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Museologia e suas interfaces

críticas: museu, sociedade e os


patrimônios

ANAIS
III SEBRAMUS – Novembro 2017
Belém-PA
ISSN 2446-8940

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III SEMINÁRIO BRASILEIRO DE MUSEOLOGIA
20 a 24 de novembro de 2017
Universidade Federal do Pará
Belém-PA

REALIZAÇÃO
Rede de Professores e Pesquisadores do Campo da Museologia
Curso de Museologia/FAV/ICA - Universidade Federal do Pará

APOIO
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN
Editora da Universidade Federal do Pará – EDUFPA

COMISSÃO ORGANIZADORA COMISSÃO CIENTÍFICA


Museóloga Bruna Antunes | UFPA Ana Carolina Gelmini de Faria |
Dra. Carmen Silva | UFPA UFRGS
Me. Emanoel de Oliveira Júnior | UFPA Áurea da Paz Pinheiro | UFPI
Dra. Emanuela Sousa Ribeiro | UFPE Cristina de Almeida V. C. Barroso | UFS
Dra. Flávia Palácios | UFPA Daniel de Souza Leão Vieira | UFPE
Dr. Hugo Menezes | UFPE Joseania Miranda Freitas | UFBA
Me. Marcela Cabral | UFPA Luciana Silveira Cardoso | UFSC
Dr. Marcelo Nascimento Cunha | UFBA Luiz Carlos Borges | UNIRIO
Me. Silmara Küster de Paula Carvalho Manuelina Maria Duarte Cândido |
| UNB UFG
Dra. Sue Costa | UFPA Marcela Guedes Cabral | UFPA
René Lommez Gomes | UFMG
Viviane da Silva Santos | UFRB

COLABORADORES
Dra. Ana Cláudia Melo DIAGRAMAÇÃO
Me. Sâmia Batista Bruna Antunes
Claudio Alfonso
Pedro Cordeiro

Anais III Sebramus - 2017


ISSN 2446-8940
Curso de Museologia
Faculdade de Artes Visuais (Atelier e Anexo) - Campus
Profissional - Universidade Federal do Pará. Rua Augusto
Corrêa, 01 - Guamá, Belém, Pará.
Fone: (91) 32017554
E-mail: 3sebramus@gmail.com

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APRESENTAÇÃO

O 3º Seminário Brasileiro de Museologia (Sebramus) tem como objetivo


proporcionar a realização de discussões acadêmicas na área da Museologia,
contribuindo para a divulgação qualificada da produção científica dos
professores e pesquisadores da área. Promovido pela Rede de Professores e
Pesquisadores do Campo da Museologia, com apoio da Universidade Federal do
Pará, esta terceira edição do Seminário pretende realizar diálogos e debates
sobre a temática “Museologia e suas interfaces críticas: Museu, Sociedade e os
Patrimônios”.

A Museologia é considerada uma ciência desde a segunda metade do


século 20, que tem como objeto de estudo a Musealidade, tendo se ocupado,
dentre outras perspectivas de estudos, às suas interfaces críticas com o próprio
Patrimônio e seus múltiplos processos de patrimonialização e de musealização.

Outra abordagem da Museologia versa sobre as ações específicas do


homem ante os objetos e seus valores conceituais, que ao se tornar
musealizados, estabelecem “relação mediadora entre homem e patrimônio”,
constituindo assim o objeto de estudo da Museologia. Do mesmo modo, o fazer
museológico é também notadamente interdisciplinar, o que demanda muitas
vezes a participação de estudiosos e profissionais de áreas diversas.

Estas compreensões da Museologia abrem-nos os olhos para a dimensão


social, política e crítica desta ciência, e nestas perspectivas, a Museologia lança
mão de metodologias diversas, das ciências humanas, sociais, exatas e
biológicas e da Filosofia, podendo assim ser destacado seu caráter
interdisciplinar e de apropriação de outros campos disciplinares de
conhecimento e saberes. Refletir e discutir as relações entre museu, sociedades
e os patrimônios, nestas perspectivas críticas e reflexivas, cruzando olhares
internos ao campo e em diálogo com outros campos disciplinares, é a proposta
do 3º Sebramus, que será realizado na Universidade Federal do Pará de 20 a 24
de novembro de 2017.

Promoção: Rede de Professores e Pesquisadores do Campo da Museologia

Instituições executoras: Universidade Federal do Pará – ICA/FAV/Museologia

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HISTÓRICO DO SEBRAMUS

A Rede de Professores e Pesquisadores do Campo da Museologia


(RPPCM) foi criada em 2008 por professores universitários do campo da
Museologia, reunidos durante o 3º Fórum Nacional de Museus. Congregando
inicialmente docentes dos cursos de graduação, especialização, mestrado e
doutorado, a RPPCM posteriormente passou também a agregar pesquisadores
de museus e instituições de ensino superior que não atuam na docência, mas
interagem com as atividades de ensino, pesquisa e extensão desenvolvidas no
âmbito da Museologia.

A RPPCM em seus V e VI Encontros anuais, ocorridos em 2012 em


Petrópolis e 2013 no Rio de Janeiro, respectivamente, idealizou o Seminário
Brasileiro de Museologia – Sebramus, que tem como objetivo contribuir para
produção de conhecimento e estruturação acadêmica da Museologia,
oferecendo à comunidade acadêmica um espaço privilegiado para o debate
sobre a produção científica dos professores e pesquisadores da área. E em 2014
ocorre o primeiro SEBRAMUS em Belo Horizonte - MG, seguido em 2015 por
Recife, onde ficou acordado que o mesmo passaria a ser bienal. Neste ano de
2017 a RPPCM promove terceira edição do Sebramus, em Belém, na
Universidade Federal do Pará, através do curso de Museologia da Faculdade de
Artes Visuais, com o apoio de outras parceiros do evento.

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GRUPOS DE TRABALHOS

GT 01 - História das coleções e dos processos museológicos


nas eras moderna e contemporânea

GT 02 - Museu, museologia e educação museal: práticas,


poéticas e políticas decoloniais

GT 03 - A favor dos museus comunitários: reflexões e prática

GT 04 - Conservação de bens culturais móveis

GT 05 - Museologia e patrimônio: discussões sobre as


relações de preservação pelas chaves da colonialidade ou do
póscolonialismo – Museus e cultura política

GT 06 - Coleções e museus universitários

GT 07 - Museologia, museus e gênero

GT 08 - Patrimônio, educação e museus

GT 09 - Museologia e patrimônio em espaços expandidos -


Entre cenas e narrativas: o uso de novas tecnologias na
comunicação museal

GT 10 - História e memória dos museus e da museologia no


Brasil - Museologia e trabalho em museus: trajetórias,
tendências, modelos, formação e papel social

GT 11 - Museus e patrimônio cultural universitários: discutindo


conceitos e promovendo parcerias e articulações

GT 12 - Interseções entre museologia e arte contemporânea

GT 13 - Patrimônio e memória da alteridade em coleções


museológicas de arte e cultura populares

GT 14 - Museu, memória e patrimônio das culturas negras

GT 15 - Educação e mediação cultural em museus

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APRESENTAÇÃO ................................................................................................................................... 3
HISTÓRICO DO SEBRAMUS ............................................................................................................... 4
GRUPOS DE TRABALHOS ................................................................................................................. 5
ACERVOS QUE CONTAM HISTÓRIA: A TRAJETÓRIA DO MUSEU DE GEOCIÊNCIAS DO IGC-
USP ATRAVÉS DE SUAS COLEÇÕES .................................................................................................. 14
A FORMAÇÃO DE UM ACERVO DE MODA: A SEÇÃO MODA DA COLEÇÃO AMAZONIANA
DE ARTE DA UFPA. ................................................................................................................................ 37
“FUNDAÇÃO DE SÃO VICENTE”, DE BENEDITO CALIXTO: LEITURAS DE UMA IMAGEM
NAS EXPOSIÇÕES DO MUSEU PAULISTA (1900-1939).................................................................... 56
O MUSEU DO TROPEIRO E A TRAJETÓRIA DE UMA COLEÇÃO ................................................. 73
A PESQUISA E A COMUNICAÇÃO EM MUSEUS: O POTENCIAL HISTÓRICO DAS IMAGENS
DE ARTE SACRA PARA A COMPREENSÃO E A MEDIAÇÃO DA COLEÇÃO DE BUSTOS
RELICÁRIOS NO MUSEU DE ARTE SACRA DA UFBA .................................................................... 88
ALGUMAS FONTES PARA O ESTUDO DE MUDANÇAS DE PERCEPÇÃO SOBRE OS
GABINETES DE CURIOSIDADES E AS PRÁTICAS COLECIONISTAS DA ERA MODERNA À
CONTEMPORÂNEA .............................................................................................................................. 107
OITO PINTURAS DE ALBERT ECKHOUT NOS MUSEUS OITOCENTISTAS DA DINAMARCA:
UM ENSAIO SOBRE A SOBREDETERMINAÇÃO HISTÓRICA DAS PRÁTICAS EXPOSITIVAS
SOBRE A INTERPRETAÇÃO DE ACERVOS MUSEOLÓGICOS ..................................................... 123
OTIMIZAÇÃO DAS PESQUISAS SOBRE HISTÓRIA DAS COLEÇÕES COM O USO DE BANCOS
DE DADOS SISTEMATIZADOS, ANÁLISES QUANTITATIVAS E SISTEMA DE INFORMAÇÕES
GEOGRÁFICAS101 .................................................................................................................................. 148
“SEGUNDO O BOM GOSTO DAS NAÇÕES EUROPEIAS”. A FORMAÇÃO DA COLEÇÃO
EGÍPCIA DO MUSEU NACIONAL DA UFRJ, NO SÉCULO XIX ..................................................... 164
TRAJETÓRIA DE FORMAÇÃO DA COLEÇÃO MANOEL PASTANA129........................................ 183
A FORMAÇÃO DE UM ACERVO BRASILEIRO NO MÉXICO: AS MOSTRAS LATINO-
AMERICANAS DE FOTOGRAFIA CONTEMPORÂNEA, MÉXICO (1978-1981) ........................... 197
MUSEU PAULISTA: CONCEITOS E REFERÊNCIAS PARA A DEFINIÇÃO DE UM MUSEU
HISTÓRICO E DE UMA POLÍTICA DE AQUISIÇÃO DE ACERVO .................................................. 216
UM ACERVO PARA CHAMAR DE REPÚBLICA .............................................................................. 235
O MUSEAL NA GÊNESE DO PARQUE ZOOBOTÂNICO DO MUSEU GOELDI (1895-1914) ...... 255
O MUSEU PARAENSE NO PROCESSO DE MUSESEALIZAÇÃO DAS CERÂMICAS
AMAZÔNICAS EM MEADOS DO SÉCULO XIX165 ........................................................................... 270
PERSPECTIVA IDENTITÁRIA EM SONS CONSERVADOS: COLECÃO E MEDIAÇÃO NA
FONOTECA PÚBLICA SATYRO DE MELLO (BELÉM- PA)............................................................ 288
COLEÇÃO KARAJÁ LIPKIND (1938-1939) DO MUSEU NACIONAL: ROTAS
ANTROPOLÓGICAS BRASIL-ESTADOS UNIDOS ........................................................................... 308
AÇÕES MUSEOLÓGICAS: UMA REFLEXÃO SOBRE AS ATIVIDADES DO MUSEU DO
INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO PARÁ ...................................................................... 315
PATRIMÔNIOS AFETIVOS, ACERVOS MUSEOLÓGICOS: APONTAMENTOS A CERCA DAS
CARTAS DO MAESTRO WALDEMAR HENRIQUE ......................................................................... 324
A PERSPECTIVA PÓS-COLONIAL E SEUS GANHOS EPISTÊMICOS NO ÂMBITO DA
MUSEOLOGIA SOCIAL ........................................................................................................................ 333

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A RUPTURA DAS CIÊNCIAS NA AMAZÔNIA: O MUSEU GOELDI DE PORTAS ABERTAS NO
DÍÁLOGO COM A COMUNIDADE ..................................................................................................... 352
CARTOGRAFIA CULTURAL: VOZES E APARÊNCIAS .................................................................. 370
UM DIÁLOGO ENTRE ESCOLA E MUSEU NO COMBATE À INTOLERÂNCIA RELIGIOSA ... 390
COLEÇÃO AMAZONIANA DE ARTE DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ, DESAFIOS,
PROCESSOS E SUBVERSÕES PARA UM CAMPO ALARGADO E DECOLONIALISTA. ............ 408
O SAMBA DE RODA COMO DIÁLOGO UNIFICADOR ENTRE O CORPO E A PALAVRA ........ 422
ARTE E CULTURA: MUSEUS AUXILIANDO NO ENTENDIMENTO E NA CONSTRUÇÃO DA
SOCIEDADE ........................................................................................................................................... 436
A MEMÓRIA SOCIAL DO CAMPO DE FUTEBOL DE VÁRZEA DO BAIRRO DA VILA
PROGRESSO: O ESTUDO DE CASO DO SETE DE SETEMBRO. .................................................... 455
ENTRE TERRITÓRIOS: AS NARRATIVAS SOB PERSPECTIVAS DAS COMUNIDADES DE SÃO
LÁZARO ................................................................................................................................................. 463
MAPEANDO CAMINHOS:DELINEAMENTOS SOBRE A PRESERVAÇÃO DO CAMPUS DE SÃO
LÁZARO ................................................................................................................................................. 470
A MUSEALIZAÇÃO NA EDUCAÇÃO COM BASE NA IDENTIDADE SOCIAL ........................... 478
A PRODUÇÃO E APROPRIAÇÃO DOS ESPAÇOS: O PONTO DE MEMÓRIA MUSEU DO
TAQUARIL ............................................................................................................................................. 498
DA EXPLOSÃO DE SENTIDOS A CONSCIÊNCIA IMEDIATA: DEFINIÇÕES DA “TEORIA DA
PRÁTICA” DE HUGUES DE VARINE- BOHAN NO BRASIL .......................................................... 516
MEMÓRIA E SOCIABILIDADE EM PERCURSO INTERATIVO NA PERIFERIA DE BELÉM:
PROTAGONISMO SOCIAL E FORMAS ALTERNATIVAS DE VALORIZAÇÃO DA IDENTIDADE
................................................................................................................................................................. 535
MUSEOLOGIA INOVADORA E ARQUITETURA PARTICIPATIVA: CONSTRUINDO
NARRATIVAS SOCIAIS INCLUSIVAS E EMANCIPATÓRIAS ....................................................... 551
MUSEOLOGIA, PARQUES, ECOMUSEUS, ASSOCIAÇÕES E INICIATIVAS COMUNITÁRIAS EM
DEFESA DO PATRIMÔNIO CULTURAL. .......................................................................................... 570
TRABALHO DE REDES COMUNITÁRIAS: A EDUCAÇÃO AMBIENTAL COMO FERRAMENTA
DE TRANSFORMAÇÃO SOCIAL, EM BAIRROS PERIFÉRICOS DE BELÉM, PORTO ALEGRE E
GRAVATAÍ............................................................................................................................................. 590
PATRIMÔNIOS (IN)VISIVEIS: DA EXPOSIÇAO À CRIAÇÃO DE UM MUSEU COMUNITÁRIO
NA ILHA DE MAIANDEUA/PA ........................................................................................................... 614
BRASÍLIA SOB A ÓTICA DA MUSEOLOGIA SOCIAL: ESTUDO DE CASO DA RESTAURAÇÃO
DA IGREJINHA NOSSA SENHORA DE FÁTIMA ............................................................................. 633
O TEATRO DO OPRIMIDO COMO ESTRATÉGIA ÉTICA, ESTÉTICA E POLÍTICA PARA A
PROMOÇÃO DO MUSEU COMUNITÁRIO DA TERRA FIRME. ..................................................... 647
NARRATIVAS E MEMÓRIAS: CONSTITUINDO TERRITÓRIOS E IDENTIDADES .................... 664
A DOCUMENTAÇÃO COMO FERRAMENTA DE CONSERVAÇÃO: OS ORNAMENTOS DE
FERRO DA WALTER MACFARLANE’S EM BELÉM ....................................................................... 673
AÇÃO DA LUZ NA PLUMÁRIA:A COR E OS EFEITOS FOTOQUÍMICOS ................................... 694
CRITÉRIOS E PROCEDIMENTOS DE HIGIENIZAÇÃO E MARCAÇÃO NAS COLEÇÕES
ARQUEOLÓGICAS DO LEPA/UFSM (2012-2016) ............................................................................. 713
MUSEU DA FORÇA EXPEDICIONÁRIA BRASILEIRA: UMA EXPERIÊNCIA EM
DOCUMENTAÇÃO MUSEOLÓGICA.................................................................................................. 725
PESQUISA, FORMAÇÃO E SALVAGUARDA: HISTÓRIAS DE VALORIZAÇÃO DO
PATRIMÔNIO DE BENS CULTURAIS MÓVEIS DO PIAUÍ ............................................................. 743
PRAGAS NO MUSEU: ANÁLISE DA PRESENÇA DE PRAGAS NO MUSEU CASA DAS ONZE

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JANELAS E NO MUSEU DE ARTE DE BELÉM ................................................................................ 761
UM APASA NO MUSEU: SE CORRER ELE PEGA, SE FICAR ELE COME .................................... 774
OS TROFÉUS METÁLICOS DA TUNA LUSO BRASILEIRA: DOCUMENTAÇÃO COMO
SUBSÍDIO DA CONSERVAÇÃO ......................................................................................................... 796
CONSERVAÇÃO: ALIADA PESSOAL DOS MUSEUS LEVANTAMENTO DE PRAGAS NO
MUSEU DA POLÍCIA MILITAR .......................................................................................................... 814
PROBLEMÁTICAS NA CONSERVAÇÃO E PRESERVAÇÃO DE ACERVOS EM INSTITUIÇÕES
SECULARES: ESTUDO DE CASO DO MUSEU DE ARTE SACRA DE PERNAMBUCO .............. 822
VAMOS PUBLICAR SOBRE CONSERVAÇÃO PREVENTIVA? A PRODUÇÃO ELETRÔNICA
SOBRE CONSERVAÇÃO PREVENTIVA DE ESCULTRAS DEVOCIONAIS EM MADEIRA – UMA
BREVE ANÁLISE .................................................................................................................................. 833
SALVAGUARDA NO MUSEU DA MEDICINA DE PERNAMBUCO – MMP PRESERVAÇÃO DA
COLEÇÃO DR. OCTÁVIO DE FREITAS ............................................................................................. 844
MUSEU ITINERANTE DO ATLETISMO PARAENSE: A CONCRETIZAÇÃO DO FAZER
MUSEOLÓGICO .................................................................................................................................... 856
ATRIBUIÇÃO DE AUTORIA PELA TRADIÇÃO: COLEÇÕES EM MARFIM ................................ 865
DIAGRAMAS DA SEGREGAÇÃO URBANA: O PATRIMÔNIO CULTURAL COMO RECURSO 882
DO DISPÊNDIO IMPRODUTIVO AO USO SUSTENTÁVEL: NOTAS SOBRE O CONCEITO
(GERAL) DE PATRIMÔNIO E SOBRE O PATRIMÔNIO GENÉTICO ............................................. 911
MUSEUS E AS CONVENIÊNCIAS DESCOVENIENTES DA CULTURA POLÍTICA NO CENÁRIO
CONTEMPORÂNEO .............................................................................................................................. 926
O MUSEU DA BEIRA DA LINHA DO COQUE (PE) COMO CONTRAPÚBLICO........................... 933
REFLEXÕES SOBRE AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA OS MUSEUS NOS GOVERNOS
DEMOCRÁTICOS POPULARES DO SÉCULO XXI: ARGENTINA - BRASIL - URUGUAI .......... 945
SOBRE POLÍTICA CULTURAL, CRIATIVIDADE E MUSEUS ........................................................ 961
DJA GUATA PORÃ: CONSTRUÇÃO EM DIÁLOGOS ...................................................................... 971
MUSEALIZAÇÃO DE OBJETOS ARQUEOLÓGICOS: ESTUDO DE CASO SOBRE AS LOUÇAS
DO SÍTIO ENGENHO DO MURUTUCU EM BELÉM-PA .................................................................. 991
VALORIZAÇÕES E MUSEALIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO MUNDIAL NO BRASIL: ESTUDO DE
CASO DO PLANO PILOTO DE BRASÍLIA E DO COMPLEXO DE CONSERVAÇÃO DA
AMAZÔNIA CENTRAL .......................................................................................................................1011
A MUSEALIZAÇÃO COMO PROCESSO DE SACRALIZAÇÃO DOS OBJETOS ..........................1032
A PROBLEMÁTICA DOS PROCESSOS DE CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES COLETIVAS:
REFLEXÕES A RESPEITO DAS RELAÇÕES ENTRE OS PROCESSOS DE CONSTRUÇÃO DE
IDENTIDADES COLETIVAS, E A UTILIZAÇÃO DOS PATRIMÔNIOS CULTURAIS COMO
RECURSO DE MANUTENÇÃO DAS IDENTIDADES. .....................................................................1037
COMUNICAR É PRESERVAR: ANALISANDO VIA WEB A MUSEALIZAÇÃO DA COLEÇÃO
PALEONTOLÓGICA DO MUSEU PARAENSE EMÍLIO GOELDI. .................................................1043
CRIAÇÃO E MANUTENÇÃO DO CENTRO DE MEMÓRIA DA FARMÁCIA DA UFMG: UM
TRABALHO INTERDISCIPLINAR E EM REDE ...............................................................................1052
CULTURA MATERIAL, MUSEUS E SOCIEDADE: PASSADO E PRESENTE NA COLEÇÃO DE
ARQUEOLOGIA URBANA DO MUSEU DA UFPA EM BELÉM-PA ..............................................1065
ESTUDO DA SISTEMATIZAÇÃO DA DOCUMENTAÇÃO MUSEOLÓGICA À COLEÇÃO
CARMEN SOUSA DO MUSEU DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (MUFPA) ...............1084
UM OLHAR MUSEOLÓGICO PARA OS MUSEUS UNIVERSITÁRIOS DE CIÊNCIAS DA UFPA
................................................................................................................................................................1105
ESTUDO DE PÚBLICO DO MUSEU DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ: DIAGNÓSTICO

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PARA CONSTRUÇÃO DO PLANO MUSEOLÓGICO .......................................................................1118
MUSEU DA UFRGS: HISTÓRIA E TRAJETÓRIA DE UM MUSEU UNIVERSITÁRIO ................1133
MUSEUS E COLEÇÕES EM REDE: A REMAM/UFRGS ..................................................................1152
O HERBÁRIO PROFª DRª MARLENE FREITAS DA SILVA (MFS) DA UNIVERSIDADE DO
ESTADO DO PARÁ: DIÁLOGOS ENTRE CIÊNCIA, UNIVERSIDADE E MUSEU .......................1171
ANÁLISE DE CONSERVAÇÃO PREVENTIVA EM ACERVO DIDÁTICO: UM ESTUDO DE CASO
NA SALA DO ACERVO DE FIGURINO DA ESCOLA DE TEATRO E DANÇA DA UFPA ..........1191
COLEÇÃO QUADROS DE FORMATURA DO MUSEU DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ
(MUFPA): UM ESTUDO PELO PROCESSO DA DOCUMENTAÇÃO PARA ACERVOS
MUSEOLÓGICOS .................................................................................................................................1199
MUSEALIZAÇÃO E PALEONTOLOGIA: UMA REFLEXÃO SOBRE A FORMAÇÃO DA
COLEÇÃO PALEONTOLÓGICA DO CURSO DE MUSEOLOGIA DA UFPA ................................1214
DESRECALQUES DE GÊNERO? O HEROISMO POÉTICO NAS EXPOSIÇÕES SOBRE CORA
CORALINA E MARIA BONITA ..........................................................................................................1220
MULHERES INDÍGENAS NAS MISSÕES: PROBLEMAS ETNO- HISTÓRICOS,
ARQUEOLÓGICOS E MUSEOLÓGICOS NA HISTÓRIA, SÍTIOS ARQUEOLÓGICOS E MUSEUS
DEDICADOS ÀS MISSÕES MERIDIONAIS ......................................................................................1241
MUSEALIZAÇÃO DA ARQUEOLOGIA: PROVOCAÇÕES E PROPOSIÇÕES FEMINISTAS .....1262
PESQUISA PARA EXPOSIÇÕES EM MUSEUS: UMA ANÁLISE DA EXPOSIÇÃO GÊNERO E
JUDICIÁRIO: UM OLHAR SOBRE A REPRESENTAÇÃO DA MULHER NO SÉCULO XX. .......1278
QUANDO A MEMÓRIA LGBT SAI DA RESERVA TÉCNICA: MAPEAMENTO PRELIMINAR DOS
MUSEUS, PATRIMÔNIOS E INICIATIVAS COMUNITÁRIAS EM MEMÓRIA E MUSEOLOGIA
SOCIAL ..................................................................................................................................................1297
TESSITURAS SOBRE A INDUMENTÁRIA DE CANDOMBLÉ A PARTIR DA COLEÇÃO DONA
NÓLA .....................................................................................................................................................1321
MUSEU DE CIÊNCIAS DA TERRA COMO MEIO DE COMUNICAÇÃO DO CONHECIMENTO:
GÊNERO NA PAISAGEM GEOLÓGICA BRASILEIRA ...................................................................1331
AUDIOVISUAL COMO FERRAMENTA PARA A EDUCAÇÃO PATRIMONIAL .........................1340
CULTURA ORGANIZACIONAL E POLÍTICAS PÚBLICAS: PROCESSOS SOCIAIS QUE
ENVOLVEM AS FIGURAÇÕES MUSEAIS .......................................................................................1352
ECOMUSEU DELTA DO PARNAÍBA (MUDE): ARQUITETURA DE MUSEUS E RESTAURO A
SERVIÇO DA VALORIZAÇÃO DE UMA RICA E COMPLEXA PAISAGEM CULTURAL ..........1368
REVITALIZAÇÃO DO CENTRO HISTÓRICO DE PARNAÍBA: A ESTRATÉGIA DA
IMPLANTAÇÃO DE CURSOS UNIVERSITÁRIOS ...........................................................................1388
‘MUSEU DE PORTAS ABERTAS’: AÇÃO EDUCATIVA DO MUSEU PARAENSE EMÍLIO
GOELDI PARA POPULARIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO CIENTÍFICO ............................................1403
O MUSEU CONTEMPORÂNEO ..........................................................................................................1424
PARNAÍBA: PATRIMÔNIO VIVO, CIDADE VIVA ..........................................................................1436
A FUNÇÃO EDUCATIVA DO MUSEU E SUA RELAÇÃO COM A ESCOLA................................1453
REDE DE MUSEUS DELTA DO PARNAÍBA ....................................................................................1473
PRODUÇÃO CIENTÍFICA NA MUSEOLOGIA DA UFPA: MAPEAMENTO DOS TEMAS DOS
TCC’S DE 2013 A 2016 .........................................................................................................................1479
ESPAÇO PASÁRGADA: UM MUSEU-CASA SEM “BANDEIRA”? ................................................1485
MUSEU PARQUE SERINGAL E A SALVAGUARDA DO PATRIMÔNIO IMATERIAL ..............1492
A CONCEPÇÃO DE MUSEUS EM ESPAÇOS DIGITAIS: SOBRE AS POSSIBILIDADES DE
MUSEALIZAÇÃO ONLINE .................................................................................................................1501

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A CRIAÇÃO DE MUSEUS ATRAVÉS DAS TIC ENQUANTO OBJETO DE ESTUDO DA
MUSEOLOGIA ......................................................................................................................................1519
TECNOLOGIA E EXPOGRAFIA NA CONTEMPORANEIDADE. OS MUSEUM MAKERS E A
SEDUÇÃO DO OLHAR ........................................................................................................................1533
AS INTERAÇÕES TECNOLÓGICAS E AS VIVÊNCIAS NO MUSEU CASA DE CORA CORALINA:
A EXPERIÊNCIA DE EDUCAÇÃO NÃO FORMAL PARA ALÉM DA EXPOSIÇÃO
EXPOGRÁFICA. ...................................................................................................................................1547
ENTRE REALIDADES: USO DE NOVAS MÍDIAS NA COMUNICAÇÃO MUSEAL ....................1563
CARTOGRAFIAS NA INTERNET: MUSEUS, PÚBLICO E PATRIMÔNIO NA REDE ..................1577
MUSEUS E PATRIMÔNIOS VIRTUALIZADOS: A MUSEOLOGIA E AS TECNOLOGIAS
DIGITAIS PARA ALÉM DA CONEXÃO ............................................................................................1599
AS NOVAS TECNOLOGIAS A SERVIÇO DA COMUNICAÇÃO MUSEAL ..................................1621
CULTURA MATERIAL AMAZÔNICA NO AMAZONIAN MUSEUM NETWORK EXPOSIÇÃO
DIGITAL SOB OLHAR PROCESSUALISTA .....................................................................................1628
O JOGO 3D COMO RECURSO PEDAGÓGICO PARA A APRENDIZAGEM SOBRE ARTE
PÚBLICA ...............................................................................................................................................1639
ESTUDO DA ACESSIBILIDADE NOS MUSEUS DE ARACAJU E LARANJEIRAS-SE:
EDUCAÇÃO E USO DAS TECNOLOGIAS ASSISTIVAS ................................................................1648
MUSEU INTERATIVO E A LÍNGUA PORTUGUESA: ATIVIDADE PEDAGÓGICA NO MUSEU
DA LÍNGUA PORTUGUESA ...............................................................................................................1655
A DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA NO MUSEU DE CIÊNCIAS DA TERRA - MCTer: ASPECTOS
HISTÓRICOS E DIMENSÕES EDUCATIVAS ...................................................................................1664
MUSEU EM REVISTA: A SEÇÃO ‘RELÍQUIAS BRASILEIRAS’ DA REVISTA SELECTA (1930)
................................................................................................................................................................1678
CONSIDERAÇÕES SOBRE A CARREIRA DE OFICIAL DO MUSEU HISTÓRICO NACIONAL
NOS ANOS 1920....................................................................................................................................1691
TRAJETÓRIAS CRUZADAS DOS NATURALISTAS DOMINGOS VANDELLI E VIEIRA COUTO:
PENSANDO UM ESTUDO DE PROTO-HISTÓRIA DAS INSTITUIÇÕES DE SALVAGUARDA NA
VIRADA DO SÉCULO XVIII PARA O XIX. ......................................................................................1708
UMA MIRADA PARA O PASSADO: PROJETOS EDUCATIVOS NO MUSEU HISTÓRICO
NACIONAL (1922-1960) .......................................................................................................................1728
TRILHANDO CAMINHOS: ITINERÁRIOS DA REDE DE EDUCADORES EM MUSEUS DO RIO
GRANDE DO SUL – REM-RS (2010 A 2015) .....................................................................................1754
REFLEXÕES SOBRE O ENSINO DA GESTÃO E DO PLANEJAMENTO NOS CURSOS DE
BACHARELADO EM MUSEOLOGIA NO BRASIL ..........................................................................1780
CENTRO DE REFERÊNCIA DA ARTE DE PESCA: OS SABERES E FAZERES DOS PESCADORES
................................................................................................................................................................1802
ACERVO CULTURAL: CURADORIA DIGITAL E REUSO .............................................................1816
PRESENÇA KARAJÁ: IDENTIFICAÇÃO, PROTEÇÃO E PROMOÇÃO DE COLEÇÕES E DO
PATRIMÔNIO IMATERIAL ................................................................................................................1833
ACESSIBILIDADE: UM DOS VIESES DA MUSEOLOGIA SOCIAL ..............................................1853
UMA LUZ SOB AS INSTITUIÇÕES HISTÓRICAS: O PROCESSO DE SALVAGUARDA DO
ACERVO DO MUSEU DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO PARÁ .......................1864
APONTAMENTOS SOBRE AS AÇÕES DE MUSEALIZAÇÃO DOS CANHÕES DO MIHGP ......1874
MUSEOLOGIA, MUSEU E SALVAGUARDA DO PATRIMÔNIO IMATERIAL: UM ESTUDO DE
CASO SOBRE OS MUSEUS DE BELÉM E A REPRESENTATIVIDADE DO BREGA PARAENSE
................................................................................................................................................................1883

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ACERVO ARTÍSTICO DA UFMG: O PAPEL DA MUSEOLOGIA NA GESTÃO DO PATRIMÔNIO
UNIVERSITÁRIO ..................................................................................................................................1893
CONSTITUIÇÃO DO FÓRUM PERMANENTE DE MUSEUS UNIVERSITÁRIOS: TRAJETÓRIA,
DESAFIOS E MOBILIZAÇÕES. ..........................................................................................................1912
PROGRAMA DE INVENTÁRIO DO PATRIMÔNIO CULTURAL DA UNIVERSIDADE FEDERAL
DE PERNAMBUCO: CAMINHOS PARA CONHECIMENTO E PRESERVAÇÃO .........................1932
DIAGNÓSTICO MUSEOLÓGICO EM MUSEUS E ESPAÇOS UNIVERSITÁRIOS DE MEMÓRIA E
CIÊNCIA ................................................................................................................................................1945
CENTRO DE ENSINO DE CIÊNCIAS DO NORDESTE E SUAS COLEÇÕES DE ENSINO:
ANÁLISE DA CULTURA MATERIAL DO COLÉGIO DE APLICAÇÃO DO RECIFE (2017). ......1961
A RELAÇÃO ENTRE O ARTISTA E O MUSEU: DOCUMENTAÇÃO MUSEOLÓGICA DE
PERFORMANCES NO MUSEU DE ARTE DO RIO GRANDE DO SUL ..........................................1969
“A REVOLUÇÃO SOMOS NÓS”: JOSEPH BEUYS EM PERSPECTIVA MUSEOLÓGICA ..........1985
ARTE PARÁ: VISUALIDADES LOCAIS E INTERCULTURAIS EM CIRCUITOS AMAZÔNICOS
................................................................................................................................................................2001
CLARA-CLARA E PROMENADE: ARTE CONTEMPORÂNEA DE GRANDE ESCALA E SUA
RELAÇÃO COM O ESPAÇO URBANO..............................................................................................2033
ARTE CONTEMPORÂNEA E INTERAÇÃO COM O PÚBLICO: EXPOSIÇÃO AXIS ...................2052
MUSEOLOGIA E ARTE CONTEMPORÂNEA: CONEXÕES POSSÍVEIS ENTRE A
PERFORMANCE E A DOCUMENTAÇÃO .........................................................................................2076
UMA POÉTICA NO ARQUIVO DO ARTISTA: O CONTÍNUO DESDOBRAR DAS PAISAGENS DA
MEMÓRIA DE GERALDO RAMOS....................................................................................................2090
ARTE ON-LINE: EXPOSIÇÃO, DOCUMENTAÇÃO E COLEÇÃO .................................................2110
MIRANTE E DESAPEGO: OBRA EM DESLOCAMENTO, DIFERENTES LUGARES E UM SÓ
MUSEU. .................................................................................................................................................2126
AS CAMADAS DO DIABO: ALGUMAS TRANSFORMAÇÕES DE (IN)VISIBILIDADE .............2150
RITUAIS PARA BRANCOS E COLEÇÕES ETNOGRÁFICAS: AS RELAÇÕES DOS WAUJA COM
OS MUSEUS E A SUBJETIVAÇÃO DOS OBJETOS..........................................................................2182
VÉIO E O MUSEU DO SERTÃO: UMA PERSPECTIVA INICIAL SOBRE O POTENCIAL
CRIATIVO, A PRESERVAÇÃO DE MEMÓRIAS E A REELABORAÇÃO DE SABERES
POPULARES..........................................................................................................................................2204
CAMINHOS DE UM PATRIMÔNIO SIMBÓLICO MARGINALIZADO: A ROTA MUSEOLÓGICA
DO CANGAÇO. .....................................................................................................................................2213
UM MUSEU QUE DÁ SAMBA! A MUSEALIZAÇÃO COMO INSTRUMENTO DE
SALVAGUARDA DAS MATRIZES DO SAMBA CARIOCA ...........................................................2233
ESCOLAS DE SAMBA E PATRIMÔNIOS AFETIVOS: ENTRE VIDA E CARNAVAL. ................2258
“MEMÓRIAS NEGRAS”: CONFLITOS EM TORNO DO MEMORIAL DAS BAIANAS EM
SALVADOR – BAHIA ..........................................................................................................................2268
O ESTUDO DA JOALHERIA AFRICANA DO MAFRO/UFBA: EM BUSCA DOS SUJEITOS
PRODUTORES ......................................................................................................................................2287
O TRABALHADOR NEGRO NO MUSEU DE ARTES E OFÍCIOS: REPRESENTAÇÃO E
SILENCIAMENTO ................................................................................................................................2301
ENTRE SILÊNCIOS E VOZES: ESTUDO DA COLEÇÃO DE CÓPIAS EM GESSO DE ARTE
CENTRO-AFRICANA DO MUSEU AFRO-BRASILEIRO DA UFBA ..............................................2321
MUSEU, ENSINO E IMPRENSA: EXPERIÊNCIAS NO MUSEU TIPOGRAFIA PÃO DE SANTO
ANTÔNIO (DIAMANTINA, MINAS GERAIS) ..................................................................................2342
PÓS-VISITA AO MUSEU TIPOGRAFIA PÃO DE SANTO ANTÔNIO: O QUE ACONTECE NA

11
SALA DE AULA....................................................................................................................................2357
VISITANTES E MUSEALIZAÇÃO: NARRATIVAS VISUAIS DE VISITAS À DIAMANTINA ....2370
OS INSTRUMENTOS DE TRABALHO DO NEGRO NO MUSEU HOMEM DO NORDESTE ......2386
SUBJETIVIDADES E CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS NA EXPERIÊNCIA DE USO EDUCATIVO
DO MUSEU DE ARTES E OFÍCIOS ....................................................................................................2405
INTERATIVIDADE EM MUSEUS HISTÓRICOS EXPERIÊNCIAS DO MUSEU CASA HISTÓRICA
DE ALCÂNTARA..................................................................................................................................2423

12
História das
coleções e
dos processos
museológicos nas
eras moderna e
contemporânea

13
ACERVOS QUE CONTAM HISTÓRIA: A TRAJETÓRIA DO MUSEU
DE GEOCIÊNCIAS DO IGC-USP ATRAVÉS DE SUAS COLEÇÕES

Miriam Della Posta de Azevedo*


*Museu de Geociências – USP
Maria Margaret Lopes**
**PPGMUS – USP

Resumo: Este trabalho é parte da dissertação de mestrado que estou elaborando para o Programa de
Pós-Graduação Interunidades em Museologia da Universidade de São Paulo.
Trata-se de um trabalho sobre o resgate da história de um museu por meio de suas coleções. O locus
para o desenvolvimento da pesquisa é o Museu de Geociências do Instituto de Geociências da USP,
espaço entendido como um museu, cujo status jurídico é o de acervo de unidade de ensino
universitária. A proposta é, a partir da análise das coleções que atualmente compõem o acervo do
Museu de Geociências do IGc – USP, poder resgatar sua história, que não está registrada na
documentação institucional oficial. A investigação sobre a trajetória das coleções que compõe
atualmente o acervo, através do resgate de informações sobre a coleção, adquiridas de fontes primárias
(periódicos de época, etiquetas de coleção, documentação do colecionador) pode ajudar a recuperar a
trajetória histórica da própria instituição.
As metodologias utilizadas indicam o levantamento da biografia das coleções; deste modo, ao traçar
seu percurso de “vida”, deverá também ser traçada a trajetória histórica do Museu de Geociências da
USP, nunca descrita cientificamente até este trabalho. Para isso serão utilizadas bibliografias que
tratam sobre análise de objetos em Museus, que aqui serão adaptadas para coleções.

Palavras Chave: Coleção; Museu de Geociências; acervo geológico; acervo mineralógico; museu
universitário.

14
Abstract: The work presented in this meeting is part of the master's dissertation that it is been
prepared for the Interunit Postgraduate Program in Museology of the University of São Paulo.
It is a work on the rescue of the history of a Museum through its collections. The locus for the
development of the research is the Museum of Geosciences of the Institute of Geosciences of USP,
space understood as a museum, whose legal status is that of a collection of university teaching units.
The proposal is, based on the analysis of the collections that currently make up the collection of the
Museum of Geosciences of IGc - USP, to be able to recover its history, which cannot be found in the
official institutional documentation. Research on the collection that currently compose the Museum,
through the retrieval of information about the collection, acquired from primary sources (periodical
periodicals, collection labels, collector documentation) can help to recover the historical trajectory of
the institution itself.
The methodologies used include studies in the field of biography of collections; In this way, the
historical trajectory of the Museum of Geosciences of the University of São Paulo (USP), which has
never been scientifically described until this work, should be traced. For this, bibliographies dealing
with object analysis in Museums will be used, which will be adapted here for collections.

Keywords: Collection; Museum of Geosciences; geological collections; mineralogical collections;


university museum.

15
Este é um trabalho sobre coleções, museu e história. Pretende ser um espaço de
encontro entre Museologia, História e Geologia, por meio do estudo da trajetória das Coleções
do Museu de Geociências do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo.
O Museu de Geociências do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo,
conhecido apenas por Museu de Geociências, originou-se a partir do antigo Museu de
Mineralogia da extinta Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da USP. Este, por
sua vez, nasceu da coleção didática da cadeira de Mineralogia e Geologia, Gabinete de
Mineralogia, do curso de Ciências Naturais da FFCL-USP, por volta de 1936.
O acervo do Museu foi originado concomitantemente às atividades da Universidade,
nos anos de 1930, tendo assim, mais de oitenta anos de idade. As coleções estão atreladas à
implantação do curso, por isso, sua história, se entrelaça ao cotidiano docente, discente,
administrativo e cultural do espaço universitário, o que lhe confere um caráter único. No
entanto, com o passar dos anos e dessas mesmas atividades, muita informação essencial se
diluiu, mas nem tudo se perdeu.
O Museu ocupa uma área de 550m2 no primeiro andar do Instituto de Geociências da
USP. A reserva técnica ocupa uma área de 16m2 no térreo do mesmo edifício. A estrutura do
Museu contempla ainda: 1) a partir de 2014, a Oficina de Réplicas do IGc-USP, setor que
atua, desde 1997, na produção de réplicas de fósseis para utilização didática; 2) a partir de
2015, a recém-criada Litoteca do Instituto de Geociências, setor responsável pela salvaguarda
de coleções geológicas de rochas, provenientes de pesquisas científicas de docentes e alunos
do IGc.
Trabalhar com coleções é útil para que elas deixem de ser meros objetos memoriais e
voltem a ser a voz da instituição, ou ainda, pode ser que a instituição descubra que certa
coleção já não está de acordo com a missão institucional e deva ser destituída do acervo. Sem
uma análise aprofundada, uma coleção de museu, é apenas um montante de objetos ocupando
espaço em uma vitrina. Uma coleção pode ser definida como um conjunto de objetos
materiais ou imateriais (obras, artefatos, mentefatos, espécimes, documentos arquivísticos,
testemunhos, etc.) que um indivíduo, ou um estabelecimento, se responsabilizou por reunir,
classificar, selecionar e conservar em um contexto seguro e que, com frequência, é

16
comunicada a um público mais ou menos vasto, seja esta uma coleção pública ou privada.
(DESVALEÈS A. & MAIRESSE F. 2013. Pg.32).
No Museu de Geociências, com o passar do tempo, as coleções iniciais (estabelecidas
de acordo com a definição acima) foram sendo agrupadas umas às outras, de modo que a
caracterização de grupo foi perdida. Atualmente, alguns conjuntos que possivelmente outrora
foram coleções, encontram-se fundidos dentro do grupo maior (coleção) de minerais e/ou
rochas. Pode-se recuperar um conjunto de acordo com seu doador, mas dificilmente é possível
reestabelecer o critério de ordenação que um dia fora proposto, ou seja, motivo pelo qual a
coleção foi incorporada ao Museu.
No início deste trabalho as informações acerca das coleções do Museu eram
superficiais e estavam, na maioria das vezes, escondidas em locais não acessados, o que dava
a falsa impressão de que elas não existiam. Para conhecer melhor o conteúdo do seu acervo,
foi utilizada como base a pesquisa publicada por Helen Fothergill em 2005. No intuito de
fazer um inventário de todos os museus com coleções geológicas na Inglaterra, em
comparação com pesquisa semelhante realizada em 1981, Fothergill elaborou um questionário
para ser distribuído entre instituições inglesas1.
Algumas dessas questões foram aplicadas ao Museu de Geociências: Qual o tamanho
do acervo (em quantidades de exemplares)? Do que ele é composto? Quantas coleções
existem? Há material associado? Existe catálogo publicado? Há material tipo? Há publicações
sobre a coleção? Há pesquisas realizadas sobre o Museu? Algumas dessas perguntas serão
respondidas neste momento, pois colaboram para um conhecimento prévio importante para a
análise das coleções. Outras serão respondidas durante o processo de apresentação das
coleções.

1
Em 1981, o Geological Curator´s Group, elaborou uma pesquisa intitulada “The State and Status of Geology in
United Kingdom Museums”, a qual fornecia um panorama geral sobre a situação das coleções geológicas no
Reino Unido, no que concerne à curadoria, conservação, armazenamento e utilização. Vinte anos depois, Helen
Fothergill propôs uma nova pesquisa, com título semelhante, porém mais incisivo nas coleções (The state and
status of Geological Collections in United Kingdom), para verificar o quanto essas instituições tinham evoluído
ou regredido no intervalo de vinte anos. (FOTHERGILL, 2005).

17
Qual o tamanho do acervo? Há catálogo publicado?
Estima-se que o Museu de Geociências possua cerca de dez mil amostras geológicas.
No entanto o acervo está em processo de inventário desde o final de 2015. A área expositiva,
cujo processo de inventário já está concluído, conta com 2284 amostras de minerais, 40
amostras de mineraloides, 85 amostras de espeleotemas, 810 amostras de gemas, 51 amostras
de meteoritos e 161 amostras de rochas e 14 amostras de fósseis, totalizando 3445 amostras
geológicas expostas. O inventário está atualmente concentrado na guarda intermediária, ou
seja, amostras que são utilizadas esporadicamente, mas por questões práticas (facilidade de
acesso) não estão armazenadas na reserva técnica, que fica em outro local do IGc. Neste
momento, não se pode precisar, portanto, qual o tamanho do acervo do Museu. Uma vez que
o Museu não tem pleno conhecimento do seu acervo, não existe catálogo publicado.

Do que o acervo é composto? Quantas coleções existem?


O acervo geológico do Museu de Geociências da USP é composto por coleções
tipológicas, ou seja, o acervo é agrupado de acordo com o tipo de material geológico, e cada
coleção tipológica possui suas subcoleções. Todas as coleções tipológicas de material
geológico correspondem ao acúmulo decorrente das atividades fim do Museu (apoio didático,
pesquisa docente, preservação e salvaguarda) e são, por isso, mais numerosas e se fazem mais
presentes no cotidiano do Museu. Já as coleções de fotografias são resultado das atividades
meio do Museu (eventos diversos – congressos, inauguração de exposições – atividades
educativas e registro do espaço físico). A coleção de instrumentos científicos, por sua vez, é
resultado da ação de docentes, em sua maioria aposentados, a fim de evitarem o descarte
desses equipamentos. A falta de conhecimento e de afinidade dos profissionais do quadro do
Museu não permitiu que as coleções de fotografias e de instrumentos científicos fossem bem
organizadas e trabalhadas. Por esse motivo elas não serão tratadas aqui. O conteúdo detalhado
de cada coleção será abordado posteriormente no item “apresentação das coleções”.

18
Há material associado? Há material tipo? Há publicações sobre a coleção?
Essas três perguntas podem ser respondidas de uma só vez. Há dois tipos de material
associado às coleções do Museu: histórico e científico. Algumas coleções possuem
quantidade expressiva de material associado. Com relação ao material associado do tipo
histórico, as coleções Luiz Paixão e Schnyder possuem material de melhor qualidade, com
diários e cadernos dos colecionadores. A coleção Dirings possui pastas com relação de
amostras do colecionador. Já o material associado do tipo científico, existe em grande
quantidade para a coleção de amostras tipo. É importante frisar que muitas das amostras
possuem trabalhos publicados em revistas científicas. O resgate do cruzamento dessas
amostras com as respectivas publicações é um trabalho a parte, e merece a devida atenção.

Há pesquisas realizadas sobre o Museu?


O Museu de Geociências tem sido utilizado para pesquisas acadêmicas, em trabalhos
de iniciação científica e mestrado. Destacam-se aqui trabalhos na área de Geociências e
Museologia: CAVALLARO, T. R. (2008); COSTA, I. S. (2012), AZEVEDO, M.D.P. (2013)
E SHIBATA, L. (2015).

Como o acervo foi constituído?


Como um museu universitário, seu processo de formação se deu de várias formas,
entre elas a aquisição, por compra ou doação, de coleções de particulares; transferência de um
museu já existente para a universidade; transferência de um acervo já existente para a tutela
da universidade; por coleta de pesquisa de campo ou, de acordo com a finalidade da
universidade, pela formação de coleções didáticas. “A atitude dos colecionadores, e ou seus
herdeiros, de passar a salvaguarda de uma coleção à universidade, pressupunha que a
instituição era digna, adequada e competente para exercer essa função”. (ALMEIDA, 2001,
pg. 13). Esse pensamento está presente até hoje e continua sendo o principal motivo de
doações particulares ao Museu; foi o que aconteceu, por exemplo, com as coleções de Carlos
L. Schnyder e Victório Estéfano, oportunamente abordadas adiante.

19
Durante a pesquisa encontrou-se duas questões de difícil solução: coleções dispersas
de modo que não se constituem mais como grupos coesos a serem denominados “coleção” e
ausência de documentação institucional que possibilite o rastreamento da entrada dessas
coleções na instituição.
De acordo com LOURENÇO & GESSNER (2014) a utilização das coleções para
estudos históricos é benéfica não apenas para melhorar os procedimentos de conservação e
pesquisa, mas permite que o museu faça uma nova abordagem de seus objetos, propondo
novas exposições e novas propostas educativas. Ainda secundo os autores, a documentação
das coleções oferece um panorama geral da vida do objeto antes de sua entrada no Museu. No
entanto, essa é etapa de vida do objeto mais difícil de ser recuperada, uma vez que quando a
documentação entrou para o Museu, na maioria das vezes não houve preocupação em
preservar seus dados anteriores, e nem os de seus antigos donos. Para conhecer esse panorama
é necessária pesquisa histórica em fontes externas ao Museu.
Baseando-se no trabalho de Alberti (2005), que afirma ser possível escrever uma
biografia dos objetos, fazendo-lhes perguntas similares à que se faz a pessoas, para melhor
compreender as coleções que existem no Museu é possível “entrevistá-las”, a partir de
algumas perguntas: Onde? Por que? O que? Como? Fazer essas perguntas a cada uma das
coleções é trabalhoso e pode ser um desafio, mas certamente esclarecerá muitos pontos até
então desconhecidos, ou não observados pelas pessoas que trabalham com elas.
A inter-relação com eventos externos às coleções, mas que causaram impactos cruciais
a elas, os “pontos críticos”, são essenciais para a compreensão da história da coleção, pois
servem de guia para pesquisas arquivísticas, imprescindíveis para casos nos quais as coleções
são muito antigas e não possuem documentação associada (quase todas as coleções citadas
neste estudo). Em linhas gerais, a análise de coleções propostas por LOURENÇO &
GESSNER (2014), inclui três passos: (1) Identificação atual da coleção; (2) estabelecimento
de parâmetros que possam caracterizar a coleção em algum dado momento no passado; (3)
identificação dos pontos críticos. Parâmetros variáveis e pontos críticos são mutualmente
dependentes e não precisam ser exaustivos.

20
Assim, a análise das coleções envolve: a coleção em si, neste caso, as amostras
geológicas, com suas características naturais e intervenções humanas (marcações do
colecionador, do museu e/ou marcas de intervenção para pesquisa); e outras fontes
documentais associadas a ela, no caso do Museu de Geociências, documentação do
colecionador original (quando houver), documentos de arquivo (documentação textual
administrativa do Museu), imagens (panfletos ou fotografias) e reportagens de jornais. Desta
forma, a pesquisa evolui em frentes simultâneas.
A identificação atual da coleção, parte do pressuposto do que já existe: assume-se que
as informações contidas nos textos de divulgação do Museu e etiquetas da exposição estejam
corretas. Partindo-se do que já existe, pode-se rastrear a informação em outras fontes, e assim,
ratificar ou retificar a informação atual sobre as coleções.
O estabelecimento de parâmetros que possam caracterizar a coleção em certo
momento de seu passado, direciona perguntas à coleção: “onde?”, corresponde à localização
física das coleções: salas que ocuparam/ocupam, locais por onde passaram, mobiliário que
ocuparam/ocupam, entre outras informações possíveis de serem levantadas sobre espaço. “Por
que?”, refere-se ao(s) propósito(s) e meta(s) pelos quais a coleção foi constituída (ensino,
pesquisa, apoio, deleite). “O que/quais?” corresponde aos componentes da coleção: tipos de
peças que a compõe. Enfim, a última pergunta corresponde à interação com pessoas ou
instituições envolvidas no processo de acumulação e chegada até o Museu.
A identificação dos pontos críticos, diz respeito ao levantamento de eventos externos
que tenham tido impacto direto nas coleções, seja para seu acúmulo, mudança de posse ou
desmembramento. São acontecimentos pontuados, de curta duração e grande impacto. Como
todas as coleções estão sujeitas a fatores externos, todas apresentam ponto(s) crítico(s); seu
estudo é crucial para compreender a trajetória histórica da coleção e o motivo pelo qual ela se
encontra no estado atual.
No caso do Museu de Geociências, alguns nomes que atualmente são tratados no
cotidiano do Museu como doadores, na verdade foram coleções. Outros grupos de amostras
que são tratados ordinariamente por sua tipologia, são, na verdade coleções. Deste modo, cada
coleção apresentada a seguir, segue o critério de coleção estabelecido pelo ICOM, assim

21
redefinidas pela autora. Ao lado de cada nome, será indicado como ela é tratada no dia a dia
da instituição. É preciso salientar que, devido ao espaço reduzido, apenas as coleções de
minerais serão tratadas neste trabalho.

Coleção Ettore Onorato, a primeira. (“Amostras do Onorato”)


Todos os documentos institucionais de divulgação do Museu trazem a informação de
que seu acervo foi iniciado com a coleção pessoal do professor Onorato. As amostras de fato
existem, mas não são tratadas como coleção pelos funcionários do Museu, e sim, conhecidas
como “amostras do Onorarto”.
Muitas são as dúvidas acerca da coleção que deu início ao acervo do Museu de
Mineralogia (acervo que originou o Museu de Geociências). A maioria das fontes consultadas
aponta essa coleção como sendo o núcleo formador do Museu. Até o momento não houve
comprovação documental acerca desta coleção ter sido ou não a primeira.

Coleção Araújo Ferraz (é tratada como coleção no museu, embora não haja vínculo
entre as amostras ditas dessa coleção):
Alguns documentos internos, em formato de relatos de funcionários, afirmam ser esta
a segunda coleção mais antiga do Museu. QUEIROZ (1962, pg.9) afirma ter sido adquirida
pelo governo do Estado, em 1935, pelo valor de Cr$ 60.000,00 (sessenta mil cruzeiros), o que
significaria R$ 128.851,76 em moeda atual.2 Tal informação também aparece em reportagem
do jornal O Estado de São Paulo de 19673. Outros relatos dizem que a coleção foi doada pela
viúva do colecionador.
Não foi possível encontrar menções à aquisição dessa coleção por meio de
documentos públicos. José Belmiro de Araújo Ferraz foi engenheiro de minas e chegou a

2
Conversão realizada em 25 de junho de 2017 pelo site da Fundação de Economia e Estatística do Rio Grande
do Sul. Com base em moeda de 1944 (possibilidade de conversão mais antiga disponível no site) atualizada pelo
INCC. Disponível em http://www.fee.rs.gov.br/servicos/atualizacao-valores/
3
Juvenal Kohl de Queiroz foi contratado como conservador, nos anos 1940, tendo sido na prática um tipo de
zelador do Museu. Cuidou da coleção sozinho por mais de duas décadas. As informações que constam no jornal
O Estado de São Paulo, em 1967 foram fornecidas por ele. Foi contemporâneo de Saldanha da Gama e Rui
Ribeiro Franco e pode ter tido, por conta da convivência institucional, informações orais sobre a origem das
primeiras coleções. Seu artigo na Associação Brasileira de Gemologia (fundada pelo Prof. Rui Ribeiro Franco),
não cita fonte das informações sobre as coleções do Museu.

22
assumir interinamente a direção do Serviço Geológico e Mineralógico. Ellert (grifos da
autora) afirma que “Para a montagem do Museu de Mineralogia foi importante a
transferência do acervo mineralógico do Museu Paulista e a aquisição da Coleção Araújo
Ferraz, além de doações de pessoas amigas. (ELLERT, 2007, pg. 53). Tal afirmação
corrobora a ideia de aquisição da coleção, além de atrelá-la ao início das atividades do Museu
(através da palavra montagem). Se foi utilizada na montagem do Museu, a data de 1935
parece se encaixar nesse contexto.
A coleção atualmente em posse do Museu conta com 494 amostras4 de minerais,
sendo estes os representantes de uma fase em que o Museu era um laboratório de aulas
práticas, pois são as amostras mais didáticas em termos de cristalização, hábitos e
procedência. As amostras não formam um arranjo único que as identifique como uma
coleção; não há nenhuma marcação que as identifique como um conjunto. As etiquetas
utilizadas na exposição são as únicas pistas de que pertenceram à coleção Araújo Ferraz. As
amostras foram totalmente incorporadas ao acervo de minerais e receberam, provavelmente
nos anos 1960, um número de inventário, que as descaracterizaram como um conjunto que um
dia formaram. Não há registros feitos pelo colecionador que acompanhem a coleção. Não se
sabe se nunca existiram ou se foram extraviados ao longo dos anos. Resta atualmente apenas
uma etiqueta que se acredita ser original do colecionador.

A Coleção Luiz Paixão (Coleção Paixão)


A Coleção Luiz Paixão, sem dúvida o maior e mais diversificado conjunto de minerais
pertencentes ao acervo do Museu, deve seu nome ao seu colecionador original. Pouco foi
possível descobrir sobre o senhor Luiz Paixão Silva de Araújo Costa (nome registrado nos
cadernos que acompanham a coleção). Apesar de esta ser a coleção mais bem documentada
do Museu, sua chegada à instituição, bem como a vida de seu “autor” não aparece nos
registros institucionais do IGc.
A coleção é composta por minerais brutos, trabalhados, gemas (incluindo uma coleção
de diamantes fancy, que será tratada em outro item) e um meteorito. Há uma documentação

4
Levantamento realizado nos anos 90, sem data.

23
complementar, composta por cadernos do colecionador, onde constam descrições minuciosas
da maioria das peças adquiridas, incluindo fotografias, cartões postais, recortes de jornais e
bilhetes de terceiros, que funcionam como informações adicionais à peça registrada. Esses
cadernos não fornecem informações gerais sobre a coleção, como quantidade geral de peças,
data da primeira aquisição. Não foi encontrado no Museu nenhum documento referente à
entrada da coleção na instituição.
Para um maior esclarecimento sobre o colecionador e a entrada da coleção na
universidade foi necessário recorrer à fontes externas, neste caso os jornais de grande
circulação com acervos digitais abertos à consulta pública5. A pesquisa a esses acervos trouxe
à luz a existência de outra parte da coleção, em posse do Museu de Arqueologia e Etnologia
da USP (MAE-USP). A pesquisa ao acervo do MAE não trouxe novas informações sobre a
aquisição da Coleção Paixão pela universidade, uma vez que o museu também não possui
registros da chegada da coleção à instituição.
Segundo ELLERT (2007, pág. 57) “o Museu de Mineralogia (...) foi muito
enriquecido na década de 1950 com a aquisição do valioso acervo da Coleção Luiz Paixão e
seus respectivos mostruários”. Os mostruários da coleção, segundo relatos de funcionários
antigos, foram descartados no final dos anos 1970, pois sofreram infestações de cupim.
As poucas informações sobre Luiz Paixão foram encontradas no jornal O Estado de
São Paulo. Sabe-se que Luiz Paixão Silva de Araújo Costa foi funcionário do Banco dos
Funcionários Públicos, ocupando o cargo de gerente em 1940. Não foi possível localizar
informações sobre seu nascimento, no entanto, a mesma fonte informa que ele viveu até os 69
anos de idade, tendo falecido em São Paulo em 20 de abril de 1949.
A partir de 1950 o nome de Luiz Paixão entrou para a história da Universidade de São
Paulo, como comprovam as pesquisas realizadas no acervo online do Diário Oficial do Estado
de São Paulo. Partindo da data “1954”, que é citada nos textos sobre a memória do Museu de
Geociências, a pesquisa encontrou a primeira referência a esta coleção em 14 de abril de

5
Para a pesquisa sobre a Coleção Paixão foram utilizados os acervos digitais do Jornal O Estado de São Paulo e
do Diário Oficial do Estado de São Paulo.

24
1950. Após a publicação do inventário em 08 de outubro de 19496, os herdeiros ofereceram a
coleção à USP e após quase um ano da morte do colecionador, a Assembleia Legislativa
doEstado de São Paulo, por meio da Indicação 145, do deputado estadual Salomão Jorge,
indicava ao Poder Executivo do Estado de São Paulo:

a designação de uma comissão de especialistas, (...) para examinarem e


avaliarem a coleção mineralógica, petrográfica, paleontológica e
conchilológica e etnológica deixada pelo falecido senhor Luiz Paixão Silva
de Araújo Costa, opinando, ao final, pela conveniência de sua aquisição pelo
Estado7.

Esta fonte revela ainda que a coleção foi fruto de quarenta anos de pesquisas do
colecionador e não era apenas mineralógica. Luiz Paixão colecionava também fósseis,
conchas e objetos etnográficos, o que contribuiria para várias áreas do conhecimento da
universidade.
Já em 10 de agosto de 19508, uma comissão formada pelos docentes da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras, Professores Doutores Plínio Ayrosa (Departamento de
Antropologia), Rui Ribeiro Franco (diretor interino do Departamento de Mineralogia e
Petrografia) e Victor Leinz (diretor do Departamento de Geologia e Paleontologia) deu o
parecer sobre a coleção. A parte petrológica e paleontológica, com algumas exceções, não
seria de interesse para a universidade. No entanto,

As amostras mineralógicas, na sua grande maioria brasileiras, compreendem


muitos exemplares de interesse científico, muitos deles podendo figurar em
museus. A coleção de pedras preciosas e semipreciosas e os exemplares
coloridos não lapidados constituem material de exposição e estudo. Somos
de parecer que a coleção enriquecerá as coleções já existentes na
Universidade de São Paulo.

6
Diário Oficial do Estado de São Paulo. Ano 59 nº 261, página 16. Sábado 08 de outubro de 1949.
7
Indicação nº 145 de 1950. Diário Oficial do Estado de São Paulo, Executivo, Nº 62, ano 60. pág 01. 14 de
Abril de 1950.
8
Diário Oficial do Estado de São Paulo. Ano 61 nº 85, página 21. Quinta-feira 19 de abril de 1951.

25
Após a emissão do parecer favorável à aquisição da coleção, os mesmos docentes
foram convocados para realizar sua avaliação, publicada em 5 de março de 19519. As partes
mineralógica e petrológica foram avaliadas em Cr$ 1.500.000,00 (um milhão e quinhentos mil
cruzeiros). As partes arqueológica e etnográfica foram avaliadas em Cr$ 250.000,00
(duzentos e cinquenta mil cruzeiros). O valor total da coleção, em moeda atual seria cerca de
R$ 933.262,1110. Apesar do parecer ter sido emitido poucos meses após a Indicação 145, a
verba para a aquisição da coleção só foi liberada três anos depois, em 25 de setembro de 1954
pelo Decreto nº 23.66811, assinado pelo governador Lucas Nogueira Garcez.
O decreto apresentado é o último elo entre a entrada da coleção na Universidade e o
que hoje existe no Museu de Geociências e no MAE. Presume-se aqui que a coleção tenha
sido separada por assuntos, de acordo com os acervos de departamentos que existiam na
FFCL: a porção etnológica da coleção ficou a cargo do Departamento de Antropologia 12 e as
porções mineralógica e paleontológica ficaram a cargo dos departamentos de Mineralogia e
Petrografia e Geologia e Paleontologia respectivamente. No IGc – USP atualmente estão
alocadas na Coleção Didática (amostras paleontológicas e petrológicas) e no Museu de
Geociências (amostras mineralógicas).
A pesquisa ao acervo do MAE13 revelou que Luiz Paixão colecionava exemplares de
diversas partes do mundo, sendo muitos de seus objetos, oferecidos por uma gama de
colaboradores, que incluíam padres missionários em aldeias distantes, herdeiros de
colecionadores e mercadores locais. A data de aquisição de peça mais antiga encontrada nos
diários é de 08 de dezembro de 1937, mas algumas peças remontam ao início do século XX
(no caso de peças que pertenceram a colecionadores anteriores). O MAE possui três cadernos

9
Diário Oficial do Estado de São Paulo. Ano 61 nº 85, página 22. Quinta-feira 19 de abril de 1951.
10
Conversão realizada em 09/06/2017 no através do site do Banco Central.
11
Diário Oficial do Estado de São Paulo. Ano 64 nº 213, página 1. Terça-feira 28 de setembro de 1954.
12
Atualmente a porção etnográfica da Coleção Luiz Paixão encontra-se no Museu de Arqueologia e Etnologia
da USP (MAE-USP), pois no ato de sua criação, em 1989, este museu incorporou as coleções do Acervo Plínio
Ayrosa, que mantinha as coleções etnográficas em posse do Departamento de Antropologia da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas.
13
Para a pesquisa realizada no MAE foram requisitados todos os documentos relativos à Coleção Paixão em
posse da Instituição. No entanto, os únicos documentos existentes são três cadernos do colecionador, nos
mesmos moldes dos que existem no Museu de Geociências da USP.

26
do colecionador, desmembrados por questões de conservação. Estão acondicionados em
pastas plásticas, cada folha do fichário ocupando uma folha de plástico, com as respectivas
imagens, caso haja (as fotografias, cartões e jornais estavam originalmente anexados ao
caderno por clipes de metal). Os cadernos em posse do MAE tem numeração entre 3000 e
4560.
A documentação da coleção em posse do Museu de Geociências conta com nove
cadernos do colecionador, em forma de fichário, todos em seu estado original, tendo sido
retirados apenas os clipes de metal. Os fichários trazem o nome do colecionador, a numeração
dada a cada amostra e sua descrição. Em alguns casos especiais, como já foi dito,
acompanham recortes de jornais com reportagens relacionadas à amostra, cartões postais e
fotografias. Todas as marcações referem-se a minerais.
Apesar de possuírem a mesma tipologia documental de apoio à coleção, a
documentação em posse do MAE tem finalidade histórica, servindo como apoio ao cientista
que deseja pesquisar os artefatos que compõem a coleção; já no Museu de Geociências, essa
documentação é quase corrente, uma vez que, por ser a coleção mais completa do Museu, que
ainda mantém a numeração original das amostras, o caderno do colecionador é
constantemente utilizado para a conferência de informações. No entanto, a marcação era feita
com etiqueta colada na amostra, sendo que muitas se desprenderam com o passar do tempo,
não sendo possível, portanto, fazer uma conferência correta de todas as amostras que
pertencem à esta coleção.
Devido às amostras de minerais pertencentes à Coleção Luiz Paixão terem sido
agrupadas ao total do acervo mineralógico, a quantidade absoluta de peças atualmente no
Museu é desconhecida. Seria necessária, após o término do inventário geral do acervo, a
digitalização dessas informações, para que o montante de amostras da coleção pudesse ser
conhecido. Esse procedimento também possibilitaria saber com exatidão as fontes de
aquisição de amostras de Luiz Paixão.
Os diários revelam que o colecionador possuía amostras de todos os estados
brasileiros, a maioria coletadas por ele mesmo, como comprovam as descrições detalhadas e
as fotografias de campo. O cruzamento de imagens, presentes tanto nos documentos do MAE

27
quanto nos do Museu de Geociências, atreladas às descrições de locais, permitem saber que
Luiz Paixão fazia as coletas para todos os “temas” de sua vasta coleção em um mesmo local.
Regiões amazônicas, por exemplo, eram constantemente visitadas para a coleta de material
etnográfico (uma vez que havia muitas etnias indígenas na região), arqueológico (material
funerário e ritualístico de comunidades indígenas passadas) e mineralógico (obtido através de
atividades de garimpo).
Uma coleção do porte da Coleção Luiz Paixão, mostra que nem sempre a divisão das
coleções em assuntos, no caso dos departamentos de ensino, é a melhor forma de explorar o
material. Numa coleção de história natural como esta, as peças acabam por representar vários
universos do conhecimento, sendo um tanto complicado estabelecer fronteiras. Um exemplo é
o registro nº 4299, do MAE: “hematita com a qual os índios fazem a pintura vermelha em sua
cerâmica”. A utilização da fase oxidada do minério de ferro para a obtenção da cor vermelha é
um processo geológico; no entanto a utilização cultural do material estabelecida pelo ser
humano é etnológica. Uma peça de coleção pode possuir múltiplos significados; rotulá-la a
um assunto específico pode ser a causa da sua subutilização em acervos museológicos.
Dentre os minerais pertencentes à Coleção Paixão, estão os mais admirados do Museu.
O mais famoso é a “ágata olho de coruja”, cuja representação em desenho foi utilizada como
logotipo do Museu durante muitos anos.
Alguns fatores fazem com que a Coleção Paixão se destaque das demais coleções do
Museu. Ela é a coleção que possui a documentação mais completa, que pôde ser rastreada
além dos arquivos institucionais (foi encontrada no diário oficial do estado, ou seja, representa
um discurso oficial do Estado, de apoio à educação superior e à ciência. Daí pode-se ver sua
relevância frente aos outros objetos ou coleções existentes no museu). Desta forma, sua
trajetória conta a história da universidade, novamente, extrapolando os limites do Museu, já
que está presente em mais de uma instituição. É a coleção mais bem preservada e
documentada do Museu, pois já nasceu com status (foi declarada importante por docentes
renomados do quadro da universidade), tendo custado muito dinheiro, e não apenas trabalho
(como as demais amostras resultantes de coletas de campo). Além disso, o Museu ganhou
notoriedade e importância com essa coleção. É provável que tenha sido a partir de sua

28
aquisição que a trajetória da coleção do departamento de Mineralogia se diferenciou das
demais coleções de departamento da FFCL, adquirindo um status de Museu que resistiu às
transformações acadêmicas ao longo de oito décadas. Hoje existe um Museu de Geociências
(cuja predominância tipológica do acervo é de mineralogia), mas não existe um museu de
paleontologia, de química ou de botânica.

Coleção Schnyder (ou Coleção Carlos L. Schnyder):


A Coleção de Carlos Ludovico Schnyder é uma das mais importantes do Museu,
superada apenas pela importância histórica das Coleções Luiz Paixão e Araújo Ferraz.
Acompanha a documentação do colecionador, um tipo de livro tombo, que traz várias
informações a respeito das amostras. Por meio desse livro pode-se saber, por exemplo, onde
foram adquiridas as amostras, em termos de localização geográfica e em termos de
detalhamento de casas comerciais. Foi doada em outubro de 198414 pelos herdeiros do casal
Carlos e Denise Schnyder, após o falecimento de ambos em um acidente de carro. Algumas
peças foram mantidas com a família, a título de vínculo afetivo15, e quase o montante total
doado ao Museu, na condição de que ficasse permanentemente exposta16.
A coleção completa é formada por 1187 amostras que compreendem minerais, rochas
e mineralóides; no museu encontram-se expostas 579 amostras. Do caderno original do
colecionador podem ser extraídas informações como a procedência geológica, a composição
química, origem da amostra (como o colecionador a adquiriu, se foi compra, doação ou
permuta), ano de aquisição e valor de mercado.
Atualmente é a única coleção que está organizada em seu contexto original. Suas
amostras encontram-se expostas em conjunto, separadas das demais amostras da exposição,
em mobiliário diferenciado, em vitrinas antigas do Museu. Sua organização também segue a
classificação Dana, já que se trata de minerais, porém não é dada ênfase a essa classificação,

14
Relatório da Diretoria 1984. Universidade de São Paulo, Instituto de Geociências, 1985. Pág. 05.
15
Informação obtida através de depoimento de Maria Lúcia Rocha Campos à autora, em 17 de fevereiro de
2017.
16
Informação obtida por relato do ex-funcionário do Museu, Daniel Machado, que atuou como técnico de
Museu de 1992 a 2016.

29
como ocorre na exposição sistemática. As amostras expostas foram escolhidas por critério
estético.
O colecionador divide a coleção em três grupos: cristais e minerais; rochas; e
mineraloides. Além disso, as classes nas quais os minerais são divididos demonstram
familiaridade do colecionador com o tema; a página “terminologia”, apresenta descrição
correta do que se refere cada termo utilizado.
Essa coleção, diferente de todas as outras em posse do Museu, permite conhecer o
período exato em que o colecionador esteve em atividade. As amostras aparecem registradas
de acordo com a data de aquisição e cobrem o período entre 1960 (primeiro registro do
caderno) e 1983 (último registro do caderno).
É possível saber também onde as amostras foram adquiridas. O colecionador foi
minucioso ao relacionar, no início do caderno uma lista com 49 fornecedores de minerais. Em
cada novo registro, de acordo com o local de compra, foi colocado o número correspondente
ao lado da descrição. Entre os locais de aquisição destaca-se o estado de Minas Gerais, com
treze fornecedores no total: de Belo Horizonte (nove locais), Ouro Preto (dois locais),
Governador Valadares e Teófilo Otoni (um local em cada). Em seguida está São Paulo com
nove fornecedores no total, todos da Capital, principalmente centro (Praça da República, Ruas
Barão de Itapetininga e 24 de Maio). Aparecem também Rio Grande do Sul, com um
fornecedor em Lajeado e outro em Porto Alegre. Rio de Janeiro e Espírito Santo aparecem
com um fornecedor cada um (Rio de Janeiro e Vitória). No exterior a maioria das amostras foi
adquirida em na Suiça (Zurique com cinco fornecedores), seguida pela Alemanha (um
fornecedor em Idar-Olberstein e outro em Munique), um fornecedor em Paris e um na Pérsia.
A lista relaciona também coletas próprias e presentes.
O grau de detalhamento de informações oferecido pelos registros de Carlos L.
Schnyder é útil na medida em que abre possibilidades para estudos sobre a história do
colecionismo particular, como a verificação de redes de colecionadores que compravam
amostras nos mesmos circuitos (que envolvia garimpos, lojas e feiras). No entanto, esse
assunto merece um estudo a parte, e não será abordado neste trabalho.

Coleção Ricardo Von Diringshofen (no Museu, tratada como Coleção Dirings):

30
Pouco se sabe sobre a entrada dessa coleção no Museu. Leva o nome de seu
colecionador, Ricardo Von Diringshofen (1900-1986), representante comercial da Companhia
Artex, indústria têxtil que ajudou a construir. Foi também um entusiasta em História Natural,
e, apesar do seu maior legado para a história natural ser de insetos (cujo acervo está no Museu
de Zoologia da USP) formou também uma grande coleção de tipologias variadas, incluindo
joalheria egípcia, chifres e marfins, pássaros, conchas, objetos indígenas brasileiros e minerais
(FERREIRA & PRADOA, 2016, pg.118). Composta por 307 exemplares de minerais e
rochas.
Assim como as outras coleções do Museu, foi fundida com o total do acervo, restando
apenas algumas amostras com a numeração original do colecionador. Há exemplares em
exposição e em reserva técnica. Não se tem conhecimento sobre o processo de doação dessa
coleção ao Museu, mas acredita-se que tenha sido encaminhada pelo Museu de Zoologia
(MZ-USP) que recebeu a coleção, por esta ser formada majoritariamente por insetos. Para a
escrita final da dissertação, essas informações serão checadas por meio de pesquisa à
documentação da coleção em posse do Museu de Zoologia da USP.
O material em posse do Museu é composto por duas pastas, a primeira delas numerada
de 1 a 307 e a outra com numerações aleatórias, descritas como 400/500/1000. Pelo catálogo
do colecionador é possível apenas saber a procedência geográfica de cada exemplar e sua
composição química. Não fornece informações como data de coleta, ou tipo de aquisição.

Coleção Victório Estéfano:


Victório Estefano foi um dos fundadores da Malharia Cambuci S/A, atual Grupo
Cambuci, detentor da marca Penalty (FERREIRA & PRADOA, 2016, pg.117). Não foram
encontrados registros na internet sobre suas atividades de colecionador. A coleção foi doada
por Marizina Colferai Estéfano, viúva de Victório, em 18 de agosto de 199317. O conjunto
total da coleção doada ao IGc-USP era composto por livros, catálogos, apostilas, tese,
minerais, rochas, fósseis e artefatos arqueológicos. O material impresso foi encaminhado à

17
Data de doação atribuída. Consta em uma documentação interna da biblioteca do IGc/USP, que atesta a
doação de livros que pertenceram a Vitório Estéfano com a data citada. Acredita-se que a coleção de minerais e
rochas do Museu tenha sido recebida na mesma data dos livros.

31
Biblioteca do IGc, mas o restante não se sabe como foi organizado. O Museu não possui
documentação de doação, nem material do colecionador, apenas uma relação das amostras
que estão na instituição, um total de 109, sendo 26 rochas e 83 minerais. O conjunto original
foi incorporado ao restante do acervo, e as amostras doadas por Vitório Estéfano
acompanham seu nome como doador, e não como “Coleção Vitório Estéfano”.

Coleção Evgeny Semenov (no Museu tratada como Coleção Terras Raras):
Adquirida pelo Museu em 1995, durante visita do professor Evgeny I. Semenov, então
membro da Academia de Ciências de Moscou, ao IGc. A coleção é formada por 57 amostras
de minerais raros e minerais terras raras. Das amostras adquiridas, dezesseis são holótipos. As
amostras são provenientes da Rússia, China, Groënlândia, Tadjikistão, Índia, Kazakistão e
Kirgízia e estão em exposição em seu conjunto total. Esta coleção serve de referência para as
comunidades científicas nacional e internacional que desenvolvem trabalhos relacionados à
mineralogia dos complexos alcalinos carbonatíticos, geologia dos pegmatitos e geologia dos
elementos raros a eles associados. Não foram encontrados documentos que informassem o
valor de compra das amostras.

Coleção de Minerais Tipo (não é tratada como conjunto, apenas como “amostras tipo”):

O Museu possui um conjunto de minerais, expostos em conjunto, que podem ser


tratados como uma coleção. São amostras de minerais tipo, que compreendem holótipos e
parátipos. Todos esses minerais são descobertas recentes, do século XXI, a partir de 2003 e a
maioria são nacionais. O maior doador é o docente titular do IGc-USP Daniel Atencio, que
descreveu treze das catorze amostras da coleção e as depositou no Museu de Geociências.
Apenas uma delas não foi doada por Atencio, mas foi trazida ao Museu por um de seus
orientados. Daniel Atencio é considerado um dos maiores mineralogistas brasileiros da
atualidade e possui até um mineral nomeado em sua homenagem, a atencioíta, descrita pelo
russo Nikita V. Chukanov da Russian Academy of Sciences.
A coleção de amostras tipo do Museu compreende atualmente catorze exemplares,
dentre eles, treze doados por Daniel Atencio, todos brasileiros. Uma relação dos minerais

32
tipos presentes no Museu pode será inserida como anexo para a dissertação final. Além dessa
coleção o Museu possui 15 amostras de mineral tipo na coleção Semenov, mas, por motivos
de catalogação não pertencem ao mesmo conjunto. Um ponto positivo deste trabalho é que,
através do processo de descrição das coleções atualmente no Museu, é possível rever o
processo de catalogação de certos conjuntos e verificar a pertinência de reagrupa-los em
diferentes arranjos, mais adequado às necessidades de pesquisa e de acesso atuais.

Coleção de Gemas

A coleção de gemas possui atualmente 1006 amostras. A coleção abrange gemas


coloridas lapidadas em diversos formatos e também minerais trabalhados em glíptica.
Corresponde as gemas mais comumente utilizadas em joalheria, como as diversas cores do
quartzo, berilo, turmalina e topázio, com exceção do diamante, que forma uma coleção a
parte. O primeiro levantamento dessa coleção registrado no Museu data de 1962, realizado
pelo Prof. Rui Ribeiro Franco. Na ocasião o Museu contava apenas com 252 amostras de
minerais lapidados.
Grande parte dessa coleção é composta por amostras pertencentes à Coleção Luiz
Paixão. Um levantamento realizado nos anos 90 mostra que, num total de 305 peças, 120 (ou
40%) pertencem à Coleção Luiz Paixão, sendo que somente duas delas pertencem à Coleção
Araújo Ferraz.

Diamantes Fancy:
É uma das coleções mais valiosas do Museu, embora tenha pouca visibilidade. Devido
à preocupação com a segurança das amostras, esses diamantes foram expostos raras vezes. É
parte da Coleção Luiz Paixão, mas tratado separadamente devido à sua importância e valor. É
uma coleção bem documentada, com descrição detalhada de suas peças. Esses resultados
originaram um relatório, datado de 17 de maio de 1993, assinado pelo docente aposentado
José Barbosa de Madureira Filho, do Departamento de Mineralogia e Petrologia, Maria Lúcia
Rocha Campos, chefe técnica do Museu na ocasião e Daniel Machado, técnico do Museu.

33
O relatório traz informações detalhadas de cada amostra, classificadas primeiramente
em brutas e lapidadas. Às lapidadas foram descritas de acordo com os seguintes elementos:
coloração, tipo de lapidação, peso (em quilates), medidas e características gerais. Já as brutas,
foram descritas por: peso (em miligramas e em quilates), hábito cristalino (octaedro perfeito
ou irregular), transparência, presença de inclusões e coloração.
A coleção é formada por 39 diamantes lapidados, 40 diamantes brutos e duas peças de
joalheria em ouro com diamante bruto. Em 2008 foi base para a dissertação de mestrado de
Tatiana Ruiz Cavallaro, no Programa de Mineralogia e Petrologia do IGc/USP. Cavallaro
refez as pesagens e medidas realizadas em 1993, além de selecionar alguns exemplares para
análise com espectroscopia UV-VIS a fim de estudar centros de cor e aferir se a coloração do
espécime era natural ou produzida artificialmente (CAVALLARO, 2008).

Conclusões
Este trabalho pretendeu apresentar as coleções em posse do Museu de Geociências do
Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo e indicar de que forma é possível,
através da metodologia de análise de coleções, preencher as lacunas de informação
pesquisando não a história da instituição, mas a história de cada coleção.
As histórias das coleções são relevantes, pois têm pontos em comum que ajudam a
entender a trajetória da instituição à qual estão vinculadas. A metodologia utilizada consistiu
em levantamento bibliográfico sobre biografias de objetos, aqui adaptadas para coleções, e o
levantamento de documentação paralela sobre as coleções (periódicos de época, registros de
memórias, entre outros). A partir disso realizou-se então: a identificação atual da coleção;
estabelecimento de parâmetros que possam caracterizar a coleção em algum dado momento
no passado; a identificação dos pontos críticos.
O estudo das coleções do Museu levantou pontos críticos comuns a muitas
instituições: dispersão de coleções (no caso da Coleção Luiz Paixão), extravio de
documentação relacionada, e erros de registro são os principais deles.
A importância deste trabalho está na possibilidade da escrita de uma narrativa
histórica consistente sobre o Museu de Geociências da USP, através do levantamento de

34
informações inéditas sobre a trajetória do Museu. Há ainda a abertura de novas possibilidades
de exploração do acervo, que pode se traduzir em novas exposições e ações educativas.
Cabe ressaltar que o presente trabalho poderá servir de base para uma futura
redefinição institucional das coleções do Museu, baseado nos mesmos critérios de
agrupamento utilizados neste trabalho: relevância histórica (do conjunto e/ou do doador),
importância temática do conjunto, tipo de entrada no museu, entre outros.

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36
A FORMAÇÃO DE UM ACERVO DE MODA: A SEÇÃO MODA
DA COLEÇÃO AMAZONIANA DE ARTE DA UFPA.

Sammya Daniele Paixão dos Santos*


Marcela Guedes Cabral*
*Universidade Federal do Pará

Resumo: Este artigo busca refletir sobre a formação de acervos de vestuário a partir do processo de
musealização do acervo formador da Seção Moda da Coleção Amazoniana de Arte da UFPA.
Considerando o crescimento da criação de acervos de vestuário e seus acessórios, objetivamos refletir
sobre como objetos de moda, que a priori estão relacionados com a efemeridade e seu rápido
consumo, podem vir a ser objetos-documentos, dignos de um trabalho de salvaguarda, por meio das
ações de musealização, mais especificamente, a Documentação de Acervos Museológicos. São
abordados nesse trabalho os conceitos de musealização e documentação museológica, focando no
processo desenvolvido junto ao acervo da Seção Moda da Coleção Amazoniana de Arte da UFPA.

Palavras-chave: musealização; documentação; Coleção Amazoniana; vestuário.

Abstract: This article objective to reflect on the building of clothing collections from the process of
musealization of the Fashion Section of the Amazonian Collection of Art of UFPA. Considering the
growth of the creation of clothing collections and their accessories, we target to reflect on how objects
of fashion, which a priori are related to an ephemerality and its rapid consumption, it can become
documentary objects and it worthy of a safeguard work, for Medium of musealization actions, more
specifically, the Documentation of Museological Collections. They are approached in the conceptual
work of musealization and museum documentation, focusing on a process developed together with the
collection of the Fashion Section of the Amazonian Art Collection of UFPA.

Key-words: musealization; documentation; Amazoniana Collection; clothing.

37
Introdução
A formação de coleções abertas à visitação de acervos que envolvem peças e
acessórios de vestuários no Brasil não é algo novo. Segundo Viana (2016), em setembro de
1933, a Coleção de Têxteis do Instituto Feminino da Bahia foi aberta ao público em uma
exposição de Arte e Lavores, na qual apresentava peças de indumentárias colecionadas por
Henriqueta Martins Catharino. O mesmo autor também cita o Museu de Indumentária de
Santa Teresa, no Rio de Janeiro, também chamado de Museu de Indumentária Histórica e
Antiguidades, constituído pelo acervo de peças de vestuários tradicionais de diversas partes
do mundo da colecionadora Maria Sophia Jobim (VIANA, 2016, p. 38).
Atualmente, nota-se no Brasil um rápido crescimento de museus, galerias, instituições
afins, colecionando e expondo roupas antigas e contemporâneas. Deste modo, observamos
que estes objetos são entendidos como portadores de informações, de identidade e indicadores
de memória, Stallybrass (2008), dessa forma observamos o vestuário para além do simples ato
de cobrir o corpo para proteção, por pudor ou distinção social (PERROT, 1994. apud,
OLIVEIRA, 2009, p.71). A roupa persiste ao tempo podendo carregar informações tanto de
quem a vestiu, quanto de quem a produziu ou idealizou; o uso de materiais e técnicas de
produção de uma época e todo o seu contexto. Daí é pertinente a afirmação de Barthes (2005),
quando diz “ […] o vestuário é objeto ao mesmo tempo histórico e sociológico por
excelência. […] o vestuário é, a cada momento da história, o equilíbrio entre formas
normativas, cujo conjunto, apesar disso, está o tempo todo em devir” (BARTHES, 2005,
p.259).
A roupa, na maior parte da sua história, serviu para cobrir o corpo e proteger do frio ou
calor, no entanto, nem sempre essa proteção foi o principal motivo. Segundo Perrot (2008),
vestir é um ato de significar, uma vez que a roupa pode ser compreendida como marca de
diferenciação e distinção de hierarquia, possuindo assim um código de leitura social da
sociedade que a produziu. Em uma outra perspectiva, Stallybrass (2008) salienta a roupa
como um indicador de memória, haja vista que pensar sobre roupas é pensar sobre memórias.
Na esteira da memória, Halbwachs (2003) afirma que a memória, para além de ser um
fenômeno individual, pode ser entendida como um fenômeno coletivo e social. Nesse caso, a

38
roupa é de grande relevância enquanto registro histórico para a sociedade que a produziu, pois
através da sua relação com a memória, a roupa se vincula à memória individual e coletiva.
Com isso Roche (2007) destaca que a roupa nos permite perceber as transformações sociais e
tecnológicas dos aglomerados urbanos (ROCHE, 2007, p.23. apud, OLIVEIRA, 2009, p. 71).
Portanto, podemos afirmar que a roupa assume um papel de objeto-documento, visto que esta
pode ser um importante meio de evidenciar acontecimentos e experiências (FERREIRA,
2015).
Assim, o vestuário possui uma função representativa quando este é selecionado para
integrar uma coleção de museu Benarush (2015). Aqui, para além da ideia tradicional de
museu abarcamos as instituições de salvaguarda, instituições de caráter museológico, como é
o caso da Reserva Técnica do Curso de Museologia da Universidade Federal do Pará.
Consideramos que objeto pode vir a ser um documento, desde que haja uma
intencionalidade. Então podemos pensar o vestuário contemporâneo, que a princípio, é
destinado ao consumo, devido a sua relação com a moda - a qual a priori é algo
intencionalmente efêmero - vir a ser interpretado como documento, como prova de um fato.
Assim, vemos cada vez mais acervos relacionados à moda em espaços como os museus,
devido ao acúmulo sistemático de roupas e acessórios (BENARUSH, 2015, p.29). Esses
acervos relacionados à moda, sobretudo roupas, muitas vezes são provenientes de doações de
empresas do ramo da moda e têxtil ou de estilistas, como é o caso do acervo de moda do
estilista André Lima, que após o encerramento das atividades do seu atelier em 2014 doou seu
acervo para quatro instituições: Fundação Armando Álvares Penteado, o Museu de Arte do
Rio, a Faculdade Anhembi Morumbi e a Universidade Federal do Pará.
André Lima é estilista paraense que expressa, em muitas das suas criações inspiradas
em diversos elementos culturais existentes no estado do Pará e de paisagens e lugares que o
rodeia, levando através de suas peças estas referências às passarelas pelo Brasil (LOGULLO,
2008). Dentre os objetos doados pelo estilista para a UFPA, se destacam as roupas de
passarelas e lojas, documentos de processos de criação, materiais de divulgação do seu
trabalho e clippings (ver imagem 01 02, 03), os quais vieram compor a Coleção Amazoniana
de Arte da UFPA, formando a Seção Moda dentro dessa coleção.

39
Figuras 01, 02, 03: vestido, Clipping e acessórios, peças do acervo doado pelo André Lima.

Fonte: Projeto Ações de Curadoria de Acervo na Seção Moda da Coleção Amazoniana de Arte.

A Coleção Amazoniana de Arte da UFPA é a primeira coleção de arte


contemporânea da Amazônia Legal que busca abordar assuntos sobre esta região de maneira
reflexiva, haja vista que esta coleção é fruto de um longo trabalho de pesquisas desenvolvidas
na UFPA, com projetos de níveis de pós-graduação e graduação, além das produções
artísticas, as quais discutem aspectos a respeito da região amazônica (MANESCHY, 2013, p.
13).
Atualmente, esta coleção reúne obras de trinta e dois artistas que trazem em suas
obras olhares diversos sobre o território amazônico. De acordo com o curador da coleção,
Orlando Maneschy (2014) esta é formada por fotografias, pinturas, objetos, vídeos,
intervenções e instalações, além do acervo de moda recém-adquirido do estilista André Lima.
A maior parte da Coleção Amazoniana está reunida no Museu de Arte da UFPA (MUFPA).
A Seção Moda da Coleção Amazoniana de Arte, foi criada no ano de 2015 em
virtude do recebimento do acervo do estilista André Lima que veio somar com o acervo da
Coleção Amazoniana que está salvaguardada no MUFPA. Entretanto a Seção Moda,
atualmente, é formada apenas pelo acervo do estilista André Lima e está sob a guarda das
Reservas Técnicas - Laboratório de Conservação Preventiva de Patrimônio Móvel do curso de

40
Museologia da UFPA, onde são desenvolvidas ações de documentação de acervos
museológicos, conservação e pesquisa, por meio do projeto de extensão intitulado “Ações de
Curadoria de Acervo na Seção Moda da Coleção Amazoniana de Arte”. Esse projeto visa
desenvolver ações de curadoria que envolve ações de documentação museológica,
conservação, pesquisa e comunicação, no acervo doado por André Lima.
Este acervo é formado por vestuário bermuda, blusa, calça, camisa, macacão, short,
saia, vestido, blazer, bolero, capa, casaco, colete, jaqueta, paletó, suéter, calcinha, cinta-liga,
combinação, corpete, sutiã, estola, xale, body e biquíni. A vinda da doação para a UFPA foi
planejada pelos professores Orlando Maneschy18 e a professora Yorrana Maia19, que após o
recebimento pelo Laboratório de Conservação e Documentação do Curso de Museologia da
UFPA foram iniciadas as ações de musealização.

Musealização
A musealização é um processo em que os objetos são retirados do seu contexto
primário, e passam a estabelecer relações nas quais estes objetos são revestidos com novos
significados (LOUREIRO e LOUREIRO, 2013, p.1). Essa intenção segundo Mário Chagas
(1994) se estabelece como uma construção de um processo seletivo representacional ligado a
uma atribuição de valores, estabelecendo assim um recorte de tudo que pode ser musealizado.
Portanto, observamos que a musealização pode ser entendida como um olhar seletivo, pois é
justamente esse processo de seletividade que dá a determinados objetos a
valorização/importância para ser um objeto museológico, caso contrário seria apenas mais um
objeto comum.
Esse processo compreende um conjunto de atividades que objetiva a preservação do
objeto, bem como as informações referentes a ele. Dessa forma Desvallées e Meiresse
apresentam as etapas que constitui o processo de musealização, que são “preservação
(seleção, aquisição, gestão, conservação), pesquisa (catalogação) e de comunicação (por meio
da exposição, das publicações, etc.)” (DESVALLÉES e MEIRESSE, 2013, p. 58). Deste

18
Prof, Dr. Orlando Maneschi é professor da Faculdade de Artes Visuais da UFPA.
19
Profa. Me. Yorrana Maia é professora do curso de Moda da Universidade da Amazônia (UNAMA).

41
modo, é a partir desses processos que a musealização atribuí aos objetos o status de objeto-
documento, agregando significados diferentes do seu ciclo inicial que envolve produção, uso
e manutenção.
O processo de musealização é um ato de transcendência, apesar desses
procedimentos não estarem, necessariamente, sendo realizados em um museu, uma vez que
entendemos que a museologia teórica permite uma compreensão da ampliação das práticas de
musealização fora da instituição museu. Esse processo permite que esses objetos estejam
inseridos em uma dinâmica cultural e de produção de conhecimento, haja vista que a
musealização nos oferece novos olhares ou múltiplas possibilidades acerca do material que
está sob guarda de instituições de caráter museológico. Nesse sentido, a musealização envolve
ações da Museologia, mais especificamente, denominada por museografia, que é a sua parte
aplicada, a qual possibilita uma comunicação entre sujeitos e objetos a partir do ato que
envolve investigação, reflexão e releitura dos acervos museais.
De acordo com Marília Xavier Cury “A musealização, então, se inicia na valorização
seletiva, mas continua no conjunto de ações que visa à transformação do objeto em
documento e sua comunicação [...] (CURY, 2005, p. 25) ”, ou seja, em outras palavras a
musealização é um processo que tem como efeito a transformação do objeto em documento.
Portanto, podemos concluir que a musealização através das suas ações de
preservação e produção de conhecimento é a valorização do objeto que se dá em diferentes
momentos do processo, indo desde a seleção e comunicação que completa o processo de
musealização por meio de exposição, publicações, ações educativas, dentre outras. Logo
podemos observar que a musealização não é apenas uma mudança de nomenclatura do objeto
comum para objeto documento, mas todo o processo de transformação e ressignificação desse
objeto através das ações que garantem a preservação e a extração de informações que serão
tratadas e analisadas pela documentação de acervos museológicos.
Quando esses objetos passam pelo processo de musealização são inseridos em um
novo contexto, ganhando novos significados, como portadores de informação e testemunhos
de uma determinada cultura e sociedade, devendo ser salvaguardados, pesquisados e
difundidos.

42
Segundo Benarush (2012) atualmente muito se é produzido e muito se é usado, mas
apenas uma parte será selecionada, portanto, não é exagero dizer segundo a autora que a
maioria dos têxteis encontrados em coleções particulares e museológicas são os excepcionais,
os quais, pertenceram na maioria das vezes à elite, pois as roupas comuns do cotidiano,
raramente, sobrevivem a seu usuário. Assim, conforme Benarush o que se leva em conta
como objeto representativo do hoje para a moda contemporânea, é a influência que a roupa
pode ter, principalmente entre seus próprios criadores, pois esta carrega em si a materialização
criativa e as representações imagéticas dos estilistas que movimentam as mudanças da moda.

Documentação Museológica
A Documentação é compreendida como uma segmentação da Ciência da Informação,
relacionada a uma ação exercida sobre documentos, bem como nas suas funções e análises
(SMIT, 2008, p. 11). A Documentação enquanto disciplina fundada no final do século XIX,
por Paul Otlet e Henri La Fontaine, foi estabelecida no início do século XX na Europa, com o
intuito de tratar as informações de forma mais detalhada, bem como a sua organização e
disseminação (MONTEIRO, 2014, p. 20; SMIT, 2008, p.15). De acordo com Smit (2008)
para Paul Otlet, a Documentação é um processo que se ocupa em selecionar, coletar e tratar as
informações referentes aos documentos buscando desenvolver uma melhor organização e
disseminação das informações. Dessa forma, o processo de Documentação envolve métodos
específicos destinados às áreas do conhecimento que trabalham com suporte de informação.
A Arquivologia, a Biblioteconomia e a Museologia são áreas do conhecimento que
promovem a gestão desses suportes da produção intelectual do ser humano, as quais possuem
uma abordagem complementar por parte de um todo da Documentação concebida por Paul
Otlet e Henri La Fonteine (FONTOURA, 2012, p.91). Entretanto, é importante destacar que
segundo Eloisa Barbuy (2008) não podemos considerar a Museologia como uma Ciência da
Informação, haja vista que seus objetivos são distintos.
A Museologia de acordo com Perter Van Mensch (1983) “é definida como um
conjunto de teorias e práticas envolvendo um cuidado e uso da herança cultural e natural”. Ou
seja, é entendido que a Museologia aborda na sua totalidade o material e o imaterial,

43
sobretudo objetos tridimensionais de caráter cultural e educativo. A partir disso, entendemos
que a Museologia e sua relação com a Ciência da Informação deve ser feita em torno das
ideias de documento como portador de informação (BARBUY, 2008, p. 33). Portanto, na
Museologia, a parte que se dedica à preservação e salvaguarda de bens patrimoniais é a
Documentação Museológica. (CERÁVOLO, 2012).
A Documentação Museológica, segundo Padilha (2014) é o registro de toda a
informação referente ao acervo museológico, sendo importante salientar que a documentação
museológica é dividida em dois aspectos: a documentação das práticas administrativas do
museu, que envolve toda a documentação produzida para legitimar as práticas desenvolvidas
pela instituição, ou seja, é a parte relacionada à gestão do acervo; e a segunda é a
documentação de acervos que envolve a produção de dados e o tratamento da informação
extraída de cada objeto.
Assim, sobre o processo de documentação de acervos a definição para Helena Dodd
Ferrez é apresentada da seguinte forma:

A documentação de acervos museológicos é o conjunto de informações


sobre cada um dos seus itens e, por conseguinte, a representação destes por
meio da palavra e da imagem (fotografia). Ao mesmo tempo, é um sistema
de recuperação de informação capaz de transformar [...] as coleções dos
museus de fontes de informações em fontes de pesquisa científica ou em
instrumentos de transmissão de conhecimento (FERREZ, 1991, p.1).

Isto se deve a um processo de técnicas que produzem e organizam as informações


referentes ao acervo, dessa forma permite que essas informações produzidas possam estar
mais
acessíveis. Portanto, segundo Ferrez (1991) a documentação de acervos museológicos é um
sistema intermediário entre as fontes de informação e o público.
Maria Inez Cândido (2006) destaca que além das informações produzidas referentes
aos objetos, por meio dos processos de documentação, a sua representação através de palavras
(documentação textual) e da imagem (documentação iconográfica), é necessária a elaboração
de um instrumento que atenda às necessidades informacionais do objeto, enquanto Ferrez
enfatiza a produção de informação acerca dos objetos. Portanto, Cândido define:

44
A documentação de acervos museológicos como um sistema de recuperação
de informação capaz de transformar acervos em fonte de pesquisa cientifica
e/ou em agentes de transmissão de conhecimento que exige uma aplicação
de conceitos e técnicas próprias, além de algumas convenções visando a
padronização de conteúdos e linguagens (CÂNDIDO, 2006, p.34)

O processo de documentação permite a mudança de sentido de objetos comuns em


objetos documentos, estabelecendo-lhe um caráter representacional, por meio de processos
técnicos que atendam às suas necessidades informacionais. De acordo com Cândido (2006)
esses processos iniciam com a entrada do objeto em um contexto museológico (seleção e
aquisição), e perpassa pela organização e controle (registro, número de identificação,
marcação, classificação, catalogação e indexação), isto considerando a complexidade
informativa do objeto, agora como um documento.
A documentação se dedicou a compreender a definição de documento, o qual é seu
pressuposto central (MONTEIRO, 2014, p. 33). Dessa forma, a definição de documento para
Otlet em sua obra Traitê de Documentation, publicado em 1934 segundo Smit (2008),
qualquer objeto pode ser considerado documento, uma vez que este esteja relacionado à
expressão do conhecimento humano, tornando-se fonte de conhecimento e informação. Anos
mais tarde, a definição mais funcional de documento foi proposta pela francesa Suzanne Briet
em sua obra Qu´est-se que la documentation? (1951), afirmando que “o documento é uma
evidência que apoia um fato”, para isso é necessário que haja uma intencionalidade para que o
signo ou símbolo concreto possa a ser registrado e preservado. Ou seja, para Briet através da
intencionalidade se estabelece um recorte representacional da definição de documento.
No que se refere à documentação desenvolvida no âmbito museológico, para Tânus,
Renau e Araujo (2012) a contribuição de Otlet e La Fontaine na definição de documento foi
importante na ampliação do conceito de documento para além do suporte físico, comumente
compreendido apenas o livro e o papel. Isto, segundo esses autores, permitiu a não restrição
da ideia de documento somente em acervo de arquivos e bibliotecas, dando uma perspectiva
mais ampla, possibilitando sua utilização em objetos tridimensionais.

45
A noção de documento para a Museologia segundo Ferrez (1991) é todo e quaisquer
objetos produzidos pelo homem e, deste modo, esses objetos são em potencial portadores de
informações intrínsecas (análise das suas propriedades físicas, tais como: forma, cor, material,
técnica e tamanho) e informações extrínsecas (informações obtidas por outras fontes com o
intuito de identificar o contexto do objeto e as suas relações de significado), e essas
informações precisam ser identificadas pela documentação museológica. Com isso, o objeto
ao ser inserido no âmbito museológico, perde sua função primária e passa por uma
ressignificação, inferindo-lhe status de documento, devido a sua capacidade de expressar o
conhecimento humano (MONTEIRO, 2014, p.34).
O processo de documentação de acervos museológicos consiste na “seleção,
pesquisa, interpretação, organização, armazenamento, disseminação e a disponibilização da
informação” (PADILHA, 2014, p. 35). A partir disso, podemos observar que a documentação
de acervos se inicia com a aquisição e pesquisa do objeto, dessa forma, nota-se que desde o
processo de seleção o objeto perde e ganha informação, por isso Padilha evidencia a
importância do registro que deve se iniciar desde a aquisição do objeto no acervo.
Nesta perspectiva, Camargo-Moro (1986) explica que há uma série de pré-requisitos
para a aquisição do acervo, tais como, uma documentação prévia para comprovar a veracidade
da origem e procedência das peças, sendo importante para todas as formas de aquisição, tais
como, compra, legado, coleta, empréstimo, permuta e doação. Além disso, Camargo-Moro
enfatiza que nos procedimentos de aquisição, devem ser sistematizados através da numeração,
possibilitando a identificação do objeto e o registro fotográfico de todo momento do processo
de aquisição para evitar perda de informações e o acúmulo de peças sem registro (SANTOS
2000. pg.54).
Após a incorporação do objeto ao acervo, Padilha (2014) ratifica que é
imprescindível um arrolamento. Este instrumento documental consiste em uma lista numerada
com informações básicas dos objetos e uma numeração e marcação de caráter provisório,
dessa forma é recomendada a utilização de etiquetas em papel neutro com a numeração
temporária anexada em cada objeto por um barbante ou fio de algodão cru e sem goma, haja
vista que a numeração de registro e a marcação permanente ou semipermanente, devem ser

46
cuidadosamente pensadas antes de serem aplicadas no objeto e no que diz respeito aos
materiais utilizados e ao local onde a numeração é grafada. Portanto, percebemos que o
arrolamento é fundamental para o conhecimento geral do acervo, pois obtém-se uma noção da
quantidade total de peças e uma prévia classificação do acervo.

Ações de Documentação de Acervos Museológicos no Vestuário da Seção Moda da


Coleção Amazoniana de Arte da UFPA

As ações de documentação de acervos museológicos realizadas na Seção Moda da


Coleção Amazoniana de Arte da UFPA, iniciam-se no ano de 2015, quando foi recebido o
acervo do estilista André Lima no Laboratório de Conservação/Documentação em Reserva
Técnica do curso de Museologia, por meio dos professores Orlando Maneschy e Yorrana
Maia que articularam juntamente com as professoras do curso de Museologia da UFPA, Sue
Costa e Marcela Cabral, a base de curadoria (documentação, conservação, pesquisa e
comunicação) para o tratamento do acervo recém-adquirido, haja vista que este acervo deu
entrada no laboratório em caixas de papelão sem nenhuma relação de identificação dos
objetos.
Assim, as ações iniciais de documentação realizadas no acervo da Seção Moda
compreendem o arrolamento, iniciado no dia 14 de abril de 2015 durante o I Workshop de
Conceitos Básicos e Práticos de Curadoria em Reserva Técnica: Seção Moda da Coleção
Amazoniana de Arte da UFPA, o qual contou com a participação dos alunos do curso de
museologia da UFPA e do curso de Moda da Universidade da Amazônia (UNAMA). A partir
disso, o acervo foi dividido em cinco grupos para melhor viabilizar esse procedimento, tais
grupos são, vestuário, amostra de estampas e tecidos, acessórios, acervo documental e
aviamentos representados respectivamente cada um com uma numeração romana. Com isso,
foram arrolados o total de novecentos e cinquenta e dois (952) objetos do acervo em geral.
Tabela 01: Visão geral do arrolamento
NÚMERO GRUPO QUANTIDADE
I Vestuário 256
II Amostra de estampas e tecidos 56

47
III Acessórios 239
IV Acervo documental 284
V Aviamentos 117

Sabendo que este acervo trabalhado na Seção Moda é bastante diverso, tanto na
forma quanto na função, foi desenvolvido um modelo de ficha de arrolamento para a
quantificação do acervo. Essa ficha é composta por seis campos: número de ordem,
numeração provisória, objeto, estado de conservação, descrição e observação, sendo que no
modelo de ficha trabalhado no acervo de vestuário, foi inserido o campo “Título”, o qual foi
preenchido somente quando a peça é acompanhada com um Tag20 com as informações do
desfile e sua respectiva coleção e o nome intitulado por André Lima, sem essa informação é
inserido neste campo a indicação “SR” = sem referência, indicando que a peça não possui
título ou este ainda não foi identificado. Além disso, com a tag é possível identificar também
a coleção a qual a roupa desfilou, o tamanho, as cores utilizadas e o tipo de tecido que
compõem a peça, como pode ser visto na imagem abaixo.

Figura 04: informações da peça na Tag.

Fonte: Projeto Ações de curadoria de acervo na Seção Moda na Coleção Amazoniana de Arte da UFPA.

20
Tags são etiquetas com informações referentes à coleção e ano, título da peça, o nome do estilista e a sua
marca (grifo nosso).

48
A numeração provisória estabelecida para o arrolamento foi utilizada a codificação
alfanumérica dividida em quatro partes “RTM.AL. I.01” tais siglas é referente à Reserva
Técnica de Museologia, “AL” compreende o acervo do André Lima, “I” número em
algarismo romano que corresponde o grupo do acervo de vestuário e o número sequencial dos
objetos, como observado na imagem abaixo. Assim, é importante salientar que em caso de
desdobramento é acrescentado ao final do número uma letra minúscula.

Figura 05: Etiqueta com a numeração provisória.

Fonte: Projeto Ações de curadoria de acervo na Seção Moda na Coleção Amazoniana de Arte da UFPA.

Entretanto, sabendo que se trata apenas de um arrolamento, o qual consiste em uma


listagem apenas com informações básicos dos objetos, para a otimização do tempo e
praticidade, foi desenvolvido em formato de tabela no programa Microsoft Word, um novo
modelo para o arrolamento do acervo de vestuário, formado por sete campos, número de
ordem, numeração provisória, objeto, título, estado de conservação, descrição e observação,
assim observamos que nesse modelo de ficha foi adicionado o campo “Título” para atender às
necessidades desse acervo. Em seguida ao final da ficha foi desenvolvido um glossário de

49
preenchimento, o qual segundo Camargo-Moro (1986) é um elemento de instrução
convencionado para cada um dos campos da ficha. Esse modelo de ficha de arrolamento mais
detalhada permitiu o reconhecimento geral do acervo, tanto da quantificação do acervo quanto
a avaliação do estado de conservação. A partir disso, foi possível sistematizar as informações
referentes ao acervo de vestuário estabelecendo um plano de classificação do mesmo, com o
intuito de desenvolver um vocabulário controlado.

Ficha catalográfica
Segundo Camargo-Moro (1986) para o preenchimento da ficha catalográfica é
necessária a exatidão da informação, por isso desenvolver um vocabulário controlado é
extremamente importante para uma padronização dos termos. Deste modo, através da
listagem do acervo, foi possível ter acesso a informações de forma mais prática e rápida.
Logo, a classificação das peças foi realizada conforme Thesaurus para acervos museológico,
mas para a definição dos termos foi utilizado a publicação “Termos básicos para a
catalogação de vestuário” do ICOM (2014), pois o acervo em questão, é formado por objetos
de moda, no qual o Thesaurus não foi suficiente para definir todas as terminologias para o
preenchimento da ficha catalográfica.
De acordo com Ferrez e Bianchini (1987) a classificação do objeto se constitui em
um dos passos metodológicos mais importantes na construção de terminologia referente ao
acervo. Assim, a classificação do acervo de vestuário de acordo com Thesaurus, tem a sua
Classificação como “Objeto Pessoal” e sua subclassificação “Peça de Indumentária”
conforme a tabela abaixo.

Tabela 02: Esquema classificatório para o acervo de vestuário.

CLASSE SUBCLASSE TERMOS (nome de objetos)


Objeto Pessoal Bermuda, blusa, calça, camisa, macacão,
short, saia, vestido, blazer, bolero, capa,
Peça de Indumentária casaco, colete, jaqueta, paletó, suéter,
calcinha, cinta-liga, combinação, corpete,

50
sutiã, estola, xale, body e biquíni.

Fonte: FERREZ e BIANCHINI, 1987 e CÂNDIDO, 2008.

A definição dos termos gerais para o acervo de vestuário seguiu o conceito


estabelecido na publicação Termos Básicos para a Catalogação de Vestuário do ICOM
(2014), para cada termo, tendo sido elaborado um esquema dos termos conforme os critérios
estabelecidos pela publicação Termos Básicos para a Catalogação de Vestuário do ICOM.
No sistema de documentação de acervos museológicos deve-se evitar a perda de
informação referente ao acervo, deste modo Camargo-Moro (1986) salienta que o objeto
precisa ser documentado desde a sua aquisição. Portanto, observa-se que desde a entrada do
objeto no acervo, são produzidas informações relacionadas ao objeto, de princípio,
documentar a peça de forma completa de acordo com Camargo-Moro que exige um sistema
apropriado com base na estrutura técnica do objeto de forma especializada, bem como a
adoção de algumas convenções que serve como medidas de controle e manipulação da
informação.
Dessa forma, é importante elaborar um instrumento que visa registrar e sistematizar
toda e qualquer informação referente ao objeto, bem como a sua classificação, descrição e
localização dentro do acervo, buscando a rápida recuperação de informação, (CÂNDIDO,
2006, p.36). Para isso, é constituída uma ficha catalográfica, a qual conforme Camargo-Moro
é um instrumento de documentação que sistematiza com maior profundidade as informações
intrínsecas e extrínsecas do objeto.
Para a elaboração do modelo de ficha catalográfica para o acervo de vestuário da
Seção Moda, o primeiro procedimento consistiu no registro individual do objeto de caráter
provisório, entretanto, pois ainda não houve a oficialização da doação do acervo em geral.
Sendo assim, a identificação dos objetos de vestuário no acervo permaneceu a numeração
alfanumérica “RTM.AL. I.00”.
Em seguida, foi criado um plano de classificação do acervo para vestuário, bem
como as definições das terminologias gerais, haja vista que cada peça do acervo de vestuário

51
possui terminologias específicas, mas para este trabalho, os termos definidos foram no seu
âmbito geral buscar a organização e o agrupamento do acervo em categorias iguais.
Foram realizados os registros fotográficos de cada um dos objetos destes, os quais
contaram com as peças vestidas em um manequim, assim foi possível otimizar a identificação
e a definição dos termos gerais e específicos das peças.
Deste modo, foi criado um banco de dados com informações intrínsecas dos objetos,
contendo a ficha do arrolamento, com informações referentes à numeração, termo, título,
avaliação e um breve diagnóstico da conservação das peças, além do seu registro fotográfico,
os quais são importantes para o preenchimento da ficha catalográfica.
Portanto, foram definidos os campos integrantes básicos da ficha catalográfica, tais
como os campos; de numeração, dos termos, origem, procedência, datação, material, técnica,
autoria e imagem. Para os campos integrantes das análises do objeto, foram pensados com o
intuito de organizar e sistematizar as informações provenientes de pesquisa sobre cada um dos
objetos, favorecendo a otimização e eficiência para a recuperação de informação, assim os
campos definidos são referentes ao histórico, publicações e características iconográficas e
estilistas, seguido de um campo de referências para o preenchimento da ficha. Esse modelo de
ficha busca manipular o maior número de categorias de informações referentes às peças,
garantindo assim o maior acesso e uso das informações referentes aos objetos.

Considerações finais
Portanto, concluímos que esses procedimentos da documentação de acervos
museológicos são etapas da musealização que busca a salvaguarda desse acervo, haja vista
que a documentação é uma prática fundamental para a produção, organização e sistematização
de informação referente aos objetos de qualquer coleção museológica.
Sabendo que o acervo da Seção Moda chegou no Laboratório de
Documentação/Conservação do curso de Museologia da UFPA, sem nenhuma identificação
das peças, a qual foi realizada por meio do arrolamento, a identificação dos termos gerais e a
quantificação das peças existentes no acervo. Em seguida, foi definida a classificação e a
subclassificação dos objetos de vestuário, para o desenvolvimento de uma divisão no acervo
da Seção Moda por meio da classificação conforme os critérios do “Thesaurus para acervos

52
museológicos”. Após essa etapa, foi pensado nos metadados específicos para as necessidades
do acervo em questão com vistas a criação da ficha catalográfica. Tudo isto, buscou através
desses instrumentos documentais, a melhor organização, sistematização e recuperação de
informações de cada objeto desse acervo.
Pois, considerando o caráter patrimonial do acervo André Lima, os procedimentos
realizados neste acervo, visam à preservação das peças para conhecimento das futuras
gerações, haja vista que este acervo é um importante registro da moda brasileira do século
XXI, e permite refletir aspectos da moda contemporânea por meio das cores, cortes e
formatos das peças, das estampas dos tecidos, dos acessórios e do acervo de documentos
contemplados na doação recebida, que compõem a o acervo referida seção.

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Eduardo Polidori*
*Universidade de São Paulo

Resumo: Destinadas aos grandes museus, as representações artísticas de grandes episódios do passado
serviam para comunicar a unidade política nacional por meio da partilha de valores cívicos e morais.
Enquanto prática pedagógica, a instrução pelo olhar enseja a necessidade de problematizar as
condições, agentes e tensões presentes na constituição de acervos públicos, especialmente em relação
aos processos de musealização e permanência no circuito expositi- vo. Apresentaremos as condições
de incorporação da tela Fundação de São Vicente (o.s.t., 385 x 188cm, 1900) ao acervo do Museu
Paulista e hipóteses preliminares para sua exibição nas exposições planejadas por Hermann von
Ihering e Afonso Taunay.

Palavras-chave: Fundação de São Vicente; Museu Paulista; Benedito Calixto; Hermann von Ihering;
Afonso Taunay.

Abstract: Destined to the grand museums, the artistic representations of great episodes from the past
served to communicate the national politics unity by sharing civic and moral values. As a pedagogical
practice, the instruction by the look meets the necessity to discuss the agency conditions and
contemporary tensions in the public’s services constitution, especially related to the musealization
processes and permanency in the exhibition circuit. The incorporation conditions of the Fundação de
São Vicente (o.c.c., 385x188cm, 1900) to the Museu Paulista’s collection will be shown, as weel the
preliminary hypothesis to it’s planned exhibition by Hermann von Ihering and Afonso Taunay.

Key-words: Fundação de São Vicente; Museu Paulista; Benedito Calixto; Hermann von Ihering;
Afonso Taunay.

56
Encomendada ao pintor Benedito Calixto, a tela “Fundação de São Vicente” foi
exibida pela primeira vez na comemoração vicentina organizada pela Sociedade
Commemoradora do IV Centenário da Descoberta do Brasil, em 1900. Bastante apreciada na
época, a descrição de seu conteúdo visual apareceu em jornais de grande circulação nas
cidades paulistas.21 Com o fim da exposição, em 13 de maio, a tela voltou a ser noticiada
apenas em novembro, quando foi doada ao governo do Estado de São Paulo como
agradecimento pelas verbas destinadas à organização das festividades.22
Na ocasião, Calixto foi recebido por Hermann von Ihering, diretor do Museu Paulista.
Era 10 de novembro, segundo noticiaram o Commercio e O Estado de São Paulo.23 É
provável que tenha acompanhado o transporte e o processo de desembalagem e instalação da
obra, ou representado a Sociedade Commemoradora como diretor das programações do IV
Centenário. Dois dias depois, von Ihering escreveu a Bento Pereira Bueno, então titular da
Secretaria do Interior, informando a alocação da tela na sala B-11, situada na ala oeste do
Monumento do Ipiranga, por vontade do próprio pintor, e cobrando um documento que
atestasse oficialmente sua doação ao governo do Estado.24
O secretário atendeu a solicitação cerca de um mês depois, e remeteu a von Ihering um
ofício timbrado e assinado por Gregório I. de Freitas, presidente da Câmara Municipal de São
Vicente e da Sociedade Commemoradora.25 No relatório de atividades referentes a 1899 e
1900, a tela já foi mencionada entre as novidades do acervo do Museu.26

21
E.g., O Estado de São Paulo, Correio Paulistano, Cidade de Santos e o Vicentino.
22
Correspondências. Dossiê do pagamento da tela Fundação de São Vicente. Acervo Benedito Calixto, Fundo
IHGSP/APESP.
23
O Commercio de S. Paulo e O Estado de S. Paulo, 11 de novembro de 1900.
24
Ofício de Hermann von Ihering a Secretaria do Interior, 12/11/1900. Fundo Museu Paulista, Pasta 74. O
documento aparece registrado com o número 91 no Livro de Registros de Protocolos Enviados do Museu, p. 30-
31.
25
“Com a mais sabida consideração tenho a honra de levar ao conhecimento de V. Exa. Que o Exmo. Dr. José
Cesario da Silva Bastos foi auctorizado pela Directoria desta Sociedade a fazer entrega ao Exmo. Governo
Estadoal do vosso Estado, da grandiosa tela histórica representando a Fundação da Capitania de São Vicente,
cellula mãe não só do Estado de S. Paulo, como da Patria Brasileira, a qual tela foi pintada pelo artista nacional
B. Calixto por encommenda desta Sociedade para commemorar-se o Quarto Centenario do Descobrimento do
Brasil. Saúde e Fraternidade. Ilmo. Exmo. Snr. Dr. Francisco de Paula Rodrigues Alves. Digmo. Presidente do
Estado de S. Paulo. O Presidente, Gregorio I. de Freitas.” IN: Correspondências. Dossiê do pagamento da tela
Fundação de São Vicente. Acervo Benedito Calixto, Fundo IHGSP/APESP.
26
IHERING, H. von. O Museu Paulista em 1899 e 1900. IN: Revista do Museu Paulista, v. 05, 1902, p. 03.

57
Calixto nunca recebeu os dez contos de réis acordados com a Sociedade Comemora-
dora como pagamento pela pintura. Isso fez com que protocolasse uma petição junto à
Câmara dos Deputados, requerendo alguma indenização ou a devolução do quadro. Em
dezembro de 1905, a Comissão de Fazenda destinou cinco contos de réis ao pintor durante as
discussões de elaboração da lei sobre o orçamento para 1906.27
A despeito desse episódio, a Fundação de São Vicente permaneceu em exibição na
sala B-11 durante todo o período em que Hermann von Ihering ocupou a direção do Museu.
Seu sucessor, o advogado Armando Prado, manteve a tela no mesmo lugar durante os seis
meses que dirigiu a instituição. Foi o engenheiro Afonso Taunay, no entanto, quem promoveu
rearranjos significativos nas salas de exposição e conferiu outras camadas de sentidos à obra
de Calixto.
Reconstituir o trânsito do objeto nas exposições do Museu é um exercício necessário à
compreensão da historicidade dos sentidos curatoriais que lhes foram atribuídos,
relacionando-o aos demais conjuntos de objetos em exibição e, sobretudo, aos significados
agenciados em outras esferas da vida social. Com isso, apresentaremos hipóteses sobre a
alocação da tela nas exposições da sala B-11, destinada por von Ihering às coleções de
mineralogia e paleontologia e da sala A-10, primeira exposição de História organizada por
Afonso Taunay, voltada à documentação cartográfica do período colonial.

A “Fundação de São Vicente” no Museu Paulista (1900-1939)


Construído como homenagem da elite paulista à monarquia bragantina, o “palácio”
neomaneirista de Tomasso Bezzi foi entregue às autoridades paulistas no alvorecer do regime
republicano. Sua função celebrativa foi somada à instalação do Museu Paulista, cujo primeiro
acervo foi constituído a partir das coleções organizadas por Joaquim Sertório, adquiridas e
doadas ao Governo do Estado de São Paulo pelo conselheiro Francisco de Paula Mayrink em
1890.

27
Dossiê do pagamento da tela Fundação de São Vicente. Acervo Benedito Calixto, Fundo IHGSP/APESP.

58
A decisão em atribuir ao Monumento do Ipiranga a função de sediar um museu estava
diretamente atrelada aos interesses de reforma cultural pleiteadas pelo governo da República,
onde a instrução popular ocupava lugar de destaque entre as preocupações mais imediatas.28
A primeira encomenda de um edifício público, já em 1890, foi destinada à instalação da
Escola Normal, precisamente na Praça da República. Fica evidenciada, portanto, a relação
visceral entre a monumentalidade arquitetônica e o projeto republicano de instrução popular
por meio das ciências naturais e do elogio à história pátria protagonizada pelos paulistas.29
A simbiose entre a semântica celebrativa e a modernidade científica faziam do Museu
Paulista, nas palavras de Ana Maria de Alencar Alves, um “monumento à civilização”.30 Na
retórica republicana finissecular, cumpria inserir São Paulo no rol das civilizações modernas,
tendo na arquitetura urbana e nos projetos de instrução popular as fórmulas para o progresso
desejável e para o espelhamento com as capitais europeias.
A criação do Museu Paulista foi regulamentada pelo decreto nº 249 de 26 de julho de
1894. Sua finalidade seria a produção e a difusão do conhecimento sobre a história natural da
América do Sul, do Brasil e de São Paulo, tendo a zoologia e a “história natural e cultural do
homem” como interesses principais. Além das coleções de história natural, haveria também a
coleção de História Nacional e de numismática, além da Galeria Artística, a coleção de obras
de arte adquiridas pelo Estado de São Paulo e alocadas no Monumento do Ipiranga.
Pedro Nery notou que a legislação dissociou os espaços do edifício, cujos usos seriam
divididos entre o Museu Paulista e o Panteão Histórico comemorativo, bem como a diferença
entre a coleção de pinturas, administrada diretamente pelo Estado, e as coleções do Museu,
cujas decisões sobre novas aquisições caberiam exclusivamente a von Ihering. A composição

28
ALVES, Ana Maria do A. O Ipiranga apropriado: ciência, política e poder. O Museu Paulista 1893-1922.
São Paulo: Humanitas, EDUSP, 2001. p. 64, n. 66.
29
A criação do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (1894) é um sintoma desse processo: a agremiação
reunia políticos, intelectuais e burocratas, em sua maioria egressos da Faculdade de Direito de São Paulo e
filiados ao Partido Republicano Paulista. As publicações nas Revistas anuais demonstram a inclinação à ênfase
nos episódios da história nacional protagonizados pelos paulistas.
30
ALVES, op. cit., p. 79.

59
da Galeria Artística, assim, teria se dado de maneira independente. Entre 1894 e 1904, trinta
obras de arte foram adquiridas e alocadas nas dependências do edifício-monumento.31
Conviria mencionar a preocupação de von Ihering sobre a falta de espaço no edifício
para instalar as novas pinturas, explicitada no relatório referente aos anos de 1901 e 1902. 32 A
solução oferecida pelo diretor seria construir um pavilhão próximo ao Monumento, ideia que
nunca foi levada a cabo.
Von Ihering era leitor e correspondente do ictiólogo norte-americano George Brown-
Goode, do Smithsonian Institute, autor de The Principles of Museum Administration. A obra
se tornou referência em fins do século XIX e suas diretrizes previam a possibilidade de uma
coleção ser provisoriamente alocada em um museu provincial, sendo posteriormente
deslocada para uma instituição especializada.33 Nesse sentido, a transferência das pinturas que
compunham a Galeria Artística do Estado de São Paulo foram transferidas em 1905 para a
pinacoteca do Liceu de Artes e Ofícios corrobora a visão do diretor sobre a necessidade de
realocação das pinturas.
No relatório referente aos anos de 1903 a 1905, von Ihering atesta claramente que os
quadros transferidos foram aqueles pertencentes à Galeria Artística.34 Há de se considerar que
as obras de arte remanescentes no edifício-monumento, entre elas a Fundação de São Vicente,
portanto, pertencessem à coleção de história nacional do Museu Paulista, e deveriam compor
o panteão comemorativo. Retomando Brown-Goode, uma de suas proposições era a de que
toda cidade deveria ter uma coleção histórica que representasse seus eventos memoráveis e
sobre os homens que deles participaram.35
Isso explicaria a transferência das telas “Partida da Monção” (o.s.t., 390 x 640cm,
1897), de José Ferraz de Almeida Júnior, e “Primeiro Desembarque de Pedro Álvares Cabral

31
NERY, P. Arte, pátria e civilização. A formação dos acervos artísticos do Museu Paulista e da
Pinacoteca do Estado de São Paulo. (1893-1912). Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação
Interunidades em Museologia da Universidade de São Paulo, 2015.
32
IHERING, H. von. O Museu Paulista em 1901 e 1902. IN: Revista do Museu Paulista, v. 06, 1904, p. 06
33
BROWN-GOODE, G. The Principles of Museum Administration. York: Coultas & Volans Exchange
Printing Works, 1895. p. 17
34
IHERING, R. von. O Museu Paulista nos annos de 1903 a 1905. IN: Revista do Museu Paulista, v. 07, 1907.
p. 14-15.
35
BROWN-GOODE, op. cit., p. 34.

60
em Porto Seguro” (o.s.t., 190 x 330cm, 1900), de Oscar P. da Silva, pinturas históricas
adquiridas pelo governo estadual e incorporadas à Galeria respectivamente nos anos de 1901 e
de 1902, mas cujas temáticas não reportavam a participação dos paulistas nas origens da
nação brasileira. A permanência da “Fundação de São Vicente” se explicaria, assim, pelo
potencial em celebrar o protagonismo paulista na ocupação do território brasileiro durante o
período colonial; já a tela “Independência ou Morte!” (o.s.t., 415 x 760cm, 1888), de Pedro
Américo, celebraria a nação independente, também a partir de São Paulo. Além destas cenas
episódicas, os retratos de personagens históricas também permaneceram, segundo informa o
diretor no mesmo relatório de 1903 e 1905 e conforme estava previsto para a coleção de
História Nacional nos artigos 3º e 4º do decreto nº 249.36
O primeiro guia pelas exposições do Museu Paulista surgiu em 1907 e, por sua
narrativa descritiva, consiste na principal fonte documental sobre o sistema de organização e
exibição de objetos planejada por von Ihering. Até o momento em que foi publicado, a
localização dos objetos se tornou conhecida apenas por meio de referências ocasionais. O
Guia nos informa, por exemplo, que “Independência ou Morte!” era o único objeto em
exposição no Salão de Honra. Já os retratos históricos estavam alocados na sala B-8 que,
conjuntamente à sala B- 9, eram destinadas à exibição das coleções de História Nacional.37
As três salas dedicadas à História Nacional eram as únicas situadas no corpo central
do edifício, muito embora o acesso fosse diferenciado: enquanto o Salão de Honra poderia ser
alcançado pela escadaria principal, o acesso às outras era possível apenas pela escadaria
situada atrás do saguão principal, o que despertou críticas ao suposto desprezo do diretor pelas
coleções de história. É provável, no entanto, que tenham sido alocadas ali precisamente pelo
seu potencial em atrair o fluxo de visitantes para um espaço particular do edifício, conforme
sugerem as diretrizes oferecidas por George Brown-Goode.38
Evidenciamos, portanto, que as salas situadas no corpo central do edifício-monumento
equivaleriam ao espaço destinado ao panteão comemorativo e eram efetivamente ocupadas
pelas coleções de História Nacional. Fábio Rodrigo de Moraes demonstrou, além disso, que

36
IHERING, R., op. cit., O Museu Paulista nos annos de 1903 a 1905, p. 14-15.
37
Guia pelas collecções do Museu Paulista, op. cit., 1907, p. 99.
38
BROWN-GOODE, op. cit., p. 34

61
von Ihering dispunha de critérios claros para a recusa ou aquisição de novos objetos, ainda
que desse maior atenção às coleções de história natural, sendo esta a especialização principal
do Museu.39
As demais salas se dividiam em exibir as coleções de zoologia (B-1 a B-6, B-10, B-14
e B-15), mineralogia e paleontologia (B-11), numismática (B-13) e antropologia e etnografia
indígena brasileira (B-12) e dos índios Carajá (B-16). Pode-se verificar certa descontinuidade
na exposição em função da exibição da coleção de mamíferos nas salas B-14 e B-15, o que se
explicaria, possivelmente, por serem mais espaçosas que as demais. Após 1907, conforme já
explicitamos, os retratos históricos permaneceram na sala B-8, enquanto “Independência ou
Morte!” passou a ser o único objeto exposto no Salão de Honra.40
A localização de uma obra de arte na sala B-11, a “Fundação de São Vicente”, ensejou
críticas à Hermann von Ihering por parte de Afonso Taunay, assim que foi comissionado para
dirigir o Museu Paulista, em 1917.41 As impressões negativas de Taunay foram recebidas pela
historiografia recente, afirmando ser incompreensível a coexistência entre a pintura histórica e
as coleções de rochas e fósseis.42 Nesse sentido, apresentaremos uma hipótese que procura
desconstruir a aleatoriedade da relação entre os objetos expostos conjuntamente,
demonstrando a intersecção entre semânticas homólogas.
Retomemos, de início, o fato de Benedito Calixto ter escolhido a sala B-11 para exibir
a “Fundação de São Vicente”, segundo nos informa um ofício de Hermann von Ihering ao
secretário do Interior, Bento Bueno.43 Das pinturas em grande formato recebidas pelo Museu,
a tela de Calixto foi a primeira a ser incorporada à exposição, o que permite descartar a ideia
de não haver outras possibilidades em função de suas dimensões físicas. Mesmo a

39
MORAES, F. R. de. Uma coleção de história em um museu de ciências naturais: o Museu Paulista de
Hermann von Ihering. IN: Anais do Museu Paulista, v. 16, n. 01, p. 208.
40
Guia pelas collecções do Museu Paulista, op. cit., 1907.
41
Relatório de Atividades referente ao ano de 1917. IN: APMP/MP-USP.
42
BREFE, A. C. F. O Museu Paulista: Afonso Taunay e a Memória Nacional (1917-1945). Editora da
UNESP, Museu Paulista da USP, 2003. p. 90, n. 04: “É o caso, por exemplo, da tela Fundação de São Vicente,
de Benedito Calixto, disposta na sala B11, dedicada à mineralogia e à paleontologia. Além de pedras e fósseis,
a tela ainda divide espaço com pequenos quadros representando gêiseres e paisagens de antigas épocas
geológicas (!), como pode ser constatado pela descrição da sala presente no Guia pelas Collecções”.
43
Cf. supra, n. 04.

62
transferência da Galeria Artística não alterou seu local de exibição, que permaneceu o mesmo
até 1917.
O “Guia pelas Collecções do Museu Paulista” de 1907 informa detalhadamente quais
os objetos em exibição em conjunto com a pintura.44 A descrição detalhada das coleções seria
dispensável para nosso propósito. Interessaria notar, isso sim, a correlação semântica
guardada entre a temática fundacional e as coleções de mineralogia e paleontologia, que
remetem à formação física do território e à antiguidade de sua ocupação.
Observemos a definição que o jornal Correio Paulistano, de grande circulação em São
Paulo no início do século XX, confere à “paleontologia”:

A Paleontologia nos descreve o homem do passado. Ella nos enumera, com


provas paupaveis, as differenças existentes entre nós e os nossos avoengos,
nos demonstra, em synthese, que o ser humano evoluiu sob o ponto de vista
das formas e da sua estructura, desde as epochas prehistoricas até o nosso
tempo. (Correio Paulistano, 11 de abril de 1909, p. 02)

A relação entre a paleontologia e a “Fundação de São Vicente” se dá por meio de uma


troca complementar de sentidos, onde está sinalizada tanto a antiguidade da ocupação natural
do território quanto da ocupação histórica pelo homem: a capitania de São Vicente, que teria
irradiado, desde 1532, o povoamento do território nacional. É esse o sentido da leitura da tela,
segundo pudemos constatar pela carta de sua doação ao governo estadual, assinada pelo então
presidente da Commemoradora, Gregório Inoncêncio de Freitas: “(...) grandiosa tela histórica
representando a Fundação da Capitania de São Vicente, cellula mãe não só do Estado de S.
Paulo, como da Patria Brasileira (...).”.45
Além disso, a representação da natureza é uma temática central em “Fundação de São
Vicente”. O litoral agencia a chegada da civilização e o lugar do encontro entre o indígena e o
colonizador português. A fundação é, em si, um ato político e conciliatório, algo diplomático,
que dispensa suportes físicos. A natureza exuberante e presente é o cenário em que acontece a

44
Guia pelas collecções, 1907, op. cit., p. 102-104.
45
Oficio da Sociedade Commemoradora da Descoberta do Brasil ao Gabinete da Presidência do Estado de São
Paulo, 11/12/1900. Fundo Secretaria do Interior/APESP.

63
concórdia entre as partes. Segundo notou Caleb Faria Alves, o espectador é convidado a olhar
o mar, que se torna uma personagem da composição.46
A descrição do “meio físico”, além disso, remontaria a uma tradição historiográfica
iniciada por Francisco Adolfo de Varnhagen, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
que dedicou o primeiro capítulo de “História Geral do Brasil” à descrição da geografia e da
geologia.47 Essa tradição se replicou em diversos autores ao longo da segunda metade do
século XIX, especialmente em livros de função pedagógica como, por exemplo, “A história
de São Paulo ensinada pela biographia de seus vultos mais notáveis”, de Tancredo do Amaral,
professor da Escola Normal da Praça da República, onde o livro de sua autoria foi adotado.48
O elogio à natureza, demonstra Marcelo da Rocha Wanderley, era um topos retórico
de grande relevância para o discurso ufanista finissecular, fortemente presente entre os grupos
que articularam as comemorações do IV Centenário da Descoberta do Brasil, precisamente
em um momento de grande desconfiança e pessimismo em relação ao regime republicano,
sobretudo em função da crise econômica enfrentada no governo Campos Salles. 49 Assim, a
representação de um litoral exuberante e pacificador converge com o discurso da Sociedade
Commemoradora, cujo desejo era celebrar o protagonismo vicentino no passado nacional.
A cordialidade entre o europeu e o indígena é celebrada assimetricamente em relação
ao processo de ocupação do território paulista, motivado pela expansão da lavoura cafeeira, da
malha ferroviária e da exploração mineral, processo profundamente marcado pela violência na
última década do século XIX. Seja como for, o intercâmbio de sentidos comunicados pela
pintura histórica torna possível que a exposição da sala B-11 fosse dedicada à temática da
origem natural e histórica de São Paulo, à antiguidade de sua ocupação e à primazia paulista
na fundação do território brasileiro. Afinal, como instruía o artigo 2º do decreto nº 249, o
Museu se dedicaria à “história natural e cultural do homem”.

46
ALVES, C. F. Benedito Calixto e a construção do imaginário republicano. Bauru, SP: EDUSC, 2003, p.
216.
47
WANDERLEY, M. da R. Jubileu Nacional: A Comemoração do Quadricentenário do Descobrimento do
Brasil e a Refundação da Identidade Nacional (1900). Dissertação de Mestrado: IFCH/UFRJ, 1998, p. 128.
48
AMARAL, T. A história de São Paulo ensinada pela biographia de seus vultos notáveis. São Paulo: Alves
& Cia., 1895. p. 27-35.
49
WANDERLEY, op. cit., p. 158.

64
O fim da gestão de Hermann von Ihering trouxe mudanças substantivas à exposição da
coleção de História. Já durante o ano de 1917, quando Afonso Taunay assumiu a direção,
duas salas foram inauguradas: a sala A-7, de botânica, e a sala A-10, que expunha mapas,
objetos, cartas, retratos e a “Fundação de São Vicente”. Analisaremos a seguir os novos
sentidos adquiridos pela pintura durante as duas décadas subsequentes à montagem da
exposição. Assinale-se de imediato que não houve uma ruptura brusca no que diz respeito às
coleções de história natural, que, durante as décadas de 1920 e 1930, permaneceram expostas
até sua definitiva transferência. A implementação do projeto de Taunay, no entanto,
ressignificou paulatinamente o papel da História no Museu Paulista, conferindo-lhe grande
poder simbólico na representação discursiva sobre o lugar de São Paulo na formação histórica
do Brasil.
Aberta ao público em 25 de dezembro de 1917, a sala A-10 enunciava as primeiras di-
retrizes de Taunay, cujos compromissos enquanto diretor comissionado foram marcados forte-
mente pelas críticas à leviandade de von Ihering em relação às coleções de História. No
relatório de 1917 ao secretário do Interior, Taunay explicita suas inquietações com a exibição
da tela “Fundação de São Vicente” na sala B-11:

Outro facto demonstra o abandono em que a chamada ‘collecção histórica’


se achava. É diffícil explicar, por exemplo, porque fora uma tela
representando a Fundação de São Vicente alcandorar-se por cima de um
armário de mineraes, na sala de mineralogia e geologia, a quase 4 metros
acima do soalho. Nada ou quasi nada no Museu Paulista lembrava o passado
de São Paulo.50

Esse suposto deslocamento fez com que Taunay afirmasse ser a nova exposição uma
“verdadeira necessidade”, “pois nada havia ali que lembrasse as tradições nacionais ou
regionais”.51 Noutros termos, as pinturas comemorativas e a arquitetura monumental haviam
perdi- do a capacidade em veicular o poder simbólico do que deveriam representar.

50
Relatório de Atividades referente ao ano de 1917, p. 15-16. IN: APMP/FMP P5, D33.16 e D.33.17
51
Relatório de Atividades referente ao ano de 1917, p. 16. IN: APMP/FMP P5, D.33.17

65
O planejamento da primeira sala voltada à exposição da cartografia colonial levou
alguns meses, tendo sido alguns detalhes registrados nas “Chronicas do Museu Paulista” do
ano de 1917. Em novembro daquele ano, por exemplo, Taunay deslocou os retratos de
Bartolomeu de Gusmão, do Padre José de Anchieta e de Domingos Jorge Velho, todos da
autoria de Calixto, da sala B-8 para a sala A-10. Foram solicitados envios de inúmeros
documentos e mapas de outras instituições públicas paulistas, brasileiras e do exterior, a fim
de garantir o maior detalhamento possível nas informações oferecidas pela exposição.
Após meses de montagem, o Correio Paulistano noticiava a abertura da nova sala:

Abre-se ao público, a 25 próximo, no Museu Paulista, mais uma sala de


exposição, no andar terreo do edificio, na galeria da direita. Consagrada á
história de S. Paulo, nella se acham reunidos quadros históricos, numerosos
mappas dos seculos XVI, XVII e XVIII e documentos relativos ás eras
coloniaes, do bandeirismo á independencia, a escriptores, chronistas, etc. (...)
Para commodidade do publico foram quasi todos os documentos traduzidos,
a esta interpretação completando, geralmente, apanhados biographicos
acerca das pessoas a quem se referem as peças documentaes. (Correio
Paulistano, 24 de dezembro de 1917, p. 02)

A resenha jornalística foi acompanhada pela descrição minuciosa dos objetos em


exposição, inclusive as obras de Calixto:

A estes diversos mappas encimam os quatro quadros historicos de Benedito


Calixto: “A fundação de S. Vicemte”, e os retratos de Anchieta, Domingos
Jorge Velho, Bartholomeu Lourenço de Gusmão, já existentes no Museu e
tão apreciados pelo publico. Estão agora em melhor posição para serem
detidamente examinados, recebendo melhor luz. (Correio Paulistano, 24 de
dezembro de 1917, p. 02)

A exposição da “Fundação de São Vicente” em uma sala cuja temática é a cartografia


colonial rearranja sua potencialidade discursiva. A combinação de mapas e documentos com a
pintura histórica revoga, em primeiro lugar, a semântica essencialmente celebrativa guardada
e evocada pela tela durante a gestão de von Ihering. Em segundo lugar, as representações
cartográficas instruem o olhar do espectador a temática da grandeza das dimensões do
território nacional. Há, portanto, uma continuidade importante em relação à apropriação

66
anterior, que já sinalizava a capitania de São Vicente como o “ponto de partida” da expansão
de todo o território brasileiro. Ao construir unidades territoriais concretas, os mapas seriam,
para Benedict Anderson, um instrumento de legitimação do poder de grande apelo visual no
traçar de um “perfil político-biográfico” historicamente situado da nação.52
É fundamental que se tenha em conta, além disso, o interesse de Taunay pelo
bandeirantismo seiscentista. Muito embora suas publicações surgissem apenas durante os
primeiros anos da década de 1920, as montagens posteriores das demais salas de exposição
voltadas à história permitem compreender o lugar central da “Fundação de São Vicente” para
a narrativa sobre a história da São Paulo quinhentista no Museu Paulista.
A articulação desta centralidade se inicia já na disposição do conjunto de objetos na
sala A-10, conforme Taunay relata ao secretário do Interior: “(...) annexei-lhes [à “Fundação
de São Vicente” e aos retratos históricos] uma collecção de documentos e cartas geográficas
(...)”. Em perspectiva relacional, as personagens retratadas são capazes de tornar os mapas e
documentos expostos veículos eloquentes de acesso ao processo histórico que o diretor queria
comunicar aos espectadores.
Fica evidenciada a liderança paulista na formação do território brasileiro. Novamente,
é privilegiado o discurso pacífico e o “acordo político”, entendendo a fundação como ato de
diplomacia entre as partes. A sala recebeu novos objetos ao longo dos anos. Em 1932, a A-10
era uma exposição significativamente mais rica do que a versão inicial apresentada em 1917.
Seria oneroso proceder a uma investigação qualitativa de cada um dos objetos da exposição. É
mister mencionar, no entanto, a “Carta Geral das Bandeiras Paulistas”, incorporada em 1922.
O objeto chama a atenção precisamente por ser alocado de maneira espelhada à “Fundação de
S. Vicente”, servindo também como ponto de equilíbrio visual e tendo certo domínio sobre o
restante do conjunto. [Cf. FIG. 02 e 03].
O sentido de cellula mater, já orquestrado pela Sociedade Commemoradora na virada
do século XX, é redimensionado e aliado aos episódios seguintes da formação territorial do
Brasil: a ação bandeirante e os tratados diplomáticos firmados durante o século XVIII, XIX e
XX, representado pelo Barão do Rio Branco e a questão acreana. Assim, a “Fundação de São
52
ANDERSON, B. Comunidades Imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São
Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 241.

67
Vicente” recebe uma nova camada semântica que a torna a visualidade do Brasil quinhentista
e da legitimidade de São Paulo em liderar a nação brasileira.
Procuramos demonstrar como a pintura histórica “Fundação de São Vicente” foi
mobilizada pelos dois diretores mais expressivos do Museu Paulista durante a primeira
metade do século XX. Muito embora promova continuidades em função de seu próprio
conteúdo, o sentido relacional adquirido a partir da exibição com outros conjuntos de objetos
ajuda a perceber e a problematizar a historicidade dos artifícios de construção da memória
social veiculadas e legitimadas pelos museus de História e sobre como o “passado” é
constantemente mobilizado enquanto instrumento de poder político e simbólico.

Lista de Imagens

Fundação de São Vicente, de Benedito Calixto, 1900. (o.s.t., 385 x 192cm, 1900). Acervo do Museu Paulista da
Universidade de São Paulo.

68
A Fundação de São Vicente na Sala A-10 em 1937. Acervo do Museu Paulista.

A Carta Geral das Bandeiras Paulistas na sala A-10, em 1937. Acervo do Museu Paulista.

69
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72
O MUSEU DO TROPEIRO E A TRAJETÓRIA DE UMA
COLEÇÃO

Milena Santos Mayer*


*UNESP/Assis

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo apresentar apontamentos sobre a trajetória do Museu
do Tropeiro de Castro-PR e a formação de sua coleção. A instituição foi inaugurada em 1977 e é
mantida pela Prefeitura Municipal de Castro desde a sua fundação. O Museu tem por finalidade
preservar a memória do tropeirismo de muares no Sul do Brasil e suas implicações socioculturais no
município. Os dados e as problemáticas apresentadas neste texto resultam do trabalho desenvolvido
pela autora na instituição. Busca-se através deste texto expor o início de uma pesquisa sobre
patrimônio, cultura material e tropeirismo no Paraná.

Palavras-chave: museu; tropeirismo; coleção.

Abstract: The present paper aims to present appointements about the trajectory of the "Museu do
Tropeiro" (Tropeiro's Museum), localizated in Castro-PR, and the formation of its collection. The
institution was inaugurated in 1977, and is maintained by the Municipality of Castro since its
foundation. The purpose of the Museum is to preserve a memory of the "tropeirismo" moviment, about
the transfer of the mules in the brazilian's south, and the sociocultural implications of this moviment in
the municipality. The data and problems presented in the text are resulted from the work developed by
the author in that institution. By mean of this text, the autor pretends to iniciate a investigation based
in research on patrimony, material culture and "tropeirismo" in Paraná State

Key-words: museum; "tropeirismo"; collection.

73
Introdução
Colecionar: reunir um conjunto de coisas por gosto ou passatempo; coligir, compilar,
juntar. Assim é a definição do termo em um dicionário brasileiro de língua portuguesa53,
contudo, compreender as subjetividades do ato de colecionar pode se tornar um trabalho
complexo, ademais quando tratamos de uma instituição de esfera pública e não
exclusivamente de um sujeito ou uma realidade privada.
O filósofo e historiador polonês Krzysztof POMIAN define coleção como “qualquer
conjunto de objetos naturais ou artificiais, mantidos temporária ou definitivamente fora do
circuito das atividades econômicas, sujeitos a uma proteção especial num local fechado
preparado para este fim, e expostos ao olhar do público” (POMIAN, 1984, p.53). Esta
definição compreende os museus, as coleções particulares, as bibliotecas e também os
arquivos. O autor expõe o paradoxo que há no ato de colecionar no que diz respeito ao valor e
a utilidade dos objetos “por uma lado, as peças de coleção são mantidas temporária ou
definitivamente fora do circuito das atividades económicas mas, por outro lado, são submetias
a uma proteção especial, sendo por isso considerados objetos precisos” (POMIAN, 1984,
p.53-54).
Refletindo sobre as origens das coleções podemos destacar os objetos conquistados
através das guerras, os tesouros dos príncipes, coleções que indicavam ascensão social e
também os conjuntos de objetos sagrados, como as relíquias por exemplo. Algumas dessas
coleções “serviam como estimulo à curiosidade e à pesquisa, e outras visavam unicamente ao
estímulo emocional e estética” (HORTA, 1987, p.160). Portanto, esta prática de reunião de
objetos, ou então, a história dos museus, pode ser dividida em três momentos: primeiro no
período da Antiguidade Clássica, quando eram reunidas coleções de arte em templos gregos e
romanos; um segundo momento seria o período do Renascimento, no qual foram criados os
chamados gabinetes de curiosidades, com coleções de objetos raros ou peculiares, bem como
as coleções dos príncipes; já o terceiro momento na história destes espaços distingue-se a
partir dos ideais do Iluminismo, quando os museus europeus foram se modificando,

53
MICHAELIS: moderno dicionário da língua portuguesa. São Paulo: Companhia Melhoramentos, 1998.

74
transformando-se em locais de pesquisas e em instituições públicas (CARNEIRO,2001, p.13-
15).
É com o racionalismo iluminista que os museus se estabelecem como locais de
pesquisa e como instituições públicas. Os burgueses começam a almejar o acesso à arte e à
ciência dando “origem ao museu moderno, com suas funções de pesquisa, educação,
valorização do racionalismo, método e classificação” (POULOT, 2013, p.63).
Após o chamado século das luzes, temos a “Era dos Museus” - o século XIX.
Verificando as datas de criação dos museus mais tradicionais, é possível perceber que o
nacionalismo do século XIX contribuiu expressivamente na ampliação dos museus, com a
criação de novas instituições para além do continente europeu, bem como o fortalecimento
dos museus já existentes. No Brasil o nacionalismo é um forte aliado das instituições
museológicas54, e é através deste mesmo nacionalismo, retomado no século XX, que se tem
uma nova perspectiva aos espaços museológicos e ao patrimônio histórico e cultural
brasileiro. Segundo Maria de Lourdes Horta as coleções brasileiras foram “institucionalizadas
nos ‘grandes museus nacionais’ durante a década de 30, época de perfil político-nacionalista
exacerbado e que coincide cm a criação do SPHAN55” (HORTA, 1987, p. 160).
O antropólogo José Reginaldo Santos Gonçalves, na obra Antropologia dos objetos:
coleções, museus e patrimônios, sugere que este processo de condução dos objetos materiais
do cotidiano para os museus implica uma categoria de pensamento: o colecionamento. “Quem
coleciona o que, ondem segundo quais valores e com quais objetivos?” (GONÇALVES, 2005,
p.24). O autor lembra que “toda e qualquer coleção pressupõe situações sociais, relações
sociais de produção, circulação e consumo de objetos (GONÇALVES, 2005, p.24). Deste
modo, acreditamos que é preciso historicizar e problematizar as práticas da curadoria que
estão na origem de coleções privadas ou institucionais. É preciso compreender que “os

54
Em 1818, 10 anos após da vinda da família real, cria-se o Museu Real com o objetivo de propagar os
conhecimentos das ciências naturais no Reino do Brasil. Ainda no século XIX são criados espaços como: Museu
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838), Museu do Exército (1864), Museu da Marinha (1868),
Museu Paraense Emilio Goelgi (1871), Museu Paranaense (1876) e o Museu Paulista (1895).
55
SPHAN, criado pelo decreto-lei n° 25 de 30 de novembro de 1937, hoje IPHAN – Instituto do Patrimônio
Histórico Artístico Nacional é então responsável pela identificação, documentação e promoção do patrimônio
cultural brasileiro. O órgão deveria organizar, fiscalizar e proteger os bens móveis e imóveis considerados
exemplares de notável valor histórico, artístico, arqueológico ou bibliográfico

75
processos sociais e culturais que levam à escolha desses objetos escapam em grande parte às
nossas ações conscientes e propositais de natureza política e ideológica” (GONÇALVES,
2005, p.29), ou seja, conhecer este processo de reclassificação que eleva os objetos do
cotidiano à condição de patrimônios culturais.

Os museus e arquivos, ao abrigar artefatos de toda ordem, tornaram-se


poderosos colecionadores. Colecionismo institucional e privado
compartilham procedimentos que orientam a produção de sentidos em torno
da definição biográfica de seu titular. Em outras palavras, a coleção alimenta
e molda formas de identidade as mais diversas, desde aquelas de estatura
nacional até outras, de natureza individual e afetiva. O colecionismo é, por
isso uma plataforma estratégica quando se trata de entender aspectos da
reprodução das relações sociais. (LIMA; CARVALHO, 2013, p. 90)

Museu do Tropeiro: um museu temático e sua coleção


A partir deste referencial teórico nos propomos a trazer à tona apontamentos e
reflexões sobre a constituição da coleção do Museu do Tropeiro. Inaugurado em janeiro de
1977 é o primeiro museu sobre o Tropeirismo no Brasil. Localizado no município de Castro,
no Paraná, tem como prédio original um imóvel construído no século XVIII que possui traços
da arquitetura colonial e é tombado pela Coordenadoria Estadual do Patrimônio. Adquirido
pela Prefeitura Municipal de Castro em junho de 1975 na gestão do prefeito Lauro Lopes, a
casa foi destinada para sediar o museu cuja criação se deu pela aprovação do projeto de lei nº
13/1975. Neste período iniciou-se a restauração da sede com o acompanhamento do
Departamento Histórico e Artístico do Paraná vinculado a então Secretaria de Educação e
Cultura.
Para compreender a formação do museu e de sua coleção é importante apresentar
alguns dados biográficos, bem como contextualizar os personagens envolvidos nesse
processo. A protagonista, neste caso, foi a professora Judith Carneiro de Mello. Judith nasceu
em Castro no ano de 1923, diplomou-se normalista em 1942, atuou como professora no seu
município e em Curitiba, dirigiu escolas e aposentou-se em 1983. Filha do Major Vespasiano
Carneiro de Mello, comerciante e político, foi eleito prefeito de Castro por diversos mandatos

76
entre o final da década de 1920 até meados da década de 1950, destacamos o período
ininterrupto de mandato entres os anos de 1936 a 1945.
Durante este período o interventor do Paraná era o senhor Manoel Ferreira Ribas.
Segundo o sociólogo Ricardo Oliveira, Manuel Ribas pertencia a uma tradicional família da
classe dominante no estado e estava vinculado56 também a classe dominante dos Campos
Gerais57 do Paraná, “além disso, era uma importante liderança dos trabalhadores ferroviários,
este conjunto de fatores ajudou a explicar a sua continuidade à frente do poder executivo
paranaense de 1932 até 1945.” (OLIVEIRA, 2004, p.19). Oliveira analisa ao longo de suas
obras a influência e a configuração do poder político no Paraná a partir das relações
familiares. Estas informações podem auxiliar também na compreensão dos fatores que dão
origem ao Museu do Tropeiro. Manoel Ribas no governo do Paraná e o pai de Judith na
administração de Castro.

Outro sinal da conservação de interesses tradicional da classe dominante


paranaense no período de 1930-1945 pode ser considerada pela presença de
membros das famílias que detinham o poder no Paraná desde o século XVII
em cargos importantes. Portanto, nesse período não ocorreram rupturas
significativas desse status quo. (OLIVEIRA,2004, p.20)

Vespasiano Carneiro de Mello foi também deputado e faleceu em 1960. Em meados


da década seguinte, Judith, já no fim da carreira de professora, experiente em viagens
internacionais e com fácil acesso a contatos importantes governamentais deu início aquele que
seria, talvez, o seu maior projeto: a criação de um museu em Castro.
A Associação de Amigos do Museu Tropeiro, no ano de 2013, fez uma publicação em
homenagem a fundadora do Museu. Esta publicação traz alguns dados biográficos,
comentários de amigos e também a transcrição de um depoimento da própria Judith gravado
em 2002 que revela alguns aspectos sobre a criação do Museu do Tropeiro:

56
Casou-se com Zelinda Cândida da Fonseca em Castro-PR.
57
Geograficamente Reinhard Maack (1991) define Campos Gerais como uma região de aproximadamente
19.060 km²: “utilizados predominantemente para a criação intensiva de gado bovino, entende-se desde a
fronteira com o Estado de Santa Catarina até o limite com o Estado de São Paulo” (p.256).

