 236 fragmentos foram organizados em 57


conjuntos estabelecidos a partir de remontagens ou similaridades que correspondem a 43% da
amostra total e foram submetidos às análises tecnológica e qualitativa. Outros 81 fragmentos,
que correspondem a 15% da amostragem total, não foram organizados em conjuntos e foram
submetidos à análise tecnológica. Por fim, 228 fragmentos (42% da amostra total) foram
considerados pouco informativos, seja por seu tamanho diminuto ou pela ausência de uma das
faces, e passaram apenas por uma inspeção visual. De modo geral, 58% da amostra total foi
submetida às análises tecnológica e qualitativa.

50%
42%
40%
33%

30% 25%

20%

10%

0%
Não analisados Análise qualitativa Análise tecnológica

Gráfico 2: Triagem do material cerâmico analisado e não analisado

A partir de 47 fragmentos foi possível realizar 18 remontagens que foram analisadas como
um único exemplar. Ou seja, se um conjunto apresenta a remontagem de 3 fragmentos, estes 3

47
foram analisados coletivamente como uma única amostra. Dessa forma, para fins de análise,
foram considerados 153 fragmentos analisados em suas características tecnológicas.

Todos os fragmentos analisados foram identificados como pertencentes à recipientes. Os


fragmentos que apresentam lábio compõem 23% da amostra analisada, o que corresponde a 35
cacos, já os fragmentos de borda e bojo (superior, mesial e inferior) são a parte mais expressiva
da coleção totalizando 83% (127 cacos) das amostras analisadas. Por fim, foram identificados
6 fragmentos de base (ou parte dela) que correspondem a 4% da amostragem.

0% 20% 40% 60% 80%


Lábio 1%
Lábio e borda 14%
Lábio, borda, bojo superior 8%
Bojo superior 1%
Bojo superior e bojo médio 1%
Bojo médio 67%
Bojo médio e bojo inferior 1%
Bojo inferior 3%
Bojo inferior e base 1%
Base 3%

Gráfico 3: Representação das porções de recipientes inteiros a partir da amostra analisada

Em cada um dos fragmentos analisados foi medida a espessura máxima e mínima, expressa
pelo gráfico abaixo. A partir destes dados pode-se observar duas curvas que indicam uma
tendência de fragmentos mais finos, entre 3mm e 5mm, e mais espessos entre 14mm e 18mm.

20

15

10

0
3mm
4mm
5mm
6mm
7mm
8mm
9mm

17mm

22mm
10mm
11mm
12mm
13mm
14mm
15mm
16mm

18mm
19mm
20mm
21mm

23mm
24mm

Mínima Máxima

Gráfico 4: Espessura mínima e máxima dos fragmentos cerâmicos

É interessante notar que 19 fragmentos analisados não apresentaram variação de espessura


possível de ser mensurada, 122 fragmentos, que correspondem a 79% da amostra, apresentam
variação entre 1 e 2mm, 11 fragmentos (8%) apresentam variação entre 3 e 4mm e apenas um
fragmento apresentou variação de 5mm representando apenas 1% da amostra total analisada.
Este é um dos dados que mais gostaria de chamar atenção: o rigor técnico e o empenho
48
despendido na produção de recipientes constantes em sua espessura. Ao longo das atividades
de laboratório cheguei a medir diversas vezes a espessura de um mesmo fragmento em
diferentes pontos e ainda assim 12% dos cacos analisados não apresentaram variação em sua
espessura, 91% dos cacos analisados apresentam uma variação máxima de 2mm. A maior
variação de espessura observada é referente a um fragmento de borda retraída, sinalizando que
houve intencionalidade na obtenção de tal variação e não que esta foi resultado de uma falta de
expertise da ceramista.

Tal constatação me fez refletir sobre uma coleção de fragmentos associados à tradição
Tupiguarani, proveniente do município de Ipanema – MG, que tive contato ao longo do curso
de graduação. Era visualmente perceptível uma variação de espessura espantosa nestes
fragmentos que são associados à uma tradição cuja complexidade, expressa em seus diferentes
tipos de pinturas e modificações de relevo, atraiu diferentes pesquisadores e pesquisadoras ao
longo dos estudos arqueológicos produzidos em território brasileiro. Não questiono aqui a
complexidade dos remanescentes que compõem a Tradição arqueológica Tupiguarani, mas é
certo que a complexidade da cerâmica Aratu-Sapucaí repousa em atributos que até então não
estavam sendo observados.

60%
48%
50%
40%
31%
30%
20% 12%
10% 7%
1% 1%
0%
0 1 2 3 4 5

Gráfico 5: Variação de espessura em milímetros

De modo geral esta é uma coleção formada por cacos pequenos e médios, tendo sua maior
representatividade os fragmentos de até 5cm, seguido dos cacos entre 6 e 10cm. A ocorrência
de fragmentos maiores que 10cm é baixa e quase inexistente para fragmentos superiores a
16cm.

49
80%
65%
60%
44%
40%
40% 31%

20% 14%
4%
0% 2%
0%
Até 5cm Entre 6 e 10cm Entre 11 e 15 Entre 16 e 20

Tamanho mínimo Tamanho máximo

Gráfico 6: Tamanho dos fragmentos

Para os aspectos produtivos relacionados às técnicas de manufatura, 142 fragmentos, que


correspondem a 97% da amostra, apresentaram estigmas de produção pela sobreposição de
roletes. Os demais 11 cacos não forneceram informações suficientes para determinar a técnica
de produção utilizada para sua confecção.

7%

93%

Não identificado Acordelado

Gráfico 7: Técnica de manufatura observada nos fragmentos cerâmicos

Com auxílio de um microscópio estereoscópio com aumento de 40 vezes foi possível


observar, através das quebras dos fragmentos, alguns elementos minerais e orgânicos presentes
na composição da pasta cerâmica. Em apenas 3 cacos não foi possível realizar tal observação
devido à crostas sedimentares nas quebras. Os demais 150 fragmentos foram analisados
observando-se a presença e densidade de cada um dos elementos identificados que receberam
um código alfabético como ilustrado na Tabela 1. Em todos os casos os minerais silicatos
diversos e quartzo estavam presentes, seguidos da mica e óxido de ferro observados em 83% e
65% das amostras respectivamente. Mais pontualmente ocorre a presença de carvão (32%) e
filito (13%), sendo casos isolados as aparições de feldspato e sílica amorfa observados em
apenas 1% das amostras.

É interessante notar que a mica é um elemento historicamente associado a muitas argilas e


“pouco suscetível de ter sido adicionado intencionalmente” (RYE, 1981, p. 35). Durante as

50
análises foi observado que parte dos fragmentos foram confeccionados com argilas sem a
presença de mica. Através da presença e ausência deste material entre os fragmentos podemos
inferir que esta comunidade de prática estava utilizando mais de uma fonte de argila para a
confecção dos recipientes aqui analisados.

Tabela 1: Código de identificação atribuído aos elementos observados na pasta cerâmica

Código Carga
A Quartzo Silica amorfa 1%
B Feldspato Filito 13%
C Mica Carvão 32%
Minerais silicatos diversos 100%
D Óxido de ferro
Óxido de ferro 65%
Minerais silicatos
Mica 83%
F diversos
Feldspato 1%
J Carvão Quartzo 100%
M Filito
0% 20% 40% 60% 80% 100% 120%
N Silica amorfa
Gráfico 8: Ocorrência na pasta cerâmica

A realidade dos cacos indica uma composição de minerais já presentes na fonte: quartzo,
minerais silicatos, mica (AFC) e ainda a combinação com óxido de ferro (AFCD) como mais
expressivas. A presença de carvão é expressiva em combinação (AFCDJ). Isso vale para a pasta
com presença de mica (código C) majoritária em combinação, e uma parcela pequena (17%)
em que este mineral não é observado na composição da pasta que deve indicar ao menos duas
pastas diferentes. Retirar os pequenos pontos de mica é tarefa impossível, portanto pode-se
indicar essa hipótese, através da análise tecnológica.

