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UNICIDADE OU MULTIPLICIDADE?
Análise comparativa entre duas coleções cerâmicas da tradição Aratu-Sapucaí e suas
complexidades (Santa Luzia – MG)
Belo Horizonte
2022
ALEX SOARES COSTA
UNICIDADE OU MULTIPLICIDADE?
Análise comparativa entre duas coleções cerâmicas da tradição Aratu-Sapucaí e suas
complexidades (Santa Luzia – MG)
Eu tenho uma vaga lembrança de, quando criança, ter assistido à um programa de
televisão em que estavam exibindo escavações arqueológicas. Essa é a recordação mais antiga
que tenho de ter contato com o trabalho de profissionais da arqueologia e neste momento foi
acesa uma faísca aqui dentro do peito: “eu quero fazer isso quando eu crescer”. O primeiro
passo para a concretização desse sonho foi realizado no final do ano de 2017, quando assinei
minha habilitação em Arqueologia no curso de Antropologia da Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas da UFMG e, desde então, comecei a trilhar este caminho que me
proporcionou experiências incríveis e me fez conhecer pessoas extraordinárias.
À professora Mariana Petry Cabral, por ter me orientado nos primeiros passos para me
tornar um analista cerâmico, por ter me recebido como bolsista de iniciação científica no projeto
“Sobre as marcas do passado: arqueologia e conhecimento indígena na Amazônia”. Aos colegas
Hugo Sales, Ana Luiza e Clarice Maués que também fizeram parte desta Iniciação Científica,
cujas discussões reverberaram no modo como penso e faço arqueologia. À professora Maria
Jacqueline Rodet por ter sido a primeira professora a ver em mim um potencial para me tornar
um pesquisador. Ao arqueólogo Daniel Cruz por toda a ajuda com os registros fotográficos das
coleções e à Helena Panachuk e Cruz, minha grande pequena amiga.
Às minhas irmãs, Nathalie e Gabi, por tanto me apoiarem e por serem meu porto seguro.
Às minhas sobrinhas, Laura e Lis que tanto amo. Aos meus pais, Maria Nilse e Alexandre. Aos
meus tios Ivanete e Rogério e minha prima Larissa por acompanharem de perto todos estes anos
de graduação. Ao meu cunhado Eduardo, onde quer que você esteja, obrigado por sempre me
incentivar e por acreditar em mim.
Agradeço, por fim, a banca examinadora pelas muitas sugestões relevantes. Não pude,
neste momento, incluir todas, mas espero retomá-las em breve em um futuro trabalho
acadêmico.
Abstract
This monograph aims to respond to a hypothesis raised during field activities carried
out between August and September 2021 in the municipality of Santa Luzia - MG, where two
ceramic collections associated with the archaeological tradition known as Aratu-Sapucaí come
from. Through descriptive and comparative analyzes between these remains, it is intended to
understand whether these collections point to a uniqueness or multiplicity of pre-colonial
occupations. In addition to this central question, I sought to highlight the complexities identified
in the technical details of the fragments associated with this tradition.
Introdução ........................................................................................................................................ 11
Capítulo 1: A tradição arqueológica Aratu-Sapucaí ............................................................................ 13
1.2 A tradição Aratu de Valentin Calderón ..................................................................................... 13
1.3 A tradição Sapucaí de Ondemar Dias Jr. ................................................................................... 15
1.4 Os estudos de Igor M. M. Rodrigues sobre o sítio arqueológico Vereda III ............................... 16
1.5 Aratu-Sapucaí: uma tradição de cerâmicas simples? ................................................................ 19
Capítulo 2: O Sítio Santa Inês Jussara ................................................................................................ 21
2.1 Relatos de Jussara: contextualizando o sítio arqueológico ....................................................... 22
2.2 As escavações realizadas ......................................................................................................... 24
2.2.1 Área Hebe I....................................................................................................................... 25
2.2.2 Área Hebe II...................................................................................................................... 26
2.2.3 Orquidário ........................................................................................................................ 28
2.2.4 Retirada das urnas ............................................................................................................ 29
2.3 As atividades de laboratório .................................................................................................... 36
Capítulo 3: Santa Inês I, II e III ........................................................................................................... 38
3.1 As pesquisas de Paulo Junqueira e Ione Malta ......................................................................... 38
3.2 Curadoria ................................................................................................................................ 39
3.3 Metodologia de análise ........................................................................................................... 40
3.3.1 Identificação ..................................................................................................................... 40
3.3.2 Medidas ........................................................................................................................... 41
3.3.3 Aspectos produtivos primários ......................................................................................... 41
3.3.4 Resultado visual da ação do fogo ...................................................................................... 44
3.3.5 Tratamentos aplicados à superfície ................................................................................... 44
3.3.6 Técnicas de modificação de croma e relevo ...................................................................... 45
3.3.7 Dados morfológicos .......................................................................................................... 46
3.3.8 Vestígios de produção, gestos e uso ................................................................................. 46
3.4 Análise descritiva .................................................................................................................... 47
Capítulo 4: Unicidade ou multiplicidade? .......................................................................................... 67
4.1 Análise comparativa ................................................................................................................ 67
4.2 Ocupação ceramista Aratu-Sapucaí no bairro Chácaras Santa Inês, município de Santa Luzia –
MG ............................................................................................................................................... 79
4.3 Considerações finais sobre as ceramistas Aratu-Sapucaí .......................................................... 81
Bibliografia ....................................................................................................................................... 84
Introdução
Durante as atividades de campo para resgate de vestígios arqueológicos associados à
tradição cerâmica Aratu-Sapucaí, realizadas pela empresa Peruaçu Arqueologia Ltda, na
propriedade de Jussara Elias Gualberto, no município de Santa Luzia – MG, em decorrência do
processo de licenciamento para obtenção de Licença Prévia (LP) do empreendimento de
responsabilidade da construtora AP Ponto (Processo IPHAN 01514.004837/2017-57), o
arqueólogo André Prous informou à equipe de campo que, na década de 1970, os pesquisadores
Paulo Junqueira e Ione Malta, à época vinculados ao Museu de História Natural da UFMG,
prospectaram uma área próxima, realizando uma coleta superficial de vestígios cerâmicos que
foram armazenados na reserva técnica do MHNJB-UFMG. As informações referentes à
proximidade entre os locais de concentração destes vestígios fizeram surgir a hipótese de que
as coleções provenientes do resgate arqueológico e da coleta superficial realizada por Junqueira
e Malta seriam provenientes de uma mesma ocupação pré-colonial desta comunidade de
prática1 nomeada como Aratu-Sapucaí. Objetivando responder à esta hipótese central e melhor
compreender as complexidades identificadas nos detalhes técnicos dos fragmentos cerâmicos,
esta monografia foi organizada em quatro capítulos.
1
O termo “comunidade de prática”, cunhado por Etienne Wenger-Trayner (2015) é utilizado para se referir a
grupos de indivíduos que se envolvem em processos de aprendizado coletivo no domínio de atividades
compartilhadas pela comunidade.
2
Associados ao PRONAPA (Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas).
11
O segundo capítulo foi destinado a descrever as atividades de campo e laboratório
realizadas sobre o material proveniente da propriedade de Jussara Gualberto. Todavia, optei por
uma narrativa que se baseia nos processos de ensino-aprendizagem que foram estabelecidos
durante cada etapa realizada. Neste capítulo tomo a liberdade de evidenciar como os
conhecimentos teóricos adquiridos ao longo da graduação foram aplicados na prática, relatando
as dificuldades, frustrações, dilemas e meu próprio amadurecimento enquanto profissional em
formação.
O quarto e último capítulo traz os resultados das análises comparativas entre as coleções
que, alinhados às informações que se referem a proveniência dos vestígios analisados, alicerçam
a argumentação que pretende responder à hipótese central desta monografia, discutindo a
possibilidade de ambas as coleções apontarem para uma unicidade de ocupação pré-colonial no
bairro Chácaras Santa Inês, município de Santa Luzia – MG. Por fim, trago minhas
considerações finais sobre os vestígios associados à tradição Aratu-Sapucaí, por muito tempo
definidos e descritos pela ausência e pormenorizados em seus detalhes técnicos onde repousam
as complexidades da cadeia operatória dos remanescentes cerâmicos.
12
Capítulo 1: A tradição arqueológica Aratu-Sapucaí
Durante a década de 1960, no Brasil, foi criado o Programa Nacional de Pesquisas
Arqueológicas (PRONAPA) que fitava identificar a maior quantidade possível de sítios
arqueológicos e estabelecer correlações entre os vestígios encontrados através de suas
similaridades, dando origem a novas tradições 3 culturais (PROUS, 1992). Foi através das
atividades realizadas pelo PRONAPA que várias tradições ceramistas foram criadas, incluindo
a que é alvo desta monografia: Aratu-Sapucaí.
Ainda em meados do século passado pesquisas realizadas por C. Ott na Bahia, J. Pereira Jr.
em São Paulo, J. V. César em Minas Gerais e Petrullo no Mato Grosso já apontavam para a
existência de urnas funerárias não decoradas que não poderiam ser atribuídas aos Tupiguarani
(PROUS, 1992). Todavia, é a partir dos trabalhos de Valentin Calderón (Bahia) e Ondemar
Dias (Minas Gerais) que se inicia uma definição de atributos característicos destas urnas
ocasionando a criação de tradições com denominações distintas para fenômenos semelhantes
(idem). É na década de 1980, durante a reunião para apresentação dos resultados obtidos, que
os pesquisadores do PRONAPA chegaram à um consenso sobre a necessidade de unificar estas
coleções sob uma única tradição (PROUS, 1992).
Apesar de existirem outros artefatos associados à tradição Aratu-Sapucaí estes não serão
alvo de discussão neste texto, no qual me debruçarei exclusivamente nas discussões sobre os
artefatos cerâmicos que são de interesse desta pesquisa. A seguir, apresentarei as definições
apresentadas pelos dois pesquisadores acima citados a respeito das coleções que deram origem
a tradição que, posteriormente, foi nomeada como Aratu-Sapucaí e, como referência
contemporânea, apresentarei brevemente o trabalho realizado por Igor M. M. Rodrigues (2011)
na região de Lagoa Santa-MG. Ainda outros pesquisadores contribuíram para o conhecimento
desta tradição, entretanto não serão aqui tratados, focando o contexto regional e local. Na
sequência trago algumas reflexões a partir da experiência prática na produção cerâmica que
transformaram a minha percepção sobre o material arqueológico e me fizeram questionar a
classificação que define Aratu-Sapucaí como uma tradição de cerâmicas “simples”
exclusivamente pela raridade de relevo e pinturas em superfície.
3
As tradições arqueológicas são definidas por Chmyz (1976, p. 145) como um conjunto de “elementos ou
técnicas com persistência temporal” e fases são compreendidas como expressões regionais das tradições.
13
prospecções em três deles: Beliscão, Guipe e Piratacase. Ao todo foram reunidas vinte e sete
coleções, totalizando mais de oito mil fragmentos além de oito urnas funerárias inteiras que
permitiram a Calderón estabelecer alguns parâmetros gerais para a caracterização da fase Aratu
(CALDERÓN, 1969).
Os sítios estudados por Calderón apresentam uma extensão de 300 x 200m e 200 x 100m
para Guipe e Beliscão, as datações resultaram em A.D. 870 ± 90 e A.D. 1360 ± 40
respectivamente. Todos os sepultamentos encontrados consistiram em urnas piriformes, sempre
apresentando-se em grupos de duas, três ou mais com aproximadamente 75cm de altura, 65cm
de diâmetro máximo do bojo e 45cm de abertura da boca (CALDERÓN, 1969). Em grande
parte dos enterramentos foram encontrados vasilhames em posição invertida que serviram como
uma espécie de proteção aos restos humanos sepultados e outros objetos como lâminas de
machado polido e fusos de cerâmica que, segundo o autor, possivelmente teriam pertencido à
pessoa sepultada (CALDERÓN, 1969; RODRIGUES, 2011).