77
“Eu me lembro que o Dr. Newton Carneiro, grande historiador paranaense,
foi quem me despertou essa vontade de conhecer a história de Castro.
Porque, até então, eu não dava muita importância, porque eu não ouvia falar
da história de Castro. Quando o Dr. Newton foi comigo até a casa aonde nós
instalaríamos o Museu de Castro, ele disse: Olha, Judith, me desculpe eu dar
um palpite assim, a minha arrogância, mas eu acho que aqui, nós estaríamos
fazendo um Museu do Tropeiro, que é a origem de Castro. Então, eu pensei e
respondi “Dr. Newton, o senhor está aqui para me orientar, pois eu pretendia
fazer um Museu, porque estou vendo que todas as coisas de Castro, os
costumes de Castro estão se evaporando. (MELLO, 2013, p.25)

Deste modo, durante o processo de pesquisa para instalação do Museu o professor


Newton Carneiro58, então membro do Conselho do Patrimônio Histórico Artístico Nacional,
sugeriu que de acordo com às origens do município se instalasse em Castro um museu
temático, o primeiro museu especificamente sobre o tropeirismo do país.
Newton Carneiro era também membro de família tradicional paranaense, historiador e
professor universitário. Reconhecido pelos seus conhecimentos sobre história da arte e
iconografia paranaense. Após sua morte, em 1987, foi publicado um artigo no jornal O Estado
do Paraná que destaca o seu perfil de colecionador:

Na Avenida Visconde de Guarapuava, uma grande mansão ao estilo


virginiano, rodeada de prédios, guarda o maior acervo das artes plásticas e
documentação iconográfica não só do Paraná mas mesmo uma das mais
respeitáveis coleções do Brasil. Durante mais de 40 de seus 72 anos, o
professor Newton Isaac Carneiro, reuniu pinturas, esculturas, objetos de arte
e, principalmente livros, publicações, documentos que o fariam um dos mais
admirados estúdios da arte no Brasil. (MILLACH, 1987).

58
Obras publicadas pelo pesquisador: A Louça da Cia das Índias no Brasil, São Paulo, Ed. Revista dos
Tribunais, 1943. Iconografia Paranaense, Curitiba, Impressora Paranaense, 1950. As Artes e o Artesanato do
Paraná. Curitiba, Ed. Requião, 1954. O Mate nas Artes Luso-Brasileiras, 1965. Em Defesa dos Chamados
Bens Culturais Brasileiros, Brasília, Impressora Nacional, 1966. Quarenta Aquarelas Inéditas de Debret,
São Paulo, 1970. O Paraná e a Caricatura, Col. Memória Cultural do Paraná, n.º 1, Curitiba, Grafipar,
1975. Chichorro e Seus Calungas, 1975. As Artes Gráficas em Curitiba, FCC, Curitiba, Edições Piol,
1976. A Fábrica de Colombo e a Cerâmica Artística no Brasil, Curitiba, BADEP, 1979. Rugendas no Brasil,
Rio de Janeiro, Livraria Kosmos Ed., 1979. A Arte Paranaense Antes de Andersen, Curitiba, Ed. Casa
Romário Martins, 1980.

78
Este artigo indica também que Newton possuía alguns objetos relacionados ao tema
tropeirismo, inclusive ele doou peças de sua coleção para o Museu recém criado. Continuando
o depoimento, Judith revela seu diálogo com o historiador e como deu início a coleção:

A gente não ouve mais as histórias como eu ouvia de minha avó, e como o
povo vivia diferente. Estou vendo um descaso pela nossa história, nossa
origem. Então, eu fico muito grata que o senhor me dê essa orientação. Eu só
peço uma coisa: que o senhor me ajude a fazer esse museu. Ele falou: “Ah!
Mas eu estou muito satisfeito (...) porque Castro é a cidade depositária de
toda a história do Paraná”. Eu fui vendo que toda aquela história que meu pai
contava, do caboclo de Castro, estava dentro daquilo que eu procurava (...)
em dois meses eu pus todo aquele acervo do museu lá dentro, graças às
amizades do meu pai. No interior do município, aonde eu chegava, eles
diziam: “não posso ir, mas a senhora pode levar o que achar que pode servir
para o seu museu. (MELLO, 2013, p. 26)

Esta história é portanto a história de uma estrutura agrária, não somente composta por
grandes latifúndios, mas também com pequenas propriedades, é o que a historiografia
tradicional paranaense denominou de “sociedade campeira”. A economia era baseada na
subsistência e nas atividades pecuárias. Saint-Hilaire, em sua viagem pela região dos Campos
Gerais, em 1822, descreveu os hábitos e as caraterísticas que encontrou durante o caminho,
segundo o viajante os homens desta região estavam “sempre a cavalo e andavam quase
sempre a galope, levando um laço de couro amarrado à sela, que é de um tipo especial
denominado lombilho (SAINT-HILAIRE, 1995, p. 18).

Não se deve pensar porém, que os habitantes dos Campos Gerias


permaneçam sempre em sua região. Homens de todas as classes, operários,
agricultores, no momento em eu ganham algum dinheiro, partem para o sul,
onde compram burros bravos para revende-los em sua própria terra ou em
Sorocaba. (SAINT-HILAIRE, 1995, p.19)

Este comércio de muares no Brasil meridional é denominado tropeirismo. A expansão


territorial e a comunicação com sul se dá principalmente a partir desta atividade econômica. A
tropeada conduzida por Cristóvão Pereira de Abreu (1731-1732) é um marco de início desta
atividade e de uso do chamado Caminho do Viamão. Foram conduzidas aproximadamente
3000 cabeças de mulas durante esta viagem.

79
A partir de então de todo o sul, inclusive da Argentina e do Uruguai, eram levadas
tropas de muares para a feira anual de Sorocaba. Atravessando as regiões que correspondem
hoje ao estado do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e o Paraná até chegar ao estado de São
Paulo.

Entregues à vida campeira, continuidade dos grupos paulistas de que


descendiam historicamente, vivendo numa região que se constituiu em “zona
de passagem”, entre o Rio Grande do Sul e São Paulo, no período das tropas,
de que participaram intensamente, estabelecendo um contínuo contato com
os paulistas e rio-grandenses, os habitantes dos Campos Gerais tinham,
sobretudo, costumes de gaúchos (MACHADO, BALHANA, 1968, p.38).

Os caminhos, definidos durante o século XVIII, foram determinados a partir do relevo,


seguindo os vales dos rios, mas também pelas trilhas indígenas e principalmente pela procura
dos campos com fartura em pastagens. No decorrer da rota surgiram paradas estratégicas que
transformaram-se em povoados graças ao fluxo de tropeiros. Os locais de pousos das tropas,
pontos de descanso e pernoite, foram se tornando pontos de reabastecimento, de invernada e
até de compra e venda de muares. Era preciso suprir as necessidades dos tropeiros através do
plantio de roças e estabelecimentos comerciais os quais geraram núcleos de povoamento, que
foram expandindo até tornarem-se cidades.
No ano de 2015 realizamos uma pesquisa sobre as Políticas Públicas e os Museus na
região dos Campos Gerais, pesquisando os museus públicos da região concluímos que a
temática do tropeirismo é um ponto em comum da história de formação da região e isto se
reflete nas coleções dos museus. Entre as sete cidades pesquisadas, cinco contam sua história
a partir do pouso de tropeiros, são elas: Castro, Ponta Grossa, Piraí do Sul, Palmeira e
Jaguariaíva. Em Tibagi há um destaque para a mineração e em Telêmaco Borba, que
emancipou de Tibagi em 1964, tem sua história fortemente atrelada a indústria de celulose.
Todavia, em todos os museus pesquisados, inclusive, nestes últimos encontra-se acervo
relacionado ao ciclo tropeiro. Pode-se considerar então que há um discurso padrão, aceito e
disseminado em todas as instituições da região dos Campos Gerais. No entanto, essa
“unanimidade” não se dá gratuitamente ou surge sem conflitos ou intenções, segundo Pierre
Bourdieu:

80
O regionalismo (ou o nacionalismo) é apenas um caso particular das lutas
propriamente simbólicas em que os agentes estão envolvidos quer
individualmente e em estado de dispersão, quer coletivamente e em estado
de organização, e em que está em jogo a conservação ou a transformação das
relações de forças simbólicas e das vantagens correlativas, tanto econômicas
como simbólicas; ou, se se prefere, a conservação ou a transformação das
leis de formação dos preços materiais ou simbólicos ligados às
manifestações simbólicas (objetivas ou internacionais) da identidade social.
Nesta luta pelos critérios de avaliação legítima, os agentes empenham
interesses poderosos, vitais por vezes, na medida em que é o valor da pessoa
enquanto reduzida socialmente à sua identidade social que está em jogo.
(BURDIEU, 2012, p. 124)

Consideramos que todos aqueles que trabalhavam nesta atividade podem ser
denominados tropeiros, e não somente os donos das tropas, entretanto, muitos destes homens
enriqueceram e inclusive pela sua posição econômica tiveram grande participação na vida
política do Sul. Brasil Pinheiro Machado, escreve que os grandes proprietários rurais, os que
detinham grandes fortunas da província, representavam o poder político local. A partir da
emancipação da Província do Paraná, em 1853, o poder local é inteiramente restituído às
classes superiores locais e, especialmente, à classe dos fazendeiros dos Campos Gerais,
constituindo assim uma oligarquia. (MACHADO; BALHANA, 1968)
Para se ter uma noção da influência e do prestígio destes comerciantes a historiadora
Cecília Westphalen constata que entre os anos 1842 e 1888 foram outorgados na região do
Paraná oito títulos de nobreza, sendo seis destes títulos para tropeiros59: Barão de Antonina,
Barão do Tibagi, Barão dos Campos Gerais, Barão de Guarapuava (depois Visconde de
Guarapuava), Barão de Guaraúna e Barão de Monte Carmelo (WESTPHALEN, 1995, p.17).
Neste contexto, Castro se torna no século XVIII e meados do XIX o centro
administrativo de toda essa região. Pelo regime de sesmarias, a Coroa Portuguesa concedia
grandes extensões de terras às famílias que desejassem fixar moradia. O primeiro
requerimento desse caráter, feito por Pedro Taques de Almeida, data de 19 de março de 1704.
O rio Iapó, por sua característica de tornar-se alagado, obrigava os tropeiros a aguardar e

59
Os títulos restantes foram dados aos comerciantes de erva-mate: Barão do Nacar (depois Visconde de Nacar) e
Barão do Serro Azul.

81
acampar. Assim, o antigo Pouso do Iapó evoluiu para a categoria de Freguesia de Sant'Ana do
Iapó no ano de 1774, quando foi construída a primeira capela. A ascensão da Vila Nova de
Castro ocorreu em 20 de janeiro de 1789, em homenagem a Martinho Mello e Castro, então
Secretário dos Negócios Ultramarinos de Portugal. A Vila Nova de Castro foi elevada à
categoria de cidade em 21 de janeiro de 1857, sendo considerada a primeira cidade instituída
após a instalação da Província do Paraná. Durante um período considerável as cidades citadas
acima pertenciam ao território de Castro, a qual centralizava as atividades burocráticas da
região. Ademais, todos os caminhos vindos do Sul passavam por Castro para seguir adiante.
De posse destas informações e amparada pela historiografia paranaense Judith Carneiro de
Mello dá início a coleção do Museu do Tropeiro.
A cultura material relacionada a este tema é bastante diversificada. A lida com os
animais é composta por diversos objetos bem específicos como: freios, selas, pelegos,
estribos, coxonilhos, chicotes, esporas; objetos de carga, como bruacas, canastras, cangalhas,
jacás; objetos de indumentária, como chapéus, botas, ponchos; objetos de uso nos pousos,
bancos, caldeirões, chocolateiras, talheres; objetos de uso pessoal, garruchas, facas, punhais,
bengalas; entre outros artefatos que estão relacionados diretamente ao trabalho, à viagem e ao
comércio de animais.
Observando os documentos institucionais do museu, sabe-se que algumas peças foram
adquiridas pela Prefeitura Municipal, outras pela própria Judith e muitas por doação. Em
razão de ser a única instituição museológica pública do Município, o museu acabou
ultrapassando a temática, ampliando o acervo com móveis, objetos de arte sacra, utensílios
domésticos, objetos de arqueologia, moedas, cédulas, fotografias, obras de arte, livros e
documentos.
Com a ampliação do acervo foi possível no ano de 2004 criar uma outra exposição, em
outro imóvel, denominada Casa da Sinhara. O objetivo do ambiente era retratar a vida da
mulher castrense no período do tropeirismo com ênfase para o cotidiano doméstico. Seria uma
exposição de curta duração, no entanto, a comunidade, os turistas e os dirigentes municipais
apreciaram a proposta e a exposição permanece até os dias atuais com algumas
reformulações, principalmente por mudanças de imóveis.

82
Novos desafios
No ano de 2017 foi concluído o processo de restauro do prédio original do Museu, um
grande avanço para a preservação do patrimônio edificado de Castro. As peças que estavam
em outro imóvel voltaram para a sede definitiva. A exposição de longa duração foi
reformulada de acordo com as possibilidades. Hoje a instituição não possui espaço suficiente
para abrigar adequadamente todo o seu acervo e se faz necessária a construção de uma reserva
técnica. Nesse sentindo, mesmo com dois imóveis à disposição não há espaço para exposições
temporárias e aproximadamente 80% do acervo encontra-se em exposição.
Judith Carneiro de Mello dirigiu a instituição 30 anos, de 1977 até o ano de 2007
quando faleceu. Durante este período dedicou-se ao estudo do tema e também contou com o
apoio dos funcionários do museu e de pesquisadores interessados na história de Castro e do
tropeirismo no Brasil. Através de depoimentos sabemos que as decisões eram tomadas por
ela, ou seja, hoje conhecendo as normas da nova museologia, diríamos que ela deliberava qual
era a Política de Acervo da instituição, bem como existia uma relação de confiança perante os
doadores. As peças eram doadas para Judith.
É nesse sentido que apresentamos o contexto de criação do Museu, posto que segundo
Gonçalves, antes de se tornarem objetos de coleção ou objetos de museus, eles possuíram suas
funções e portanto tem sua própria biografia cultural (Kopytoff, 1986), esta etapa seria apenas
um momento na vida social do objeto.

No entanto esse momento é crucial pois nos permite perceber os processos


sociais e simbólicos por meio dos quais esses objetos vem a ser
transformados ou transfigurados em ícones legitimadores de ideias, valores e
identidades assumidas por diversos grupos e categorias sociais.
(GONÇALVES, 2005, p.24).

Muitos dos objetos que compõe o acervo do museu pertenciam a famílias tradicionais
e abastadas do município de Castro, famílias próximas a família de Judith. Contudo, os
objetos que contam a história do tropeirismo são também objetos comuns do cotidiano da vida
rural no Brasil. Em um artigo dedicado a História da Cultura Material, José D’Assunção
Barros escreve que “tudo pode ser objeto de uma História da Cultura Material” (BARROS,

83
2009, p.6) e também destaca que além da noção de ‘materialidade’, uma outra noção
frequente neste campo de pesquisa é o ‘cotidiano. Sabemos que a principal mão-de-obra no
Brasil em grande parte deste período que corresponde a tropeirismo é a mão-de-obra negra
escrava, ou seja, estas pessoas estão no cotidiano do século XVIII e quase todo o século XIX.
Por diversas vezes os museus são vistos como locais estáticos e velhos, possuindo a
função de guardar “coisas” que não tem mais utilidade ou contar a história dos grandes heróis
nacionais. Espaços da elite intelectual e econômica. De fato, é possível a partir dos objetos do
Museu do Tropeiro produzir um discurso enaltecendo esta elite campeira dos Campos Gerais,
presente na historiografia, nos móveis imponentes, nos objetos de prata e nas louças finas,
elite esta que dominava o espaço político e social. Entretanto, para se contar a história do
cotidiano é preciso falar de todos os atores. “O museu e qualquer política patrimonial devem
tratar os objetos, os ofícios e os costumes de tal modo que, mais que exibi-los, tornem
inteligíveis as relações entre eles, proponham hipóteses sobre o que significam para a gente
que hoje os vê e evoca” (CANCLINI, 1994, p. 113). Este é o desafio.
Ao longo dos 40 anos de atuação a instituição desenvolveu diversas atividades para
comunidade, como exposições temporárias, seminários, palestras, feiras de artesanato,
pesquisas para publicações, entre outras. A partir do ano de 2014 o Museu realizou
importantes projetos de adequação estrutural como por exemplo o projeto de "Documentação
Museológica", resultando na catalogação e tombamento do acervo.
Durante este processo constatou-se que muitas peças não possuíam documentação de
origem ou termo de doação. Algumas informações puderam ser recuperadas em anotações de
agendas que Judith e as funcionárias atualizavam diariamente. Existiam também fichas de
algumas peças, entretanto, com informações incompletas ou pouca descrição dos artefatos. É
possível perceber que a instituição mantinha uma organização própria e a sua memória,
porém, acreditamos que a partir de 2009, com a criação do IBRAM e a implementação de
políticas públicas e leis específicas para o campo museológico brasileiro é possível perceber p
encaminhamento da instituição para adequação de suas práticas a fim de se fortalecer e
garantir a preservação dos bens culturais sob sua guarda.

84
O projeto de Documentação do Acervo resultou na elaboração de novas fichas
catalográficas, na produção de fotografias das peças e no tombamento municipal da coleção.
Muitos museus classificam suas coleções por doadores e fundos de produção, no Museu do
Tropeiro, esta classificação não foi possível. Portanto, as peças foram divididas de acordo
com o possível uso original.
Na sequência, no de 2016 foi elaborado o Plano Museológico da instituição, que é
previsto pela Lei nº 11.904/2009 e caracteriza-se como um documento essencial na gestão de
um espaço museológico. Neste documento as rotinas técnicas e administrativas do Museu do
Tropeiro foram analisadas e os resultados foram organizados de modo a permitir uma visão
global da proposta da instituição e a tomada de consciência sobre os processos que precisam
ser melhorados para o pleno funcionamento do Museu.
No que diz respeito as coleções, o texto do Plano indica a necessidade de se construir
de fato uma Política de Acervos, um documento que conduza as ações dos museus e defina
quais critérios devem ser considerados para que um objeto integre a coleção. Como dito
anteriormente, o Museu do Tropeiro é principal instituição pública do município e portanto
muitos artefatos não relacionados a temática foram incorporados ao acervo como: máquinas
de escrever, câmeras fotográficas, equipamentos domésticos do século XX, bem como a
acumulação de objetos semelhantes ou que transmitem a mesma informação.
Depois de quase 40 anos de atuação a instituição definiu que a sua missão é preservar
a memória do tropeirismo de muares no Sul do Brasil e suas implicações socioculturais no
município de Castro. Os artefatos materiais, vulgarmente, são vistos apenas como produto da
ação humana, entretanto é importante compreender que os comportamentos sociais também
podem ser moldados pelos objetos. Os apontamentos construídos neste texto marcam o início
de uma proposta de reflexão sobre os bens culturais preservados no Museu no Tropeiro.
Acreditamos que a pesquisa sob a ótica dos estudos de cultura material será capaz de fornecer
subsídios para auxiliar a instituição museal pesquisada a cumprir sua função social e assim
atingir os mais diferentes públicos. Reiteramos que os museus devem ir além do senso comum
de “depósito de coisas velhas”, estes deveriam possibilitar ao sujeito o acesso à cultura, ao

85
conhecimento da sua história, estabelecer laços indetitários e, consequentemente permitir a
conquista da cidadania.

Referências
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em suas relações intradisciplinares e interdisciplinares. Patrimoniuss, Maricá, 2009 p. 1-17.

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86
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WESTPHALEN, Cecília Maria. O Barão dos Campos Gerais e o comércio de tropas.


Curitiba: CD Editora, 1995.

87
A PESQUISA E A COMUNICAÇÃO EM MUSEUS: O POTENCIAL HISTÓRICO
DAS IMAGENS DE ARTE SACRA PARA A COMPREENSÃO E A MEDIAÇÃO DA
COLEÇÃO DE BUSTOS RELICÁRIOS NO MUSEU DE ARTE SACRA DA UFBA

Ana Helena das S. D. Duarte /Aninha Duarte*


PPGMuseu-UFBA e PPGARTES/UFU
Menderson Correia Bulcão**
**Programa de Pós-Graduação em Museologia (PPGMuseu-UFBA) – Universidade
Federal da Bahia (UFBA).

Resumo: Este artigo tem o objetivo de contribuir com pesquisa para a comunicação em museus na
perspectiva de demonstrar o potencial histórico das imagens de Arte Sacra e o seu desdobramento na
compreensão da coleção de Bustos Relicários através dos processos de mediação museológica no
Museu de Arte Sacra da UFBA. O método de análise é a pesquisa histórica que privilegia a imagem
como um documento e que permite a mediação com o aporte da pesquisa para a comunicação nos
museus, daremos ênfase a conceituação a perspectiva do culto às relíquias e a produção de relicários,
especialmente o da tipologia bustos relicários. A proposta foi perceber a necessidade da pesquisa para
a comunicação e a natureza de expor uma coleção para contribuir para a extroversão da coleção, deste
modo é fulcral a pesquisa.

Palavras-chave: Museu; Coleção; Arte Sacra; Imagens; Comunicação.

Abstract: This article aims to contribute with research for communication in museums with the
perspective of demonstrating the historical potential of Sacred Art images and its unfolding in the
understanding of the collection of Reliquary Bustos through the processes of museological mediation
in the Museum of Sacred Art of UFBA. The method of analysis is historical research that privileges
the image as a document and allows mediation with the contribution of research to communication in
museums, we will emphasize the conceptualization of the perspective of worship of relics and the
production of reliquaries, especially that of Typology reliquaries. The proposal was to perceive the
need of the research for communication and the nature of exposing a collection to contribute to the
extraversion of the collection, in this way it is central to the research.

Key-words: Museum; Collection; Religious art; Images; Communication.

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No cenário contemporâneo brasileiro percebe-se uma nova configuração da política
patrimonial e museal, dentre os fatores estão o novo desenho para a participação das
instituições em programas promovidos pelo Estado e o mercado; além do fomento a
construção de políticas públicas enquadradas na perspectiva do acesso aos bens patrimoniais e
a sua ressignificação para e com os públicos. Neste aspecto na Modernidade Canclini entende
a “cultura hibrida” e argumenta sobre os patrimônios, entende “os museus, como meios de
comunicação de massa, podem desempenhar um papel significativo na democratização da
cultura e na mudança do conceito de cultura” (CANCLINI, 2008, p. 169).

O fomento às políticas culturais e museológicas no Brasil, a partir da criação do


Instituto Brasileiro de Museus - IBRAM e a criação de uma dezena de cursos de graduação
em Museologia em todo território nacional, além do enquadramento da legislação para a
estruturação dos museus e a construção de planos museológicos contribuem para a
extroversão dos acervos e coleções museológicas. Deste modo, o museu é o lócus privilegiado
para a compreensão das tradições, aonde acontece a mediação do sujeito com as musealias
que são índices e representação das culturas produzidas socialmente e escolhidas para revelar
a memória coletiva. O objeto de estudo da museologia são as musealias – objetos de museu –
a concepção de museu altera-se a partir das relações socioculturais e das demandas da
sociedade, desde a percepção das coleções e os acervos até a pesquisa e a comunicação.
Canclini compreende o museu e a interseccionalidade com a semiótica, enveredando por
discursos sobre o objeto e a sua inserção em uma instituição museológica e faz a seguinte
avaliação:

Se o patrimônio é interpretado como repertório fixo de tradições


condensadas em objetos, ele precisa de um palco-depósito que o contenha e
o proteja, um palco-vitrine para exibi-lo. O museu é a sede cerimonial do
patrimônio, o lugar em que é guardado e celebrado, onde se reproduza o
regime semiótico com que os grupos hegemônicos o organizam. Entrar em
um museu não é simplesmente adentrar um edifico e olhar obras, mas
também penetrar em um sistema ritualizado de ação social. (CANCLINI,
2008, p. 169)

89
A argumentação de Canclini sobre as culturas e as reverberações no campo social
coadunam com a perspectiva de Cury que entende o processo de seleção dos objetos atrelado
a sua institucionalização e vinculado as etapas para a extroversão das coleções. A museóloga
explica o critério de seleção dos objetos a partir da musealidade, para Cury “o objeto
museológico é o objeto institucionalizado. É o objeto integrado a um museu e sendo atenção
de um continuo processo técnico, cientifico e administrativo que garanta a sua preservação,
documentalidade e comunicação” (CURY,2005, p. 28).
Esta musealidade é definida pelo valor documental e pelo que é conferido ao objeto
enquanto potência e índice de informação sobre as culturas e correlacionado a memória, ou
seja, o atributo e o valor que lhe é conferido enquanto objeto e ou musealia – aquilo que
permite a rememoração de um acontecimento ou é índice de informação sobre uma sociedade
e sua época. A perspectiva de enveredar para a problemática do potencial histórico das
imagens de arte sacra no que tange a imagem como um documento, que permite a mediação
com o aporte da pesquisa para a comunicação nos museus, embasado em autores que
discutem a relevância da pesquisa histórica para a contextualização das imagens em
instituições museológicas, associamo-nos a proposta “compreendemos que os museus são
feitos para as coleções e que é preciso construí-los, por assim dizer, de dentro para fora,
modelando aquilo que contém a partir do conteúdo” (RÉAU, 1908). Essa perspectiva de Réau
favorece a discussão sobre o museu e a constituição de coleções pois problematiza a questão
do discurso da exposição atrelada a pesquisa e neste caso ao estudo das imagens com ênfase
nos aspectos socioculturais inscritos em uma paisagem crítica e implicados no contexto
histórico.

O objeto de pesquisa e o enquadramento teórico-metodológico


Elegemos a coleção dos bustos relicários oriundos da antiga igreja do Colégio dos
Jesuítas em Salvador - BA (atual Catedral Basílica da Bahia) e o contexto das relíquias no
mundo luso-brasileiro. A problematização da temática da arte sacra e o desdobramento do
potencial histórico das imagens com o viés para a pesquisa em instituições museológicas, com
o objetivo de compreender o processo da investigação para a comunicação nos museus. Desta

90
forma com o intuito de colaborar para o debate da temática, resolvemos elucidar os principais
conceitos sobre o objeto de estudo. Trazendo a luz do texto pareceres de alguns estudiosos de
tempos e espaços distintos que discutem os conceitos e a sua elaboração no contexto histórico,
desde a noção de relíquias e os relicários, a tipologia dos bustos relicários na arte sacra cristã
luso-brasileira. Os relicários e as relíquias são objetos do culto cristão católico e a coleção dos
bustos relicários no Museu de Arte Sacra – UFBA está inscrita temporalmente em uma
trajetória que remonta ao século XVI, extenua as relações bilaterais entre o Brasil e Portugal,
a América Portuguesa e a Europa. Enquanto objeto de análise, privilegiamos o caráter
histórico da coleção e a sua musealização pelo viés da potência para a pesquisa e a
comunicação em museus. (Figura 01,02,03).

Figura 1 - Vista da Sala de Exposição dos Bustos Relicários no Museu de Arte Sacra da UFBA

Fonte: acervo fotográfico do autor.

91
Figura 02 - Bustos Relicários dos Santos Martíres

Fonte: acervo fotográfico do autor

Figura 3 – Bustos Relicários das Santas Martíres.

Fonte: acervo fotográfico do autor.

92
Para a Museologia enquanto campo científico, o museu é uma instituição, deste modo
realizar a escolha da coleção para adentrar ao acervo do Museu de Arte Sacra - MAS-UFBA,
uma instituição que musealizou objetos do culto cristão católico, isto implicou um processo
de construção de discursos sobre estes em uma perspectiva museológica. Apropria-se de Réau
para pensar a organização dos museus e a pesquisa iconográfica, Pomian para elucidar o
conceito de coleção, Silva-Nigra que estudou a coleção dos bustos relicários de Frei Agostino
da Piedade e organizou a primeira exposição sobre bustos, Cury contribui com a leitura dos
processos museológicos da musealização e o foco na comunicação a partir da pesquisa,
Canclini conclui que o museu é um meio para o acesso à cultura e mudança das dimensões
para o acesso e as implicações desta instituição cultural na contemporaneidade. Neste
momento, daremos ênfase a conceituação do elemento do objeto de pesquisa, desta forma
utilizaremos autores que se debruçaram na questão da arte sacra e na perspectiva do culto as
relíquias e a produção de relicários, especialmente o da tipologia bustos relicários. A primeira
definição que utilizamos é a de Bluteau que compreendia as relíquias como as coisas sagradas
pertencentes a algum santo, segue a definição sobre relicários:

Assim se chamão os pedaços da Cruz, e outras sousas sagradas, das quaes


usou nosso Senhor Jesu Christo na vida, ou as quaess regou com seu Divino
Sangue no tempo da sua payxão, ; e o mesmo nome se da ao corpo, ou a
algua parte do corpo, ou vestdura, ou outras cousa santificadas pelo contacto
algum Santo. O culto das santas reliquias he relativo; he muyto antigo, e foy
confirmado por muytos antigo, e foy confirmado por muytos Concilios
(BLUTEAU, 2017. p.222).

A concepção de Bluteau está inserida no contexto histórico do século XVIII em que a


circulação da terminologia relíquia estava controlada pelo significado atribuído
institucionalmente pela Igreja no período. Segundo Pomian, o cristianismo disseminou a
cultura das relíquias dos santos e a influência destas para a propagação da fé cristã e o
contexto cultural, político e religioso no lugar a qual era transplantada. Essa cultura da
propagação das relíquias e o seu poder de difusão de um tipo de fé e na reprodução e
socialização cristã fomentou o culto aos santos e se desdobrou em diversas práticas cultuais
religiosas (POMIAN,1984, p.59-60). Cymbalista dissertou sobre o culto as relíquias no

93
período da Idade Média na Europa e as condições de propagação de relíquias nos territórios
de expansão marítima lusitana; para o autor a Igreja condicionou o culto as relíquias como um
elemento constitutivo da fé e da organização do espaço cristão nas cidades, ou seja, as
relíquias de certa forma legitimaram os espaços consagrados à fé e ao imaginário cristão no
Ocidente (CYMBALISTA, 2006, p.13-14).
De acordo com a pesquisa de Silva-Nigra sobre o culto às relíquias e sua presença no
cotidiano da sociedade, existia o ideário cristão que instituiu a presença das relíquias na vida
cotidiana da população e a sobreposição de uma orientação realizada pelas ordens religiosas,
isto possibilitou a relação do homem cristão com um tipo de fé que constituiu um aparato
espiritual no cotidiano e no imaginário da sociedade. Existia uma relação umbilical entre o
sujeito crente, a igreja, a devoção e a mentalidade da sociedade da época. (SILVA-NIGRA,
1971, p. 22). A partir das determinações da Igreja sobre a santificação dos mártires e a
transladação dos corpos, instituiu-se uma configuração do corpo santoral aliado a necessidade
da guarda das relíquias foi produzido diversos cofres para a proteção deste artefato
representativo da fé cristã, ou seja, uma musealia. A definição de “Relicário, f. m. caixa de
riquias”, conforme o Vocabulário do século XVIII (BLUTEAU, 316). Louis Réau em sua
Iconografia da Arte Cristã define as relíquias, a partir de uma ampla pesquisa bibliográfica,
compreendendo a história da religião cristã, a hagiografia, iconologia, e suas diversas fases
até a contemporaneidade. A investigação sobre o culto as relíquias e a importância atribuída a
estas, é compreendida no seguinte excerto: “El culto a los santos que es uma forma de culto a
los muertos, se basa em La veneración de sus relíquias, es decir, de sus restos corporales. El
estúdio de lãs relíquias, que constituye uma parte importante de la hagiografia, recibe ele
nombre de lipsanografia (del griego leipsana, “reliquias”)” (RÉAU, 2002, p. 465).
Cymbalista ao pesquisar sobre as relíquias sagradas (ossos e artefatos) se deteve a
perceber como os atributos sacros e móvel perpassaram a trama da experiência e vivência
religiosa e os desdobramentos no cotidiano da igreja e da população, além da socialização
destas práticas culturais contextualizado pela ótica da história e da memória cristã
(CYMBBALISTA, 2006, p. 12). Segundo RÉAU (2002), “las relíquias son objetos materiales
que los fieles pueden ver y tocar, pero son de uma espécie muy particular, a la vez matéria y

94
espíritu”. (RÉAU, 2002, p.466). A concepção de relíquia para Reau e a de Cymbalista
coadunam com a perspectiva de compreender a trajetória de vida do santificado, a elaboração
de uma biografia e dos atributos, a sua hagiografia, o corpo do santificado e sua materialidade
transladada para o espaço religioso, a questão da devoção e o sentido de construção de um
discurso sobre a fé cristã. Pomian entende a disseminação da cultura religiosa a partir das
práticas religiosas e das demandas da sociedade, especialmente a relação imersiva entre o
crente e a sua vida pessoal e coletiva no que tange as doenças e a relação com o sagrado, os
santos mártires e sua as relíquias eram convocados pela população para atender às súplicas.
Em adição a investigação de Silva-Nigra pretende entender o culto das relíquias nas ordens
religiosas e a constituição de uma paisagem que instituía a forma de se cultuar e a devoção
cristã e a religiosidade.
A pesquisa sobre as relíquias e os relicários contribuem para a compreensão da história
da cristã, da religiosidade, da devoção e dos aspectos socioculturais de uma sociedade, esta
forma de percepção a partir da pesquisa histórica demanda uma interpretação do processo de
musealização dos bens culturais de matriz religiosa cristã. Deste modo, Bluteau se destaca
pelo entendimento do léxico e o entendimento de relíquia no século XVII. Para Cymbalista é
necessário a justificação da presença do corpo santificado no território como modus operandi
para a sacralização do espaço e a legitimação das práticas de devoção pela ação dos
religiosos. A coleção de bustos relicários no Museu de Arte Sacra da UFBA é representativo
de um tipo de devoção e culto disseminado no período da colonização lusitana no território
brasileiro, conforme Pomian a relíquia servia para expressar um tipo de fé e Silva-Nigra
elucida sobre a participação dos beneditinos na construção de um discurso e de uma práxis
sobre a fé cristã, esta investigação nos permite entender que algumas dessas representações
em destaque se assemelham a práticas cultuais na Bahia colonial, a exemplo do culto e
procissão de São Francisco Xavier que tornou-se padroeiro da cidade do Salvador no século
XVII após a propagação de uma doença avassaladora que matou um considerável número da
população. Após essa breve apresentação sobre as relíquias e o contexto histórico de
produção, passa-se agora a dialogar com um dos chamados bustos relicários.

95
A tipologia de relicários: os Bustos Relicários da coleção no Museu de Arte Sacra
A definição de Bustos Relicários para Guimarães é atrelada a produção artística de um
receptáculo para a guarda das relíquias consagradas (sacralizadas/santificadas). Pelo viés da
arte o autor salienta:

Os Santos Relicários, representados sob a forma de imagens de corpo inteiro


ou bustos, são esculturas que se destacam por exibirem uma cavidade no
tórax, geralmente de formato redondo ou oval, contornado por uma moldura
comumente dourada e decorada com elementos ornamentais em relevo, onde
é guardada e exposta a relíquia, protegida geralmente por um vidro
(GUIMARÃES, 2005, p.1).

Os Bustos Relicários e a sua produção no período do Concilio de Trento possibilitou a


disseminação da cultura das relíquias e a consequente elaboração de tipologias para os
relicários. No caso da Bahia (Brasil) encontramos coleções de bustos relicários no Museu de
Arte Sacra da UFBA, os quais já foram estudados por SILVA-NIGRA, 1971;
DANNEMANN, 2003, 2005, BONNET, 2009, PORTUGAL, 2012. Para o historiador Silva-
Nigra a identificação da autoria e do mecenato religioso era questão fundante para a
compreensão da coleção, a partir da pesquisa documental nos mosteiros e igrejas, bibliotecas
e arquivos brasileiros e europeus, este historiador da arte contribuiu para escrita da História da
Arte brasileira (SILVA-NIGRA, 1971). Existe uma densidade dos bustos relicários em
acervos nos Museus brasileiros, elencaram-se alguns destes museus e suas respectivas
coleções: o Conjunto de Bustos Relicários (os bustos dos doutores das ordens mendicantes)
no Museu Aleijadinho em Ouro Preto; os Bustos Relicários o Museu Arquidiocesano de Arte
Sacra em Mariana em Minas Gerais. Na Europa, especialmente em Espanha e Portugal
existem alguns exemplares de bustos relicários; Silva-Nigra informa que “nos séculos XVI e
XVII, o ‘relicário-busto’ teve grande aceitação nos mosteiros e igrejas de Portugal. É assim
conhecido o belíssimo santuário das relíquias do mosteiro de Alcobaça”; um exemplo da
relevância do culto as relíquias e a produção dos relicários foi inventariado pela Arquidiocese
de Évora, denominada de Capela das Relíquias. No campo da Museologia, escolhemos a
intersecção pesquisa e comunicação, com o objetivo de contemplar a pesquisa museológica -

96
especificamente a pesquisa para a comunicação - referentes à exposição do acervo de arte
sacra em instituição museológica, JULIÃO, 2006; CURY, 2006; DUARTE CÂNDIDO, 1998;
SOFKA, 2009. A investigadora do campo da comunicação e recepção na Museologia explica
que “a exposição, forma particular de comunicação museológica, também procede de uma
seleção de valores” (CURY, 2006 p.26). As instituições museológicas são compreendidas
como local de pesquisa, preservação e comunicação dos bens culturais de uma sociedade. Os
museus fazem parte da dinâmica social, sendo os objetos museal a referência para a
concretização de lócus da cultura e da diversidade. Segundo Roque:

O enunciado em torno do objecto O discurso do museu inicia com a


elaboração do guião expositivo, correspondendo à elaboração de uma
dissertação de teor narrativo e interpretativo. Este enunciado insere o objecto
no museu e no percurso expositivo, tal como esclarece acerca das relações
semânticas que cada um estabelece com os restantes, sejam elas de
afinidade, de antítese ou de complementaridade. Existe, por conseguinte,
uma intencionalidade prévia que determina a seleção do espólio, a sequência
em que é exposto, o espaço que ocupa e o equipamento museográfico que o
suporta. (ROQUE, 2012, p.218)

A pesquisa histórica em acervos de arte sacra foi desenvolvida


por Duarte Candido em sua monografia sobre a documentação museológica da coleção de
imaginária do Museu Dom José em Sobral (Ceará), a pesquisadora dissertou sobre a sua
investigação em coleção de arte sacra do período colonial no Brasil (DUARTE CANDIDO,
1998, p.53-54). A temática da arte sacra (de matriz cristã Ocidental) se alinha as discussões
teóricas e metodológicas da pesquisa para a comunicação. O autor das Culturas Híbridas
concebe o museu e as suas transformações apoiados em seu fazer cientifico no México,
Canclini faz uma crítica à construção das mensagens nestas instituições e questiona-se sobre o
papel do museu na América Latina especialmente na inserção destes lugares na modernidade.
Cancline conclui:

As mudanças na concepção do museu – inserção nos centros culturais,


criação de eco museus, de museus comunitários, escolares, de sítio – e várias
inovações cênicas e comunicacionais (ambientações, serviços educativos,

97
introdução de vídeo) impedem de continuar falando dessas instituições como
simples depósitos do passado. (CANCLINI, 2008, p. 170)

Conforme Cerávolo o patrimônio cultural está imbricado na constituição e história dos


museus e as conexões entre as identidades e a formação das coleções, além da mediação dos
objetos e sua interpretação pelo viés interdisciplinar (CERÁVOLO, 2011, p.1-2). Neste
aspecto, Duarte Candido apresenta uma assertiva sobre a pesquisa iconográfica e a
necessidade da mediação através da leitura interpretativa da imagem religiosa (DUARTE
CANDIDO, 1998, p.69). Para o entendimento da arte sacra no contexto do museu as
identificações dos santos através do método iconográfico e os atributos que são as chaves de
interpretação, a busca pelo seu significado no contexto histórico e artístico da época. Ela
assim orienta:

Os atributos são objetos simbólicos que, na imaginária, ajudam a identificar


sua invocação, podendo ser atributos pessoais ou coletivos. Os coletivos, por
serem comuns a muitos santos, não chegam a individualizá-los; os pessoais
relacionam-se a episódios específicos da vida ou morte de um santo,
possibilitando sua identificação. (DUARTE CANDIDO, 1998, p.88)

Ao comentar a relevância da pesquisa em instituições museológicas, Julião elucida que


os museus “como espaços propícios à pesquisa histórica, o que justifica a necessidade e/ou o
predomínio de historiadores nessas instituições, aptos em inserir os objetos em seu contexto
de produção e significação social.” (JULIÃO, 2006, p.97). Neste caso especifico a categoria
da pesquisa propriamente dita proposta por Julião coaduna com a perspectiva desta
investigação, pois busca um método de pesquisa com ênfase na compreensão das coleções
atreladas ao conteúdo e a historicidade inscrita no contexto sociocultural.
Julião ratifica seu pensamento sobre a questão norteadora da pesquisa em museus e a
contextualização dos acervos a partir de uma pesquisa histórica: “Sob esse ponto de vista, não
cabe à pesquisa fazer uma história dos objetos, o que representaria perpetuar atitudes de
fetichização do acervo, comuns em muitos museus, mas construir um conhecimento histórico
da sociedade, na perspectiva de sua dimensão material (JULIÃO, 2006, p.98).

98
O estudo da temática de arte sacra resulta da necessidade de conhecer a trajetória do
acervo dos bustos relicários, conforme a autora “Ao definir o acervo como cerne de suas
investigações e reflexões, o museu encontra no domínio da cultura material um campo
privilegiado e fértil para o desenvolvimento de suas pesquisas.” (JULIÃO, 2006, p. 98)
Este aspecto relacionado ao conceito de coleção tratado por POMIAN (1984), o
fomento as categorias do acervo institucional e operacional pensado por MENESES (1994) a
concepção de acervo e coleção desenvolvida por LONDRES (1999) e o debate sobre a
pesquisa histórica dos acervos e coleções fomentados por JULIÃO (2006) como fator
especifico para a pesquisa no sentido de compreender as conexões e as intenções na
constituição dos acervos e coleções das instituições museológicas.
A partir da leitura bibliográfica e a análise dos documentos (manuscritos, impressos e
imagéticos) sobre o acervo dos bustos relicários no museu, a exemplo dos livros, catálogos e
as demais publicações lançadas sobre a temática da arte sacra e especialmente sobre o museu
e o acervo, foi possível compreender a relevância da pesquisa para a comunicação, após
coligir as informações sobre as coleções que se encontram sob a responsabilidade do Museu
de Arte Sacra da Universidade Federal da Bahia (UFBA) organizamos o enfoque da
investigação. A noção de Coleção defendida por Pomian explicita as conexões entre os
objetos e o significado atribuído pelas instituições (POMIAN, 1984, p.53).
O historiador da arte e monge beneditino Dom Clemente Maria da Silva-Nigra no livro
“Os dois escultores Frei Agostinho da Piedade – Frei Agostinho de Jesus e o arquiteto Frei
Macário de São João”, publicado em 1971, no capítulo “Os Relicários de Frei Agostinho da
Piedade”, o texto é sobre a exposição comemorativa do terceiro centenário de morte do artista
beneditino Frei Agostinho da Piedade no Museu de Arte Sacra. Outra publicação refere-se a
“Ação de Dom Clemente no Museu de Arte Sacra” (1979), de autoria SENTO SÉ (1979) que
no capítulo ‘A exposição de Frei Agostinho da Piedade’, apresenta um memorial sobre o
processo de execução do projeto expográfico, a saber:

Os dias que antecederam a sua instalação foram de muita agitação,


procurando D. Clemente arrumar as peças da melhor maneira possível,
escolhendo posições mais adequadas para os bustos-relicários, estudando as

99
alturas das peanhas em relação aos tamanhos de cada imagem (SENTO SÉ,
1979, p. 76).

Em 1999, foi inaugurada em São Paulo, na Pinacoteca, a exposição “Tempos do


Sagrado Quatro Séculos de Arte Bahia – São Paulo: Bustos-Relicários da Catedral-Basílica de
Salvador” com o projeto e a curadoria de Emanoel Araújo, produziram uma publicação, no
formato de um catálogo sobre a exposição dos bustos-relicários pertencentes à Catedral
Basílica de Salvador. Estes bustos relicários já foram citados pelo historiador Dom Clemente
da Silva-Nigra em sua obra “Os dois escultores Frei Agostinho – Frei Agostinho de Jesus”,
explica:

Nos dois mais antigos mais antigos altares da catedral da Bahia, antiga igreja
da Companhia de Jesus, acham-se hoje dois grandes armários, contendo cada
um quinze bustos-relicários, a maior parte de barro, trabalhos do século 17.
Provavelmente grande parte de suas relíquias foi já trazida pelo Padre
Cristóvão de Gouveia, em 1583. (SILVA-NIGRA, 1971, p. 24)

O catálogo apresenta os textos e as fotografias sobre os bustos relicários da Catedral


Basílica de Salvador, com os textos de Emanoel Araújo (curador da exposição), Marcos
Mendonça (na época secretário de Cultura do estado de São Paulo), e um excerto do texto
original de Dom Clemente da Silva-Nigra sobre os Relicários de Frei Agostinho da Piedade
(uma publicação editada em 1971). Neste catalogo (editado em 1999) revela-se as condições
de conservação e o diagnóstico em que esta coleção dos bustos relicários se encontra na igreja
da Catedral Basílica do Salvador, a saber:

Estas obras achavam-se trancadas permanentemente em dois grandes


armários, cada um com quinze nichos, localizados nos dois primeiros altares
laterais de quem adentra a igreja. Os trabalhos de reforma da Catedral
ofereceram uma oportunidade única para a sua exibição, já que deslocadas
temporariamente de seu contexto devocional de origem, puderam ser
solicitadas em empréstimo às instituições por elas responsáveis (ARAUJO,
1999, p. 3-4).

100
A partir de uma questão da preservação do bem cultural foi possível à restauração da
coleção dos bustos relicários jesuítas, neste sentido JULIÃO (2006) apresenta a necessidade
do diagnóstico das coleções, mas a vitalidade da pesquisa para a comunicação (JULIÃO,
2006, p. 104). A comunicação museológica é percebida por CURY (2006) de uma forma
processual e organizada conforme os pressupostos dos museus. Este aspecto especifico de
comunicar a coleção e os seus sentidos é desenvolvido pela autora com o intuito de definir
uma noção da exposição (CURY, 2006, 34). No estudo sobre a conservação da coleção dos
bustos relicários dos jesuítas oriundos dos armários dos retábulos da Catedral da Sé da Bahia
em Salvador, DANNEMAN demonstrou o percurso da coleção:

Em 1999, a coleção foi transferida para o Museu de Arte Sacra da


Universidade Federal da Bahia. Foi dado assim, o primeiro passo para a
preservação das esculturas. Uma exposição de relicários no Museu de Arte
Sacra, idealizada pelo seu diretor, o arquiteto Francisco de Assis Portugal
Guimarães, em comemoração aos 450 anos de Salvador, foi de início, o
motivo para a remoção da coleção do seu local de origem. Ficou evidente o
péssimo estado de conservação das esculturas e dos altares. Optou-se pela
permanência da coleção no Museu de Arte Sacra em regime de comodato
para a sua segurança. Ao todo, as trinta esculturas pesam aproximadamente
duas toneladas, demais para os nichos dos retábulos, já fragilizados pela
grave infestação por térmitas. (2009, p.2949)

A coleção dos bustos relicários oriundos da antiga igreja da Companhia de Jesus (atual
Catedral Basílica), foram apresentados em uma exposição (1999) na Pinacoteca de São Paulo.
Da coleção de 30 (trinta) bustos relicários foi possível realizar a analise iconográfica de 7
(sete) bustos relicários identificados, a saber; Santa Águeda, Santo Eustáquio, Santa Inês, São
Jorge, São Sebastião, Santo Estevão e Santa Dorotéia. Existe outra publicação (2005), um
catálogo organizado pelo Museu de Arte Sacra da UFBA com a temática dos bustos relicários
da Catedral Basílica do Salvador, neste catálogo tem o texto “Bustos Relicários” de Francisco
Portugal (então diretor do MAS/UFBA) e um outro texto “A restauração da coleção de Bustos
Relicários” de João Dannemanna (então coordenador do Setor de Conservação e Restauração
do MAS/UFBA), o restaurador elucida a trajetória histórica e religiosa da coleção e o projeto
de restauração dos bustos relicários. Deste modo, o autor explica a coleção na igreja:

101
“Antes de chegarem ao MAS, as trinta esculturas permaneceram por
aproximadamente três séculos, dispostas em dois retábulos na nave da igreja
do Colégio dos Jesuítas, atual Catedral Basílica de Salvador. Com o passar
do tempo, as relíquias sagradas desapareceram e os relicários apresentaram
sério comprometimento físico, em resposta às condições de armazenagem, às
intervenções anteriores e à manutenção deficiente.” (DANNEMANN, 2005,
p. 5).

DANNEMANN apresenta a trajetória da coleção e o projeto de restauração da coleção


dos bustos relicários dos jesuítas da antiga igreja da Companhia de Jesus, atualmente a
Catedral-Basílica do Salvador-Bahia.
CURY ao estudar o museu e as suas funções contemplou em sua pesquisa as questões
da comunicação nos museus, no que tange a constituição da área da comunicação
museológica, a autora privilegiou a exposição, especificamente o processo de extroversão do
acervo e coleção do museu. “Entende-se o processo de musealização como uma série de ações
sobre os objetos, quais sejam: aquisição, pesquisa, conservação, documentação e
comunicação” (CURY, 2006 p.26). KOSSOY (1989) propõe um estudo técnico-iconográfico
sobre a fotografia e a história, “o exame aqui proposto visa reunir o maior número de dados
seguros para a determinação do assunto, fotografo e tecnologia (os elementos constitutivos)
que deram origem a uma fotografia num preciso espaço e tempo (as coordenadas da
situação)”. O autor alerta para a questão da imagem fotográfica como um meio para a leitura
interpretativa das fotografias, “contudo, ela não reúne em si o conhecimento do passado”
(KOSSOY, 1989 p.51). A Arte Sacra é um campo de estudo da História da Arte e da
Museologia, sendo um lócus profícuo para a compreensão da cultura artística e o contexto
histórico e cultural de uma determinada sociedade em sua respectiva época.
A proposta da pesquisa das fontes visuais será desenvolvida a partir do estudo clássico
de PANOFSKY (1989) apresentada em seu livro O significado nas Artes Visuais, o capítulo a
“Iconografia e Iconologia: Uma introdução ao estudo da arte do Renascimento”, através do
método iconográfico no qual o objeto, o ato, o equipamento e o princípio corretivo para a
interpretação são utilizados metodologicamente com o objetivo de colocar o objeto artístico

102
em seu contexto e inferir suas qualidades intrínsecas e extrínsecas, deste modo contribuirá
para a análise do assunto e significado da coleção estudada.
A investigação sobre as relíquias, os santos, os bustos relicários contempla a definição
dos principais conceitos referentes ao temática da iconografia cristã; a investigação de Louis
Réau coaduna com a perspectiva da investigação sobre o a acervo dos relicários, inclusive, no
processamento técnico dos objetos de arte sacra (acervos e coleções em museus),
especialmente no que tange ao objeto de análise, desde o acervo e a proposta de pesquisa
sobre a exposição das peças denominadas de bustos-relicários. O autor conceitua as relíquias,
os santos e os bustos relicários, realiza uma pesquisa profícua, densa e perspicaz, define o
enquadramento teológico, histórico e hermenêutico de sua empreitada para a maioria dos
santos cristãos. As questões referentes à comunicação museológica serão refletidas pelo
aparato teórico de CURY e a pesquisa sobre a exposição através dos seus conceitos e
problematizações para o desenho do conhecimento expográfico. Além dos estudos vinculados
a comunicação e recepção de REBOLLO GONÇALVES apresentados em sua pesquisa sobre
o museu, o acervo e a tipologia da arte moderna. Os aspectos relacionados à musealização e
experiência de gestão de acervos de arte sacra utilizarão a pesquisa em contexto português da
historiadora, ROQUE (2006) na qual investiga a comunicação nos museus, o discurso e a
musealização de objetos de arte sacra em instituições museológicas em Portugal. O estudo
iconológico é um meio para a mediação do objeto de arte sacra nas instituições museológicas,
especialmente no contexto da Nova Museologia que busca valorizar os públicos e o discurso
sobre os objetos musealizado (TEIXEIRA, 2003). Neste aspecto a proposta de Panofsky
coaduna com a perspectiva metodológica desta tendência na Museologia de valorização dos
objetos a partir da memória e de sua contextualização. Para Panofsky a iconologia é:

A interpretação iconológica, finalmente, requer algo mais do que uma


familiaridade com temas ou conceitos específicos conforme transmitidos por
fontes literárias. Quando queremos apreender os principio básicos que
subjazem à escolha e apresentação de motivos, assim como a produção e
interpretação de imagens, histórias e alegorias, os quais dão um significa do
mesmo aos arranjos formais e procedimentos técnicos empregues.
(PANOFSKY, 1989, p. 37)

103
Para Alice Duarte a Museologia é um campo de práticas e de experimentações, as
instituições museológicas são espaços de criação e de crítica, a construção do discurso
museológico sobre os objetos musealizado deve ocorrer de forma a perceber as demandas
sociais e a contextualização do presente. O estudo iconológico da coleção de bustos relicários
da antiga igreja do Colégio dos Jesuítas priorizou a compreensão das imagens de artes sacra
de matriz cristã com o objetivo de analisar o programa iconográfico dos jesuítas, a
disseminação do culto cristão das santas relíquias, a contextualização da colonização
portuguesa no Brasil Colônia. A partir da pesquisa elaboramos uma proposta de entendimento
das relíquias e relicários e sua relevância para a instituição museológica que o abriga e
especialmente para o público que na mediação cultural conhece e apreende sobre a cultura
tridentina. Ao abordar o potencial histórico das imagens de arte sacra conseguimos apresentar
através da coleção dos bustos relicários da antiga igreja do Colégio dos Jesuítas alguns
conceitos de relíquias, relicários, bustos relicários e musealização de objetos de culto cristão,
além de discutir as formas dos relicários atrelados as determinações tridentinas. O culto às
relíquias no Brasil Colônia foi disseminado pelos padres jesuítas, especificamente no Colégio
de Jesus em Salvador. As imagens de arte sacra são percebidas como um documento que
possibilita o conhecimento da história através da contextualização da coleção no seu tempo e
espaço. Conseguimos observar o acervo através da proposta da pesquisa com a leitura dos
documentos referentes às coleções dos bustos relicários que contribuíram para perceber a
relevância desta coleção, a partir da valorização das coleções de arte sacra e a sua integração
ao espaço expositivo do museu através de uma mediação que tenha acesso a uma pesquisa
para a elaboração do discurso museológico embasado no método iconográfico.
Expomos o potencial histórico das imagens de arte sacra como um documento e sua
contextualização através da pesquisa histórica nas instituições museológicas. A partir da
história da Ordem Jesuítica conseguimos compreender o culto as Santas Mártires Virgens na
Bahia e sua relação com os acontecimentos da Reforma Católica através das determinações do
Concílio de Trento e no caso especifica do culto as relíquias representadas nos dois altares da
sua antiga igreja. A proposta foi perceber a necessidade da pesquisa para a comunicação,
expor uma coleção é contribuir para a sua extroversão, deste modo é fulcral a pesquisa, pois é

104
através desta que se pode revelar o potencial histórico das imagens de arte sacra nas
instituições museológicas.

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106
ALGUMAS FONTES PARA O ESTUDO DE MUDANÇAS DE
PERCEPÇÃO SOBRE OS GABINETES DE CURIOSIDADES E AS
PRÁTICAS COLECIONISTAS DA ERA MODERNA À
CONTEMPORÂNEA

Carolina Vaz de Carvalho*


* Rariorum – Núcleo de Pesquisa em História das Coleções e dos Museus / UFMG
Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia/FAJE

Resumo: O presente trabalho apresenta alguns apontamentos sobre fontes de diferentes períodos
históricos de interesse para o estudo das práticas de colecionamento da Primeira Idade Moderna, em
especial coleções enciclopédicas convencionalmente denominadas “gabinetes de curiosidades”. A
compreensão contemporânea dessas coleções ecoa a forma como foram descritas e categorizadas ao
longo da história, e a referências selecionadas ilustram algumas das mudanças de percepção e
apreciação das coleções da Primeira Idade Moderna em momentos diversos. As fontes aqui reunidas
foram: Samuel Quiccheberg, Inscriptiones vel Tituli Theatri Amplissimi, 1565; Robert Hooke,
“Lectures and Discourses of Earthquakes and Subterraneous Eruptions”, 1705; M. d’Aubenton e
Denis Diderot, “Cabinet d’Histoire naturelle”, Encyclopedie, 1751; Felice Fontana, Saggio del real
gabinetto di física e di storia naturale di Firenze, 1775; Thomas Greenwood, Museums and Art
Galleries, 1888; David Murray, Museums: Their History and their Use, 1904.

Palavras-chave: História das Coleções; Gabinete de Curiosidades; Primeira Idade Moderna; Práticas
de colecionamento; Colecionismo.

Abstract: This paper presents some observations regarding primary sources from different historical
periods which are relevant to the study of Early Modern collecting practices, especially to the study
of the encyclopaedic collections conventionally known as ‘curiosity cabinets’. The contemporary
comprehension of these collections echoes the way they were described and categorised throughout
history, and the selected references illustrate some shifts in the perception and appreciation of Early
Modern collections in distinct moments. The sources here gathered were: Samuel Quiccheberg,
Inscriptiones vel Tituli Theatri Amplissimi, 1565; Robert Hooke, “Lectures and Discourses of
Earthquakes and Subterraneous Eruptions”, 1705; M. d’Aubenton e Denis Diderot, “Cabinet
d’Histoire naturelle”, Encyclopedie, 1751; Felice Fontana, Saggio del real gabinetto di física e di
storia naturale di Firenze, 1775; Thomas Greenwood, Museums and Art Galleries, 1888; David
Murray, Museums: Their History and their Use, 1904.

Key-words: History of Collections; Curiosity Cabinet; Early Modern Period; Collecting Practices;
Collectionism.

107
O presente trabalho reúne alguns apontamentos de uma pesquisa em andamento sobre
o colecionismo na Primeira Idade Moderna (aproximadamente, sécs. XV-XVIII). Nas
discussões dos campos da Museologia, História Cultural e História da Arte, as coleções desse
período são frequentemente apresentadas como origem dos museus e das práticas
colecionistas contemporâneas. Essas coleções integram o escopo de estudos do projeto de
pesquisa “Raridades em Contexto: incorporação e ressignificação de objetos e imagens das
Índias Ocidentais nas coleções norte-europeias (séc. XVII)”, do qual participo desde 201360.
Partindo dos estudos de casos específicos desenvolvidos por nós pesquisadores do projeto, e
sistematizando ideias e percepções que emergiram ao longo desses anos, desde o começo de
2016 tenho me dedicado à reflexão sobre questões mais gerais pertinentes à forma como
coleções, colecionadores e práticas colecionistas da Primeira Idade Moderna têm sido
compreendidas e abordadas nos campos supramencionados, sobretudo no que tange à noção
de “gabinetes de curiosidades”.
Por gabinetes de curiosidades – alternativamente chamados na literatura de “câmara
das maravilhas” ou variações dessas duas expressões em diversos idiomas – convencionou-se
denominar coleções majoritariamente privadas, de caráter enciclopédico, baseadas na
compreensão então vigente de que as relações entre os objetos colecionados correspondiam às
relações entre os fenômenos naturais e artificiais do cosmo, que vigoraram sobretudo na
Europa dos séculos XVI e XVII – um fenômeno histórico específico dentro da história das
coleções61. Entretanto, conforme apresentei alhures62, a expressão comumente figura, tanto
em discursos acadêmicos como naqueles voltados ao público amplo, como síntese de todas as
práticas colecionistas do início do Período Moderno e como antecessores diretos dos museus

60
O projeto “Raridades em Contexto” é coordenado pelo Professor Dr. René Lommez Gomes da Escola de
Ciência da Informação da UFMG, está integrado às atividades do RARIORUM - Núcleo de Pesquisa em
História das Coleções e dos Museus, e tem por objetivo investigar processos de recontextualização e mudança de
significado de objetos advindos das Américas e da África nas coleções da Europa setentrional, no quadro das
práticas de colecionamento da Primeira Idade Moderna.
61
A variedade de denominações que se referem a essas coleções, tanto na Primeira Idade Moderna como
posteriormente, é frequentemente notada pelos estudiosos. Alguns estudos contemporâneos optam por empregar
o termo ‘museu’ em referência às coleções modernas, o que parece enfatizar as continuidades e minimizar as
diferenças entre as práticas colecionistas modernas e a instituição que se consolidou posteriormente. Para
posicionamentos distintos sobre o tema, cf. BOWRY, 2015; FINDLEN, 1989.
62
CARVALHO, 2017.

108
de arte e ciência da contemporaneidade. Naquela ocasião, argumentei que a noção sintética
atual de gabinetes de curiosidades ecoa a forma como essas coleções e práticas foram
descritas e categorizadas ao longo do tempo, com a permanência de interpretações que se
originaram junto ao colecionismo ilustrado, o que tanto esconde a variedade de manifestações
do colecionismo da Primeira Idade Moderna como dificulta a compreensão dos valores, usos
e significados que esses objetos, seu colecionamento e sua exibição tomavam à época.
Uma vez que anteriormente me detive em especial na discussão da produção
acadêmica contemporânea sobre o assunto, gostaria, agora, de trazer algumas fontes de
períodos históricos anteriores. Essas foram escolhidas dentre as referências arroladas em tais
estudos contemporâneos e acredito que possam ilustrar mudanças de percepção e apreciação
das coleções da Primeira Idade Moderna ao longo do tempo. Devido à natureza do presente
trabalho, não será possível desenvolver análises pormenorizadas e exaustivas das mesmas;
trarei, portanto, observações pontuais sobre trechos que iluminam a questão em foco. As
fontes aqui reunidas foram: Samuel Quiccheberg, Inscriptiones vel Tituli Theatri Amplissimi,
1565 (trad. parcial de Antonio Leonardis, publicado em BOWRY, 2015); Robert Hooke,
“Lectures and Discourses of Earthquakes and Subterraneous Eruptions”, 1705; M.
d’Aubenton e Denis Diderot, “Cabinet d’Histoire naturelle”, Encyclopedie, 1751; Felice
Fontana, Saggio del real gabinetto di física e di storia naturale di Firenze, 1775; Thomas
Greenwood, Museums and Art Galleries, 1888; David Murray, Museums: Their History and
their Use, 1904.

Quiccheberg: um guia flexível para colecionadores de todos os tipos


Samuel Quiccheberg (1529-1567) foi um fisiologista, bibliotecário e guardião de
coleções flamenco, notório pela autoria de Inscriptiones vel Tituli Theatri Amplissimi.
Publicada em latim, em Munique, 1565, a obra é o mais antigo tratado da Primeira Idade
Moderna que se tem notícia dedicado à formação, organização e exibição de coleções, o que
é frequentemente apontado na literatura63. Embora seja difícil afirmar a extensão da

63
As observações ora apresentadas partem da tradução para o inglês de trechos da obra de Quiccheberg
realizada por Antonio Leonardis e publicada como parte integrante da tese de Stephanie J. Bowry (BOWRY,
2015). Todas as citações de Quiccheberg que seguem se referem a essa tradução.

109
influência do pequeno tratado de Quiccheberg nas práticas colecionistas do período, a obra
interessa ao estudo do tema como expressão sistematizada de ideias e valores então
amplamente disseminados (BOWRY, 2015; SCHULZ, 1990).
Algo sobre a função ou objetivo das práticas modernas de colecionismo é expresso
por Quiccheberg no próprio título de sua obra, em sua versão completa:

Important Inscriptions or titles of the Theatre


Embracing all universal things and individual subjects and extraordinary
images. So that one can also likewise be named correctly: of skilfully-made
cupboards and miraculous objects, and of everything, rare treasures and
valuable furniture and decorated structures.
And for these things together which are here consulted to be collected in
the theatre, so that, by frequent inspection and management of these
things, and individually, some knowledge and remarkable wisdom, can
be established quickly and easily and safely (QUICCHEBERG, apud
BOWRY, 2015, p. 92-93, ênfases minhas)

O último trecho do título, particularmente, demarca a relação entre o colecionamento


de objetos e a possibilidade de obtenção de conhecimento e sabedoria através de sua
observação e manipulação. A percepção do autor sobre a dimensão sensorial da construção
de conhecimento e a importância de uma experiência memorável, que não se restringe ao
olhar, seria algo digno de nota e perpassaria diversas das recomendações veiculadas ao longo
da obra (BOWRY, 2015, p. 96)64.
O ordenamento ou organização dos objetos parece ser, para Quiccheberg, um fator
determinante do sucesso da coleção em se tornar ‘instrutiva’: “Therefore now the opus
would be divine and ingenious, which arranges and sets in order all these things in this and
every way, so that having pursued this activity concisely and comprehensively […] they can
instruct in innumerable ways” (QUICCHEBERG apud BOWRY, 2015, p. 122). De fato, as
inscrições e títulos em torno dos quais a obra se constrói seriam categorias e classes de
objetos que, na visão de Quiccheberg, constituiriam uma coleção ideal.

64
Sobre a experiência sensorial de visita a coleções e museus no período moderno, cf. CLASSEN, 2007.

110
A ordem e o ideal, todavia, estão imbuídos de flexibilidade, característica atrubída
por diversos estudiosos ao pensamento da época65. Em um trecho, Quiccheberg observa que
seu sistema de classes e categorias deveria funcionar como orientação para que cada
colecionador escolhesse o que colecionar, conforme interesses e possibilidades:

Therefore these theatres collect either cabinets or enclosed spaces of a


variety of objects, according to their own abilities alone as it will please
them. Nor in fact are the divisions put forth, just as if everyone ought to
collect all things, but so that each one can inquire after certain things, which
he may want, or about individual items, which are more important.
(QUICCHEBERG apud BOWRY, 2015, p. 348)

Além disso, as próprias categorias do sistema de classificação do autor expressariam


uma natureza discursiva, como ressalta Bowry, em que “as muitas nuances de um único
objeto são reconhecidas, mas em que certas qualidades ganham precedência em relação a
outras” (BOWRY, 2015, p. 107)66.

O colecionismo ilustrado
Mudanças nos paradigmas e práticas de construção e validação do conhecimento,
com a consolidação progressiva das ciências modernas propriamente ditas, acompanharam
alterações sociais consideráveis. Configurou-se um contexto em que emergiram outros
parâmetros de formação e usufruto de coleções, bem como a atribuição de outras funções às
mesmas. A especialização, tanto das coleções como de eruditos e estudiosos, marcou as
críticas voltadas às coleções que não seguiam os novos padrões de pensamento e atividade.
Um desses críticos foi Robert Hooke (1635-1703), membro da Royal Society of
London for the Improvement of Natural Knowledge. Ele defendia a formação de uma
coleção institucional de espécimes naturais, sob os paradigmas de investigação científica

65
Cf. KURY & CAMENIETSKI, 1997; HOOPER-GREENHILL, 1995; SHELTON, 1994.
66
Tradução livre do original: “Quiccheberg’s system of titles and inscriptions therefore promotes a complex
understanding of materials and material culture, in which the many nuances of a single object are acknowledged,
but in which certain qualities take precedence over others”.

111
emergentes – o não tão bem-sucedido Repositório da Royal Society67. Em um “Discurso
sobre Terremotos” publicado postumamente, no qual critica a descrição de conchas, animais
marinhos e fósseis que aparecem nos livros de estudiosos anteriores como Conrad Gesner
(1516-1565) e Ulisse Aldrovandi (1522-1605), Hooke argumenta pela necessidade do
contato direto com os espécimes de estudo; condena, entretanto, como infantil o uso de
coleções para o prazer, divertimento ou admiração:

[...] for the Observations for the most part are so superficial, and the
Descriptions so ambiguous, that they create a very imperfect Idea of the true
Nature and Characteristick of the thing described, and such as will be but of
very little use without an ocular Inspection and a manual handling, and other
sensible examinations of the very things themselves; for there are so many
considerable Instances that may by that means be taken notice of, which may
be useful to this or that purpose for which they may be instructive, that ‘tis
almost impossible for any one Examiner or Describer to take notice of them,
or so much as to have any imagination of them. It were therefore much to be
wishht for and indeavoured that there might be made and kept in some
Repository as full and compleat a Collection of all varieties of Natural
Bodies as could be obtain’d, where a Inquirer might be able to have
recourse, where he might peruse, and turn over, and spell, and read the Book
of Nature, and observe the Orthography, Etymologia, Syntaxis and Prosodia
of Natures Grammar, and by which, as with a Dictionary, he might readily
turn to and find the true Figure, Composition, Derivation and Use of the
Characters, Words, Phrases and Sentences of Nature written with indelible,
and most exact, and most expressive Letters, wihtout which Book it will be
very difficult to be thoroughly a Literatus in the Language and Sense of
Nature. The use of such a Collection is not for Divertisement, and
Wonder, and Gazing, as ‘tis for the most part thought and esteemed,
and like Pictures for Children to admire and be pleased with, but for the
most serious and diligent study of the most able Proficient in Natural
Philosophy. (HOOKE, 1705, p. 338, ênfases minhas)

As críticas às práticas colecionistas da Primeira Idade Moderna se acirraram ao longo


do século XVIII. Como observa Adalgisa Lugli, o declínio das coleções enciclopédicas
ocorre simultaneamente ao desenvolvimento da Encyclopédie francesa (LUGLI, 1998, p.
229), uma vez que o projeto iluminista traçava fronteiras muito precisas nos sistemas de

67
Para uma apresentação do projeto do Repositório da Royal Society e discussão de seu insucesso cf. HOOPER-
GREENHILL, 1995, p. 133-166.

112
pensamento e parecia ignorar intencionalmente os critérios de ordenamento subjacentes às
coleções anteriores, destarte julgadas irracionais ou incompreensíveis (ibid, p. 232).
A Encyclopedie, publicada entre 1751 e 1772, trazia em seu segundo tomo um
verbete sobre gabinetes de história natural, de autoria de Denis Diderot com contribuição de
M. d’Aubenton, guardião e ‘demonstrador’ do Cabinet du Roi. O Cabinet du Roi, no jardim
real em Paris, era apresentado como um modelo de coleção de história natural a ser seguido
por sua organização e modos de exibição, e sobre ele é dito:

Toutes ces collections sont rangées par ordre méthodique, & distribuées de la
façon la plus favorable à l’étude de l’Histoire naturelle. Chaque individu
porte sa dénomination, & le tout est placé sous des glaces avec des
étiquettes, ou disposé de la maniere la plus convénable. [...]Les choses les
plus belles & les plus rares y ont afflué de tous les coins du monde; & elles y
ont heureusement rencontré des mains capables de les réunir avec tant de
convenance, & de les mettre ensemble avec tant d’ordre, qu’on n’auroit
aucune peine à y rendre à la nature un compte clair & fidele de ses richesses.
(D’AUBENTON; DIDEROT, 2016, p. 2:490)

A ordem – uma ordem metódica, que não se confunde com a forma como as coisas
aparecem na natureza – é premissa para que uma reunião de objetos constitua uma coleção
capaz de servir ao estudo e instrução e de justificar as dificuldades e despesas de sua
formação:

“Pour former un cabinet d’Histoire naturelle, il ne suffit pas de rassembler


sans choix, & d’entasser sans ordre & sans goût, tous les objets d’Histoire
naturelle que l’on rencontre; il faut savoir distinguer ce qui mérite d’être
gardé de ce qu’il faut rejetter, & donner à chaque chose un arrangement
convenable. L’ordre d’un cabinet ne peut être celui de la nature; la nature
affecte par - tout un desordre sublime. [...]Mais un cabinet d’Histoire
naturelle est fait pour instruire; c’est - là que nous devons trouver en detail &
par ordre, ce que l’univers nous présente en bloc.[...] Cependant qu’est - ce
qu’une collection d’êtres naturels sans le mérite de l’ordre? A quoi bon avoir
rassemblé dans des édifices, à grande peine & à grands frais, une multitude
de productions, pour me les offrir confondues pêle - mêle & sans aucun
égard, soit à la nature des choses, soit aux principes de l’histoire naturelle?
(D’AUBENTON; DIDEROT, 2016, p. 2:490)

113
A exaltação da ordem também marca a defesa de novos paradigmas de
colecionamento na Itália, por volta do mesmo período. Em uma apresentação descritiva do
Gabinete Real de Física e História Natural de Florença, inaugurado em 1775, Felice Fontana
(1730-1805), o responsável por sua organização, escreve:

Speriamo che i lettori di sapranno grado di aver rilevate alcune poche cose di
questo Real Gabinetto, che non solo per l’abbondanza delle cose vá a
diventare il più rispettabile dell’Europa, ma quello, che è più da stimare, è
senza dubbio il più utile di tutti per il metodo affatto nuovo immaginato com
tanta sagacità dal nostro Autore, ed eseguito con tanta arte, ed ingegno. Ogni
cosa è si bene ordinata, che una persona può approfittare in pochi giorni
assai più, che negli altri Gabinetti in molti anni, che pajono fatti più per
ostentare le grandezze dei Sovrani, che per l’utilità publica. (FONTANA,
1775, p. 34)

Mais do que a “abundância de coisas” da coleção, é seu ordenamento novo o que,


para Fontana, tornará esse gabinete útil e distinto, de forma que “poucos dias” aí seriam mais
proveitosos que “muitos anos” de estudo em outras coleções. A “utilidade pública”,
garantida pela ordem, seria o valor supremo de uma coleção.
Se a ordem já aparece como uma questão em Quiccheberg, o que justificaria essa
postura de Hooke, Diderot, d’Aubenton, Fontana e tantos outros? Como observam Kury e
Camenietzki, os naturalistas do século XVIII buscavam critérios unívocos de organização
que expressassem as leis naturais universais, objeto de sua atividade científica (KURY;
CAMENIETSKI, 1997, p. 80). A ‘flexibilidade’ do pensamento precedente, característica
expressa no sistema de classificação de Quiccheberg, seria vista como incompatível com os
paradigmas de cientificidade emergentes.
Contudo, havia espaço na Encyclopedie para certa relativização dos méritos do
ordenamento estritamente científico das coleções, mais uma vez tomando o gabinete real
francês como modelo:

L’ordre méthodique qui, dans ce genre d’étude, plait si fort à l’esprit, n’est
presque jamais celui qui est le plus avantageux aux yeux. D’ailleurs,
quoiqu’il ait bien des avantages, il ne laisse pas d’avoir plusieurs
inconvéniens. On croit souvent connoître les choses, tandis que l’on n’en
connoît que les numeros & les places: il est bon de s’éprouver quelquefois

114
sur des collections, qui ne suivent que l’ordre de la symmétrie & du
contraste. Le cabinet du Roi étoit assez abondant pour fournir à l’un & à
l’autre de ces arrangemens; [...] Le surplus de chaque collection a été
distribué dans les endroits qui ont paru le plus favorables, pour en faire un
ensemble agréable à l’oeil, & varié par la différence des formes & des
couleurs. [...]On est donc obligé, afin d’éviter la confusion, d’employer un
peu d’art, pour faire de la symmétrie ou du contraste. (D’AUBENTON;
DIDEROT, 2016, p. 2:491)

A coexistência de dois princípios de ordenamento e exibição das coleções no Cabinet


du Roi – um princípio científico e outro estético – e sua defesa no verbete da Encyclopedie
poderia ser expressão dos dois papeis sociais distintos que essas instituições são então
chamadas a atender, e que vão se tornando progressivamente mais bem diferenciados: de um
lado, locais de pesquisa especializada; de outro, espaços de educação das massas,
dispositivos ‘civilizadores’. Essas duas funções caracterizarão os museus modernos em sua
constituição clássica.

A história dos museus, narrada na passagem dos sécs. XIX-XX


Se Die Kunst- und Wunderkammern der Spätrenaissance: ein Beitrag zur Geschichte
des Sammelwesens, de Julius von Schlosser (SCHLOSSER, 2012 [1908]) é apontado como
um dos primeiros estudos históricos monográficos dedicados aos chamados gabinetes de
curiosidades, outros autores no mesmo período também se voltaram à investigação, em um
escopo mais amplo, da história dos museus. Uma vez que as principais características do
estudo de von Schlosser – como o discurso evolucionista positivista, que associa as
wunderkammern à infância ou barbárie da sociedade, a narrativa que toma os gabinetes de
arte como ponto final do processo, a distinção entre tradições germânica e italiana, dentre
outras – são tópico frequente na literatura, gostaria de trazer outros dois autores, menos
discutidos.
Thomas Greenwood (1851-1908), membro da Royal Geographic Society de Londres,
escreve seu Museums and Art Galleries, não como um tratado especializado, mas de uma
“perspectiva popular” (GREENWOOD, 1888, p. v). A ênfase no caráter educativo dos
museus marca sua obra, em consonância com a atividade anterior do mesmo autor na defesa

115
de bibliotecas públicas gratuitas e de livre acesso – em sua perspectiva, bibliotecas públicas,
museus e galerias de arte seriam instituições inseparavelmente associadas (ibid, p. vi).
Logo no início de seu argumento, o autor se mostra averso à desordem, em uma
passagem que ecoa as denúncias iluministas:

The ordely soul of the Museum student will quake at the sight of a Chinese
lady’s boot encircled by a necklace made of shark’s teeth, or a helmet of one
of Cromwell’s soldiers grouped with some Roman remains. Another corner
may reveal an Egyptian mummy placed in a medieval chest, and in more
than one instance the curious visitor might be startled to find the cups won
by a crack cricketer of the county in the collection, or even the stuffed relics
of a pet pug dog. (GREENWOOD, 1888, p. 4)

Greenwood não se referia, contudo, às coleções “irracionais” do passado, mas ao que


um turista ou visitante encontraria ordinariamente nas pequenas cidades britânicas de sua
época. Sua crítica se estende igualmente aos prolíficos museus americanos do tipo “Dime
Museum”, “where every description of monstrosity, natural and otherwise – usually
otherwise – can be seen for a modest fivepence” (GREENWOOD, 1888, p. 6). Se os
argumentos nos parecem tão familiares, é porque partem igualmente de uma postura incapaz
ou indisposta à compreensão de critérios diferentes de ordenamento das coleções,
relacionados tanto a regimes alternativos de conhecimento como à atribuição de outras
funções, valores e intenções às práticas de colecionamento e exibição.
Para Greenwood, os museus deveriam ser instituições dedicadas à educação das
massas, tarefa que poderia ser facilmente realizada com um bom ordenamento e disposição
dos objetos colecionados:

The educational character of Museums is only now becoming generally


recognised, and the usefulness of a Museum in this respect does not depend
entirely so much on the number or intrinsic value of its treasures as upon the
proper arrangement, classification, and naming of the various specimens in
so clear a way that the uninitiated may grasp quickly the purpose and
meaning of each particular specimen. (GREENWOOD, 1888, p. 7-8)

Greenwood demonstra uma grande confiança no poder transformador dessas


instituições. Ele afirma que um simples passeio em uma exposição teria efeitos profundos

116
nos trabalhadores urbanos ou agrícolas, atuando ainda no combate de comportamentos
moralmente repreensíveis:

The working man or agricultural labourer who spends his holiday in a walk
through any well-arranged Museum cannot fail to come away with a deeply-
rooted and reverential sense of the extent of knowledge possessed by his
fellow-men. It is not the objects themselves that he sees there, and wonders
at, that causes this impression, so much as the order and evident science
which he cannot but recognise in the manner in which they are grouped and
arranged. (GREENWOOD, 1888, p. 26)
He has gained a new sense, a craving for natural knowledge, and such a
craving may, possibly, in course of time, quench another and lower craving,
which may at one time have held him in bondage – that for intoxicants or
vicious excitement of one description or another. (ibid, p. 27).

Nas descrições sucintas que Greenwood traz sobre os primeiros museus ingleses, o
autor não elabora juízos que explicitem sua opinião sobre as mesmas. Ele endossa, contudo,
o posicionamento especializado do Prof. Herdman sobre o museu ideal, reproduzindo a
comunicação desse à Sociedade Literária e Filosófica de Liverpool em 21 de março, 1887:

In what respect is a Museum better or higher than a mere collection of


curiosities made by an amateur, or than the confused assemblage of
heterogeneous objects seen on the shelves of the bird-fancier’s shop, if it is
not that in the Museum the specimens are supposed to be arranged and
labelled in a natural (that is, a scientific) manner? (HERDMAN apud
GREENWOOD, 1888, p. 180)

Prof. Herdman se pronuncia igualmente em prol da função educativa dos museus


enquanto instiuições públicas – “It should always be remembered that public Museums are
intended for the use and instruction of the general public, who have no special knowledge of
biology, and not of the scientific man or the sudent” (HERDMAN apud GREENWOOD,
1888, p. 182) –, enfatizando a importância de os museus estarem associados à pesquisa e
ensino por meio da inclusão de auditórios e laboratórios em sua estrutura.
Um tom bastante diferente perpassa a obra de David Murray (1842-1928). Advogado,
antiquário, arqueólogo e bibliógrafo associado à Universidade de Glasgow, Escócia, Murray
publicou em 1904 Museums: Their History and their Use, baseado em uma palestra que

117
proferiu em 1897 na Sociedade Arqueológica de Glasgow. Segundo Murray, seu objetivo era
estudar “a história e desenvolvimento dos museus enquanto instituições culturais”68, uma vez
que inicialmente não encontrara informações sobre o assunto nas enciclopédias e obras de
referências então em circulação.
Murray inicia o primeiro capítulo apresentando a definição corrente de museu, que
reverbera argumentos já familiares: “a collection of the monuments of antiquity or of other
objects interesting to the scholar and the man of science, arranged and displayed in
accordance with scientific method” (MURRAY, 1904, p. 1). Em sua narrativa histórica,
contudo, observa com interesse as mudanças de paradigmas de colecionamento ao longo do
tempo, percebendo certa utilidade nas “velhas coleções”:

Some of the exhibits of the old museums – unicorn’s horn, giants’ bones,
petrified toad-stools, and the like – strike us as somewhat extraordinary, but
they were placed there in accordance with the opinions and teaching of the
time. Our point of view is so different that we are inclined to look upon
much of the material of the old collections as rubbish, and it is apt to be so
treated by keepers only interested in the current views of museum
management, but this is a mistake. Many of these objects are of much
interest in the history of science, and to the discussion and controversies,
which some of them evoked, we are indebted for the science of to-day. [...] it
does not seem to have occurred to anyone to illustrate in a museum the
[hist]ory of the ideia of the museum, its arrangement and contents
(MURRAY, 1904, p. 39-40)

Ele então prossegue com algumas explicações sobre o significado de determinados


objetos – chifres de unicórnio, ossos de gigantes, múmias e semelhantes – para os
colecionadores do passado.
A distinção de sua apreciação das práticas colecionistas passadas é evidente,
por exemplo, em uma passagem em que comenta sobre a obra Museaeum metallicum de
Aldrovandi: “It is copiously illustrated and brings together all the information of the time,
which instead of being a blemish, as Buffon suggests, adds considerably to the utility of a
work whose value is nowadays, to a great extent, historical.” (MURRAY, 1904, p. 79-80). A

68
“I was anxious to learn something of the history and development of museums as scientific institutions”.
MURRAY, 1904, p. v.

118
atribuição de valor histórico às coleções do passado não o impede, contudo, de escrever um
capítulo sobre o “caráter não-científico dos primeiros museus”69.

While an enormous quantity of material was collected, it was only gradually


that its real value began to be appreciated, and that it was turned to proper
account. The early museums had often certain definite aims, and were
intended to be exponents of science; but natural history was hampered by
traditional opinions, and physical science was overweighted by metaphysics.
Everything was explained, but the explanations had always to be in accord
with the accepted doctrines of logic and metaphysics, which had themselves
in turn to square with theology. (MURRAY, 1904, p. 186)

E mais à frente, no mesmo capítulo:

In short, the first requisite of a museum exhibit was that it should be


something rare or costly, which was apt to degenerate into what was bizarre
or outlandish
The more an explanation appealed to the marvellous, the more acceptable it
was; and the belief in the miraculous, which characterized the Middle Ages,
had not died out in the seventeenth century. (MURRAY, 1904, p. 191)

Para Murray, os “defeitos” das coleções antigas seriam falta de espaço e meios de
exibição dos objetos, e um mau ordenamento (MURRAY, 1904, p. 205). Pondera,
entretando:

Not that the matter of arrangement was not considered, for the space that a
collection should occupy, the uses it should serve, and its proper disposition,
the position and size of the rooms, and their decoration, were all questions
discussed by the old writers upon museums; but their ideas were too vague
and ill-defined to lead to useful results, and they contented themselves with
merely reciting what one collector or another had done. (MURRAY, 1904, p.
207)

Murray encerra sua obra com um capítulo sobre os usos dos museus, em que advoga
pelo papel desses tanto na pesquisa especializada e na educação formal como no prazer e
instrução dos visitantes em geral, de forma semelhante ao defendido por Greenwood:

69
“Chapter XIV – Non-scientific character of early museums”, MURRAY, 1904, p. 186-204.

119
In a general sense a museum is a popular educator. It provides recreation and
instruction for all classes and for all ages. Its doors are open to all alike, and
each visitor gets profit or pleasure by viewing its objects just as he does from
a visit to a picture gallery. The modern museum has, however, more definite
aims. A museum has now become a recognised and necessary instrument of
research; it plays an important part in university and technical instruction,
and it should be adopted as an aid in elementary and secondary education.
(MURRAY, 1904, p. 259-260)

A curiosidade e o entretenimento são defendidos como estratégias de atração de


público que, uma vez no museu, aproveitaria mesmo que involuntariamente de seus efeitos
educacionais e culturais (MURRAY, 1904, p. 204; 269).

Apontamentos finais
Se noções como as de ‘classificação’ e ‘ordenamento’ dos objetos são temas comuns
e recorrentes nos escritos sobre coleções dos diversos períodos aqui reunidos, elas ganham
expressões muito diversas em cada caso, de forma que podem ser acionadas para sustentar
argumentos e interpretações por vezes opostos. A compreensão disso passa pela
consideração tanto de mudanças nos contextos sociais – de ordem política, cultural, material,
intelectual e assim por diante –, como da maneira de cada autor construir seu argumento a
partir de intenções e valores próprios, mobilizados pelos indivíduos a partir das
possibilidades que configuram e são configuradas por seu lugar na história e na sociedade. É
assim, por exemplo, que Murray e Greenwood, partindo do cenário comum das instituições
museais britânicas em fins do século XIX, podem expressar concepções distintas sobre os
museus ideais e suas contrapartes reais nas coleções do presente e do passado, concordando
em alguns pontos e discordando em outros.
Nesse sentido, as convergências, tanto na sincronia como na diacronia, são tão
relevantes quanto as divergências para o estudo das percepções sobre as práticas de
colecionamento da Primeira Idade Moderna ao longo do tempo. Voltando-nos para as
percepções hodiernas sobre os denominados gabinetes de curiosidades, pode ser elucidativo
tentar identificar fatores contextuais, valores e intenções que informam as diferentes
concepções desse fenômeno, em suas convergências e divergências. Apenas a título de

120
ilustração, de forma rápida e superficial, poderíamos tomar a formulação bastante comum
que apresenta tais gabinetes como origem ou antepassado dos museus contemporâneos –
nota-se que, partindo desse ponto convergente, características bastante distintas (e, por vezes,
contraditórias) dessas práticas de colecionamento modernas são ressaltadas quer se tenha
como referência ou museus de arte ou museus de ciência como ponto final da “evolução”.
Parafraseando o que escreveu o historiador da arte Ernest Gombrich sobre o estudo
das obras de arte do passado, olhamos para o colecionismo da Primeira Idade Moderna “pelo
lado errado do telescópio” (GOMBRICH, 2007, p. 54), imersos nas questões, percepções e
experiências do presente. Um esforço consciente constante seria necessário para ‘compensar’
as distorções que tal condição de investigação irremediavelmente impõe e nos aproximar, na
medida do possível, das variadas percepções, valores, usos e significados do passado.

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122
OITO PINTURAS DE ALBERT ECKHOUT NOS MUSEUS
OITOCENTISTAS DA DINAMARCA: UM ENSAIO SOBRE A
SOBREDETERMINAÇÃO HISTÓRICA DAS PRÁTICAS EXPOSITIVAS
SOBRE A INTERPRETAÇÃO DE ACERVOS MUSEOLÓGICOS

René Lommez Gomes*

Resumo: Por meio da investigação da biografia de um conjunto de pinturas produzidas por Albert
Eckhout, em seu trânsito por diversos museus dinamarqueses, ao longo do século XIX, este paper se
propõe a investigar as relações históricas que podem conectar as interpretações de acervos museais
com as práticas e espaços expositivos aos quais foram submetidos.

Palavras-chave: História das Coleções; História das Exposições; Museologia; Arte Neerlandesa

123
DINAMARCA, 1845

O naturalista escapou de cair no mar. Foi por pouco. O navio corria a dez nós, entre as
costas da Pomerânia e da Zelândia. Ele e o rei da Prússia estavam no convés, observando os
efeitos da luz da lua sobre as ondas, quando ocorreu o incidente. Do insignificante episódio,
resultou uma longa impressão do tombadilho em uma de suas pernas. Dias depois, um
espirituoso comentário brotou em uma carta endereçada ao astrônomo François Arago: “Cair
no mar [...] seria uma forma muito bela de sair da vida e ficar prudentemente livre do
segundo volume do Kosmos”. (HUMBOLDT, 1869, p. 311)

Lançado havia dois meses, o primeiro volume da obra tinha alcançado uma inesperada
popularidade, surpreendendo seu autor. Naquele momento, em junho de 1845, a primeira
edição havia se esgotado. (MACGILLIVRAY, 1860, 416) A surpresa com o sucesso do livro
era enorme. Só não era menor que o incômodo causado pelos críticos, que o acusavam de
ateísmo e de um superficial apego aos sentimentos – uma mistura de afeto e razão que soava
estranha aos olhos de alguns amantes das ciências, naquele momento em que o Criacionismo
e a epistemologia da objetividade científica competiam ombro a ombro com outros sistemas
de pensamento pela hegemonia no campo da produção do conhecimento. (HUMBOLDT,
1860. p. 194. HUMBOLDT, 1860b. p. 133-134.)

Com a publicação do Kosmos, Alexander von Humboldt alcançou um objetivo que


perseguia, desde o remoto ano de 1808. Trinta e sete anos atrás, a publicação de Quadros da
Natureza tornou pública sua busca pela criação de uma nova escrita para a História Natural.
Era sua preocupação alcançar uma forma de composição descritiva que, como o navio em sua
perna, fosse capaz de imprimir no leitor uma imagem exata e muito vívida da natureza. Exata
o suficiente para fornecer os dados necessários ao estudo de um ambiente, indo de seus
elementos particulares – as plantas, as rochas, o solo – à composição geral. Vívida a ponto de
excitar-lhe a imaginação, transmitindo as sensações que o mundo físico impõe ao viajante que
o contempla ao vivo. (PEDRAS, 2000, p. 104)

124
Não seria estranho, portanto, que o naturalista sentisse alguma ansiedade face às
expectativas geradas em torno da continuidade do trabalho. Embora o problema não
abandonasse sua mente,
a escrita do segundo volume da obra ficaria suspensa, enquanto durasse aquela viagem
à Escandinávia. Humboldt era camareiro e conselheiro privado do rei da Prússia, Friedrich
Wilhelm IV. E, como membro da comitiva real, fazia sua primeira visita à Dinamarca.
No dia anterior ao acidente, 16 de julho, o naturalista partiu de Berlim rumo ao porto
de Estetino, na Pomerânia. Ali, se juntou aos seus companheiros de viagem e o navio zarpou.
A jornada de um dia, a bordo do Rainha Elisabeth, brindou seu olhar treinado com magníficas
vistas da vegetação costeira. Ventava fresco e o mar estava extremamente alto. Em poucas
horas de navegação, o navio aportou em Swinemünde. Durante a tarde, a comitiva real seguiu
para Copenhague. No dia 18 de julho, já na cidade, Fredriech Wilhelm IV e seu séquito
seguiram uma intensa agenda. Humboldt alegrava-se de ter a perna muito pouco dolorida.
Não seria ela, portanto, que o impediria de percorrer a pé largos trajetos pela cidade.
(HUMBOLDT, 1869, p. 311) Sendo a figura mais ilustres da comitiva, sua presença era
esperada pelo monarca dinamarquês e por vários intelectuais.
Entre um compromisso e outro, a breve jornada ofereceu a Humboldt oportunidades
para refinar seu repertório de conhecimentos sobre o mundo natural e repensar o rumo de sua
obra. Na viagem à Dinamarca, o naturalista teria a chance de conhecer novas paisagens, travar
discussões com intelectuais e visitar os novos museus locais, que prometiam ser importantes
repositórios de elementos da natureza daquela zona fria e da cultura material dos homens que
ocuparam a Europa setentrional. Nestas peregrinações, movido pela curiosidade ou pelas
obrigações, entre os dias 19 e 20, o naturalista se ausentou de Copenhague. Movido pela
curiosidade ou pelas obrigações, entre os dias 19 e 20, ele se ausentou de Copenhague.
Rumando para o norte, ele visitou o castelo de Frederiksborg, em Hillerød. O antigo castelo
sediava, desde 1825, a nova criação do rei Dinamarquês: o Museu Real de Arte (Det
Kongelige Kunstmuseum). [fig. 1]
Pássaros, mamoeiros, bananeiras, helicônias, indígenas e negros... É de se imaginar a
surpresa do naturalista ao descobrir enormes telas com imagens da América, expostas no

125
museu, em meio a obras de renomados mestres da pintura europeia. No interior da Dinamarca,
Humboldt não encontrou apenas representações de montanhas e rochedos cobertos pela alva
neve, ravinas verdejantes entrecortadas por plantações de trigo ou praias serenas e pedregosas;
temas que se tornaram recorrentes na pintura de paisagens bálticas do século XIX.
Inesperadamente, a visita ao museu deu-lhe a oportunidade de contemplar um conjunto de
telas cobertas com sete diferentes paisagens dos trópicos.
Nos grandes quadros, à frente de cada paisagem, Alexander von Humboldt pode ver
figuras de homens e mulheres com os mais diversos aspectos: um casal de índios nus,
selvagens e canibais, ocupavam um par de telas; outras duas eram preenchidas pela imagem
de um casal de ameríndios e uma pequena menina, que adotaram modos civilizados como o
uso de roupas e de facas de metal; a terceira dupla de quadros continha um homem e uma
mulher negros, sendo ela acompanhada por um menino. Junto às pinturas, a sala de exposição
do museu ainda revelava outra obra, desta vez exibindo oito homens indígenas dançando em
frente a duas mulheres de seu grupo. [fig. 2-8]
O naturalista foi informado que as telas haviam sido pintadas por Albert Eckhout, um
artista neerlandês que viveu no Brasil seiscentista, aonde esteve a serviço do conde Johann
Moritz von Nassau-Siegen. É possível imaginar o misto de surpresa e familiaridade que teria
tomado conta de Humboldt, ao conhecer as obras de Albert Eckhout nas galerias do museu. O
pintor era absolutamente desconhecido pelos amantes da arte, no século XIX. Seu nome havia
sido esquecido havia muito tempo. Tampouco eram conhecidas outras obras com a marca de
sua assinatura, para além daquele conjunto de pinturas que pertencia ao rei da Dinamarca e se
encontravam no museu.70
Ainda assim, parte das imagens que Humboldt descobria na Galeria de Retratos lhe
eram conhecidas. Quando jovem, o naturalista possuiu em sua coleção uma taça de noz de
coco contemporânea às telas da galeria. [fig. 26] (SPENLÉ, 2011, p. 10.) A peça havia sido
70
O catálogo da Galeria Real de Pintura, instalada em Copenhague, indicava a existência, na coleção de pinturas
da “escola neerlandesa”, de uma tela que portava a assinatura “N. Eckhout f.”; correspondendo “f.” a fecit (fez).
(SPENGLER, 1827. p. 3002.) O tema pintado foi tradicional entre artistas protestantes do século XVII: o banho
de Susana. Não se sabe, contudo, o destino desta tela, que poderia ter sido realizada por Gerbrand van den
Eckhout ou por Albert Eckhout; considerando-se a possibilidade de o “N” ser um equívoco de leitura da
assinatura por desconhecimento de algum pintor. Caso fosse confirmada a fatura da imagem por Albert Eckhout,
esta seria a única obra conhecida do autor com tema não brasileiro.

126
feita a partir de uma noz esculpida, fixada por três braçadeiras em um pé de prata. Uma
tampa, do mesmo metal, finalizava a taça. Objetos como este foram cobiçados na Europa dos
séculos XVI e XVII, fazendo-se presente em inúmeras coleções e gabinetes de curiosidades
da época.
Contudo, o exemplar que pertenceu a Humboldt se diferenciava de objetos
semelhantes. No espaço entre cada braçadeira, a noz era decorada com relevos, reproduzindo
três cenas ambientadas na América. Uma das cenas era cortada ao meio por uma grande
bananeira. Ao seu redor, podiam ser vistos casebres e choupanas espalhados pela paisagem.
Junto à bananeira, dois ameríndios destacavam-se no primeiro plano: um homem à esquerda,
uma mulher à direita. Ornado com um cocar, o índio carregava uma borduna, um propulsor de
lanças e duas grandes lanças. A índia, com o sexo oculto por folhas, carregava uma grande
cesta às costas, presa por uma correia que lhe passava na testa. Na mão esquerda e sob o
braço, ela levava um maço de plantas. Na direita, segurava uma mão humana decepada, a
denunciar a antropofagia. Essas imagens – é de se imaginar – teriam habitado a fantasia do
jovem naturalista que sonhava viajar pela América. Eram figuras – e talvez Humboldt o
percebesse agora – que indubitavelmente haviam sido copiadas de dois quadros de Eckhout,
que se encontravam do museu de Hillerød: o Homem Tapuia e a Mulher Tapuia.
Em outra face da noz, a cena esculpida era entrecortada por um coqueiro no lugar da
bananeira. Ali, um homem seminu carregava um arco e flechas. Próximo a ele, uma mulher
trajando uma bata equilibrava uma cesta de frutos na cabeça. A figura do homem copiava o
Homem Tupi, mais uma criação do pintor neerlandês que pertencia ao museu. Já mulher
representada, embora não fosse perfeitamente idêntica, em muito lembrava a tela da
Mameluca, que Humboldt tinha à sua vista, ali em Frederiksborg.
Havia mais de quarenta e cinco anos que Alexander von Humboldt não possuía mais
aquela taça. Em algum momento às vésperas de partir em sua famosa viagem à América,
iniciada no ano de 1799, o naturalista teria presenteado Reinhardt von Haeften com o refinado
objeto. É possível que a oferta tivesse sido ocasionada pelo fato de Haeften não poder
acompanhar o amigo em sua aventura oceânica, o que impediu a realização de um sonho há
muito tempo acalentado por eles. Após isto, não há registros de que Humboldt tivesse tornado

127
a ver a taça de noz de coco, que permaneceu em posse da família de Haeften por cerca de dois
séculos, desde sua morte em 1803. (SPENLÉ, 2011, p.10.)
Se o naturalista ainda se recordava da taça é muito provável que ele realmente tivesse
associado as imagens gravadas em sua superfície com as representações da pintura de
Eckhout. Esta hipótese, contudo, permanece no campo das conjecturas. Em lugar algum,
Alexander von Humboldt registrou as impressões que o assaltaram no momento em que,
percorrendo o Museu Real de Arte, ele se deparou com as obras de Albert Eckhout. As
emoções, memórias, associações e ideias que lhe ocorreram no momento do encontro com
aquelas recriações do mundo tropical estão irremediavelmente perdidos.
Entretanto, a impressão causada pelas pinturas brasileiras foi tão forte que se fixou na
memória de Humboldt. Dois anos após a visita a Frederiksborg, a lembrança dos quadros era
fresca o suficiente para que Humboldt os descrevesse no segundo volume do Kosmos,
caracterizando-os como “primorosos grandes quadros a óleo, conservados na Dinamarca (em
uma galeria do belo castelo Frederiksborg)”. (HUMBOLDT, 1847. p. 85.)
A citação às telas de Albert Eckhout cumpria um papel crucial na composição do
segundo capítulo do livro, no qual o naturalista tentou reconstituir a tradição europeia de
representações das paisagens naturais. A referência às galerias do Museu Real de Arte, por
outro lado, não desempenha papel algum na narrativa de Humboldt. Ela tão somente indica o
local de guarda daquelas pinturas, nunca antes referenciadas na literatura científica ou nos
compêndios de história da arte. Ao mesmo tempo, ela deixa transparecer uma pálida pista
sobre as apreciações construídas pelo viajante em sua visita ao museu.
Ao mencionar a galeria do “belo castelo”, o naturalista abre uma brecha em sua
narrativa que incita perguntas sobre o papel daquele espaço na construção de sua reflexão
sobre as pinturas de Albert Eckhout. Elevando o questionamento a âmbitos mais gerais, e
alinhando-as aos universos de pesquisa da Museologia e da História dos Processos Museais,
esta passagem do Kosmos induz o pesquisador a investigar os possíveis impactos das
condições de exibição de acervos museológicos, incluindo os próprios espaços expositivos,
sobre as percepções que o visitante constrói dos acervos museológicos que observa. Ao
recriar a biografia das obras de Albert Eckhout, este ensaio pretende demonstrar como

128
diferentes culturas e condições de exposição, em interação com distintos sistemas de
pensamento, fizeram com que as telas vistas por Humboldt, em sua passagem pela
Dinamarca, fossem interpretadas de formas radicalmente distintas.

PRÚSSIA, 1847
O cerne do primeiro tomo do Kosmos havia sido uma vasta discussão sobre tudo
aquilo que “a ciência, fundada sobre observações rigorosas e apurada das falsas aparências,
nos deu a conhecer sobre os fenômenos e as leis do universo”. (HUMBOLDT, 1847. p. 1.)
Mas, para Humboldt, o “espetáculo da natureza” não estaria “completo se não considerarmos
como ele se reflete no pensamento e na imaginação” dos homens, especialmente quando há
uma predisposição para “impressões poéticas”. Assim, publicado em 1847, o novo volume foi
dedicado a reconstruir traços da história do conhecimento do mundo físico, identificando as
maneiras como o “sentimento da natureza” marcou o pensamento de poetas, pintores e
viajantes – homens que, “através da pluma e do pincel”, descreveram cenas naturais, dando-
lhes uma segunda existência. (HUMBOLDT, 1847. p. 85-86. GALUSKY, 1855. p. X.)
O naturalista dividiu o livro em duas partes: Reflexo do mundo exterior sobre a
imaginação do homem e Ensaio histórico sobre o desenvolvimento progressivo da ideia de
universo. A primeira foi destinada à análise dos “meios próprios à difusão do estudo da
natureza”, sob “três formas particulares, segundo as quais se manifestam o pensamento e a
imaginação criadora do homem”: a literatura descritiva, a pintura de paisagem e as coleções
de vegetais dos jardins e estufas. (HUMBOLDT, 1847. p. 1.)
A cada forma de expressão, foi dedicado um capítulo. Cada capítulo comportou
exemplos nada fortuitos. Ao contrário, a reflexão de Humboldt voltara-se exclusivamente para
o estudo da obra de homens que cumpriram um papel decisivo no desenvolvimento do gosto
pela natureza e por seu estudo científico. No capítulo sobre a pintura de paisagem, ele
advertiu que o interesse por este gênero de arte residia em sua capacidade de nos convidar,
“de maneira tão instrutiva quanto agradável, a entrar em livre comércio com a natureza”,
instigando o desenvolvimento do “gosto pelas viagens” e da contemplação da “fisionomia das
plantas” própria de cada espaço da terra. (HUMBOLDT, 1855. p. 85-86.)

129
O segundo volume do Kosmos assumiu, então, a forma de uma história do
conhecimento sensível do mundo físico. Nele, Humboldt discorreu sobre as maneiras como a
visão da natureza produziu impactos nos sentidos, no pensamento e na imaginação de homens
de diferentes épocas e origens. Explicou como celtas, árabes, hebreus, os cristãos primitivos,
os germânicos da Idade Média e europeus da era moderna expressaram seu interesse pela
natureza por meio de textos e imagens; registros da natureza ora fidedignos, ora não, mas que
nunca alcançaram o objetivo perseguido pelo naturalista: produzir o equilíbrio entre a
descrição exata das coisas e a transmissão das emoções causadas pela visão da natureza.
A análise de Humboldt percorreu os tempos e as geografias do mundo, forjando
tradições para
a representação literária e pictórica do mundo natural. Nos capítulos sobre a escrita
descritiva e a pintura de paisagem, as narrativas alcançaram o ápice a uma mesma altura da
passagem do tempo: a conquista do Novo Mundo.
A “sede de ouro” e o “desejo de visitar terras longínquas” foram, segundo ele, os
motores que levaram portugueses e espanhóis à América, descortinando a zona tórrida e suas
formas de vida ao escrutínio da curiosidade europeia. Pela primeira vez, “o mundo tropical,
em conjunto, ofereceu ao olhar dos europeus a magnificência de suas planícies fecundas,
todas as variedades da vida orgânica escalonada sobre as encostas das Cordilheiras, e os
aspectos dos climas do norte que parecem refletidos sobre os platôs do México, da Nova
Granada e de Quito”. Espíritos inflamados de amor pela natureza, europeus de muitas nações
compassaram o globo, ampliando “o círculo das observações científicas”. Aos olhos do
naturalista, a conquista da América foi a revolução que franqueou aos homens a possibilidade
de conhecer e conectar os fenômenos naturais do cosmos. (HUMBOLDT, 1855. p. 59-61.)
Na genealogia traçada pelo autor, Cristóvão Colombo ocupou o lugar de primeiro
europeu a ter o gênio e a pena animados por “um profundo sentimento da natureza”. Com
“nobreza e sensibilidade de expressão”, seus textos teriam descrito as novidades que a vida, a
terra e o céu da América apresentaram diante de seus olhos. (HUMBOLDT, 1855. p. 62.)
A revolução da pintura ocorreria um século mais tarde. Segundo Humboldt, o
amadurecimento da pintura de paisagens resultou da concorrência de várias condições,

130
surgidas apenas no século XVII: a emancipação deste gênero artístico em relação à pintura de
história, o aperfeiçoamento de técnicas que permitiam a observação direta da natureza e o
surgimento de uma “consciência mais elevada do sentimento da natureza” tornaram os
pintores hábeis na imitação dos modelos oferecidos pelo mundo natural. A transformação foi
lenta e teria decorrido das conquistas obtidas pelos pincéis de artistas como Claude Lorrain,
Gaspar e Nicolas Poussin, Salomon van Ruysdael, Albert Cuyp, Meindert Hobbema e Allart
van Everdingen. (HUMBOLDT, 1855. p. 93-94.)
Entretanto, Humboldt considerava que a pintura de paisagens só teria atingido a
maturidade quando a ampliação “dos conhecimentos geográficos” e a descoberta América
conferiram maior “variedade e precisão” à arte de representar “as formas individuais da
natureza”. Para ele, as viagens ultramarinas; o comércio global de especiarias e de substâncias
medicinais; as gravuras de relatos de viagem e de livros de história natural; e a aclimatação de
espécies vegetais de todos os continentes em menageries e jardins botânicos teriam
familiarizado artistas que não saíram da Europa com as “formas maravilhosas de um grande
número de produtos exóticos”. (HUMBOLDT, 1855. p. 95.)
Jan Brueghel, o velho, seria um dos primeiros pintores tocados pela realidade
ultramarina. O naturalista reconhecia em sua pintura uma “charmosa verdade” a dar forma a
“galhos de árvores, flores e frutas estrangeiros à Europa”. (HUMBOLDT, 1855. p. 96.) Ainda
assim, nem este flamengo e nem de seus contemporâneos teriam logrado êxito na reprodução
do “caráter particular da zona tórrida”, sem travar contato com a fisiognomia do Novo
Mundo. Na tradição da pintura de paisagem inventada por Humboldt, a descrição fiel da
natureza tropical e o ápice deste gênero artístico surgiriam com os primeiros quadros pintados
in situ, por artistas atentos às novidades que os circundavam.
O “mérito dessa inovação”, segundo o naturalista, coube a “Frans Post, de Harlem, que
acompanhou Moritz von Nassau ao Brasil, quando esse príncipe, muito curioso das produções
tropicais foi nomeado governador, pela Holanda, das províncias conquistadas aos
portugueses”. Revisitando informações colhidas junto ao historiador da arte e diretor da
Galeria Real de Pintura de Berlim, Gustaf Friedrich Waagen, Humboldt reputou o artista
neerlandês como o primeiro artista a representar as regiões tropicais, a partir da observação

131
direta.71 Complementando as informações sobre o artista, Humboldt registrou que, “durante
vários anos, Post realizou estudos d’après nature sobre o promontório de Santo Agostinho, a
Baía de Todos os Santos e as margens do Rio São Francisco”, chegando a transpor alguns
deles em pinturas e gravuras. (HUMBOLDT, 1847. p. 85.)
Mas, na tradição da pintura de paisagem construída por Humboldt, Frans Post dividia a
primazia na representação da natureza da zona tórrida com seu colega de viagem, Albert
Eckhout. Com efeito, Humboldt não deixou de empregar as lembranças da estadia em
Hillerød na construção
da sequência de sua história da influência do “sentimento da natureza” sobre a
sensibilidade e o trabalho dos pintores. Ao descrever os “primorosos grandes quadros a óleo,
conservados na Dinamarca”, ele afirmou que as “palmeiras, mamoeiros, bananas e helicônias”
figurados pelo artista haviam sido “muito caracteristicamente retratados”, como também o
seriam “a figura dos nativos, as aves de pensas coloridas e pequenos quadrupedes”.
(HUMBOLDT, 1847. p. 85.)
Ao frisar as características que percebia nos quadros criados pelo “pintor Eckhout que,
em 1641, também esteve com o Príncipe Maurício de Nassau na costa brasileira”, Humboldt
reforçou seu argumento de que o engrandecimento do gênero da pintura de paisagens advinha
do exercício de um procedimento que ele reputava ter sido inaugurado pelo artista e seu
colega de viagem: a representação da natureza tropical com base em esboços realizados a
partir da observação do ambiente natural.
O barão não conhecia outros artistas que, ao se aventurarem fora da Europa, deixaram-
se impregnar pelas formas e cores dos trópicos. Por isto, asseverou que o pioneirismo de Post
e Eckhout não produziu continuadores de imediato. Humboldt escreveu no Kosmos que “esses
exemplos da representação fisiognômica da natureza não foram seguidos por muitos artistas

71
Não se sabe, até o momento, se Humboldt colheu informações acerca de Frans Post diretamente com Waagen
– que certamente pertencia a seus ciclos sociais – ou se através de algum de seus trabalhos. Em uma das
publicações sobre coleções de arte da Grã-Bretanha, o eminente historiador da arte arrolou “duas pequenas
paisagens com cenas americanas” pintadas por Post, entre os quadros existentes em Broughton Hall.
(WAAGEN, 1854. vol. 3, p. 460.) Ao descrever as pinturas, ele indicou que seus assuntos “formam os temas das
primeiras imagens deste artista”; o que sugere que Waagen tinha familiaridade com outras obras do pintor de
Nassau.

132
de talento até a segunda viagem de circunavegação de Cook”, em 1772. (HUMBOLDT, 1847.
p. 86.)
O segundo elo na tradição das pinturas de paisagens tropicais cunhada por Humboldt
apareceria, portanto, mais de cem anos depois que os artistas de Nassau retornaram do Brasil
para a Europa. A viagem do pintor William Hodges pelas ilhas ocidentais e pelo mar do sul,
em companhia de James Cook, seria a ocasião que propiciaria a perpetuação da invenção de
Post e Eckhout na pintura europeia. Hodges havia sido professor de Humboldt. É possível,
portanto, que a observação de sua produção tivesse influenciado o jovem naturalista,
orientando a formação de seu gosto e a criação de suas próprias ideias sobre como deveria ser
composta a obra de um bom ilustrador científico.
Seguindo a seara aberta pela expedição de Hodges e pela viagem de Ferdinand Bauer à
“Nova Holanda e à terra de Diemen”, Humboldt identificou em sua própria época a
emergência de uma nova geração de artistas que, ao visitarem os trópicos, deram continuidade
ao trabalho de representar suas paisagens. Johann Moritz Rugendas, o Conde de Clarac,
Ferdinand Bellerman e Édouard Hildebrandt executaram, “com um talento superior”,
paisagens dos países tropicais da América já visitadas por Post e Eckhout. Do mesmo modo,
Henri de Kittlitz, “que acompanhou o almirante russo Lutke em sua expedição ao redor do
mundo, prestou o mesmo serviço ao descrever inúmeras outras partes da terra”.
(HUMBOLDT, 1847. p. 86.)
Elevada à condição de ponto nodal de uma tradição paisagística que produzia uma
ponte que unia a arte à ciência, a obra dos dois artistas de Nassau saiu das sombras impostas
pelo culto aos grandes mestres do século XVII e ganhou um novo status. Um “despertar
oficial do interesse” pelos pintores seguiu a menção de Humboldt às suas obras. (BRIENEN,
2012, p. 81) Os quadros de Post chamaram a atenção dos amantes da arte e foram disputados
por museus, institutos históricos e colecionadores privados, especialmente no Brasil e nos
Países Baixos. Já as obras de Eckhout, tiveram outra fortuna. De início, não atraíram a
atenção dos conhecedores e amantes da arte. O público acadêmico foi lentamente seduzido
pelas imagens do passado americano que, com um aspecto acentuadamente realista, brotaram
das mãos do pintor. A exuberância das helicônias, das palmeiras, dos mamoeiros delineados a

133
óleo encantou-os pela beleza; e por oferecer um trampolim para a renovação do pensamento
sobre o Novo Mundo nas ciências naturais.
Reflexo de sua popularidade, a passagem do livro sobre “os artistas que pintaram as
paisagens do Novo Mundo” foi republicada e citada em livros e periódicos da época, como o
Le Magasin Pittoresque. (MAGAZIN PITTORESQUE, 1849, p. 363) As ideias contidas no
Kosmos mudaram a percepção coletiva das pinturas expostas no museu dinamarquês, que
foram alçadas do desconhecimento à proeminência internacional. As considerações do
naturalista sobre o modo como o pintor condensou “muito caracteristicamente” a imagem da
natureza tropical e de seus habitantes suscitaram o interesse pelas obras. Não entre os
especialistas em arte, mas sim em naturalistas e em antropólogos, despertados pela opinião de
um dos seus mais célebres colegas. Os olhos deste público, treinados pelos paradigmas da
ciência oitocentista e orientados pela observação de Humboldt que fazia crer que as pinturas
eram descrições fiéis do mundo tropical, escrutinaram as imagens do pintor batavo. Eles
buscavam documentos virgens sobre o passado da América, prontos para serem inquiridos em
suas pesquisas.

DINAMARCA, 1820.
No momento em que Alexander von Humboldt deitou os olhos sobre as pinturas de
Albert Eckhout, elas já estavam no reino da Dinamarca por mais de 190 anos. Elas faziam
parte de um conjunto de 24 pinturas, produzidas no Brasil, com que o conde de Nassau
presenteou seu primo Frederik III, soberano do Reino Duplo da Dinamarca e da Noruega, em
1654. Além das sete obras observadas por Humboldt, o presente era composto por mais uma
dupla de pinturas representando uma mameluca e um mulato, doze naturezas-mortas com
vegetais da América, da África e da Europa, um retrato de Dom Miguel de Castro,
embaixador do Conde do Sonho enviado a Recife em 1640, dois retratos de Nassau e duas
efígies de pajens negros. (GOMES, 2016, p. 22)
De sua criação no Recife, entre os anos de 1641 e 1643, à sua chegada em
Copenhague, as pinturas haviam percorrido uma turbulenta jornada, que incluía sua partida do
Brasil, em 1644; a travessia do Atlântico em navios; sua instalação e exibição na Mauristhuis,

134
residência de Nassau em Haia; e uma possível permanência no condado de Kleef, a partir de
1652. Ao largo do tempo, as peças sofreram inúmeros deslocamentos e sucessivos danos. Já
na Dinamarca, elas foram restauradas e, finalmente, incorporadas à Kunstkammer de Frederik
III, em 1646. (GOMES, 2016)
Na Kunstkammer real, as obras foram acondicionadas em diversas câmaras temáticas,
que alinharam suas interpretações às relações políticas do rei dinamarquês e à suas
expectativas pela introdução do Reino Duplo no comércio ultramarino das índias Ocidentais,
com a exploração de terras na África e na América.
Com o falecimento de Frederik III, sua coleção foi herdada por seu filho Christian IV,
que a fez aumentar sem perder os significados com que foram revestidas no tempo de seu pai.
Transferidas para uma galeria no castelo de Christiansborg, especialmente criada para acolher
a coleção, a Kunstkammer real permaneceu praticamente intocada até o século XVIII, quando
algumas de suas pinturas – incluindo os dois retratos de Nassau pintados por Eckhout – foram
separados do restante do conjunto para compor uma galeria de arte à moda iluminista, na qual
estas obras passariam a ser encaradas como importantes representantes da retratística
neerlandesa do século XVII. As outras obras, por mais de um século, descansaram nas
paredes da antiga Kunstkammer, expostas de uma maneira já fora de moda e sem já conseguir
evocar
os sentidos que orientaram sua acumulação.
Neste largo tempo, ocorreu o esquecimento do artista e de suas obras pelos
connoisseurs e pelos amateurs de arte da Europa ocidental. Mas, a despeito das aparências, na
Dinamarca, a vida das pinturas não adormeceu. Individualmente ou como parte de coleções,
elas passaram por transformações – nem sempre físicas, muitas vezes simbólicas – que
constantemente ocasionaram renegociações de seus sentidos e significados. Durante toda a
existência, as pinturas de Eckhout mudaram de contexto, variaram na forma como foram
percebidas e acumularam histórias. Os significados que elas apresentaram, quando vistas por
Humboldt, antes ou depois disto, derivam em parte das “pessoas e eventos aos quais
estiveram conectadas”, em parte dos museais e expositivos em que foram percebidas.
(GOSDEN; MARSHALL, 1999. p. 172)

135
Ao entrarem para o acervo do Museu Real de Arte da Dinamarca – onde Humboldt as
viu –, as obras de Eckhout tomaram parte no processo de dissolução da Kunstkammer real.
Fundado por Frederik III, em 1650, o gabinete de curiosidades foi herdado e ampliado pelos
descendentes do monarca. A despeito de várias transformações, a coleção e a instituição da
Kunstkammer real sobreviveram até meados da década de 1820. A partir de então, diversos
fatores levaram à sua dissolução, por decisão de um grupo de especialistas escolhidos pelo rei
Frederik VI para garantir a preservação dos acervos reais. A Kunstkammer fragmentada deu
origem a coleções menores, que foram absorvidas pelos museus públicos e especializados que
estavam a ser criados. (GUNDESTRUP, 1988. p. 187; 189) É neste momento e neste contexto
de percepção que as pinturas de Eckhout fizeram sua aparição para Humboldt, foram
redescobertas e ganharam proeminência internacional.

Fixadas pelas tintas de Eckhout e mediadas pelas palavras de Humboldt, as formas e as


cores das plantas e dos animais dos trópicos chamaram a atenção de antropólogos, zoólogos e
botânicos oitocentistas. Durante a partilha do acervo da antiga Kunstkammer real, as pinturas
brasileiras não deixariam de ser disputadas pelos novos museus disciplinares que nasciam. Os
“frutos e sementes” das naturezas-mortas pareciam tão bem delineados que o diretor do
Jardim Botânico da Universidade de Copenhague buscou obter as telas para a instituição que
conduzia.72 O professor Joachim Frederik Schouw, no entanto, falhou em seu intento.73 O
futuro das pinturas de Eckhout seria traçado pela fascinação que as realistas imagens de
índios, negros e mestiços causava nos etnólogos.

DINAMARCA, 1848

72
THOMSEN, 1938. p. 5-6.
73
Joachim Frederik Schouw tornou-se diretor do Jardim Botânico em 1841. Um de seus projetos acadêmicos foi
a produção de um estudo da geografia da vegetação da Itália e da Sicília, elaborado com o intuito de obter um
estudo intermediário sobre zonas climáticas intermediárias aos trópicos, estudados por Alexander von Humboldt,
e as regiões polares e altas, trabalhadas por Goran Wahlenbergs. Para cumprir seus objetivos, Schouw
permaneceu na Itália por três temporadas. Na segunda, ocorrida entre 1829 e 1830, ele contou com a colaboração
do paleontólogo P.W. Lund, recém retornado de sua primeira viagem ao Rio de Janeiro.

136
Assim, antes que arte, a pintura do artista neerlandês passou a ser percebida como
“uma inestimável lição etnográfica”.74 Esta mudança de estatuto das obras foi coroada quando
“cientistas oficiais fizeram transferi-la, em 1848 e 1849, para o novo museu” que se
encontrava em montagem: o Museu Etnográfico Real (Det Kongelige Ethnographiske
Museum).75 Esta instituição derivava do Museu Real de Arte (Det Kongelige Kunstmuseum).
Em verdade, a razão maior de sua fundação foi o enorme crescimento do departamento
etnográfico do museu de arte, sob a coordenação do arqueólogo diletante Christian Jürgensen
Thomsen.76
Thomsen envolveu-se profundamente com a ampliação da sessão etnográfica,
especialmente após 1839, ano em que foi apontado como novo diretor do Museu Real de Arte.
Em pouco tempo, ele começou a selecionar itens para compor a coleção de um museu
etnográfico, que planejava criar.77 A crescente coleção foi, então, transferida para o palácio
Prindsens, em Copenhague. Por fim, o Museu Etnográfico Real abriu as portas em 1849,
como uma das primeiras instituições do gênero a serem criadas na Europa.
Da produção de Albert Eckhout, o novo museu expôs em suas salas somente “os
quadros que mais interessavam à ciência”, mais propriamente à etnologia.78 A primeira seção
da exposição permanente era dedicada às “nações que geralmente não processam seu próprio
metal”.79 Nela foram dispostas as grandes telas com a dança indígena, os índios tapuias e os
tupis, integrando os setores dedicados às regiões quentes da América do Sul.80 Os quadros
com o casal de negros foram pendurados na seção seguinte, que abordava as “nações que
trabalham o metal, mas que não desenvolveram sua própria literatura”.81 Eles foram exibidos
no setor destinado ao Brasil, junto aos povos das áreas cálidas da América. No catálogo da

74
GUIMARÃES, 1932. p. 96. GUIMARÃES, 1931. p. 272. GUIMARÃES, 1957. p. 152.
75
GUIMARÃES, 1932. p. 96. GUIMARÃES, 1931. p. 272. GUIMARÃES, 1957. p. 152.
76
ESKILDSEN, 2012. p. 31.
77
GUNDESTRUP, 2012. p. 112.
78
GUIMARÃES, 1932. p. 96. GUIMARÃES, 1931. p. 272. GUIMARÃES, 1957. p. 152. GUNDESTRUP,
2002. 112.
79
STEINHAUER, 1866. p. 1.
80
No catálogo do museu, estas peças aparecem sob os números 97, 99, 100, 110 e 110. STEINHAUER, 1866. p.
40; 43.
81
STEINHAUER, 1866. p. 44.

137
exposição, foram apresentados como a imagem de “um negro e uma negra libertos, com seu
filho”, “pintada no Brasil por Albert Eckhout”.82
A partir de então, as telas que foram expostas – seis das oito representações de
homens e mulheres dos trópicos – se tornaram o foco da apreciação de todos os interessados
pela obra de Albert Eckhout. Perante a proeminência destas obras e a força do discurso
expográfico que as apresentava, as outras 20 telas ofertadas por Nassau a Frederik III foram
obscurecias e relegadas ao segundo plano. A expografia do Museu Etnográfico, oferecia as
imagens dos homens do Brasil ao olhar de curiosos e intérpretes. Ao fazê-lo, ela construía um
contexto de percepção que informou as primeiras interpretações acadêmicas das pinturas do
artista neerlandês, após a publicação do Kosmos. Não tardou, então, para que as oito telas com
habitantes do Brasil ganhassem a alcunha imprecisa de retratos etnográficos.
Recolhidas às reservas técnicas ou expostas em outras instituições, as pinturas
atribuídas a Albert Eckhout permaneceram à sombra das telas dos ditos retratos, agora
valorizados como documentos para a etnografia dos povos brasileiros. As obras com os bustos
dos africanos – o retrato de Dom Miguel de Castro e o par de peças com pajens – haviam sido
transferidas para a Galeria Real de Pinturas (Det Kongelige Billedgalleri), instalada no castelo
Christiansborg. [fig. 47] Por lá, elas ficaram um longo tempo. A transferência ocorreu ainda
na década de 1820, durante a formação do Departamento Etnográfico do Museu Real de Arte
da Dinamarca (Det Kongelige Kunstmuseum), já comandado por Christian Thomsen. É
provável que, àquela altura, ele considerasse as imagens de negros vestidos à europeia
irrelevantes como registros da cultura dos “primitivos” africanos, uma representação nada fiel
ao seu estágio evolutivo. Nem a visita de Humboldt, nem a instalação do Museu Real de
Etnografia trouxeram estas pinturas para o lado das outras obras do artista.83
Da mesma maneira, a despeito dos clamores do diretor do Jardim Botânico de
Copenhague, as naturezas-mortas de Eckhout foram recolhidas à reservas do Museu Real de
Etnografia. Posteriormente, elas foram resgatadas por seu valor decorativo, sendo penduradas
em um corredor escuro do palácio que sediava o museu. Os grandes quadros com a Mameluca

82
STEINHAUER, 1866. p. 67. As duas telas aparecem, no catalogo, sob o mesmo número 178.
83
GUNDESTRUP, 2012. p. 112. GUNDESTRUP, 2004. p. 56. SPENGLER, 1827.

138
e o Mulato, separados das outras telas com representações de habitantes dos trópicos, tiveram
um destino semelhante. Incialmente, eles foram expostos junto às pinturas do casal de negros,
como registros de estágios intermediários da civilização americana. Já na passagem entre as
décadas de 1920 e 1930, elas haviam sido retiradas da exposição e podiam ser vistas
ornamentando as paredes do gabinete de um dos diretores do museu, o historiador Carl
Mouritz Clod Mackeprang.84
O Museu Etnográfico Real, enfim, criou um lugar a partir do qual uma restrita seleção
de obras do o pintor seria lembrada e interpretada; e este não era a história da arte. Era o lugar
da etnografia avant la lettre.
Um etnólogo que atuava no museu, Kristian Bahnson, fixou este modo de perceber a
obra de Eckhout no meio acadêmico internacional. Quarenta e dois anos após a publicação do
Kosmos, ele foi o primeiro pesquisador a escrever um artigo dando relevo às pinturas
brasileiras. O texto não tinha os quadros como assunto principal. Seu foco era a investigação
sobre a origem das lanças de madeira sul-americanas que pertenciam à instituição. Ainda
assim, o artigo escrito pelo dinamarquês fundou um modo de interpretar a obra de Eckhout,
cujos argumentos foram repetidos, como cacoetes, na literatura especializada.
A tarefa de Bahnson não era fácil. Alguns artefatos não davam pistas sobre sua
procedência: eles tinham formas tão singulares, que não permitiam comparações e analogias
com outros exemplares conhecidos. Dois dardos e um propulsor de dardos, no entanto, eram
diferentes. [fig. 48] “Pelo menos dentro de certo limite”, o assistente do museu acreditava ser
capaz de “identificar sua origem”, posto que os artefatos estavam representados em duas telas
do conjunto de nove pinturas com brasileiros, criadas por Eckhout. Replicando o discurso do
museu, ele assegurava que aquelas obras de arte se encontravam na Dinamarca “há mais de
200 anos”. Quiçá – indicou ele – os quadros e as armas e teriam chegado juntos às coleções
reais, como aquisições da Kunstkammer do rei Frederik III, soberano do Reino Duplo da
Dinamarca e Noruega, como ocorreu com os objetos dos esquimós. As pinturas, afinal,
estavam arroladas nos inventários desta coleção desde a segunda metade do século XVII.

84
STEINHAUER, 1866. p. 66. GUIMARAES, 1931. p. 272.

139
Observando as duas telas – a pintura com um índio com o propulsor de dardos na mão
e aquela com um grupo indígena a dançar com armas em punho –, Bahnson destilou dados
sobre os objetos do museu e condensou conclusões gerais acerca do pintor. Os artefatos
existentes na coleção da instituição – segundo o etnólogo – eram quase idênticos às armas
indígenas representadas por Eckhout. Considerando que os dois quadros eram “as mais
antigas representações de tipos étnicos americanos, que se conhece”, ele afirmou que toda a
obra do pintor tinha “um significativo interesse”; um valor, a bem dizer, documental.85
A importância documental das pinturas de Eckhout era expressa, para o etnógrafo, na
pequena diferença percebida entre o realismo da representação das coisas brasileiras e o
aspecto dos artefatos salvaguardados pelo museu. Segundo Bahnson, “as características dos
personagens, seus penteados, seus lábios, suas joias nas bochechas, e a forma dos braços”,
somadas às assinaturas das telas, não deixavam dúvidas: as imagens representavam nativos do
Brasil. Por analogia, também eram brasileiros os objetos colecionados pelo museu. As
imagens criadas pelo artista foram interpretadas, assim, como registros dos vários “tipos de
povos” brasileiros do passado. Por esta característica, elas serviam ao etnólogo como fonte de
dados sobre os costumes e o modo de viver daqueles indígenas. Ao museu, como base para a
identificação da origem dos artefatos que integravam a sua coleção.86
Havia, contudo, limites para o uso das imagens de pela ciência oitocentista. E Bahnson
o percebia. No que concernia às “características faciais” do índio pintado por Eckhout – que o
dinamarquês tomou erroneamente por um tupi –, elas pareciam grosseiras e “dificilmente
reproduzidas de forma correta”. O etnólogo acreditava que “embora o artista tivesse uma
habilidade, rara em seu tempo, para reproduzir tipos estrangeiros”, “o tratamento da mão de
um artista habituado a pintar figuras europeias” pesava sobre as representações, distanciando-
as do real. O treinamento artístico, para o etnólogo, teria contaminado a habilidade de
Eckhout em transferir fielmente o visto para a representação, criando uma imagem pouco
acurada do aspecto do indígena. Sua mão, pelo hábito, se tornara infiel ao que os olhos viam.
O que não seria de todo estranho, afinal, “não se pode esperar uma representação

85
BAHNSON, 1889. p. 223.
86
BAHNSON, 1889. p. 221-222.

140
antropológica precisa dos tipos étnicos em pinturas do século XVII”, concluiu o
pesquisador.87
Este era um ponto sensível para a argumentação de Bahnson. O que importava para a
sustentação de sua hipótese era o caráter documental, e até testemunhal, das representações de
Eckhout. Era-lhe necessário, portanto, obter garantias da autenticidade do documento visual –
da fidelidade da representação à realidade das coisas. E, de fato, Bahnson sentia-se seguro
sobre isto. Sua confiança vinha da constatação de que as obras foram “realmente pintadas a
partir de modelos e não de esboços perdidos ou da imaginação” do artista. Em outras palavras,
as imagens que compunham as nove telas brasileiras seriam registros exatos da realidade, não
maculados por constrangimentos da tradição artística, nem falseados pela inventividade ou
pela fantasia do pintor.
Neste ponto, o aspecto das figuras dos índios, dos negros e dos mestiços fazia o
etnólogo acreditar que o artista as desenhou “inegavelmente a partir do natural”.88 Alexander
von Humboldt, antes dele, já havia afirmado que Frans Post – e não Albert Eckhout –
“realizou estudos a partir do natural” de paisagens do nordeste brasileiro, algumas delas
resultando em “pinturas concluídas”; outras, em gravuras feitas “de modo muito original”.89
Diferente do naturalista prussiano, Bahnson não baseou sua afirmação no conhecimento de
desenhos preparatórios ou esboços de observação feitos pelo artista, mas em suas impressões
no contato com as pinturas. Ele tinha para si que tão somente através da observação direta um
pintor obteria tamanha qualidade no registro dos adornos, das armas, corpos e estilos de
cabelo de “povos estrangeiros” tão diferentes. Parecia-lhe que a produção daquelas pinturas
seria “possível apenas se o artista tivesse os vários tipos diante de si”. Bahnson concluiu,
desta certeza, que os quadros foram realizados em alguma área do Brasil colonial, com índios
tupis e seus apetrechos bélicos, todos desenhados ao vivo.90

87
BAHNSON, 1889. p. 222-223. Paul Ehrenreich identificou e corrigiu o erro de Bahnson, pouco depois da
publicação de seu artigo. Ver, EHRENREICH, 1894, p. 81. EHRENREICH, 1905, p. 19.
88
BAHNSON, 1889. p. 223.
89
HUMBOLDT, 1847. p. 85. HUMBOLDT, 1855. p. 96.
90
BAHNSON, 1889. p. 223.

141
Descrevendo as circunstâncias de criação das imagens, Bahnson projetou valores da
ciência oitocentista sobre sua percepção do modo de produzir de um pintor seiscentista. Neste
processo, anteviu em Eckhout o exercício de uma virtude epistemológica ainda inexistente no
seu tempo: a aspiração por revelar a realidade, a verdade natural, através da observação arguta
e da representação fidedigna ao aspecto típico das coisas. Ele viu nas telas com homens e
frutos do Brasil o resultado de uma deliberada intenção de produzir registros acurados, fiéis
ao natural, criando uma radical separação entre uma cópia da realidade e a representação
submetida à interveniência da fantasia. Em suas análises, Bahnson, expurgou a possibilidade
de o artista haver empregado fosse a invenção, a ficção ou a simbolização em seu processo de
criação. A cópia fiel era o único recurso artístico próprio à obra de Eckhout.
Quando surgiram os primeiros estudos dedicados exclusivamente a Albert Eckhout, na
década de 1930, já estavam consolidados os padrões de leitura de suas obras como
documentos visuais. Os museus da Dinamarca forneceram os contextos de interpretação. Os
escritos e interpretações de Humboldt, Christian Thomsen, Bahnson e outros – como o
antropólogo Paul Ehrenreich – fecharam os argumentos utilizados nas primeiras leituras da
obra de Albert Eckhout. Argumentos que, com o tempo e pela força da repetição exaustiva,
passaram de hipóteses e incertezas a verdades.

142
RITORNELO: DINAMARCA, 1845
Tais são as visões. O visitante logo sai do museu; e, à porta, talvez não consiga ter em
conta quais daquelas extraordinárias aparições do mundo – cuidadosamente criadas a tinta –,
ficarão impressas em sua memória. Nem qual aspecto as coisas vistas tomarão ao se tornarem
lembrança ou serem futuramente recuperadas, como imagens mentais, na formulação de um
pensamento.

É possível que, ao deixar o Museu Real de Arte (Det Kongelige Kunstmuseum) e o


castelo Frederiksborg, Alexander von Humboldt soubesse que carregaria consigo a lembrança
de seis telas pintadas por Albert Eckhout no Brasil. O que ele dificilmente poderia antever era
o papel central que aqueles vislumbres da América teriam na articulação do segundo volume
do Kosmos, a ser lançado dali a dois anos. Tampouco, que a memória das telas emergiria, no
texto, indissociada das reminiscências de “uma galeria do belo castelo Frederiksborg”.91

Não se deve menosprezar o fato de que o naturalista conheceu objetos, não apenas
imagens. Foram pinturas dotadas cuja presença física que o ajudaram a articular seu sistema
de ideias sobre a representação da América. Não se tratava apenas de imagens incorpóreas,
recortadas do mundo real. Além disto, os quadros de Eckhout fizeram sua aparição diante dos
olhos de Humboldt, não em um lugar qualquer. Mas, em um museu oitocentista – um espaço
que usualmente sobredeterminava a contemplação dos objetos com sentidos, significados,
discursos e valores, sobrepostos e intercruzados.

No museu do século XIX, uma pluralidade de elementos – a arquitetura, a expografia,


textos – deveriam atuar sobre o visitante de forma a produzir um efeito final: orientar sua
percepção dos objetos, provocando a apreensão dos sentidos e dos valores a eles atribuídos.
Parece axiomático não ser possível exibir objetos sem integrá-los em uma construção;92
especialmente nos primeiros museus públicos, compromissados com valores políticos e com a
produção do conhecimento. Os recursos expográficos utilizados – como vitrines, legendas, a
sequência de objetos, a iluminação – respondiam à intenção de condensar vários fatores de
91
HUMBOLDT, 1847. p. 85.
92
BAXANDALL, 1991. p. 34.

143
interpretação em um único discurso.93 Antes “do estágio da exposição verbal” – por meio de
legendas, textos e catálogos –, a espacialização dos itens de uma coleção já “encarna
propostas de ordenação” e significação. “Colocar três objetos em uma vitrine” não seria um
gesto fortuito e envolveria “implicações adicionais de relação” e significação.94 Um museu de
arte, como o de Frederiksborg, ofereceria ao público um eloquente contexto de percepção do
acervo.

Museu, galeria e exposição, amiúde, provocavam o deslocamento das obras de arte.


Eles arrancavam-nas de seu espaço originário ou do lugar em que anteriormente estavam
inseridas – como no caso das pinturas de Eckhout, há muito deslocadas do Brasil – e as
reintegravam um novo lugar. Deslocados, desenhos, pinturas, esculturas são subtraídos às
suas antigas redes de relações e rearticulados em novas conexões, com outros objetos, com
outros discursos e com outros sentidos. Neste processo, transformavam-se as condições de
percepção e interpretação das obras. Elementos visuais, outrora essenciais para a sua
compreensão, podem ter a percepção prejudicada. Outros, antes insignificantes, podem ser
ressaltados e se tornarem os protagonistas na leitura do objeto. Significados, antes ausentes,
podem irromper com tamanha força que se torna fácil crer que sempre existiram.

Três agentes, no mínimo, têm um papel em uma exposição oitocentista: o criador, o


expositor e o observador do objeto exposto. Três agentes, três intencionalidades distintas
interagindo na produção de um significado para o objeto, para a obra de arte.95 O criador –
mesmo havendo desaparecido há muito – se faz ativo na exposição por meio do objeto. Este
artefato foi o depositário das ideias e das escolhas do criador, orientado por seus objetivos e
imerso em sua cultura. O objeto guardará sempre algum traço das intenções e dos sentidos
atribuídos por aquele que o concebeu, como também corresponderá a elementos de sua
cultura; ainda que nada disto chegue a ser compreendido pelo expositor e pelo observador, em
virtude da eventual distância cultural que os separa.

93
GREENBLATT, 1991. p. 43.
94
BAXANDALL, 1991. p. 34.
95
BAXANDALL, 1991. p. 36.

144
O segundo agente é o expositor. Ele, em geral, opera no interior da mesma cultura que
o observador. É através dela que ele se apropria dos objetos. Seus propósitos são complexos.
Criar “uma boa apresentação para o objeto” é um deles. “Instruir o público”, outro. Quando
seus objetivos implicam na representação ou interpretação de outra cultura, então o ato de
expor “inclui, funcionalmente, a validação de uma teoria” ou de uma leitura desta cultura,
mediada pela presença do objeto.96

O último agente, é aquele para quem a exposição se dirige. Suas especificidades são a
intenção de “ver um objeto com interesse visual” e de procurar o seu entendimento. Ele,
obviamente, “é um ser de sua cultura”;97 é por meio das ferramentas mentais oferecidas por
ela, somadas à suas próprias experiências e expectativas, que o observador percebe o objeto e
o complexo expositivo que o apresenta.

Quando visita uma exposição, o observador produz um espaço intelectual “entre o


objeto e a legenda”. Uma espécie de “relação recíproca” conecta, muitas vezes, o observador
ao objeto e à forma como ele é apresentado: “informações explanatórias afetam o modo como
ele olha e os problemas encontrados no olhar dão origem ao desejo pela explicação”. Ele
estabelece, em outras palavras, o contato entre o criador e o expositor. Para tanto, o
observador mobiliza suas faculdades perceptivas, as informações oferecidas pelos recursos da
exposição e pelos aspectos visuais e materiais do objeto, sua presença.98 Identificar este
espaço intelectual significa localizar “não só o cenário, como também a fonte da atividade do
observador” na apreensão do objeto e na construção do seu significado.99 Delimitar a forma
de exibição do objeto, de modo semelhante, auxilia na descoberta da “tese” defendida pelo
expositor e dos significados projetados no objeto.

Tais são as visões. Alexander von Humboldt teve a oportunidade de conhecer as


pinturas brasileiras, nas galerias do Museu Real de Arte. O castelo, o museu, o acervo, a

96
BAXANDALL, 1991. p. 36-37.
97
BAXANDALL, 1991. p. 36-37.
98
BAXANDALL, 1991. p. 37.
99
BAXANDALL, 1991. p. 37.

145
exposição, formavam o contexto perceptivo que enquadrou suas possibilidades de
visualização e interpretação da obra de Albert Eckhout. Faziam exatos 20 anos que as telas
haviam sido transferidas de Copenhague para Hillerød, de Christiansborg para Frederiksborg,
da Kunstkammer real para o Museu Real de Arte. Se o naturalista tivesse observado as telas
em sua antiga morada – onde elas permaneceram expostas por quase 300 anos –, quem sabe,
as teria visto de forma distinta? Quiçá elas teriam entrado no Kosmos portando outros
sentidos.

Estas são apenas conjecturas. A realidade é que, na longa história de suas existências,
as pinturas do artista neerlandês sofreram sucessivos deslocamentos. De sua criação, no
Brasil, elas passaram à República batava, ao condado de Kleef e a Copenhague. Finalmente,
elas deram entrada na Kunstkammer de Frederik III, no Reino Duplo da Dinamarca e
Noruega. Muito aconteceu com as obras neste percurso. Elas foram exibidas em diversos
lugares e situações, como no palacete de Johann Moritz von Nassau-Siegen, em Haia.
Submetidas a novas formas de exibição, inseridas em outros contextos de percepção, elas
foram dadas a ver por vários atores. A cada visão, as pinturas foram revestidas por
significados novos.100 A todo deslocamento físico, as obras foram deslocadas simbolicamente.
Na história dos deslocamentos, novos significados se acumularam, como escombros, sobre as
tintas.

REFERÊNCIAS

GALUSKY, CH. Préface du Traducteur. In: HUMBOLDT, Alexander von. Cosmos. Essai
d’une Description Physic du Monde. Tome Deuxième. Paris: Gide et Baudry, 1855. p. IX-
XIV.

HUMBOLDT, Alexander von. Cosmos. Essai d’une Description Physic du Monde. Tome
Deuxième. Paris: Gide et Baudry, 1855.

100
Igor Kopytoff, estudando a passagem de mercadorias entre dois sistemas culturais, buscou compreender “os
meios pelos quais os objetos se tornam investidos por significados através das interações sociais em que são
tomados”. Segundo o autor, “estes significados mudam e são renegociados através da vida de um objeto”; e tais
mudanças no significado não necessariamente são conduzidas por modificações físicas ou de uso de um objeto”.
(GOSDEN; MARSHALL, 1999. p. 170. KOPYTOFF, 1986.)

146
HUMBOLDT, Alexander von. Kosmos. Entwurf einer physischen Weltbeschreibung von
Alexander von Humboldt. Zweiter band. (VOLUME II) Stuttgart; Tümbingen: J.G. Cotta,
1847.

HUMBOLDT, Alexander von. Kosmos. Entwurf einer physischen Weltbeschreibung von


Alexander von Humboldt. Erster band. (VOLUME I) Stuttgart; Tümbingen: J.G. Cotta, 1845.

147
OTIMIZAÇÃO DAS PESQUISAS SOBRE HISTÓRIA DAS COLEÇÕES
COM O USO DE BANCOS DE DADOS SISTEMATIZADOS,
ANÁLISES QUANTITATIVAS E SISTEMA DE INFORMAÇÕES
GEOGRÁFICAS101

Elizabeth Castro Moreno e René Lommez Gomes*


*Escola da Ciência da Informação - Universidade Federal de
Minas Gerais

Resumo: Os relatos de viajantes do passado têm sido utilizados como fontes documentais nos estudos
sobre formação de coleções criadas entre os séculos XVI e XVIII, incluindo os estudos sobre a
procedência de objetos colecionados. Um dos desafios impostos a estas pesquisas é a sistematização e
a análise das informações coletadas, pois narrativas livres e detalhadas dificultam a organização dos
fatos e a identificação da relação entre eles. A partir do estudo de relatos que fornecem dados sobre o
comércio de marfim entre África, Brasil e Portugal, na era moderna, propõe-se verificar o alcance da
organização das informações coletadas em base de dados e do uso da cartografia digital para a
reconstrução de rotas de comércio e a identificação das possíveis relações existentes entre
fornecedores, comerciantes e artífices produtores de peças de marfim; dados estes essenciais para a
aprofundar o conhecimento sobre a procedência dos objetos de marfim e acerca dos processos de sua
inserção em coleções. O objetivo dessa pesquisa é, portanto, estruturar um banco de dados para a
coleta sistemática das informações dos relatos de viajantes, visando responder as principais perguntas
sobre colecionismo de produtos naturais e manufaturados provenientes da África: Quem, o quê, onde e
quando esses produtos eram coletados e colecionados.

Palavras-chave: Relatos de Viajantes; História das Coleções; Cartografia Digital; Geo-


Referenciamento; Marfins Africanos.

101
Este trabalho foi realizado graças à concessão de bolsa de Iniciação Científica PROBIC/FAPEMIG ao
Projeto “Raridades em Contexto: incorporação e ressignificação de objetos e imagens das Índias Ocidentais nas
coleções norte europeias”, subprojeto “Rotas do marfim africano no espaço atlântico (séculos XVI a XVIII)”,
por meio do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica PRPq-UFMG. O trabalho integra-se, ainda,
ao projeto “Marfins Africanos no Mundo Atlântico: uma reavaliação dos marfins luso-africanos”, realizado em
parceria estabelecida entre a Universidade Federal de Minas Gerais e a Universidade de Lisboa, e financiado
pelos Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, em Portugal, no âmbito do
projeto PTDC/EPHPAT/1810/2014.

148
Abstract: Travelers’ accounts of the past have been used as documentary sources in studies on the
formation of collections created between the sixteenth and eighteenth centuries, including studies on
the provenance of collected objects. One of the challenges imposed on these researches is the
systematization and analysis of the information collected, since free and detailed narratives make it
difficult to organize the facts and identify the relationship between them. Starting from the study of
reports that provide data on ivory trade between Africa, Brazil and Portugal in the modern era, it is
proposed to verify the range of the organization of the information collected in database and the use of
digital cartography for the reconstruction of routes and the identification of possible relationships
between suppliers, traders and manufacturers of ivory parts; data that are essential to deepen the
knowledge about the origin of the objects of ivory and about the processes of their insertion in
collections. The objective of this research is, therefore, to structure a database for the systematic
collection of information from travelers' reports, in order to answer the main questions about
collecting natural and manufactured products from Africa: Who, what, where and when these products
were collected?

Keywords: Travelers’ accounts; History of Collections; Digital Cartography; Geographic Information


System; African Ivories.

149
Introdução

O campo da História das Coleções foi formado, primariamente, por esforços de


investigação e reflexões teóricas que confluem na busca por estabelecer as formas como os
indivíduos ou instituições estabeleceram relações com objetos ou cultura material,
promovendo sua reunião e valoração simbólica (URQUIZAR, 2009, p. 3). Para solucionar as
questões que as moveram, grande parte das pesquisas empreendidas neste campo têm se
valido de sofisticados métodos qualitativos de análise e interpretação dos dados presentes nas
fontes históricas mobilizadas a cada caso. São os métodos qualitativos, em geral, as principais
ferramentas de investigação do campo, permitindo a reconstituição de coleções do passado, a
criação de narrativas dos seus processos de constituição ou mesmo os estudos
individualizados de seus itens, como no caso das biografias dos objetos.
Muito escassas são as investigações em História das Coleções e em campos correlatos
nas quais as fontes sobre os objetos colecionados foram abordadas a partir de metodologias de
análise quantitativa. Tem-se como exemplo o caso das pesquisas realizadas pelo historiador
Johan Michael Montias que, para estabelecer práticas de uso de comercialização de obras de
arte na República neerlandesa do século XVII, realizou um levantamento quantitativo dos
tipos de obras adquiridas por estratos específicos da sociedade da época, bem como da
frequência com que cada tipologia de obra foi utilizada na decoração de casas e na
constituição de coleções públicas e privadas (MONTIAS, 2002).
Exemplos como este apontam para a possibilidade de incorporação de metodologias de
análise quantitativa nas pesquisas em História das Coleções, por permitirem visões renovadas
sobre as formas como grupos de indivíduos se relacionavam com grupos de objetos no
passado, produzindo considerações sobre o aspecto social das práticas individuais de
colecionismo. Esta comunicação tem por objetivo explorar algumas alternativas para o uso de
metodologias quantitativas de análise na construção de estudos sobre a circulação atlântica e o
colecionismo de objetos talhados em marfim africano, do século XVI ao XVIII.
Nas últimas décadas, os relatos de viajantes têm sido utilizados pelos estudiosos da
História Social da Cultura como referências documentais privilegiadas para o estudo de

150
hábitos e valores cultivados pelas sociedades ocidentais do período moderno. O emprego
destas fontes de informação tem se mostrado especialmente profícuo nas análises dos hábitos
cotidianos das populações que viviam às margens dos grandes Impérios europeus, entre
séculos XVI e XVIII, quando são cuidadosamente inquiridos por estudiosos atentos aos
equívocos de percepção e desvios de interpretação próprios a indivíduos em breve trânsito por
contextos superficialmente conhecidos. Os relatos, correspondências, instruções e memórias
dos viajantes revelam dados importantes sobre suas percepções acerca dos hábitos sociais, das
condições de vida, da diversidade da fauna e da flora, e da importância dos minerais e de
outras riquezas naturais de cada localidade visitada; chegando-se, eventualmente, a
observações sobre a possibilidade de transferência e aclimatação de práticas culturais
europeias a novos contextos.
No que diz respeito à Museologia e à História das Coleções, as narrativas de viajantes
contém vestígios muito úteis para o estudo dos processos de aquisição ou coleta de itens de
acervos, bem como sobre a circulação global da cultura material. No que concerne ao estudo
do colecionismo do marfim africano, os relatos de viagem guardam informações importantes
para a complementação das lacunas existentes na narrativa da biografia de peças como
trompas, saleiros, píxides, colheres e braceletes talhados em marfim por artífices africanos.
Quando estudadas individualmente, a partir da escassa documentação existente sobre os
processos de produção, aquisição, trânsito e colecionamento sofridos pelos objetos, a
biografia dos marfins africanos que hoje se encontram em acervos museológicos e em
coleções privadas possuem curto fôlego e estão atravessadas por imensas lacunas, sobretudo
no que diz respeito à trajetória das peças em solo africano. Mas, quando os objetos são
analisados em conjuntos estilisticamente coerentes e os dados de suas trajetórias individuais
são cruzados com informações mais abrangentes sobre a produção, o comércio e o trânsito de
categorias especificas de marfins africanos, surgem novas informações que ajudam a
ressignificar o processo de criação destes objetos, a formação do gosto europeu por eles e os
caminhos que levaram ao seu colecionamento. Na literatura de viagem podem ser encontradas
pistas sobre os processos de encomenda, comércio, deslocamento e acumulação destas peças,

151
incluindo indicações de suma importância sobre a localização dos centros africanos difusores
de marfim in natura e dos locais em que eram talhadas as peças colecionadas pelos europeus.
Esta investigação faz parte de um estudo mais abrangente da questão, intitulado “Rotas
do marfim africano: circulação, comércio e colecionismo de presas de elefante e objetos em
marfim na África, no Brasil e na Europa nos séculos XVI e XVII". Desenvolvido pelo
RARIORUM – Núcleo de Pesquisa em História das Coleções e dos Museus, da Universidade
Federal de Minas Gerais, este projeto de pesquisa articula-se com um esforço internacional de
investigação dos marfins africanos, encetado pelo projeto “Marfins Africanos no Mundo
Atlântico: uma Reavaliação dos Marfins Luso-africanos”. Desenvolvido em uma parceria
estabelecida entre a Universidade Federal de Minas Gerais e a Universidade de Lisboa, o
projeto investiga as origens dos marfins africanos que circulavam nos espaços ligados pelo
Oceano Atlântico, como recurso para a reconstituição das rotas de comércio e das redes de
solidariedade estabelecidas entre comerciantes e colecionadores, que conectavam a Europa,
Brasil e África, no período moderno. Uma frente de investigação do projeto concerne à
análise estilística dos objetos inventariados. A outra, no entanto, incluiu como alvo de
pesquisa o estudo das relações existentes entre os objetos e outros fenômenos culturais das
regiões que os produziam, atentando para o significado simbólico desses artefatos para as
comunidades onde eram criados. Atualmente, a metodologia do estudo abrange: (1) a
inventariação e classificação de objetos de marfins identificados em coleções públicas e
privadas em Portugal e em Minas Gerais; (2) a compilação de todas as referências a marfins
presentes na literatura de viagem, em documentos arquivísticos e em fontes visuais; e (3) a
análise laboratorial dos materiais (História da Arte Técnica), para determinar a datação e
procedência do marfim.
O estudo das narrativas do passado e das fontes arquivísticas é a base para uma análise
historicamente contextualizada desses acervos. Entretanto, um dos desafios presentes nas
pesquisas consiste na sistematização do imenso volume de informações coletadas em fontes
de diferentes tipologias, para além dos relatos de viajantes: inventários, testamentos,
memórias, cartas, contratos, regimentos, jornais. Se, por um lado, os métodos de interpretação
destas fontes tornaram-se mais sofisticados com o andamento da pesquisa, por outro, tem-se

152
dado pouca atenção ao desenvolvimento dos métodos de coleta e cruzamento das informações
contidas nesses documentos. Diferentemente de documentos cartoriais, os relatos de viagem
possuem redações livres, com informações por vezes muito detalhadas e pouco padronizada, o
que dificulta a organização dos fatos e a identificação da relação entre eles. No caso do
projeto em questão, as informações coletadas por um grande número de pesquisadores,
atuando em diferentes países, são registadas em planilhas ou simplesmente em apontamentos
em editores de texto, limitando ainda mais o cruzamento e interpretação das informações.
Diante das dificuldades impostas para a organização destes dados, propôs-se a criação de uma
base de dados capaz de não apenas reunir e sistematizar as informações coletadas, mas
também de servir como um instrumento de inovação na metodologia de pesquisa sobre os
acervos de marfins africanos, pela introdução das análises quantitativas e do
georreferenciamento como técnicas alternativas de investigação.

Uso de planilhas e banco de dados

A planilha, forma de registro comumente utilizada em pesquisas de relatos de


viajantes, é vantajosa por permitir concentrar todas as informações em um só documento.
Mas, por outro lado, é um método ineficiente para a análise do grande número de informações
coletadas. A interpretação depende, muitas vezes, da observação visual dos dados, o que pode
levar à produção de equívocos. Por permitir a inserção de várias informações no mesmo
campo, ou mesmo a transcrição de parágrafos ou edição de comentários, neste método, a
visibilidade dos dados e o uso de filtros fica prejudicada. A falta de padronização dos
registros pode levar à erros graves na seleção de critérios para avaliação de um subconjunto
de dados. O recurso de copiar e colar colunas e linhas pode induzir a erros, o que representa
um risco que não pode ser assumido.
Por outro lado, a base de dados permite o tratamento de um grande volume de
informações, com maior segurança. A inserção de campos obrigatórios e padronizados é uma
vantagem oferecida por esta ferramenta, que garante a confiabilidade no preenchimento dos
dados. A consulta aos dados é feira de forma automatizada, o que minimiza os erros na

153
avaliação das informações. A estrutura da base permite, ainda, o cruzamento de dados e a
fusão de bases de coleta afins, produzidas por pesquisadores que não mantém contato estreito
no momento da produção de informações.