51
0% 5% 10% 15% 20% 25%

ACDF 1%
ACDFM 1%
ACF 2%
ACFD 1%
ADCF 1%
ADF 1%
ADFC 1%
ADFCJ 1%
AF 1%
AFB 1%
AFC 20%
AFCD 22%
AFCDE 1%
AFCDJ 8%
AFCDM 3%
AFCDN 1%
AFCJ 5%
AFCJD 1%
AFCJM 4%
AFCM 1%
AFD 7%
AFDC 5%
AFDCJ 4%
AFDCJM 1%
AFDJ 3%
AFDJC 1%
AFDJM 1%
AFDM 1%
AFJ 2%
[NI] 2%

Gráfico 9: Combinação de elementos presentes na pasta cerâmica por densidade

O quartzo, elemento de maior representatividade na composição das pastas é observado, na


maioria absoluta dos casos, com aspectos anguloso e sub-anguloso. Em apenas um dos
fragmentos analisados foi identificada a ocorrência de quartzo esférico.

52
120%
97%
100%
80%
60%
40%
20%
2% 1%
0%
Não identificado anguloso e sub- anguloso, sub-
anguloso anguloso e rolado

Gráfico 10: Aspecto do quartzo

Em sua maioria (86%), os fragmentos apresentam pasta composta por médias inclusões
(20% de carga): 23% com a inclusão de grãos finos (até 1mm de diâmetro), 54% com grãos
médios (até 3mm de diâmetro) e 10% com a inclusão de grãos grossos (acima de 3mm). As
pastas com alta inclusão foram observadas em 9% da amostra analisada, enquanto aquelas com
baixa inclusão foram observadas em apenas 3% dos fragmentos. Devido ao acúmulo de crosta
sedimentar nas quebras, em 3 fragmentos não foi possível observar a porcentagem e diâmetro
de grãos na composição da pasta cerâmica. Ainda pode-se observar que existe uma maior
concentração destes grãos no núcleo dos fragmentos, fato que pode ser explicado pelo
alisamento e polimento aplicado aos recipientes uma vez que tais tratamentos de superfície
movimentam as partículas maiores presentes na pasta de argila para o interior dos cacos.

Alta e grosso 1%
Alta e média 7%
Alta e fina 1%
Média e grosso 10%
Média e médio 54%
Média e fino 23%
Baixa e grosso 0%
Baixa e médio 1%
Baixa e fino 2%
Não identificado 2%

0% 10% 20% 30% 40% 50% 60%

Gráfico 11: Porcentagem e diâmetro dos grãos

53
Intenso na Face Externa 0%

Intenso na Face Interna 1%

Intensa no núcleo 93%

Homogênea 3%

Não identificado 2%

0% 20% 40% 60% 80% 100%

Gráfico 12: Distribuição da carga na pasta cerâmica

Dos 153 fragmentos analisados, 122 deles, o que corresponde a 80% da amostra, apresentam
aspecto ocre nas superfícies e núcleo acinzentado, comumente descrito nas bibliografias como
“queima incompleta”, “queima mau controlada’ ou mais recentemente como “oxidante com
núcleo reduzido”. Existe uma inadequação na aplicação destas três terminologias que
pretendem descrever algum aspecto relacionado a queima de objetos cerâmicos. A primeira
delas, “queima incompleta” não condiz com a realidade expressa pela materialidade: se o objeto
feito de argila foi transformado em cerâmica a queima cumpriu com seu propósito e por isso
não pode ser descrita como “incompleta”. A segunda, “queima mau controlada”, não representa
a realidade da prática oleira: uma das etapas fundamentais da produção de ceramistas é a
transformação da argila em cerâmica pela ação do fogo que deve ser cuidadosamente
controlado. A temperatura do fogo deve ser elevada gradualmente para que as moléculas de
água presentes no interior dos recipientes saiam com o menor risco de ocasionarem trincas e
quebras, além disso, o fogo deve alcançar uma temperatura suficientemente elevada e pelo
tempo necessário para que haja a transformação da argila em cerâmica. Portanto, o sucesso de
uma queima depende da maestria da oleira em negociar/controlar não só o fogo, mas também
a água (presente na própria argila), a terra e o ar para metamorfosear os corpos feitos em argila
transformando-os em corpos cerâmicos. Por fim, as terminologias que utilizam conceitos como
“oxidação” e “redução” pressupõem um conhecimento sobre a movimentação de elétrons que
não sabemos, ao certo, como ocorre.

Fato é que a maioria absoluta dos fragmentos analisados são caracterizados pelo núcleo com
aspecto acinzentado e faces ocre, mas é difícil afirmar que este aspecto visual foi norteador nos
processos de queima pois, como já argumentei anteriormente, existem casos em que as
ceramistas batem nas peças e a partir do som emitido por elas é possível averiguar o sucesso da
queima: as peças transformadas em cerâmica produzem um som “metalizado” em contraste
com o som opaco das peças ainda cruas (COSTA, et al 2021). Tal fato serve para ilustrar que,

54
por mais que utilizemos a visão como sentido primordial para a análise de materiais
arqueológicos, outras epistemologias podem não compartilhar deste ocularcentrismo.

Menos constantes são as ocorrências de fragmentos com aspecto ocre apenas na face externa
(9%) e vice-versa (1%). Em 12 fragmentos foi observada coloração ocre tanto nas faces quanto
no núcleo (8%).

Ocre externa, acinzentado


9%
interna
Ocre interna, acinzentado
1%
externa

Completamente acinzentadas 0%

Faces acinzentadas, núcleo ocre 0%

Faces ocre e núcleo acinzentado 80%

Totalmente ocre/clara 8%

Não identificado 2%

0% 20% 40% 60% 80% 100%

Gráfico 13: Resultado visual da ação do fogo

Quanto ao tratamento de superfície aplicado nas peças existe uma constância do alisamento,
sendo dividido entre fino, médio e grosso a partir de uma comparação entre os fragmentos da
própria coleção analisada. O alisamento fino ocorre majoritariamente na face interna (26%),
todavia, de maneira geral, o alisamento médio é o mais comum, sendo observado tanto na face
interna (52%) quanto na face externa (58%). A aplicação de barbotina (calda de argila mais
fina) e polimento são observados em uma porcentagem diminuta da amostra analisada.

Tabela 2: Tratamento aplicado à superfície por quantidade e porcentagem

Tratamento de superfície
Código Legenda FI %FI FE %FE
0 Não identificado 0 0% 1 1%
A Alisado fino 36 24% 21 14%
AD Alisado fino, polido 1 1% 1 1%
AF Alisado fino, barbotina 1 1% 1 1%
B Alisado médio 78 51% 87 57%
BF Alisado médio, barbotina 1 1% 1 1%
C Alisado grosso 35 23% 40 26%
D Polido 1 1% 1 1%

55
Polido

Alisado grosso

Alisado médio, barbotina

Alisado médio

Alisado fino, barbotina

Alisado fino, polido

Alisado fino

Não identificado

0% 10% 20% 30% 40% 50% 60%

Face externa Face interna

Gráfico 14: Tratamento aplicado à superfície

As técnicas de modificação de croma e relevo não foram identificadas em ambas as faces


de 79% dos fragmentos analisados, 20% dos cacos apresentam alteração crômica em pelo
menos uma das faces, 4% da amostra apresenta alteração de croma em ambas as faces e em
apenas dois fragmentos foram observadas modificações de relevo, exclusivamente na face
externa: trata-se de um fragmento com alteração plástica ponteada e um fragmento em que é
possível observar a impressão de uma folha. Nenhum outro fragmento foi encontrado com
modificação plástica ponteada, indicando que talvez possa ser um fragmento intruso. A
impressão de uma folha na face externa de um fragmento pode ter sido ocasionada pelo próprio
peso da argila sobre o solo quando o recipiente estava sendo confeccionado, todavia a
permanência deste estigma certamente foi uma escolha, haja vista que, como demonstram as
materialidades, estamos lidando com uma comunidade de prática de alto rigor técnico e tal
alteração no relevo da peça não passaria despercebido pelos olhos da ceramista durante a
confecção da peça.