A cerâmica foi classificada em tipos simples e decoradas, sendo estas últimas menos
expressivas. De acordo com Calderón (1969) a técnica de decoração mais frequente é a
aplicação de engobo com grafite, já as decorações corrugadas e roletadas representam uma
percentagem diminuta. As morfologias mais frequentes são as globulares e hemisféricas,
seguidas de vasilhames de pouca altura que se assemelham a pratos, tendo a ocorrência de
tigelas com bordas onduladas. A composição de pasta cerâmica apresenta areia grossa, areia
fina e grafite, já para o tratamento de superfície é predominante o alisamento e aplicação de
engobo com grafite (idem).
14
Figura 2: Vasilhame com borda ondulada. Extraído de Calderón, 1969.
15
A fase Itaci foi estabelecida a partir da análise de 5084 cacos cerâmicos provenientes de
nove sítios arqueológicos cuja dimensão varia entre 50x50 e 500x300 metros (DIAS JÚNIOR,
1971). A composição da pasta cerâmica apresenta predominantemente o quartzo, com
ocorrência de feldspato e mica; o tratamento de superfície foi definido como “regular”, a
espessura dos fragmentos varia entre 3mm e 30mm e a queima foi considerada como “mau
controlada com predominância de oxidação incompleta” (DIAS JÚNIOR, 1971, p. 138). Para
a fase Sapucaí, definida a partir da análise de 2496 cacos provenientes de sete sítios
arqueológicos apresenta na composição da pasta cerâmica o feldspato associado ao quartzo,
mica na superfície dos fragmentos e em casos mais raros há a ocorrência de hematita (DIAS
JÚNIOR, 1971). A espessura varia entre 2mm e 20mm, assim como na fase Itaci o autor
descreve a queima que apresenta oxidação na face externa com núcleo reduzido. Em ambas as
fases se observou a presença de banho vermelho como técnica decorativa, em menor proporção
foram identificadas técnicas de decoração plástica, tais como ungulado e digitado, e a presença
de engobo branco (idem).
O sítio arqueológico Vereda III está localizado na Área de Proteção Ambiental do carste de
Lagoa Santa, mais precisamente no município de Prudente de Moraes – MG, inserido em uma
“zona aberta que mede aproximadamente 70m de comprimento, leste-oeste, com trechos entre
10 e até 30 metros de largura, em sentido norte-sul” (RODRIGUES, 2011, p. 114). A primeira
intervenção realizada no sítio data do ano de 2003, quando a equipe do Laboratório de Estudos
Evolutivos Humanos da USP realizou uma coleta de superfície e, apenas em 2010, a equipe do
Setor de Arqueologia do MHNJB da UFMG realizou a segunda etapa dos trabalhos de campo
por meio de escavações (id., ibid.).
16
Ao todo foram coletados 3682 fragmentos cerâmicos dos quais 1795 foram utilizados para
tratamento estatístico, considerando aqueles fragmentos maiores que 5cm cuja espessura era
maior que 10mm e maiores que 3cm para aqueles fragmentos cuja espessura não ultrapassava
10mm (RODRIGUES, 2011). Através destes fragmentos foi possível realizar a reconstituição
de 24 recipientes com morfologias variadas: piriforme, hemisférica, cônica, meia-calota e
globular.
Através da Microscopia Eletrônica de Varredura foi constatado que o cauxí ocorre apenas
na argila vermelha, indicando que o cauxí não foi utilizado como tempero, mas sim a argila
vermelha pois, caso contrário, as espículas seriam encontradas em ambos os tipos de argila
(RODRIGUES, 2011). Outro fato que corrobora com esta hipótese é o tamanho destas espículas
que não são visíveis a olho nu:
17
Além de analisar a composição das pastas cerâmicas, Igor Rodrigues correlacionou estes
dados com as morfologias e tratamentos de superfície dos recipientes reconstituídos. Dos 16
recipientes produzidos com a pasta do tipo A oito apresentam morfologia cônica; três com
morfologia hemisférica, sendo que dois deles apresentam a aplicação de engobe nas faces
interna e externa e receberam polimento em ambas as faces como tratamento de superfície; um
recipiente com morfologia globular; dois vasilhames de morfologia meia-calota e dois
piriformes. Todos receberam uma adição de argila fina para tratamento de superfície e foram
confeccionados através da sobreposição de roletes.
Apenas dois vasilhames de morfologia globular foram confeccionados com a pasta do tipo
B através da sobreposição de roletes. Estes são os maiores recipientes da coleção, apresentando
volumetrias entre 200 e 417 litros. O autor ainda descreve que “receberam uma camada de
argila adicional, sobreposta aos roletes em ambas as faces, com uma espessura média de 1mm
e alisamento médio nas duas faces” (RODRIGUES, 2011, p. 146). Em um dos potes constatou-
se a presença de engobe vermelho e uma faixa preta margeando a área com aplicação do engobe
vermelho (id, ibid). Através da análise das marcas de uso o autor acredita que estes recipientes
foram utilizados para a produção de bebidas fermentadas.
Por fim, a amostra correspondente a pasta do tipo C é composta por 6 vasilhames, sendo 4
de morfologia hemisférica com aplicação de engobo vermelho nas faces interna e externa e dois
de morfologia globular, sendo que um deles apresenta aplicação de engobo vermelho na face
externa. Em todos os recipientes observou-se um alisamento fino como tratamento de superfície
em ambas as faces (RODRIGUES, 2011).
18
1.5 Aratu-Sapucaí: uma tradição de cerâmicas simples?
A partir do exposto acima podemos compreender que a cerâmica classificada como
pertencente à tradição Aratu-Sapucaí é caracterizada pela ocorrência de urnas funerárias de
morfologia piriforme encontradas em grupos de duas ou mais e recipientes de morfologias
variadas que foram classificadas pelos pesquisadores pronapianos como “simples” em seu
tratamento de superfície e decoração, sendo o aspecto de queima dessas cerâmicas
recorrentemente definido como uma queima “incompleta” ou “mau controlada” devido a
ocorrência de núcleo acinzentado. Os aspectos decorativos são predominantemente a ocorrência
de coloração avermelhada com pouca ocorrência de decoração plástica e a técnica de
manufatura é predominantemente através da sobreposição de roletes.
Vale ressaltar também que por trás da ideia de ceramistas simples e incapazes,
reside uma perspectiva preconceituosa sobre as populações indígenas,
compreendidas como “marginais”, em um cenário de baixo desenvolvimento
cultural. (RIBEIRO; MILHEIRA, 2015, p. 117)
Na contramão das pesquisas pronapianas que definem a cerâmica Aratu-Sapucaí por
aquilo que elas não são, Igor Rodrigues lança um olhar mais atento às técnicas produtivas e
suas correlações entre morfologia, composição da pasta cerâmica e utilização destes recipientes,
enfatizando que existe uma escolha consciente e intencional destas comunidades de prática em
suas produções.
Como veremos nos capítulos seguintes, sobretudo nos resultados das análises realizadas
sobre coleções provenientes do município de Santa Luzia - MG, a cerâmica desta tradição
19
apresenta características que exigem um elevado grau de habilidade técnica para serem obtidas.
A queima, etapa produtiva fundamental, exige um controle extremo do fogo: este deve alcançar
progressivamente uma temperatura suficientemente alta e, geralmente, durante um período de
várias horas para que haja a transformação da argila em cerâmica. A composição da pasta
cerâmica bem como a morfologia dos vasilhames deve ser interpretada como uma escolha e
não uma mera ocasionalidade. Ao descrever a materialidade produzida por outras gentes
devemos nos esforçar em ter a sensibilidade de compreender que suas percepções, rigores
técnico-sociais e motivações também são outros. O conhecimento teórico desvinculado do
conhecimento prático causa a falsa sensação de que a produção de objetos cerâmicos em geral
é simples e que a complexidade está apenas na aplicação de técnicas de alteração de croma e
relevo que sejam chamativas aos olhos de pesquisadores.
4
Que desde 2022 figura como grupo de pesquisa cadastrado ao CNPq
20
Capítulo 2: O Sítio Santa Inês Jussara
O Sítio Arqueológico em questão está localizado em propriedade privada no bairro
Chácaras Santa Inês, município de Santa Luzia – MG, com acesso pela Av. Professor Djalma
Guimarães. Trata-se de uma chácara com aproximadamente 15.350m² de área. A pesquisa na
área indicada foi realizada em decorrência do processo de licenciamento para obtenção de
Licença Prévia (LP) do empreendimento de responsabilidade da construtora AP Ponto
(Processo IPHAN 01514.004837/2017-57), todavia o financiamento foi realizado pela atual
proprietária do terreno, Jussara Elias Gualberto, sendo a Peruaçu Arqueologia Ltda a empresa
de arqueologia responsável pela pesquisa (Relatório de Avaliação de Impacto ao Patrimônio
Arqueológico na Área do Condomínio Ponto Amarilis, 2019).
Figura 3: Planta baixa com projeção das áreas de escavação. Acervo: Peruaçu Arqueologia Ltda. Os quadrados e retângulos
em vermelho e preto, na parte superior, indicam as áreas de escavação; as duas linhas em vermelho e preto indicam um
antigo muro de pedras localizado no terreno
21
trabalho recebemos a visita da proprietária do terreno, Jussara E. Gualberto com a qual foi
realizada uma entrevista, registrada em vídeo por Alexandre Nery (Prefeitura Municipal de
Santa Luzia), em que narra sua história familiar atrelada a própria história do sítio arqueológico.
Doravante, antes de adentrar nos detalhamentos sobre as atividades de campo e laboratório, faz-
se necessário tomar conhecimento sobre as narrativas apresentadas por Jussara para melhor
compreender o contexto do próprio sítio.
Jussara: Quando abriu a rua eles começaram a achar aquelas marcas redondas na rua...
E meu tio pegou essas marcas e tirou o que ele conseguiu tirar na época e guardou. São
esses guardados que tem aí. Depois disso, aqui a gente andava sempre olhando pra baixo
porque a gente procurava esses caquinhos pequeninhos... E meu tio achou muita coisa!
É o que tá ali naquele armário, e que estão nas caixas que vão pro Museu. (Trecho
extraído da entrevista realizada com Jussara em setembro de 2021).
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Figura 4: Lílian Panachuk indicando localização de representação de duas urnas no quadro exposto na casa principal da
Chácara da família Gualberto. Acervo: Peruaçu Arqueologia Ltda, 2022
Com o passar dos anos a família de Jussara, ao realizar benfeitorias no terreno, decide
construir uma piscina. É a partir das movimentações de solo para terraplanagem necessária para
tal construção que a parte superior de duas urnas funerárias foi exposta. Com tal acontecimento,
a família decide por alterar a localização da piscina e constrói duas estruturas circulares de
concreto com tampos de vidro e metal para promover a preservação e expografia das urnas. Os
demais materiais arqueológicos que foram encontrados pela família, tais como os fragmentos
das “marcas redondas” citadas por Jussara foram armazenados em quatro caixas em um dos
cômodos do terreno.