O espaço geográfico

A utilização de sistemas de informações geográficas em pesquisas históricas


(Historical Geographical Information Systems -HGIS) é um campo novo proposto por
Gregory e Ell, em 2007, para facilitar a interpretação das informações através da incorporação
da análise espacial dos dados. O conhecimento sobre o espaço investigado é fundamental para
desenvolver a erudição toponímica necessária para o reconhecimento das regiões citadas nos
documentos textuais e mapas produzidos no período moderno. Para a realidade das Minas
Gerais do passado, o Dicionário Histórico-Geográfico de Minas Gerais, escrito por Waldemar
de Almeida Barbosa (BARBOSA, 1971), é um exemplo de obra referencial necessária a este
tipo de investigação, uma vez em que descreve a história das cidades mineiras e as
subsequentes alterações de suas designações toponímicas. Bibliografia semelhante pode ser
encontrada para outras regiões brasileiras, como no Ceará e Rio Grande do Norte (GIL, 2013).

Contudo, para as regiões africanas estudadas neste projeto, instrumentos de pesquisa


como estes são raros ou mesmo inexistentes. Verifica-se, portanto, que o georreferenciamento
das rotas do marfim africano depende, na atualidade, da realização de pesquisas aprofundadas
sobre os contextos africanos, com o relacionamento das toponímias presentes às do passado.
Este obstáculo à pesquisa pode ser contornado com o concerto de diferentes frentes de
investigação, ordenadas em um projeto de cooperação internacional.

154
Metodologia

Utilizando os relatos existentes na bibliografia sobre o comércio e a circulação de


marfim entre África, Brasil e Portugal, entre os séculos XVI a XVIII, e documentos que
registram a formação de coleções de artefatos elaborados com essa matéria prima, propôs-se a
construção de um banco de dados sistematizado e o uso da cartografia digital para a
reconstrução de rotas de comércio, identificação das regiões de origem do marfim e das
possíveis relações existentes entre os comerciantes e os artífices produtores de peças
consumidas na Europa e no Novo Mundo. Trata a proposta, portanto, do desenvolvimento de
um projeto multidisciplinar, que busca a interação de ferramentas utilizadas em estudos
populacionais analíticos, pesquisas históricas, geografia e fundamentos da museologia com o
objetivo de otimizar as análises nas pesquisas em História das Coleções e na produção de
narrativas sobre a Biografia de Objetos.
Busca-se, aqui, produzir uma interação de métodos de análise qualitativos e
quantitativos que se mostram eficazes para áreas de conhecimento específicos, a fim de
ampliar a recuperação dos dados e aprimorar a interpretação da grande quantidade de
informação coletada nos estudos na área das humanidades. A pesquisa histórica utilizando o
GIS tem a vantagem de integrar vários tipos de dados distintos, como a tecnologia do
mapeamento, as informações textuais e as técnicas analíticas (KNOWLES, 2005). Espera-se,
com essa pesquisa, não apenas registrar o comércio de artefatos de marfim, mas também
identificar relações, significados e as motivações de seu colecionismo, respondendo às
perguntas: quem, o quê, onde, quando e como os produtos eram coletados e colecionados?
Apreende-se que as principais perguntas a serem respondidas por esse estudo estão
relacionadas à origem do marfim e os processos de sua aquisição e colecionamento. Quais
eram os centros de comércio de marfim in natura e de marfim lavrado? Quem os
comercializava? A qual preço? Em qual quantidade e qualidade eles circulavam? Quando se
estabeleceu esse comércio? Quem eram os artífices das peças? Quem eram os comitentes?
Quem eram seus colecionadores? Quais relações podem ser identificadas entre o comércio de
marfim e o comércio de outros produtos (escravos, produtos locais- vegetais, animais,

155
minerais)? Como a qualidade do produto comercializado estava relacionada à sua origem e ao
seu preço? É possível identificar instruções para a remessa ou a manufatura dos produtos? Os
produtos manufaturados podem ser associados a alguma região, etnia ou demanda
específicos? Como esses produtos chegaram até os colecionadores? Quais eram a
relações existentes entre os principais centros de comércio? Quais relações podem ser
estabelecidas entre a demanda por artefatos de marfim por colecionadores europeus e a
manufatura de produtos de uso local?

Resultados parciais
A estrutura do banco de dados foi elaborada utilizando o software Epi-Data.
Posteriormente o banco será adaptado para um programa mais adequado para a consulta on
line das informações.
A definição de variáveis foi realizada a partir da avaliação das planilhas habitualmente
utilizadas pelo grupo de pesquisa para a coleta de dados dos relatos de viajantes. Sempre que
possível, foram estabelecidas categorias fechadas e pé-codificadas, com padronização de
códigos para ausência de informação e dados não aplicáveis. Um manual de instruções para
preenchimento foi elaborado para permitir a padronização da coleta por diferentes
pesquisadores. Posteriormente, os dados serão exportados para um programa de análise.

O banco de dados foi estruturado, inicialmente, para o registro de informações obtidas


em fontes escritas (livros, capítulos completos, memórias e relatos e jornais). Posteriormente,
pretende-se desenvolver uma base de dados que incorpore outros tipos de narrativas como,
cartas, regimentos, contratos, tratados, etc.
As variáveis definidas para o estudo foram classificadas em cinco grupos: (1)
identificação do objeto; (2) citação; (3) localização; (4) identificação da fonte escrita; e (5)
responsável pelo registro. O primeiro grupo inclui: o número de identificação do objeto, sua
tipologia (in natura ou lavrado), a classe do objeto (devocional, utilitário ou coleção), a
descrição do objeto, sua quantidade (em dentes, quintais, quilo, arroba, libra ou tonelada),
unidade e qualidade (miúdo, meão, ou de lei), tipologia da mercadoria de troca, mercadoria

156
agregada, porto de saída, local de origem dos mercadores, local de destino e desvio de rota. O
grupo “Citação” inclui a descrição do fato (ano do encontro ou relato sobre marfim, comércio,
rituais ou relatos sobre caça a elefantes e comércio de marfim vegetal, data do relato, autor do
relato, dirigido a quem). A pesquisa é feita utilizando os seguintes descritores: marfim, marfil,
marfi, presa, dente de elefante e dallyfante, nas diferentes variações ortográficas que
aparecem na literatura de época; a serem convertidos em entradas autorizadas. O grupo
“Localização” inclui o nome do sítio, suas coordenadas geográficas, tipo de sítio (porto, rio,
ilha, distrito, aldeia, reino, etc.) e pontos de referência (povoados, vizinhanças, rios, lagoas,
montanhas). A “Identificação da fonte” inclui todas as informações bibliográficas (tipologia
do documento, titulo, autor, ano da publicação, editora, edição, capítulo, etc.). O último grupo
inclui a identificação do responsável pela pesquisa, data do registro e de alterações nos
registros.
Foi realizado um pré-teste para avaliação do banco e adequações dos campos. A
exportação dos dados entre os programas está sendo adequada, pois são utilizadas diferentes
ferramentas para coleta, mapeamento, e análise das informações. Os softwares a serem
utilizados estão sendo definidos, priorizando aqueles de distribuição gratuita, para facilitar a
utilização da metodologia por outros grupos de pesquisa.
Os parágrafos completos com a ocorrência do termo marfim foram copiados em um
arquivo de texto, adotando-se um sistema de numeração para identificação do relato e sua
correspondência com o a fonte registrada no banco de dados.
O pré-teste foi realizado com os dados obtidos em duas fontes: nos relatos de
naufrágios de naus portuguesas que partiram para a Índia no século XVI e naufragaram na
região de Moçambique na África, onde são mencionadas regiões de resgate de marfim pelos
portugueses (GOMES DE BRITO, 1904) e nas memórias de Adèle Toussaint-Samson que
relatam suas observações sobre o povo brasileiro e nossa cultura, nos anos em que morou no
Brasil, na década de 1850. (TOUSSAINT-SAMSON, 2003)
Em Gomes de Brito foram identificadas 19 referências a comércio de marfim bruto
entre portugueses e africanos, e uma ocorrência a grande número de dentes de elefante, a

157
exemplo do seguinte trecho do relato “Naufrágio da Nao S. Thomé na terra dos Fumos, no
anno de 1589”:

Parte este reino com umas grandes serranias de mais de vinte legoas, tão
ásperas, intratáveis e fortes por natureza, que não tem entrada senão por
alguns passos muito difficultosos, e em cima se estendem muito largas
campinas, as quaes são de um senhor chamado Monhimpeca, o qual por
nenhum caso desce abaixo, nem communica com os vizinhos, porque todos,
uns e outros são muito grandes ladrões. Ha nestas serras infinitos elefantes, e
este senhor tem grandes covas cheas de seos dentes, os quaes nunca quiz
resgatar com os portuguezes, porque se recea que mandando abaixo lhos
tomem os vizinhos. (COUTO, 1611, p.103)

As mercadorias agregadas citadas nesses relatos foram o mel e o milho, enquanto as


mercadorias de troca foram os panos, as contas e o estanho. Em “Naufrágio da Nao Santiago
no anno de 1585” cita-se que “O seo principal trato e comercio com os portuguezes é de
marfim, e mantimentos, que são muitos e muito bons. Os portuguezes levam-lhe pannos de
que se elles vestem, estanho e contas” (CARDOSO, 1904, p. 50).
No relato “Relação do Naufragio da Não Santo Alberto No Penedo das Fontes, no
anno de 1593 e itinerário da gente que delle se salvou até chegarem a Moçambique”, observa-
se a descrição detalhada da região de comércio, sendo possível identificar a Bahia de Maputo
em Moçambique e as coordenadas geográficas da Ilha de Inhaca.

Faz o mar nestas terras do Inhaca uma grande bahia de quinze ou vinte
legoas de comprido, e a partes pouco menos de largo, e nella esbacam quatro
grandes rios, pelos quaes entra a maré dez e doze legoas. O primeiro da parte
do Sul se chama Mclengana, ou Zembe, que divide as terras de um Rei assim
chamado, das do Inhaca; o segundo Ansate, e dos nossos de Santo Espirito,
ou de Lourenço Marques, que primeiro descobrio nelle o resgate do marfim,
de quem tomou a bahia o nome [...] Vem aportar a ella de dous em dous
annos um navio de Moçambique a resgatar marfim, e nella estava quando
estes nossos portuguezes chegaram ás terras do Inhaca. (LAVANHA, 1611,
p. 82-83).

A ilha de Inhaca é o sítio de comércio mais citado nesses relatos. Em outro relato, as
contas são novamente mencionadas como mercadorias de troca nessa mesma região:

158
São os trajes destes negros como os de Tizombe, e demais que elles trazem
umas continhas vermelhas nas orelhas: as quaes perguntando Nuno Velho ao
cafre, (a quem dera a cobertura) donde vinham, entendeo pelas
confrontações que as traziam da terra de Inhaca, que é o Rei que povoa o rio
de Lourenço Marques. São estas contas de barro, de todas as cores, da
grandeza de coentro, e fazem-se na índia, Negapatão, donde se levam a
Moçambique, e dalli pelas mãos dos portuguezes se communicam a estes
negros, resgatando-as com elles por marfim. (LAVANHA, 1611, p. 32-33).

Outros sítios relatados com frequência são o Rio de Lourenço Marques, “Manhiça” e a
“Terra dos Fumos”, que serão georeferenciados e utilizados no Sistema de Informações
Geográficas. A Figura 1 apresenta a região descrita nessas narrativas.
Figura SEQ Figura \* ARABIC 1: Ilha de Inhaca, na Bahia de Maputo, em Moçambique. Região de comércio
de marfim.

Uma pesquisa preliminar realizada no Google Maps, a partir dos nomes das regiões e
rios citados nesses relatos demonstrou que a identificação de regiões citadas é mais factível
quando associadas aos nomes dos rios e povoados. Mesmo que não seja possível geo-
referenciar todos os sítios reportados nessas narrativas, o cruzamento das informações sobre
as regiões citadas nesses relatos e a identificação de vizinhanças, permitirá identificar a região
de comércio com maior precisão e estabelecer as relações de comércio existentes entre elas,
como mostrado no esquema da Figura 2.

159
Figura SEQ Figura \* ARABIC 2: Relações de comércio entre regiões de Moçambique.

Algumas limitações do estudo já foram identificadas. Uma delas está relacionada à


toponímia, pois muitas regiões, rios ou comunidades citadas nos relatos de viagem, podem ter
tido outros nomes no passado. Além disso, a localização de uma toponímia atual muitas vezes
não se refere ao alugar mencionado na fonte, exigindo bastante cautela para afirmações sobre
essas regiões. Um dos grandes desafios dessa pesquisa é identificar, utilizando um Sistema de
Informações Geográficas (GIS), regiões e comunidades locais, como distritos, povoados,
reinos, aldeias. Por essa razão, é importante registrar o maior número possível de localidades
ou referências hidrográficas citadas, pois o cruzamento dessas informações e a avaliação da
vizinhança podem auxiliar a identificação do local, com diferentes níveis de precisão.
Um outro problema identificado foi a seleção de regiões a serem registradas no banco,
pois as narrativas mencionam Regiões Geográficas, Reinos, Terras, Ilhas, Bacias
Hidrográficas, Rios e Lagoas, sendo que muitas vezes o local não corresponde ao ponto de
comércio do marfim, mas à trajetória dos náufragos por terras desconhecidas. Para avaliar a
relevância dos locais e a escolha dos pontos a serem registrados no banco, e posteriormente
mapeados, definiu-se a utilização dos seguintes critérios: (1) citação do local, rota, região,

160
bacia, rio, terra, reino_ no mesmo trecho (parágrafo ou seção do texto) onde se relata a
ocorrência de marfim e (2) frequência com que o local é citado no relato. Para essa
qualificação, foi elaborada uma ficha manuscrita, onde se registra todos os locais
mencionados nos relatos, sua frequência e se corresponde ou não ao local do encontro ou
comércio de marfim. Dessa forma, são registrados no banco, apenas os locais de maior
interesse, de acordo com os critérios estabelecidos.

Considerações finais
O processo ora proposto busca a interação de ferramentas utilizadas em estudos
populacionais, pesquisas históricas, geográficas e museológicas. Como pesquisa
multidisciplinar, o estudo necessita agregar novos colaboradores, na área de Tecnologia da
Informação, História, Geografia, para um esforço conjunto e incorporação de recursos
utilizados com sucesso nas diferentes áreas de conhecimento.
O uso de bancos de dados permitirá a análise quantitativa dos dados registrados.
Através de recursos estatísticos, pretende-se avaliar a magnitude dos fatos relacionados ao
comércio de marfim e as relações entre as variáveis coletadas. Um banco de dados organizado
permite recuperar informações de diferentes documentos textuais e estabelecer relações entre
as fontes, o que pode ser uma boa alternativa para a identificação de regiões de comércio.
As próximas etapas da pesquisa consistem na ampliação do escopo das fontes a serem
interpeladas e na realização de uma análise descritiva dos dados de georeferenciamento, de
mapeamento e de avaliação das rotas e locais de comércio de marfim. Os dados preliminares
reforçam a necessidade de se pesquisar com mais detalhes a geografia e hidrografia das
regiões citadas nas narrativas, destacando-se a importância do cruzamento dos dados para o
mapeamento das informações.
A cartografia digital pode auxiliar historiadores e museólogos nas investigações sobre
História das Coleções, gerando dados para novas investigações e análises, ao incluir a
dimensão espacial nas pesquisas sobre história de viajantes. A coleta de dados sistematizada
sobre objetos específicos (ex.: um saleiro de marfim colecionado no século XVI) ou acerca de
determinadas categorias de objetos (como mobiliário, talheres, saleiros, punhais de marfim) e

161
a localização das regiões nas quais foram observados por viajantes e outras testemunhas do
passado tornaria possível estabelecer os locais por onde um objeto específico passou, bem
como as mudanças de sua valoração e uso em diferentes contextos.
Esta metodologia poderá ser utilizada em outras pesquisas sobre viagens ao território
brasileiro em outras vertentes da História das Coleções. Sua aplicação às pesquisas realizadas
no Brasil apresenta inúmeras vantagens, pois os rios, lagoas e montanhas relatados podem ser
mais facilmente reconhecidos e georeferenciados pela consulta à diferentes fontes
documentais, mapas do passado e contexto de sua produção.
O mapeamento das fontes através dessa metodologia pode ser utilizado como
instrumento adicional de informação e comunicação em espaços museais. Baseado nos
resultados georeferenciados é possível criar animações que permitem a visualização das rotas
de comércio, com recursos de intensidade e temporalidade que dinamizam a informação
disponibilizada ao público de museus. Dessa forma, surgem novas possibilidades
expográficas com a criação de ambientes interativos de conhecimento. Na medida em que as
ferramentas de comunicação digital ganham cada vez mais espaço como recurso para o
diálogo com o público, a representação visual das rotas de comércio pode favorecer a
interatividade e uma melhor compreensão dos processos de constituição das coleções nas
nossas instituições museais.

Referências bibliográficas
BARBOSA, W. DE A. Dicionário histórico-geográfico de Minas Gerais. [s.l.] Editôra
Saterb, 1971.

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Itinerário da gente que delle se salvou. E agora novamente acrescentada com mais algumas
noticias. In: GOMES DE BRITO, B. (Org.) História Tragico-Maritima com outras notícias
de naufrágios. v. IV, Lisboa: Escriptorio. Bibliotheca de Clássicos Portuguezes_Volume
XLIII, 1904. p. 5-81.

COUTO, Diogo do. Relação do Naufrágio da Não S. Thomé na terra dos Fumos, no anno de
1589 e dos grandes trabalhos que passou D. Paulo de Lima nas terras da Cafraria até sua
morte. In: História Tragico-Maritima com outras notícias de naufrágios. v. IV, Lisboa:
Escriptorio. Bibliotheca de Clássicos Portuguezes_Volume XLIII, 1904. p. 83-133.

162
Epidata. Lauritsen JM, Bruus M. Myatt MA. Programa para criar banco de dados. GNU Free
Documentation License. Disponível em: <http://www.epidata.dk>.

GIL, Tiago Luiz. Cartografia digital para historiadores: algumas noções básicas. In:
Marilda Santana da Silva; Ana Célia Rodrigues (Org.). História, arquivos e mídias digitais.
Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2013, p. 57-73.

GOMES DE BRITO, Bernardo (compilada por). História Tragico-Maritima com outras


notícias de naufrágios. v. IV, Lisboa: Escriptorio. Bibliotheca de Clássicos
Portuguezes_Volume XLIII, 1904.

GREGORY, I. N.; ELL, P. S. Historical GIS: Technologies, Methodologies, and


Scholarship. [s.l.] Cambridge University Press, 2007.

KNOWLES, Anne Kelly. Emerging trends in Historical GIS. Historical Geography. v33:7-
13, 2005.

LAVANHA, João Baptista. Relação do Naufragio da Não Santo Alberto no Penedo das
Fontes, no anno de 1593 e itinerário da gente que dele se salvou até chegarem a Moçambique.
In História Tragico-Maritima com outras notícias de naufrágios. v. IV, Lisboa:
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MONTIAS, John Michael. Art at Auction in 17th-Centuty. Amsterdam: Amsterdam


University Press, 2002.

TOUSSAINT-SAMSON, Adèle. Uma Parisiense no Brasil. São Paulo: Editora Capivara


Ltda. 2003.

URQUÍZAR, Antonio Herrera. Coleccionismo y nuevas miradas sobre la realidade. Grupo


de Investigación Arte y Pensamiento (UNED). Seminario marzo 2009.

163
“SEGUNDO O BOM GOSTO DAS NAÇÕES EUROPEIAS”. A
FORMAÇÃO DA COLEÇÃO EGÍPCIA DO MUSEU NACIONAL DA
UFRJ, NO SÉCULO XIX

André Onofre Limírio Chaves*

Resumo: Este trabalho tem como objetivo analisar o processo de formação da coleção egípcia do
Museu Real (atual Museu Nacional da UFRJ),102 situando-o nos contextos oitocentista do
colecionismo de curiosidades e da formação de museus; bem como das diversas modalidades de
colecionismo de antiguidades egípcias vigente no Brasil imperial. Adquirida em 1826, essa coleção
possui extrema relevância para compreendermos as tendências colecionistas do período. Para além
disso, o acervo ganhou notável destaque em sua época, sendo possível recompor a trajetória dos usos
dados a ela pela instituição, o que permitem entender as diversas formas de recepções e
ressignificações pelos quais seus itens passaram, ao longo do século XIX.

Palavras-chave: Colecionismo; Antiguidades Egípcias; Museu Nacional da UFRJ; História do Brasil


Império; História das Coleções.

Abstract: This paper aims to analyze the process of formation of the Egyptian collection of the Royal
Museum (current National Museum of UFRJ), situating in the nineteenth-century contexts of
collecting curiosities and the formation of museums; as well as of the diverse modalities of collection
of Egyptian antiquities present in Imperial Brazil. Acquired in 1826, this collection is extremely
relevant to understand the collecting pratices of period. In addition, the collection gained remarkable
prominence in its time, and its is possible to recompose the trajectory of the uses given to it by the
institution, which yours items passed during the XIX century.

Key-words: Collecting; Egyptian Antiquities; National Museum of UFRJ; Empire of Brazil; History
of Collections.

102
Também chamado de Museu Imperial Nacional ou Museu Nacional. A nomenclatura “Imperial” foi
definitivamente retirada [no início da República, em 1889.

164
O colecionismo de antiguidades egípcias
Ao longo da era moderna, foi recorrente a presença de objetos do Antigo Egito nas
coleções europeias, ainda que houvesse um predomínio do gosto pelo colecionismo de
antiguidades clássicas, gregas e romanas. Grande parte das mais renomadas coleções dos
séculos XVI e XVII possuíam, mesmo que em número reduzido, seus próprios exemplares da
cultura material do Antigo Egito. Na França, o botânico e astrônomo Nicolas Claude Fabri
Peiresc foi um dos vários eruditos que possuíram um notável gabinete de curiosidades, no
qual se encontravam antiguidades egípcias. Em Roma, o cardeal Pietro Bembo estabeleceu
um studiolo – lugar de estudo e contemplação mais íntima do humanista –, que reunia uma
considerável quantidade deste tipo de objetos, encontrados nas cotidianas obras de construção
de edifícios.103
Nestas coleções, itens da cultura material da antiguidade egípcia podiam ser
compreendidos como curiosidades de uma terra distante ou serem objeto de interpretações
esotéricas. Entretanto, a partir do século XVIII, este cenário mudou e estes objetos passaram a
ser interpretados como fontes de informação sobre o passado das civilizações.
No fim do século XVIII e início do XIX, surgiram as primeiras grandes instituições
museológicas, que se caracterizaram por reunir um grande número de objetos em seus
acervos, muitos dos quais foram teriam sido adquiridos como contribuições de coleções régias
e particulares. O Museu do Louvre e o Museu Britânico são os principais representantes
destas instituições oitocentistas que investiram na formação de coleções de antiguidades
egípcias.
Com a Revolução Francesa colocou-se a importância de tornar o conhecimento
acessível a todos os cidadãos, fazendo com que os museus passassem a ser percebidos como
instituições que deveriam contribuir para a formação da nação. Em seu tempo, os antigos
gabinetes de curiosidades,104 como locais de organização sistemática e ordenada do

103
Para saber mais sobre gabinete Nicolas Claude Fabri Peiresc, ver: https://curiositas.org/cabinet/curios1156.
Sobre o studiolo do cardeal Pietro Bembo ler: LA FUENTE, Mª Amparo Arroyo de. El cardenal Pietro Bembo y
el colecionismo de piezas egípcias en el Renacimiento. Glyphos, Revista de História, nº3, 2015. pp.33-47.
104
Sobre os gabinetes de curiosidades e para melhor compreensão desse termo, recentes trabalhos da Museóloga
Carolina Vaz de Carvalho possibilitam uma melhor compreensão sobre o colecionismo na época Moderna. De
modo que essa pesquisadora realiza diálogos que saem dos tradicionais clichês reducionistas. Para saber mais,

165
conhecimento de acordo com a visão de mundo do colecionador, recebiam visitantes e
contribuíam para a circulação de conhecimento. Entretanto, para a perspectiva dos novos
museus, esta circulação do saber era muito tímida e pouco influía na formação do público
mais leigo, não sendo interessante que o acesso às coleções permanecesse restrito apenas ao
mundo aristocrático105.
Não foi por mera coincidência que este trabalho se inicia mencionando o Museu do
Louvre e o Museu Britânico. Na emergência dos novos museus nacionais, estas instituições se
tornaram exemplares deste movimento de reunir e expor amplas coleções de antiguidades
egípcias, transformando-as em fontes de estudo científico e de formação do cidadão.
Simultaneamente, museus deste tipo se transformaram em símbolos do poderio dos grandes
Impérios europeus, representando sua capacidade de conquistar e dominar as sedes das
grandes civilizações do passado.106 O poder simbólico destas instituições ao representarem as
nações podia ser percebido não apenas pela magnitude arquitetônica dos museus instalados
nas principais capitais europeias, como também pela extensão de suas coleções, muitas vezes
formadas por meio do espólio do patrimônio histórico dos lugares e povos conquistados.
É notável a diferença existente entre as práticas colecionistas desenvolvidas entre o
século XVIII e o XIX. No primeiro momento, a mentalidade iluminista promoveu
transformações na organização das coleções privadas e régias, que assumiram o novo caráter
sistemático de organização dos saberes preconizado. Nestes espaços destinados à promoção
de vários tipos de conhecimento por meio de exibição da cultura material, o principal público
era composto por sábios e eruditos que enxergavam os museus como locais de produção do
saber e de salvaguarda das antiguidades remanescentes. A presença de um antiquário – que
segundo Arnaldo Momigliano era “um amante, colecionados e estudioso das tradições antigas
[...], mas não um historiador”107 – garantia notariedade para a instituição museal. Em algumas

ler: CARVALHO, Carolina Vaz de. Reorganizando o Gabinete: uma discussão sobre a categoria de “gabinetes
de curiosidade” e o colecionismo na primeira era moderna. IN: Anais do VI EPHIS.
105
CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. Tradução de Luciano Vieira Machado. 3 ed. São Paulo:
UNESP, 2006. 288 p
106
Para saber mais, ler: SAID, Edward W.. Cultura e imperialismo. Tradução Denise Bottman. São Paulo:
Companhia das Letras, 2011. 567 p.
107
MOMIGLIANO, Arnaldo. Ancient History and the Antiquarian. In: Journal of the Warburg and
Courtauld Institutes. Vol.13, Nº3/4 (1950) p. 290.

166
coleções, eram eles os responsáveis por classificar os acervos e destacar seus itens de maior,
promovendo a magnitude do Estado Real na extroversão das coleções.
No século XIX, com as transformações sociais e políticas causadas pela Revolução
Francesa e a emergência dos grandes Impérios europeus, os museus adquiriram um novo
status. Civilização e progresso eram noções que começaram a ser atreladas ao trabalho dos
museus e de outros aparatos culturais, que se transformaram em instrumentos para a produção
de uma boa imagem e de discursos de legitimação para as ações das grandes nações. A
sistematização e ordenação dos acervos propostas pelo Iluminismo, no século XVIII, se
mantiveram no século XIX, de modo que os museus assumiram um caráter enciclopédico,
embora ampliando a dimensão do seu público. Agora, esses espaços não são dedicados apenas
a aristocracia, mas também todo cidadão da nação. Segundo Françoise Choay:

Reunido obras de arte, além de, em consonância com o espírito


enciclopedista, objetos das artes aplicadas e máquinas, os museus ensinarão
civismo, história, assim como as competências artísticas e técnicas108.

Para o pensamento imperialista do século XIX, não bastava colonizar


economicamente as nações menos privilegiadas. Era necessário mesmo conquistar uma
parcela da cultura material das colônias, principalmente os bens artísticos e etnológicos, que
passavam a representar a diversidades de povos existentes no planeta que se encontravam sob
o domínio de determinado Império. Pode-se mesmo pensar na existência de um imperialismo
cultural, que foi o principal responsável pela formação de diversas coleções e que, em alguns
casos, chegou a ocasionar a constituição de museus. Este teria sido o caso do Museu Egípcio
de Turim, que teve como núcleo inicial de seu acervo a coleção privada do cônsul francês
Bernadino Drovett. Esta coleção foi vendida para o rei Charles Félix da Sardenha que, em
1824, a institucionalizou para fundar o referido museu. De acordo com Myriam Santos:

[...] os grandes museus europeus não se contentaram em constituir


coleções com base apenas nas suas riquezas nacionais. Nos novos
templos nacionais procurava-se mostrar não apenas a riqueza de cada

108
CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. Tradução de Luciano Vieira Machado. 3 ed. São Paulo:
Estação Liberdade: Unesp. 2006. p.100-101.

167
nação, mas o poder de cada nação em mostrar as riquezas trazidas de
outras civilizações como parte de sua história109.

Com a euforia das grandes nações europeias em ampliar o seu domínio pelo mundo e
com a presença marcante desse imperialismo cultural, vários museus constituíram suas
principais coleções a partir de espólios obtidos em situações de guerras e conquistas. É nesse
contexto que a figura do general e futuro imperador Napoleão Bonaparte surgiu e provocou
um dos mais caudalosos fluxos de cultura material e bens patrimoniais espoliados,
provenientes de toda a Europa e direcionados para as coleções da França.
Após sua coroação, Napoleão Bonaparte ressuscitou símbolos e práticas da
antiguidade romana, entre elas a exibição de espólios de guerra como forma de comemoração,
exaltação e legitimação de suas conquistas. As ações de Napoleão no campo simbólico são
importantíssimas para a reflexão na construção desta pesquisa, pois suas práticas colecionistas
se tornaram tendência na Europa, sobretudo quando com a conquista do Quedivato do Egito
resultou na constituição de enormes coleções de antiguidades egípcias, que maravilharam
diversas nações.
O Egito era um lugar pouco conhecido pelos europeus desde a suas conquistas pelos
otomanos. Sua beleza excitava a imaginação europeia, criando sedutoras imagens sobre a
cidade do Cairo e suas diversas mesquitas, criadas na era dos sultões. Foi com a invasão de
Napoleão ao Egito, entre 1798 a 1801, que grande parte do mundo passou a ter o contato
direto com elementos materiais de outros momentos do passado glorioso, especialmente da
época dos faraós. Segundo Silvia Einaudi:

“O Egito, até então desconhecido de todos, revelou-se portanto à Europa


como uma caixa de maravilhas que inebriou literalmente os círculos culturais
do antigo continente. Dessa forma, abriu-se o caminho para o estudo, mas
também com ele o da espoliação sistemática e desenfreada dos monumentos
egípcios, que tinham se tornado fonte inexaurível de riqueza para os ávidos
reinos europeus que competiam entre si para enriquecer as coleções dos
respectivos museus”110.

109
SANTOS, Myriam S.. Os museus Brasileiros e a constituição do imaginário nacional.Soc. estado. Brasília , v.
15, n. 2, p. 271-302, Dec. 2000. p. 279
110
EINAUDI, Sílvia. Museu Egípcio do Cairo. Rio de Janeiro: Mediafashion, 2009. p.

168
Com a abertura do Egito, o mundo ficou admirado com a magnitude das pirâmides e
demais construções monumentais que a civilização egípcia construiu em seus tempos de
glória. As fascinantes múmias, que ao mesmo tempo causava espanto e admiração, se
transformaram no souvenir preferido dos viajantes que iam conferir de perto a Terra dos
Faraós. Neste período, o fascínio pelo Egito Antigo foi ampliado, como efeito da publicação
da inusitada e monumental obra da Commision des Arts et des Sciences de France, intitulada
“Descrição do Egito”. Esta publicação expôs para um largo público as diversas facetas dessa
terra, abordando desde sua flora e fauna, até suas construções monumentais, havendo certa
preferência pelas produções da antiguidade.
De caráter enciclopédico, a Descrição do Egito reunia textos com todo o
conhecimento adquirido pela missão francesa. Ela trazia também pranchas litografadas de
vários artistas, com as maravilhosas paisagens do oriente. Quem via as imagens se encantava
pelo do lugar, que suscitava “um enorme interesse no público, nos eruditos e nos governos
europeus” (SILIOTTI, 2007. p.102). O impacto da obra, que “incluía nove volumes de texto
in folio com mais de sete mil páginas, complementados por dez tomos de gravuras”
(SILIOTTI, 2007. p.100), foi reforçado pelo fato dela mostrar os grandes monumentos
egípcios das épocas dos faraós e também dos sultões.111
Bonaparte e a Commision foram, portanto, responsáveis por fazer o Egito cair
definitivamente no gosto europeu. À sombra de seus feitos e atrelado ao orientalismo, surgiu
o fenômeno da egiptofilia, que pode ser definida como uma admiração profunda pelo mundo
dos faraós, acompanhada pelo desejo de conhecer a cultura material e os costumes deste
lugar. Com a abertura da Terra dos Faraós e o surgimento da egiptofilia, conhecer o Egito
tornou-se um fetiche para a sociedade europeia. Viajantes e exploradores frequentaram a
terra. Antiguidades ocultadas pelas areias do deserto começaram a ser reveladas. O desejo de
possuí-las se tornou corriqueiro. Consequentemente, no começo do séc. XIX, o Egito assistiu
atônito suas preciosidades saírem de seu domínio, levados para museus e coleções particulares

111
O período faraônico vai desde 3150 a.C. até 30 a.C. Já o dos sultões vai de 639 d.C. até 1919 d.C.

169
estrangeiros112.
Em meados do século XIX, o comércio de antiguidades egípcias se tornou fervoroso.
Grandes levas de objetos saíram do Egito, indo parar nas mãos de antiquários europeus, que
alimentavam as coleções públicas e privadas existentes na época. Segundo Sales, “ao mesmo
tempo que se procedia a este comércio oficial e legal de antiguidades, muitas outras [peças]
continuavam a sua intensa circulação nos prósperos mercados paralelos” do Egito. O tráfico
ilegal “era um lucrativo negócio para muitos comerciantes do Cairo e para numerosos
camponeses da província”113, bem como para comerciantes da Europa.

Dando lustro na Jovem Nação


Com a vinda da família real em 1808, aos olhos dos europeus, a colônia brasileira
mostrava-se atrasada em diversos termos, desde sua organização administrativa até a sua via
cultural. Para muitos viajantes do Velho Mundo não era de se surpreender que não existisse
aparatos culturais em uma colônia portuguesa; principalmente em um espaço como o Brasil
que, com a presença recorrente de indígenas, animais peçonhentos e o clima excessivamente
quente, emanava ares de uma terra incivilizável. Para alguns destes visitantes, as condições
dos trópicos afastavam a possibilidade dos brasileiros se tornarem refinados como os
europeus e os habitantes de outras nações consideradas civilizadas. Segundo Lilia Schwarcz:

Logo na chegada [1808], o governo português passou a implementar uma


espécie de “projeto civilizatório”, que incluía, o estabelecimento das
principais instituições da metrópole, como o Desembargo do Paço, o
Conselho da Fazenda, a Junta do Comércio, entre tantas outras. Afinal, se
fazia necessário, e com urgência, importar e transplantar práticas que,
originalmente em Portugal, faziam a máquina do Estado governar. De um
lado, aí se instalara uma nova imprensa, o Jardim Botânico, o Banco do
Brasil, o Museu Nacional e tantos feitos que convertiam o Rio de Janeiro em
espelho exemplar da metrópole. De outro, permaneciam, tal qual tradições
teimosas, os costumes da terra, que invertiam o reflexo que se pretendia

112
VERCOUTTER, Jean. Em busca do Egito Esquecido. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. 176 p.
113
SALES, José das Candeias. A Arqueologia Egípcia no século XIX: da «caça ao tesouro» à salvaguarda da
herança faraônica. Revista do Instituto Oriental da Universidade de Lisboa. Lisboa: Coimbra Univ. Press. p.88

170
mirar, ou davam a ele aspecto um pouco turvo e desfocado114.

Criado em 6 de junho de 1818, o Museu Imperial (posteriormente Nacional) e diversas


outras instituições culturais fundadas pela política cultural de D. João VI serviam como
instrumentos para fundar uma nova imagem do Brasil, elevando os ares da nova capital do
Império Português à condição e semelhança das capitais das nações civilizadas europeias.
Com um acevo inicial bem tímido, o Museu contava uma coleção que abarcava todas as
tipologias de acervos comuns às grandes coleções europeias: obras de arte, animais
empalhados, minerais, moedas antigas e objetos indígenas. Consequentemente, o museu se
apresentava como uma instituição mista, apresentando elementos de uma entidade de história
natural, mas com a presença itens do mundo das artes. Esta forma de colecionismo era, de
certa maneira, uma herança da tradição iluminista e criava um espaço enciclopédico que
atendesse as necessidades de instrução daquele momento.
Desde a sua criação e até a independência, em 1822, o Museu Imperial viveu certo
grau de incerteza quanto ao seu destino e papel perante a sociedade brasileira. A partir da
década de 30, os diretores que passaram pela instituição perceberam a necessidade de ordenar
o funcionamento da instituição e sistematizar a organização de seus acervos. O museu passou
por processos que visavam enriquecer seu acervo, sobretudo no sentido de reforças a
execução de sua missão principal: mostrar as potencialidades das riquezas naturais brasílicas,
mas também, iniciar uma tradição acompanhando os modismos europeus.
Em 1842, foi criado o primeiro regulamento interno da instituição, que visava dar “ao
Museu Nacional uma organização acomodada à melhor classificação e conservação dos
objetos”115. O museu foi dividido em quatro seções: Anatomia comparada e Zoologia;
Botânica; Agricultura e Artes Mecânicas; Mineralogia, Geologia e Ciências físicas; e, por
último, Numismática, Artes Liberais, Arqueologia, Usos e Costumes das Nações Modernas.
Portanto, o Museu passava a ter divisões em que figuravam coleções de peças de origem

114
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Cultura. In: SCHWARCZ, Lilian Moritz; SILVA, Alberto da Costa e. História
do Brasil Nação: 1808-2010. Volume 1, Crise Colonial e Independência 1808-1830. São Paulo: Fundación
Mapfre, Objetiva. 2011. p.207
115
MUSEU NACIONAL. Regulamento nº123 de 3 de fevereiro de 1842. In: Livro dos Ofícios desde o ano de
1819 até 1842, Seção de Memória e Arquivo do Museu Nacional da UFRJ. folha 4.

171
brasileira. Mas, também incluía coleções cujo sentido deveria ser produzir uma narrativa da
história de outras nações, que seriam incluídas na seção que mais nos interessa nesse trabalho:
a Seção de Numismática, Artes liberais, Arqueologia e Usos e Costumes das Nações
Modernas. Foi este seguimento do museu que incorporou as coleções de antiguidades,
incluindo a de Antiguidades Egípcias.
A presença das coleções de Usos e Costumes das Nações Modernas adquiria um duplo
sentido nas narrativas construídas pelo museu. Por um lado, a presença deste tipo tradicional
de coleção aproximava o Museu Real da realidade dos museus nacionais europeus, com os
quais dividia as mesmas tipologias de acervos e coleções. Por outro, coleções com exemplares
da cultura material de outras nações, sobretudo daquelas consideradas civilizadas, permitiam a
produção de paralelos entre a realidade do Brasil e seus povos com os estágios de construção
histórica das nações de outras partes do mundo. Assim, segundo Myriam Santos:

[...] o Museu Real, logo em seguida denominado Museu Nacional,


aproximou-se muito dos museus europeus do período. O Museu Nacional
reproduzia o discurso dos grandes museus europeus, ainda que em menores
proporções. A constituição dos imaginários nacionais sempre envolve
narrativas sobre origens, e para os articuladores do Império Brasileiro uma
de nossas origens era sem dúvida aquela mesma que fundamentava as
grandes potências europeias116.

O Museu Nacional se constituiria como uma entidade que nos primórdios de sua
constituição deveria estar dialogando com as demais nações europeias civilizadas,
principalmente após a Independência, de modo que o Império do Brasil apagasse seu passado
colonial e mostrasse as outras nações a sua glória. Possuindo o Museu do Louvre e o
Britânico como referências para a sua organização. As primeiras décadas do Museu Real faria
um diálogo com a presença de obras de artes e elementos da História Natural.

Aquisição e recepção da coleção egípcia

116
SANTOS, Myriam S.. Os museus Brasileiros e a constituição do imaginário nacional. Soc.
estado., Brasília, v. 15, n. 2, p. 271-302, Dec. 2000. p.281

172
“Dou-te parte que fui à Alfândega mostrar as múmias à imperatriz”117; em um trecho
rápido e simples de uma carta endereçada a sua amante, Domitila de Castro, a Marquesa de
Santos, o imperador do Brasil revelou como ocorreu seu contato com as peças que
constituiriam a primeira coleção egípcia no Brasil. Naquele 21 de julho de 1826, com a sua
esposa, a imperatriz D. Leopoldina, D. Pedro I foi à alfândega carioca observar os objetos que
o Jornal Astrea caracterizaria como “dignos da admiração dos amigos de antiguidades”118. O
interesse do imperador e da imperatriz pelas novidades foi tamanho que, três anos depois, foi
formalizada sua compra para o acervo do Museu Imperial119.
A chegada destas antiguidades às terras brasileiras ocorreu em meados do ano de
1826120. Supostamente, um comerciante de antiguidades que viajava para a Argentina sofreu
imprevistos e teve que ficar no Rio de Janeiro. Nicolau Fiengo, em sua bagagem, não levava
apenas roupas e objetos pessoais, mas também uma carga com múmias, sarcófagos,
esculturas, objetos funerários e outros itens que compunham um lote de “curiosidades” do
Oriente.
As peças foram exibidas na alfândega da capital do Império.121 Qual seria a reação de
um brasileiro ao ouvir um estrangeiro afirmar que aqueles objetos tinham milhares de anos e
que sua origem era um lugar só conhecido por meio de passagens bíblicas? Muito
provavelmente, os visitantes que estiveram no local teriam observado as peças com
curiosidade e alarme.
A coleção recém-adquirida pelo Estado Imperial passou pouco tempo na alfândega.
Dado o interesse dos monarcas, após a visita, todo o acervo foi levado para o Museu Imperial.
Percebemos isso, pois a documentação de julho de 1826 informa a presença da coleção na

117
Carta de D. Pedro I para a sua filha. In: ARQUIVO NACIONAL. Cartas de Pedro I à Marquesa de Santos.
Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira. 1974. 633 p.
118
ASTREA, Jornal. Antiguidades na alfândega do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Typographia de Torres,
29/07/1826, nº 16. p. 63-64. Digitalizado, Hemeroteca da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. p .63
119
A compra das antiguidades foi finalizada no ano de 1829, sendo registrada pelo Diário da Câmara dos
Deputados, na seção de despesas extraordinárias, como “Compra das antiguidades egípcias”. Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/749419/4745, último acesso: 25/08/16.
120
Para uma listagem das antiguidades egípcias que estavam expostas na Alfândega do Rio de Janeiro, ver:
ASTREA, Jornal. Notícias. Rio de Janeiro, Nº37, 19 de setembro de 1826. p. 63.
121
ASTREA, Jornal. Antiguidades na alfândega do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Typographia de Torres,
29/07/1826, nº 16. p. 63-64. Digitalizado, Hemeroteca da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. p.63.

173
alfândega. Já em setembro do mesmo ano, o crítico Basílio Ferreira Goulart informa o
seguinte: “Sr. Redator, parecia-me que a loja do museu se tinha convertido nas antigas
catacumbas [...] que de gente vai a ver! ”122. Portanto, estes trechos das matérias veiculadas
pelos jornais cariocas nos dão a certeza de que, logo após a visita dos monarcas à alfândega e
três anos antes da efetivação da compra123, a coleção egípcia de Fiengo foi transferida para o
Museu Imperial e que, ali, sua exposição atraiu grande quantidade de visitantes.
Até o século XIX, muitos brasileiros conheciam o Egito apenas como um lugar bíblico
que serviu de refúgio para Jesus e seus pais. Havia sido ali, também, o local em que o povo
hebreu havia sido escravizado, servindo de mão de obra para “tirânicos faraós”. Desde o
século XVI, a terra dos faraós encontrava-se fechada para os ocidentais. Não era de se admirar
que a Bíblia fosse a referência mais popular sobre o Egito124. Portanto, não seria estranho
também que ocorressem reações de desconfiança com relação à antiguidade e valor dos
objetos e que a credibilidade de Fiengo fosse contestada. É nesse contexto que, novamente, a
figura de Basílio Ferreira Goulart é de extrema relevância para o estudo desta coleção.
Basílio Ferreira Goulart, ou mais conhecido pelo seu pseudônimo, B.F.G o Carioca
Constitucional, escreveu uma extensa crítica sobre a coleção para o Jornal Astrea. Publicada
no dia 19 de setembro de 1826, a crítica avaliava que a coleção exposta no Museu Imperial
não passava de “embrulhos nojentos” e “trapos e farrapos embrulhados em cadáveres
esmirrados”. Por meio da crítica, é possível notar, ainda, qual concepção de gosto e qualidade
artística esse indivíduo possuía, pois Goulart via maior relevância nas pinturas de grandes
artistas que o Museu possuía que nos objetos egípcios.
Para além da crítica feita por Basílio, podemos contar com a resposta do comerciante
de antiguidades, Nicolau Fiengo, que fora o responsável por vender a coleção egípcia. Com
um caráter defensivo, Fiengo argumentou diversas vezes a autenticidade dos objetos, bem

122
CONSTITUCIONAL, O Carioca. Que mangação!. IN: Periódico Astrea. Rio de Janeiro: Typographia de
Torres, 29/07/1826, nº 37. p. 150 (destaque feito pelo autor)
123
A compra das antiguidades foi finalizada no ano de 1829, sendo registrada pelo Diário da Câmara dos
Deputados, na seção de despesas extraordinárias, como “Compra das antiguidades egípcias”. Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/749419/4745, último acesso: 25/04/17
124
ARAÚJO, Luís Manuel de. O Egito faraônico, Uma Civilização com três mil anos. Lisboa: Arranha-céus,
2015. p. 291.

174
como provocou certo deboche pela falta de conhecimento de Basílio, que via nos objetos
indígenas maior elaboração. Em sua defesa, Fiengo disse que “não tenho nada a que fazer se
não carregar outra vez o que é meu e procurar outras terras onde o ouro tenha mais estimação
do que a missanga”. Ou seja, o italiano equipara o valor das antiguidades ao do ouro e
desmerece as artes indígenas, inferiorizando-as. Além disto, ele critica veementemente a falta
de instrução e desinteresse que certos brasileiros possuíam em relação à coleção egípcia.
Após o período em que a coleção chegou no Rio de Janeiro, desencadeando um
embate tão fervoroso, a documentação já encontrada não indica a existência de outro
momento em que interpretação da coleção egípcia do Museu Imperial tivesse exaltado
ânimos. É interessante notar, sobretudo, como a aquisição desses objetos provocou incertezas
na população. Muitos duvidaram, mas outros se maravilharam, com a riqueza das
curiosidades do Oriente.
Após a incorporação da coleção ao acervo do museu, os dados mais relevantes sobre
as apropriações da coleção egípcia não dizem respeito à sua percepção pública, mas ao
tratamento dado à coleção. Como já abordado, inicialmente, o Museu Imperial atuava de
forma bem tímida no que se refere ao tratamento de seu acervo, mas estamos falando de
concepções de disposição e acondicionamento do século XIX, que são pertinentes ao seu
tempo. Graças a documentação museológica do Museu Imperial, existente desde a sua
fundação, podemos traçar os caminhos que as coleções tiveram no espaço museal,
identificando as formas de organização e exposição que tiveram ao longo do tempo. Não
diferente, também é possível traçar a história do acervo egípcio do Museu Imperial por meio
dos relatórios anuais e de alguns inventários produzidos ao longo do século XIX.
Como parte de um primeiro momento de constituição e consolidação do Museu
Imperial, os objetos foram dispostos da melhor forma que convinham. A documentação dos
primeiros anos da instituição até os anos 20 do séc. XIX é escassa, não indicando se já havia
um direcionamento para a organização das salas expositivas que refletisse divisões temáticas
segundo as diversas ciências ou ramos do conhecimento. Entretanto, já em 1838, temos a
primeira “Relação dos objetos que se conservam no Museu Nacional desta Corte”, que
inventariava os itens que compunham o acervo do museu, indicando sua localização no

175
edifício
A Relação indica que, quando a coleção egípcia chegou ao museu, ela foi
desmembrada e suas principais peças foram acondicionadas nas salas de exposição que
continham “objetos relativos as artes, usos e costumes de diversos povos”. Este local também
abrigava elementos da cultura material de outras civilizações, como antiguidades mexicanas e
europeias, peças intituladas da África Inculta, da Ásia, da Nova Zelândia, das ilhas Sandwich,
Ilhas Atlentas [sic] e objetos de diversos grupos indígenas do Brasil. Podemos pensar,
portanto, que o museu já possuía um local dedicado exibir e interpretas as antiguidades de
todo o mundo. É possível inferir que esta organização do acervo refletia a persistência de
práticas dos antiquários ilustrados, evidenciando uma tradição colecionista que foi transposta
da Europa para o Brasil por aqueles que estavam habituados com esse tipo de colecionismo.
Segundo Myriam Santos:

[...] no Museu Nacional há uma combinação de coleções que são constituídas


basicamente por objetos de antigas civilizações, por uma representação
romântica da natureza e da população nativa e pelo silêncio sobre a
população negra. A tentativa de representar o Brasil através de um elo com a
tradição europeia, ainda sob uma perspectiva imperialista e englobadora,
ficou restrita ao Museu Nacional em suas primeiras décadas125.

Com a premissa de dar ao “Museu Nacional uma organização acomodada à melhor


classificação e conservação dos objetos” a instituição passou por uma sistematização do seu
acervo. Com isso, em 1842, foi criada a Seção de Numismática, Artes Liberais; Arqueologia e
Usos e Costumes das Nações Modernas. A coleção egípcia foi realojada nessa seção, de modo
a se encaixar, acompanhada de objetos de outras procedências, no seguimento da exposição
dedicado à arqueologia. De uma forma ou de outra, foi essa uma “tentativa do Império
brasileiro de unir o velho e o novo mundo” (SANTOS, 2000, p.282). Em uma monarquia é
necessário construir e expor tradições culturais e de poder. Portanto, conectar a jovem nação
com o mundo antigo pera indispensável e, como se fazia nos impérios europeus, associando

125
SANTOS, Myriam S.. Os museus Brasileiros e a constituição do imaginário nacional. Soc. estado.
Brasília, v. 15, n. 2, p. 271-302, Dec. 2000. p. 274

176
objetos da antiguidade clássica com obras de arte contemporâneas, como se fez na França do
séc. XIX:

[...] o Museu do Louvre, ao organizar as obras de arte de acordo com a


história da arte, ordenou as obras do classicismo romano e do Renascimento
italiano como estes fossem os antecedentes naturais do classicismo francês.
Com isso [...] formalizava mais uma vez a república francesa como sendo a
autêntica herdeira da civilização clássica126.

O prédio que abrigava o Museu Nacional, assim como vários museus pelo mundo, não
foi construído e pensado para ser uma instituição museológica. Adaptações foram necessárias
para melhor distribuição do acervo, ao longo dos primeiros anos de funcionamento da
instituição. Entretanto, o “boom” de doações e coletas de objetos para comporem seus acervos
ocasionou o esgotamento dos espaços do pequeno prédio, que ficou abarrotado de objetos.
Assim, tornou-se necessário ampliá-lo. Esta foi uma das preocupações centrais de vários
diretores que coordenaram a instituição, ao longo dos anos. Manoel Araújo Porto Alegre, por
exemplo, fez um extenso elogio a Seção de Numismática, Artes Liberais, Arqueologia e Usos
e costumes das Nações Modernas, no relatório anual de 1844. Mas, ao mesmo tempo, expos
sua preocupação que os rumos que a ordenação daquela seção do museu estava tomando, em
razão do crescimento do acervo. De acordo com Porto Alegre:

[...] os objetos desta seção têm sido colocados da melhor maneira que
convém ao local, mas não como conviria ao museu de uma Nação
civilizada, a pequenez da sala e sua construção imprópria não oferece os
meios de apresentar ao público uma classificação e ordem simétrica nos
objetos plásticos e nas antiguidades egípcias, segundo o bom gosto das
Nações europeias127.
Esse trecho possui informações riquíssimas sobre a percepção de Porto Alegre acerca
de como a construção desse ambiente conectaria o Novo Mundo com o Velho. Notamos, que
ao contrário que muito se pensa, havia uma grande preocupação dos diretores do Museu em

126
SANTOS, Myriam S.. Os museus Brasileiros e a constituição do imaginário nacional. Soc. estado. Brasília,
v. 15, n. 2, p. 271-302, Dec. 2000. p. 277
127
MUSEU NACIONAL. Seção de Numismática e Artes Liberais, Arqueologia, Uso e costumes das nações. In:
Relatório dos trabalhos e aquisições havidas no Museu Nacional durante o ano de 1843, e assim bem das
necessidades mais urgentes do mesmo Estabelecimento. Seção de Memória e Arquivo do Museu Nacional da
UFRJ. folhas 43-44. (destaque feito pelo autor)

177
garantir a melhor forma de exibição do acervo. A exposição não era, portanto, fruto de uma
desordem total. Existiam maneiras de se pensar como uma coleção era exposta em um
ambiente. Para o Manoel Araújo Porto-Alegre, era necessário dispor o acervo de forma
classificada e em uma ordem simétrica para melhor facilitar a fruição dos visitantes. Para
além disso, essas concepções de exibição estavam relacionadas com o gosto europeu, de
modo que possamos pensar que os funcionários do Museu estavam conectados com o que se
pensava na Europa em termos de organização do espaço museal.
Por outro lado, garantir a essência da organização e sistematização do acervo
assegurava que o Museu Nacional passasse a imagem de uma instituição digna de uma nação
civilizada. O Brasil acabara de conquistar sua independência e era necessário apagar os
vestígios de uma ex-colônia portuguesa. Portanto, esses personagens que eram responsáveis
pelo museu sabiam a importância dessa instituição para compor um retrato da jovem nação.
Segundo a interpretação que Manoel Araújo Porto Alegre fez da Seção de Numismática, Arte
Liberais, Arqueologia e Usos e Costumes das nações:

As Nações europeias trabalham com afinco para levar ao maior incremento


possível estes gêneros de estudo, visto serem eles o índice da matéria
espiritualista pela inteligência da indústria, e o roteiro da maior, ou menor
perfeição, do maior ou do menor grau de civilização dos povos. Apesar de
que o nosso país se ache afastado dos depósitos dos monumentos da arte, e
se não encontrem nele esses Mercados de antiguidades da Europa, nem
ainda nos produtos de sua indústria, carácter assaz pronunciado que revela
sensivelmente a história das artes e ofícios, durante os três séculos da sua
existência, possui, todavia, esta seção objetos de sumo valor, e que podem
orientar no apreço dado ao estudo das belas artes128.
Neste trecho do relatório de 1844, vemos como que o respectivo diretor do Museu
interpreta a funcionalidade dessa seção como instrumento de instrução da nação. Para ele a
ausência de arte própria do Brasil como representante de certa evolução artística pode ser
substituída com os exemplares das nações civilizadas. A necessidade de haver uma sala que
aborde elementos das belas artes no museu representa o acompanhamento que esta instituição

128
MUSEU NACIONAL. Seção de Numismática e Artes Liberais, Arqueologia, Uso e costumes das nações. In:
Relatório dos trabalhos e aquisições havidas no Museu Nacional durante o ano de 1843, e assim bem das
necessidades mais urgentes do mesmo Estabelecimento. Seção de Memória e Arquivo do Museu Nacional da
UFRJ. folha 44. (destaque feito pelo autor)

178
possuía com os modelos de museus existentes. É bem provável que o Museu Britânico e o
Louvre sejam exemplos de museus a serem seguidos, pois, nesse momento, essas instituições
eram compostas por uma mistura de história natural, artes plásticas e arqueologia. Mesmo
sendo uma instituição pequena, o museu possuía exemplares artísticos que se equiparava aos
grandes museus europeus, incluindo objetos das principais civilizações antigas do mundo:
Roma, Grécia e Egito, sendo esta última com notável número de objetos.
Para além disso, o Manoel Araújo Porto Alegre evidenciou as dificuldades em seguir
os modelos europeus, mostrando que no Brasil não havia mercados de antiguidades da
Europa. Também fica evidente nessa descrição feita pelo diretor do museu, que até aquele
momento, as antiguidades eram vistas como exemplares artísticos. No caso das antiguidades
egípcias, a egiptologia estava acabando de nascer e não era de se esperar que esses objetos
tivessem o mesmo tratamento que era dado na França ou na Inglaterra.
Ocasionalmente, após década de quarenta do séc. XIX, não houveram muitos registros
sobre a coleção egípcia nos relatórios anuais. De fato, ocorreram novas aquisições, embora
poucas. É interessante perceber, por meio dos relatórios, a existência de habitantes do Império
que enviavam vários objetos para enriquecer a quarta seção do Museu Nacional. Este dado
permite percebermos que existiam práticas do colecionismo privado na sociedade imperial,
que poderiam estar sob a esfera de influências das atividades da instituição museal e do casal
imperial. A importância da relação entre o colecionismo privado e a formação dos acervos do
museu poder ser percebida no processo de doação das antiguidades pompeianas, pela
imperatriz Teresa Cristina, em 1856. Passada a euforia com a coleção egípcia, o mais notável
acontecimento na expansão da Seção de Numismática, Arte Liberais, Arqueologia e Usos e
Costumes das nações não foi uma aquisição promovida pela instituição, mas sim a doação de
uma coleção privada.
Segundo Myriam Santos, o museu passou por uma desaceleração no ritmo do
colecionismo de caráter mundial decorrente da diminuição do desejo de possuir objetos de
várias nações, no momento em que a missão do Museu começou a caminhar para outro lado: a
História Natural. “Em meados do século dezenove, mesmo o Museu Nacional [...] modifica o
rumo de sua trajetória ao voltar-se quase que inteiramente para o estudo do reino da natureza”

179
(SANTOS, 2000, p.285). Portanto, diferente das concepções de colecionismo do início do séc.
XIX, o museu passou a seguir novas tendências e, para acompanhar as nações civilizadas, era
necessário se atualizar, o que levou à decadência do colecionismo de antiguidades.

Conclusão
De modo a acompanhar as tendências colecionistas que surgiram durante o século
XIX, o Museu Nacional teve como missão nesse período, além de construir uma instituição
que colocasse o Brasil no hall das ciências naturais, de transformar o museu em um lugar que
fosse o espelho dessa nação aos olhos dos viajantes e estrangeiros que por aqui vinham a
procura da exuberante flora e fauna. Para além disso, era necessário mostrar que essa jovem
nação seguia os padrões necessários de um museu que estava à altura dos da Europa.
A presença dessa coleção no Museu Nacional garantia prestígio e brilhantismo a
jovem nação. Uma vez que essa foi a primeira coleção egípcia da América Latina, ela garantia
que essa instituição possuísse um acervo rico e que mostrava a cultura material de vários
lugares, não apenas do antigo Egito, mas da África Ocidental, Roma antiga na Seção de
Numismática, Artes Liberais, Arqueologia e Usos e costumes das Nações Modernas. Portanto,
além de representar os costumes de outros lugares, o museu criava uma imagem de si que
representava a nação brasileira, mostrando que seus cidadãos estavam se civilizando através
da ciência.

180
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182
TRAJETÓRIA DE FORMAÇÃO DA COLEÇÃO MANOEL
PASTANA129

Renata de Fátima da Costa Maués*


*PPGArtes - Universidade Federal do Pará

Resumo: O trabalho apresenta a trajetória de formação da coleção Manoel Oliveira Pastana que
integram os acervos dos museus ligados a Secretaria de Estado de Cultura – SECULT/PA. O processo
de pesquisa teve início com o tratamento de conservação realizada nas obras existentes, visando
garantir a sua preservação, sendo estabelecida uma metodologia de tratamento que envolvia a
conferencia de dados, com registro fotográfico documental associada a processos de conservação e
higienização de parcela da coleção.

Palavras chave: Manoel Pastana, coleção, preservação.

Abstract: This study presents the trajectory of the Manoel Oliveira Pastana's artwork which integrates
the museum's collection of the Secretaria Executiva de Culutura do Pará - SECULT / PA. The research
had began with the conservation treatment carried out in the existing works. To guarantee its
preservation, it was established a methodology of treatment that involved the data review, including
the photographic register associated to process of conservation and safeguard of Pastana's paintings
and drawnings.

Key-words: Manoel Pastana; collection; preservation.

129
Artigo faz parte da pesquisa de mestrado do Programa de Pós-graduação em Artes – Ppgartes/ UFPA.

183
Contexto Museológico: A coleção Manoel Pastana

Os museus do SIM/SECULT têm como suas atribuições a preservação do patrimônio


cultural do Estado do Pará e a manutenção de coleções representativas de nossa história.
Dentro deste princípio, a Secretaria de Cultura e o Sistema Integrado de Museus têm como
missão garantir a preservação do patrimônio do Estado do Pará. O Sistema Integrado de
Museus - SIM foi criado em 1998 na estrutura organizacional da SECULT, com o objetivo de
sistematizar e gerenciar as ações museológicas de forma sistêmica para os museus ligados até
então a esta secretaria. O Sistema integrado de Museus tornou-se referência nacional nesse
modelo de gestão, participando na criação de vários museus e na preservação das coleções
interligadas aos mesmos. Dentro dessa estrutura organizacional, foram criadas várias
coordenadorias para operacionalizar as atividades museológicas. Entre elas, foi criada a
Coordenadoria de Preservação, Conservação e Restauração, cujas atribuições vão dos
cuidados com as coleções, passando pela implementação de políticas de salvaguarda e
restauração de acervos expostos em salas de visitação e guardados em reserva técnica, além
de trabalhar com planos de conservação preventiva, de modo a garantir a preservação das
coleções a gerações futuras.

Com a criação do Sistema de museus foi inaugurado um modelo de gestão que


buscava estabelecer um gerenciamento sistêmico, o que levou a pensar a estruturação das
coordenadorias com atuações nos vários museus, instituindo também um novo conceito de
guarda de coleções, pautada na configuração de reservas técnicas com atuação sistêmica, ou
seja, reservas que de acordo com a tipologia seria guardiã de coleções de diferentes museus.

É dentro desse contexto que foi dado início ao processamento da “coleção Manoel
Pastana” tendo a compreensão aqui de coleção como o conjunto de obras e objetos existentes
nos Museus elaboradas e feitos pelo artista, o que difere do arranjo documental estabelecido
nos museus do SIM, onde os objetos artísticos feitos por Manoel Pastana (pinturas, desenhos,
objetos do artista) estão distribuídos nas coleções de dois museus: Espaço Cultural Casa das
Onze Janelas (coleção COJAN) e Museu do Estado do Pará (Coleção Lauro Sodré). Portanto

184
como se trata de uma pesquisa referente as obras de um único artista resolvemos tratá-la como
uma única coleção.

O Artista Manoel Pastana: Breve biografia

Manoel Pastana é ainda pouco conhecido no cenário artístico nacional, mais é certa
que foi figura marcante no cenário artístico de sua época, contribuindo na estruturação de uma
história da Arte no Pará. Ele nasceu em 26 de julho de 1888 na Vila do Apeú, município de
Castanhal e faleceu no Rio de Janeiro no dia 25 de abril de 1984.

Desenvolvia e explorava várias técnicas e linguagens no campo artístico, foi professor


de desenho, pintor, ceramista, escultor, incursionando no campo da arte decorativa. Teve
como mestre e amigo o pintor Theodoro Braga, figura marcante, que de certo modo teve
grande influência na sua produção de arte decorativa, inspirada na cerâmica arqueológica e na
natureza.

Trabalhou como professor no colégio Moderno, Suíço Brasileiro e Progresso Paraense


além de atuar como professor em seu curso particular de desenho130. Ingressou na Marinha do
Brasil em 1912 como desenhista e em 1918 participou da fundação da Academia livre de
Bellas Artes do Pará, juntamente com Manoel Santiago, Antonio Ângelo Nascimento, Arthur
Frazão, Othon Souza e Raymundo Roneiro.131

Fixou residência na cidade do Rio de Janeiro em 1935 e estudou na Academia


Nacional de Belas Artes. Durante esse período trabalhou na casa da moeda onde produziu
selos consulares, moedas e cartão postal entre outros.

130
O curso particular de Manoel Pastana é citado nos Relatório dos Presidentes do Estado do Brasil (PA), onde
contem informações sobre a exposição escolar de Desenho realizada no salão de honra do Teatro da Paz.
131
Dissertação de mestrado O moderno em aberto: O mundo das artes em Belém do Pará e a pintura de
Antonieta Santos Feio de autoria de SILVA,Caroline Fernandes.Niterói. 2009,p. 65. Disponível em:
<http://www.historia.uff.br/stricto/teses/Dissert-2009_Caroline_Fernandes_Silva-S.pdf>

185
Figura 1: Imagem da peça “Acará Bandeira”, (Bronze) que ganhou o diploma de honra na exposição de Paris
em 1937. Jornal Correio da Noite - Rio de Janeiro, 17 jan.1939.

186
Na Exposição Mundial de Paris de 1937, Pastana foi consagrado com dois prêmios:
Diploma de honra, e a medalha de Prata132. Pastana estava presente com três peças. [...] “uma
grande jarra Marajoara, um jarro estilização passarão e um jarro estilização acará-bandeira. O
133
primeiro cerâmica e os dois outros bronze” . De acordo com as notícias da época, foi
grande junto aos visitantes, o sucesso das peças no pavilhão brasileiro, o que garantiu ao
artista paraense, concedido pelo júri do certame, o Diploma de honra com o vaso acará-
bandeira, o mais alto prêmio conferido a seção de arte decorativa134.

Em 1938, atuou como jurado de seleção e premiação, na seção de artes decorativas, do


Salão Nacional de Bellas Artes juntamente com Eliseu Visconti, Maria Francelina Falcão e
Camilla Alvares de Azevedo, onde foi conferida a medalha de ouro a Euclydes Fonseca e a
medalha de bronze a Clotilde Cavalcante135.

Em 1939 Manoel Pastana participou do 45º Salão Nacional de Belas Artes, onde
recebeu a medalha de ouro.

Presidido pela senhora Sarah Villela de Figueiredo e tendo como vogaes: sra.
Maria Francelina, Sr. Henrique Cavalleiro e Castro Filho o Jury de arte
decorativa, reunido, deliberou attribuir a “Medalha de ouro” ao artista
Manoel Pastana e a “Medalha de bronze” á sra. Dolores Angela Rodriguez e
a “Menção Honrosa” foi attribuida aos senhores: José Jardim de Araujo,
Sylvio Brtas de Araujo Franco Cenni e Hugo Marianni.136

132
A arte indígena prehistorica brasileira. Jornal “Correio da Manhã”. Rio de Janeiro, domingo 31 de maio de
1942.
133
A arte brasileira em Paris - O brilhante artista Manoel Pastana obteve, com seus trabalhos, o maior premio
conferido á secção de arte decorativa. Jornal do Brasil 21 de outubro de 1937.
134
No Mundo das artes- Arrumação não é estylização (Manoel Pastana especial para o correio da Noite) Jornal
Correio da Noite - Rio de Janeiro 17-01-1939.
135
As premiações do Salão Nacional de Bellas Artes de 1938. Jornal Correio da Noite, Rio de Janeiro, 29 nov.
1938.
136
Attribuidos os premios do Salão nacional de Bellas Artes. Jornal Correio do Noite. Rio de Janeiro, 18 set.
1939.

187
De 1935 a 1941 serviu na Casa da Moeda, por solicitação do Ministro da Fazenda.
Nesse período, trabalhou no projeto de reformulação dos selos do tesouro nacional, criando
vários modelos cuja composição utiliza motivos da fauna e flora da Amazônia configurando
“elementos decorativos genuinamente nacionaes” 137.

Conquistou diversos prêmios e menções e teve seus trabalhos expostos em salões


nacionais e internacionais, expôs e vendeu trabalhos na França, Alemanha, Nova York e São
Francisco. Participou do Salão internacional de Valparaiso no Chile em 1943. Em 1966
recebeu medalha de prata da Academia de Belas Artes. Após uma intensa atividade artística,
Pastana faleceu com 95 anos.

Configuração da Coleção Manoel Pastana

O desejo de estudar a produção artística de Manoel Pastana nasceu quase de forma


aleatória das muitas atividades que a coordenadoria de preservação, conservação e restauração
estabelecia dentro do planejamento das ações que seriam desenvolvidas ao longo da cada
semestre. O primeiro momento que vislumbrei várias obras de Pastana foi no processo de
montagem da exposição de abertura da Casa das Onze Janelas, em dezembro de 2002.
Participei da higienização e montagem de algumas pranchas de desenho, naquele momento,
essas obras me haviam passado quase que despercebida, se não fosse a destreza da execução e
riqueza de detalhes oferecidos pelo artista em suas composições laboriosas.

Até meados de 2011, avistava alguns desenhos sempre em exposição ou nas gavetas
das mapotecas dentro da Reserva técnica, no entanto, em junho do mesmo ano, o setor
estabeleceu como uma de suas ações o processo de conservação dos desenhos do artista que
estavam guardados em reserva. Para essa ação, foi constituído como metodologia a avaliação

137
A exposição de motivos marajoaras da galeria Heuberger uma palestra com Manoel Pastana, o ceramista que
revive a arte prehistorica dos “aruans”. Jornal “O popular”.s/l. 17 set. 1937.

188
dos desenhos, o registro fotográfico e o processo de higienização. Na análise dos desenhos foi
constatado que estes estavam colados sobre um suporte de papel de cor cinza azulado, que se
encontrava já em processo de oxidação, podendo comprometer os desenhos de Manoel
Pastana. Como medida de preservação optamos em fazer a separação do desenho do suporte
cinza azulado.

Foi efetivado a remoção do papel ácido e resquícios de adesivos aderidos no verso das
obras por meio de remoção mecânica, e química; remoção de intervenções inadequadas
(repinturas) e por fim o armazenamento das lâminas em invólucros de proteção
confeccionados em papel tyvek, para posterior devolução a reserva técnica. Esse processo
teve a duração de aproximadamente três meses e foram executadas em 105 Lâminas de
desenho, sendo finalizado em setembro de 2011. Vale ressaltar que apesar de ter sido feito a
separação do desenho que estava colado sobre o papel ácido, este último foi mantido e
preservado com o registro associado a sua prancha de origem, pois muitos apresentavam
dedicatórias, assinaturas e inscrições.

Foram feitas análises individuais de cada peça, e atualizada as fichas catalográficas


elaboradas pelo setor de documentação, onde foram feitas correções de dados tipo:
material/técnica, época/data e a inclusão de uma breve descrição do motivo desenhado e de
outras informações existentes nas pranchas de modo a consolidar um catálogo, com o maior
número de elementos referentes a esse material.

Durante esse processo de análise observamos que o artista trabalhou com técnicas
diversas como: desenho a grafite e nanquim, pintura a guache e aquarela.

Foi durante o trabalho de conservação, que surgiu o interesse em conhecer melhor o


artista e sua produção, fato que é necessário para subsidiar qualquer tipo de intervenção. As
atividades de conservação possibilitaram uma análise bastante acurada das obras, onde foi
possível ver de perto o esquema estrutural dos desenhos, a paleta de cor utilizada, a percepção
da forma e a estilização da mesma nos projetos de arte decorativa.

189
Após realizar os trabalhos sobre as pranchas de desenhos, partimos para o
levantamento de outras obras existentes nos museus do SIM/SECULT, sendo feito um estudo
preliminar sobre o histórico das coleções, pesquisa bibliográfica sobre o artista, atualizando e
ampliando as fichas catalográficas de modo a consolidar informações para disponibilizar ao
público interessado.

Foi constatado que além dos desenhos, existiam várias pinturas de personalidades
ilustres, pintura de paisagens, autorretratos, maleta contendo pinceis, tintas e paleta do artista,
um livro de recorte e assinaturas e moedas cujo projeto foi elaborado por Manoel Pastana.

Sobre a produção artística, iniciamos o levantamento da documentação existente em


arquivo, onde foi possível destacar informações relevantes sobre a procedência e entrada da
coleção nos museus.

Desse modo, temos conhecimento pelas informações extraídas dos documentos


existentes no setor de documentação e pesquisa do SIM/SECULT, que em novembro de 1982
encontrava-se sobre a guarda da assessoria técnica da Secretaria de Cultura, Desportos e
Turismo-SECDET, adquiridas pelo Governo do Estado do Pará, um conjunto de 98 pranchas
de autoria de Manoel Oliveira Pastana138. Esse conjunto de obras caracteriza-se pelo desenho
de observação de peças e fragmentos arqueológicos que compunham as coleções das
seguintes instituições museológicas: Museu Nacional, Museu Goeldi, Fundação Brasil Central
e Museu do Ouro (Sabará), assim como de coleções particulares pertencentes a Frederico
Barata, Emilia Monteiro, Carlos Estevão, José Mindelo e do próprio artista.

No diário oficial de 25 de março de 1983 foi publicado o processo de tombamento


pelo Departamento do Patrimônio Histórico Artístico Cultural –DEPHAC da Secretaria de
Estado de Cultura – SECULT, de 98 (noventa e oito) Lâminas do Artista Manoel Oliveira
Pastana pertencentes ao Museu do Estado do Pará – MEP.
138
Cópia de documento manuscrito que informa o período de aquisição das lâminas pelo governo do Estado do
Pará com a relação das peças, descrição e origem. (Arquivo SIM/grupo: COJAN, Série: Diversos, Caixa 07-
Coleção Pastana)

190
Soma-se a este conjunto de obras, mais 17 pranchas adquiridas da Sra. Amassi
Palmeira em outubro de 1988, pela Fundação Nacional Pró-Memória (atual IPHAN). As 17
lâminas de desenhos (pranchas decorativas) são projetos de arte aplicada para construção de
objetos decorativos, móveis, porcelanas e utensílios domésticos, possivelmente feitos para
serem utilizados em várias indústrias como relatou o próprio artista:

Dei inicio a uma serie de composições decorativas, baseadas em elementos


zoomorphos encontrados na louça prehistorica dos índios da Amazônia. A
principio me limitei a realizar projectos para aplicação em diversas
industrias, resultando dahi uma pequena collecção de pranchas, que destino a
fins educativos.”139

Nesta aquisição, estavam inclusos também: 6 (seis) moedas, cujo projeto foi executado
pelo artista durante sua permanência na casa da Moeda; 55 (cinqüenta e cinco) fotografias
diversas retratando o artista, seu ambiente e suas obras; e 1 (uma) fita gravada com o
depoimento de Manoel Pastana, configurando um total de 79 (setenta e nove) peças140. Em
função do trâmite e deslocamento do acervo ao longo dos anos, excetuando as 17 (dezessete)
lâminas decorativas, os últimos itens listados, estão em processo de localização e conferência.
Sendo já localizadas 38 (trinta e oito) fichas catalográficas, contendo 32 (trinta e duas)
fotografias, e 3 (três) moedas. O levantamento dos demais itens, ainda está em processo de
verificação.

A idéia que tínhamos anteriormente era que a coleção de pranchas, havia chegado à
instituição em um único momento, entretanto, o conjunto total constituído de 115 lâminas deu
entrada no museu no ano de 1982 (98 pranchas) e 1988 (17 pranchas).

139
Entrevista com Pastana - Trecho extraído do jornal O popular, 17 de setembro de 1937
140
Recibo com relação em anexo, assinada pela Sra. Amassi Carrera Palmeira, informando ter recebido da
Fundação Nacional Pró- Memoria/SPHAN a importância de Hum milhão de cruzados, referente a venda de obras
do artista plástico Manoel Pastana datada de 06 de outubro de 1988. (Arquivo SIM/grupo: COJAN, Série
Diversos, Caixa 07 – Coleção Pastana).

191
Em 02 de fevereiro de 2001 foi doado a Secretaria de Cultura, pelo Sr. Washington
Araujo Pastana141, um álbum que pertenceu ao pai Manoel Pastana, contendo lista de
assinaturas de pessoas que prestigiaram as exposições e notícias de jornais. Tal documento
contém convites, catálogos e inúmeros recortes de jornais divulgando as exposições de
Pastana nas cidades de Belém, Rio de Janeiro e São Paulo de 1933-34, 37,39, 42.

Compondo o acervo museológico, soma-se a esta coleção, as obras de procedência do


Conselho de Cultura e doadas a Secretaria de Estado de Cultura. São Elas: “Caixa d água de
Belém” – óleo s/tela 90 x 65 cm(adquirido pelo CEC em 3/11/1976); “Fortaleza de Macapá,
1952” – óleo s/tela 45 x 26 cm (adquirido pelo CEC em 26/10 /1977); “Auto-retrativo” - óleo
s/madeira 53 x 40 cm (doado ao CEC) e um Estojo em madeira contendo: paleta, pinceis,
lápis bisnagas de tintas, espátula, e lixa, doado ao CEC pelo conselheiro Dr. Silvio Meira
(08/04/1984).

Figura 2: Maleta do artista Pastana– Acervo Museu do Estado do Pará.

Fonte: Arquivo SIM/SECULT.

141
Registro de doação do Álbum de Manoel Pastana. Arquivo SIM - grupo: COJAN, Série: Álbum de
Assinatura de Exposições. Caixa: 19.

192
Além das obras doadas pelo Conselho de Cultura, existem no acervo do Museu, de
autoria do artista, pinturas de retratos das seguintes personalidades: Presidente Epitácio
Pessoa (óleo s/ tela, 76 x 65 cm), Presidente Arthur Bernardes (óleo s/ tela, 75 x 61 cm) e os
governadores Dionísio Bentes (óleo s / tela, 73 x 59 cm) e Magalhães Barata (óleo s/ tela, 100
x 72 cm). Obras que possivelmente foram feitas via encomenda, para compor a antiga galeria
de retratos de governadores e presidentes que existia na sede do governo no Palácio Lauro
Sodré. Pastana informa em entrevista concedida ao jornal Correio do Norte em 10 de outubro
de 1939 que: “Em Belém tenho vários trabalhos de pintura, paisagens e retratos, estes, na
galeria dos presidentes, no Palácio do Governo, na prefeitura e nas galerias das Faculdades de
Medicina e Direito”.

Existem também, três pinturas de paisagens urbanas. “Praça Batista Campos” pintada
em 1972 (óleo s/Duratex, dim: 50 x 42 cm) 142, “Teatro da Paz” (óleo s/madeira, Dim: 45 x 63
cm) 143, executada em 1978 e uma pequena paisagem, datada de 1975 (óleo s/ madeira, dim.:
144
26 x 40 cm) . Apesar de esta última ser intitulada apenas de paisagem, no verso da obra
encontra-se uma inscrição a lápis “São João da Barra – Rio”, feita pelo próprio artista,
parcialmente encoberta por um papel contendo informações técnicas colada na superfície da
madeira. Tal informação sugere que o nome original da pintura seja “São João da Barra”,
inclusive porque ela foi assinada e datada Pastana, Rio 975, o que confirma a origem da peça.

142
No verso da pintura encontramos as seguintes informações: a obra participou de uma exposição do artista em
1979. A peça foi depositada no teatro da Paz, como doação para fazer parte do acervo da Galeria Angelus.
Possui a numeração antiga que se refere ao número de tombo AB 0067. Exp. No. 163/77. Obra no. 106/79.
Existe também o período de 23/12/76 a 8/02/77 que possivelmente refere-se a um período de exposição na qual a
obra participou.
143
Alem das informações técnicas, são encontrados no verso da obra os seguintes dados: acervo da Secretaria de
Estado de Cultura, Desporto e Turismo, trabalho depositado no Bolonha. Antigo número de tombo AB – 0162.
Galeria Theodoro Braga/Teatro da Paz. E o período 14/09/78 a 25/09/78 que pode tratar-se de um período de
exposição na qual a obra participou. Obra no. 012/79, exp. no. 026/78.
144
Além das informações técnica, no verso encontram-se os seguintes dados: acervo da Secretaria de Estado de
cultura, Desporto e Turismo. Número de tombo AB. 0063. O trabalho fez parte de exposição do autor na galeria
Theodoro Braga e está depositado no teatro da Paz. Existe o Número de obra 005/79 e exposição número 007/77.
Conta também as datas de 13/09/77 a 25/09/77 que possivelmente refere-se a um período de exposição na qual a
obra participou.

193
As três obras foram doadas a SECDET, acredita-se que pelo próprio autor, depois de terem
feito parte de exposições apoiadas pelo Governo do Estado.

Conhecer a origem e procedência da coleção é fundamental para o conhecimento do


artista é dessa forma que construímos o que Salles (2006, p. 13) aponta como “percursos de
criação, a partir dos documentos deixados pelo artista [...] na relação entre esses registros e a
obra entregue ao público, encontramos um pensamento em construção”. Por meio do estudo e
análise das obras deixadas pelo artista é possível a construção de redes e interfaces e da
construção do pensamento do artista.

Considerações finais

Os museus fazem parte do patrimônio da população paraense e devem ser


reconhecidos como tal, como espaços que contribuem para o desenvolvimento cultural de
nosso Estado e na recuperação da memória social e da identidade cultural do povo paraense. É
um espaço de pesquisa e geração de conhecimento, responsável pela guarda e proteção de
parcela significativa de nossa história cultural e artística.

Esta pesquisa que tem como ponto de partida coleções existente nos museus, está
associada à proposta apresentada ao Processo Seletivo do Programa de Pós-Graduação em
Artes, do Instituto de Ciências da Arte da Universidade Federal do Pará, Mestrado – Turma
2017, com o tema: “A Coleção Manoel Pastana: Interlocuções na construção de uma arte
nacional”, com a orientação da professora Dra. Rosangela Britto. Configura-se de um
levantamento documental e analise visual feito na coleção Manoel Pastana existente nos
museus do SIM/SECULT. É ainda um estudo preliminar que deverá ser aprofundado e
esmiuçado durante a pesquisa do mestrado.

Referências bibliográficas

Braga, Theodoro. Artistas pintores no Brasil. São Paulo:São Paulo editora limitada, 1942.

MAUÉS, R.F.C. Manoel de Oliveira Pastana: Em Busca de uma arte verdadeiramente


nacional. Encontro Nacional da ANPAP – 2013 Belém Pará – 15 a 20 de outubro de 2013,
p.780-794.
194
SALLES, Cecília. Rede da Criação: Construção da obra de arte. São Paulo: Editora
Horizonte, 2006.

SILVIA, Caroline Fernandes. O moderno em aberto: o mundo das Artes em Belém do


Pará e a pintura de Antonieta Santos Feio. Niterói, 2009. Disponível
em:<http://www.historia.uff.br/stricto/teses/Dissert-2009_Caroline_Fernandes_Silva-S.pdf>.
Acesso em: 22 mar. 2012.

Fontes:

A arte brasileira em Paris- O brilhante artista Manoel Pastana obteve, com seus trabalhos, o
maior premio conferido a secção de arte decorativa. Jornal do Brasil, 21 out. 1937.

Arte Marajoara. Jornal O Imparcial. Ano VIII, No. 2033, Rio de Janeiro, Domingo, 11 jan.
1942.

As premiações do Salão Nacional de Bellas Artes de 1938. Conferido a Manoel Constantino o


premio de viagem ao estrangeiro – Bustamante Sá foi o candidato indicado para o premio de
viagem ao paiz – Jordão de Oliveira obteve a medalha de ouro. As outras premiações.
JornalCorreio da Noite – Número avulso. Rio de Janeiro, terça feira, 29Nov. de 1938.

A exposição de motivos marajoaras da galeria Heubergeruma palestra com Manoel pastana, o


ceramista que revive a arte prehistorica dos “aruans”. Jornal O Popular,17 set. 1937.

Attribuidos os Premios do Salão Nacional de Bellas Artes. Concedido o premio de viagem a


Europa ao pintor Edson Motta. O premio de viagem ao paiz foi attribuido ao artista Honorio
Peçanha – as outras premiações – os jurys - outras notas. Jornal Correio da Noite, Rio de
Janeiro, 18 set. 1939.

Bellas Artes - responsabilidade da Sociedade brasileira de Bellas Artes. Ouvindo os laureados


do Salão. A medalha de ouro de Manoel pastana- “A arte marajoara e o maior monumento
arqueológico que possuímos”. Jornal Correio do Norte, Rio de Janeiro, 10 out. 1939.

Bellas Artes - responsabilidade da Sociedade brasileira de Bellas Artes. A recepção offerecida


aos laureados do Salão oficial pela S.B.B.A – uma linda festa de confraternização dos artistas.
Jornal Correio do Norte, Rio de janeiro, 18 out. 1939.

Bellas Artes. Vicente Leite vai percorrer o Brasil - A exposição de um artista do Pará. Jornal
A Nação, 22out. 1933.

De Bellas Artes – Responsabilidade da Sociedade brasileira de bellas Artes – Doutrina


Divulgação Noticiario – No mundo das Artes – Arrumação não é estylização (Manoel
Pastana, especial para o CORREIO DA NOITE). Jornal Correio da Noite, Rio de Janeiro,
17 set. 1939.

195
GOMES, Tapajos. A arte indígena prehistoricabrasileira. Marajó – Principal fonte de
documentação. A palavra de Manoel Pastana. Jornal Correio da Manhã, 31 mai. 1942.

Impressões de Arte. Os motivos marajoarascomo sentido de brasilidade na arte applicada.


Jornal Folha do Norte, Pará, 02 mai. 1934.
Notas de Arte. Exposição de cerâmica com motivos marajoaras. Jornal do comercio. Rio de
Janeiro. 09 fev. 1936.

Novas exposições interessantes na galeria Heuberger. Jornal do Brasil (suplemento), Rio de


Janeiro, 19 set. 1937.

Um pouco de Arte Marajoara. Jornal A gazeta, São Paulo, quinta feira, 07 out. 1937.

Uma Exposição de arte brasileira. O Artista paraense Manoel Pastana diz ao “Diario da
Noite” que em breve mostrará a S. Paulo os seus trabalhos de arte applicada, motivos
marajoaras, e estylização da fauna e flora brasileiras. Jornal Diário da Noite, 2 jan. 1936.

196
A FORMAÇÃO DE UM ACERVO BRASILEIRO NO MÉXICO: AS
MOSTRAS LATINO-AMERICANAS DE FOTOGRAFIA
CONTEMPORÂNEA, MÉXICO (1978-1981)

Marcelo Eduardo Leite*

Resumo: O presente trabalho expõe alguns dos resultados de uma pesquisa realizada no Instituto de
Investigaciones Esteticas, da Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM). Nosso objetivo
foi analisar a participação brasileira em duas mostras fotográficas que fizeram parte dos colóquios
latino-americanos de fotografia, realizados na Cidade do México, nos anos de 1978 e 1981. Tais
imagens, agregadas depois ao acervo do Consejo Mexicano de Fotografia, estão hoje aos cuidados do
Centro de la Imagen, no qual realizamos nossa investigação. As referidas exposições demarcam um
esforço pioneiro no sentido de criar laços entre os fotógrafos do subcontinente, dando ainda
visibilidade às variadas produções nacionais. A participação brasileira foi emblemática, sendo a
segunda em quantidade de participantes, ficando atrás apenas do país organizador. Dentre seu vasto
material, encontramos fotógrafos de vertentes variadas, com uma predominância de fotojornalistas e
fotodocumentaristas. Neste trabalho daremos atenção ao processo de construção do acervo, seus
critérios básicos e seus encaminhamentos, à criação de laços com o Brasil e, finalmente, analisaremos
o conjunto de fotografias brasileiras.

Palavras-chave: América Latina; Fotografia; Consejo Mexicano de Fotografia.

Abstract: This work exposes some of the results of a research that was accomplished at the Instituto
de Investigaciones Esteticas, from Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM). Our
objective was to analyze the Brazilian participation on two photographic shows which were part of
Latin American photography colloquiums, performed in Mexico City, in the years of 1978 and 1981.
Such images, that after were incorporated into the collection from Consejo Mexicano de Fotografia,
are today in the care of the Centro de la Imagen, where we have done our investigation. Those photo
exhibitions demarcate a pioneering effort to create ties between the photographers of the
subcontinent, still giving visibility to varied national productions. The Brazilian participation was
emblematic, it was the second one in number of attendees, behind only the organizer country.
Between its vast material, we have found photographers of varied tendencies, with a predominance of
photojournalists and photodocumentarists. In this work we will give attention to the construction
process of the collection, its basic criteria and referrals, to the creation of ties with Brazil and,
ultimately, we will analyze the group of Brazilian photos.

Key-words: Latin America; Photography; Mexican Council of Photography.

197
Introdução
Os primeiros passos que levaram ao grandioso acervo de imagens do Consejo
Mexicano de Fotografia foram dados no momento de sua criação, no dia 17 de fevereiro de
1977, na Cidade do México, quando alguns dos principais nomes da fotografia mexicana se
reuniram numa das mesas do restaurante Vips, dando os primeiros passos em direção à sua
criação. Estavam presentes, Lázaro Blanco, Enrique Franco, Jorge Alberto Manrique, Pedro
Meyer e Raquel Tibol. Dentre seus principais objetivos estava: “Organizar o Primeiro
Colóquio Latino-americano de Fotografia” e, paralelamente, realizar “uma exposição da obra
representativa da fotografia latino-americana”145. Ambos visavam ter a participação de um
grande número de fotógrafos e estudiosos da área, permitindo a unificação de uma variedade
de visões por meio de um evento agregador.
As coisas caminharam e o pioneiro colóquio ocorreu no ano de 1978 e, juntamente
com ele, tivemos a mostra fotográfica Hecho en Latinoamérica. Primera Muestra
Latinoamericana de Fotografia Contemporánea. Após o enorme sucesso da primeira edição,
em 1981, foi realizado o Segundo Colóquio, também acompanhado de uma exposição, a
Hecho en Latinoamérica. Segunda Muestra Latinoamericana de Fotografia Contemporánea.
Nas duas ocasiões o Brasil foi o segundo país, tanto com relação à quantidade de
trabalhos enviados, como pela qualidade. Além da troca de experiência internacional,
convocar os brasileiros foi fundamental também para organizar melhor a produção nacional,
até então dispersa. Isso se deve ao fato de que, até então, não havia sido feita nenhuma ação
desse tipo.
Nossa apresentação pretende expor alguns aspectos políticos dos referidos eventos, as
participações brasileiras e, finalmente, abordaremos este rico acervo de fotografias que se
formou em terras mexicanas.

145
CONSEJO MEXICANO DE FOTOGRAFIA, 1977, Restaurante Vips (Insurgentes). Ata de reunião. México
D.F., 17 de fevereiro de 1977, 3 páginas.

198
Iguais e diferentes: a busca de uma identidade regional
A segunda metade do século XX se caracterizou pela crescente polarização política na
América Latina, especialmente pela existência de governos ditatoriais apoiados pelos Estados
Unidos e, ao mesmo tempo, pela consolidação do regime socialista cubano. Além dos fatores
políticos, temos ainda como ponto comum os reflexos do encontro entre colonizadores e
nativos ameríndios e, em muitos dos países, a presença dos descendentes de escravos
africanos. Tal cenário, colocado num panorama de desigualdade social, fomenta essa nova
realidade, que deve ser entendida também por suas trocas e fusões culturais (CANCLINI,
1977).
Além disso, vemos o processo de urbanização dos países e o surgimento de grandes
cidades. A ideia de identidade regional se modifica, agregando, entre outros, elementos
ligados ao multiculturalismo. Assim, perante o neocolonialismo, resgatam-se realidades locais
como espaço de resistência. A partir de tal quadro o sentimento de latinidade ganha corpo. É
quando temos pertinentes modificações nas formas de pensar algumas questões sociais, como
as minorias étnicas, os camponeses e as populações mais pobres dos centros urbanos. Novas
falas, novos movimentos, delineiam a valorização de uma sociedade multicultural, tanto no
campo como nas cidades (CANCLINI, 2008). Assim, pensar a América Latina, desde então, é
reconhecer um espaço diverso, no qual podemos ver referências culturais distintas e que, ao
mesmo tempo, estão interligadas pelas resistências diante de processos de intervenção e de
imposições culturais.
A complexidade da formação de uma identidade da região passa por questões diversas
que, em geral, versam sobre as similaridades possíveis e as formas de resistência que podem
unir os países. É nesse ambiente que, no final dos anos 1970, emergem ações ideológicas
ligadas ao uso da fotografia como forma de construção de um discurso crítico. Idealiza-se o
Consejo Mexicano de Fotografia, associação que tem como uma das metas fazer um grande
evento sobre a fotografia latino-americana. Suas diretrizes buscam, claramente, organizar uma
abordagem que valorize o contato direto com a realidade, enfatizando questões sociais vividas
numa zona de desigualdades. Nas palavras do principal organizador desse projeto, Pedro
Meyer, essa relação entre o fotógrafo e o meio deveria ser direta, cabendo a ele constatar as

199
questões sociais e as inúmeras contradições de nossa sociedade. Diz ele: “Todo que nos rodea
son contradiciones, desde lo elemental hasta lo profundo y transcendente. Inmersos como
estamos en un ambiente de valores opuestos entre sí, hay quienes, para sobrevivir emocional y
moralmente, han aprendido a ‘ya no ve’” (MEYER, 1978, p. 8). Meyer convoca aqueles que
ainda estão comprometidos com um posicionamento político, atentos às questões sociais ao
produzir suas imagens.
Nos debates do Consejo Mexicano de Fotografia, a participação de outros personagens
também foi determinante, tais como Enrique Franco, Jorge Alberto Marique, José Luís Neyra,
Lázaro Blanco, Nacho López, Julieta Jimenez Cacho, Raquel Tibol e Rodrigo Moya. Se, num
primeiro momento, eles buscavam um encaminhamento mais imediato com relação à
produção mexicana (na qual cada um à sua maneira estava inserido), o desafio de construir
uma organização regional foi o passo seguinte. Porém, ainda imperava o desconhecimento
sobre como alcançá-los, além disso, todo processo dependia da articulação e construção de
contatos com pessoas de outros países. Assim, os organizadores tinham a intuição de que a
similaridade existia, sem, no entanto, conhecerem-na. O processo de organização do Primer
Coloquio Latinoamericano de Fotografia foi exaustivo, seus membros criaram alianças em
outros países no sentido de viabilizar sua realização. A parte da mostra de fotografias, sem
dúvida, foi a mais complexa, pois lhes obrigou a fazer uma divulgação da convocatória em
todas as nações.
No item da convocatória para a mostra fotográfica, denominado Princípios y Objetivos
del Consejo Mexicano de Fotografia146, evidenciam-se aspectos relativos ao discurso
fotográfico pretendido, como o anseio de que o fotógrafo tivesse conhecimento dos problemas
sociais de seu país e compreendesse seu momento histórico, fazendo, assim, uma arte
compromissada com as questões vividas. Notamos, portanto, a evidência do viés político
buscado pela organização, dando aos fotógrafos a atribuição de fomentar o debate por meio de
suas imagens. Nos termos de Bustus, aquele era um momento no qual se esperava dos
fotógrafos latinoamericanos um compromisso com os acontecimentos: “La fotografía asumió
una tarea de compromiso social pues existía la necesidad de generar un registro y testimonio,
146
CONSEJO MEXICANO DE FOTOGRAFÍA. ‘Convocatoria - Primero Coloquio Latinoamericano de
Fotografía’. 1978, Folheto, 6 páginas.

200
principalmente en una época en que los regimenes autoritarios del poder controlaban la
información” (BUSTUS, 2007, p. 58). Trata-se, portanto, da fotografia como uma ferramenta
importante para a comunicação sobre as questões vividas na América Latina.
A aproximação com outros países foi gradativa, depois dos primeiros contatos com
possíveis colaboradores, foram organizadas listas com fotógrafos que poderiam enviar
trabalhos, publicadas notas nos meios de comunicação, além da distribuição direta dos
folhetos. A resposta foi surpreendente, tanto do ponto de vista quantitativo, como qualitativo.
Coube depois aos organizadores adequar o material aos critérios estabelecidos, elegendo
aqueles que se aliavam ao conceito pretendido.

O Brasil nas mostras latino-americanas de fotografia


As primeiras articulações feitas visando à participação brasileira nos levam ao
professor Boris Kossoy147. Por meio dele, algumas conexões ocorreram e, dentro de suas
possibilidades, elas fomentaram o interesse de outros pelo evento. A leitura das
correspondências trocadas entre o Consejo Mexicano de Fotografia e Boris Kossoy revelam
algumas das pontes para a participação brasileira. Após o contato dos mexicanos, Boris inicia
uma articulação local. Tal convocação cobre mais de um segmento da fotografia e aponta para
a possibilidade de termos correntes diferentes dentro da produção fotográfica nacional, muitas
vezes desligada do caráter político proposto pelos organizadores. Em correspondências
trocadas entre Boris Kossoy e Pedro Meyer, isso se evidencia. Como em de 26 de setembro de
1977, quando Kossoy expressa uma dúvida quanto ao teor dos trabalhos almejados,
perguntando se “os fotógrafos amadores (foto-clubes) também serão admitidos?”. E justifica
sua dúvida, “Gostaria de ter essas informações e outras que julgar necessárias para
esclarecimento aos fotógrafos. Em seguida, então, lhes enviarei a lista”.148 Em 22 de
dezembro de 1977, Boris Kossoy encaminha nova correspondência, na qual informa que

147
Boris Kossoy é professor, pesquisador e fotógrafo. Formado em Arquitetura pela Universidade Mackenzie,
fez mestrado e doutorado pela História de Sociologia e Política de São Paulo. É professor livre-docente
aposentado pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Teve, desde os anos 1970,
inúmeras atuações no campo da fotografia brasileira, tendo publicado 13 livros.
148
KOSSOY, Boris. [Carta] 26 set. 1977, São Paulo SP [para] Pedro Meyer, México DF. 2f. Colocações
variadas sobre a palestra e a convocatória da exposição.

201
colocou um comunicado sobre o colóquio e a convocatória na revista brasileira Iris,
especializada em fotografia, “como parte do programa de divulgação que tenho efetuado no
Brasil”149.
Articulações desse tipo ocorreram, em menor escala, em outros países e, ao final,
considerando a colaboração de todos, foram enviadas para o primeiro evento 3098 fotografias
de 355 fotógrafos, representando 15 nações. Reunida entre os dias 2 e 5 de março de 1978150,
a comissão de seleção formada pelo colombiano Jaime Ardila e os mexicanos Fernando
Gamboa, Nacho López, Raquel Tibol e Pedro Meyer, selecionou 600 imagens enviadas por
160 fotógrafos. Dentre estes, 46151 eram brasileiros, aproximadamente 25% do total,
quantidade superada apenas pelo México, com 50 fotógrafos.152
Considerando que os próprios membros do Consejo Mexicano de Fotografia foram
aqueles que selecionaram as imagens, intuímos que eles buscaram eleger fotografias
convergentes com os critérios por eles elencados. Realizando um processo de curadoria da
série fotográfica, alinhando e potencializando os elementos centrais do projeto, criando uma
unidade coesa e orientando o público diante do material exposto.
Com relação aos brasileiros, para a Primera Muestra Latinoamericana de Fotografia,
foram selecionados: Abelardo Bernardino Alves Neto, Adriana de Queiros Mattoso, Alberto
Melo Viana, Ameris Manzini Paolini, Antonio Carlos Silva D’Avila, Antônio Luiz Benck
Vargas, Assis Valdir Hoffman, Ayrton de Magalhães, Bete Feijó, Boris Kossoy, Claudia
Andujar, Evandro Teixeira, Fernanda Maria de Castro Paula, Francisco Aragão, Geraldo de
Barros, German Lorca, Januário Garcia Filho, João Aristeu Urban, Leonid Streliaev,
Lourenço Delfim Martins, Luis Humberto Martins Pereira, Luiz Abreu, Luiz Carlos
Felizardo, Luiz Carlos Velho, Luiz Claudio Marigo, Manuel Antonio Espinosa Cabrera,

149
KOSSOY, Boris. [Carta] 22 de dezembro de 1977, São Paulo SP [para] Pedro Meyer, México DF. 2f.
Esclarecimentos sobre divulgação no Brasil do primeiro colóquio de fotografia.
150
CONSEJO MEXICANO DE FOTOGRAFIA, 1., 1978, México DF. Ata de Reunião - Comitê de seleção da
‘Primera Muestra de la Fotografia Latinoamericana Contemporánea’. México D.F., 3 de março de 1978.
151
Incluímos aqui o fotógrafo convidado Boris Kossoy, que não passou pela seleção dos jurados, mas cujas
fotografias fizeram parte de Hecho en América Latina. Primera Muestra Latinoamericana de Fotografia
Contemporánea.
152
CONSEJO MEXICANO DE FOTOGRAFIA. ‘Primera Muestra de la Fotografia Latinoamericana
Contemporánea’. México, DF, 1978. 1 folheto, 6 páginas.

202
Maria Beatriz Albuquerque, Mario Antonio Cabrera Espinosa, Mauri Tadeu Gregório
Granado, Mazda Pérez, Mendel Rabinovitch, Milton Montenegro, Ódilon de Araujo, Olnay
Kruse, Penna Prearo, Reginaldo Rosa Fernandes, Renato de Luna Pedrosa, Ricardo Leone
Chaves, Ricardo Nardelli Malta, Ricardo Van Steen, Rosa Jandira Gauditano, Rosa Maria
Alves Santos, Sebastião Barbosa da Silva, Vera Simonetti, Vicente Sampaio Neto e Wilson
Weber.
O número de representantes brasileiros foi extremamente significativo e aponta o
sucesso das estratégias de encaminhamento realizadas. Diante disso, nos parece fundamental
que, para entendermos a participação brasileira, seja necessário compreender aspectos da
difusão realizada, cuja pluralidade de ações proporcionou grande diversidade de propostas, já
que houve convocação por revistas, jornais, foto-clubes, além de contatos diretos feitos com
alguns dos principais nomes da fotografia brasileira na época. O resultado foi uma
representação bastante diversificada, mesmo que tal convocatória deixasse claro o perfil
pretendido pelos organizadores.
O primeiro exemplo da participação brasileira vem do fotojornalismo, segmento
bastante presente nas duas mostras. Vejamos nas figuras 1, 2 e 3, a série denominada “Pátria”,
de Antônio Luiz Benck Vargas, de Porto Alegre.

203
Figuras 1, 2 e 3

Fonte: Centro de la Imagen, México.

Realizada no ano de 1977 a sequência é um registro histórico da tensão política vivida


pelo país e evidencia tal situação. A narrativa mostra uma militante expondo a bandeira
nacional e, pouco depois, sendo presa pela polícia durante uma manifestação em Porto
Alegre.
Outro tema relevante abordado é a questão agrária, que podemos ver nas imagens 4 e
5, de uma série documental sobre trabalhadores diaristas, conhecidos como boias frias.
Desenvolvida por João Aristeu Urban, realizada entre os anos de 1977 e 1980, tal projeto
lança luz sobre aspectos da realidade dos trabalhadores rurais no Brasil, indivíduos que na
grande maioria não foram alfabetizados, que não são proprietários da terra e apenas vendem
sua força de trabalho. Na primeira imagem vemos um grupo, ainda na escuridão da noite,
seguindo em busca dos agentes responsáveis pelos contratos diários de trabalho. Na segunda
imagem os trabalhadores já num ponto da cidade no qual esperam a proposta.

Figuras 4 e 5

Fonte: Centro de la Imagen, México.

204
A seguir, nas imagens 6, 7, 8 e 9, vemos algumas das fotografias da série “Travestis”,
feitas no centro de São Paulo por Ayrton de Magalhães. Trata-se de um trabalho documental
pioneiro com relação ao tema. Para fazê-lo, Ayrton Magalhães aproximou-se de um grupo de
travestis que viviam no entorno do Hotel Hilton, ganhou intimidade e pode mostrar aspectos
até então desconhecidos deste grupo social.

Figuras 6, 7, 8 e 9

Fonte: Centro de la Imagen, México.

Nas fotografias 10, 11, 12 e 13, vemos a série “Uma visão dos Yanomamis” de
Claudia Andujar, realizada em Roraima, entre 1976 e 1977. Atuando como fotojornalista pela
revista Realidade, Andujar foi para a região amazônica onde, ao encontrar tal grupo étnico,
enveredou outro caminho, vindo a se dedicar por décadas a causa dos Yanomamis.
Tais trabalhos, ao tocarem em temas centrais da realidade social do Brasil, indicam um
posicionamento de nossa fotografia diante do chamamento crítico colocado pelos
organizadores.

205
Figuras 10, 11, 12 e 13

Fonte: Centro de la Imagen, México

Além dessas obras mais documentais, outros segmentos enviaram imagens. Como os
trabalhos de German Lorca e Geraldo de Barros, dois expoentes da fotografia moderna
brasileira. A presença deles dentre os participantes está diretamente ligada às articulações
feitas por Boris Kossoy, que promoveu uma convocatória abrangente e, apesar da linha
proposta pelos organizadores, não ficou restrito aos trabalhos de crítica social. Nas figuras
14, 15, 16 e 17, de German Lorca, “Aeroporto – Embarque”; “Galinhas”; “Janelas –
Homenagem a Mondrian” e “Formas”. Todas produzidas na década de 1960. São estudos do
fotoclubismo que colocam novas possibilidades de uso da fotografia, questionando questões
de enquadramento, congelamento dos elementos, dando importância as linhas, aos contrastes
e as texturas dos elementos.

206
Figuras 14, 15 e 16

Fonte: Centro de la Imagen, México.

Nas figuras 17, 18 e 19, vemos os trabalhos de Geraldo de Barros, que investiga os
limites da fotografia enquanto processo, manipulando negativos, fazendo múltiplas
exposições, montagens, sobreposições e recortes.

Figuras 17, 18 e 19

Fonte: Centro de la Imagen, México.

No sentido horário, “Homenage a Klee”, 1948; “Abstração com portas”, 1950 e


“Rotação de Planos”, 1950.
Em 1980 é divulgada a convocatória referente à Hecho en Latinoamérica. Segunda
Muestra Latinoamericana de Fotografia Contemporánea, visando à estruturação da exposição
de 1981. Buscando fazer uma ponte entre as duas mostras, a convocatória difunde a seguinte
informação sobre o evento anterior.

La Primera Muestra, organizada por el CMF en 1978, rebasó ampliamente


las más optimistas expectativas, tanto por el número de autores que
participaron como por la calidad de las obras enviadas. Por medio de esa
exposición se tuvo la oportunidad de conecer las características del quehacer
fotográfico en ese momento, se conoció qué autores estaban haciendo qué
tipo de imágenes y en cuales países. Por primera vez, se pudo confirmar de
uma manera específica la importância de la fotografia latinoamericana. En

207
resumen, no sólo nos dimos a conocer sino que además nos percatamos
claramente de quiénes somos153.

Desta feita, os laços com o Brasil já estavam construídos e as primeiras comunicações


novamente se iniciam por meio de Boris Kossoy, posteriormente com o auxílio de Luis
Humberto Marins Pereira e Estefania Bril.
Com relação aos procedimentos de seleção, o documento Critérios y Objetivos para el
Comité de Selección coloca algumas diretrizes a serem seguidas, tais como escolher
fotografias “[...] que acusen una identidad propria del fotógrafo latinoamericano, ya sea por su
temática, la solidés de su argumento visual [...]”154. Além disso, o documento indica o limite
máximo de fotografias a serem selecionadas, 600 obras, a priorização de séries completas e a
exigência de um texto, no qual o participante deveria escrever sobre suas motivações ao
desenvolver tal trabalho, sendo esta parte do critério de seleção.
A comissão de seleção foi formada por María Eugenia Haya, de Cuba, Héctos Méndez
Caratini, de Porto Rico, Néstor García Canclini, Argentino radicado no México, Max Kozloff,
dos Estados Unidos, e os mexicanos Antonio Rodríguez e Pablo Ortiz Monasterio. No total
foram recebidas 2118 fotografias, de 17 países. Foram selecionadas, finalmente, 584 imagens
de 154 autores155. Assim como na primeira mostra, o Brasil foi o segundo país em quantidade
de participantes, depois do México. Segundo o comitê,

Los participantes en esta II Muestra de Fotografia Latinoamericana


Contemporánea captaron y recrearon no solo el sufrimiento, despojo,
angustia, desesperación y toda la problemática social del hombre en la
soiedad latinoamericana, sino sus sentimientos y fraternidad em el seno da la
familia, em el trabajo e en otras formas de convivencia humana [...] Ocupán
también un sitio importante en la obra que este Comité de Selección
examino, las manifestaciones de la herencia cultural de los pueblos de
América Latina que afírman su identidad nacional y su propria personalidad,
en formas de vida, costumbres, festividades, ingenio creativo, humor y actud

153
CONSEJO MEXICANO DE FOTOGRAFÍA. Convocatória - Coloquio Latinoamericano de Fotografia.
México, DF, 1978. Folheto, 6 páginas.
154
CONSEJO MEXICANO DE FOTOGRAFIA. Critérios y Objetivos para el Comité de Selección. México DF,
1980, 3 p., p. 1.
155
CONSEJO MEXICANO DE FOTOGRAFÍA. Hecho en Latinomérica II. Segundo Coloquio Latinoamericano
de Fotografía. Palacio de Bellas Artes. Ciudad de México. Abril-Mayo 1981. Consejo Mexicano de Fotografía,
A.C. 1982, p. 138.

208
ante lós fenômenos existencialistas de la vida y de la muerte. Este Comité de
Selección señala también, con interés, la existência entre lós fotógrafos de
América Latina, de uma forma de expresión clara, enérgica, vehemente, más
propicia al juego de los contrastes que el virtuosismo formal, reveladora de
uma personalidad bien definida156.

No mesmo sentido, a primeira crítica publicada sobre o material veio pouco após a
seleção e antes mesmo da exposição, quando Ambra Polidori, do periódico Uno Más Uno,
salientou a capacidade de síntese daquilo que é verdadeiramente característico da sociedade
latino-americana.

El comité señaló que en su totalidad la obra seleccionada ofrece una imagen


vasta y compleja de la sociedad latinoamericana, de la forma de vida de sus
pueblos, del paisage que les rodea, de las condiciones de trabajo, situación
política, violencia, arbitrariedades y atentados contra la vida física de los
ciudadanos, así como la lucha de esos mismos pueblos por sus derechos
cívicos, libertad e independência (POLIDORI, 1980, p. 1).

Polidori também aponta que a exposição tem amplo caráter de denúncia social,
estando dentro dos parâmetros ideológicos buscados pelos organizadores.

En esta nueva fotografia latinoamericana hay cierta unificación. Las


imágenes retratadas hablan de una presencia: la historia de una convulción,
de un fuerte conflicto de clases. Es um material que revela la violencia, más
pasión, la presencia de lo trágico (como el asesinato) rodeado de
indiferencia, quizá porque los medios masivos de comunicación lo han
hecho pan de todos los dias: pero por medio de la imagen captada y de las
representaciones metafóricas del horror, se rescata la importancia de esta
violencia em la que estamos inmersos (POLIDORI, 1980, p. 1).

Por fim, foram classificados 33 brasileiros: Ana Jannini, Antonio Carlos Dávila,
Antonio Saggese, Ayrton de Magalhães, Beatriz do Carmo Dominguez, Bernardo Alps,
Carlos Alberto Vieira, Carlos Henrique de Souto, Carlos Terrana, Dulce Araújo, Ed Viggiani,
Eduardo Simões, Euvaldo Macedo, Genaro Antonio Joner, Hilton de Souza Ribeiro, Jaqueline
Joner, João Aristeu Urban, José Roberto Cecato, Juca Martins, Lino Stefano de Nes, Luis
156
CONSEJO MEXICANO DE FOTOGRAFÍA. Hecho en Latinomérica II. Segundo Coloquio Latinoamericano
de Fotografía. Palacio de Bellas Artes. Ciudad de México. Abril-Mayo 1981. Consejo Mexicano de Fotografía,
A.C. 1982, p. 138.

209
Carlos Felizardo, Luiz Abreu, Mario Espinosa, Maurício Sominetti, Milton Guran, Nair
Benedicto, Paulo Vieira Leite, Pedro Vasquez, Renata Falzoni, Ricardo Nardelli Malta, Rino
Marconi, Rolnan Pimenta e Vicente Sampaio Neto.
Finalmente, é aberta no dia 24 de abril de 1981 a segunda versão da exposição Hecho
en Latinoamérica. Muestra Latinoamericana de Fotografia Contemporánea, desta feita, no
Palácio de Bellas Artes, no qual ficou até o dia 31 de maio de 1981. A participação brasileira
nessa segunda edição contou com uma grande quantidade de fotojornalistas e, por meio de
tais trabalhos, a ênfase nos problemas sociais do país esteve muito mais presente.

Uma contribuição importante para a segunda mostra foi o trabalho etnográfico de


Milton Guran, fotografias 20 e 21. Realizadas na Aldeia Kuikuro no Parque Nacional do
Xingu (Mato Grosso, 1978), a série mostra um ritual de iniciação de uma jovem que, segundo
sua cultura, transcende por meio dele para a idade adulta.

Figuras 20 e 21

Fonte: Centro de la Imagen, México.

Alguns personagens brasileiros foram mostrados por meio de personagens, como os


enviados por Antonio José Saggese, com uma série de retratos, figuras 22, 23 e 24.
Denominada “Desconhecidos íntimos” (1980), são apresentados personagens anônimos e
pobres, que se alinham com os anseios da proposta da mostra.

210
Figuras 22, 23 e 24

Fonte: Centro de la Imagen, México.

Figuras 25, 26 e 27

Fonte: Centro de la Imagen, México.

Outra participação com retratos veio de Hilton de Souza Ribeiro, que enviou uma
interessante série que mostra aspectos relacionados às posições sociais. Legendando por meio
dos títulos das fotografias a função exercida por cada um dos seus retratados, vemos, pela
ordem crescente, “Diretor Financeiro”; “Faxineiras” e “Secretárias”, todas de 1980.
Questões políticas ligadas à ditadura militar reaparece na série “Confronto” (Figuras
28, 29 e 30), do fotojornalista Eduardo Simões. Nela vemos a greve dos metalúrgicos ocorrida
em São Bernardo do Campo, São Paulo, no ano de 1980. Na sequencia temos uma narrativa
que nos guia entre o início de um conflito, a ação da polícia e, finalmente, a detenção dos
operários.

211
Figuras 28, 29 e 30

Fonte: Centro de la Imagen, México.

O tema da repressão policial também foi apresentado pelo fotojornalista Juca


Martins. Realizado no ano de 1980, em São Paulo (Figuras 31, 32 e 33), a série apresenta a
ação violenta da polícia paulistana reprimindo uma travesti no centro de São Paulo. Ao que
tudo indica o fotógrafo estava acompanhando a ação policial e marcou, de forma muito clara,
o andamento do acontecimento. Terminando com uma imagem no qual a presa é apresentada
como troféu.

Figuras 31, 32 e 33

Fonte: Centro de la Imagen, México.

A fotojornalista Nair Benedicto enviou para a segunda mostra a série documental “A


questão do menor” (figuras 34, 35 e 36), realizada entre jovens infratores internos em São
Paulo, no ano de 1980. Tais imagens indicam grande proximidade da fotógrafa para com os
indivíduos e penetram nesse universo pouco conhecido, expondo de forma muito clara tal
realidade.

212
Figuras 34, 35 e 36

Fonte: Centro de la Imagen, México.

Realizadas pelo fotojornalista Paulo Leite, então fotógrafo do jornal O Estado de São
Paulo, as fotografias 37, 38 e 39, foram enviadas sem título e data de realização, mas podem
ser identificadas como sendo feitas em São Paulo pelos indícios que contém, como o
calçamento típico da cidade. Na série vemos o trabalho de recolhimento forçado de moradores
de rua, ação comum nos dias mais frios do inverno. Na sequência é possível constatar que tal
abordagem é feita com o auxílio da polícia.

Figuras 37, 38 e 39

Fonte: Centro de la Imagen, México.

Considerações finais
O conjunto de fotografias aqui apresentadas enfatizou aspectos da potencialidade do
acervo deixado pelos brasileiros participantes das duas mostras latino-americanas realizadas
no México157. No âmbito geral, tal material se articula com os aspectos políticos buscados
pelos organizadores, mesmo que, na primeira participação, seja notória a presença de uma
diversidade de estilos. Sendo assim, o Brasil tinha a oferecer aquilo que era esperado como a

157
No total, entre fotografias expostas e não classificadas paras as exposições, formou-se um acervo de 1230 de
153 brasileiros. Tal material encontra-se no Centro de La Imagen, na Cidade do México.

213
“verdadeira” fotografia latino-americana, preocupada com nossas questões sociais, como
esperavam os organizadores.
Outro fato relevante a ser considerado é a qualidade da participação brasileira, que
permitiu a formação de um rico acervo em terras mexicanas. Isso foi possível principalmente
pela qualidade da articulação feita no Brasil, seguida da preocupação do Consejo Mexicano
de Fotografia em formar uma coleção com o material enviado pelos participantes e a posterior
doação ao Centro de la Imagen. Desta forma, acreditamos que o projeto de construção de um
conjunto crítico da fotografia latino-americana foi alcançado de forma muito satisfatória pelos
organizadores e participantes. Além disso, foi um evento responsável pela aproximação entre
produtores de países distintos, que possibilitou posteriormente outros encontros.
Com relação ao Brasil, é notório que, num primeiro momento, o chamamento foi em
direção à diversidade, congregando propostas com linhas distintas, dando um conjunto
heterogêneo. Porém, com uma análise comparativa dos dois colóquios, vislumbrando aspetos
que podem relacioná-los às articulações políticas do evento, vemos as adequações dos
brasileiros ao mesmo, indicam um alinhamento discursivo claro, que faz com que tenhamos
maior presença de fotojornalistas e fotógrafos documentais no segundo encontro.
Um panorama comparativo entre as duas participações brasileiras nos indica um
alinhamento ao viés ideológico em questão. Trata-se, porém, de um encaminhamento da
convocatória em nosso país, já que estávamos produzindo obras de linhas diversas. Isto posto,
devemos considerar que, com relação ao papel político dos fotógrafos e diante do projeto que
foi idealizado pelo Consejo Mexicano de Fotografia, houve um avanço significativo em nossa
participação, formando um acervo relevante que demarcou a produção fotográfica brasileira
diante de uma realidade maior, que foi entender os processos históricos e as implicações
sociais vividas pelos países latino-americanos.

Referências bibliográficas
BUSTUS, Irene Adriana Barajas. Un discurso latinoamericano en la fotografía de los
setenta en México. Ciudad de México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2007, p.
58.

214
CANCLINI, Néstor García. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da
modernidade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006.

CANCLINI, Néstor García. Latino-americanos à procura de um lugar neste século. São


Paulo: Iluminuras, 2008.

CONSEJO MEXICANO DE FOTOGRAFIA, 1., 1978, México DF. Ata de Reunião -


Comitê de seleção da ‘Primera Muestra de la Fotografia Latinoamericana
Contemporánea’. México D.F., 3 de março de 1978, 1 página.

CONSEJO MEXICANO DE FOTOGRAFIA, 1977, Restaurante Vips (Insurgentes). Ata de


reunião. México D.F., 17 de fevereiro de 1977, 3 páginas.

CONSEJO MEXICANO DE FOTOGRAFIA. ‘Primera Muestra de la Fotografia


Latinoamericana Contemporánea’. México, DF, 1978. 1 folheto, 6 páginas.

CONSEJO MEXICANO DE FOTOGRAFÍA. Convocatória - Coloquio Latinoamericano de


Fotografia. México, DF, 1978. Folheto, 6 páginas.

CONSEJO MEXICANO DE FOTOGRAFIA. Critérios y Objetivos para el Comité de


Selección. México DF, 1980, 3 p. p. 1.

CONSEJO MEXICANO DE FOTOGRAFÍA. Hecho en Latinomérica II. Segundo Coloquio


Latinoamericano de Fotografía. Palacio de Bellas Artes. Ciudad de México. Abril-Mayo
1981. Consejo Mexicano de Fotografía, A.C. 1982, p. 138.

KOSSOY, Boris. [Carta] 22 de dezembro de 1977, São Paulo SP [para] Pedro Meyer,
México DF. 2f. Esclarecimentos sobre divulgação no Brasil do primeiro colóquio de
fotografia.

KOSSOY, Boris. [Carta] 26 set. 1977, São Paulo SP [para] Pedro Meyer, México DF. 2f.
Colocações variadas sobre a palestra e a convocatória da exposição.

MEYER, Pedro. “Introducción”. In: CONSEJO MEXICANO DE FOTOGRAFÍA. Memorias


del Primer Coloquio Latinoamericano de Fotografía. Ciudad de México: Instituto
Nacional de Bellas Artes, 1978, p. 8.

POLIDORI, Ambra. Estilo próprio em la fotografia latinoamericana. Uno Más Uno, 29 de


noviembre de 1980.

215
MUSEU PAULISTA: CONCEITOS E REFERÊNCIAS PARA A
DEFINIÇÃO DE UM MUSEU HISTÓRICO E DE UMA POLÍTICA DE
AQUISIÇÃO DE ACERVO

Leonardo da Silva Vieira*


*Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE – USP)

Resumo: O Museu Paulista da USP, como boa parte das primeiras instituições museológicas
nacionais, foi criado como uma instituição voltada ao campo das ciências naturais. Após sofrer
sucessivos desmembramentos em seu acervo desde meados da década de 1920 o museu tornou-se
exclusivamente dedicado ao campo da História. A Resolução GR-3.560 de 11/08/1989, que
determinou a transferência do acervo, pessoal técnico científico e projetos de natureza antropológica
para o novo Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, constitui um dos pontos cruciais deste
processo.
Tendo como ponto de partida a resolução citada acima, a instituição, sob a gestão do professor
Ulpiano Bezerra Toledo de Meneses, deu início à elaboração de seu Plano Diretor. Tal documento,
instituído em 1990, apresenta não apenas a redefinição da área de atuação da instituição, mas também
uma série de conceitos e diretrizes que serviriam como base para a atuação futura do museu.
Este trabalho pretende apresentar pontos essenciais do Plano Diretor do MP - tais como a meta geral e
o campo de atuação propostos para a instituição - e as diretrizes referentes à política científica e de
acervo do museu. Pretende-se também sublinhar as referências intelectuais implícitas no documento
em questão. Cabe lembrar que as reflexões apresentadas neste trabalho são fruto do desenvolvimento
da pesquisa de mestrado intitulada Análise do processo de musealização do Museu Paulista sob a
perspectiva da democratização do direito à memória. Tal pesquisa está sendo desenvolvida no âmbito
do Programa de Pós-graduação Interunidades em Museologia da USP – PPGMus-USP.

Palavras-chave: acervo; gestão museológica; plano diretor; musealização

216
Abstract: The Paulista Museum of USP, like many of the first national museums, was created as an
institution focused on the field of natural sciences. After suffering successive dismemberments in its
collection since the mid-1920s the museum became exclusively dedicated to the field of history. The
Resolution GR-3,560 of August 11, 1989, which determined the transfer of the collection, technical
scientific personnel and projects of anthropological nature to the new Museum of Archeology and
Ethnology of USP, is one of the crucial points of this process.
Starting from the resolution mentioned above, the institution, under the management of Professor
Ulpiano Bezerra Toledo de Meneses, began the preparation of its Master Plan. This document,
instituted in 1990, presents not only the redefinition of the institution's area of activity, but also a
series of concepts and guidelines that would serve as a basis for the future performance of the
museum.
This paper intends to present essential points of the Master Plan of the MP - such as the general goal
and field of action proposed for the institution - and the guidelines regarding the museum's scientific
and collection policy. It is also intended to underline the intellectual references implicit in the
document in question. It should be remembered that the reflections presented in this work are the
result of the development of the master's research entitled Analysis of the process of musealization of
the Paulista Museum under the perspective of democratization of the right to memory. Such research
is being developed within the scope of the Post-Graduation Program in Museology of USP - PPGMus-
USP.

Key-words: collection; museological management; master plan; musealization

217
A gestão do professor Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses durante os anos de 1989 e
1994 no Museu Paulista da USP foi decisiva para a atual feição que a instituição possui nos
dias atuais. Com a implementação do Plano Diretor (PD) do museu, em 1990, a instituição
firmou-se definitivamente como um museu estritamente histórico, alinhado a inúmeras
discussões contemporâneas que permeavam os debates acerca dos museus e da disciplina da
história.
Para as professoras Heloisa Barbuy e Sheila Walbe Ornstein, o Museu Paulista em
1990 sofreu uma “reorganização conceitual e uma racionalização” que permitiram um
significativo desenvolvimento acadêmico e institucional, além de uma maior inserção da
instituição em contextos acadêmicos nacionais e internacionais (BARBUY; ORNSTEIN,
2015, p. 263). Dentre as tendências nacionais e internacionais nas quais o Museu Paulista
mostrava-se em consonância destaco a profissionalização do campo museológico, a busca
por uma democratização dos museus e a valorização, por boa parte dos historiadores, da
noção de processo histórico e de uma história coletiva.

O Plano Diretor abrange aspectos fundamentais da prática museológica: meta e


campo de atuação da instituição, infraestrutura predial, formas de aquisição e de tratamento
do acervo, e formas de socialização, tanto do acervo em si quanto do conhecimento
produzido a partir dele.

O documento apresenta também uma série de diretrizes, estratégias e ações a serem


empreendidas nos anos seguintes, demonstrando uma ânsia por uma racionalização do
trabalho institucional. O diretor, ao empreender este tipo de postura, vai ao encontro da
tendência de profissionalização do campo museológico incentivada pelo Conselho
Internacional de Museus (ICOM).

A partir da criação do ICOM em 1946, foram efetuados inúmeros esforços para uma
maior profissionalização e uniformização das práticas das instituições museológicas158.

158
É importante apontarmos que o Brasil, por meio da atuação do embaixador Paulo Carneiro – delegado do
país à UNESCO – estabeleceu vínculos estreitos com o ICOM desde sua constituição: o país foi um dos
membros fundadores do Conselho, sendo representado pelo professor Oswaldo Teixeira, então diretor do Museu
de Belas Artes do Rio de Janeiro. Em 1972, foi criada a Associação de Membros do ICOM (AMICOM-BR), que
representava uma nova força de trabalho e tinha como objetivo a expansão e divulgação dos novos conceitos

218
Dentre os marcos deste processo podemos citar, de acordo com a museóloga Marília Xavier
Cury, a realização de eventos científicos visando a discussão de temas essenciais para a área
e a edição de documentos referenciais (CURY, 2005, p. 45).

As normativas oficiais do conselho, o Ethics of Acquisition (EA) e a primeira versão


do Code of Professional Ethics (CPE), foram publicados, respectivamente, em 1970 e 1986.
Estes dois documentos mostram-se como dois dos mecanismos do Conselho Internacional de
Museus para estabelecer diretrizes e parâmetros para a atuação das instituições e dos
profissionais do campo dos museus. Tais documentos são importantes também por
divulgarem definições e conceitos elaborados no âmbito dos comitês do ICOM, tais como o
ICOFOM.

O Ethics of Acquisition foi um dos primeiros documentos normativos publicado pelo


ICOM, e serviu como preparatório para o Code of Professional Ethics de 1986. O documento
apresenta as resoluções adotadas pelo Conselho e que foram estabelecidas através de um
encontro de especialistas vinculados em abril de 1970. Este encontro pretendia discutir os
problemas de origem ética na aquisição de acervo em museus.

O documento dará grande ênfase à importância da documentação de origem do item a


ser adquirido pelos museus. Isto se deve a um esforço do ICOM, em conjunto com outros
organismos internacionais159, para evitar o trafico ilícito internacional; a documentação do
item também é colocada como fundamental para o entendimento dos significados culturais e
científicos do objeto. Para além destes dois aspectos o documento versa também sobre a

estabelecidos durante a IX Conferência Geral do ICOM, em Grenoble. A AMICOM-BR recebe o apoio de


muitos profissionais e tem seu trabalho difundido por todo o país, principalmente por meio dos vários cursos
oferecidos pela organização.
159
É fundamental comentarmos que o ICOM não está sozinho no empenho por formas de aquisição transparente
e legais. No ano de 1970 ocorreu a “Convention on the Means of Prohibiting and Preventing the Illicit Import,
Export and Transfer of Ownership of Cultural Property”, em Paris, na qual a UNESCO estabelece uma série de
direcionamentos a serem seguidos pelos Estados membros. Patrick J. O’Keefe, ao comentar a postura do ICOM
com relação à Convenção, afirma: “ICOM had from its very first meeting in Mexico City in 1947 expressed its
concern with ‘illegal excavation and exportation’. It had carefully followed the debate within UNESCO and, in
1970, began an international campaign on the professional level for ethics of museum acquisition. The 1986
code of ethics thus should be seen as the culmination of a long process of debate and study of desirable practice.”
(O’KEEFE, 1998, p. 21-22).

219
importância de uma política de aquisição de acervo clara e formalmente estabelecida e
exemplos deste tipo de documento de algumas instituições museológicas.

Com relação ao Code of Professional Ethics, trata-se de um documento, adotado na


XVº Conferência Geral do ICOM em 1986, que contém algumas definições acerca do que
seria museu, por exemplo, e algumas proposições gerais acerca da ética profissional dos
trabalhadores deste campo.

O documento não se propõe a ser um conjunto de regras a ser seguido e sim uma
referência para a conduta dos profissionais e das instituições com relação a temas como a
definição formal da missão da instituição, sua política educacional, financeira, de pessoal e
de acervo. Com relação ao primeiro ponto citado, o documento estabelece que cada museu
deverá ter um estatuto escrito que defina seus propósitos e seus objetivos, sua política, sua
natureza não-lucrativa, e que esteja de acordo com a legislação nacional e internacional
(ICOM, 1986, p.17).

Como podemos verificar a partir da leitura do Plano Diretor do Museu Paulista,


podemos afirmar que este documento segue as recomendações destas duas normativas
citadas, afinal explicita a missão institucional do museu, seu campo de atuação, uma série de
diretrizes – referentes à política científica, cultural, museológica, de acervo, educacional e de
pessoal técnico-científico da instituição - e de estratégias de curto e médio prazo; o
documento também traz em seu bojo uma preocupação em definir conceitos-chave para a
atuação da instituição – o que nos permite também um paralelo com o trabalho de definição
conceitual realizado nos órgãos internacionais.

A estrutura do documento, portanto, evidencia a busca por uma maior racionalização


das práticas institucionais a partir do momento em que define parâmetros e condutas a serem
seguidas.

Conceitos-base do Plano Diretor


O caráter inovador do Plano Diretor do Museu Paulista deve-se tanto a seu aspecto
formal quanto ao seu conteúdo intelectual. Com relação a este último, podemos perceber um
esforço no sentido de estabelecer conceitos-base para a atuação institucional, principalmente

220
no que tange à meta da instituição, ao seu campo de atuação e às políticas educativas e de
acervo.

Tendo como ponto de partida a Resolução GR-3.560 de 1989, que determinava a


transferência do acervo, pessoal técnico-científico e seus respectivos projetos de natureza
antropológica, para o novo Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, o Museu Paulista
teve sua meta geral, seu campo de atuação, sua política científica e de acervo, entre outros,
redefinidos, dando continuidade ao processo de especialização iniciado na instituição no
começo do século XX.

A Meta Geral proposta pelo Plano Diretor estabelece que todos os esforços devem
convergir na transformação do MP em um museu-histórico-universitário, condizente a uma
prática cientifica e cultural contemporânea (MENESES, 1990, p. 1). Portanto, o que está
sendo proposto no PD não é apenas a especialização da instituição em um ramo do
conhecimento científico – a História – e sim a atualização de conceitos-base para o trabalho
desenvolvido no MP, como o conceito de museu, de museu histórico e museu universitário.

Ao conceituar o que seria museu, o PD coloca que “o que deve caracterizá-lo é a


referência obrigatória e permanente a um acervo de coisas materiais, no desenvolvimento das
responsabilidades da curadoria”, sendo esta entendida como um ciclo de atividades
compreendendo a formação e ampliação permanente das coleções, sua conservação física,
seu estudo e documentação, bem como a socialização, tanto do acervo quanto do
conhecimento gerado pela instituição (Idem, p. 1).

É interessante acentuarmos que o PD coloca que mesmo o museu sendo um espaço


de “fruição estética, de criação lúdica, de exercício da afetividade. Todas essas funções [...]
não justificam, por si sós, a existência desse centro especial de documentação (Idem, p. 3)”.
O conhecimento, e, portanto, a pesquisa, é que constitui a pedra de toque de uma instituição
museológica, e a pesquisa apenas concebida nos quadros da curadoria.

Continuando a definição de conceitos-base para a proposta da meta geral, o PD


define que, enquanto museu histórico, “seus compromissos fundamentais [...] devem dizer a
respeito de questões históricas (isto é, relativas ao fenômeno da mudança), e especificamente

221
aquelas que a curadoria puder cobrir, e como óbvio, centradas na sociedade brasileira (e seu
segmento paulista)” (Idem, p. 2).

Ao colocar que a atuação de museus históricos deve estar compromissada com o


trabalho de questões históricas, o MP procura se afastar de uma historiografia centrada em
eventos pontuais e figuras de exceção – marcas, de acordo com o próprio documento, da
instituição ate àquele momento.

Com relação à ideia de museu universitário, o documento coloca que a instituição


deve se atentar a duas questões principais: as responsabilidades gerais da pesquisa, ensino e
prestação de serviços à comunidade por intermédio da curadoria e à sua função de integração
interna da universidade e desta com a sociedade à qual serve. Este último ponto derivaria da
“multiplicidade de fruições e leituras” que o patrimônio cultural sob a guarda do Museu
Paulista permitiria.

Como dito anteriormente, a redefinição pelo qual passou o Museu Paulista a partir do
Plano Diretor de 1990 atingiu também o campo de atuação da instituição. Mais do que uma
mudança, o que ocorreu nesse âmbito foi uma explicitação conceitual da importância do
estudo da cultura material para o entendimento das estruturas, do funcionamento e das
mudanças de uma sociedade. Dessa forma, o PD estabelece que o museu é uma instituição
privilegiada para a análise de questões fundamentais que escapam às instituições ordinárias
de pesquisa, ou seja, as questões relacionadas ao campo da cultura material, entendida como
o conjunto de sistemas físicos de produção e reprodução social (Idem, p. 2).

Prosseguindo na definição do campo de atuação da instituição, o documento define


como prioritários, por serem estratégicos e “cobrirem aspectos cruciais da organização
material da vida social”, os seguintes segmentos: I. Quotidiano e sociedade (papéis sexuais,
etários e enculturação), II. Universo do trabalho (pré- e proto-industrial) e III. Imaginário (os
vetores materiais do sentido) (Idem, p. 3).

Estes segmentos constituem, na realidade, as três linhas de pesquisa instituídas pelo


PD para o Museu Paulista para curto e médio prazo. Estas linhas devem, a partir de então,

222
funcionar como garantias de que a instituição conseguirá aprofundar os conhecimentos nos
tópicos aos quais o MP deve ser referência obrigatória.

O estabelecimento das linhas de pesquisa será importante também para a definição da


política de aquisição de acervo da instituição. Sendo a aquisição de acervo uma atividade
entendida como parte do processo curatorial, e a pesquisa sendo concebida apenas nos
quadros desta mesma curadoria, o PD irá atrelar ambas as atividades. Vejamos o que
estabelece o documento com relação à política de acervo:

A especificidade do museu deriva do acervo, mas a especificidade do acervo


deve derivar não de qualquer propósito taxonômico, mas de uma
determinada problemática científica (no caso, histórica), que tal acervo
permite cobrir. Por esta razão, o acervo tem que ter organicidade, coerência e
amplitude e incluir, não “objetos históricos”, obrigatoriamente marcados por
atributos particulares, mas quaisquer suportes materiais de informação
pertinentes aos problemas históricos em causa. Daí porque a ampliação do
acervo do Museu Paulista deverá ser desenvolvida apenas nos quadros da
pesquisa em torno dos três eixos propostos (item 3) e terá que assumir
postura ativa, quer na coleta de campo, quer na indução de doações (com a
caracterização explícita das categorias de interesses institucional) (Idem, p.
3-4).

O Plano Diretor coloca que “o Museu Paulista tem sido um repositório de “objetos
históricos” (duplicados por um arquivo de “documentos históricos”), coletados ou recebidos
segundo uma perspectiva positivística da História, que privilegiava eventos e figuras de
exceção (além do valor estético)” (Idem, p. 1). A nova política de acervo surge, portanto,
com o intuito de transformar a faceta do acervo institucional.

Nova História e a Nova Museologia


Como foi demonstrado até aqui, o Museu Paulista passou por um profundo
redirecionamento no começo da década de 1990. As professoras Heloisa Barbuy e Sheila
Walbe Ornstein afirmam que um dos fatores que levou a esse processo foi o
desenvolvimento metodológico e temático da área de história, “que caminhou para
tendências que privilegiaram novos aspectos, novos objetos de estudo e novas fontes
documentais” (BARBUY; ORNSTEIN, 2015, p. 263). Estas tendências ficaram conhecidas

223
na historiografia como constitutivas do movimento da Nova História, comumente associado
à chamada École des Annales, mas que se configura autonomamente como uma geração com
enfoques e métodos específicos, consolidada entre os anos 1960 e 1980.

Fundada pelos historiadores Lucien Febvre e Marc Bloch, em 1929, a revista Annales
d’histoire économique et sociale agrupou os principais agentes do que seria posteriormente
chamado Escola dos Annales. Seus fundadores idealizaram a revista para que ela constituísse
a porta-voz “em favor de uma abordagem nova e interdisciplinar da história” (BURKE,
1992, p. 24), contrapondo-se, dessa forma, ao chamado paradigma tradicional da história.

Peter Burke coloca que o movimento iniciado por Lucien Febvre e Marc Bloch “está
unido apenas naquilo a que se opõe” (BURKE, 1992, p. 2), ou seja, às formas tradicionais de
escrita da história. Estas seriam caracterizadas essencialmente pelo entendimento da história-
disciplina enquanto uma narrativa objetiva dos acontecimentos políticos, produzida a partir
da visão dos grandes homens e baseada apenas em documentos escritos. A Nova História,
portanto, proporá uma ampliação do horizonte historiográfico em várias frentes, sobretudo a
partir de fins da década de 1970.

Primeiramente, o movimento defenderá a necessidade de que não apenas a atividade


política seja objeto da história e sim toda atividade humana. É a partir desta concepção de
história que o movimento será também conhecido como história total. Dessa forma, os
historiadores em torno da revista Annales se dedicarão com especial ênfase a temas variados,
tais como a história econômica, demográfica, social e também política, com vistas a
propiciar um entendimento global da sociedade.

Com o interesse dos historiadores se deslocando para um leque cada vez maior de
temas, a interdisciplinaridade surgia como uma necessidade natural para a produção
historiográfica. A revista dos Annales já nasceu com forte ênfase no caráter interdisciplinar
da história, haja vista que em seu comitê editorial fazia parte historiadores, geógrafos,
sociólogos, economistas e cientistas políticos (BURKE, 1992, p. 24). Um dos campos do
saber que mais receberam a atenção dos historiadores neste período foi a geografia; a tese de
doutorado de Fernand Braudel, intitulada O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico na

224
época de Filipe II, constitui uma das principais obras nesta perspectiva (BURKE, 1992, p.
34).

Para além da intenção de compreensão total dos fenômenos sociais, é preciso chamar
atenção para o fato de que a profusão temática decorrente da nova história – chamada por
alguns como a “história em migalhas” - é também consequência da desilusão de uma geração
de intelectuais que abandonaram a crença na possibilidade de transformação global da
sociedade (CARDOSO, 1997, p 42-43).

Para Peter Burke, mesmo o movimento dos Annales tendo defendido a legitimidade
do interesse da história-disciplina por questões relacionadas ao âmbito cultural das
sociedades, predominou durante as três primeiras décadas o interesse pela história
econômica. Esta situação será revertida a partir da publicação de L’Enfant et la vie famíliale
sous l’Ancien Régime, de Philippe Ariès, no ano de 1960.

Philippe Ariès abre caminho para uma abordagem de fenômenos da natureza


enquanto construções culturais, porém, será na obra de Roger Chartier que esse ponto se
torna explicito – ou como diz o próprio autor, a mudança de abordagem “da história social da
cultura para a história cultural da sociedade”. Em seus ensaios, Chartier discute a noção de
que, o que os historiadores anteriormente aceitavam como estruturas objetivas, deveriam ser
entendidas como culturalmente constituídas: “A sociedade em si mesma é uma representação
coletiva” (BURKE, 1992, p. 69).

Ciro Flamarion Cardoso afirma que a posição de Chartier – e de inúmeros outros


historiadores desse período – corresponde a certo niilismo intelectual que, “com seu
relativismo absoluto e sua convicção de que o conhecimento se reduz a processos de semiose
e interpretação (hermenêutica)”, vai de encontro à concepção pós-moderna de “morte dos
centros” e de “incredulidade em relação às metanarrativas” (CARDOSO, 1997, p 39).

Este ponto nos remete a duas outras frentes de atuação da nova história: a
desconstrução da ideia de que a história-disciplina possa propiciar um entendimento objetivo
das sociedades estudadas e, consequentemente, a necessidade de inclusão de pontos de vista
variados em relação a um mesmo objeto.

225
Uma ideia muito difundida pelos partidários do paradigma tradicional era a noção de
que cabia aos historiadores a apresentação dos fatos aos seus leitores “como eles realmente
aconteceram”. Pretendia-se, dessa forma, afirmar a capacidade da história em produzir
conhecimento objetivo, livre de referências externas aos fatos narrados.

Atualmente, se consideramos a objetividade do conhecimento como um ideal


irrealista, devemos muito à concepção de relativismo cultural, difundida por boa parcela dos
historiadores do movimento da Nova História.

O historiador José Antonio Vasconcelos, chamando atenção para a crítica pós-


estruturalista com relação à objetividade dos discursos, coloca que o pós-estruturalismo leva
a concepção estruturalista de que “nossos modos de pensar e agir são condicionados por
estruturas inconscientes” às suas últimas consequências: de acordo com tal premissa, a
própria abordagem estruturalista deveria ser entendida como uma resposta às estruturas
intrínsecas à cultura ocidental contemporânea (VASCONCELOS In: GIMENES; RAGO,
2014, p. 107).

A crítica pós-estruturalista chama nossa atenção também para a necessidade de


inclusão de vozes dissonantes no debate historiográfico. Afinal, sendo a história-disciplina
uma forma de produção de conhecimento intrinsicamente marcada pelas trajetórias pessoais
e profissionais daqueles que a produzem, a inclusão de diferentes perspectivas no debate
seria uma prerrogativa para uma compreensão mais aprofundada acerca dos fenômenos
objeto da crítica historiográfica. Esta será uma importante frente de atuação dos seguidores
da Nova História.

Será a partir desta frente de atuação que se dará o interesse na chamada “história vista
de baixo”. Jim Sharpe afirma que, embora este campo de atuação deva seu maior
desenvolvimento conceitual aos estudos empreendidos por historiadores marxistas ingleses,
o livro que utilizou essa perspectiva e que criou mais impacto na historiografia recente foi
Montaillou, do historiador francês Emmanuel Le Roy Ladurie, publicado em 1975. Cabe
destacarmos também o trabalho de Carlo Ginzburg, Il formaggio e i vermi: il cosmo di un
mugnaio del '500, publicado em 1976.

226
Juntos, os trabalhos de Ginzburg e Le Roy exemplificam a preocupação de diversos
historiadores com a constituição histórica de temas e vidas das classes subalternas, porém, os
dois trabalhos merecem destaque também pelo fato de se utilizarem de fontes não usuais até
as décadas de 1970 e 1980 na produção da escrita da história. A busca pela ampliação do
escopo documental utilizado pelos historiadores constituirá também uma das frentes de
atuação da Nova História.

Como consequência do interesse por uma maior variedade de atividades humanas


surge a necessidade de se examinar uma maior variedade de vestígios. A pesquisa histórica,
portanto, não deveria limitar-se a utilização de fontes escritas oficiais e sim de qualquer
evidência que permita que o historiador infira dados acerca da sociedade estudada:
evidências arqueológicas, objetos constituintes da cultura material, fotografias, iconografia,
entre outros.

Lucien Febvre, já em 1934, apontava a necessidade de utilização de documentos não


escritos. Segundo Guy Bourdé e Hervé Martin, ao comentar o livro História da Rússia
lançado em 1932, Febvre critica a condensação de dez séculos de história em 200 páginas
pelo argumento de ”falta de documentos”: o historiador aconselha utilizar-se de vestígios
arqueológicos para a reconstituição do período, além da utilização de ciências vizinhas,
como a linguística e a etnologia (BOURDÉ; MARTIN, 1983, p. 121).

Por consequência, o estudo da cultura material ganha uma importância cada vez
maior no trabalho dos historiadores. Marcelo Rede coloca que, mesmo não tendo constituído
um campo de pesquisa, houve esforços importantes neste sentido durante as décadas de 1960
e 1970. Dentre tais impulsos destacam-se os trabalhos de Jean Baudrillard, Abraham A.
Moles e Fernand Braudel160 (REDE, 2003, p. 281).

160
O livro O sistema dos objetos, publicado originalmente em 1968 por Baudrillard, e Teoria dos objetos de
Moles, publicado em 1972, mostram-se como produtos de uma tendência particular muito presente em várias
frentes de atuação da nova história: a semiologia, ou hermenêutica nas palavras de Ciro Cardoso. Estas obras
preocupam-se em “descrever o papel das coisas materiais na sociedade moderna, e sobretudo, a valorização da
função sígnica dos objetos” (REDE, 2003, p. 281). O caráter representacional – “investigação do sentido” nas
palavras de Bourdé e Martin - terá uma importância ímpar nas produções dos historiadores ligados a nova
história (BOURDÉ; MARTIN, 1983, p. 149).

227
Fernand Braudel contribui para este tópico com a publicação de Civilização material,
economia e capitalismo em 1979. Nesta obra o autor empreende uma análise da história
mundial durante os séculos XV e XVIII e afirma, para o período estudado, ser o estudo da
cultura material indissociável do estudo do capitalismo. Para Jean-Marie Pesez este livro de
Braudel consistiu na “primeira grande síntese sobre a história da cultura material” (PESES In
LE GOFF, 1993, p. 184).

A última frente de atuação que gostaríamos de destacar é a do entendimento do


conhecimento histórico não como uma narrativa dos acontecimentos e sim como a
elucidação de problemas. O historiador deveria, portanto, abandonar a história-narração em
prol de uma história-problema, mediante a formulação de hipóteses de trabalho.

A apresentação de “pontinho por pontinho” da história já não faz mais sentido para os
historiadores da Nova História, tanto pela incapacidade de representação dos fatos como
realmente aconteceram, quanto pela percepção dos acontecimentos como “perturbações
superficiais, espumas de ondas que a maré da história carrega em suas fortes espáduas”
(BRAUDEL apud BURKE, 1992, p. 33).

A história responde às necessidades do presente e será somente a partir da elaboração


de uma história-problema que os historiadores poderão, além de propiciar uma maior
compreensão acerca dos processos históricos, agir ativamente sobre sua época (FEBVRE In:
NOVAIS; SILVA, 2011, p. 84).

A influência do movimento iniciado por Lucien Febvre e Marc Bloch, e


reconfigurado pela geração de Le Goff, Chartier, Nora, Ladurie, Ariés e Certeau, na
elaboração do plano diretor do Museu Paulista é incontestável. A partir das principais frentes
de atuação do movimento da Nova História, comentados até este momento, podemos
perceber que o MP abraçou a causa em prol de uma história-disciplina com novos focos de
atuação, em que as representações e a cultura material estão em primeiro plano. Este dado
torna-se explicito quando voltamos nossa atenção, principalmente, para a meta geral e o
campo de atuação da instituição.

228
Ao adotar a cultura material como campo de atuação da instituição - para além da
obviedade por tratar se de um museu, ou seja, uma instituição essencialmente voltada para
vestígios materiais da sociedade – e entendendo-a como responsável por produzir e
reproduzir padrões sociais, Ulpiano T. Bezerra de Menezes foi ao encontro das ideias
difundidas pelos partidários da nova história com relação a este tópico.

Além disso, a instituição de temas como cotidiano e imaginário dentre as linhas


prioritárias de pesquisa seria responsável por propiciar ao MP a musealização de tipologias
documentais - referentes a uma gama cada vez maior de estratos sociais - pouco privilegiadas
até o momento em museus de história, como, por exemplo, rótulos de embalagens
industriais, utensílios domésticos não refinados, fotografias de tipos sociais populares, entre
outros.

Com relação à meta geral do museu, Meneses, ao se afastar de uma concepção


positivista e defender a atuação da instituição a partir de questões históricas, vai ao encontro
da ideia de uma história-problema, não mais preocupada em narrar acontecimentos e
biografias excepcionais, e sim discutir criticamente processos históricos.

Porém, como já antecipado, o conteúdo do PD encontra-se enormemente alinhado


também a discussões ocorridas no campo da museologia, principalmente no que concerne às
propostas do movimento da Nova Museologia. Este movimento, em paralelo às ações na
busca por uma maior profissionalização do campo, buscava essencialmente a transformação
das instituições museológicas visando posturas patrimoniais mais inclusivas.

Marília Xavier Cury aponta que a Nova Museologia trata-se na verdade de um


modelo metodológico no qual “o público é agente das ações de preservação e comunicação
patrimonial e o processo é tomado como educacional, por ser transformador” (CURY, 2003,
p. 63). A Nova Museologia, portanto, rechaça a ideia do museu como um fim em si mesmo,
no qual as ações de preservação e conservação dos objetos imperam sob as demais
responsabilidades da instituição.

Na perspectiva desse novo modelo metodológico, o museu torna-se um meio de


desenvolvimento social e econômico das comunidades nas quais está inserido. Tal

229
desenvolvimento se daria pelo empoderamento cultural e econômico das populações a partir
da instrumentalização dos equipamentos culturais. Somente dessa forma, com a participação
de diferentes segmentos da sociedade, o museu deixaria de ser uma instituição distante, sem
relações orgânicas com a comunidade a qual representa.

Uma das maneiras mais interessantes de exemplificarmos alguns pontos essenciais


para a Nova Museologia, em sua afinidade com ideais da Nova História, é comentarmos
acerca de 3 documentos que para Marilia X. Cury “não devem ser considerados apenas como
marcos históricos, mas como referências de ideais e idéias museológicas” (CURY, 2005, p.
62). Estes documentos foram todos produzidos a partir de discussões ocorridas em eventos
científicos organizados pela UNESCO e pelo ICOM: tratam-se do Seminário sobre a Função
Educativa dos Museus, de 1958, a Mesa Redonda de Santiago do Chile de 1972 e a
declaração de Quebec de 1984.

Hernán Crespo Toral chama a atenção para o fato de que o Seminário de 1958
respondia a um plano da UNESCO de propiciar uma reflexão acerca do papel educativo dos
museus perante a sociedade. Tal reflexão seria desenvolvida em cada uma das regiões do
mundo.

Hernán Toral também comenta que ao mesmo tempo em que o Seminário salienta
“que o objeto é o cerne do museu”, percebe-se durante o evento a necessidade de vencer “o
tradicionalismo do Museu conservatório de objetos [...] para transformá-lo em meio de
comunicação atrativo que pudesse incidir nos problemas reais da comunidade” (TORAL In:
BRUNO, 1995, p. 25-26).

A Mesa-Redonda de Santiago do Chile também se insere na série de Seminários


regionais organizados pela UNESCO em colaboração com o ICOM e propunha-se a discutir
a função dos museus na América Latina contemporânea. Hugues de Varine afirma que o
essencial da Declaração de Santiago resume-se em duas noções: a de museu integral, na qual
se considera que o museu seja destinado “a proporcionar uma visão de conjunto de seu meio
material e cultural” (Declaração de Santiago apud BRUNO, 1995, v. II, p. 50), e a de “museu

230
como ação, isto é, instrumento dinâmico de mudança social” (VARINE In: BRUNO, 1995,
v. II, p. 40, grifo do autor).

Cabe lembrarmos que, de acordo com a museóloga Teresa Scheiner, o conceito de


museu integral não se fundamenta apenas na musealização de todo o conjunto patrimonial de
um dado território, ou na ênfase no trabalho comunitário, e sim na capacidade que todo
museu possui de estabelecer relações com o espaço, o tempo e a memória (SCHEINER,
2012, p. 19). É indispensável, a partir deste conceito, lembrarmos a preocupação de Braudel
com relação à inclusão das relações entre o homem e o ambiente geográfico no horizonte
historiográfico.

Com relação ao terceiro documento aqui salientado, a Declaração de Quebec, não há


nenhuma novidade conceitual no texto em si, pois deste ponto de vista há apenas a retomada,
com as devidas atualizações, do essencial da Declaração de Santiago. A importância do
documento de 1984 está no reconhecimento da existência de um “novo Movimento
museológico” (MOUTINHO In: BRUNO, 1995, v. II, p. 56, grifo do autor).

Para o museólogo Mário Canova Moutinho, foi durante o “Ateliê Ecomuseus – Nova
Museologia”, realizado em Quebec, que a comunidade museológica internacional viu-se
confrontada com uma série de experiências museológicas em curso que demonstravam
“aspectos específicos de uma Nova Museologia”. Dentre tais aspectos, Moutinho destaca a
investigação e interpretação de testemunhos materiais e imateriais voltadas para as questões
de ordem social, a importância da interdisciplinaridade, a ideia da exposição museológica
como “processo de formação permanente e não mais o objeto de contemplação” e a
substituição da noção de público pela noção de “colaborador, de utilizador ou de criador”
(MOUTINHO In: BRUNO, 1995, v. II, p. 53-56).

Por fim, gostaríamos de chamar atenção novamente para as duas normativas do


ICOM já citadas neste texto, o Ethics of Acquisition e a primeira versão do Code of
Professional Ethics. Estes documentos são importantes tendo em vista que eles apresentam
alguns conceitos que serão referenciados pelo Plano Diretor do Museu Paulista. No
documento de 1970, a instituição museu é definida pelo Conselho como uma instituição

231
interessada com a aquisição de objetos enquanto mecanismo de um especifico programa de
pesquisa cientifica, educação, conservação e demonstração do patrimônio cultural e natural,
seja ele nacional ou internacional (ICOM, 1970).

Com relação ao documento de 1986, o Conselho, em consonância com o estabelecido


no Artigo 3 do Estatuto do órgão, afirma ser o museu uma instituição permanente e sem fins
lucrativos a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento, aberto ao público, e que adquire,
conserva, pesquisa, comunica e exibe, visando o estudo, a educação e o deleite, evidências
materiais do homem e seu ambiente (ICOM, 1986, p. 15).

Percebe-se que ambas as definições se afastam da noção tradicional de museu,


enquanto instituição essencialmente gerida para a coleta e salvaguarda de elementos
distintivos do ambiente físico natural ou social. A instituição museu levada em consideração
tanto pelo Museu Paulista quanto pelo ICOM é a de uma instituição que se dedica ao
trabalho com qualquer evidência material, procurando assim, novas metodologias que
propiciem o crescimento institucional numa perspectiva mais inclusiva.

Cabe lembrar também que, ao elaborar a Política de Acervo - mesmo que de forma
muito sucinta – e nos termos comentados acima, o MP mostra-se mais uma vez em
consonância com o estabelecido pelo ICOM nas duas normativas referenciadas neste texto.
Dentre outros direcionamentos, o Ethics of Acquisition estabelece que a política de aquisição
de acervo deva ser publicada e que nenhum objeto deverá ser adquirido a não ser que possua
uma relação direta com os objetivos institucionais (ICOM, 1970).

Outro ponto digno de nota é a concepção de uma série de leituras possíveis das
evidências materiais: esta não é apenas explorada em seu caráter instrutivo, e está sujeita a
leituras afetiva, estética, intelectual e lúdica – de acordo com a concepção do museu como
espaço múltiplo, como comentado anteriormente (ICOM, 1970).

Este ponto nos auxilia na historicização do processo de compreensão do objeto digno


de ser musealizado. O objeto-único e o objeto-representativo são ao mesmo tempo dois
extremos de uma ação valorativa e também dois conceitos que acabam se sobrepondo ao

232
longo dos anos posteriores, haja vista que o Code of Professional Ethics de 1986 refere-se
aos objetos apenas como “material evidence”.

A partir do exposto até aqui podemos perceber que o Plano Diretor do Museu
Paulista reverbera muitos conceitos e práticas incentivadas pelos partidários da Nova
Museologia. Dentre tais práticas, destacamos a compreensão alargada de patrimônio, ou seja,
uma visão ampla dos museus – com o entendimento de que seus recursos científicos,
educacionais e culturais constituem uma atividade da mais alta expressão social - e dos
objetos possíveis de serem musealizados, além de uma postura crítica com relação à
comunicação museológica, não entendida como responsável por cristalizar parâmetros e sim
como mais uma das forças no debate público.