56
Foto 1: Fragmento cerâmico com impressão de folha na face externa

Analisando separadamente cada uma das faces, observa-se uma preferência pela aplicação
de tintas na face externa, ocorrendo em 18% dos fragmentos, já na face interna a alteração de
croma está presente em 6% da amostra.

94%
100%
81%
80%
60%
40%
18%
20% 6%
0% 1%
0%
Não identificado Crômica Relevo

Face interna Face externa

Gráfico 15: Modificações de croma e relevo.

Figura 19: Face interna do fragmento com presença de decoração plástica na face externa

57
Figura 20: Face externa do fragmento com decoração plástica ponteada

As alterações na croma dos fragmentos foram aplicadas variando em tipo e cor. Para as
faces internas, a aplicação do engobe, caracterizada como uma tinta a base de argila que cria
espessura na superfície (PANACHUK, 2021), foi observada em 3 fragmentos (2%),
exclusivamente na cor branca. Nas faces externas a aplicação de engobe aparece tanto na cor
branca quanto vermelha (1 fragmento de cada). Ao que indicam os dados, existia uma
preferência nessa comunidade de prática na utilização de aguadas, caracterizadas como tintas a
base de água que não criam espessura nas superfícies em que é aplicada. Estas aguadas ocorrem
exclusivamente na cor vermelha, sendo observadas na face interna de 6 fragmentos (4%) e na
face externa de 25 dos cacos analisados (16%). A obtenção de engobes brancos pode ser feita
através da utilização de caulim, uma argila branca, já os pigmentos vermelhos podem ser
obtidos através da utilização de compostos minerais tais como os óxidos de ferro. Apesar de
não terem sido aplicadas nesta pesquisa, análises capazes de identificar os elementos utilizados
na produção de tais pigmentos podem ser uma possibilidade de compreender como estas
pessoas estavam se apropriando de diferentes matérias para a produção de tintas.

94%
100%
82%
80%
60%
40%
16%
20%
2% 1% 4% 0% 1%
0%
Engobe branco Aguada Engobe Não
vermelha vermelho identificado

Face interna Face externa

Gráfico 16: Técnicas de alteração de croma observadas na coleção.

As técnicas de modificação de croma e relevo expostas acima ocorrem em diferentes


porções do pote. As ocorrências observadas na face interna dos fragmentos estão localizadas

58
majoritariamente na porção que se refere ao lábio (56%), seguido do bojo (44%). Para a face
externa, 21% das ocorrências estão localizadas no lábio, havendo maior concentração na área
do bojo (superior e mesial) correspondendo a 79% dos fragmentos com alterações de croma ou
relevo. Em nenhum dos cacos constatou-se ocorrência de alterações na croma de base e bojo
inferior.

0% 10% 20% 30% 40% 50% 60% 70%

Lábio
Lábio e borda
Borda e bojo superior
Bojo superior e bojo médio
Bojo

Face interna Face externa

Gráfico 17: Localização das modificações de relevo e croma

Figura 21: Fragmento com aplicação de engobe branco na face interna

Figura 22: Fragmento com aplicação de aguada vermelha na face externa

Dos 153 fragmentos analisados, 35 apresentam lábio e foram observados em sua morfologia
e espessura. Em 94% dos fragmentos com presença de lábio, que corresponde a 33 cacos, foi

59
observada uma morfologia arredondada, enquanto em apenas 6%, que corresponde a 2
fragmentos, foi observada uma morfologia apontada.

Apontado 6%
1%

Arredondado 94%
22%

Não se aplica 0%
77%

0% 20% 40% 60% 80% 100%

Amostra de lábios Amostra total

Gráfico 18: Morfologia do lábio

Grande parte dos lábios analisados apresentam uma espessura entre 2 e 3mm (46%).
Observando os intervalos regulares de espessura a maioria absoluta (60%) apresenta espessura
de até 5mm, 20% deles apresentam espessura entre 6 e 10mm e outros 20% estão entre 11 e
18mm.

35% 31%
30%
25%
20% 14%
15% 11%
9%
10% 6% 6% 6%
3% 3% 3% 3% 3% 3%
5%
0%
8mm

13mm
1mm

2mm

3mm

4mm

5mm

7mm

10mm

12mm

14mm

15mm

18mm

Gráfico 19: Espessura do lábio

Os 34 fragmentos de borda, que compõem 22% da amostra submetida às análises


tecnológicas, foram observados em relação ao seu espessamento e morfologia. Em sua maioria,
as bordas apresentaram-se com espessamento linear, compreendendo 71% (24 cacos) dos
fragmentos de borda analisados e 16% da amostra total. Em menor proporção ocorrem as bordas
contraídas, observadas em 7 fragmentos. Uma pequena amostra, composta por 2 fragmentos,
apresentou borda expandida e em apenas um caso foi observada a ocorrência de borda
expandida e linear em um mesmo fragmento que de um lado demonstrava espessamento linear
e de outro expandido.

60
80% 71%

60%

40%
21%
16%
20%
3% 6% 5%
1% 1%
0%
Linear Linear, expandida Expandida Contraída
Amostra total Amostra de bordas

Gráfico 20: Espessamento da borda em porcentagem total e em relação aos fragmentos de borda

Quanto aos aspectos morfológicos, as bordas apresentam-se majoritariamente diretas,


ocorrendo em 26 dos 34 fragmentos de borda analisados. Já as bordas introvertidas e
extrovertidas são observadas em 6 e 2 fragmentos respectivamente.

100%
76%
80%
60%
40%
17% 18%
20% 4% 6%
1%
0%
Direta Introvertida Extrovertida

Amostra total Amostra de bordas

Gráfico 21: Morfologia da borda

Fazendo uma relação entre os dados de morfologia e espessamento podemos observar uma
preferência por bordas lineares-diretas (56%), seguida das bordas contraídas-diretas (15%) e
lineares-introvertidas (9%). As bordas expandidas-diretas e contraídas-introvertidas
representam 6% cada. Por fim, um único fragmento (3%) que apresenta espessamento linear e
expandido simultaneamente é caracterizado por uma morfologia introvertida.

20 19

15

10
5
5 3 2 2 2
1 0 0
0
Linear Expandida Linear, Contraída
expandida

Direta Introvertida Extrovertida

Gráfico 22: Relação entre espessamento e morfologia da borda

61
Com o auxílio de um ábaco, cada um dos fragmentos de borda foi medido possibilitando
projetar a circunferência de abertura dos recipientes inteiros. Conforme mostram os dados
coletados, tais fragmentos apontam para uma amplitude de abertura de recipientes inteiros que
partem de 11cm até 62cm de diâmetro.

0
11cm
12cm
14cm
18cm
20cm
22cm
26cm
28cm
30cm
32cm
36cm
40cm
46cm
48cm
50cm
52cm
54cm
56cm
62cm
Gráfico 23: Diâmetro dos fragmentos de borda

As bases foram classificadas, em sua maioria, como plano-côncavas e convexo-côncavas


(2 de cada). Do total de 6 fragmentos de base (ou parte da base) apenas um apresentou
morfologia biplana e outra unidade não foi possível distinguir seu aspecto morfológico com
precisão. O diâmetro foi possível de ser observado em apenas 3 fragmentos, variando entre 5cm
(1 plano-côncava) e 7cm (1 plano-côncava e 1 convexo-côncava).

17%
33%
17%

33%

Não identificado Biplana Plano-côncava Convexa-côncava

Gráfico 24: Morfologia da base

As análises realizadas possibilitaram a projeção de 30 recipientes inteiros. Os potes em


formato de cuia ou meia-calota apresentam maior popularidade sendo identificados em 60%
das projeções, já as tigelas representam 20%. Estas duas primeiras morfologias citadas são
caracterizadas por terem abertura irrestrita, com bordas diretas, totalizando 80% das projeções
realizadas. As morfologias fechadas (20%) são representadas pelos recipientes piriformes
(13%) e globulares (7%) que apresentam bordas introvertidas.