Figura 5: Material organizado em caixas da família Gualberto. Acervo: Peruaçu Arqueologia Ltda, 2022
Ainda foi organizado, pela família, um armário com portas de vidro composto por quatro
prateleiras contendo vestígios arqueológicos com exemplares pré e pós-coloniais. Também
estavam expostos materiais de cunho etnográfico, bibliográfico, paleontológico, botânico e
faunístico. A fama da família por armazenar estes “vestígios antigos” fez com que demais
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pessoas da vizinhança, ao encontrarem vestígios semelhantes, os entregassem para compor a
expografia da família Gualberto.
Figura 6: Cristaleira com expografia de materiais organizados pela família Gualberto. Acervo: Peruaçu Arqueologia Ltda,
2022
24
Figura 7: Croqui de localização das áreas de escavações e benfeitorias na chácara de Jussara Gualberto. Acervo: Peruaçu
Arqueologia Ltda, 2022
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compacto e por isso decidimos começar a escavar a quadra adjacente, M-10, todavia não
localizamos nenhum vestígio de interesse arqueológico.
A única quadrícula não escavada foi N-11 devido a ocorrência de filito aflorado nas quadras
adjacentes N-10 e M-10. Na quadra M-10 ainda abrimos um poço teste com 60cm de
profundidade atestando a constância do afloramento de filito sem ocorrência de material
arqueológico. Ao todo foram coletados 100 fragmentos cerâmicos.
Figura 8: Croqui do final da escavação da área Hebe I. Acervo: Peruaçu Arqueologia Ltda, 2022
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manejo de solo certamente causou impactos ao nível arqueológico e, por isso, a arqueóloga
coordenadora de campo, Lílian Panachuk, sugeriu que eu escolhesse uma nova área para relocar
a quadrícula.
O pedido foi claro, eu poderia escolher a nova localização da quadrícula, mas, para isso,
precisaria apresentar argumentos convincentes de minha escolha. Realizei caminhamentos na
área de entorno para tentar identificar porções do terreno que aparentavam ter sofrido menos
alterações durante a própria construção e melhorias do sítio. Seguindo para a porção sudoeste
o terreno apresentava um declive acentuado, o que direcionou a minha escolha para a porção
Norte, em uma área que aparentava ter sido menos revolvida. Na porção Norte, nas
proximidades da piscina, era possível observar afloramentos de filito e como as escavações na
área Hebe I demonstraram pouca probabilidade de ocorrência de vestígios arqueológicos neste
solo tal área foi desconsiderada. A área escolhida estava à poucos metros da Área Hebe I,
próxima ao muro e em mesmo nível que a rua, indicando que a movimentação de solo naquela
área teria sido menor. Também estava suficientemente distante de uma árvore grande próxima
à piscina, cujas raízes representam bioturbações ao solo e, consequentemente, possíveis
inversões de perfis estratigráficos.
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Figura 9: Croqui área Hebe II, distribuição dos vestígios arqueológicos. Acervo: Peruaçu Arqueologia Ltda, 2022
2.2.3 Orquidário
As escavações na área do orquidário resultaram na abertura de três quadras, nomeadas como
O-1, O-2 e O-3. Nas duas primeiras as intervenções em subsuperfície seguiram até os 40cm
enquanto na terceira chegamos aos 50cm de profundidade sem a ocorrência de nenhum vestígio
de interesse arqueológico. Através da observação do solo pode-se constatar que nesta área havia
sido realizado um aterro e, devido ao alto grau de alteração do solo, uma das quadras apresenta
eletrodutos e encanamento de água, as escavações desta área foram finalizadas.
Mesmo que as escavações não tenham obtido um retorno positivo quanto a ocorrência de
material arqueológico, tais quadras também foram fonte de aprendizado na minha formação
enquanto profissional. Durante a delimitação da área plana de escavação em Hebe I pude
observar a aplicação deste método tão caro a arqueologia, auxiliando as demais pessoas que
estavam fazendo tal atividade. Entretanto, quando voltamos nossa atenção à área do orquidário
a delimitação das quadras foi direcionada a mim, também com a ajuda da arqueóloga Giuliana
Castiglione. Talvez esta etapa possa parecer demasiadamente elementar aos profissionais que
já carregam uma bagagem de experiência de campo com escavações, entretanto, gostaria de
mencionar esta ocasião interpretando-a como a oportunidade de um estudante aplicar, na
prática, o conhecimento obtido previamente sobre os métodos e técnicas da arqueologia, pouco
recorrente durante o meu curso de graduação.
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Figura 10: Detalhes das quadras O-1 e O-2 aos 30cm de profundidade (superior), delimitação da quadra O-3 (inferior
esquerda) e detalhe da quadra O-3 aos 50cm de profundidade (inferior direita). Acervo: Peruaçu Arqueologia Ltda, 2022
Figura 11: Estruturas de concreto com tampos de vidro e metal instalados pela família Gualberto para proteção e expografia
das urnas. Acervo: Peruaçu Arqueologia Ltda, 2022
A etapa final das escavações foi reservada à retirada das urnas localizadas próximas à
piscina da chácara. Como citado acima, as urnas foram evidenciadas durante os trabalhos de
terraplanagem do terreno para a construção da piscina que fora remanejada de localização em
decorrência dos achados (PERUAÇU ARQUEOLOGIA LTDA, 2022). A família, interessada
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nos remanescentes cerâmicos, construiu duas estruturas circulares de concreto com tampos de
vidro e metal permitindo, ao mesmo tempo, a proteção e expografia das urnas.
Ao chegarmos no local, foi possível observar que a parte superior das urnas estava visível,
mesmo que recoberta por uma vegetação rasteira que foi retirada para que pudéssemos inferir
o tamanho dos recipientes: o maior contendo aproximadamente 70cm de diâmetro, nomeado
como Urna 1, e 55cm de diâmetro para o menor, nomeado como Urna 2. Durante as atividades
de campo, minha coordenadora, Lílian Panachuk, permitiu que eu realizasse a escavação da
urna maior enquanto ela própria escavava a urna menor ao meu lado.
Antes de prosseguir gostaria de fazer uma observação pontual sobre sentimentos que me
atravessam ainda hoje. Se é importante contextualizarmos nossas produções, gostaria de
expressar para quem leia este texto uma experiência que não cabe na objetividade científica que
torna nossos corpos invisíveis nas leituras acadêmicas/científicas. Durante toda a graduação eu
imaginava como seria se algum dia eu precisasse escavar uma estrutura funerária pois, para
mim, toda materialidade aponta para alguém, afinal de contas a arqueologia estuda os vestígios
materiais para compreender as dinâmicas sociais das pessoas, todavia, a ideia de lidar com
sepultamentos que, como sugere Cabral (2020) estabelecem redes de socialidade que englobam,
para além de pessoas humanas, outros seres e lugares despertava, e ainda desperta, em mim um
certo incômodo, uma sensação de profanar aquilo que é sagrado. Não imaginava que meu
primeiro trabalho em arqueologia seria justamente escavar não uma, mas duas urnas. Conforme
os dias iam passando e as escavações das demais áreas avançavam essa inquietude de escavar
as urnas se tornava maior e a cada dia eu me questionava se era certo retirarmos um
enterramento para encaixotá-lo em alguma prateleira de museu ou transformá-lo em um ícone
dentro de vitrines para exposições. Constantemente me perguntava como eu, Alex, me sentiria
se soubesse que o enterramento de uma pessoa próxima a mim fosse exumado e guardado em
caixas ou expostos em vitrines. Ao se tratar dos vestígios arqueológicos a indagação que me
surge a partir disso é outra: quanto mais antigo menos humano e mais objeto? Quanto mais
antigo é um enterramento mais liberdade temos para tomar posse dele? São perguntas que não
tenho resposta, mas entendi que, no caso deste sítio, estávamos realizando um salvamento: estes
enterramentos estavam sob risco de destruição para a construção de um condomínio e a retirada
destes remanescentes se fez imprescindível para não deixar que a história dessas pessoas (que
eu nunca conheci) acabasse ali. Entendendo a importância do trabalho realizado, mas sem
perder a sensibilidade de reconhecer a complexidade que é lidar com tais tipos de vestígios
arqueológicos cheguei à conclusão de que era preciso, no mínimo, pedir licença. Pedir licença
30
como quando entramos na casa de alguém, como quando atravessamos a linha que separa o
espaço que é nosso/meu/seu e o espaço que é de outro. E assim o fiz: verbalizei, mesmo que na
forma de um sussurro que mal pudesse ser percebido ao redor, um pedido de licença e prossegui.
Antes que eu pudesse escavar, de fato, Lílian me instruiu em como eu deveria prosseguir:
com o auxílio da colher de pedreiro e demais instrumentos de madeira era preciso retirar os
sedimentos da parte interna das urnas, coletando os fragmentos que fossem encontrados e
sempre deixando a “quadra” nivelada. Percebi o nível de compactação do solo quando vi o
esforço que era empregado pela minha mestra e pude confirmá-lo logo na primeira tentativa de
extração de sedimento. Ajoelhado e utilizando as estruturas de concreto construídas pela família
como apoio me debrucei sobre a Urna 1 e comecei a escavá-la. O solo estava tão compactado
que foi preciso utilizar a ponta mais afiada da colher de pedreiro para conseguir avançar:
começamos fazendo um movimento que partia do centro da urna para as extremidades,
entretanto, tamanho era o empenho físico necessário para que o sedimento fosse desmontado
que, quando rompia, a força que era empregada na colher de pedreiro fazia com que nossos
corpos (tanto o meu quanto de Lílian) avançassem para frente ocasionando uma colisão entre o
instrumento metálico e as paredes das urnas. Diante disso, optei por mudar de estratégia e
comecei a escavar de uma forma diferente da que me foi mostrada: deixei de escavar do centro
para as extremidades da urna para fazer o movimento contrário. Passei a utilizar instrumentos
de madeira para, num primeiro momento, retirar o sedimento próximo às paredes da urna
(escolhi os instrumentos de madeira por eles causarem menos risco de criar ranhuras na
cerâmica se comparados com os instrumentos metálicos). Dessa forma, minha “quadra” ficou
irregular, o centro estava mais elevado que as extremidades e tal feito não passou despercebido
por Lílian que estava escavando a Urna 2 ao meu lado e logo me chamou atenção, perguntando
por que minha escavação não estava nivelada e havia um ponto mais alto que outro. Expliquei
que optei por retirar o sedimento das extremidades primeiro pois poderia acompanhar melhor a
própria morfologia da urna e, delimitando o espaço, poderia utilizar a parte traseira da colher
de pedreiro para retirar o sedimento da parte central em um movimento que partisse da
extremidade para o centro e não ao contrário, do centro para as extremidades como havíamos
começado a escavar. Ela permitiu que eu continuasse dessa forma, me parecendo um pouco
desconfiada. Algum tempo depois percebi que ela própria começou a escavar dessa maneira e
me disse algo como “estou utilizando a metodologia de um amigo meu”, uma espécie de
comentário que foi, ao mesmo tempo, jocoso e afetuoso.
31
Figura 12: Detalhes das atividades de escavação da Urna 1 (esquerda) e Urna 2 (direita). Acervo: Peruaçu Arqueologia Ltda,
2022
Nos últimos dias de campo o arqueólogo André Prous fez uma participação pontual nas
escavações das urnas e concedeu uma entrevista que fora registrada por Alexandre Nery, do
setor de comunicação da Prefeitura de Santa Luzia. Neste dia tive a oportunidade de aprender
com André a fazer o registro das retiradas das escavações das urnas em planta baixa. Dias antes
Lílian já havia insistido para que eu realizasse croquis expeditos das escavações e, novamente,
encontrei muita dificuldade em realizar tarefas corriqueiras para profissionais da arqueologia,
mas que eram completamente novas para mim. O aprendizado foi marcado por tentativas e erros
que alimentavam um sentimento de frustração, mas ao fim e ao cabo a prática foi uma aliada
ao aprendizado e registrei em croquis todas as retiradas das escavações das urnas, identificando
também a profundidade que cada fragmento estava considerando a borda das estruturas como
marco 0.