Referências bibliográficas
BARBUY, Heloisa; ORNSTEIN, Sheila Walbe. Museu Paulista: Contribuições Acadêmicas e
Políticas Públicas. In: GOLDEMBERG, J. (coord). USP 80 anos. São Paulo, Edusp, 2015.

BRUNO, Maria Cristina Oliveira. O ICOM-Brasil e o pensamento museológico brasileiro:


documentos selecionados. São Paulo, Pinacoteca do Estado de São Paulo, Governo do
Estado de São Paulo, 2010. 2 v.

BOURDÉ, Guy; MARTIN, Hervê. As escolas históricas. Lisboa: Publicações Europa-


América, 1983

BURKE, Peter. (Org.). A Escrita da História: novas perspectivas. São Paulo: Fundação
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CARDOSO, Ciro F.; VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da História: Ensaios de Teoria
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CURY, Marília X. Museologia. Marcos referenciais. Cadernos do CEOM. Chapecó: Argos,


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ICOM - International Council of Museums. Ethics of Acquisition. 1970. Disponível em


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233
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LE GOFF, Jacques. A história nova. 2. ed.. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

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SCHEINER, Tereza C. Repensando o Museu Integral: do conceito às práticas. Boletim do


Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 7, n. 1, p. 15-30, jan.-abr. 2012.
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GIMENES, Renato Aloizio de Oliveira (orgs). Narrar o passado, repensar a história.
Campinas, UNICAMP/IFCH, 2000. Cap 2, p. 103-119. Disponível em:
<https://www.ifch.unicamp.br/publicacoes/pf-publicacoes/squd_livro-ideias-2-
2a.edicao.pdf>. Acesso em: maio de 2017.

234
UM ACERVO PARA CHAMAR DE REPÚBLICA

Maria Helena de Macedo Versiani*

Resumo: Este artigo apresenta um estudo sobre o acervo preservado no Museu da República,
instituição museológica nacional localizada na cidade do Rio de Janeiro. Examina, especificamente, o
acervo museológico da instituição, com o intuito de compreender os sentidos sociais que instruíram a
sua formação.
O pressuposto é o de que a formação de um acervo museológico necessariamente ocorre em
articulação com determinados valores e visões de mundo, presentes no meio social. Valores e visões
de mundo que legitimam a transformação de determinados objetos em acervo, aludindo, portanto, às
razões sociais que justificam a formação de um determinado acervo e não de outro.

Palavras-chave: Acervo museológico; Museu da República; Formação de acervos.

Abstract: This article presents a study about the collection preserved in the Museu da República
(Republic Museum), a national museum located in the city of Rio de Janeiro. It examines, specifically,
the museological collection of the institution, in order to understand the social meanings that have
instructed its formation.
The assumption is that the formation of a museological collection necessarily occurs in articulation
with certain values and world views, present in the social environment. Values and world views that
legitimize the transformation of certain objects into a collection, alluding, therefore, to the social
reasons that justify the formation of a certain collection and not of another one.

Key-words: Museum collection; Republic Museum; Collections formation.

235
Apresentação

Este artigo apresenta um estudo sobre o acervo preservado no Museu da República,


instituição museológica nacional localizada na cidade do Rio de Janeiro. Examina,
especificamente, o acervo museológico da instituição, com o intuito de compreender os
sentidos sociais que instruíram a sua formação.

O pressuposto é o de que a formação de um acervo museológico necessariamente


ocorre em articulação com determinados valores e visões de mundo, presentes no meio social.
Valores e visões de mundo que legitimam a transformação de determinados objetos em
acervo, aludindo, portanto, às razões sociais que justificam a formação de um determinado
acervo e não de outro.

Um palácio para chamar de Museu da República

O Museu da República foi criado em 1960, como uma seção do Museu Histórico
Nacional. Recebeu o nome de Museu da República, mas constituiu, de fato, entre 1960 e
1983, a Divisão de História Republicana do Museu Histórico Nacional. Em 1983, obteve
autonomia administrativa, para o que concorreu o contexto favorável de discussão, na esfera
governamental, em torno do lugar dos museus na sociedade brasileira. Em outubro de 1981,
todos os museus federais haviam passado para o âmbito da então Fundação Nacional Pró-
Memória161, tendo início uma série de reuniões entre os seus diretores e o então secretário da
Cultura do MEC, Aloísio Magalhães. O propósito era elaborar uma política específica para o
setor, sendo traçadas as linhas gerais do que viria a ser o Programa Nacional de Museus.
Repensar a autonomia administrativa do Museu da República colocava-se, assim, em linha
com repensar os museus em geral e desenvolver projetos para a sua revitalização.162

Figura 1: Fachada principal do Palácio do Catete.

161
A Fundação Nacional Pró-Memória funcionou entre 1979 e 1990, como órgão executivo do Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, organismo federal, vinculado ao Ministério da Cultura, criado em
1937 e responsável pela proteção ao patrimônio cultural brasileiro.
162
MELO, 1997, p. 37-44.

236
Fonte: Fotografia de Rômulo Fialdini & Valentino Fialdini.

Palácio do Catete, edifício-sede do Museu da República, foi construído em meados do


século XIX, para ser a residência da família de Antônio Clemente Pinto, rico comerciante
português, proprietário de várias fazendas de café no estado do Rio de Janeiro. Com o
propósito de otimizar a circulação do café produzido em suas fazendas, Clemente Pinto
realizou investimentos que incluíram o financiamento da Estrada de Ferro de Cantagalo,
afinal beneficiando também a produção e o comércio do café em toda Região Serrana. Pelo
feito, recebeu de D. Pedro II o título de barão de Nova Friburgo.

O Palácio permaneceu como propriedade da família Nova Friburgo até 1890, quando
foi vendido para o grupo Companhia Grande Hotel Internacional e, logo depois, para
Francisco de Paula Mayrink, acionista da companhia e que ocupou, entre 1891 e 1908, uma
cadeira na Câmara dos Deputados. Mayrink hipotecou e, em 1896, acabou por vender o
Palácio para o Governo Federal. Entre 1897 e 1960, o prédio tornou-se a sede da Presidência

237
da República do Brasil e, também, residência oficial de alguns presidentes. Após a
transferência da Capital Federal para Brasília, passa a abrigar o Museu da República.

O projeto arquitetônico do Palácio do Catete foi assinado pelo alemão Gustav


Waehneldt, combinando estilos históricos. Fartam, nas fachadas e por todo o interior do
Palácio, o recurso à estética simétrica e elementos decorativos relacionados à arquitetura
clássica (colunas dóricas, formatos rígidos – quadrado, retângulo, triângulo – com partes
proporcionais, estilo caixa forte, solidez) e à mitologia greco-romana. O padrão historicista
mostra-se, por exemplo, em salões decorados com motivos tropicais ou inspirados em
movimentos artísticos diversos: Salão Venezinao, Salão Mourisco, Salão Pompeano, Salão
Francês.

Figura SEQ Figura \* ARABIC 2: Salão Pompeano, no Palácio do Catete.

Fonte: Fotografias de Rômulo Fialdini & Valentino Fialdini.

238
Figura SEQ Figura \* ARABIC 3: Salão Mourisco, no Palácio do Catete.

Fonte: Fotografias de Rômulo Fialdini & Valentino Fialdini.

239
Figura SEQ Figura \* ARABIC 4: Salão Venizano, no Palácio do Catete.

Fonte: Fotografia de Rômulo Fialdini & Valentino Fialdini.


Destaque à direita para pintura de Antônio Parreiras e Décio Villares, de 1896.

Imponência e requinte artístico estão presentes em cada detalhe que compõe os objetos
de iluminação e de interiores (lustres, piso, portões, maçanetas, janelas etc.) e as obras de arte
(pinturas, esculturas) do Palácio, produzidas por artistas renomados como Antônio Parreiras,
Décio Rodrigues Villares, Emil Bauch, Francisco Aurélio de Figueiredo, Henrique
Bernardelli, Jean-Baptiste Debret, Pedro Bruno, Quirino Antônio Vieira, Rodolfo Amoedo,
entre outros.

240
Na área externa, o jardim, aberto ao público quando da criação do Museu, confirma a
excelência artística do edifício. Quando de sua ocupação pela Presidência da República, novo
projeto paisagístico foi realizado por Paul Villon – que havia trabalhado com Auguste Marie
Françoise Glaziou em reforma do Campo da Aclamação, atual Praça da República – sendo
incorporados canteiros, uma gruta e um rio artificiais, além de bancos e pontes campestres,
integrados ao ambiente de árvores e plantas. Um belo chafariz, que exibe o grupo escultórico
O Nascimento de Vênus, criado pelo escultor francês Mathurin Moreau, repousa ao centro de
uma aleia de palmeiras. Esta e outras esculturas do jardim foram encomendadas à fundição
francesa Val d'Osne, responsável pela fabricação de um conjunto importante de peças em
ferro, produzidas no século XIX, que hoje compõem espaços públicos e edifícios da cidade do
Rio de Janeiro, como o chafariz da Praça Mahatma Gandhi, na Cinelândia, e os equipamentos
em ferro fundido instalados no Campo de Santana.
Figura SEQ Figura \* ARABIC 5: Nascimento de Vênus, de Mathurn Moreau, Fundação Val d'Osne. Jardim
do Palácio do Catete.

Fonte: Fotografia de Rômulo Fialdini & Valentino Fialdini.

241
O edifício e o jardim do Palácio foram tombados pelo Serviço do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional, em 1938.

Em livro recém-lançado, o historiador Marcus Vinícius Macri Rodrigues (2017)


discute a construção de residências sofisticadas e imponentes no Brasil dos oitocentos como
uma tradição que se constituiu em instrumento de afirmação social e de alinhamento com as
nações civilizadas. Rodrigues argumenta que a filiação do Palácio do Catete à cultura clássica
e europeia foi estratégica a esse respeito. Elementos arquitetônicos, estéticos e artísticos do
Palácio não seriam gratuitos, em nenhum sentido, mas sim visavam a qualificar o edifício
“aos olhos” da Europa, da Corte, da elite imperial e da sociedade em geral, distinguindo-o
como residência nobre, com estética próxima a de modelos europeus.

Assim, quando foi construído, o Palácio do Catete despontou, não apenas como opção
estética ou de bem-estar material, mas também como parte de um projeto de poder, que
afirmava a primazia dos padrões da civilização europeia no Novo Mundo. Fundamental era
impressionar, estabelecendo/ostentando uma série de condições simbólicas que pudessem
garantir a caracterização do Palácio como residência diferenciada, de prestígio, e o
reconhecimento da família Nova Friburgo como elite maior.
Quando o Palácio se torna a sede do Museu da República, todo o seu simbolismo e
suas circunstâncias como espaço de moradia e de poder da elite brasileira são incorporados ao
museu, como memória preservada e valorizada da República.

Um acervo para a República

O acervo museológico preservado no Museu da República reúne quase dez mil itens,
agrupados em 74 coleções. Entre as coleções, 63 recebem nomes de personalidades da vida
nacional e 11 são nomeadas a partir de referências temáticas. Ou seja, trata-se de um acervo
predominantemente biográfico, formado com objetos que se justificam no acervo sobretudo
por serem de uso pessoal ou profissional de determinados titulares.

242
Entre os titulares das coleções, 29 são ex-presidentes da República163, o que decerto
tem relação com o fato do Palácio do Catete ter sido a sede da Presidência da República
durante muitos anos. Por outro lado, a figura do presidente da República tem força no
imaginário político nacional como representação do poder e não surpreende que isso tenha
influenciado na atribuição dos nomes das coleções, que confirmam o peso da mística
presidencial na cultura política brasileira.

Os demais titulares que nomeiam as coleções são, principalmente, lideranças


republicanas, políticos de outras esferas de governo, militares e antigos proprietários do
Palácio. Em comum, gozam do status de um grupo de elite. Ou seja, os nomes das coleções
conferem destaque a representantes da elite do país, em linha com padrões muito conhecidos
de representação do poder na República.

Registre-se que a doação de acervos privados a um museu público e nacional não


costuma ser uma atitude desinteressada. Acervos, de modo geral, criam representações
positivas, assegurando poder simbólico e encanto aos titulares e seus herdeiros.
Condecorações, medalhas, diplomas, retratos e outros objetos prestigiosos preservados em
instituições museológicas, quando colocados em evidência para apreciação pública,
encontram cumplicidade social e tornam-se também uma forma de poder simbólico
(BOURDIEU, 1989). Do mesmo modo, objetos sofisticados associados aos titulares
evidenciam a sua posição privilegiada na pirâmide social. Ou seja, o simbolismo em torno de
peças preservadas em museus não apenas alude às próprias peças, mas opera também para
cultuar os seus titulares.

163
Afonso Pena; Arthur Bernardes; Campos Salles; Café Filho; Carlos Luz; Castelo Branco; Costa e Silva;
Delfim Moreira, Deodoro da Fonseca; Dilma Rousseff; Emílio Garrastazu Médici; Epitácio Pessoa; Ernesto
Geisel; Eurico Gaspar Dutra; Floriano Peixoto; Getúlio Vargas; Hermes da Fonseca; Jânio Quadros; José
Linhares; José Sarney; Juscelino Kubitschek; Lula; Nereu Ramos; Nilo Peçanha; Prudente de Moraes; Rodrigues
Alves; Tancredo Neves; Washington Luís; e Wenceslau Brás.

243
Figura SEQ Figura \* ARABIC 6: Honório Peçanha.
Busto de Juscelino Kubitschek.
Acervo do Museu da República/Ibram/MinC.

Fonte: Fotografia de Rômulo Fialdini & Valentino Fialdini.

Figura SEQ Figura \* ARABIC 7: Celso Campos.


Talha com figura do presidente Geisel.
Acervo do Museu da República/Ibram/MinC.

Fonte: Fotografia de Rômulo Fialdini & Valentino Fialdini.

244
Figura SEQ Figura \* ARABIC 8: Edgard Andrade de Freitas.
Garrafa de areia, do artista popular cearense.
Acervo do Museu da República/Ibram/MinC.

Fonte: Fotografia de Rômulo Fialdini & Valentino Fialdini.

De fato, no Museu da República, a marca das coleções museológicas de titulares é o


tom exaltativo e a prestação de homenagens. Merece menção a Coleção Getúlio Vargas, pela
popularidade do personagem e o fetiche em torno de seu suicídio, ocorrido no dia 24 de
agosto de 1954, em seu quarto, no terceiro andar do Palácio.

A popularidade do Vargas aparece em sua coleção inclusive a partir do grande número


de doadores dos itens que a compõem. Junto com as doações de familiares, outras várias
pessoas, que não possuíam qualquer relação familiar com o ex-presidente, doaram ao museu
lembranças relacionadas a Getúlio Vargas: um lenço, uma bandeirola, um buda, um cravo e,
entre vários outros exemplos, até uma cueca com as iniciais GV gravadas no tecido.

245
Figura SEQ Figura \* ARABIC 9: Quarto de Getúlio Vargas, no Palácio do Catete.

Fonte: Fotografia de Ari Versiani/Agência Ponto.

Coleções temáticas
Entre as onze coleções temáticas do acervo em exame, duas fazem menção à categoria
Presidência da República: a Coleção Palácio Itamaraty e a Coleção Presidência da República.

A Coleção Palácio Itamaraty refere-se à primeira sede do Governo Republicano


brasileiro, entre 1889 e 1897. Já a Coleção Presidência da República reúne
predominantemente objetos utilizados no próprio Palácio do Catete, quando sede da
Presidência. Ou seja, as duas coleções guardam objetos que dizem respeito ao exercício da
Presidência nesses edifícios e destacam a Presidência da República como categoria central
para pensar a República brasileira.

246
Figura SEQ Figura \* ARABIC 10: Salão Ministerial, no Palácio do Catete.

Fonte: Fotografia de Ari Versiani/Agência Ponto.

Outro tema destacado nas coleções refere-se a levantes e insurreições ocorridos no


país. São seis entre as onze coleções temáticas: Coleção Canudos; Coleção Coluna Prestes;
Coleção Guerra do Contestado; Coleção Revolta da Armada; Coleção Revolução
Constitucionalista; e Coleção Revolução Federalista.

Interessante observar que todos os itens dessas coleções – capacetes, distintivos de


guerra, armas, e outros objetos próprios à vida militar – foram incorporados ao Museu da
República a partir de transferências do Museu Histórico Nacional. Este, criado em 1922, teve
como primeiro diretor, entre 1922 e 1959, o escritor e acadêmico Gustavo Barroso, que
cuidou de reservar espaço na instituição para a preservação de uma memória militarista da
História do Brasil. Em diversos artigos, defendeu o projeto de um museu nacional, que
valorizasse a memória militar do país e ensinasse sobre o lugar dos oficiais da Armada como
heróis da pátria. Entre os exemplos, em 25 de setembro de 1911, sob o pseudônimo de João
do Norte, Barroso publicou artigo no Jornal do Comércio, intitulado “Museu Militar”,

247
alertando: “Todas as nações têm seus Museus Militares guardando as tradições guerreiras de
sua história, documentando os progressos dos armamentos e exaltando o culto das glórias
passadas. Nós ainda não o possuímos” (DUMANS, 1942, p. 384).

Figura SEQ Figura \* ARABIC 11: Munição da Guerra de Canudos.


Acervo do Museu da República/Ibram/MinC.

Fonte: Fotografia de Rômulo Fialdini & Valentino Fialdini.

Outra coleção, Coleção Numismática Brasileira, reúne objetos pecuniários diversos e


em especial cédulas e moedas. Trata-se novamente de uma coleção que remete a um tema
valorizado por Gustavo Barroso, e no século XIX de um modo geral. A Numismática foi uma
área de conhecimento incorporada ao Museu Histórico Nacional a par do esforço de
afirmação da História como ciência, quando foram fixados determinados critérios e
procedimentos que seriam supostamente próprios à análise crítica das fontes de pesquisa
histórica. Percebida como um testemunho material do passado isento de subjetividade, por
constituir objetos que reproduziam aspectos econômicos, sociais e culturais de diferentes
épocas da História, deixando ver figuras e cenas “reais”, os objetos da Numismática ganharam
status de “documento incontestável”, instrutivo na busca da “verdade histórica”.

248
A coleção, no museu, apresenta alguns exemplares especiais, como as primeiras
moedas cunhadas após a Proclamação da República, porém, a expressiva maioria são modelos
do sistema monetário brasileiro.

Figura SEQ Figura \* ARABIC 12: Primeiras moedas cunhadas após a Proclamação da República.
Acervo do Museu da República/Ibram/MinC.

Fonte: Fotografia de Rômulo Fialdini & Valentino Fialdini.

De todas as coleções museológicas em exame, a maior delas, com mais de 2.500 itens,
é a Coleção Museu da República. Trata-se de uma coleção “coringa”, que reúne todos os itens
do acervo do museu que não encontram lugar em quaisquer das demais coleções.
Um de seus destaques são as figurações e símbolos da República. A primeira Bandeira
Nacional do Brasil republicano – um símbolo oficial –, mas também diversas outras
figurações que destacam a República como elemento forte da identidade nacional. Em
comum, tais representações reforçam a ideia do regime republicano como um lugar de
encontro e de agregação simbólica de todos os brasileiros.

249
Figura SEQ Figura \* ARABIC 13:
Primeira Bandeira Nacional oficial do Brasil, ca.1890, tecido, 1,80 x 1,30 m.
Acervo do Museu da República/Ibram/MinC.

Figura SEQ Figura \* ARABIC 14: Pedro Bruno. A Pátria, 1919, óleo sobre tela, 1,90 x 2,78m.
Acervo do Museu da República/Ibram/MinC.

250
Figura SEQ Figura \* ARABIC 15: Décio Vilares.
A República, s/d, óleo sobre tela, 40,5 x 33 cm.
Acervo do Museu da República/Ibram/MinC.

Outro destaque da Coleção Museu da República é um conjunto com mais de 800


bottons incorporados ao acervo ao final dos anos 1980. Trata-se de um conjunto muito
expressivo de momentos políticos, sociais e culturais vividos no Brasil, naquele momento de
transição democrática. Para a formação desse acervo, houve forte investimento de técnicos e
da então direção do Museu, tendo sido lançada, com êxito, ampla campanha em veículos da
mídia impressa e outros meios de comunicação.

Essa coleção de bottons é um indicativo de mudanças ocorridas no perfil do acervo


museológico do Museu da República, a partir do final dos anos 1980. No calor do debate em
torno da chamada Nova Museologia (DESVALLÉS, 2015), entre outras questões, a formação
de acervos de perfil exclusivamente elitista passou a ser particularmente questionada à luz das
várias memórias presentes na vida social. No Museu da República, lógicas antes

251
predominantes ou exclusivas na formação do acervo museológico passaram a conviver com
outras possibilidades. A coleção de bottons, por exemplo, expressiva da diversidade de forças
sociais e políticas presentes no debate naquele momento, sugere uma perspectiva
absolutamente diferente do padrão de perceber a elite política como protagonista do processo.

Na mesma direção, completando as coleções temáticas do Museu da República, a


Coleção Memória da Constituinte é também exemplar de renovações no perfil do acervo
museológico da instituição. Incorporada em 1990, foi formada durante o processo constituinte
de 1987/1988 e reúne três painéis de arte, com cerca de 3,60m x 4,20m cada um, pintados à
época, respectivamente, pelos artistas Rubens Gerchman, Newton Cavalcanti e José Roberto
Aguillar. Esses painéis destacam e valorizam a ampla participação da sociedade no processo
Constituinte de 1987/1988, mostrando que o projeto de redemocratização do país mobilizou
uma pluralidade de interesses e indivíduos. Fartam referências a olhos que veem, ouvidos que
ouvem, bocas que expressam opiniões. A população aparece, nas obras, presente, atenta,
participativa, conforme inscrito na tela de Rubens Gerchman: “De ôlho na Constituinte”. É a
população que promove a reconstitucionalização democrática do Brasil, perspectiva oposta ao
padrão de reconhecer a elite política como protagonista daquele processo.

Observações finais

Entre 1996 e 2003, o Palácio do Catete abrigou a exposição A Ventura Republicana,


que teve a curadoria de Gisela Magalhães e de Joel Rufino. A exposição, sobre a República
brasileira, acabou por influenciar particularmente a incorporação ao acervo do museu de
muitos objetos relacionados ao vivido cotidiano popular do país.

Confirmando a abertura do Museu da República para a renovação do perfil de seus


acervos, foram estimuladas doações e compras de itens relacionados ao folclore e às religiões
afro-brasileiras, entre outras representações de expressão popular.

Ou seja, A Ventura Republicana também apostou na renovação das formas então


recorrentes na instituição de determinar/legitimar a formação de bens culturais museológicos,
a partir de noções contemporâneas de museu. Reforçou, assim, a ideia de que o lugar do

252
Museu da República e dos acervos que a instituição preserva não se limita a um lugar de
memória, sendo, também, lugar de criação e recriação de maneiras de perceber o mundo
social.

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254
O MUSEAL NA GÊNESE DO PARQUE ZOOBOTÂNICO DO MUSEU GOELDI
(1895-1914)

Lilian Mariela Suescun Florez*


Nelson Sanjad*
*Museu Paraense Emílio Goeldi

Resumo: O artigo analisa a construção do Parque Zoobotânico do Museu Paraense Emílio Goeldi
durante a gestão de seus idealizadores, Emílio Goeldi (1895-1907) e Jacques Huber (1907-1914). Ele
foi concebido como dois anexos: o jardim zoológico e o horto botânico, que hoje se constituem em
uma área orgânica no centro de Belém (PA). O ponto de partida para a construção desse parque foi a
desapropriação de terrenos e a posterior transformação e ressignificação das edificações e plantas
vivas existentes no local. A partir do conceito de musealidade, o texto se desenvolve em quatro
narrativas – comunicacional e educativa, científica, lazer e sociabilidade, doméstica – que entendemos
como eixos estruturais que deram forma e organicidade ao espaço museológico. Essas narrativas
permitiram estudar a gênese da identidade institucional, a qual, em sua essência, se perpetua até a
atualidade.

Palavras-chave: Museal; Coleção viva; Jardim botânico; Museus de natureza.

Abstract: The article analyses the construction of the Zoobotanical Park of the Museu Paraense
Emilio Goeldi during the administration of its idealizers, Emilio Goeldi (1895-1907) and Jacques
Huber (1907-1914). It was conceived as two annexes of the museum: the zoo and the botanic garden,
which today constitute an organic area in the center of Belem (PA). The starting point for the
construction of this park was the expropriation of land and the subsequent transformation and
resignification of the buildings and living plants on the site. Based on the concept of museality, the
text was developed in four narratives – communicational and educational, scientific, leisure and
sociality, domestic – which we understand as structural axes that gave form and organicity to the
museological space. These narratives allowed us to study the genesis of institutional identity, which, in
its essence, is perpetuated to the present day.

Keywords: Museal; Living collection; Botanic garden; Museums of nature.

255
O atual Parque Zoobotânico do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG) foi concebido
como dois anexos diferenciados do antigo Museu Paraense de História Natural e Etnografia: o
Jardim Zoológico e o Horto Botânico. Os dois espaços foram núcleos essenciais do projeto
político-museológico concebido pelo governador do Pará, Lauro Sodré (1891-1896), e
encampado durante a gestão de Emílio Goeldi (1894-1907) e de Jacques Huber (1907-1914)
(SANJAD, 2010). A desapropriação, por parte do governo paraense, de uma edificação e área
privada de arquitetura típica de Belém do século XIX foi o ponto de partida para a realização
desse projeto. As ‘rocinhas’, como se denominam esse tipo de residência, tal como as
chácaras, localizavam-se nos subúrbios, em terrenos amplos e ajardinados onde também se
cultivava hortas e pomares e se criava animais para consumo familiar. A diferença entre elas
radica no partido arquitetônico sui generis das rocinhas: as casas eram posicionadas no centro
do terreno e distinguiam as áreas de convívio social das áreas destinadas à intimidade da
família (SOARES, 1996) (Figura 1).

Figura 1: Primeira planta baixa do Parque Zoobotânico do Museu Paraense de História Natural e Etnografia, de
1897, onde é possível observar o imóvel e o terreno contíguo desapropriados para a instalação do museu (em
rosa) e as intervenções feitas.

256
Com a análise a seguir, interessa compreender a ressignificação da ‘rocinha’ onde foi
instalado o Museu Paraense em 1895, assim como o processo de musealização das coleções
vivas, em especial a configuração do horto, por meio do estudo dos diferentes usos conferidos
ao espaço físico e dos sentidos atribuídos aos espécimes vegetais que já existiam ali, antes da
instalação do museu, e os que foram posteriormente introduzidos. Esses usos e sentidos,
próprios às atividades dos museus de história natural do século XIX, podem ser abordados
como dimensões interligadas, de acordo com a ideia de musealidade proposta por Rocha
(2009) em seu estudo sobre o arboreto do Jardim Botânico do Rio de Janeiro (JBRJ). Segundo
a autora “é exatamente na possibilidade de colocar em relação estas diversas dimensões –
lazer, educação, pesquisa, comunicação e informação – associadas a uma coleção que reside
nosso olhar da musealidade do arboreto” (ROCHA, 2009, p. 111). Nessa perspectiva,
estudamos a musealidade dos dois anexos do Museu Paraense por meio de quatro narrativas
transpostas no espaço físico e baseadas na proposta de Rocha: comunicacional e educativa,
científica, lazer e sociabilidade e doméstica, esta última incluída apenas em nosso estudo.
Essas quatro narrativas permitem identificar os princípios que nortearam a instalação e o
funcionamento do jardim zoológico e do horto botânico. Elas são aqui apresentadas de
maneira bastante resumida. O trabalho completo será publicado em outro local.

Narrativa comunicacional e educativa

A narrativa comunicacional e educativa está relacionada, em primeira instância, com a


exposição das coleções vivas de flora e fauna, no horto botânico e no jardim zoológico,
respectivamente. O objetivo principal dos idealizadores do museu em 1895 foi apresentar de
maneira clara e pedagógica a biodiversidade amazônica para um público leigo, usando as
exposições em ambientes fechados, mas também a transposição desse objetivo para a área
externa e contígua ao edifício principal do museu. A exibição de espécimes vivos foi
concebida para servir como um catálogo em três dimensões de botânica e zoologia
amazônicas. Esse contato direto com plantas e animais vivos, transformados em objetos
museológicos, reunidos em um espaço construído e acessível ao público, vinculava-se a uma

257
tradição dos museus de história natural do século XIX, para a qual a exibição de ‘produtos da
natureza’ era central (LOPES; MURIELLO, 2005, p. 24). O chamado ‘método intuitivo de
ensino’, também conhecido pela expressão ‘lição de coisas’ ou ‘ensino pelo aspecto’, era
baseado na observação como premissa da compreensão (MACHADO, 2010). A exposição foi
uma ferramenta fundamental para a instrução pública e se tornou assunto central nos museus
do século XIX. Foi com e através da exibição e do arranjo dos objetos segundo leis
sistemáticas e taxonômicas, reflexo das práticas científicas de classificação da natureza, que
se pretendeu ‘civilizar’ o público leigo.

A exposição das ‘coisas da natureza’ nos museus de história natural teve uma dupla
função: ensino e pesquisa. O caso do Museu Paraense, com seus espaços divididos em salas
de exposição dentro do prédio principal, em laboratórios e em anexos ao ar livre, com regras
de uso e acesso distintas, é um exemplo da implementação dessa dupla função nos museus de
século XIX (SANJAD, 2010, p. 191). Entretanto, essa dupla função não se deu de maneira
evidente no horto botânico. Ali, a própria coleção viva tinha um duplo status: tinha um caráter
educativo, pois era utilizada com finalidades pedagógicas e era acessível ao público, e
científico, pois foi produzida a partir de um projeto científico, obedecendo a uma agenda de
investigações, tal como apresentamos aqui.

A literatura existente sobre o Museu Paraense vem destacando o processo de


‘europeização’ da paisagem da instituição, ressaltando a construção de prédios, monumentos,
gaiolas e lagos, mas esse processo é sempre analisado a partir da construção do jardim
zoológico (SANJAD, 2009, 2010; CRISPINO, BASTOS, TOLEDO, 2006) Foi, igualmente,
analisado o instantâneo sucesso e a simpatia que o zoológico ganhou do público, expressos na
grande visitação contabilizada desde 1895, quando as portas se abriram para o público em
geral (SANJAD, 2006, 2008). O estudo do zoológico foi incentivado com a tradução e
publicação de dois textos: um artigo escrito pelo inspetor do zoológico, Hermann Meerwarth,
em 1897, e um livreto de Gottfried Hagmann, que o substituiu na função, publicado em 1901.
Essas fontes permitem caracterizar a proto-coleção do zoológico, localizar cada um dos

258
espécimes da fauna, visualizar a forma, a estrutura e os materiais usados em jaulas e gaiolas,
assim como estudar o manejo e o processo de curadoria dessa coleção (SANJAD et al., 2012).

Sobre o horto percebe-se uma escassez de trabalhos voltados à análise de sua


construção, musealização e curadoria da coleção de plantas vivas. A causa provavelmente
reside na maneira como esse anexo se desenvolveu. Apesar de planejado tão cedo quanto o
zoológico, seu desenvolvimento foi lento e circunstancial e sua instalação dependeu da
aquisição dos terrenos do lado oriental do museu. Isso impediu uma organização prévia da
coleção viva, como a disposição das famílias botânicas nos seus respectivos canteiros, que
precisou ser constantemente repensada e remanejada de acordo com a disponibilidade de
espaço. Além disso, a musealização de plantas ocorreu de maneira diferente dos animais
presos em gaiolas, pois o processo dependeu da representatividade numérica de espécies por
família, o que representou deslocamentos das coleções à medida que novos terrenos eram
adquiridos e preparados. O fato é que o horto só veio a tomar forma a partir de 1900, quando
partes importantes dos terrenos adjacentes ao museu foram incorporadas à instituição. Pode-se
afirmar que, a partir desse ano, as plantas existentes nos terrenos e as introduzidas a partir das
coletas feitas nas expedições ganharam maior organicidade e organização.

Sobre o traçado paisagístico, temos o representado em 1897, como um plano anexo ao


relatório de atividades de 1896 (Figura 1). Nele é possível identificar alguns elementos
estilísticos de jardim europeu, perceptíveis nas formas adoptadas nos percursos e canteiros.
Este projeto foi influenciado por dois fatores: a) a experiência que Huber obteve na Europa,
quando planejou e/ou construiu um ou mais jardins, provavelmente quando ainda estava na
faculdade, na Basileia; b) o padrão de jardim botânico que estava em voga na Europa, com
canteiros arredondados e de formas orgânicas, mas conservando a simetria no espaço, no
estilo parterres de broderie. Um manual foi particularmente importante como matriz ou
referência estética para Huber, o de Louis-Eustache Audot (1783-1870), concebido como um
tratado de ornamentação de jardins, o qual contém informações detalhadas sobre os diversos
estilos de jardim, além de diversos modelos de traçado e ornamentação.

259
Outra importante característica no aspecto comunicacional e pedagógico do museu foi
a sinalização da coleção viva como dispositivo expográfico e registro das expedições
científicas realizadas pela instituição. Os letreiros apresentavam o “nome científico e vulgar,
parentesco e filiação sistemáticos, proveniência e distribuição geográfica”, dados que,
segundo Goeldi, “agradariam tanto pelo lado da estética como pelo lado da aplicação de
severas regras científicas” (GOELDI, 1897b, p. 17). A importância de etiquetar e de dar a
cada objeto colecionado seu respectivo letreiro foi mencionada tanto por Goeldi quanto por
Huber, reiteradamente, nos relatórios administrativos. Forma e conteúdo, portanto, eram
preocupações de Goeldi, inclusive as informações de domínio popular, como os nomes
vernáculos de cada espécie, capazes de aproximar o público da ciência. Huber também
considerou os nomes populares das plantas, pois notou um interesse por parte das pessoas na
“identificação dos nomes científicos com os nomes vulgares geralmente conhecidos”
(HUBER, 1898, p. 291).
Na época, qualquer casa de Belém possuía um pomar e/ou uma horta, além de muitos
animais silvestres, portanto muitas das espécies de animais e plantas exibidas no museu já
eram bastante conhecidas da população amazônica, mesmo urbana. A grande novidade que o
museu oferecia com suas exposições foi a ressignificação de cada espécime como objeto
cientifico, perceptível no modo em que se apresentavam, de maneira ordenada por princípios
ditados pela ciência e conforme uma estética eurocêntrica.

Narrativa científica

O campo científico ficou em evidência com a transferência do Museu Paraense de sua


antiga sede, no atual bairro da Cidade Velha, para a rocinha de Bento José da Silva Santos,
então localizada na periferia de Belém, na principal via de acesso à cidade. O prédio foi
ampliado e adaptado para servir como espaço expositivo, laboratório, biblioteca, auditório,
escritório, reserva técnica e, em um primeiro momento, também como residência de Emílio
Goeldi e sua família. Tanto no zoológico quanto no horto botânico as exigências do campo
científico também permearam a concepção do espaço: no primeiro anexo, os recintos

260
construídos para abrigar a coleção faunística, além de servirem para a exibição dos animais,
foram pensados para a criação de muitas espécies em cativeiro, selecionadas a partir dos
interesses científicos do diretor (SANJAD et al., 2012); no segundo, dirigido por Huber, tanto
a seleção e a organização da coleção viva quanto a utilização do espaço como local de
observação e experimentação seguiram regras prevalentemente científicas. No horto se
realizaram diversas atividades, como coleta de material botânico, descrição de novas espécies,
observação fenológica, estudos em morfologia e em fisiologia de vegetais, domesticação de
espécies de diferentes ecossistemas amazônicos e a cultura de plantas consideradas ‘uteis’
pelo seu valor econômico, sobretudo as do gênero Hevea, no qual são classificadas as
seringueiras.

Uma equipe técnico-científica relativamente pequena dedicou-se, primeiramente, a


explorar os ambientes vegetados que ainda circundavam o Museu Paraense. Esses ambientes
foram registrados por Huber e seus colegas em fotografias, gerando um conjunto de
documentos que são não apenas representações visuais da Belém do final do século XIX, mas
também testemunhos da flora local, juntamente com as exsicatas depositadas no herbário da
instituição. Segundo Goeldi nesse momento inicial, não foi “preciso ir muito longe para
aprender, investigar e até descobrir” (GOELDI, 1897b, p. 23). Esta afirmação ficou em
evidência ao revisarmos os primeiros volumes do Boletim do Museu Paraense de História
Natural e Etnografia, iniciado em 1894, e o Arboretum Amazonicum, série organizada por
Huber a partir de 1900, com fascículos que reuniam 10 estampas fotográficas impressas em
fototipia.

Essas representações visuais e os registros textuais dessas primeiras coletas realizadas


nos arredores do museu, assim como os vegetais pertencentes aos terrenos da própria
instituição, poderiam ajudar a identificar a proto-coleçao viva do MPEG. Um exemplo dessa
coleção viva são os espécimes que, segundo Huber foram “plantados pelo antigo proprietário”
da rocinha (HUBER, 1900b, p. 54). São os casos de duas frutíferas pertencentes à família das
sapotáceas: o cutitiribá-grande (Pouteria multiflora (A. DC.) Eyma) e a sorva ou sorveira-do-
Peru (Chrysophyllum venezuelanense (Pierre) T.D. Penn.). Huber as descreveu como novas

261
espécies para a ciência, mas os nomes propostos por ele são atualmente inválidos. Uma das
árvores, a sorva, também conhecida como guajará, ainda vive no Parque Zoobotânico do
MPEG e é considerada o indivíduo mais velho da coleção viva, com mais de 120 anos. Tendo
sido objeto de uma descrição taxonômica, é um exemplar-tipo, uma ‘árvore-patrimônio’
conforme a acepção de Taylor (2016) para quem os espécimes vegetais considerados dentro
dessa categoria são pontos de referência primordial para se delimitar a paisagem histórica de
um jardim.

Os exemplos aqui mencionados demonstram que o processo de constituição da proto-


coleção foi bem documentado em publicações científicas e administrativas, assim como em
documentos arquivísticos e coleções museológicas, sendo possível identificar as espécies
selecionadas e os interesses científicos que moviam o pessoal da Seção Botânica, sobretudo
Huber164.

Sobre a distribuição de plantas em canteiros depois de adquiridos os terrenos do lado


oriental do museu, pouco sabemos. Infelizmente, não encontramos o “plano detalhado dos
canteiros com a indicação exata das plantas” (HUBER, 1909a, p. 13) que, segundo Huber,
teria sido feito por Charles Fuller Baker em 1907, o que, sem dúvida, seria uma peça
fundamental para compreender a exposição de plantas do horto em detalhe. É possível
afirmar, contudo, que o espaço destinado ao horto era bastante reduzido e que isso significava
um obstáculo ao desenvolvimento do jardim do ponto de vista científico. Além de administrar
as demandas pela construção de laboratórios, oficinas, residências e prédios necessários para
o funcionamento do museu, Huber teve que gerir a concorrência com o zoológico, que, desde
o início, foi o anexo que ganhou maior acolhida da população belenense. Também foi
necessário destinar um espaço especial para dar continuidade às investigações sobre árvores
gomíferas amazônicas, tema que ocupou a agenda de Huber desde sua chegada a Belém, mas
também uma demanda feita pelos próprios governadores do Pará. Isso requereu o cultivo das

164
Cabe ressaltar que não é nossa intenção, neste momento, reconstituir a proto-coleção do horto botânico do
Museu Paraense. Basta mencionar, como base de nosso argumento, que essa reconstituição é perfeitamente
possível graças ao levantamento documental realizado pelos autores. Este assunto, por sua complexidade e nível
de detalhe, merece uma pesquisa específica.

262
espécies dos gêneros Hevea, Manihot, Castilloa e Sapium, além da produção constante de
mudas, do estudo da reprodução e desenvolvimento das árvores, dos fungos que as
parasitavam e de ensaios sobre a extração de látex.

Narrativa de lazer e sociabilidade

Os ‘anexos’ do Museu foram também espaços de encontro da sociedade belenense, que


além de ir se instruir sobre assuntos científicos, assistia às novidades que eram ali reunidas.
Atrações criadas por Goeldi e Huber, como lagos, esguichos, monumentos cenográficos,
chalés suíços, aquário, grandes gaiolas etc., geraram uma numerosa visitação, “fizeram da
instituição não apenas um lugar de ciência, mas também de curiosidades, de instrução, de
passatempo, de turismo, de propaganda do estado, de adultos e crianças, de letrados e
analfabetos” (SANJAD, 2010, p. 202). O ‘novo’ não se restringiu apenas à flora e fauna, mas
também às transformações arquitetônicas inspiradas nas paisagens naturais e construídas do
Velho Continente.

Durante os primeiros 15 anos, o número de visitantes foi expressivo e crescente. Goeldi


(1897a, p. 284) mencionou que, desde a abertura dos anexos para o público, a metade da
população de Belém visitava o Museu. O diretor ressaltou esse fenômeno e comparou as
cifras de visitação com as do Museu Nacional, no Rio de Janeiro. Segundo ele, o número de
visitantes ao mês, no museu carioca, era equivalente a dois dias no Museu Paraense. Sanjad
(2010) afirma que essa frequência em massa pode indicar que a visita aos anexos tornou-se
um hábito e que a população acompanhou com entusiasmo a transformação desse espaço, que
foi bastante dinâmica desde sua concepção.

Goeldi usou os comentários positivos do público como testemunhos dos bons


trabalhos feitos no espaço durante sua administração: “...não ha quem não tenha elogios pelo
positivo embellezamento sobretudo relativo à frente do estabelecimento contra a estrada da
Independencia, como pela boa ordem e o asseio que por toda parte se nota.” (GOELDI, 1900,
p. 12). O bom impacto que os anexos que causaram na população serviu como fator

263
legitimador da existência da instituição e, portanto, como discurso que Goeldi usou para a
captação de recursos, a ponto do orçamento da instituição, a partir de 1897, ter sido dividido
em duas partes: uma destinada ao financiamento das despesas de manutenção e custeio, outra
específica para a desapropriação dos terrenos vizinhos e para obras de transformação do
espaço. Essa ‘verba extraordinária’, como era chamada, foi justificada para atender o alto
índice de visitação e a crescente demanda do público por curiosidades, animais e plantas.

O abundante número de visitantes em várias ocasiões foi também motivo de conflitos


sociais. Não apenas o espaço era insuficiente para a recepção de elevado número de pessoas,
como as próprias regras de uso desse espaço, que se queria civilizadas e corteses, eram
frequentemente desrespeitadas, tal como comentado por Goeldi (1897a) ao se referir, por
exemplo, a tumultos ocorridos à entrada do museu, pois o público não sabia organizar-se em
filas; ou ao uso inadequado das bengalas, lançadas contra os funcionários da instituição e
utilizadas para maltratar os animais – mas estes recalcitrantes, advertia Goeldi, eram
“geralmente pessoas do povo”(GOELDI, 1901, p. 127) . A indisciplina observada na visitação
em massa levou algumas pessoas, membros da elite local, a solicitarem ao diretor
disponibilizar um dia da semana para a visita de famílias “convenientemente vestidas”.
Assim, toda terça-feira, a partir de 1902, o museu abriu as portas para o “público sensato”, ou
seja, àqueles que preferiam “visitar o estabelecimento em ocasião em que é exercido um certo
peneiramento social (...).” (GOELDI, 1906, p. 492-493). Essas afirmações permitem
compreender não apenas a divisão do espaço, com acesso público ou restrito, mas também os
dias de visita para cada grupo e a consequente segregação social, medida por regras de
conduta e de etiqueta.

Assim, o grande afluxo de visitantes de todas as classes sociais no museu pode ser
explicado pela busca de instrução, distração e/ou entretenimento, pelas formas de
sociabilidade ali desenvolvidas, com o necessário aprendizado de comportamentos ditos
civilizados, ou seja, serviços que a instituição prestou à cidade, ao governo e à elite local e
que deram-lhe uma capilaridade social vigente até a atualidade. O amplo apoio da população
transformou os anexos do museu em referências para a cidade, ponto de encontro, lugar de

264
recreio, atração turística, símbolo de progresso, mostruário e propaganda das riquezas naturais
do estado.

Narrativa doméstica

O espaço doméstico nos museus de história natural e jardins botânicos do século XIX
tem sido pouco trabalhado pela história da ciência e pela museologia. As articulações entre o
público e o privado, entre funcionários e visitantes e também entre os próprios funcionários e
suas famílias, que geralmente residiam dentro das instituições, são relações a ser exploradas e
estudadas em profundidade (OUTRAM, 1996). Poucos estudos abordam a influência das
relações pessoais e familiares no desenvolvimento da ciência e nas atividades museológicas.

O Museu Paraense é um exemplo de espaço museológico construído para o


desenvolvimento de atividades museográficas, incluindo a pesquisa científica, mas também
funcionou como moradia. Todos os funcionários contratados ali residiam, desde o diretor até
os serventes, à exceção dos diaristas. O museu foi, portanto, o lar das famílias Goeldi e Huber,
a primeira com sete filhos e a segunda, com três. Foi também o lar de pesquisadores não
casados, como Adolf Ducke e Emília Snethlage, e o de homens e mulheres responsáveis por
diversos tipos de atividades técnicas, como o inspetor do horto Andreas Goeldi, o fotógrafo
Ernst Lohse e o preparador de zoologia Rodolfo de Siqueira Rodrigues – que veio a se casar
com a secretária Abigayl Esther de Mattos e residir no museu até o final de sua vida, na
década de 1950.

No museu se destacaram dois tipos de espaço doméstico: os compartilhados com o


lugar de trabalho, destinados a preparadores (taxidermistas e herboristas) e ao fotógrafo; e os
construídos ou adaptados para a residência de pesquisadores e do inspetor do horto. Para o
diretor e sua família destinava-se uma casa exclusiva, enquanto os demais pesquisadores,
propositadamente contratados em início de carreira e solteiros, dividiam casas e quartos. Estas
casas construídas ou adaptadas geralmente se localizavam nas margens dos terrenos do
museu, tendo frente para a rua e acesso à instituição pelos fundos, mantendo a privacidade

265
com o uso de uma cerca, que evitava o trânsito de pessoas estranhas. Havia, portanto, uma
separação mínima entre vida familiar/privada e vida laboral.

Para Goeldi a dedicação integral e exclusiva aos que residiam às custas do museu
significava uma exigência e um compromisso institucional. Segundo ele, era “de máxima
utilidade aplicar a este Instituto o cunho e caráter de uma ‘colônia científica’”, isto é, o museu
deveria prover residência a todos os funcionários para obter o máximo desempenho de cada
pessoa, argumento utilizado para reforçar os pedidos de desapropriação dos terrenos vizinhos
(GOELDI, 1897b, p. 14). O diretor considerava que “a atual organização do estabelecimento
com a sua ‘engrenagem’ de verdadeira colônia científica, não admite mais a ideia, nem a
possibilidade de um Museu sem diretor interno”, havendo necessidade, portanto, da
desapropriação de uma residência condigna para ele e sua família “(...) para não perder o
caráter obrigatório de interno e de primus inter pares (...)”(GOELDI, 1897b, p. 7). Portanto,
se era dever do diretor residir no museu e se dedicar apenas à instituição, o mesmo deveria ser
cobrado dos demais funcionários.

A residência no interior do museu implicava em uma dedicação incondicional à


instituição, sem hora, descanso ou compromissos privados. O uso e a organização do espaço,
portanto, repercutia na própria vida pessoal, pois a linha divisória entre o privado e o trabalho
era bastante tênue, tal como as cercas de madeira que demarcavam as residências. Nesse
sentido, vê-se que Goeldi teve sucesso em sua ‘colônia cientifica’, onde não só os
funcionários deviam se comprometer, mas também os membros de suas famílias. Essas
famílias eram também peças da ‘engrenagem’ pensada por Goeldi, que exigia adesão integral
ao seu projeto institucional.

Considerações finais

Analisou-se a construção dos anexos do Museu Paraense, sobretudo o horto botânico,


a partir da ideia de musealidade. Para tanto, o texto foi construído e dividido em quatro
narrativas – comunicacional e educativa, científica, lazer e sociabilidade, doméstica – que
entendemos como eixos estruturais que deram forma ao projeto museológico. Desse modo,

266
observou-se a identidade museal da instituição, a qual, em sua essência, se perpetua até a
atualidade.

As quatro narrativas permitiram analisar os diferentes aspectos envolvidos na


construção dos anexos, bem como indicar possíveis caminhos para estudos sobre a trajetória
do Parque Zoobotânico até a contemporaneidade. A apresentação segmentada dessas
narrativas permite uma melhor compreensão do processo, mas é evidente que existem
interseções entre elas, que suas linhas divisórias implicam em relações de dependência mútua,
que são entrelaçadas e complementares – e não fragmentos desconexos. Todas são
importantes para entendermos a construção de uma ideia de museu de história natural e como
essa ideia se materializou no espaço físico, interpretou e ressignificou plantas e animais,
pretendeu civilizar pessoas e também foi sucessivamente adaptada a partir das circunstâncias
e da reação do público. Vale esclarecer que o convívio dessas narrativas não foi equânime ou
harmônico e que foi, precisamente, a eventual predominância de uma sobre outras e as
tensões, disputas e decisões unilaterais sobre o uso do espaço e sobre as atividades a priorizar
que marcaram decisivamente o rumo da instituição.

Assim, a área aproximada de 2,5 hectares transformados e construídos nesse período


foi residência de um contingente de cientistas estrangeiros e suas famílias, assim como centro
de encontro de todas as classes sociais de Belém, que se reuniam ao redor de uma natureza
amazônica musealizada, onde a coleção viva organizada segundo critérios científicos e
estéticos também fazia referência a hábitos culturais da população. Tudo parece ter
contribuído para a adesão imediata da população a esse projeto institucional. Se a pesquisa
realizada no museu deu renome internacional à instituição, foram seus propósitos
educacionais que lhe garantiram apoio político e social, pois sem a alta frequência de público,
Goeldi e Huber, provavelmente, não teriam conseguido o apoio econômico e aprovação da
elite local. Em resumo, foram essas diferentes forças que atuaram na construção do espaço
museológico que pretendemos ressaltar nesse trabalho.

267
Referências
GOELDI, Emílio. Relatório apresentado ao Sr. Dr. Secretário de Estado da Justiça, Interior e
Instrução Pública, referente ao ano de 1902, pelo Diretor do Museu. Boletim do Museu
Paraense de História Natural e Etnográfica, v.4, n.4, p. 467-510, 1906.

. Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Paes de Carvalho, Governador do Estado do


Pará, pelo Director do Museu Paraense de Historia Natural e Ethnographia. Anno 1899.
Boletim do Museu Paraense de História Natural e Etnografia, v.3, n.2, p. 105-134, 1901.

. Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Dr. José Paes de Carvalho, Governador do


Estado do Pará, pelo Director do Museu Paraense. Boletim do Museu Paraense de História
Natural e Etnografia, v.3, n.1, p. 1- 53, 1900.

. Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Lauro Sodré, Governador do Estado do


Pará, pelo Director do Museu Paraense. Boletim do Museu Paraense de História Natural e
Etnografia, v.2, n.3, p. 257-287, 1897a.

. Relatório apresentado pelo Director do Museu Paraense ao Sr. Dr. Lauro Sodré,
Governador do Estado do Pará. Boletim do Museu Paraense de História Natural e
Etnografia, v.2, n.1, p. 1-27, 1897b.

HUBER, Jacques. Relatório sobre a marcha do Museu Goeldi no ano de 1907 apresentado ao
Exmo. Sr. Dr. Secretário de Estado da Justiça, Interior e Instrução Pública pelo Dr. J. Huber,
Diretor do Museu. Boletim do Museu Paraense de História Natural e Etnográfia, v.6, p. 1-
21, 1909a.

. Duas Sapotaceas novas do Horto Botânico Paraense. Boletim do Museu de


História Natural e Etnografia, v.3, n.1, p. 54-59, 1900b.

. Materiais para a flora amazônica. I. Lista das plantas coligidas na ilha de Marajó no
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LOPES, Maria Margaret; MURRIELLO, Sandra Elena. Ciências e educação em museus no


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relevance. Museologia & Interdisciplinaridade, v. 9, n. 5, p. 120-134, 2016.

269
O MUSEU PARAENSE NO PROCESSO DE MUSESEALIZAÇÃO DAS
CERÂMICAS AMAZÔNICAS EM MEADOS DO SÉCULO XIX165

Josiane Martins Melo*


Nelson Sanjad**
**Museu Paraense Emílio Goeldi

Resumo: O presente trabalho buscou entender os processos de musealização que levaram as


cerâmicas arqueológicas encontradas na região do Maracá (Amapá), em meados do século
XIX, a comporem o quadro de objetos do Museu Paraense. Ao analisar as primeiras dinâmicas
museais das cerâmicas do Maracá, buscou-se explorar também como o museu estava
organizado, quais eram as coleções da instituição naquele momento, as expedições feitas em
busca dessas cerâmicas e o porquê desses objetos serem musealizados. A pesquisa também
buscou fazer um diálogo entre as áreas da Museologia e História. As fontes utilizadas somam
relatórios provinciais, o Jornal do Pará e as pesquisas realizadas por Domingos Soares Ferreira
Penna.

Palavras-chave: Museu Paraense; Musealização; Cerâmicas arqueológicas.

Abstract: The present work sought to understand the processes of musealization that led the
archaeological ceramics found in the region of Maracá (Amapá), in the middle of the
nineteenth century, to compose the objects of the Museu Paraense. When analyzing the first
museum dynamics of the ceramics of Maracá, Sought to understand also how the museum was
organized, what were the collections of the institution at that time, the expeditions made in
search of these ceramics and why these objects were musealized. The research also sought to
make a dialogue between the areas of Museology and History. The sources used were
provincial reports, the Jornal of Pará and the searches made by Domingos Soares Ferreira
Penna.

Key-Words: Paraense Museum; Musealization; Archaeological ceramics.

A cidade de Belém, no período do boom gomífero (1870-1910),166 viveu


mudanças sociais e políticas, tornando-se uma cidade mobilizada por redes de
conexões que vão desde a incorporação

165
A escrita desse artigo é derivada da dissertação de mestrado intitulada “Objetos em Trânsito: a
musealização de artefatos arqueológicos no Museu Paraense Emílio Goeldi (1894-1907)”. A dissertação
abordou a musealização de artefatos arqueológicos no Museu Paraense Emílio Goeldi no período de 1894 a
1907, sobretudo das cerâmicas Cunani, encontradas ao norte do Amapá em 1895, e das cerâmicas dos rios
Maracá e Anauerá-Pucú, no sul desse mesmo estado, em 1896.

270
da mão de obra nordestina à assimilação de costumes estrangeiros. Sarges (2010) afirma que, diante
das políticas de urbanização e do desenvolvimento material do final do século XIX, “a configuração
de uma nova estética pautou-se pelos símbolos que identificavam uma ‘cidade civilizada’, ao
mesmo tempo em que criava significados que seriam cristalizados na memória dos habitantes da
pretensa ‘Paris Tropical’.” (SARGES, 2010, p.195). Coelho (2011), ao retrabalhar as formas de
representação da chamada belle époque em Belém, afirma que:

Belém viveu o boom da borracha amazônica e conheceu representações da cultura


urbana e da sociabilidade deflagradas pela mundialização dos padrões e dos ritos
culturais da burguesia europeia fin de siècle.167 (COELHO, 2011, p.)

Nesse período, o Museu Paraense168 representou uma faceta moderna e cosmopolita


da cidade de Belém, na medida em que materializava determinada ideia de ‘progresso’ que se
desenvolveu entre as elites regionais. Uma de suas funções era construir narrativas sobre a
sociedade, seu passado e seu futuro, por meio da cultura material e imaterial. Os museus
operam como instrumento de memória, como ferramenta para o conhecimento e, a exemplo
do Museu Paraense, como lugar de interpretação de objetos produzidos pelos povos indígenas
da Amazônia. As coleções, portanto, tornam-se um repositório simbólico, político e cultural
de cada sociedade. Como afirma Meneses (2005), a cultura material participa da produção e
da reprodução social no sentido de que

Os artefatos, por exemplo, são não apenas produtos, mas vetores de relações
sociais. Que percepção temos desses mecanismos? Não se trata, apenas,
portanto, de identificar quadros materiais de vida, listando objetos móveis,
passando por estruturas, espaços e configurações naturais (...). Trata-se, isto
sim, de entender o fenômeno complexo da apropriação social de segmentos
166
De acordo com Nazaré Sarges (2010), entre 1870 a 1910 a cidade de Belém foi “o principal porto de
escoamento de produção do Látex, além de se tornar a vanguarda cultual da região”. IN: SARGES, Maria de
Nazaré. Belém: riquezas produzindo a Belle Époque (1870-1912). Ed. 3. Belém, Paka-Tatu, 2010, p. 146.
167
COELHO, Geraldo Mártires. Na Belém da Belle époque da borracha (1890-1910): dirigindo os olhares.
Revista Escritos. Ano 5, n. 5, 2011, p. 150.
168
O Museu Paraense foi criado em 1866 e transformado, em 1894, em Museu Paraense de História Natural e
Etnografia. Em1900, tornou-se Museu Goeldi. A partir de 1931 foi renomeado para Museu Paraense Emílio
Goeldi, sua atual denominação. Ver SANJAD, Nelson. A Coruja de Minerva: o Museu Paraense entre o
Império e a República (1866-1907). Brasília: Instituto Brasileiro de Museus; Belém: Museu Paraense Emílio
Goeldi; Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, 2010, p. 50.

271
da natureza física – e, mais ainda, de apreender a dimensão material da vida
social. (MENESES, 2005, p. 18)

Assim, o Museu Paraense se tornou uma compilação do repertório simbólico sobre o


universo natural e indígena da/na Amazônia. Este trabalho tem como objetivo entender como
se deu as primeiras dinâmicas museais que levaram as cerâmicas arqueológicas encontradas
na região do Maracá (Amapá), em meados do século XIX, a comporem o quadro de objetos
musealizados pelo Museu Paraense.
A musealização é um termo importante para o campo de estudos da museologia, pois, é a
partir das dinâmicas da musealização que os objetos ganham o status de museália, ou seja, é aí que
os objetos tornam-se objetos de museus. A musealização é um conjunto de operações técnicas e
simbólicas realizadas no tratamento dos objetos (seja ele um objeto material ou imaterial), é
entendida como:

operação de extração, física e conceitual, de uma coisa de seu meio natural


ou cultural de origem, conferindo a ela um estatuto museal – isto é,
transformando-a em musealium ou musealia, em um ‘objeto de museu’ que
se integre no campo museal. (DESVALLÉES; MAIRESSE. 2013, p.57)

Para entender esse processo, foi preciso analisar como o museu estava organizado,
quais expedições foram feitas, quais coleções arqueológicas foram coletadas pelo museu e
quais pesquisas foram feitas sobre as cerâmicas, além disso, é necessário entender quais
sujeitos históricos estavam envolvidos nas dinâmicas de trocas e coletas de objetos e
informações.
O Museu Paraense surge no cenário cultural amazônico em 1866 como Sociedade
Filomática. A instalação oficial do Museu Paraense e da Biblioteca Pública enquanto repartições
públicas, ocorreu em 25 de março de 1871, aniversário da Constituição, pelo presidente da
província Joaquim Pires Machado Portella (SANJAD, 2010, p. 62-63). Ambas as instituições foram
instaladas em salas térreas do Liceu Paraense e ali funcionaram durante suas primeiras décadas. A
biblioteca foi instalada com 2.196 volumes e depois viria a receber do Rio de Janeiro “um bom
contingente remettido e offerecido pelo fundador da Bibliotheca, o sr. dr. Portella”, como afirmou o
vice-presidente Abel Graça (1871, p. 15). Também foi remetida uma coleção quase completa da

272
revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro pelo diretor Fernandes Pinheiro e livros novos
oferecidos por Hartt. Quanto ao museu, Abel Graça reforçaria a importância de desenvolver as
ciências na província:

O Muzeo Paraense é o estabelecimento mais importante, que mais poderosa


influencia tem de exercer para o desenvolvimento das sciencias nesta
provincia, o Muzeo é o primeiro nucleo de um estabelecimento de ensino
superior, é o centro á que se hão acolher no Pará os estudos da sciencia da
natureza. (GRAÇA, 1871, p. 15)

Os objetos que compunham o museu, nesse momento de instalação oficial, eram:


uma coleção de serpentes; uma coleção de minerais da Europa (antes pertenciam à
Repartição de Obras Públicas); objetos ofertados por diversas famílias paraenses e também
pelo naturalista J. B. Steere, que viajava pelo Amazonas; e uma coleção geológica doada pelo
Museu Nacional do Rio de Janeiro (GRAÇA, 1871, p. 16). Pensando em manter e proteger a
biblioteca e o museu, o vice-presidente Abel Graça pediu à Assembleia Provincial, ainda em
1871, mais recursos, a serem usados em novas instalações, uma vez que o local onde foram
instalados era “úmido” e “sombrio”, portanto “muito improprio para a conservação dos
productos offerecidos ao estabelecimento” (p. 16). Segundo Graça, era necessário que os dois
espaços tomassem a proporção “d’um estabelecimento scientifico digno de um paiz
civilizado” (p. 17). Sobre isso, é notável a preocupação de Abel Graça perante a conservação
dos objetos. Essa preocupação pode parecer singela, mas se mostra relevante para entender
que, no século XIX, já existia a sensibilidade de pensar o local de guarda dos objetos. O
prédio deveria ser seguro e próprio para a conservação das peças. Além disso, nota-se o valor
empregado à conservação. Um museu em boas condições conservativas mostraria um status
diferenciado, seria digno de um país civilizado.
No regulamento do Museu Paraense, assinado pelo presidente da província Joaquim
Pires Machado Portella, em 15 de abril de 1871, o investimento na instituição era creditado
às “vantagens, que necessariamente resultão d’este estabelecimento para a instrucção publica
e progressos scientificos (...).” (DO PARÁ, 1870, p.1). Portella explica como deveria ser
organizado o museu: o artigo 2.º, por exemplo, informa que um dos objetivos do conselho de
administração era “Promover a acquisição do maior numero possivel de objectos para o

273
Musêo, podendo este interesse ser tratado collectivamente, por influencia e trabalho
particular de cada um dos membros do conselho.” O conselho deveria organizar as seções
científicas, incluindo a classificação dos objetos, em número de sete: 1.ª Mineralogia e
Geologia; 2.ª Botânica e Zoologia. 3.ª Ciências Físicas; 4ª. Agricultura; 5ª. Arqueologia; 6ª.
Numismática; 7ª. Artes Liberais e Artes Mecânicas. (DO PARÁ, p. 1). Os membros do
conselho também deveriam oferecer “lições públicas”, isto é, palestras abertas ao público em
geral. Como afirma Sanjad (2010, p. 64), há diferenças entre o Museu Paraense imaginado
por Ferreira Penna em 1866 e a instituição oficializada em 1871: o aumento significativo de
seções, a substituição da Etnografia pela Arqueologia e o desaparecimento da História.
As ciências físicas e naturais foram priorizadas na estrutura do Museu Paraense em 1871.
Não seria demasiado afirmar que isso se deveu pelo compromisso social e econômico que o museu
assumiu, desde a década de 1860, ao incentivar a exploração do território e a exibição de objetos
naturais para potencializar a economia agrícola na província. Deve-se considerar, ainda, que a
década de 1860 revela o início do chamado ‘movimento dos museus’ no Brasil, cujo foco foi,
justamente, a coleta e exibição de objetos naturais, bem como a exploração do território nacional.
Segundo Lopes (2009), em meados do século XIX, “o Museu Nacional deixaria de ser o único
dedicado à História Natural do país” (p. 152). Nesse período, surgiram ou ganharam melhor
estrutura o Gabinete de História Natural da Bahia, o Gabinete de História Natural do Maranhão, o
Gabinete de História Natural de Pernambuco, o Gabinete do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro e o Museu Paraense. Em 1876, ocorreu a reforma do Museu Nacional, sob a liderança de
Ladislau Neto, a fundação do Museu Paranaense e, no ano seguinte, a inauguração da Associação
Auxiliadora do Progresso da Província de São Paulo (Lopes, 2009). Figueirôa (1997, p. 103-105)
afirma que, a partir da década de 1870, o crescimento econômico e a ampliação da infraestrutura
material do Estado ensejaram a criação de novos espaços científicos, a reformulação de espaços já
existentes e a especialização e profissionalização de técnicos e cientistas. O desenvolvimento
econômico e material do país deu espaço para a valorização e incorporação da ciência em vários
setores da sociedade, sobretudo a mineração e a agricultura. Assim, novos museus e práticas
museais iam ganhando espaço no cenário nacional.

274
A etnografia e a arqueologia passaram a ser valorizadas em outra chave analítica, mais
próxima dos estudos históricos incentivados pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
(IHGB) ao longo do Segundo Reinado: o processo de construção de uma identidade nacional, que
exigia a idealização de um passado enobrecido pela existência de ‘civilizações’ indígenas e a
incorporação dos povos indígenas do presente como mão de obra para uma agricultura em
expansão. Os museus, em geral, eram os núcleos onde esse debate era promovido. Por exemplo, ao
analisar a formação de museus nacionais na América Latina, como os da Argentina (1812), Brasil
(1818), Chile (1822), Colômbia (1823), México (1825), Peru (1826) e Uruguai (1837), Lopes
(1998) associa o papel social desses museus e os processos de independência de cada país. A
ruptura política do antigo sistema colonial e a construção de novos Estados fez com que os museus
se engajassem na exploração dos territórios e também fossem os principais produtores de símbolos
e signos das novas identidades nacionais. Nesse sentido, a autora concebe os museus enquanto
“ideais em funcionamento” (p. 157). Portanto, a musealização de objetos naturais e artefatos
arqueológicos no Império se deu por motivações políticas de um Estado em fase de consolidação
territorial e civil.
Nesse mesmo sentido, Poulot (2011), ao estudar o museu e o empreendimento patrimonial
de monumentos e objetos artísticos na França durante e pós-Revolução, revela-nos como os objetos
foram sendo inseridos em uma nova economia moral. O que surge nesse processo é o uso do
patrimônio para “uma nova representação do passado que se tenta forjar através de uma judiciosa
distinção do insignificante a ser apagado ou do memorável a ser instaurado (...)” (p. 16). Assim,
afirma Poulot que:

A cultura material do passado entra, ao mesmo tempo, em um processo de


reescrita da História, na reconfiguração das imagens públicas, na elaboração
de uma nova memória dos saberes e em uma monumentalidade coletiva
inédita. O patrimônio deve ser entendido como uma forma de reorganização
racional dos recursos para a coletividade. (2001, p. 17).

A arqueologia e a etnologia, portanto, no século XIX, começaram a servir ao projeto de


formação social de cada país a partir de uma nova representação do passado. No Brasil, as pesquisas
arqueológicas foram caracterizadas por aquilo que Ferreira (2010, p. 17) chama de “arqueologia
nobiliárquica”. O Império queria projetar, no presente, a representação de um passado nobre, no

275
qual os indígenas estariam impregnados de valores europeus e viveriam em grande ‘adiantamento
moral’. (LANGER, 2002). Buscavam-se vestígios que sinalizassem a existência de grandes
‘civilizações’ em território brasileiro, tal como ocorrera com o Peru dos Incas e o México dos
Astecas. As cerâmicas da ilha de Marajó e do Amapá, já conhecidas na década de 1870, serviram,
inicialmente, a esse propósito, isto é, compuseram uma narrativa ‘majestosa’ dos povos do passado.
A origem da cerâmica marajoara, por exemplo, foi atribuída por Ladislau Neto a “alguns Incas
[que] teriam fugido da fúria espanhola, descendo pelo grande rio, até chegarem na acolhedora ilha,
que também serviu de refúgio contra outros índios.” (LANGER, 2002, p. 62).
Após sua instalação oficial em 1871, Ferreira Penna começou a ampliar a coleção
arqueológica do Museu Paraense por meio de sucessivas viagens ao Marajó e ao Amapá. Os
relatórios e trabalhos publicados por Penna, assim como os de Hartt e Ladislau Neto, são
primordiais para entender a formação dessa coleção e o processo de musealização dos artefatos
arqueológicos.
Em 1872, Abel Graça informou à Assembleia Provincial, novamente, sobre as coleções da
Biblioteca Pública e do Museu Paraense. De início, o vice-presidente manifestou preocupação com
as condições de conservação do museu, que se achava “mal accommodado; o que occasionou a
destruição de alguns dos seus ainda poucos produtos.” (GRAÇA, 1872, P. 17). Recebendo
instruções de Abel Graça, Ferreira Penna visitou e fez estudos nas comarcas de Gurupá, Macapá,
Bragança e Marajó (Figura 1). Em 30 de janeiro de 1872, chegou a Gurupá, passou às cachoeiras do
Xingu, Aquiqui e Paru. No retorno, visitou Almeirim, subiu os rios Tauaré até a boca do Aramucu,
Jari e parte do Cajari, Maracá e Mazagão. A partir dessa viagem, publicou o relatório “Notícia Geral
das Comarcas de Gurupá e Macapá”, em 1874, contendo informações sobre os rios visitados, o
estado das povoações, a instrução pública, o estado religioso, as antiguidades locais e recordações
históricas, sobre o porto de Mazagão e as coleções formadas para o Museu. (PENNA, 1873).

276
Figura 1: Alguns dos lugares percorridos por Domingos Soares Ferreira Penna nas comarcas de Gurupá e
Macapá.

O que mais interessa aqui é explorar quais coleções foram reunidas no museu,
principalmente as oriundas da região do rio Maracá. Ferreira Penna afirma que, nessa viagem,
pouco foi coletado. Tentou contratar um taxidermista, mas não obteve os recursos necessários.
Acabou levando um rapaz, a quem iria ensinar a preparar animais, pagando-lhe uma gratificação
diária pelo serviço. Dois motivos foram colocados para justificar o pouco que foi coletado: a) as
fortes chuvas, que inundaram os campos e as matas vizinhas; e b) e o fato da viagem ter sido feita
em barco a vapor, transporte impróprio para esse tipo de atividade, pois demoravam no porto e
desperdiçavam tempo. Ferreira Penna chama atenção para algumas “antiguidades e recordações
históricas” encontradas em Macapá, Almeirim, Porto de Moz e Gurupá, como as ruinas de antigas
fortificações. Visitou grutas e jazigos funerários dos antigos índios, principalmente no curso do rio
Maracá e afluentes (PENNA, 1873).
O principal motivo da visita ao rio Maracá foi a busca das urnas encontradas, pela primeira
vez, pelo médico e naturalista amador Francisco da Silva Castro (1815-1899). Segundo Ferreira
Penna, foi ele quem ‘descobriu’ os jazigos dispostos ao longo do rio e formou a primeira coleção

277
Maracá, doada ao Museu Paraense em 1871. Esses jazigos poderiam ser similares aos dólmens, isto
é, aos monumentos megalíticos tumulares coletivos encontrados na Europa e no Oriente. Contudo,
ao visitar o local, Ferreira Penna chegou à conclusão que se tratava de abrigos sob rocha naturais e
não produtos da engenhosidade humana:

Estas urnas (...) foram a causa principal da minha visita ao rio Maracá, na
intenção de examinar os seus próprios jazigos, conjecturando eu então que
bem podia ser que êstes fossem outros tantos Dolmens como os dos tempos
pré-históricos da Europa. Verifiquei, porém, que os jazigos eram grutas
naturais, onde a arte humana não teve a menor parte. (PENNA, 1873, p.17).

De acordo com Cunha (1989), Castro “colecionava e estudava os objetos de cerâmica de


índios extintos, provenientes de vários sítios da região amazônica.” (CUNHA, 1989, p. 35.). Tinha
conhecimento dos sítios arqueológicos do Pacoval, no Marajó, e do rio Maracá. De 1865 a 1869,
enviou peças arqueológicas, etnográficas, zoológicas, botânicas e mineralógicas a várias
instituições, incluindo o Museu Nacional e o Museu Paraense. Já em 1871, quando o Museu
Paraense foi instalado oficialmente, como repartição pública, Castro enviou novamente objetos de
história natural e artefatos indígenas. Entre os artefatos, consta uma urna funerária com formato
humano, contendo ossos. (CUNHA, 1989). Esse tipo de urna, com suas formas representando
“corpos humanos em atitude sedentária – outras, répteis da família Emidina com rostos
simbolizando a imagem do Sol ou de outra divindade – encerrando umas e outras esqueletos
humanos, ou mesmo alguns restos de ossos que a idade dos tempos tinha em grande parte
consumido (...)” (PENNA, 1873, p. 23), seriam de grande interesse científico, “que mais tarde e
com a descoberta provável ou possível de outros monumentos, podem trazer alguma luz para a
história tão obscura daqueles antigos produtores das terras que hoje habitamos”. (PENNA, 1873)
Ferreira Penna publicou um texto nos “Arquivos do Museu Nacional”, em 1877, no qual
levanta questões relevantes para a discussão da arqueologia e a interpretação desses e de outros
objetos. Na análise sobre a situação dos “cerâmios” amazônicos,169 listou os sítios já visitados à

169
Ferreira Penna afirmava que “Cerâmio, com efeito, exprime, por sua etimologia um local em que abundam artefatos
de barro, como Pacoval, Santa Izabel, Camutins, Maracá etc., e por sua aplicação entre os gregos, - jazigos onde
repousam os ossos ou cinzas de homens distintos por seus serviços. Ainda este último sentido o nome Cerâmio é
plenamente aplicável aos chamados Aterros Sepulcrais, pois não resta duvida que as urnas mortuárias que nestes se tem
encontrado, pertenciam unicamente a pessoas que, por qualquer princípio, gozavam de certas honras e distinções entre

278
época, como os de Miracanguera (rio Madeira), Óbidos, rio Maracá (Amapá), Santa Izabel, Pacoval
e Camutins (ilha de Marajó). Sobre Miracanguera, Ferreira Penna afirmou ter encontrado dois
“cerâmios” com artefatos de barro, feitos com argila fina, levemente corada, com ornatos na parte
externa. Em Santa Izabel, encontrou material arqueológico com “perfeição dos desenhos, relevos e
pinturas dos vasos”, assim como em Pacoval (Figura 2). Para Ferreira Penna, o “cerâmio” do
Pacoval era o mais importante de todos, com formato de pequena colina baixa e artificial, “pela
maior parte coberto de árvores de mediana grandeza”. (PENNA, 1973, p. 146-147). Encontrou ali
urnas de barro grosso, quebradas, duas urnas pintadas de “amarelo e vermelho em campo
acinzentado e outra com alguns relevos e pinturas de côr azul e encarnada”. (p. 150). Viu uma urna
grande, “belamente pintada e com alguns relevos”, mas “algumas raízes da árvore tinham penetrado
no bojo da urna, fazendo-a estalar e a sua queda acabou de quebra-la” (p. 141). Afirmou, sobre o
resultado das escavações, que não foi muito satisfatório por não ter encontrado “nem um vaso
inteiro”. (p. 151). Encontrar um objeto inteiro e bem ornamentado, que pudesse servir de
testemunho, modelo e exemplo, era primordial para comprovar a existência de grandes
‘civilizações’ em território brasileiro e para ‘monumentalizar’ esse mesmo território.
Figura 2. Estampa representando as urnas de Miracanguera (5) e Pacoval (3 e 4) (Penna, 1877).

as populações indígenas.” IN PENNA, D. S. Ferreira. Apontamentos sobre os Cerâmios do Pará. PENNA, D. S.


Obras completas de Domingos soares Ferreira Penna. 2 v. Belém: Conselho Estadual de Cultura, 1973, p. 145.

279
Sobre o Amapá, Ferreira Penna afirmou ter visitado o “cerâmio” de Maracá duas vezes e
encontrado “urnas de formas tubulares representando corpos humanos, e outras em forma de
jabutis, tartarugas terrestres.” (PENNA, p. 148). Ele disse não ter bases suficientes para formar um
juízo seguro sobre a significação simbólica das urnas de Maracá, mas que era possível distinguir,
em uma delas, um jabuti com rosto humano (Figura 3, número 1) e, na outra, uma criança sentada
sobre um jabuti e com o distintivo sexual masculino (Figura 3, número 2). Sobre as demais urnas
tubulares do Maracá, semelhantes à de número 2, Ferreira Penna não pôde descrevê-las por ter
perdido parte das suas anotações, mas indicou um artigo de Hartt, publicado no “American
Naturalist”, no qual “descreveu magistralmente e figurou uma urna do mesmo caráter e semelhante
àquelas, a qual existira também no Museu Paraense.” (PENNA, 1973, p. 165).

Figura 3. Estampa representando as urnas do rio Maracá (Penna, 1877).

Dois argumentos interpretativos de Ferreira Penna são colocados perante as cerâmicas do


Marajó, Amapá e Amazonas. Steere já havia comunicado que, no Pacoval, existia uma distinção nas
camadas estratigráficas onde os vasos são encontrados, “apresentando cada uma artefatos
sensivelmente diferentes quanto aos desenhos e outros ornatos, contendo a secção inferior os mais
perfeitos exemplares e a superior os menos importantes.” (1976, p. 151). Ferreira Penna visitou o
Pacoval para comprovar a observação de Steere e formulou uma hipótese sobre as diferentes
camadas estratigráficas, sugerindo “que as três camadas de vasos tão distintos entre si, por seus

280
ornatos, representam outras tantas fases de uma civilização decrescente.” (p. 152). Nesse sentido,
afirmou que houve, no Marajó, um povo que retrocedeu gradualmente por ter encontrado condições
difíceis de desenvolvimento. Afirmou:

Houve em Marajó um povo que, chegado a um importante grau de


civilização, achou-se inopinadamente em circunstâncias tão difíceis, que não
só foi constrangido a parar no caminho do progresso, mas a retroceder
gradual e talvez rapidamente até recair nos domínios da barbaria. (PENNA,
1973, p. 152).

O segundo argumento é uma hipótese sobre a identidade dos “construtores dos cerâmios”.
Descobrir qual povo elaborou essas cerâmicas foi um dos objetivos de Ferreira Penna. Ele não
achou importante apenas descrever as peças, suas dimensões e seus formatos, mas procurou
também responder sobre a origem desses pequenos monumentos. Para isso, utilizou trabalhos de
antropólogos norte-americanos, como J. W. Foster (1836-1917), que pesquisou sobre os mounds
dos Estados Unidos. Segundo Ferreira Penna, as urnas de Maracá estavam dispostas de maneira
semelhante às encontradas nos mounds do Tennessee e do sul dos Estados Unidos, onde os
“Caraíbas” teriam se estabelecido em épocas remotas (PENNA, p. 161). Esses “Caraíbas” também
teriam sido os construtores dos tesos e das cerâmicas da foz do Amazonas, levando Ferreira Penna a
concluir que as Américas não haviam sido povoadas por asiáticos ou povos do Velho Mundo, e sim
por “uma raça puramente americana”. Essa “raça” teria se originado no planalto central de Minas
Gerais, “o mais antigo torrão do Globo, segundo a autoridade do Venerável [Peter] Lund, o
patriarca da antropologia brasileira.” (PENNA, 1973, p. 169).170 Essa “raça” teria migrado para o
sul e para o norte e dado origem às grandes civilizações andinas e aos povos do Caribe, incluindo os
da foz do Amazonas. Ferreira Penna também se utilizou de um trabalho do arqueólogo Ephraim
George Squier (1821-1888), que fazia estudos sobre os chulpas peruanos e do qual absorveu a
questão sobre migração ou autoctonia. Squier (1870) afirmou que “monumentalmente ao menos, a
civilização do Pará era indígena, tendo sido gradualmente desenvolvida mas não introduzida de
fora.”(apud PENNA, p.169). Essa era uma questão importante para demonstrar que, no passado, o

170
Ibidem, p. 169. Como afirma Funari (1994), Peter Wilhelm Lund é considerado o primeiro estudioso da pré-história
brasileira. IN: FUNARI, Pedro Paulo. Arqueologia Brasileira: visão geral e reavaliação. Revista de História da Arte e
Arqueologia. N. 1, 1994. P. 25.

281
solo nacional havia sido habitado por uma ‘raça nobre’, que havia surgido e se desenvolvido ali
mesmo, chegando a se espraiar por todo o continente americano.
Essas ideias também eram defendidas por brasileiros como João Batista de Lacerda (1846-
1915), Batista Caetano de Almeida Nogueira (1797-1839) e Couto de Magalhães (1837-1898), que
procuravam fortalecer o argumento com base na antropologia física e na linguística. Batista
Caetano, por exemplo, defendia que os povos que primeiro povoaram o Brasil foram os Caribas e
que seu berço seria o planalto central de Minas Gerais.171 Para Ferreira Penna, esse povo dominou a
costa sul do Brasil e transmigrou para o norte da América, não parando “senão nas montanhas dos
Aleganis ou Apalachos” (PENNA, p. 171). Portanto, em sua resposta sobre quem seriam os
construtores das antiguidades encontradas na foz do Amazonas e no Solimões, Ferreira Penna
afirmou que foi a “raça mais nobre e mais empreendedora da América”, os Caribas. No decurso de
seu desenvolvimento, essa nobre “raça” teria encontrado dificuldades para sobreviver no território
brasileiro e acabou degenerando nos atuais índios.
As teorias de Ferreira Penna foram analisadas por Ferreira (2003) e Noelli e Ferreira
(2007) a partir da perspectiva crítica dos estudos pós-coloniais, principalmente, no que tange a ideia
de ‘degeneração’ característica do século XIX. Segundo os autores, a arqueologia se originou
historicamente com o movimento imperialista e colonialista, o que acarretou o surgimento de
teorias como a da degeneração dos povos indígenas americanos. Entre os teóricos está Karl
Friedrich Philipp von Martius (1794-1868). Segundo ele, o indígena não tinha galgado para a
evolução da humanidade e nem estaria, como apostava Rousseau, em seu estado primitivo, ele teria
se degenerado e passava pelo processo de involução. As representações feitas sobre o passado,
dentro de um projeto colonialista, não se deram apenas no âmbito da exploração dos territórios
nativos, da conquista econômica e política de lugares periféricos, mas também no âmbito da
elaboração cultural e científica do colonialismo. Existem, portanto, jogos de representação
motivados pelas relações entre colonizado e colonizador, que reorientam a construção de imagens
“que colocaram as sociedades indígenas em posição de inferioridade cultural, classificando-as como
bárbaras, primitivas e (...) degeneradas.” (NOELLI; FERREIRA, 2007, p. 1241). Nesse sentido, os
autores afirmam que a arqueologia se consolidou como um projeto geoestratégico, no qual a suposta
171
CAETANO, Batista. Apontamentos sobre o abanheenga (também chamado guarani, ou tupi, ou língua geral dos
Brasis)

282
‘degeneração’ dos povos indígenas serviu como chave interpretativa da relação entre o índio e o
Estado monárquico. O desenvolvimento das ciências e o papel difusionista dessas teorias na
América junto à expansão imperial europeia, “geraram nas colônias uma intensa criatividade
intelectual; uma dialética entre propagação metropolitana e reelaboração colonial.” (NOELLI;
FERREIRA, 2007, p. 1241).
Outros autores também analisaram a obra de Ferreira Penna e seus contemporâneos,
ressaltando certa dissonância nas interpretações. Langer (2002), por exemplo, afirma que, nos
oitocentos, alguns dos primeiros arqueólogos, diferentemente de Ferreira Penna, acreditavam que os
antigos marajoaras haviam se originado no Peru incaico e que ambos, povos do Amazonas e dos
Andes, eram provenientes da Ásia, ideia que colidia com o autoctonismo ameríndio. Ladislau Neto
foi um dos principais defensores dessa outra hipótese. Ele baseou seus argumentos em comparações
entre os grafismos achados nas cerâmicas marajoaras e os encontrados no México, na China, no
Egito e na Índia. Como afirma Linhares (2015, p. 58), essas comparações eram feitas para provar a
evolução cultural dos indígenas brasileiros do passado. Ao comprovar semelhanças entre as
cerâmicas produzidas por maias, astecas, incas, gregos, indianos e chineses, Ladislau Neto
mostraria que os índios que habitaram o Brasil eram o “berço” da nossa civilização nobre, mesmo
que tenham degenerado ou sido extintos.
Além de Ladislau, João Barbosa Rodrigues (1842-1909), mineiro e formado em
engenharia, também contribuiu para as teorias difusionistas transcontinentais, que explicavam a
migração e conexão entre diferentes culturas a partir de um ponto de origem comum. Segundo
Ferreira (2010, p. 41), Barbosa Rodrigues interpretou o surgimento da ‘civilização’ amazônica a
partir de um suposto contato dos índios com os povos nórdicos e de suas relações com os “filhos de
Odin”. Esse argumento também era baseado em comparações: pinturas rupestres do rio Branco que
pareciam embarcações nórdicas; a semelhança entre motivos decorativos da cerâmica marajoara e o
martelo de Thor e entre os sambaquis do Pará e os da Dinamarca; e os chamados ‘ídolos
amazônicos’, pequenos amuletos em formato de animais (geralmente batráquios) confeccionados
com minerais verdes, jadeíte e nefrita, que, para Barbosa Rodrigues, eram provenientes da
Ásia.(LANGER, 2002,p. 75). Como afirma Ferreira (2010), essas ideias difusionistas e a hipótese

283
das migrações nórdicas para a América ganharam grande divulgação no final dos anos 1830 na
Dinamarca e nos Estados Unidos. (FERREIRA, 2010, p. 41)
Assim, pergunta-se, a partir de Noelli e Ferreira (2007), “como fundar um contrato social
com ‘ruínas de povos’, como colonizar e integrar à sociedade povos degenerados?” (p. 1248). Em
termos da incorporação intelectual e discursiva dos grupos indígenas à sociedade nacional,
pensamos, aqui, em duas possibilidades: a primeira, que não será desenvolvida por extrapolar
nossos objetivos, mas que já é objeto de análise de muitos autores, diz respeito ao processo de
imaginação do índio no século XIX, o qual sofreu influência dos modelos de pensamento do
romantismo brasileiro de José de Alencar e Gonçalves Dias, que valorizavam um homem americano
idealizado e exaltavam a natureza profícua do continente. A segunda possibilidade remete ao
processo de musealização que ora analisamos. Se o tal ‘índio brasileiro’, idealizado, enobrecido, foi
personagem importante para a arte literária nacional, o foi também para museus e cientistas. Ele
povoou, no período, salas e mais salas de museus no Brasil e no mundo. O museu do século XIX
construiu narrativas com intenções cientificizantes, isto é, com aparência de verdade irrefutável
porque baseada em evidências e vestígios materiais. Por mais esdrúxulos ou bizarros que os
argumentos desses primeiros arqueólogos soem atualmente, eles portavam uma racionalidade
característica da época, assentada em teorias evolucionistas e difusionistas e em métodos
comparativos. As cerâmicas, sobretudo as consideradas íntegras em sua estrutura e ornamentação,
tornaram-se fundamentais para a sustentação de hipóteses e também objetos de disputa e
dissonâncias.
A musealização de artefatos arqueológicos durante o Império do Brasil, mais precisamente
no segundo reinado, foi realizada por razões científicas e políticas que retroalimentaram teorias
variadas diante da origem do homem americano. As ações museológicas em torno das cerâmicas
arqueológicas amazônicas foram motivadas por questões estéticas, políticas e culturais. O Estado se
utilizou da arqueologia para construir uma identidade nacional forte o bastante para manter os
regimes políticos da época. Nesse momento, ciências como antropologia, etnologia e arqueologia
passaram por processos de consolidação científica e foram utilizadas como ferramenta política na
construção das identidades nacionais. Assim, as pesquisas arqueológicas feitas no século XIX
introduziram, no ramo científico, cultural e político, discussões sobre a formação social e cultural

284
do país. No Brasil, essas narrativas consolidaram a homogeneização de grupos indígenas e
formataram estereótipos vivos do índio brasileiro, que adentra o nosso imaginário até os dias atuais.
A valorização de objetos “belos” e simétricos confortava a retórica do passado civilizado
dos povos indígenas, ora, os povos que criaram essas cerâmicas com ornamentações belíssimas
(tanto da Ilha de Marajó quanto as encontradas no rio Maracá), só poderiam ter um grau de
civilidade e intelectualidade majestosas. As cerâmicas coletadas eram, geralmente, as inteiras e
integralmente conservadas, os “cacos” cerâmicos pouco eram valorizados. Pode-se chamar esse fato
de uma hierarquia de objetos, pois, nas diversas dinâmicas materiais da vida, as coisas recebem
valores diferenciados um dos outros.
Diante desse processo, foi primordial entender a trajetória dos artefatos arqueológicos,
como esses objetos chegavam ao Museu Paraense e como eram reinterpretados em um novo sistema
de significados. Com a musealização, nota-se que esses objetos passam por dinâmicas de duplas
desnaturalizações: primeiro, foram produtos da cultura material indígena, com significados e formas
pensadas pelos sujeitos que os fabricaram e depois foram re-apropriados pelos museus e seu sistema
de classificação ocidental. Observa-se que, chegando ao museu, os objetos não se estagnam em si,
mas ganham novas formas de sobrevivência.

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Op. Cit.

287
PERSPECTIVA IDENTITÁRIA EM SONS CONSERVADOS: COLECÃO E
MEDIAÇÃO NA FONOTECA PÚBLICA SATYRO DE MELLO (BELÉM- PA)

Nélio Ribeiro Moreira*


*Universidade Federal do Pará (UFPA)

Resumo: Este artigo discute alguns pontos acerca de uma coleção de registros fonográficos com a
intenção de apontar elementos da atuação da instituição que a salvaguarda no processo de atribuição e
sustentação de identidade. Isso se justifica devido ao imperativo social contemporâneo de que a arte e
a cultura localizadas são campos de atuação carregados de interesse. Trata-se do acervo material,
sonoro e discográfico, de música popular paraense conservado na Fonoteca Pública Satyro de Mello,
seção da Biblioteca Pública Arthur Vianna da Fundação Cultural do Pará, em Belém. O objetivo é
apresentar uma discussão que tem como fio condutor verificar a atuação dessa coleção pública na
realidade sociocultural local no contexto contemporâneo, considerando tanto a ordem objetiva, que
tem em conta o material usado – nesse caso se trata de lidar especificamente com os discos Long Play
(LP) em vinil – por meio de sua agência, como os pontos de ordem subjetiva – e a sua constituição
simbólica com nuances de discurso, haja vista que se trata de uma instituição que salvaguarda objetos
culturais como patrimônio público. Assim, o interesse é verificar como se dá a atuação dessa Fonoteca
como lugar de referência cultural, seus procedimentos de salvaguarda (coleção) e uso público
(mediação) do artefato cultural com o qual lida. A perspectiva analítica, entrelaçando conceitos e
procedimentos dos campos museológico e antropológico, se desenrola acerca do processo de formação
e uso dessa coleção discográfica entrevendo, assim, a possibilidade de que as acepções culturais
socialmente instituídas se projetam na coleção ali conservada com características de expediente
instrucional.

Palavras-chave: coleção; mediação; Fonoteca Pública Satyro de Mello; lugar de memória; música
popular paraense.

288
Abstract: This article discusses some points about a collection of phonographic records with the
intention of pointing out elements of the institution's performance that safeguards it in the process of
attribution and identity support. This is justified by the contemporary social imperative that localized
art and culture are fields of action charged with interest. It is the material, sonorous and record
collection of popular music from State of Pará, preserved in the Satyro de Mello Public Music Library,
section of the Arthur Vianna Public Library of the Fundação Cultural do Pará (FCP), in Belém. The
objective is to present a discussion that has as a guiding thread to verify the performance of this public
collection in the local sociocultural reality in the contemporary context, considering both the objective
order, which takes into account the material used - in this case it is a question of dealing specifically
with Long Play (LP) vinyl records - through its agency , as the subjective points of order - and its
symbolic constitution with nuances of discourse, given that it is an institution that safeguards cultural
objects as public patrimony. Thus, the interest is to verify how the action of this Public Music Library
as cultural reference place, its procedures of safeguard (collection) and public use (mediation) of the
cultural artifact with which it deals. The analytical perspective, intertwining concepts and procedures
of the museological and anthropological fields, unfolds about the process of formation and use of this
record collection, thus screening the possibility that socially established cultural meanings are
projected in the collection preserved therein with characteristics of an instructional medium.

Keywords: collection; mediation; Fonoteca Pública Satyro de Mello; Place of memory; Popular music
from Pará State.

289
No contexto atual as múltiplas possibilidades de circulação da informação tornaram
relativo o contato físico com o artefato cultural como a forma mais consistente para que
ocorra interação social (subjetiva ou objetiva) ou apreensão de conhecimentos. Isso é devido à
imensidão do universo informativo virtual que a globalização permite contatar por meio de
seu instrumento mais eficaz, a internet. Embora seja espaço imensurável de fluxo de dados,
todavia essa realidade virtual mostra que as trocas culturais não se dão em pé de igualdade
nos processos ativados. Por isso, ainda que se obtenha sucesso na busca por informações
acerca de um determinado assunto quando de uma incursão na rede mundial de computadores,
a aquisição de informação sobre artefatos, realidades e processos culturais localizados mais à
margem da galáxia da internet se torna proporcionalmente mais escassa. Isso ratifica aquela
visão de que se trata de um processo mais de transmissão unilateral do que objetivamente de
troca. Nesse sentido, pode-se considerar que em seu caráter difusor de informações, na
internet já estão embutidas formas de intromissão. E isso é revelador de como se trata de um
processo parcial e não de uma relação entre elementos de uma mesma natureza (WARNIER,
2003; HANNERZ, 1997; CANCLINI, 2007).
Embora esta realidade seja um fato de peso considerável no atual contexto, todavia é
necessário ponderar que há aí uma notável complexidade. Essa complexidade se apresenta
quando observamos que, apesar do processo de globalização veicular sua tese de trocas e
influências mútuas, na realidade social e cultural localizadas, que é onde se desenrolam os
processos empíricos de fato, é uma necessidade a ativação de meios como elementos
constituintes da identidade. Dessa forma, os processos socioculturais locais não prescindem
totalmente de um espaço geograficamente delimitado. E essa detecção traz à tona uma série
de elementos que corroboram para a afirmação das culturas localizadas. Como consequência,
temos a manifestação de distintos interesses no campo social que geram, por sua vez
possibilidades de estudo, haja vista que se trata de lidarmos com ações sociais em interação.
Remetendo a discussão ao objetivo desse estudo, na busca por respostas à satisfação
dos interesses da sociedade territorializada em manter aquilo que tomam como sua identidade
cultural, imiscuem-se diversos interesses e formas de atuação, às vezes, contraditórios. Mas,
por fim, o que se tem em vista é a perspectiva de manutenção da estabilidade do campo social

290
onde se desenrolam as ações cotidianas. Nesse sentido, assegurar a dimensão social e cultural
em espaços ou objetos físicos é um recurso recorrentemente ativado na satisfação dessa
demanda. E assim se instauram os lugares de memória, como saída para alcançar esse intento;
e a salvaguarda de objetos como “artefatos culturais identitários” é um procedimento que
atende à essa intenção, haja vista que espontaneamente isso não ocorre na sociedade. Dito de
outra forma, esses tais lugares de memória existem porque não há memória espontânea e,
portanto, não há arquivo espontâneo (NORA, 1993).
Por outras palavras, os lugares de memória são espaços sociais que servem como
referências memoriais para o assentamento de uma perspectiva de unidade para a sociedade
por meio da sua atuação pedagógica. É aqui alcançamos o objeto dessa pesquisa, a Fonoteca
Pública Satyro de Mello como um lugar de memória. Seção da Biblioteca Pública Arthur
Vianna da Fundação Cultural do Pará, em Belém do Pará, a FPSM172 funciona como espaço
institucional mantenedor de uma coleção de registros musicais em diversos suportes. No meio
desse acervo direciono o olhar para a coleção de música popular paraense com a hipótese de
que ali temos um instrumento institucional de atuação de pressupostos identitários. Nesse
sentido, o interesse aqui é apresentar alguns elementos que acredito serem pertinentes, embora
incipientes, para verificar que se trata de um lugar de memória. Assim, a leitura se encaminha
sobre a perspectiva de considerar os artefatos culturais da música paraense localizados na
FPSM como elementos de uma coleção que tem como função social atuar na fundamentação,
divulgação e manutenção de premissas de identidade por meio do ajuntamento de material
com intenção de ser a memória da produção musical local.173
Comumente a noção de local é colocada como contraposição ao global. Ainda que isso
se apresente como um lugar comum, todavia é preciso atentar para o paradoxo que aí se

172
Doravante FPSM. Para um apanhado histórico da atuação de Raymundo Satyro de Mello, músico compositor
e instrumentista paraense que deu nome à fonoteca pública, cf. COSTA, 2014.
173
Acerca da perspectiva de formação de uma discoteca como lugar de salvaguarda da memória do artefato
sonoro com premissas de identidade, já no final da década de 1920 o pesquisador Mário de Andrade chamava a
atenção para a importância de um “museu de discos”, com a principal função de ser local de salvaguarda de
registros da produção de música popular e regional. Elogiando a criação de uma Discoteca do Estado pelo
governo italiano, a isso se seguiu a descrença do pesquisador de que no Brasil fosse tomada uma providência
nesse sentido, o que fez com que Mário de Andrade “apelasse” ao “povo [e as] sociedades locais [para que
fizessem] alguma coisa para salvar esse tesouro”. (GONÇALVES, 2013, p. 41).

291
instaura. Ou seja, como ratificar a ideia de um lugar estritamente localizado ante um mundo
interconectado, sem contar que são imprescindíveis os procedimentos de interação, o que leva
a dedução lógica de que o local só se realiza com o global, e vice-versa? (BOURDIN, 2001).
Isso vem à tona porque, para fins a que se interessa esse trabalho, considerar essas duas
dimensões imbricadas tem sua razão de ser.
Como espaço institucional de salvaguarda da memória musical local, a FPSM se
encontra como importante elemento nessa relação local-global, porque é um campo de
atuação, um espaço de interação entre público e objetos culturalmente situados. (Comum
ouvir de quem frequenta a FPSM que se trata de um local onde está a “produção musical da
Amazônia”). Assim, cabe verificar o grau desse processo interação, como se dá a atuação
dessa instituição num contexto de relação entre público visitante/usuário e os objetos. O que
certamente é de grande valia nesse processo de entendimento é incursionar por meio de um
levantamento do espaço onde existe essa interação, do tempo em que ocorre essa interação
público-artefatos, e qual o sentido desses objetos na coleção, suas formas de observação e
uso174. Cabe salientar, o que será tratado adiante, é que a coleta, a manutenção, a conservação
e a disponibilidade de acesso ao público, são partes de um discurso que compuseram a
formação da FPSM e ainda hoje compõe a política cultural de Estado que aponta ser
necessário esse espaço para a manutenção da perspectiva identitária.
E é essa visada de que se trata de um lugar referencial de salvaguarda da “cultura
musical” regional (paraense, amazônica) e local (belemense) que se pode ilustrar com um
exemplo. Em texto de propaganda turística que retrata os centros de convenções existentes na
cidade, quando se refere ao CENTUR175, a FPSM aparece como o lugar “que possui [o]
acervo musical com ritmos amazônicos e os ritmos que influenciaram toda a cultura musical
paraense”.176 Como se vê nessa elaboração discursiva a FPSM é apresentada como esse

174
Espaço, tempo e objeto constituem o tripé da “pedagogia do museu”, do processo de educação que define a
relação particular entre público e exposição (MARTINS, s/d).
175
Nome pelo qual era conhecido o Centro Cultural do Pará Tancredo Neves, inaugurado em 1987, espaço que
hoje é denominado Fundação Cultural do Pará. A Fundação é formada por cinco prédios, todos tombados pelo
patrimônio histórico. Disponível em: http://www.fcp.pa.gov.br/institucional. Acesso: 09 jul. 2017.
176
“Belém do Pará: informações sobre o destino”. Disponível em:
http://www.sbmet.org.br/userfiles/info_belem.pdf Acesso: 03 jul. 2017.

292
reduto da memória discográfica-musical paraense e amazônica. Assim, algumas questões
podem ser elaboradas: de que maneira a FPSM desempenha seu papel de veículo de
informação acerca da cultura musical local por meio da coleção discográfica ali
conservada177? Especificamente, que espaço a coleção de178 música popular paraense ocupa
na FPSM? Em que medida a Fonoteca efetivamente é um espaço de encontro entre um
público e os discos - o material e o seu conteúdo sonoro? Quais as implicações do tipo de
mediação executado, tendo como mediador o aparato estatal? Como essa coleção ali assentada
corresponde à premissa de um lugar de memória em prol de uma identidade local por meio da
música? E, por fim, quem é o seu público, quem usa o acervo dessa coleção? Portanto,
tomado como objeto, a FPSM pode ser um campo que possibilita entender as formas de
resposta ativadas por meio da ressonância da sua atividade. Ressaltando as limitações devidas
às próprias contingências do campo, foi o que se pretendeu com o que está aqui
apresentado.179

177
O termo “música em conserva” foi usado pela Revista Phono-Art para se referir aos discos, por volta dos
anos 1920 (GONÇALVES, 2013, p. 64). Também, é como se referiam alguns textos, no final do XIX e início do
XX, ao arquivamento dos sons e músicas nos cilindros fonográficos de cera e pianola. Depois ela também serviu
para designar as chapas e discos fonográficos. Isso “transformou profundamente os processos de memorização,
registro, divulgação, reprodução e recepção da música, criando um novo mundo de sons, técnicas, sociabilidades
e escutas” (VINCI DE MORAES; MACHADO, 2011, p. 162). Aqui o termo é usado no sentido denotativo de
conservação do suporte material que contém o som e, metaforicamente, como conservação da memória “musical,
sonora”.
178
A noção de gênero musical como a classificação do produto musical deve ser relativizada, pois se trata mais
de uma organização em prol da finalidade de consumo e de estabelecer hierarquias. No entanto, esse processo dá
o sentido para uso, interpretação e circulação dessa mercadoria cultural na sociedade, sendo a mídia o que
produz sentido e condições de reconhecimento de um gênero musical. Obviamente, isso tem consequência nas
práticas de sociabilidade, no consumo cultural e na representação do produto musical (JANOTTI JR., 2006).
179
Os dados aqui usados foram coligidos no decurso das idas à FPSM como campo das pesquisas que
desenvolvo sobre a música popular paraense.

293
Formação e atuação de uma coleção de discos pública
A constituição de uma fonoteca180 pública na cidade de Belém, a primeira da região
amazônica e segunda do país, teve como objetivo corresponder às aspirações que o campo
experimentava em decorrência das transformações políticas no Brasil no decurso do processo
de abertura da segunda metade dos anos 1980. Inaugurada em 26 de junho de 1987, por meio
de ação da Secretaria de Cultura do Estado, a FPSM se conformou como um espaço cultural
que veio a lume já dotado com grande carga simbólica, haja vista que compunha o conjunto
do Centro Cultural Tancredo Neves, CENTUR, núcleo de atuação das políticas para cultura
ensejadas pelo Estado. Capitaneada pelo professor e poeta João de Jesus Paes Loureiro, essas
políticas visavam colocar em prática uma política de valorização da cultura regional paraense-
amazônica.181
Historicamente, desde sua fundação a premissa basilar dessa instituição esteve
assentada em pressupostos de ser um lugar de memória da música paraense/amazônica, cuja
finalidade era atuar no processo de ativação de elementos identitários por meio da
constituição de uma coleção da produção musical local. Isso ainda hoje é um discurso usual,
haja vista o processo de globalização que, ao mesmo tempo em que desencadeia intenções de
uma suposta cultural global, acaba por fazer com que as culturas localizadas busquem se
afirmar ante esse processo.
A ideia primordial é de que ali seria um espaço público para disponibilização de
acesso à coleção discográfica angariada.182 Assim, como coleção183 de música, os objetos ali

180
Phone = som, voz; thêké = lugar para guardar objetos do mesmo gênero, armário. A fonoteca é um lugar
destinado à salvaguarda de e arquivamento de todo material relacionado a sonoridade, todos os tipos de suporte e
aparelhos de reprodução de sons, ordenados de maneira lógica. A discoteca é um lugar onde se guarda
especificamente um tipo de suporte, que é o disco.
181
Efetivamente, Paes Loureiro formulou um conceito de cultura amazônica por ele acionada desde as suas
primeiras incursões e atuações no campo artístico Belém, nos anos 1970. Então, sua atuação nos anos 1980 à
frente da Secretaria de Cultura, remete a essa perspectiva identitária, todavia agora subsidiada por uma forma de
atuação institucional de “política cultural” por ele preconizada (CASTRO; CASTRO, 2012). Essa construção
conceitual está sistematicamente exposta em sua obra “Cultura Amazônica: Uma poética do Imaginário”
(LOUREIRO, 1995).
182
O ingresso de material à FPSM é continuo, sendo isso apresentado como uma das formas de interação com
público. Assim, desde sua criação continua entrando material, que é selecionado, higienizado, catalogado e
disponibilizado.

294
alojados e mantidos teriam como função atuar nessa empreitada de constituir um consistente
corpo de conhecimento da realidade cultural local como meio de sua preservação e
manutenção. Logo, imprescindível erigir tais ações tendo em vista a constituição de uma
memória discográfica que fosse referencial à região.
Os primeiros discos do acervo, cuja monta atual é de aproximadamente 35 mil títulos
de diversos gêneros184 (“do popular ao erudito”, como frisa o funcionário responsável pelo
atendimento na FPSM) foram adquiridos via compra pelo Estado, na época da sua criação. No
entanto, posteriormente muitos discos que ali se encontram foram doadas, o que repercutiu na
criação de uma política para recebimento desse material. Dessa forma a FPSM se constituiu
como uma coleção pública. Ali está um conjunto de objetos públicos assentados num
estabelecimento de Estado a quem cabe a responsabilidade pela organização, classificação,
conservação e exposição. E é aqui que se instaura a problemática da relação entre as ações
culturais “espontâneas” e o Estado como “fazedor” de cultura. Assim, é premente salientar
que essa leitura encontra anteparo na proposição de que, na contemporaneidade, a cultura
ainda é campo de conflitos, sendo uma teoria da ordem social e uma prática de cultivação
(BAUMAN, 2011, p. 304). Vista, por esse prisma, a FPSM tem a função de instrumento
instrucional.

183
O suporte teórico fundamental é a teorização contida em texto clássico do historiador polonês Krzysztof
Pomian, o verbete “Colecção”, da Enciclopédia Einaudi, de 1984.
184
Interessa aqui o uso das produções em música popular, precisamente obras de Música Popular Paraense.
Embora seja termo bastante vago, e até mesmo contextualmente dotado de contradições, operacionalmente é útil,
na medida em que denota “um terreno de trocas, diálogos e embates pela significação” (NÉDER, 2010, 182).

295
Figura 1: Vista da parte externa. À direita o Salão da Fonoteca Satyro de Mello. À esquerda, estantes com
discos LP’s de vinil da coleção de música popular paraense.

Fonte: Fotografia do autor.

Partindo do que foi exposto anteriormente, o objetivo desse trabalho é verificar de que
maneira essa coleção atende às premissas fundamentais de uma coleção, ou seja, como se
processa o elemento mediação entre os artefatos que constituem a cultura musical e um
público consumidor. Por outro lado, é valido ressaltar que tem interesse em se vislumbrar de
que maneira a agência desses objetos é ativada nesse processo, haja vista a existência de uma
dupla interesse: ao projeto de política pública estatal para a cultura local, e ao público como
consumidor. Em outras palavras, é interessante verificar como o Estado retira desses objetos
as premissas de seu interesse e, por outro lado, como esses objetos atuam sobre o interesse do
público, certamente possibilitando acesso a conhecimentos que, por sua vez, leva a outras
relações sociais. Sendo assim, é por isso que partimos da detecção de que essa acumulação é
interessada e se constitui em elemento que subsidia ações de prática identitária.
O conceito de coleção aqui ativado remete aos títulos discográficos – álbuns185
institucionalizados -, artefatos e suportes sonoros localizados na FPSM que compõe um
conjunto coeso com objetivo de mediação. Assim, há uma perspectiva museal que caracteriza

185
O álbum é uma mercadoria cultural, um conjunto informativo que é formado pelas canções, pela parte
gráfica, pelas letras, pela ficha técnica e pelos registros de enunciação, como os agradecimentos, que se
conformam como elementos necessários à lógica mercadológica (JANOTTI JR, 2006).

296
a atuação da FPSM. Buscando justificar essa proposição, cabe uma breve inflexão teórica.
Quando aqui é usado o termo museal como adjetivo,186 tem-se em conta que a FPSM se
configura como um espaço social que propicia uma forma específica, por parte do público, de
contato com a realidade material ali guardada. Isso certamente propicia uma forma
experiência de lidar “diretamente” com o objeto. As aspas se justificam porque o usuário187
não é quem vai até a estante e retira o disco, o que efeito pelo funcionário. Mas após a
instalação do disco no aparelho reprodutor – o toca-discos188 -, quem usa o objeto sonoro, e
também o suporte de guarda onde geralmente estão informações sobre a produção – a capa, o
álbum -, é o usuário.
Obviamente, essa maneira de lidar com o objeto da coleção escapa àquela experiência
ditada pelo museu “tradicional”, haja vista que na FPSM a prioridade é fazer circular o
produto cultural, embora isso se dê de forma enviesada. Isso se configura em uma forma
particular de interação entre o público e o campo da cultura musical porque é mediada pelos
Estado (funcionário). Mas essa forma de contato não obsta, ou elimina, a possibilidade
hermenêutica ali contida. Pelo contrário, acaba por ser um componente do processo de
interação, porque a experiência de contato com o suporte físico e a audição do material sonoro
acaba se configurando como uma experiência de interpretação mantendo-se, assim, o caráter
subjetivo (RICOEUR, 1988).189
Então, tomando esses argumentos como norteadores agora cabe apresentar os termos
da problemática que justifica esse texto. Um primeiro ponto se encontra em procurar saber em
que medida a FPSM atende às preconizações das práticas de política cultural de Estado. Por
outro lado, sabendo que isso não determina as atuações, tanto do público como do objeto, é
pertinente procurar tecer algumas reflexões acerca do status da agência de ambos. Assim,
considerando a suposta materialidade do objeto ali mantido em sua situação de alienado do

186
Como adjetivo, quer dizer que se trata de lidar com aquilo que é relativo a museus. Como substantivo, o
termo museal refere-se à fundamentos e reflexões sobre o museu (DESVAILLÉES; MAIRESSE, 2013).
187
Termo usado para denominar o público.
188
A FPSM possui 8 aparelhos desse formato.
189
Obviamente, uma pesquisa de campo mais alentada pode fornecer resultados etnográficos com mais
subsídios para corroborar essa incipiente leitura. Como esse texto é resultado de uma pesquisa em curso, optei
por não adentrar aqui por esse campo.

297
circuito original do qual fazia parte, é viável notar como eles são “usados” pelo público.
Todavia, seu uso deve ser tangenciado ao valor mais simbólico que efetivo que agora o
conformam. E, por fim, é interesse também fazer uma ligação dessa condição sígnica com a
prática política estatal de reunir aspectos da cultura musical local em um lugar como intenção
de ratificação de identidade, ou seja, de estabelecer uma memória com intenção pedagógica.
Nesse sentido, como espaço físico, o caráter ostensivo190 da coleção também se coloca
como um elemento constituinte da atuação simbólica da FPSM, haja vista que os objetos ali
estão expostos para o público, acondicionados de maneira que possam ser vistos como um
conjunto em exposição. Dispostos dessa forma, esses objetos passam a ser portadores de um
sentido distinto daquele material-denotativo adquirindo, assim, status de serem referência.
Efetivamente, é dessa forma que tais objetos encorpam a coleção. Portanto, os discos expostos
ali são objetos dotados de autenticidade porque têm a característica de ser a parte concreta de
pressupostos indiciários para acesso à cultura musical regional.
Isso suscita uma questão de ordem teórica: até que ponto esses discos, como suporte,
são objeto ou coisa? Isso se lança porque atualmente é ponto de discussão nas áreas que lidam
com cultura material, como a Antropologia e a Museologia, essa distinção. Aqui
encaminharemos esse trabalho por meio da noção do objeto como portador um estatuto
ontológico, ou seja, tomando ele não apenas em materialidade bruta, mas como portador de
algo intrínseco que o torna um ser de linguagem.191
Segundo o historiador Krzysztof Pomian (1984) o que caracteriza um objeto de
coleção é a perda do seu atributo de uso, quando um objeto passa a ter status de singularidade,
o que o coloca como uma forma de demonstração do que pretende a coleção. É essa premissa
que sustenta a tese aqui de que os discos da coleção de música paraense reunidos na FPSM
são mais simbólicos do que práticos, embora sejam “usados” de alguma forma, sobre o que já

190
Segundo Pomian, os objetos, sejam naturais ou artificiais, para se enquadrarem na categoria coleção têm que
atender a três requisitos: 1) Devem estar temporária ou definitivamente fora do circuito das atividades
econômicas; 2) Tem que estar protegidos em um lugar preparado para esse fim; 3) Devem estra expostos ao
olhar do público (POMIAN, 1984).
191
Ainda que não tenhamos como recurso teórico a incursão pelas propostas de Bruno Latour, é pertinente
ressaltar o peso que suas perspectivas, sistematizadas na Actor Network Theory (ANT), exercem nesse campo,
quais sejam: a realidade é resultado do entrelaçamento de relações que se dão em rede, também, entre humanos e
não-humanos (LATOUR, 1994).

298
se falou. Assim, quando um usuário requer ao funcionário um disco físico (objeto-matéria)
para audição esse disco se torna um sígnico (objeto-valor). Passa ali a haver uma relação na
qual o disco fornece índices ao ouvinte, o que o orientará por determinado percurso, todavia
não determinando-o, mas sim atuando como pressuposto importante no seu trabalho de
interpretação. Por isso, sua carga informativa é eivada de significados simbólicos e, por mais
que seja materialmente tangível, esse objeto exerce por “imaterialidade sonora” sua
finalidade, que é promover comunicação por meio da sua audição.
É preciso ter em conta que esse processo, por mais que parece atuação desinteressada
e livre por parte do usuário, é uma ação sob controle de vários fatores: da instituição, das
características do objeto, da carga cultural do ouvinte. Por consequência lógica, o seu
significado também é controlado. Mas, para ficarmos numa camada mais superficial de
análise, ele é definido como representação, logo, exerce a função que é propiciar meios para
produção de significado.
Para realizarmos o que foi proposto anteriormente, ao tomarmos os discos da FPSM
como obras, é preciso lidar com sua agência no processo de comunicação. No caso aqui
abordado, isso é pertinente devido à patente interesse da alocação desse material na Fonoteca,
o que se justifica pela perspectiva de que eles sejam elementos de constituição e/ou
manutenção de uma memória musical numa projeção sociocultural. É por isso que cabe aqui
considerar, também, até que ponto eles agem no processo social que os utiliza. Nesse sentido,
a seguirmos o antropólogo Alfred Gell quando diz que é o contexto social de produção,
circulação e recepção do produto artístico que dita a sua existência como objetos que
“ganham” vida (GELL, 1999), podemos fazer esse tipo de leitura sobre os objetos da FPSM
quando agem. Essa via propicia que tomemos os discos como ocupantes de um lugar
importante na relação entre o público e o material simbólico da FPSM, tendo no horizonte que
essa situação interfere na produção de sentido.
Dessa forma, os discos podem ser vistos para além de serem apenas uma linguagem
que atua na comunicação, ou como um símbolo apenas; são agentes na medida em que, no
ciclo de sua atuação como objeto referencial promoveram, e promovem, práticas de interação
social. Isso é importante na medida em que possibilita um quadro do processo de interação

299
entre o público que acessa os objetos da FPSM, afim de notar como esses objetos, como
entidades materiais, promovem inferências.
Como incitador de respostas ou interpretações, o material sonoro se materializa em
relações sociais, cujo mote subjacente é a perspectiva identitária, imputada e ativada nesses
objetos que então se conformam como agenciamento de identidade. Assim, a coleção de
música popular paraense da FPSM pode ser vista como uma instituição que atua na mediação
do público para com a produção musical de mote regional. De certa forma, a escolha do nome
de um compositor paraense, de uma cidade do interior, tido como expressão da música
regional negra e urbana, com atuação destacada no centro cultural que foi a cidade do Rio de
Janeiro dos anos 1930 a 1950 (COSTA, 2014) já explicita essa intenção demarcatória de
valorização “regionalista” da FPSM.
A FPSM tem como objetivo ser um lugar de conservação, inventário e
acondicionamento de suportes discográficos de vários gêneros musicais, sendo a coleção de
música paraense um “gênero” – por sua vez subdividido em “subgêneros”, como carimbó,
brega, MPP, etc. – resultante de uma política de intervenção. Assim, está colocada a forma
objetiva de propiciar melhores formas de acesso aos artefatos discográficos, se consolidando
como um centro prestador de serviço, de preservação para comunicação. Nesse caso, a
exposição dos discos de música paraense, colocados na estante que é visível do salão, atua
como instrumento de divulgação, sendo parte importante da lógica instaurada nesse processo
de comunicação.

Assim, vemos que as intenções e práticas sociais da FPSM acerca da música


paraense buscam ser consistentes. Sendo mídia, a FPSM busca realizar a sua finalidade de
comunicação. Todavia, uma forma particular de mídia, pois, como já foi acenado
anteriormente, não é uma atividade necessariamente unilateral, haja vista que o público
“interage”, seja doando ou usando objetos da coleção. Por essas questões apresentadas é que
se pode pensar a FPSM como um lugar de memória. Mas um lugar de memória cujas
particularidades devem ser ressaltadas, pois se trata de um lugar social portador de
características reservadas nessa sua atuação de interatividade e/ou transmissão. Todavia, é

300
tarefa a se fazer: um estudo de público, pois apenas dessa forma se poderá obter informações
que possibilitem traçar um quadro mais consistente afim de corroborar essas conjeturas.
De toda forma, é possível apontar que o disco que ali está conservado é objeto com a
característica peculiar de ser objeto original e exemplar ao mesmo, ou seja, é musealia e
réplica, porque se situam fora do circuito da circulação espontânea e adquiriram o curioso
status de material em exposição – alocados nas estantes estão visíveis ao público - para uso –
podem ser requeridos para audição. É por isso que aqui se expõe a ideia de que esses objetos,
mesmo sendo elementos de uma série – objetos de arte resultantes da reprodutibilidade
técnica de que falou Walter Benjamin (1990) - são dotados de autenticidade e carga
simbólica, o que lhes fora socialmente instituído quando retirados do fluxo de circulação no
mercado. E assim se configuram como agentes no processo de mediação do qual são
componentes.
Ainda que conte com um acervo bastante numeroso que abarca diversos gêneros, a
FPSM tem em seu escopo sedimentar, de maneira prioritária, a organização da coleção de
música popular paraense. Mas, apesar de ser a prioridade da instituição, ainda não há a
Coleção de Música Paraense, a não ser em projeto.192 Uma estimativa aponta que há mais ou
menos 1100 LP’s de música paraense (Imagem 2) devidamente conservados, alocados em 14
prateleiras de estantes que ficam à vista do público, e disponíveis para consulta-audição, e
cerca de 50 discos compactos.193 Notadamente, são discos de artistas “emblemáticos” da
cultura musical local, de vários subgêneros do gênero música popular paraense, como
carimbó, brega, canção popular e outros.
O número de pessoas que procura e usa a coleção de música paraense é muito
reduzido. Por alto, algo aproximado a 10% do público total que frequenta a Fonotaca, informa
a funcionária. E dentro desse número, 90% é de pesquisadores. Ou seja, grande parte das
pessoas que ali frequentam tem uma finalidade prática para usar a coleção: realizar pesquisas.
Portanto, a função de comunicação da coleção é exercida, todavia com essa característica de
192
No momento em que escrevo este texto está em curso o processo de organização e catalogação para fins de
constituir a Coleção de Discos de Música Paraense, devidamente identificada.
193
Número não definitivo porque, além de recebimento constante de doações, há evidências de que há discos
dessa vertente que estão misturados com outros de outros gêneros.

301
ser mais laboratório do que um lugar onde a divulgação da música local se estenda a um
público espontâneo. De toda forma, isso não retira a importância da coleção, haja vista que,
ainda que por outros meios, ela cumpre seu papel de divulgação do material ali localizado.
Mesmo sendo ínfimo o acesso por parte de pessoas que escapam a essa finalidade
pragmática, há essa visão de ser um lugar de memória da música paraense, pois os usuários
contatados que estavam usando discos da coleção de música paraense quando abordados
ressaltaram que estavam ali para ouvir “a tradicional música da Amazônia”, ou a “bonita e
exótica música do Pará”. Normalmente, esse público é formado por alguém que lhe indicou o
lugar. Todavia, como está patente, as adjetivações mostram que há certa visão diferenciada
acerca do material de música paraense no conjunto da coleção.
Bem entendida a coisa, de acordo com alguns usuários, parece que a “parte de
música paraense da Fonoteca” é um lugar específico no conjunto da FPSM e que deve ser
visto diferenciado porque “é onde está a música paraense”. (Talvez as motivações para esse
tipo de assertiva tenham sido dadas pelo rumo que tomou a conversa estabelecida com o
usuário). E, embora fisicamente isso não encontre correspondência, já que não há um “setor”
identificado como sendo a coleção de música paraense, é pertinente notar que essa visão
comum de que ali está um reduto da música paraense tem vigor. Possivelmente, isso assim se
conformou por conta de um processo de transferência de narrativas que apontam nesse
sentido, possibilitando que assim se instituísse uma espécie de circuito de opiniões.

Figura 3: Mostruário localizado na entrada da FPSM.

Fonte: Fotografia do autor.

302
A assertiva de que ali é prioridade a música paraense encontra ressonância na forma
como está ocupado o mostruário localizado na entrada da FPSM. Trata-se de um “aquário”
(Imagem 3) onde estão colocados à mostra álbuns, mais precisamente capas de discos de
importantes músicos paraenses: Sebastião Tapajós (o emblemático disco “Guitarra Criola”, de
1982, premiado na Alemanha como Disco do Ano), Salomão Habib, - ambos instrumental -,
Alcir Guimarães, Fafá de Belém (disco “Atrevida”), Heliana Barriga e a coletânea Folguedos
Populares do Pará. Em termos simbólicos, essa peça pode ser tomada como uma apresentação
da proposta da FPSM, uma espécie de sinalização, cujo objetivo é ser uma demonstração do
conteúdo disponível na coleção. Separados do mundo – colocados numa vitrine –, esses
objetos acenam que os discos de música paraense, assim como os de outras coleções, se
encontram distantes da sua real existência, passando a ter função simbólica e, em certa
medida, didática.194

Considerações finais
Na esteira das múltiplas possibilidades de acesso à informação colocadas atualmente
pelo desenvolvimento de tecnologias digitais, na FPSM está atualmente em curso o processo
de organização, catalogação e disponibilização do acervo no Sistema de Bibliotecas da
Fundação Cultural do Pará – FCP, na plataforma Pergamum,195 haja vista que a FPSM é uma
seção da Biblioteca Pública Arthur Vianna. Alguns discos do acervo já estão catalogados e
seus dados informativos disponíveis para consulta na internet. Assim, “em breve o acesso a
informações do acervo de música paraense, assim como de todo o material da coleção, poderá
ser feito on line”, diz a funcionária. Certamente, isso promoverá mudanças que exercerão
impacto no acesso e uso desse material.
Mas, em seu papel de lugar de memória da música paraense, a FPSM continuará
sendo um espaço físico onde estarão em atuação a guarda, a organização, disponibilização e o
acesso aos suportes sonoro. Nesse sentido, o público (e como foi mostrado, a estimativa é de

194
Há mais três mostruários-vitrines, onde estão livros, objetos e imagens, todos relacionados à música, mas
sem um direcionamento temático, como o desse que foi citado.
195
Endereço: http://www.fcp.pa.gov.br/consulta-do-acervo/acervo-bibliografico/consulta-do-acervo-da-
biblioteca

303
que 90% dos que consultam a coleção de música paraense seja de pesquisadores) que fará uso
da coleção de música paraense possivelmente pode conhecer um incremento. Como se vê,
trata-se de uma parcela ínfima, que certamente não exerce impacto no conjunto, mas que tem
peso se considerarmos os resultados dessas pesquisas, em dissertações e teses acadêmicas.
Desta forma, as implicações acerca do conhecimento da vida cultural, precisamente do campo
da música popular paraense, ainda são significativas, embora num circuito fechado.
O uso do espaço por um público espontâneo que por ali transite em busca de
conhecer a coleção, ou melhor, usá-la para obter conhecimento acerca da cultura material e
imaterial resultante da produção musical local, das gravações como bens culturais que
constituem o campo da cultura local, ainda não é significativo. Mas, essa detecção requer uma
investigação mais ampla. De fato, os pesquisadores que incursionam e produzem
conhecimento a parir do uso do material da FPSM é a forma mais comum de comunicação do
acervo, muito embora tais produções resultantes dessas empreitadas acabem, por sua vez,
atingindo um público restrito. Reiterando, configura-se assim uma circularidade, que por sua
vez redunda na formação de uma rede “auditiva”.
Outro ponto a ser atentado é sobre as implicações políticas atuantes nesse acervo, os
interesses institucionais em atuar para a conservação, exposição e as formas de controle do
uso do significado desses bens culturais. Foi apontado anteriormente que a agência dos
objetos traz implicações para essa questão do significado, ressaltando que há um fluxo de
significações, o que coloca o objeto em constante mudança. Mas, a forma de disposição e a
trajetória do FPSM, que desde a sua fundação já tem em procedência interesses de “cultura
institucionalizada” porque mediada pelo Estado, possibilitam remete a que se pense numa
perspectiva de “narrativa memorial acerca da música popular paraense” como elemento no
processo de constituição de uma memória musical regional. Então, de certa forma, como lugar
de memória, a FPSM visa atender a essa premissa, ainda que esse “escutar para não esquecer”
se dê de modo enviesado.
Assim, pode-se tomar como parâmetros em visada de conclusão para essa leitura que
à proposição objetiva do que está contido nos objetos da coleção se impõe uma ordem
subjetiva, que atua como discurso no sentido do controlar o imaginário e a vida social. Então,

304
como instrumento do Estado, a instituição de uma memória assentada sobre um patrimônio
material/imaterial é também um elemento constitutivo. A consequência disso é que as práticas
de sociabilidade são afetadas por esse processo. Logo, a coleção de música popular paraense
como lugar de memória efetivo tem em potencial a finalidade de ser instrumento para
ratificação de uma pressuposta identidade paraense/amazônida, como comunidade de
sentimento territorialmente localizada ante o atual contexto da globalização.
Daí que se veicule, tanto por parte do público como dos elementos de Estado, o
discurso da tradição de uma “memória sonora” incrustrada em um lugar de memória. Assim, a
FPSM se configura como um espaço de encontro com a cultura musical local e, também,
como meio de comunicação e formatação dessa, pois essa coleção se consolida como um
meio de promover a “arquitetura de participação” como prática de interação por meio da
colaboração (SIMON, 2007, apud. SEMEDO, 2013, p. 53).
Por fim, embora calcado nessa visão de ser um lugar institucional e, por conseguinte,
constituído por todos os elementos que conformam as “intenções institucionais” e práticas de
política cultural de Estado, não se pode desprezar o fato de que tais objetos têm seu valor
espontâneo na formação e atuação do público. Assim, ainda que se pressupunha um
direcionamento na forma de interação entre o público e os discos ali reunidos, a coleção pode
proporcionar, certamente, variadas maneiras de conexão entre esses objetos e o público
encetando, assim, experiências múltiplas.

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307
COLEÇÃO KARAJÁ LIPKIND (1938-1939) DO MUSEU NACIONAL: ROTAS
ANTROPOLÓGICAS BRASIL-ESTADOS UNIDOS

Manuel Ferreira Lima Filho*

Resumo: O trabalho tem como foco de estudo a “Coleção Karajá William Lipkind” composta por 527
artefatos do acervo do Setor de Etnologia e Etnografia do Museu Nacional- UFRJ realizada pelo
antropólogo estadunidense que permaneceu por 14 meses de 1938 a 1939 entre os Karajá do vale do
Araguaia. Sua pesquisa foi mediada pela diretora do Museu Nacional, Heloisa Alberto Torres que
tinha um papel importante no controle das pesquisas estrangeiras antropológicas no Estado Novo.O
estudo dos itinerários da coleção, do antropólogo William Lipkind entre outros atores e instituições no
Brasil nos Estados Unidos traz conhecimento inédito a respeito da qualificação da própria coleção, da
história da antropologia no Brasil e nos Estados Unidos.

Palavras-chave: Coleção William Lipkind; Karajá; Museu; Antropologia.

Abstract: The study focuses on the "Karajá William Lipkind Collection" which consists of 527
artifacts belonging to the Ethnology and Ethnography Sector of the National Museum - UFRJ
conducted by the American anthropologist who lived for 14 months from 1938 to 1939 with the
Karajá of the Vale do Araguaia. Her research was facilitated by the director of the National Museum,
Heloisa Alberto Torres, who had an important role in the control of the anthropological research in the
Estado Novo. The study of the collection itineraries, and the relationships between William Lipkind
and other actors and institutions in Brazil and the United States, brings new knowledge about the
collection itself, the history of anthropology in Brazil and the United States.

Key-words: William Lipkind Collection; Karajá; Museum; Anthropology.

308
O foco da pesquisa

O Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro além de ser um


expoente nos estudos antropológicos desde os primeiros tempos da formação de etnólogos no
país, possui um acervo etnográfico e etnológico (30 mil peças) de grande potencial acadêmico
que inspirou trabalhos pioneiros no campo da cultura material indígena brasileira tal como as
produções de Castro Faria (1959), Berta Ribeiro (1957) e Maria Heloisa Fénelon da Costa
(1978).
A cultura material Karajá está representada na Seção de Etnografia e Etnologia (SEE)
do Museu Nacional por meio de 59 entradas de objetos no seu Catálogo Geral. A primeira
peça teve seu registro em 1889 e as últimas foram acervadas em 1968 (Coleções Ione Leite e
Neide Esterci). (EWBANK, 2015 e GRIPP, 205)
Entre as coleções Karajá do Museu Nacional encontra-se a que recebeu o nome do
antropólogo estadunidense William Lipkind. Ele foi aluno de Ruth Benedict e Franz Boas na
Universidade de Columbia tendo realizado pesquisa de campo por 14 meses com o grupo nos
anos de 1938 e 1939.
Pesquisei no Brasil e nos Estados Unidos sobre os bastidores acadêmicos, sociais e
políticos da época da feitura dessa coleção etnográfica. Analisei as trajetórias dos atores
sociais, das instituições e suas intercepções que tiveram a Coleção William Lipkind como
ponto de encontro. Inspirei-me em Bourdieu (1996) sobre os acontecimentos biográficos e a
noção de trajetória relacionada ao mesmo agente; no caso William Lipkind e a trama
acadêmica construída em torno da coleção. Igualmente acatei a sugestão de Johannes Fabian
(2010), quando sugeriu que inquirir sobre “itinerários” e “histórias de vida” de coleções
poderia ser um começo promissor para tornar possível apreender aspectos essenciais das
coleções, tais como suas identidades materiais196
O detalhado processo de identificação, documentação e conservação museológica da
Coleção William Lipkind na reserva técnica da SEE do Museu Nacional permitiu contabilizar

196
A pesquisa ainda em processo já permitiu a produção de uma capitulo de livro (2015), um artigo (LIMA
FILHO, 2016) e dois no prelo, um na revista Midas em co-autora com a museóloga Cecília Ewbank e outro na
revista Mana.

309
e acondicionar de maneira apropriada 358 objetos de um total de 426 itens Karajá registrados
no livro do Tombo (LIMA FILHO, 2015; EWBANK, 2015; GRIPP, 2015).
Uma vez realizada essa indispensável fase de estudos foi relevante implementar uma etapa
central do processo etnográfico ainda em curso: a interlocução e, portanto, pesquisa
compartilhada com os Karajá, uma vez que a coleção, agora, pode ser disponibilizada na
reserva técnica com condições adequadas para recebê-los, a fim de se realizar um estudo
detalhado in situ. Ao mesmo tempo a interlocução com os Karajá já acontece quando eles
visitam Goiânia e o Museu Antropológico da Universidade Federal de Goiás.

A inspiração teórica
O antropólogo Johannes Fabian (2010) chamou a atenção para o fato de que o
renascimento da cultura material, que temos acompanhado com vigor nos últimos anos,
desempenhou um papel crucial nas reorientações que a Antropologia vem assumindo num
movimento consciente de superação do positivismo e de sua atuação quanto à condenação
moral que sofreu enquanto empresa colonial-imperial. O papel da cultura material nesse
processo de reorientações epistêmicas foi pelo menos tão significativo quanto a “virada
literária” da Antropologia na direção do movimento da cultura como texto.
O interesse pelo estudo de artefatos e coleções segue, então, na direção de implodir a
inércia de análises centradas no paradigma culturalista preso à própria origem da antropologia
numa obsessão por enquadramentos tipológicos, hierárquicos e colonialistas.
A tarefa de recontextualizar objetos etnográficos ganha amplitude ao serem
investigados os sentidos e os novos conceitos que contribuíram para a sua redefinição, uma
tarefa absolutamente indispensável, à qual devem se debruçar tanto os museólogos quanto os
antropólogos. O grande desafio é o de ultrapassar primeiramente uma perspectiva clássica,
que considera apenas os artefatos obsoletos da vida cotidiana, ditos ‘tradicionais’, ou então os
empregados em cultos ou rituais. (VAN VELTHEM, 2012: 58).
A literatura antropológica e as produções provenientes dos estudos culturais têm,
então, apresentado textos críticos sobre a apropriação dos objetos deslocados de contextos
culturais, mercado e arte e o papel dos museus na contemporaneidade. Nesse sentido, as
práticas do colecionamento, para Reginaldo Gonçalves (2007) uma categoria de pensamento,

310
assume uma função mediadora nos processos que envolvem desde aretirada dos objetos de
seus contextos culturais nativos até suas transformações em objetos etnográficos, preservados
e expostos nos museus ocidentais.
Quanto aos museus, Néstor Canclini afirma que:

(...) a crise do museu não se encerrou (...) são debatidas as mudanças de que
necessita uma instituição, marcada desde sua origem pelas estratégias mais
elitistas, para rever sua posição na industrialização e na democratização da
cultura (CANCLINI, 2003: 170).

Algumas antropologias produzidas a respeito dos museus e do colonialismo têm


fortalecido essas assertivas críticas. James Clifford (1998), demonstrou o jogo de significados
presente no Museu Kwagiulth na ilha de Quadra no Canadá onde as narrativas míticas
orientam a concepção museal do grupo étnico, enquanto Sally Price advertiu sobre a atitude
de silenciar o subalterno e a ausência de crítica social no Musée du quai Branly (PRICE,
2007).
Muito mais do que um dado inerte nas reservas técnicas ou arquivado em nossos
gabinetes de estudos, os objetos passam a ser observados sob novas perspectivas conceituais
e, desta maneira, assumem um estatuto polifônico e que pode acionar o trabalho da memória
de marcos identitários, uma vez que as imagens dos objetos também “circulam” nos meandros
das memórias dos sujeitos, carreando lembranças de situações vividas outrora. Tais situações
são permeadas por certas sutilezas e emoções próprias do ato de lutar contra o esquecimento e
a finitude do ser, bem como de seus vínculos com o seu lugar de pertença (SILVEIRA e
LIMA FILHO, 2005) ou seja, elas são propulsoras de uma “antropologia dos sentidos”
conforme proposto por Fabian (2010: 67) que conecta ações e noções sobre arquivos,
curadoria, repatriação, natureza/cultura, agência, produção de discursos, processo artísticos e
atos de colecionar.
Soma-se aos apontamentos acima a refinada concepção de Tim Ingold (2009) sobre a
desconstrução da noção de objetos a favor da noção de coisas e de materialidades. A
concepção de fluxos e contrafluxos, vazamento e rompimento da dicotomia natureza/cultura
atravessando a concepção de materialidade aponta para uma antropologia do devir “pois é no

311
contrário da captura e da contenção – na descarga e vazamento – que descobrimos a vida nas
coisas” (INGOLD, 2012: 35).
Nesse sentido, o foco do projeto é buscar aprender sobre a dinâmica dos fluxos dos
materiais na vida dos Karajá, instigado pela reflexão de Tim Ingold de que:

(...) a coisa tem o caráter não de uma entidade fechada para o exterior, que se
situa no e contra o mundo, mas de um nó cujos fios constituintes, longe de
estarem neles contidos, deixam rastros e são capturados por outros fios
noutros nós. Numa palavra, as coisas vazam, sempre transbordando das
superfícies que se formam temporariamente em torno delas (INGOLD, 2012:
29).

Assim, se a coisa existe na sua coisificação - no processo de vir a ser - e não apenas
enquanto um objeto fora do fluxo de sentidos do pensar e do fazer de quem com ele se
conecta em momentos quando rastros são produzidos; a pesquisa tem almejado construir uma
exegese das narrativas compartilhadas com os Karajá sobre o lugar que a cultura material,
para Ingold (2012) materialidades e biografia/circularidade/cadeias valorativas Koptoff
(2006) , têm na vida social. Interessa compreender a recepção ou produção de sentidos dos
Karajá com o reencontro de uma coleção de coisas de 1938 e a ressonância disso em suas
redes de relações sociais internas (família, grupo doméstico uxorilocal interaldeias,
subgrupos) e as externas com outros povos indígenas ou estrangeiros (ixyju) e com o mundo
dos tori, ou seja, os “brancos”. Atenção tem sido dada também para as narrativas, na
oportunidade do acesso dos Karajá à coleção William Lipkind, relacionadas aos agentes
patrimoniais, museológicos e antropológicos.

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jan.-abr. 2012.

314
AÇÕES MUSEOLÓGICAS: UMA REFLEXÃO SOBRE AS ATIVIDADES DO
MUSEU DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO PARÁ

Silvia Raquel de Souza Pantoja*


Karla Tarissa Cordeiro Reis*
Juliane Roberta Chaves e Chaves*
*Universidade Federal do Pará

Resumo: A presente pesquisa objetiva apresentar e analisar o processo de documentação museológica


desenvolvido no Museu do Instituto Histórico e Geográfico do Pará (MIHGP) por meio do “Projeto de
documentação do acervo museológico do Museu do Instituto Histórico e Geográfico do Pará”.
Partindo disto, elaborando reflexões e sugestões especificamente sobre as ações relacionadas com o
acervo da pinacoteca, apresentaremos considerações teórica e prática para a salvaguarda e difusão do
mesmo, onde o preenchimento das fichas de inventário é um importante meio de preservação e
controle deste acervo.

Palavras-chave: museu; museologia; documentação; pinacoteca.

Abstract: This research aims to present and analyze the process of museological documentation
developed at the Museum of the Historical and Geographic Institute of Pará (MIHGP) by means of the
“Documentation project of museological collection from Museum of the Historical and Geographic
Institute of Pará”. Therefore, elaborating on reflections and suggestions specifically about actions
related to pinacoteca collection, we present theoretical and practice considerations to selfsame
safeguard and diffusion, which registry list filling it’s an important device to its preserve and control.

Key-words: museum; museology; documentation; pinacoteca.

315
Introdução

O Museu do Instituto Histórico e Geográfico do Pará (MIHGP) é organizado e


mantido pelo Instituto Histórico e Geográfico do Pará (IHGP). Estas instituições estão ambas
sediadas no Solar do Barão do Guajará, prédio tombado pelo Serviço do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional (SPHAN), desde 1943.

Atualmente a Pinacoteca do MIHGP vem passando por um novo processo de


documentação com base no “Projeto de documentação do acervo museológico do Museu do
Instituto Histórico e Geográfico do Pará”, coordenado pela docente Me. Marcela Guedes
Cabral, com vinculação ao curso de Bacharelado em Museologia da Universidade Federal do
Pará (UFPA). O projeto que ainda está em andamento, visa à difusão dos acervos do MIHGP
e de suas informações para que haja a propagação entre as comunidades acadêmicas e locais,
possibilitando a apreciação e o conhecimento dos seus objetos. Porém, há uma necessidade de
aprofundamento na documentação dos acervos para expandir ações que envolvam pesquisa,
conservação e comunicação. A isto considerando, o presente artigo objetiva apresentar e
analisar o processo de documentação desenvolvido no MIHGP por meio do supracitado
projeto. Com isto, colaborar com as ações do projeto incrementando com considerações e
sugestões que venham a potencializar as áreas do MIHGP de Documentação Museológica,
Conservação de Acervos e Educação em Museus, para que assim possam ser implantadas no
MIHGP a fim de garantir, diante dessas áreas, a salvaguarda e comunicação do acervo deste
museu.

Museu do Instituto Histórico e Geográfico do Pará - MIHGP

O Museu do Instituto Histórico e Geográfico do Pará veio como parte integrante do


IHGP, assim como a biblioteca e o arquivo. Segundo o Estatuto do IHGP, no Art. 47º:

O Museu será constituído por todas as peças, inclusive de Numismática,


Filatelia e Medalhística, que tenham interesse para as finalidades do
Instituto, doadas ou por ele adquiridas. Á sua guarda ficarão também as

316
peças da Pinacoteca, mesmo que distribuídas pelas dependências do Instituto
(IHGP, 2005, p.03).

Durante a passagem de Pedro Roumié como Diretor do MIHGP (2002-2004), o museu


passou a ter mais visibilidade, entretanto o prédio que o abrigava carecia de reparos. Roumié
também listou todos os objetos e assim organizou os acervos de Pinacoteca, Numismática,
Armaria, Indumentária, Mobiliário, Arte Decorativa, Fotografias, etc., que hoje são
encontrados no interior do Museu (ROUMIÉ, 2004). Cada um desses acervos passou por
novo arrolamento entre 2015 e 2016. Atualmente, o acervo da Pinacoteca passa por processo
de catalogação e inventário, limpeza e troca de embalagens.

Formação da Pinacoteca

A coleção da pinacoteca é composta por retratos, fotografias, telas e gravuras. Estas


sendo provenientes de doações e ofertas realizadas por herdeiros; órgãos militares;
instituições; fotógrafos; dentre outros, e também através de aquisições feitas pelo próprio
IHGP a fim de enriquecer cada vez mais o acervo do Museu. Nesta coleção há uma grande
diversidade de técnicas e características estilísticas utilizadas nas obras, sendo alguns
exemplos destas técnicas a aquarela, desenhos a lápis grafite e pinturas a óleo. Em grande
parte, estas obras são retratos de personalidades históricas paraenses, membros da família real,
membros do IHGP, além de representações dos casarões de Belém, e de acontecimentos
marcantes para a história do Pará.

Inicialmente, as peças do acervo da pinacoteca do MIHGP eram expostas pelos


diversos cômodos do Solar do Barão do Guajará. Após assumir a Cadeira 28 de diretor do
museu, Pedro Roumié apresenta em seu relatório referente ao período de maio de 2002 a
fevereiro de 2004, sua surpresa com o presente descaso com as peças do museu como um
todo, declarando falta de documentação de posse, pertença ou doação das peças,
desaparecimento de uma grande quantidade de itens, além da precária situação física do

317
prédio. “Ao tomar posse nas funções de Diretor do Museu, confesso que fiquei perplexo com
a total e evidente constatação do abandono [...]” (ROUMIÉ, 2004, p. 4).

Com a falta de segurança do local, o Museu tornou-se propicio a assaltos, nos quais
itens da coleção da pinacoteca foram extraviados, sendo em sua maioria nunca recuperados.
Tendo conhecimento disto, Roumié reuniu a coleção em algumas das salas do Solar, para que
estas pudessem estar em maior segurança, iniciando o processo de documentação e
tombamento da coleção restante, tomando como base para conhecimento das peças
remanescentes da pinacoteca, a seção I do Catálogo da exposição em homenagem ao
centenário do nascimento do ex-Imperador D. Pedro II, presente no seu Relatório de Gestão
do interstício 2002 a 2003, no qual foram utilizadas peças do acervo da pinacoteca do
MIHGP, sendo este documento fornecido pelo Dr. Guaraciaba Quaresma Gama (ROUMIÉ,
2004).

Dando prosseguimento a estas ações em seu segundo ano vigente na direção do


museu, tendo o cuidado de observar as peças que necessitavam de restauros, visando sempre
as melhores alternativas para um eficiente processo de salvaguarda das mesmas.

Neste terceiro e último ano de atividade a direção elo Museu terminou o


tombamento de todo o acervo. Trabalho bastante demorado devido ao estado
de abandono em que se encontrava o Museu, e pela dificuldade de localizar
os documentos originais referente às doações, alguns infelizmente perdidos
para sempre (ROUMIÉ, 2004, p.69).

Após a conclusão desta etapa de tombamento iniciou-se a próxima fase de seu


trabalho, a confecção do “Catálogo de Objetos”.

318
Ações de documentação da pinacoteca do MIHGP
Realizamos este estudo tendo por objetivo colaborar com a instituição em seu papel de
mantenedora de memória e conhecimento, para fins da preservação histórica e material desta
coleção. Tendo em vista que a principal função da documentação é a preservação das
informações contidas nos documentos. Ressalta Ferrez, a relevância da documentação dentro
do museu, e define este procedimento técnico como

[…] o conjunto de informações sobre cada um dos seus itens e, por


conseguinte, a representação destes por meio da palavra e da imagem
(fotografia). Ao mesmo tempo, é um sistema de recuperação de informação
capaz de transformar […] as coleções dos museus de fontes de informações
em fontes de pesquisa científica ou em instrumentos de transmissão de
conhecimento (FERREZ, 1994).

Para tal procedimento, é necessário o desenvolvimento de instrumentos documentais


que venham a ser preenchidos com informações individuais de cada objeto-documento,
inserido em um sistema de recuperação destas informações, disponibilizando-as para consulta.

As informações contidas nos objetos podem ser de natureza intrínseca ou extrínseca197.


Cabendo às informações intrínsecas como materiais e técnicas, dimensões, estado de
conservação, dentre outros; e extrínsecas, como histórico, procedência, modo de aquisição,
dentre outros, sendo a Documentação dos acervos museológicos uma das principais etapas do
processo de musealização.

Uma das definições de musealização é apresentada por Marília Xavier Cury que
percebe como uma valorização dos objetos e que se inicia no ato de seleção, seguido por
aquisição, pesquisa, documentação, conservação e comunicação (CURY, 1989, p. 24-26).
Deste modo, compreendemos por musealização a mudança de status de um objeto do
cotidiano, dentro de um circuito de produção – uso – manutenção, para objeto de museu. Para

197
Segundo Ulpiano Meneses (1998), as informações intrínsecas dizem respeito ao conteúdo físico-químico do
objeto, enquanto que os dados extrínsecos é o conteúdo que forma o discurso acerca do objeto, implicando assim
na questão da “verdade e ‘autenticidade’ do artefato”.

319
que isto aconteça, muitas vezes, é necessário retirar a coisa de seu contexto original para
possibilitar o estudo, e então, comprovação do seu valor documental como representação
fidedigna de uma realidade cultural, podendo se tornar, assim, um testemunho de dada
cultura, preservando tanto a memória como o seu caráter informacional.

Uma vez que este acervo já passou por um incipiente processo de documentação, no
próximo tópico será apresentado o andamento de cada etapa desenvolvida dentro do projeto a
partir de exemplos práticos do acervo em questão.

Documentação e Pesquisa

Segundo Helena Dodd Ferrez (1994), a documentação de acervos é um processo que


agrega e recupera informações sobre determinada peça, por meio da palavra ou registros
fotográficos, podendo leva-la a ter novas interpretações e significados, tornando-a não apenas
fontes científicas, mas sim, transmissores de conhecimento. Com isso, o objeto deve passar
por mais pesquisas com o intuito de identificar sua tipologia para que este seja disposto em
um acervo adequado, onde tendo seu valor reconhecido, seja salvaguardado.

Para o registro documental foi concebida uma ficha de inventário. Estas fichas foram
preenchidas com dados sobre a identificação do objeto, análise, conservação, notas, dados de
preenchimento e reprodução fotográfica. Como no modelo de ficha a seguir:

320
Figura 1: Ficha de inventário utilizada no projeto para o MIHGP.

As informações das telas são descritas com o máximo de detalhes possíveis, tanto de
sua parte frontal quanto em seu verso, procurando inscrições, assinaturas e marcas que
possam ajudar na obtenção das informações extrínsecas; também são observados agentes
deteriorantes nas obras, como fungos, traças, manchas de umidade, rasgos e craquelamento;
suas medidas de comprimento e largura verificadas, devendo ser registrados sempre em
centímetros. Se uma tela estiver com sua moldura, é feito o desdobramento, que é a realização
de uma ficha individual para cada parte integrante ao quadro. Cada peça desdobrada deve ser
representada com uma letra minúscula do alfabeto devendo as respectivas peças seguir a
ordem crescente. As informações extrínsecas, que não são encontradas na própria obra, são
deixadas para serem pesquisadas posteriormente. Após todo o preenchimento, deve-se fazer a
identificação da peça, marcando-a provisoriamente para posterior marcação definitiva com
uma pequena etiqueta com alfanumérico e tripartido dado pela própria instituição, como
exemplo “MIHGP.I.216.a”, no entanto, também pode haver um número de inventário
anterior, este devendo ser igualmente documentado.
Com o término da retirada de informações, pode-se começar a penúltima etapa, a
limpeza da obra, que é feita com pincéis de tamanhos variados, sempre manuseados com
extremo cuidado. Dessa forma, a obra pode ser guardada à reserva técnica. Por fim, todos os

321
dados obtidos devem ser repassados da ficha impressa para a ficha de arrolamento

digitalizada, assim facilitando para uma melhor organização e armazenamento das


informações.

Figura 2: Esquema do número de registro desenvolvido pelo MIHGP

Considerações finais

Observamos com este trabalho que o MIHGP já possuía uma noção da importância da
Documentação Museológica para a salvaguarda do seu acervo. Entretanto, mesmo não sendo
um processo totalmente desconhecido, este era limitado a uma lista de arrolamento, e até
mesmo o Catálogo de exposição do Theatro da Paz não apresentava mais que o nome dos
objetos, dimensões e material e técnica. Vimos que, com o projeto Documentação do Acervo
do MIHGP, que na edição de 2017 foca a documentação das obras da Pinacoteca, é
desenvolvida uma numeração própria e uma ficha de inventário para o registro do acervo,
visando uma gama de informações, organicidade e acessibilidade maior para a coleção.

Utilizando-se destas ações de documentação museológica, posteriormente será


possível aplicar execuções mais diretas em relação à conservação, como higienização e
restauro das obras da pinacoteca em domínio deste museu. Assim, tornando-se viáveis

322
elaborações mais concretas para externalizar este acervo à comunidade em geral, visto que no
momento esta coleção só se encontra disponível para pesquisadores, devido a precária
situação documental e de conservação.

Referências Bibliográficas

CURY, Marília Xavier. Exposição: concepção, montagem e avaliação. São Paulo:


Annablume, 2005, p. 22-27.

FERREZ, Helena D. Documentação museológica: teoria para uma boa prática. In:
CADERNOS de ensaios, nº 2. Estudos de museologia. Rio de Janeiro, Minc/ Iphan, 1994, p.
64-73.

IHGP. Estatuto do Instituto Histórico e Geográfico do Pará. 2005.

MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Memória e cultura material: documentos pessoais no


espaço público. Estudos históricos, Rio de Janeiro, 1998, v. 11, n. 21, p. 89-103.

ROUMIÉ, Pedro. Relatório do IHGP - Instituto Histórico e Geográfico do Pará 2002-2004.


Belém, 2004.

323
PATRIMÔNIOS AFETIVOS, ACERVOS MUSEOLÓGICOS:
APONTAMENTOS A CERCA DAS CARTAS DO MAESTRO
WALDEMAR HENRIQUE

Sônia Regina Silva do


Nascimento*

Resumo: A pesquisa trata do estudo de parte do acervo do maestro paraense Waldemar


Henrique que se encontra salvaguardado pelo MIS 198 e o SIM199 de Belém do Pará, após sua
morte em 1995. O Maestro foi um músico reconhecido internacionalmente. O estudo
concentra-se nas “Cartas Enviadas” que o mesmo tinha o hábito de escrever durante suas
viagens pessoais e em turnês artísticas. Foram acessados seis textos e sessenta cartas escritas
aos amigos, familiares. A pesquisa ainda em andamento realizou uma curadoria para selecionar
as cartas e textos; um arrolamento em ordem cronológica, destacando os temas, os remetentes,
as cidades e países de onde foram enviadas; digitalização de todo o material selecionado e o
levantamento dos assuntos recorrentes. O maestro foi o único artista paraense que viveu a fase
áurea do modernismo musical brasileiro, no qual se destacaram Heitor Villa- Lobos como
compositor e Mario de Andrade como crítico, ambos amigos pessoais de Waldemar Henrique.
Objetivamos realizar um estudo antropológico sobre o conteúdo das cartas e no contexto
museológico e da comunicação elaborar uma exposição virtual com o conteúdo o e material
imagético desta pesquisa, podendo assim proporcionar uma melhor acessibilidade a novos
pesquisadores.

Palavras-chave: Waldemar Henrique; cartas; modernismo; Pará; acervo.

198
Museu da Imagem e do Som.

324
199
Sistema Integrado de Museus e Memoriais.

325
Abstract: The research deals with the study of part of the collection of the Paraense maestro
Waldemar Henrique. The collection is safeguarded by the MIS and the SIM of Belém do Pará. After
his death in 1995, he became an internationally recognized musician. The study focuses on the six
texts and sixty letters written and sent by the maestro for his friends and relatives. Waldemar Henrique
had the habit of writing letters during his personal travels and artistic tours. The research stills in
progress and is carrying out a curatorship to select the letters and texts; ordering them on a
chronological order, highlighting the themes, the senders, the cities and countries from which they
were sent; also scanning of all the selected material and the survey of recurring subjects. The maestro
was the only artist from state of Pará who lived the phase of Brazilian musical modernism, as the
composer Heitor Villa-Lobos and the critic Mario de Andrade, both friends of Waldemar Henrique.
The research intends to carry out an anthropological study on the content of the letters and in the
museological and communication context to elaborate a virtual exhibition with the contents of this
research, thus being able to provide a better accessibility to new researchers.

Key-words: Waldemar Henrique; letters; modernism; Pará; collection.

326
Objetivos
O Sistema Integrado de Museus e Memoriais e o Museu da Imagem e do Som do
Estado Pará, tem a guarda de todo o acervo do Maestro Waldemar Henrique com mais de
15.00 peças, que é compreendido de diários, álbuns de fotografias, matérias jornalísticas,
obras de arte, discos, músicas, partituras, cadernos de anotações, poesias, correspondências
recebidas e enviadas entre outros. As “Cartas Enviadas” do maestro Waldemar Henrique
serão o objeto desta pesquisa, através destas serão recriadas memórias por meio de seus
escritos às pessoas que lhe tinham apreço.
No contexto da Museologia foi realizada uma curadoria para seleção do material, feito
um arrolamento em ordem cronológica que deu suporte ao inicio da pesquisa. Dentro deste
processo tomamos por base a leitura de 60 cartas e 6 textos que compõe parte do DVD
Coleção Waldemar Henrique (2005), e que datam de dezembro de 1934 a agosto de 1990.

A museologia é uma ciência em construção e seu objeto específico de estudo


será o fato museológico que demonstra a relação profunda entre o homem,
sujeito que conhece, e o objeto testemunho da realidade. Uma realidade da
qual o homem também participa e sobre a qual ele tem o poder de agir, de
exercer a sua ação modificadora (RUSSIO apud CHAGAS, 2005).