62
35% 30%
30%
25% 20% 20%
20%
13%
15% 10%
10% 7%
5%
0%
Piriforme Cuia alta Cuia Cuia baixa Tigela Globular
média

Gráfico 25: Projeção de recipientes inteiros

Os vestígios de uso são compostos majoritariamente pelas marcas acinzentadas (presentes


em 28% das faces externas e 25% das faces internas), e ocres (presentes em 44% das faces
externas e 38% das faces internas). Os depósitos carbônicos foram observados em maior
quantidade nas faces externas (12%) do que nas faces internas (5%). Em uma pequena amostra
dos fragmentos analisados (7%) foram identificadas marcas petalares indicativas de
fermentação, tais marcas foram encontradas exclusivamente nas faces internas. Em alguns
fragmentos foram observados mais de um tipo de vestígio de uso, como ilustra o gráfico abaixo:

Face interna Face externa


41%
35%

30%
24%
14%
14%

9%
8%

5%
4%
3%

3%

3%

2%
1%
1%

1%
1%

1%

0%
0%

0%

0 A AB ABC AC B BC BCD C CD D

Gráfico 26: Vestígios de uso observados nos fragmentos analisados

Tabela 3: Marcas de uso por quantidade e porcentagem nas faces internas e externas

Face Interna Face externa


Código Legenda
Quantidade Porcentagem Quantidade Porcentagem
A Depósito carbônico 8 5% 18 12%
Aspecto
B 38 25% 43 28%
acinzentado
C Aspecto ocre 58 38% 68 44%
D Fermentação 11 7% 0 0%

63
Os vestígios de produção mais observados foram as marcas de roletes (tanto nas quebras
quanto nas superfícies em que eram perceptíveis as protuberâncias dos roletes) e as impressões
de dedo que ocorrem na maioria absoluta dos fragmentos analisados. As sobreposições de
estrias de alisamento estão presentes em 39% das faces internas e 38% das faces externas, já as
facetas de polimento ocorrem em 5% e 7% das faces internas e externas respectivamente. As
interrupções de alisamento são observadas em 11% das faces externas e em apenas 1% (que
corresponde a apenas 1 fragmento) das faces internas. Outras marcas foram encontradas em
menores quantidades como indica o gráfico abaixo. Na ficha de análise as impressões de dedos
foram atribuídas aos vestígios de produção, todavia, ao ter uma visão mais ampla da coleção
podemos inferir uma intencionalidade na construção de relevos marcados pelas impressões de
dedos.

Marcas de rolete
Interrupção de alisamento
Sobreposição de facetas de polimento
Sobreposição de estrias
Impressão de dedo
Bolha de ar
Sulco
Fuligem de queima
Folha
Não identificado

0% 10% 20% 30% 40% 50% 60% 70% 80% 90%

Face externa Face interna

Gráfico 27: Vestígios de produção observados nos fragmentos cerâmicos

Figura 23: Detalhes para quebras de fragmento com evidências de junção (esquerda) e movimentação de argila para
obliteração de roletes (direita)

De modo geral, esta coleção é formada por fragmentos cujo estado de conservação é
caracterizado pela presença de erosões (89% das faces internas e 96% das faces externas),

64
crostas sedimentares (69% das faces internas e 75% das faces externas) e negativos de carga
(91% das faces internas e 95% das faces externas). Outros vestígios ocasionados por processos
pós-deposicionais estão listados no gráfico abaixo.

0% 20% 40% 60% 80% 100% 120%

Bem conservado 3%
1%

Erodido 89%
96%

Superfície ausente 7%
7%

Fuligem pós-deposicional 1%
1%

Crosta sedimentar 69%


75%

Quebra recente 35%


31%

Negativo de carga 91%


95%

Mancha de umidade 10%


10%

Radículas 18%
11%

Fungos 0%
1%

Alteração de croma visível 1%


4%

Alteração de croma erodida 1%


0%

Alteração de croma vestigial 3%


7%

Trinca 1%
1%

Craquele 5%
7%

Crosta de filito 0%
1%

Ranhuras 8%
10%
Face interna Face externa

Gráfico 28: Estado de conservação dos fragmentos cerâmicos

A partir dos dados apresentados nesta sessão podemos delinear certos aspectos que definem
esta coleção. De modo geral, trata-se de uma comunidade de prática com alto rigor técnico em
suas confecções, apresentando recipientes construídos pela sobreposição de roletes, com
superfícies bem alisadas e altamente regulares em sua espessura. As alterações crômicas são
pouco recorrentes (o que deve ser interpretado como uma escolha pautada na valorização da
cor dos potes e não como uma inaptidão da ceramista) e quando aparecem são observadas em

65
recipientes com morfologias de cuias médias e baixas, tigelas e globulares, todavia não foram
localizadas em recipientes piriformes ou em cuias altas.

66
Capítulo 4: Unicidade ou multiplicidade?
Durante as atividades de campo realizadas entre os meses de agosto e setembro de 2021 na chácara
de Jussara Gualberto, as informações dadas por André Prous (Comunicação pessoal, 2021) em relação à
proximidade entre a chácara e o local onde Pedro e Ione coletaram os vestígios arqueológicos de Santa
Inês I, II, e III me instigaram a pensar na hipótese de que estas coleções seriam provenientes de uma mesma
ocupação. A partir disso, neste capítulo me dedicarei ao objetivo central desta monografia que repousa em
discutir uma unicidade ou multiplicidade de ocupações a partir de uma análise comparativa entre as
coleções citadas acima. Por fim, trago uma reflexão sobre os estereótipos que até então vinham sendo
empregados nas cerâmicas Aratu-Sapucaí, recorrentemente descritas pela ausência de alterações de croma
e relevo consideradas complexas. Ao longo dos últimos meses me dediquei a estudar estes cacos não pela
ausência disso ou daquilo, mas sim em seus detalhes técnicos que relevam complexidades que passaram
despercebidas por aqueles que os classificaram como “cerâmica simples”.

4.1 Análise comparativa


A análise comparativa foi estabelecida priorizando fragmentos provenientes do mesmo tipo de
intervenção arqueológica, a coleta de superfície. Doravante, foram consideradas as amostras provenientes
da Coleta da Família (CF) que estavam armazenados nas quatro caixas localizadas na chácara de Jussara
Gualberto. Assim como no caso da coleção coletada por Paulo Junqueira e Ione Malta, a CF apresenta
alguns conjuntos com remontagens entre os fragmentos que, para fins de análise, foram observados como
um único caso. Dessa forma, as amostras utilizadas na análise comparativa foram constituídas por 153
casos de análise referentes a coleção dos sítios Santa Inês I, II e III, identificada como Coleção Santa Inês
(SI) e 174 casos de análise provenientes da coleção armazenada pela família Gualberto identificada como
Coleção Jussara (CJ).
80%
60%
60%
42%
40% 33%
25% 22%
18%
20%

0%
Análise tecnológica Análise qualitativa Não analisado

Coleção Santa Inês Coleção Jussara

Gráfico 29: Triagem do material analisado e não alisado

Em ambas as coleções os fragmentos de bojo compõem a maior porcentagem das amostras,


somando 83% de Coleção Santa Inês e 91% de Coleção Jussara. Os fragmentos de lábio e borda são mais
expressivos em CJ (45% cada) do que em SI (23% lábio e 22% borda), assim como as bases que somam

67
8% das amostras de CJ e 4% dos fragmentos provenientes da coleção SI. Cada fragmento pode apresentar
mais de uma porção do pote e por isso a somatória das porcentagens no gráfico abaixo ultrapassa 100%.
80% 69%
57%
60% 45%
45% 44%
40%
23% 22% 24%
20% 10%
5% 4% 8%
0%
Lábio Borda Bojo Bojo Bojo Base
Superior Inferior