Figura 13: Participação do arqueólogo André Prous nas escavações. Acervo: Peruaçu Arqueologia Ltda, 2022
32
Figura 14: Registro em croquis das retiradas de materiais provenientes das urnas 1 (esquerda) e 2 (direita). Acervo: Peruaçu
Arqueologia Ltda, 2022
Figura 15: Desenho de campo da retirada 1, Urna 1. Acervo: Peruaçu Arqueologia Ltda, 2022
33
Figura 16: Digitalização das retiradas realizadas na Urna 1. Acervo: Peruaçu Arqueologia Ltda, 2022
34
Figura 17: Detalhes da escavação da Urna 2 e desenho de campo. Acervo: Peruaçu Arqueologia Ltda, 2022
Figura 18: Digitalização das retiradas feitas na Urna 2. Acervo: Peruaçu Arqueologia Ltda, 2022
35
2.3 As atividades de laboratório
As atividades de laboratório iniciaram-se pela curadoria do material que foi lavado em
água corrente com exceção dos fragmentos provenientes das urnas. Após a lavagem, os
vestígios coletados pela família Gualberto foram expostos em mesas para que pudéssemos ter
uma visão ampla da coleção, agrupando os fragmentos cerâmicos em conjuntos baseados em
suas semelhanças e até mesmo remontagens. Na etapa seguinte os fragmentos receberam uma
identificação alfanumérica com a sigla do sítio (SI), seguida de sigla de indicação da
proveniência do material organizado em Coleta da Família (CF) ou escavação (neste caso, após
a sigla do sítio foi marcado o nome da quadra em que o fragmento foi retirado) e por fim uma
identificação numérica sequencial. Seguindo esta metodologia, um fragmento proveniente da
coleção familiar foi identificado como SI.CF.01, e um fragmento proveniente das escavações
realizadas pela equipe de arqueologia, tendo como exemplo a quadra J10, foi identificado como
SI.J10.01.
36
em como utilizar determinadas funções do software e, enquanto ela foi responsável por fazer a
digitalização dos desenhos referentes às retiradas de material da Urna 2, eu fui responsável por
fazer o mesmo para a Urna 1. Aqui, gostaria novamente de salientar os desafios no processo
de aprendizagem: foram necessários vários dias para que eu conseguisse finalizar a
digitalização de apenas uma das retiradas. Sem dúvidas, para mim, foi a etapa mais desgastante
das atividades de laboratório pois a cada tentativa falha o sentimento de frustração se tornava
maior. Agradeço a paciência de minha orientadora que soube me acolher nos momentos em que
a vontade de desistir de aprender parecia maior que a motivação de adquirir conhecimentos
técnicos necessários para a prática arqueológica. Durante todo o meu curso de graduação não
fui apresentado em sala de aula à tais metodologias de registros de campo.
37
Capítulo 3: Santa Inês I, II e III
3.1 As pesquisas de Paulo Junqueira e Ione Malta
Na segunda metade do decênio de 1970, Paulo Junqueira e Ione Malta publicaram na terceira edição
da revista Arquivos do Museu de História Natural um compilado dos resultados de pesquisas realizadas
na região cárstica de Lagoa Santa, Minas Gerais, constituída pelos municípios de Lagoa Santa, Santa
Luzia, Vespasiano, Pedro Leopoldo, Matozinhos e parte de Belo Horizonte e Jaboticatubas
(JUNQUEIRA; MALTA, 1978). Ao todo, foram coletados 6466 cacos cerâmicos provenientes de 29
sítios arqueológicos, incluindo os sítios Santa Inês I, II e III que, segundo os autores, estão localizados à
aproximadamente 2,5km do Rio das Velhas, em sua margem esquerda (id., ibid.) no município de Santa
Luzia – MG.
Junqueira e Malta (1978) informam que ambos os sítios estão localizados em uma mesma colina com
800m de altitude média em área que fora loteada em chácaras. O material cerâmico foi coletado em
superfície “pelos quintais e jardins” e descrito como “cerâmica simples, com engobo vermelho e um único
caso de roletado ungulado (possivelmente intruso em Santa Inês I)” (JUNQUEIRA; MALTA, 1978, p.
140). Os autores também informam que tomaram conhecimento de outros vestígios encontrados nas
proximidades tais como fusos, uma urna inteira e machados polidos, mas nenhuma outra informação é
trazida a respeito destes artefatos.
Com 300m de diâmetro, o sítio Santa Inês I está localizado no topo do morro, há aproximadamente
100m de um córrego já seco na época da publicação de Paulo e Ione que coletaram 212 fragmentos
cerâmicos do sítio em questão. A única descrição relativa aos vestígios coletados é uma pequena frase em
que diz “Predomínio de quartzo e ocorrência de filito.” (JUNQUEIRA; MALTA, 1978, p. 140). O sítio
Santa Inês II é descrito como tendo 200m de diâmetro e localizado “desde o sopé da colina, onde corre
água ainda hoje, até as margens de um segundo córrego que cortava em diagonal a parte média da colina”
(id., ibid.). Deste sítio foram coletados 249 fragmentos cerâmicos que foram descritos apenas como
contendo o mesmo tipo de tempero que aqueles encontrados no Santa Inês I. Por fim, o sítio Santa Inês III
é descrito como tendo 100m² na média encosta da colina, estando situado entre os sítios Santa Inês I e II.
Neste sítio foram coletados 84 fragmentos que, de acordo com os autores, estavam concentrados em
“pequenas manchas escuras de 10m² e 20m², sugerindo conjunto de cabanas.” (JUNQUEIRA; MALTA,
1978, p. 141). O número de manchas que sugerem a existência de cabanas em períodos passados não foi
explicitado. A respeito da caracterização dos vestígios coletados os autores apenas informaram que
apresentavam tempero igual aos demais vestígios coletados em Santa Inês I e II.
Apesar da publicação de Paulo e Ione conter mais de 50 páginas, menos de duas delas são destinadas
à descrição dos sítios Santa Inês I, II, e III, pouco tendo sido informado sobre as características tecnológicas
do material coletado. Durante as etapas do processo de licenciamento ambiental descritas no capítulo
38
anterior, o arqueólogo André Prous (Comunicação pessoal, 2021), nos informou de que os sítios
pesquisados por Junqueira e Malta estavam localizados a poucas centenas de metros de distância da
chácara de Jussara Gualberto e que o material coletado na década de 1970 foi armazenado no Museu de
História Natural e Jardim Botânico da UFMG (doravante, MHNJB-UFMG). Em dezembro de 2021 entrei
em contato com o Setor de Museologia e fui informado de que o material em questão estava armazenado
em sete caixas arquivo e, a partir de então, solicitei autorização para analisar tal material.
3.2 Curadoria
Após aprovação do Setor de Museologia do MHNJB-UFMG o material coletado por Paulo Junqueira
e Ione Malta foi transportado para a Casa da Cerâmica, no Setor de Arqueologia, onde foram realizadas
as atividades de curadoria e análise. Ao abrir as primeiras caixas que armazenavam o material me deparei
com sacos plásticos sujos, assim como o próprio material, portanto, a primeira etapa realizada na Casa da
Cerâmica foi a lavagem de todos os fragmentos que foram higienizados em água corrente com auxílio de
escova de dentes de cerdas macias. Após a lavagem, todo o material foi exposto em bandejas para
secagem. Nesta etapa me deparei com outra curiosidade: as etiquetas de identificação do material não eram
originais de campo, elas foram refeitas em algum momento da história do Museu e as informações
registradas contemplam apenas o nome do sítio (Santa Inês I, II ou III), uma breve descrição do material
que varia entre “Simples grosso”, “Simples fino” e “Engobe vermelho”, o nome “Déborah”, e a data de
coleta do material. Como as etiquetas originais não foram localizadas não posso afirmar que estas
informações são as mesmas registradas por Paulo Junqueira e Ione Malta. Nenhum outro material, tal
como relatório ou anotações de campo, estava junto às caixas.
Após a higienização em água corrente os fragmentos cerâmicos foram triados em conjuntos
estabelecidos pelas suas similaridades em espessura, curvatura, croma e demais características
morfológicas permitindo algumas remontagens respeitando a separação estabelecida por
Junqueira e Malta entre Santa Inês I, II e III. Durante esta etapa pude realizar uma análise visual
de todos os fragmentos e assim conhecer melhor a coleção, separando os cacos muito pequenos
e/ou sem uma das faces que eram pouco informativos. Estas escolhas foram baseadas nos
aprendizados adquiridos durante as atividades de laboratório realizadas com Lílian Panachuk
sobre o material proveniente da coleção familiar de Jussara Gualberto.
39
plásticos em que tais vestígios foram guardados. Todo o material analisado foi devidamente
fotografado e cada fragmento foi organizado sequencialmente de acordo com a numeração
atribuída.
3.3.1 Identificação
O primeiro conjunto de informações registrados na ficha de análise se refere à proveniência
e identificação dos fragmentos. No caso desta coleção, cada fragmento foi discriminado de
acordo com a divisão estabelecida por Paulo Junqueira e Ione Malta entre Santa Inês, I, II ou
III, em seguida os fragmentos receberam uma identificação alfa-numérica com a sigla do sítio
e um número sequencial. Assim, a identificação dos fragmentos provenientes de Santa Inês I
foi iniciada pela sigla SI1, a identificação dos fragmentos provenientes de Santa Inês II recebeu
a sigla SI2 e, por fim, os fragmentos de Santa Inês III receberam a sigla SI3. Também foram
discriminados o número do conjunto5 ao qual o fragmento faz parte, conjuntos estes que foram
triados a partir das similaridades e remontagens entre os cacos em laboratório, bem como a
quantidade total de fragmentos que compõe cada conjunto, a quantidade que fora analisada em
seus detalhes técnicos e a que porção do pote que cada fragmento se refere seguindo a seguinte
ordem:
- Nome do sítio;
- Número do conjunto;
- Identificação da amostra;
- Quantidade total;
- Quantidade analisada;
- Porção do pote:
- Lábio;
5
Os conjuntos representam agrupamentos de fragmentos que, devido suas similaridades e remontagens,
foram considerados como possivelmente provenientes de um mesmo vasilhame.
40
- Borda;
- Base.
3.3.2 Medidas
- Espessura mínima;
- Espessura máxima;
- Variação de espessura;
- Espessura do lábio;
- Diâmetro do fragmento.
41
essa preparação é o processamento da matéria-prima: muitas vezes, ao ser retirada da jazida, a
argila vem acompanhada de galhos, folhas, grãos muito espessos de minerais e outros resíduos
indesejados que precisam ser retirados (MACHADO, 2006).
Tendo sido processada e com a exclusão dos elementos indesejados, é preciso adicionar
outros elementos minerais e/ou orgânicos a essa massa de acordo com as propriedades que a
ceramista deseja para o vasilhame a ser construído: para construir um vasilhame destinado ao
armazenamento de líquidos é ideal que haja a inclusão de elementos fibrosos na pasta, tais como
palhas e raízes, que ajudam a obter uma massa porosa que, permitindo a troca gasosa com o
ambiente, confere ao líquido armazenado uma temperatura amena (PANACHUK, 2021). Caso
o intuito seja o de confeccionar uma panela, é preciso que a pasta de argila tenha resistência
térmica elevada uma vez que o objeto construído estará em constante contato com o fogo para,
por exemplo, a cocção de alimentos. Tal característica pode ser obtida através da inclusão de
elementos minerais (idem). A distribuição da carga na pasta de argila, se homogênea ou não,
nos ajuda a entender sobre os processos de tratamento da argila com a inclusão destes materiais
orgânicos e/ou minerais (BALFET; FAUVET; MONZON, 1983).