Waldemar Henrique da Costa Pereira nasceu em Belém em 1905, vindo a falecer no


ano de 1995, compositor e pianista. Estudou solfejo, piano, violino, harmonia, composição e
canto. Em 1923 compõe suas primeiras músicas; “Minha Terra” e “Felicidade” em 1924,
para canto e piano, neste momento revela seu interesse pela música popular. Em 1929
ingressou no Conservatório Carlos Gomes onde aprofundou seus estudos musicais. Na década
de 1930 torna-se pianista e diretor artístico da Rádio Clube do Pará, e passa a escrever para
companhias de teatro de revista em Belém.
Muda-se para o Rio de Janeiro em 1933 para aprofundar seus estudos e construir uma
carreira artística. Suas canções baseiam-se em temas amazônicos despertando o interesse de
vários interpretes que gravaram diversas canções suas. Com o sucesso tocou em cassinos,
rádios e teatros do Rio de Janeiro, realizou diversas excursões pelo Brasil e no exterior
acompanhado pela irmã cantora, Mara Costa Pereira. Em 1935 em São Paulo conhece Mário

327
de Andrade e o maestro Heitor Villa Lobos. Nos anos 1940 excursiona pela Argentina e
Uruguai, acompanhado pela irmã e outros intérpretes. Destacam-se pelo sucesso o registro
de Minha Terra, por Francisco Alves, e Tamba-Tajá, gravada por Antonieta Fleury de Barros.
Participou da fundação da Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Editores de
Música (Sbacem). Em 1949 como funcionário do Itamaraty excursionou pela França, Espanha
e Portugal, para divulgar a música brasileira. Entre 1953 a 1954, viaja novamente pela Europa
e por Paraguai, Uruguai e Argentina. Em 1960 retorna à Belém, cinco anos depois é nomeado
diretor do Departamento de Cultura da Secretaria de Estado de Educação e Cultura do Pará,
assumindo a direção do Teatro da Paz, em Belém, também foi diretor do Conservatório Carlos
Gomes. Em 1981 é eleito para a Academia Brasileira de Música. Com problemas de saúde se
afasta da música e morre em 1995.
O maestro Waldemar Henrique em suas diversas viagens no decorrer destes anos de
sucesso escreveu dezenas de cartas para familiares, amigos e colegas de profissão onde conta
sobre os diversos assuntos de grande relevância na sua história. O maestro tinha o hábito de
reproduzir suas cartas, tendo sempre uma cópia, e quando não era possível ele solicitava ao
destinatário que este a guardasse para devolvê-lo. Nestes escritos um de seus principais
objetivos era documentar o dia-a-dia de suas viagens, como um diário (fez isso em alguns
exemplares), para que no futuro pudesse relembrar aqueles momentos ao reler seus escritos.
Mas o que fazer com cartas e textos antigos de um ilustre artista?, Eles podem ser
considerados objetos relevantes para memória e patrimônio cultural do Estado?. Como
apresentá-los a sociedade e transformar este conteúdo em objetos de conhecimento?.

Trata-se daquelas situações em que determinados bens culturais,


classificados por uma determinada agência do Estado como patrimônio, não
chegam a encontrar respaldo ou reconhecimento junto a setores da
população. O que essa experiência de rejeição parece colocar em foco é
menos a relatividade das concepções de patrimônio nas sociedades modernas
(aspecto já excessivamente sublinhado) e mais o fato de que um patrimônio
não depende apenas da vontade e decisão políticas de uma agência de
Estado. Nem depende exclusivamente de uma atividade consciente e
deliberada de indivíduos ou grupos. Os objetos que compõem um patrimônio
precisam encontrar “ressonância” junto a seu público. (GONÇALVES, 2005,
p.19)

328
A problematizarmos este conjunto documental de 60 “Cartas Enviadas” e mais os seis
textos, foi realizado o levantamento do conteúdo existente no material, separados por assuntos
e importância. A pesquisa em foco busca trazer a tona o homem Waldemar Henrique através
de suas próprias palavras, narrativas sobre sua vida pessoal, a carreira, os amigos, sua obra,
viagens, alegrias, decepções. Estes patrimônios afetivos que compõem este acervo
museológico encontram-se retidos dentro de uma instituição que dificulta o acesso da
sociedade a este conhecimento. Para que se possa facilitar este acesso às memórias do
Maestro Waldemar Henrique, tem-se como objetivo final desta pesquisa a construção de uma
exposição virtual, para Oliveira (2006), “podemos pensar o meio tecnológico como extensão e
comunicação de nossa própria história e memória [...] um acervo onde o próprio observador,
cidadão comum, se fará presente, guardando a sua memória histórica”. Conforme Desvallées
e Mairesse (2013) “poderá ser utilizada para apresentar os resultados da pesquisa efetuada e
facilitando o acesso aos objetos que compõem esta coleção”. A exposição não será apenas
parte integrante da pesquisa, mas um elemento de comunicação que possibilite a
potencialização e a socialização deste conhecimento, através da acessibilidade que a internet
proporciona, desta forma projetaremos a Museologia para além dos muros dos museus.

Metodologia
Esta pesquisa lança mão de estratégias metodológicas clássicas da Antropologia para
produção de dados e análises qualitativas. Inicialmente foi realizado um levantamento das
cartas e textos que serão utilizadas na pesquisa, em seguida, a digitalização de cada
documento, um arrolamento em ordem cronológica, com seus destinatários, locais de envio,
assuntos tratados no respectivo documento e observações.
As visitas a campo foram norteadas pela visitação ao acervo do maestro que estão
salvaguardados no SIM - que envolveu identificação, seleção, leitura e registro digital -, para
a produção de dados e narrativas sobre a vida do artista, demandando também a aplicação de
leituras as cartas e textos selecionados através da visitação ao acervo e do DVD Coleção
Waldemar Henrique, foi realizado um arrolamento que norteará todo o projeto de pesquisa.
Para BECKER (2007), “existem as representações substantivas, o senso comum, ou seja,

329
nossa visão de mundo e as imagens que dele fazemos no dia-a-dia precisam ser trabalhadas
cientificamente”.
Dessa forma, a princípio, estima-se como meta tomar para a pesquisa um quantitativo
de sessenta cartas e seis textos, construir um banco de imagens para registro dessas cartas e
textos, tendo como resultado a realização de uma exposição virtual, que proporcionará a
reprodução e a acessibilidade do conhecimento adquirido neste projeto de estudo,
possibilitando novas perspectivas de pesquisas sobre a vida e obra do maestro Waldemar
Henrique.

Resultados da pesquisa
No decorrer da pesquisa descobrimos que o Maestro Waldemar Henrique tinha o
hábito de escrever e guardar cópias de cartas que enviava aos amigos e familiares. Quando
não conseguia fazer uma cópia, solicitava ao destinatário que a guardasse para lhe devolver.
Suas narrativas são ricas em detalhes para que no futuro ao reler suas cartas e textos pudesse
relembrar os bons e maus momentos vividos em seu cotidiano e em suas viagens. “Waldemar
Henrique é lembrado pelo constante ato de narrar, de contar causos, de rememorar histórias,
num modo todo particular de fazê-lo” (DIAS, 2009, p.11)
Também escrevia textos autobiográficos fazendo a cronologia de sua carreira, auto-
entrevistas com jornalistas fictícios nas quais falava o que pensava, narrativas de momentos
vividos por ele e Mára - sua irmã que interpretava suas canções folclóricas que contavam o
imaginário das lendas amazônicas e que foi sua parceira em várias turnês pelo mundo - e a
biografia que escreveu sobre ela como homenagem póstuma.

A Música Popular é a música que, sendo composta por autor conhecido, se


difunde e é usada, com maior ou menor amplitude, por todas as camadas de
uma coletividade. Porém, para descrever a musicalidade no Folclore é
necessário expor o conceito de Música Folclórica, que não deixa de ser
popular, mas possui características únicas, hereditárias de suas raízes.
(RÊGO; AGUIAR, 2006, p. 9)

330
No levantamento realizado neste acervo museológico encontramos um rico material
deixado por um dos maiores compositores brasileiros, que fez parte da fase áurea do
Modernismo Brasileiro, retornou para sua cidade natal na qual tinha o reconhecimento
artístico sendo considerado representante maior do Cancioneiro Amazônico. Morreu aos 90
anos na cidade de Belém.

Referências bibliográficas
BECKER, Howard S. Segredos e truques da pesquisa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2007.

CHAGAS, Mário. Cultura, Patrimônio e Memória. In.: Revista Museu. 2005. Disponível
em: <http://www.revistamuseu.com.br/18demaio/artigos.asp?id=5986>. Acesso em: 10 de
agosto 2017.

DESVALLÉES, André; MAIRESSE, François. Conceitos-chave de Museologia. Tradução:


Bruno Brulon Soares, Marília Xavier Cury. ICOM: São Paulo, 2013. Disponível em:
<http://icom.museum/fileadmin/user_upload/pdf/Key_Concepts_of_Museology/Conceitos-
ChavedeMuseologia_pt.pdf>. Acesso em: abr. 2015.

DIAS, R. M. No Domínio das Águas: as experiências de Waldemar Henrique e Mário de


Andrade na Amazônia (1922-1937). 2009.

GONÇALVES, José Reginaldo. “Ressonância, materialidade e subjetividade: as culturas


como patrimônios”. In: Horizontes Antropológicos. Revista do PPGAS da UFRGS. vol. 11,
n.º 23, jan-jun de 2005 [Arquivo eletrônico:
http://www.scielo.br/pdf/ha/v11n23/a02v1123.pdf].

HENRIQUE, Waldemar. Coleção. Realização: Sistema Integrado de Museus e Memorias;


Museu da Imagem e do Som do Pará; Associação Amigos dos Museus do Pará. Patrocínios:
Banco da Amazônia; Secretária de Estado de Cultura - Governo Popular. Apoio Institucional:
Lei de Incentivo a Cultura; Ministério da Cultura; Governo Federal. Belém: 2005. 1
DVDROM, Colorido.

OLIVEIRA, José Cláudio Alves de. Museus digitais e cibermuseus: sistema, objeto e
informação dos bancos de dados iconográficos: problemas e perspectivas da pesquisa
científica no ciberespaço. Salvador: FACOM-UFBA, 2004. 640 p. il. Vols I, II (Tese de
Doutorado)

RÊGO, L. M. V.; AGUIAR, V. B.: Música, Cultura e Informação: preservação do acervo


musical alagoano. 2006.

331
Museu, museologia e
educação museal:
práticas, poéticas e
políticas decoloniais

332
A PERSPECTIVA PÓS-COLONIAL E SEUS GANHOS EPISTÊMICOS NO ÂMBITO
DA MUSEOLOGIA SOCIAL
Vania Gondim*

Resumo: No contexto da museologia social, a cada dia que passa, a perspectiva pós-colonial têm
ganhado cada vez mais espaço levando a desconstrução de velhas perspectivas e a emergência de
novas abordagens. Neste sentido o presente texto busca colocar em evidência alguns dos
desdobramentos que em função da utilização da perspectiva pós-colonial levaram ao fortalecimento do
campo da museologia social. Para isto, iniciamos o texto com uma breve digressão histórica acerca do
campo da museologia e da museologia social, para em seguida, adentrarmos nos ganhos
epistemológicos que tal abordagem pode proporcionar aqueles que buscam estudar projetos e
propostas museológicas ligadas as mais diferentes minorias sociais. Resultados preliminares da
pesquisa construídos a partir do argumento aqui desenvolvido, apontam para a existência de ganhos
substanciais para a museologia social, na medida em que – desde a perspectiva pós-colonial – dá-se
cada vez mais voz aos sujeitos socialmente excluídos, e que desde muito, têm sido deixados de fora
pelas instituições tradicionais centrada exclusivamente em seus acervos museais.

Palavras-chave: Museologia; Museologia Social; Pós-Colonialismo; Memória; Identidade.

Abstract: In the course of time in the social museology context the postcolonial perspective has
progressively spread leading to the deconstruction of the old perspectives and the emergency of a new
approach. In this sense, the present text aims to put in evidence some of the progress which, due to the
application of the postcolonial perspective prompt the strength of the social museology field. Thus,
here we begin with a succinct historic digression about the museology and social museology field,
then we discuss the gains of an epidemiological approach can provide for those who aim develop
studies, projects and museology proposals linked to distinct social minorities. Preliminary results of
this research based on the argument here developed point to a substantial gain for the social
museology because - since the postcolonial perspective - it is increasingly the voice of the social
excluded, those that since long, have been suppressed by traditional institutions focusing exclusively
on their museum collections.

Keyword: museology; social museology; postcolonialism; memory; identity.

333
Introdução

Em tempos de modernidade há de convir que as lógicas de pensar e perceber a


realidade estão em constante processo de reinvenção bem como é comum que novos autores
explorem velhos trabalhos e análises clássicas a partir de um outra perspectiva como o fez
Marilyn Strathern (2006) em seu livro “O gênero da Dádiva - Problemas com as mulheres e
problemas com a sociedade na Melanésia”, desde a perspectiva feminista ao se debruçar nos
estudos de Malinowski1 (1976), sobre a Melanésia registrados em seu livro “Argonautas do
Pacífico Ocidental”, mostrando o quão sua análise encontrava-se permeada pelos valores de
sua época e por uma ótica masculina. Neste sentido, podemos dizer que a perspectiva pós-
colonial segue um pouco essa lógica, de modo que, esta busca, sobretudo, explorar e pensar a
realidade desde uma perspectiva autóctone e da produção de autores locais. Assim, nesse
contexto, o nativo também se torna autor e passa junto com o antropólogo a escrever textos e
adentrar o campo dos estudos acadêmicos como muito bem já mostrou os estudos de Geertz
(2009) e Clifford (1998), e ainda, como diz Da Matta (1978), não basta para se compreender a
realidade e ter o domínio apenas das teorias que a explicam, mas é preciso também ter
antropological blues.
Se na antropologia as coisas vão nesse caminho, no âmbito da museologia social as
coisas não são muito diferentes. Os museus surgem como fenômenos modernos que
contribuem com a perpetuação de um sistema de dominação fincado na supremacia de uma
ciência ocidental como paradigma único de conhecimento euro-centrado. Tem-se então, que o
grande desafio que se apresenta aqueles que se debruçam sobre os estudos museais e, em
especial, no que tange as questões relativas ao patrimônio cultural e a memória, reside em se
romper com esta visão unilateral acerca da produção de conhecimento, de práticas e teorias
universalizantes, de modo que, a realidade seja interpretada e pensada a partir da realidade da

1
MALINOWSKI, Bronislaw. Argonautas do Pacífico Ocidental. (Introdução). São Paulo: Abril Cultural, 1976

334
qual ela emerge, ou seja, de modo dialético e problematizador ,o que no âmbito da educação
museal, se aproxima bastante da abordagem proposta por Freire (2002, 2014, 2014b, 2015).
Assim, é com este olhar que a museologia social busca pensar a realidade, ou seja, fora
do jugo das instituições e sempre articulada com a perspectiva dos movimentos sociais e das
demandas oriundas de um contexto político que preza pela liberdade de expressão, de modo
que a questão da memória social e dos museus passa a ser abordada a partir de uma
perspectiva crítica e problematizadora dos diferentes contextos socioculturais, dos quais essas
iniciativas emergem e com os quais se propõe a dialogar.
Dito isto, no presente estudo buscaremos a partir de alguns excertos e relatos
etnográficos mostrar como essa perspectiva se faz presente no âmbito da museologia social,
não podendo assim ser desconsiderada. Outrossim e com vistas a se construir um caminho
mais fluído em relação ao texto, optamos por dividir o mesmo em três partes. Uma primeira
onde realizamos uma breve digressão acerca da questão dos museus, sua gênese e mudança ao
longo da história. Uma segunda, desde a perspectiva da museologia social, onde procuro
mostrar o modo como se deu uma inversão no modo de se pensar os museus e os próprios
acervos a partir de um conjunto de políticas públicas implementadas por diferentes países, em
diferentes contextos, que a partir dos anos de 1970 vão ganhando espaço no âmbito das
práticas, políticas e estudos museais. E, uma terceira onde busco – em tom quase conclusivo –
pensar a aplicabilidade e a possiblidade de se utilizar da ideia de uma “epistemologia do sul”
para se pensar e estudar as novas práticas museais como é caso, por exemplo, das políticas
públicas voltadas aos Pontos de Memória.

I – Uma breve digressão

Sabe-se que desde já na Antiguidade, no ano de 295 a.C. foi fundado o Museu de
Alexandria que como mostram Santos e Chagas (2007, p. 13) no artigo: “A linguagem de
poder dos museus”, este “tinha um caráter religioso e era dedicado às musas” representando,
assim, “uma resposta à hegemonia anteriormente mantida por Atenas no campo das artes e da

335
cultura” de modo que, desde a perspectiva dos autores supra-referidos esse museu estava
calcado “claramente ao conhecimento e ao poder” de um sobre o outro.
Hoje, conhecemos museus que embora associados às grandes mudanças econômicas,
sociais e políticas do século XVIII, remetem a uma intrínseca relação com o fortalecimento
dos estados nacionais no mundo ocidental, tais como o Museu Britânico, aberto em 1753,
sendo o primeiro museu público, que retratou as coleções representando mudanças inerentes
da Revolução Industrial, da urbanização e crescimento do sistema educacional. Já na França,
como mostra Poulot (2013, p. 83), o Museu teve suas origens na Revolução Francesa visto
que sua construção – e a montagem dos acervos museais – baseou-se, sobretudo “no confisco
dos bens do clero e, em seguida, dos nobres que haviam emigrado durante a Revolução, assim
como nas antigas coleções régias e nas conquistas militares”. Mas, assim como os museus
britânicos, os museus franceses também traziam consigo – e também davam ênfase – a
história de alguns grupos, omitindo e/ou silenciando outros, que em sua maioria
correspondiam a maior parte da população que naquela parte da história ficava excluída.
No Brasil, essa questão não foi muito diferente, de modo que, aqui como em outras
colônias americanas que ficaram independentes de suas metrópoles europeias no século XIX,
os museus representaram uma clara tentativa por parte dos estados emergentes de legitimar
esses novos estados nacionais, como é o caso por exemplo, do Museu Real (Nacional),
apontado por (Chagas, 2015, p.43 apud Schwarcz, 1989, p. 25) que “gradualmente, durante o
século XIX, [...] apresentou-se como um museu comemorativo da nação emergente e adotou
uma prática [...] isolada, no sentido de dialogar exclusivamente com os centros europeus e
americanos”.
Nesse sentido, (Santos e Chagas 2007, p. 14) afirmam que a vinculação da história
dos museus modernos está ligada “ à constituição dos estados nacionais, à democracia, ao
capitalismo, à industrialização, ao individualismo e à ordenação crescente do tempo e do
espaço” de modo que, “à medida que as instituições religiosas deixaram de ser as principais
formuladoras da ordem natural e humana, outras instituições ganharam poder e passaram a
exercer a função de explicar a razão do mundo”, dentre elas, os museus.

336
Assim, o que se percebe por muitos anos nos museus brasileiros é que, estes quase
sempre buscaram a partir de seus acervos museais, apresentar uma memória que estava
calcada na supremacia de uma elite branca dominante, ou dito de outra forma, na história
daqueles que colonizaram e, não daqueles que estavam aqui antes de sua chegada – os
colonizados. Portanto, tem-se então que grande parte do discurso museal institucionalizado –
e, portanto, aquele que organiza as coleções – sempre esteve preso a linguagem e a memória
do colonizador de modo que, os nativos alcunhados como índios tiveram seus rituais, suas
vestimentas, seus hábitos sempre expostos como algo exótico que fazia parte desses acervos e
que – integrados a identidade nacional a partir da ideia de uma democracia racial (DaMatta,
1981) – compunha junto com outros elementos ligados a escravidão e as populações negras, a
cultura no Brasil.
Aconteceu inclusive um caso curioso de um antropólogo alemão alcunhado pelos
indígenas de Nimuendajú, que segundo (Abreu, 2005, p. 108), em seu artigo: “Museus
Etnográficos e práticas de colecionamento: Antropofagia dos sentidos”, “coletava para
museus europeus e brasileiros, especialmente para museus na Suécia, como o Museu de
Gotemburgo e para o Museu Nacional e o Museu Goeldi” sendo inclusive sua subsistência
com a venda dos objetos aos museus, situação que vem a se modificar a partir de 1933,
quando criou-se no Brasil, “o Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e
Científicas que atuou até 1968, inspecionando, controlando e fiscalizando todas as expedições
feitas no Brasil por estrangeiros ou por iniciativa de particulares”.
No artigo, “Colecionando museus como ruínas: percursos e experiências de memória
no contexto de ações patrimoniais”, Regina Abreu (2012, p. 83) relata que na pesquisa para
mapear os museus do Estado do Rio de Janeiro foi encontrado entre outros,

Museus que longe de narrar histórias glamorosas, valorizam o esforço de


populações pobres em construir suas trajetórias. Museus construídos em
favelas ou em comunidades carentes. Museus com baixíssimos recursos e
muita simplicidade, mas também muito eficazes no empreendimento de
expressar histórias nunca antes relatadas. Quais os significados desses
espaços de memória? Quais as novidades que trazem? Há a impressão de

337
que essas experiências estão trazendo formas de empoderamento social e de
uma nova apropriação dos sentidos do espaço, transformando territórios lisos
em paisagens rugosas, iluminando o que antes era opaco e invisível. São
museus recém-criados em regiões de baixo Índice de Desenvolvimento
Humano (IDH), regiões periféricas e estigmatizadas de espaços urbanos

Dito isto, e após essa breve digressão passemos ao modo como esse movimento foi
ressignificando a ideia de museu, e dando contornos a partir de uma série de encontros
promovidos pela UNESCO, pelo ICOM e pelo ICOMOS aquilo que, hoje, denominamos de
museologia social.

II – Saindo dos museus e adentrando a sociedade: a constituição do campo da


museologia social

Em 1945, a Organização das Nações Unidas (ONU) cria a Organização das Nações
Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), cujo objetivo é através da cultura,
ciência e educação certificar o respeito à justiça, às leis, aos direitos do homem e às liberdades
fundamentais para, desta forma garantir a manutenção da paz e da segurança mundial, uma
vez que pelo entendimento mútuo dos povos, à época, era necessário para que se reduzisse as
tensões e incompreensões existentes, se reconhecesse a diversidade e a pluralidade existentes
em diferentes contextos e lugares.
Em novembro de 1946 é, então, criado o Conselho Internacional de Museus (ICOM),
que é uma Organização não Governamental de museus. Seus profissionais têm como objetivo
a promoção dos interesses da Museologia e de outras disciplinas relacionadas às atividades
dos museus. É também foco de atenção do ICOM, a relação museu-sociedade como mostrado
por Soto (2014, p. 63) que deixa claro que também “é seu papel trabalhar para o melhor
conhecimento do lugar que os museus ocupam na sociedade, percebendo a sua função e,
como as instituições, cada uma em seu modo particular, podem colaborar para o
desenvolvimento social”. E ainda, “o ICOM propõe que o museu deve aproveitar todas as

338
oportunidades para desenvolver o seu papel de recurso educativo a ser usado por todos os
setores da população ou por grupos especializados, aos quais ele tem por objetivo servir”.
Em maio de 1964 foi criado o Conselho Internacional de Monumentos e Sítios
(ICOMOS), uma organização não governamental internacional “que atua na promoção da
conservação, proteção, reabilitação e melhoria de monumentos, grupos de edifícios e sítios,
tanto no âmbito nacional quanto internacional”. Assim, “tanto o ICOMOS quanto o ICOM
exercem um papel de grande importância junto à UNESCO em diversas áreas, principalmente
no que se refere à elaboração das listagens do Patrimônio Cultural Mundial (material e
imaterial, tangível e intangível” (Soto, 2014, pp. 63-64).
Anterior a essas organizações, tem-se que as décadas de 1920/1930 foram marcadas
como mostrado por Soto (2014, p. 65) “pela necessidade de se constituir uma identidade
nacional” que “por meio do patrimônio como herança coletiva da nação” buscava, através do
“reconhecimento da importância, do valor, da educação pública e universal” difundir, de
forma mais generalizada que as coleções existentes nos museus “deveriam ser acessíveis à
todos, e caberia às elites dinamizar as questões político-culturais, o que incluía a esfera
museológica”.
Dito isto, e agora retornado ao nosso tempo, temos que na contemporaneidade, em
todos os continentes, as instituições museológicas, tanto públicas como privadas, apresentam
“as conquistas e os valores da humanidade e os dramas e atrocidades vivenciados pelas mais
diferentes sociedades e culturas” de modo que, o que se percebe em todos esses contextos é
que são “as evidências materiais da cultura persistem no centro das atenções e atraem
diferentes estudos, que têm estruturado e consolidado distintos campos de conhecimento”,
como nos aponta Bruno (2009, p. 21).
Segundo Postman,2 1989 citado por Bruno (2009, p. 11) “os avanços não cessam de
surgir, mas ao mesmo tempo, as instituições museológicas não abandonam o compromisso de

2
Postman, N. (1989). Museus e Geradores de cultura: palestra. In: Conference Générale et Assemblée Générale
du Conseil International des Musées. [Tradução de texto impresso]. Haia: ICOM.

339
procurar responder à antiga questão: o que é a condição humana”. Essa é a principal razão da
“busca incessante de respostas a essa pergunta tem levado os profissionais de museus a
estabelecerem novos paradigmas em suas ações e reflexões. Nesse contexto e muito
influenciado pelo já clássico MINOM - Movimento pela Nova Museologia”, é que surge a
Sociomuseologia como:

uma ação museológica mais centrada nas expectativas das sociedades em


relação aos acervos e menos nos compromissos vinculados apenas à
divulgação dos resultados dos estudos das coleções e a respectiva
preservação destes bens patrimoniais. Estes novos desafios que importam à
Museologia nos colocam, entre muitas outras questões, que chegou o
momento das instituições museológicas abrirem mão da exclusividade sobre
a decisão em relação ao destino das coisas (BRUNO, 2009, p. 21).

Nesse sentido, Maria Célia Santos e outros profissionais engajados no diferencial do


Movimento da Nova Museologia, consideram o “movimento” significativo para a museologia
contemporânea (2002, p. 94), “por seu caráter contestador, criativo, transformador, enfim, por
ser um vetor no sentido de tornar possível a execução de processos museais mais ajustados às
necessidades dos cidadãos, em diferentes contextos, por meio da participação, visando ao
desenvolvimento social”.
Mas, foram os anos de 1960 que marcaram segundo Pereira (1983, p. 7-8), “um novo
estilo de mobilização e contestação social, bastante diferente da prática política da esquerda
tradicional, que firmava-se cada vez com maior força, pegando a crítica e o próprio sistema de
surpresa e transformando a juventude”. Para esse novo foco de contestação radical, “falava-se
no surgimento de uma nova consciência, de uma nova era, enfim, de novos tempos”. Esse
movimento à luz da contracultura foi marcado conforme escreve Santos (2002, p. 95) pelo
“inconformismo com os esquemas comerciais e com as imposições dos meios de
comunicação de massa” mas que, também, tinha “a intenção de provocar a desacomodação ou
a desalienação”. Como consequência dessas contestações institucionais, tanto na França como
em outros países, valores foram abalados de tal forma que foi preciso um novo olhar para a

340
sociedade. Com isso, assevera Santos (2002, p. 96), “o conceito de patrimônio é revisto e
ampliado”.
Essa ampliação da noção de patrimônio segundo Rivard3 (1984 p. 3) citado por
Santos (2002, p. 96) “terá como consequência direta uma revisão dos poderes que assumem a
gestão e a valorização dos monumentos, sítios, museus e de todo lugar considerado
patrimônio público”. Como desdobramento do movimento de contracultura, a década de 1970
é marcada “pelos golpes e pelas revoluções, resultado dos investimentos dos países
imperialistas, que procuram reagir à onda de contestação e às lutas revolucionárias da década
de 60”, tendo como consequência “a implantação das ditaduras militares na América Latina, a
ampliação da intervenção na Indochina, o reforço aos governos colonialistas e de apartheid na
África e a sustentação da política israelense no Oriente Médio” (Santos, 2002, p. 96-97).
Assim, para atingir uma consciência social crítica é utilizado a proposta de educação
popular de Paulo Freire, através da investigação participativa, como forma de oferecer uma
nova explicação da realidade (Santos, 2002). Nesse sentido, o papel social dos museus e o seu
papel pedagógico na sua relação com o público foram discutidos no seminário regional da
UNESCO realizado no Rio de Janeiro em 1958, que teve como objetivo a discussão da função
educativa nos museus, que segundo Judite Primo (1999, p. 10) teve como ponto de partida
discutir “a importância da formação [de] profissionais para a área da museologia”. Assim em
1971, é realizada em Paris e Grenoble, a IX Conferência Geral do ICOM, com o propósito de
discutir o tema: “O Museu a Serviço do Homem, Atualidade e Futuro - o Papel Educativo e
Cultural”. Nesse evento,

é reconhecido um novo modelo de museu, denominado “neighbourhood


museum” que tem como objetivo a construção e análise da história das
comunidades, contribuindo para a identificação da sua identidade,
colaborando para que os cidadãos se orgulhem da sua identidade cultural,

3
Rivard, R. (1984). Que Le Musée S” Ouvre – ou une nouvelle muséologie: les écomusées et les musées
ouverts. .(mimeo. p.2). Québec.

341
utilizando as técnicas museológicas para solucionar problemas sociais e
urbanos. (SANTOS, 2002, p. 99)

Em 1972 é realizada em Estocolmo, a Conferência sobre Meio Ambiente Humano


em que Berrueta4 (1996, p. 3 citado por Santos, 2002, p. 101) traz o conceito de eco-
desenvolvimento importante “para o atual conceito de desenvolvimento sustentável,
apresentando-se, também, como uma alternativa para a ordem econômica internacional,
priorizando modelos locais, baseados em tecnologias apropriadas, com destaque para as zonas
rurais, procurando romper com as dependências técnica e cultural”.
Também em 1972, em Santiago do Chile, o conceito de museu passa a ser entendido
como mostrado por Soto (2014, p. 67) e passa, com o isso a englobar a ideia de que este é
também um “instrumento de mudança social” de modo que suas “ações devem ser
direcionadas para proporcionar à comunidade uma visão em que se estabeleça o quadro
histórico e a reflexão sobre os problemas atuais”.
É, portanto, como vimos, no contexto dos anos de 1960 e 1970 que se alargam os
termos no campo da Museologia, transcendendo ao conceito clássico das noções de edifício,
coleção e público, que passam a utilizar novas categorias tais como território, o patrimônio e
comunidade. No entanto, Santos (2002, p. 103) nos mostra que “nem sempre as diretrizes e
metas registradas nos documentos oficiais se transformam em ações concretas”.
Contudo, em 1984, aparecem dois documentos provenientes de dois encontros. O
primeiro ligado a um encontro realizado no Quebec, Canadá, que traz novas perspectivas ao
fazer museológico como mostra Soto (2014, 73-74), o qual, implicou no “reconhecimento do
movimento da Nova Museologia” que “viria a ser formalizado já no ano seguinte (1985), em
Lisboa, durante o II Encontro Internacional – Nova Museologia / Museus Locais, sob a
denominação de Movimento Internacional para uma Nova Museologia (MINOM)”. O outro

4
Berrueta, J. T. (1996). Desarrolo Sostenible, Herencia Cultural y Educación de Adultos en América Latina y el
Caribe. (Trabalho apresentado no 7 S Tailler internacional sobre Nueva Museologia) Pátacuaro, Mich. (p.3.
Mimeografado). México.

342
documento de 1984 é a Declaração de Oaxtepec, no México, que “integra então a relação de
território, patrimônio e comunidade, marcando definitivamente a importância da comunidade,
para estabelecer a parceria efetiva entre museu e sociedade” (2014, p 74). Em síntese, tem-se
que a história da Nova Museologia (MINOM) segundo Soto (2014, p. 68)

se inicia efetivamente no pós-guerra, quando se consolida a ONU


(Organização das Nações Unidas), uma estrutura que vai dar origem, como
já dito acima, ao mais importante organismo a cerca das questões culturais
no mundo: a UNESCO. Tendo em vista o âmbito dos museus e do
patrimônio, esta criou o ICOM, que foi organizado em comitês. O ICOM,
primeiro sob a orientação de Georges-Henri Rivière e, mais tarde, tendo
Hugues de Varine como diretor, decidiu reunir os profissionais de museus
em encontros e conferências mundo a fora, com vistas à facilitar a reflexão e
tomada de decisões em temas fundamentais para a Museologia mundial.
Com o apoio da UNESCO, a partir da década de 60, esses fóruns vão
propiciar as discussões que posteriormente serão a base para o
desenvolvimento da chamada Nova Museologia.

Já, em maio de 1992 na cidade do Rio de Janeiro, foi realizado o I Encontro


Internacional de Ecomuseus (Eco-92), que embora não tenha produzido nenhuma carta ou
declaração, ainda que tenha produzido um livro com registros do Encontro, contou com a
presença de profissionais do Canadá, da França, de Portugal e do Brasil. Desse encontro
resultou um intercâmbio do Brasil com Portugal focado no campo dos museus e da
museologia, tendo como desdobramento a participação de professores brasileiros, a partir de
1994 com a formação de profissionais em Portugal, no campo da pós-graduação
(especialização, mestrado e doutorado).
Os museólogos Chagas & Gouveia (2014, p. 15) afirmam que “a denominada nova
museologia, desde a sua origem abrigava diferentes denominações: museologia popular,
museologia ativa, ecomuseologia, museologia comunitária, museologia crítica, museologia
dialógica e outras”. E ainda, que “a perda de potência da expressão nova museologia
contribuiu para o fortalecimento e a ascensão, especialmente após os anos de 1990, da

343
denominada museologia social ou sócio-museologia”. Nesse sentido, os referidos museólogos
sustentam (2014, p. 17)

quando falamos em museu social e museologia social, estamos nos referindo


a compromissos éticos, especialmente no que dizem respeito às suas
dimensões científicas, políticas e poéticas; estamos afirmando, radicalmente,
a diferença entre uma museologia de ancoragem conservadora, burguesa,
neoliberal, capitalista e uma museologia de perspectiva libertária; estamos
reconhecendo que durante muito tempo, pelo menos desde a primeira metade
do século XIX até a primeira metade do século XX, predominou no mundo
ocidental uma prática de memória, patrimônio e museu inteiramente
comprometida com a defesa dos valores das aristocracias, das oligarquias,
das classes e religiões dominantes e dominadoras. A museologia social, na
perspectiva aqui apresentada, está comprometida com a redução das
injustiças e desigualdades sociais; com o combate aos preconceitos; com a
melhoria da qualidade de vida coletiva; com o fortalecimento da dignidade e
da coesão social; com a utilização do poder da memória, do patrimônio e do
museu a favor das comunidades populares, dos povos indígenas e
quilombolas, dos movimentos sociais, incluindo aí, o movimento LGBT, o
MST e outros.

Desta feita, para uma maior compreensão dos avanços das questões sociais
contemporâneas na museologia, utilizo as reflexões da professora Maria Célia Santos (2014)
em seu artigo “Um compromisso social com a museologia”, quando ressalta as contribuições
no campo científico-filosófico para a busca do novo fazer científico que “reconhece a ideia de
“multiverso cultural” com a contribuição da antropologia e do materialismo histórico’, como
registrado por Pessanha5 (1987, p. 64 citado por Santos, 2014) .
Em 2007, foi realizado o I Encontro Ibero-americano de Museus, na Cidade do
Salvador - Bahia, após 35 anos da Mesa Redonda de Santiago do Chile, com seus “aportes
teóricos e práticos das denominadas museologia popular, museologia social, ecomuseologia,
nova museologia e museologia crítica” que ressalta “a compreensão de que a museologia e os
museus ibero-americanos estão em movimento e de que a renovação do campo museal tem
propiciado uma maior aproximação dos movimentos sociais (Ibermuseus, 2007, p. 7). Neste
5
Pessanha, J. A. (1987). Cultura como ruptura. In: Bornheim, G. Et ali. Cultura brasileira: tradição contradição.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, Funarte.

344
encontro foi firmado um compromisso: “Recomendações da cidade de Salvador”: 1. A
destinação de recursos suficientes para seu adequado funcionamento, desenvolvimento e
cumprimento da missão dos museus; 2. Que fosse implementado políticas públicas de
museus, que contemplassem a comunicação, a educação, a preservação e a investigação
científica do patrimônio cultural e natural; e ainda, 3. Que os governos nacionais dos países da
Ibero-américa estabeleçam políticas de promoção para o turismo cultural e sua relação com os
museus, a partir de uma perspectiva de respeito e conservação ao patrimônio cultural e
natural. (Ibermuseus, 2007, p. 17)
A “Recomendação sobre a proteção e a promoção dos museus e coleções, de sua
diversidade e de sua função na sociedade”, foi uma iniciativa conjunta do IBRAM com apoio
decisivo do Programa Ibermuseus, que constou na pautado V Encontro Iberoamericano de
Museus, realizado em junho de 2011, na Cidade do México, e também na XIV Conferência
Iberoamericana de Cultura, realizada em Assunção, no Paraguai, em agosto de 2011. Desses
encontros foi sugerido que fosse incentivado a UNESCO a “criação de um instrumento
normativo de proteção ao patrimônio museológico”, sendo analisado por dois anos
subsequentes, no Conselho Executivo da UNESCO, obtendo aprovação em novembro de
2015. Essa Recomendação referenda a atuação dos museus “em todos os continentes, que se
reconhecem como atores do desenvolvimento, da inclusão social, da igualdade de gênero, do
respeito pelas diversidades, assumindo plenamente princípios e valores já inscritos na
Declaração de Santiago do Chile. Nesse sentido, afirma Moutinho no Editorial da Revista
Sociomuseologia “neste importante documento é bem explicito que a função social dos
Museus é, ou deverá ser, a razão profunda da sua existência (2017).
Assim, os diversos documentos produzidos, configuraram o que Chagas (2009, p. 49)
diz ser um “novo conjunto de forças capazes de dilatar ao mesmo tempo o bastião museal e a
cidadela patrimonial”, com a proliferação de uma infinidade de fazeres museológicos.

III – Dos Desdobramentos da Museologia Social

345
O que pode ser observado a partir dos dois pontos anteriores é que até os anos de 1970
o pensamento dominante na conduta do patrimônio, museus, identidade, memória e educação
patrimonial esteve sempre empenhado na ideia de perpetuar valores dominantes e
pertencentes as elites tanto no que diz respeito ao conhecimento, ao racismo e ao sexismo e
que tinham como bandeira a construção de uma identidade de estado-nação, a qual, buscava
silenciar a grande maioria dos excluídos, como dantes o fizera no Brasil, a construção do mito
da democracia racial.
Na esteira dessa inversão proposta pela nova museologia, é ilustrativo nessa
perspectiva que busca repensar as práticas, as políticas e os estudos museais desde uma
perspectiva pós-colonial, o relato de Abreu (2005, p. 113-114), onde, lê-se que:

os índios "descobriram o museu" e o momento desta descoberta pode ser


marcado pela criação, em 1991, do Museu Magüta pelos índios ticunas, em
Benjamim Constant, cidade de aproximadamente 12 mil habitantes
localizada na confluência dos rios Javari e Solimões, na região do alto
Solimões, Amazonas, próximo da fronteira do Brasil com o Peru e a
Colômbia. [E, onde:] O pequeno Museu, instalado numa casa de arquitetura
simples, com varandas ao redor, cinco salas de exposição e uma pequena
biblioteca, foi criado no bojo da luta pela demarcação de terras.

Esse movimento levou a que:

Algumas lideranças ticunas perceberam [percebessem] que o direito deles à


terra dependia, em grande parte, de serem reconhecidos como índios pela
sociedade brasileira. Muitas vezes, eles eram identificados como caboclos
pela população local. Do ponto de vista das lideranças indígenas, era preciso
fortalecer a identidade ticuna, muitas vezes escondida pelos próprios índios e
negada sempre pela população regional.

Onde:

A ideia de criação do Museu surgiu como instrumento de luta, num


momento crítico de mobilização política, quando os ticunas estavam
mobilizados na luta pela defesa de seu território, confrontando-se até mesmo
com grupos armados.

346
De modo que, “a ideia de criação de um museu surgia como uma estratégia de
organização da memória e revigoração da identidade étnica”. Neste sentido, refletindo sobre
isso, Abreu (2005, p. 116-118) pontua que: 1) Os ticuna “talvez pela primeira vez na história
do Brasil realizavam uma experiência museológica na primeira pessoa”; 2) o Museu objetivou
“preservar a arte e a língua ticuna, assim como o mito e a história”; 3) percebe-se nitidamente
que ocorreu uma “necessidades de construção e de afirmação de uma identidade étnica”; 4)
recuperação da “cultura que foi sendo modificada e principalmente, espoliada por
madeireiros, latifundiários, políticos” uma vez que, o Museu se inscrevia numa ação de
resistência ou até mesmo de reexistência”; 5) “o Museu ticuna voltava-se para o presente e
não para as lembranças do passado”; e, ainda, que diferentemente dos museus etnográficos,
tinha-se que 6) “a proposta do Museu Magüta emergia como proposta ativa de vida e
construção de autoestima para um grupo indígena que acreditava poder construir um futuro
enquanto grupo com identidade própria e peculiar”.
E, sendo assim, é fato que, nos últimos anos, assistimos ao surgimento de novos
museus que se coadunam a essa nova perspectiva sobre a qual se pauta a museologia social. O
que é perceptível nessas iniciativas, é uma ênfase de afirmação da identidade, da memória, do
patrimônio e da territorialidade dos grupos envolvidos no processo que, institucionalizados ou
não em movimentos sociais de lutas por direitos e políticas, constroem, reconstroem e
institucionalizam suas memórias, reafirmando sua própria história e identidade.
É, portanto, com base nos preceitos da museologia social que a partir do começo desde
século, diversos museus comunitários e ecomuseus, tais como o Museu Indígena Kanindé
(CE), Museu Vivo de São Bento (RJ), Museu Comunitário da Cultura Popular Tambores e
Maracás (MA), Ecomuseu Nega Vilma (RJ), entre outros foram criados. E, políticas
específicas ligadas a nova museologia foram institucionalizadas com a criação do Programa
Pontos de Memória conduzidos pelo Instituto Brasileiro de Museus (Ibram/MinC).

347
Considerações finais

No presente texto buscou-se no contexto dos estudos pós-coloniais historicizar o modo


como no âmbito da museologia social esta perspectiva foi aos poucos sendo incorporada a
partir de uma série de conferências e encontros promovidos pela UNESCO e seus órgãos
correlatos tais como, o ICOM e o ICOMOS. Também colocou-se em evidência nesse texto, o
trajeto epistêmico de desconstrução de velhas perspectivas e a emergência de novas
abordagens que foram aos poucos ganhando espaço no campo dos estudos museais e que,
hodiernamente, culminaram naquilo que hoje denominamos de museologia social ou
sociomuseologia.
Sobretudo, do ponto de vista metodológico tem-se que, como vimos, a perspectiva
pós-colonial é o que poderíamos chamar de uma possível retomada do passado, no tempo
presente, tanto na perspectiva daqueles que estão fora da historiografia oficial, quanto
daqueles que não fazem parte das elites que costumeiramente estabelecem e ordenam a
maioria das coleções museais. Nessa perspectiva, sugere Varine (2012, p. 59) “uma
pedagogia que visa a fazer nascer no território a imagem complexa e viva de um patrimônio
comum, de múltiplos componentes e facetas, que se tornará o húmus do desenvolvimento
futuro”, ou seja, uma iniciativa essencial para o desenvolvimento comunitário.
Por conseguinte, a partir dos Pontos de Memória, uma outra história e um outro modo
de se perceber a relação entre territorialidade, identidade, memória e patrimônio tem sido
construída e colocada em evidência, qual seja, de reconhecer a iniciativa e voz dos sujeitos
socialmente excluídos e que, desde muito têm sido deixados de fora da historiografia oficial
por parte da maioria das instituições museais clássicas.

348
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VARINE, Hugues de. As raízes do futuro: patrimônio a serviço do desenvolvimento local.
Trad. Maria de Lourdes Parreiras Horta. Porto Alegre: Medianiz, 2012.

351
A RUPTURA DAS CIÊNCIAS NA AMAZÔNIA: O MUSEU GOELDI DE
PORTAS ABERTAS NO DÍÁLOGO COM A COMUNIDADE

Endell Menezes de Oliveira*


Helena do Socorro Alves Quadro**

Resumo: Este texto tem por objetivo apresentar a experiência de uma prática museológica em um
museu de ciências naturais na Amazônia, o Museu Paraense Emílio Goeldi – MPEG, unidade de
pesquisa integrante da estrutura do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações –
MCTIC. Trata-se do Programa Museu Goeldi de Portas Abertas, uma atividade anual organizada no
âmbito do Serviço de Educação - SEEDU e envolvimento da Coordenação de Pesquisa e Pós-
Graduação – COPPG. Envolve os sujeitos da educação, pesquisa científica e comunidade. Seu
objetivo principal é incentivar os atores sociais ligados a Ciência e Tecnologia o diálogo com a
comunidade e a instigação desta, as atividades e práticas científicas. O Programa Museu Goeldi de
Portas Abertas é objeto de estudo de Tese de Doutorado em Educação no Programa de Pós-Graduação
– PPGED - Instituto de Ciências da Educação - ICED da Universidade Federal do Pará - UFPa, na
linha de Pesquisa Educação, Cultura e Sociedade e Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Teorias,
Epistemologias e Métodos da Educação - EPSTEM. Observou-se a busca de colocar a ciência no
campo da participação popular e sob o crivo do diálogo com os movimentos sociais.

Palavras-chave: Museu de Ciências Naturais; Museu Goeldi de Portas Abertas; Pesquisa Científica

Abstract
This text aims to present the experience of a museological practice in a museum of natural
sciences in the Amazon, the Museu Paraense Emílio Goeldi - MPEG, a research unit that is
part of the structure of the Ministry of Science, Technology, Innovation and Communications
- MCTIC. This is the Goeldi Museum Open Doors Program, an annual activity organized by
the Education Service - SEEDU and the Involvement of the Coordination of Research and
Graduate Studies - COPPG. It involves the subjects of education, scientific research and
community. Its main objective is to encourage the social actors connected to Science and
Technology the dialogue with the community and the instigation of this, the activities and
scientific practices. The Goeldi Museum of Open Doors Program is an object of study of the
Doctoral Thesis on Education in the Postgraduate Program - PPGED - Institute of Educational
Sciences - ICED of the Federal University of Pará - UFPa, in the line of Education, Culture
and Society Research and Group of Studies and Research on Theories, Epistemologies and
Methods of Education - EPSTEM. It was observed the search of placing science in the field of
popular participation and under the sieve of dialogue with social movements.

Key-words: Museum of Natural Sciences; Goeldi Museum of Open Doors; Scientific


Research
Introdução

352
Introdução
Este artigo tem como objetivo dar visibilidade a uma ação da responsabilidade do
Serviço de Educação - SEEDU do Museu Paraense Emílio Goeldi - MPEG, denominado de
Museu Goeldi de Portas Abertas. É um Programa que faz parte do calendário da Semana
Nacional de Ciência e Tecnologia, desde outubro de 2004, mas que surgiu na década de 80,
como a interação do Museu Goeldi e a sociedade, uma vez que na mesma década foi
construído o Campus de Pesquisa da instituição em um bairro periférico da cidade de Belém,
denominado Terra Firme.
O Museu Paraense Emílio Goeldi é um museu vinculado ao Ministério da Ciência,
Tecnologia, Inovações e Comunicações – MCTIC. De acordo com o Art. 2º do Regimento
Interno do Museu Paraense Emílio Goeldi: O MPEG é Instituição Científica e Tecnológica -
ICT, nos termos da Lei nº 10.973, de 2 de dezembro de 2004, regulamentada pelo Decreto nº
5.563, de 11 de outubro de 2005 (2016). Tem como finalidade gerar e comunicar
conhecimentos sobre os sistemas naturais e processos socioculturais relacionados à Amazônia,
por meio das Coordenações de Ciências da Terra e Ecologia – COCTE; Coordenação de
Botânica – COBOT; Coordenação de Zoologia - COZOOVI e Coordenação de Ciências
Humanas - COCHS (Antropologia, Arqueologia e Linguística Indígena).
Durante sua trajetória, vem divulgando conhecimentos pelo setor de comunicação e
popularizando com o Serviço de Educação - SEEDU, tendo modelos os projetos: O Jardim
Botânico vai à escola6 e O Museu Goeldi leva Educação em Ciência à Comunidade. Assim por
meio do Serviço de Educação; Coordenação de Pesquisa e Pós-Graduação - COPPG e
Coordenação de Comunicação e Extensão – COCEX, acontece o Museu Goeldi de Portas
Abertas, que ocorre a mais de 30 anos, de forma anual e que segue em consonância com tema
eixo da Semana Nacional de Ciência e Tecnologia do Governo Federal, e coordenado pelo seu
Departamento de Popularização e Difusão de Ciência e Tecnologia da Secretaria de Ciência e

6
Este projeto foi elaborado pela Comissão de Educação Ambiental- CEA da Rede Brasileira de Jardins
Botânicos.

353
Tecnologia para a Inclusão Social (DEPDI). Criado por Decreto Presidencial em 2004 ocorre
desde então, sempre no mês de outubro, em centenas de municípios brasileiros, contando com a
participação ativa de governos estaduais e municipais, de instituições de ensino e pesquisa e de
entidades ligadas à Ciência e Tecnologia. O Portas Abertas concentra suas atividades na
popularização do estudo científico, tendo como público: escolas (públicas e privadas),
acadêmicos e comunidades.
De acordo com Oliveira (2005, p. 12), os conhecimentos científicos são divulgados
em círculos limitados e estão remotos da vida diária das pessoas. Para Moreira (2006, p. 13), o
que carece para uma extensa parcela da população brasileira é o acesso à educação científica de
qualidade. Hilgartner (1990) aponta ainda outra dificuldade, a questão da autenticidade da
fonte: o conhecimento científico é divulgado em muitas fontes e em vários níveis de
complexidade. Santos (2007, p. 478), em concordância com as ideias do pesquisador anterior,
abaliza críticas sobre a forma fragmentada e descontextualizada da educação científica nos
diversos níveis de educação. Mueller (2002) preconiza que as pessoas comuns, em geral, não
têm experiência própria em pesquisa nem educação adequada em ciência, e dependem
absolutamente de intermediários tanto para tomar conhecimento de novos fatos científicos
quanto para avaliar possíveis implicações desses fatos em sua vida.
O Portas Abertas possui diversos atores envolvidos no processo de Popularização da
Ciência - PC, aumentando as possibilidades de diálogo, além do encontro de gerações
abrangidas. O processo de popularizar a ciência abre e amplia o espaço para questionamentos e,
portanto, para debates, sobre os atores, as instituições e as formas de autoridade envolvidas na
produção de conhecimento (MOTTA-ROTH, 2010, p. 156).
De acordo com Motta-Roth (apud GERHARDT, 2011 7), o processo de PC tem assim
três eixos centrais que o justificam: a) O dever dos meios de comunicação (mais e menos
acadêmicos) de informar a sociedade sobre o avanço do conhecimento; b) A responsabilidade do

7
Tese de Doutorado sob orientação de Motta-Roth: Didatização do discurso da ciência na mídia eletrônica.

354
mediador (seja jornalista ou autor de livros)8 em explicar princípios e conceitos para que a
sociedade avance na transformação conjunta do conhecimento; c) E a necessidade da sociedade
entender a relevância da pesquisa para que continue financiando a empreitada científica.
Gerhardt (apud GERMANO; KULESCA, 2007, p. 20) considera que o acesso ao
conhecimento científico deve ser uma ação cultural que, referenciada na dimensão reflexiva da
comunicação e no diálogo entre diferentes, pauta suas ações respeitando a vida cotidiana e no
universo simbólico do outro.

Afinal, o que é o Museu Goeldi de Portas Abertas?

Muitos pensam que Portas Abertas é o público não pagar o ingresso no Parque
Zoobotânico do Museu Paraense Emílio Goeldi, mas é importante explicar que esse tema é
imprescindível para o objetivo desta prática museológica, que acontece no Goeldi desde o ano
de 1985, como uma aproximação com a comunidade do entorno e os pesquisadores das áreas
científicas do Goeldi. Este entorno, trata-se dos moradores do bairro da Terra Firme, em Belém
do Pará. É um alerta para que o Museu Goeldi não feche as suas portas para a sociedade.
Tem como principal objetivo disseminar a informação científica que é produzida pelo
Museu Goeldi para diferentes públicos que visitam e participam das atividades na instituição.
As informações científicas são dinamizadas a partir de uma ação integrada que envolve vários
profissionais do MPEG que por intermédio de palestras, exposições temáticas, kits entre
outros recursos procuram popularizar a ciência como bem cultural da humanidade. O Projeto
faz parte da Coordenação de Museologia, que é uma das principais bases da comunicação
científica do MPEG e responsável pelas ações de educação patrimonial na instituição.
É uma oportunidade única de envolvimento entre pesquisadores, técnicos,
terceirizados, bolsistas, estagiários e voluntários com a comunidade, desde alunos do ensino
médio até centros comunitários e outros públicos.

8
No Museu Goeldi de Portas Abertas se faz por intermédio de: pesquisadores, pós-graduandos, tecnologistas,
bolsistas CNPQ e funcionários do MPEG em geral.

355
A dinâmica do Programa Museu Goeldi de Portas Abertas tem sua preparação no início
do ano quando é realizado um seminário para apresentar os resultados ocorridos no ano
anterior, contando com diversos participantes, que revelam as experiências, erros e acertos
durante o evento, e assim planejar de modo eficaz o próximo a ser realizado no ano vigente. O
planejamento ocorre desde a divulgação nas escolas até a mobilização com os pesquisadores,
tecnologistas e técnicos da instituição. Em seguida são organizadas as articulações de espaços
a serem visitados, que geralmente ocorrem em dois dos espaços físicos da Instituição, O Parque
Zoobotânico e o Campus de Pesquisa do Museu Goeldi.
Os pesquisadores deslocam-se do Campus de Pesquisa para o Parque Zoobotânico,
trazendo materiais que entendem serem mais práticos para o entendimento dos alunos e
frequentadores do evento, dentro de sua área de atuação.
No Campus de Pesquisa não se faz necessário o deslocamento de materiais, pois os
pesquisadores enunciam suas apresentações e diálogos com o público nos laboratórios
associados às coleções científicas.
As Coordenações de Pesquisa se organizam geralmente da seguinte maneira:
A Coordenação de Ciências Humanas - COCHS (Antropologia, Arqueologia e
Linguística Indígena), na área de Antropologia é divulgado o trabalho de campo dos
pesquisadores nas comunidades agro pesqueiras do litoral do Pará, por meio de fotografias;
Divulga a língua geral falada no Brasil; divulgar estudos antropológicos sobre a saúde de
populações indígenas; demonstrar os usos do fruto açaí e dos demais elementos da palmeira do
açaizeiro no cotidiano de comunidades ribeirinhas da região amazônica; promover diálogos entre
o setor de Etnografia do Museu Goeldi e Estudantes do ensino básico do Município de Belém
para discutir ideias sobre o patrimônio, memória, sociedade, museus e história; e divulgar o
trabalho que vem realizando entre os KA’APOR.
Na Arqueologia divulgam-se as pesquisas arqueológicas do MPEG; demonstrando as
várias maneiras em que cultura e identidade são materializados no meio físico, seja na forma de
objetos portáteis ou de estruturas (semi) permanentes. Na Linguística, divulgam os trabalhos que

356
realizam sobre as línguas indígenas; divulgam a prática de estudar uma língua indígena no
campo.
Na Coordenação de Ciências da Terra e Ecologia – COCTE, são divulgadas as
atividades realizadas pelos alunos PIBIC; apresentam o patrimônio paleontológico da Amazônia;
expõem os resultados de pesquisas do COCTE através de Painéis.
Na Coordenação de Zoologia - COZOOVI apresentação de Coleção Didática de
invertebrados e demonstração do processo de coleta e conservação de insetos, quais são as
principais espécies de invertebrados (principalmente insetos e aracnídeos) da Amazônia, quais
são as espécies “perigosas” e quais transmitem doenças. Mostram também as principais
diferenças entre as ordens de insetos e aracnídeos. Além disso, demonstram como os
espécimes são coletados, preparados e conservados na Coleção. Na COZOOVI informam aos
visitantes dados sobre a importância e utilidade das formigas; da pesquisa em Mastozoologia:
do campo à Coleção científica; o GEMAM - Grupo de Estudos de Mamíferos Aquáticos da
Amazônia mostram a preparação do material de mamíferos aquáticos, catalogação e depósito
na Coleção de Mamíferos. Buscando explorar desde da taxonomia de alguns vegetais
conhecidos na Amazônia até os sentidos humanos a etnobotânica traz ao público uma
aproximação dos saberes científicos possibilitando interligar Ciência e Cotidiano.
A Coordenação de Botânica - COBOT se organiza apresentando aos visitantes alguns
exemplos de plantas aromáticas, realizando uma dinâmica (“advinha que planta é essa?”), na
qual os participantes serão convidados a reconhecer as plantas por meio do olfato; Mostrar
aos visitantes como ocorre a destilação dos óleos essenciais, descrevendo e apresentando as
vidrarias e metodologias utilizadas.
Já a Coordenação de Comunicação e Extensão - COCEX é o setor diretamente
responsável pela popularização da Ciência dentro do Programa Museu Goeldi de Portas
Abertas, uma vez que compete coordenar as atividades de Comunicação Social, de
Museologia, de Informação e Documentação, de Editoração de livros, Ouvidoria e Serviço de
Informação ao Cidadão - SIC, além das desenvolvidas no Parque Zoobotânico.

357
E a COCEX por meio de suas coordenações participa no Portas Abertas da seguinte
maneira:
Na Biblioteca Domingos Soares Ferreira Penna a equipe organiza a Trilha dos livros
em uma Biblioteca, assim, permitir com que o visitante tenha compreensão de uma coleção e
uso de documentos bibliográficos com demonstração de uma trilha do livro dentro dessa
Biblioteca. Organizam também a Mostra da “Coleção Fotográfica MPEG”, Mostra de
Documentos do Arquivo “Guilherme de La Penha”, apresentando o acervo do Arquivo
“Guilherme de La Penha” para o público em geral, propiciando conhecimentos sobre a
História do Museu Goeldi e as práticas documentais arquivísticas realizadas no setor.
Há um envolvimento total de todas as áreas nesta ação museológica, abrindo
literalmente as portas da pesquisa científica do Museu Goeldi.

Arte do Museu Goeldi de Portas Abertas


Norberto Ferreira

358
Figura 1 - Réplica de Fóssil da Coleção Didática Emília Snethlage, Parque Zoobotânico,
Foto: Eryck Jhonathan, 2014

Figura 2 - Coleção de Ecologia Ciências da Terra, Foto: Eryck Jhonathan, 2014

359
Figura 3 - Coleção Didática Zoologia- Herpetologia, Foto: Eryck Jhonathan, 2014.

Figura 4 - Ciências Humanas Arqueologia, manipulação de como conserva artefatos arqueológicos, Foto: Eryck
Jhonathan, 2014.

360
Figura 5 - Zoologia- Herpetologia, exposição ao ar livre no Campus de Pesquisa, Foto: Eryck Jhonathan, 2014

6.3
6.4
6.5
6.6
6.7
6.8

Figura 6 - Botânica, corredor dos laboratórios, Foto: Eryck Jhonathan, 2014.

361
Figura 7 - Recepção aos alunos no auditório do campus de pesquisa, Foto: Eryck Jhonathan, 2014.

O Museu Goeldi de Portas Abertas é uma prática de um museu de Ciências Naturais.

Um Museu de Ciências Naturais? Um Museu de Ciência e Tecnologia? Um Jardim


Botânico? O Museu Paraense Emílio Goeldi é uma junção desses conceitos, e tem em seu
Regimento Interno bem definido Art. 5º Diário Oficial (2016, p. 01) ao Museu Paraense Emílio
Goeldi - MPEG compete:
- Elaborar e executar programas, projetos e atividades de pesquisa e desenvolvimento
técnico-científico, no âmbito de suas finalidades;
- Comunicar conhecimento científico e tecnológico;

362
- Formar recursos humanos no âmbito de suas finalidades;
- Desenvolver e disponibilizar serviços decorrentes de suas pesquisas, contratos,
convênios, acordos e ajustes, resguardados os direitos relativos à propriedade intelectual;
- Promover, patrocinar e realizar cursos, conferências, seminários e outros conclaves de
caráter técnico-científico;
- Formar, manter e custodiar acervos científicos e documentais; e
- Fornecer subsídios para a formulação de políticas públicas para o desenvolvimento de
projetos estratégicos para a Amazônia.
E ao Serviço de Educação – SEEDU aonde o Programa está formalizado, no Art. 29.
Compete planejar e executar programas educativos e de inclusão social, de acordo com as
especificidades dos diversos públicos do Museu Goeldi visando o desenvolvimento
sociocultural e o exercício da cidadania das populações amazônicas, bem como gerenciar as
atividades do Núcleo de Visitas Orientadas, de acordo com Diário Oficial (2016, p.03) cujas
atribuições são:
- Participar na concepção e execução das ações educativas e de divulgação do
conhecimento científico, de acordo com a política institucional;
- Promover cursos, oficinas, palestras e treinamentos para professores, estudantes de
nível superior, profissionais especializados, monitores e estagiários, terceira idade;
- Manter e dinamizar a Coleção Didática Emília Snethlagee a Biblioteca de Ciências
Clara Maria Galvão;
- Produzir e dinamizar material educativo nas diversas áreas do conhecimento da
instituição;
- Manter e dinamizar a Coleção Didática Emília Snethlagee a Biblioteca de Ciências
Clara Maria Galvão;
- Promover a iniciação científica de estudantes do ensino fundamental por meio do
Clube do Pesquisador Mirim;

363
- Realizar práticas educativas que estimulem a organização social de comunidades
amazônicas para a melhoria de suas condições de vida e reconhecimento de sua identidade e
seu patrimônio cultural;
- Promover a formação de recursos humanos para a pesquisa na Educação (em ciência,
museal, ambiental e patrimonial), por meio de bolsas de iniciação científica;
- Atender o público escolar por meio de programas educativos planejados pelo Núcleo
de Visitas Orientadas/NUVOP;
- Promover a prática de atividades terapêuticas e da qualidade de vida da terceira idade;
- Divulgar os processos educativos gerados no setor, por meio de publicações e eventos
técnicos científicos;
- Participar em fóruns, redes e projetos institucionais e interinstitucionais, visando o
fortalecimento de políticas públicas;
- Realizar práticas educativas de caráter lúdico e cultural voltadas para o público em
geral do PZB; e
- Exercer outras competências que lhe forem cometidas no seu campo de atuação.

O Museu Goeldi de Portas Abertas contempla todas as competências do Regimento e a


prática de um museu de Ciências Naturais.

Algumas falas de atores sociais participantes do Programa Museu Goeldi de Portas


Abertas

A seguir destacamos alguns depoimentos dos atores chaves do Museu Goeldi de


Portas Abertas, evidenciando a importância do evento, levando em conta seu caráter social e
participativo. Estes depoimentos foram colhidos no ano 2014 no Parque Zoobotânico durante
as exposições, participaram da coleta, funcionários do Museu que estavam na organização
e/ou exposição, turistas que frequentavam o parque no dia. Os entrevistados forma escolhidos

364
de forma aleatória, a entrevista foi áudio gravada e de forma posterior transcrita, os
participantes autorizaram a divulgação e publicação dos dados. Segue os depoimentos:

Uma vez que se tem esse patrimônio Amazônico e


ele pode ser divulgado no meio é esse evento, ele
facilita e abre “um mundo” para pessoas (de diversas
idades) que desconheciam o que é o trabalho de um
paleontólogo? O que são fosseis e sua importância?
Porque estuda-los? O que esse estudo tem de
relevante? O evento é de importância impar para que
ele não fique restrito aos nossos laboratórios e sala,
que eles extrapolem para o papel social que é a
divulgação. O contato com a escola é imprescindível
aqui eles tornam possível o contato com o aprendido
em sala. (Entrevista A com Pesquisadora, Ciências
da Terra, Micropaleontologia).

No discurso da pesquisadora nota-se que contato com o público revelou o


desconhecimento de grande parte deste pela ciência, em especial pela paleontologia.
Outro elemento foi à consciência diante o papel social que a instituição de pesquisa tem
com desenvolvimento social, não restrito as atividades e práticas cientificas propriamente
ditas.

O espaço por si só já é encantador, não poderia ser


mais bem escolhido. Estamos vendo muitas crianças,
nós ficamos muito entusiasmados de ver as escolas
interagindo com o museu, acho isso muito
importante, estamos encantados (Entrevista B com
turistas alemães).

Coisa guardada não pode ser reconhecida, quando o


museu promove essa interação do acervo com as
pessoas, faz com que ela reconheça o objeto que é
delas. Esse tipo de evento deve ocorrer o ano inteiro
(Entrevista C com turista de Minas Gerais).

A entrevista com turista de fora da região mostra o caráter multifacetado e


heterogêneo de público que o evento comporta. A entrevista C manifesta o sentido de

365
pertencimento dos objetos expostos, no sentido de a ciência pertence a todos e não a um
grupo minoritário de seu entendimento.
O Museu Goeldi de Portas Abertas trabalha a
criatividade, que está associada com diferentes
práticas que são exemplificadas, ilustradas e
demonstradas, no momento que se concebe uma
exposição ao ar livre. O museu tem o diferencial de
passar o conhecimento para a comunidade, mas não
somente passar, fazer uma troca. Em um evento
como este lidamos com diferentes níveis de
compreensão, escolaridade e etnias indígenas que
também estão aqui repassando conhecimento. O
Museu Goeldi de Portas Abertas não é uma formula
de exposição é um exercício de criatividade e
cidadania, eu vejo tanto o interesse do pesquisador
pelo público, mas também o protagonismo dos
mediadores infanto-juvenis, incentivando a vocação
científica, moral e ética. (Entrevista D com membro
da comissão organizadora, Serviço de Educação).

A fala da entrevista D retrata o protagonismo infanto-juvenil na mediação dos


saberes científicos, mostrando a figura do jovem diante da ciência e suas atividades e
práticas. Ressalta que o conhecimento não acontece em forma de deposito, mas sim em
trocas de experiências e de vivências.

Considerações

As ações de popularização da ciência não devem cair no reducionismo de


comunicar algo, ou transferir conhecimento, se faz necessário o diálogo, e a participação
efetiva da comunidade nesse processo. Trazendo umas definições da educação ambiental,
a popularização da ciência, tecnologia e suas inovações necessita ser emancipatória,
crítica e transformadora, a práticas devem de PC precisam romper barreiras ideológicas e
criar pontes. A PC busca colocar a ciência no campo da participação popular e sob o crivo
do diálogo com os movimentos sociais

366
A “conscientização” envolve o coletivo, movimentando, ampliando o
conhecimento e suas relações de mundo, conhecendo-o para transforma-lo e ao
transforma-lo, conhece-lo (Loureiro, 2014). O Museu Goeldi de Portas Abertas mostra-se
eficiente, de fácil articulação e execução, envolvendo diversos atores chaves para o
sucesso da PC na Amazônia. O feedback das atividades traz a tona o impacto do evento
nos jovens e pessoas envolvidas. A “abertura de portas” dos centros e museus de ciências
é mais que a divulgação de suas atividades mais um compromisso com o
desenvolvimento social com e para/com a comunidade. Tendo assim uma ruptura de
pensamento, dentro do próprio significado da palavra, da ideia de interrupção de
continuidade, divisão e corte, do colonialismo ainda muito presente nas práticas e
extensões museais.
E, na Amazônia Brasileira, mais especificamente na Região Norte existem outros
museus atuantes com a educação museal, entretanto o foco de nossa investigação será aonde
está instalado um dos primeiros museus brasileiros, na categoria de museu de ciências, as
vésperas de completar seus 151 anos: o Museu Paraense Emílio Goeldi, em que é primordial
um estudo mais aprofundado de seu setor educativo, para que seja apresentado
epistemologicamente suas ações primordiais de interação com a sociedade. E está bem
justificado o estudo no parágrafo VII do Diário Oficial (2016, p.03) da importância da
pesquisa na área de educação para a instituição.
Daí o Programa Museu Goeldi de Portas Abertas ser o objeto de estudo de Tese de
Doutorado em Educação no Programa de Pós-Graduação – PPGED - Instituto de Ciências da
Educação - ICED da Universidade Federal do Pará - UFPa, na linha de Pesquisa Educação,
Cultura e Sociedade e Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Teorias, Epistemologias e Métodos
da Educação – EPSTEM com o título provisório A Interação do Museu Paraense Emílio
Goeldi e a Sociedade: uma perspectiva da educação sociocultural na Amazônia.

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369
CARTOGRAFIA CULTURAL: VOZES E APARÊNCIAS

Vanessa Malheiros Morais*

Resumo: A pesquisa exploratória iniciou em 2013, no bairro da Terra Firme, na capital da


Amazônia paraense, com à inquietação pela falta de informações sobre o patrimônio cultural
de bairros carentes da cidade de Belém-PA. Concluímos que o processo metodológico
possibilitado pela cartografia cultural em interface com os conhecimentos museológicos,
revelaram um problema de acesso e socialização da informação cultural. Num sentido teórico-
metodológico foram engendrados os conceitos de “museu integral” e “cartografia temática”
em interface com o processo metodológico da ‘nova’ cartografia cultural, com as teorias
críticas da modernidade. Numa utopia que se refaz.
Palavras-chave: Cartografias, políticas públicas culturais, Patrimônio Cultural Comunitário,
Museologia, Amazônia Paraense.

Summary: The exploratory research started in 2013, in Belém, the capital city of Pará State
Brazil, with the realization of the lack of information about cultural heritage of poor
neighborhoods of the city. From the methodological and theorical perspective, the study built
upon theories, concepts and recommendations of the knowledge fields of cartography and
museology, in interface with the ´new´ cultural cartography. The concepts were discussed in
the context of alive cultural heritage, widening emerging concepts such as “Integral
Museum”, “Museum Phenomena” and “Cultural Cartography”, in a utopia cycle.
Key words: Cartography, cultural public policies, Community Cultural Heritage, Museology,
Amazon.

370
Introdução

Os trabalhos em projetos de implementação do desenvolvimento sustentável instigou a


provocação em colocar sob suspeita a “Cartografia”. Enxergo uma manipulação desta
ferramenta por parte das estruturas hegemônicas capitalistas e, por isso, uma permanência
sutil dessas instituições no território amazônico. Do outro lado, estão os movimentos culturais
em resistência continua, pelo reconhecimento de suas práticas e saberes, e na luta pela sua
sobrevivência. Com tal inspiração, a escolha foi criar uma intervenção museológica num
bairro populoso de Belém-PA desde 2013. Atualmente o projeto de pesquisa busca socializar
os conhecimentos adquiridos por meio de uma cybercatografia, com base nas teorias da
Museologia Social e da Cartografia Temática no território local9.

As fundamentações teóricas subsidiaram, com destaque para GUARNIERI (1981),


que debate a relação do indivíduo e seu bem cultural e a construção de um conhecimento
museológico baseado em um processo de interdependência, reciprocidade, conexão e
coerência; VARINE (2013) traz o conceito de patrimônio cultural e desenvolvimento local,
desmistificando as estratégias para o levantamento das informações do patrimônio cultural;
MARTINELLI (2009), que vislumbra o mapa temático como um meio de registro, pesquisa e
comunicação.

Este trabalho propõe um diálogo que leve a uma discussão crítica sobre o papel das
políticas, culturais e de desenvolvimento na Amazônia, com base numa informação cidadã.
Organizado em dois ensaios. No caso Pará – Amazônia, Brasil e As Experimentações e
Dualidades. O local e o global foi pensando à partir das geotecnologias até chegar na hodierna
cybercartografia, numa utopia em dar voz a complexidade do patrimônio cultural vivo de
comunidades carentes. Foram analisados autores da teoria crítica e moderna.

9
Site www.cartografiacultural.org

371
No caso do Pará, Amazônia, Brasil.
Nem tudo se faz sozinho. O saber escutar, e dar à voz, é um exercício que não se
adquiri nos livros, ou mesmo nas universidades. Aprendemos por meio de um processo de
convivência, vivencia, cooperação e dualidade nestes ‘território’ e nestes ‘lugares’.
A história social da Amazônia é bastante complexa e ainda possui muitos aspectos
culturais, sociais e econômicos, pouco explorados; várias de suas características foram
acessadas até o presente momento pelo meio acadêmico e pela elite, enquanto o público em
geral recebe ainda informações incompletas e não atualizadas. No caso do Pará, conjuntos de
documentos históricos apenas recentemente tornaram-se públicos, viabilizando novas, e mais
completas interpretações dos momentos e memórias passadas. Todavia essa problemática se
intensifica na transposição didática dos livros de escolas públicas, na rigidez de textos e
imagens ‘centralizados e codificados’, ou no acesso a documentos históricos, tornando-se
inacessíveis a boa parte da população paraense. “quando se avalia o lugar das temáticas da
História da Amazônia nesses manuais, as mudanças ainda são tímidas ou quase
imperceptíveis; O problema se aprofunda quando o assunto em tela é o Marajó” (Pacheco,
2012, p. 07).
Segundo Edna Castro (2008) “encontramos lacunas na formulação de balanços
teóricos mais abrangentes que busquem entender as regularidades, continuidades, estruturas e
as singularidades do fenômeno urbano na Amazônia.” (CASTRO, 2008, p., 13). Esta autora
desvela os efeitos da globalização e do mercado transnacional sobre os atores sociais e
territórios-rede na Amazônia, por meio de um discurso hegemônico integrador e cooperador,
que por sua vez transformam a região num local de exportação de produtos agrícolas,
florestais, minerais, de recursos hídricos e energia. “A função econômica de circulação e
gestão da produção da rede urbana da cidade, é a chave para o entendimento da formação da
rede urbana na Amazônia.”(CASTRO, 2008, p. 18).
Atualmente a cidade de Belém, núcleo urbano com altas taxas de crescimento
populacional, apresenta elevado índice de pobreza associado a baixa qualidade de
oferecimento de serviços públicos em diferentes áreas, como educação, saúde e cultura. Tal

372
situação não é exclusiva de Belém no Brasil. Este padrão de cidade, na verdade, é um reflexo
do que ocorre em muitas regiões, capitais, bairros, vilas, ilhas da sociedade ocidental.
Todavia é preciso considerar a falta permanente de diálogo que a Secretaria de Cultura
do Estado do Pará tem com os artistas e agentes culturais que à anos induz à vários embates
sociais. O mais recente foi a entrega da Carta de Protesto dos Artistas Paraenses,10 que
ocorreu durante o evento cultural Terruá Pará 2013, que exigia a demissão do atual
Secretário. Segundo Eliana Bogéa (2014):

“O atual Secretário reina absoluto na Pasta da Cultura desde 1995, reinado


interrompido apenas por um mandato do PT (2007 a 2010) à frente do
Governo do Estado. As portas fechadas, a Secult sequer se comunica com
seus pares do poder público estadual e, mais do que isso, com os demais
órgãos estaduais de cultura que – não por acaso – respondem à Super-
Secretaria Estadual de Promoção Social, caso da Fundação Cultural do Pará
Tancredo Neves (FCPTN), da própria Secult e outras Secretarias do atual
governo.”(BOGÉA, 2014, p.179).

Falar sobre o desenvolvimento sustentável na Amazônia é ao mesmo tempo


conflitante e alarmante. No contexto das políticas públicas culturais de desenvolvimento por
exemplo, muitas economias continuam escondidas dos censos e estatísticas anuais brasileiras,
em especial as informações do patrimônio cultural imaterial dos camponeses ribeirinhos da
Amazônia. “O território é um agente de transformação e não mero suporte dos recursos e
atividades econômicas, uma vez que há interação entre, as empresas e os demais atores que
organizam para desenvolver a economia e a sociedade (BARQUERO, 2001, p. 39).
Segundo Hugues de Varine (2013):
“O desenvolvimento local, mesmo considerado em sua dimensão
econômica, é antes de tudo um assunto de atores, e, sobretudo, de atores
locais: políticos e funcionários, trabalhadores, quadros e dirigentes de
empresas são membros de uma comunidade de vida e de cultura da qual

10
Secretaria de Estado de Comunicação

Disponível em: www.youtube.com/watchv=EpXWp2vYBNU. Acesso em 21 de agosto de 2014.

373
compartilham – o patrimônio humano, cultural, natural.” (VARRINE, 2013,
p. 18).

A floresta amazônica e sua população representa um papel importantíssimo no cenário


internacional, na defesa pelo reconhecimento do seu patrimônio, quanto na pluralidade e
diversidade de sua população. Ela representa um ‘sentido’ para nós. Embora muito criativas em
sua essência, as manifestações e expressões culturais e artísticas – tradicionais e contemporâneas,
carecem de reconhecimento dentro e fora da cidade, passando muitas vezes despercebidas –
invisíveis – até mesmo dentro do próprio território. As comunidades locais possuem identidade
própria, que as leva tomarem iniciativas visando assegurar o seu desenvolvimento.
(BARQUERO, 2001, p. 39).
No lócus do presente estudo, os movimentos culturais procuram se livrar da tendência
da massificação cultural ou importação de padrões alienígenas a realidades locais –
geralmente observada em iniciativas públicas - para se abrigar na identificação e
fortalecimento de movimentos verdadeiramente ‘nativos’. Esta situação é mais alarmante
quando constatamos que a socialização da informação é muitas vezes distorcidas: incerteza
das fontes, restrição de tecnologias, manutenção financeira dos dados computacionais,
manipulação das informações, produzindo por maneira de transformações sociais profundas
no Brasil.
Na Amazônia, porém, as transformações de natureza social e do patrimônio cultural
não se manifestam no ritmo esperado. Segundo os últimos dados do PNAD para 2009, na
região Norte, 34,3% de indivíduos informaram que, de alguma forma, o ciberespaço faz parte
de suas vidas. Esse dado representa um aumento de 171,2% em relação à última pesquisa,
realizada em 2005. Apesar disso, a mesma pesquisa ainda coloca a Região Norte como a
penúltima em acessos à internet no país.
Com base em dados do IBOPE/NETRATINGS apresentados no último “Relatório e
Parecer Prévio das Contas Anuais do Governo do Estado do Pará” (CUNHA, 2011) o tempo
de acesso gasto pelos brasileiros mensalmente subiu de 7:06 horas em 2000 para 29:56 horas
em 2009. Os domicílios com computador no Brasil atingem 68% (sessenta e oito por cento),

374
enquanto que na Região Norte este número atende à 81% (oitenta e um por cento) da
população, puxando a estatística de exclusão para cima. Quanto aos possuidores de
computadores, há dados interessantes: o computador portátil - que compreende notebooks,
palms e celulares (ainda não havia tablets no mercado nacional na época da pesquisa) -
corresponde à 23% (vinte e três por cento) na média nortista, contra 14% (quatorze por cento)
da média brasileira, o que irá indicar na produção de conteúdo de objetos de aprendizagem
uma abordagem voltada a produtos para celulares, como aplicativos, vídeos e podcasts.
A velocidade de conexão é outro elemento fundamental para o desenvolvimento de
produtos relacionados à internet. Segundo a definição da International Telecomunication
Union - ITU, braço da ONU para a Inclusão Digital e Cibercultura, banda larga é
caracterizada por transmissões com taxa de conexão igual ou superior a 256 Kbps, enquanto a
alta conexão é caracterizada pela taxa de transmissão igual ou superior a 2 Mbps1. No Estado
do Pará, a conexão inferior a taxa de banda larga ainda é inferior a 48% (quarenta e oito por
cento) do total de conexões à Rede, com exceção da capital Belém e algumas cidades
adjacentes à Região Metropolitana. O serviço de banda larga é praticamente indisponível na
Região Norte, e mesmo onde existe ele pode ser considerado de baixa qualidade11.
Uma categoria importante para este trabalho é a dinâmica do patrimônio cultural, pois
está em constante interação com a história e a natureza. “O patrimônio cultural é a ainda um
recurso para o desenvolvimento, na verdade o único recurso, juntamente com a população,
que se encontra em toda parte e que basta procurar para encontrá-lo. (VARRINE, 2013, p.
19).
São consideradas nesta pesquisa, as seguintes dinâmicas do patrimônio cultural: seus
modos de produção e criação de suas práticas cotidianas, conflitos e políticas, tempo e
mobilidade, gestão e participação à medida que nossas relações socais estabeleciam

11
ISSN 2358-0488 | ISBN 978-85-495-0020-5 | ROCHA, Cleomar (Org). Anais do IV
Simpósio Internacional de Inovação em Mídias Interativas. Goiânia: Media Lab / UFG, 2016.

375
estratégias para a sustentabilidade do projeto, e desdobram-se em oportunidades e desafios
que permeiam as relações de valores, atitudes e opiniões desses fazedores de cultura. Segundo
Pelegrine e Funari (2008),
A dinâmica cultural expressa movimentos que deram origem as discussões
sobre a necessidade de salvaguarda do patrimônio imaterial e à historicidade
que a envolvem explicitam o reconhecimento de que o patrimônio
materializa as mais diversas formas de cultura e que, portanto, se constitui
em mais uma esfera de embates sociais. (PELEGRINE E FUNARI, 2008,
p.46)

Os bairros carentes de Belém-PA concentram hoje uma rede de grupos culturais


constituído de linguagens artísticas, saberes e fazeres ditos tradicionais, cultura de rua,
técnicas artesanais, práticas sociais, rituais e atos festivos, conhecimentos tradicionais e
populares, lugares afetivos e simbólicos. Na área do patrimônio cultural, lócus da presente
pesquisa foram identificadas manifestações vivas da Cultura Popular e Cultura Afro religiosa.
A rede social dos grupos culturais vem tecendo nas ruas suas relações sociais e culturais,
representados por sua cultura material e imaterial, com características dinâmicas, e em
constante expansão.
No entanto revelam uma riqueza simbólica a ser comunicada. O mapeamento do
patrimônio cultural comunitário do bairro da Terra Firme é representado por uma rede de
atores, instituições, lugares, e equipamentos, manejam saberes e fazeres, ditos tradicionais e
contemporâneos, ofícios e técnicas artesanais, práticas sociais, rituais e atos festivos,
linguagens e expressões artísticas diversas, lugares simbólicos e operacionais, e de memorias
sociais políticas, com forte acúmulo de informações, articulações e reflexões sobre seus bens
culturais e patrimoniais. Segundo Varine (2013) “O patrimônio de natureza comunitária […]
emana de um grupo humano diverso e complexo, vivendo em um território e compartilhando
uma história, um presente, um futuro, modos de vida, crises e esperanças.” (VARINE, 2013,
p. 44).
Os resultados desse diagnóstico sociocultural proporcionado pela cartografia cultural
apresenta os seguintes problemas enfrentados pelos grupos culturais em prol de sua

376
sobrevivência: visibilidade, acessibilidade, auto-estima, fortalecimento institucional, espaço
físico, falta de informação, dificuldade de localização e identificação, falta da presença do
Estado em promover mecanismo estratégicos de gestão cultural e de comunicação, assim
como de espaços públicos apropriados à sua realidade.
As relações com o patrimônio cultural comunitário pesquisado desde o ano de 2013, se
deu entre as partes, de forma heterogênea, complexa, difusa e conflituosa, em diferentes
situações e contextos durante todo processo de construção da cartografia cultural. “O grande
impacto que a ciência do século XX fez foi a percepção de que os sistemas não podem ser
entendidos pela análise [...] O pensamento sistêmico é “contextual”, o que é o oposto do
pensamento analítico (CAPRA, 2003 p. 41).
Com relação as políticas públicas culturais à nível nacional. Gostaria de destacar a
iniciativa do extinto Ministério da Cultura (MinC), quando lança um dos seus marcos
regulatórios - O Plano Nacional de Cultura-PNC12 (2003), composto de 53 metas para a área
da cultura. E entre elas destaco a Meta 03 – Elaborada coletivamente entre sociedade e
gestores públicos da Secretaria da Diversidade Cultural, na utopia de se fazer a cartografia da
diversidade cultural brasileira até 2020. Hoje esse movimento do qual fiz parte se fragmentou,
por conta da atual crise (política, ética e financeira) do país. A extinção do “Ministério da
Cultura” foi um retrocesso ao desenvolvimento sustentável da diversidade cultural brasileira,
que por sua vez produzirá profundos impactos sociais e ambientais.
A Cartografia caminha lado a lado com o progresso da ciência e do conhecimento.
Muitas cartografias são elaboradas a partir de trabalhos de campo e de laboratório, pautados
em métodos diversificados - analógico, temático, social, mental, cultural e a hodierna
cybercartografia. Possuem ainda abordagens qualitativas, quantitativas, ordenadas ou
mentalizadas, como propõe a filosofia das diferenças de Deleuze13, em uma ontologia não
metafísica, de modo, que existem várias formas de se fazer Cartografia.

12
Lei N. 12.343, de 2 dezembro de 2010 (MinC, 2012).
13
Mil Mil platôs - capitalismo e esquizofrenia, vol. 1 / Gilles v.l Deleuze, Félix Guattari ; Tradução de Aurélio Guerra
Neto e Célia Pinto Costa. —Rio de janeiro : Ed. 34, 1995 94 p. (Coleção TRANS).

377
A Cartografia cuida da representação gráfica da Terra ou de parte dela, de forma
matemática, imagética ou pictórica, definindo-se como arte e ciência.
Para Martinelli (2009).
a finalidade mais marcante em toda a história dos mapas, [...] sempre
voltados à prática, principalmente a serviço da dominação, do poder. Sempre
registraram o que mais interessava, fato este que acabou estimulando o
incessante aperfeiçoamento deles. [...] os mapas confirmam-se como armas
do imperialismo, promovendo a política colonial. (MARTINELLI, 2009, p.
09).

A cartografia temática é a principal forma gráfica utilizada pelos geógrafos para


representar as relações que ocorrem no espaço físico. Todavia, são compreendidos como um
instrumento de pesquisa, divulgação e comunicação (representação gráfica). Os mapas
temáticos são uma das principais formas gráficas em representar as relações que ocorrem no
espaço físico, virtual e digital, são entendidos como um instrumento de pesquisa, divulgação e
difusão, com condições de manipular uma pluralidade de camadas de informações sobre um
espaço físico.
Para Martinelli (2009) a convergência tecnológica concentrando o poder da
informação na mãos de poucos, quase que exclusivamente junto às nações
pós-industriais do mundo desenvolvido, excluindo desses clã as ainda em
desenvolvimento (Idem).

O Etnomapeamento, Etnocartografia ou Cartografia Social, é a arte de produzir cartas


por uma população ou grupo social onde são destacados elementos culturais e históricos. É
elaborada através de uma metodologia participativa, difere da cartografia convencional por
destacar a importância dos saberes das populações tradicionais sobre a natureza e o espaço,
valorizando o conhecimento etnoecológico para o adequado manejo dos recursos naturais.
(ATAIDE, 2005, p. 178).
Chapin et al. (2005) relatam que os etnomapeamentos surgiram no Canadá e no Alasca
na década de 60 (século XX), com o objetivo de: mapear terras indígenas, buscar e garantir a
posse territorial, gerir os recursos naturais locais e fortalecer as culturas nativas.
Posteriormente, as ferramentas e técnicas de etnocartografia se disseminaram pelo mundo,

378
fundamentalmente na década de 90. Destacam-se, até o ano de 2005, no caso do Brasil, os
propósitos e as metodologias da etnocartografia, que, de acordo com Ataide (2011), não eram
legitimados pela Sociedade Brasileira de Cartografia, tendo reconhecimento apenas de
indigenistas, antropólogos e ambientalistas, com base em trabalhos realizados por ONG´s.
A etnocartografia ou etnomapeamento colaborativo é hoje fruto de uma metodologia
inrtercientifica, resultado da aplicação de métodos das ciências ocidentais, (em especial
Cartografia e Antropologia), associadas a métodos próprios dos sistemas de conhecimento
tradicionais, tendo a cosmivisao do grupo a que se aplica, a pesquisa de campo, a narrativa e o
simbolismo gráfico, como aspectos essenciais (ACT Brasil 2008, p. 179)
As cartografias cultural é aquela que incorporou as tecnologias de precisão – as
geotecnologias, muito importante para resolução das questões ambientais e fundiárias. A
cartografia cultural é um instrumento que perpassa pelo campo sistemático, exploratório e
comunicativo, o qual necessita incontestavelmente da visualização cartográfica para
estabelecer uma dimensão simbólica. Suas ferramentas de pesquisa, são atravessadas por
ações políticas, educativas, comunicacionais, sociais até a elaboração de um mapa cultural.
Numa perspectiva que articula diferentes maneiras de combinar estruturas e agentes,
múltiplos acúmulos de eventos e de visualizações cartográficas.
A cartografia cultural possui um visão interdisciplinar e atualmente surge como uma
possibilidade técnica para à criação de um método autônomo e colaborativo, que permitam
uma capacidade interpretativa de sua dinâmica para o futuro de forma mais ampla. – livre e
aberta.
“O grande impacto que a ciência do século XX fez foi a percepção de que os
sistemas não podem ser entendidos pela análise [...] O pensamento sistêmico
é “contextual”, o que é o oposto do pensamento analítico (CAPRA, 2003 p.
41).

A cartografia cultural, então é vista como ferramenta que perpassa pelo campo
sistemático, exploratório e por fim dinâmico da cultura local. São ferramentas de pesquisa,
atravessada por ações sociais, comunicacionais, educativas e tecnológicas até a elaboração de
um mapa, que surge como uma possibilidade técnica para à comunicação cartográfica, à

379
medida que o patrimônio cultural estabelecem estratégicas para sua sustentabilidade, e
desdobram-se em oportunidades e desafios que permeiam as relações de valores, atitudes e
opiniões daqueles fazedores de cultura.
Todavia ainda não existe um método para a cybercartografia cultural, o que por sua
vez dificulta a autonomia cartográfica das populações carentes, impactados socialmente,
quando necessitam alimentar, ampliar e difundir seu banco de dados levando-os
inevitavelmente buscar mão de obra especializada. Correndo o risco de congelar no tempo as
informações dos seus mapas culturais.
A cognição cartográfica é um processo bastante singular que envolve o cérebro para
reconhecer padrões e relações espaciais. A autonomia em manipular as informações espaciais
sobre seus espaços físicos e apreensão sob o ponto de vista estático ou dinâmico do território.
Sendo assim, os mapas culturais participativos são instrumentos estratégicos para ações e
intervenções nos territórios, assim como para sua gestão compartilhada de apreensão sob o
ponto de vista estático ou dinâmico do território.
Para o pesquisador Hugues de Varine o “museu integral” são agentes ativos do
desenvolvimento e aponta duas medidas imprescindíveis, que são:

Eliminar o uso de rótulos (metodologias pré-estabelecidas), pois cada


comunidade tem suas características e necessidades próprias e atuar efetiva e
simultaneamente no âmbito da ação, da capacitação e da investigação, onde
o museu deve ser um meio pelo qual sua comunidade possa reconhecer-se,
desempenhando assim sua função de centro de memória. (VARINE, 2013, p.
22)

Em se tratando de patrimônio cultural comunitário, este autor é considerado o


precursor dos chamados ECOMUSEUS, devido sua experiência com uma comunidade
francesa, da região industrial das cidades de Creusot e Montceau lesMines entre os anos 1971-
82.De acordo com seu depoimento, nasceu sob noções de ecologia humana, de comunidade
social, de entidade administrativa e, sobretudo, da definição do território e da vontade de
contribuir ao seu desenvolvimento. Para aquelas populações, o ecomuseu representava um

380
fator de construção comunitária, apresentando uma inovação: a relação entre patrimônio;
sociedade demonstrada pelo sentimento; pela ação. Para eles, os testemunhos do passado,
traços de identidade de um território, eram de responsabilidade coletiva servindo de
instrumento de educação popular para a invenção criadora do futuro. Daí, essa primeira fonte
deu origem a dois modelos.
1. Ecomuseu do Meio Ambiente: aperfeiçoamento dos museus ao ar livre
escandinavos e das casas do parque americanas.
2. Ecomuseu de Desenvolvimento Comunitário: seguindo a fonte originária francesa,
distingue-se, basicamente, por emanar da comunidade, que tem papel de protagonista nas
ações e animações. Os problemas atuais e futuros constituem a base de sua programação.
Possuem caráter urbano, pois, apoiam-se em associações comunitárias e todo o tipo de
organizações coletivas.
Segundo Barquero (2001), a teoria do desenvolvimento endógeno é antes de mais
nada, uma estratégia para a ação. Na perspectiva da nova sociologia econômica a
pesquisadora Elinor Ostrom (2016) inaugura uma abordagem institucionalista inovadora com
foco na gestão do que categoriza com common pool resources (CPR ou simplesmente
commons). Os commons combinam os atributos de serem bens de difícil exclusão e alta
rivalidade, conforme denominação da ciência econômica (OSTROM, 1994, p.6-7).
Destaco para a discussão à importância dessas teorias, pois possui diferentes maneiras
de combinar estruturas e agentes, múltiplos acúmulos de eventos e de visualizações que
permitem uma capacidade interpretativa do futuro de forma mais ampla. Todavia o autor
David Harvey (2014), aborda sobre a reflexão teórica dos bens comuns na cidade, os
processos e mecanismo que engendram sua criação, continuidade e (quiçá) destruição. E nos
alerta sobre uma hierarquização nas governanças dos comuns culturais e ambientais.

As Experimentações e Dualidades
As ciências e as humanidades passam por um período de crise e transformação,
imposto por paradigmas da ‘modernidade’. Impondo de alguma maneira nosso

381
posicionamento frente à ela. A dinâmica de novos pensares e fazeres surgem como uma
resposta as questões epistemológicas devido aos paradigmas modernos e a fragmentação dos
conhecimentos ocorridos após a revolução industrial, e podem nos servir para interpretar os
fenômenos das relações sociais do patrimônio cultural vivo, priorizando e valorizando
informações substanciais sobre a diversidade cultural, social, ambiental e econômica.
A Museologia é uma área de estudo que envolve questões de ordem práticas e teóricas.
Sua estruturação teórica teve início na década de 70 do século XX a partir do pensamento de
teóricos do Leste Europeu como Vinos Sofka e Jean Jelinek. Ela é compreendida como “a
relação específica do homem com a realidade” (Stránský, 1980) ou como a “relação mediada
entre o homem e o patrimônio” (Bellaigue, 2000). Segunda Tereza Scheiner (2012):
“desde 1980 a Museologia já conseguia seu espaço no universo acadêmico, e
no ano de 1990, se consolida como uma disciplina de caráter
transdisciplinar, dedicada ao estudo da relação especifica do homem e o
‘real’, tendo como objeto de estudo “o fenômeno museu”. (SCHEINER,
2012, p.8).

A Mesa Redonda de Santiago do Chile (Santiago do Chile, Peru, 1972) pontuou o


surgimento do conceito de Museu Integral, que devolve a condição de sujeito histórico à
comunidade para a pesquisa, a preservação e a difusão de seu patrimônio cultural, permitindo
assim, o vislumbre de um processo de autogestão e liberação social. No entanto, não
explicitou os métodos e as funções dos novos museus.
A Carta de Santiago se mantém viva, num continuo papel de ressignificação de suas
teorias e práticas. A Carta evoca uma ‘chama’ revolucionaria, mesmo dentro de sala de aula.
Com efeito, em 1984 foi realizado o Seminário “A Missão do Museu na América Latina hoje:
Novos Desafios” que propôs uma reflexão sobre a integração do museu e seu entorno social,
político, econômico e ambiental, além da integração do sentido de interdisciplinaridade e de
socialização. Em 2015 aprova-se a Recomendação da UNESCO (United Nations Educational,
Scientific Cultural Organization). De acordo com o Informal Museology Studies (2016)
“Trata-se duma Recomendação que atualiza o normativo internacional sobre o trabalho
museológico, sobre os conceitos, sobre as práticas e políticas para os museus e organizações

382
museológicas”. (IMS, 2016, p. 05). Este novo documento reafirma à função social do Museu,
preconizada anteriormente, assim como materializa, traduz e renova a função social dos
Museus possibilitando o exercício de uma Museologia socialmente engajada. Essa foi mais
uma conquista no campo museal.
A Declaração de Caracas (1984) amplia o conceito de museu incorporando o conceito
de patrimônio natural e cultural. Neste evento, o movimento da Nova Museologia, conhecido
como MINOM (1984), “parte do princípio de que, é necessária uma participação ativa da
comunidade no desenvolvimento e funcionamento dos museus”. (GUARNIERI, 1999). Tais
concepções surgiram a partir do ano de 1960 como uma resposta prática ao novo papel social
dos museus, tendo como principais expoentes DESVALLÉES (1980), VARRINE (1970) E
RIVIERE (1970). Neste aspecto foram sendo criados novas tipologias de instituições
museológicas como Ecomuseu, Museu de Território, Museu de Percurso, Museu de
Vizinhança, Museu Digital, entre outros.
Para o autor Hugues de Varine (1986), no artigo, Repensando o Conceito de Museu,
elaborado após sua palestra proferida no encontro ICOM/UNESCO sobre Museus e
Comunidades, em 1986, o autor apresentou as novas funções que o museu deveria
desempenhar para a sociedade, assim como propôs uma urgente revisão de suas práticas e de
seus métodos por parte dos profissionais que atuam direta ou indiretamente nesta área,
recolocando o Museu no contexto das mudanças sociais, econômicas, políticas e culturais da
sociedade, confrontando-o com os desafios do desenvolvimento e o seu papel no mundo
contemporâneo.
Para ele, essa instituição
“[...] deve tornar-se um agente ativo do desenvolvimento geral, e isto
porque [...] é um símbolo e um repositório da identidade cultural. [...]”, e não
apenas um reservatório da cultura com a função de apresentar segmentos do
saber científico. Dessa maneira, propõe que o museu assuma o papel de
instrumento original da comunicação através da linguagem fundamentada
nos objetos reais. Pautado nesta visão, o autor estabelece as quatro principais
funções do novo museu: banco de dados sobre objetos; observatório de
mudanças; meio de produção científica, assim como de integração
comunitária; mostruário da atual conjuntura da comunidade.

383
Esse novo museu proposto deve adotar estas novas funções sem deixar de
desempenhar as antigas. Hughes de Varine aponta também duas medidas imprescindíveis, que
são: eliminar o uso de rótulos (metodologias pré-stabelecidas), pois cada comunidade tem
suas características e necessidades próprias e atuar efetiva e simultaneamente no âmbito da
ação, da capacitação e da investigação, onde o museu deve ser um meio pelo qual sua
comunidade possa reconhecer-se, desempenhando assim sua função de centro de memória.
É considerado o precursor dos chamados ECOMUSEUS, devido sua experiência com
uma comunidade francesa, da região industrial das cidades de Creusot e Montceau lesMines
entre os anos 1971-82. De acordo com seu depoimento, nasceu sob noções de ecologia
humana, de comunidade social, de entidade administrativa e, sobretudo, da definição do
território e da vontade de contribuir ao seu desenvolvimento. Para aquelas populações, o
ecomuseu representava um fator de construção comunitária, apresentando uma inovação: a
relação entre patrimônio e sociedade demonstrada pelo sentimento e pela ação. Para eles, os
testemunhos do passado, traços de identidade de um território, eram de responsabilidade
coletiva servindo de instrumento de educação popular para a invenção criadora do futuro. Daí,
essa primeira fonte deu origem a dois modelos:
1. Ecomuseu do Meio Ambiente: aperfeiçoamento dos museus ao ar livre
escandinavos e das casas do parque americanas;
2. Ecomuseu de Desenvolvimento Comunitário: seguindo a fonte originária francesa,
distingue-se, basicamente, por emanar da comunidade, que tem papel de protagonista nas
ações e animações. Os problemas atuais e futuros constituem a base de sua programação.
Possuem caráter urbano, pois, apoiam-se em associações comunitárias e todo o tipo de
organizações coletivas.
De acordo com Tereza Scheiner (2012),
“hoje, o Museu é percebido pelos teóricos como um fenômeno, identificável
por meio de uma relação muito especial entre o humano, o espaço, o tempo e
a memória, relação está a que denominaremos ‘musealidade’. A musealidade
é um valor atribuído a certas ‘dobras’ do Real, a partir da percepção dos

384
diferentes grupos humanos sobre a relação que estabelecem com o espaço, o
tempo e a memória, em sintonia com os sistemas de pensamento e os valores
de suas próprias culturas. E, portanto, a percepção (e o conceito) de
musealidade poderá mudar, no tempo e no espaço, de acordo com os
sistemas de pensamento das diferentes sociedades, em seu processo
evolutivo. Assim, o que cada sociedade percebe e define como ‘Museu’
poderá também mudar, no tempo e no espaço.” E a Museologia portanto,
entendida como:
“o campo do conhecimento dedicado ao estudo e análise do Museu enquanto
representação da sociedade humana, no tempo e no espaço. Abrange o
estudo das múltiplas relações existentes entre o humano e o Real,
representadas sob diferentes formas de museus: museus tradicionais,
baseados no objeto; museus de território, relacionados ao patrimônio
material e imaterial das sociedades do passado e do presente; museus da
natureza; museus virtuais/digitais. Como disciplina acadêmica, tem
metodologias específicas de trabalho, relativas à coleta, preservação,
documentação e comunicação do patrimônio da Humanidade. Possui ainda
uma terminologia específica, ora em desenvolvimento, que permite o
trabalho integrado com outras áreas do conhecimento, tanto na teoria como
na prática.”

Deste modo, nota-se que o objeto de estudo da Museologia não é somente o “museu”,
nem mesmo seu objeto de estudo é restrito à esta instituição, o cenário real vivido está
condicionado à um tipo de Instituição Museológica ou mesmo dentro do espaço Museu
institucionalizado. Nesta perspectiva observa-se que o fenômeno museu é dotado de uma
produção natural, cultural, individual e coletiva, que permiti vislumbrar a relação da
humanidade com sua produção material e imaterial, e com aquilo que a humanidade acredita
como relevante, e lhe confere como status de bem cultural.
A Museologia pode explicar o processo entre o homem, o objeto e o cenário
pelo qual se encontra, a partir do espaço geográfico ou cultural que ele se
sente representado. Procura ainda, através do cenário real vivido, entender as
relações sociais e as possíveis consciências dentro da realidade que ali se
encontram, através de uma visão espacial e temporal e das perspectivas e
prospectivas do homem e da sociedade (GUARNIERI, 1984).

Poderíamos então nos permitir a pensar, que a Museologia terá um compromisso em


nos revelar reflexões teóricas e práticas sobre as inter-relações sociais do patrimônio cultural.

385
Ela se manifesta com apelo obrigatório à várias áreas do conhecimento, como por exemplo à
sociologia, semiótica, psicologia, antropologia, filosofia, e agora pela Cartografia Cultural.
A Museologia por sua vez pode investigar o patrimônio cultural vivo que se
expressa no comportamento individual e coletivo de uma cultura, articulando
estratégias e abordagens para seu público. A interdisciplinaridade deve ser o
método de pesquisa e de ação da Museologia (GUARNIERI, pag. 126,
1981).

Para Burke (2003) os “encontros culturais encorajam a criatividade” (BURKE, 2003,


p. 17). Assim, que o processo cultural, como a natureza humana, é um processo dinâmico, em
constante transformação e formação, que não apresenta um fim, mas um contínuo marcado
pelas experiências vivenciadas pelo ser humano que interferem diretamente em seus bens
culturais, percebidas nas formas de se expressar, seja por meio de comportamentos sociais ou
corporais e estão intrinsecamente relacionados com a ordem moral e valorativa de uma
sociedade, comunidade ou indivíduo, ligada à “compreensão da própria natureza humana”
(LARAIA, 2009, p. 63).

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389
UM DIÁLOGO ENTRE ESCOLA E MUSEU NO COMBATE À INTOLERÂNCIA
RELIGIOSA
Carolina Barcellos Ferreira

Resumo: Na presente apresentação pretendemos sintetizar o processo de construção de um material


pedagógico voltados para professores e estudantes no combate à intolerância religiosa através da
discussão sobre a formação dos acervos de três museus da cidade do Rio de Janeiro, a saber: Museu
Histórico Nacional, Museu Nacional e Museu da Maré. Refletindo sobre a necessidade de discutir a
questão do respeito à diversidade, recorrendo a uma bibliografia que situa as demandas de escolas e
museus no tocante à análise das heranças africanas na cultura nacional e finalizando com análise da
experiência de um grupo focal formado por alunos do oitavo ano de uma escola pública da cidade do
Rio de Janeiro, defendemos que a questão do combate à intolerância religiosa deve fazer parte das
reflexões destes dois espaços educativos.

Palavras-chave: Intolerância religiosa; Museu; Escola

Abstract: In the present presentation, we intend to synthesize the process of constructing a


pedagogical material for teachers and students in the fight against religious intolerance through the
discussion about the formation of the collections of three museums of the city of Rio de Janeiro,
namely: Museu Histórico Nacional, Museu Nacional and Museu da Maré. Reflecting on the need to
discuss the issue of respect for diversity, using a bibliography that places the demands of schools and
museums for the analysis of African heritage in the national culture and finalizing with the analysis of
the experience of a focus group formed by students of the eighth Year of a public school in the city of
Rio de Janeiro, we argue that the question of combating religious intolerance should be part of the
reflections of these two educational spaces.

Key-words: Religious intolerance; Museum; School.

390
Visitando a exposição “Portugueses no mundo”, do Museu Histórico Nacional, no
centro Rio de Janeiro, com alunos do nono ano do Ensino Fundamental, em 2015, uma
experiência me impactou: diante da instalação “Altar de Oxalá”, de autoria de Emanoel
Araújo14, uma das alunas leu a legenda da obra e saiu correndo da sala gritando cruz credo. O
mais incômodo era que havíamos passado antes por uma sala com vários oratórios e
crucifixos e nenhum dos alunos exprimiu nenhum tipo de estranhamento.

Por que os objetos oriundos das religiões de matriz africana são rechaçados por uma
parte dos alunos quando em visitas a museus? Por que eles não são vistos como objetos de
arte, cultura, história como os objetos religiosos católicos? De que forma eles passaram a
fazer parte dos acervos de museus nacionais e comunitários? Como os professores podem
combater o racismo e a intolerância religiosa presentes na sociedade a partir das visitas
escolares aos museus?

Foi a partir destes questionamentos que no âmbito do Mestrado Profissional em


Ensino de História desenvolvemos uma pesquisa sobre três exposições relacionadas à
temática religiosa na cidade do Rio de Janeiro – “Portugueses do Mundo”, do Museu
Histórico Nacional; “Kumbukumbu”, do Museu Nacional e “ Tempo da Fé”, do Museu da
Maré – e utilizando a metodologia do grupo focal, elaboramos um material pedagógico que
relaciona a biografia destes objetos à história do Brasil e ao debate contemporâneo sobre
intolerância religiosa.

Principalmente a partir da Lei 10.639/03, que tornava obrigatório o ensino das


histórias e das culturas africanas e afro-brasileiras, ampliada pela Lei 11.645/08, que incluía
também as histórias e culturas indígenas, o ensino de História sofre pressões de grupos
contrários à inserção das temáticas ligadas às religiosidades de matriz africana no currículo
escolar, com o argumento de que se praticaria o proselitismo religioso, forçando os alunos a

14
Emanoel Araújo é artista plástico, colecionador, fundador e gestor do Museu Afro-Brasil, localizado
em São Paulo.

391
estudar/aceitar dogmas religiosos com os quais não compactuassem. Essa visão,
compartilhada por parte dos responsáveis, diretores escolares, secretarias de educação e
grupos religiosos conservadores, tem como mais nova arma o Projeto de Lei nº 867/2015,
mais conhecido como “ Escola sem partido” de autoria do deputado federal Izalci, do PSDB
do Distrito Federal, que pretende, entre outras coisas, impossibilitar dentro das escolas
discussões que envolvam a diversidade religiosa e cultural do país.

Ao contrário deste entendimento que limita a visão de mundo dos alunos, acreditamos
ser dever do ensino de História debater a importância das religiosidades de matriz africana no
conteúdo a ser trabalhado no ensino das relações étnico-raciais e a necessidade de inscrevê-las
no processo histórico nacional investigando de que modo integram a paisagem cultural do
país. Importa também compreender qual o papel e o espaço destas religiosidades atualmente,
uma vez que essa discussão não pode ser apartada do debate atual na sociedade brasileira
sobre os estigmas e discriminações que sofrem os jovens alunos das escolas públicas
praticantes de religiões como a Umbanda e o Candomblé, que têm constantemente seus
saberes e conhecimentos rechaçados e silenciados em sala de aula pelos outros alunos e
mesmo professores. Acreditamos, por fim, que estes espaços educativos – os museus – pelos
seus acervos e exposições são ambientes ideais para refletir sobre esta temática de forma
sensível e diversificada.

A partir da impossibilidade de trabalhar com todos os museus que abordam a questão


das religiosidades africanas e afro-brasileiras em seus acervos, optamos por delimitar nosso
recorte ao privilegiar três salas expositivas de museus localizados no centro e na zona norte da
cidade do Rio de Janeiro, já citadas: “Portugueses no mundo”, do Museu Histórico Nacional,
localizado no Centro da cidade do Rio de Janeiro; “Kumbukumbu”, do Museu Nacional,
localizado no bairro de São Cristóvão; e “Tempo da Fé”, do Museu da Maré, localizado no
Complexo da Maré.

Inicialmente pensado como um museu militar, o Museu Histórico Nacional foi


inaugurado pelo intelectual Gustavo Barroso, em 1922, como parte das comemorações pelo

392
centenário da Independência. O objetivo de seu criador era organizar um museu que
transmitisse às demais gerações as glórias e conquistas do Brasil desde seu período colonial.
Para tanto, Gustavo Barroso construiu um acervo baseado nas conquistas militares do país e
nas obras que remetem ao poder político e econômico do Brasil, reunindo doações e compras
de objetos representativos da pujança nacional. Seu foco em heróis da pátria e figuras de proa
da política brasileira reuniram poucos elementos que pudessem tratar da imensa maioria dos
brasileiros naquele momento, formada por ex-escravizados e seus descendentes, imigrantes
estrangeiros, e pobres em geral.

Apesar desta forma de colecionamento de objetos baseado em critérios elitistas, que


privilegiam as camadas mais favorecidas da sociedade, o Museu Histórico Nacional
atualmente tenta reformular seu entendimento do que seria o “nacional” e acomodar os vários
grupos que fazem parte do Brasil. Na atual exposição “Portugueses no Mundo”, inaugurada
em 2010, o museu tenta dialogar com outra influência cultural recebida durante o período
colonial, a de origem africana. Em seu último módulo são apresentadas obras de Mestre
Valentim (identificadas como tal), joias típicas das africanas que viveram na Bahia, além de
painéis que tematizam as contribuições dos africanos e seus descendentes para a cultura do
brasileiro como, por exemplo, a capoeira e o jongo. Além da citado instalação denominada “
Altar de Oxalá”.

Já o Museu Nacional, inaugurado em 1808 e desde 1892 abrigado no Palácio da


Quinta da Boa Vista, no bairro de São Cristóvão, na Zona Norte do Rio de Janeiro, surgiu em
meio a um conjunto de medidas implementadas por D. João VI no contexto da transferência
da Família Real Portuguesa para o Brasil no início do século XIX. Seu acervo foi composto
inicialmente por peças de arte, gravuras, objetos de mineralogia, artefatos indígenas, animais
empalhados e produtos naturais. Segundo Lilia Schwarcz (1993:92), sofrendo da falta de
verbas e pessoal qualificado, somente a partir das administrações de Ladislau Netto (1874-
1893) e de Batista Lacerda (1895-1915) o estabelecimento se estruturou segundo os moldes

393
dos grandes centros europeus, destacando-se como um museu de antropologia, vinculado aos
princípios do evolucionismo social então em voga no final do século XIX.

Da gênese do museu, nascido como um centro de antropologia, surgiu uma riquíssima


coleção de objetos produzidos por africanos e seus descendentes no Brasil, entre eles alguns
dos objetos que foram recolhidos pela polícia da cidade do Rio de Janeiro em finais do século
XIX e início do século XX no contexto de perseguição e proibição das chamadas “casas de
dar fortuna” ou casas de candomblé e requisitados por Ladislau Netto durante a sua
administração. Além disso, Heloísa Torres, diretora do Museu Nacional entre os anos 1938 e
1955, formou uma coleção composta por objetos que comprou ou recebeu durante suas
viagens à Bahia.

Hoje, alguns desses objetos estão disponíveis para visitação na exposição


“Kumbukumbu – África, Memória e Patrimônio”, inaugurada em 2014, e compondo a
exposição permanente do Museu Nacional. A exposição conta com 185 peças e pretende
demonstrar um pouco das relações estabelecidas entre Brasil e África ao longo dos três
últimos séculos. Nela estão instaladas nove vitrines e, entre elas, a primeira à direita mostra
objetos de rituais e práticas religiosas de matriz africana de diversas procedências e
temporalidades, entre elas as coleções “ Polícia da Corte” e “Heloísa Torres”.

Já o Museu da Maré, segundo Mário Chagas e Regina Abreu (2007), nasceu do desejo
de alguns jovens universitários da Maré de tentar modificar a realidade da localidade a partir
de ações que traziam uma possibilidade de ascensão social e reflexão sobre a história da
comunidade. A partir de uma associação sem fins lucrativos, o CEASM – Centro de Estudo e
Ações Solidárias da Maré –, foi inaugurado em 1998 um curso pré-vestibular em um espaço
cedido por uma igreja do Morro do Timbau. Aos poucos, outros projetos foram se integrando,
incluindo dança, moda e um núcleo sobre a história da comunidade – a Rede de Memórias da
Maré.

A partir dos encontros promovidos pela Rede de Memória, dos objetos doados pelos
moradores e da parceria com profissionais da Universidade Federal do Estado do Rio de

394
Janeiro (UNIRIO), foram montadas exposições em vários espaços públicos sobre a História
da Maré, incluindo o Museu da República, em 2004. E em 2006, a partir da cessão pela
Companhia Libra de Navegação de um amplo galpão localizado na Av. Guilherme Maxwel,
foi idealizada e montada uma exposição permanente que pretendia refletir e debater a história
da comunidade a partir do ponto de vista de seus moradores, para além do senso comum, o
qual projeta na Maré apenas uma história de miséria e violência.

A atual exposição, dividida em 12 tempos/ espaços, dialoga com as memórias e


histórias da população que contribuiu para a formação da Maré, seja através de suas diversas
construções, como a réplica de uma casa de palafitas ou a reconstrução das vielas da Maré; ou
de seus diversos objetos, como a imagem de São Pedro em um barco ou a vitrine contendo
diversos cartuchos de balas de armas de fogo.

Para os fins do presente trabalho, privilegiaremos a sala expositiva “ Tempo da Fé”, a


qual podemos dividir em dois espaços. No primeiro, em primeiro plano vemos um barco, uma
rede de pescar e uma imagem do padroeiro dos pescadores, São Pedro, remontando dessa
forma a uma das atividades econômicas da região em seus primórdios e mostrando a
interconexão entre o tempo da casa, da água e da fé. Ao fundo, na parede, uma série de nichos
guardam os mais diversos símbolos religiosos doados pelos moradores, como ex-votos em
cera, muletas, imagens de santos católicos, crucifixos ornamentados, sapatinhos de bebês,
Bíblias, uma escultura simbolizando Buda e outras simbolizando anjos, além de um quadro
escrito em árabe, placas de carro e diversos adesivos religiosos que fazem referência a Deus e
Jesus Cristo. Na parede ao lado, observa-se, ainda, fotografias que fazem referência à religião,
como um culto, uma Bíblia, uma novena, um quadro da Santa Ceia.

Do lado esquerdo desta parede com os ex-votos, atrás de uma cortina de pano vemos
um altar que simboliza o espaço dedicado às religiões de matriz africana, como o Candomblé
e a Umbanda. Neste espaço, vemos esculturas reproduzindo imagens de diversos ícones
católicos, comuns nos centros espíritas umbandistas, como Santa Bárbara, São Francisco, São
Jorge e o próprio Cristo, além de esculturas que remetem diretamente às crenças simbólicas

395
dessas religiões, como é o caso da vovó Baiana e do Pai Joaquim, Iansã, Xangô, Ogum e
Iemanjá. Em uma mesa colocada abaixo do altar, estão em uma cesta diversos pacotes de
defumadores, um círculo formado por colares de contas de diversas cores, um recipiente para
incenso e diversas vasilhas, além de uma escultura intitulada Nanã. Embaixo desta mesa,
estende-se uma cortina e atrás delas vemos as esculturas de entidades que, segundo os
preceitos religiosos da Umbanda, não poderiam ficar à mostra, como o Zé Pelintra.

Nossa intenção, ao propor discussões envolvendo o ensino das relações étnico-raciais


a partir das visitas aos museus, é afastar tanto uma abordagem que transforma o museu em
uma simples ilustração de conteúdos escolares quanto a proposta que transforma o discurso do
museu em verdade histórica, da qual não se pode duvidar ou questionar. Procuramos fazer um
trabalho que se baseie na crítica das fontes, recuperando das exposições museais o potencial
de identificação e melhoria das condições sociais que estão no cerne das atuais propostas dos
museus comunitários. Acreditamos assim, que a visita às exposições que envolvam objetos de
cunho religioso, pode gerar debates que ajudem no combate à intolerância religiosa.

Meneses (1994), ao discutir as possibilidades de construção do conhecimento histórico


em museus, aponta que os objetos inseridos nos museus históricos devem estar a serviço de
um processo crítico, de análise e diálogo com o passado e com o presente, enfim, a serviço da
história e não da memória. Os museus históricos deveriam assumir o papel de verdadeiros
laboratórios da história, com os objetos servindo de matéria-prima para o desenvolvimento
deste conhecimento científico. Dessa forma, os objetos expostos nos museus históricos
deveriam ser transformados em documentos históricos, diante dos quais deveriam ser
colocadas questões, como esclarece o autor:

Nessa ótica, o museu deveria servir-se também de objetos históricos, e de


qualquer objeto que lhe possa permitir formular e encaminhar os problemas
que tiver selecionado como prioritários dentro do seu campo. Introduz-se aí
a questão do documento histórico. [...]. Qualquer objeto pode funcionar
como documento e mesmo o documento de nascença pode fornecer
informações jamais previstas em sua programação (MENESES, 1994, p. 21)

396
Segundo o autor, não só os objetos deveriam ser questionados, mas também os
discursos sobre o passado produzidos pelas instituições museais, uma vez que “a exposição
museológica pressupõe [...] uma concepção da sociedade, de cultura, de dinâmica social, de
tempo, de espaço, de agentes sociais e assim por diante” (MENESES, 1994, p.25). Portanto,
as exposições, sejam elas permanentes ou temporárias, guardariam um discurso de memória
do qual nós, pesquisadores e professores, deveríamos nos apropriar para transformá-los em
objetos de análise e investigação. Se não o fizermos, corremos o risco de reproduzir estas
memórias ao invés de problematizá-las.

A própria historicidade dos objetos reunidos nestes museus pode nos trazer questões e
reflexões sobre as intenções e valores privilegiados nestas instituições. Para debater estas
questões envolvendo a historicidade e o uso pedagógico dos objetos expostos em museus
históricos, recorremos a Ramos (2004) e à metodologia do objeto gerador – em uma analogia
ao conceito de palavra geradora veiculada por Paulo Freire – para identificar um método
voltado para o diálogo entre visitantes e objetos:

Na pedagogia do objeto, torna-se necessário implementar uma pedagogia da


pergunta – diálogo feito das indagações envolvidas em problemáticas
historicamente fundamentadas. Não há receitas para ensinar a fazer questões.
O caminho é o próprio diálogo. (RAMOS, 2004, p.55)

O autor alerta para o fato de que o objeto perde seu valor de uso quando passa a fazer
parte de uma exposição, ele não vale mais pelo que fazia ou simbolizava. Seu valor e
importância passam a ser ditados por novos interesses, a favor dos discursos dos museus nos
quais estão expostos. Dessa forma, o trabalho pedagógico deve motivar reflexões sobre a
trama entre sujeito e objeto: perceber a vida dos objetos, entender e sentir que os objetos
expressam traços culturais, que os objetos são criadores e criaturas do ser humano.

Seria então, de fundamental importância para os objetivos deste trabalho, ao lidar com
a noção de objeto gerador, indagar sobre os objetos religiosos expostos nas salas “Tempo da
Fé”, “Kumbukumbu” e “Portugueses no mundo”: a quem pertenceram os objetos recolhidos?

397
É possível saber sua origem? Quais eram as suas funções e significados antes de fazerem
parte do acervo de um museu? Que caminhos percorreram? Por que foram coletados e
preservados, ao contrário de vários outros objetos que se perderam ao longo do tempo? O que
permitiu a sua preservação? Como e por que foram adquiridos pelo museu? Como são
expostos? Por que estão expostos? Quais sentimentos e emoções despertam dentro da
exposição? Assim, longe de corroborar discursos de poder e de memória, as funções
pedagógicas do museu estariam voltadas para um trabalho de análise e crítica envolvendo a
história e os objetos. Uma proposta pedagógica assim formulada pretende dialogar, criticar e
debater a relação entre objetos, seus usos no passado e seus usos no tempo presente, revelando
as mudanças e rupturas da sua própria historicidade.

As demandas levadas pelos movimentos negros e pelo surgimento das leis que
obrigam o ensino das histórias e culturas africanas e afro-brasileiras nas escolas
impulsionaram também a crítica aos acervos e às exposições dos chamados museus
tradicionais, como o Museu Histórico Nacional, o Museu de Belas Artes e o Museu Nacional,
todos localizados no Rio de Janeiro, quanto à onipresença da escravidão, dos objetos de
tortura, da folclorização dos objetos religiosos e do silenciamento sobre a arte e os
conhecimentos trazidos e produzidos pelos africanos e seus descendentes.

Entre as críticas apontadas por Santos (2007) aos museus tradicionais estão o
silenciamento sobre as origens africanas de diversos artistas e escritores brasileiros, a
recorrência da representação da escravidão e a ausência de objetos produzidos por africanos e
seus descendentes. Com relação ao primeiro ponto, a autora comenta que, ao visitar o Museu
de Belas Artes ou a Biblioteca Nacional, não são discutidas as origens africanas de artistas
como Arthur Ramos ou Machado de Assis.

Também criticando a forma como o negro é representado nos museus históricos


tradicionais, Cunha (2008) fala sobre a forte presença do componente religioso através de
esculturas e insígnias religiosas, alertando, porém, para o fato de que, na maioria das vezes, há

398
uma abordagem que valoriza o sincretismo e não aborda o caráter de luta e resistência dos
terreiros, por exemplo.

Trazendo esta discussão para o cotidiano das visitas escolares a museus, o que
podemos perceber é que quando os alunos entram em contato com estes objetos, não veem
objetos históricos, com uma longa biografia que os habilita a fazer parte de acervos e
exposições sobre a história do Brasil, mas como objetos religiosos, deslocados do espaço e
tempo dos museus, o que faz aflorar o estranhamento por parte destes estudantes, mesmo
entre os que as famílias são adeptas de religiões de matriz africana, pois se questionam por
que a “macumba” está ali representada.

Compreendendo estes desafios, elaboramos um material pedagógico que discutisse


com os alunos, antes das visitas aos museus selecionados, a historicidade de alguns objetos
que fazem parte das exposições visitadas. Percebemos a necessidade de explicitar aos alunos
que assim como os objetos religiosos de origem católicos, os objetos das religiões afro-
brasileiras presentes nos museus de história e de antropologia também possuíam historicidade,
e que esta imbricava-se com a história do Brasil, e sua relação de intolerância, curiosidade e,
mais recentemente, valorização, do legado dos africanos e seus descendentes para a cultura e
história brasileiras.

Algumas das perguntas que orientaram esta proposta pedagógica foram: Por que estes
objetos fazem parte do acervo de determinado museu e não outros? Como ele foi adquirido
pelo museus? Com qual intenção? Procuramos não apenas estabelecer um diálogo com o
passado a partir da biografia dos objetos, mas também trazer esta discussão para o presente,
refletindo sobre como as exposições apresentam estes objetos, se os objetivos mudaram e o
que eles pretendem provocar nos seus visitantes. Além disso, propomos atividades para os
alunos discutirem e pesquisarem o tema no seu bairro, na sua cidade, relacionando suas
experiências pessoais com o tema da intolerância religiosa e do respeito à diversidade.

Inicialmente, o debate proposto se restringia a objetos das religiões de matriz africana,


porém, diante da discussão com a banca da qualificação ficou evidente que se o objetivo era

399
mostrar que os objetos das religiões afro-brasileiras tinham um lugar nos museus ao lado de
objetos religiosos de outras origens, não havia por que isolá-los em um material pedagógico.
O mais lógico seria justamente juntá-los, demostrando que assim com um oratório do século
XVIII poderia fazer parte do acervo sem trazer nenhum tipo de estupefação, também uma
instalação chamada “Altar de Oxalá” poderia compor o ambiente e as duas obras poderiam
dialogar, afinal faziam parte da mesma exposição.

O material pedagógico foi produzido em três etapas: a primeira foi a pesquisa sobre os
museus selecionados, seu histórico e a formação de seus acervos, através da leitura de
bibliografia especializada, visitas aos setores técnicos das instituições, e entrevistas com
profissionais que participaram da montagem das atuais exposições. No caso do Museu
Histórico Nacional, pude recorrer ao seu acervo documental, digitalizado e disponibilizado no
ambiente virtual, para analisar os processos de entrada dos objetos escolhidos, verificando
assim sua procedência. Também nos foi possível visitar a reserva técnica da instituição e
conferir a descrição, medida e anotações feitas sobre os objetos depois da sua entrada no
museu.

No caso do Museu Nacional, depois de consultada uma bibliografia específica sobre a


exposição “Kumbukumbu”, fui até o Setor de Etnografia da instituição pedir autorização para
pesquisar os documentos relativos ao seu acervo. Diante da dificuldade de entrar em contato
com esses documentos, os quais não estavam disponíveis ao público, foi sugerido que
entrasse em contato com a pesquisadora responsável pela exposição, a professora aposentada
pela Universidade Federal Fluminense, Mariza Soares. Ela me recebeu em sua casa, contou
sobre as dificuldades da pesquisa sobre este acervo específico, pois muitas identificações dos
objetos se perderam ou não correspondem às descrições do acervo. Esclareceu dúvidas quanto
à procedência dos objetos selecionados e sua disposição na atual exposição.

Também para saber sobre a procedência e disposição dos objetos presentes no Museu
da Maré, recorremos a uma entrevista com o cenógrafo Marcelo Pinto Vieira, uma das
pessoas responsáveis pelas exposições do referido museu. Através do seu relato,

400
compreendemos o significado pretendido pelo museu para os ambientes que compõem a
exposição analisada e também a motivação para a criação do “Tempo da Fé”.

Diante desta pesquisa, um material preliminar foi redigido, e para testá-lo quanto à
adequação linguística e relevância dos debates propostos, procedeu-se à segunda etapa de
elaboração do material: a formação de um grupo focal composto por 5 alunas e 4 alunos do
oitavo ano do Ensino Fundamental de uma escola pública da Zona Norte da cidade do Rio de
Janeiro.

Segundo Krueger e Casey (2000), um grupo focal é formado por um grupo especial de
pessoas em termos de objetivos e composição, cuja finalidade é ouvir e obter informações
sobre um problema, serviço ou produto. Neste caso específico, o grupo se reuniu uma vez por
semana durante os meses de março e abril de 2016, intercalando a leitura do material
pedagógico e a visita aos museus trabalhados na pesquisa. Seu objetivo foi analisar a
adequação à linguagem, a pertinência das discussões engendradas e as características das
visitas após a leitura e discussão do material. As sessões do grupo, tanto as reuniões sobre o
material quanto as visitas aos museus, foram registradas em caderno de campo, para que
pudessem ser analisadas posteriormente.

Por já haver trabalhado com eles no ano anterior sobre seus conhecimentos prévios em
relação a religiões em geral, pude aferir sobre suas crenças religiosas e suas noções sobre
outras religiões. A primeira aluna, Amanda15, disse ser católica e ter amigos com outras
religiões, como as evangélicas. A segunda aluna, Júlia, disse ser evangélica e ter amigos que
seguem o espiritismo. A terceira aluna, Vitória, disse ser evangélica e ter amigos católicos e
espíritas. A quarta aluna, Catarina, disse ser católica e ter uma amiga cuja religião é a
Umbanda. A quinta aluna, Emília, disse ser evangélica e ter amigos que seguem o espiritismo.
Entre os garotos, o primeiro aluno, Rodolfo, disse não seguir nenhuma religião, mas conhecer
amigos evangélicos. O segundo aluno, Renato, disse seguir a religião cristã e ter amigos

15
Para preservar a identidade dos alunos, foram utilizados nomes fictícios.

401
evangélicos e espíritas. Kevin, disse ser católico, e ter amigos evangélicos e do Candomblé. O
quarto aluno, José, disse ser evangélico e ter amigos que seguem outras religiões, mas não
soube dizer quais.

Com o objetivo de exemplificar a experiência única trazida pela formação deste grupo
focal, que muito engrandeceu as reflexões do material pedagógico e minha prática
pedagógica, cito alguns dos momentos considerados mais significativos desta discussão para
que sejam objeto de uma análise mais apurada.

No primeiro encontro, fizemos a leitura compartilhada sobre a história dos objetos


selecionados na exposição do Museu Histórico Nacional. Quando chegamos na análise da
peça “ Altar de Oxalá”, os alunos perguntaram do que era feita a obra, eu disse que eram
panos, ficaram olhando curiosos e começamos a leitura. Kevin perguntou quem era Oxalá, eu
disse que era um dos deuses da mitologia Iorubá, africana. Ele então disse que havia muitas
mitologias, muitos deuses e começou a falar da mitologia grega, elencando o nome dos deuses
que ele conhecia, os outros completaram. Júlia perguntou se Thor era um deus também. José
disse que era um personagem do filme dos “Vingadores”, e daí em diante eles começaram
uma acalorada discussão sobre se alguém mais poderia levantar o martelo de Thor. Neste
estágio eu percebi que precisava identificar logo nesta parte a questão da mitologia Iorubá,
para relacionar e diferenciá-la de outras mitologias que eles conheciam.

Na semana seguinte, durante a visita à exposição “ Portugueses no mundo”, eles


sentaram próximos ao “Altar de Oxalá”, chamaram atenção para o objeto, ficaram olhando.
Kevin disse que ainda não tinha entendido quem era Oxalá, eu disse que era um dos orixás,
uma das divindades trazidas pelo povo Iorubá. Ele ficou pensando e depois disse que não
havia como confundir o altar com coisa de católico, eu disse que não entendi. Amanda se
intrometeu na conversa e disse que não era católico mesmo, que não havia como confundir, eu
disse que continuava sem entender, e não estava entendendo mesmo, ele repetiu que não havia
como confundir com católico, e Amanda falou que ele estava querendo dizer isso mesmo, que
não havia como confundir com o altar católico, pois é diferente. Eu concordei com a cabeça e

402
eles partiram para olhar o painel que existe ao lado direito. Rodolfo veio para o meu lado e
perguntou se aqueles detalhes dourados e prateados eram preciosos também, como os da sala
dos oratórios, eu disse que achava que não, que era apenas para dar um efeito visual.

No terceiro encontro, para introduzir a história dos objetos da chamada coleção


“Polícia da Corte”, do Museu Nacional, que reunia artefatos recolhidos de forma compulsória
na perseguição às religiões afro-brasileiras no contexto do final do século XIX, perguntei
como eles achavam que os objetos religiosos foram parar em museus. Todos quiseram
explicar a sua hipótese. Kevin disse que achava que foi um “ladrãozinho” que pegou do
centro e vendeu depois para o museu. Um outro disse que achava que tinha sido um mendigo
que entrou e roubou. Um terceiro disse que achava que era alguém “vingador”, alguém que
frequentava a casa e para se vingar roubou alguns objetos e depois vendeu para o museu. Um
outro aluno disse que achava ter sido o próprio segurança do lugar que subtraiu o bem.
Rodolfo disse que achava que tinha sido “o carinha que procurava coisas” que tinha
encontrado nas ruínas das antigas casas de Zúngus. Eles ficaram um pouco decepcionados
quando descobriram que foi a polícia que apreendeu e entregou ao Museu Nacional. Amanda
chegou a dizer “ Poxa, ninguém acertou”.

Depois de discutir sobre o significado de um dos objetos selecionados – uma Flecha


de Oxóssi – Kevin perguntou como é que os africanos tinham religião e esses costumes,
afinal, “os africanos não ficavam na sofrência? ”. Perguntei se ele lembrava das esculturas que
tínhamos visto dos africanos que vendiam coisas como ambulantes no Museu Histórico
Nacional na semana anterior, e expliquei a noção de “escravo de ganho”, e que eles não
ficavam sob vigilância dos seus senhores 24 horas por dia, fora a quantidade de africanos
livres que havia na cidade do Rio de Janeiro, a partir da segunda metade do século XIX. Ele
perguntou se os africanos que ficavam na fazenda também eram assim, se eram como os
camponeses do período medieval, se eles também podiam plantar suas roças e ficar livres.
Expliquei que em alguns lugares poderia ser assim, mas que o mais comum era os africanos
escravizados que trabalhassem no campo serem mais explorados. Este questionamento fez

403
com que eu me lembrasse de dúvidas minhas em relação ao ensino das relações étnico-raciais
e sobre o processo histórico do negro na sociedade brasileira. Como tratar do tema do tráfico
negreiro e da escravidão no Brasil sem que isso diminua ainda mais a autoestima dos alunos
negros? Como falar da escravidão dosando a medida entre a experiência do sofrimento e a
vitimização? O que sobressai da fala de Kevin é que ele não consegue humanizar as pessoas
que foram escravizadas. Imagina que todas elas tenham vivido 24 horas dos seus dias
trabalhando e sendo exploradas. Como falar de cultura, de laços familiares, de herança
cultural se ele não compreende que havia vida na experiência dessas pessoas? E mais do que
isso, se ele não consegue desassociar a ideia do africano da ideia de escravo, e
consequentemente, da ideia de sofrimento?

No quinto encontro discutimos a formação do acervo do Museu da Maré e na semana


seguinte visitamos o espaço. Quando chegamos ao “Tempo da Fé”, atravessamos uma renda
branca que dá acesso direto ao que seria uma réplica de um altar de um terreiro de Umbanda,
muito comum nas comunidades da Maré nos anos 1980. Os alunos entraram, Thaís, a
mediadora de nossa visita, fez algum comentário sobre a forte religiosidade das pessoas na
Maré, mas os alunos não prestaram muita atenção. Kevin e Emília ficaram mexendo em
algumas pedras que haviam sido colocadas na mesa, o que não criou nenhum tipo de
problema, pois o Museu da Maré se caracteriza pela questão da apropriação dos objetos pelos
visitantes. Eles podem tocar, usar, brincar, tirar fotos. Ainda neste espaço, Kevin chamou
minha atenção para o jogo de Búzios que também estava em cima da mesa. Thaís levantou a
renda que protegia as imagens que estavam embaixo da mesa, disse que era a representação
do “povo de rua”. Os alunos se abaixaram, Kevin perguntou se aquele objeto (o tridente) era o
objeto do demônio. Eu disse que era o mesmo utilizado por aquele deus grego senhor dos
mares, e ele completou falando que era o Poseidon. Rodolfo perguntou se poderia tirar foto,
eu pedi a ele para tirar depois, que eu daria um tempo para eles circularem livremente.
Amanda e Emília ficaram apenas observando. Kevin, apontando para um quadro e depois para

404
uma escultura que simbolizava Iemanjá, declarou era aquela imagem mesmo que o avô tinha
em casa, ideia que ele já havia aventado no encontro anterior, mas não tinha certeza.

Refletindo sobre a experiência de leitura compartilhada e visita aos museus com o


grupo focal, compreendi que o material pedagógico antecipou algumas questões que poderiam
ter sido feitas nos museus, diante dos objetos. Mas a existência desta discussão prévia deu aos
alunos o espaço para conhecer o objeto, sua origem, tirar dúvidas sobre vocabulário ou sobre
o universo que envolvia aquele artefato, mexendo até mesmo com a suas concepções sobre a
história da escravidão e da experiência de africanos e seus descendentes no Brasil. Nas visitas,
eles puderam observar os objetos com mais atenção, tirando dúvidas que as fotografias não
conseguiram responder. Perceberam que havia uma coroa no teto da instalação conhecida
como “Altar de Oxalá”, que a “Flecha de Oxóssi” era de ferro, que o avô tinha em casa uma
imagem de Iemanjá muito parecida com a imagem que havia no Museu da Maré.

Pode parecer pouco, mas o que possibilitou todas essas observações e também as
outras discussões, foi o fato deles não terem fugido dos objetos. Eles não se recusaram a
sentar no banco em frente ao “Altar de Oxalá” e então puderam ver, prestar atenção e
comparar com objetos religiosos de outras matrizes; eles olharam para os objetos da coleção
“Polícia da Corte” e tentaram descobrir qual era a função daqueles objetos nos rituais
religiosos antes de terem sido arrancados à força de seus donos; eles visitaram toda a
exposição do “Tempo da Fé”, e assim, puderam ter a curiosidade de olhar o que havia dentro
do pano que cobria a mesa para perguntar quem estava sendo representado naquelas
esculturas. E parte disso foi conquistado a partir das conversas engendradas pela leitura do
material pedagógico antes das visitas, que os aproximou dos objetos e estimulou a
curiosidade.

Depois dessas seis semanas de trocas e questionamentos provocados pela experiência


do grupo focal, passamos para terceira etapa da elaboração do material pedagógico, que foi a
reformulação do material pedagógico a partir das dúvidas trazidas pelos alunos, incluindo a
contratação de um fotógrafo para melhorar a qualidade das imagens apresentadas e um

405
designer para aprimorar o layout do livreto que surgiu como produto final da dissertação deste
Mestrado Profissional.

Apesar de toda experiência com um grupo focal ser única, pois os sentimentos e
conhecimento daqueles alunos que participaram não podem ser imitados ou repetidos por
outros, conservamos a esperança de que outros diálogos, questões e debates possam ser
engendrados a partir das questões que foram ali levantadas e, mais do que isso, que o material
também possa motivar professores e professoras a criar seus próprios materiais que deem
conta destas discussões tão necessárias nas escolas públicas e privadas de todo país.

Referências bibliográficas

CHAGAS, Mario de S. e ABREU, Regina. Museu da Maré: memórias e narrativas a favor da


dignidade social. Musas. Revista Brasileira de Museus e Museologia, nº 3, 2007 pp. 129-
152.

CUNHA, Marcelo Nascimento Bernardo da. Teatros da memória, palcos do esquecimento:


culturas africanas e das diásporas negras em exposições museológicas. Anais do Museu
Histórico Nacional. v. 40 , 2008, p. 149 -171.

KRUEGER. Richard A. & CASEY. Mary Anne. Focus group. A practical guide for
applied Research. Thousand Oaks: Sage Publications, 2000.

MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Do teatro da memória ao laboratório da História: a


exposição museológica e o conhecimento histórico. Anais do Museu Paulista. São Paulo.
Nova série, v. 2, 1994 p. 9-41

RAMOS, Francisco Régis Lopes. A danação do objeto: o museu no ensino de história. –


Chapecó: Argos, 2004.

SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. Entre troncos e atabaques: Raça e Memória Nacional. In.
PEREIRA, Claudio; SANSONE, Lívio (Org.) Projeto Unesco no Brasil. Salvador: Edufba,
2007, p. 321-334.

406
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão
racial no Brasil 1870 -1930. São Paulo, Companhia da Letras, 1993.

SOARES, Marisa de Carvalho; LIMA, Rachel Corrêa. A africana do Museu Nacional:


história e museologia. In. AGOSTINI, Camila (org.) Objetos da Escravidão: abordagens
sobre a cultura material da escravidão e seu legado. Rio de Janeiro, 7Letras, 2013, p. 337-
359.

407
COLEÇÃO AMAZONIANA DE ARTE DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ,
DESAFIOS, PROCESSOS E SUBVERSÕES PARA UM CAMPO ALARGADO E
DECOLONIALISTA.
Orlando Maneschy*
*Universidade Federal do Pará

Resumo: Ao pensar a função social dos museus, dentro de uma instituição de ensino como uma
Universidade Federal, com suas perspectivas educacionais, calcadas no tripé Ensino, Pesquisa e
Extensão, buscamos refletir sobre as práticas, os exercícios poéticos e as proposições
políticas decoloniais, uma vez que, localizada fora do centro de poder do país, na Amazônia, com
características próprias, faz-se necessário conjecturar tanto acerca dos procedimentos de poder externo
e interno, estabelecidos dentro de processos coloniais e, mais do que isso, buscar evidenciar estratégias
e práticas decoloniais presentes nos processos de formação de uma Coleção, no caso a Coleção
Amazoniana de Arte da UFPA, bem como o envolvimento de atores sociais, como artistas,
pesquisadores, alunos e comunidade.

Palavras-chave: Amazônia; Museologia Social, Decolonização; Coleção Amazoniana de Arte da


UFPA.

Abstract: When thinking about the social function of museums, within an educational institution like
a Federal University, with its educational perspectives, based on the tripod Teaching, Research and
Extension, we seek to reflect on practices, poetic exercises and decolonial political propositions, once
that, located outside the country's power center in the Amazon, with its own characteristics, it is
necessary to conjecture both about the procedures of external and internal power established within
colonial processes and, more than that, to seek strategies to constitute decolonial practices in the
processes of formation of a Collection, in this case the Amazonian Art Collection of UFPA, as well as
the involvement of social actors such as artists, researchers, students and community.

Key-words: Amazônia; Social Museology, Decolonization; Amazonian Art Collection of UFPA.

408
Introdução

Neste artigo trataremos acerca da Coleção Amazoniana de Arte da Universidade


Federal do Pará, dos processos relacionais empreendidos na Faculdade de Artes Visuais da
UFPA, em que pesquisa, ensino e extensão, foram articulados em ações e projetos que vieram
a fomentar, com a participação de estudantes, a produção de conhecimento, de ações
afirmativas e de planos que, ao longo do tempo vieram a promover a instauração da Coleção
Amazoniana de Arte da UFPA, bem como seus desdobramentos em relação aos diversos
atores sociais com os quais ela se relaciona.

A Coleção Amazoniana de Arte da UFPA, que chamaremos a partir daqui apenas de


Coleção, nasce no desejo de constituir um ambiente de reflexão e articulação de artistas e
obras, processos e desdobramentos diversos entre a construção do pensamento, o
estabelecimento conceitual de uma coleção com perspectivas alargadas, para além do mero
colecionismo e atenta às questões de suma importância para uma região esquecida e oprimida
pelo poder público e pela força do capital, que insiste em modelos de exploração e devastação
para a região Norte. Pensar a possibilidade de erigir uma Coleção como esta em que vários
procedimentos são postos em plena atividade, constituindo para a própria instituição um
ambiente de pensamento acerca de seus espaços e de necessidades que transcendem os
modelos correntes, nos leva a nos pautar no tripé fundamental para a UFPA, que é Ensino,
Pesquisa e Extensão.

Antecedentes

Nesse sentido, precisaremos nos reportar aos antecedentes dessa Coleção, como o
momento em que a pesquisa na Faculdade de Artes Visuais é estabelecida em consonância
com as diretrizes apontadas pela Pró-Reitoria de Pesquisa - por meio do documento
Resolução N.º 3.043, de 07 de maio de 2003, que estabelece normas para a realização da
atividade de pesquisa na UFPA -, com o recebimento da primeira bolsa para um discente de
iniciação científica – IC em Artes Visuais, em 2005, com a pesquisa A Relação da Imagem

409
nas Artes Visuais: mapeamento da produção imagética na arte contemporânea paraense,
com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Este projeto inicial gerou um levantamento de parte da produção fotográfica e videográfica
paraense executada nas últimas três décadas. Realizado junto com discentes, o projeto não
apenas mapeou a produção desses artistas da imagem, como favoreceu a elaboração de artigos
publicados em eventos nacionais e internacionais, bem como em livro e exposição
Seqüestros: Imagem na Arte Contemporânea Paraense, com o apoio, em 2007, da Sociedade
Brasileira para o Progresso da Ciência, durante o encontro em Belém, além da mostra
Encruzilhadas e seu respectivo catálogo, fruto do projeto de extensão, (que mais tarde viraria
programa) Processos Artísticos e Curatoriais Contemporâneos, que viabilizou diversas
práticas vinculadas à pesquisa, com exercícios poéticos, exposições, debates, etc; com o apoio
da Pró-Reitoria de Extensão da UFPA, servindo de plataforma para experimentações com
discentes e docentes, propiciando práticas artísticas, curatoriais e museográficas, debates e
experiências apresentadas por alunos e publicações, como o livro JÁ!Emergências
Contemporâneas, com debates, artigos e obras de artistas de várias faixas etárias e em
distintas condições de inserção no meio artístico e na sociedade.
Deste momento inicial de um assentamento de pesquisa, observamos a necessidade de
trabalhar com uma história da arte que não havia sido contada, por se constituir fora do
centro-sul do país. Ao constatarmos que boa parte da história da arte brasileira era pautada,
em sua maioria, em movimentos ocorridos entre Rio de Janeiro e São Paulo, (fato que começa
e se transformar nas últimas décadas), percebemos a emergência de focar em outra
perspectiva, trazendo à luz a produção e a voz de atores presentes na região, por meio de
pesquisa e de projetos extensivos, que davam visibilidade e espaço para trocas, diálogos e
circulação, fomentando, tanto a produção de artistas, quando de alunos que ampliaram suas
perspectivas, a partir de experiências estéticas, produção científica e diálogos com outros
elementos sociais.

410
Estas ações ultrapassaram o âmbito da pesquisa científica, indo para crítica de arte e
curadoria que estão intimamente relacionadas ao âmbito da inovação, principalmente nos
campos das artes visuais e do audiovisual a partir de mostras, ações de formação sequenciadas
como seminários, encontros, palestras e publicação de livros de caráter crítico-experimental,
muito afinados com a proposta da Coleção que aqui apresentamos, fomentando a produção e a
reflexão cultural na Amazônia.

Vários projetos se caracterizaram e solidificaram um modo de elaborar dialogal,


horizontal e dentro de uma perspectiva diferenciada da comum estrutura de poder, em que um
é detentor de poder e o outro é dado como aquele que deve “aprender” com o seu “mestre”.

Nessa perspectiva, distintos projetos foram desenvolvidos envolvendo discentes,


artistas e sociedade, movidos pelo desejo de debater, coletar e catalogar a produção local,
concorrendo a bolsas de fomento e subvenções que viabilizavam suas realizações. Assim, em
2008, a pesquisa foi contemplada com o Prêmio Bolsa FUNARTE de Estímulo a Produção
Crítica em Artes em que se desenvolveu o projeto Inscrições Videográficas no Pará,
recolhendo uma série de vídeos e executando uma primeira experiência crítica acerca da
videoarte no Pará, mapeamento inicial para a realização deste projetos subsequentes. Em
2010, a partir da projeto Percursos da Imagem na Arte Contemporânea e seus
Desdobramentos foi dada continuidade ao mapeamento e estudo na Região, especificamente
no estado, desdobrando-se, em 2012 e 2013, nos projetos Audiovisual no Ensino Médio:
videoarte paraense como conteúdo e material didático e Construções expressivas: videoarte
paraense transversalizada no Ensino Médio, com o apoio do edital do Programa de Apoio a
Projetos de Intervenção Metodológica (PAPIM), da Pró-Reitoria de Ensino de Graduação da
UFPA, para pensar procedimentos inovadores para a educação a partir de produção de
videoarte paraense pesquisados e aplicados de maneira a utilizar esse acervo em uma
dinâmica de compartilhar e propiciar reflexão sobre o que é realizado no estado, no caso,
atuando no Ensino Médio da Educação Básica, constituindo uma ação integrada com a
Escola de Aplicação da Universidade Federal do Pará, por meio do desejo de um ex-discente,

411
bolsista de IC, que naquele momento era professor da Escola de Aplicação da UFPA, Danilo
Baraúna, que solicitou meu apoio e investimento na parceria de realização do projeto, a partir
do acervo constituído nas pesquisas. Destas ações resultou a produção de dois materiais
didáticos em DVD-ROM que versam sobre a produção de videoarte paraense em uma
perspectiva didática, distribuídos aos professores de arte da rede pública de ensino, na
perspectiva de uma formação continuada. Apresentar este breve antecedente intenciona
revelar um pouco de como os projetos foram sendo realizados, em dialogo com o ensino e as
ações extensivas e nos movimentaram a pensar processos de compartilhamento do
conhecimento de forma horizontal, calcada em trocas e parcerias, ora com alunos, ex-alunos,
ora com os artistas participantes que cederam suas obras para comporem livros, DVD-ROMs,
ou ainda tomando parte em debates, palestras, workshops e experiências em que a questão da
construção atravessava uma ideia de conduta que busca subverter estruturas de poder. Nesse
sentido, vale destacar a fala de Thais Luzia Colaço ao tratar de Colonialismo/ Decolonialismo,
“Deste modo quer salientar que a intenção não é desfazer o colonial ou revertê-lo, (...) A
intenção é provocar um posicionamento contínuo de transgredir e insurgir. O decolonial
implica, portanto, uma luta contínua” (COLAÇO, 2012, p.8) e cremos ser uma posição
necessária e que irá se estabelecer nos processos desenvolvidos ao longo dos processos
estabelecidos na Coleção.

A Coleção Amazoniana de Arte da UFPA

Ao refletir acerca da produção de arte elaborada na Amazônia, ainda hoje é recorrente


a imagem de obras de povos indígenas, de artesanias, bem como de objetos de uso ritualístico
e doméstico provenientes de povos que habitaram a região em tempos passados. Compreender
que a região tem uma história longa, constituída por meio de séculos de atravessamentos e
vivências, com conhecimentos milenares trazidos a luz pela Arqueologia e pela Biologia faz-
se necessário e vem sendo revelado. Saberes que ainda sobrevivem, resignificados pelos
povos indígenas e ribeirinhos, que vão desde a geometria, até o conhecimento de ervas e
propriedades da natureza, presentes em raízes, cascas, etc. Não foram poucas as expedições

412
que atravessaram a região, registrando e coletando objetos e espécimes, que hoje figuram em
acervos e museus seja no sudeste do Brasil, seja no exterior. Todavia, hoje contamos com
projetos e instituições que atuam localmente, permanecendo com seus acervos na região.
Entretanto, ao pensar sobre essas práticas coloniais, optamos por nos concentrar num outro
tipo de atuação, contemporânea, de artistas que detém ou possuíram uma relação vivencial de
experiência na Amazônia, gerando obras que revelam outros aspectos da região e trazem um
questionamento sobre o viver nesse território. Obras que refletem uma relação política com o
local. A despeito de Belém deter museus significativos, vários constituídos em prédios
históricos, e ainda por contar com um Sistema Integrado de Museus, o que no projeto
apontava para uma proposição de ação ativa, ainda vivemos na sombra do Modernismo, este,
com todas as suas idiossincrasias, em que a maior parte destes espaços históricos e de arte
detém maior relação com o turismo do que com a produção efetiva de conhecimento por meio
de pesquisa. Assim, a Coleção nasce como um ambiente de reflexão acerca do papel de uma
coleção, e mais, sobre os procedimentos possíveis de ser engendrados nessa constituição para
além das obras colecionadas, mas como uma sucessiva proposição de diálogos e fluxos de
ações.

Ao conjecturar sobre uma coleção, inicialmente pensamos nos diversos artistas que
vieram trabalhando na Amazônia e que detiveram uma ação de relação íntima. Discorremos
na necessidade de constituir documentos, articular obras que, na maioria das vezes, terminam
por compor acervos nos grandes centros e no exterior, mas que pouco permanece na região.
Nesse sentido, começamos a ponderar sobre nossa relação de subalternidade, buscando refletir
sobre formas de inclusão, reflexionando sobre a Modernidade enquanto processo de
dominação, como nos aponta Antonio Pinto Ribeiro: “não situam o nascimento da
modernidade que dá origem ao colonialismo ocidental no século XVIII, mas recuam ao século
XVI e à modernidade da conquista ibérica das Américas.” (RIBEIRO, 2016, p.107). E mais:

Ao transferir para a dimensão pós-colonial a reclamação dos Direitos


Universais, a Teologia da Libertação, os movimentos indígenas, os

413
movimentos de ocupação de terra, novas cartografias das favelas, os autores
acompanham as experiências de constituição de projetos de museografia
local. (RIBEIRO, 2016, p.105)

Tal qual essa perspectiva apontada por Ribeiro, refletíamos sobre as inúmeras
coleções Brasilianas, que desenham-se Brasil afora, e conjecturamos sobre o que poderia vir a
ser uma coleção Amazoniana. Articulada localmente, e não fruto de mais outro processo de
apropriação e saque, mas de inflexão para um território mais sensível e perceptivo para lidar
criticamente com a colonização, buscando estratégias para, por meio de outra epistemologia
olhar a Amazônia e constituir proposições para esta. Assim, partimos do entendimento que:

Esse jogo de forças e posicionamentos políticos assumidos fazem-se


presentes no próprio nome da coleção. Ao adotarmos o “Amazoniana” há
uma crítica ao exotismo de outrora que direcionou a constituição de várias
coleções “brasilianas”. Longe de se estabelecer como simples
“colecionismo”, ou um “gabinete de curiosidades”, a Coleção pretende se
distinguir também por não agregar toda e qualquer produção artística
constituída sobre a Amazônia. Reunimos, isso sim, obras em que artistas, da
região ou de fora, projetam suas vivências no lugar, materializando-as em
forma de arte, geradas na dimensão do encontro com a região, revelando
múltiplas Amazônias – mas com um posicionamento ético diante do que se
vê. (MANESCHY, 2013, p.33)

Nesse desenho, foram elencados artistas para tomarem parte num primeiro momento
da Coleção, para a aquisição de obras de seis artistas que compunham um recorte temporal de
três décadas, conforme projeto original Amazônia, Lugar da Experiência. Para tanto, esse
primeiro projeto foi submetido a edital do Prêmio de Artes Plásticas Marcantonio Vilaça /
Prêmio Procultura de Estímulo às Artes Visuais 2010, da Fundação Nacional de Artes –
FUNARTE, sendo agraciado pelo prêmio.
Assim, em termos legais, foi a partir desse projeto de 2010 que a Coleção Amazoniana
de Arte da Universidade Federal do Pará, foi constituída, entretanto, entendemos que toda
uma série de empreendimentos anteriores foram extremamente necessários para esse ocorrido,
em especial as relações de confiança estabelecidas com artistas ao longo de projetos anteriores
e posteriores, que fomentam desdobramentos para a Coleção, que conseguiu reunir, nesse

414
primeiro momento, não apenas obras de seis artistas, mas de 30 artistas brasileiros, a partir da
doação e do estímulo a doação empreendida por parte da curadoria do projeto, em diálogos
diretos com os artistas, em um esforço coletivo para a constituição deste acervo.

Ao refletir sobre as estratégias, práticas, exercícios poéticos e as proposições


políticas decoloniais, em diálogo com os artistas, percebendo diferenças, características
próprias, foi necessário conjecturar tanto acerca dos procedimentos de poder externo e
interno, na busca de estratégias para constituir práticas decoloniais nos processos de formação
da Coleção, fomentando envolvimento de atores sociais, como artistas, pesquisadores, alunos
e comunidade, levando-os a compartilhar da necessidade de constituir coletivamente esse
acervo, por meio de participações que ultrapassavam apenas a doação, mas um
comprometimento com os processos gerados a partir dela e o fomento de novos fluxos para a
Coleção. Assim, percebemos que o que foi ativado ali foi uma “partilha do sensível”, como
denomina Rancière para o “sistema de evidências sensíveis que revela, ao mesmo tempo a
existência de um comum e de recortes que nele definem lugares e partes respectivas. (...) um
comum partilhado e partes exclusivas.”(RANCIÈRE, 2014, p.16).

E mais: “É um recorte dos tempos e dos espaços, do visível e do invisível, da palavra e


do ruído que define ao mesmo tempo o lugar e o que está em jogo na política como forma da
experiência”. (RANCIÈRE, 2014, p.16) . Experiência dos artistas em suas vivências na
região, experiência dos processos dialogais na formação da Coleção.

Ao totalizarmos mais de trinta artistas naquele momento da Coleção, foi proposto uma
rede de ações, articuladas entre duas mostras, uma mostra de cinema, intervenções urbanas,
um site e um seminário. A primeira mostra, Amazônia, Lugar da Experiência, ocorreu entre
outubro de 2012 e janeiro de 2013, no Museu da Universidade Federal do Pará – MUFPA,
aonde viria a ser depositado esse acervo, além de, ainda, alguns outros lugares da cidade,
como o Cinema Olympia, no qual ocorreu a exibição do filme Invisíveis Prazeres Cotidianos,
de Jorane Castro, bem como intervenções urbanas de Lucas Gouvêa e Éder Oliveira. Esta

415
primeira mostra detinha diversos trabalhos que apontavam para um olhar aguçado, político em
relação ao viver e fazer arte na Amazônia, como na obra Hagakure.

A obra de Miguel Chikaoka, Hagakure6 (2003) – uma caixa de luz com três imagens
negativas em formato médio, revelam em cada película, um diferente ângulo de captura do
olho do artista, imagens estas transpassas pelo espinho da palmeira Tucumã – , abre a mostra.