Coleção Santa Inês Coleção Jussara

Gráfico 30: Comparação entre as porções de recipientes entre as coleções SI e CF

Apesar de haver uma pequena diferença entre os intervalos de espessura mínima e máxima dos
fragmentos, ambas as coleções apresentam uma curva muito similar, conforme ilustram os gráficos
abaixo. Em ambas as coleções os picos de espessura mínima estão entre 4 e 6mm (22% para SI e 31%
para CJ) e entre 15 e 17mm (29% para SI e 19% para CJ). Já para as espessuras máximas as maiores
concentrações de fragmentos estão entre 5 e 6mm (16% para SI e 19% para CJ) e entre 15 e 19mm (44%
para SI e 25% para CJ).
16%
14%
12%
10%
8%
6%
4%
2%
0%
5mm
3mm
4mm

6mm
7mm
8mm
9mm
10mm

15mm

20mm

25mm
11mm
12mm
13mm
14mm

16mm
17mm
18mm
19mm

21mm
22mm
23mm
24mm

26mm
27mm

-2%

Coleção Santa Inês


Coleção Jussara
2 per. Mov. Avg. (Coleção Santa Inês)
2 per. Mov. Avg. (Coleção Jussara)

Gráfico 31: Comparação entre as espessuras mínimas

68
14%
12%
10%
8%
6%
4%
2%
0%
3mm
4mm

17mm

30mm
31mm
5mm
6mm
7mm
8mm
9mm
10mm
11mm
12mm
13mm
14mm
15mm
16mm

18mm
19mm
20mm
21mm
22mm
23mm
24mm
25mm
26mm
27mm
28mm
29mm
-2%

Coleção Santa Inês


Coleção Jussara
2 per. Mov. Avg. (Coleção Santa Inês)
2 per. Mov. Avg. (Coleção Jussara)

Gráfico 32: Comparação entre as espessuras máximas

Ao comparar a variação de espessura em cada caso de análise pode-se observar que as duas
coleções são compostas por fragmentos caracterizados por uma constância em sua espessura, em alguns
casos não foi possível observar nenhuma variação ao longo de toda a espessura da amostra (12% para SI
e 16% para CJ). A quase totalidade das coleções apresenta uma variação igual ou inferior a 2mm de
espessura (91% e 72%), sendo raros os casos em que esta variação seja superior a 5mm (1% e 7%). Estes
dados, somados aos demais aspectos técnicos aqui apresentados, sugerem que ambas as coleções podem
ser provenientes de uma mesma comunidade de prática cujo rigor técnico na confecção de tais recipientes
é uma característica predominante.
60%
48%

50%
34%

31%

40%
22%

30%
18%
16%
12%

20%
7%

5%
3%

10%
1%

1%
1%

1%

0%

0%

0%
0 1 2 3 4 5 6 7

Coleção Santa Inês Coleção Jussara

Gráfico 33: Comparação entre as variações de espessura em milímetros

Ao todo foram analisados 78 fragmentos de lábio provenientes de Coleção Jussara e 35


provenientes de Coleção Santa Inês. Com uma amostragem maior, é de se esperar que a coleção coletada
pela família de Jussara apresente uma maior diversificação nas espessuras de lábio que variam entre 2mm
e 24mm enquanto os fragmentos coletados por Junqueira e Malta apresentam lábios cuja espessura varia
entre 1mm e 18mm. É interessante notar que os picos de concentração em ambas as coleções estão em

69
2mm para SI e 4mm para CJ convergindo com os dados obtidos sobre o espessamento das bordas e
espessura dos fragmentos. Como mostrado acima, grande parte dos fragmentos de SI possuem uma
espessura mínima de 4mm e 21% das bordas contraídas, com uma variação de espessura concentrada
entre 1 e 2mm (79% das amostras) é observado que os lábios desta coleção apresentam maior
concentração entre 2mm e 3mm (45%) de espessura. Os fragmentos provenientes de CJ, por sua vez,
apresentam pico de espessura mínima em 6mm e 49% dos fragmentos de bordas contraídas, com uma
variação de espessura também concentrada entre 1 e 2mm (56% das amostras) é observado que os lábios
desta coleção apresentam maior concentração entre 3mm e 4mm de espessura (34%).
31%

35%
30%
21%

25%
14%

20%
13%

11%

15%
9%
9%

6%

6%
6%

6%

6%
10%
5%

5%

5%

5%
4%

4%
3%
3%

3%

3%

3%

3%
3%

3%

3%

3%

3%
1%

1%
5%
0%

0%

0%

0%

0%
0%

0%

0%

0%

0%

0%

0%

0%
0%
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 24

Coleção Santa Inês Coleção Jussara

Gráfico 34: Comparação entre as espessuras do lábio

80% 71%

60% 48% 49%

40%
21%
20% 6% 3%
3% 0% 0% 1%
0%
Linear Linear, Expandida Contraída Reforçada
expandida externa

Coleção Santa Inês Coleção Jussara

Gráfico 35: Comparação entre o espessamento dos fragmentos de borda

De modo geral, em ambas as coleções as bordas apresentam majoritariamente uma morfologia


direta (76% para SI e 55% para CJ). As bordas introvertidas ocorrem em maior frequência nos fragmentos
provenientes de CJ (45%) do que naqueles provindos de SI (18%), por outro lado, a ocorrência de bordas
extrovertidas foram observadas exclusivamente nos fragmentos de Santa Inês I, II e III, somando 6% dos
casos de fragmentos de borda analisados em seus aspectos tecnológicos.

70
100%
76%
80%
55%
60% 45%
40%
18%
20% 6%
0%
0%
Direta Introvertida Extrovertida

Coleção Santa Inês Coleção Jussara

Gráfico 36:Comparação entre a morfologia das bordas

Através das projeções de recipientes inteiros (30 para SI e 83 para CJ) constata-se uma preferência
pelas morfologias de cuias e tigelas (80% para SI e 58% para CJ). Os recipientes piriformes são observados
em 25% das amostras de CJ, o que corresponde a 21 casos de análise que permitiram a projeção do
recipiente inteiro, enquanto ocorrem em menor quantidade (13% ou 4 fragmentos) na coleção SI. Os
recipientes globulares seguem a mesma tendência, totalizando 14 e 2 casos de análise para CJ e SI
respectivamente.
40%
30%
25%

24%

30%
20%

20%
17%

17%
13%

20%
11%
10%

7%
6%

10%

0%
Piriforme Cuia alta Cuia Cuia baixa Tigela Globular
média

Coleção Santa Inês Coleção Jussara

Gráfico 37: Comparação entre a projeção de recipientes inteiros

As morfologias dos fragmentos de base provenientes de Coleção Jussara são convexa-côncavas


(69%) e biplanas (23%). Para os fragmentos provenientes da Coleção Santa Inês as bases apresentaram
morfologias convexo-côncavas e plano-convexas em mesma proporção (33%) e em menor número estão
as bases biplanas (17%).
80% 69%
60%
33% 33%
40% 23%
17% 17%
20% 8%
0%
0%
identificado

Biplana

côncava

Convexa-
côncava
Plano-
Não

Coleção Santa Inês Coleção Jussara

71
Em ambas as coleções a técnica de manufatura observada é, em quase sua totalidade, a
sobreposição de roletes (93% para SI e 94% para CJ). Nos fragmentos coletados por Junqueira e Malta
não foram identificadas outras técnicas de produção, todavia, nos fragmentos da Coleção Jussara foram
identificados casos de aplicação de placas em conjunto com a sobreposição de roletes (17%), o modelado
ocorre em 6% dos casos e raros são os casos de marcas de torno6 e paleteado (1% para cada).