A presença de quartzo é algo comum nas pastas de argila, todavia apesar da recorrência nos
materiais cerâmicos, nem sempre podemos interpretar a presença deste mineral como uma
inclusão proposital da ceramista visto que é um elemento historicamente presente nas jazidas.
Uma forma de deduzir se este elemento está naturalmente ou culturalmente associado à argila
é a partir da observação de sua morfologia: apresentando um aspecto anguloso, os fragmentos
de quartzo podem indicar que passaram por uma trituração para a inclusão proposital na pasta
cerâmica, em contrapartida a observação de um aspecto mais arredondado, como um seixo, é
indicativo de uma origem natural (PANACHUK, CRUZ, 2015).
Assim como o quartzo, outros elementos observados na pasta de argila podem não ter sido
resultado de uma escolha proposital da ceramista e, por isso, como sugere Lilian Panachuk
(2021), a terminologia utilizada para se referir à estas partículas deverá ser “carga”, um termo
que engloba tanto aqueles elementos adicionados pela ação humana quanto aqueles
naturalmente encontrados na argila. Outra terminologia recorrentemente utilizada para se referir
aos elementos presentes na pasta é a de “antiplástico”, mas este termo exprime uma ideia de
que tais elementos são acrescentados no intuito de reduzir a plasticidade da argila o que nem
sempre é verdade, como no caso das inclusões de outras argilas com alto nível de plasticidade
(PANACHUK, 2021).
42
Após a preparação da pasta a construção dos recipientes pode ser realizada a partir de
diferentes técnicas de manufatura, tais como o acordelado, a utilização de placas, beliscado,
modelado à mão livre entre outras (LA SALVIA, BROCHADO, 1989). A técnica de produção
utilizada na confecção destes objetos é denunciada pelas quebras e trincas paralelas (RICE,
1987), geralmente observadas nos pontos de fragilidade das junções entre os roletes (ORTON;
HUGHES, 2013). Dentre as técnicas observadas nos registros arqueológicos o acordelado, que
consiste na sobreposição de roletes de argila (LIMA, 1987; CHMYZ, 1976), é recorrentemente
identificado nas coleções pré-coloniais brasileiras (PANACHUK, CRUZ, 2015). Os
fragmentos dos recipientes confeccionados por esta técnica são caracterizados por quebras
paralelas, em alguns casos sendo perceptível a junção dos roletes.
- Técnica de produção;
- Acordelado;
- Modelado;
- Placas;
- Beliscado;
- Moldado;
- Torneado.
- Tipo de carga;
- Distribuição da carga:
- Homogênea;
- Intenso no núcleo;
43
- Intenso na face externa.
44
e o tato para definir em qual categoria este caco melhor se enquadra. Um mesmo caco pode
apresentar mais de um tipo de tratamento de superfície, portanto, na ficha de análise este campo
permite uma resposta múltipla. Em suma, os tratamentos superficiais foram organizados da
seguinte maneira:
- Polido;
- Barbotina;
- Reboco;
45
normalmente variam entre o vermelho, preto e branco. Além de identificar e descrever o tipo
de técnica de modificação de croma e/ou relevo a ficha de análise reserva um campo destinado
a registrar em qual porção do pote tal modificação se encontra.
46
3.4 Análise descritiva
Ao todo, foram coletados, por Paulo Junqueira e Ione Malta, 545 fragmentos cerâmicos
provenientes dos sítios arqueológicos Santa Inês I, II e III. A quantidade mais expressiva é
referente ao Santa Inês II, onde foram coletados 249 fragmentos, seguido do Santa Inês I (212
fragmentos) e Santa Inês III (84 fragmentos).
50% 46%
39%
40%
30%
20% 15%
10%
0%
Santa Inês I Santa Inês II Santa Inês III
50%
42%
40%
33%
30% 25%
20%
10%
0%
Não analisados Análise qualitativa Análise tecnológica
A partir de 47 fragmentos foi possível realizar 18 remontagens que foram analisadas como
um único exemplar. Ou seja, se um conjunto apresenta a remontagem de 3 fragmentos, estes 3
47
foram analisados coletivamente como uma única amostra. Dessa forma, para fins de análise,
foram considerados 153 fragmentos analisados em suas características tecnológicas.
Em cada um dos fragmentos analisados foi medida a espessura máxima e mínima, expressa
pelo gráfico abaixo. A partir destes dados pode-se observar duas curvas que indicam uma
tendência de fragmentos mais finos, entre 3mm e 5mm, e mais espessos entre 14mm e 18mm.
20
15
10
0
3mm
4mm
5mm
6mm
7mm
8mm
9mm
17mm
22mm
10mm
11mm
12mm
13mm
14mm
15mm
16mm
18mm
19mm
20mm
21mm
23mm
24mm
Mínima Máxima
Tal constatação me fez refletir sobre uma coleção de fragmentos associados à tradição
Tupiguarani, proveniente do município de Ipanema – MG, que tive contato ao longo do curso
de graduação. Era visualmente perceptível uma variação de espessura espantosa nestes
fragmentos que são associados à uma tradição cuja complexidade, expressa em seus diferentes
tipos de pinturas e modificações de relevo, atraiu diferentes pesquisadores e pesquisadoras ao
longo dos estudos arqueológicos produzidos em território brasileiro. Não questiono aqui a
complexidade dos remanescentes que compõem a Tradição arqueológica Tupiguarani, mas é
certo que a complexidade da cerâmica Aratu-Sapucaí repousa em atributos que até então não
estavam sendo observados.
60%
48%
50%
40%
31%
30%
20% 12%
10% 7%
1% 1%
0%
0 1 2 3 4 5
De modo geral esta é uma coleção formada por cacos pequenos e médios, tendo sua maior
representatividade os fragmentos de até 5cm, seguido dos cacos entre 6 e 10cm. A ocorrência
de fragmentos maiores que 10cm é baixa e quase inexistente para fragmentos superiores a
16cm.
49
80%
65%
60%
44%
40%
40% 31%
20% 14%
4%
0% 2%
0%
Até 5cm Entre 6 e 10cm Entre 11 e 15 Entre 16 e 20
7%
93%
50
análises foi observado que parte dos fragmentos foram confeccionados com argilas sem a
presença de mica. Através da presença e ausência deste material entre os fragmentos podemos
inferir que esta comunidade de prática estava utilizando mais de uma fonte de argila para a
confecção dos recipientes aqui analisados.
Código Carga
A Quartzo Silica amorfa 1%
B Feldspato Filito 13%
C Mica Carvão 32%
Minerais silicatos diversos 100%
D Óxido de ferro
Óxido de ferro 65%
Minerais silicatos
Mica 83%
F diversos
Feldspato 1%
J Carvão Quartzo 100%
M Filito
0% 20% 40% 60% 80% 100% 120%
N Silica amorfa
Gráfico 8: Ocorrência na pasta cerâmica
A realidade dos cacos indica uma composição de minerais já presentes na fonte: quartzo,
minerais silicatos, mica (AFC) e ainda a combinação com óxido de ferro (AFCD) como mais
expressivas. A presença de carvão é expressiva em combinação (AFCDJ). Isso vale para a pasta
com presença de mica (código C) majoritária em combinação, e uma parcela pequena (17%)
em que este mineral não é observado na composição da pasta que deve indicar ao menos duas
pastas diferentes. Retirar os pequenos pontos de mica é tarefa impossível, portanto pode-se
indicar essa hipótese, através da análise tecnológica.
51
0% 5% 10% 15% 20% 25%
ACDF 1%
ACDFM 1%
ACF 2%
ACFD 1%
ADCF 1%
ADF 1%
ADFC 1%
ADFCJ 1%
AF 1%
AFB 1%
AFC 20%
AFCD 22%
AFCDE 1%
AFCDJ 8%
AFCDM 3%
AFCDN 1%
AFCJ 5%
AFCJD 1%
AFCJM 4%
AFCM 1%
AFD 7%
AFDC 5%
AFDCJ 4%
AFDCJM 1%
AFDJ 3%
AFDJC 1%
AFDJM 1%
AFDM 1%
AFJ 2%
[NI] 2%
52
120%
97%
100%
80%
60%
40%
20%
2% 1%
0%
Não identificado anguloso e sub- anguloso, sub-
anguloso anguloso e rolado
Em sua maioria (86%), os fragmentos apresentam pasta composta por médias inclusões
(20% de carga): 23% com a inclusão de grãos finos (até 1mm de diâmetro), 54% com grãos
médios (até 3mm de diâmetro) e 10% com a inclusão de grãos grossos (acima de 3mm). As
pastas com alta inclusão foram observadas em 9% da amostra analisada, enquanto aquelas com
baixa inclusão foram observadas em apenas 3% dos fragmentos. Devido ao acúmulo de crosta
sedimentar nas quebras, em 3 fragmentos não foi possível observar a porcentagem e diâmetro
de grãos na composição da pasta cerâmica. Ainda pode-se observar que existe uma maior
concentração destes grãos no núcleo dos fragmentos, fato que pode ser explicado pelo
alisamento e polimento aplicado aos recipientes uma vez que tais tratamentos de superfície
movimentam as partículas maiores presentes na pasta de argila para o interior dos cacos.
Alta e grosso 1%
Alta e média 7%
Alta e fina 1%
Média e grosso 10%
Média e médio 54%
Média e fino 23%
Baixa e grosso 0%
Baixa e médio 1%
Baixa e fino 2%
Não identificado 2%
53
Intenso na Face Externa 0%
Homogênea 3%
Não identificado 2%
Dos 153 fragmentos analisados, 122 deles, o que corresponde a 80% da amostra, apresentam
aspecto ocre nas superfícies e núcleo acinzentado, comumente descrito nas bibliografias como
“queima incompleta”, “queima mau controlada’ ou mais recentemente como “oxidante com
núcleo reduzido”. Existe uma inadequação na aplicação destas três terminologias que
pretendem descrever algum aspecto relacionado a queima de objetos cerâmicos. A primeira
delas, “queima incompleta” não condiz com a realidade expressa pela materialidade: se o objeto
feito de argila foi transformado em cerâmica a queima cumpriu com seu propósito e por isso
não pode ser descrita como “incompleta”. A segunda, “queima mau controlada”, não representa
a realidade da prática oleira: uma das etapas fundamentais da produção de ceramistas é a
transformação da argila em cerâmica pela ação do fogo que deve ser cuidadosamente
controlado. A temperatura do fogo deve ser elevada gradualmente para que as moléculas de
água presentes no interior dos recipientes saiam com o menor risco de ocasionarem trincas e
quebras, além disso, o fogo deve alcançar uma temperatura suficientemente elevada e pelo
tempo necessário para que haja a transformação da argila em cerâmica. Portanto, o sucesso de
uma queima depende da maestria da oleira em negociar/controlar não só o fogo, mas também
a água (presente na própria argila), a terra e o ar para metamorfosear os corpos feitos em argila
transformando-os em corpos cerâmicos. Por fim, as terminologias que utilizam conceitos como
“oxidação” e “redução” pressupõem um conhecimento sobre a movimentação de elétrons que
não sabemos, ao certo, como ocorre.