Chikaoka reativa os conceitos éticos de Hagakure16, evidenciando a total


entrega à experiência do ver, do enxergar, metaforizando o gesto de se
permitir atravessar, com o espinho, a imagem de seus olhos, na busca
extrema da liberdade para ver além. Ao ser inserida na coleção, e ao abrir a
exposição que a apresenta, esta obra detém importância conceitual, pois nos
confronta as certezas acerca do que acreditamos ao sugerir que faz-se
necessário transpassar a retina para enxergar mais além, para se ver à fundo
as coisas no mundo. (MANESCHY, 2013, p. 21)

Miguel Chikoka, Hagakure, 2003, Fotografia/objeto. Acervo: Coleção Amazoniana de arte da UFPA

16
Em Hagakure, o artista e educador que formou diversas gerações de fotógrafos na FotoAtiva, remete-
se a compilação filosófica organizada em 1716 pelo samurai Yamahoto Tsunetomo (1659-1719), em
queesteorganiza normas de conduta, indo de questões cotidianas a temas profundos da cultura oriental, como a
Cerimônia do Chá e o Zen Budismo.

416
Esta obra emblemática, aponta para uma necessidade especial de romper o olhar e
descortinar aquilo que estamos acostumados a ver, numa estrutura sedante, constituída ao
longo de anos de massacre pelas mídias e pelas estruturas neoliberais e ver mais além do
comum. Daí, a escolha desta obra para abrir a primeira mostra, como um convite ao visitante
de se permitir romper a membrana, a proteção e descobrir outras perspectivas sobre o que o
cerca. Nesta mostra, dezenove artista ocuparam as salas do museu, criando ambientes de
grande força e motivação para um aprofundamento no conhecimento da história da região e
da arte na região, como na obra de Roberto Evangelista, que nos conclama a um denso
processo de alteridade e descoberta de uma obra pouco conhecida pelas atuais gerações, com
o seu Matter Dolorosa - in Memoriam II (1978), filme em que vemos o artista abordas as
formas e conhecimentos milenares dos povos autóctones remanescentes. “Depois do
massacre, só restaram os restos, os riscos e restos da memória. Aí, onde guardamos as falas
dos velhos, para não esquecer do inicio, de boca a ouvido”. São falas e imagens de extrema
potência, em cenas de performance e partilha, em processos ritualísticos em que colonialismo,
cosmogonia e política são ativados, de forma a propor uma resistência aos massacres culturais
impostos aos povos da floresta.

417
Roberto Evangelista, Matter Dolorosa - in Memoriam II, 1978, filme. Acervo: Coleção Amazoniana de arte da
UFPA

Já na segunda exposição, Entre Lugares [Amazônia, Lugar da Experiência], realizada


de dezembro de 2012 a fevereiro de 2013, cujo conteúdo, também de caráter político,
apontava para micropolíticas em que história, memória e processos de subjetivação foram
vetores responsáveis para os projetos artísticos, como na sugestão de performance Aparelho
para escutar sentimentos, (2008), de Armando Queiroz, “em que, de forma lúdica e singela, o
artista disponibiliza um copo para estimular o contato, a aproximação entre os espectadores,
visitantes e obra, propondo posicioná-lo junto ao coração”. (MANESCHY, 2013, p. 104-105).

Armando Queiroz, Aparelho para Escutar Sentimentos, 2008, fotografia e objeto. Acervo: Coleção Amazoniana
de arte da UFPA

Junto a estas mostras, foi realizado um ciclo de seminários, o Seminários


Conversações: Olhares sobre a Amazônia 1 e 2, ambos no Museu da UFPA. No primeiro
encontro no dia 28 de novembro de 2012, contou com a participação dos artistas e

418
pesquisadores Armando Queiroz, Jorane Castro e Rosangela Britto, bem como dos
pesquisadores Gil Vieira e Vânia Leal e no segundo momento, no dia 21 de dezembro de
2012, reuniu artistas e pesquisadores e em parceria com a Casa Fora do Eixo Amazônia e Pós
Tv, (que transmitiu o debate ao vivo), sendo os artistas Danielle Fonseca, Maria Christina e
Vicente Cecim, e os os teóricos Ernani Chaves e João de Jesus Paes Loureiro. Esses eventos
serviram não apenas para trazer mentes distintas que pensam e produzem na região, mas para
viabilizar a troca e o acesso a informação para o público em geral. Também, dentro dessa
perspectiva, foi constituído um site www.experienciamazonia.org, (lançado em 13 de
dezembro de 2012), em que a produção toda do acervo de artes visuais da Coleção está
acessível para ser assistida, bem como textos de curadores e dos próprios artistas estão
disponíveis para leitura e download, reiterando a perspectiva de compartilhamento e
circulação de informações de maneira livre e acessível.

Amazônia, Lugar da Experiência, site publicado em 2012. Acervo: Coleção Amazoniana de arte da UFPA

419
Somou-se ainda o livro Amazônia, Lugar da Experiência: Processos Artísticos na
Região Norte dentro da Coleção Amazoniana de Arte da UFPA, lançado em 2013, a partir da
premiação do edital Conexões Artes Visuais – Minc Funarte Petrobrás, que viabilizou, em
parceria com a UFPA a realização de um livro documento em que obras, mostras e textos de
pesquisadores somam-se no pensar a região.

A partir de 2015, em associação com Yorrana Maia, da Universidade da Amazônia,


foi traçada uma estratégia de distribuição do acervo do estilista paraense André Lima, por
diversos acervos do país, como do Museu de Arte do Rio de Janeiro – MAR, além de
selecionar diversas peças, como roupas, adereços, objetos e documentos dos mais variados
tipos, como convites, estudos, etc. Este acervo constituiu a Seção Moda da Coleção, vem
sendo trabalhado por Marcela Cabral, criando novas perspectivas e sendo localizada no
acervo do curso de museologia da Faculdade de Artes Visuais da UFPA-FAV, criando espaço
para discentes de museologia, artes visuais e moda. Lá, na FAV, também está depositado e em
processo de construção o ]Arquivo[, no qual toda uma centena de vídeos catalogados em
pesquisa encontram-se depositados. O ]Arquivo[ também coleciona documentos dos artistas
presentes na Coleção, bem como publicações significativas acerca de fatos e eventos
ocorridos na Amazônia. O processo da constituição desse arquivo é realizado de forma
coletiva, recebendo doações de diversas procedências, visando olhar para o viver e o fazer
estético, ético e político nesse território, dentro de uma perspectiva decolonial. Pensar
criticamente a produção em artes visuais realizada na Amazônia, a partir de pesquisas
engendradas dentro de um procedimento diferenciado, dialogal e horizontal, de acordo com
estratégias para subverter as relações de poder que ainda estabelecemos em relação ao outro,
nos leva a buscar transcender os padrões de poder da colonialidade que ainda nos dias atuais.

Referências bibliográficas

COLAÇO, Thais Luzia. Novas Perspectivas para a Antropologia Jurídica na América


Latina: o Direito e o Pensamento Decolonial. Florianópolis : Fundação Boiteux, 2012.

420
Disponível em < https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/99625/VD-Novas-
Perspectivas-FINAL-02-08-2012.pdf?sequence=1&isAllowed=y >
p.7-8 (nota de rodapé)

RANCIÈRE, Jacques. A Partilha do sensível: Estética e política. São Paulo: Exo


experimental.org/Editora 34, 2014.

RIBEIRO, Antônio Pinto. Podemos descolonizar os museus? Geometrias da Memória:


Configurações Pós-Coloniais. Porto: Edições Afrontamento Ltda. 2016.

421
O SAMBA DE RODA COMO DIÁLOGO UNIFICADOR ENTRE O CORPO E A
PALAVRA

Ádila Manuele de Souza Barretto

Resumo: Este trabalho versa sobre impressões e considerações que entrelaçam o


conhecimento acadêmico e experiências do coletivo “A corda Samba de Roda” em suas
vivências e mobilizações sociais, o samba, como patrimônio imaterial, os corpos e os diálogos
com a comunidade, que atravessa questões de territorialidade e resistência. Apontamos a
importância da consagração desta manifestação no rol dos bens culturais que alçaram a
categoria de patrimônio imaterial e o registro na memória popular sobre uma identidade
coletiva, propondo indagações afim de romper acomodações.
Palavras-chave: samba, patrimônio imaterial, musealização, coletivo
Abstract: This work seeks to convey impressions and considerations that interweave the academic
knowledge and experiences of the collective "A Corda Samba de Roda " in their experiences and
social mobilizations, samba, as immaterial patrimony, bodies and dialogues with the community, that
cross issues of Territoriality and resistance. We point out the importance of the consecration of this
manifestation in the list of cultural goods that have promoted the category of intangible heritage and
the registration in the popular memory of a collective identity, proposing inquiries to break
accommodation.

Key-words: samba, Immaterial heritage, Musealization, collective

422
O corpo, o Samba e a Herança Ancestral.
O ato de transmitir o conhecimento de fatos, ritos, lendas e costumes através da
oralidade é característico dos povos tradicionais africanos. Quem expressa a palavra é aquele
que tem o conhecimento e o poder de proferi-la, quem a diz é responsável pelo poder de
energia que a palavra carrega, sustenta o mundo. A palavra ganha vida no corpo, pela boca e o
ouvido, tanto do mestre quanto do discípulo. A palavra não é um jogo efêmero sem potência
ativa, ela sustenta a materialidade dos acontecimentos. Corta, aduba, floresce e renova as
coisas do mundo. Através dela podem-se erguer e destruir nações. A palavra estabelece ciclos,
temporalidades e territorialidades.

Quando falamos de tradição em relação à história africana, referimo-nos à


tradição oral, e nenhuma tentativa de penetrar a história e o espírito dos
povos africanos terá validade a menos que se apóie nessa herança de
conhecimentos de toda espécie, pacientemente transmitidos de boca a
ouvido, de mestre a discípulo, ao longo dos séculos. Essa herança ainda não
se perdeu e reside na memória da última geração de grandes depositários, de
quem se pode dizer são a memória viva da África. (HAMPATÉ BÂ, 2010,
p.167).
A palavra vive no corpo, é no corpo que a palavra- enquanto tradição – ganha vida -
lhe dá veracidade e força que permeia e desperta em cada indivíduo os elementos e
transcendem o fenômeno do dizer e a arte de ouvir – a agregação social, sociabilidade, o estar-
junto. Pensar o corpo como via de comunicação não é um debate novo, uma vez que nossos
primórdios (pré-históricos) já utilizavam desses artifícios. Pensar num corpo que pode
possibilitar a comunicação ou a própria fala numa sociedade ocidental, que nos conduz a cada
dia ao processo de engessamento do corpo, principalmente o feminino. Perceber o corpo em
manifestações populares, como o samba de roda, é ter acesso á um corpo-ritual, o corpo que
celebra o coletivo e a história popular.

A rigor, todas essas danças faziam derivar a sua organização formal


(incorporando, evidentemente os elementos específicos de cada região) do
samba ou batuque africano, trazido para o Brasil por escravos originários de
Angola e do Congo, principalmente (20). Viajantes portugueses (por
exemplo, o escultor Alfredo Sarmento) referem-se ao batuque africano como
uma forma teatralizada, um jogo cênico, através do qual se narram a uma

423
virgem “os prazeres misteriosos do casamento” . Embora se afirme que esta
forma jamais foi evidente no batuque ou no samba brasileiros, a verdade é o
samba, ainda hoje dançado em festas populares ou rodas (não-religiosas)
realizadas em terreiros da Bahia, conserva traços do que poderia ser
mimodrama : gestos das mãos, paradas , aceleradas, caídas bruscas,
sugestivos requebrados dos quadris , constituem uma espécie de
significantes mimétricos para um significado (já recalcado) que tanto pode
ser a história de uma aproximação ou um contato quanto qualquer outro fato,
em que o corpo seja dominante. (SODRÉ,1998, p. 29 e 30)
No corpo e pelo ritmo a palavra toma movimento: torna-se dança. Aqui ela manifesta-
se em samba de roda:

Figura 8: Vivência do Coletivo na Pça Marechal Deodoro, conhecida como Praça das Mãos, Salvador - BA
Foto: Coletivo A Corda Samba de Roda, 2015.
.
O diálogo dos corpos no sistema de valores de matriz africana é um fenômeno
constante entre o cotidiano e o sagrado. Dança-se em coletivo de modo improvisado, e não
apenas em pares ou unidades. É comum nas sociedades tradicionais as danças em círculos ou
rodas, como que reproduzindo o movimento da vida, de forma cíclica, a coletividade
prevalece. Esse processo nos permite analisar de forma singular tais manifestações como o
samba de roda, que ao ritmo da percussão, que é a “palavra do tambor” e não apenas
onomatopeias aleatórias, onde o rito também é presente e evoca-se a presença da força

424
ancestral dentro dos contextos afrodiásporicos. A polirritmia do movimento corporal africano
é sagrada, a dança é celebração de nascimento, de morte, do plantio e colheita. O ritual do
samba de roda é preservado na oralidade e vivência. A palavra que ali é proferida, ecoa como
canto tanto quanto louvor, ganha vida e do efêmero no corpo nasce movimentos improváveis,
por repetição (tal como um mantra), interação territorial e diálogo corporal, elementos que
livros (eurocêntricos) não poderão ensinar, pois o ciclo onde o saber popular transita é a
partilha social. Também não é comportado neste aprendizado a ideia de um “samba certo ou
errado”, haverá de fato o samba, com variações de um território para o outro.

“O samba é a vida, é a alma, é a alegria da gente (...) lhe digo, eu estou com as pernas
travadas de reumatismo, a pressão circulando, a coluna também, mas quando toca o pinicado
do samba eu acho que eu fico boa, eu sambo, pareço uma menina de 15 anos.” (D. Dalva
Damiana de FREITAS17.)

Que corpo é esse que se movimenta junto á palavra? O corpo é a palavra? Que corpo é
esse que pra além de “corpo físico” emite um saber do agora e do passado, ancestralidade
herdada de uma matriz, ancestralidade e passado comum partilhado.

O corpo exigido pela síncopa do samba é aquele mesmo que a escravatura


procurava violentar e reprimir culturalmente na História brasileira: o corpo
negro. Sua integração com a música, através da dança, já era evidente no
Quilombo dos Palmares: “Dispostas previamente as sentinelas, prolongam
suas danças até o meio da noite com tanto estrépito batem no solo, que de
longe pode ser ouvido”(1).(SODRÉ, 1979, p. 11 )
O corpo negro é a herança viva, o maior testemunho documental da cultura material
remanescente da história dos povos africanos. Este corpo é o âmbito que para além das
definições vitimizadoras, experimenta a liberdade e ganha visibilidade no exercício do
movimento no ritmo através da música e da palavra.

Como todo ritmo já é uma síntese (de tempos), o ritmo negro é uma síntese
de sínteses (sonoras) que atesta a integração do elemento humano na
temporalidade mítica. Todo som que o indivíduo humano emite reafirma sua

17
http://sambadedalva.blogspot.com.br/2015/11/samba-de-dona-dalva-convida-para.html

425
condição de ser singular, todo ritmo a que ele adere leva-o a reviver o saber
coletivo sobre o tempo, onde não lugar para angústia, pois o que advém é a
alegria transbordante da atividade, do movimento induzido. (SODRÉ, 1998,
p.21)
O exercício da liberdade proporcionado pelo samba suplanta o aprisionamento mental
e a palavra reforça o poder, o esquecer do mundo para lembrar de si e dos seus e suas, da sua
identidade pessoal-coletiva e pertencimento a uma comunhão afrodiásporica e africana sem
misticismos irreais.

Por esse motivo a maior parte das sociedades orais tradicionais considera a mentira
uma verdadeira lepra moral. Na África tradicional, aquele que falta à palavra mata sua pessoa
civil, religiosa e oculta. Ele se separa de si mesmo e da sociedade. Seria preferível que
morresse, tanto para si próprio como para os seus.

Como patrimônio a ser vivenciado, o samba de roda destaca-se por ser patrimônio
vivo. A natureza da sua imaterialidade preenche todos os espaços, todos os vazios interiores e
exteriores no espaço, territorializando-os em comunidade que partilha em uníssono a sua
identidade exercida através da liberdade de dizer a palavra cantada e se libertar os gestos sem
travas sociais externas à sua lógica.

Figura 2: Debate com mulheres do Samba de Roda Suerdick, em Paripe/Tubarão Salvador-Ba Foto:
Acervo coletivo A Corda Samba de Roda, 2015.

426
Como forma de preservação do patrimônio imaterial, as vivências da tradição são um
caminho de musealização descolonizada e estratégias de preservação que impactam as novas
gerações e reforçam a valorização e a reprodução dos saberes pelos detentores da memória.
Assim como as mestras e mestres do samba de roda,onde atualmente se preocupam com a
salvaguarda do samba, cosmovisionando desde já a continuidade do processo cultural e
patrimonial, para que a história possa ser contada com fundamentos precisos e reais.

O que se encontra por detrás do testemunho, portanto, é o próprio valor do


homem que faz o testemunho, o valor da cadeia de transmissão da qual ele
faz parte, a fidedignidade das memórias individual e coletiva e o valor
atribuído á verdade em uma determinada sociedade. Em suma: a ligação
entre o homem e a palavra. (A HAMPATÉ BÂ, 2010).

Este potencial pode ser verificado na Oficina Patrimônio e Cultura com a Mestra Ana
Olga que ocorreu em Tubarão, no ano de 2015, onde os integrantes do coletivo “ A Corda
Samba de Roda”(sambadeiras, sambadores, tocadoras(es)) puderam compartilhar junto á
comunidade do subúrbio ferroviário ,independente do grau de vínculo, seja ele direto ou
indireto, uma experiência única onde o registro dessa memória se perpetua até hoje em vossas
cabeças e corpos, não era mais o nome do coletivo que atuava, e sim o corpo imaterial do
samba, que sem dúvidas é maior, Mestra Ana Olga nos diz que “O Samba de Roda é uma
roda só” uma vez que estamos falando de povo, território e identidade, onde crianças ,adultos
e idosos comungam de um diálogo corporal ímpar.

A vivência do samba de roda traz o aprendizado pela razão e pela emoção, pela
palavra, corpo e afeto característicos da experiência estética que implica a presença do ser em
sua totalidade. Na troca entre o novo e o antigo, o passado é renovado e o novo encontra seu
fundamento e projeto de futuro. Das trocas vividas nesta vivência observamos que “Se a fala é
força,é porque ela cria uma ligação de vaivém (yaa-warta,emfulfulde)que gera movimento e
ritmo, e portanto, vida e ação.”(HAMPATÉ BÂ, 2010), unificando diversos e diferentes
indivíduos através de um passado comum partilhado na palavra e no corpo.

427
Figura 3: Samba de Roda na praça de Tubarão
Foto: Acervo coletivo “A Corda Samba De Roda”

O Coletivo A Corda Samba de Roda


Criado em 2013 O coletivo “A Corda Samba de Roda” atua para a salvaguarda do
samba e para celebração ancestral, com uma estratégia que não envolve amostras e exibições
voltadas para o encantamento de público externo, com um formato espetacular ao modo dos
antigos grupos parafolclóricos. Neste coletivo, o samba é um modo de fazer evocar,
compreender e preservar a tradição inerente aos nossos corpos negros. É fazer evocar a
cultura e tradição através da criatividade artística e na contemplação desta presença através de
aspectos inconscientes e imemoriais, porém vivos em nosso corpo.

A importância desta prática e da sua reprodução é atestada pelo fato de que ainda hoje
a prática do samba de roda incomoda muita gente, inclusive muita gente negra que
desconhece sua herança, e estranha a presença do eco de um tambor em praça pública,
reproduzindo a presença do estigma que ainda recai sobre a herança africana. Uma mulher
trajando indumentária da saia de chita girando numa roda e de cabelo crespo ainda incomoda,

428
causa estranhamento, não como algo anacrônico, mas como uma manifestação deslocada do
cotidiano; um cotidiano que sempre foi reservado à espaços pequenos, privados e periféricos.

Espanto e atração, o batuque provoca “como em toda história do negro no Brasil, as


reuniões e os batuques eram objeto de frequentes perseguições policiais ou de antipatia por
parte das autoridades brancas, mas a resistência era hábil e solidamente implantada em
lugares estratégicos, pouco vulneráveis”. (SODRÉ, 1998, p.14).

Figura 4: Roda de samba na praça de Tubarão com Mestra Ana Olga do Samba Suerdick
Foto: Coletivo A Corda Samba de Roda, 2015.

A cultura africana e suas variações afrodiásporicas utiliza da sabedoria “GRIÔ” para


condução e execução de seus ritos e festas, é uma cultura de resistência, tudo que nossos
ancestrais fizeram a muito custo atravessa séculos, mesmo que isso não seja contado
eurocentricamente.

O samba não é "científico" nos moldes da modernidade, mas, não deixa de ser uma
ciência como modo legítimo do fazer. Uma roda de samba pode ser compreendida como um
processo de musealização descolonizado, na medida que preserva pela atualização, realização,
restaurando e preservando a prática, documenta pela palavra dos mais velhos registrando a
origem e o saber antigo, comunica a outros a presença e a realidade de um povo que é passada

429
através da sua tradição , do seu modo de existir e criar, e principalmente, forma e educa
porque quem possui a palavra é o mais velho, o detentor do conhecimento ancestral, e por fim
valoriza a experiência de uma tradição, de uma identidade. Falar de museologia é falar dos
valores que as civilizações transmitem através das gerações e nos confere humanidade e seu
legado.

A tradição oral é a grande escala da vida, e dela recupera e relaciona


todos os aspectos. Pode parecer caótica àqueles que não lhe descortinam o
segredo e desconcertar a mentalidade cartesiana acostumada a separar
tudo em categorias bem definidas. Dentro da tradição oral, na verdade, o
espiritual e o material não estão dissociados. Ao passar do esotérico para o
exotérico, a tradição oral consegue colocar- se ao alcance dos homens, falar-
lhes de acordo com o entendimento humano, revelar- se de acordo com as
aptidões h umanas. Ela é ao mesmo tempo religião, conhecimento, ciência
natural, iniciação à arte, história, divertimento e recreação, uma vez que
todo pormenor sempre nos permite remontar à Unidade
primordial.(HAMPATÉ BÂ,2010, p.169)

Figura 5: Sambadeiras do coletivo “A Corda Samba de Roda”,


Foto: Coletivo A Corda Samba de Roda, 2015.

430
No samba de roda a palavra então é carregada de experiências, sabedoria de uma
“magia museal” que transforma o ordinário em extraordinário, o comum em peculiar,
colocando a produção humana no ciclo da natureza, da vida e do território.

Durante a recepção/vivência do Samba Suerdick em Paripe/Tubarão, onde a


comunidade fora contemplada, foi possível observar sutilidades de grandes efeitos. A
realidade das periferias em geral, quando transmitida por fontes midiáticas prevalece há
décadas, por conveniência da supremacia racista e exclusiva, precisamente me referindo sobre
as periferias/comunidades de Salvador/Ba que são as nossas periferias soteropolitanas ,
esquece-se de contar sobre os frutos e trabalhos comunitários que são realizados entre adultos,
jovens e crianças, não por menos , sabe-se que não é vantajoso que se descubra potências nas
periferias e suas ramificações, que são de grandes efeitos para o agora e para o futuro.

Falando-se especificamente da comunidade de Tubarão, que é banhada pelo mar, por


esse mesmo motivo denomina-se também uma comunidade ribeira, na qual muitos de “seus
filhos e filhas” sobrevivem ainda da maré, alguns ainda da pescaria, com seus barcos
ancorados no mar do subúrbio ferroviário que ali se estende, o labor das marisqueiras que na
própria praça junto aos pescadores vendem para comunidade o fruto do mar e do seu trabalho
por valores, tendo como referência o comércio tradicional, irrisórios. Tem os “carrinhos de
mão” que circulam pela comunidade com frutas, verduras e ovos.

Projetos sociais sem apoios governamentais também são fontes potentes de educação e
ensino informal para as crianças e jovens, tratando-se do coletivo “ A Corda Samba De Roda”
podemos identificar os trabalhos desenvolvidos com muito empenho por Natureza França,
fundadora do coletivo, desde 2013 e sua trincheira que deriva de diversas outras adjacências
de Salvador afim de mobilizar os trabalhos voltados para o samba de roda , onde dentre tantas
coisas para além , se aprende a responder o couro, a elaborar músicas de samba (corridos ou
chulas), festa das caretas que já é tradição da própria comunidade, escuta de cd’s de samba ou
da cultura popular como jongos e cocos , e desde quando se inicia o trabalho , encontra-se
obstáculos, pois não há apoio de recursos financeiros ou governamental, porém encontramos

431
mais caminhos e vontade do fazer do que a própria dificuldade, não que elas não existam ,
mas tendo a fundamentação do samba de roda da Bahia , as saias de chita que aos poucos
foram sendo compostas com recurso financeiro próprio, com muito esforço, tecidas por
costureiras da própria comunidade que auxiliaram bastante nesse processo.

Figura 9 " A Corda Samba De Roda" Ensaio aberto em Tubarão


Foto: Acervo do coletivo.

Tudo isso é transmitido através da experiência do coletivo do samba. Sabemos que


quando sambamos emanamos uma simbologia insondável, de sabedoria, valores e
humanidade. Como afirma (LEITE, 1995/1996, p. 110) “as principais instâncias das práticas
históricas são dotadas de alguma dimensão ancestral, tais como: preexistente e suas
interferências na sociedade, divindades e criação do mundo; natureza, homem e sociedades;
espaço e tempo; conhecimento;”

Relatos de integrantes do coletivo “A Corda Samba de Roda” :


Relato de Thaís Gouveia, sambadeira e integrante do coletivo “A Corda Samba de
Roda”.

“Desde que ingressei no “A Corda Samba de Roda”, tem sido muito aprendizado,pois
é um coletivo que busca estar em contato com os mestres e mestras do samba de roda, e desde

432
então participei de várias atividades, dentro da cidade de Salvador e fora da cidade também,
o que só enriquece a relação ancestral com samba, com meu corpo , minha história, minha
vida. Um dos momentos mais especiais que nós vivenciamos foram as idas pra festa da Boa
Morte onde a gente pode estar em contato com Dona Dalva Damiana que é uma grande
mestra do samba e que a gente pode participar junto com elas(Samba Suerdick) no cortejo
que elas saem na rua; E isso foi ver o quanto a gente não sabe ainda né?

Sobre a cultura popular, sobre o samba de roda, sobre toda essa magia, toda essa
ciência e é só aprendizado estar com elas, sambar com elas, compartilhar esses momentos e
poder valorizar e saber né? Como essas mestras pensam, como elas veem esse samba, como
elas veem nós , os mais jovens que estamos aqui pra fortalecer também , outro momento
muito importante acredito que pro “A Corda” também foi quando as sambadeiras do samba
de roda da Suerdick de Dona Dalva vieram(á Salvador) e fizeram uma vivência lá em
Tubarão, foi algo muito especial, e que a própria comunidade de Tubarão pode participar, e
conhecer Dona Aurinda também , é outro momento muito especial , que é uma senhora que
toca com prato né? E ela mora na ilha e ter essa relação com mar com a ilha que é uma
região tão forte né? E saber que ela resiste tocando o samba dela no prato e só aprendizado
mesmo né? Estar com Natureza que é uma mulher que realmente tem uma missão, máximo
respeito a ela e todas as companheiras do coletivo, e apesar de ser um coletivo que é liderado
por mulheres tem os homens que são companheiros-amigos e que fortalecem tocando também
e contribuindo pra essa construção da identidade mesmo do samba de roda , é isso .”

Relato de Ádila Barretto, sambadeira e integrante do coletivo “ A Corda Samba De


Roda”

“O samba me incorporou uma nova perspectiva de vida, eu já gostava de dançar, dançava


bastante , mas o corpo que descobri sambando é outro, ele é de improviso e de força, é
diferente de coreografia ou estético, inclusive são palavras que não acredito que combine ou
tenha relação direta com isso, é mais, digo de forma real, é alegria, é mais pela história do que
pela pessoalidade-ego, aliás isso é uma coisa que se precisa de bastante cuidado, é humildade,

433
o samba ensina humildade, conquista , território, afirmação de identidade, com classe e
espontaneidade, ser quem é , e as portas que o coletivo “ A Corda Samba de Roda” me abriu
um caminho circular, eu agradeço demais por ter conhecido Natureza, que é uma mulher que
não para, que não desiste, ela nos diz que o samba é missão.”

Conclusão

Este texto propôs uma discussão sobre as possibilidades de transformação reais que o
samba de roda oferece enquanto patrimônio imaterial e, também, como os coletivos assim ao
modo de “A Corda Samba de Roda” atuam na sua salvaguarda, e na sua relevância dentro das
periferias soteropolitanas...

Salientei aqui, o samba enquanto força motivadora, descolonizadora e educacional


dentro e fora dos seus âmbitos de produção midiática, pois a oralidade que emana força na
palavra manifestada em corpos que dançam e ecoam as linguagens e mensagens para além do
que um livro ou um museu tradicional possam comportar.

Compreendendo os contextos culturais afrodiásporicos baseados e fundamentados na


tradição ancestral africana é que podemos captar os processos do corpo-ritual, um corpo que
celebra através dos relatos e experiências o saber oral do samba em comunhão com mestras
do samba que se fizeram presentes no coletivo “A Corda Samba de Roda” para compartilhar
com a comunidade do subúrbio ferroviário as práticas cotidianas, a história popular e coletiva
e a ocupação de territórios para ampliar horizontes da juventude vindoura, agindo tanto
enquanto salvaguarda da memória, quanto em celebração do corpo livre, liberto de tudo que
na cultura ocidental é vergonhoso ou inadequado.

Aqui descrevemos o corpo-território da evocação ancestral e nota-se que a


descolonização da história dos povos em diáspora precisa do movimento livre, pra além do
que quatro paredes possam conter/contar como memória ou patrimônio.

434
Referências bibliográficas

BÂ, A Hampaté. A tradição viva. In Metodologia e Pré-História da África. Brasília, Unesco,


2010.

LEITE, Fabio. Valores civilizatórios em sociedades Negro-Africanas. São Paulo, Africa:


Revista do Centro de Estudos Africanos,1995/1996.

SODRÉ, Muniz. Samba, o dono do corpo. Rio de Janeiro, Mauad , 1998.

IPHAN, Samba de Roda do Recôncavo Baiano, 2006, Brasília/DF

Entrevistas :
Diálogo com Natureza França, fundadora e coordenadora do coletivo A Corda Samba de
Roda.
Diálogos com sambadeiras do Coletivo A Corda Samba de Roda

435
ARTE E CULTURA: MUSEUS AUXILIANDO NO ENTENDIMENTO E NA
CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE

Gabriela Sousa Ribeiro*


Bárbara Boaventura Friaça**

Resumo: Diante da importância do auto reconhecimento como produtor e promotor de cultura, parte
integrante e potencial da construção do pensamento e da sociedade, defendemos que estabelecer ponte
entre parcelas diversas da população, entre as quais aquelas com menos acesso a espaços de cultura e
de memória formais, seja uma ferramenta crítica de empoderamento sociocultural. Desenvolvemos, de
agosto a dezembro de 2016, um projeto de extensão para fomentar o contato da comunidade da
Baixada Fluminense, alunos do IFRJ e comunidade em geral, com espaços culturais e espaços de
memória da cidade do Rio de Janeiro, exercitando a reflexão crítica sobre as manifestações artísticas,
culturais e sociais ao longo do tempo e suas reverberações na contemporaneidade. O projeto se deu a
partir de um curso constituído de cinco encontros, sendo o primeiro em sala de aula para discutir
conceitos e problemáticas do campo da cultura, arte e memória, propondo reflexões em uma aula
dialógica; e os demais em visitas-aulas a quatro museus da cidade do Rio de Janeiro. É objetivo deste
trabalho analisar este projeto, sua pertinência e contribuições. Para tal, utilizamos uma abordagem
descritiva e exploratória, a partir de observações assistemáticas e participantes da aula inicial do curso
e das visitas-aulas aos museus da cidade do Rio de Janeiro.

Palavras-chave: acervos de museus; construções identitária e cidadã; disputas de poder; lugar de fala.

Abstract: Considering the importance of self-recognition as a producer and promoter of culture, an


integral and potential part of the construction of thought and society, we advocate establishing a bridge
between diverse portions of the population, including those with less access to formal culture and
memory spaces, is a critical sociocultural empowerment tool. From August to December 2016, we
developed an extension project to foster the contact of the community of Baixada Fluminense, IFRJ
students and community in general, with cultural spaces and memory spaces of the city of Rio de
Janeiro, exercising critical reflection about artistic, cultural and social manifestations over time and
their reverberations in contemporary times. The project was based on a course consisting of five
meetings, the first one in the classroom to discuss concepts and problems in the field of culture, art and
memory, proposing reflections in a dialogic classroom; And the others in class visits to four museums
in the city of Rio de Janeiro. The objective of this work is to analyze this project, its pertinence and
contributions. For this, we use a descriptive and exploratory approach, based on non-systematic
observations and participants in the initial class of the course and the visits to the museums of the city
of Rio de Janeiro.

Key-words: museum collections; identity and citizen constructions; power disputes; speech place.

436
Introdução
Diante da importância do auto reconhecimento como produtor e promotor de cultura,
parte integrante e potencial da construção do pensamento e da sociedade, defendemos que
estabelecer uma ponte entre parcelas diversas da população, principalmente, entre as quais,
aquelas com menos acesso a espaços de cultura e de memória formais, seja uma ferramenta
crítica de empoderamento sociocultural.
Neste sentido, corroboramos com García Canclini (2015), que problematiza que ainda
que os bens e espaços culturais considerados patrimônio cultural sejam vistos como
representantes da memória e da cultura de uma nação, à medida que desce o nível de
escolaridade, que, no caso brasileiro, está relacionado à classe social com baixo poder
aquisitivo, esses valores são menos apreendidos e significativos. Conforme García Canclini,
“ainda que o patrimônio sirva para unificar cada nação, as desigualdades em sua formação e
apropriação exigem estudá-lo também como espaço de luta material e simbólica entre as
classes, as etnias e os grupos” (GARCÍA CANCLINI, 2015, p. 195).
Entre os motivos para essa diminuição da apreensão e significação, estão a desigual
oportunidade de acesso a tais bens, além do fato deles, geralmente, serem selecionados para
ocupar tal destaque na história, na cultura e, consequentemente, na memória de um povo por
uma elite que não seleciona objetos e espaços mais representativos das classes populares.
Com base nesse entendimento, desenvolvemos um projeto de extensão no IFRJ
(Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro), que buscou ponderar
esses assuntos junto à comunidade da Baixada Fluminense. Desenvolvido no período de
agosto a dezembro de 2016, o projeto objetivou fomentar o contato da comunidade da
Baixada Fluminense, alunos do IFRJ e comunidade em geral, com espaços culturais e de
memória da cidade do Rio de Janeiro, exercitando a reflexão crítica sobre as manifestações
artísticas, culturais e sociais ao longo do tempo e suas reverberações na contemporaneidade,
buscando problematizar suas relações com a sociedade e o cotidiano.

437
O direcionamento em especial aos moradores da Baixada Fluminense, região
periférica à capital e também localidade do campus em implantação do IFRJ, o campus
Belford Roxo, se deu pelo estigma sociocultural que as pessoas dessas cidades enfrentam.
A Baixada Fluminense é composta pelos municípios de Duque de Caxias, Nova
Iguaçu, São João de Meriti, Nilópolis, Belford Roxo, Queimados e Mesquita, todos ao norte
da cidade do Rio de Janeiro. Essas cidades são consideradas cidades-dormitório18, em que os
habitantes passam o dia inteiro fora desses locais para trabalhar e/ou estudar e regressam à
noite apenas para dormir e começar tudo novamente no dia seguinte. Essa característica
somada às condições urbanísticas precárias na região e à pouca oferta de equipamentos
culturais nesses municípios, levam a uma negação da cidade pela sua população. Em
contrapartida, quando pensamos na cidade do Rio de Janeiro, percebemos que moradores de
áreas periféricas mantém, predominantemente, uma relação de passagem com o centro do Rio
de Janeiro e seus logradouros histórico-culturais e, de muitas formas, são alijados dos espaços
culturais institucionalizados na capital.
Nos termos de Lefebvre (2010), percebemos que o direito à cidade não faz parte da
realidade de grande parte da população da Baixada Fluminense. Seja a cidade de moradia seja
a em que se trabalha e/ou estuda, as pessoas não são convidadas a vivenciar o cotidiano dessas
cidades e se apropriar dos espaços socioculturais que a compõem.
Assim, estimular a ocupação e a visão crítica dos moradores das áreas periféricas a
equipamentos culturais institucionalizados foram fatores decisivos para a escolha das visitas
na região central do Rio de Janeiro, sendo a região com maior concentração de espaços
culturais. Ademais, a região central é capaz de evidenciar processos históricos de alijamento,
apresentando uma ponte para muitas camadas sobrepostas de passado.

18
Figuerêdo (2004) explica que esse fenômeno predomina na Baixada Fluminense desde a década de 1950,
quando, após um período de prosperidade rural ligada, principalmente, à produção de laranja, os grandes
latifúndios são subdivididos em pequenos lotes de terra carentes de infraestrutura para moradia de baixo custo.
Esses lotes são ocupados por muitos imigrantes que, em busca de melhores condições de vida no Rio de Janeiro,
não conseguem pagar pela moradia na cidade e encontram na Baixada uma área de expansão da mesma. O que,
conforme o autor, contribui para que a Baixada Fluminense, desde a segunda metade do século XX, se consolide
como periferia e área de expansão em relação à cidade do Rio de Janeiro.

438
O curso propôs a reflexão sobre a construção da identidade e da memória coletiva, as
imposições, destruições e resistências nesses processos. O centro do Rio de Janeiro vem
apresentando um projeto político excludente em suas modernizações subsequentes, na
tentativa de justificar a destruição de seu patrimônio cultural material e imaterial, a mutilação
de sua geografia e a expulsão do povo com menos poder aquisitivo de territórios ocupados.
Exemplos mais conhecidos foram a demolição de moradias e construções coloniais junto à
higienização social a partir do desalojamento de então moradores para a construção de largas
avenidas como a Avenida Central, hoje Avenida Rio Branco e a Avenida Presidente Vargas
(ABREU, 1976). A geografia, relevante para a construção identitária carioca, foi varrida em
boa parte do centro do Rio de Janeiro, morros foram destruídos, como o Morro de Senado e o
Morro do Castelo e usados para aterrar um trecho da orla carioca do centro à zona sul,
conforme nos conta Abreu (1987, p. 76):

o prefeito, logo após tomar posse e realizando um desejo antigo, mandou


retirar do centro da cidade, “em nome da aeração e da higiene”, o local que
dera origem à urbe no século XVI – o Morro do Castelo. Embora fosse um
sítio histórico, o morro havia se transformado em local de residência de
inúmeras famílias pobres, que se beneficiavam dos aluguéis baratos das
antigas construções aí existentes. Situava-se, entretanto, na área de maior
valorização do solo da cidade, a dois passos da Avenida Rio Branco, daí
porque era preciso eliminá-lo não apenas em nome da higiene e da estética,
mas também da reprodução do capital.

Essas remoções constituem parte do processo de afastamento das camadas mais


populares da população para áreas afastadas para serem esquecidas pelo Estado e pelas
camadas privilegiadas da população. Mais recentemente, moradores da Favela da Providência,
primeira favela do Brasil, situada entre os bairros do Centro, Santo Cristo e da Gamboa, nas
regiões Central e da Zona Portuária, foram expulsos de suas casas para dar lugar a um
teleférico e plano inclinado. Com a desculpa de melhorar a mobilidade dos moradores no
morro, esses novos “equipamentos urbanos” foram instalados mesmo contra a vontade da
população, que, além de ter casas destruídas para higienizar o local, ainda perdeu o espaço de
lazer da região, a praça onde foi instalada a estação do teleférico. Ficou claro que o que

439
importava era possibilitar aos turistas, principalmente de fora do país, maior comodidade para
a visitação do local (GALIZA, 2015).
Desse modo, a peregrinação da Baixada Fluminense à região central da cidade do Rio
de Janeiro se configura em um campo muito além de uma proposta turística, mas de uma
reflexão histórica da construção de memória e apagamento de uma parcela da população que
já habitou os grandes centros, mas que hoje se reconhece como estrangeiro, não pertencente.
Um exemplo desse não reconhecimento é o uso da palavra cidade que, principalmente
moradores da periferia, mesmo os habitantes do município, usam para se referir ao centro do
Rio de Janeiro, como se não fizessem parte dessa organização chamada cidade. Defendemos
no projeto que a busca da ocupação da população periférica nos grandes centros, em especial
na cena cultural, produtora de sentido e memória, é uma ferramenta política de resistência.
Com base no exposto, questionamos: qual a efetividade construtiva na formação
cidadã de pessoas com pouco acesso a espaços de cultura e de memória institucionalizados
quando colocadas a problematizar esses espaços e seus acervos a partir de uma visão crítica,
para além do passeio turístico?
É objetivo deste artigo analisar o projeto de extensão desenvolvido, sua pertinência e
alcance, analisando em que medida as discussões realizadas a partir dos acervos de museus
visitados possibilitaram acionar nos discentes mecanismos de potencial discursivo para pensar
criticamente sua formação identitária e sua memória coletiva, consequentemente,
empoderando seu poder cidadão.
Para a construção deste trabalho, utilizamos uma abordagem descritiva e exploratória,
a partir de observações assistemáticas e participantes da aula inicial do curso e das visitas-
aulas a quatro museus da cidade do Rio de Janeiro. A aula inaugural consistiu num primeiro
encontro em sala de aula em que eram discutidos diversos conceitos e aspectos sobre arte,
cultura e cidadania para embasar a discussão crítica com base nos acervos dos museus. As
visitas-aulas se deram no Museu Histórico Nacional, Museu Nacional de Belas Artes, Museu
do Folclore Edson Carneiro e Museu de Arte do Rio de Janeiro.

440
Arte e cultura: os conceitos balizadores da discussão nos museus
Conforme Arantes (2012), um dos aspectos mais importantes da cultura é a
significação, que, juntamente com os valores, são a essência de sua organização. São os
valores da cultura que “moldam” a sociedade, sendo sentidos como intrínsecos, não como
meios. Realizamos, constantemente, operações mentais de codificação e decodificação de
mensagens que requerem o conhecimento desses significados implícitos nas ações e nos
objetos, e de suas regras tácitas. Os significados culturais não são compreendidos através da
contemplação passiva do objeto significante, mas como referência ao universo de significados
próprios de cada grupo social.
Essa referência ao universo de significados pertencentes a cada grupo social é o que
White (2009) chama de simbologização, sendo esta capacidade intrínseca à cultura.
Simbologizar é “a capacidade de originar, definir e atribuir significados, de forma livre e
arbitrária, a coisas e acontecimentos no mundo externo, bem como compreender esses
significados” (p. 9). Esses significados não podem ser percebidos e avaliados a partir dos
cinco sentidos humanos (tato, olfato, paladar, audição e visão). Não é, por exemplo, o gosto
da água que a faz ser considerada água benta ou o cheiro da flor que a faz ser considerada
oferenda para Iemanjá, mas os significados que os seres humanos atribuem a elas, envolvendo
o processo de aprendizado construído a partir da experiência de certa sociedade com tal
aspecto simbologizado, podendo ser um objeto, um espaço, um ato, uma crença.
“Simbologizar, portanto, envolve a possibilidade de criar, atribuir e compreender
significados” (p. 9). Entre suas várias formas (pensar, sentir, agir), o autor define quatro
produtos principais: ideias, atitudes, atos e objetos. Tendo em comum o processo de
simbologização, são, portanto, distinguidos de todas as outras classes de coisas e eventos que
não dependem desse processo. “ Um ato é um ato. Uma coisa é uma coisa, a importância de
uma coisa, para a ciência e para nós, não depende só de suas propriedades intrínsecas, mas do
contexto de análise” (WHITE, 2009, p. 55).

441
Essa era uma discussão fundamental para os propósitos do curso, já que se buscava,
principalmente, problematizar aspectos de cultura, identidade e memória, a partir dos acervos
dos museus, para a construção identitária e cidadã dos alunos.
Antes de entrar em contato com esses acervos, era necessário discutir que há uma
intenção incutida na seleção dos objetos a serem apresentados e na forma de sua disposição
nos espaços de cultura e de memória. Para Ramos (2004, p. 14), “qualquer museu é o lugar
onde se expõem objetos, e isso compõe processos comunicativos que necessariamente se
constituem na seleção das peças que devem ir ao acervo e no modo de ordenar as exposições”.
Ele discute que “não há museu inocente”, já que as peças (as selecionadas para exposição e as
ocultadas do público) têm uma intencionalidade.
Essa intencionalidade diz respeito às disputas de poder inerentes em todos os aspectos
da vida social e cultural de uma população, que estão intrinsecamente ligadas à
simbologização de White (2009). Podemos questionar, então: quem simbologiza o que é ou
deixa de ser cultura? Quem simbologiza o que deve ser preservado e propagado como
representante da cultura material de um povo?
No que tange a espaços, edificações e bens culturais, García Canclini (2015) pondera
em que medida as relações de poder têm rebatimentos em várias esferas da vida pública e
social, refletindo, entre outros, na naturalização do que deve ser preservado e amplamente
propagado para constituir a identidade de um país. Avalia que alguns bens, como pirâmides
maias, palácios coloniais e coleções de cerâmicas indígenas seculares, são naturalizadas como
algo a ser preservado e multiplicado para as gerações futuras, por simbolizar prestígio do
passado que se liga às questões de identidade nacional. “A perenidade desses bens leva a
imaginar que seu valor é inquestionável e torna-os fontes de consenso coletivo, para além das
divisões de classes, etnias e grupos que cindem a sociedade e diferenciam os modos de
apropriar-se do patrimônio” (p. 160). Essa distinção reforça as diferenças entre classes sociais,
que determina quais bens devem ser representativos, aqueles que agradem a uma determinada
classe, geralmente, a de maior poder econômico e social, que façam parte de seu repertório de
gosto e de “valor cultural”; aos bens mais relacionados a “aspectos populares”, que de alguma

442
forma lhes agradam, são dadas a alcunha de “folclore”, marcando a diferença entre si e os
“outros”.
Permeadas por relações de poder, essas distinções entre classes sociais fazem parte do
jogo entre identidade e diferença, interferindo na cultura. As denominações decorrentes das
várias classificações de cultura se estabelecem pela lógica da diferença.
Hall (2013) discute que a denominação cultura popular foi cunhada a partir da
necessidade de distinção entre elite e classes populares, ou seja, a distância entre a cultura
popular e a cultura erudita. A partir do desenvolvimento do capitalismo industrial, “mudanças
no equilíbrio e nas relações de forças sociais se revelavam, frequentemente, nas lutas em
torno da cultura, tradições e formas de vida das classes populares” (HALL, 2013, p. 273). O
capital tinha interesse nas formas de vida das classes populares. A partir do momento em que
a sociedade estava sendo organizada em torno desse capital, era necessário reeducar as
camadas populares, num sentido mais amplo, para que pudessem fazer parte da sociedade.
A tradição popular consistia num dos principais locais de resistência, em oposição ao
modo como queriam impor a nova ordem social. Motivo pelo qual, conforme o autor, a
cultura popular, até hoje, é relacionada às questões da tradição e formas tradicionais de vida e,
ao mesmo tempo, vista, equivocadamente, como algo arcaico e anacrônico.
No que tange aos acervos de espaços de cultura e memória, frequentemente, os
objetivos significativos para as classes populares, decorrentes de seu fazer e modo de vida,
têm pouco ou nenhum espaço nesses locais. Essa era uma preocupação no trabalho de
expografia de Lina Bo Bardi, arquiteta ítalo-brasileira, que, ao dar espaço aos fazeres da
população de baixa renda, principalmente, do Nordeste, defendia a importância de celebrar a
inventividade do povo brasileiro que, com tão poucos recursos, conseguia sobreviver e criar
estratégias para melhorar suas vidas (BO BARDI; FERRAZ, 1996).
No nosso entendimento, as visões de Lina Bo Bardi (BO BARDI; FERRAZ, 1996) e
de García Canclini (2015) se complementam para entendermos o motivo pelo qual há
dificuldades de apreensão do que é considerado patrimônio a ser preservado por toda as
camadas da população. Se os objetos, fazeres, ritos e patrimônios significativos às camadas de

443
baixa renda não estão contempladas na grande parte dos espaços de memória e cultura
institucionalizados, como querer que essas pessoas se reconheçam no patrimônio
institucionalizado como de referência nacional?
É preciso entender que todos os objetos são repletos de significação. Conforme Ramos
(2004, p. 21), “se aprendemos a ler palavras, é preciso exercitar o ato de ler os objetos, de
observar a história que há na materialidade das coisas”. Corroboramos com o autor quando ele
afirma que o “objeto é tratado como indício de traços culturais que serão interpretados no
contexto” (p. 22) ao qual se insere. Ele exemplifica que tanto a partir de um relógio antigo
como de um copo descartável, e principalmente da relação entre os dois, podemos questionar
e entender, entre outros, aspectos relacionados à história do capitalismo e suas consequências
na nossa atualidade e no futuro.
Não necessariamente a memória está contida apenas em edificações consideradas
históricas e tombadas como patrimônio, como remanescentes materiais de arquiteturas de
séculos passados. O patrimônio é importante sim, mas, principalmente, no que diz respeito ao
que as pessoas atribuem como sendo esse patrimônio, aquilo que lhes signifique algo, que
lhes atribuam valor e faça com que se reconheçam nesse valor e nessa memória.
Corroboramos a abordagem que Sodré (2002, p. 52) faz sobre patrimônio e a
colocamos como fundamental às discussões sobre cultura, identidade, território e memória
coletiva:

A palavra patrimônio encontra aqui um lugar próprio. Ela tem em sua


etimologia o significado de herança: é um bem ou conjunto de bens que se
recebe do pai (pater, patri). Mas é também uma metáfora para o legado de
uma memória coletiva, de algo culturalmente comum ao grupo.
O termo tem sido utilizado, entretanto, como categoria sociológica, que
incorpora um conjunto de particularidades atuantes na aquisição e na
transmissão da riqueza e do poder. A noção de patrimônio abrange, assim,
tanto bens físicos (uma loja, uma fazenda, dinheiro etc.) quanto a
competência técnica ou o lugar social que conquistam determinadas famílias
ou grupos. Não se pode compreender a lógica patrimonialista por critérios
puramente econômicos, uma vez que se entrecruzam determinantes étnicos,
políticos, simbólicos.

444
Na verdade, o patrimônio, qualquer patrimônio, pode mesmo ser concebido
como um território. (...) [Definindo] território como: 1) lugar pertinente –
localização, limites – da ação do sujeito; 2) especificidade de um espaço
social, que o distingue do resto da sociedade ou de outros territórios; 3) zona
de limites entre o social e o que não se define inteiramente em termos sociais
(o não-social): a biologia, a língua, a física das coisas etc.

Dessa forma, o sentimento de pertencimento a um patrimônio ou território está


diretamente relacionado à possibilidade de vivenciá-lo. Visto que Castells (2013, p. 22)
entende por “identidade a fonte de significado e experiência de um povo”; e conforme
Woodward (2000), a construção da identidade é tanto simbólica quanto social e a luta para
afirmar uma ou outra identidade ou as diferenças que os cercam têm causas e consequências
materiais. Sem essa vivência, esvaem-se aspectos relacionados a identidade, cultura e
memória.
Baseadas em Santos (1987, p. 8), ponderamos que “o estudo da cultura contribui no
combate a preconceitos, oferecendo uma plataforma firme para o respeito e a dignidade nas
relações humanas”. Assim como a arte ensina a desaprender os princípios das obviedades que
são atribuídas aos objetos, às coisas. Ela parece esmiuçar o funcionamento dos processos da
vida (CANTON, 2009). Uma das potências da arte é a intensa liberdade na criação de
universos possíveis e impossíveis.

As visitas aos museus e seus desdobramentos


As visitas aos museus foram conduzidas de forma dialógica e reflexiva, visando a
construção de sentido coletivo a partir da troca de olhares e repertório entre os estudantes e as
professoras idealizadoras do curso. As escolhas pedagógicas do nosso percurso nas aulas-
visita foram desenvolvidas de modo a se alinharem com as posições políticas social-
democráticas de resistência.
Na perspectiva mais tradicional, visitas em grupos a museus são diretamente
relacionadas ao trabalho de guiamento, onde um profissional conduz um grupo, apresenta
informações e direciona o olhar do visitante para algumas obras, aspectos arquitetônicos,

445
relacionando o contexto histórico, autorias e técnicas. Atualmente, porém, temos cada vez
mais contato com a profissão do mediador, principalmente em centros culturais de arte
contemporânea. O mediador, trabalhando com um grupo de pessoas, escolhe uma trajetória
com algumas obras ou objetos de acordo com o público e desenvolve um trabalho de
sensibilização dos visitantes, geralmente a partir do diálogo, a fim de auxiliar na fruição.
A metodologia do curso relaciona-se mais diretamente com a perspectiva da mediação,
em um primeiro olhar. Porém, mais do que mediar obra e fruidor, convoca os participantes ao
questionamento do conjunto de intenções e discursos presentes nas exposições e nas escolhas
museológicas. O curso foi pensado para se desenvolver de forma processual, de modo que as
discussões fossem construídas ao longo do caminho e houvesse o resgate das visitas
anteriores. Tratando-se de um processo dialógico, os questionamentos eram enriquecidos pela
troca de experiências entre os participantes do projeto, com suas trajetórias diversas.
Afim de fomentar a discussão em torno de questões como o lugar de fala e diferenças
de discursos nas instituições, foram selecionados instituições com acervos e propostas
museológicas diversas entre si.
A primeira instituição visitada foi o Museu Histórico Nacional que, localizado na área
do Castelo, palco de demolições e apagamentos, conserva um pequeno resquício de sua
primeira edificação, nos primórdios do século XVII. De origem militar, desde sua construção
como Forte até o início do século XX, o museu é voltado para a história do Brasil e de sua
construção desde colônia até a contemporaneidade.
A curadoria da exposição permanente, que é dividida em períodos, é disposta na forma
histórica “tradicional”, linear. No início da nossa visita, observamos que o texto de abertura
do circuito iniciava a narrativa sobre o Brasil a partir da visão europeia e do possível
estranhamento português frente aos nativos do hoje chamado território brasileiro. A partir da
observação de pequenas escolhas no espaço expositivo, como o texto de abertura, fomos
confrontados a discutir um dos temas geradores do projeto, o lugar de fala, e pudemos
relacionar o estrangeirismo dos nativos em seu próprio território com as experiências
rotineiras dos moradores da Baixada Fluminense.

446
Ao percorrer a sala destinada aos nativos do território brasileiro, os estudantes
encantaram-se com coloridos e detalhados adereços, utensílios e objetos ritualísticos.
Contudo, apesar da identificação de cada objeto, não saberíamos dizer quem era cada um
desses grupos, suas particularidades, se esses grupos ainda habitam o território brasileiro ou
não, quais suas vozes e rostos, quem são essas pessoas? O que os indígenas têm a dizer? A
descontextualização desses objetos, tão distantes de suas narrativas originárias, sublinhava a
conotação do exotismo, ao mesmo tempo em que construía uma sensação de um conjunto de
resquícios de povoados extintos há séculos. Continuamos o debate em torno da
representatividade e protagonismo, levantando a possibilidade do quanto seria enriquecedor se
pudéssemos reconhecer a diversidade cultural entre os povos indígenas, cujos objetos estavam
dispostos, ouvir sujeitos indígenas contemporâneos sobre sua própria cultura, seu cotidiano e,
porque não, suas lutas políticas hoje e ao longo dos anos.
Corroboramos com García Canclini (1994, p. 113) que nos diz que “o museu e
qualquer política patrimonial devem tratar os objetos, os ofícios de tal modo que, mais que
exibi-los, tornem inteligíveis as relações entre eles, proponham hipóteses sobre o que
significam para a gente que os vê e evoca”.
Tereza Cristina Scheiner (2012), evocando diversas matrizes de experiências museais,
defende uma nova concepção de museus, a partir de uma abordagem da museologia alinhada
a uma prática museológica voltada para o social.

Entre as estratégias possíveis está o estímulo a uma nova percepção do


patrimônio. Museus podem articular experiências que, efetivamente, levem a
percepções mais abrangentes e críticas das realidades vivenciadas pelos
grupos sociais, desenvolvendo iniciativas onde se articulem atores de
diferentes matrizes socioculturais e campos do conhecimento, com um
objetivo comum – valorizar as referências que lhes conferem um sentimento
de pertença ao mundo ‘real’ (SCHEINER, 2012, p. 27).

O circuito expositivo fixo do Museu Histórico Nacional, de forma geral, conduziu a


caminhada do nosso grupo como um antigo livro de história do Brasil, passeamos por entre
conjuntos de objetos, documentos e obras de arte que contavam a história e a estética da

447
classe dominante, desde os colonizadores, senhores de engenho, realeza, a Igreja Católica e
outros. Porém, diferente de um rígido passeio escolar, as distrações muitas vezes eram bem
vindas, como o fato de os estudantes começarem a observar repetidamente os outros
visitantes, em sua imensa maioria estrangeiros. Os estrangeiros eram para eles como grupos a
serem observados de forma antropológica e, assim, teciam comentários entre os diferentes
tipos que passavam ali e seu modo de agir. O curioso foi que, em um dado momento, os
próprios estudantes se sentiram investigados como estrangeiros, pequenos exóticos, em
consonância com o tom da exposição.
Ao final da exposição, uma das salas chamou a atenção de nosso grupo, onde pudemos
estabelecer uma experiência de maior pertencimento, a sala Entre Mundos, dedicada à
contribuição afro-brasileira na construção do país. Diferente dos ambientes anteriores, onde
algumas pequenas aparições da cultura popular fulguravam apenas como contextualização
histórica e não como objetos valorosos – à exemplo a obra Engenho de Açúcar, de Antônio de
Oliveira – a sala em questão apresentava um circuito sensível à construção cultural popular. A
exposição mesclava documentos históricos da resistência afro-brasileira – como os registros
fotográficos de mulheres negras do século XIX empunhando acessórios crioulos –, obras de
arte – como os Tipos das Ruas talhados em madeira por Erotides Américo e Araújo Lopes na
Bahia século XIX – e outros objetos importantes, embalados ao som da voz de Maria
Bethânia por entre músicas e versos.
Além dos relatos do grupo sobre a identificação com os personagens ali representados,
seja pela cor da pele ou pelo reconhecimento de alguns objetos e costumes, a forma como os
elementos foram dispostos e apresentados levou o grupo a relatar uma experiência mais
próxima e atenta à exposição. Tempos históricos diferentes em diálogo, junto à diferentes
categorias de objetos e estímulos sensoriais provocou uma maior interação de nós fruidores
com o espaço expositivo, à exemplo O Altar de Oxalá, obra de Emanuel Araújo que suscitava
a mitologia orixá e crenças afro-religiosas a partir de uma configuração instalatória, própria
da arte contemporânea. A obra de Emanuel Araújo deslocou os estudantes de um contínuo

448
contemplativo e, como próprio de uma obra contemporânea, os convocou a construir
significados a partir dos signos ali dispostos.
A escolha do Museu Histórico Nacional como primeiro espaço a ser visitado foi
assertiva para o início do debate e das questões a serem trabalhadas ao longo do curso. Além
da localidade do Castelo ser um dos palcos históricos e mais emblemáticos de higienização
social, a exposição levou o grupo à reflexão de que a história tradicionalmente é contada do
ponto de vista da classe dominante, exploradora. A forma como uma exposição é montada,
assim como na história, é uma escolha desde o ponto de vista, a importância de cada
personagem, o protagonista até a forma de direcionamento ao interlocutor.
Ainda assim, sempre haverá a resistência das histórias paralelas, como a exposição
Entre Mundos e devemos caminhar para que as múltiplas vozes sejam ouvidas. Georges Didi-
Huberman, em Sobrevivência dos vaga-lumes, defende que ainda que o excesso de
espetacularização luminosa do discurso hegemônico ofusque as insurgências populares, há de
se mudar de ponto de vista para verificar que as vozes do povo ainda estão lá, sobrevivem, já
que “não há comunidade viva sem fenomenologia de sua apresentação: o gesto luminoso dos
vaga-lumes” (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 8).
Seguindo para a segunda visita do nosso curso, percorremos o Museu Nacional de
Belas Artes, localizado na Cinelândia, um dos pontos onde mais se pode enxergar o
afrancesamento compulsório da urbe carioca do início do século XX. O local é conhecido
pelo nome de Cinelândia devido ao número de salas de cinema que havia no entorno, só
restando, hoje, o Cine Odeon que, por pouco, não foi extinto nos últimos anos.
O Museu Nacional de Belas Artes, como o nome já sugere, se propõe a contemplar as
obras de arte no âmbito acadêmico e tem como destaque a Missão Artística Francesa no
Brasil, que é considerada um marco do ensino acadêmico no Brasil. Nesse sentido, os
estudantes puderam reconhecer importantes símbolos da cultura clássica, como as “peças
moldadas sobre os originais do período helenísticos, romano, e do greco clássico” (MNBA,
2017) que serviam como modelos para os primeiros estudantes da Escola de Belas Artes.

449
Em dado momento, o grupo se mostrou mais disperso do que na exposição anterior e
nas seguintes, relatando se tratar de um acervo extenso, com uma das salas com disposição de
quadros uns acima dos outros, dificultando a visualização. A partir dessa constatação dos
alunos, pudemos resgatar rapidamente a história do espaço expositivo, principalmente no que
se refere ao museu de arte. Foi interessante perceber que mesmo um grupo não tão habitual
nos museus de arte espera um espaço expositivo moderno como a caixa branca, com maior
respiro entre uma obra e outra. O Museu tem atualmente o maior acervo de arte brasileira do
século XIX (MNBA, 2017) e o desconforto ao avistar quadros reunidos dessa maneira
remonta ao espaço expositivo do século retrasado, conduzindo, de certa forma uma
experiência temporal de passado. De todo modo, a fadiga e o distanciamento dos alunos
também se justifica por se tratarem de obras acadêmicas com temáticas clássicas, encontrando
pouco espaço para o diálogo com suas referências.
A terceira visita foi destinada ao Museu de Folclore Edson Carneiro, situado no bairro
do Catete, bairro da zona sul carioca e vizinho ao centro da cidade. O Museu se conecta aos
jardins do Museu da República, antiga sede do governo federal. A nossa visita ocorreu no dia
de inauguração da nova configuração expositiva do espaço cultural. A interação dos
participantes do curso ao Museu foi muito fluida e, por certo, foi o espaço onde os estudantes
se sentiram melhor acolhidos ou mais à vontade. O primeiro andar da exposição proporcionou
uma experiência mais sinestésica, já que a sala era dividida em ambientes de acordo com os
elementos da natureza, conjugando sons, cores, luzes e, por vezes, elementos como a fumaça,
com as obras dispostas a partir do ar, da terra, da água e do fogo. A curadoria lúdica, sensível
aos temas folclóricos ali dispostos no conjunto de obras provocou um encantamento nos
estudantes que relataram ter sido transportados para os tempos de infância.
Também foi possível fazer a relação do Museu em si com a loja de artesanato acoplada
ao museu, desde as dimensões de ambos até o destaque que essa loja tinha frente às outras
lojas de museus. A partir dessas observações e da contextualização de García Canclini (1983)
de que o artesanato carrega aspectos sociológicos comunicadores da localidade em que ele é

450
feito, foi possível desenvolver uma problematização do artesanato como expressão de um
patrimônio material e imaterial frente à mercantilização da cultura.
O último museu visitado foi o Museu de Arte do Rio, o MAR, um dos símbolos da
revitalização e gentrificação da Zona Portuária carioca. Nesse Museu, para dar continuidade
lógica e experimentar diferentes linguagens e tempos ao longo do curso, escolhemos manter o
foco nas exposições voltadas à arte contemporânea. Ao contrário do discurso comum que
atribui dificuldade de compreensão à arte contemporânea, foi onde o grupo estabeleceu maior
diálogo com suas vivências e questionamentos. Desde as vanguardas da metade do século
passado, a arte busca o engendramento com o mundo e a vida comum, suas questões e
estética.
Nessa perspectiva da arte-vida, os alunos puderam conhecer o trabalho do artista
Alexandre Sequeira na exposição Meu Mundo Teu, em que o artista propõe, através da
fotografia e da sua manipulação, algumas relações interpessoais, interagindo ele próprio com
diversas pessoas e comunidades. O grupo compreendeu que a obra do artista não se tratava
apenas da fotografia, mas por vezes da própria memória que o suporte carregava, além do
processo, da interação entre as pessoas que o artista conheceu pelo caminho. O conjunto de
obras talvez mais conhecido do artista é a série Nazaré do Mocajuba, de 2005, em que o
artista passa um tempo no vilarejo como retratista das pessoas que ali habitam. Com o tempo,
Alexandre propõe a doação dos objetos pessoais dos retratados, imprimindo futuramente as
fotos de cada morador em suas respectivas cortinas e cobertores.
A partir de séries com delicada atenção ao outro, os estudantes relataram que se
sentiram emocionados e inclusive se enxergaram em alguns trabalhos. O grupo estabeleceu
uma relação íntima com a exposição e pôde perceber que a arte, assim como o espaço
museológico, não precisa se tratar apenas de um espaço de contemplação passiva, ao
contrário, pode propor construção de sentido e diálogo com o visitante. Dessa forma, uma
visita à uma exposição como a de Alexandre Sequeira não é mais uma apreensão de
referências e significados, o que já seria muito, é também uma quebra no tempo acelerado
cotidiano e uma proposição de afeto para repensar o olhar ao redor e o agir no mundo.

451
Considerações finais
Ponderamos que o projeto consegui atingir seus objetivos de estimular moradores da
Baixada Fluminense a ter um novo olhar sobre sua construção identitária e cidadã, por meio
da arte e cultura encontrada nos espaços institucionalizados de cultura e memória.
Dentre as dificuldades encontradas nesse percurso, o transporte foi um dos maiores
entraves para a realização do projeto. Sem ajuda de custo, era necessário contar com os
próprios alunos pagando suas despesas de transporte. Porém, quando se pensa que, para ir ao
centro do Rio de Janeiro, os moradores da Baixada gastam, em média R$15,00, o que totaliza,
em média, R$30,00 de transporte de ida e volta, ponderamos que essa é uma das formas de
segregar a população da Baixada dos espaços de poder do Rio de Janeiro, entre os quais estão
os espaços de cultura e memória.
É necessário, pois dar oportunidade de acesso de modo igualitário aos diversos
moradores da cidade, de modo que a consolidação de sua cultura e identidade possam auxiliar
no exercício da cidadania.
Ao considerar que vivemos em sociedade e a política, em seu campo ampliado, é peça
chave desse viver, a arte e a cultura, por sua vez, instauram terrenos movediços para
desestabilizar estruturas políticas cristalizadas e nos convocam a um olhar lúdico. Estudar a
política na arte e na cultura, ou ainda, como a arte e a cultura são políticas talvez seja uma das
contribuições mais potentes do legado educacional de uma instituição que se preocupa com a
construção de um mundo melhor. Dessa forma, os espaços culturais e de memória podem
contribuir para a construção dessa visão de mundo crítica, potencializando construções
culturais e identitárias que consolidem a noção e o empoderamento quanto a cidadania
individual e coletiva de ampla gama populacional fluminense.

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454
A MEMÓRIA SOCIAL DO CAMPO DE FUTEBOL DE VÁRZEA DO BAIRRO
DA VILA PROGRESSO: O ESTUDO DE CASO DO SETE DE SETEMBRO.

João Pedro Rodrigues Da Conceição

Resumo: O futebol de várzea é uma denominação de uma prática esportiva muito difundida
pelas periferias do Brasil. Na cidade de São Paulo, esta pratica é mais do que uma prática
esportiva e se torna um dos principais atrativos para bairros nas periferias dessa grande
cidade, seja por falta de lazer, ou, por uma tradição que acompanha o crescimento desses
bairros. A prática do futebol de várzea na Zona leste da Cidade de São Paulo é bem difundida
e esta região conta com diversos times tradicionais, dentre eles o Sete de Setembro.
Atualmente tem uma sede em terreno privado. Ao passar do tempo, teve quatro campos todos
dentro dos limites do bairro da Vila Progresso. Por isso o presente trabalho de conclusão de
curso pretende analisar a relação do Clube Sete de Setembro da Vila Progresso com seu
bairro. Buscando as memórias sociais em torno do campo utilizando-se como metodologia
entrevistas orais semiabertas com pessoas ligadas ao clube e ao bairro para que assim
possamos analisar essa relação e entender como o clube participa historicamente da vida desse
bairro e dessas pessoas. Iniciando um processo de busca por essa memória com o objetivo de
ampliação do olhar sobre o campo, para além de uso comum, consequentemente como um
possível espaço de memória.

Palavras-chave: memória; história oral; futebol de várzea; museologia; lugar de memória.

Abstract: The várzea football is a denomination of a sports practice very widespread in the
peripheries of Brazil. In the city of São Paulo, this practice is more than a sports practice and becomes
one of the main attractions for neighborhoods in the peripheries of this great city, either for lack of
leisure, or, for a tradition that accompanies the growth of these neighborhoods. The practice of várzea
football in the East Zone of the City of São Paulo is very widespread and this region has several
traditional teams, among them Sete de Setembro. It currently has a headquarters on private land. Over
time, it had four camps all within the boundaries of the neighborhood of Vila Progresso. Therefore, the
present work of course completion intends to analyze the relationship of the Sete de Setembro Club of
Vila Progresso with its neighborhood. Seeking the social memories around the field using semi-open
oral interviews with people connected to the club and the neighborhood so that we can analyze this
relationship and understand how the club historically participates in the life of this neighborhood and
these people. Starting a process of searching for this memory with the purpose of expanding the look
on the field, beyond common use, consequently as a possible memory space.

Key-words: memory; Oral history; Varzea football; Museology; Memory location

455
Introdução
O Presente trabalho apresenta uma pesquisa que analisou a relação do futebol de várzea
com bairro da vila progresso. Tendo como estudo de caso o clube de futebol de várzea
denominado “Sete de Setembro da Vila Progresso”, com sede no bairro da Vila Progresso do
distrito de São Miguel Paulista na Zona leste da cidade de São Paulo. Com o foco na memoria
social do bairro em relação o campo. Utilizando-se de entrevistas orais semiabertas como
metodologia para obtenção desta memória, com pessoas que tenham algum tipo de relação
com o clube e também com o bairro. Buscando com os resultados dessa pesquisa, analisar
essa relação entre o Sete de Setembro e a Vila Progresso. Iniciando um processo de busca por
essa memória com o objetivo de ampliação do olhar sobre o campo para além de uso comum,
mas, também um possível espaço de memória. Partindo da compreensão da memória
enquanto faculdade individual, porém, com seu viés de construção social no que compreende
Joel Candau (2011) em sua analise sobre Memória, em seus três níveis em seu livro sobre
Memória e Identidade. Trazendo a interpretação da memoria social enquanto viés teórico
para analise do objeto de estudo, fugindo da interpretação da memória coletiva, compreendida
hoje como arbitraria e quase inalcançável em sua essência.
Antes de qualquer outro aspecto, cabe contextualizar o leitor a noção de “futebol de
Várzea” que será trabalhada. A nomenclatura dada ao futebol amador advém da origem do
futebol no Brasil. As primeiras práticas futebolísticas com o surgimento do esporte no país,
que no início do Século XX tem sua localidade em clubes esportivos da elite e com o
operariado, no caso, da prática nos horários em que os trabalhadores estavam de folga. O
nome “futebol de várzea” tem origem nos locais de suas práticas, nas várzeas dos rios, pois
eram perto das casas dos operários e locais desocupados até então, Vale ilustrar que na cidade
de São Paulo, essa prática se consolidou nas várzeas do rio Tietê (BEVERARI, 2009).
Com o desenvolvimento da capital paulista, houve a ocupação destes espaços por
parte de grandes avenidas, prédios, acarretando a mudança dessa população e dessa prática
esportiva para as periferias da cidade. Contudo, isso não é o diferencial entre o futebol de
várzea e o profissional, mas sim o modo de organização dos times. Em sua maioria possuindo

456
organização com caráter amador, como é no caso do Sete de Setembro, um clube que está
muito ligado a um grupo de amigos do bairro, a uma rua ou a uma determinada região. Que
decidem se juntar para jogar um futebol nos finais de semana livres e para isso organizam um
time, que pode ter diversos níveis de organização desde aquela mais amadora possível até a
semiprofissional. Nestes critérios se encaixa o Sete, com uma estrutura jurídica contando com
CNPJ, Diretoria, ata de fundação. Porém, sendo administrado por moradores do bairro.
Partindo deste tema, observando muito do que havia visto durante minha formação, a
relação de memória e poder (CHAGAS, 2000) poderia citá-lo, e como isso poderia ser
observado na relação da cidade de São Paulo com a sua memória, muito marcada também nos
diversos museus da maior cidade do Brasil. Faço aqui uma relação pelo fato do futebol de
várzea ser praticado, em sua plena maioria, nas periferias das grandes cidades. Talvez nesse
sentido, como outras tantas práticas das periferias, essa seja mais uma que passa despercebida
nessas relações de poder da memória. Como cita (BEVERARI, 2009) na apresentação da sua
tese mostrando o futebol de várzea enquanto espaço de resistência contra o poderio da elite.
Uma ação importante em torno da memória das periferias, com foco no futebol de várzea, foi
o tombamento do Parque do povo19, que logo posteriormente foi desfigurada em uma
requalificação do parque que destruiu a maior parte dos campos de futebol de várzea
tombados anteriormente (SCIFONI, 2013). Mostrando como essa memória mesmo que com a
força da lei tende a sofrer por relações de poder.
Justifica-se o trabalho pela reflexão sobre que tipo de memória que está sendo contada
nos museus e nas cidades. Através da busca pela memória do futebol de várzea, prática
difundida em grande parte das periferias da cidade de São Paulo, buscou-se sobre a memória
do Sete de Setembro, como meio de contar parte dessa história.
Para compreender a importância e dimensão dessa prática, seguem alguns números
sobre o futebol de várzea. Segundo a Liga paulistana de futebol amador (LPFA) em

19
SECRETARIA DE ESTADO DA CULTURA. CONDEPHAAT. Resolução SC no. 24 de 03 de
junho de 1995. Resolução de tombamento do Parque do Povo

457
reportagem a Folha de São Paulo em 03 de Abril de 2013, existiam cerca de 1.400 times de
futebol de várzea por toda a capital paulistana, contando somente os times filiados a esta liga.
Para suprir a demanda de espaços para esses times, não existe uma contagem oficial, mas,
segundo levantamento do site UOL feito em 2013, são cerca de 300 campos de futebol de
várzea espalhados pela capital paulista, sendo que 122 estão localizados na Zona Leste, quase
chegando à metade dos campos nesse levantamento. Ainda na reportagem cita que 200
campos estão em processo de reconhecimento. Mas, no caso estudado aqui, não entra na
contagem por não ser uma sede própria, e assim como o caso do Sete, existem diversos outros
campos espalhados pela cidade. A partir da mostra da prática do futebol de várzea, seguem os
dados dos Museus na cidade de São Paulo, que são os equipamentos Que simbolizam a
memória da cidade.
Segundo dados da prefeitura de São Paulo em 2013, nenhum dos 124 museus da
cidade de São Paulo, pertence ao distrito de São Miguel, ainda segundo o estudo a maioria
esmagadora dos museus se encontra longe das áreas periféricas. Observando os números
acima e todo cenário mostrado, o futebol de várzea e seu movimento enquanto prática, não só
esportiva, mas de sociabilidade, este trabalho justifica-se pela necessidade de pesquisa
acadêmica dessas práticas e memórias, por estarem se perdendo ao longo do tempo. Visto que
diversos campos vão dando espaço a prédios e mesmo clubes que tem uma tradição como o
Sete, pouco tem da sua memória salvaguardada.
Além da busca e analise dessa memória, que é uma pequena vertente da Museologia,
buscamos nesse trabalho a partir das novas práticas mais recentes da Museologia, mostrar a
relação de memória e poder (CHAGAS, 2011) questionando a falta de trabalhos e museus e
politicas de memórias nas periferias e das práticas que advém dessas minorias. Trazendo os
aspectos da museologia social que busca ampliar o olhar do estado para aquilo que é
considerado importante de ser preservado. Adaptando-se dos museus e da Museologia para as
novas necessidades da sociedade como aponta Mário Moutinho em um breve resumo sobre as
novas práticas da Museologia social:

458
A revolução museológica do nosso tempo - que se manifesta pela aparição
de museus comunitários, museus 'sansmurs', ecomuseus, museus itinerantes
ou museus que exploram as possibilidades aparentemente infinitas da
comunicação moderna - tem as suas raízes nesta nova tomada de consciência
orgânica e filosófica. (MOUTINHO, 2009, p.7)

O Clube Sete de Setembro


O Sete de Setembro da Vila Progresso é um clube tradicional de futebol de várzea da zona
leste da capital paulista. Localizado no bairro da Vila Progresso, distrito de São Miguel
Paulista. Para aqueles que não conhecem a região, o campo fica próximo a Arena Itaquera
(estádio de futebol do time do Corinthians construído para a abertura da Copa do Mundo de
2014). O Sete foi fundado no dia 7 de Setembro de 1954, sempre foi um clube de várzea,
embora ao longo dos anos, tenha criado diversos mecanismos para gestão do futebol, como
por exemplo, o clube possui um CNPJ (Cadastro nacional de pessoa jurídica), o que
possibilita arrecadar fundos via emenda parlamentar20 para organização de campeonatos como
já ocorreu. Até outras possibilidades de atuação como empresa, possui diretoria eleita. Consta
no site a história da fundação do clube com década a década.
Com uma sede cedida, porém não definitiva, já que é uma propriedade privada, na qual o
dono deixa o clube ficar, conta com uma infraestrutura considerada boa para os padrões da
várzea paulistana. Com o campo cercado, arquibancada, quatro vestiários, um bar, banheiros
femininos e masculinos e um espaço no qual eles guardam os troféus. Espaço este que é uma
pequena sala, na qual está parte dos troféus do Sete conquistados ao longo dos anos, sem
nenhum processo de organização. Apesar disso, o clube se mantém sempre em alerta para
todas as situações possíveis, como despejo ou utilização do dono do terreno para outros fins.

O Clube na memória dos entrevistados


A Metodologia utilizada foi história oral através de entrevistas orais semiabertas com
perguntas que interrogavam aos entrevistados sua relação com clube e a relação do mesmo

20Disponível em <http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/relacoes_governamentais/emendas%20/2011/2011_emendas.pdf>Acesso em 19/10/2016

459
com o bairro. Fizemos diversas entrevistas, visitas ao campo e ao clube, em diversos dias,
sendo eles de jogos ou não. Porém, durante a escrita e organização do trabalho, verificou-se a
viabilidade de utilização de duas entrevistas.21 Os outros diversos contatos feitos contribuíram
em muito para o trabalho a maneira de observar outras situações, reflexões e contatos que
poderiam trazer mais informações. O que não prejudicou o andamento e riqueza do trabalho,
só incentiva a posterior produção e aplicação da proposta.
Em sua entrevista, o Sr. Kaká trouxe 10 fotografias de sua própria escolha que ele
achou que tivesse alguma relação com a entrevista, dentre elas, fotos do bairro, fotos da sua
infância na escola do bairro, fotos em outros clubes e obviamente fotos do Sete. A primeira
entrevista utilizada para apresentação em citação é do Sr. Carlos Henrique da Silva, Kaká, 53
anos de idade, morador do bairro Vila Progresso e ex-jogador de futebol de várzea do clube
Sete, hoje é diretor do clube, sua atuação como jogador foi na década de 1990. Ele também
trabalha em uma associação que trata de crianças no bairro. Por ser membro da atual gestão
do clube, pôde nos dar um panorama atual sobre a situação do Sete, enquanto instituição,
como morador do bairro, pode nos traçar um panorama da relação do clube com o bairro,
inclusive historicamente (claro, sempre contando com sua atual posição de diretoria) e sua
longa história de relação com o Clube em diversas posições. Traz uma profundidade para
mostrar qual as relações históricas internas e externas contendo informações que se somam
com as apresentadas no site indicados pelas pessoas contatadas.
A Segunda entrevista foi realizada com o Sr. Sidnei Santos, 47 anos, morador da vila
progresso desde os cinco anos de idade, trabalha de mensageiro no centro de São Paulo no
banco de desenvolvimento de São Paulo. Ele ocupou a cadeira de conselheiro participativo de
São Paulo em 2015, atual presidente da associação comunidade esportiva da Vila Progresso.

21
A impossibilidade da utilização da entrevista do Sr. Diógenes, vulgo Gigante, foi pelo fato do arquivo
da entrevista ter corrompido e posteriormente por questão de agendas, a impossibilidade de uma nova entrevista.
Além do Sr. Valter de Almeida Costa que apesar de responder nossas perguntas, optou por indicar o Sr. Sidnei
para uma entrevista sobre o Bairro, por pensar que o Sidnei saberia responder melhor as questões acerca do
bairro.

460
Jogador de futebol de várzea. Ao entrevistar o Sidnei podemos trazer as memórias daqueles
que tem uma relação com o campo, mas, também, tem uma relação maior com o bairro. Por
ser uma liderança na Vila progresso, pode nos dar um panorama da relação do clube com o
bairro. Também, mostrando um pouco do bairro. São duas fotografias da quadra de esporte
que eles lutaram para conseguir e recortes de jornais retratando dessas conquistas, ao
perguntar sobre fotografias do campo, ele disse que possui apenas as suas memórias. Em sua
fala Sidnei fala da falta do costume de guardar objetos, embora tenha feito bastante coisa no
bairro e jogado bola no Sete diversas vezes, não guarda nenhuma fotografia. É difícil guardar,
tenho poucas fotos aqui, queria guardar mais. Mas, é muita coisa pra fazer. (entrevista
cedida pelo Sidnei)
Podemos relacionar as duas entrevistas dentro de diversas perspectivas que
mencionam o Clube enquanto objeto da memória que faz parte da vida de ambos. Uma delas é
relacionar o Sete enquanto espaço físico dentro de um bairro, a vila progresso. O
envolvimento das pessoas que ali vivem, seja das mais distantes como o Sidnei, quanto o
Kaká que é diretor do clube.

Considerações finais
O Sete de Setembro hoje é reflexo de 62 anos de trabalho, e ao analisarmos as
percepções do Sidnei e do Sr. Kaká sobre o campo podemos verificar sua importância, seja ao
tratar da relevância enquanto espaço de sociabilidade que falta no bairro, seja do ponto de
vista da memória do bairro. Pois, é o referencial de memória, que se tem quando se trata do
bairro. Pois a estação de trem foi desativada e ficaram fotografias, apesar da recente
desativação. Por isso, trazemos a conclusão de que, não apenas a permanência deste clube
com este campo no bairro é um ato de resistência de um bairro, que vai perdendo suas
memórias aos poucos, é um ato de lembrar a periferia que ela tem suas práticas e seus
costumes devem ser celebrados. Por isso a proposição, de uma pesquisa e continuidade da
busca por memórias do Sete e de outros clubes de futebol de várzea, para que futuramente
possam ser usados quem sabe para a criação de um Museu da várzea.

461
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462
ENTRE TERRITÓRIOS: AS NARRATIVAS SOB PERSPECTIVAS DAS
COMUNIDADES DE SÃO LÁZARO
Sasha Morbeck Miranda*
Kananda Gomes De Jesus**
Lucas Mahacri Dos Santos De Oliveira***
Anna Paula Da Silva****

Resumo: Este texto apresenta um projeto de extensão em desenvolvimento, Projeto de educação


patrimonial: preservação do campus de São Lázaro da Universidade Federal da Bahia (UFBA). O
projeto visa diálogos entre as comunidades interna, Campus de São Lázaro da UFBA, e a externa,
Comunidade de São Lázaro, para o desenvolvimento de ações educativas e culturais relacionais e
dialógicas (educação patrimonial) em prol da preservação do território e das práticas dos grupos
sociais envolvidos. O projeto estabelece atividades analíticas de mapeamento das comunidades, a
partir de questionários e entrevistas, assim como encontros quinzenais para a discussão de textos e de
possibilidades de atuação nas comunidades. A proposta dialoga sobre a perspectiva da prática
extensionista na Universidade como oportunidade de integração entre a Universidade e a sociedade
com vias à transformação social e das reflexões da Museologia Social. Assim, o projeto, também,
pretende construir coletivamente práticas de integração entre as comunidades.

Palavras-chave: Projeto de Extensão; Educação Patrimonial; Campus de São Lázaro; Universidade;


Museologia Social.

Abstract: This text presents an extension project that is currently being developed, Projeto de
educação patrimonial: preservação do campus de São Lázaro da Universidade Federal da Bahia
(UFBA). The project aims to promote dialogues between the internal community (São Lázaro campus´
community), and the external community (São Lázaro´s community) in order to develop educational,
dialogical, relational and cultural actions between them (heritage education) so as to preserve the
territory and the practices between these social groups that are involved. The project establishes the
mapping of communities throughout the analysis of surveys and interviews and the bimonthly
meetings where texts and the possibilities of actions within the communities are discussed. The
proposal dialogues about the perspective of the extensionist practice at university as an opportunity of
integration between the university and society leading to a social change and it also deals with
reflections on social museology. In this way, the project aims to create practices of integration
between both communities collectively.

Key-words: extension Project; heritage education; São Lázaro´s campus; university; social
museology.

463
Este texto é fruto do projeto de extensão, Projeto de educação patrimonial:
preservação do campus de São Lázaro da Universidade Federal da Bahia (UFBA), cujo
objetivo principal é estabelecer uma comunicação entre as comunidades internas e externas ao
campus citado em prol da preservação do território. A universidade tem como projeto político
o desenvolvimento de atividades relacionadas ao ensino, pesquisa e extensão, que por sua vez
são indissociáveis, tendo a extensão como uma forma de integração entre a universidade e a
sociedade.

Neste sentido, o projeto visa diálogos entre a comunidade interna da UFBA, Faculdade
de Filosofia e Ciências Humanas – campus de São Lázaro, e a comunidade externa,
especificamente a comunidade de São Lázaro, que se encontra ao lado da área federal da
supracitada instituição. A proposta foi criada por duas docentes do Departamento de
Museologia, Professora XXXXXXX e Professora XXXXXXX, que a partir do incômodo
sobre o desconhecimento do território do campus e da pouca proximidade e contato entre as
comunidades propuseram o referido projeto. A proposta também conta com cinco discentes
voluntários para o seu desenvolvimento.

A metodologia utilizada é exploratória, tendo como procedimento pesquisa de


campo com o preenchimento de questionários, visitas aos territórios internos e externos,
conversas com estudantes, funcionários e moradores da região, leitura de textos, reuniões
entre as docentes e os discentes voluntários. No momento, o projeto encontra-se em fase de
análise dos dados referentes aos questionários e a continuidade das visitas a comunidade de
São Lázaro, para a compreensão das narrativas e da construção de práticas que possam
agregar às comunidades.

A proposta leva em consideração a percepção e o contato com o território a partir do


(des)conhecimento das comunidades, fundamentalmente, o aspecto relacional entre os

464
indivíduos e os contextos sociais que os envolvem. Para Milton Santos (1998, p. 15) “É o uso
do território, e não o território em si mesmo, que faz dele objeto de análise social”. Neste
sentido, analisamos, a partir do projeto, as questões políticas, sociais, econômicas, culturais
que envolvem as comunidades e os seus (des)encontros, afinal o “território são formas, mas o
território usado são objetos e ações, sinônimo de espaço humano, espaço habitado”
(SANTOS, 1998, p. 16).

Até o momento o projeto reconheceu que as comunidades interna e externa têm pouca
proximidade, ambas conhecem pouco uma da outra, e o que conhecem é de cunho pejorativo,
principalmente a visão dos externos para com os internos. Temos percebido que os estudantes
do campus de São Lázaro, em sua grande maioria, desconhecem a existência da comunidade,
tendo o nome do campus como referência do próprio local.

Outro aspecto em análise é a existência de questões que afligem os moradores do


bairro, a exemplo da ausência de sensibilidade por parte dos estudantes, quando realizam
festas na comunidade de São Lázaro e não limitam os seus atos: como música alta e uso
de drogas até a madrugada. Apesar de frequentarem o bairro e o campus, grande parte dos
estudantes desconhecem as histórias por trás dos locais, a exemplo, do fato do território ali ter
sido uma fazenda ou mesmo dos motivos pelos quais os pavilhões de aula serem chamados
respectivamente de Raul Seixas e Thales de Azevedo, entre tantas outras possibilidades de
compreensão espaço-temporalmente.

Tal falta de conhecimento e de limites de alguns apresenta um desconhecimento por


parte da comunidade interna do campus, e algumas atitudes por parte de estudantes na
comunidade de São Lázaro afetam a relação entre os moradores e o campus da UFBA, este
por sua vez já é visto por muitos moradores como um lugar a parte que não deve ser utilizado
por eles, apesar de o campus ser uma área pública.

465
Desse modo, a comunidade se sente excluída de algo que fica em seu próprio bairro e
que poderia ser utilizado não só como lazer para os moradores, mas como um lugar de
atividades de ensino para crianças, adolescentes e adultos. Neste sentido, o projeto pretende
estreitar laços e estabelecer diálogos entre as comunidades, na construção coletiva do campus
como um lugar acessível e enriquecedor para que a comunidade externa se sinta bem, assim
como os que estudam e trabalham na instituição. Para Hugues de Varine (1995, p. 26) “ [...]
qualquer processo de desenvolvimento precisa produzir mudanças positivas, estando ao
mesmo tempo ligado às raízes culturais e psicológicas da comunidade [...]”. Portanto, a
comunidade de São Lázaro precisa se sentir parte positivamente, culturalmente e
psicologicamente ao campus que recebe o seu nome.

Em nossas visitas à comunidade de São Lázaro, também, conhecemos a ONG “Projeto


Salva Dor”. O nome é uma prévia do que alguns fazem efetivamente pela comunidade, que
apresenta problemas sociais como o tráfico de drogas, a prostituição, a exploração de
menores, e a ONG sobrevive de doações de alimentos e notas fiscais para alimentar e prover
educação à algumas crianças. Outros aspectos apresentados durante as idas à comunidade são
problemas relacionados à acessibilidade, à falta de saneamento básico e de cuidados médicos,
questões essas levantadas pelos moradores do local.

Neste sentido, nos munimos de reflexões sobre a museologia social a partir das
informações coletadas, como forma de produzir interações entre os grupos que estão inseridos
nesta realidade, tornando possível a preservação e a exaltação do campus de São Lázaro, e o
reconhecimento e desenvolvimento da identidade do local e da comunidade como um todo
com vias à transformação da realidade desses grupos.

A museologia social, na perspectiva aqui apresentada, está


comprometida com a redução das injustiças e desigualdades sociais; com o
combate aos preconceitos; com a melhoria da qualidade de vida coletiva;
com o fortalecimento da dignidade e da coesão social; com a utilização do

466
poder da memória, do patrimônio e do museu a favor das comunidades
populares, dos povos indígenas e quilombolas, dos movimentos sociais,
incluindo aí, o movimento LGBT, o MST e outros. Seria possível dizer que
toda museologia é social, se toda museologia, sem distinção, estivesse
comprometida do ponto de vista teórico e prático com as questões aqui
apresentadas; mas isso não acontece, não é verdade e sobre esse ponto não
devemos e não podemos ter ingenuidade (CHAGAS; GOUVEIA, 2014, p.
17).

O reconhecimento do território como elemento de construção e coesão social viabiliza


a constituição de práticas de preservação, escuta e empoderamento das comunidades, como
um instrumento de mudança por meio do patrimônio, para Hugues Varine (2012, p. 45) o
território é o DNA do patrimônio. Neste sentido, compreendemos a importância do
desenvolvimento local, como prática inerente da museologia social e a partir do projeto de
extensão, inscrito a partir desta linha de desenvolvimento social do campo do conhecimento
da Museologia, como vetor de transformação social, no qual pretendemos estabelecer a
integração das comunidades para preservação do território e de suas práticas a partir da
educação patrimonial.

Toda vez que as pessoas se reúnem para construir e dividir novos


conhecimentos, investigam pra conhecer melhor, entender e transformar a
realidade que nos cerca, estamos falando de uma ação educativa. Quando
fazemos tudo isso levando em conta alguma coisa que tenha relação ao com
nosso patrimônio cultural, então estamos falando de Educação Patrimonial!

O Iphan concebe educação patrimonial como todos os processos educativos


que primem pela construção coletiva do conhecimento, pela dialogicidade
entre os agentes sociais e pela participação efetiva das comunidades

467
detentoras das referências culturais onde convivem noções de patrimônio
cultural diversas22.

Esta definição de educação patrimonial escrita pela Coordenação de Educação


Patrimonial do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Ceduc/Iphan) vai de
encontro a proposta do projeto de extensão em processo, principalmente, quando
compreendemos a educação patrimonial como ações dialógicas de reconhecimento e
empoderamento, que visam a transformação da realidade.

O projeto ainda está em processo de compreensão e análise dos grupos: os


dados dos questionários respondidos estão em processo de tabulação; há a continuidade de
entrevistas e preenchimento de questionários na comunidade; e há a continuidade, também, da
coleta de alimentos, notas fiscais e outros materiais para a ONG, Projeto Salva Dor.

A proposta das docentes é a longa duração do projeto, ou seja, a continuidade


ao longo dos anos, prevendo após o mapeamento e as análises a realização de atividades de
interesse dos grupos citados, sobretudo, atividades que estabeleçam diálogos entre as
comunidades, a exemplo, de práticas psicossociais, lúdicas e de ensino.

Portanto, este texto apresentou algumas reflexões iniciais do projeto de


extensão em desenvolvimento na UFBA, que esperamos que tenha vida longa, e que ao longo
dos anos possamos apresentar os impactos no território, bem como os aspectos relacionais
dialógicos entre as comunidades interna e externa, compreendo o campus de São Lázaro
como um lugar que promove reflexões sobre políticas públicas de cunho social, econômico e
cultural, fundamentalmente, o impacto da universidade na comunidade externa.

22 Esta definição consta no blog da Coordenação de Educação Patrimonial do Instituto do Patrimônio


Histórico e Artístico Nacional (Ceduc/Iphan). Disponível em:
<https://educacaopatrimonial.wordpress.com/about/>. Acesso em: 20 jul 2017.

468
Referências

CHAGAS, Mário; GOUVEIA, Inês. Museologia social: reflexões e práticas (à guisa de


apresentação). Cadernos do CEOM – Centro de Memória do Oeste de Santa Catarina. Ano
27, n. 41, 2014, p. 9-22. Disponível
em:<https://bell.unochapeco.edu.br/revistas/index.php/rcc/article/view/2592>. Acesso em: 19
jul 2017.

SANTOS, Milton. O retorno de território. In: SANTOS, Milton; SOUZA, Maria Adélia A.
de; SILVEIRA, Maria Laura. Território: globalização e fragmentação. 4 ed. São Paulo:
Editora Hucitec / Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento
Urbano e Regional, 1998, p. 15-20.

VARINE, Hugues. O museu comunitário como processo continuado. Cadernos do CEOM –


Centro de Memória do Oeste de Santa Catarina. Ano 27, n. 41, dez 2014, p. 25-35. Disponível
em: <https://bell.unochapeco.edu.br/revistas/index.php/rcc/article/view/2595/1495>.
Acesso: 19 jul 2017.

VARINE, Hugues. As raízes do futuro: o patrimônio a serviço do desenvolvimento local.


Porto Alegre: Editora Medianiz, 2012.

469
MAPEANDO CAMINHOS:DELINEAMENTOS SOBRE A PRESERVAÇÃO DO
CAMPUS DE SÃO LÁZARO

Lílian Bastos Alves*

Rafael Vinícius Almeida Vilas Boas**

Larissa Figueredo Siqueira***

Luciana Oliveira Messeder Ballardo****

Resumo: O presente texto apresenta as atividades desenvolvidas de um projeto de extensão


cujo objetivo principal é a compreensão e preservação do campus de São Lázaro da Faculdade
de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia (FFCH-UFBA) como
patrimônio, através da aproximação entre as comunidades acadêmica e local, a fim de gerar
mudanças nessa relação a partir de práticas museológicas, utilizando a pesquisa-ação como
um dos procedimentos metodológicos, a partir de entrevistas e aplicação de questionários.
Estudos e experiências relatadas de Hugues de Varine sobre a Museologia Social, aliados às
discussões e contextualização teórica de Mário Chagas e Inês Gouveia, embasam essa busca
pela patrimonialização da localidade, objetivando o conhecimento recíproco entre as
comunidades e o fortalecimento da identidade.

Palavras-chave: Preservação; Patrimônio; Campus de São Lázaro; Museologia Social; Comunidades.

Abstract: This paper presents the activities developed in an extension project which main objective is
to understand and to preserve the São Lázaro da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Federal da Bahia (FFCH-UFBA) campus as patrimony, through the approximation
between the Academic and local communities in order to generate changes in their relation from
museological practices, using action research as one of the methodological procedures, based on
interviews and questionnaires. Studies and experiences of Hugues De Varine on Social Museology,
allied to the discussions and theoretical contextualization of Mário Chagas and Inês Gouveia, support
this research for patrimonialization of the locality, aiming the reciprocal knowledge among
communities and the strengthening of the identity.

Key-words: Preservation; Heritage; Campus de São Lázaro; Social Museology; Community.

470
O interesse da comunidade é o primeiro passo para iniciar-se o processo de
desenvolvimento da cultura local. Mas, como despertar tal interesse? Como contribuir para a
abertura de mais possibilidades de comunidades periféricas elegerem seus próprios
patrimônios? E o que dizer dos espaços no entorno dos campus universitários? Estes são
questionamentos que vem permeando discussões acadêmicas no curso de Museologia da
Universidade Federal da Bahia.
Essas indagações originaram um projeto de extensão objetivando a interpretação e
preservação do campus de São Lázaro da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Federal da Bahia (FFCH-UFBA), enquanto patrimônio, ressaltando-o como
ferramenta relevante no processo de desenvolvimento da cidadania dos indivíduos e grupos
sociais que se relacionam com o espaço e estão em seu entorno, utilizando como aporte
teórico os estudos relacionados a Museologia Social.
A primeira etapa do projeto, concluída recentemente, foi o mapeamento dos dois
públicos citados acima, a partir de entrevistas e aplicação de questionários. Apresenta-se aqui
o processo de trabalho e resultados obtidos com os frequentadores e os que desenvolvem
atividades laborais e estudantis no campus.

Da base teórica
Pensar em Museologia Social é ter em mente as complexidades em torno de um campo
que permite inúmeras abordagens teórico-metodológicas, mas, sobretudo, práticas. O termo
vem sendo usado23 para designar a construção de narrativas museológicas desenvolvidas a
partir dos próprios agentes da comunidade, permitindo-os eleger seus patrimônios. No
entanto, é preciso esclarecer que o que a caracteriza são “os compromissos sociais que assume
e com os quais se vincula” e portanto

23 No Brasil, o termo passa a ser usado, a partir dos anos 1990, para designar uma museologia
popular, comunitária, crítica e ativa, em detrimento do termo Nova Museologia. Reflexões de Hugues de
Varine, Mário Chagas e Inês Gouveia sobre o tema norteiam o uso do termo neste projeto.

471
[…] A museologia social, na perspectiva aqui apresentada, está
comprometida com a redução das injustiças e desigualdades sociais; com o
combate aos preconceitos; com a melhoria da qualidade de vida coletiva;
com o fortalecimento da dignidade e da coesão social; com a utilização do
poder da memória, do patrimônio e do museu a favor das comunidades
populares, dos povos indígenas e quilombolas, dos movimentos sociais,
incluindo aí, o movimento LGBT, o MST e outros. (CHAGAS, 2014, p.17)

Para trazer à luz a importância dessa tendência da museologia, Varine (2014) assinala
a principal diferença entre o museu dito normal e o comunitário: o primeiro, propaga o
conhecimento e a cultura, em grande parte eleitos pelas elites; enquanto o segundo serve à
comunidade, impulsionando seu desenvolvimento sociocultural.
Há mais de quarenta anos, a comunidade acadêmica e a local coexistem diariamente,
dividindo e disputando espaços na localidade. Docentes do curso de Museologia, inseridos na
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, localizada no bairro da Federação, precisamente,
dentro da comunidade conhecida por “São Lázaro”, criaram, em outubro de 2016, o projeto de
extensão Preservação do Campus de São Lázaro, cuja principal discussão é encontrar uma
prática museológica que contribua para a aproximação entre esses grupos e gere mudanças
dentro e fora do campus.
Durante quase um ano de atividades do projeto, vários discentes integraram a equipe e
junto com as coordenadoras realizaram atividades diversas: entrevistas, aplicação de
questionários, leitura e discussões de textos, visitas à comunidade externa, divulgação do
projeto e análise de dados, pesquisas, para citar apenas algumas.
Foram realizadas, concomitantemente, atividades de pesquisa com os dois públicos e a
apresentação dos dados e análises realizadas intramuros estão relacionados no próximo
tópico.

Entrevista com os internos


Como visto anteriormente, o Projeto de Preservação do Campus de São Lázaro tem
entre seus principais objetivos estreitar as relações entre a comunidade interna e externa.

472
Desse modo, foram executadas entrevistas dentro do espaço interno buscando obter opiniões e
visões, a partir de alguns questionamentos: É possível estreitar o vínculo entre as
comunidades interna e externa? Em caso positivo, como? Qual é a responsabilidade individual
de integrantes da academia em participar nesse processo?
Com base na análise de dados gerados nessas entrevistas evidencia-se a preocupação
com a segurança do campus, e sobretudo, a distância que as duas comunidades estabelecem
uma da outra.
Apesar dos acadêmicos participarem de festas nas proximidades da comunidade, e
muitas vezes, fazerem uso dos bares da região como espaço de entretenimento e
confraternização, pouco conhecem sobre o entorno. Além disso, a maior parte dos
funcionários, sejam servidores públicos, terceirizados ou informais, desconhecem e não
estabelecem quaisquer relações com o espaço extramuros, a não ser de usá-lo como acesso ao
campus.
Por outro lado, é possível notar uma inquietação de frequentadores e ocupantes do
campus, apesar de não se perceberem como agentes de mudança, a partir das ideias
compartilhadas como soluções para os problemas apontados que sugerem uma aproximação
através de festas, feiras, palestras, fóruns, oficinas, cursos, projetos de extensão, eventos
culturais, disponibilizar a biblioteca também para a comunidade, criar um memorial da
comunidade, atividades audiovisuais, a FFCH disponibilizar serviços médicos, como por
exemplo, atendimento psicológico, criação de um parque, aulas esportivas, entre outros
A amostragem analisada gerou os resultados expostos no gráfico a seguir.

473
Tabela 1: Quantidade de entrevistados: 72. Respostas em múltipla escolha.

desenvolvidos
Projetos Sociais

Reforço na segurança

Biblioteca Autonoma

Projetos de extensão

Festas

Cursos 16

Ações Culturais 14

Feiras

Palestras 17

Atividades Comunitaria 14

Memorial/Museu

Não souberam 14

10 12 14 16 18

Fonte: Gráfico gerado por membros do projeto a partir da tabulação dos dados coletados em campo.

A partir dos dados recolhidos, a etapa seguinte propõe a divulgação dos resultados,
principalmente relacionados às atividades sugeridas para serem desenvolvidas, visando um
diálogo entre as duas comunidades, utilizando como ferramenta ações culturais e educativas
com o patrimônio. O interesse é convidar os públicos a conhecerem o projeto, em busca de

474
agentes desenvolvedores, que possam se inserir e contribuir com ações, propostas e sugestões,
mantendo-o em constante processo de transformação.

Apontamentos
Alguns aspectos da relação dos estudantes, professores e funcionários da FFCH com a
comunidade de São Lázaro foram expostos nas entrevistas realizadas. Grande parte dos
estudantes frequentam apenas a universidade, apresentando desinteresse pela localidade de
forma geral. Porém, também é amplo o número de entrevistados que sugeriram formas de
aproximação entre as comunidades.
Trazer a comunidade local para dentro do campus, através de oficinas de arte,
seminários, saraus, atividades de saúde e lazer são as formas de aproximação mais indicadas
pelo público interno. Mas, é preciso ouvir também a comunidade local, conhecer suas
demandas e dificuldades.
Conhecer é uma maneira de enraizar nas dimensões sociológica, étnica e antropológica
da cultura local e origina uma riqueza de informações, bem como a oportunidade de novos
enfoques norteadores da investigação acadêmica. A busca pela compreensão da comunidade
que nos cerca cotidianamente contribui para o entendimento da nossa identidade, de forma
ampla e intensa, a fim de preservá-la.

Referências bibliográficas

DESVALLÉES, André; MAIRESSE, François. Conceitos-chave de Museologia. Tradução:


Bruno Brulon Soares, Marília Xavier Cury. ICOM: São Paulo, 2013. Disponível em:
<http://icom.museum/fileadmin/user_upload/pdf/Key_Concepts_of_Museology/Conceitos-
ChavedeMuseologia_pt.pdf>. Acesso em: abr. 2015.

CHAGAS, Mario; GOUVEIA, Inês. Museologia social: reflexões e práticas (à guisa de


apresentação). In Museologia Social. Cadernos do Ceom. Ano 27, nº 41. Chapecó:
Unochapecó, 2014, pp. 9-22.

475
VARINE, Hugues De. O museu comunitário como processo continuado. Revista Cadernos
do Ceom, v. 27, n. 41, p. 25-35, 2014.

476
A favor dos museus
comunitários: reflexões
e prática

477
A MUSEALIZAÇÃO NA EDUCAÇÃO COM BASE NA IDENTIDADE SOCIAL

Elen Da Silva Pereira*


Luciane Farias Pantoja**
Doriedson Do Socorro Rodrigues***

Resumo: Este artigo é um recorte do projeto “Cartografia do patrimônio do bairro do Guamá pela
memória de seus moradores”, que teve início nas discussões das aulas de Artes, na Escola Estadual de
Ensino Médio Governador Alexandre Zacharias de Assumpção, com a intenção de estabelecer relação
entre museu, sociedade e patrimônio. Pressupondo-se o diálogo entre saberes disciplinares
convergentes com a dimensão social, política, cultural e crítica nos processos formativos integrados às
práticas pedagógicas escolares, buscou-se identificar o conhecimento dos alunos sobre o patrimônio
do seu bairro, local de suas vivências. A execução do projeto consiste no mapeamento do bairro e sua
divisão em “Circuitos Culturais Interativos” delimitados, viabilizando o levantamento do patrimônio
material e imaterial da área, para elaboração de passeios guiados pelos alunos a esses locais, o que
possibilitou o cruzamento de olhares entre saberes disciplinares, saberes cotidianos e suas interfaces
com os múltiplos processos de patrimonialização e musealização, em prática pedagógica que se
aproxima da nova concepção de museologia.

Palavras-Chave: Saberes locais; Patrimônio, Musealização, Educação, Identidade social.

Abstract: This article is a summary of the project “Heritage Cartography of the Guamá neighborhood
in memory of its residents”, which had its start in the discussions of the Arts classes, at the State
Preparatory High School Governador Alexandre Zacharias de Assumpção, with the intention of
establishing a relationship between museum, society and heritage. The assumption of the dialogue
between convergent disciplinary knowledge with the social, political, cultural dimension And critics
on the integrated training processes to the teaching practices, we sought to identify the students'
knowledge on the heritage of your neighborhood, place of their experiences. The execution of the
project consists of mapping the neighborhood and its division into “Interactive Cultural Circuits”
delimited, allowing the lifting of the tangible and intangible heritage of the area, in order to prepare
guided tours by the students to these places, which allowed the crossing of glances between
disciplinary knowledge, everyday knowledge and their interfaces with multiple heritage processes and
musealization, In pedagogical practice that approaches the new conception of museology.

Key words: Local knowledge; Heritage; Musealization; Education; Social identity.

478
Introdução
A relação entre museu, sociedade e patrimônio pressupõe o diálogo com outros
saberes disciplinares que convergem para a dimensão social, política, cultural e crítica nos
processos formativos integrados às práticas pedagógicas escolares. Foi a partir dessa
concepção crítica e reflexiva, numa compreensão ampla do conceito de patrimônio, que a
experiência dos “Circuitos Culturais Interativos”, desenvolvida com discentes do terceiro ano
do nível médio, na Escola Estadual de Ensino Médio Governador Alexandre Zacharias de
Assumpção, no bairro do Guamá, possibilitou o cruzamento de olhares entre os saberes
disciplinares e os saberes cotidianos, bem como suas interfaces com os múltiplos processos de
patrimonialização da nova museologia.

Partindo dessa concepção e considerando a ideia de Museu Integral, concebida a


partir da Carta de Santiago em 1972 (IBRAM, 2012), enquanto proposta de ação comunitária
voltada à participação social do sujeito no sentido de aproximá-lo de sua própria cultura, é
possível estabelecer a relação entre os campos científicos da educação e da museologia como
propostas formativas e de aprendizado para a realização e o pleno desenvolvimento humano.
Sob essa perspectiva, o processo formativo amplia sua abrangência para os espaços não
escolares, flexibilizando tanto o processo de institucionalização quanto a própria
responsabilidade educacional, na medida em que também alcança as organizações sociais e
comunitárias locais representadas em centros, grupos, associações, uniões, espaços culturais e
religiosos, entre outros.

Isso pressupõe também o diálogo das práticas educativas escolares com o


cotidiano da vida social, política, econômica e cultural dos sujeitos envolvidos no processo de
ensino-aprendizagem, no qual a ‘sociedade do conhecimento’ ou ‘socie dade do
aprendizado’ se (re)constrói coletivamente nas tramas sociais cotidianas das formas de vida
compartilhadas por meio da troca de experiências.

479
É nesse contexto que o cotidiano dos discentes trazidos até a escola aparece não
apenas como espaço para apreensão e produção de conhecimentos sistematizados, mas
principalmente como o lugar onde vivências são compartilhadas, experiências cotidianas estão
imersas em trocas culturais que trazem à tona identidades plasmadas na trama da vida social
ocorrida no próprio bairro.

A concepção de museu comunitário

Considerando os pressupostos teóricos da nova museologia e o contexto dos


diversos movimentos sociais que emergem ao final do século XX, os museus comunitários
surgem como organizações legitimadas por determina da comunidade para salvaguardar
seu patrimônio coletivo, caracterizando um processo de conquista e resistência da sociedade
contemporânea no sentido de dar visibilidade aos excluídos que tiveram suas vozes
silenciadas. Tais espaços se materializam no próprio cotidiano da comunidade que, por meio
das tramas sociais em que se dá a dinâmica de sua própria vida, musealiza o território, o
espaço vivo para atender suas expectativas e o reconhece como patrimônio, valorizando e
preservando aquilo que dá sentido à sua existência.

Isso pressupõe não apenas a ampliação da concepção de patrimônio e museu, mas


também exige a compreensão holística do ser para uma interação com o meio em que se dá
sua própria existência cotidiana e os ambientes vivenciais que possam contribuir para a sua
formação plena em defesa da sustentabilidade, multiculturalidade e intervenção em projetos
comunitários (SCHEINER, 2006).

No entanto, a aproximação entre a prática museológica e as práticas sociais não


devem estimular o isolamento da comunidade em torno da própria experiência, no sentido de
cristalizar e congelar suas formas culturais para ações etnocêntricas organizadas em
movimentos sociais de lideranças e estruturas políticas dentro da nova museologia com os

480
museus comunitários, mas sim possibilitar uma educação museal para tolerar a diferença e
aceitar a pluralidade. Dessa forma, a consolidação do conceito de museu integral se dá por
meio da relação que os sujeitos representados estabelecem com o espaço, o tempo e as
memórias que revelam a identidade de determinado território, possibilitando a formação de
museus comunitários como alternativa para valorizar as dinâmicas sociais de comunidades
locais e suas formas específicas de interação com o patrimônio e (re)construção da identidade.
(Id, 2012).

Partindo desse pensamento dialógico com os pressupostos teóricos da nova


museologia, enquanto campo do conhecimento que apresenta a ideia de museu como um
constructo social, uma prática interativa que emerge da relação entre o sujeito e a realidade
que o cerca, ou seja, a compreensão de musealidade está intrinsecamente relacionada ao
contexto histórico e social em que ocorrem as relações humanas cotidianas (STRÁNSKÝ,
1980).

Sob essa perspectiva, o museu adquire uma conotação múltipla, ampliada e


particular simultaneamente, enquanto fenômeno que revela uma relação específica entre o
homem com seu tempo, espaço e memórias, ou seja, a interação de determinada comunidade
com suas formas de vida e os valores que fazem emergir sua própria cultura

uma museologia mais simples, que nada tem a ver com grandes ventos
culturais (...). Este tipo de museologia é composto por museus destinados a
coletar a evidência da cultura material e objetos utilizados no cotidiano, e
cuja importância e utilidade diminui gradualmente. Estes são museus
vinculados a uma área limitada, e que têm como objetivo contar pequenas
histórias locais, relembrando a pessoas de comunidades frequentemente não
maiores do que lugarejos, [quais são] as suas raízes (G. PINNA apud
MAGGI & FALLETTI, 2000, p. 2, tradução SCHEINER, T.).

É preciso compreender a relação entre patrimônio, museologia e museu no


contexto da sociedade contemporânea em transformação, de forma que a ideia de musealidade
seja flexibilizada de acordo com a percepção de cada sociedade e adequada aos processos

481
evolutivos de seus sistemas de pensamento, uma vez que seu estudo emerge no interior das
múltiplas relações que ser o humano estabelece com o real, criando diferentes representações
e “formas de museus: museus tradicionais, baseados no objeto; museus de território,
relacionados ao patrimônio material e imaterial das sociedades do passado e do presente;
museus da natureza; museus virtuais/digitais” (SCHEINER apud SCHEINER, 2012, p.18).

Escola, juventude e patrimônio


A discrepância entre o conhecimento produzido no contexto da escola e os anseios
da comunidade discente tem aumentado significativamente. Porém, é certo que os sentidos
atribuídos à vivência escolar, especialmente entre alunos do Ensino Médio, são variados,
sendo o reflexo das mudanças pelas quais a sociedade vem passando e, consequentemente,
são decorrentes de atitudes que afetam a socialização de saberes desenvolvidos nas
instituições educacionais, cuja missão primordial é a formação para o exercício da cidadania.
Os dilemas decorrentes de relações sociais fluidas na pós-modernidade1 apontam
para a crise de legitimidade enfrentada no contexto educacional como um todo. Essas
dificuldades aumentam, na medida em que refletem mutações de elementos e processos
socializadores, que interferem diretamente na organização do trabalho pedagógico e
institucional da escola pública, evidenciando a distância entre o que tem sido oferecido no
cotidiano escolar e as expectativas de uma juventude heterogênea e plural, caracterizada pela
desigualdade e exclusão social, altos índices de pobreza e violência, bem como a
invisibilidade de aspectos culturais que revelam identidades.
Essa flexibilização e fluidez nas relações entre os sujeitos prescindem de uma
formação social não vinculada somente à escola, mas também que considere o meio de
convívio dos alunos antes dessa condição, como cidadãos com histórias, culturas,
conhecimentos e saberes expressos em identidades plasmadas nos seus modos de vida.

1
Termo pensado a partir da concepção de “modernidade líquida”, proposta por Zygmunt Bauman, na qual as
experiências são construídas no cotidiano por meio de uma insegurança estrutural que, somada à exaltação da
liberdade consumidora individual, resulta em aparatos técnicos para proteção do sujeito. Ver: BAUMAN,
Zygmunt. O mal estar na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

482
Pela observação de uma seleção cultural escolar, Forquin (1992) apresenta a
função social da educação enquanto elemento essencial para transmissão, conservação e
perpetuação de traços culturais herdados do passado, mas que são reinterpretados e
reavaliados constantemente nas relações sociais cotidianas. Nesse sentido, a memória cultural
está imersa num intenso processo de reinvenção social, no qual os processos formativos são
integrados por meio das instituições educacionais formais que selecionam e incorporam
aspectos da memória coletiva aos programas de ensino.
Isso revela o conflito entre as transformações culturais necessárias e o que se
conserva, colocando em xeque tanto a memória escolar, quanto a memória coletiva que
transmite parte da experiência humana acumulada ao longo do tempo, pois as formas de
representação e os vínculos sociais que são estabelecidos com o passado revelam aspectos
políticos, sociais e ideológicos de determinada comunidade.

A complexidade e o compromisso de uma formação social não devem estar


vinculados somente à escola, mas também ao meio de convívio dos alunos que, antes dessa
condição, também são cidadãos que trazem consigo uma história, da qual nem sempre tem
conhecimento. Num estudo historiográfico o meio, em sua existência anterior a nós, torna-se,
com seus mortos, o palco de encenação do processo histórico que “as palavras do historiador
ajudam a enterrar”, sob a função de uma ajuda a “nós, os vivos, a nos lembramos dos mortos
para melhor viver hoje. Assim, a preocupação com a verdade do passado se completa na
exigência de um presente que, também, possa ser verdadeiro” (GAGNEBIN, 2006, p. 47).
Mas a verdade só pode ser compreendida quando dela tomamos conhecimento; uma condição
que se faz necessária para sabermos nossa própria história.

A escola apresenta-se como um lugar propício e privilegiado para dar visibilidade


às evidências materiais presentes no espaço urbano, abrindo possibilidades não apenas para
reflexões relacionadas à construção do conhecimento histórico, mas principalmente para a
valorização do espaço que constitui o próprio bairro enquanto elemento que permite debruçar-
nos sobre o passado e desvelar identidades compartilhadas ao longo do tempo (NORA, 1993).

483
Entretanto, essas evidências materiais constituídas como bens incorporados ao
cotidiano permitem uma série de questionamentos relacionados aos laços de pertencimento
construídos socialmente, na medida em que reiteram ou excluem tais vestígios, contrapondo
as ideias de identidades compartilhadas e a ressignificação desses lugares de memória que
serão selecionados ou não para valorização e preservação.

Isso demonstra a necessidade de refletir sobre o espaço em que se vive na sala de


aula como um elemento que faz emergir contradições sociais, intenções que elegem ou
excluem de maneira alegórica bens culturais para serem esquecidos ou lembrados. Entretanto,
é possível perceber a ideia de que a cultura material ou imaterial abre possibilidades para
revisitar e refletir sobre o passado, uma vez que o cotidiano torna-se o ambiente simbólico
onde são compartilhados saberes, fazeres, conceitos e formas de se perceber o mundo,
tecendo e revelando memórias do passado que integram as crenças e os conhecimentos
necessários à vida prática (KESSEL, 2008).

Considerando o conflito entre estruturas simbólicas inseridas em formas de


controle, Caon analisa a problemática da valorização e preservação dos bens culturais como
mitos criados por grupos sociais que elegem determinados acontecimentos em detrimento de
outros, para consolidar as ideologias simbolizadas oficialmente. Assim, a cultura material,
enquanto elemento que constitui determinado espaço durante um lapso temporal, está
intrinsecamente ligada a um mundo simbólico que insere nas comunidades memórias,
conceitos e estimas alheias a elas. Isso demonstra que os conceitos de preservação e,
principalmente, de revitalização dos bens culturais das cidades na sociedade contemporânea,
vão de encontro à ideia de fazer perpetuar testemunhos do passado, de manter um documento
como objeto que elucida a memória e as práticas sociais de determinado período, uma vez que
a utilização de tais espaços, com finalidades comerciais de lazer e entretenimento,
“transforma a cultura local em cidade-mercadoria, valorizando artificialmente o solo urbano”
(CAON, 2010, p.65).

484
Essa “espetacularização reificada” do espaço urbano, como denominou Ulpiano
de Meneses ao processo de transformação desse patrimônio em coisa, isto é, um objeto a ser
consumido pelas pessoas para produzir renda e gerar lucro na economia capitalista, na medida
em que o “marketing da memória” e o “resgate da cultura” transformam um espaço cultural
naturalizado em algo que não carece de explicação alguma para sua absorção. Dessa forma, o
autor aponta o museu como um lugar privilegiado para se tomar consciência de que o
patrimônio é um universo artificial que traduz valores, interesses, focos de conflitos e suportes
de dominação que adquirem significados em várias dimensões, sob o olhar atento do
observador, uma vez que a informação do conhecimento ali produzido estabelece vínculos de
subjetividade, inclusive identitários, que são criados ou reativados, de acordo com o exercício
da imaginação de cada sujeito (apud BITTENCOURT, 2012, 127-128).

Portanto, a recuperação da “dimensão humana do espaço é um problema político


dos mais urgentes”, porém necessário para o reconhecimento de um patrimônio como
memória histórica de um passado comum a todos, uma vez que a “sobrevida de um grupo se
liga estreitamente à morfologia da cidade; esta ligação se desarticula quando a especulação
urbana causa um grau intolerável de desenraizamento” (BOSI, 2003, 76).
Na cultura se encontram os saberes que emergem da experiência, de
conhecimentos, ainda que não sistematizados e não institucionalizados, apreendidos e
produzidos na vivência, ou seja, são construídos no interior das relações humanas, uma vez
que sua convenção é social e se constitui na prática cotidiana para além da academia,
(re)produzindo e (re)definindo as identidades que (re)constituem a existência dos sujeitos que
“são seres humanos tocando, vivenciando, relacionando-se com (outros) seres humanos”
(ARROYO, 2003, p.60). Dessa forma, é preciso considerar seus traços culturais, as trajetórias
de vida, bem como os sentimentos que humanizam ou desumanizam a sua própria existência.

Numa concepção holística de formação para a integralidade do sujeito, os


processos formativos não estão limitados aos espaços institucionalizados para escolarização e
com organização para esse fim, uma vez que estes se constroem juntamente com a existência

485
dos sujeitos nela envolvidos, ocorrendo antes, durante e depois do processo formal,
constituindo-se em múltiplos espaços de reflexão para além da escola. Nesse percurso, ocorre
o processo de subjetivação da cultura e do conhecimento, por meio da reflexão crítica em
relação à realidade, no sentido de extrair dela substâncias e conteúdos significativos, ou seja,
situações didáticas que permitam a integração entre conhecimentos disciplinares e cotidianos,
conhecimentos teóricos e conhecimentos que emergem das tramas sociais que envolvem os
alunos (LIBÂNEO, 2013).

Aqui o conhecimento é tomado como objeto de trabalho integrado à própria


prática pedagógica, por meio da qual ele se constrói e reconstrói numa perspectiva político-
crítica no contexto plural e diverso no qual está imerso, considerando a articulação entre
tecnologia, movimentos sociais e novos saberes, numa relação indissociável entre ensino,
pesquisa e extensão. A reconstrução do passado deve ser vista não como um “refúgio, mas
uma fonte, um manancial de razões para lutar. A memória deixa de ter um caráter de
restauração e passa a ser memória geradora do futuro” (BOSI, 2003, 66).

Nesse sentido, a educação não é somente o meio de transmitir ou conservar um


patrimônio que carrega a memória coletiva do passado, mas ela abre caminhos para a
participação na vida cultural enquanto elemento que atribui significado à própria existência
por meio da afirmação e da plena realização do eu na convivência com os outros, de forma
que as artes, as ciências e a tecnologia sejam objetos de apropriação humana para expressão
de sua subjetividade. Então, a base da formação humana integral deve buscar a dialogicidade
entre a formação estética, intelectual e técnica, enquanto unidade intrínseca e indissociável na
formação do ser, isto é, a escola unitária, com visão “de cultura geral, humanista, formativa,
que equilibre equanimemente o desenvolvimento da capacidade de trabalhar manualmente
(tecnicamente, industrialmente) e o desenvolvimento das capacidades de trabalho intelectual”
(GRAMSCI, 1995, p.118).
Essa concepção está fundamentada na formação humana ampla, considerando a
integralidade e complexidade do ser histórico e cultural imerso em relações sociais, com

486
proposta de uma prática criativa intelectual, para autonomia do sujeito no interior de sua
própria cultura, na vida coletiva que se dá em meio às dinâmicas produtivas ligadas ao mundo
do trabalho. Nesse sentido, o objetivo da escola criativa proposto por Gramsci, não significa
restringir seu acesso aos prodigiosos inventores, mas sim estimular os sujeitos ao contato com
métodos de investigação e conhecimento, no qual a cultura aparece como elemento intrínseco
aos aspectos intelectuais e antropológicos que revelam saberes, fazeres, representações sociais
e formas de vida constituídas em modos de transmissão e aprendizagens (re)inventados
cotidianamente.

O cotidiano das identidades compartilhadas

No contexto de desenvolvimento da Amazônia, especialmente no que se refere ao


período da “Belle époque”2, o processo histórico de ocupação do bairro do Guamá se
caracterizou pela espontaneidade de seus antigos moradores e a ausência do poder público, o
que lhe conferiu singularidades econômicas e sociais, mas também delineou a paisagem e o
traçado geográfico por entre ruas, travessas, avenidas, vilas e vielas tão estreitas que se
entrecruzam num emaranhado de casas, barracos e construções que disputam seu pequeno
espaço e o constituem a mais populosa ‘periferia urbana’ da cidade de Belém.

Localizado a pouca distância do centro da cidade e comportando em considerável


espaço de sua área a Universidade Federal do Pará, maior instituição pública de nível superior
do estado do Pará, é um bairro que tem despertado a atenção de pesquisadores, no intuito de
compreender os processos históricos, sociais, culturais, econômicos, religiosos, entre tantos
outros que envolvem seus moradores, enquanto cidadãos que criam alternativas em muitos
aspectos de suas vidas, seja em relação ao trabalho, ao lazer e até mesmo no campo religioso,
expressando formas de vida singulares, compartilhadas em experiências diversas que lhe

2
O processo de ocupação do bairro do Guamá está diretamente relacionado com a política de modernização e
embelezamento da cidade de Belém durante a Bélle Èpoque, transformando-o em lugar de segregação social para
higienizar a cidade de seus males. Ver SARGES, Maria de N. Riquezas produzindo a Belle Époque.

487
conferem o título de bairro popular, tendo em vista o considerável fluxo diário de pessoas
vindas de outras partes da cidade para a Universidade e entrepostos comerciais localizados em
suas adjacências (DIAS JR., 2009).

Isso demonstra a dicotomia entre a dimensão do espaço, onde ocorre a produção


do conhecimento, e a dimensão do espaço compartilhado pelos seus moradores, bem como
revela contradições entre as relações estabelecidas com o lugar, uma vez que definem
identidades diferenciadas entre as pessoas que pertencem à comunidade guamaense e aquelas
que apenas utilizam as vias de acesso do bairro como percursos de passagem.

Com uma população carente e que demonstra formas de vivências alternativas em


muitos aspectos de sua vida, inclusive nas diversas formas expressivas integradas à cultura
popular: blocos carnavalescos, escolas de samba, grupos folclóricos, pássaros juninos, boi
bumbás, bem como grupos e movimentos sociais relacionados à cultura hip hop, o bairro
aparece como uma das principais referências culturais agregando inúmeros patrimônios
imateriais da cidade, que, muitas vezes, são ofuscados pelos altos índices de violência,
periculosidade, tráfico de drogas, prostituição e excedente populacional vivenciados no
cotidiano de seus moradores.

Identificado como espaço de considerável produção cultural, sobretudo no que


concerne aos movimentos de cultura popular: Escola de Samba Arco-Íris fundada em 1983; e
Bole-Bole, oriunda de divisões internas na Escola de Samba Arco-Íris em 1986; os bois
bumbás Flor da Noite (1982), Flor de Todo Ano (1985), Rei do Campo de Odivelas (1989),
Novo Malhadinho (1989), entre outros (DIAS JR. , 2009) – o bairro também ganha destaque
em ações relacionadas aos movimentos sociais e políticos, visto que as entidades, quer sejam
culturais, educacionais, religiosas ou comerciais constituem-se como espaços de litígio e de
fortalecimento do ethos identitário entre os sujeitos que compartilham vivências, demarcando
não apenas as singularidades que caracterizam a identidade local, mas principalmente
territorialidades que exprimem formas de apropriação do espaço por parte dos sujeitos que o

488
definem como “meu setor”, minha escola”, “minha rua” (RIBEIRO, 2011). Tais
movimentos revelam que há uma intensa vida cultural, social, política e econômica no bairro,
que é entrelaçada pelo sentimento de pertença de seus sujeitos que, a partir dos laços afetivos
estabelecidos com os lugares que integram a realidade e o cotidiano do bairro, interferem
efetitivamente, atribuindo significados à sua própria existência de seus habitantes.
Nesse sentido, as contribuições de Santos (1992), Harvey (1996), Abreu (1998) e
Magnoli (1999) enfatizam a importância da temporalidade para a análise da organização
espacial, ou seja, o espaço passa a ser concebido como um produto da história, na medida em
que sua materialização no tempo resulta de múltiplas formas construídas em diversas escalas
temporais. Assim, a história de determinado espaço urbano – no caso específico em questão o
bairro do Guamá – é revelada nas formas dinâmicas assumidas e (re)construídas ao longo dos
processos históricos vivenciados em temporalidades determinadas.

Nessa perspectiva, o espaço (bairro) deve ser analisado como o lugar da vida
social no qual o sujeito encontra-se inserido, onde ocorrem disputas práticas e simbólicas que
(re)significam a vida do indivíduo e das territorialidades construídas ao longo do tempo, a
partir da relação sujeito-sociedade, enquanto elemento constitutivo da identidade individual e
coletiva, num determinado tempo e espaço da história. Para Le Goff (1996), a memória é
intrínseca à identidade individual e coletiva, uma vez que tenta resguardar o passado para
direcionar o presente e nortear as perspectivas futuras.

A relação de pertencimento estabelecida com o lugar remonta ao processo


histórico de formação do bairro, uma vez que o início da ocupação territorial é caracterizado
por moradores que não somente se instalaram no local, mas desbravaram matas e igapós,
tomando a iniciativa de construir um espaço que, por entre becos, várzeas e bosques,
transcendeu as fronteiras geográficas de uma periferia que passou a ser incorporada ao
processo de crescimento urbano da cidade, revelando aspectos que singularizam as
territorialidades e as identidades que compõem o que hoje se identifica como bairro do
Guamá (DIAS JR., 2009).

489
Essa nova realidade urbana é traçada por ações humanas que recompõem o espaço
e, como “obra de uma sociedade que remodela, segundo suas necessidades, o solo em que
vive é, todos intuem isso, um fato eminentemente ‘histórico’” (BLOCH, 2001, p. 53). A
(re)construção do espaço determinado por diversas realidades sociais constituiu-se como
elemento intrínseco às formas de identificação com o lugar, delineando formas de vida
singulares em identidades compartilhadas, mas não dissociadas do cotidiano da cidade.
Isso permite a compreensão do espaço como elemento que constrói
territorialidades imersas em laços de pertencimento ao longo do tempo, considerando também
a cultura material e imaterial que o integra, aparecendo como o testemunho do passado que
chega ao tempo presente, ou seja, são rugosidades que possibilitam o “encontro com o
passado” (BLOCH, 2001). Nesse sentido, Hobsbawm (2013) afirma que a veracidade da
narrativa histórica está fundamentada nas evidências do passado.

Em análise às singularidades que caracterizam e permeiam as vivências


compartilhadas pelos sujeitos na realidade cotidiana do bairro, cabe aqui ressaltar algumas
características que justificam a compreensão de suas singularidades como “um depósito de
experiências populares que se entrelaçam nas diversas cadeias de sociabilidades manifestas de
diferentes formas ... elementos de construção de identidades e laços afetivos entre a
comunidade e o local” (DIAS JR., 2009, p.19).
Tal reflexão permite a compreensão de que o “território” – “meu setor”, “minha
escola”, “onde eu estudo” (RIBEIRO, 2011), aqui compreendido como o lugar familiar,
desenha um universo social de referência identificadora com o espaço que revela a afetividade
entre os sujeitos e os terrenos que não apenas demarcam, mas principalmente solidificam
identidades cotidianas. São lugares que fazem parte da vida das pessoas, influenciam e
expressam suas maneiras de viver, bem como a forma que elas estabelecem relações entre si,
ou seja, revelam a memória coletiva e as identidades compartilhadas pelos diferentes
habitantes que deles fazem parte, demonstrando variadas formas de viver em tempos
diferentes (CHOAY, 2001).

490
Dessa forma, tanto os monumentos quanto o patrimônio edificado devem ser
compreendidos como elementos intrínsecos ao contexto urbano que, imbricados e
circunscritos na história da cidade, revelam não apenas os laços com a memória social, mas
também sua razão de existência nos modos de vida e nas redes de sociabilidade constituídas
cotidianamente entre os sujeitos integrados ao seu entorno, ou seja, “(...) para além de sua
condição de documentos, eles se transformam em objetos plenos de vitalidade, na medida em
que participam da vida das cidades” (CAMPELO, 2004, p. 6).

A partir desta definição, o bairro pode ser considerado um espaço vivo no qual se
estabelecem relações sociais, pois é difícil entender a organização desse espaço e suas formas
de utilização dissociadas de seus habitantes, visto que constitui-se como um lugar de
vivências, experiências, trocas sociais e culturais, ou seja, um espaço heterogêneo que, em
constantes permanências e transformações, revela a convivência entre o novo e o tradicional,
entre a identidade e a história de seus moradores (ZANIRATO, 2006).

Isso demonstra que a realidade cotidiana trazida pelos discentes até à escola
revelam a complexidade dos processos sociais emergentes na contemporaneidade,
possibilitando não apenas discussões críticas sobre os aspectos políticos, sociais, econômicos
e estruturais do bairro, mas principalmente perceber qual a concepção que os jovens da Escola
Estadual de Ensino Médio Governador Alexandre Zacharias de Assumpção têm em relação
aos elementos integrados às práticas sociais cotidianas e em que medida estas dão sentido ao
espaço urbano enquanto parte que constitui a identidade do bairro.

Em busca de perceber a forma como os discentes direcionam o olhar para o seu


cotidiano e para o espaço de vivência no qual experiências são compartilhadas, bem como as
manifestações culturais aparecem como formas de reconstrução ou (re)significação da
identidade coletiva, o projeto buscou investigar as múltiplas relações que estes jovens
estabelecem com o lugar em que vivem no sentido de dar visibilidade e importância às suas
percepções enquanto práticas sociais integradas ao cotidiano que possibilitam sua interação

491
com a realidade, levantando-se questões como: Que lugares eles apontavam como patrimônio
e o que reconheciam como formas culturais expressivas da identidade do bairro? Que
reflexões eles faziam ou reconheciam em relação à realidade dos moradores, aproximando-os
da cultura vivenciada cotidianamente na experiência prática relacionada aos patrimônios
culturais identificados? Qual a percepção que estas pessoas têm acumulado sobre o legado
cultural que compõe a identidade cotidiana do espaço em que vivem?

Sob essa perspectiva, o projeto buscou compreender a percepção construída pelos


alunos em relação aos bens culturais do bairro em que eles vivem, mas também as relações
estabelecidas entre o lugar de vivência e as identidades assumidas cotidianamente. Daí a
necessidade de se propor a esses jovens um exercício do olhar sobre os lugares e as memórias
que eles produzem ou representam, bem como as formas expressivas que manifestam a
cultura do bairro do Guamá, como contribuição do conteúdo curricular estabelecido na
disciplina arte para a construção dos vínculos afetivos e dos laços de pertencimento com o
bairro, a partir dos bens culturais que delineiam a identidade local compartilhada. Nesse
sentido, tanto a memória quanto a cultura só se tornam parte integrante da história de
determinado sujeito a partir do momento em que este adquire o “sentimento de pertença” e se
sinta integrado a ela.

Como metodologia para aproximação dos elementos patrimoniais integrados aos


itinerários que caracterizaram o circuito interativo, os discentes realizaram pesquisa de campo
in loco, levantamento bibliográfico e entrevistas com moradores antigos que (re)visitaram o
passado por meio de suas memórias, permitindo aos jovens não apenas o conhecimento sobre
a história do lugar, mas principalmente a interação os espaços e a relação de pertencimento
estabelecida com estes enquanto parte de uma comunidade envolta por singularidades
integradas à identidade do bairro.

Isso abre possibilidades para reflexões sobre os conhecimentos que os alunos


apresentam em relação aos bens culturais do lugar onde moram, como também para

492
desenvolver procedimentos atitudinais que estão direcionados à valorização e preservação da
cultura enquanto elemento intrínseco na relação com o espaço, cujo reconhecimento, como
parte de sua própria história e identidade, é condição para a compreensão de si enquanto
sujeito inserido num processo de ensino-aprendizagem para a cidadania, em busca de perceber
sua responsabilidade diante da valorização e preservação de seu respectivo patrimônio,
ratificando sua própria vivência cidadã, além de levá-lo ao entendimento de que é também
agente construtor que integra estes bens culturais.

Considerações finais

O trajeto percorrido para elaboração do trabalho ora apresentado permitiu


enxergar o contexto escolar não apenas como o lugar onde se adquire o saber formalizado
institucionalmente, mas como um espaço onde vivências são compartilhadas cotidianamente
por todos os sujeitos integrados ao seu contexto. A concepção de cultura não está mais
atrelada a um determinado hábito ou estado mental em que se agregam atividades mentais ou
morais, mas também é apresentada como um modo de vida partilhado por uma comunidade
ou grupo social3 que, na experiência cotidiana, estabelece trocas de informações,
conhecimentos, saberes e cultura.

Tendo em vista que um dos principais objetivos da Educação Básica formal é a


formação do educando para a cidadania e a atuação crítica na realidade cotidiana na qual está
imerso, é impensável um processo de aprendizagem significativa dissociado das vivências e
relações que esses sujeitos estabelecem com o espaço urbano em que vivem.

Tal situação revela a necessidade de se repensar o papel da atuação docente no


âmbito da Educação Básica, bem como compreender os significados que são atribuídos ao

3
Ver a ideia de cultura na obra: WILLIAMS, R. Cultura e sociedade. : 1780-1950. Tradução de Leônidas H. B.
Hegenberg, Octanny Silveira da Mota e Anísio Teixeira. São Paulo: Editora Nacional, [1969].

493
saber escolar. Em que medida tais conhecimentos tem possibilitado aos seus sujeitos a
materialidade da consciência históricae a subjetivação da própria cultura? Que contribuições o
saber formal tem oferecido para estimular o desenvolvimento das seguintes competências:
experiência, interpretação, orientação, valorização e preservação da cultura enquanto
constructo social que constitui a identidade, produzindo a aprendizagem histórica para
compreensão da realidade?

Isso demonstra que a problemática da valorização e preservação dos bens culturais


deve ser integrada ao cotidiano escolar como forma de leitura crítica e interação com a própria
realidade social na qual os educandos estão inseridos, uma vez que enquanto elemento
material de estruturas simbólicas que carregam ideologias consolidadas oficialmente, revelam
memórias, conceitos e estimas, muitas das vezes, restritos à apenas alguns setores da
sociedade.
Essa nova realidade urbana é traçada por ações humanas que (re)construíram o
espaço que, determinado por realidades sociais diversas, constituiu-se como elemento
intrínseco às formas de identificação com o lugar, delineando formas de vida singulares em
identidades compartilhadas, mas que não estão dissociadas da realidade cotidiana da cidade.
Isso permite a compreensão do espaço como elemento que constrói
territorialidades imersas em laços de pertencimento ao longo do tempo, considerando também
a cultura material que o integra, aparecendo como o testemunho do passado que chega ao
tempo presente, ou seja, são rugosidades que possibilitam o “encontro com o passado”
(BLOCH, 2001); pois, a veracidade da narrativa histórica está fundamentada nas evidências
do passado.

Nesse sentido, os processos formativos podem ser pensados como um constructo


social que, imersos na cultura e no âmbito da vivência, possibilitam a realização plena e
integral do sujeito para a consolidação do ‘ethos’ identitário na relação com a comunidade da
qual faz parte.

494
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1980. p. 42-44. (Museological Working Papers/Documents de Travail en Muséologie, v. 1).

ZANIRATO, Silvia Helena. Patrimônio para todos: promoção e difusão do uso público do
patrimônio cultural na cidade histórica. UNESP – FCLAs – CEDAP, v.2, n.2, 2006.

497
A PRODUÇÃO E APROPRIAÇÃO DOS ESPAÇOS: O PONTO DE MEMÓRIA
MUSEU DO TAQUARIL

Alexandra Nascimento*
Wania Maria De Araújo**

Resumo: Este trabalho tem como objetivo analisar a criação do Ponto de Memória Museu do
Taquaril, a partir da ampliação do conceito de patrimônio, da adoção de novas práticas museológicas,
da expressão de novos atores sociais, da cultura de mobilização e da participação dos moradores, bem
como das iniciativas do Estado e da sociedade em relação à democratização das políticas culturais. Tal
espaço de memória tem como objetivo reconhecer a memória dos lugares a partir das vivências,
memórias e representações de seus moradores. Este artigo consiste em um estudo elaborado a partir
dos relatos de moradores e da observação e toma como referência as reflexões acerca das políticas de
patrimônio, memória, identidade, território, e desenvolvimento local.

Palavras-chave: Território; Patrimônio; Políticas públicas; Ponto de Memória Museu do Taquaril.

Abstract:

The aim of this paper is to analyze the creation of the Ponto de Memória Museu do Taquaril, based on
the expansion of the heritage concept, the adoption of new museological practices, the expression of
new social actors, the culture of mobilization and the participation of the residents, as well as the
initiatives of the State and society in relation to the democratization of cultural policies. Such memory
space aims to recognize the memory of places from the experiences, memories and representations of
its residents. This article consists of a study based on the reports of residents and observation and takes
as reference the reflections on patrimony, memory, identity, territory, and local development policies.

Key-words: Territory; Patrimony; Public policy; Ponto de Memória Museu do Taquaril.

498
Memória, patrimônio e museus: construindo novas abordagens

As memórias, assim como as identidades e os territórios são construções em constante


transformação, resultantes das ações e das interações entre os sujeitos. Nesse sentido, pensar
as relações entre memória, identidade e território significa compreender que estas se
estabelecem a partir de relações sociais que se desenvolvem em meio às lutas, negociações,
conflitos e consensos entre os sujeitos.
A construção da memória coletiva ocorre no tempo presente, determinada pela escolha
acerca do que se deve lembrar e do que se deve esquecer. Segundo Nora (1995) a memória é
vida, sempre carregada por grupos viventes e, desse modo, sempre em permanente
transformação. Assim, está aberta à lembrança e ao esquecimento, inconsciente de suas
deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações; é um fenômeno sempre
atual, um elo no eterno presente e pertence a um grupo que ela une: é, por natureza, múltipla e
desacelerada, coletiva, plural e individualizada. A memória se enraíza no concreto, no espaço,
no gesto, na imagem, no objeto.
Ao discorrer sobre a memória coletiva Halbwachs (2006) menciona que ela possui
referentes sociais os quais permitem que, para além da memória individual, única, própria a
cada um dos indivíduos, exista uma memória intersubjetiva, compartilhada, uma memória
coletiva. Esta não pode ser definida como a agregação das memórias individuais, subjetivas.
Para o autor a memória coletiva envolve as individuais, mas não se confunde com elas. De
uma maneira genérica, refere-se a um conjunto de lembranças que são socialmente
construídas e têm como referência um conjunto que transcende o indivíduo. A memória
coletiva possui um caráter familiar, grupal, social e a capacidade de lembrar vincula-se ao
pertencimento do indivíduo ao grupo que ele faz parte, seja no espaço habitado, seja no
espaço de trabalho, um espaço no qual viveu e compartilhou experiências junto a uma
coletividade por certo período de tempo; enfim, um espaço de residência familiar, a
vizinhança, o bairro, o local de trabalho.

499
Os museus constituem-se a partir da “materialização” das memórias coletivas
construídas por determinados grupos que constroem e reafirmam sua identidade. Estes se
instituem “lugares da memória” (NORA, 1995), uma vez que sua importância reside no fato
de se constituir instrumento de preservação e transmissão das identidades e tradições. A
memória possibilita a combinação entre o individual e o coletivo, uma vez que os fatos
registrados permitem uma leitura e apropriação pessoal, ainda que sempre apoiada em
referenciais coletivos. A conexão entre passado pessoal e memória coletiva determina uma
identidade, alimentada pela lembrança de tempos passados, a fatos que nem mesmo foram
presenciados, mas que, significam um vínculo comum aos grupos que compõe a sociedade
(PINTO, 1998).
As políticas voltadas para a preservação do patrimônio cultural em estreita relação
com as políticas museais vêm sendo tema de constantes discussões, atraindo a atenção não
somente do poder público, mas também da sociedade civil. O entendimento acerca do
patrimônio, assim como das práticas museais vem se alterando ao longo da história, fruto das
mudanças históricas e das maneiras de refletir sobre elas. Nesse sentido, para que se possa
compreender as novas interpretações acerca da preservação, se faz necessária uma abordagem
acerca da atuação do poder público no campo que envolve as políticas culturais.
A primeira manifestação jurídica do patrimônio histórico no Brasil está presente na
Constituição de 1934. Em 1937, o Decreto-lei 25 de 30 de novembro irá organizar a proteção
do patrimônio histórico e artístico nacional, tendo como principal instrumento de preservação
o tombamento. Neste período, somente algumas cidades consideradas históricas como Ouro
Preto, Olinda, Recife e Salvador, tiveram seus conjuntos urbanos tombados, enquanto nas
outras cidades privilegiou-se o tombamento de bens isolados, em um discurso orientado pela
ideia de excepcionalidade e universalidade. Nesse sentido, ainda que o termo patrimônio seja
tomado como expressão de um bem coletivo, cabe a sua definição ou escolha, a determinados
grupos: a coletividade, constituída por grupos diversos que possuem interesses distintos e em
grande parte das vezes conflitantes, passa representar uma “comunidade imaginada” a partir
de determinados bens materiais determinados como excepcionais, belos ou exemplares, que

500
não contemplam as memórias ou identidades dos grupos que a integram. O patrimônio se
constitui uma coleção simbólica e unificadora, que tem como objetivo construir referências
comuns a todos os cidadãos, o que possibilita entrever a sua importância política.
As políticas de preservação no Brasil, cuja matriz encontra raízes na concepção
instituída pela Revolução Francesa de nação, têm início a partir de um entendimento do
patrimônio como um bem material concreto que expressa valores compartilhados pelo “povo
brasileiro”, independentemente das culturas nas quais ele se percebe e se identifica. Para
tanto, são criadas as instituições patrimoniais, os serviços de proteção ao patrimônio,
responsáveis também pela administração dos museus, cuja burocracia se compõe por
profissionais de áreas diversas. Os critérios adotados para a seleção de tais bens estão
vinculados às características estéticas e a autenticidade. Tais instituições, vinculadas às esferas
de poder federal, reforçam o 1990 caráter nacionalista da preservação. Cabe destacar ainda o
caráter elitista das políticas de preservação, pautado pelo discurso positivista de exaltação dos
grandes feitos e heróis, cujos objetos e edificações contariam a “história oficial da nação”
branca e européia. Nesse sentido, a construção do patrimônio cultural está estritamente
vinculada às concepções que cada época tem a respeito do que, para quem e por que
preservar: o que sobrevive como memória coletiva de tempos passados não é o conjunto de
monumentos e documentos que existiram, mas os efeitos das escolhas de historiadores e pelas
forças que atuaram em cada período histórico (LE GOFF, 1990).
O período compreendido entre 1967 e 1979 demonstra algumas alterações nas
políticas de preservação no Brasil influenciadas por novas diretrizes internacionais. Essas
transformações visavam implementar medidas que incorporassem outras cidades. O conceito
de “sítio urbano” veio a substituir o de “cidade monumento”, que tratava as cidades ditas
“históricas” como espaços intocados, e o patrimônio passou a ser compreendido como parte
de transformações temporais. Desse modo, a preservação não mais visava exclusivamente à
manutenção do passado, mas a possibilidade de interação do tempo presente com o passado.
Cabe destacar que durante tal período, o regime ditatorial vigente no país, percebia na
preservação do patrimônio, principalmente em relação às cidades coloniais, uma possibilidade

501
de crescimento econômico a partir do turismo, o que ocasionou uma preocupação com a
conservação dos monumentos. A preservação faz parte das preocupações dos governos
ditatoriais cuja valorização turística do patrimônio possibilita a manipulação de um universo
simbólico que tem como objetivo o reforço do civismo e a construção da imagem de uma
nação com raízes históricas, tradição e grande potencial rumo ao futuro.
Data desse período, as discussões a respeito das características e funções tradicionais
dos museus, uma vez que estas não estavam em consonância com as novas práticas culturais
existentes nas sociedades contemporâneas. Tais discussões constituíram o movimento
intitulado nova museologia4, estreitamente vinculado aos movimentos de redemocratização na
América Latina. Nesse sentido, à luz das novas formas de se pensar a história e na esteira dos
movimentos sociais que buscavam a redemocratização do país e o efetivo exercício direito de
cidadania, abre-se novas possibilidades de pensar a preservação. As pressões pela participação
de grupos excluídos dos processos decisórios transformaram o universo das políticas públicas,
em estreita relação com os movimentos ocorridos no ano de 1968 em Paris. Os direitos
conquistados de participação direta na gestão pública possibilitaram maior envolvimento dos
atores em questões de ordens diversas, sejam elas sociais, políticas ou ambientais. Assim, a
Constituição de 1988, enfatiza o conceito de Patrimônio Cultural e estabelece a competência
comum da União, Estados e Municípios na proteção, além de assegurar o direito à cultura,

essa prática social tão abrangente que atravessa todas as demais. Para a
maioria dos brasileiros o direito à memória caminha junto com o despertar
político... A preservação de sítios e monumentos do passado, tornados
presentes pelo instrumento do tombamento, faz parte das reivindicações dos
movimentos sociais. O tombamento da Serra da Barriga nas Alagoas, e do
Ilê Ya Nassô Oká – o terreiro da Casa Branca – na Bahia, a demarcação dos
territórios indígenas, a criação de centro de documentação e a organização de
arquivos não governamentais atestam que a pluralidade cultural não se reduz
a um denominador comum capaz de indicar, documentar, proteger e

4
A denominada nova museologia, desde a sua origem abrigava diferentes denominações: museologia popular,
museologia ativa, ecomuseologia, museologia comunitária, museologia crítica, museologia dialógica e outras. A
perda de potência da expressão nova museologia contribuiu para o fortalecimento e a ascensão, especialmente
após os anos de 1990, da denominada museologia social ou sociomuseologia (CHAGAS; GOUVEIA, 2014, p.
16).

502
promover uma vasta gama de modos de criar, fazer e viver, o que demanda
estudos e pesquisas rigorosos capazes de propiciar outras leituras dos bens
culturais consagrados, como é o caso do patrimônio arquitetônico (MONTE
MÓR et al, 1995, p. 5).

O patrimônio, antes visto como um bem que expressava identidade nacional, passa a
ser reconhecido como expressão de identidades municipais. A proteção municipal se torna a
grande novidade, viabilizada pela maior autonomia dos municípios estabelecida pela
Constituição. A preservação do patrimônio histórico e cultural no âmbito municipal vem se
modificando a partir de novas concepções acerca do que deve ser entendido por patrimônio –
o conceito de patrimônio cultural ultrapassou a visão restrita e os aspectos de arquitetura, da
arte, da história, articula-se a outras áreas do conhecimento epistemológico e filosófico, bem
como às ciências sociais.
No campo da história, as análises macroeconômicas se associam às relações
interpessoais entre indivíduos, grupos e classes e tomam como referência as vivências,
memórias e representações. As pesquisas e temas passam a contemplar novos sujeitos
históricos a partir de diversas fontes a partir das quais se busca compreender as diversas
intencionalidades, discursos e representações. As ciências humanas procuram dar voz àqueles
que foram silenciados: a participação e as culturas de pessoas anônimas passaram a ser
registrados como história. A partir da década de 1980, as mudanças nos estudos históricos no
Brasil compreendem uma mudança que, para além das abordagens marxistas privilegia as
dimensões cotidianas, vivências sociais e culturais. A adoção da metodologia da história oral
permite trazer à luz as histórias de vida de sujeitos de distintas origens e culturas, que
atribuem diversos sentidos aos lugares e aos objetos. Essas novas interpretações constroem
uma nova visão acerca do patrimônio, que se constitui agora como lugar de memória social,
campo de conflito simbólico da sociedade, travado no jogo entre memória e esquecimento,
historicamente vencido pelos grupos que podem impor sua memória a toda uma sociedade. A
memória social é portadora de historicidade, uma vez que as condições de construí-la são
mutáveis: reflete as relações políticas, de possibilidades de exercício de direitos que cada
grupo exerce em determinado tempo. Nesse sentido, a memória social será tão mais

503
significativa quanto mais representar o que foi vivido pelos diversos grupos sociais e quanto
mais mobilizar as identidades dos indivíduos.
Nesse contexto, afloram as ações voltadas para a elaboração de novas práticas museais
que compreendem novas tipologias tais como ecomuseus, museus de território, museus locais,
museus comunitários. Verifica-se então um significativo aumento do número e da diversidade
de instituições museológicas em âmbito mundial: em uma sociedade dinâmica e multicultural,
os museus se convertem em espaços de múltiplas experiências:

museus como produto de lazer, consumo e estetização; como espaço de


sensações e vivências; adotando territórios e patrimônios naturais,
intangíveis e vivos; como agentes de mudança social e promotores de
desenvolvimento; como ferramenta de afirmação cultural e luta política de
grupos e comunidades; museus voltados para a preservação do passado, para
a conservação de suas coleções, para a pesquisa e o desenvolvimento
cultural (AVELAR, 2015, p. 12).

Tomando como referência as novas fontes de pesquisa, que privilegiam diferentes


escutas, o contexto de luta por direitos e conquistas de controle social que se consolidam na
democratização das políticas culturais, os “museus sociais”, apresentam grande diversidade
no Brasil e tem como princípio norteador a inclusão, a socialização e a democratização, sendo
constituídos a partir da afirmação e resistência de distintos grupos sociais.

O bairro Taquaril: território, comunidade, memória e patrimônio


Os museus comunitários se disseminaram pelo país a partir do início deste século.
5
Essa categoria foi adotada pelo Instituo Brasileiro de Museus (IBRAM) e oficializada no
Plano Nacional Setorial de Museus 2010/2020. O reconhecimento pelo governo federal,
convertendo-a em política pública, representa para além da adoção das novas práticas

5
A nova autarquia vinculada ao Ministério da Cultura (MinC) sucedeu o Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (Iphan) nos direitos, deveres e obrigações relacionados aos museus federais. O órgão é
responsável pela Política Nacional de Museus (PNM) e pela melhoria dos serviços do setor – aumento de
visitação e arrecadação dos museus, fomento de políticas de aquisição e preservação de acervos e criação de
ações integradas entre os museus brasileiros. Disponível em: http://www.museus.gov.br/acessoainformacao/o-
ibram/ acessado em 26.08.2017.

504
museais, uma resposta às reivindicações dos distintos grupos sociais, antes excluídos das
políticas culturais, bem como de grande parte dos processos decisórios. Nesse sentido, as lutas
pela cidadania, se consolidam em consonância com o reconhecimento do direito à memória e
constituem-se assim, uma dos objetos centrais da museologia social que

na perspectiva aqui apresentada, está comprometida com a redução das


injustiças e desigualdades sociais; com o combate aos preconceitos; com a
melhoria da qualidade de vida coletiva; com o fortalecimento da dignidade e
da coesão social; com a utilização do poder da memória, do patrimônio e do
museu a favor das comunidades populares, dos povos indígenas e
quilombolas, dos movimentos sociais, incluindo aí, o movimento LGBT, o
MST e outros (CHAGAS; GOUVEIA, 2014, p. 16).

O Programa Pontos de Memória, criado em 2008, constitui a principal ação da política


pública nacional de museus no campo dos museus comunitários e resulta da parceria entre o
Instituto Brasileiro de Museus (Ibram/MinC), Programa Mais Cultura e Cultura Viva, do
Ministério da Cultura e a Organização dos Estados Ibero–americanos (OEI)6. O Programa se
propõe a apoiar ações e iniciativas de valorização da memória social, considerando os “[...]
diferentes grupos sociais do Brasil que não têm oportunidade de narrar e expor suas próprias
histórias, memórias e patrimônios nos museus”. De acordo com a proposta, o diálogo, a
participação e o protagonismo comunitário são preceitos fundamentais para a construção da
memória social e coletiva de comunidades, a partir do cidadão, de suas origens, suas histórias
e seus valores (BRASIL, 2007).
Estabelecido numa região acidentada e de difícil ocupação, localizados na saída de
Belo Horizonte para outras cidades localizadas a leste da região Metropolitana de Belo
Horizonte (RMBH) a população residente no bairro Taquaril enfrentou – e ainda enfrenta –
muitas dificuldades, tal como ocorre em muitos bairros estabelecidos por meio das lutas por
moradia. De ocupação tardia, fruto da metropolização e exclusão da cidade, o bairro se
desenvolveu a margem do planejamento inicial e das políticas urbanas. Durante um longo

6
http://www.museus.gov.br/acessoainformacao/acoes-e-programas/pontos-de-memoria/programa-pontos-de-
memoria/ acessado em 26.08.2017.