0% 20% 40% 60% 80% 100%

Acordelado 93%
73%

Modelado 3%

Acordelado, modelado 3%

Acordelado, placa 17%

Modelado, placa 1%

Torneado 1%
Acordelado, modelado,
paleteado 1%

Não identificado 7%
2%

Coleção Santa Inês Coleção Jussara

Gráfico 38: Comparação entre as técnicas de manufatura identificadas nos fragmentos

Ao analisar e comparar a carga das pastas de argila pode-se observar uma coerência na
composição dos elementos presentes nas pastas de ambas as coleções. Os compostos minerais
representam a quase totalidade das cargas, sendo o quartzo o elemento comum em todos os fragmentos
analisados seguido dos minerais silicatos diversos que estão presentes em 100% das amostras da Coleção
Santa Inês e em 94% dos fragmentos provenientes da Coleção Jussara. O óxido de ferro e a mica
apresentam uma pequena variação de concentração, o primeiro estando presente em 75% e 65% das
amostras e o segundo em 68% e 83% de CJ e SI, respectivamente. O filito ocorre mais pontualmente em
ambas as coleções (13% para SI e 14% para CJ). Com as atividades de campo realizadas em 2021, no
bairro Chácaras Santa Inês, onde está localizada a propriedade de Jussara, pude constatar a ocorrência de
afloramentos de filito na região. Este dado alinhado às ocorrências pontuais nos fragmentos cerâmicos me
leva a crer que trata-se de um elemento que esteja naturalmente associado à jazida de argila e não uma
adição proposital da ceramista na preparação da pasta para a confecção dos recipientes cerâmicos. Os
vestígios de carvão estão presentes em 32% das amostras da Coleção Santa Inês e em 18% das amostras
da Coleção Jussara. Mais raras são as presenças de sílica amorfa (1% para SI e 11% para CJ) e feldspato

6
São dois fragmentos intrusos na coleção.

72
(1% em cada coleção). Por fim, o chamote e a adição de outras argilas foram identificados exclusivamente
nos fragmentos provenientes da Coleção Jussara, presentes em 2% e 1% respectivamente.

Silica amorfa

Filito

Chamote

Carvão

Minerais silicatos diversos

Argila

Óxido de ferro

Mica

Feldspato

Quartzo

0% 20% 40% 60% 80% 100%

Coleção Jussara Coleção Santa Inês

Gráfico 39: Comparação das cargas entre as pastas de argila

O quartzo, mineral constante nas amostras de ambas as coleções, apresenta-se com diferentes
aspectos. Em sua quase totalidade este elemento aparece com aspectos anguloso e sub-anguloso em um
mesmo fragmento.
120% 97%
100% 84%
80%
60%
40%
9%
20% 2% 0% 0% 5% 0% 0% 1% 1% 1%
0%
Não Anguloso Sub-anguloso Sub-anguloso, Anguloso e Anguloso,
identificado esférico sub-anguloso sub-anguloso
e esférico

Coleção Santa Inês Coleção Jussara

Gráfico 40: Comparação do aspecto do quartzo

De modo geral as pastas de argila utilizadas na confecção dos vestígios cerâmicos de ambas as
coleções apresentam médias inclusões (20% de carga) variando na espessura das partículas. Para a
Coleção Santa Inês, 87% dos fragmentos analisados apresentam uma média inclusão de cargas: 23% com
grãos finos, de até 1mm de espessura, 54% com grãos médios, entre 1 e 3mm de espessura, e 10% com a
presença de grãos grossos, maiores que 3mm. Para a Coleção Jussara 83% dos fragmentos analisados
também apresentam uma média inclusão, estando os grãos grossos presentes em 37% das amostras,

73
seguido dos grãos médios em 32% e em 14% foram identificados grãos finos. As baixas e altas inclusões
ocorrem infimamente.
60% 54%
50% 37%
40% 32%
30% 23%
20% 14% 10%
5% 7% 5%
10% 2% 1% 2% 1% 3% 1% 0% 1% 1%
0%
Coleção Santa Coleção Coleção Santa Coleção Coleção Santa Coleção
Inês Jussara Inês Jussara Inês Jussara
Grãos finos Grãos médios Grãos grossos

Baixa inclusão Média inclusão Alta inclusão

Gráfico 41: Porcentagem de inclusão e diâmetro dos grãos

A quase totalidade dos fragmentos analisados apresenta uma concentração de cargas intensa no
núcleo (89% para Coleção Jussara e 93% para Coleção Santa Inês). Este aspecto certamente está
relacionado ao alisamento fino e polimento aplicado nos recipientes uma vez que a fricção de um
instrumento com parte ativa arredondada para a aplicação destes tratamentos de superfície movimenta as
partículas das cargas para o núcleo das peças. Em apenas 2 fragmentos, ambos da Coleção Santa Inês,
pode-se observar uma concentração de cargas intensa na face interna, todavia estes casos podem estar
relacionados a processos de erosão das faces internas, evidenciando parte do núcleo e, consequentemente,
uma maior quantidade de partículas de carga. A distribuição homogênea ocorre em 10% dos casos de
análise de CJ e em apenas 3% das amostras de SI.

Intenso na Face Interna 0%


1%

Intensa no núcleo 89%


93%

Homogênea 10%
3%

Não identificado 1%
2%

0% 20% 40% 60% 80% 100%

Coleção Jussara Coleção Santa Inês

Gráfico 42: Comparação entre as distribuições da carga nos fragmentos

Também foram comparados os aspectos visuais da ação do fogo nos fragmentos. Em sua grande
maioria (80% para a Coleção Santa Inês e 56% para Coleção Jussara) os cacos apresentam faces ocre com
núcleos acinzentados, o inverso ocorre exclusivamente em CJ em apenas 3% das amostras. Os fragmentos
totalmente acinzentados também ocorrem de maneira exclusiva nos fragmentos provindo da coleção
familiar de Jussara (11%). Menos populares são os fragmentos com a face externa ocre e a face interna

74
acinzentada (9% para SI e 13% para CJ) e aqueles que apresentam coloração ocre deste o núcleo às
superfícies (8% para SI e 5% para CJ).

Ocre externa, acinzentado interna

Ocre interna, acinzentado externa

Completamente acinzentadas

Faces acinzentadas, núcleo ocre

Faces ocre e núcleo acinzentado

Totalmente ocre/clara

Não identificado

0% 10% 20% 30% 40% 50% 60% 70% 80% 90%

Coleção Jussara Coleção Santa Inês

Gráfico 43: Comparação dos aspectos visuais da ação do fogo nos fragmentos

O tratamento de superfície entre as duas coleções é caracterizado majoritariamente pela aplicação


de um alisamento fino ou médio em ambas as faces. Nas faces internas estes alisamentos somam 77% e
80% dos casos de análise dos fragmentos de SI e CJ respectivamente, já nas faces externas estes
alisamentos são observados em 73% das amostras de SI e 74% das amostras de CJ. O tratamento
carbônico pós-queima e reboco foram observados apenas nos fragmentos de CJ, somando 1% e 9% para
as faces internas e 1% e 12% para as faces externas respectivamente. Em ambas as coleções a barbotina
aparece em 1% das faces internas, percentual que se mantém para as faces externas de SI e se altera para
2% nos casos dos fragmentos de CJ. Por fim, o polimento ocorre de maneira mais expressiva em ambas
as faces nos fragmentos provenientes de CJ, sendo observados em 13% das faces internas e 10% das faces
externas enquanto nos casos de análise de SI este tratamento é observado em 1% de ambas as faces.
52%
49%

60%
50%
31%

40%
25%

23%

30%
13%

20%
9%
5%
2%

1%

1%
1%
1%

10%
0%

0%

0%

0%
Não Alisado fino Alisado Alisado Polido Tratamento Barbotina Reboco
identificado médio grosso carbônico
pós-queima

Coleção Santa Inês Face Interna Coleção Jussara Face Interna

Gráfico 44: Comparação entre o tratamento de superfície aplicado nas faces internas dos fragmentos

75
80%

58%
48%
60%

26%

26%
40%

15%

14%

12%
10%
20%

2%
1%

1%
1%
1%
0%

0%

0%
0%
Não Alisado fino Alisado Alisado Polido Tratamento Barbotina Reboco
identificado médio grosso carbônico
pós-queima