Fato é que a maioria absoluta dos fragmentos analisados são caracterizados pelo núcleo com
aspecto acinzentado e faces ocre, mas é difícil afirmar que este aspecto visual foi norteador nos
processos de queima pois, como já argumentei anteriormente, existem casos em que as
ceramistas batem nas peças e a partir do som emitido por elas é possível averiguar o sucesso da
queima: as peças transformadas em cerâmica produzem um som “metalizado” em contraste
com o som opaco das peças ainda cruas (COSTA, et al 2021). Tal fato serve para ilustrar que,
54
por mais que utilizemos a visão como sentido primordial para a análise de materiais
arqueológicos, outras epistemologias podem não compartilhar deste ocularcentrismo.
Menos constantes são as ocorrências de fragmentos com aspecto ocre apenas na face externa
(9%) e vice-versa (1%). Em 12 fragmentos foi observada coloração ocre tanto nas faces quanto
no núcleo (8%).
Completamente acinzentadas 0%
Totalmente ocre/clara 8%
Não identificado 2%
Quanto ao tratamento de superfície aplicado nas peças existe uma constância do alisamento,
sendo dividido entre fino, médio e grosso a partir de uma comparação entre os fragmentos da
própria coleção analisada. O alisamento fino ocorre majoritariamente na face interna (26%),
todavia, de maneira geral, o alisamento médio é o mais comum, sendo observado tanto na face
interna (52%) quanto na face externa (58%). A aplicação de barbotina (calda de argila mais
fina) e polimento são observados em uma porcentagem diminuta da amostra analisada.
Tratamento de superfície
Código Legenda FI %FI FE %FE
0 Não identificado 0 0% 1 1%
A Alisado fino 36 24% 21 14%
AD Alisado fino, polido 1 1% 1 1%
AF Alisado fino, barbotina 1 1% 1 1%
B Alisado médio 78 51% 87 57%
BF Alisado médio, barbotina 1 1% 1 1%
C Alisado grosso 35 23% 40 26%
D Polido 1 1% 1 1%
55
Polido
Alisado grosso
Alisado médio
Alisado fino
Não identificado
56
Foto 1: Fragmento cerâmico com impressão de folha na face externa
Analisando separadamente cada uma das faces, observa-se uma preferência pela aplicação
de tintas na face externa, ocorrendo em 18% dos fragmentos, já na face interna a alteração de
croma está presente em 6% da amostra.
94%
100%
81%
80%
60%
40%
18%
20% 6%
0% 1%
0%
Não identificado Crômica Relevo
Figura 19: Face interna do fragmento com presença de decoração plástica na face externa
57
Figura 20: Face externa do fragmento com decoração plástica ponteada
As alterações na croma dos fragmentos foram aplicadas variando em tipo e cor. Para as
faces internas, a aplicação do engobe, caracterizada como uma tinta a base de argila que cria
espessura na superfície (PANACHUK, 2021), foi observada em 3 fragmentos (2%),
exclusivamente na cor branca. Nas faces externas a aplicação de engobe aparece tanto na cor
branca quanto vermelha (1 fragmento de cada). Ao que indicam os dados, existia uma
preferência nessa comunidade de prática na utilização de aguadas, caracterizadas como tintas a
base de água que não criam espessura nas superfícies em que é aplicada. Estas aguadas ocorrem
exclusivamente na cor vermelha, sendo observadas na face interna de 6 fragmentos (4%) e na
face externa de 25 dos cacos analisados (16%). A obtenção de engobes brancos pode ser feita
através da utilização de caulim, uma argila branca, já os pigmentos vermelhos podem ser
obtidos através da utilização de compostos minerais tais como os óxidos de ferro. Apesar de
não terem sido aplicadas nesta pesquisa, análises capazes de identificar os elementos utilizados
na produção de tais pigmentos podem ser uma possibilidade de compreender como estas
pessoas estavam se apropriando de diferentes matérias para a produção de tintas.
94%
100%
82%
80%
60%
40%
16%
20%
2% 1% 4% 0% 1%
0%
Engobe branco Aguada Engobe Não
vermelha vermelho identificado
58
majoritariamente na porção que se refere ao lábio (56%), seguido do bojo (44%). Para a face
externa, 21% das ocorrências estão localizadas no lábio, havendo maior concentração na área
do bojo (superior e mesial) correspondendo a 79% dos fragmentos com alterações de croma ou
relevo. Em nenhum dos cacos constatou-se ocorrência de alterações na croma de base e bojo
inferior.
Lábio
Lábio e borda
Borda e bojo superior
Bojo superior e bojo médio
Bojo
Dos 153 fragmentos analisados, 35 apresentam lábio e foram observados em sua morfologia
e espessura. Em 94% dos fragmentos com presença de lábio, que corresponde a 33 cacos, foi
59
observada uma morfologia arredondada, enquanto em apenas 6%, que corresponde a 2
fragmentos, foi observada uma morfologia apontada.
Apontado 6%
1%
Arredondado 94%
22%
Não se aplica 0%
77%
Grande parte dos lábios analisados apresentam uma espessura entre 2 e 3mm (46%).
Observando os intervalos regulares de espessura a maioria absoluta (60%) apresenta espessura
de até 5mm, 20% deles apresentam espessura entre 6 e 10mm e outros 20% estão entre 11 e
18mm.
35% 31%
30%
25%
20% 14%
15% 11%
9%
10% 6% 6% 6%
3% 3% 3% 3% 3% 3%
5%
0%
8mm
13mm
1mm
2mm
3mm
4mm
5mm
7mm
10mm
12mm
14mm
15mm
18mm
60
80% 71%
60%
40%
21%
16%
20%
3% 6% 5%
1% 1%
0%
Linear Linear, expandida Expandida Contraída
Amostra total Amostra de bordas
Gráfico 20: Espessamento da borda em porcentagem total e em relação aos fragmentos de borda
100%
76%
80%
60%
40%
17% 18%
20% 4% 6%
1%
0%
Direta Introvertida Extrovertida
Fazendo uma relação entre os dados de morfologia e espessamento podemos observar uma
preferência por bordas lineares-diretas (56%), seguida das bordas contraídas-diretas (15%) e
lineares-introvertidas (9%). As bordas expandidas-diretas e contraídas-introvertidas
representam 6% cada. Por fim, um único fragmento (3%) que apresenta espessamento linear e
expandido simultaneamente é caracterizado por uma morfologia introvertida.
20 19
15
10
5
5 3 2 2 2
1 0 0
0
Linear Expandida Linear, Contraída
expandida
61
Com o auxílio de um ábaco, cada um dos fragmentos de borda foi medido possibilitando
projetar a circunferência de abertura dos recipientes inteiros. Conforme mostram os dados
coletados, tais fragmentos apontam para uma amplitude de abertura de recipientes inteiros que
partem de 11cm até 62cm de diâmetro.
0
11cm
12cm
14cm
18cm
20cm
22cm
26cm
28cm
30cm
32cm
36cm
40cm
46cm
48cm
50cm
52cm
54cm
56cm
62cm
Gráfico 23: Diâmetro dos fragmentos de borda
17%
33%
17%
33%
62
35% 30%
30%
25% 20% 20%
20%
13%
15% 10%
10% 7%
5%
0%
Piriforme Cuia alta Cuia Cuia baixa Tigela Globular
média
30%
24%
14%
14%
9%
8%
5%
4%
3%
3%
3%
2%
1%
1%
1%
1%
1%
0%
0%
0%
0 A AB ABC AC B BC BCD C CD D
Tabela 3: Marcas de uso por quantidade e porcentagem nas faces internas e externas
63
Os vestígios de produção mais observados foram as marcas de roletes (tanto nas quebras
quanto nas superfícies em que eram perceptíveis as protuberâncias dos roletes) e as impressões
de dedo que ocorrem na maioria absoluta dos fragmentos analisados. As sobreposições de
estrias de alisamento estão presentes em 39% das faces internas e 38% das faces externas, já as
facetas de polimento ocorrem em 5% e 7% das faces internas e externas respectivamente. As
interrupções de alisamento são observadas em 11% das faces externas e em apenas 1% (que
corresponde a apenas 1 fragmento) das faces internas. Outras marcas foram encontradas em
menores quantidades como indica o gráfico abaixo. Na ficha de análise as impressões de dedos
foram atribuídas aos vestígios de produção, todavia, ao ter uma visão mais ampla da coleção
podemos inferir uma intencionalidade na construção de relevos marcados pelas impressões de
dedos.
Marcas de rolete
Interrupção de alisamento
Sobreposição de facetas de polimento
Sobreposição de estrias
Impressão de dedo
Bolha de ar
Sulco
Fuligem de queima
Folha
Não identificado
Figura 23: Detalhes para quebras de fragmento com evidências de junção (esquerda) e movimentação de argila para
obliteração de roletes (direita)
De modo geral, esta coleção é formada por fragmentos cujo estado de conservação é
caracterizado pela presença de erosões (89% das faces internas e 96% das faces externas),
64
crostas sedimentares (69% das faces internas e 75% das faces externas) e negativos de carga
(91% das faces internas e 95% das faces externas). Outros vestígios ocasionados por processos
pós-deposicionais estão listados no gráfico abaixo.
Bem conservado 3%
1%
Erodido 89%
96%
Superfície ausente 7%
7%
Fuligem pós-deposicional 1%
1%
Radículas 18%
11%
Fungos 0%
1%
Trinca 1%
1%
Craquele 5%
7%
Crosta de filito 0%
1%
Ranhuras 8%
10%
Face interna Face externa
A partir dos dados apresentados nesta sessão podemos delinear certos aspectos que definem
esta coleção. De modo geral, trata-se de uma comunidade de prática com alto rigor técnico em
suas confecções, apresentando recipientes construídos pela sobreposição de roletes, com
superfícies bem alisadas e altamente regulares em sua espessura. As alterações crômicas são
pouco recorrentes (o que deve ser interpretado como uma escolha pautada na valorização da
cor dos potes e não como uma inaptidão da ceramista) e quando aparecem são observadas em
65
recipientes com morfologias de cuias médias e baixas, tigelas e globulares, todavia não foram
localizadas em recipientes piriformes ou em cuias altas.
66
Capítulo 4: Unicidade ou multiplicidade?
Durante as atividades de campo realizadas entre os meses de agosto e setembro de 2021 na chácara
de Jussara Gualberto, as informações dadas por André Prous (Comunicação pessoal, 2021) em relação à
proximidade entre a chácara e o local onde Pedro e Ione coletaram os vestígios arqueológicos de Santa
Inês I, II, e III me instigaram a pensar na hipótese de que estas coleções seriam provenientes de uma mesma
ocupação. A partir disso, neste capítulo me dedicarei ao objetivo central desta monografia que repousa em
discutir uma unicidade ou multiplicidade de ocupações a partir de uma análise comparativa entre as
coleções citadas acima. Por fim, trago uma reflexão sobre os estereótipos que até então vinham sendo
empregados nas cerâmicas Aratu-Sapucaí, recorrentemente descritas pela ausência de alterações de croma
e relevo consideradas complexas. Ao longo dos últimos meses me dediquei a estudar estes cacos não pela
ausência disso ou daquilo, mas sim em seus detalhes técnicos que relevam complexidades que passaram
despercebidas por aqueles que os classificaram como “cerâmica simples”.
0%
Análise tecnológica Análise qualitativa Não analisado
67
8% das amostras de CJ e 4% dos fragmentos provenientes da coleção SI. Cada fragmento pode apresentar
mais de uma porção do pote e por isso a somatória das porcentagens no gráfico abaixo ultrapassa 100%.