505
tempo, o bairro não contou com comércio e serviços básicos que atendesse as necessidades
dos moradores.
A antiga Fazenda Taquaril foi loteada em 1983 e deu origem à Cidade Jardim
Taquaril. Para a ocupação da área estava previsto um condomínio de luxo, mas o relevo
bastante acidentado do terreno inviabilizou o projeto. Os movimentos sociais iniciaram a luta
para que a terra fosse destinada à população carente, o que marca o surgimento do bairro. A
Prefeitura realizou o assentamento de algumas famílias, mas não promoveu a urbanização
daquele espaço. Assim, diante da recusa do poder público de dotar o lugar de equipamentos
necessários para o estabelecimento dos moradores, estes assumiram para si a tarefa de
construir seus lugares, o que significou desde conformar os terrenos, erguer as paredes de suas
casas e dar nomes às ruas. As lutas travadas no bairro Taquaril, instituem memórias e
narrativas que constroem a identidade do lugar. A constituição dos espaços, não apenas em
sua materialidade, mas também no campo simbólico, estabelece uma relação de
pertencimento àquele território,

fruto de uma ação programada de um sujeito que se apropria concreta


e/ou simbolicamente do espaço. E, ao se apropriar de um espaço,
concreta ou abstratamente, o ator territorializa esse espaço [...] sendo
que essa “passagem” sempre acontece no campo das relações
(RAFFESTIN, 1993:143).

A identidade territorial do bairro Taquaril foi construída a partir do reconhecimento de


uma origem, ideais ou necessidades comuns que estabelecem significados partilhados. Nesse
sentido, o passado transforma-se em uma narrativa mutável, permeável pelos interesses do
presente, pois, ao reconstruirmos o passado de um povo, esquecemos e lembramo-nos dos
fatos, informações e interpretações que nos interessam para reafirmar uma identidade.
Os espaços são permanentes produções culturais, que traduzem a capacidade humana
em apropriar-se do território e da construção de seus espaços. Pelo fato de guardar e transmitir
valores nela impressos, estes se revelam como patrimônio cultural, documentos da história.
Nesse sentido, toda preservação – escolhas sobre o que, porque e como preservar – deve partir

506
do entendimento da história dos lugares nos quais os sujeitos vivem e como se apropriam
dessa história como sua memória, lugar de identidade. Nesse sentido, a preservação deve
resultar da compreensão em melhoria da qualidade de vida dos grupos que vivenciam os
lugares: o sentido da preservação deve se orientar pelo significado que os sujeitos atribuem ao
território.
O Taquaril, cuja história é marcada pelas lutas para a construção do território, apesar
dos avanços, ainda carece de alguns serviços e principalmente de infraestrutura. No intuito de
melhorar as condições do bairro, a interlocução com o poder público e com as organizações
da sociedade civil é realizada pelas diversas associações instituídas no bairro ao longo do
tempo: estas mobilizam os moradores e buscam envolvê-los nas discussões que têm como
intuito a melhoria do lugar por meio das políticas públicas, grande parte delas relacionadas ao
Orçamento Participativo.
Atualmente o bairro conta com escolas, igrejas, uma praça, uma quadra poliesportiva,
o CRAS (Centro de Referência de Assistência Social) e vários projetos sociais. Entre eles,
pode-se destacar a Associação Projeto Providência, uma entidade não-governamental sem fins
lucrativos que surgiu em 1988 para lidar com problemas enfrentados por jovens. Em 1994, foi
criada uma unidade no Taquaril, que passou a atender as/ crianças, adolescentes e jovens da
área. Com o intuito de afastar esses jovens da marginalização, o grupo realiza atividades
culturais, esportivas e educativas.
A mobilização e a luta pela construção do território, parte inerente da história do
Taquaril, visa ampliar as conquistas mediante a garantia de direitos fundamentais e de
cidadania, responsabilidade que deve ser assumida pelo Estado, uma vez que,

a construção de um Estado democrático exige não apenas o reconhecimento


e proteção da sua diversidade cultural, mas também a implementação de
mecanismos especiais capazes de garantir às minorias o pleno exercício dos
seus direitos fundamentais. Depois de tudo, o Estado não deve apenas
garantir a coexistência, mas deve também assegurar a convivência entre
todos os membros de sua sociedade (LOPES, 2012, p.79).

507
Cabe destacar que em contextos sociais urbanos é possível apreender duas formas de
atribuição de sentido à identidade cultural de um bairro. Uma delas advém do exterior, em
especial, instituições como a mídia, e apresenta usualmente concepções reificantes, ou seja,
redutoras. Já a outra é produzida, sobretudo no interior do bairro, moldada a partir das
experiências de vida do cotidiano local. Ou seja, essa segunda forma de pensar a identidade
do bairro:

Acompanha a experiência dos episódios de interação ali diariamente


repetidos, a inserção nas redes sociais que atravessam o bairro, os modos de
vida nele estabelecidos, as socializações localmente experimentadas, as
práticas culturais produzidas e partilhadas nesse quadro específico de
relacionamento social. Tudo isso redobrado da geração continuada, entre a
população local, tanto de representações simbólicas do bairro como entidade
distinta, como de fortes sentimentos de pertencer a ele – isto é, de formas
endógenas e vividas de identidade cultural (COSTA, 2002, p.26).

Em se tratando das relações entre os usuários7 Mayol (2005, p. 39) destaca o bairro
“[...] como o lugar onde se manifesta um “engajamento” social, ou noutros termos: uma arte
de conviver com parceiros (vizinho, comerciantes) que estão ligados a você pelo fato
concreto, mas essencial, da proximidade e da repetição”. De acordo com o autor, a
convivência tem relação com um compromisso que cada pessoa assume ao renunciar o que
ele define como “anarquia das pulsões individuais”, para contribuir na vida coletiva, é por
meio dela que ele se obriga a respeitar um “contrato social” existente para que a vida
cotidiana seja possível. Esse cotidiano torna-se possível porque há a certeza de que o usuário
será reconhecido, considerado, positiva ou negativamente, pelos outros e, dessa forma,
fundará em seu próprio benefício uma relação de forças em seus trajetos cotidianos.
Como o bairro é esse ambiente propício às relações sociais, Mayol (2005) ressalta que,
por definição, é possível dizer que o bairro condensa um domínio social que para o usuário é
uma parcela do espaço urbano na qual ele é reconhecido. Sendo assim, o bairro pode ser
apreendido como uma porção do espaço público que é geral, anônimo, pertence a todos, mas

7
Mayol (2005) define os habitantes do bairro como usuários.

508
uma porção diferente, pois se aproxima de um espaço que poderia ser definido como privado,
particularizado pelo seu uso quase cotidiano. Esclarecendo este ponto, Mayol (2005) assinala
que o bairro pensado como um espaço privado do espaço público e é resultado de uma
sucessão de passos em suas calçadas que são, então, significados pelo vínculo orgânico que
estabelecem com a residência. Essa privatização do espaço público realizada pelo bairro é
progressiva e, segundo o autor, é como se fosse um dispositivo prático que objetiva garantir
uma perspectiva de continuidade entre o que é mais íntimo (o espaço privado da residência) e
aquilo que é mais desconhecido (o conjunto da cidade ou mesmo o resto do mundo), é uma
espécie de relação de apreensão do dentro (a residência) e de apreensão do espaço urbano ao
qual a residência se liga (o fora). O bairro pode então ser pensado, de acordo com tais
assertivas, como um termo médio entre o dentro e o fora e por meio da tensão entre ambos vai
aos poucos se tornando um prolongamento de um dentro que se efetiva pela apropriação do
espaço.
Um bairro, poder-se-ia dizer, é assim uma ampliação do habitáculo, para o
usuário, ele se resume à soma das trajetórias inauguradas a partir de seu local
de habitação. Não é propriamente uma superfície urbana transparente para
todos ou estatisticamente mensurável, mas antes a possibilidade oferecida a
cada um de inscrever na cidade um sem-número de trajetórias cujo núcleo
irredutível continua sendo sempre a esfera do privado. (MAYOL, 2005, p.
42)

Dessa forma, Mayol (2005) assinala que as apropriações do espaço realizadas


cotidianamente pelos usuários são fundamentais para que eles realizem uma prática cultural
espontânea sem a qual a vida na cidade seria impossível. Segundo o autor há uma analogia
entre a moradia e o bairro: cada um deles tem, a partir de seus limites, uma taxa de controle
pessoal visto que tanto a moradia como o bairro são lugares vazios nos quais, de maneiras
diversas, se pode fazer o que se quer. Os vazios de cada um desses espaços, seja a parede de
uma moradia ou o muro de um prédio, contêm atos de controle semelhantes aqueles das
trajetórias no espaço urbano do bairro e tais atos são fundadores da vida cotidiana no meio
urbano: retirar um do outro é tornar impossível a vida no cenário urbano. É dessa forma que

509
os limites entre público e privado tornam-se compreensíveis e podem ser considerados os
fundadores do bairro para a prática do usuário, a separação entre as duas esferas pode ser vista
como uma separação que une. É como se não houvesse oposição entre a moradia (espaço
privado, o dentro) e o bairro (espaço público, o fora), mais pertinente seria dizer de uma inter-
relação entre os espaços – moradia e bairro – que torna possível que eles façam parte de um
mesmo lugar no espaço da cidade, ou seja, o usuário se vale da moradia para se situar no
bairro, bem como se vale do bairro, a partir de seu pertencimento a ele, para se situar na
cidade. Isto implica dizer que o bairro seria o mais privado dos espaços públicos, lugar de
pertencimento e reconhecimento na cidade.
Em se tratando o bairro Taquaril para além do sentido de pertencimento de seus
usuários, utilizando a terminologia de Mayol (2005), sua imagem tal como produzida pela
imprensa e apropriada por grande parte da população da cidade é a da violência. A região na
qual se insere possui elevado índice de criminalidade e é, comumente, assunto de reportagens
policiais. Os moradores discordam dessa generalização e contra-argumentam que no bairro
residem pessoas honestas e trabalhadoras, destacando os grupos culturais reconhecidos na
região, que são em grande número e não obtém o mesmo destaque nos meios de
comunicação8.
Os moradores do Taquaril, ao longo das lutas por melhoria na qualidade de vida,
acumularam histórias e memórias ao longo dos tempos e, em função dessa trajetória, a
comunidade foi convidada a participar do Programa Ponto de Memória. De acordo com o
IBRAM, “os Pontos de Memória valorizam o protagonismo comunitário e concebe o museu
como instrumento de mudança social e desenvolvimento sustentável”. Estima-se que estes “são
capazes de promover a melhoria da qualidade de vida da população e fortalecer as tradições locais

8
Em estudo sobre associativismo cultural foram levantados os seguintes grupos: Associação de Capoeira e
Cultura Arte Nossa; Grupo de Capoeira Abolição; CDG - Comando dos Guerreiros; CIA ArtRua; CIA de Dança
Tsunamy; CIA Fascina; Corações Unidos; Kontratac do Rap; Crime Verbal; Davi e Luiz; Empat Batuque;
Gamet - Grupo de Mulheres Ecumênicas do Taquaril; HIG Stone (Alta tempestade); Negro B; Oficina Rodrigo
Ferreira Santos - PDC - Propriedade de Cristo cultural hip-hop; Projeto Cultural Calanga; Protetores do Rap;
Remanescentes; Ctor 9; Studio Zero; Vozes da Periferia (SAADALLAH, SANTOS E SOUZA, 2010)

510
e os laços de pertencimento, além de impulsionar o turismo e a economia local, contribuindo
positivamente na redução da pobreza e violência”.9
Nesse sentido, o desejo de manter viva a relação de cuidado e pertencimento
contribuiu para a realização de ações que narram outra história do bairro, diferente das
manchetes de jornais, que só noticiam violência e pobreza. De acordo com a diretora do
Museu

Esse é o desafio do Museu, desenvolver ações que cada vez mais consolidem
a ideia traduzida em seu slogan: Sua história faz parte dessa memória, para
que cada um se reconheça como patrimônio vivo, por meio de seus fazeres e
cotidiano. O Ponto de Memória hoje se consolida como uma importante
marca em nossa comunidade na maturidade de nossa organização social e
política. Mais do que sermos capazes da luta política na consolidação de
direitos, é importante que o agir, o construir, as conquistas e os desafios
sejam sempre rememorados para firmar o nosso pertencimento e a nossa
identidade junto à comunidade, garantindo às futuras gerações o direito à sua
memória política, de sua família, enfim à sua memória constitutiva” (Leila
Regina, diretora do Ponto de Memória Museu do Taquaril e moradora
local).10

O objetivo do Ponto de Memória do Taquaril é defender o direito à memória através


da preservação dos patrimônios histórico, artístico e cultural do bairro. Assim, o museu pode
funcionar como um espaço de valorização da identidade local, buscando a ressignificação do
bairro Taquaril com a participação dos moradores na construção coletiva de uma narrativa
identitária. Tomando o bairro como espaço museal, a proposta desassocia-se do colecionismo
de acervos materiais e propõe novas relações museológicas entre público, acervo e território:
o acervo do Museu é constituído pelas narrativas dos moradores acerca do lugar construído.
Dentre as ações desenvolvidas pelo Museu é possível destacar: o “Varal de Memórias”, a
“História oral de vida”, “Uma foto, uma história”, “Aqui eu vivo: Espaço e memória” e o
“Acervo jornalístico.”

9
http://www.museus.gov.br/acessoainformacao/acoes-e-programas/pontos-de-memoria/programa-pontos-
de-memoria/
10
http://rutmartins.wixsite.com/altoemmovimento/single-post/2015/05/24/Museu-do-Taquaril-sua-
hist%C3%B3ria-faz-parte-dessa-mem%C3%B3ria

511
A discussão acerca dos museus, tomando como referência o campo da memória social,
suscita pensar que as representações coletivas refletem processos de exclusão ou inclusão
social, relacionadas a um sistema de dominação ou de emancipação. A construção dos
discursos e narrativas museológicas no Brasil está historicamente relacionada à formação de
uma identidade nacional e à manutenção de tradições e legitimação de poderes instaurados. O
museu é um lugar de poder e, por extensão, de empoderamento. E justamente por isso, na
esteira dos processos de luta pela ampliação dos direitos de cidadania, determinados grupos
sociais, historicamente estigmatizados ou submetidos a processos de dominação, passaram a
reivindicar que suas memórias e identidades fossem expressas em espaços museais
(TOLENTINO, 2017).
Nesse sentido, os Pontos de Memória, têm como pressuposto a ideia de que o museu
deve estar a serviço da comunidade visando o desenvolvimento socioeconômico local. Para
tanto, a gestão do museu e o desenvolvimento local11 pressupõem a participação efetiva e
ativa da comunidade detentora do patrimônio cultural e dos atores locais, compreendendo-os
como sujeitos históricos. Dessa forma, novos atores e novas vozes emergem no campo dos
museus e utilizam esse instrumento como um importante mecanismo de empoderamento e
como arma política (TOLENTINO, 2017).
A criação dos Pontos de Memória, que integra as políticas públicas voltadas para os
direitos das minorias, é fruto das lutas e conquistas empreendidas pelos movimentos sociais,
que em um contexto de redemocratização, exerceram pressões pelo direito à participação em
diversas esferas da sociedade, transformada pela atuação dos movimentos. Nesse sentido, o
direito à memória traduz uma luta política: os indivíduos se transformam a partir da
transformação social que promovem.

11
Para esse trabalho compreende-se desenvolvimento local na perspectiva definida por Christofolli (2008) “como
espaço de luta pela transformação social, de articulação e disputa de hegemonia política num determinado
território; como espaço de construção, reconstrução e disputa de projetos com base na existência de interesses
antagônicos” (CHRISTOFOLLI, 2008, p.250).

512
Considerações finais
Inúmeros são os desafios e dilemas para a consolidação do Ponto de Memória Museu
do Taquaril: a memória social, tomada como forma de poder, não é construída sem conflitos.
Espaço de disputas, escolhas e negociações, as narrativas sobre o território como espaço
vivido, também refletem as relações políticas e as visões de mundo dos distintos sujeitos que
a ele atribuem diversos significados. Tais desafios podem ser percebidos a partir da existência
de vários grupos e associações locais, reveladores de distintas posturas em relação às
expectativas para o bairro. Tais conflitos são inerentes e necessários para a construção de uma
sociedade: é possível pensar que a memória social será tão mais expressiva quanto mais
representar os significados do vivido pelos distintos grupos. Nesse sentido, a partir da
ampliação do conceito,

O patrimônio foi deixando de ser simplesmente herdado para ser estudado,


discutido, compartilhado e até reivindicado. Ultrapassam-se a
monumentalidade, a excepcionalidade e mesmo a materialidade como
parâmetros de proteção, para abranger o vernacular, o cotidiano, a
imaterialidade, porém, sem abrir mão de continuar contemplando a
preservação dos objetos de arte e monumentos eleitos ao longo de tantos
anos de trabalho como merecedores da especial proteção. Passa-se a
valorizar não somente os vestígios de um passado distante, mas também a
contemporaneidade, os processos, a produção. (SANTOS, 2001, p. 44)

A despeito dos conflitos e dilemas, as experiências do Ponto de Memória Museu do Taquaril,


vividas cotidianamente por meio da participação de sujeitos que assumem o protagonismo das
narrativas de suas memórias, se concebem como instrumento para a mudança social e
desenvolvimento local. Para tanto, é necessário abordar a mudança em suas manifestações
cotidianas mais do que como fenômeno excepcional, uma vez que,

as mudanças sociais e as decisões levam tempo para amadurecerem e serem


preparadas para se imporem como necessárias, e para se traduzirem
concretamente em condutas. O trabalho sobre as resistências, a luta
interminável contra os efeitos do recalque e o instinto de morte constituem,
incontestavelmente, uma porta essencial para o que chamamos de trabalho
de mudança (LEVY, et alli, 2001, p. 128).

513
Se cada um constrói a sua própria cidade imaginária, sempre um pouco diferente
daquela formada pelos outros, temos em comum o fato de estarmos todos em uma mesma
unidade e isto nos aproxima (AGIER, 2011). O desenvolvimento local com vistas à
emancipação depende da capacidade de ação coletiva de grupos que se reúnem para mudarem
seus próprios destinos.

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Editora Terceiro Nome, 2011.

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514
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515
DA EXPLOSÃO DE SENTIDOS A CONSCIÊNCIA IMEDIATA: DEFINIÇÕES
DA “TEORIA DA PRÁTICA” DE HUGUES DE VARINE- BOHAN NO BRASIL

Roberto Fernandes Dos Santos Junior*

Resumo: O presente artigo visa captar os indícios da construção de uma “teoria da prática” de Hugues
de Varine-Bohan, a partir das consultorias realizadas por ele em território brasileiro. Contudo, o
estudo do pensamento museológico contemporâneo é um convite para constante investigação, frente a
um pálido esboço na consolidação de uma ciência que aos poucos intenta traçar novos itinerários para
a solidificação no campo cientifico diante de um objeto fenomenológico. Para isso, o trabalho discute
sob o ponto de vista de alguns conceitos do sociólogo francês Pierre Bourdieu, a aplicação desse novo
modo de fazer ciência, empregado pela corrente da “Nova Museologia”. Frente ao percurso percorrido
pelo pesquisador francês Hugues de Varine, como pioneiro da corrente de pensamento ligada a esse
novo paradigma, como criador do conceito de “ecomuseu” e os impactos atribuídos ao seu
pensamento e prática na constituição de uma categoria voltada para o despontar de trabalhos voltados
para a função social do museu. Nesse aspecto, o artigo partirá de uma breve análise de uma entrevista
concedida pelo pensador francês para esse trabalho. Com fins de identificar especificidades da teoria
museológica e os trabalhos de consultoria que foram realizados por ele em parceria com instituições
brasileiras.
Palavras-chave: Hugues de Varine; Nova Museologia; Teoria da Prática.

Abstract: The present article aims to capture the evidence of the construction of a "theory of practice"
of Hugues de Varine-Bohan, based on the consultancies carried out by him in Brazilian territory.
However, the study of contemporary museological thought is an invitation to constant research, in the
face of a pale sketch of the consolidation of a science that gradually tries to trace new routes for
solidification in the scientific field before a phenomenological object. For this, the work discusses
from the point of view of some concepts of the French sociologist Pierre Bourdieu, the application of
this new way of doing science, used by the current of "New Museology". Facing the path taken by the
French researcher Hugues de Varine, as a pioneer of the current of thought linked to this new
paradigm, as creator of the concept of "ecomuseum" and the impacts attributed to his thought and
practice in the constitution of a category aimed at the emergence of Works aimed at the social function
of the museum. In this aspect, the article will start from a brief analysis of an interview granted by the
French thinker for this work. In order to identify specificities of the museological theory and the
consulting works that were carried out by him in partnership with Brazilian institutions.
Key-words: Hugues de Varine; New Museology; Theory of Practice.

516
Antes de me debruçar sobre alguns dos trabalhos desenvolvidos por Hugues de Varine-
Bohan no Brasil, visualizarei através de aspectos da bibliografia de Pierre Bourdieu o que
vem a ser considerado como uma “Teoria da Prática” no campo sociológico. Esse conceito
nos ajudará a entender a produção e as atividades realizadas por Varine a partir de um outro
viés de investigação. Portanto, o que temos como objeto para estudo neste artigo vem a ser a
aplicação da teoria museológica em caráter prático, em algumas experiências museais
gestadas sobre a consultoria de Hugues de Varine no Brasil. Além disso, farei uma breve
analise sobre uma entrevista que o pesquisado concedeu para este trabalho.
Tudo isso com base em inquietações do campo em relação a todo esse processo de
constituição conceitual do que é a Nova Museologia no campo dos museus e da Museologia,
em meio a uma série de conflitos e divergências em relação às terminologias ligadas a esse
novo ideal museológico (CERÁVOLO, 2004), onde posso aqui apresentar uma ausência clara
frente a uma definição do que viria ser o objeto de estudo da Museologia e as leis universais
que a delimitam enquanto corpus científicos estabelecido.
No estudo denominado Pierre Bourdieu: a teoria na prática (2006), do pesquisador
Hermano Roberto Thiry-Cherques, ele elenca os pontos referentes a esse pensamento de
Bourdieu de forma que haja um labiríntico nas ações que recorrem a esse ideal teórico-prático
que vai contra a uma ideia de linearidade. Assim, “Investigando sobre o terreno, ele verifica
que o trabalho científico não é uma operação linear. Que, ao longo da pesquisa, a
problemática pode ser alterada, a hipótese modificada, as variáveis reconsideradas.” Através
disso, elenca os seguintes tópicos:

 Marcação de um segmento do social com características sistêmicas (campo);


 Construção prévia do esquema das relações dos agentes e instituições objeto do estudo
(posições);
 Decomposição de cada ocorrência significativa, característica do sistema de posições
do campo (doxa, illusio...);
 Análise das relações objetivas entre as posições no campo (lógica);
 Análise das disposições subjetivas (habitus);

517
 Construção de uma matriz relacional corrigida da articulação entre as posições
(estrutura);
 Síntese da problemática geral do campo.

Esses pontos contribuem para a percepção do quadro conceitual produzido por Bourdieu
que vai ao encontro do que vem a ser pregado por Hugues de Varine na sua ação prática.
Nesse aspecto, vale ressaltar que as proposições que envolvem a ideia de constituir um campo
de atuação através da “Nova Museologia” vão despontar num conjunto de estudos e práticas
sociais voltadas as mais diversas populações. Frente a essa prerrogativa, em seu trabalho
intitulado como Esboço de uma teoria da prática (1972), Bourdieu aponta para a ideia
voltada para os modos de conhecimento em consonância com o caráter fenomenológico das
implicações da aplicação da teoria de Varine no campo museológico:

O mundo social pode ser objeto de três modos de conhecimento teórico[...],


mesmo não sendo de forma alguma exclusivos, ao menos em direito, só têm
em comum o fato de se oporem ao modo de conhecimento prático. O
conhecimento que chamaremos de fenomenológico (ou, se quisermos falar
em termos de escolas atualmente existentes, "interacionista" ou
"etnometodológico") explicita a verdade da experiência primeira do mundo
social, isto é, a relação de familiaridade com o meio familiar, apreensão do
mundo social como mundo natural e evidente, sobre o qual, por definição,
não se pensa e que exclui a questão de suas próprias condições de
possibilidade. (BOURDIEU, 1972, p. 01)

Dessa maneira, podemos delimitar que o campo de atuação da proposta de Varine é


definido em consonância com as práticas de desenvolvimento comunitário que tem por
objetivo claro uma relação de familiaridade de um determinado núcleo de agentes com a
potencialidade expressa pelo seu patrimônio em meio a uma possibilidade de realização de
um estudo que opera em modo prático. Com isso, devemos levar em consideração a aplicação
metodológica da teoria, em que:

Tratar da teoria como um modus operandi que orienta e organiza


praticamente a prática cientifica é, evidentemente romper com a

518
complacência um pouco feiticista que os <<teóricos>> costumam ter para
com ela. (BOURDIEU, 1989, p.60)

Frente a isso, é agregada a demarcação desse campo que será estudado, diante de uma
análise para a formulação da teoria que será aplicada no próprio campo. Com isso, podemos
trazer aqui os exemplos expressos no livro As Raízes do Futuro: O Patrimônio a Serviço do
Desenvolvimento Local (2012) onde Varine traz uma série composta por seis “fichas práticas”
que servem de base para um estudo in loco, “[...] pois, formar um objeto teórico que será
submetido à prova empírica. A construção do fato social consiste em delimitar claramente um
segmento da realidade” (THIRY-CHERQUES, 2006, p. 44), para a execução de projetos de
implantação de museus comunitários ou ecomuseus. Na lógica enraizada do trabalho prático,
existe as aproximações e dissonâncias que apontam para as possíveis aproximações e
distanciamentos diante de uma confluência de saberes específicos e delineados, onde pode ser
expressada de forma profícua na realização aplicação de fichas práticas como ferramenta de
legitimação de uma polifonia do estudo e análise dessa teoria na prática. Pois segundo
Bourdieu em O poder simbólico (1989):
Compreender trabalhos científicos que, diferentemente dos textos teóricos,
exigem não a contemplação mas a aplicação prática, é fazer funcionar
praticamente, o respeito de um objeto diferente que nele se exprime, é
reativá-lo num novo acto de produção [...]. (BOURDIEU, 1989, p. 63-64)

Outro ponto a ser pensado em relação a essas fichas é a relação que as perguntas têm
em confluência com as questões inerentes a essa teoria da prática, Desse modo, trago aqui
uma dessas perguntas que são tratadas no texto de Varine no processo de construção do
inventário para uma instituição de desenvolvimento local “[...] “Classificar” segundo uma
ordem de prioridade justificável (quer dizer, tomar uma decisão em função do interesse geral,
familiar, comunitário, social...)” (VARINE, 2012, p. 82) . O processo de classificação visto
dessa forma engloba os estudos de teoria da prática quando ele aponta para escolhas a serem
tomadas em relação de que “classificadores” serão utilizados no processo, especialmente a
partir do momento em que se discute com a comunidade o que a mesma quer que seja
empreendido no seu plano de desenvolvimento comunitário e museológico. A comunidade

519
assume papel decisivo na função classificatória de delimitar pontos e espaços de estudo, visita
e diálogo. Na formulação e execução do que o autor apresenta como “inventário
participativo”.
Ele continua com essas perguntas provocações, onde na segunda ficha ele pergunta:
“O que queremos fazer ou não fazer do elemento do patrimônio em questão?”. Com isso
trazemos a segunda proposição em que ele coloca a comunidade como agente de escolha e
objetivação do que deve ser pensado e estudado nesse processo, onde se

[...] constrói relações objetivas (isto é, econômicas ou lingüísticas), que


estruturam as práticas e as representações das práticas (ou seja, em
particular, o conhecimento primeiro, prático e tácito, do mundo familiar), ao
preço de uma ruptura com esse conhecimento primeiro e, portanto, com os
pressupostos tacitamente assumidos que conferem ao mundo social seu
caráter de evidência e de natural: com efeito, somente se nos colocarmos a
questão − que a experiência dóxica do mundo social exclui por definição −
das condições (particulares) que tomam possível essa experiência é que o
conhecimento objetivista pode estabelecer as estruturas objetivas do mundo
social e a verdade objetiva da experiência primeira enquanto privada do
conhecimento explícito dessas estruturas. (BOURDIEU, 1972, p. 01)

O desdobramento da teoria em relação à prática nesse caso diz respeito à continuidade


dessa teoria mesmo em campo. Pois, a conclusão da teoria só vai ser consolidada com a
ênfase prática. Com isso, fica clara a ideia de Varine expressa no livro Raízes do Futuro
(2012), quando o autor, em cada capitulo, busca trazer para o viés prático a aplicação da teoria
que está sendo abordada na publicação com o intuito de elaborar um movimento de
autenticação de uma prática de escolha e legitimação de um legado patrimonial em
decorrência da possibilidade da sua utilização como ferramenta de subsistência econômica
para uma determinada parcela da sociedade. Uma aproximação da teoria com o campo de
atuação, como forma de especialização dos agentes envolvidos na construção coletiva
implícita na proposta/concepção museal.

Hugues de Varine e as definições conceituais das práticas museais

520
Para dar continuidade ao estudo da bibliografia de Hugues de Varine é preciso retomar
a questões conceituais. Para isso, foi enviada uma entrevista por escrito com seis perguntas,
respondido em francês e traduzidas depois pelo Professor Dr. Clovis Carvalho Britto12,
abordando algumas dessas questões. Nela, Hugues de Varine explicou de forma resumida o
que seria a “Nova Museologia”, “Ecomuseologia” e “Sociomuseologia”, através da seguinte
pergunta: “No que tange os termos e conceitos da Nova Museologia. Qual a diferença entre
Ecomuseologia e Sociomuseologia?”.

A Nova Museologia é um movimento de contestação da Museologia


tradicional e de experimentação de novas formas de museus que valorizem o
lugar dos museus na sociedade e novos modos de gestão de coleções. Ela é o
fruto de transformações mais ou menos espontâneas que ocorreram nos anos
70 do século passado (Conferência ICOM13 de Grenoble, Mesa Redonda de
Santiago, primeiros museus de territórios ou ecomuseus etc.). Muito tem
sido falado sobre a Nova Museologia, mas ela não tem sido teorizada,
tornando-se essencialmente uma prática e um ideal. Ela pode ser aplicada
tanto para a transformação interna de museus tradicionais, quanto para a
criação de novos museus. A Ecomuseologia é uma palavra, também não
codificada, que abrange uma série de práticas de gestão do patrimônio por
uma comunidade em um território. Essas práticas são conhecidas por
diversos nomes: ecomuseus propriamente ditos, museus comunitários,
museus locais. Elas assumem formas mais ou menos experimentais,
inventando modos de ação e educação patrimonial relacionados aos
territórios culturais, sociais, ambientais e econômicos. Ela não é respaldada
em modelos, até porque não existem dois museus comunitários ou
ecomuseus semelhantes: cada projeto, cada realiação é única, porque cada
comunidade, cada patrimônio e território são únicos. A Sociomuseologia é
uma disciplina acadêmica, de origem luso-brasileira, que tenta definir
cientificamente os fenômenos e os conceitos da Nova Museologia e da

12
Pós-Doutor em Estudos Culturais no Programa Avançado de Cultura Contemporânea da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB), Linha de Pesquisa Arte,
Cultura e Patrimônio. Doutorando em Museologia pela Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias
(ULHT), Portugal. Mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e Mestre em Museologia
pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professor Adjunto na Universidade Federal de Sergipe (UFS)
vinculado ao Departamento de Museologia e aos Programas de Pós-Graduação em Antropologia e em Culturas
Populares. Professor no Programa de Pós-Graduação em Museologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA)
e orientador da presente pesquisa. http://lattes.cnpq.br/7846212059366799
13
Comitê Internacional de Museus

521
Ecomuseologia. Ela analisa as experiências visando obsersar as
características comuns. VARINE-BOHAN, Hugues de. Entrevista concedida
a Roberto Fernandes dos Santos Junior. França, 22 jan. 2017.

Aqui fica a inquietude de entender o “movimento”, a “prática de gestão” ou a


“disciplina acadêmica”. Vemos que diante de tantos estudos apresentados na área em relação
ao contexto social da Museologia, a proposta ainda não conseguiu se fixar no patamar
acadêmico de forma a sanar essas proposições que ainda perpassam o delineamento do campo
museal. Em relação a isso vemos a ideia expressa por Varine em tratar dos museus brasileiros
como um apanhado de museus comunitários, mesmo que algum deles tenha outras
denominações, implicações que também podem ser visualizadas na não consolidação de
algumas terminologias ligadas ao fenômeno da Nova Museologia.

Existem na América Latina, e no Brasil, um grande número de museus


comunitários, alguns dos quais levam o nome de ecomuseu, porque seus
fundadores assim os designaram. Em termos brasileiros, os ecomuseus,
museus de favelas, os museus indigenas, muitos Pontos de Memória, alguns
terreiros e certas comunidades afro-brasileiras são museus comunitários.
Muitas vezes o termo ecomuseu é escolhido para se distinguir do museu
tradicional e destacar claramente sua relação com o território, a comunidade,
a globalização do património vivo (natural e cultural, material e imaterial)
etc. O único país onde os ecomuseus possuem um “rótulo” oficial é a Itália,
onde as doze regiões adotaram "leis de ecumuseus” e estabeleceram critérios
para a aprovação de tais ecomuseus, métodos de avaliação, redes regionais
etc. [...] É por isso que o Fórum organizado em Milão em julho passado para
os ecomuseus italianos abarcou "os ecomuseus e museus comunitários”.
VARINE-BOHAN, Hugues de. Entrevista concedida a Roberto Fernandes
dos Santos Junior. França, 22 jan. 2017.

No texto Ecomuseu (2000), Varine apresenta o que vem a ser essa tipologia museal que
constituiu um dos elementos que balisaram a Nova Museologia, apontando para alguns de
seus aspectos:

O ecomuseu, em uma variedade comunitária, é inicialmente uma


comunidade e um objetivo, o desenvolvimento dessa comunidade. Em
seguida, é uma pedagogia global que se apóia em um patrimônio e em
agentes que pertencem ambos a essa mesma comunidade. Enfim, é um
modelo de organização cooperativa com vistas ao desenvolvimento e a um

522
processo critico de avaliação e de correções contínuas (VARINE-BOHAN,
2000, p. 69).

Sendo assim, o processo de desenvolvimento14 e aperfeiçoamento dos ecomuseus lida


diretamente com as impressões e as marcas que a comunidade atribui ao seu museu. Com
elementos que aproximam a instituição ao contexto a qual corpo social integra. Apresenta-se
primeiramente como elemento de desenvolvimento territorial, para a produção do
conhecimento necessário para a manutenção do ecomuseu.

O ecomuseu é, pois, o instrumento privilegiado do desenvolvimento


comunitário. Ele não visa primeiramente ao conhecimento e à valorização de
um patrimônio; ele não é um simples auxiliar de um sistema educativo ou
informativo qualquer, não é um meio de progresso cultural e de
democratização do acesso a obras eternas da genealidade humana (VARINE-
BOHAN, 2000, p. 70-71).

Já em questões de terminologia, Hugues nos apresenta a seguinte definição do que é o


ecomuseu, com uma definição mais clara e especifica em relação a sua formação.

[...] o fato “museu” remete exclusivamente à uma linguagem das coisas


reais, o prefixo “eco” refere-se a uma noção de ecologia humana e as
relações dinâmicas que o homem e a sociedade estabelecem com sua
tradição, seu meio ambiente e os processos de transformação desses
elementos, quando alcançaram um certo estágio de consciência de sua
responsabilidade de criadores (VARINE-BOHAN, 2000, p. 69).

No entanto, ainda devemos saber como foi que Hugues de Varine iniciou seu trabalho
de consultoria. Pois cada nuance desse trabalho está ligado diretamente com o trabalho de
consultoria que ele desenvolve desde a sua saida do ICOM. Ele trabalhou “em especial dos
auxílios para a criação de empresas e empregos, inclusão social e projetos de
desenvolvimento económico, cultural e social.”. Sendo que:

Eu comecei a trabalhar em 1975, em uma agência de desenvolvimento


público em um pequeno distrito ao norte de Paris. Em seguida, em 1985, eu

14
“[...] a nova museologia – ecomuseologia, museologia comunitária e todas as outras formas de museologia
ativa – interessa-se em primeiro lugar pelo desenvolvimento das populações, refletindo os princípios motores da
sua evolução ao mesmo tempo em que as associa aos projetos futuros.” (Declaração de Quebec, 1984)

523
trabalhei para o desenvolvimento das zonas de habitação social na França e
em 1990 eu criei a minha empresa de consultoria em desenvolvimento local
e comunitário (ASDIC) com a qual eu trabalhei na França e no estrangeiro
(especialmente em Portugal e no Brasil).Em seguida, em 2000, eu continuei
"free lance" e trabalhei principalmente em missões sobre o patrimônios e os
ecomuseus, no Brasil e na Itália. Eu finalizei essa atividade profissional em
2013 e desde esse momento estou me dedicando ao ensino e ao
acompanhamento de projetos, voluntários e gratuitos, especialmente na
Itália.VARINE-BOHAN, Hugues de. Entrevista concedida a Roberto
Fernandes dos Santos Junior. França, 22 jan. 2017.

Vemos um trabalho pelas lentes do próprio Varine que destaca a continuidade de sua
trajetória na Museologia, mesmo que hoje ele não tenha todo o suporte que ele tinha antes dos
anos 2000. Isso se dá pelo enfraquecimento do termo “Nova Museologia”, que, com o tempo,
foi se diluindo e se transformou em diversas terminologias ligadas à essa nova
contextualização museal (Museologia Social, Museologia Comunitária, Museologia Popular,
Sociomuseologia etc.), que acabou descentralizando os esforços para ideias de algum modo
dististas e ainda com contornos não muito claros.

Cultivando raízes para o futuro de uma Nova Museologia no Brasil

Transitando pela perspectiva de ser um “observador participante” nas suas ações de


consultoria, Hugues de Varine aproximou-se do Brasil no inicio de sua carreira de consultor
internacional. Isso se deu por meio de pessoas que o trariam para o campo museal brasileiro,
como também da sua proximidade quanto ao idioma português.

Eu creio que duas razões expliquem meu envolvimento com o Brasil: eu


poderia falar sobre o relacionamento dos museus com o desenvolvimento
local, graças ao meu passado no ICOM e a minha profissão de agente de
desenvolvimento; e também eu poderia falar um pouco de português, que eu
aprendi em quase três anos em Portugal (1982-1984) como diretor do
Instituto Franco-Português em Lisboa. Eu poderia, assim, acompanhar
projetos de campo, com um olhar muito diferente, não como museólogo mas
associado a uma experiência de museus com um outro desenvolvimento dos
territórios. VARINE-BOHAN, Hugues de. Entrevista concedida a Roberto
Fernandes dos Santos Junior. França, 22 jan. 2017.

524
Porém, a afinidade com o idioma não era só a responsável pela aproximação com o país.
Desde a década de 1980, Hugues desenvolve ações de consultoria no Brasil. Processo iniciado
com a tradução de um dos seus livros:

Tudo começou em 1987, quando Fernanda Camargo Moro, que eu tinha


conhecido quando eu dirigia o ICOM, traduziu e publicou em português meu
livro "O Tempo Social" (Editora Eça - em francês L'initiative
Communautaire). Depois eu participei em 1992 na primeira reunião
internacional de ecomuseus no Rio de Janeiro, também organizado por
Fernanda. Depois eu vim diversas vezes em Itaipu, Rio Grande do Sul, e
Petrópolis (com Maria de Lourdes Parreiras Horta, que dirigia a equipe do
Museu Imperial). Em 2001 e 2004, participei ativamente no segundo e
terceiro Encontro Internacional de Ecomuseus e Museus Comunitários (II e
III EIEMC) no Ecomuseu de Santa Cruz. VARINE-BOHAN, Hugues de.
Entrevista concedida a Roberto Fernandes dos Santos Junior. França, 22 jan.
2017.

Como elencada na citação acima, ele conheceu e trabalhou em algumas cidades


brasileiras desenvolvendo a suas práticas. A primeira instituição que passou por suas
orientações para o desenvolvimento dessa “teoria da prática”, foi o Ecomuseu de Itaipu-PR.
Mas como referenciado, ele integrou outros diversos projetos, traçando também uma
temporalidade em relação a eles. “Estas missões foram geralmente curtas, entre três dias e
uma semana no campo. Elas foram seguidos por contatos frequentes via internet”. Diante
disso, ele enumerou sua participação nos seguintes projetos:

 Ecomuseu de Itaipu, Foz do Iguaçu (PR) – de 1987 a 2010 – missão de acompanhamento


da evolução do ecomuseu desde a sua criação, implantação do Programa « Cultivando
Agua Boa », relação com o lado paraguaio (Museu da Terra Guarani)
 Ecomuseu da Santa-Cruz (Rio de Janeiro) – de 1992 a 2012 – participação dos Encontros
Nacionais (Jornadas de Ecomuseologia, 2009) e Internacionais (II e III EIEMC 2000 e
2004), mobilização dos agentes econômicos.
 Ecomuseu da Serra de Ouro Preto (MG) – 2008-2012 – Organização do Ecomuseu,
metodologia de inventário do patrimônio, integração do ecomuseu na rede de museus e

525
sítios do patrimônio de Ouro Preto e da Bacia do Ouro, criação de um parque
arqueológico.
 Ecomuseu da Amazônia, Belém (PA) – 2009-2012 – Organização do Ecomuseu,
dinâmicas de micro-deselvolvimento e de micro-economia nos diversos territórios do
ecomuseu, preparação do IV EIEMC, método de inventário, aplicação de cursos de
capacitação, promoção do artesanato de bases tradicionais.
 Rio Grande do Sul – 1992-2012 – visitas quase todos os anos para consulta em diversos
sites: Rio dos Sinos, Picada Café, Quarta Colônia, Porto Alegre (Orçamento Participativo e
Lomba do Pinheiro), São Miguel das Missões, Pelotas.

Além desses trabalhos, foram realizadas algumas pequenas intervenções no Brasil e no


continente europeu:

 Fundação Oswaldo Cruz – 1994 – relação da Fundação com as favelas vizinhas.


 Organização e acompanhamento de uma viagem de estudos de ecomuseólogos
brasileiros em alguns ecomuseus da Europa (2011)
 Apoio à criação da Associação Brasileira de Ecomuseus e Museus Comunitários
(ABREMC)

É válido ressaltar que “Todas estas ações foram objeto de notas e relatórios em francês,
o principal foi traduzido para o português. Mas estes documentos são propriedade dos
organismos que me contrataram”. Posto isso devemos pensar em como esse trabalho foi
realizado no Brasil de acordo com um recorte especifico em algumas das instituições que
passaram pela intervenção de Hugues de Varine-Bohan. Em uma parte da entrevista, ele traça
o panorama do que podemos ver na sua própria narrativa um exemplo claro do contexto das
suas consultorias.

Porque eu nunca quis dar conselhos ou fingir orientar os projetos: Eu queria


manter o meu lugar estrangeiro ou de observador participante, os atores

526
locais que decidiriam o que queriam e poderiam fazer a partir deles mesmos.
Meus relatórios são realmente notas de visitas que contêm minhas reações
subjetivas e questões que eu observava a partir dessa experiência. Eu creio
que a minha presença ocasional lá e meu apoio permanente à distância
ajudou a abrir perspectivas diferentes para os líderes de projetos e programas
locais. Eu também estava trazendo experiência internacional e contatos
muitas vezes úteis, não como modelos, mas como referências. VARINE-
BOHAN, Hugues de. Entrevista concedida a Roberto Fernandes dos Santos
Junior. França, 22 jan. 2017.

Seu perfil apresenta-se como a do educador em horizontes educacionais, diante da


lógica de que ele está ali não só para representar um papel, mas para ser um agente de
transformação incluso dentro da comunidade em questão. No fim, ele aponta o caminho, mas
são os “atores locais” que decidem por onde deve ser encaminhado o processo de constituição
e implantação do museu. Novamente retomo a uma das “fichas práticas”.
Quando ele referência que se deve “determinar o objetivo (por exemplo, criar um museu
ou ecomuseu, preparar um diagnóstico estratégico, criar um discurso político, elaborar um
plano ou um esquema de ordenamento do território...)” (VARINE, 2012, p. 81), enquanto
consultor ele oferece a liberdade para que a comunidade descida o que eles querem que seja
constituído.
Pois assim como um educador que está ali para disseminar e aprender com os seus
educandos, o consultor passa a não só a orientar o que deve ser feito, mas a estabelecer um
diálogo que deixa de ser hierárquico. A proposta é promover um exercício de aproximação,
reconhecimento e decisão aberta entre o agente e os atores sociais, valorizando “a atitude dos
membros da comunidade em relação ao seu patrimônio comum e, sobretudo, a atitude dos
sub-grupos que compõem” (VARINE, 2012, p. 75)
Hugues continua fazendo referência a esse papel fundamental do diálogo aberto entre os
agentes responsáveis pelo processo que está sendo instalado, a partir do pressuposto da

527
Pedagogia15, ciência que se põe como base para a formulação da prerrogativa de libertação na
Museologia.

Outro argumento é o papel pedagógico da utilização do patrimônio no


diagnóstico compartilhado que nutre uma decisão estratégica igualmente
compartilhada. Todo o trabalho descrito aqui transforma em profundidade os
membros da comunidade, fazendo com que reconheçam a riqueza daquilo
que possuem individual e coletivamente. Eles estarão assim bem preparados
para tomar parte ativa no processo, inicialmente de diagnóstico, e depois de
desenvolvimento. (VARINE, 2012, p.79)

Nesse processo, a comunidade é o elemento a ser pensado antes de qualquer outra coisa,
até mesmo o patrimônio deve ser como um agente de segundo plano. Quando se pensa na
ideia dessa Nova Museologia, o patrimônio só tem sentido com a comunidade que o
compõem. Varine afirma que “[...] o patrimônio em segundo lugar, imediatamente após a
análise dos recursos humanos. Juntamente com estes, é o principal componente inicial de toda
estratégia de desenvolvimento sustentável”. (VARINE, 2012, p.79). Diante do trabalho de
valorização do ser nas práticas museológicas, no Congresso Anual das Associações de
Museus Italianos, realizado pelo Comitê do ICOM naquele país, Varine (2007) apresenta
essas pessoas como “os amigos do museus”, sendo elas as responsáveis pelo seguemento das
atividades em algumas unidades museológicas. Isso se assemelha ao que no Brasil é chamado
de Associação de Amigos do Museu.

Essas pessoas generosas, apaixonadas, dinâmicas, que propõem seus


serviços a um museu que os agrada. Trabalham ou agem para um museu
existente ou para um projeto de museu, por uma exposição, uma oficina
sobre o patrimônio etc. Eles fazem isso tanto por gosto profissional quanto
pelo sentido de responsabilidade social. Podem grupar-se em associações ou
propor seus serviços individualmente, podem também aceitar a participação
nos órgãos de gestão do museu (conselhos de administração,
boardoftrustees) ou de coleções (conselhos de aquisição). Em todo caso, eles
se põem a serviço dos profissionais que se responsabilizam pelo museu. Os
voluntários trazem ali competências, meios e influência. As competências

15
Uma questão que será aprofundada em trabalhos futuros, consiste nos impactos do pensamento/teoria do
Pedagogo de Paulo Reglus Neves Freire na teoria da prática de Hugues de Varine.

528
podem ser de gestão, científicas ou saberes técnicos. Os meios podem ser
financeiros (cotizações, garantias de empréstimos, ou financiamentos diretos
de trabalhos ou de exposições, materiais (objetos ou documentos,
empréstimos de coleções para exposições), em tempo disponível (para
trabalhos obscuros mas necessários). A influência decorre das redes de
conhecimentos de amigos do museu e do peso que representam na
sociedade. Em troca desses aportes ao museu que podem ser consideráveis,
os amigos que são na realidade mecenas, recebem uma notoriedade social e
uma satisfação moral e intelectual. Mas os museus podem também lhes
trazer outras vantagens: um voluntário que quer ser eficaz deseja receber
uma (in)formação específica, no domínio científico ou cultural ao qual
pertence o museu, à ação cultural, ao conhecimento de públicos e das
diferentes funções do museu. Ele pode também se beneficiar de uma ajuda
para a gestão de seu próprio patrimônio (conservação preventiva,
constituição de coleções pessoais, conselhos científicos). Pode trazer
vantagens dos serviços do museu a seus familiares e amigos ou sua empresa.
(VARINE-BOHAN, 2007, p. 2-3).

Para esses agentes há uma urgência que surge frequentemente em relação a todo esse
panorama, pois “é preciso formá-los no que alguns na América chamam de museologia
popular (Québec) ou comunitária (México). É também o que forma o essencial da « nova
museologia » que agora se espalha por todos os continentes. (VARINE-BOHAN, 2007, p. 3).
Diante disso percebemos as dificuldades que permeiam o campo da Museologia Social nesse
aspecto de formação desses agentes locais de desenvolvimento, frente a uma demanda em que
há uma retração de partes que envolvem a construção da ideia de “museu”.

Um dos aspectos do problema é, sem dúvida, que estamos diante de duas


categorias de pessoas bem distintas: de um lado, museólogos qualificados,
confirmados, integrados nos sistemas técnico-administrativos organizados e
conscientes de sua legitimidade; de outro lado, pessoas que poderíamos
chamar de militantes do patrimônio, enraizados em comunidades locais, sem
qualificação formal adaptada , mas vivendo e trabalhando em simbiose com
a população de seu território de pertencimento. Essas duas categorias não
falam a mesma linguagem, ainda que a matéria prima de referência, o
patrimônio, seja fundamentalmente o mesmo. (VARINE-BOHAN, 2005, p.
1).

Com base nisso não são só os agentes de desenvolvimento (aqueles que estão agregados
a iniciativa de formação de um novo museu, mas que não tem formação especifica) que

529
precisam passar por um processo de discernimento da sua função no âmbito formativo da
Nova Museologia. Essa característica se constitui, também, com a proposição de
diferenciação dos moldes ligados a criação de novos museus. Pois tudo passa por um processo
de escolha entre a “normalidade” ou a “inovação”:
.
O museu « normal » é uma instituição que nasce de uma decisão político-
administrativa e que existe desde o dia de sua inauguração. Sua gestação se
faz no segredo dos trabalhos científicos e técnicos, dos projetos de
campanhas de comunicação, dos orçamentos plurianuais, dos procedimentos
de recrutamento etc. O novo museu e mais ainda o museu comunitário na
sua forma mais inovadora, não segue um procedimento, mas, como já se viu,
ele é um processo. Seu objetivo não é a instituição nem uma inauguração;
ele é a co-construção, na comunidade e sobre seu território pelos membros
da comunidade e as pessoas mais ou menos qualificadas que os ajudam, de
um instrumento de desenvolvimento a partir de um patrimônio global
identificado por seus detentores. (VARINE-BOHAN, 2005, p. 1).

Desse modo, quebrando as ideias dos quadros de organização institucional


(organogramas), para uma definição livre dos passos que deveriam ser trilhados por esse novo
museu:

Isso significa que não existe modelo organizacional próprio do novo museu.
Seus promotores devem, a cada desafio, inventar estatutos e modos de
funcionamento, de recrutamento, de financiamento, tendo em conta as
condições locais, pessoas disponíveis (ou a hostilidade de outras...) Os
administradores chevronnés (encabrestados) não podem compreendê-lo ou
bem, se eles aceitam uma inovação, eles a aplicarão sem discernimento.
(VARINE-BOHAN, 2005, p. 1).

Pensando a partir dessa ideia trazemos aqui uma breve análise frente à implantação do
Ecomuseu de Itaipu (PR) e de Santa Cruz (RJ) no Brasil, a partir da teoria de Hugues de
Varine. Pelo viés prático, essas duas instituições tomaram corpus e formas diferenciadas. O
que acaba nos ajudando a visualizar essa perspectiva de organizações que ditam um ritmo
próprio para poderem se constituir na sociedade:

Em 1987, foi inaugurado o Ecomuseu, segundo a Itaipu o principal agente de


resgate da memória e do desenvolvimento da educação ambiental na região

530
de Foz do Iguaçu. Lá encontram-se materiais provenientes de estudos e
projetos desenvolvidos antes da formação do reservatório. O objetivo do
Ecomuseu é mostrar a área de 12 abrangência do reservatório de Itaipu,
englobando os bens de interesse científico, cultural e tecnológico. Traz a
história da região desde os caçadores e coletores, há aproximadamente 8.000
anos, até os principais fatos relativos à história da Itaipu e da região, a
moderna tecnologia existente para a produção de energia.
(MASCARENHAS E CASTANHA, 2009, p. 11-12).

Pensado inicialmente para ser construído a partir do modelo conservador da


Museologia, ele passa por alterações na confecção de seu plano diretor com o intuito de
atender as novas propostas. O intuito era que o museu atendesse a demanda de
conscientização social com base no meio ambiente através do diálogo com a comunidade que
fazia parte do entorno da Usina Hidrelétrica de Itaipu.

A ideia inicial era um museu no sentido tradicional corrente no período. A


museóloga Fernanda Moro (1987), no entanto, ao ser contratada por Itaipu
para a criação do plano diretor do novo museu, trouxe o que ia ao encontro
das necessidades mitigadoras de impacto socioambiental que a empresa
vinha propondo: a museologia social/nova museologia. Segundo Fernanda
Moro (1987), O potencial do diálogo entre o homem e o meio ambiente
desta região de Itaipu, a possibilidade de uma leitura profunda e em várias
etapas da história da região desde a história geológica, até a antropologia, a
ciência, a tecnologia, passando pela história biológica, pela interpretação
arqueológica e pela história industrial, bem como toda a história das diversas
comunidades que ali se radicaram, foram alinhadas a um programa de
preservação e educação informal, formal e não-formal no projeto proposto
para o Ecomuseu de Itaipu, primeiro no gênero no Brasil e América do Sul.
O Ecomuseu de Itaipu foi idealizado para atuar, segundo as palavras da
museóloga, como “um organismo suscetível e predisposto a participar do
desenvolvimento e organização cultural da região”1. Pensado de forma
sistêmica, o Ecomuseu passou a desenvolver trabalhos que vinculavam “a
região (TERRITÓRIO) com elementos representativos da natureza e do
desenvolvimento cultural (PATRIMÔNIO) e com a população local
(COMUNIDADE).” (MORO, 1986, p. iii). Não se tratava de um museu
comunitário que havia sido idealizado e criado a partir da comunidade, mas,
antes disso, se tratava de um modelo museológico escolhido por Itaipu para
envolver a comunidade em processos de identificação e apropriação do
patrimônio integral de seu território. (RIBEIRO e MOREIRA, 2014, p. 291).

531
Ligado diretamente as ações de educação ambiental, o Ecomuseu de Itaipu foi pensado
para atender aos anseios da comunidade local. Todavia, diferente de outras experiências, ele
não foi pensado pela comunidade local em detrimento de uma necessidade de preservação do
meio ambiente. Mesmo seguindo fora de um contexto visualizado em âmbitos teóricos,
Varine fala que “Itaipu foi um caso inovador, onde o fundador foi uma entidade pública ou
privada (município, empresa, fundação) que pretendia e pôde responder às necessidades da
comunidade e servir de instrumento de desenvolvimento.” (VARINE, 1989, p. 1). Com isso, a
comunidade passou a desfrutar do turismo e da preservação ambiental como atividades que
levaram desenvolvimento social através da economia.
Destacando a importância do estudo do primeiro ecomuseu do Brasil, e que apresenta
características distintas em relação ao modelo referenciado pelo próprio pesquisador.” Avaliar
a trajetória do Ecomuseu pioneiro, após duas décadas, certamente é um desafio aos que se
interessam sobre os estudos de impacto social que um empreendimento desse porte promove
na sociedade local.” (PRIOSTI, 2010, p. 51). Essa citação da autora nos traz a um incentivo a
reflexão em torno da instituição diante da comunidade que a constitui. Agregando ideias e
valores da real importância do museu em detrimento da construção da Usina de Itaipu.
Além dessa experiência, também é importante citar a construção do Ecomuseu
Comunitário de Santa Cruz à luz do NOPH-Núcleo de Orientação e Pesquisa Histórica, que
tem como objetivo a valorização da história do bairro. Fundado em 1995, o ecomuseu tem
uma extensão de 125 km² que corresponde a todo o bairro situado na zona oeste do Rio.
Priosti aponta que “Santa Cruz é um caso específico de comunidade que tenta aplicar
realmente princípios tão radicais e sem concessões, fiel à necessidade de libertação cultural e
ao direito de ela própria escolher o modo de criar e gerenciar esse museu.” (PRIOSTI, 2010,
p. 61).
Essa é a diferença primordial ao analisar a proposta de trabalho de Hugues de Varine,
onde dentro dessa perspectiva ele traça museus distintos e com conotações metodológicas
diferentes de acordo com cada caso. Onde vemos a aplicação da ideia de Ecomuseologia no

532
caso do museu de Itaipu, e o seu aprimoramento no caso de Santa Cruz com a aplicação de
uma Ecomuseologia Comunitária.

Referências bibliográficas

BOURDIEU, Pierre. Esboço de uma teoria da prática. Tradução das partes: "Les trois
modes de connaissance" e "Structures, habitus et pratiques". Traduzido por Paula Montero,
Geneve, Lib. Droz, 1972. p. 162-189.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Traduzido por Fernando Tomaz, Bertrand Brasil,
1989.

CERÁVOLO, Suely Moraes. Delineamentos para uma teoria da Museologia. Anais do


Museu Paulista. São Paulo. v. 12, 2004.

MASCARENHAS. Milena Costa, CASTANHA. André Paulo. A Construção da Itaipu e os


reflexos na educação de Foz do Iguaçu. 4° Seminário Nacional Estado e Políticas Sociais,
Paraná, 2009.

MOREIRA, Isabela das Costa. RIBEIRO, Tatiara S. Damas. Ecomuseu de Itaipu e


Programa Cultivando Água Boa: gestão patrimonial comunitária na Bacia Paraná 3.
Cadernos do CEOM, Santa Catarina, n°41, p. 289-305. 2014.

PRIOSTI, Odalice Miranda. Memória, comunidade e hibridação: museologia da libertação


e estratégias de resistência. Tese (Doutorado em Memória Social), Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro, 2010.

THIRY-CHERQUES, Hermano Roberto. Pierre Bourdieu: a teoria na prática. RAP,Rio de


Janeiro,p. 27-55, Jan./Fev. 2006.

VARINE-BOHAN, Hugues de. RapportsurUn Voyage d´ÉtudesauBrésil – Colloque


d´Itaipu, avril 1989. ASDIC,1989.

VARINE-BOHAN, Hugues de. O Ecomuseu. Revista Ciências e Letras, n.27, p.61-90,


jan./jun. 2000.

VARINE, Hugues de. O museu comunitário como processo continuado1. Cadernos do


CEOM, Santa Catarina, n°41, p. 25-35. 2007.

533
VARINE, Hugues de. As raízes do futuro: o patrimônio a serviço do desenvolvimento local.
trad. Maria de Lourdes Parreiras Horta. Porto Alegre. Medianiz, 2012.
VARINE-BOHAN, Hugues de. Entrevista concedida a Roberto Fernandes dos Santos
Junior. França, 22 jan. 2017.

VARINE-BOHAN, Hugues de. O museu comunitário é herético? In: Jornal Quarteirão- no.
67 - Maio/Junho 2006. Rio de Janeiro, NOPH: p. 12-15. Disponível em www.interactions-
online.com – março/abril-2005 Acesso em: 20 fev. 2017.

534
MEMÓRIA E SOCIABILIDADE EM PERCURSO INTERATIVO NA PERIFERIA
DE BELÉM: PROTAGONISMO SOCIAL E FORMAS ALTERNATIVAS DE
VALORIZAÇÃO DA IDENTIDADE

Ana Claudia dos Santos da Silva*


Maria Karoline Brito dos Santos**

Resumo: O Bairro da Terra Firme localizado na periferia de Belém do Pará, foi o Lócus deste
trabalho. Este bairro teve sua ocupação a partir da evolução urbana da cidade de Belém principalmente
nas décadas de 1960 a 1970 e 1980. Como muitos bairros periféricos a Terra firme apresenta carência
de serviços públicos diversos, de infraestrutura, e de equipamentos de Lazer. Este trabalho tem como
objetivo destacar o Percurso interativo Paisagens e memória do Bairro da Terra Firme como uma
oferta de recurso alternativo para a valorização memória e identidade do Bairro. O intuito do roteiro é
proporcionar ao morador uma melhor percepção sobre o seu patrimônio local evidenciando a memória
social e o pertencimento ao lugar por meio de “outro olhar” sobre principais pontos de referência do
cotidiano do bairro. O percurso foi elaborado de forma participativa e colaborativa com o Ponto de
memória do Bairro da Terra Firme, por meio de encontro com diversos grupos de moradores que
contribuíram com seus conhecimentos e relatos sobre o bairro. A realização do percurso interativo é
uma tática para proporcionar uma alternativa de lazer para os diversos grupos sociais que vivem no
Bairro.
Palavras Chaves: cotidiano; memória; pertencimento; protagonismo grupos sociais; Terra Firme.

Abstrat: The neighborhood of Terra Firme, located on the outskirts of Belém do Pará, was the locus
of this work. This neighborhood had its occupation from the urban evolution of the city of Belém
mainly in the decades of 1960 to 1970 and 1980. Like many Peripheral neighborhood, the Terra Firme
lacking of diverse public services, infrastructure, and equipment of Leisure. This work aims to
highlight the Landscape and Memory Interactive Route of the Terra Firme Neighborhood as an
alternative resource for the memory and identity valorization of the Neighborhood. The purpose of the
script is to provide residents with a better perception of their local heritage by highlighting social
memory and belonging to the place through "another look" on the main points of reference of the daily
life of the neighborhood. The course was developed in a participatory and collaborative way with the
Memory Point of the Terra Firme Neighborhood, through a meeting with several groups of residents
who contributed their knowledge and reports about the neighborhood. The accomplishment of the
interactive course is a tactic to provide a leisure alternative for the various social groups that live in the
neighborhood.
Key-words: Memory; belonging; protagonism; social groups, route; Terra Firme

535
Introdução

A cidade com seus bairros, ruas, praças, igrejas, mercados, feiras, enfim espaços de
sociabilidades, tecidos por complexidades e singularidades, expressam na memória das
pessoas que deles se apropriam a ressignificação do vivido. O cotidiano dos moradores dos
bairros, sobretudo os periféricos se apresentam bastante propício para a construção de laços
de amizade e reciprocidade.

O Bairro (CERTEAU & MAYOL;1996) é referência para estudo da sociabilidade isto


por que nele se encontram condições que favorecem as relações cotidianas; o sentimento de
pertencimento ao lugar, as relações de vizinhança, relações comerciais etc. As atividades de
trabalho e lazer dinamizam nos espaços do bairro (RODRIGUES,2008) criando nestes
espaços situações onde sentimentos e memórias ficam marcados. O cotidiano dos moradores
dos bairros, sobretudo os periféricos se apresentam bastante propicio para a construção de
laços de amizade e reciprocidade.

A limitação de tempo concorre com outra circunstância: a limitação da oferta de


alternativas de lazer e espaços de encontro no caso do bairro da Terra Firme Muitas vezes
estas alternativas são os bares, arenas de futebol, festas em casa e em sedes particulares. Algo
bastante evidenciado no bairro, mas invisibilisado para os demais fora do bairro, são os
movimentos culturais presentes neste bairro através de coletivos que promovem eventos
culturais que acabam tornando-se alternativas de lazer para alguns moradores do bairro e até
de bairros vizinhos.
Nos Bairros periféricos mais populares, evidencia-se a conquista dos lugares de lazer.
As conquistas dão-se às vezes dramáticas, mas sempre coletivamente, são expressões da
identidade irredutível dos espaços empobrecidos, da ação solidária de homens, mulheres e
crianças - as ruas fechadas para prática de esportes, os bares clandestinos e os campos de
futebol nos conjuntos habitacionais programados sem sua presença e as praças conquistadas.
(DAMIANI, 2002).

536
Este trabalho relaciona duas pesquisas desenvolvidas pelo Núcleo de Altos Estudos
Amazônicos no Bairro Terra Firme, uma de Doutorado16 e outra de iniciação cientifica17 que
analisam o bairro discutindo as seguintes categorias: memória coletiva/social, pertencimento,
Patrimônio Cultural e sociabilidades.

A pesquisa caracteriza-se como qualitativa utilizou-se da observação direta,


participante e não participante (RICHARDSON,2011); Conversas com moradores e
conselheiros do Ponto de Memória da Terra Firme e pesquisa bibliográfica para
compreendermos o significado e as características de viver no bairro. O Percurso foi
elaborado de forma participativa/colaborativa, pois buscou-se o conhecimento e a colaboração
dos moradores para a sua concepção.

A intenção da criação deste percurso interativo/perceptivo é agregar a ação de


caminhar observando as ruas e lugares do bairro como um flaneur (Benjamin; Baudelaire) ou
seja, propõem com ele experimentar o bairro de forma diferente fazendo um passeio por
espaços públicos destacados pela memória de seus moradores. Neste experimentar se busca
um outro olhar sobre o cotidiano do bairro, sobre as interações do trabalho e lazer das pessoas
do local.

O Bairro da Terra Firme cotidiano, sociabilidade, trabalho e lazer.

O bairro faz parte da bacia do Tucunduba(Fig1) e teve sua ocupação a partir da


expansão urbana em direção as áreas de baixadas, que se intensificou em Belém,

16
Pesquisa de Doutorado Memória, Sociabilidade e Pertencimento: estudo das interações e práticas sociais de
feirantes e moradores do bairro da terra firme em Belém –Pa, desenvolvido no Programa de PósGraduação de
Desenvolvimento Sustentável do Trópico úmido, linha de Pesquisa sociedade, urbanização e estudos
populacionais, sob a orientação do Prof. Dr. Sílvio Lima Figueiredo.

17
Plano de Trabalho: Campo de relações sociais através do programa ponto de Memória: experiências e
possibilidades de turismo cultural no bairro da Terra Firme parte do Projeto de Pesquisa: Turismo Cultural e
Patrimonialização: Campo de relações, referências culturais e gestão para visitação orientado pelo Prof. Dr.
Silvio Lima Figueiredo do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos/UFPA

537
principalmente a partir da década de 1940, quando a ocupação urbana da cidade estava mais
concentrada no Centro. Nas décadas de 60/70 e 80, a periferia de Belém começa a sofrer um
intenso processo de ocupação impulsionado por vários fatores entre eles o intenso êxodo
rural, pela crise econômica e pela valorização do centro que acabava expulsando a população
de baixa renda para as áreas da cidade sem estrutura urbana. (SANCHES & COUTO 2010,
p.3),

Fonte: LAENA/NAEA/UFPA, 2014


Figura 1 - Mapa de Localização do Bairro da Terra Firme

Ao mesmo tempo em que concentra boa parte da população de baixa renda da capital
o bairro da Terra Firme e sofre com a carência de serviços básicos (saneamento, em especial),
a Terra Firme concentram várias instituições de pesquisa e ensino, seus “vizinhos
intelectuais”, dentre as quais destacamos, A Universidade Federal Rural da
Amazônia(UFRA); EMBRAPA; Museu Emilio Goeldi, Universidade Federal do Pará,
Eletronorte entre outras.18

18
Estas Instituições se concentram ao longo da Avenida Tancredo Neves que é chamada Avenida Perimetral da
Ciência

538
Este é um fato que estar presente na memória do grupo como se pode percebe no
relato de seus moradores que mostram orgulho de morar ali apesar da imagem negativa do
bairro, eles afirmam que o bairro é bom de morar, pois apesar das dificuldades tem de tudo
inclusive a Universidade, Museu Goeldi, Embrapa. Estas impressões são declaradas nos
depoimentos dos moradores para o Inventário da memória do Bairro realizado pelo Ponto de
Memória do Bairro da Terra Firme19.

Este bairro é um dos mais populosos de Belém do Pará, tem um forte estigma de lugar
violento e de marginalidade, que é bastante disseminado pela mídia local. No entanto,
também tem uma relevante história de luta, resistência e fortes movimentos culturais atuantes
bem como um expressante movimento comunitário que foi relevante para as reivindicações de
melhorias na infraestrutura e direito de moradia. Tais fatores motivaram o Instituto Brasileiro
de Museus (IBRAM) a selecionar e incluir a Terra Firme no programa Pontos de Memória
lançado pelo instituto em 2009. O Ponto de Memória atua como elemento articulador da
memória no bairro da Terra Firme, a partir de várias ações, projetos e eventos sobre o
patrimônio histórico, social e cultural da Terra Firme como forma de apresentar suas
memórias e sua realidade política e social junto ao público

O Ponto de Memória do bairro da Terra Firme, tem como um dos anseios, exposto no
inventário, a elaboração de um Museu Comunitário, com a finalidade de “assegurar o direito à
memória das classes populares enquanto direito à cidadania e ao poder da comunidade de auto
reconhecer como sujeitos sociais que produzem história”. (INVENTÁRIO,2012). Dentre
essas práticas de musealização do bairro, projeta-se um roteiro de percurso pelas principais
ruas do bairro. Tal prática vem sendo realizada em outros pontos de memória como o Lomba
do Pinheiro, no Rio Grande do Sul e na favela da Maré e no Morro de Pavão/Pavãozinho, no
19
Em 2010 o Bairro da Terra Firme foi inserido no Programa Ponto de memória, coordenado Pelo Instituto
Brasileiro de Museus (IBRAM) que contemplou localidades consideradas como lugares de alta vulnerabilidade
social, e que desenvolviam ações afirmativas de memória social. Estes bairros receberam recursos para
viabilizarem seus projetos e estimularem as ações de valorização da memória. No caso da Terra Firme estas
ações são desenvolvidas em parceria com O Museu Paraense Emilio Goeldi (cf: www..museus.gov.br;
www.museu-goeldi.br)

539
Rio de Janeiro. Caracterizando uma prática de turismo que vem crescendo em bairros
periféricos e vem contribuindo para a sociabilidade nessas áreas. Empoderando os moradores,
a valorização do bairro e proporcionando novas alternativas econômicas.

A inserção do turismo em bairros periféricos e em áreas com estigmas de violência


vem sendo executada e estudada em periferias de diversas localidades do mundo e em favelas
cariocas no Brasil, visto que o turismo alternativo nestas áreas surge devido a busca pelo
novo, por viver uma realidade estigmatizada. O turismo colabora no (re) conhecimento e (re)
afirmação de identidades, construindo laços sociais através da memória social e
pertencimento, a partir da necessidade de se buscar e valorizar os patrimônios materiais e
culturais presentes nestas localidades como forma alternativa de renda e principalmente como
forma de desmitificação de locais violentos e sem propriedades culturais expressantes.
Estudos em experiências de roteiros alternativos aplicados em bairros periféricos e em favelas
são relatados por FREIRE-MEDEIROS (2009) que cita a crescente consumação de práticas
turísticas em periferias indianas e africanas e na favela da Rocinha/RJ.

As visitas guiadas já eram realizadas no bairro e a comunidade sentiu necessidade de


afirmar sua identidade e valorizar o patrimônio a partir de roteiros mais elaborados e que
proporcionassem retorno financeiro para auxiliar nas ações do ponto e Memória do bairro da
Terra Firme. O roteiro expressa os patrimônios como materialização da memória do bairro.
Durante o roteiro piloto foram escolhidas algumas edificações e espaços de memória de luta e
reivindicações do bairro como escolas, postos de saúde, espaços verdes, praça, mercado, entre
outros. Caracterizando a importância que esses lugares representam para aquela comunidade,
que são locais que geram o sentimento de pertencimento e consequentemente são patrimônios
daquele bairro.
Atualmente a paisagem do bairro é caracterizada por uma grande quantidade de casas,
de ocupação irregular desta forma suas ruas são precárias sem asfalto e calçadas. Em período
de grandes chuvas as ruas do bairro enchem e se tornam quase rio. Os espaços de lazer no

540
bairro são quase nulos, mas segundo relatos de moradores um dia as crianças brincavam na
rua e no igarapé Tucunduba.

Foto: Silva 2017


Figura 2: R. Celso Malcher período de chuva em Belém

A intenção de criar um roteiro interpretativo em um bairro periférico com precárias


condições, foi de utilizar este recurso como uma forma de mostrar as necessidades da
comunidade, reconstruir a memória social e reforçar o pertencimento dos seus moradores ao
lugar. Neste sentido, damos voz aos atores que protagonizam este cotidiano destacando suas
práticas sociais e táticas para vivenciar seu cotidiano.

Percurso Interativo perceptivo no Bairro da Terra Firme


A metodologia para a elaboração deste percurso se fundamentou no método da
pesquisa ação e deu-se em três etapas. Primeiramente ocorreram reuniões com os moradores
para se definir os espaços que deveriam ser inseridos no roteiro. Estes espaços foram
escolhidos a partir dos relatos orais nas reuniões com conselheiros do Ponto de Memória da
Terra Firme. Também foram realizadas duas oficinas, uma dirigida para os moradores do
bairro realizada em 2015 durante a semana nacional de Museus, que teve como título “Um
outro olhar sobre o Bairro da Terra Firme”, onde propusemos como objetivo perceber o
bairro a partir da percepção de seus atores, sendo assim realizamos caminhadas perceptivas
pelas ruas São Domingos e Celso Martins (Fig.2) fazendo registros fotográficos e narrativos

541
desta experiência. Em 2016, realizamos outra oficina na escola Brigadeiro Fontenele que
visavam o resgaste da memória do bairro a partir da vivencia dos jovens (Fig 3), e em
algumas dinâmicas utilizou-se da memória dos pais avós e pessoas mais velhas do bairro,
como mostra a imagem. Observou-se que os locais tidos como de representatividade do
histórico do bairro eram aqueles conquistados através de lutas e reivindicações para melhoria
de vida; como praça, escolas, espaços verdes (Fig4), mercado, entre outros.

A segunda etapa foi o levantamento do histórico desses locais a partir de pesquisas


bibliográficas, documental e relatos dos próprios moradores realizado entre novembro de
2015 a março de 2016. A terceira etapa será realizada a partir do percurso piloto, com a
avaliação dos participantes.

Fonte: Silva(2016) Fonte: Acervo Ponto de Memória (2016)


Fig3: Oficina na Escola Brigadeiro Fontenelle Fig 4: Jardim Comunitário: Espaço verde
O percurso inicia-se no campus de pesquisa do Museu Emilio Goeldi20, loca, que
desde a década de 80 possui projetos com o bairro da Terra Firme e é um dos parceiros do
ponto de Memória do bairro. O campus de pesquisa do Museu é referência para os
comunitários devido a historicidade e parceria com o programa a partir do projeto “Museu
Goeldi leva a Educação e Ciência à Comunidade”, que lançado em 1985 ampliou os objetivos

20

542
comunitários ao participar de diversas ações de educação e ciências (DA SILVA BRITO,
2014). Além de ser local para reuniões e eventos promovidos pelo ponto de memória. O
campus de Pesquisa do Museu Goeldi é uma das instituições de pesquisa situadas no Bairro
fica situado na Av. Perimetral.
Nesta mesma avenida, está o segundo ponto do percurso, um jardim comunitário
localizado bem em frente ao Campus do Museu Goeldi, que é uma das atividades apoiada
pelo ponto de memória, e realizada por um grupo de mulheres moradoras do bairro, em prol
do saneamento, falta de coleta do lixo. Este grupo de moradoras propõem-se a criação de
jardins e espaços verdes no bairro e em locais em que há concentração de lixo e entulhos
despejados pelos próprios moradores da Terra Firme e bairros vizinhos, como forma de
sensibilizar estas pessoas para preservar aquela área com o cultivo de plantas ornamentais e
medicinais, frutas e hortaliças. Inicialmente o programa ponto de memória realizou eventos
nas escolas do bairro para a sensibilização quanto a questão do tratamento de resíduos sólidos
através da realização de cines clubes sobre temas ambientais utilizando o Espaço do Museu
Goeldi.
Saindo da Av. Perimetral entrando na Rua São Domingos, temos o terceiro ponto a
ser apresentado no percurso será a escola estadual Brigadeiro Fontenelle que está no bairro há
mais de quarenta anos, que é uma das representações de luta pela educação no bairro e,
referência em mobilização comunitária. A escola oferece uma programação à comunidade
com atividades culturais de cinema, dança e teatro.
Seguindo o trajeto, no final da rua São Domingos, encontra-se a Igreja de São
Domingos Gusmão, em frente a ela existe uma das únicas praças do bairro, a praça Olavo
Bilac (Fig 5), que foi cenário para diversas manifestações, luta e reivindicações. Este espaço
público é referência para os moradores, pois além das diversas manifestações culturais que
aconteceram e acontecem no bairro, pela parte da manhã funciona o chamado “shop chão”
onde são vendidas diversas mercadorias e serviços que são expostos no chão, por cima de
lonas e matérias improvisados de onde provem o seu sustento. Neste local percebe-se uma
confluência de pessoas que trabalham, batem papo, passeiam, ou seja, é um dos principais

543
espaços de sociabilidade do bairro, ponto de referência para quem não é do Bairro. Segundo
relato de antigo morador, a praça era um local totalmente diferente há alguns anos atrás, pois
era aberta e possuía bancos onde as pessoas sentavam para conversar, “uma pequena piscina”
onde as crianças tomavam banho e a venda no local ocorria livremente, com pessoas de fora
do bairro geralmente estudantes universitários em busca de recursos para viagens ou
formatura. Hoje a praça é gradeada, não existem mais bancos e para a venda no shop chão
paga-se uma taxa simbólica de R$ 1,00 (um real) para a Paróquia de São Domingos Gusmão.

Foto: Silva,2016
Fig.5 Pça Olavo Bilac – Shop Chão
O quarto ponto de parada, é a feira (Fig 6), que fica na rua Celso Malcher e é outro
local de muita representatividade no Bairro. A Feira da Terra Firme faz parte da identidade
cultural do bairro. Assim como em outras feiras, ela é local de sociabilidade entre os
moradores. Este é um espaço de intenso fluxo de pessoas. A maioria dos feirantes moram no
bairro e herdaram o ofício e saberes de seus pais, avós e familiares. Nesta feira existe uma
grande diversidade de produtos e segundo os moradores funciona inclusive a noite com venda
de pescado.

544
Foto:Ana Silva, 2012
Figura 3 - Imagem interna do Horto mercado Municipal

Para o próximo ponto de parada foi escolhida o Igarapé do Tucunduba, que era
utilizado como espaço de lazer onde as crianças brincavam e tomavam banho. Porém, devido
a expansão do bairro, as margens do Igarapé foram ocupadas e adotou-se uma nova dinâmica.
Hoje em dia existe nas margens do Tucunduba, uma das feiras do bairro, com a peculiaridade
que nela é possível comprar produtos diretamente com os ribeirinhos que vem das ilhas
próximas de Belém. O trajeto do percurso tem certa de 6,3 km, como apresentado no mapa
(Fig 4).

545
Fonte: Google Maps
Fig 7. Trajeto do Percurso Interativo no Bairro da Terra Firme, Belém/PA:

O percurso experimental ocorreu na primeira semana de junho. Em cada parada foram


os próprios moradores que apresentaram o local, o histórico, a representatividade e
principalmente a sua relação e memórias com aqueles locais. O percurso tem a pretensão de
ser interativo para que não haja apenas uma exposição sobre a sociabilidade e dinâmica do
bairro, e sim que possa haver a interação entre participantes e moradores.
Participaram do primeiro percurso interpretativo 12 pessoas sendo destas 30% (4
pessoas) moram no Bairro e 70% (9 pessoas) são de outros bairros de Belém (Jurunas,
Cremação, Pedreira, Souza, Fátima, Reduto, Canudos). A maioria soube do roteiro pelo ponto
de Memória e pelo Museu Goeldi e por pessoas conhecidas do bairro. A faixa etária dos
participantes foi bem diversificada variando dos 20 aos 60 anos sendo que destes 50% eram
estudantes de nível superior; 20 % professores e 10% técnicos de instituições museais e 30%
donas de casas e profissionais informais e desempregados.

TABELA1: FAIXA ETÁRIA DOS PARTICIPANTES DO ROTEIRO


FAIXA QUANTIDADE %
ETÁRIA

546
10 A 20 1 8,3
20 A 35 3 25,0
36 A 45 3 25,0
46 A 50 2 16,7
+ DE 50 ANOS 3 25,0
TOTAL 12 100
Fonte: Pesquisa de Campo/junho2016
Os participantes destacaram vários aspectos que lhes chamaram a atenção durante o
roteiro:
 A diversidade e dinâmica social da feira da Terra Firme
 O compartilhamento de memórias entre os moradores e os de fora do bairro
 A luta histórica que os moradores travam cotidianamente
 As maravilhas do bairro;
 A escola Brigadeiro Fontenelle
 O jardim construído em frente ao Museu Goeldi
 A receptividade dos moradores
 Dinâmica comercial do Bairro
 O trabalho educativo com a comunidade
 A fala dos moradores sobre a importância do Bairro
Quanto aos pontos visitados, os participantes disseram que foram lugares de grande
importância para a comunidade e que representam as peculiaridades do bairro e que poderiam
ser considerados estruturantes em relação a construção do lugar e de sua funcionalidade;
também acharam que o roteiro foi propositivo e educativo com foco nas memórias
compartilhadas com os moradores e que foram estrategicamente escolhidos levando em
consideração o histórico social e o acervo cultural e social do bairro. Por fim destacaram a
atitude dos moradores em “ não apenas querer melhorias, mas, fazerem estas melhorias por
meio de iniciativas criativas”.

547
Quanto as durações do roteiro, disseram que foi boa, mas foram feitas as seguintes
considerações:
 Deveria ser mais preciso em cada parada;
 Não foi cansativo;
 Foi longo;
 Houve pouco tempo para a saída;
 Teve paradas não programadas;
Quanto ao que pode melhorar deram as seguintes sugestões:
 Pontualidade para o início do Roteiro e cumprimento de Horário;
 Definição de horário em cada parada;
 Separar as pessoas em blocos para melhor audição e para não atrapalhar o
movimento dos lugares de paragem;
 Não ter paradas extras;
 Reduzir o tamanho do roteiro;
 Inserir outros aspectos do bairro;
 Enfatizar a história do Bairro;
 Terminar o roteiro na ponte do Tuncunduba;
 Organizar o tempo
 Incentivar mais projetos deste tipo.
Considerações finais
O principal resultado foi a participação de 09 pessoas de fora do bairro (estudantes
universitários, professores), e moradores da Terra Firme, que tiveram um outro olhar sobre
o bairro da Terra Firme sendo ressaltada a importancia deste tipo de roteiro para a
valorização da identidade dos moradores a partir da noção de pertencimento que se evidencia
nos relatos dos moradores que conduziram o roteiro.

Houve a proposição de parcerias com os coletivos culturais do bairro afim de que eles
possam integrar-se ao roteiro e assim representar a cultura presente no bairro. Adaptações ao

548
roteiro auxiliarão na formatação para um possível produto turístico, bem como a inserção da
visita a ponte do Rio Tucunduba, ponte que faz limite com o bairro do Guamá e que tem
relevante representatividade como patrimônio do bairro.

Após a realização da primeira versão do roteiro alguns pontos limitantes foram


observados, tais como o tempo de duração do mesmo que acabou sendo muito extenso e
não conseguiu-se concluir até o final, que seria o Igarapé do Tuncuduba.

Este roteiro está sendo realizado com estudantes de istituições de ensino de nivel
superior com a articulação do Ponto de Memória, mas há a necessidade de divulgação para as
escolas do bairro como uma estratégia de divulgação de potenciais lugares de memória dos
moradores. O roteiro precisa ser diversificado e agregado a ele o componente da cultura que é
tão presente no bairro através de diversos coletivos culturais.

Enfim o roteiro oportunizou um protagonismo por parte dos moradores do bairro em


relação a construção e valorização de memórias destacando o grau de pertencimento destes
indivíduos em relação ao bairro. A história do lugar Terra Firme, deve ser contada a partir das
narrativas de seus moradores que vivenciam cotidianamente o bairro que praticam seu espaço
(DE CERTEAU; 1996) e definem seus patrimônios, não aqueles oficiais instituídos pelas
instituições de poder mas os definidos pelas táticas dos seus atores nas práticas sociais
cotidianas.

Referências Bibliográficas

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Brasiliense,1989.
BRASIL, Ministério da Cultura (Minc). Inventario Participativo do Bairro da Terra Firme.
Projeto Desenvolvimento Institucional e Técnico - Operacional para Ampliação e
Consolidação de projetos relacionados à Memória Social no Brasil. Consultoria: Camila
Moura Simões, 2012. 220p.

549
CERTEAU, M., GIARD, L., MAYOL, P. A invenção do cotidiano: morar, cozinhar.
Petrópolis: Vozes, 1996.
DA SILVA BRITO, Carlota Cristina. “Terra Firme, de tudo um pouco”: uma experiência com
um Ponto de Memória. 2014..
DAMIANI, Amélia Luisa. Turismo e lazer em espaços urbanos. In: RODRIGUES, Adyr B.
(Org.). Turismo, modernidade, globalização. 3. ed. São Paulo: Hucitec,2002.
FREIRE-MEDEIROS, Bianca. Gringo na laje: produção, circulação e consumo da favela
turística. Editora FGV, 2009.
MONASTIRSKY, Leonel Brizolla. Espaço urbano: memória social e patrimônio cultural-
DOI: http://dx. doi. org/10.5212/Terra Plural. v. 3i2. 323334. Terr@ Plural, v. 3, n. 2, p. 323-
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RICHARDSON, Roberto J. Pesquisa Social: Métodos e Técnicas. São Paulo: Ed. Atlas,2011.
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SANCHES, S. B.; COUTO, A. C. O. O Tráfico e a periferia: a (re) produção da violência
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2010. Disponível em: www.agb.org.br/evento/download.php?idTrabalho=2789. Acessado em
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SIMMEL, G. A metrópole e a vida mental. In: VELHO, O. G. O fenômeno urbano. Rio de
Janeiro: Zahar Editores, 1967.

550
MUSEOLOGIA INOVADORA E ARQUITETURA PARTICIPATIVA:
CONSTRUINDO NARRATIVAS SOCIAIS INCLUSIVAS E EMANCIPATÓRIAS

Gardenia Angelim Medeiros de Oliveira*


Áurea da Paz Pinheiro**

Resumo: O presente trabalho tem como escopo apresentar o projeto-ação associado ao Programa de
Pós-graduação em Artes, Patrimônio e Museologia - PPGAPM, Mestrado Profissional da
Universidade Federal do Piauí – UFPI, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre.
Trata-se de um relato de experiência, ainda em curso, de um Projeto Arquitetônico Participativo
desenvolvido para uma comunidade do município de Luís Correia – PI, nomeadamente Bairro
Coqueiro da Praia, distante 360 km, aproximadamente, da capital do estado, Teresina. Busca
apresentar a proposta como uma solução inovadora para o desenvolvimento do processo museológico
para o território em questão. Acredita-se que a museologia social contemporânea deve trabalhar no
campo na Inovação Social que trata os museus como espaço de conservação e proteção do patrimônio,
mas também como ambientes de construção de novos patrimônios, onde se sinta o pulsar do
quotidiano do lugar em que são inseridos.
Palavras-chave: Museologia Social, Arquitetura Participativa, Inovação Social.

Abstract: The presente work aims to present the action project associated with the Postgraduate
Program in Arts, Heritage and Museology – PPGAPM, Professional Master of the Federal University
of Piauí – UFPI, as a partial requirement to obtais the Master’s degree. This is an ongoing experience
of a Participative Architectural Project developed for a community of the municipality of Luís Correia
– PI, namely Bairro Coqueiro da Praia, about 360 km from the state capital, Teresina. It seeks to
presente the proposal as na innovative solution for the development of the museological process for
the territory in quesion. It’s is believed that contemporary social museology should work in the fields
of Social Inovation, which treats museums as a space for conservation and protecion os heritage, bus
also as environments for the construction of new patrimonies, where one feels the pulse of everyday
life in the place wherw they are inserted.
Key-words: Social Museology, Participatory Architecture, Social Inovation

551
Formação de novos protagonistas da Museologia Social
Inicialmente, apresentamos a proposta do Programa de Pós-graduação em Artes,
Patrimônio e Museologia – PPGAPM, mestrado profissional da Universidade Federal do
Piauí – UFPI que busca introduzir o mestrando na pesquisa interdisciplinar, a fim de que o
mesmo, por meio de experiências reais, possa ser capaz de diagnosticar problemas e propor
soluções, desenvolvendo produtos e/ou serviços em benefício da comunidade.
Acredita-se que o pesquisador-profissional, possa, por meio da investigação, extrair da
experiência vivenciada, o aprendizado necessário para o melhor exercício de seu trabalho
profissional.
Utilizando-se da metodologia da pesquisa-ação21, acredita-se que o sucesso de uma
pesquisa depende de um estudo articulado com análise integral do território 22 e sob uma
perspectiva multidimensional. A investigação deve buscar ultrapassar os muros da academia
de modo a romper com a perspectiva cartesiana da maioria das pesquisas tradicional,
assumindo um papel ativo no processo e, dessa forma, promover ações capazes de elucidar
problemas coletivos, onde os diversos atores envolvidos colaborem com o trabalho de forma
participativa, como sugere Michel Thiollent (2011).
Projetos dessa natureza adquirem relevância especial à medida que promovem
aproximações entre o pesquisador, a comunidade, o patrimônio cultural23 e natural24,

21
Segundo Michel Thiollent (2011, p. 20), a pesquisa-ação é um tipo de pesquisa social com base empírica que é
concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo e no
qual os pesquisadores e os participantes representativos da situação ou do problema estão envolvidos de modo
cooperativo ou participativo.
22
Conforme o pensamento de alguns autores como: Fala-se de território numa perspectiva multidimensional
baseada em diferentes relações sociais, onde, a partir de determinadas representações, seus atores configuram um
espaço geográfico dentro do contexto histórico em que estão inseridos, estabelecendo uma relação de
apropriação, pertencimento e poder, conforme reza a teoria de alguns autores: (RAFFESTIN, 1993) e
(HASBAERT, 2004).
23
Entende-se por Patrimônio Cultural todos os bens de natureza material e imaterial que nascem a partir das
referências que integra a história de determinado grupo e que são transmitidos de geração a geração. Segundo o
art. 216 da Constituição Federal, incluem-se como patrimônio cultural: as formas de expressão; os modos de
criar; as criações científicas, artísticas e tecnológicas; as obras, objetos, documentos, edificações e demais
espaços destinados às manifestações artístico-culturais; além de conjuntos urbanos e sítios de valor
histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

552
estabelecendo diálogos horizontais e troca de conhecimentos, tornando a investigação
científica e social solidária e participativa, como sugere Brandão e Streck (2006).
O PPGAPM com seu corpo de docentes e discentes formado por profissionais que
atuam em diversas áreas do conhecimento, assume a natureza multidisciplinar com o
propósito de construir um diagnóstico de realidade do território com a colaboração e
participação de diversos atores sociais, o que traduz a natureza do que entendemos por
Museologia Social25
O Mestrado, nessa especificação, é o pioneiro no Brasil e escolheu como sede para a
sua instalação a cidade de Parnaíba, reconhecidamente, Patrimônio Histórico Nacional pelo
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, situada no extremo norte do
Piauí, distante 339 km da capital do estado.
A cidade é a porta de entrada para a Área de Proteção Ambiental (APA) – o Delta do
Parnaíba, o único a desaguar em mar aberto das Américas. Quatro municípios formam a faixa
litorânea do estado: Ilha Grande, Parnaíba, Luís Correia e Cajueiro da Praia.
O cenário apresentado possui um rico e complexo patrimônio natural e cultural com
diversidade biológica e paisagística, apresentando, mangues, floresta de transição, espécies
ameaçadas de extinção, praias pouco habitadas e com a presença de comunidades ribeirinhas
e deltaicas detentoras de tradições ancestrais, que caracteriza a importância ambiental do
território e justifica a necessidade de preservação e conservação da diversidade ambiental e
cultural do país.

24
O Patrimônio Natural inclui as formas físicas, geológicas e biológicas, com áreas ocupadas por espécies
diversas de animais e vegetações, com valor científico e estético.
25
Desde 1972, em virtude das recomendações apresentadas à UNESCO pela Mesa Redonda de
Santiago do Chile, posteriormente afirmadas pela Declaração de Quebec, 1984, os museus, vistos
como instituições a serviço da sociedade, passaram a desempenhar sua função social, devendo intervir
de forma global, utilizando-se cada vez mais da interdisciplinariedade, a fim de integrar as populações
em suas ações, respondendo às necessidades das grandes massas populares que anseiam atingir
melhor qualidade de vida, através do conhecimento de seu patrimônio cultural e natural, reconhecendo
e fortalecendo as práticas sociais em diálogos compartilhados de saberes.

553
Assim, os mestrandos atuam nesse cenário desenvolvendo projetos-ação que se
adequem à proposta de dois “Projetos Matrizes”. O primeiro desenvolvido para proteção e
preservação do Centro Histórico de Parnaíba, intitulado: PARNAÍBA – PATRIMÔNIO
NACIONAL: Patrimônio Vivo, Cidade Viva; e o segundo, voltado para atender as
necessidades sociais, econômicas e culturais das comunidades26 que integram o território do
Meio Norte do Brasil: MUDE/ MUSEUS DO DELTA, com a intenção de criar uma rede de
museus de território. Ambos voltados para a concepção e implantação de equipamentos
culturais capazes de transferir conhecimentos, gerar emprego e renda para a sociedade.
A apresentação do PPGAPM se faz necessária para melhor compreender os motivos
fomentadores do presente projeto-ação, proposto dentro do Projeto Matriz acima referenciado.
Enquadrando-se ao contexto desse projeto matriz, o território de intervenção escolhido
para pesquisa foi o município de Luís Correia-PI, distante aproximadamente a 13 km de
Parnaíba
Esse território incorpora a maior extensão litorânea do Piauí, são 46 km dos 66 km
totais pertencente ao estado, dentro dessa faixa, encontra-se o bairro Coqueiro da Praia,
distante 11 km da sede do município de Luís Correia (Figura 04). Este foi o local escolhido
para o desenvolvimento de ações de caráter participativo e colaborativo, com o propósito de
envolver atores diversos numa rede de troca de saberes, estabelecendo diálogos e
compartilhando experiências entre pesquisadores e comunidade.

Pretendemos buscar o conhecimento da realidade livre de hierarquias e padrões


cartesianos, com o intuito de diagnosticar problemas e propor soluções simples ligadas a
história de vida e do saber-fazer humano, capazes de transformar a realidade imersa em um
mundo global e de mercado.

26
Apresenta-se aqui como comunidade um grupo de pessoas ligadas por afinidades ou por
necessidades, mas que compartilham as suas relações quotidianas e buscam interesses e objetivos em
comum. Diferente de sociedade, considerada como indivíduos aglutinados de forma impessoal que
compartilham de um conjunto de valores e regras normativas que servem para mediar as relações entre
as pessoas e resolver seus conflitos.

554
O Bairro do Coqueiro, reconhecido por seus moradores, como uma vila de pescadores,
é um vilarejo tranquilo que teve sua origem ligada à pesca artesanal27, formada por uma
comunidade simples que, na maior parte do ano, vive a calmaria peculiar do lugar. Os nativos
ali presentes detêm técnicas de saber-fazer ancestrais, com destaque para os diversos
utensílios ligado a atividade da pesca, guardados na memória e transmitido oralmente de
geração a geração.
Vale ressaltar que o lugarejo é uma região turística de beleza paradisíaca, bastante
procurado por ser propício para a prática de atividades voltadas ao segmento de sol e praia,
como: windsurf28 e kitesurf29. Em decorrência da influência do turismo instalado no lugar, é
possível perceber uma certa desconstrução do espaço originário dos protagonistas locais30.
Visualiza-se uma perda de referências, o rasgar de velas em alto mar que deixa o barco à
deriva, instaurando um sentimento de baixa autoestima e até mesmo de perda de identidade do
ser pescador e que reflete em toda a comunidade residente no bairro.

Aspectos teóricos da pesquisa


A preocupação com a perspectiva da memória cultural de um povo em suas diferentes
formas de manifestações é perseguida, não somente pelas entidades oficiais competentes
como também pela sociedade civil. O processo de globalização do mundo em que vivemos
possui intima relação com a necessidade de se produzir arquivos, fundar museus, proteger

27
A pesca artesanal define-se como a atividade exercida por produtores autônomos ou com relações
de trabalho em parcerias, que utilizam pequenas quantias de capital e meios de produção simples,
com tecnologia e metodologia de captura não mecanizada e baseada em conhecimentos empíricos
(SEPAq, 2017).
28
É uma categoria de esporte aquático praticado por homens e mulheres em uma prancha à vela. Teve
sua origem na década de 70 na Califórnia. O espaço mais adequado para sua prática é um ambiente
aberto, tendo o mar como a melhor opção.
29
É um desporto aquático que utiliza uma pipa (comumente chamada pelos praticantes de kite) e
uma prancha com ou sem alças (uma estrutura de suporte para os pés).
30
Originariamente, o bairro Coqueiro foi habitado por moradores ligados à pesca artesanal, desta forma,
considera-se os pescadores como protagonistas do local.

555
monumentos remanescentes, conservar patrimônio, ou seja, criar ambientes diversos e
diferentes de memória.
O sistema capitalista e a sua consolidação no mundo proporcionaram considerável
integração entre as diferentes partes do globo, gerando uma diversidade partilhada de
identidades (HALL, 2002). Esses laços culturais entre diferentes grupos sociais estão cada dia
mais frágeis em decorrência das inúmeras influências culturais no mundo, isso faz com que
surjam novas identidades, identidades transculturais (SAYAD, 1998). No Brasil, por
apresentar grande diversidade de origens étnicas, esta miscigenação cultural é muito intensa, o
que provoca maior dinamismo ao nosso cotidiano e, consequentemente (do ponto de vista
mais tradicional), maior fragilidade aos aspectos identitários que unem a população.
Todavia, na visão mais contemporânea das políticas preservacionistas, essa
heterogeneidade é uma particularidade que deve ser respeitada e valorizada. Acredita-se que
as diversidades culturais coexistentes, não se anulam, pelo contrário, enriquecem-se
mutuamente, contribuindo com o processo de evolução, o que justifica, ainda mais, a
necessidade de se preservar as variadas manifestações do patrimônio cultural imaterial, a fim
de que estas não se percam.
Na percepção vigente, o patrimônio é considerado como um instrumento de
desenvolvimento local, é um processo voluntário enraizado na vida cotidiana da comunidade,
suscetível a mudança cultural, social e econômica. Assim, para que uma comunidade cresça e
se desenvolva, o seu “capital” – o patrimônio - deve ser bem administrado, e para que esse
capital seja enriquecido é preciso que a comunidade que o detém tenha consciência da sua
importância e do seu valor, participando ativamente de sua administração (VARINE, 2013).
Não obstante, as instituições museológicas, vistas como instrumento de proteção do
patrimônio, sofreram diretamente as influências dessa trajetória e debates em torno da
evolução do conceito de patrimônio cultural no Brasil e no mundo.
No final da Segunda Guerra Mundial passa-se a observar as renovações que passaram
a afetar a museologia. Os novos princípios e práticas da instituição caminhavam para a
concepção de um “museu integrado” a serviço do homem e do seu desenvolvimento, como

556
estabelecido na Mesa Redonda de Santiago do Chile, em 1972, estabelecendo a Nova
Museologia, que deve exercer uma função social.
Essa nova visão de uma Museologia Social busca firmar a museologia como
ferramenta para o desenvolvimento sustentável da humanidade, baseado nos princípios da
igualdade de oportunidades e na inclusão social e econômica. Deve trabalhar para reconhecer
e fortalecer as práticas sociais libertadores desenvolvidas por grupos sociais através de
diálogos solidários de saberes (SIQUEIRA, 2016).
Dentro desta perspectiva, entendemos que a museologia social trabalha no campo da
Inovação social que, segundo Luiz Bignetti (2011, p. ) “é o resultado do conhecimento
aplicado a necessidades sociais através da participação e da cooperação de todos os atores
envolvidos, gerando soluções novas e duradouras para grupos sociais, comunidades ou para a
sociedade em geral”.
Os projetos desenvolvidos no âmbito do Mestrado Profissional da UFPI, primando
pela interdisciplinariedade e multiprofissionalidade dos mesmos, buscam compreender as
necessidades do lugar onde os projetos são desenvolvidos, estabelecendo diálogos e
partilhando saberes de forma horizontal, com o intuito de integrar as populações em suas
ações. Dessa forma, conseguem responder às necessidades das comunidades com o intuito de
proporcionar melhor qualidade de vida aos seus moradores.

BUSCA DE SOLUÇÕES INOVADORAS: diretrizes para identificação do objeto da


pesquisa-ação
Pode-se considerar que até bem pouco tempo atrás, a pesca artesanal no bairro do
Coqueiro da Praia, era tida, praticamente, como a única fonte de renda e subsistência da
população local. Com a chegada do turismo, essa atividade vem se tornando cada vez mais
rarefeita e sob o risco eminente de desaparecer, por outro lado, os saberes e fazeres ligado à
pesca artesanal é uma identidade da vila. Assim, faz-se necessário propor ações nesse
território que estimulem a transmissão desse conhecimento. É importante estabelecer diálogos
entre os detentores do saber, os profissionais da academia, visitantes, jovens da comunidade

557
local, etc. a fim de que se mantenha uma relação de troca de conhecimentos entre os grupos
de forma horizontal e inclusiva. Cientes das demandas locais, os diversos atores, de forma
colaborativa e participativa, podem propor soluções eficazes para o lugar
Por meio dessa troca de conhecimento e consciência da realidade em que vivem,
intentamos colaborar, em conjunto com esses atores locais, considerados coautores da
pesquisa, pensando em projetos, ações e serviços voltados para a valorização dos patrimônios
vivos, das tradições, costumes, preservação e salvaguardados saberes e fazeres ancestrais,
bem como melhoria na qualidade de vida da comunidade.
Entende-se que o reconhecimento e o interesse pela salvaguarda do patrimônio
cultural, que traduz a identidade local, contribui para estimular o sentimento de pertencimento
desses atores, contribuindo para o fortalecimento do exercício de cidadania e melhoria da
qualidade de vida dessas pessoas, sensibilizando-as para a importância da construção de um
equipamento cultural ativo, a exemplo do museu de território31, capaz de recuperar a
autoconfiança e gerar emprego e renda para a comunidade do lugar.
Ante o exposto, o presente trabalho, inicialmente, surgiu com a proposta de
desenvolver um Inventário Participativo (IP) das Artes e Artefatos da Pesca Artesanal,
patrimônio cultural vivo da Vila de Pescadores do Coqueiro da Praia. Acredita-se que por
meio da construção de um IP é possível, identificar, relacionar, capturar, registrar e divulgar o
patrimônio cultural identitários de uma comunidade que, pela sua importância histórica,
merece ser salvaguardado pelos seus moradores e reconhecido pela sociedade. Foi com essa

31
O museu de território é a expressão do território, qualquer que seja a entidade que toma a iniciativa e
a autoridade que o controla: associação, mecenas, administração local, instituição científica, agência
de desenvolvimento, programa de turismo cultural, etc. Seu objetivo é a valorização desse território e,
sob esse ponto de vista, é realmente um instrumento do desenvolvimento em primeiro grau (VARINE,
2014, p. 185).

558
intenção que iniciamos a imersão no território e a aproximação com a comunidade através da
Associação de Moradores do Bairro do Coqueiro (AMBC)32.
Sabe-se que as condições favoráveis para se desenvolver uma pesquisa-ação é quando
o pesquisador não aceita conduzir suas investigações aos aspectos acadêmicos das pesquisas
cartesianas e busca desempenhar um papel ativo na realidade do território onde está inserido.
Papel semelhante, possuem os museus contemporâneos devem desempenhar enquanto
instituições a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento.
Ciente dessa missão, a aproximação com AMBC nos fez perceber que a mesma vivia
um período de baixa atuação, a diretoria vigente se encontrava com o mandato vencido, a
grande maioria dos associados há tempo não mais participavam das reuniões, mas a vontade
daquele pequeno grupo de mulheres que nunca deixou de sonhar e acreditar na importância do
associativismo, persistia.
Esses encontros nos fizeram perceber a vontade de seus atores em ver a comunidade
superar as problemáticas sociais de submissão e principalmente, destruição ambiental em
decorrência da economia e especulação imobiliária decorrentes da chegada do turismo e da
falta de planejamento urbano, trazendo como consequência o crescimento desordenado do
lugar. Por outro lado, percebe-se a falta de consciência da comunidade no que se refere ao
conhecimento dos seus direitos de cidadão e de seu papel como atores do desenvolvimento
inseridos num espaço de construção e controle social de políticas públicas em diferentes
níveis de gestão.
Não obstante, os atores locais são sensíveis às problemáticas atuais que acometem o
lugar e apontam, dentre eles: a substituição da pesca artesanal, antes tida como a principal
economia local e de base sustentável, por uma demanda de emprego doméstico, de homens e
mulheres, em restaurantes, bares e casas de veranistas “estrangeiros” à cultura do lugar; a
presença da pesca predatória desordenada e sem fiscalização dos órgão competentes,

32
Fundada em 15/10/1987, publicada no D.O.E, em 30/11/1992, reconhecida pela Lei nº 372/88 em
22/10/88, CNPJ nº 69.616.480/0001-16. Nasceu por iniciativa de um grupo de 9 (nove) mulheres
nativas preocupadas com os problemas locais,

559
agredindo o meio ambiente e comprometendo o sustento de muitas famílias que dependem da
pesca para sobreviver; desrespeito a cultura local com a construção de mansões ocupando
áreas de antigos cemitérios ou destruindo dunas para construção de jardins e áreas de lazer;
substituição da paisagem nativa, originalmente rica e bio-diversa com a presença de um mar
aberto de águas calmas e de poucas ondas que abraça uma comunidade cercada de coqueiros,
dunas, lagoas, riachos perenes, por um espaço agredido por despejos de efluentes domésticos,
resíduos sólidos de construções que interfere na saúde e qualidade de vida de seus moradores;
substituição de uma vida quotidiana formada por relações afetivas de amizades e parentescos,
por uma realidade de jovens e adolescentes com poucas oportunidades para educação, esporte
e lazer, tornando-se vulneráveis às drogas e alcoolismos precoce.
Frente a essa realidade. A associação tem como objetivo prioritário, construir a sua
sede própria para que possa desenvolver atividades e realizar seus eventos. Há mais de 20
(vinte) anos a associação recebeu em doação, um terreno destinado à construção de da tão
sonhada sede. Todavia, tal objetivo nunca foi alcançado e as justificativas dos seus associados
estava na ausência de um projeto arquitetônico e recursos públicos para a execução do
mesmo.
Atento a essas expectativas, ficou evidenciado que era preciso adequar as diretrizes
iniciais vislumbradas para o projeto, ao conjunto de anseios e solicitações da comunidade.
Seguindo as recomendações da metodologia da pesquisa-ação desenhada por Michel Thiollent
(2011), foi possível comprovar que a fase exploratória da pesquisa é importante para conhecer
o território, buscar envolver-se com os atores locais, reconhecer suas expectativas e
estabelecer um primeiro diagnóstico da situação e dos problemas mais urgentes, a fim de
propor eventuais soluções para os mesmos.
Perceber, após um bom tempo de pesquisa e imersão no território, que a “hipótese” de
construir um inventario participativo das artes e embarcações da pesca tradicional não seria a
diretriz mais apropriada para o momento, causou surpresa. Mais uma vez, a metodologia de
Michel Thiollent, aplicada no presente trabalho, trouxe respostas para as inquietações.

560
Segundo o autor, a pesquisa-ação segue instruções diferentes das aplicadas nas pesquisas
acadêmicas:
Muitos autores consideram que, na pesquisa-ação, não se aplica o tradicional
esquema: formulação de hipótese/coleta de dados/comprovação (ou
refutação) de hipóteses [...] podemos considerar que a pesquisa-ação opera a
partir de determinada instruções (ou diretrizes) relativas ao modo de encarar
os problemas identificados na situação investigada e relativa aos modos de
ação. Essas instruções possuem um caráter bem menos rígido do que as
hipóteses, porém desempenham uma função semelhante. Com os resultados
da pesquisa, essas instruções podem sair fortalecidas ou, caso contrário,
devem ser alteradas, abandonadas ou substituídas por outras. A nosso ver a
substituição das hipóteses por diretrizes não implica que a forma de
raciocínio hipotética seja dispensável no decorrer da pesquisa. Trata-se de
definir problemas de conhecimento ou de ação cujas possíveis soluções, num
primeiro momento, são consideradas como suposições (quase-hipóteses) e,
num segundo momento, objeto de verificação, discriminação e comprovação
em função das situações constatadas. (Thiollent, 2011, p. 40).

Diante das expectativas dos atores sociais local, aproveitando-se ainda das habilidades
profissionais de arquiteta-pesquisadora, optou-se por mudar o objeto da pesquisa.
Desenvolver um inventário participativo com atores sociais desmotivados, descrentes do seu
potencial como agentes de desenvolvimento, seria uma tarefa de difícil êxito. Para aquele
momento, o mais importante era levar para aquelas pessoas o conhecimento sobre os
princípios do associativismo. Para tanto, redirecionou-se o projeto e objeto passou a ser a
construção de um PROJETO ARQUITETÔNICO PARTICIPATIVO para a sede da AMBC.
Porém, o desafio estava lançado: Como transformar um projeto arquitetônico
participativo numa ferramenta capaz de provocar a motivação e a inclusão social dos atores
locais e, dessa forma, potencializar e contribuir para o fortalecimento das ações da AMBC,
envolvendo-os num processo hegemônico focado no exercício da cidadania e da participação
que ultrapassa o assistencialismo e busca a autossustentabilidade do lugar?
Inicialmente, acredita-se que tal equipamento comunitário, construído de maneira
colaborativa e participativa, além de trazer a união dos associados, pode se transformar em
um equipamento multifuncional, de sociabilidade, e ser utilizado como instrumento de

561
preservação e divulgação do patrimônio cultural do lugar e relatar narrativas da memória
social em constante construção, a exemplo do fazem os Museus de Território.
Com este objetivo, o presente projeto-ação também passa a se integra à proposta do
Mestrado em desenvolver a Rede de Museus do Delta do Parnaíba – MUDE.
A trajetória descrita até aqui, deixou claro que antes de iniciar qualquer processo de
reconhecimento do patrimônio cultural de determinado território, é preciso fortalecer as
relações de identidade e pertencimento ao lugar, é preciso que os atores locais reconheçam
valores ligados aos seus sentimentos e à sua identidade cultural capazes de recriar seu espaço
de vida e identificar-se com o mesmo (RAFFESTIN, 1981).
Segundo Varine (2013, p. 18), o desenvolvimento local não se faz “fora do solo” e
suas raízes são nutridas pelo patrimônio cultural do lugar, para o autor, falar de
desenvolvimento local é assunto de atores locais e de muitos outros protagonistas: políticos,
trabalhadores, organizações, instituições públicas e privadas, visitantes, veranistas, todos que
de alguma forma compartilham uma comunidade de vida e de cultura, aqui chamados de
comunidade de interesse.

O profissional acadêmico como agente transformador da realidade


Sabemos da importância de uma associação de moradores dentro de uma comunidade
para que o grupo obtenha maior expressão política, satisfação das necessidades sociais e
aumento da qualidade de vida de seus moradores. Para tanto, é preciso que os associados se
fortaleçam com o máximo de conhecimento sobre os princípios do associativismo e
reconheçam o papel de cada membro dentro da organização, a fim de que se possa constituir
um alicerce forte como base de sustentação para o seu desenvolvimento.
No dia 19 de agosto de 2016, profissionais-pesquisadores do PPGAPM tiveram seu
primeiro encontro com a comunidade por meio da AMBC, ali representada por um pequeno
grupo de mulheres, todas elas esposas de pescadores. O encontro serviu para discutir sobre as
dificuldades do lugar e incitar a comunidade no sentido de que a mesma reconheça as
potencialidades e identifique as fragilidades que vivenciam.

562
Buscamos, ainda, informar sobre as intenções das proposições de projetos e ações a
serem desenvolvidas pelos profissionais do mestrado na busca pela valorização do patrimônio
vivo ali presente, suas tradições, seus costumes, saberes e fazeres ancestrais que representam
a identidade do lugar e que podem ser utilizados em prol do desenvolvimento local e da
qualidade de vida de seus moradores.
Apesar da luta constante dessas mulheres para manter a AMBC em pleno
funcionamento, ficou evidente que lhes faltavam conhecimentos básicos de associativismo.
Percebemos a fragilidade da relação entre a instituição e seus membros, descrentes com a
atuação da mesma, não participavam mais das reuniões, muito menos honravam com o
pagamento das mensalidades. Além disso, faltava-lhes também a consciência de que, o
sucesso de uma associação depende da união dos seus associados para identificação dos
problemas concretos que afetam os interesses comuns da coletividade e, assim, poder buscar
soluções para os mesmos.
Fundada em outubro de 1984, teve períodos de grandes atuações a ponte de conseguir
o título de utilidade pública conferido pela Prefeitura Municipal de Luís Correia-PI. Além
disso, adquiriu por doação, um terreno para que fosse construída a sua sede. No entanto,
nunca foram “contemplados” com recursos e nem se mobilizaram de maneira eficaz na busca
desse objetivo. A ausência do sonho, se torna hoje, o “vilão” pela atuação pouco eficiente da
instituição.
É preciso deixar claro que, a proposta do projeto, além da construção de um projeto
arquitetônico para a sede da AMBC, intenta-se buscar caminhos para desenvolver lideranças
locais e criar espaços economicamente relevantes, capazes de provocar a criatividade dos seus
atores locais em busca pela autossustentabilidade do lugar, afastando o pensamento
assistencialista presente na maioria das organizações associativistas. Acredita-se que a
articulações e alianças entre as associações e outros atores externos, devem se dar de forma
cooperativa, significando alianças entre as partes.
Por essa razão, comprometi-me, enquanto profissional da arquitetura e pesquisadora
do mestrado da UFPI, instituição colaboradora da AMBC, intervir nessa demanda de

563
construção de um projeto arquitetônico participativo para a sede da associação e, naquele
primeiro encontro, já marcamos a data para a segunda reunião para a apresentação do referido
projeto.
Importante ressaltar, que para o desenvolvimento de um projeto arquitetônico o
arquiteto deve guiar-se por algumas etapas preliminares que, naquela ocasião,
propositalmente não iam ser observadas. Primeiramente, seria necessário dialogar com a
comunidade no sentido de entender o programa de necessidade para o lugar, fazer um estudo
sobre os aspectos físicos do terreno, escolha do partido arquitetônico e justificativas das
soluções propostas para a edificação e o mais importante, compartilhar todas essas decisões
com os membros da comunidade, afinal, são eles que irão se apoderar e fazer o uso da mesma,
até se chegar num projeto executivo final.
Por outro lado, o “protótipo de projeto” desenvolvido, foi apenas um pretexto para
que, na reunião seguinte, pudéssemos iniciar um diálogo com aquele grupo sobre a temática
de associativismo. Ademais, esperava-se que a notícia de que seria apresentada na próxima
reunião ordinária da associação, um projeto arquitetônico para a tão sonhada sede, pudesse
repercutir e trazer para a mesmo o maior número de moradores.
Desta forma, conforme prometido, no segundo encontro, marcado para o dia 11 de
setembro de 2016, foi apresentado o “pré-projeto” para a associação.
Embora a planta do projeto apresentado tenha seguido um programa de necessidades
que os presentes na primeira reunião apontaram como prioridade, não houve nenhuma
preocupação técnica para elaboração do mesmo, mas serviu para explicar todo processo
construtivo de uma edificação - que se inicia com os alicerces e os pilares muito bem
pensados e dimensionados para suportar todas as cargas e as intempéries que irá sofrer ao
longo da sua existência, além de mostrar a importância de cada um dos insumos (cimento,
pedra, areia, tijolo, telha...) utilizados na construção para que ao final a mesma venha a
adquirir a forma e a desempenhar a função para a qual foi idealizada. A partir desses
conceitos, iniciou-se uma discussão sobre a temática do associativismo.

564
Metaforicamente, aproveitou-se desse discurso para mostrar que no caso de uma
associação de moradores, os alicerces poderiam ser equipado à necessidade da união dos seus
associados, os insumos seria o papel que cada um deve assumir para garantir o pleno e eficaz
funcionamento da instituição. A comunidade precisa estar ciente sobre “o que é” e “para que
serve” uma associação; compreender que o interesse da coletividade deve estar acima dos
interesses individuais; e que é preciso haver a união de todo seus membros para alcançar os
objetivos em comum. Esses são princípios básicos necessários para a gestão de uma
associação e uma tarefa conjunta, que deve ser desempenhada por todos os seus integrantes.
De acordo com Fontes (2003), as redes sociais nas quais os indivíduos estão inseridos
têm papel na determinação de sua trajetória de participação na estruturação de sociedade civil
e o seu sucesso é medido a partir do engajamento cívico em associação voluntária.
Outro tema abordado naquele momento, foi a questão autosustentabilidades, vista
como a capacidade dos moradores de se articularem, não como meros receptores de serviços
oferecidos pela associação, mas na condição de ativos participantes de sua gestão. Não se
trata de excluir as possibilidades de buscar apoio a outros atores, mas buscar o engajamento
da comunidade no sentido de promover ações que possam garantir a inclusão de seus agentes
locais e a emancipação da comunidade independente de apoio externo.
Não iremos descrever todas as ações colaborativas e participativa que foram realizadas
a partir dos diálogos e encontros que passaram a ser desenvolvido a partir daquele segundo
encontro. Todas essas narrativas serão apresentadas em forma de diário gráfico, memória
crítica e documentário na inauguração do primeiro núcleo da sede que está em fase de
execução. Porém, vale destacar, discutindo o projeto arquitetônico de forma participativa, foi
possível construir narrativas sociais a partir da realidade local e do quotidiano do lugar.
Comprova-se, desta maneira, que o desenrolar da pesquisa-ação exige uma relação
estruturante e participativa entre pesquisadores e os envolvidos na situação investigada. Cabe
ao pesquisador, no decurso da pesquisa, resolver qualquer problema de aceitação no território
pesquisado, a fim de que não perca a reciprocidade por parte do grupo envolvido na relação
de troca de saberes e partilha de conhecimentos.

565
As Etapas Para A Elaboração Do Projeto Arquitetônico Participativo

Como foi dito, a apresentação da primeira proposta de projeto para sede da AMBC,
constituiu-se apenas como pretexto para discutir questões inerentes ao associativismo,
buscando despertar o interesse da comunidade de, em conjunto, buscar soluções para
problemas coletivos inerentes ao território em que estão inseridos.
A estratégia começou a ganhar as proporções que se esperava. A associação já havia
conseguido, a partir de recursos conseguidos por meio de mobilização colaborativas da
própria comunidade (bingos, bazares, rifas, doações...), quantia suficiente para comprar o
material necessário do primeiro núcleo da sede da AMBC, uma área coberta, medindo 7m
(sete metros) de comprimento por 5m (cinco metros) de largura, espaço suficiente realizar os
encontros e reuniões mensais, oque provocou, ainda mais, a motivação dos associados, além
de aproximar outros atores locais, interessados em se associar. Isso exigiu a elaboração de um
projeto, observando todos os transmites necessário até a sua fase final.
A etapa inicial de todo projeto arquitetônico é estabelecer contato com a comunidade
com o intuito de compreender as problemáticas sociais e os desejos da coletividade. Após oito
meses participando das vivências e desenvolvendo ações sociais com e para a comunidade,
esta etapa já estava cumprida com excelência.
Inicialmente, na ocasião daquele primeiro encontro com a associação, os atores
presentes apresentaram um programa de necessidade simples. A sede precisaria ser composta
apenas por uma diretoria, um depósito, 2 (dois) banheiros, cozinha/refeitório e uma área
coberta que pudesse ser usada como auditório, espaço de lazer e encontros.
Ao longo do período de vivência e conhecendo toda a história da associação, percebeu
o interesse da mesma em construir na comunidade um museu do pescador (figura 6), o que
corroborava com a proposta do mestrado de criar uma rede de museus de território. Diante
deste desejo da comunidade passou-se a levar para as reuniões discursões sobre o patrimônio

566
cultural do lugar, a importância de se preservar e o papel dos museus como suportes da
memória e elementos de afirmação da identidade cultural de um grupo.
Assim, para atender todas essas demandas, avançamos em algumas etapas do projeto,
realizamos o estudo preliminar com levantamento de dados para analisar todas as
características do local de intervenção: análise dos condicionantes do local, como o clima, a
insolação, a paisagem natural, a paisagem urbana, a infraestrutura, os equipamentos
institucionais, as condições físicas e ambientais que interferem sobre o mesmo;
condicionantes legais necessárias; análise planialtimétrica do terreno, tudo sob a supervisão
técnica da arquiteta-mestranda, responsável pelo projeto.
Essa etapa serviu para discutirmos outras temáticas de ordem natural, cultural, social e
ambientais relativas ao lugar. Aproveitou-se o momento para apresentar o projeto aos gestores
municipais, solicitando o apoio no sentido de recolher entulhos de construções presentes no
bairro para servir de aterro necessário no terreno. Outra proposta que foi lançada à
comunidade, foi a construção do muro do terreno ser construído com o uso de garrafas pet,
contribuído, assim, com a diminuição do lixo na cidade. Com isso, iniciamos uma campanha
de arrecadação de garrafas, envolvendo os moradores, donos de bares e restaurantes para a
recolha desse material.
Por todo o exposto, confirmou-se que o pretexto de utilizar o projeto como estratégia
para conseguir o envolvendo da comunidade num processo hegemônico focado no exercício
da cidadania e da participação, ultrapassando o assistencialismo e buscando a
autossustentabilidade do lugar, realmente era possível.
O projeto segue o seu curso e já foi, de forma participativa, definido e aprovado pela
comunidade até a fase de anteprojeto, onde se discute questões referentes a implantação,
paisagismo, disposição, dimensionamento dos setores com seus compartimentos, estrutura,
funcionalidade, volumetria, viabilidade técnica, econômica e ambiental do edifício.
Entretanto, a definição dos detalhes técnicos construtivos a serem utilizadas na sua execução
podem sofrer alterações, em decorrência de fatores, principalmente de ordem financeira.

567
Como já mencionado, o objetivo do projeto é buscar a autosustentabilidade do lugar,
buscamos caminhos para promover lideranças locais e, assim, por meio de soluções
inovadoras, criativas e de resistência da comunidade, possamos garantir qualidade de vida a
seus habitantes. Dessa forma, não se pode estabelecer amarras para a criatividade e ideias
inovadoras que ainda poderá surgir até o final do percurso.

Considerações finais
A estratégia de desenvolver o Projeto Arquitetônico Participativo para a construção da
sede da Associação de Moradores do Bairro do Coqueiro, no âmbito de um mestrado de
museologia, tornou-se uma solução inovadora para o desenvolvimento de um processo
museológico para aquele território.
A museologia social contemporânea, para cumprir a sua função social, precisa buscar
soluções inovadoras e trabalhar como mediadores entre o mundo das comunidades, preservar
patrimônio, mas também, produzir patrimônio.
A partir do desejo de uma comunidade, o pesquisador consegue estabelecer uma
relação de troca de saberes entre os atores locais, sensibilizando-os para o conhecimento e
reconhecimento de seu patrimônio identitários, despertando nos mesmo o interesse pela
construção de um equipamento cultural que pode servir de base para implantação de um
museu de território.
A experiência que está sendo desenvolvida com e para a comunidade do Coqueiro,
vem construindo narrativas que integrarão ao patrimônio do lugar. Traduziu-se como uma
forma inovadora de, por meio das questões e demandas colocadas pela comunidade, oferecer
e construir soluções partilhadas e criativas para as mesmas. É preciso lembrar que o território
é o espaço onde acontece relações diversas e a comunidade é o protagonista social dessas
relações.
A participação e envolvimento direto da comunidade no planejamento de ações em seu
benefício é o caminho para enfrentar a dimensão social e política dos projetos de interesse
coletivo e estabelecer uma relação de igualdade e horizontalidade, pois leva em consideração

568
opiniões e desejos dos envolvidos e, nesse ínterim, garantem maior cidadania e democracia
aos seus participantes, proporcionando a autossutentabilidade do lugar.

Referências Bibliográficas
BIGNETTI, Luiz Paulo. As inovações sociais: uma incursão por ideias, tendências e focos de
pesquisa. In: Ciências Sociais Unisinos, São Leopoldo, Vol. 47, N. 1, p. 3-14, jan/abr 2011

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Ideias & Letras, 2006

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Pesca e Agricultura. Disponível em: <http://www.sepaq.pa.gov.br/?q=node/24>, acesso em
18. Ago. 2017.

HALL, S. A Identidade Cultural na Pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.

HASBAERT, Rogério. Dos Múltiplos Territórios à Multiterritorialidade. Porto Alegre, 2004.

LEGISLAÇÃO SOBRE MUSEUS. Declaração de Santiago, 1972. 3ª ed. – Brasília: Câmara


dos Deputados, Edições Câmara, 2017

LEGISLAÇÃO SOBRE MUSEUS. Declaração de Quebec: princípios de base de uma nova


museologia, 1984. 3ª ed. – Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2017

RAFFESTIN, Claude. Por uma Geografia do Poder. França. São Paulo: Ática,
1993.

SAYAD, Abdelmalek. Imigração ou os paradoxos da alteridade. São Paulo, Edusp,1998,


299 pp.

SIQUEIRA, Juliana Maria de. Museologia Social e Educação: o poder de memória para
descolonizar o ensino. In: Revista Fórum Identidade. Ano 10, v.22, nº 22, set.- dez. 2016.

THIOLLENT, Michel. Metodologia da pesquisa-ação. 18º ed. – São Paulo: Cortez, 2011.

VARINE, Hugues de. As raízes do futuro: o patrimônio a serviço do desenvolvimento local.


Tradução: Maria de Lourdes Parreiras Horta. 1ª reimp. – Porto Alegre: Medianiz, 2013.

569
MUSEOLOGIA, PARQUES, ECOMUSEUS, ASSOCIAÇÕES E INICIATIVAS
COMUNITÁRIAS EM DEFESA DO PATRIMÔNIO CULTURAL.

Sidélia Santos Teixeira*

Resumo: O presente texto intitulado Museologia, parques e associações – iniciativas comunitárias, em


defesa do patrimônio cultural tem por objetivo analisar aspectos históricos da Nova Museologia e dos
ecomuseus demonstrando que, originalmente, essa tipologia estava articulada ao modelo
administrativo dos parques naturais regionais na França. Procura-se, assim, exemplificar essa
articulação entre parques e ecomuseus, por meio de dois estudos de casos na cidade do
Salvador/Bahia/Brasil, de iniciativas comunitárias, a saber: O Parque Metropolitano do Abaeté e de
São Bartolomeu. O estudo demonstra que os parques urbanos precisam ser tratados a partir de uma
perspectiva antropológica e museológica e necessitam do apoio de políticas públicas voltadas para a
educação que busquem a integração entre os conceitos e as práticas de mediação que envolvem o uso
da memória, da história e do patrimônio.
Palavras-chave: Museologia; ecomuseus; parques e metodologias participativas.

Abstract: The present text entitled “Museology, parks and associations – community initiatives in
defence of cultural heritage” aims to analyse historical aspects of The New Museology and of the
ecomuseums, showing how, originally, this typology was associated to the administrative model of
regional natural parks in France. The aim here is to exemplify this relationship between parks and
ecomuseums, through two case studies, carried out in the city of Salvador/Bahia/Brazil, involving
community initiatives, namely: the Metropolitan Parks of Abaeté and of São Bartolomeu. The study
demonstrates that the urban parks must be viewed from anthropological and museological perspectives
and need the support of public educational policies that seek the integration of the concepts and
practices of mediation involving the use of memory, history and heritage.
Keywords: Museology; ecomuseums; parks and participatory methodologies.

570
Nova Museologia, ecomuseus e parques: aspectos históricos
Atualmente, percebe-se cada vez mais o desenvolvimento de ações preservacionistas
organizadas por grupos ambientalistas e movimentos sociais que almejam a melhoria da
qualidade de vida das populações de forma integrada com as atividades de proteção
patrimonial. Nesse sentido, o debate em torno da Museologia permite a compreensão dos
museus comunitários e suas metodologias participativas, como fruto de uma construção
histórica, voltado para o reconhecimento da diversidade sociocultural, típica das sociedades
contemporâneas. Trata-se, de ampliar o olhar museológico, que permite também uma leitura
diversificada dos suportes materiais e imateriais da cultura e, ao mesmo tempo, incorpora os
sentidos atribuídos pelos grupos sociais, por meio de atividades científicas. Isso concorre
para a reflexão dos patrimônios vinculados a uma dada realidade, que também deve ser
levado em consideração pelos estudos museológicos contemporâneos, objetivando viabilizar
os processos de inclusão social e cultural.
Nessa perspectiva, vale destacar os debates em torno da Nova Museologia que
influenciaram a participação e os questionamentos de segmentos das populações, sobretudo
no que diz respeito à definição de cultura e às formas de proteção patrimonial. Almejava-se a
construção de um tipo de museu que pudesse dar conta das relações entre o homem e o objeto,
bem como de um modelo de museu comprometido com uma educação questionadora e
transformadora (RÚSSIO, 2010). Assim, de modo geral, o que marca o movimento da Nova
Museologia é a participação dos profissionais, estudiosos e militantes da sociedade civil,
preocupados com a preservação do patrimônio natural e cultural, em prol de uma sociedade
mais humanitária e comprometida com a construção de governos e instituições mais
democráticas. Isso, obviamente, estava atrelada a possibilidade de mudança do paradigma na
história dos museus, ou seja, de espaços da memória do poder para o desenvolvimento de
práticas museológicas, com o objetivo de explorar o poder da memória.
Para os defensores do movimento da Nova Museologia, o ecomuseu constituía-se
como um modelo apropriado de preservação e apropriação do patrimônio cultural, pois
viabilizava o trabalho com os bens culturais de forma global, incluindo o patrimônio natural e

571
cultural, além de proporcionar, por meio das atividades museológicas, a integração com as
comunidades de um determinado território. Com efeito, sobre a origem dos ecomuseus,
Hubert (1989) demonstra sua relação com os parques naturais regionais existentes na França.
Entende o autor que o desenvolvimento de uma política territorial articulada ao turismo criou
as condições favoráveis para a estruturação dos parques naturais regionais naquele país.
Vejamos sua reflexão a propósito dessa questão:

As zonas rurais “sensíveis”, por sua vez, se beneficiam da política de criação dos
parques naturais regionais em 1967. Localizados próximo das grandes cidades,
os parques funcionam como o “pulmão verde”, e oferecem uma renovação
econômica com base na recepção dos turistas. Os financiamentos
interministeriais vão favorecer aos parques e permitir a criação de estruturas
museográficas para atrair visitantes e melhorar o ambiente rural. São reunidas,
portanto, as condições para as realizações, sob a liderança de Georges Henri
Rivière, dos ecomuseus. (HUBERT, 1989, p. 146, tradução nossa)33.

O autor esclarece a articulação que Georges Henri Rivière fazia dos parques,
considerados como patrimônio, com a criação dos “museus de casa”, tendo em vista sua
preocupação com a preservação da arquitetura rural. Acrescenta ainda que, para Rivière, os
museus ao ar livre eram considerados museus de casa, produzidos em seu meio e explorados
museograficamente. Contudo, analisa Hubert (1989) que os museus ao ar livre não eram
simplesmente museus de casa, na medida em que se tratava das relações entre o homem e
seu meio ambiente. Nesse sentido, o enfoque de Rivièri procurava ampliar a análise entre
natureza e cultura.
Discutindo o papel de Rivièri para o delineamento do conceito de ecomuseologia,
Hubert (1989) afirma que significa muito mais do que a simples definição de uma nova
categoria de museu. Para ele, Rivièri inventou um sistema que colocou o museu na escuta de

33
“Les zones rurales ‘sensibles’ bénéficient à leur tour de cette politique avec la création em 1967 des parcs
naturels régionaux. Situés à proximité des grandes villes dont ils seront le ‘poumon vert’, ils proposent um
renouveau économique fondé sur l’accueil touristique. Les financements interministériels dont bénéficient les
parcs vont permettre la création de structures muséographiques susceptibles d’attirer les visiteurs et de valoriser
le milieu rural. Les conditions sont ainsi réunies pour des réalisations qui sous l’impulsion de Georges Henri
Rivière, deviendront les écomusées.”

572
seu tempo. Dessa forma, essa instituição opera com determinadas forças sociais que são
acionadas de acordo com o “espírito” do momento histórico.
Com efeito, foi no bojo das discussões sobre meio ambiente e a necessidade de
preservação dos recursos naturais mundiais que surgiu a noção de ecomuseu. O modelo
administrativo foi o dos parques naturais regionais, tendo sido elaborado, na França, com o
apoio do movimento pelo desenvolvimento territorial. Segundo Gestin (1989, p. 157,
tradução nossa):
Um seminário do ICOM, em setembro de 1972, sobre o tema museu e meio
ambiente, procurou analisar os fundamentos do que aparecia como uma nova
filosofia do museu. Era conveniente dar forma à instituição: os parques
naturais regionais eram o lugar ideal em que teoria e prática se confrontavam
no cotidiano34.

De acordo com Hubert (1989) e Gestin (1989), Georges Henri Rivière trabalhou em
algumas propostas de definição do ecomuseu que permitem uma análise da evolução desse
conceito. A primeira versão caracteriza o ecomuseu como um novo tipo de instituição,
vinculado a duas noções básicas: interdisciplinaridade, tendo como aspecto central a questão
do meio ambiente; e ligação com a comunidade, pela sua participação na construção e
funcionamento do museu. Rivière analisou também a definição de museu éclaté, composto
de um órgão primário de coordenação e de órgãos secundários, tendo como objetivo a
interpretação do meio ambiente natural e cultural no tempo e no espaço (aspecto intensivo),
com experiências comparativas fora da comunidade (aspecto extensivo). (HUBERT, 1989;
GESTIN, 1989).
Consensualmente, alguns autores, a exemplo de Varine (2012) e Weis et al. (1989),
estabelecem os seguintes elementos para a constituição dos ecomuseus: o território e seus
habitantes; uma comunidade e seu patrimônio. Já Bellaigue (1992) entende que as atividades

34
“Um colloque de l’ICOM, reuni em septembre 1972 sur le thème Musée et Environnement, s’attacha à
dégager les fondements de ce qui apparaissait déjà comme une nouvelle philosophie du musée. Mais Il convenait
de donner une forme à l’instituition: les Parcs naturels régionaux se trouvaient être le lieu ideal ou théorie et
pratique se confronteraient au quotidien.”

573
devem ser desenvolvidas com base nas necessidades e anseios do grupo social, de maneira
ativa e participativa, envolvendo técnicos e comunidade, procurando enfocar a relação entre o
passado e o presente por meio do patrimônio natural e cultural.
Em relação à experiência francesa e à vinculação dos ecomuseus aos parques,
observamos que houve uma dissidência, evidenciada pelo surgimento de questionamentos a
propósito de suas reais funções (HUBERT, 1989). No momento de elaboração de questões
específicas sobre os ecomuseus, houve uma concordância do Ministério da Cultura, mas uma
desvinculação do Ministério do Meio Ambiente, provocando, assim, uma espécie de “ataque”
ao trabalho de natureza interdisciplinar, que tinha sido iniciado e se desenvolvia com a
participação das comunidades. Contudo, como ressalta Hubert (1989), os ecomuseus dessa
geração foram obrigados a rever seus objetivos, pois passaram a contar com menos verbas do
que seus predecessores, dificultando o progresso de algumas funções, tais como: as científicas
e as voltadas para o desenvolvimento social.
Isso contribuiu para que os profissionais que atuavam nos ecomuseus fossem
incorporando, como princípio de organização e gestão, o modelo de associação. Destaca-se,
nesse campo, o ecomuseu do Creusot-Montceau-Les-Mines, o qual serviu como referência
para a criação de alguns ecomuseus no Brasil, como o ecomuseu de Itaipu, em Foz do
Iguaçu, no estado do Paraná. Ademais, as reflexões sobre a Museologia e os museus, a
relação museu-educação e os avanços em torno das metodologias utilizadas nas experiências
dos ecomuseus constituíram o apoio fundamental para a construção de processos
museológicos aplicados em diversos museus, a exemplo do Museu Didático Comunitário de
Itapuã/BA/Brasil, que se caracterizava como um museu escolar, atuando de forma abrangente
e envolvendo a comunidade, o bairro e a cidade.

Museus comunitários e metodologias participativas


De maneira geral, os ecomuseus baseiam-se na noção antropológica de patrimônio.
Nesse sentido, Babelon e Chastel (1994) analisam que é necessário, atualmente, desenvolver
uma atenção etnológica em relação ao processo de proteção patrimonial, quando se trata de

574
considerar os mais diversos patrimônios. Além disso, enfatizam a importância da valorização
de aspectos ligados à vida cotidiana, a fim de preservarmos, de maneira mais ampla e fiel, os
elementos do nosso passado. Para esses autores, a concepção de preservação deve ser
atualizada, dinâmica e interativa. Também ressaltam a pertinência do trabalho científico com
o patrimônio, caracterizando-o como uma fase na evolução dos estudos nesse campo.
Ressaltam, pois, a necessidade de interpretações científicas e afirmam: “[...] a ciência pode
contribuir para despertar a atenção que faltava, estimulando a curiosidade em relação ao
detalhe e a descoberta dos conjuntos”35 (BABELON; CHASTEL, 1994, p. 102, tradução
nossa). Além disso, discutem que essa estratégia é necessária, tendo em vista a complexidade
do patrimônio e o fato de que, até hoje, ele ainda é pouco explorado.
Na mesma linha de pensamento, Béghain (1998) coloca que ingressamos num
momento histórico diferenciado em relação ao patrimônio cultural e suas articulações com a
memória. Os questionamentos em relação ao conceito de patrimônio e a integração entre
algumas disciplinas, como história, teoria da arte, antropologia e sociologia, permitiram
conhecer melhor os objetos que compõem o patrimônio cultural, contribuindo para a
“maioridade” do patrimônio. Esclarece ainda que estamos no início da era moderna do
patrimônio, mas que esse novo momento histórico permite recusar seu uso como afirmação
das origens. Dessa forma, para Béghain (1998), o patrimônio está inscrito na história e, como
tal, sujeito a revisão.
Com efeito, a discussão e a análise do autor citado apontam-nos a importância do
trabalho técnico e científico desenvolvido por profissionais especializados para zelar pela
natureza e qualidade da produção do conhecimento, assim como a mediação social com o
patrimônio cultural nas sociedades ditas democráticas. Ele defende a ideia de que alguns
princípios deveriam ser considerados para a execução das políticas públicas de proteção
patrimonial, citando: liberdade nas práticas de pesquisa e publicação; respeito à diversidade

35
L’appareil scientifique peut d’ailleurs susciter dans les esprits l’attention qui manquait, en favorisant la
curiosité du detail et la découverte des ensembles.

575
patrimonial; implantação de meios para assegurar a preservação, transmissão e difusão do
patrimônio; articulação entre cultura e educação, entre outros aspectos. Essas proposições
supõem a participação ativa do Estado no processo de proteção, estudo e divulgação do
patrimônio cultural. De mais a mais, elas partem do pressuposto de que é fundamental o
desenvolvimento de uma política educacional comprometida com a realidade sociocultural
das populações e que possa também contribuir para o processo de reflexão da memória,
história e patrimônio dos diversos grupos que compõem as sociedades industriais
contemporâneas. Acredita esse autor que o patrimônio pode deixar de ser utilizado como
instrumento da ordem, tornando-se um pensamento sensível da memória, inscrito num espaço
crítico e afetivo, apoiado nas ciências que contribuem para interpretá-lo e de ações que
permitam sua apropriação.
Trabalhando na mesma linha de Béghain (1998), Guillaume (1990) elenca alguns
princípios para o desenvolvimento de trabalhos no campo da preservação da memória:
articulação entre memória individual e coletiva ou memória popular e memória artificializada
para conservação; trabalho de luto por meio da análise dos traços conservados e de
observações etnológicas; e, finalmente, a mediação.
Por sua vez, a argumentação de Babelon e Chastel (1994) explora a necessidade de se
estimular os processos de preservação mais integrados com as comunidades. Já Béghain
(1998) preocupa-se com a formação dos profissionais que atuam no campo patrimonial; sua
análise em torno dos princípios que norteiam as políticas públicas de preservação reforça a
responsabilidade do Estado com os bens culturais, sobretudo no que se refere ao uso do
patrimônio como instrumento de educação e cidadania.
Assim, corroboramos o que dizem os autores sobre a necessidade de investigações
científicas sobre os patrimônios culturais. Entendemos ainda que a análise de Béghain (1998)
sobre a importância da criação de um espaço crítico, no campo da preservação, contribui para
refletirmos sobre o papel das instituições museais nas áreas de proteção, estudo e divulgação
dos bens culturais. Dessa maneira, tornam-se oportunas as discussões sobre a Museologia na

576
contemporaneidade, constituindo-se, em linhas gerais, por uma mudança de olhar em relação
aos bens culturais, vistos, agora, com base na sua historicidade e em interação com o presente.

O Caso dos parques urbanos na cidade do Salvador/Bahia/Brasil – Abaeté e São


Bartolomeu
Para fundamentarmos a presente análise, citamos dois estudos de caso – Parque
Metropolitano do Abaeté e o Parque Metropolitano de São Bartolomeu –, na cidade de
Salvador, Bahia, Brasil. Trata-se de dois parques naturais, urbanos, utilizados por praticantes
da religião do candomblé como espaços de rituais religiosos. Os casos escolhidos
evidenciaram as dificuldades de várias ordens que se interpõem na implementação de uma
política preservacionista que considere esses bens no conjunto dos seus reais significados –
aqueles atribuídos pelos grupos sociais que os vivenciaram e vivenciam no cotidiano –,
relegando um conjunto de inter-relações entre as dimensões naturais e culturais.
A falta de cumprimento das leis concernentes à proteção da lagoa do Abaeté
contribuiu para a organização do movimento social com o objetivo de lutar pela preservação
do Parque Metropolitano do Abaeté. Esse movimento teve início em 1983, com a participação
de moradores do bairro de Itapuã, músicos, artistas, ecologistas, professores universitários,
intelectuais, médicos, assim como da imprensa e das mídias locais36. Assim, em janeiro de
1983, grupos organizados pela defesa do Abaeté apresentaram à sociedade a “Carta do
Abaeté”. Em 1984, a CATA solicitou ao IPAC o tombamento do parque, das lagoas e dunas
do Abaeté. Assim, o IPAC enviou para o Conselho Estadual de Cultura da Bahia (CEC-BA)37

36
O movimento pela preservação da lagoa do Abaeté tinha o slogan “Abaeternizar”, que quer dizer “Eternizar o
Abaeté”. As pessoas envolvidas utilizaram diversas estratégias de difusão e sensibilização da população como,
por exemplo, espetáculos com canções conhecidas, exposições, folders com normas para a proteção da lagoa,
entre outras.
37
Órgão colegiado da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia, de caráter normativo e consultivo, ligado
diretamente ao Gabinete do Secretário, que tem por finalidade contribuir para a formulação da política estadual
de cultura. O Conselho é composto por 30 Conselheiros (20 titulares e 10 suplentes) indicados pelo Governador
após consulta a entidades representativas da cultura na Bahia. Criado pela Lei 2.464, de 13 de setembro de 1967,
no governo Luiz Viana Filho, o CEC-BA só começou a funcionar a partir de 9 de março de 1968. Ao longo dos
seus quarenta anos de existência, passou por quatro alterações regimentais (CONSELHO ESTADUAL DE
CULTURA DA BAHIA, 2005).

577
projeto de tombamento, reclamando análise e aprovação para, em seguida, enviar ao Governo
do Estado, a fim de tomar as medidas finais. Dentre os elementos elencados que justificam o
processo de tombamento, estão: importância ecológica; valor cultural da área, tributária das
tradições de origem africanas; questão de ordem socioeconômica relativa à população da área;
importância turística da lagoa do Abaeté cuja magia e beleza representam um cartão postal da
cidade do Salvador. O Parque Metropolitano do Abaeté foi estruturado como espaço de
preservação, lazer e cultura (COMPANHIA DE DESENVOLVIMENTO URBANO DO ESTADO
DA BAHIA, 2010).
Nesse sentido, a ausência de valorização das memórias locais pelo processo de
patrimonialização provocou, de certa maneira, a necessidade de transmissão desse patrimônio,
enfatizada pelo grupo local definido como Nativo de Itapuã, principalmente junto aos mais
jovens38. A ONG Nativo de Itapuã tem sede no Parque Metropolitano do Abaeté. As ações
caracterizam-se, principalmente, pela recepção dos visitantes, com o objetivo de fazer a
mediação do território.

Pode-se afirmar que o Parque de São Bartolomeu também teve seu movimento de
proteção e defesa iniciado na década de 1980. É importante ressaltar que, já no início desse
período, tendo em vista as reflexões produzidas por intelectuais brasileiros preocupados com a
questão da preservação da diversidade cultural brasileira, brotavam, com a participação da
sociedade civil, reflexões sobre a natureza do patrimônio cultural brasileiro e a necessidade de
preservação de aspectos culturais associados a outras etnias que não apenas a etnia branca e
aristocrática brasileira.

38
Existem outros grupos no bairro de Itapuã, como, por exemplo, “As Ganhadeiras de Itapuã” que desenvolvem
trabalhos voltados para a valorização da memória local. Entretanto, estamos considerando, no presente estudo,
principalmente as associações que atuam no Parque Metropolitano do Abaeté. A Associação Carnavalesca Malê
DeBalê localiza-se no referido parque. Entretanto, suas funções e objetivos não estão exclusivamente atrelados
ao Parque Metropolitano do Abaeté. Não obstante, será analisada mais adiante como exemplo de resistência
étnica negra.

578
Mesmo com a ausência de uma ação permanente do poder público e com os problemas
que foram mencionados, esse parque ainda é objeto de atenção de várias pessoas com
interesses diversos. Em 2004, no Parque Metropolitano de São Bartolomeu, existiam quatro
ONGs, a saber: a Associação de Amigos do Parque de São Bartolomeu (AASB), o Centro de
Educação Ambiental de São Bartolomeu (Ceasb), o Centro de Estudos Socioambientais
(Pangea) e o Bagunçaço39. Cada um desses grupos ocupa e trabalha em uma área específica
do parque, desenvolvendo atividades próprias. O diálogo ocorre em momentos específicos,
por exemplo, em reuniões oficiais nas instituições públicas ou promovidas pelos agentes
financiadores de projetos. Apesar disso, existe uma preocupação em relação ao trabalho de
cada um e há um consenso sobre o principal problema do Parque de São Bartolomeu, que é de
ordem social, ou seja, a população do seu entorno situa-se n perfil de vulnerabilidade
socioeconômica.

Museus e parques na contemporaneidade: patrimônio e forma museal que integra


natureza e cultura – museologia social e aspectos metodológicos40
O trabalho desenvolvido pelas associações que se ocupam dos Parques Metropolitanos
do Abaeté e de São Bartolomeu permite-nos fazer algumas comparações em relação ao
processo de patrimonialização neles desenvolvido. Inicialmente, verifica-se que os dois foram
objeto da atenção de movimentos sociais em prol da sua preservação, envolvendo uma
diversidade de grupos que os consideravam patrimônio ambiental, urbano e religioso,
ratificando o caráter desses parques como bens culturais híbridos41. O intercâmbio entre os
grupos envolvidos e as ações desencadeadas permitiram a incorporação de novos valores
apropriados gradualmente pelas populações locais. Foram acrescentados novos sentidos para
esses patrimônios, como, por exemplo, o ecológico.

39
Os responsáveis por essas associações as intitulam como organizações não governamentais. Então, no presente
texto, respeitaremos essa denominação.
40
Entendemos que a Museologia Social é sinônimo da Nova Museologia.
41
Ou seja, agregam diversos valores como por exemplo: ecológico, religioso e urbano.

579
O desdobramento da patrimonialização permitiu a estruturação de organizações locais.
No caso do Parque Metropolitano do Abaeté, a ONG Nativo de Itapuã estabelece um vínculo
de pertencimento ao território, sendo enfatizada a categoria nativo, embora a composição do
grupo assim caracterizado seja heterogênea. No caso do Parque de São Bartolomeu, a
formação das organizações também é diversa, incluindo, por exemplo, uma associação
coordenada por um estrangeiro. Não se percebe, em relação a esse parque, uma ênfase ao fato
de as pessoas terem nascido nesse território ou nas suas imediações.
A patrimonialização dos parques acima citados permitiu uma atualização da memória
e um processo de afirmação identitária que proporcionou a construção de um sentido de vida,
principalmente para os responsáveis pelas ONGs. Verificamos, dessa forma, nos dois estudos
de caso, que as pessoas envolvidas no referido processo viveram transformações sociais e
existenciais. Isso se manifesta, principalmente, na adesão permanente de seus participantes as
atividades de proteção, de preservação e de mediação. Não obstante, observamos que isso não
está diretamente vinculado ao fato de as pessoas terem necessariamente nascido nesses locais,
tampouco conservado de maneira integral as mesmas práticas e atividades nesses territórios.
Nesse sentido, os conceitos de população e patrimônio manifestam-se de forma ampla,
diversificada e dinâmica.
Ademais, o movimento pela patrimonialização não foi interrompido com a saída dos
grupos externos ao bairro de Itapuã e do Subúrbio Ferroviário, mas, ao contrário, definiu a
necessidade de apropriação dos Parques Metropolitanos do Abaeté e de São Bartolomeu por
ONGs constituídas por pessoas dos bairros, algumas nascidas nesses lugares, outras não, mas
todas comprometidas com a proteção e a valorização desses territórios.
Nos dois casos, observamos que as comunidades do entorno dos parques não são
homogêneas. Os conjuntos populacionais são diversos nas suas origens, histórias e condições
socioeconômicas, mas, mesmo assim, a patrimonialização permitiu a manifestação de
memórias próprias, particulares e diversas que, convencionalmente, não faziam parte dos
processos preservacionistas brasileiros, de maneira geral. Memórias capazes de fazer aflorar
nos participantes dessas organizações uma nova posição social, definida pela sua relação com

580
os parques. Em alguns momentos, a identidade do sujeito constrói-se em intermediação com
esse espaço, que funciona como um símbolo do que eles são. É por isso que essas associações
agrupam pessoas interessadas na preservação desses espaços, ocupando-se deles e afirmando
uma posição política, para ratificarem que esses patrimônios pertencem, principalmente, às
populações locais.
Assim, admitem a realização de atividades eventuais ou o desenvolvimento de
atividades turísticas, como forma de divulgar os parques, mas entendem que é necessária uma
atenção permanente por parte dos poderes públicos. Dessa maneira, reforçam a importância
da realização de projetos contínuos que possam contemplar o desenvolvimento local, por
meio da formação educacional e da constituição de cooperativas que possam estimular o
desenvolvimento profissional e a geração de renda para as comunidades carentes. Nesse
sentido, a concepção de preservação é de cunho social e econômico.
Nos parques analisados, observamos a ausência da implementação de políticas
públicas condizentes com a realidade local, principalmente uma política museológica, que
possa trabalhar de forma adequada esses patrimônios, valorizando seus aspectos históricos,
ecológicos e religiosos. Neste sentido, não há a construção de discursos que possam
contemplar as memórias, que fizeram desses espaços objetos de referências para vários grupos
sociais. No caso do Parque Metropolitano do Abaeté, percebemos que também faz aflorar
memórias do universo feminino, que ilustram o cotidiano doméstico, o trabalho, o cuidado e,
ao mesmo tempo, as lutas e dificuldades das mulheres.
Nesse sentido, o desenvolvimento da museologia e das tipologias museais permite-nos
considerar que é possível atender às demandas de coletividades em prol da compreensão das
suas identidades, se adotarmos uma museologia crítica, participativa e comprometida com o
desenvolvimento social.
Entretanto, precisamos ainda de ousadia e determinação em campos específicos, como
o dos museus comunitários. A Museologia, ou melhor, a atuação de profissionais museólogos
nesses contextos, significa muito pouco, se não houver um projeto conjunto, envolvendo
várias instituições para estruturar e contemplar necessidades básicas das populações locais.

581
Do ponto de vista da museografia, os parques metropolitanos podem ser tratados com
base no conceito de patrimônio ambiental, urbano e religioso. Essa diversidade de sentidos é
própria e ilustrativa da heterogeneidade sociocultural da realidade brasileira. Portanto, a ideia
de patrimônio puro, único, com apenas um sentido, não se aplica aos contextos dos Parques
Metropolitanos do Abaeté e de São Bartolomeu e isto deve ser respeitado na construção do
discurso museológico. Dessa forma, é preciso desenvolver práticas de pesquisa museológica
adequadas, que contemplem o estudo dessas realidades locais. Para tanto, um plano de
pesquisa adequado e estruturado, com a definição dos conteúdos a serem analisados em
relação ao patrimônio e à população local, auxilia na compreensão desses universos, bem
como na construção de categorias que possibilitem a análise dos dados coletados. Nesse sentido,
como campo interdisciplinar, a Museologia pode adotar as práticas de investigação sociológica
e antropológica. Recorrer a dados estatísticos, relativos à visitação dos espaços, obtidos com a
aplicação de questionários, para conhecer aspectos socioeconômicos e políticos das
comunidades, é muito importante.
Por outro lado, entendemos que as populações locais devem ser concebidas como
núcleos heterogêneos, cujas origens, histórias e desenvolvimento são particulares. Entretanto,
a definição de alguns limites territoriais é importante, como, por exemplo, regiões
administrativas, ruas antigas, entorno ao patrimônio ou outras categorias estabelecidas pelas
populações locais, que extrapolam os limites dos bairros, por exemplo. Sobre esta questão,
afirma Sanchis (1996, p. 32):

As culturas não são ovos herméticos, mas comunicação, intercomunicação


em processo. Por outro lado, estão, de fato, inseridas nos amplos e profundos
caudais de derivas universais, que todas as transformam, todas as
transmudam – ou tendem a fazê-lo: quero falar do “desenvolvimento”, da
“modernização”, da “modernidade”, da implantação do capitalismo, do
advento do “individualismo” etc.

Contudo, tendo em vista que sujeitos diversos podem desenvolver uma relação com
determinado patrimônio, a categoria de território não deve ser determinante. Talvez seja

582
possível falar em territorialidades. Entendemos que, nesse caso, devem-se privilegiar pessoas
que possuam relações afetivas e históricas com os bens culturais considerados.
Essa leitura e essa interpretação mais geral proporcionam a construção de uma visão
sobre processos amplos que interferem e moldam a vida das pessoas, mas é necessário
estarmos atentos a essas questões para não produzirmos o que Canclini (1998) denominou de
“fechamento” e visão parcial e isolada das comunidades.
A produção dos dados sugerida acima, apoiada em uma perspectiva metodológica que
possa contemplar o estudo de realidades patrimoniais e suas relações com as populações,
estimula também a inserção em práticas cotidianas, políticas, festivas, religiosas e outras,
além de permitir o estabelecimento de vínculos de confiança entre as pessoas do lugar e o
profissional museólogo, proporcionando o acesso a informações significativas. Nesse caso,
são extremamente importantes as entrevistas realizadas com idosos, por exemplo, como
discute Bosi (1994, p. 63):
Haveria, portanto, para o velho, uma espécie singular de obrigação social,
que não pesa sobre os homens de outras idades: a obrigação de lembrar, e
lembrar bem [...] O que se poderia verificar, no entanto, na sociedade em que
vivemos, é a hipótese mais geral de que o homem ativo (independentemente
de sua idade) se ocupa menos em lembrar, exerce menos frequentemente a
atividade da memória, ao passo que o homem já afastado dos afazeres mais
prementes do cotidiano se dá mais habitualmente à refacção do seu passado.