Coleção Santa Inês Face Externa Coleção Jussara Face Externa

Gráfico 45: Comparação entre o tratamento de superfície aplicado nas faces externas dos fragmentos

As técnicas de modificação de croma e relevo são pouco recorrentes, indicando tratar-se de uma
comunidade de prática que, mesmo com aptidão para a aplicação de tais técnicas como demonstram
alguns fragmentos de ambas as coleções, valoriza a cor resultante da sinterização da pasta de argila e a
construção de relevos lisos. Quando ocorrem, estão mais concentradas nas faces externas, sendo as
alterações de croma presentes em 18% e 6% das faces externas dos fragmentos provenientes de SI e CJ,
respectivamente. Nas superfícies internas estas modificações de croma são observadas em 6% das
amostras de SI e em 3% das amostras de CJ. As modificações de relevo ocorrem exclusivamente nas faces
externas, de forma diminuta, em apenas um caso de análise dos fragmentos provindos de SI e em 3 casos
de análises dos fragmentos de CJ. Vale ressaltar que se aplicarmos essa porcentagem considerando a
totalidade dos fragmentos das coleções e não só aqueles submetidos às análises tecnológicas, a proporção
de ocorrências de alteração de croma e relevo se tornam ainda mais diminutas.
94% 97%
100%
80%
60%
40%
20% 6% 3% 0% 0%
0%
Não identificado Crômica Relevo

Coleção Santa Inês Face Interna Coleção Jussara Face Interna

Gráfico 46: Comparação entre técnicas de alteração de croma e relevo nas faces internas

76
100% 92%
81%
80%

60%

40%
18%
20% 6%
1% 2%
0%
Não identificado Crômica Relevo

Coleção Santa Inês Face Externa Coleção Jussara Face Externa

Gráfico 47: Comparação entre técnicas de modificação de croma e relevo nas faces externas

Dentre todos os fragmentos coletados por Paulo e Ione apenas um apresenta alteração de relevo
ponteada na face externa. Já nos fragmentos coletados pela família de Jussara Gualberto, são observados
11 fragmentos com a ocorrência de relevos acanalados (2 deles estando associados a incisos) e 3
fragmentos com aplicação de incisões.
0% 10% 20% 30% 40% 50% 60% 70% 80% 90% 100%

Não identificado 99%


93%

Ponteado 1%
0%

Inciso 0%
1%

Acanalado 0%
5%

Inciso e acanalado 0%
1%

Coleção Santa Inês Face Externa Coleção Jussara Face Externa

Gráfico 48: Comparação entre as técnicas de modificação de relevo nas faces externas

As técnicas de modificação de croma variam em cor e tipo. Em ambas as coleções a maior


concentração de ocorrências de alteração de cor são caracterizadas pela aplicação de aguada, entendida
como uma tinta feita à base de água, vermelha nas faces externas (16% para SI e 6% para CJ). A mesma
técnica apresenta maior popularidade entre as faces internas com alteração de croma, estando presentes
em 4% e 2% das faces internas de SI e CJ, respectivamente. Os engobes, entendidos como tintas feitas à
base de argila que criam espessura nas superfícies em que são aplicadas, ocorrem exclusivamente nos
fragmentos de SI: o engobe branco está presente na face interna de 3 fragmentos e na face externa de 1
fragmento; já o engobe vermelho ocorre na face externa de um único caso de análise. Nos fragmentos

77
provenientes de CJ observa-se a ocorrência de uma crosta preta em ambas as faces de um mesmo
fragmento.
5%
4%
4%
3% 2%
2%
2%
1% 1%
0% 0% 0% 0%
0%
Engobe branco Aguada Engobe Crosta preta
vermelha vermelho

Coleção Santa Inês Face Interna Coleção Jussara Face Interna

Gráfico 49: Comparação entre as técnicas de modificação de croma nas faces internas

20% 16%
15%

10% 6%
5%
1% 0% 1% 0% 0% 1%
0%
Engobe branco Aguada Engobe Crosta preta
vermelha vermelho

Coleção Santa Inês Face Externa Coleção Jussara Face Externa

Gráfico 50: Comparação entre as técnicas de modificação de croma nas faces externas

Por fim, o último aspecto submetido à análise comparativa diz respeito aos vestígios de uso
identificados nas coleções. As marcas petalares, identificadas como vestígios de fermentação, foram
observadas exclusivamente nas faces internas (2% para Coleção Jussara e 7% para Coleção Santa Inês).
Mais frequentes são os aspectos de faces ocres em decorrência do uso (51% das faces internas e 63% das
faces externas de CJ e 38% das faces internas e 44% das faces externas de SI), seguidos dos aspectos
acinzentados em decorrência do uso (44% das faces internas e 48% das faces externas de CJ e 25% das
faces internas e 28% das faces externas de SI). Os depósitos carbônicos ocorrem em maior quantidade nas
faces externas (12%) do que nas faces internas (5%) dos fragmentos da Coleção Santa Inês, na Coleção
Jussara estas marcas aparecem em 25% de ambas as faces.

78
Não identificado 21%
41%
Fermentação 2%
7%
Aspecto ocre 51%
38%
Aspecto acinzentado 44%
25%
Depósito carbônico 25%
5%

0% 10% 20% 30% 40% 50% 60%

Coleção Jussara Face Interna Coleção Santa Inês Face Interna

Gráfico 51: Comparação entre os vestígios de uso identificados nas faces internas

Não identificado 16%


35%
Fermentação 0%
0%
Aspecto ocre 63%
44%
Aspecto acinzentado 48%
28%
Depósito carbônico 25%
12%

0% 10% 20% 30% 40% 50% 60% 70%

Coleção Jussara Face Externa Coleção Santa Inês Face Externa

Gráfico 52: Comparação entre os vestígios de uso identificados nas faces externas

4.2 Ocupação ceramista Aratu-Sapucaí no bairro Chácaras Santa Inês, município de


Santa Luzia – MG
As atividades de campo realizadas por Paulo Junqueira e Ione Malta resultaram em brevíssimas
descrições dos sítios Santa Inês I, II e III. Não havendo uma localização geográfica precisa, o que se sabe
é que os materiais coletados estavam localizados à margem esquerda do Rio das Velhas ao longo de uma
mesma colina, com ocorrência de filito, que fora loteada em chácaras (JUNQUEIRA; MALTA, 1978).
Todavia, a própria nomenclatura atribuída aos sítios é um indicativo importante de sua localização: à
margem esquerda do Rio das Velhas está localizado o bairro Chácaras Santa Inês, sendo bastante razoável
que o nome dado aos sítios visitados por Junqueira e Malta faça uma referência direta ao bairro de Santa
Luzia – MG. Os pesquisadores, ainda na publicação de 1978, chegaram a informar que tomaram
conhecimento da ocorrência de uma urna funerária na mesma região em que coletaram o material hoje
armazenado no MHNJB-UFMG.
Doravante, gostaria de retomar algumas informações sobre a localização da propriedade de
Jussara Gualberto, de onde provêm a coleção utilizada na análise comparativa desta monografia. A
chácara da família Gualberto está localizada no topo de uma colina do bairro Chácaras Santa Inês, no
município de Santa Luzia – MG, à margem esquerda do Rio das Velhas. No terreno ainda observa-se
alguns afloramentos de filito, tais como descritos por Paulo e Ione sobre a localização dos sítios Santa Inês