80% 69%
57%
60% 45%
45% 44%
40%
23% 22% 24%
20% 10%
5% 4% 8%
0%
Lábio Borda Bojo Bojo Bojo Base
Superior Inferior
Apesar de haver uma pequena diferença entre os intervalos de espessura mínima e máxima dos
fragmentos, ambas as coleções apresentam uma curva muito similar, conforme ilustram os gráficos
abaixo. Em ambas as coleções os picos de espessura mínima estão entre 4 e 6mm (22% para SI e 31%
para CJ) e entre 15 e 17mm (29% para SI e 19% para CJ). Já para as espessuras máximas as maiores
concentrações de fragmentos estão entre 5 e 6mm (16% para SI e 19% para CJ) e entre 15 e 19mm (44%
para SI e 25% para CJ).
16%
14%
12%
10%
8%
6%
4%
2%
0%
5mm
3mm
4mm
6mm
7mm
8mm
9mm
10mm
15mm
20mm
25mm
11mm
12mm
13mm
14mm
16mm
17mm
18mm
19mm
21mm
22mm
23mm
24mm
26mm
27mm
-2%
68
14%
12%
10%
8%
6%
4%
2%
0%
3mm
4mm
17mm
30mm
31mm
5mm
6mm
7mm
8mm
9mm
10mm
11mm
12mm
13mm
14mm
15mm
16mm
18mm
19mm
20mm
21mm
22mm
23mm
24mm
25mm
26mm
27mm
28mm
29mm
-2%
Ao comparar a variação de espessura em cada caso de análise pode-se observar que as duas
coleções são compostas por fragmentos caracterizados por uma constância em sua espessura, em alguns
casos não foi possível observar nenhuma variação ao longo de toda a espessura da amostra (12% para SI
e 16% para CJ). A quase totalidade das coleções apresenta uma variação igual ou inferior a 2mm de
espessura (91% e 72%), sendo raros os casos em que esta variação seja superior a 5mm (1% e 7%). Estes
dados, somados aos demais aspectos técnicos aqui apresentados, sugerem que ambas as coleções podem
ser provenientes de uma mesma comunidade de prática cujo rigor técnico na confecção de tais recipientes
é uma característica predominante.
60%
48%
50%
34%
31%
40%
22%
30%
18%
16%
12%
20%
7%
5%
3%
10%
1%
1%
1%
1%
0%
0%
0%
0 1 2 3 4 5 6 7
69
2mm para SI e 4mm para CJ convergindo com os dados obtidos sobre o espessamento das bordas e
espessura dos fragmentos. Como mostrado acima, grande parte dos fragmentos de SI possuem uma
espessura mínima de 4mm e 21% das bordas contraídas, com uma variação de espessura concentrada
entre 1 e 2mm (79% das amostras) é observado que os lábios desta coleção apresentam maior
concentração entre 2mm e 3mm (45%) de espessura. Os fragmentos provenientes de CJ, por sua vez,
apresentam pico de espessura mínima em 6mm e 49% dos fragmentos de bordas contraídas, com uma
variação de espessura também concentrada entre 1 e 2mm (56% das amostras) é observado que os lábios
desta coleção apresentam maior concentração entre 3mm e 4mm de espessura (34%).
31%
35%
30%
21%
25%
14%
20%
13%
11%
15%
9%
9%
6%
6%
6%
6%
6%
10%
5%
5%
5%
5%
4%
4%
3%
3%
3%
3%
3%
3%
3%
3%
3%
3%
3%
1%
1%
5%
0%
0%
0%
0%
0%
0%
0%
0%
0%
0%
0%
0%
0%
0%
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 24
80% 71%
40%
21%
20% 6% 3%
3% 0% 0% 1%
0%
Linear Linear, Expandida Contraída Reforçada
expandida externa
70
100%
76%
80%
55%
60% 45%
40%
18%
20% 6%
0%
0%
Direta Introvertida Extrovertida
Através das projeções de recipientes inteiros (30 para SI e 83 para CJ) constata-se uma preferência
pelas morfologias de cuias e tigelas (80% para SI e 58% para CJ). Os recipientes piriformes são observados
em 25% das amostras de CJ, o que corresponde a 21 casos de análise que permitiram a projeção do
recipiente inteiro, enquanto ocorrem em menor quantidade (13% ou 4 fragmentos) na coleção SI. Os
recipientes globulares seguem a mesma tendência, totalizando 14 e 2 casos de análise para CJ e SI
respectivamente.
40%
30%
25%
24%
30%
20%
20%
17%
17%
13%
20%
11%
10%
7%
6%
10%
0%
Piriforme Cuia alta Cuia Cuia baixa Tigela Globular
média
Biplana
côncava
Convexa-
côncava
Plano-
Não
71
Em ambas as coleções a técnica de manufatura observada é, em quase sua totalidade, a
sobreposição de roletes (93% para SI e 94% para CJ). Nos fragmentos coletados por Junqueira e Malta
não foram identificadas outras técnicas de produção, todavia, nos fragmentos da Coleção Jussara foram
identificados casos de aplicação de placas em conjunto com a sobreposição de roletes (17%), o modelado
ocorre em 6% dos casos e raros são os casos de marcas de torno6 e paleteado (1% para cada).
Acordelado 93%
73%
Modelado 3%
Acordelado, modelado 3%
Modelado, placa 1%
Torneado 1%
Acordelado, modelado,
paleteado 1%
Não identificado 7%
2%
Ao analisar e comparar a carga das pastas de argila pode-se observar uma coerência na
composição dos elementos presentes nas pastas de ambas as coleções. Os compostos minerais
representam a quase totalidade das cargas, sendo o quartzo o elemento comum em todos os fragmentos
analisados seguido dos minerais silicatos diversos que estão presentes em 100% das amostras da Coleção
Santa Inês e em 94% dos fragmentos provenientes da Coleção Jussara. O óxido de ferro e a mica
apresentam uma pequena variação de concentração, o primeiro estando presente em 75% e 65% das
amostras e o segundo em 68% e 83% de CJ e SI, respectivamente. O filito ocorre mais pontualmente em
ambas as coleções (13% para SI e 14% para CJ). Com as atividades de campo realizadas em 2021, no
bairro Chácaras Santa Inês, onde está localizada a propriedade de Jussara, pude constatar a ocorrência de
afloramentos de filito na região. Este dado alinhado às ocorrências pontuais nos fragmentos cerâmicos me
leva a crer que trata-se de um elemento que esteja naturalmente associado à jazida de argila e não uma
adição proposital da ceramista na preparação da pasta para a confecção dos recipientes cerâmicos. Os
vestígios de carvão estão presentes em 32% das amostras da Coleção Santa Inês e em 18% das amostras
da Coleção Jussara. Mais raras são as presenças de sílica amorfa (1% para SI e 11% para CJ) e feldspato
6
São dois fragmentos intrusos na coleção.
72
(1% em cada coleção). Por fim, o chamote e a adição de outras argilas foram identificados exclusivamente
nos fragmentos provenientes da Coleção Jussara, presentes em 2% e 1% respectivamente.
Silica amorfa
Filito
Chamote
Carvão
Argila
Óxido de ferro
Mica
Feldspato
Quartzo
O quartzo, mineral constante nas amostras de ambas as coleções, apresenta-se com diferentes
aspectos. Em sua quase totalidade este elemento aparece com aspectos anguloso e sub-anguloso em um
mesmo fragmento.
120% 97%
100% 84%
80%
60%
40%
9%
20% 2% 0% 0% 5% 0% 0% 1% 1% 1%
0%
Não Anguloso Sub-anguloso Sub-anguloso, Anguloso e Anguloso,
identificado esférico sub-anguloso sub-anguloso
e esférico
De modo geral as pastas de argila utilizadas na confecção dos vestígios cerâmicos de ambas as
coleções apresentam médias inclusões (20% de carga) variando na espessura das partículas. Para a
Coleção Santa Inês, 87% dos fragmentos analisados apresentam uma média inclusão de cargas: 23% com
grãos finos, de até 1mm de espessura, 54% com grãos médios, entre 1 e 3mm de espessura, e 10% com a
presença de grãos grossos, maiores que 3mm. Para a Coleção Jussara 83% dos fragmentos analisados
também apresentam uma média inclusão, estando os grãos grossos presentes em 37% das amostras,
73
seguido dos grãos médios em 32% e em 14% foram identificados grãos finos. As baixas e altas inclusões
ocorrem infimamente.
60% 54%
50% 37%
40% 32%
30% 23%
20% 14% 10%
5% 7% 5%
10% 2% 1% 2% 1% 3% 1% 0% 1% 1%
0%
Coleção Santa Coleção Coleção Santa Coleção Coleção Santa Coleção
Inês Jussara Inês Jussara Inês Jussara
Grãos finos Grãos médios Grãos grossos
A quase totalidade dos fragmentos analisados apresenta uma concentração de cargas intensa no
núcleo (89% para Coleção Jussara e 93% para Coleção Santa Inês). Este aspecto certamente está
relacionado ao alisamento fino e polimento aplicado nos recipientes uma vez que a fricção de um
instrumento com parte ativa arredondada para a aplicação destes tratamentos de superfície movimenta as
partículas das cargas para o núcleo das peças. Em apenas 2 fragmentos, ambos da Coleção Santa Inês,
pode-se observar uma concentração de cargas intensa na face interna, todavia estes casos podem estar
relacionados a processos de erosão das faces internas, evidenciando parte do núcleo e, consequentemente,
uma maior quantidade de partículas de carga. A distribuição homogênea ocorre em 10% dos casos de
análise de CJ e em apenas 3% das amostras de SI.
Homogênea 10%
3%
Não identificado 1%
2%
Também foram comparados os aspectos visuais da ação do fogo nos fragmentos. Em sua grande
maioria (80% para a Coleção Santa Inês e 56% para Coleção Jussara) os cacos apresentam faces ocre com
núcleos acinzentados, o inverso ocorre exclusivamente em CJ em apenas 3% das amostras. Os fragmentos
totalmente acinzentados também ocorrem de maneira exclusiva nos fragmentos provindo da coleção
familiar de Jussara (11%). Menos populares são os fragmentos com a face externa ocre e a face interna
74
acinzentada (9% para SI e 13% para CJ) e aqueles que apresentam coloração ocre deste o núcleo às
superfícies (8% para SI e 5% para CJ).
Completamente acinzentadas
Totalmente ocre/clara
Não identificado
Gráfico 43: Comparação dos aspectos visuais da ação do fogo nos fragmentos
60%
50%
31%
40%
25%
23%
30%
13%
20%
9%
5%
2%
1%
1%
1%
1%
10%
0%
0%
0%
0%
Não Alisado fino Alisado Alisado Polido Tratamento Barbotina Reboco
identificado médio grosso carbônico
pós-queima
Gráfico 44: Comparação entre o tratamento de superfície aplicado nas faces internas dos fragmentos
75
80%
58%
48%
60%
26%
26%
40%
15%
14%
12%
10%
20%
2%
1%
1%
1%
1%
0%
0%
0%
0%
Não Alisado fino Alisado Alisado Polido Tratamento Barbotina Reboco
identificado médio grosso carbônico
pós-queima
Gráfico 45: Comparação entre o tratamento de superfície aplicado nas faces externas dos fragmentos
As técnicas de modificação de croma e relevo são pouco recorrentes, indicando tratar-se de uma
comunidade de prática que, mesmo com aptidão para a aplicação de tais técnicas como demonstram
alguns fragmentos de ambas as coleções, valoriza a cor resultante da sinterização da pasta de argila e a
construção de relevos lisos. Quando ocorrem, estão mais concentradas nas faces externas, sendo as
alterações de croma presentes em 18% e 6% das faces externas dos fragmentos provenientes de SI e CJ,
respectivamente. Nas superfícies internas estas modificações de croma são observadas em 6% das
amostras de SI e em 3% das amostras de CJ. As modificações de relevo ocorrem exclusivamente nas faces
externas, de forma diminuta, em apenas um caso de análise dos fragmentos provindos de SI e em 3 casos
de análises dos fragmentos de CJ. Vale ressaltar que se aplicarmos essa porcentagem considerando a
totalidade dos fragmentos das coleções e não só aqueles submetidos às análises tecnológicas, a proporção
de ocorrências de alteração de croma e relevo se tornam ainda mais diminutas.
94% 97%
100%
80%
60%
40%
20% 6% 3% 0% 0%
0%
Não identificado Crômica Relevo
Gráfico 46: Comparação entre técnicas de alteração de croma e relevo nas faces internas
76
100% 92%
81%
80%
60%
40%
18%
20% 6%
1% 2%
0%
Não identificado Crômica Relevo
Gráfico 47: Comparação entre técnicas de modificação de croma e relevo nas faces externas
Dentre todos os fragmentos coletados por Paulo e Ione apenas um apresenta alteração de relevo
ponteada na face externa. Já nos fragmentos coletados pela família de Jussara Gualberto, são observados
11 fragmentos com a ocorrência de relevos acanalados (2 deles estando associados a incisos) e 3
fragmentos com aplicação de incisões.
0% 10% 20% 30% 40% 50% 60% 70% 80% 90% 100%
Ponteado 1%
0%
Inciso 0%
1%
Acanalado 0%
5%
Inciso e acanalado 0%
1%
Gráfico 48: Comparação entre as técnicas de modificação de relevo nas faces externas
77
provenientes de CJ observa-se a ocorrência de uma crosta preta em ambas as faces de um mesmo
fragmento.
5%
4%
4%
3% 2%
2%
2%
1% 1%
0% 0% 0% 0%
0%
Engobe branco Aguada Engobe Crosta preta
vermelha vermelho
Gráfico 49: Comparação entre as técnicas de modificação de croma nas faces internas
20% 16%
15%
10% 6%
5%
1% 0% 1% 0% 0% 1%
0%
Engobe branco Aguada Engobe Crosta preta
vermelha vermelho
Gráfico 50: Comparação entre as técnicas de modificação de croma nas faces externas
Por fim, o último aspecto submetido à análise comparativa diz respeito aos vestígios de uso
identificados nas coleções. As marcas petalares, identificadas como vestígios de fermentação, foram
observadas exclusivamente nas faces internas (2% para Coleção Jussara e 7% para Coleção Santa Inês).
Mais frequentes são os aspectos de faces ocres em decorrência do uso (51% das faces internas e 63% das
faces externas de CJ e 38% das faces internas e 44% das faces externas de SI), seguidos dos aspectos
acinzentados em decorrência do uso (44% das faces internas e 48% das faces externas de CJ e 25% das
faces internas e 28% das faces externas de SI). Os depósitos carbônicos ocorrem em maior quantidade nas
faces externas (12%) do que nas faces internas (5%) dos fragmentos da Coleção Santa Inês, na Coleção
Jussara estas marcas aparecem em 25% de ambas as faces.
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Não identificado 21%
41%
Fermentação 2%
7%
Aspecto ocre 51%
38%
Aspecto acinzentado 44%
25%
Depósito carbônico 25%
5%
Gráfico 51: Comparação entre os vestígios de uso identificados nas faces internas
Gráfico 52: Comparação entre os vestígios de uso identificados nas faces externas
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I, II e III. Jussara, ao narrar sobre a construção da chácara que herdara de sua família, conforme exposto
no capítulo 2, revela que, além das duas urnas localizadas próximas à piscina da propriedade, durante a
abertura de via de acesso foram localizadas mais duas urnas cerâmicas que foram coletadas por seu tio
(ver Figura 2). Esses achados antecedem a pesquisa realizada por Paulo e Ione que possivelmente tomaram
conhecimento destes achados à época em que coletaram os vestígios provenientes de Santa Inês I, II e III.
A partir das informações dadas por André Prous (Comunicação pessoal, 2021) sobre a
proximidade geográfica entre a chácara de Jussara e o local de proveniência da Coleção Santa Inês, a
análise comparativa entre as coleções e o cruzamento das informações obtidas através das narrativas de
Jussara e a descrição dada por Paulo Junqueira e Ione Malta revelam que ambas as coleções são
provenientes do mesmo bairro de Santa Luzia. A hipótese sobre unicidade ou multiplicidade foi pensada
levando em consideração as proximidades técnica e geográfica entre as coleções e o caminho trilhado no
desenvolvimento desta hipótese, conforme exposto ao longo desta monografia, me leva a concluir sobre
uma unicidade de ocupação desta comunidade de prática conhecida por Aratu-Sapucaí no bairro Chácaras
Santa Inês.
Apesar do conhecimento da existência dos vestígios arqueológicos que compõem a Coleção Santa
Inês remeter à segunda metade da década de 1970, os sítios prospectados por Paulo Junqueira e Ione Malta
foram registrados no Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos (CNSA) em 1998, pela arqueóloga
Mônica C. Schlobach, sob identificação “MG00513”. Ao realizar uma consulta sobre os sítios
arqueológicos nas delimitações do município de Santa Luzia – MG o sistema do IPHAN identifica apenas
seis cadastros, sendo eles referentes aos sítios Macaúbas, Santa Inês I, II e III, Barreiro, Santa Luzia, Rio
Vermelho 1 de MG e Rio Vermelho 2 de MG. É evidente que tal resultado não se compatibiliza com o
potencial arqueológico dessa região, haja vista que apenas no bairro Chácaras Santa Inês é observada a
ocorrência de pelo menos quatro concentrações de vestígios arqueológicos: três concentrações referentes
à Coleção Santa Inês acrescidas da concentração de vestígios referentes à Coleção Jussara.
De posse de todas estas informações é certo dizer que o território que hoje integra o bairro
Chácaras Santa Inês no município de Santa Luzia – MG foi palco de uma ocupação pré-colonial que se
estende para além das áreas de concentração dos vestígios arqueológicos conhecidos atualmente. Cabe
ressaltar que diversos empreendimentos foram instalados no entorno da propriedade da família Gualberto
e ainda assim não foram localizadas bibliografias referentes a achados de interesse arqueológico na região
além da publicação de Junqueira e Malta de 1978. A inexistência dessas bibliografias me faz questionar
se tais empreendimentos realizaram projetos de avaliação de impacto ao patrimônio arqueológico pois as
narrativas de Jussara atestam que os achados arqueológicos na região eram algo comum, fazendo até
mesmo com que as pessoas “andassem olhando para o chão”.
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4.3 Considerações finais sobre as ceramistas Aratu-Sapucaí
A partir das análises realizadas e expostas ao longo desta monografia, podemos começar a pensar
em alguns aspectos gerais que caracterizam os vestígios cerâmicos associados à tradição Aratu-Sapucaí.
De modo geral, a técnica de produção que se destaca na manufatura destes recipientes é o acordelado. Para
as espessuras dos fragmentos existem dois picos de concentração que se estabelecem nos intervalos de
3mm a 7mm e de 15mm a 19mm. Ainda sobre as medidas observadas, é espantosa a constância na
espessura destes fragmentos cuja variação raramente é superior a 2mm, havendo casos em que tal variação
sequer é percebida mesmo com a utilização de instrumentos de medição como o paquímetro.
A composição da pasta de argila é marcada pela presença de quartzo, mica, óxido de ferro,
minerais silicatos diversos e ocorrências mais pontuais de filito em médias inclusões (20% de carga) com
partículas inferiores a 3mm de diâmetro concentradas no núcleo dos fragmentos. A concentração destas
cargas no núcleo está associada ao tratamento de superfície aplicado aos recipientes que é caracterizado
por um alisamento fino e médio. A ação mecânica destes alisamentos movimenta as partículas presentes
na argila, fazendo com que os grãos presentes nas superfícies sejam “empurrados” para o núcleo.
As técnicas de modificação de croma e relevo são pouco recorrentes, indicando tratar-se de uma
comunidade de prática que valoriza a croma ocasionada pela própria sinterização da argila durante a
queima e a construção de relevos lisos. As modificações de croma, quando aparecem, são
majoritariamente nas faces externas, caracterizadas pela aplicação de aguadas vermelhas. Em alguns casos
pode ocorrer a aplicação de engobe nas cores branca ou vermelha. As queimas resultam em fragmentos
cujo aspecto visual da ação do fogo é, em sua quase totalidade, marcado pela presença de faces com
coloração ocre/clara e núcleos acinzentados.
Através das projeções de recipientes inteiros as morfologias observadas são, em sua maioria, cuias
e tigelas, também ocorrendo formatos piriformes e globulares. Através das análises dos fragmentos de
borda percebe-se uma preferência por morfologias diretas e introvertidas com espessamentos lineares e
contraídos. A morfologia dos lábios é frequentemente arredondada, sendo poucos os casos de lábios
apontados. Os fragmentos de base aparecem em pouca quantidade nas coleções, mas as morfologias
identificadas são convexa-côncavas, plano-convexas e biplanas.
Nenhum recipiente inteiro foi localizado nas coleções analisadas nesta monografia, todavia, ao
longo do último ano tive a oportunidade de conhecer outros vestígios cerâmicos também associados à
tradição Aratu-Sapucaí. Desde agosto de 2021 tenho trabalhado na Reserva Técnica do Museu de
Arqueologia do Carste Alto São Francisco (MAC), por intermédio da empresa Peruaçu Arqueologia Ltda,
no município de Pains – MG, onde estão expostos alguns recipientes inteiros extremamente simétricos em
sua morfologia e constantes em sua espessura. Ao longo dos trabalhos em que participei como estagiário
na mesma empresa, tive a oportunidade de visitar a Unidade de Conservação Estadual – Estação Ecológica
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Estadual de Corumbá, no município de Arcos – MG, onde estão expostos outros exemplares de urnas
funerárias também associadas à tradição tratada nesta monografia, além das coleções expostas no próprio
Museu de História Natural e Jardim Botânico da UFMG que reforçam essa característica tão marcante
destes vestígios.
Figura 24: O "cálice". Recipiente associado à tradição Aratu-Sapucaí exposto no MAC, Pains - MG. Perfil (esquerda) e visão
superior (direita)
Figura 25: Recipiente associado à tradição Aratu-Sapucaí exposto no MAC, Pains - MG. Perfil (esquerda) e vista da abertura
para o interior do recipiente (direita)
Como aprendiz de ceramista, pude experenciar com meu próprio corpo a imensa dificuldade em
confeccionar recipientes como estes. No meu caso, mesmo após quatro anos de familiaridade com a
prática oleira nunca cheguei sequer perto de obter um resultado parecido com o que é observado entre os
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vestígios das ceramistas Aratu-Sapucaí. Ainda existem casos que podem ser considerados como
verdadeiros desafios arquitetônicos, como o “cálice” ilustrado na Figura 25. Em suma, é evidente que a
fabricação de objetos cerâmicos por si só não é algo simples, mas alcançar os resultados que são
observados nos vestígios associados a esta tradição exige uma maestria que só pode ser alcançada por uma
comunidade de prática com elevadíssimo rigor técnico. Para muitos pesquisadores tal tradição foi relegada
à categoria de cerâmicas simples, todavia, as complexidades existentes nestes vestígios repousam em
atributos que até então não estavam sendo sistematicamente analisados.
Doravante, espero ter mostrado aspectos da tecnologia cerâmica que indiquem que os sítios
comparados, mesmo sem datações, resultam de uma mesma comunidade de prática, além de ter
demonstrado argumentos fundamentados nas análises tecnológicas que evidenciam as complexidades
produtivas das cerâmicas Aratu-Sapucaí.
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