79
I, II e III. Jussara, ao narrar sobre a construção da chácara que herdara de sua família, conforme exposto
no capítulo 2, revela que, além das duas urnas localizadas próximas à piscina da propriedade, durante a
abertura de via de acesso foram localizadas mais duas urnas cerâmicas que foram coletadas por seu tio
(ver Figura 2). Esses achados antecedem a pesquisa realizada por Paulo e Ione que possivelmente tomaram
conhecimento destes achados à época em que coletaram os vestígios provenientes de Santa Inês I, II e III.
A partir das informações dadas por André Prous (Comunicação pessoal, 2021) sobre a
proximidade geográfica entre a chácara de Jussara e o local de proveniência da Coleção Santa Inês, a
análise comparativa entre as coleções e o cruzamento das informações obtidas através das narrativas de
Jussara e a descrição dada por Paulo Junqueira e Ione Malta revelam que ambas as coleções são
provenientes do mesmo bairro de Santa Luzia. A hipótese sobre unicidade ou multiplicidade foi pensada
levando em consideração as proximidades técnica e geográfica entre as coleções e o caminho trilhado no
desenvolvimento desta hipótese, conforme exposto ao longo desta monografia, me leva a concluir sobre
uma unicidade de ocupação desta comunidade de prática conhecida por Aratu-Sapucaí no bairro Chácaras
Santa Inês.
Apesar do conhecimento da existência dos vestígios arqueológicos que compõem a Coleção Santa
Inês remeter à segunda metade da década de 1970, os sítios prospectados por Paulo Junqueira e Ione Malta
foram registrados no Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos (CNSA) em 1998, pela arqueóloga
Mônica C. Schlobach, sob identificação “MG00513”. Ao realizar uma consulta sobre os sítios
arqueológicos nas delimitações do município de Santa Luzia – MG o sistema do IPHAN identifica apenas
seis cadastros, sendo eles referentes aos sítios Macaúbas, Santa Inês I, II e III, Barreiro, Santa Luzia, Rio
Vermelho 1 de MG e Rio Vermelho 2 de MG. É evidente que tal resultado não se compatibiliza com o
potencial arqueológico dessa região, haja vista que apenas no bairro Chácaras Santa Inês é observada a
ocorrência de pelo menos quatro concentrações de vestígios arqueológicos: três concentrações referentes
à Coleção Santa Inês acrescidas da concentração de vestígios referentes à Coleção Jussara.
De posse de todas estas informações é certo dizer que o território que hoje integra o bairro
Chácaras Santa Inês no município de Santa Luzia – MG foi palco de uma ocupação pré-colonial que se
estende para além das áreas de concentração dos vestígios arqueológicos conhecidos atualmente. Cabe
ressaltar que diversos empreendimentos foram instalados no entorno da propriedade da família Gualberto
e ainda assim não foram localizadas bibliografias referentes a achados de interesse arqueológico na região
além da publicação de Junqueira e Malta de 1978. A inexistência dessas bibliografias me faz questionar
se tais empreendimentos realizaram projetos de avaliação de impacto ao patrimônio arqueológico pois as
narrativas de Jussara atestam que os achados arqueológicos na região eram algo comum, fazendo até
mesmo com que as pessoas “andassem olhando para o chão”.

80
4.3 Considerações finais sobre as ceramistas Aratu-Sapucaí
A partir das análises realizadas e expostas ao longo desta monografia, podemos começar a pensar
em alguns aspectos gerais que caracterizam os vestígios cerâmicos associados à tradição Aratu-Sapucaí.
De modo geral, a técnica de produção que se destaca na manufatura destes recipientes é o acordelado. Para
as espessuras dos fragmentos existem dois picos de concentração que se estabelecem nos intervalos de
3mm a 7mm e de 15mm a 19mm. Ainda sobre as medidas observadas, é espantosa a constância na
espessura destes fragmentos cuja variação raramente é superior a 2mm, havendo casos em que tal variação
sequer é percebida mesmo com a utilização de instrumentos de medição como o paquímetro.
A composição da pasta de argila é marcada pela presença de quartzo, mica, óxido de ferro,
minerais silicatos diversos e ocorrências mais pontuais de filito em médias inclusões (20% de carga) com
partículas inferiores a 3mm de diâmetro concentradas no núcleo dos fragmentos. A concentração destas
cargas no núcleo está associada ao tratamento de superfície aplicado aos recipientes que é caracterizado
por um alisamento fino e médio. A ação mecânica destes alisamentos movimenta as partículas presentes
na argila, fazendo com que os grãos presentes nas superfícies sejam “empurrados” para o núcleo.
As técnicas de modificação de croma e relevo são pouco recorrentes, indicando tratar-se de uma
comunidade de prática que valoriza a croma ocasionada pela própria sinterização da argila durante a
queima e a construção de relevos lisos. As modificações de croma, quando aparecem, são
majoritariamente nas faces externas, caracterizadas pela aplicação de aguadas vermelhas. Em alguns casos
pode ocorrer a aplicação de engobe nas cores branca ou vermelha. As queimas resultam em fragmentos
cujo aspecto visual da ação do fogo é, em sua quase totalidade, marcado pela presença de faces com
coloração ocre/clara e núcleos acinzentados.
Através das projeções de recipientes inteiros as morfologias observadas são, em sua maioria, cuias
e tigelas, também ocorrendo formatos piriformes e globulares. Através das análises dos fragmentos de
borda percebe-se uma preferência por morfologias diretas e introvertidas com espessamentos lineares e
contraídos. A morfologia dos lábios é frequentemente arredondada, sendo poucos os casos de lábios
apontados. Os fragmentos de base aparecem em pouca quantidade nas coleções, mas as morfologias
identificadas são convexa-côncavas, plano-convexas e biplanas.
Nenhum recipiente inteiro foi localizado nas coleções analisadas nesta monografia, todavia, ao
longo do último ano tive a oportunidade de conhecer outros vestígios cerâmicos também associados à
tradição Aratu-Sapucaí. Desde agosto de 2021 tenho trabalhado na Reserva Técnica do Museu de
Arqueologia do Carste Alto São Francisco (MAC), por intermédio da empresa Peruaçu Arqueologia Ltda,
no município de Pains – MG, onde estão expostos alguns recipientes inteiros extremamente simétricos em
sua morfologia e constantes em sua espessura. Ao longo dos trabalhos em que participei como estagiário
na mesma empresa, tive a oportunidade de visitar a Unidade de Conservação Estadual – Estação Ecológica

81
Estadual de Corumbá, no município de Arcos – MG, onde estão expostos outros exemplares de urnas
funerárias também associadas à tradição tratada nesta monografia, além das coleções expostas no próprio
Museu de História Natural e Jardim Botânico da UFMG que reforçam essa característica tão marcante
destes vestígios.

Figura 24: O "cálice". Recipiente associado à tradição Aratu-Sapucaí exposto no MAC, Pains - MG. Perfil (esquerda) e visão
superior (direita)

Figura 25: Recipiente associado à tradição Aratu-Sapucaí exposto no MAC, Pains - MG. Perfil (esquerda) e vista da abertura
para o interior do recipiente (direita)

Figura 26: Urna funerária Aratu-Sapucaí exposta no MAC, Pains - MG

Como aprendiz de ceramista, pude experenciar com meu próprio corpo a imensa dificuldade em
confeccionar recipientes como estes. No meu caso, mesmo após quatro anos de familiaridade com a
prática oleira nunca cheguei sequer perto de obter um resultado parecido com o que é observado entre os

82
vestígios das ceramistas Aratu-Sapucaí. Ainda existem casos que podem ser considerados como
verdadeiros desafios arquitetônicos, como o “cálice” ilustrado na Figura 25. Em suma, é evidente que a
fabricação de objetos cerâmicos por si só não é algo simples, mas alcançar os resultados que são
observados nos vestígios associados a esta tradição exige uma maestria que só pode ser alcançada por uma
comunidade de prática com elevadíssimo rigor técnico. Para muitos pesquisadores tal tradição foi relegada
à categoria de cerâmicas simples, todavia, as complexidades existentes nestes vestígios repousam em
atributos que até então não estavam sendo sistematicamente analisados.
Doravante, espero ter mostrado aspectos da tecnologia cerâmica que indiquem que os sítios
comparados, mesmo sem datações, resultam de uma mesma comunidade de prática, além de ter
demonstrado argumentos fundamentados nas análises tecnológicas que evidenciam as complexidades
produtivas das cerâmicas Aratu-Sapucaí.

83
Bibliografia
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