Ademais, as crianças também devem ser consideradas nesse processo, pois


manifestam e explicitam aspectos da realidade social, às vezes, sem muita censura. Vale
registrar que essa inserção no contexto trabalhado é recomendável, principalmente com
pessoas já conhecidas pela população local. Em relação a essa questão, é necessário mapear,
anteriormente, o papel e o conjunto de relações que essa pessoa possui no quadro da
comunidade, para evitar que seja identificada, por exemplo, com determinados grupos que
podem dificultar o acesso a pessoas com posições diferenciadas e a manipulação do
pesquisador em campo. A questão da posição do pesquisador e do método antropológico é
discutida por Zaluar (1990, p. 35), que assim argumenta:

583
Uns nos mostram como as condições da pesquisa, que envolve o processo de
interação social entre o pesquisador e os sujeitos de sua pesquisa bem como
o contexto mais amplo em que esse processo se insere, afetam os resultados
da pesquisa. Outros nos advertem que é necessário ao pesquisador refletir
sobre suas próprias ideias, sobre a validade relativa à sua cultura e ao
momento histórico, que elas têm. Muito longe ficamos da ideia presente em
Malinowsky e outros de que essa relação é imediata e que o conhecimento
resulta da simples identificação, porquanto são homens, do pesquisador com
as pessoas que estuda.

As preocupações apontadas por esses antropólogos devem ser levadas em


consideração pelo profissional no trabalho de campo. Entretanto, compreendemos que não é
possível fugir da aproximação e da inserção nos contextos selecionados para o estudo. Para
tanto, a observação etnográfica também é de extrema valia. Essa técnica possibilita conhecer
hábitos, comportamentos, comparar discursos, perceber a distância entre o que se “diz e o que
se faz”. Como afirma Callon (1999, p. 77, tradução nossa):

Não falar mais de intelelectual específico ou não; coletivo ou não; orgânico


ou não; se interrogar mais sobre as condições do envolvimento ou
distanciamento; fazer o luto da distância e universalidade; me parece ser o
esforço coletivo que devemos tomar. Todas estas palavras são impotentes
para descrever as práticas reais dos sociólogos e a contribuição das ciências
sociais à compreensão local, sempre, reiniciada nos coletivos híbridos em
que vivemos.42

Com efeito, o debate sobre os parques, por parte dos grupos sociais que integraram o
movimento da patrimonialização, e as ideias apresentadas sobre os espaços aproximam-se da
concepção de ecomuseu. Nesse sentido, os ecomuseus e os museus comunitários necessitam
do apoio estatal, pois as populações locais e/ou os grupos que fazem uso regular dos parques
metropolitanos são comunidades carentes. As organizações desenvolvem projetos de
42
Ne plus parler d’intelellectuel, spécifique ou non, collectif ou non, organique ou non, ne plus s’interroger sur
les conditions de l’engagement ou du dégagement, faire son deuil de la prise de distance et de l’universalité: tel
me semble être l’effort collectif que nous devons entreprendre. Tous ces mot sont impuissants pour décrire les
pratiques réelles des sociologues et la contribution des sciences sociales à la performation toujours locale,
toujours recommencée des collectives hybrids dans lesquels nous vivons.

584
formação educacional e investem na formação de cooperativas, mas são ações esporádicas. É
fundamental que o Estado responsabilize-se também por esses espaços. Assim, desenvolver
mecanismos de gestão participativa, incluindo os órgãos públicos, as ONGs que já atuam nos
parques e membros da população local, por meio de uma administração colegiada, pode ser
um caminho a ser trilhado, inclusive como prática de inserção social e exercício cotidiano da
cidadania.
Além dos museólogos, os parques carecem da participação de profissionais
especializados em diversas áreas, principalmente arqueólogos, biólogos, geólogos e
historiadores cujo trabalho é fundamental para o estudo e a classificação das espécies nativas,
a exploração de aspectos históricos relacionados ao contexto dos parques etc. Essas
atividades, desenvolvidas de forma integrada com os profissionais museólogos, viabilizam o
desenvolvimento de sistemas de documentação museológica voltados para a produção de
conhecimentos. As atividades de documentação, por exemplo, devem ser vistas como forma
de estimular a participação das pessoas, permitindo uma compreensão mais ampla desses
patrimônios por parte do público em geral e dos educadores de maneira particular,
possibilitando sua utilização também com fins de qualificação profissional e recurso didático.
Ademais, consideramos ainda importante nesse campo o registro das memórias
individuais e coletivas, que não devem ser tratadas apenas como estratégia de manutenção das
histórias locais. Entendemos que essas memórias devem ser exploradas e confrontadas, e os
recursos no campo da informática, por exemplo, contribuem de maneira significativa para o
desenvolvimento dessa atividade. Essas informações são igualmente fundamentais para a
construção do discurso museológico que, no caso dos parques mencionados, deve contemplar,
essencialmente, as histórias indígenas e africanas, contribuindo para a construção de uma
expografia no parque, que servirá de referência para o estudo dessas populações e sua
valorização. Estamos falando de uma expografia própria, respeitando as características dos
parques, mas, ao mesmo tempo, informe sobre os aspectos históricos, naturais, urbanos e
religiosos e possa ser apropriada pelos visitantes de forma sensorial e crítica. Isso significa

585
uma construção expográfica aprofundada em bases científicas, informativa e de cunho
interativo.
Por fim, mas não menos importante, entendemos que as visitas guiadas devem
continuar, todavia os conteúdos devem ser retrabalhados numa perspectiva científica. Isso
significa recorrer aos estudiosos de diversas áreas, para estimular e viabilizar a continuidade
da formação dos que já estão desenvolvendo esse tipo de trabalho nos parques. Os cursos de
capacitação com o oferecimento de bolsas de estudos para esses agentes seriam muito
proveitosos.
Não podemos esquecer que as populações mais jovens, principalmente as do Subúrbio
Ferroviário, conhecem muito pouco esses patrimônios. A interlocução contínua e permanente
com as Secretarias de Educação e Cultura, com o propósito de demonstrar a importância desses
espaços como recursos didáticos para a aplicação das leis que tornam obrigatório o estudo das
culturas indígenas e afro-brasileiras nas escolas e também na formação dos professores é
fundamental. Políticas eventuais podem ser importantes, como forma de valorizar e divulgar os
parques, como afirma Barré (2000, p. X, tradução nossa), quando discute a etnologia dos
monumentos históricos: “Repentinas ‘emoções patrimoniais’ que surgem ao redor de um
monumento, admitimos que nos esclarecem sobre a relação com o passado e, de forma mais
ampla, com o tempo e o espaço vivido.43” Contudo, não são suficientes, daí a necessidade de
construção de uma política pública que integre, de forma ampla e contínua, educação e cultura.
Essa deve levar em consideração a inclusão de práticas artísticas, lúdicas e sensoriais que
estimulem o conhecimento da história dos grupos sociais que fazem parte dos espaços e
também daqueles que fizeram a patrimonialização, contribuindo para a construção de processos
de identificação e valorização das diversidades socioculturais na sua complexidade. Como dito
anteriormente, a experiência nos parques, adquirida pelas ONGs, mostra o quanto são
importantes os trabalhos com os patrimônios que fazem parte das realidades locais, inclusive

43
Des soudaines “émotions patrimoniales” qui surgissent autour du traitement d’um monument on peut admettre
qu’elles nous éclairent sur le rapport au passé et plus largement, au temps et à l’espace vécu.

586
como mecanismo de transformação social, permitindo aos sujeitos a construção de sentidos e de
laços de fortalecimento em relação a sua história e a suas identidades. Finalmente, trata-se de
reinserções identitárias por meio de patrimônios culturais trabalhados museologicamente em
uma perspectiva social.
Nesse caso, é preciso explorar o conjunto de relações que existem entre natureza e
cultura, não de maneira excludente, mas de forma integrada. Portanto, os parques incorporam
contextos sociais, pois a natureza não pode ser vista como algo intocável. É necessário
desenvolver ações que estimulem sua continuidade, como o replantio, por exemplo, ou a
criação de um horto, como apresentado pelos membros da ONG Nativo de Itapuã, com o
objetivo de comercializar orquídeas típicas da região do Parque Metropolitano do Abaeté.
Essas atividades auxiliam no equacionamento da preservação do meio ambiente e na
manutenção de práticas tradicionais de grupos sociais.
Por outro lado, como afirma Santos (2003), os projetos preservacionistas, no Brasil,
devem ser concebidos com base em políticas inclusivas. De fato, entendemos que, diante da
realidade apresentada, o discurso sobre preservação do patrimônio ambiental, urbano e
religioso torna-se completamente inócuo se não for contextualizado, com base em medidas
que envolvam a população local e consigam oferecer ou viabilizar oportunidades de
participação e inserção social.
No caso específico dos parques, não é possível musealizar um discurso e o patrimônio
ecológico se não houver a participação das ONGs locais e não considerarmos todos os valores
estabelecidos de maneira adicional ao processo de patrimonialização. Os projetos devem
buscar a interação entre os diversos agentes partícipes da história, entendendo o papel de cada
ator social. Além disso, as organizações auxiliam no processo de inserção nas comunidades.
Por esta razão, articular preservação ao desenvolvimento local é um desafio necessário nas
sociedades democráticas.

587
Considerações Finais
O presente trabalho discutiu sobre os aspectos históricos relativos a Museologia, os
ecomuseus e suas articulações iniciais com os parques naturais regionais na França. Assim,
ficou demonstrado que o modelo administrativo inicial dos ecomuseus era o dos parques.
Registrou-se ainda a importância das ações interdisciplinares e o apoio das políticas de
proteção do meio ambiente. O debate em torno das ideias dos teóricos que abordam a
importância do patrimônio e da preservação e dos casos estudados apontam para a
necessidade de conhecimento, estudo e interpretação dos bens culturais. Analisou-se ainda
que as associações que se ocupam dos espaços patrimonializados defendem a necessidade de
um projeto museológico permanente, envolvendo a definição e implementação de políticas
públicas que valorizem a integração entre memória, história, patrimônio e os processos de
mediação numa perspectiva de inclusão e participação dos agentes preservacionistas.

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589
TRABALHO DE REDES COMUNITÁRIAS: A EDUCAÇÃO AMBIENTAL COMO
FERRAMENTA DE TRANSFORMAÇÃO SOCIAL, EM BAIRROS PERIFÉRICOS
DE BELÉM, PORTO ALEGRE E GRAVATAÍ.
Camila Alves Quadros*
*Ponto de Memória da Terra Firme
Kelly Cristine Souza Dahm**
**EMEF Presidente Getulio Vargas.
Márcia Isabel Teixeira de Vargas***
***Rede de Educadores em Museus do RS
Teresinha Beatriz Medeiros****
****Ponto de Memória Lomba do Pinheiro

Resumo: O texto relata as atividades ambientais e culturais realizadas, no período de 2015 a 2017, a
partir das parcerias entre Redes de Cooperação Comunitárias, nos bairros da Terra Firme, em Belém
(PA), Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre e na EMEF Presidente Getulio Vargas, Morada do Vale I,
em Gravataí (RS). Revela o desafio e o desejo de promover o diálogo e o desenvolvimento de ações
compartilhadas, em comunidades e escolas, como os principais caminhos para uma atuação efetiva,
seja na preservação do patrimônio natural ou na promoção e proteção do patrimônio histórico, seja na
responsabilidade social e na promoção do respeito à diversidade cultural.
Palavras-Chave: Comunidades; Redes Comunitárias; Ação Educativa; Meio Ambiente.

Abstract: The text reports on the environmental and cultural activities carried out between 2015 and
2017, starting from the partnerships between Community Cooperation Networks, in the neighborhoods
of Terra Firme, Belém (PA), Lomba do Pinheiro, Porto Alegre and EMEF. Getulio Vargas, Address of
the Vale I, in Gravataí (RS). It reveals the challenge and the desire to promote dialogue and the
development of shared actions in communities and schools as the main paths for effective action,
either in the preservation of natural heritage or in the promotion and protection of historical heritage,
or in social responsibility And in promoting respect for cultural diversity.
Keywords: Communities; Community Networks; Educational Action; Environment.

590
Introdução
O ano de 2015 foi um ano muito especial para o fortalecimento na articulação em
Rede, do Ponto de Memória da Terra Firme, Belém (PA); do Ponto de Memória Lomba do
Pinheiro, Porto Alegre (RS); da Rede Brasileira de Jardins Botânicos (RBJB); e da Rede de
Educadores em Museus do RS (REMRS).
Foram momentos fundamentais para a troca de experiências e para o debate
democrático no desenvolvimento de projetos que resultaram em ações educativas e culturais,
em prol do patrimônio ambiental e em ações de sustentabilidade nos territórios da Terra Firme
em Belém (PA), no bairro Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre (RS) e na Escola Municipal
de Ensino Fundamental Presidente Getulio Vargas, em Gravataí (RS).
A III Reunião Norte de Jardins Botânicos e Pontos de Memória, no período de 17 a
21 de agosto, foi o momento inicial dessas ações, que com o objetivo de integrar a Rede
Brasileira de Jardins Botânicos e a Rede Norte de Memória e Iniciativas Comunitárias,
estabeleceu como marco inicial de ações conjuntas em um projeto piloto para ser
desenvolvido pelos moradores do bairro da Terra Firme (PA). Mais adiante na reunião das
Iniciativas Comunitárias, por ocasião do II SEBRAMUS, realizada na cidade do Recife, entre
16 e 20 de novembro, destacou-se a importância em ampliar essas atividades e experiências
para o estado do Rio Grande do Sul.
Nesses dois momentos buscou-se a participação popular no que diz respeito à
compreensão e a valorização de experiências, que destacam o papel participativo de
lideranças das comunidades junto ao seu patrimônio natural e a memória viva de seus sujeitos
em ações positivas nos territórios onde estão inseridos. Do mesmo modo, os participantes
desses encontros puderam perceber o papel dos Jardins Botânicos na conservação e
preservação da biodiversidade brasileira, sensibilizados pela importância dos Jardins na
promoção da sustentabilidade socioambiental.
No encontro de agosto/2015, na conferência presidida por João Toledo, Presidente da
RBJB, sob o tema Patrimônio Natural, Memória Viva e Conhecimento das Iniciativas
Comunitárias: uma conexão entre os Jardins Botânicos e os Pontos de Memória, constatou-

591
se a necessidade da união de forças entre as organizações civis na proteção do patrimônio
cultural e natural das comunidades pela inter-relação do homem com seus semelhantes e tudo
o que os envolve no seu cotidiano. Desse modo, reafirma-se a importância do trabalho
integrado no proteger, preservar e assegurar os bens naturais de comunidades
compromissadas com seu patrimônio de forma integral.
Em novembro de 2015, consolidou-se o trabalho em rede das iniciativas
comunitárias, haja vista que o trabalho integrado auxilia no fortalecimento, na união das
instituições culturais, na programação e organização de ações concretas nos territórios onde
estão vinculadas.
As pesquisas, análises e avaliações foram adensadas, durante a sétima edição do
Fórum Nacional de Museus (FNM), que ocorreu entre os dias 31 de maio e 1º de Junho de
2017, em Porto Alegre/RS. Em reuniões presenciais conseguimos compartilhar das ideias e
ações desenvolvidas e dialogar com outros grupos de trabalho nas áreas da Educação em
Museus, Museologia, Memória e Patrimônio. Despertando o interesse de profissionais que
atuam em outras comunidades em diferentes estados do Brasil, abrindo-se espaços para
difusão do projeto tanto em Sustentabilidade, quanto em Inclusão Social e na Preservação e
Conservação Ambiental.
Em discussões virtuais, entre os anos de 2016 e 2017, essas Redes ampliaram o
diálogo em questões relativas à preservação, ao manejo, ao plantio de espécies ameaçadas de
extinção, assim como, na troca de experiências de cultivo, coleta e registro, na criação de
bancos de sementes para a conservação de espécies locais.
Da mesma forma, cada uma das instituições envolvidas firmaram parcerias com
outras instituições para por em prática um Plano de Conservação Preventiva e capacitação dos
Conselheiros dos Pontos de Memória e professores, visando nutrir e qualificá-los com os
conceitos, manutenção, manuseio, guarda e acondicionamento em relação às práticas
museológicas em seus acervos institucionais e as suas coleções, no armazenamento de
sementes, registro, classificação, difusão em banco de dados, plantio, cultivo de hortas e
compostagem.

592
Assim, as parcerias são com o Parque Zoobotânico do Museu Goeldi, com o
acompanhamento da Rede Brasileira de Jardins Botânicos (RBJB), em Belém do Pará. Na
EMEF Presidente Getúlio Vargas, em Gravataí/RS, somaram-se a extensão universitária da
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e a Rede de Educadores em
Museus do RS. Junto ao Ponto de Memória Lomba do Pinheiro está o Conselho Popular,
constituído por lideranças do bairro Lomba do Pinheiro e o Jardim Botânico, em Porto
Alegre/RS.
No presente texto descrevemos as ações relacionadas à conservação do Patrimônio
Natural e a metodologia aplicada. No Artigo, Jardins Botânicos e Pontos de Memória: um
encontro interdisciplinar a perspectiva museológica, Camila Alcântara e Marcia Vargas
(2015), elencaram as ações e os objetivos para implementação de um projeto visando a
preservação de espécies ex sito aos Jardins Botânicos.
Nesse processo inscrevem-se as atividades pelo manejo e plantio de coleções
vivas; na recuperação de áreas degradadas; fixação de plantio de espécies em
extinção; o cultivo de plantas em hortas comunitárias; e em ações educativas
de sustentabilidade de acordo com as possibilidades e limitações especificas
de cada território, pelo mapeamento da estrutura física disponível, bem
como, das dificuldades na efetivação das ações propostas no projeto-piloto,
em trabalhar a memória e o patrimônio cultural, material e imaterial local.
(ALCÂNTARA; VARGAS, 2015. p. 411/412)

Para esclarecer, dedicamos uma parte da escrita ao Programa Pontos de Memória, a


descrição dos territórios onde se desenvolvem as atividades e espaço educativo envolvidos no
projeto Escola Sustentável. Da mesma forma, trazemos ao conhecimento os pressupostos
relativos ao trabalho em Redes, ao Museu Integral, da Ação Educativa e Cultural no ambiente
escolar, em relação à preservação ambiental e à sustentabilidade.

O Projeto E Aspectos Metodológicos Aplicados Na Preservação E Conservação Do


Patrimônio Ambiental Pelo Manejo E Plantio De Coleções Vivas
Os conselheiros do Ponto de Memória da Terra Firme e do Ponto de Memória
Lomba do Pinheiro, bem como, a coordenação da REMRS, participaram da III Reunião Norte

593
das Redes de Jardins Botânicos (2015), constituindo-se num encontro das Redes Integradas
do Norte do Brasil, do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG) e o Ponto de Memória da
Terra Firme (PMTF), entre outras instituições com o mesmo segmento, garantindo a
participação comunitária e o diálogo sobre o papel dos Jardins Botânicos e da Museologia no
desenvolvimento de territórios e grupos de pessoas que estão à margem da sociedade.
No que diz respeito “à margem”, nos referimos às comunidades que estão “para lá”
do âmbito tradicional, setorial, de intervenção pública e nas dificuldades, do poder público,
em dar respostas aos problemas estruturais e sociais complexos das sociedades
contemporâneas.
Na Reunião, os presentes assumiram uma atitude interdisciplinar e integrada de áreas
afins, trazendo para o contexto contemporâneo em que cada vez mais os profissionais atuantes
nos museus preocupam-se com o desenvolvimento social local, por ações comunitárias de
memória e museologia social e que os Jardins Botânicos (JBs), reconhecidos enquanto
museus tem um papel fundamental na sustentabilidade, conservação e desenvolvimento da
humanidade. Como resultado da III Reunião, ocorrida em Belém, partiu-se com um projeto
piloto na Terra Firme, com o objetivo de implantar coleções externas dos Jardins Botânicos
nesse bairro da cidade de Belém do Pará. Um desafio que envolveu profissionais qualificados
em Museologia, Botânica, Arquitetura, Biologia, Turismo e Pedagogia.
Além disso, os representantes dos Pontos de Memória trouxeram seus conhecimentos
em Artes Visuais, Dança, Música, Teatro, nas culturas tradicionais, no cultivo de plantas
medicinais, e outras práticas que fazem parte da culinária tradicional local.
A difusão desse projeto ampliou-se aos demais territórios onde o Programa dos
Pontos de Memória está constituído, como é o caso do Ponto de Memória Lomba do Pinheiro
(2016), em Porto Alegre e no ano seguinte numa escola, em Gravataí no RS, por conta da
parceria das duas instituições com a Rede de Educadores em Museus do Rio Grande do Sul
(REMRS).

594
Foi necessário rever os objetivos: geral e específicos, a metodologia a ser aplicada e
o ritmo das ações a serem desenvolvidas visto que cada localidade guarda especificidades
ambientais, bem como, têm limitações e problemáticas de manejo com o meio ambiente.
Sobretudo, que nesses espaços urbanos evidenciaram-se terrenos degradados; a
poluição ambiental e contaminação do solo, prejudicados por significativos depósitos de lixo;
alterações climáticas; ausência do cultivo de espécies que fazem parte da culinária tradicional
e da rotação de culturas, mesmo em hortas caseiras. Essas problemáticas foram constatadas e
analisadas em projetos anteriormente trabalhados como, por exemplo, o Festival de
Gastronomia Inteligente, Museu Goeldi de Portas Abertas, Gincana do Meio Ambiente,
realizados pelo Museu Emilio Goeldi (PA) e a Horta Comunitária, do bairro Lomba do
Pinheiro (RS).

E. E. Vereador Aberlado Leão – Ação Educativa do MPEG Festival de Gastronomia Inteligente – MPEG
No Bairro Terra Firme em Belém (PA). - 18.09.2016 - Foto: Helena Quadros

595
Museu Goeldi de Portas Abertas – MPEG e PMTF Gincana do Meio Ambiente – E.E. Professor João
– 19 a 20.10.2016 – Foto: Helena Quadros Ludovico – MPEG e PMTF (PA) – 29.06.2017 –
Foto: Helena Quadros

Visita a Horta Comunitária - Dia Mundial da Água –


PMLP (RS) – 19.04. 2017 –
Foto: Teresinha Beatriz Medeiros

Surgiram outras dificuldades, evidenciadas no II SEBRAMUS, (ALCÂNTARA;


VARGAS, p. 410, 2015), como o insuficiente “planejamento urbano no que diz respeito à
especulação imobiliária e assentamentos de famílias, desrespeitando as necessidades
primárias, como a falta de saneamento básico de água e esgoto; e a consequente devastação de
áreas ricas por uma flora abundante, com desgaste do solo por desmatamento e queimadas,
ocorrendo à degradação nas estruturas físicas, químicas e biológicas”.

596
Além disso, as construções e ocupações irregulares bloquearam ou desviaram o curso
das águas, como no caso da bacia do Arroio Dilúvio em Porto Alegre/RS. Os depósitos de
lixo e a retirada de mata ciliar, fatores que contribuíram para o aumento considerável de
sedimentos nos arroios, ocorrendo o assoreamento desses e consequentes inundações e
contaminação da água. Essas problemáticas foram evidenciadas para reconhecermos o
verdadeiro valor e significado das ações que envolveram as práticas de plantio, cultivo,
pesquisa e conservação.
Na Metodologia aplicada partimos de estudos, pesquisas, mapeamento e análise dos
dados das áreas disponíveis nos bairros em questão, assim como, da estrutura escolar da
EMEF Presidente Getúlio Vargas. Identificamos as características desses espaços, pontos
positivos, pontos negativos e os potenciais quanto à estrutura física e de pessoal disponível
para efetivação do projeto.
Para satisfazer e buscar resolver os problemas acima elencados estabeleceram-se
ações envolvendo várias forças de trabalho. Foi necessário realizar um diagnóstico ambiental
e estabelecer um cronograma de atividades. Ações realizadas em longo prazo e que precisam
ser revistas constantemente, tais como, a regeneração dos espaços degradados; a recuperação
e limpeza dos terrenos e áreas ociosas; a qualificação do meio ambiente pela arborização,
aspirando à refrigeração natural e oxigenação do ar; introdução e retomada das práticas de
plantio e dos hábitos alimentares tradicionais.

Mutirão de Limpeza e Plantio – “Espaço Verde” – Bairro


da Terra Firme – Belém (PA) PMTF – 13.11.2016 – Foto: Helena Quadros

597
Mutirão de Limpeza e Plantio – “Espaço Verde” – Bairro
da Terra Firme – Belém (PA) – PMTF – 13.11.2016 –
Foto: Helena Quadros

Propomos a reeducação junto aos moradores do bairro e as equipes diretivas das


escolas, educadores e educandos para a consciência da coleta seletiva do lixo; o uso
inteligente de insumos que não causem agressão ao meio ambiente; utilização de materiais
recicláveis e não poluentes; construção de estruturas sustentáveis; orientação pedagógica em
torno da temática ambiental; estratégias de minimização de desperdícios; e a maximização
dos recursos disponíveis.
Procuramos o poder público e as instituições responsáveis por esses locais para a
possibilidade da realização da retirada de lixo em grande escala com uso de máquinas,
ferramentas específicas e mão de obra especializada. Nos espaços públicos que estavam
ociosos propomos a criação de pequenas praças e jardins com o envolvimento e coordenação
dos conselheiros do Ponto de Memória da Terra Firme, os moradores do bairro assumiram o
papel de multiplicadores para conscientizar a comunidade e sugeriram a criação de hortas
comunitárias, hortas em escolas e também o cultivo de chás, ervas e hortaliças.
Reforçando-se a necessidade urgente de recuperação e preservação do meio
ambiente e o reconhecimento deste, como uma riqueza essencial para a
sustentabilidade local, capaz de favorecer economicamente aos seus
moradores, valorizar e qualificar as vidas que escolheram estes espaços
como suas moradas e de seus familiares. Por último buscamos também
justificar o projeto pela subsistência através da reconstrução de hábitos

598
alimentares tradicionais e mais saudáveis para todos. (MOURA; VARGAS,
2015, p. 412)

Os territórios da Lomba do Pinheiro (RS) e da Terra Firme (PA) são considerados


territórios de vulnerabilidade social e fazem parte do Programa Pontos de Memória, desde
2011, dos quais trataremos no item (4). Durante os eventos, tanto no Seminário Brasileiro de
Museologia (2015), quanto no 7º Fórum Nacional de Museus (2017), seus representantes
estenderam as proposições acima aplicadas aos demais Pontos de Memória do Brasil.

.
Mutirão de Limpeza e Plantio – “Espaço Verde” – Bairro da
Terra Firme – Belém (PA) – PMTF – 08.12.2016 –
Foto: Helena Quadros

Pontos De Memória São Museus: A Nova Museologia E As Possibilidades De


Protagonismo Social (Pressupostos Teóricos).

A vida em comunidade pressupõe cooperação. Seja por meio de ações, projetos ou


programas de cunho social, o interessante é notar que, sobretudo em uma comunidade
periférica brasileira, para que os direitos sejam garantidos e efetivados é necessário que haja
interação e cooperação entre os que ali habitam, constituindo-se assim o trabalho em redes.
Nesse sentido, acreditamos que o trabalho em Redes atua não somente no
fortalecimento comunitário, como também no incentivo às ações e/ou projetos e ainda, como
ferramenta facilitadora para os mesmos. A estratégia do uso de Redes nessas ações tem sido

599
fundamental se considerarmos que as mesmas operam no sentido de atender demandas
imediatas da população por trabalho, melhoria no consumo, educação, reafirmação da
dignidade humana das pessoas e do seu direito ao bem-viver. Além disso, elas combatem as
estruturas de exploração e dominação responsáveis pela pobreza e exclusão. “E, igualmente,
começam a implantar um novo modo de produzir, consumir e conviver em que a
solidariedade está no cerne da vida”. (MANCE, 2005, P. 4).
Sendo assim, a articulação em redes nos Pontos de Memória teve seu surgimento a
partir da expansão do programa, com o edital para novos Pontos, no ano de 2011. Essa
articulação foi utilizada como estratégia pelo Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), visando
facilitar o diálogo com os já existentes e os novos Pontos. Para tanto, relata Cinthia Maria
Rodrigues Oliveira Coordenadora de Museologia Social e Educação
(COMUSE/DPMUS/IBRAM), esclarece que:

(...) A equipe do Ibram precisaria adotar uma perspectiva mais estratégica,


porque os 12 pontos estavam desenvolvendo ações em diferentes etapas da
metodologia. Por seu lado, os Pontos também se viram levados a se
reposicionarem em relação ao Ibram. A solução, compartilhada por muitos,
parecia ser, portanto, aproximar, especialmente pela formação e pelo
fortalecimento de redes territoriais e temáticas aqueles primeiros pontos (...)
e os “Pontos Premiados” (...) Mas essas redes deveriam ser ainda mais
abrangentes, incluindo outras iniciativas – chamadas parceiras – que, desde o
início, compartilham suas experiências com os 12 pontos. Da mesma forma,
deveriam ser incluídas instituições – especialmente universidades e museus –
que ofereceram seu apoio, concorrendo para a realização de ações e seu
constante aperfeiçoamento. (OEI, 2016, p. 9)

Deste modo, o trabalho em parceria ou em Redes é proeminente para o


desenvolvimento das ações dos Pontos de Memória, especialmente, quando os visualizamos
na perspectiva da nova museologia, visto que os Pontos “fogem” da concepção de museus
tradicionais. Para tanto, é necessário, em um primeiro momento, compreender o objeto de
estudo da museologia, que, para Alcântara (2016):
É a atribuição de valor sobre representações humanas (Real), a partir da
percepção dos diversos grupos sociais sobre a relação que se estabelecem
com o território (espaço), a história (tempo) e a memória em sintonia com os
valores de suas próprias culturas – a musealidade. Sabemos que cada

600
sociedade desenvolve uma cultura específica; por isso, cada sociedade
percebe e define museu à sua maneira. (ALCÂNTARA, 2016, p. 13).

Desse modo, teoria e prática devem ser vividas como militância, não somente nas
ações denominadas de Museologia Social, mas em qualquer ação museológica,
independentemente da tipologia de museu. O que está em jogo, em nossa compreensão, é o
sentido que estamos dando à Museologia. Entendemos que a Museologia propriamente dita
implica ação social. Os conhecimentos científicos devem se voltar para uma situação concreta
em que quem aplica está “existencial, ética e socialmente comprometido com o impacto da
aplicação”. (SANTOS, 1996, p. 20)
E nessa chave interpretativa, apresentamos os pressupostos teóricos deste trabalho, o
qual tendo como sujeitos, os “museus a céu aberto” - como são majoritariamente
compreendidos os Pontos de Memória – intrinsecamente, discute a ideia de museu integral, ao
qual consideramos uma das categorias de discussão, atrelados as ações educativas e culturais
realizadas nesses museus.
Nesse sentido, Vargas e Alcântara (2015) refletem, a partir dos ensinamentos de
Scheiner (2010), o entendimento de museu integral:

Na Museologia, o conceito de Museu Integral amplia-se nas ações do museu


reconhecendo o fenômeno plural, múltiplo e complexo, assim entendido por
Tereza Scheiner (1998), que afirma que um museu maior abriga outro museu
que opera a seu serviço. Refere-se, por exemplo, aos Centros de Visitação
que promovem exposições, ações culturais e educativas e atividades virtuais,
que qualifica a experiência e as relações com o público. (ALCÂNTARA;
VARGAS, 2015, p. 414)

Dessa forma, tendo em vista que atuar em comunidade – nesse artigo, discutindo
quanto ao papel dos museus advindos com a nova museologia e a museologia social – implica
maior atenção ao processo de ação educativa e cultural supracitada e imbuída no trabalho em
comunidade, cabe explicitarmos que, de acordo com Santos (2002):

Admitindo que o patrimônio cultural é o referencial básico para o


desenvolvimento das ações museológicas, consideramos que os processos
museais gestados, ao longo dos anos, contribuíram, de modo efetivo, para a

601
ampliação do conceito de patrimônio, na medida em que o conceitua como a
relação do homem com o meio, ou seja, o real, na sua totalidade: material,
imaterial, natural e cultural, em suas dimensões de tempo e de espaço.
(SANTOS, 2002, p. 4)

Destarte, compreende-se, que sendo os Pontos de Memória representantes de uma


museologia que busca dar vez e voz aos que foram/são oprimidos socialmente, busca
evidenciar uma forma de “ser museu” com maior representatividade e criticidade, é elemento
e ferramenta fundamental que esses museus desenvolvam e participem do processo de ação
educativa e cultural com um olhar fortemente enraizado na relação homem e espaço que
ocupa, daí a necessidade de que se comprometa com a totalidade supracitada em Santos
(2002).
Além disso, tendo em vista as relações de redes e parcerias estabelecidas nos dois
Pontos investigados nesse artigo vale ressaltar que nesse caso, o trabalho nessa perspectiva
ocorre no Ponto de Memória da Terra Firme em parceria com o MPEG e, no Ponto do Lomba
do Pinheiro, em parceria com a Escola Getúlio Vargas, sendo que ambos realizam o trabalho
explanado no tópico anterior. Em Parceria com a Rede Brasileira de Jardins botânicos e com a
Rede de Educadores em Museus do RS, tem-se a troca que os impulsiona a pensar e promover
ações educativas relacionadas à preservação ambiental e sustentabilidade.
Para tanto, é fundamental que se observe o dito por Márcia Vargas e Camila Moura
Alcântara (2015) a respeito da relação existente entre o fazer museológico nesses Pontos de
Memória e as duas categorias acima ditas. As autoras realizam essa discussão a partir de
documentos oficiais:
(...) as questões ambientais estão presentes nas discussões dentro do campo
museológico. Atribuindo ao meio ambiente pesquisado, conservado e
exposto, múltiplas funções, para fins de educação, pesquisa e turismo.
Diversos documentos foram gerados a partir de eventos no campo da
Museologia que se referem à preocupação com o meio ambiente a partir de
problemas relacionados ao desenvolvimento social e conservação da
natureza. Sobre o entendimento da UNESCO de que o meio ambiente é
patrimônio vivo da humanidade, destacam-se: a Conferência de Estocolmo,
em junho de 1972; da Declaração de Quebec no Canadá, ICOM em 1984; da
Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1987; do
1º Seminário Brasileiro para a Preservação e Revitalização de Centros

602
Históricos em 1987, documento conhecido como Carta de Petrópolis; da 2ª
Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento
(CNUMAD), a ECO-92, no Brasil; e a Declaração de Caracas na Venezuela,
ICOM em 1992. É no momento que o fazer museológico é tido como agente
que se insere e se adapta a cada meio, igualmente reconhecido no fazer
tradicional e nas formas de: coleta, conservação, investigação científica,
restituição, difusão e criação, para que seja instrumento adaptado a cada
região e proposta específica (ICOM, 1984). Desse modo, entendemos que o
papel da Museologia e do fazer dos profissionais envolvidos na gestão,
está em reconhecer nas pessoas as suas formas de identificação e
pertencimento, visando atingir e estimular os indivíduos o valor
específico de cada um, assim como a riqueza do meio onde estão
inseridos. (grifo nosso) (ALCÂNTARA; VARGAS, 2015, p. 413-414).

Compreendemos, portanto, que dada a realidade desses bairros de periferia


“esquecidos” pelo Poder Público, a importância de que esses museus afirmem suas ações
educativas e culturais, divulgando, assim, a museologia social é tida partindo da ideia de que
são espaços capazes de possibilitar o protagonismo social, evidenciar a memória e cultura e
ainda, fazer uso da educação ambiental como ferramenta transformadora.

Projeto “Escola Sustentável” – Efetivação De Critérios De Sustentabilidade Na Emef


Presidente Getúlio Vargas
O Projeto Escola Sustentável é uma parceria entre a Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul (PUCRS), a EMEF Presidente Getúlio Vargas, o Ponto de Memória
Lomba do Pinheiro (PMLP) e a Rede de Educadores em Museus do Rio Grande do Sul
(REMRS), de forma interdisciplinar é desenvolvido por professoras de arte e ciências.
O objetivo geral, fio condutor das atividades, resta em propor um plano de trabalho
para melhoria do desempenho ambiental no que se refere às práticas educadoras e
operacionais. Os objetivos específicos estão em propor e auxiliar na construção de estruturas
educadoras sustentáveis no espaço escolar; propor atividades pedagógicas em torno da
temática ambiental em conformidade com os professores engajados ao projeto; e propor
estratégias de minimização de desperdício e maximização de recursos nas atividades técnicas
e administrativas.

603
Destaca-se que escola e comunidade estão envolvidas nas ações, desde o diagnóstico
às fases de pesquisa, análise e desenvolvimento das atividades práticas, que se subdividem em
eixos temáticos: água, energia, resíduos, fornecedores, matéria prima, área escolar e educação
e extensão comunitária.
Contudo, mesmo como subdivisões esses eixos fazem parte do conjunto de ações que
devem ser observadas constantemente e de forma simultânea, as quais abaixo encontram-se as
especificidades para cada um:
 No eixo Água buscamos a valoração do recurso hídrico e a otimização do recurso
através de melhorias na infraestrutura escolar;
 No eixo Energia buscamos a discussão sobre aos vários recursos energéticos e seus
usos através de adaptações na infraestrutura escolar;
 Quanto à Matéria-prima buscamos a identificação dos principais materiais adquiridos
na rotina escolar, a busca por alternativas sustentáveis e a excelência na utilização,
propondo mudanças na rotina administrativa;
 No eixo fornecedor ressaltamos a importância da escolha das fontes de compra mais
sustentáveis (empresas locais, certificadas e ligadas à economia solidária...);
 No eixo que denominamos Resíduos auxiliamos na identificação dos principais
resíduos produzidos, e na definição da segregação e descarte correto;
 No eixo que envolve a Área Escolar realizamos a avaliação das possibilidades de
inserção de nichos sustentáveis no ambiente escolar; e
 No eixo Ensino e Extensão auxiliamos na Identificação de atividades pedagógicas e
de extensão relativas à sustentabilidade ambiental (palestras, oficinas, gincanas,
filmes...).
A revitalização do espaço escolar com estruturas sustentáveis é uma das principais
temáticas do Projeto Escola Sustentável que oportuniza aos professores o desenvolvimento
contínuo de atividades de ensino e extensão e aos alunos e demais indivíduos vivências que
auxiliem a entender a complexidade dos problemas ambientais e seus reflexos sociais.

604
Inicialmente os alunos da Escola Presidente Getulio Vargas foram envolvidos, nas
aulas de Ciências, pelo Projeto Água. Aprenderam sobre Mapa Conceitual utilizando-o como
a demonstração das várias possibilidades que estão inseridas nessa temática, em pesquisas
dentro e fora da escola. Durante esse estudo visitaram a Escola Estadual Padre Nunes, que se
localiza em Gravataí/RS.
A partir da visita dos estudantes de extensão universitária da PUCRS, realizada em
17 de abril do ano de 2017, foi realizado o diagnóstico ambiental relativo às dependências da
escola, nesta oportunidade foram observados aspectos do uso e condições do espaço, sendo
estes registrados em planilha por escrito e em fotos.

Educandos do 6ºs Anos – EMEF President


Educandos do 6ºs Anos – Visita a EE Padre
Getulio Vargas – Gravataí/RS - 2016 –
Nunes – Gravataí/RS - 2016 – Foto: Márcia Vargas
Foto: Márcia Vargas

Adicionalmente será enviado ao coordenador um questionário a cerca das atividades


operacionais da escola. Desta forma, este Plano de Trabalho pretende apresentar estratégias e
critérios de sustentabilidade, embora ainda possam ser apresentadas novas sugestões em
resposta às informações a serem obtidas no levantamento das atividades operacionais.
O projeto foi registrado na Secretaria da Educação da cidade juntamente com o
mapeamento da estrutura escolar na intenção de envolver toda a comunidade e o poder
público na gestão sustentável do mesmo e com o propósito que as atividades sejam efetivadas
no cotidiano escolar.

605
O Município de Gravatai pertence à região metropolitana de Porto Alegre, capital do
estado, localizando-se ao norte, distando desta cerca de 20 km. Ocupa uma área de
463,758 km², sendo 121,37 km² em perímetro urbano, e com significativa área rural. Com
mais de 250.000 habitantes, conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2010),
é classificada como a sexta cidade mais populosa do estado. Conta com mais de setenta
bairros dentre ele está o bairro Morada do Vale I, onde se localiza a EMEF Presidente Getulio
Vargas.
Os coordenadores do projeto e os bolsistas de extensão realizaram uma coletânea de
atividades com projetos organizados para aplicação em sala de aula com o apoio da PUCRS,
lançado em junho de 2017, com ações voltadas ao estudo da água e da sustentabilidade para
outros professores que desejarem explorar tais temáticas em suas aulas.

Lançamento do Livro “Escola Sustentável


Água: Caderno do Educador” – PUCRS
07.06.2017 - Foto: Márcia Vargas

Construímos um cronograma de ações a serem desenvolvidas na escola EMEF


Presidente Getulio Vargas, sob a coordenação, manutenção e em parceria entre a direção e as
professoras de arte e ciências na escola, com apoio de materiais e mão de obra especializada e
conhecimentos específicos e pesquisas da PUCRS, conforme as Tabelas 1 e 2 abaixo
descritas.

606
Tabela 1: Estruturas Educadoras Sustentáveis

Estrutura Atividade Temáticas possíveis*


Revitalização da Horta
horizontal (revitalização) e
implementação da Horta em Origem dos alimentos e
Horta Escolar: espiral para ervas medicinais e consumo local;
da Horta em espiral para Agroecologia;
temperos. Estabelecimento de Água virtual.
manejo.
Fazenda de Batatas Implementação e Sabedoria popular;
estabelecimento de manejo Soberania alimentar
Composteira Revitalização e estabelecimento Responsabilidade sócio
da operacionalização ambiental; reuso; reciclagem;
redução; e o repensar
Jogos sustentáveis Implementação
Paletes com flores Implementação
Floreiras em pneus e vasos de Implementação Relação plantas-clima, plantas-
flores animais. Impacto da
urbanização sobre o clima.
Sala de aula ao ar livre Implementação Bem estar. Relação homem-
natureza, pertencimento.
Canteiro com bomba de Implementação
sementes
Cisterna Operacionalização Escassez da água; Ciclo da água
e impacto do ser Humano;
Direito a água; Conflitos em
torno da água; Água e poluição.
Placas e murais informativos Implementação Temas informativos gerais a
cerca da interação homem
ambiente e dos objetivos de
cada estrutura implementada
Muralismo e Stencil Implementação

Proposições de atividades pedagógicas em torno da temática ambiental

Embora seja de interesse construir junto aos professores atividades que utilizem as estruturas
educadoras sustentáveis implementadas, aqui seguem (tabela 3) sugestões de atividades das
quais podemos contribuir utilizando as estruturas a serem implementadas e/ou materiais
pedagógicos disponíveis.

Tabela 3: Atividades Pedagógicas

Atividade Material Disponibilizado pela PUCRS

607
Cinema nosso: Sequência de Empréstimo de DVD Água Vidas Gravatahy (8 vídeos)
vídeos em torno da temática Exibição do documentário No caminho de uma escola
ambiental seguido de Sustentável
atividades tais como discussão Exibição de documentário a História das coisas
e/ou produção audiovisual
Atividades sobre o tema Aula: Caderno do Educador (15 planos de aula)
Água Revista Coquetel sobre o tema água
Reciclando no Jardim Protocolo da atividade com séries iniciais utilizando a composteira
e a horta.

A prefeitura em parceria com a Fundação Municipal do Meio Ambiente (FMMA)


promoveu, em Edital Público, um concurso fotográfico denominado “Natureza em Foco”,
convidando os educandos matriculados nas escolas do município a registrarem paisagens da
cidade, com ampla participação da população na escolha da melhor imagem. Nossos alunos
conquistaram os três primeiros lugares, demonstrando um olhar apurado e voltado à
problemática do meio ambiente.

Concurso Fotográfico “Natureza em

Foco” - FMMA - Gravataí/RS – 2017.44 1º Lugar Concurso Fotográfico “Natureza


em Foco” FMMA – EMEF Presidente
Getulio - Vargas – 2017
Foto: Jessica Haag

44
Disponível em:
https://www.facebook.com/concursofmma/photos/a.1862529397330577.1073741826.1862226027360914/1
865962633653920/?type=3&theater.

608
Considerações
A Educação Ambiental e a sustentabilidade estão ligadas e viabilizam o
desenvolvimento econômico e social, além de ser uma ferramenta transformadora
comunitária. Compartilhar de ações sustentáveis pode auxiliar pessoas e comunidades a
encontrar soluções criativas para as questões ambientais.
O Núcleo de Visitas Orientadas (NUVOP), que integra o Serviço de Educação e
Extensão do Museu Paraense Emílio Goeldi, desempenha junto à sociedade paraense um
eficiente papel educacional com diversas atividades pedagógicas. Nesse processo convida o
público e comunidades do em torno a compartilhar da preservação do patrimônio cultural e
ambiental. O Ponto de Memória da Terra Firme participa desse movimento e contribui com
projetos de mediação como a visita guiada, num percurso acompanhado por moradores do
bairro que percorrem as ruas conhecendo escolas, praças, a fauna e a flora que acompanham o
rio Tucunduba.
As tarefas que estão sob a coordenação dos conselheiros do Ponto de Memória
transformaram o espaço do bairro da Terra Firme, e propõe à cidade que outras comunidades
trabalhem nesse sentido, foram os Mutirões de Limpeza em áreas ociosas e a construção de
hortas e jardins.
Os Jardins Botânicos e a Museologia em seu trabalho de Educação Ambiental
considerando o Patrimônio Integral e o trabalho da memória, diversidade cultural e a história
local como temáticas cumprem integram a sociedade com o meio onde estão inseridos em
suas moradas, locais de trabalho e educação, de tal forma que estes espaços tornam-se locais
de convivência e bem estar.
A parceria entre a Rede Brasileira de Jardins Botânicos, o PMTF, o Ponto de
Memória Lomba do Pinheiro e o Museu Paraense Emilio Goeldi trabalham na criação de
projetos e a aplicação de atividades de conservação e preservação de acervos vivos, na
coletividade.

609
No ambiente escolar é possível trabalhar com coleções ex situ, amparados pela
pesquisa e conhecimento oferecidos pelos Jardins Botânicos e da mesma forma, pelo saber
popular de moradores das comunidades, na promoção da educação e conscientização da
comunidade pelo potencial de sensibilização e ferramenta que prepara os educandos para os
desafios do futuro.
Utiliza-se de atividades culturais que aproximam o museu da comunidade, visando à
valorização e a identificação dos sujeitos envolvidos com os projetos, tornando-os agentes e
multiplicadores de acordo com as necessidades primárias e essenciais aos seus locais de
vivência, reforçando a sustentabilidade para a satisfação e consciência do desenvolvimento
local.
A parceria em extensão universitária nas escolas legitimam as alternativas de
pesquisa e as possibilidades de salvaguarda desses acervos. Agregam valores aos saberes
populares, pelo conhecimento científico, que se renovam pelas práticas e experiências que
envolvem o meio ambiente e as sociedades. A Educação Ambiental deve ser trabalhada de
forma interdisciplinar, envolvendo várias áreas do conhecimento.
Para concluir destacamos o trabalho em Redes de cooperação um meio oportuno de
comunicação e engajamento de instituições preocupadas com a reconstrução da memória e os
modos de vida digna nas comunidades que se encontram à margem de condições apropriadas
e justas, ao direito a educação e ao meio ambiente, que sejam favoráveis ao seu bem estar.

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613
PATRIMÔNIOS (IN)VISIVEIS: DA EXPOSIÇAO À CRIAÇÃO DE UM MUSEU
COMUNITÁRIO NA ILHA DE MAIANDEUA/PA

Flávia Suanny Santana de Souza*


Resumo: A proposta de criação de um museu comunitário na Ilha de Maiandeua apresenta-se neste
artigo como um desdobramento oriundo de dois processos de pesquisas distintos e interligados. O
primeiro foi desenvolvido através do projeto “Patrimônios (In) Visíveis – A fotografia documental
como processo de investigação artística”, vencedor do IV Prêmio Proex de Arte e Cultura da
Universidade Federal do Pará, cujas investigações (artística e acadêmica) realizadas durante o ano
2015 na comunidade de Fortalezinha/PA culminaram na exposição “Patrimônios (In) Visíveis –
Fortalezinha”. O segundo foi desenvolvido para o Trabalho de Conclusão de Curso apresentado para a
obtenção do grau Bacharel em Museologia, que refletiu sobre as ações museológicas realizadas a
serviço dos procedimentos de construção e apresentação daquela exposição. A pesquisa para compor a
narrativa expográfica utilizou metodologia participativa, valendo-se de diálogos e trocas de saberes
com os moradores sobre patrimônio cultural e a identificação dos patrimônios culturais foi feita pela
própria comunidade de acordo com suas referências culturais (saberes, viveres, memórias, cotidiano),
constituindo-se assim num repertório cultural passível de musealização e patrimonialização. A
fotografia foi ferramenta de registro visual, auxiliando na produção de conhecimento acerca da
diversidade cultural da Vila e ajudando a criar um acervo documental imagético dos patrimônios
eleitos, e, consequentemente das memórias e histórias do lugar, contribuindo assim para sua
salvaguarda e difusão. Contudo, após a exposição, ficaram-me algumas instigações: o quê fazer com
todo esse conhecimento gerado sobre a comunidade e seu patrimônio cultural? Como movimentar esse
acervo criado? De que forma as ações e práticas museológicas podem contribuir para que os bens
culturais identificados pelos moradores sejam vetores para o desenvolvimento social-econômico-
cultural daquela localidade, não só de Fortalezinha, mas de todas as comunidades da Ilha de
Maiandeua? Um Museu pode ser uma boa alternativa, pois, podem ser instrumento fundamental para a
cultura, educação, organização social e o desenvolvimento autossustentável das comunidades que o
detém.
Palavras-chave: Patrimônio Cultural; Fortalezinha; Museologia Social.

Abstract: The proposal to create a community museum on the island of Maiandeua is


presented in this article as an unfolding from two distinct and interlinked research processes.
The first was developed through the project "Visible Heritage (In) Visible - Documentary
photography as a process of artistic research", winner of the IV Proex Prize of Art and Culture
of the Federal University of Pará, Whose research (artistic and academic) during the year
2015 in the community of Fortalezinha / PA culminated in the exhibition "Heritage (In)
Visibles - Fortalezinha". The second one was developed for the Course Completion Work
presented to obtain a Bachelor's Degree in Museology, which reflected on the museological
actions carried out in the service of the construction and presentation procedures of that
exhibition. The research to compose the narrative used a participative methodology, using

614
dialogues and exchanges of knowledge with the residents about cultural heritage and the
identification of cultural heritage was made by the community itself according to its cultural
references (knowledge, living, memories, Daily life), thus constituting a cultural repertoire
liable to musealization and patrimonialization. Photography was a visual recording tool,
helping to produce knowledge about the cultural diversity of the village and helping to create
an imaginary documentary collection of the elected patrimony, and consequently of the
memories and histories of the place, thus contributing to its safeguard and diffusion. However,
after the exhibition, there were some instigations: what to do with all this knowledge
generated about the community and its cultural heritage? How to move this created
collection? In what way can museological actions and practices contribute to the cultural
assets identified by the inhabitants as vectors for the social-economic-cultural development of
that locality, not only of Fortalezinha, but of all the communities of Ilha de Maiandeua? A
Museum can be a good alternative, since it can be a fundamental instrument for culture,
education, social organization and the self-sustainable development of the communities that
own it.
Key-words: Cultural Heritage; Fortalezinha; Social Museology.

615
Introdução45

A Museologia, a partir da segunda metade do século XX tomou a sua função


social, leia-se, grosso modo, a relação com a comunidade, como centro de sua reflexão e
campo de atuação no cenário cultural mundial e brasileiro; principalmente no que concerne às
questões da “inserção dos atores sociais no processo de construção do discurso museológico
disseminado pelas exposições e pelos demais canais comunicacionais que o Museu lança
mão”. (LIMA, 2012, p. 42).

O movimento que se convencionou chamar a partir dos anos de 1980 de “Nova


Museologia” mudou o modo de atuação e de interpretação dos bens culturais, passando a
incluir a salvaguarda e preservação dos elementos importantes da nossa vida cotidiana, que
forjam, mais do que outros, nossas constituintes identitárias e memórias coletivas, “mutante,
ágil e ao mesmo tempo sólido o bastante para dar sustentação às comunidades locais, das
pequenas e das grandes cidades.” (PINHEIRO, 2004, p.111).

A Museologia, dentre outras apreensões, trata de musealização, cujo efeito


advertido é a criação de apreensões patrimoniais em bens culturais, terreno no qual atuam
ainda outras ciências e instituições oficiais a definir e instituir o que seria um bem, quais as
memórias a serem guardadas, qual a história a ser contada. Entretanto, nem sempre os

45
O texto adaptado é parte integrante do Trabalho de Conclusão de Curso intitulado “Patrimônios (In) Visíveis -
Experiências museológicas na comunidade de Fortalezinha/Pará”, apresentado para obtenção do grau Bacharel
em Museologia da Faculdade de Artes Visuais e Museologia da Universidade Federal do Pará, de minha autoria
e orientação do Prof. Dr. Hugo Menezes Neto, defendido em 27 de Outubro de 2016.

616
patrimônios selecionados e legitimados oficialmente abarcam todos àqueles reconhecidos
como tais por uma comunidade.

Ao propor em 2014 um projeto de pesquisa que se lançasse a investigar como uma


comunidade praiana do nordeste paraense se relacionava e vivenciava seus patrimônios
culturais, descobri na prática o quanto estas relações estão entrelaçadas com as suas
memórias, sentimentos de pertencimento e experiências compartilhadas em seu cotidiano pelo
grupo social em questão. Constatação percebida a partir das análises das entrevistas realizadas
e da vivência prolongada com e na comunidade.

O projeto a que me refiro é denominado “Patrimônios (In) Visíveis – A fotografia


documental como processo de investigação artística”, e foi contemplado com o IV prêmio
Proex de arte e cultura 2014, na categoria artes visuais. Constituiu-se numa pesquisa/ação de
extensão universitária, realizada durante o ano 2015/2016 na vila de Fortalezinha/PA, pautada
em dois processos distintos que dialogaram e interagiram: investigações artística/experimental
e acadêmica, cuja discussão que ele propõe pensa patrimônio para além do tombamento e dos
registros pelos órgãos competentes, iluminando a autodeterminção, a ideia dos próprios
grupos sociais do que pode ser tido como patrimônio na sua experiência social, abrindo
precedentes para todas as expressões materiais e imateriais.

Utilizou a fotografia como ferramenta para produção de conhecimento acerca da


diversidade cultural de Fortalezinha, ajudando assim a criar um acervo documental imagético
dos patrimônios eleitos pela comunidade e consequentemente das memórias e histórias do
lugar, contribuindo assim para sua salvaguarda e difusão. Nesse sentido, a fotografia torna-se
uma potência enquanto meio de informação e conhecimento (KOSSOY, 2007; 2012) acerca
da diversidade cultural de um dado grupo social, uma fonte com múltiplas possibilidades de
leitura e estudos (etnográficos, históricos, iconográficos, etc.).

617
A fotografia também exerceu linguagem artística, num experimento de construção das
imagens a partir do conhecimento da realidade estudada, valendo-se da livre interpretação,
recriação e releitura após as análises das entrevistas com os comunitários para o
(re)conhecimento dos patrimônios locais, tornando-se ainda uma ferramenta eficaz para a
Museologia quanto à identificação, registro (coleta), documentação, salvaguarda,
comunicação e, consequentemente, valorização de tais patrimônios, cujo conteúdo criado
contribui para a realização das práticas museológicas dentro e fora do museu.

Com as ações do projeto, buscou-se que a comunidade tenha conhecimento crítico e


apropriação consciente de seus patrimônios, pois são fatores indispensáveis no processo de
preservação sustentável de seus bens culturais, assim como fortalecimento dos sentimentos de
identidade e cidadania. Buscou-se também estimular o próprio grupo social a identificar e
valorizar as suas referências culturais.

A exposição “Patrimônios (In) Visíveis – Fortalezinha” era a última das etapas da


metodologia da pesquisa junto à comunidade. Através dela pretendia-se apresentar/comunicar
o resultado da pesquisa, mas também de promover, como efeito político do trabalho
acadêmico, a aproximação entre a comunidade e os seus patrimônios.

Para compor a exposição, a pesquisa na comunidade apoiou-se na metodologia da


educação patrimonial criada por Maria de Lourdes Parreira Horta46 (1999), que consiste em
análise e interpretação de dados coletados a partir de cinco etapas: 1) Observação, 2)
Diálogos, 3) Registro, 4) Apropriação, 5) Exposição, e trabalhou com entrevistas qualitativas
semiestruturadas tendo respondentes individuais (somando vinte e cinco entrevistas gravadas
e trinta e duas não gravadas) e um grupo focal47 (GASKELL, 2015).

46
HORTA, Maria de Lourdes Parreiras. Guia Básico de Educação Patrimonial. Brasília: Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, Museu Imperial, 1999.
47
O grupo focal foi composto por nove moradores surdos da comunidade que participaram de uma roda de
conversa mediada pelos professores de libras do GETLS (Grupo de Estudo de Libras, da UFPA).

618
Durante a vigência do primeiro ano do Projeto PI48 na Ilha de Maiandeua (março de
2015 a março de 2016), foram três apresentações da exposição. A primeira e a terceira
ocorreram na própria comunidade de Fortalezinha no final do ano de 2015 e durante o
carnaval de 2016, respectivamente, atingindo um público de moradores e turistas que visitam
a Ilha nessas ocasiões. A segunda ocorreu na Universidade Federal do Pará no Hall da
Reitoria, atingindo um público de estudantes, corpo técnico e docente da instituição, além de
outras pessoas interessadas em visitá-la devido à divulgação nas redes sociais, inclusive na
página do projeto49.

Vale ressaltar que a pesquisa desenvolvida em Fortalezinha para o projeto PI foi a base
para o desenvolvimento do Trabalho de Conclusão de Curso intitulado “Patrimônios (In)
Visíveis - Experiências museológicas na comunidade de Fortalezinha/Pará”, que teve como
objeto de estudo a exposição e todos os processos museológicos que culminaram na sua
primeira apresentação.

Contudo, a pesquisa desenrolada para o projeto em Fortalezinha e as reflexões que


se sucederam, instigaram novas reflexões na área da museologia, fotografia e patrimônio e
novos caminhos para possíveis desdobramentos, como é o caso da proposta da construção de
um museu comunitário na Ilha de Maiandeua.

Quando digo um museu “na ilha” e não na comunidade de Fortalezinha


especificamente, é porque existem outras comunidades em seu entorno, e o debate sobre a
tipologia de museu e seu (s) espaço (s) físico (s) deverá ser realizado após a conclusão de um
novo processo de pesquisa que está em andamento, pois compete à próprias comunidades
envolvidas decidirem sobre as formas de proteção e de promoção de seus patrimônios
culturais. Mas, para tanto, a identificação é o primeiro passo para a sua preservação e difusão.

48
Abreviatura de Patrimônios (In) Visíveis.
49
O projeto tem uma página no Facebook, criada em março de 2015 para divulgar todos os processos e
resultados do projeto, incluindo imagens. O endereço é Facebook/projetopatrimoniosinvisiveisfortalezinha.

619
Por ter sido contemplado com o V Prêmio Proex de Arte e Cultura 2016, novos
patrimônios culturais ainda estão sendo identificados, pois este ano as ações do projeto PI
estão se desenvolvendo nas comunidades de Camboinha e Mocooca, também situadas na Ilha
de Maiandeua. Sendo assim, o museu vislumbrado deve contemplar todas as comunidades da
Ilha e deve contribuir para a promoção do desenvolvimento sócio-econômico-cultural
(VARINE, 2013) de seus moradores como um todo, tanto para um turismo sustentável quanto
para a preservação de seus bens culturais.

A Ilha de Maiandeua e os patrimônios culturais de Fortalezinha

A Ilha de Maiandeua está localizada no litoral nordeste do Pará, na microrregião do


Salgado50 e junto com a Ilha de Algodoal forma o arquipélago de Maiandeua. São separadas
por um igarapé conhecido como “Furo Velho” e subordinadas administrativamente ao
Município de Maracanã. Ocupa uma área de 2.494.82 ha, onde se localizam as vilas de
Fortalezinha, Mocooca e Camboinha, e ainda, as localidades de Camaleão, Passagem e Pedra
Chorona, bem como o Centro da Ilha, onde moram cerca de oito famílias51, assim como
praias, mangues e áreas de terra firme com vegetação. (PARÁ, 2012, p. 22).

Desde o dia 27 de novembro de 1990, data que foi criada a Lei Estadual nº 5.621, faz
parte da Área de Proteção Ambiental (APA) de Algodoal-Maiandeua (PARÁ, 2012, p.22)
sendo a única Unidade Conservação (UC) do Estado situada no litoral do nordeste paraense
pertencente à categoria APA. (PARÁ, 2014, p.7) administrada pela Secretaria de Estado do
Meio Ambiente (Sema) e que atrai muitos turistas o ano todo.
50
A região conhecida como Zona do Salgado, é integrada por dez municípios: Colares, Curuçá, Magalhães
Barata, Maracanã, Marapanim, Primavera, Salinópolis, Santarém Novo, São Caetano de Odivelas e Vigia. A área
possui cerca de 500 km de extensão e está situada entre a baía do Marajó e a baía do Gurupi. Ela compõe o
grande sistema de rias que se estende desde a margem direita do estuário amazônico (Vigia), no Estado do Pará,
até a baía de Tubarão (Ponta do Mangue), no Estado do Maranhão. A partir de sua salinidade, a Zona do Salgado
está subdividida em três áreas: O Baixo Salgado, onde predomina a Água doce; o Médio Salgado, onde ocorre a
mistura das águas do oceano com as águas do rio; e o Alto Salgado onde se concentra a água oceânica.
(QUARESMA, 2000, p. 102)
51
Mapeadas recentemente (2017) através do projeto Patrimônios (In) Visíveis no II.

620
Historicamente, a Região do Salgado é uma área de ocupação antiga. Estudos indicam
a existência de extensos sambaquis52 litorâneos e a datação arqueológica das ocupações
humanas nessa Região remonta à fase Mina53, 3.000 a 1.600 anos a.C (QUARESMA, 2000, p.
103). Estes Sambaquis estão quase todos destruídos uma vez que desde o período colonial tais
depositórios eram utilizados como matéria-prima para a produção de cal e hoje, mesmo
tombados como Patrimônio Histórico pela lei 3.924, de 26 de julho de 1961 de proteção dos
jazidos pré-históricos brasileiros, que inclui os monumentos arqueológicos e pré-histórico, a
destruição continua. Sobre as primeiras ocupações na região, Quaresma (2000) ainda fala:

Tais sítios pertenceram a grupos humanos denominados Pescadores-


Coletores de Molusco, e posteriormente, foram substituídos por Agricultores
Incipientes e Horticultores da Floresta. Com o processo de ocupação
europeia, estas áreas foram transformadas através de edificações de missões,
vilas, freguesias e cidades, tendo sido alteradas até mesmo suas feições
geográficas. (QUARESMA, 2000, p. 104).

Já a ocupação atual nas ilhas de Algodoal e Maiandeua data da primeira metade


do século XX, em meados dos anos de 1920, como entreposto de rancho de pesca e a partir
daí começou a formação dos vilarejos (QUARESMA, 2000).

Fortalezinha foi a primeira localidade que recebeu as ações do projeto Patrimônios


(In) Visíveis. A escolha da Vila para realizar a pesquisa tem relação com meus laços afetivos
com o lugar e com as pessoas, pois a frequento desde 2002 e logo que conheci me chamou
muita atenção a beleza cênica de sua paisagem - cercada de mar, furos, mangue e floresta - e a
sua diversidade cultural. Com os estudos em Museologia, “campo de conhecimento que

52
Sítios arqueológicos construídos por depósitos artificiais de conchas acumuladas durante séculos por grupos
indígenas que dependiam da coleta de mariscos e que se ocupavam paralelamente da pesca, caça e cultivo de
raízes. Tais depósitos localizam-se em praias de mar, rios, baías e mangues. Quaresma (apud OLIVEIRA, 1983,
p.165).
53
Fase caracterizada por uma cerâmica utilitária e simples, de manufatura acordelada, temperada com conchas
moídas (Mina simples) e ocasionalmente areia (Tijuco simples). (QUARESMA, 2000, p. 103).

621
estuda, entre outras coisas, as relações entre o ser humano e o mundo que o cerca por meio
dos seus bens culturais” (COSTA, 2012, p. 92), fiquei instigada com a possibilidade de saber
o quê a própria comunidade consideraria os seus patrimônios e qual seria os bens culturais
que mais identificaria a comunidade, segundo os próprios moradores.

Sobre o nome da Vila, “esta denominação está ligada a construção de uma


fortaleza em pedra com formato circular, erguida por frades missionários do século passado54”
(QUARESMA, 2000, P. 147). Pude confirmar este fato através das histórias contadas pelos
meus interlocutores durante o processo de pesquisa, porém, há muitas controvérsias em
relação à fortaleza de pedra que existiu outrora naquela localidade, fazendo-se necessária uma
investigação mais apurada dos fatos, e não era o meu objetivo naquele momento.

A Casa de Pedra é uma referência cultural de Fortalezinha e foi eleita pelos moradores
de Fortalezinha como um de seus patrimônios culturais. Por se tratar de uma arquitetura única
na Vila, tanto pelo seu formato físico quanto pelos simbolismos a que ela remete, essa
construção está na memória dos moradores desde os mais antigos aos mais jovens.

Contam alguns que essa construção foi feita a partir de retiradas de uma formação
natural de pedra que abeirava todo barranco onde ela está localizada. Este barranco tinha uma
cabeça de pedra gigante que parecia uma fortaleza e os antigos frades missionários que
habitaram o local, utilizaram-na como front de defesa do território. Manoel Teixeira
(Maneco), 44 anos, morador e nativo da Vila, contou-me assim:

[...] Porque Fortaleza, na verdade, a origem do nome Fortalezinha vem pela


fortaleza de pedra que tinha, e a casa de pedra foi feita com as pedras da
fortaleza que existia e ainda existe. Se tu vê, perto da casa de pedra tem uma
parte alta. Lá existia uma fortaleza [...] que dali aos poucos foi se perdendo
essa fortaleza, porque tiraram muitas pedras de lá pra construção. Se tivesse
preservado até hoje essa fortaleza ainda existia. Na época que a mamãe
conheceu Fortalezinha ainda tinha lá uma fortaleza de pedra [...].

54
A autora refere-se ao século XIX, pois sua pesquisa foi desenvolvida durante os anos de 1998 e 1999.

622
Figuras 1 e 2 – Casa de Pedra. Pode ser considerada um sítio histórico e/ou um sítio arqueológico. Sítios
históricos se caracterizam por vestígios que indicam a presença dos colonizadores europeus, por meio de
construções como igrejas, fortalezas, prédios coloniais, engenhos, etc.
Fonte: Flávia Souza/ 2015

Por meio da oralidade, essas histórias são repassadas de geração a geração e


ajudam a recontar a história da própria vila, sendo esta construção uma portadora da memória
do lugar. Assim como esta, outras construções que indicam a presença de colonizadores
europeus estão presentes na Ilha de Maiandeua, como é o caso da camboa de pedra na Vila de
Camboinha, cujas histórias ainda estão sendo coletadas.

Para mapear as referências culturais da comunidade, utilizei como base o


Inventário Nacional de Referências Culturais: manual de aplicação (IPHAN, 2000), quando
este aborda sobre referências culturais. Para iniciar o diálogo, perguntava: Quais as principais
manifestações culturais que você ou srº. (a) identifica na comunidade?”. Dava um tempo para
a pessoa pensar e depois dizia que as manifestações culturais ou referências culturais de um
povo são as festas, as celebrações, as paisagens naturais ou não, as atividades de trabalho e os
modos de fazer e saber, as construções, as artes, a memória, os lugares e a vida social.

A partir das identificações, fazia a próxima pergunta: “Qual o maior patrimônio,


na sua opinião, dentre essas referências culturais da comunidade? Qual o maior símbolo que
identifica a Vila? Ou seja, qual a construção, festa, lugar, fazer, saber, atividade, que mais

623
identifica a Fortalezinha?” Para os mais velhos e para as crianças55, acrescentava: “o que é
que é a cara da Fortalezinha? O que é que mais gostas daqui da Vila?”, acrescentava ainda
que patrimônio é aquilo que nos pertence, aquilo que a gente se identifica e quer preservar, e
que é importante para todos.

Após a análise das entrevistas, as referências culturais identificadas pela


comunidade foram divididas conforme os conceitos de patrimônio histórico, patrimônio
natural e patrimônio imaterial, ressaltando que todas estas apreensões incluem-se na categoria
de Patrimônio Cultural.

Além da casa de Pedra os demais bens culturais da Vila de Fortalezinha


identificadas pela comunidade foram: Patrimônios históricos: ruínas da antiga igreja Estrela
do Mar; Patrimônio Natural: a praia, a paisagem e o paraíso dos coqueiros; Patrimônios
imateriais: a arquitetura nativa, a cerâmica com argila, o ritual de iluminação do Cemitério no
dia de Finados, o carimbó, a pesca, o surf, as brincadeiras infantis, o Espaço Cidadão Tio
Milico, o Clube de Mães e as memórias dos velhos. A “Memória dos velhos56” de
Fortalezinha, ou ainda, “Os velhos e suas memórias”, foram consideradas no projeto como
patrimônios vivos da comunidade, devido à importância de suas narrativas como uma forma
de manter viva a história do lugar.

Patrimônios (In) Visiveis – A exposição

O principal objetivo do projeto PI é desenvolver uma exposição museológica


calcada em dois processos: investigações artística e acadêmica, sendo a exposição o fruto
desses processos que envolve a participação da comunidade com a intenção de produzir um
conhecimento novo, em interação com esta, um conhecimento de mão dupla
(Universidade/Sociedade). A partir dos diálogos e trocas de saberes sobre patrimônio cultural,
55
As crianças participaram através de desenhos desenvolvidos durante as oficinas de educação patrimonial.
56
Uma referência ao termo usado por Ecléa Bosi (2012) no livro “Memória e Sociedade. Lembrança de Velho”.
São Paulo: Companhia das Letras. 2012.

624
chega-se a um resultado, cujo qual é a principal base para a construção da narrativa da
exposição.

Ao produzir esse conhecimento sobre os patrimônios das comunidades, que são


identificados por elas próprias, de acordo com suas referências culturais (saberes, viveres,
memórias, cotidiano), têm-se um repertório cultural passível de musealização, ou seja,
salvaguarda e comunicação. Dessa forma, consegue-se aliar os estudos acadêmicos às práticas
museológicas, estendendo-os para além da universidade e de espaços institucionalizados.

Referindo-me ao primeiro ano da pesquisa na Ilha de Mainadeua, foi usando


metodologia participativa que envolveu observação e convívio prolongado na Vila de
Fortalezinha (Observação), horas de entrevistas gravadas e conversas informais (Diálogos),
registro fotográfico de todos os processos da pesquisa (Registro), análise crítica das
entrevistas e interpretação dos dados para registro imagético dos patrimônios eleitos
(Apropriação), chegou-se a narrativa da exposição Patrimônios (In) Visíveis – Fortalezinha
(Exposição). E, após o processo curatorial57, escolha de suporte expositivo, e ainda, projeto
gráfico da exposição, os patrimônios culturais de Fortalezinha foram apresentados à
comunidade e visitantes da Ilha em treze painéis tipo banners contendo textos e imagens,
medindo 0,70 cm de (largura) x 1,20 cm (altura), conforme imagens a seguir:

57
Refiro-me seleção das imagens para a exposição. O termo “curadoria” remete-se a atividade do “curador”, e
dentre outros definições e sentidos para estes substantivos, no projeto o termo curadoria é entendido como “o
processo de organização e montagem de exposição” (BITTENCOURT, 2008, p.4). Para melhor compreensão
dos termos, ver: PORTUGAL, Academia das Ciências de Lisboa. Dicionário...Op. cit. Verbete “Curador”, vol. 1,
p. 1046. (apud, BITTENCOURT, 2008, p.4).

625
Figuras 3 e 4 – Painéis da Exposição Patrimônios (In) Visíveis – Fortalezinha
Fonte: Projeto Patrimônios (In) Visíveis

Figuras 5 e 6 – Painéis da Exposição Patrimônios (In) Visíveis – Fortalezinha


Fonte: Projeto Patrimônios (In) Visíveis

626
Não foram coletados objetos propriamente ditos, para que, na perspectiva da
museologia clássica, fossem desenvolvidos os devidos procedimentos de estudo,
documentação, conservação e armazenamento dos mesmos. Os patrimônios apresentados,
acrescento, não foram musealizados e nem oficialmente patrimonializados, logo, a exposição
pode representar uma forma de salvaguarda desse patrimônio local, pois, o conteúdo gerado a
partir das narrativas dos moradores em conjunto com as imagens, formam um documento
memorial da Vila relacionados à identificação e consequentemente valorização desse
repertório patrimonial.

Além do mais, os painéis expositivos evocam o potencial educativo dos


patrimônios culturais, pois convocam a face investigativa da cultura “que se traduz na análise
e saberes, conhecimentos, festejos e celebrações que fazem parte do universo cultural dos
sujeitos participantes do ato educativo” (LACERDA; FIGUEIREDO; PEREIRA; SILVA,
2015, p.18) e reforçam a ideia de identidade destes. Em outras palavras, os bens culturais,
após identificados, são ferramentas para um trabalho de educação patrimonial e provocam
situações de aprendizado sobre os processos culturais vividos pelos grupos sociais que os
detém.

Como forma de movimentar o acervo criado a partir da pesquisa, e que faz parte
do trabalho de um museólogo, outras formas de expor e de trabalhar com esse material
também podem ser concebidas, como recriar leituras para a narrativa expográfica em outros
espaços e com outros materiais, bem como também servir como premissa para a criação de
um museu comunitário na Ilha de Maiandeua onde se possam conhecer uma parte da história
e cultura local e, ao mesmo tempo, ser um lugar importante para a preservação das
identidades e referências culturais dos moradores, ajudando inclusive a movimentar a
economia com um turismo responsável e sustentável.

627
Um Museu para a Ilha de Maindeua

A criação de um museu na Ilha de Maiandeua, inspirado nos termos definidos na


Declaração de Santiago (1972) como Museu Integral, traria às suas comunidades mais
subsídios para a identificação e a visão de conjunto de seu meio cultural seria de grande valia,
penso, para que este grupo social detenha o conhecimento crítico e se aproprie de forma
consciente de seus patrimônios, fortalecendo seus sentimentos de identidade e cidadania.

Nesse sentido, os museus, que são instituições que buscam representar a diversidade
cultural e natural de determinados grupos sociais e assumem um papel essencial na proteção,
preservação e transmissão do patrimônio, podem também ser instrumento fundamental para a
cultura, educação, organização social e o desenvolvimento autossustentável das comunidades
que o detém, assim como para estratégias de fomento do setor turístico, visto que museus são
atrações turísticas e o turismo é um meio eficaz de propagar a nossa cultura e movimentar a
economia de um dado local.

A Ilha de Maiandeua é um lugar que recebe muitos turistas, e este turismo pode
ganhar reforço com a criação de um museu que preserve sua cultura e conte as suas histórias.
A patrimonialização de seus bens, com o auxilio da Museologia, através de suas atribuições,
pode ajudar a salvaguardar elementos do cotidiano, memórias coletivas, fazeres, saberes e
outros elementos idiossincráticos tradicionais que formam os seus patrimônios culturais.

A identificação desse conjunto de referências culturais traz também outra reflexão


a respeito do patrimônio, que é sobre o papel que ele pode desempenhar na melhoria dos
aspectos econômico-socioculturais de um grupo social. Segundo Hugues de Varine (2013), o
patrimônio, seja material ou imaterial, “é um solo fértil para o desenvolvimento local”, uma
fonte rica em nutrientes, o húmus para o desenvolvimento local de uma comunidade, pois,
nessa terra contem: o solo, a paisagem, a memória e os modos de vida dos habitantes, as
construções, bem como todo tipo de produção de bens e serviços adaptados às demandas e às

628
necessidades das pessoas. Portanto, as raízes deste desenvolvimento devem se nutrir nessa
terra fértil que é o patrimônio local.

A partir do mapeamento dos bens culturais identificados pelos seus próprios


detentores, pode – se buscar políticas públicas para a sua proteção e promoção integradas à
coerção social do grupo em questão, ou seja, um desenvolvimento local visto pela perspectiva
do patrimônio, conforme preconizou Hugues de Varine (2013).

A construção dialógica do conhecimento acerca das referências culturais da Vila de


Fortalezinha e que culminou na criação de documento memorial da Vila (produzido por meio
de anotações, fotografias, desenhos e entrevistas gravadas em áudio) e narrativa da exposição
em questão, pode ser analisada também como uma forma de inventário de tais referências, e
que contou com a participação dos moradores locais.

Segundo o IPHAN (2016), “documentar é produzir conhecimento sobre as referências


culturais pesquisadas, o que é fundamental para preservá-la e difundi-la” (IPHAN, 2016, p.
19) e “inventariar é um modo de pesquisar, coletar e organizar informações sobre algo que se
quer conhecer melhor” (IPHAN, 2016, p. 07).

Sobre inventário participativo, Hugues de Varine (2013) defende que:

“No essencial, trata-se de escutar os habitantes e de lhes designar aquilo que


consideram como sendo patrimônio de sua comunidade e de fornecer o
maior número de informações sobre o assunto. Isto para que se constitua a
base de um corpus patrimonial que poderá, em seguida, mas somente em
seguida, ser enriquecida por pesquisas científicas, históricas ou
administrativas mais apropriadas” (VARINE, 2013, P.54).

Portanto, a criação de um museu comunitário na Ilha de Maiandeua, debate já travado


com os moradores de Fortalezinha durante o processo de pesquisa na Vila e que agora está

629
sendo dialogado com os moradores das comunidades de Camboinha e Mocooca, faz-se
necessário para a salvaguarda e comunicação desses “corpus patrimoniais” (VARINE, 2013)
que está sendo identificado e documentado através da pesquisa em questão.

Considerações Finais

Embora a iniciativa da criação de um museu comunitário na Ilha de Maiandeua não


parta, inicialmente, da própria comunidade, o trabalho que vem sendo desenvolvido nas
comunidades da referida ilha oferece subsídios e reflexões para acreditar que este museu,
independente de sua tipologia, pode contribuir para a promoção do desenvolvimento sócio-
econômico-cultural dos moradores da Ilha e para um turismo sustentável, bem como para a
preservação de seus bens culturais, fato que me motivou a pensar nesse museu como um dos
desdobramentos do projeto Patrimônios (In) Visíveis – a fotografia documental como
processo de investigação artística.

Ao escrevê-lo, a intenção inicial era descobrir e fotografar, “patrimônios


invisibilisados”, “não oficiais”, e torná-los visíveis pelo ato fotográfico, apresentando-os
posteriormente através de uma exposição museológica com o intuito de salvaguardar esses
patrimônios.

Porém, a vivência, a escuta, os diálogos e as trocas de saberes, aliados aos estudos na


área da Museologia Social e do Patrimônio me fizeram perceber, no caso da pesquisa em
Fortalezinha, que estimular a própria comunidade a identificar, valorizar e preservar suas
referências culturais e definir a partir dessas referências o que lhe afeta como patrimônio vai
muito além de apenas “descobrir e fotografar” patrimônios e apresentá-los através de uma
exposição.

Os processos de trabalho na Ilha têm me mostrado na prática o quanto a Museologia


pode contribuir para que determinados grupos sociais se desenvolvam sócio-
economicamente. Portanto, foram e são as reflexões acerca das experiências vividas nas

630
comunidades trabalhadas que me sensibilizaram a pensar num museu para a Ilha de
Maiandeua.

Vale ressaltar que a iniciativa do projeto não teve ou tem a intenção de servir de
instrumento de identificação, legitimação e/ou reconhecimento oficial de patrimônio, mas
pode auxiliar a comunidade a reivindicar políticas de proteção patrimonial que abranja às suas
especificidades e lhe garanta desenvolvimento sócio-econômico-cultural, ao mesmo tempo
que os seus resultados podem “contribuir para o aprimoramento do papel do Estado na
preservação e valorização das referências culturais brasileiras, assim como servir de fonte de
estudos e experiências no contínuo processo de aprendizado” (IPHAN, 2016, p. 07).

Na prática, o resultado exposto em Fortalezinha, fruto das investigações artística e


acadêmica sobre patrimônios culturais de um pequeno grupo social se tornou também uma
forma de produzir um acervo sobre a comunidade, constituído por gravações em áudio das
narrativas dos moradores entrevistados e imagens fotográficas, tornando-se assim um
documento memorial da Vila, passível de musealização e patrimonialização, podendo ser
também compartilhado com demais campos do conhecimento e servir como premissa para a
criação de um museu comunitário.

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local. Hugues de Varine; trad. Maria de Loudes Parreiras Horta. Porto Alegre: Medianiz,
2013.

632
BRASÍLIA SOB A ÓTICA DA MUSEOLOGIA SOCIAL: ESTUDO DE CASO DA
RESTAURAÇÃO DA IGREJINHA NOSSA SENHORA DE FÁTIMA

Meiriluce Santos Perpetuo*


Heloisa Helena F. Gonçalves da Costa**

Resumo: Pensada durante um século e meio e, finalmente, construída por Juscelino Kubitscheck entre
1957 e 1960, Brasília é resultado de um projeto modernista ímpar no cenário mundial, sendo
considerada um museu a céu aberto. De autoria do arquiteto e urbanista Lucio Costa, com um conjunto
de obras consagradas do também arquiteto Oscar Niemeyer e de artistas que marcaram o movimento
modernista, a cidade reúne um singular conjunto arquitetônico e artístico, cuja originalidade e beleza
lhe rendeu o título de Patrimônio Cultural da Humanidade, concedido em 1987 pela Organização das
Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO). Entretanto, em 2008, a cidade se viu
sob o risco de perder tal status, passando a figurar na lista dos bens ameaçados, após denuncia do
Comitê Nacional do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (Icomos/Brasil) à UNESCO, por
meio do documento Ameaças à Brasília, Patrimônio Cultural da Humanidade. A preocupação é
compreensível, uma vez que são evidentes perdas e alterações, tanto no plano urbanístico, quanto em
monumentos e obras de arte pontuais espalhados pela cidade. Diante disso, é apresentado o
emblemático caso da restauração da Igrejinha Nossa Senhora de Fátima - aqui tratada como um objeto
museológico -, com a substituição de um afresco do italiano Alfredo Volpi (1869-1988), perdido em
circunstâncias controversas e não esclarecidas, e substituído por outro do artista local, Francisco
Galeno, fato que gerou conflitos entre o Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e a
comunidade. Tecendo reflexões acerca dos desafios das cidades musealizadas, considerando os
significados simbólicos que os monumentos e objetos detêm e dialogando com os conceitos e
perspectivas teóricas relacionados à Museologia Social, a proposta tem como objetivo geral o estudo
Brasília um museu a céu aberto, demonstrando que o patrimônio se insere na memória popular,
integrado-se à sociedade e promovendo processos de identidade e cidadania.
Palavras-chave: Brasília; Igrejinha Nossa Senhora de Fátima; Restauração; Museologia Social.

Abstract: Imagined for a century and a half and finally built by Juscelino Kubitschek between 1957
and 1960, Brasilia is the result of a modernist project that remains unique all over the world, also
considered an open air museum. Designed by architect and urbanist Lucio Costa, with a set of
renowned works by architect Oscar Niemeyer and other artists that have marked the modernist
movement, the city, the city brings together a remarkable architectural and artistical ensemble, which
originality and beauty has earned it the inclusion on the World Heritage List, granted in 1987 by the
United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (UNESCO). However, in 2008, the
city found itself at risk of losing such status after going to the list of World Heritage in Danger, after a
denunciation of the National Committee of the International Council of Monuments and Sites
(Icomos/Brazil) to UNESCO, by means of the document entitled Ameaças à Brasília, Patrimônio
Cultural da Humanidade. The concern is understandable, since the losses and changes are evident,

633
from its urbanistic design to monuments and works of art scattered throughout the city. In view of this,
this work presents the emblematic case of the restoration of the Igrejinha Nossa Senhora de Fátima -
treated here as a museological object -, with the replacement of a fresco by Italian artist Alfredo Volpi
(1869-1988), which got lost under controversial and unclarified circumstances, by another work by
local artist Francisco Galeno, a fact that generated conflicts between IPHAN (National Institute of
Historic and Artistic Heritage) and the population. Reflecting on the challenges of musealized cities,
considering the symbolic meanings that monuments and objects have, and dialoguing with the
concepts and theoretical perspectives related to Social Museology, the proposal has as its main general
objective the study of Brasilia as an open air museum, demonstrating that the heritage in inserted in
the popular memory, integrating itself with society and promoting processes of identity and
citizenship.
Keywords: Brasilia; Igrejinha Nossa Senhora de Fátima; Restoration; Social Museology.

634
De acordo com o historiador Laurent Vidal (2009), o projeto de uma cidade ideal
permeou o imaginário de muitos, sendo retomado em vários períodos da história do Brasil. As
justificativas giravam em torno de vários motivos, entre eles: a necessidade de utilização das
potencialidades econômicas e comerciais da região central do Brasil; a valorização e
integração do país por meio do povoamento; a criação de um sistema de comunicações
ligando os territórios; e a proteção do centro do poder, já que a proximidade com o litoral a
tornava vulnerável.
A construção da sonhada capital do Brasil, entretanto, só foi concretizada em 1960,
pelo presidente Juscelino Kubitschek. O projeto, de autoria do Arquiteto e urbanista Lucio
Costa, foi vencedor de um concurso internacional promovido para construção da cidade, em
1957. A definição da concepção idealizada por Lucio Costa foi criar uma cidade com dupla
dimensão material e discursiva, concebida com intenção política, social e artística, com
relações "filosóficas e simbólicas com a totalidade do mundo e do cosmos" (VIDAL, 2009, p.
15), um espaço de convivência social, pensado em todos os detalhes possíveis para garantir a
qualidade de vida de seus habitantes. Vidal (2009) destaca que a cidade surgiu por definição
de uma ideia que previa a construção de uma nação com memória e identidade, representada
por uma comunidade que se pretendia espacializar, um “projeto de sociedade” (VIDAL, 2009,
p. 18), segundo Costa, que permitisse a convivência de pessoas de padrões econômicos
diferentes sem que houvesse constrangimento por nenhuma das partes, por isso concebeu cada
área de vizinhança constituída por quatro superquadras, tendo cada quadra apenas moradores
de um determinado padrão. Assim, ele acreditava que as diferenças do status econômico não
seriam tão delimitadamente marcantes, já que a cidade não ficaria estratificada em áreas
rigidamente diferenciadas, apresentando, na prática, a possibilidade de coexistência urbana
das classes como solução para o regime capitalista.

635
A singularidade de suas formas arquitetônicas tornou-a única. O plano urbanístico
inovador e futurista de Oscar Niemeyer58 e Lúcio Costa, na sutil aparente leveza do concreto,
a organização das ruas, as imensas alamedas arborizadas, as obras de artistas modernistas
espalhadas pela cidade, destacando Marianne Peretti, Athos Bulcão, Volpi, Dante Croce,
Alfredo Ceschiatti, Di Cavalcanti, Fayga Ostrower, Carybé, Maria Bonomi, Bruno Giorgi,
Honório Peçanha, José Alves Pedroza, entre outros, conferiram a Brasília destaque no cenário
mundial, ao ser eleita, pela UNESCO59, como Patrimônio Cultural da Humanidade,
considerando seu “Valor Universal Excepcional”. O título, de acordo com o Grupo Urbanistas
por Brasília60, representou uma inédita e grande façanha por ter alterado os parâmetros de
avaliação da UNESCO, distinguindo-se como monumento contemporâneo. Até então, o
reconhecimento alcançava somente monumentos do passado como as Pirâmides do Egito, a
Grande Muralha da China, a Acrópole de Atenas (Grécia), o Centro Histórico de Roma
(Itália) e o Palácio de Versalhes (França).

O Conjunto Urbanístico de Brasília foi inscrito no Livro do Tombo Histórico em


199061, abrangendo, essencialmente, o caráter urbanístico, não o arquitetônico62. Isso significa

58
Oscar Niemeyer, arquiteto e urbanista brasileiro, foi eleito o 9º maior gênio vivo e um dos nomes mais
importantes da arquitetura moderna mundial, tendo recebido os principais prêmios da arquitetura. O Brasil se
destacou na história da arquitetura internacional graças a Niemeyer. Seus projetos, considerados prédios-
esculturas, estão distribuídos em mais de 600 em países, entre eles, Estados Unidos, França, Espanha, Alemanha,
Argélia, Itália Israel. Foi responsável pelas principais obras de Brasília, agora tombadas pelo IPHAN. Ver Oscar
Niemeyer http://www.terra.com.br/noticias/infograficos/oscar-niemeyer/
59
A importância do título da Unesco é destacada pelo grupo Urbanistas por Brasília, formado por arquitetos e
urbanistas que se uniram em defesa do Conjunto Urbanístico, Arquitetônico e Paisagístico da Capital. O grupo se
organiza por meio das redes sociais, difundindo informações técnicas sobre temas sensíveis à cidade,
considerando sua importância como Patrimônio Cultural da Humanidade. Disponível em:
https://urbanistasporbrasilia.wordpress.com/2014/12/07/a-importancia-do-titulo-para-brasilia/. Acesso em: 18
mai. 2017.
60 Idem.
61
Ver Portaria Nº 166, de 11 de maio de 2016 (Republicada no DOU nº 91, de 13 de maio de 2016, seção 1, p.
31, com as retificações publicadas no DOU nº 96, de 20 de maio de 2016, seção 1, p. 13-14), que estabelece a
complementação e o detalhamento da Portaria nº 314/1992, assinada pela Presidenta do Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional - Iphan, Jurema de Sousa Machado.

636
que não há tombamento específico (individual) de prédios, à exceção de poucos edifícios
tombados individualmente, em sua maioria, aqueles projetados pelo arquiteto Oscar
Niemeyer. Assim, a proteção federal (tombamento histórico) abrange a concepção urbana da
cidade em suas quatro escalas urbanísticas – monumental, gregária, residencial e bucólica, de
forma que, conforme estabelece a Portaria nº 314/92, o que deve ser preservado em Brasília
são as características e a articulação dessas quatro escalas.
Em 2008, foram relatados problemas preocupantes para preservação do título,
levando os presidentes e membros dos comitês nacionais do Icomos a apresentarem à Unesco,
o documento Ameaças à Brasília, Patrimônio Cultural da Humanidade63. Os problemas mais
evidentes estão relacionados à fragilidade de políticas de preservação, crescimento
demográfico acelerado, especulação imobiliária, interferência de interesses políticos e
privados e falta de pessoal especializado.

Um caso emblemático é o da Igrejinha Nossa Senhora de Fátima ou Capela Nossa


Senhora de Fátima (Figura 1). Localizada nas entrequadras 307/308 Sul, foi a primeira igreja
em alvenaria da cidade, construída em 100 dias e inaugurada em 1958, um projeto de
Niemeyer, a pedido de JK, em pagamento a uma promessa feita por dona Sarah Kubitschek
em agradecimento à cura de sua filha, que teria sido acometida por grave doença. Foi uma
construção pioneira e também a primeira obra composta pela azulejaria de Athos Bulcão64. A

62Nesse caso, ver Tombamento e Intervenções, disponível na página oficial do Iphan - Distrito
Federal http://portal.iphan.gov.br/df/pagina/detalhes/618
63
Ver Moção apresentada à Unesco pelos presidentes e membros dos comitês nacionais do Icomos, em
2008, no fórum internacional Icomos Américas, por meio do documento Ameaças à Brasília, Patrimônio
Cultural da Humanidade. Disponível em:
<http://www.icomos.org.br/outras_noticias/Ameacas_a_Brasilia_Patrimonio_Cultural_da_Humanidade.pdf>.
Acesso em: 30 jan. 2017
64
Athos Bulcão (1918 - 2008) , reconhecido como o “artista de Brasília”, por seus mais de 50 trabalhos
espalhados por lugares como escolas, mercados, órgãos públicos, praças, museus, templos e ruas ao alcance dos
passantes da cidade, tendo como público o cidadão, o passante, que se beneficia da estética, cor e simplicidade
de sua obra se destacando por sua capacidade de integração entre arte e arquitetura, conferindo leveza e
dinamismo aos espaços coloridos por seus trabalhos em azulejaria, com temáticas geométricas e cheias de cores.
Ver Carolina Grippa, em Athos Bulcão: a obra de arte no cotidiano. Disponível em:
<http://www.hacer.com.br/#!athos-bulcao/wpqu4>. Acesso em: 30 ago. 2017.

637
igreja teve tombamento federal e distrital instituído pelo IPHAN em 1982, incluindo os
jardins externos, mobiliário original, a fachada azulejada e demais bens integrados.

A edificação é constituída por uma pequena nave, sacristia e secretaria. A estrutura,


em concreto armado, é definida por três pilares que sustentam a laje de cobertura, dando ao
templo o formato de um chapéu de freira. O interior, inicialmente, era decorado com uma
sequência de pequenos quadros de Volpi, retratando a Via Sacra, tendo ao fundo uma imagem
de Nossa Senhora de Fátima, flutuando em ascensão, com o Menino Jesus no colo, cercada
nas extremidades por uma sequência vertical de bandeirinhas coloridas (figura 2). Na parede
lateral, outro grande afresco do artista continha elementos de fachadas, arcos e bandeiras
(figura 3), características da linguagem plástica de Volpi.
As paredes externas, revestidas com os azulejos de Athos Bulcão, são o único
trabalho figurativo na azulejaria do artista, com a pomba representando o Espírito Santo e a
Estrela Guia que conduziu os três Reis Magos até o Menino Jesus.

Figura 1 - Fachada da Igrejinha

Fonte: a própria autora

638
Figura 2 - Pintura de Volpi no interior da Igrejinha

Fonte: Arquivo Público do Distrito Federal. Fotógrafo não identificado.

Figura 03 - Pintura de Volpi no interior da Igrejinha

Fonte: Arquivo Público do Distrito Federal. Fotógrafo não identificado.

Uma obra realizada para restauração da Igrejinha, como é popularmente chamada, é


um caso simbólico que permite discutir a relação estabelecida entre comunidade e patrimônio.
A obra teve início em 2009 e foi supervisionada pelo IPHAN, que encontrou problemas para
restaurar o aspecto original da pintura de Volpi. De acordo com o historiador Pedro
Mastrobuono65, presidente do Instituto Volpi, há divergência de versões acerca do que teria
acontecido com a obra original do artista, justificando:

65Pedro Mastrobuono, em matéria publicada no jornal O Estadão, em 18 Fevereiro 2017 :Descaso com o
patrimônio cultural vitima obras de Volpi. Afrescos destruídos, telas extraviadas ou adulteradas e obras
danificadas esperando restauro demonstram inércia do poder público no setor cultural.

639
Seja por considerar as bandeirinhas “profanas”; pela falta de pés na figura de
Nossa Senhora; ou ainda por entender que, na devoção mariana de Nossa
Senhora de Fátima, a Virgem não carregaria o Menino Jesus no colo; certo
padre, anos depois, incomodado, mandou simplesmente raspar os afrescos e
pintou as paredes de branco. Há apenas alguns poucos registros fotográficos
de tais no catálogo raisonné do artista. (MASTROBUONO, 2017)66

Durante a reforma, parte dos azulejos de Athos Bulcão foram trocados por réplicas, e
os painéis de Volpi substituídos porque a pintura anterior teria sido total e irremediavelmente
destruída, conforme declaração do superintendente do Instituto de Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional do Distrito Federal (Iphan-DF) à época, Alfredo Gastal, e do arquiteto
Rogério Carvalho67 publicada no jornal Correio Braziliense:
Com a tecnologia até agora disponível, a recuperação da obra do italiano seria
impossível. A destruição dos painéis coloridos e lúdicos de Alfredo Volpi foi
muito bem-feita, nas palavras de Alfredo Gastal. Antes de cobrir as imagens
com demãos de tinta, elas foram raspadas e lixadas. Não existe, segundo
Rogério Carvalho, um esboço colorido da obra. "Cheguei a pensar em
reproduzir as imagens do único registro fotográfico existente do esboço do
artista, o da revista Módulo, porém sabia que nunca conseguiria fazer com que
alguém conseguisse o ritmo das pinceladas de Volpi e nunca teria certeza das
cores que ele utilizou. Seria fake", diz o arquiteto (FREITAS, 2009)68

A pintura do artista Francisco Galeno, que retrata Nossa Senhora de Fátima sem
rosto e com uma pipa nas mãos, provocou insatisfação e revolta entre moradores,
comerciantes e fiéis que frequentavam a Igrejinha, que alegaram não gostar nem se sentir
representados pela nova pintura, de modo que recorreram ao Ministério Público Federal
(MPF) pedindo a paralisação da obra. O embargo foi atendido, mas posteriormente suspenso.
Gastal comemorou, afirmando: “A arte vai vencer o obscurantismo” (FREITAS, 2009), e a
obra foi retomada.

66
Idem.
67
Matéria publicada no jornal Correio Braziliense, em 27/06/2009: Polêmica na Igrejinha tem mobilização em
duas frentes. Por Conceição Freitas.
68
Idem.

640
Figura 04- Pintura de Francisco Galeno no interior da Igrejinha Nossa Senhora de Fátima

Fotógrafa: Meiriluce Santos

A mídia local, que deu ampla cobertura ao caso, destacou clamor geral entre os mais
antigos. Enquanto alguns não viram problema na restauração, outros reclamavam que a obra
tombada estaria sofrendo alterações, que deveriam ter buscado conservar o templo, não
mudar. De acordo com o Frei Odolir (MENEZES, 2010)69, a alteração teria sido uma
imposição, sem consulta à comunidade. Os fiéis ainda reclamaram do que interpretaram como
uma profanação do templo:

Ele (Galeno) está zombando do sagrado. Essas bandeiras e formas não


merecem estar dentro de uma igreja. São pinturas profanas', dispara a
professora Ana Angélica Ramos, 58 anos. "Não sou contra o artista, mas
considero que essas experimentações são inoportunas aqui”, pondera a dona
de casa Dalila Gonçalves. (FREITAS, 2009) 70

Gastal contesta que, apesar das pessoas de Brasília falarem em modernidade, alguns
grupos são formados por uma mentalidade medieval (FREITAS, 2009) e, se a princípio tinha
acatado a sugestão de suspender a obra, voltou atrás “Entendemos que, garantindo o término
da pintura, estamos cumprindo o nosso dever de proteger o patrimônio” (FREITAS, 2009). E

69 Matériapublicada no jornal Correio Braziliense, em 07/05/2010: Enfim, a paz reina na Igrejinha. Por
Leilane Menezes.
70
Idem.

641
apresentou uma segunda versão para a impossibilidade de recuperação dos afrescos de Volpi,
que teriam sido destruídos por um incidente ocorrido na década de 1960, quando três painéis
do artista, que nunca foram aceitos pelos fiéis, desapareceram.

A restauração da Igrejinha foi concluída em 2010, prevalecendo a posição do


IPHAN-DF, que afirmou tratar apenas de uma revitalização, comprometendo-se a retornar a
pintura do Volpi caso alguma tecnologia posteriormente permitisse (MENEZES, 2010)71.

A comunidade não teve mais como contestar, entretanto, é possível identificar o


nível de insatisfação com as medidas adotadas pelo Órgão, a ponto de vários fiéis terem
deixado de frequentar a igreja, procurando outros templos, conforme informou uma das
senhoras que ajuda na organização nas missas realizadas aos domingos na igreja. Sem querer
se identificar, ela afirmou que as discussões foram acaloradas, que também não concordava,
mas não ia deixar de frequentar a igreja, como os outros, por causa disso, mesmo não
gostando da nova intervenção.

A Igrejinha e a polêmica que envolveu sua restauração convergem com as


hipóteses de intervenção sobre os monumentos levantadas por Dodebei e Storino (2007): as
políticas de preservação/revitalização devem contar com o respaldo e a participação de
usuários, proprietários e outras pessoas envolvidas com o patrimônio; a formulação e
implementação de políticas de patrimônio devem reconhecer os valores, interesses e
opiniões de seus habitantes, que podem ter percepções distintas acerca da cidade, do
patrimônio e da intervenção do estado; e pode não haver concordância entre os critérios
que norteiam as práticas dos órgãos responsáveis pela preservação e as expectativas da
população. Assim, evidencia-se que os problemas do caso da Igrejinha não foram pontuais,
mas se desenvolveram como um tema a ser discutido no campo da Museologia Social.

71
Idem.

642
Conclusão

A proposta, em caráter preliminar, aborda uma pesquisa acadêmica ainda em


desenvolvimento, mas de relevância para discutir o aspecto da relação que se estabelece no
campo da Sociomuseologia. Enquanto museu a céu aberto, a cidade tem seu valor histórico e
artístico intrínseco, não existindo distanciamento entre espaço e os indivíduos que a habitam.

O surgimento de novos conceitos de museus tem ganhado reconhecimento e


incentivo diante de importantes instâncias da museologia como a Unesco e o Conselho
Internacional de Museus (Icom), traduzido no esforço que Mário Moutinho (1993) identificou
como adequação das estruturas museológicas às condições da sociedade contemporânea. O
assunto também foi tratado na Mesa Redonda de Santiago do Chile (1972), ao discutir o papel
dos museus no desenvolvimento da sociedade, e nas Recomendações Unesco (2015) em
conceitos mais amplos, representativos da diversidade natural e cultural da humanidade,
desempenhando função essencial na proteção, preservação e transmissão do patrimônio. O
museu distancia-se, assim, da instituição fechada, apropriadora, selecionadora e colecionadora
de objetos, inserindo-se numa nova concepção, de ideias contemporâneas, que consideram sua
consciência física e filosófica: "uma entidade aberta sobre o meio, consciente da sua relação
orgânica com o seu próprio contexto social" (MOUTINHO, p. 7, 1993), com função social,
crítica e interveniente, inserida no processo de desenvolvimento econômico, social e político.
Nesse contexto, surgiu como resultado da reunião no Chile, já referida, o conceito de museu
"integral", com participação da comunidade e voltado para preocupações de caráter social,
que seria sua "essência e razão de ser" (RIBEIRO, 1993, p. 16), um instrumento capaz de
mobilizar vontades e esforços para a resolução de problemas comuns no seio das
comunidades onde se encontra.

Inseridos e integrados na sociedade, promovendo processos de identidade e


cidadania, os monumentos exercem papel fundamental nas decisões políticas para salvaguarda
do patrimônio cultural. Cada um deles pode ser visto como "um objeto metonímico: um

643
artefato, uma coleção, um fato museal ou mesmo um fato social" (DODEBEI; STORINO,
2007, p. 278). As autoras, que tratam as cidades como espaços imaginados pelo homem,
portanto, de memória, afirmam que suas representações simbólicas podem ser um problema
na preservação das cidades, podendo haver truncamentos, embates e conflitos entre os órgãos
responsáveis pela preservação e a comunidade, interferindo na configuração dos espaços
físicos e simbólicos e catalisando uma guerra urbana de representação e lugares.

De acordo com Heloisa Costa (2012), os monumentos e objetos das cidades-museus


detêm significados simbólicos e se inserem na sociedade, integrando-se a ela, promovendo
processos de identidade e cidadania. A memória tem um papel fundamental nas decisões
políticas para salvaguarda do patrimônio cultural em benefício das cidades e a coletividade
atribui significados e produz o sentimento de pertencimento e proteção. Tomando como base
essa interpretação, é possível entender a relação que um povo estabelece com seu patrimônio.
No caso da Igrejinha Nossa Senhora de Fátima, reforça a importância que ela representa para
a comunidade, reforçada na forma como ela se organizou em sua defesa.

O estudo de caso da restauração da Igrejinha, tratada como um objeto museológico


dentro de uma coleção, “um conjunto de bens culturais e naturais, tangíveis e intangíveis, do
passado e do presente”, no contexto das Recomendações da Unesco (2015), possibilita
observar a complexidade dos desafios das cidades musealizadas, as dificuldades de conciliar
diferentes interesses e a inserção da comunidade nos processos de decisões. Uma das
orientações seria considerar as discussões da Recomendação da Unesco (2015) reconhecendo
os museus como fator de integração e coesão social; refletindo acerca das identidades
coletivas e entendendo que as decisões relativas às coleções devem levar em consideração as
normas éticas e profissionais estabelecidas pela comunidade museológica; e buscando
garantias para que a função dos museus seja exercida em conformidade com as normas legais
e profissionais de cada país.

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VIDAL, Laurent. De Nova Lisboa a Brasília. A invenção de uma capital (séculos XIX e
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646
O TEATRO DO OPRIMIDO COMO ESTRATÉGIA ÉTICA, ESTÉTICA E
POLÍTICA PARA A PROMOÇÃO DO MUSEU COMUNITÁRIO DA TERRA
FIRME.

Raphael Carmesin Gomes*


Rafael Ribeiro Cabral**

Resumo: O presente artigo objetiva apresentar uma atividade de extensão, em parceria com o Ponto
de Memória da Terra Firme, que tem o intuito de aplicar as técnicas do Teatro do Oprimido na
periferia de Belém, a fim de possibilitar a reflexão e solução dos fatos sociais apresentados
cenicamente como poética acessível a qualquer espec-tator. Por meio de jogos e exercícios
fundamentados no Teatro do Oprimido de Augusto Boal será possível documentar as reflexões e
soluções encontradas teatralmente. Dessa maneira, a atividade buscará fomentar o autoconhecimento
coletivo da comunidade e a conscientização dos moradores da Terra Firme, mediante a elaboração de
um discurso próprio dos sujeitos como forma de reflexão sobre a realidade vivida em seu contexto
local. Inicialmente, abordaremos o Teatro do Oprimido como síntese dialética entre o teatro burguês e
o teatro brechtiano. Posteriormente, será abordado o Museu Comunitário como superação da visão
tradicional de Museu. Concluir-se-á com a ideia de que o Teatro do Oprimido, dando voz aos
oprimidos, promove a construção do Museu Comunitário da Terra Firme.
Palavras-chave: Teatro do Oprimido; Museu Comunitário; Cidadania; Memória.

Abstract: The present paper goals to show an extension activity in partnership with the Ponto de
Memória da Terra Firme, that aims to apply the technique of the Theatre of the Opressed into the
outlying areas of Belém to make possible reflection and problem-solves of social facts showed
scenically as an acessible poetic to any spect-ator. Through games and exercises created by Augusto
Boal’s Theatre of Opressed will be possible to document the reflections and solutions found
theatrically. That way, the activity will to encourage the collective self-knowledge of community and
the awareness of residents at the Terra Firme, through elaboration of self-speech force of subjects as
ways of thinking about the real-life experience at local context. At the beginning, we approach the
Theatre of Opressed as a dialetic synthesis between the bourgeois theater and the Brechtian Theater.
Then, we will approach the Community Museum as overcoming of traditional vision of Museum. We
will conclude with the idea that the Theater of Opressed, giving voice to the oppressed, promote the
construction of Community Museum of Terra Firme.
Key-words: Theatre of the Opressed; Community Museum; Citizenship; Memory

647
Introdução
A estética do Teatro do oprimido foi desenvolvida por Augusto Boal na década de
1970, a partir de experiências no Peru. As ações faziam parte de um projeto de alfabetização
promovido pelo governo revolucionário peruano.
O Teatro do Oprimido possui como premissa fundamental ser um veículo de
transformação social em que as ações realizadas em cena são consideradas como um ensaio
teatral das mudanças desejadas no campo social, por meio da concretização cênica dos fatos
da sociedade.
Neste artigo, objetivamos apresentar o projeto de extensão intitulado “ENSAIANDO A
CIDADANIA: o Teatro do Oprimido como estratégia ética, estética e política nos bairros da
periferia de Belém”, um dos vencedores do Prêmio Proex de Arte e Cultura/2017, na
modalidade “Teatro”, o qual, em parceria com o Ponto de Memória da Terra Firme, terá como
sujeito-participante o morador do bairro da Terra Firme.
Tal projeto possui como embasamento teórico a Estética do Oprimido, por isso, para
compreendê-lo, será necessário, inicialmente, discutir-se como o Teatro do Oprimido se
configura como uma superação (síntese dialética) do conflito existente entre duas concepções
distintas de teatro: a idealista e a materialista. Desta forma, imprescindível será revisitar a
obra de Augusto Boal, a fim de compreender a especificidade de seu pensamento sobre o
fenômeno teatral.
Posteriormente, discutir-se-á a concepção de Museu Comunitário, também
dialeticamente, como uma superação da tensão entre “museu tradicional” do Ocidente
Moderno e os movimentos de contestação em torno da instituição museológica que surgiram,
principalmente, a partir da segunda metade do século XX.
Por fim, se estabelecerá o profícuo diálogo entre Teatro do Oprimido e Museu
Comunitário, tendo como realidade concreta o espaço de execução da atividade de extensão
supracitada, em articulação com o Ponto de Memória da Terra Firme.

648
É importante ressaltar que o projeto de extensão está em fase de planejamento, não
oferecendo dados precisos sobre a experiência dos sujeitos envolvidos. Desta forma, pelo
menos por enquanto, teremos que nos contentar com uma discussão mais teórica em torno das
expectativas que existem em torno do projeto, expressando ainda os seus marcos teóricos e
não os seus resultados.

1º Ato, o teatro do oprimido como superação dialética do teatro burguês e do teatro


brechtiano
Augusto Boal (1991), em seu “Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas” utiliza-
se da história do Teatro para se debruçar sobre um problema recorrente e profundo: o teatro
(as artes de uma forma geral) exige apenas a pura contemplação ou demanda uma ação, uma
visão de mundo, uma atitude política dos seres humanos?.
Para responder a esse questionamento o autor percorre uma longa trajetória de análise,
revisitando a tragédia grega, passando pelo teatro renascentista, chegando no teatro de Bertolt
Brecht até, por fim, destrinchar a sua Poética do Oprimido.
Na Grécia, mais precisamente em sua época democrática, Boal descreve a função
teatral da tragédia grega: provocar a catarse, estimular a empatia dos espectadores, excitando
os seus sentimentos de piedade e terror em relação ao herói trágico (ARISTÓTELES, 2003).
Boal diz que a inserção de um herói trágico, em contraposição às mais antigas manifestações
do teatro enquanto Coro, foi um sinal de aristocratização, pois “o herói trágico surge quando o
Estado começa a utilizar o teatro para fins políticos de coerção do povo” (1991, p. 48). Assim,
a exaltação de um indivíduo excepcional seria a exaltação do aristrocrata.
O teatrólogo denomina a concepção teatral aristotélica de “sistema trágico coercitivo
de Aristóteles”, no qual a empatia possui uma importância fundamental, pois é ela que vincula
ator e espectador em um vínculo emocional umbilical. Assim, o espectador sente como se
vivesse as mesmas emoções e sentimentos que se desenrolam no palco. Tal sistema teatral

649
coercitivo, diz Boal (1991), continua sendo usado até os nossos dias (no cinema, na TV, etc.),
dado a sua eficácia.
A crítica mais contundente ao “sistema teatral coercitivo de Aristóteles” é o seu poder
pedagogizante, isto é, é a sua capacidade de “frear o indivíduo, de adaptá-lo ao que preexiste”
(BOAL, 1991, p. 64). Isso aconteceria porque as tragédias objetivam a purgação do elemento
dissonante, do personagem que, vivendo valores não aceitos socialmente, sofre uma perda
(um “golpe do destino”) e restabelece-se, tão somente, se se purificar do vício ou do erro que
o condena (elemento de conformação política). Em suma, o teatro aristotélico “é um
instrumento eficaz para a correção dos homens capazes de modificar a sociedade” (BOAL,
1991, p. 74).
Augusto Boal (1991), ao se referir ao teatro burguês do Renascimento, em
contraposição ao teatro feudal, usa a expressão “Poética da virtú”. Esta poética é uma
retomada dos valores clássicos gregos e se pauta pela centralidade do indivíduo
(antropocentrismo), capaz de romper com o próprio destino por meio de sua racionalidade.
Neste espetáculo, o espectador continua ser passivo de emoções impingidas pela ação cênica,
vivenciando-as por meio da empatia, tendo como tábua de valores a ser seguido, os valores da
classe burguesa em ascensão (individualismo, empreendedorismo, racionalidade, etc.)
Poderíamos sintetizar a concepção teatral burguesa assim:

A sala está cheio de assentos: as poltronas e os camarotes. Isto indica que o


espaço “sala” está disposto para que alguns seres humanos – os que integram
o público – estejam sentados e, portanto, sem fazer mais nada senão ver. Em
troca, a cena é um espaço vazio, elevado a um nível mais alto que a sala, a
fim de que nela se movam outros seres humanos que não permanecem
quietos como o público, mas sim ativos, tão ativos que por isso se chamam
atores. [...] Com efeito, em comparação com o que fazemos o resto do dia,
quando estamos no teatro e nos convertemos em público não fazemos nada
ou pouco mais; deixamos que os atores nos façam – por exemplo, que nos
façam chorar, que nos façam rir. (ORTEGA Y GASSET, 2010, p. 32-33)

A dualidade firmada no teatro burguês, cuja origem remonta ao “sistema teatral


coercitivo de Aristóteles”, estabelece um limite intransponível entre sala e palco (espacial) e

650
público e ator (funcional), sendo que, nesta última cisão, “os espectadores veem e os atores se
fazem ver; estes são hiperativos e aqueles hiperpassivos” (ORTEGA Y GASSET, 2010, p. 48-
49).
Como antítese ao teatro burguês classista, alienador e passivo, Boal cita a Poética de
Bertolt Brecht, a partir da contribuição do pensamento marxista. Destaca assim a
contraposição entre a poética idealista, aqui representada pelo pensamento hegeliano, e a
poética brechtiana, no tocante à liberdade do personagem: “para Hegel, o personagem é
inteiramente livre que se trate da poesia lírica, épica ou dramática; para Brecht (e para Marx)
o personagem é objeto de forças sociais” (BOAL, 1991, p. 107).
Certamente esse contraste está fundado na contraposição ontológica entre a dialética
idealista e a dialética materialista, consubstanciada na seguinte pergunta: é a consciência dos
homens que determina o seu ser ou é o seu o ser social que determina a sua consciência?
(MARX, 2008).
Enquanto o teatro tradicional, burguês, idealista, transforma o espectador em um
receptáculo de emoções suscitadas pela encenação, Brecht intenta com a sua poética
transformar o espectador em um observador reflexivo, capaz de decidir, de conhecer para agir
(ROSENFELD, 2012).
Assim, Brecht tenta superar o espectador alienado que busca se identificar com o herói
teatral, transformando-o em espectador-observador da conjuntura social que se desenrola na
peça, utilizando-se da técnica do “distanciamento”.

Para Brecht, o distanciamento não é apenas um ato estético, mas, sim,


político: o efeito de estranhamento não se prende a uma nova percepção ou a
um efeito cômico, mas a uma desalienação ideológica. O distanciamento faz
a obra de arte passar do plano do seu procedimento estético ao da
responsabilidade ideológica da obra de arte. (PAVIS, 2007, p. 106)

Com Brecht, portanto, há uma superação do ideal burguês de teatro (e de arte), no qual
considerava-se o fazer teatral um exercício de genialidade, e o assistir ao espetáculo um mero
exercício de contemplação emocional, em prol de uma concepção político-ideológica de

651
teatro que desvele a exploração capitalista, o conflito de classes, o imperialismo, entre outras
temáticas que exsurgem da conjuntura socioeconômica, uma vez que a ação é determinada
pela função social que cumpre o personagem e o artista possui um compromisso com a
transformação da sociedade, com a formação das massas operárias, com o estímulo ao
inconformismo e à revolução, com a exposição das contradições inerentes a uma sociedade de
classes e a superação delas.
“É necessário insistir: o que Brecht não quer é que os espectadores continuem
pendurando o cérebro junto com o chapéu, antes de entrarem no teatro, como o fazem os
espectadores burgueses” (BOAL, 1991, p. 116).
Boal, em sua Poética do Oprimido, representa uma superação dialética da tensão
gerada pelo conflito entre o teatro burguês tradicional e o teatro brechtiano. O teatrólogo
brasileiro se apropriou dos efeitos teatrais de ambas correntes de pensamento, rompeu com as
suas estruturas e desenvolveu técnicas próprias para uma práxis teatral emancipatória.
De Brecht, Augusto Boal adotou a concepção de que o intelectual possui um
compromisso com a sociedade em um sentido pedagogizante: “o dever do artista não é o de
mostrar como são as coisas verdadeiras e sim o de mostrar como verdadeiramente são as
coisas” (BOAL, 1991, p. 128). Também da poética brechtiana, Boal incorporou a relevância
dada mais ao processo teatral – o devir dialético da realidade – do que ao desenlace da
história.
Augusto Boal, assim, discute em sua poética do oprimido a posição do espectador
como sujeito ativo, sugerindo a sua participação na cena em soluções de conflitos
representados por espectatores72 na dinâmica teatral, a partir da problematização da realidade
destes sujeitos, através da ação teatral.
Na estética do Teatro do Oprimido os temas escolhidos são teatralizados em torno de
situações cotidianas vividas pelo grupo social de participantes do local, em um tempo/espaço
delimitado pela aplicação das técnicas que constituem a Poética do Oprimido.

72
Espectador ativo, participativo, atuante, que reflete e soluciona cenicamente sua realidade ou fatos sociais por
meio das questões abordadas no momento da aplicação do Teatro do Oprimido.

652
Boal define assim a sua poética:
Para que se compreenda bem esta Poética do Oprimido deve-se ter sempre
presente seu principal objetivo: transformar o povo, “espectador”, ser
passivo no fenômeno teatral, em sujeito, em ator, em transformador da ação
dramática. Espero que as diferenças fiquem bem claras: Aristóteles propõe
uma poética em que os espectadores delegam poderes ao personagem para
que este atue e pense em seu lugar; Brecht propõe uma poética em que o
espectador delega poderes ao personagem para que este atue em seu lugar,
mas se reserva o direito de pensar por si mesmo, muitas vezes em oposição
ao personagem. No primeiro caso, produz-se uma “catar-se”; no segundo,
uma “conscientização”. O que a poética do oprimido propõe é a própria
ação! (BOAL, 1991, p. 138).

O Teatro do Oprimido procura por meio da prática de jogos, exercícios e técnicas


teatrais, estimular a discussão e a problematização de questões do cotidiano para oferecer uma
maior reflexão das relações de poder e conflitos sociais que permeiam a sociedade, mediante a
exploração de histórias entre opressores e oprimidos (TEIXEIRA, 2005).
Boal procura dessacralizar o personagem heroico, bem como dar carne e sangue às
estruturas sociais opressoras, devolvendo aos indivíduos, através da encenação, a condição de
sujeitos, em detrimento da sua condição de objeto. Ser sujeito, nesse sentido, é ser um sujeito
de diálogos, protagonista de sua histórica, crítico de sua realidade, o que nos remete à
pedagogia de Paulo Freire (TEIXEIRA, 2007).
A transdisciplinaridade do Teatro do Oprimido é incontestável, abrindo ricos veios de
práticas formativas e de diálogos possíveis entre as áreas de conhecimento, como a
museologia, como se verá.

2º Ato, o Museu Comunitário como superação dialética do Museu tradicional


A história dos museus se iniciou no afã colecionador das sociedades. Em sua origem,
apesar das variadas significações que tomou, um fato é notório: os museus surgiram com a
preocupação pela preservação da memória das coletividades, ou seja, surgiu como uma
instituição voltada para a conservação do passado histórico e do conhecimento.

653
O que se preserva, como se preserva e como se expõem o que se preserva, no entanto,
não origina-se em um colecionismo neutro, ao contrário, revela os critérios de valor de uma
classe hegemônica da sociedade, variando de acordo com o contexto da época em que ocorre
(LARA FILHO, 2006).
Na Grécia antiga, o Mouseion (Musas, divindades associadas às artes e às ciências)
eram locais separados para os estudos artísticos, científicos e contemplativos. Durante o
Renascimento, os Museus transformaram-se em espaços de coleções, pois a visão
antropocêntrica começou a se destacar, tornando o mundo, o espaço natural, passível de
classificação, conhecimento e dominação (LARA FILHO, 2006).

Além das coleções principescas, símbolos de poderio econômico e político,


também proliferaram nesse período os Gabinetes de Curiosidade e as
coleções científicas, muitas chamadas de museus. Formadas por estudiosos
que buscavam simular a natureza em gabinetes, reuniam grande quantidade
de espécies variadas, objetos e seres exóticos vindos de terras distantes, em
arranjos quase sempre caóticos. Com o tempo, tais coleções se
especializaram. Passaram a ser organizadas a partir de critérios que
obedeciam a uma ordem atribuída à natureza, acompanhando os progressos
das concepções científicas nos séculos XVII e XVIII. Abandonavam, assim,
a função exclusiva de saciar a mera curiosidade, voltando-se para a pesquisa
e a ciência pragmática e utilitária. (JULIÃO, 2006, p. 20)

O Museu enquanto instituição pública, isto é, a serviço do público veio se constituir no


período da modernidade, cujos marcos são: o movimento revolucionário francês do século
XVIII, o desmantelamento do poder da nobreza e do clero e, por conseguinte, a ascensão da
burguesia ao poder político-econômico. O Museu passou a ser assim, o abrigo das operações
de classificação, análise, ensino; o espelho para refletir as conquistas da classe alçada ao
poder (SUANO, 1986).
Segundo Julião (2006), a partir do século XIX, passou a existir, basicamente, dois
tipos de museus: os de caráter celebrativo e os enciclopédicos, ambos voltados para a
legitimação dos valores burgueses. Tais modelos passaram a promover a identidade nacional
(a história e a cultura da “Nação”); os seus heróis nacionais, seus emblemas e conquistas; os
valores universalistas pautados pelo Iluminismo; as conquistas da razão instrumental

654
científica, capaz de catalogar, discriminar, classificar e dispor da natureza e das culturas
humanas.

Essa modalidade de museu pode ser definida como uma instituição com
pesquisadores que produzem conhecimento, praticam o colecionamento,
divulgam o que é produzido e exibem suas coleções para um público amplo.
Sua função é também pedagógica. Desde então, os museus têm sido
importantes aliados nos processos civilizatórios nos diversos contextos
nacionais. (ABREU, 2007, p. 141)

Esta concepção de Museu está pautada em uma visão positivista de conhecimento, no


qual, os saberes, catalogados de maneira “neutra”, educam o indivíduo através,
principalmente, da contemplação do “patrimônio nacional”, criando, assim, um interregno
inexpugnável entre o espaço museal e o espaço de espectadores passivos, cuja ponte de acesso
são as informações disponibilizadas pelo Museu, a fim de orientar a experiência do indivíduo.
Esta estrutura tradicional se fez predominante até, pelo menos, a primeira metade do século
XX.
O Museu, enquanto espaço que articula memória e poder, passou por ressignificações
durante o século XX, principalmente através do que ficou conhecido como movimento da
“Nova Museologia”, o qual, a partir da década de 60, passou a questionar a função, a
importância, bem como a estrutura da instituição museológica, estritamente voltada para as
elites sociais e intelectuais.

Da apreciação crítica de que, até aí, o museu tinha sido um instrumento ao


serviço das elites sociais e intelectuais, é entendido que a continuação da sua
existência deve passar pela sua transformação em instituição ao serviço de
todos e utilizada por todos. O museu pode e deve ser um instrumento
privilegiado de educação permanente e um centro cultural acessível a todos
(DUARTE, 2013, p. 101).

A crítica da Nova Museologia espraiou-se, originando discursos em prol da


descentralização do espaço museal, o qual não deveria mais ficar circunscrito a um prédio
específico, nem restringido a objetos pré-dispostos e já classificados por curadores
hiperativos, em detrimento da massa hiperpassiva e desmemoriada. Doravante, o Museu não

655
se esgotaria nos objetos de sua coleção, mas existiria em função do indivíduo não abstrato:
sua educação, sua identificação, sua conscientização, historicamente determinadas.
Das inúmeras modalidades de práticas museológicas que surgiram, fomentadas pelas
críticas radicais da Nova Museologia (ecomuseus, museus de território, museus escolares,
museus locais, etc.) destacar-se-ia, no presente artigo, os chamados “Museus Comunitários”.
Os Museus Comunitários têm por base um grupamento humano, mais do que um
território, e poderia ser conceituado como “a expressão de uma comunidade humana, a qual se
caracteriza pelo compartilhamento de um território, de uma cultura viva, de modos de vida e
de atividades comuns” (VARINE, 2012, p. 189).
Segundo Teixeira Coelho:

O museu comunitário é o resultado da criatividade comunitária, já que sua


criação e desenvolvimento têm como fundamento a participação ativa da
comunidade, que se encarrega de investigar, resgatar, preservar e difundir
seu patrimônio histórico e cultural. Essas atividades contribuem para firmar
a identidade cultural, valorizando os elementos específicos da visão de
mundo de cada grupo, recuperando o passado a fim de forjar um presente
mais claro e melhor. (1997, p. 161-162)

O Museu Comunitário:

[...] teria trazido como inovações: a apreensão do patrimônio imaterial ou


intangível, a musealização do território, a realização de inventários de
paisagens, a implementação de estratégias de conservação pelo uso, o
compartilhamento de decisões com líderes comunitários e, além disso, o
estabelecimento de uma relação mais direta entre as práticas museológicas e
as práticas sociais (AVELAR, 2015, p. 35).

O Ponto de Memória da Terra Firme, atualmente, possibilita essa relação mais direta
com práticas sociais diferenciadas, como o teatro, possibilitando que a comunidade da Terra
Firme trabalhe com o poder da memória, narrando e expondo as suas próprias histórias,
dignas de serem contadas.
É sob esta interface – Teatro do Oprimido e Museu Comunitário – que se partirá para a
apresentação do projeto de extensão supracitado.

656
3º ato, ensaiando a cidadania: a promoção do museu comunitário da terra firme
No projeto de extensão aqui apresentado – “ENSAIANDO A CIDADANIA: o Teatro do
Oprimido como estratégia ética, estética e política nos bairros da periferia de Belém” –, o
espaço de execução terá como sujeitos imersos no processo de conscientização, os moradores
do bairro da Terra Firme.
A Terra Firme é um dos bairros mais populosos da capital, tendo ganhado esse apelido
por ser formado por terras firmes e altas próximas a áreas alagadas pelo rio Tucunduba, no
limite dos bairros de Canudos e Guamá. Concentração de boa parte da população de baixa
renda da Zona Central, o bairro sempre enfrentou problemas sérios como falta saneamento
básico, irregularidades fundiárias, desordenamento urbano, violência urbana, entre outros.
Penteado já descrevia o lugar como:

Escondido entre mangueiras e palmeiras, quase todo edificado com casa de


tábua, colocadas sobre baixas estacas, cobertas com telhas ou folhas de
palmeiras, o bairro tem um aspecto de provisoriedade bem acentuada; apenas
a sua principal via, asfaltada, foge a estas características. Por ela se atingirá a
futura universidade de Belém [...] As casas com suas passarelas,
denunciando a existência do problema de enchentes durante o inverno; a
presença de vidraças em algumas casas constitui um elemento a favor do
melhor padrão de vida de seus habitantes, assim como a cobertura de telhas
de barro (1968, p. 334).

A Terra Firme, mesmo sendo uma área predominantemente alagável, tornou-se uma
favela com grande poder de atração migratória, uma vez que possibilita o rápido acesso – a pé
ou por bicicleta – de seus moradores ao centro da cidade. Tornou-se, assim, um dos bairros
mais populosos da capital, tendo ganhado esse apelido por ser formado por terras firmes e
altas próximas a áreas alagadas pelo rio Tucunduba, no limite dos bairros de Canudos e
Guamá.
Concentração de boa parte da população de baixa renda da Zona Central, o bairro
sempre enfrentou problemas sérios como falta saneamento básico, irregularidades fundiárias,
desordenamento urbano, violência urbana, tráfico de drogas, entre outros.

657
Ao invés de cidadãos com “desvio moral” ou com uma “inclinação patológica para o
crime” (SOUZA, 2005), na Terra Firme há uma racionalidade econômica marcada pela
desigualdade de oportunidades de inserção a bons empregos no setor formal da economia,
bem como a oferta de uma relação perversa com o tráfico de drogas, com suas promessas de
rentabilidade em curto prazo, principalmente aos jovens e adolescentes.
Essas múltiplas determinações de uma cidadania inconclusa (CARVALHO, 2005), na
qual predomina a concepção de que os direitos civis, políticos e sociais são “doados” pelo
Estado clientelista e não conquistados pela ação política e pela luta de classes, muitas vezes
obliteram a consciência do indivíduo, o qual passa a reconhecer a sua opressão com uma
realidade “quase natural” oriunda de uma “ideia fatalista, imobilizante” de que “a realidade é
assim mesmo, que podemos fazer? ” (FREIRE, 2011, p. 11).
Na tentativa de resgatar a consciência de que a realidade é histórica, construída pelas
ações – conscientes ou inconscientes – dos próprios indivíduos, o Teatro do Oprimido, como
práxis teórica deste projeto, proporciona um fazer pedagógico no qual os oprimidos se tornam
capazes de perceber o mundo, refletir sobre o mundo, e se expressar no mundo (TEIXEIRA,
2005)
O projeto justifica-se politicamente, eticamente e esteticamente, como uma ferramenta
capaz de fomentar as transformações sociais e a formação de lideranças em comunidades
diversas, mediante a relação dialógica entre os próprios moradores da Terra Firme que, junto
ao Ponto de Memória da Terra Firme, enquanto Museu Comunitário, poderão dizer o seu
próprio mundo e narrar a sua própria história, a partir da memória de seus sujeitos.
Acredita-se, como Canda, que “com arte, o povo pode construir meios de discussão
política, mas também de ampliação da capacidade da leitura de mundo e de meios de
intervenção sobre ele” (2012, p 191).
Deve-se ressaltar que, inicialmente, os moradores da Terra Firme travaram lutas contra
a própria Universidade Federal do Pará, que mantinha a posse dos terrenos ocupados.
Mobilizados pela luta por moradia digna, a “comunidade da Terra Firme adotou os centros

658
comunitários, associações e projetos socioeducativos como espaço de reivindicações de
direitos sociais” (MOURA, QUADROS & QUADROS, 2013).
Nesse sentido, pensamos que este projeto terá uma efetiva realização através da
parceria interinstitucional realizada com Ponto de Memória da Terra Firme (PMTF)
solucionando e problematizando, por meio de conflitos e soluções cênicas, os conflitos reais,
materiais, identificados na realização teatral.
Em poucas palavras, o Ponto de Memória da Terra Firme é:

Um projeto comunitário, participativo, de caráter sociocultural-educacional,


que adota a museologia comunitária como principal ação transformadora
dentro do bairro da Terra Firme. O projeto surgiu em outubro de 2009, por
iniciativa do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), que apresentou a três
comunitárias da Terra Firme a proposta do Programa Pontos de Memória.
(MOURA, QUADROS & QUADROS, 2013, p. 18).

Certamente este projeto coaduna-se com a missão e objetivos do Ponto de Memória,


quais são: preservação do patrimônio local, resgate da memória dos moradores e reconstrução
da história da Terra Firme, bem como, ajudar na transformação da imagem negativa atribuída
ao bairro da Terra Firme; incentivar o bairro da Terra Firme a preservar e valorizar suas
memórias e histórias; buscar parcerias com instituições públicas e privadas, para que
contribuam na transformação social do bairro da Terra Firme e estimular a união comunitária,
como primeiro passo para a transformação social (MOURA, QUADROS & QUADROS,
2013).
O Teatro do Oprimido, ao acionar as histórias de vida dos espect-atores – mediante as
modalidades do teatro do invisível, teatro fórum e teatro jornal73 –, criando dramaturgias que
emergem de experiências e problemas típicos da coletividade, como a discriminação, o
preconceito, a crise do trabalho, a violência urbana, conflitos em torno da propriedade privada
e diferentes fatos sociais presentes do cotidiano dos bairros da periferia de Belém do Pará;

73
São técnicas utilizadas como estratégias para a realização do Teatro do Oprimido. Para maiores informações
consultar Boal (1991).

659
possibilita a emergência da memória (e a construção da história) dos marginalizados, isto é,
daqueles cujos discursos estão ausentes do espaço museal.
Assim, o projeto pretende possibilitar o ensino e aprendizagem e uma formação para
a cidadania por meio da experimentação cênica do Teatro do Oprimido como linguagem ética,
estética e política de transformação social da comunidade da Terra Firme, elidindo-se a
distinção entre atores e espectadores no espaço teatral, ao mesmo tempo em que se suprime a
distinção entre curadores e espectadores, no espaço museal.
Desta forma, este projeto se desenvolve em três fases: (a) reuniões de planejamento da
equipe técnica do projeto e interessados, juntamente com a coordenação do Ponto de Memória
da Terra Firme; (b) aplicação do Teatro do Oprimido e suas modalidades no Ponto de
Memória da Terra Firme e (c) apresentação dos resultados do Projeto.
Por meio do Teatro do Oprimido pretende-se resgatar a memória e a história dos
sujeitos imersos na experiência cênica, bem como os processos de luta e conquistas de direitos
que mobilizaram gerações de moradores da Terra Firma, hoje esquecidos pelas novas
gerações. Desta maneira, os espectatores vivenciarão e intervirão sobre a sua própria cidade,
espaço por excelência de suas experiências cotidianas, de sua história comunitária, muitas
vezes invisibilizada.

Desenlace ou considerações finais


O Teatro do Oprimido representa uma superação dialética da concepção do teatro
burguês tradicional e do teatro brechtiano. Augusto Boal se apropriou dos efeitos teatrais de
ambas correntes de pensamento, rompeu com as suas estruturas e desenvolveu técnicas
próprias para uma práxis teatral emancipatória, na qual, não haveria a alienação entre atores-
personagens e público-espectador, mas um chamamento para que todos participassem do
movimento teatral, do desenrolar do enredo, bem como das problematizações realizadas e
soluções encontradas cenicamente.
Paralelamente, o Museu Comunitário é fruto de rupturas e ressignificações em torno
do Museu tradicional, cujas marcas fundamentais foram forjadas pelo discurso da burguesia

660
que ascendera ao poder, no século XVIII. Tais rupturas se deram a partir da segunda metade
do século XX, fomentadas pelo movimento da “Nova Museologia”, o qual possibilitou o
surgimento de novas modalidades de Museus.
Os Museus Comunitário objetivam, semelhantemente ao Teatro do Oprimido, romper
com a separação estanque entre os objetos de sua coleção – dispostos, selecionados e
classificados por curadores hiperativos – e o público espectador hiperpassivo. Rompendo
com essa estrutura tradicional, o Museu Comunitário intenta criar um dinamismo entre espaço
museal e agrupamento humano, sendo um espaço de discursos, memórias e histórias ligadas à
existência da comunidade em que está inserido, trazendo a lume histórias invisibilizadas de
exploração, violência, emancipação e conscientização de seus moradores.
Através do Projeto de Extensão “ENSAIANDO A CIDADANIA: o Teatro do Oprimido
como estratégia ética, estética e política nos bairros da periferia de Belém” se buscará
articular as técnicas do Teatro do Oprimido com as propostas do Ponto de Memória da Terra
Firme a fim de se promover, dialogicamente com a comunidade da Terra Firme, a
possibilidade dela dizer o seu passado, reconhecer-se coletivamente, lutar pelo seu presente,
projetando-se um futuro mais digno de ser vivido.

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663
NARRATIVAS E MEMÓRIAS: CONSTITUINDO TERRITÓRIOS E
IDENTIDADES

Leila Regina da Silva*


Letícia Alvares**
Elizabete Souza***
Hélia de Oliveira Ladeira****

Resumo: O presente estudo tem como objetivo analisar a trajetória do “Ponto de Memória Museu do
Taquaril”, localizado na cidade de Belo Horizonte, como um processo de intervenção social. A
proposta desse lugar de memória é contar a história do bairro a partir da trajetória de vida de seus
moradores, estreitamente vinculada à luta pela moradia e pelo território. Destaca, de que modo, a
relação entre os conceitos de identidade e território podem contribuir para a prática de intervenção
social resultando em processos de desenvolvimento local. Tendo como eixo metodológico a prática da
pesquisa qualitativa realizou-se levantamento bibliográfico, visitas, observação, entrevista com
moradores e lideranças locais. Verificou-se que os moradores privilegiam um modo de intervenção que
valoriza os aspectos políticos e culturais locais. Destaca-se, nesta perspectiva, o fortalecimento dos
laços indenitários, sejam eles de caráter material e imaterial, na manutenção de vínculos de
sociabilidade com o espaço/território. Governança local e participação social tornam-se, neste sentido,
atributos do desenvolvimento territorial local.
Palavras-chave: Museologia social; Intervenção Social; Território; Identidade; Bairro Taquaril.

Abstract: The present study aims to analyze the trajectory of the "Memory Point Taquaril Museum",
as a process of social intervention, in the city of Belo Horizonte,. The proposal of this memory point is
to tell the history of the neighborhood by life trajectory of its residents, closely linked to the struggle
for housing and territory. It highlights, in what way, the relationship between the concepts of identity
and territory can contribute to the practice of social intervention because of local development. The
methodology of the research is qualitative and was carried out by bibliographical survey, visits,
observation, and interview with residents and local leaders. It was verified that the residents choose a
mode of intervention that values local political and cultural aspects. In this perspective, it is important
to strengthen the bonds of identity within its material and immaterial nature, in the maintenance of
bonds of sociability with the space/territory. Local governance and social participation become, in this
sense, attributes of local territorial development.
Key-words: Social Museology. Social Intervention. Territory. Identity. Taquaril Neighborhood.

664
Bairro Taquaril: narrativas de um território

Com origem na década de 1980 o bairro Taquaril localiza-se na região leste de Belo
Horizonte, situado á cerda de seis quilômetros do centro comercial da cidade. De acordo com
registros e relatos de moradores locais o bairro surge com a repartição territorial da fazenda
Taquaril, existente na região á época, para atender demanda por moradia de um grupo de
“sem casa” que viva nas mediações. Seu processo de ocupação foi organizado politicamente
por lideranças do Centro de Ação Comunitária do Alto Vera Cruz, bairro circunvizinho. Com
a autorização da prefeitura, após várias ações de reivindicação na luta pró-moradia, os
próprios moradores iniciaram a construção das casas e soergueram o bairro.

Cerca de 30 anos depois de seu início, com mais de 11.210 domicílios particulares e
aproximadamente 30.204 habitantes (IBGE, 2010), o bairro é marcado pela coexistência de
diversas realidades sociais. Entre áreas planejadas e urbanizadas com infraestrutura básica de
saneamento, transporte e áreas precárias em estruturas urbanas. Seu adensamento é marcado
pela divisão e ocupação perene de lotes irregulares. Áreas de risco geológico, de acentuado
declive, e de preservação ambiental são constantemente ocupadas por moradias precárias.

Ao curso de sua história de constituição e relação com o espaço urbano de Belo


Horizonte o bairro adquiriu visibilidade social pejorativa como lugar da exclusão e
marginalidade sendo retratado pela mídia por índices de violência, pobreza e vulnerabilidade
social74. Em consequência tal visão era posta como um reflexo da identidade dos moradores
que habitam o local, vistos socialmente como marginais e perigosos. De tal modo, a
identidade dos moradores se destacava pela forma como eram representados pelo olhar do
outro.

Para fins deste estudo, assume-se a perspectiva conceitual de Hall (2011) e, aborda-se
a identidade como um processo contínuo e multifacetário, um construto social fragmentado e

74
Vulnerabilidade social é um resultado negativo da relação entre a disponibilidade dos recursos materiais ou
simbólicos dos atores, sejam eles indivíduos ou grupos, e o acesso à estrutura de oportunidades sociais,
econômicas e culturais que provêm do Estado, do mercado e da sociedade. Inclui situações de pobreza, mas não
se limita a ela. (CASTRO; ABRAMOVAY, 2004, p.05)

665
descentralizado que, por meio dos muitos discursos da vida, as pessoas vão construindo à
medida que se posicionam no mundo. Neste sentido a narrativa tem destaque como uma
prática social que permite a elaboração de experiências pessoais e coletivas, através de
diferentes interações em diversos espaços sociais. (BRUNER, 2002)

Sobre essa relação em contextos sociais urbanos, numa ótica analítica, Costa (2002)
assinala ser possível perceber duas formas de atribuição de sentido à identidade cultural de
um bairro. Uma delas advinda do exterior, em especial, instituições como a mídia, a qual
apresenta usualmente concepções reificantes, ou seja, redutoras. Já a outra produzida,
sobretudo, no interior do bairro, moldada a partir das experiências de vida do cotidiano local.
Ou seja, essa segunda forma de pensar a identidade do bairro:

Acompanha a experiência dos episódios de interação ali diariamente


repetidos, a inserção nas redes sociais que atravessam o bairro, os
modos de vida nele estabelecidos, as socializações localmente
experimentadas, as práticas culturais produzidas e partilhadas nesse
quadro específico de relacionamento social. Tudo isso redobrado da
geração continuada, entre a população local, tanto de representações
simbólicas do bairro como entidade distinta, como de fortes
sentimentos de pertencer a ele – isto é, de formas endógenas e vividas
de identidade cultural. (COSTA, 2002, p.26)

A perspectiva proposta por Costa (2002) permite abordar território como apresentado
por Corrêa (1997) referenciado, implicitamente à noção de limite, o qual mesmo não estando
traçado, como em geral ocorre, exprime a relação que um grupo mantém com determinado
recorte espacial. O citado autor assinala existir, ainda, para além de uma vinculação do
conceito ao escopo das relações incorporando a questão dos fatos humanos, a dimensão do
espaço e acrescenta que outros temas como territorialidade e espacialidade são
imprescindíveis a uma compreensão global do conceito.

Nas entrevistas realizadas com moradores locais foi possível identificar que as
lideranças, desde a origem do bairro, se empenharam no estabelecimento de um processo de
constituição de identidade refletido nos princípios acima descritos. Evidenciam em suas

666
narrativas a territorialidade, o espaço das relações, dos sentidos, do sentimento de pertença e,
portanto, da cultura (SPOSITO, 2004). De tal modo, o espaço físico apropriado pelos sujeitos,
a partir de uma combinação entre ideologia, sentidos e práticas sociais, adquire uma
territorialidade que segundo HOLZER (1997) é um conjunto de lugares hierárquicos,
conectados por uma rede de itinerários, considerado de espaço-território onde os grupos e as
etnias vivem certa ligação, um enraizamento.

A presença e difusão de associações de moradores constituídas em torno de demandas de


trabalho e renda, desenvolvimento social, infraestrutura urbana, regularização e melhorias da
qualidade de moradias, da cultura local marcam o desenho político da organização do bairro,
bem como as estratégias de desenvolvimento local:

[...] como uma alternativa de intervenção articulada de novos atores


sociais e políticos na reorientação da ação do Estado, no sentido de
atender aos objetivos de construção da cidadania e da melhoria da
qualidade de vida (...). Nesse sentido, coloca-se como um novo
patamar de um processo de lutas sociais. (BAVA, 1996, p58)

Os moradores destacam serem marca desse processo a organização, luta e resistência


para as conquistas de infraestrutura e urbanização na melhoria da condição de vida, ainda em
curso no bairro. Contudo, narram o sentimento de orgulho e alegria na relação estabelecida
com o território e manifestam o desejo de preservação de sua história. Para além, preocupam-
se com os registros e discursos á cerca desta História.

Ponto de Memória Museu do Taquaril: memória e intervenção social

Uma das forças originárias na construção do bairro destacada pelas lideranças é a ação
das mulheres que se dedicaram a trabalhar o íngreme terreno, erguer as casas e liderar a
organização política na constituição das primeiras associações. Outra força foi a organização
dos jovens em torno de projetos e ações culturais, difundindo linguagens e estética próprias
através do RAP, de documentários, eventos e shows. Processos remorados e difundidos, pelo

667
Ponto de Memória Museu do Taquaril, não apenas como reconstituição do passado, mas no
delineamento do presente reconfigurando significados e valores. (GOFF, 2003).

O Museu, instituído em 2010 com apoio do Instituto Brasileiro de Museus- IBRAM


por lideranças e moradores locais, surgiu como proposta de ser um espaço que permita
estabelecer uma narrativa diferente da difundida pela mídia sobre o lugar e as pessoas.
Permita preservar a História local por meio da história de vida de seus moradores, fortemente
associada à luta pela ocupação e transformação do território num cenário político assimétrico.

Insere-se no aprofundamento do debate sobre a museologia comunitária, associadas a


processos de afirmação e resistência de grupos sociais e de reivindicação de direitos culturais
e museais. Gerido por um conselho gestor composto por lideranças do bairro o museu
desenvolve ações como Rodas de Memória, documentários, exposições fotográficas,
concursos culturais, oficinas de histórias de vida entre outras atividades como práticas de
intervenção junto á comunidade local com ênfase no “papel que as narrativas desempenham
na construção de identidades sociais nas práticas narrativas onde as pessoas relatam a vida
social e, em tal engajamento discursivo, se constroem e constroem os outros” (MOITA
LOPES, 2001, p. 63).

As lideranças denominam o museu como um museu de território, sendo toda a


extensão do bairro apresentando como percurso e patrimônio dos moradores. Esta apropriação
pode ser associada nos termos de Haesbaert (2004) a uma dimensão e/ou sentimento de
pertencimento, que se dá no sentido de controle efetivo por parte de instituições ou grupos
sobre um dado segmento do espaço e em seu sentido mais amplo, uma apropriação mais
afetiva de uma identidade territorial. Processo retratado nas falas dos moradores ao
reforçarem o aspecto afetivo da relação com o bairro, assim como, sendo base da orientação
efetiva da ação política e de intervenção no território. Uma vez que, o território é:

fruto de uma ação programada de um sujeito que se apropria concreta


e/ou simbolicamente do espaço. E, ao se apropriar de um espaço,
concreta ou abstratamente, o ator territorializa esse espaço (...) sendo

668
que essa “passagem” sempre acontece no campo das relações.
(RAFFESTIN, 1993,p.143).

É no âmbito das relações que a memória é assumida pelos moradores como um campo
aberto, em constante disputa. A “memória coletiva como fenômeno construído consciente ou
inconsciente, como resultado do trabalho individual ou social, um trabalho sobre o tempo,
mas sobre o tempo vivido, conotado pela cultura e pelo indivíduo” (ECLEIA BOSI, 2003; p.
53) é assumida como ação política. As lideranças locais a têm como um elemento articulador
das ações do museu. Neste contexto, coloca-se em discussão o papel dos museus comunitários
como possibilidade de ação social transformadora implicada, entre outros, com aspectos como
a formação política, a ressignificação de territórios e comunidades por seus moradores
engajados no processo de forjar suas próprias narrativas.

[...] as lembranças podem contribuir para rememorar usos, sentidos,


práticas que foram/são elementos importantes na constituição de um
grupo em um determinado espaço, independentemente da forma como
se constitui no presente. É como se a memória tornasse possível a
“presentificação” do tempo e a “materialização” do espaço, ou seja, a
“presentificação” de um tempo passado que já teve a sua duração e de
um espaço que pode não mais se configurar materialmente como
dantes (ARAÚJO, 2010, p. 151).

Durante a prática da narrativa os participantes reorganizam sua experiência e


reconstroem sua identidade de forma coletiva, evidenciando a noção de narrativa como lócus
para o processo identitário. Pode-se assumir esse como um processo de resgate da identidade
cultural do bairro. E, como assinala Dowbor (2011), processo central para um resgate muito
mais amplo do sentimento de pertencer ao mundo que se transforma, de participar da criação
do novo. O desenvolvimento é apenas em parte uma questão de fatores materiais, de
investimentos físicos. A atitude criativa está no centro do processo de desenvolvimento em

669
geral. Estamos entrando na era da economia do conhecimento, e a cultura, passa a ser um dos
articuladores de novas identidades locais. (DOWBOR, 2011).

As ações desenvolvidas pelo Ponto de Memória Museu do Taquaril provoca mudança


social e permite o (re) estabelecimento de laços sociais e comunitários a partir das vivencias e
memórias de seus moradores. Aprofunda práticas democráticas a partir de uma gestão
compartilhada e negociada com os diversos atores locais. Com ressignificações que
caracterizam a construção e a manutenção da memória individual, coletiva e social e seus usos
institucionais e comunitários.

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671
Conservação de bens
culturais móveis

672
A DOCUMENTAÇÃO COMO FERRAMENTA DE CONSERVAÇÃO: OS
ORNAMENTOS DE FERRO DA WALTER MACFARLANE’S EM BELÉM

Marcela de Sousa Raiol*


Yasmim de Almeida*
Estefani Mikaela Batista Trindadade*
Flávia Olegário Palácios*
*Universidade Federal do Pará

Resumo: Com o impulso da primeira Revolução Industrial (metade do século XVIII), novos produtos
advindos das fábricas foram lançados no mercado europeu e, mais adiante, em outros demais
mercados pelo mundo. No caso da construção civil, quando se passou a perceber que sua utilização era
mais prática e até mesmo econômica, o ferro começou a ter uma significativa importância; edifícios e
ornamentos passaram a ser feitos de ferro e, para além de sua função, eles tinham também quer ser
belos, completando a decoração da edificação. Haviam fábricas famosas por seus modelos e
qualidades na produção de tais peças, como a Walter MacFarlane's, de Glasgow, que através da venda
de seus produtos em catálogos, exportou, entre o final do século XIX e início do XX, uma quantidade
considerável de edifícios inteiros e ornamentos para cidades do mundo, incluindo cidades brasileiras
que hoje detém um acervo em ferro importante. Belém, capital do estado do Pará, é uma destas
cidades que possui parte deste acervo e, nas construções mais antigas, há peças fabricadas pela
MacFarlane's; parte destas peças são as calhas, objetos de estudo deste trabalho, e que estão
distribuídas em edificações localizadas nos bairros mais antigos e históricos da cidade, onde foram os
primeiros a receberem edifícios modernos no início do século XX, no auge da Belle Époque. Passado
um pouco mais de um século após a vinda destas peças, o estado atual delas não é positivo, onde
muitas delas apresentam danos em sua estrutura, levando à descontinuidade do uso das mesmas. Sendo
assim, o objetivo desta pesquisa, partindo do estudo do histórico de importação e de observações in
loco das calhas, é demonstrar a importância dessas peças e como as ações do tempo e homens estão
destruindo um acervo rico e histórico.

Palavras-Chave: Musealização; Patrimônio Urbano; Calhas de ferro; Centro Histórico.

673
Abstract: With the rise of the first Industrial Revolution (half of the eighteenth century), new products
from the factories were launched in the European market and, later, in other markets around the world.
In the case of civil construction, when it was realized that its use was more practical and even
economic, the iron began to have a significant importance; Buildings and ornaments were made of
iron and, besides its function, they had also wanted to be beautiful, completing the decoration of the
building. There were factories famous for their models and qualities in the production of such pieces,
like Walter MacFarlane's of Glasgow, who through the sale of its products in catalogs, exported,
between the end of the nineteenth century and the beginning of a considerable amount of whole
buildings and ornaments for cities in the world, including brazilian cities that today hold a significant
iron heritage. Belém, capital of Pará, is one of these cities that has part of this collection and, in the
oldest buildings, there are pieces manufactured by MacFarlane's; Part of these pieces are the rainwater
heads and railings, objects of study of this work, and are distributed in buildings located in the oldest
and historic districts of the city, where they were the first to receive modern buildings in the early
twentieth century at the height of Belle Époque. A little more than a century after the coming of these
pieces, their current state is not positive, where many of them present damages in its structure, leading
to the discontinuity of their use. Therefore, the objective of this research, starting with the study of
import history and in loco observations of the iron rails, is to demonstrate the importance of these
pieces and how the actions of time and men are destroying a rich and historical collection.

Keywords: Musealization; Urban Heritage; Rainwater Heads; Historical Center.

674
Introdução

O ferro foi considerado um dos principais símbolos da Revolução Industrial europeia,


no século XIX. O desenvolvimento de meios de manufatura do material atribuiu qualidades
que transformaram o ferro na principal matéria prima de diversos elementos construtivos nas
diferentes esferas da construção civil, incluindo ornamentos, mobiliários urbanos, e, com o
melhoramento das técnicas, até mesmo grandes estruturas e prédios inteiros. Com isto, o
número de fábricas e fundições cresceu exponencialmente, e além de atender a produção
local, estas também buscaram mercado além das fronteiras europeias, especialmente para as
colônias, vendendo o ferro como símbolo de progresso e modernidade (SILVA, 1986; KUHL,
1998; COSTA, 2001).

Assim, países em desenvolvimento, fascinados pela modernidade e estética das peças,


importavam ornamentos, equipamentos urbanos, prédios comerciais e residenciais e muitos
outros itens, que eram anunciados e vendidos através de catálogos ricamente ilustrados e
detalhados, bem como nos jornais da época. O Brasil conta hoje com inúmeros representantes
arquitetônicos em ferro, inclusive na Amazônia, região que recebeu inúmeros investimentos
durante o período da Belle Époque, ainda no século XIX (BARRA, 2003).

A cidade de Belém, capital do estado do Pará, passou por um grande processo de


urbanização durante o período citado anteriormente, importando inúmeros itens em ferro.
Inicialmente, apenas ornamentos, como calhas em ferro, gradis, pilares, corrimãos e outros
elementos que faziam parte dos interiores e das fachadas das construções. Com o
desenvolvimento das técnicas de manufatura, prédios inteiros começaram a ser produzidos e
exportados, vendidos pela rapidez na montagem e pelo valor atrativo (KÜHL, 1998).

Dentre as fábricas que importavam ornamentos em ferro, estava a Walter


MacFarlane’s, de Glasgow. Em Belém, as calhas de escoamento da MacFarlane’s eram
famosas por sua qualidade e estética de estilo eclético, compondo diferentes tipos de
construções. Estes itens foram importados para Belém durante esse período, não apenas por

675
sua estética, mas principalmente por sua funcionalidade, a de conduzir as águas das chuvas
dos prédios até o meio fio. As calhas eram indispensáveis nas casas, uma vez que a cidade
passava pelo processo de urbanização proposto por Antônio Lemos, que buscava alcançar
padrões europeus de modernidade através de obras de renovação estética e higienista na
cidade (BARRA, 2013).

Presentes nas fachadas, tanto de construções históricas, quanto de construções que


tiveram elementos modificados contemporaneamente, atualmente as calhas não são
consideradas patrimônio histórico, uma vez que diversos exemplares foram substituídos por
materiais contemporâneos, como PVC, aço ou alumínio. Assim que apresentam algum dano
que comprometa sua estrutura funcional, são removidas ou substituídas sem levar em conta
sua importância histórica, assim como sua caracterização como elemento decorativo.

Desta forma, o objetivo do presente trabalho é utilizar os resultados parciais de


levantamentos realizados durante as pesquisas vinculadas às Bolsas de Iniciação Cientifica
(PIBIC) e Bolsa do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação a Produção Artística
(PIBIPA) – ambas vinculadas ao projeto de pesquisa “Documentação de ornamentos
metálicos dos séculos XIX e XX: as calhas da fábrica Walter MacFarlane’s nas edificações
históricas em Belém (PA)” – como base para discussões acerca da conservação dos elementos
em ferro, a partir dos danos documentados, levando em conta a importância histórica e
patrimonial destas calhas, e apontando possíveis soluções para a preservação e continuidade
dos itens.

Para tanto, foi realizado levantamentos quantitativos das calhas remanescentes, em


bairros do Centro Histórico de Belém (Campina e Cidade Velha) e de seus arredores (Nazaré
e Reduto), onde, através dos catálogos da empresa Walter MacFarlane’s, identificamos as
calhas através dos modelos de seus componentes (cabeça, corpo e braçadeiras), assim como a
identificação de danos visíveis às ligas metálicas. Procedeu-se também o levantamento de

676
informações sobre a importação de produtos de ferro para a cidade de Belém, através de
jornais da época, no intervalo temporal de 1885 a 1915.

Os levantamentos realizados servem como base para estudos sobre patrimônio urbano
e musealização destes espaços, uma vez que, por conta dos danos documentados, há a
descontinuidade de uso dos mesmos, descaracterizando as fachadas. A conservação das calhas
de ferro é importante, uma vez que, além de serem importantes testemunhos da história da
cidade, podem ser utilizados como ferramentas de reflexão e estudo sobre o desenvolvimento
dos bairros.

A Belém da Belle Époque e as importações de ferro:

A Revolução Industrial, nome dado a transformação em curso durante a segunda


metade do século XVIII, que teve início na Inglaterra e logo depois passou a se espalhar para
os demais países da Europa nas seguintes décadas do século XIX, trouxe várias possibilidades
agora que o trabalho passava de artesanal para mecanizado e assalariado. Seus produtos, com
uma qualidade nunca vista, trouxeram uma verdadeira revolução, ajudando a traçar uma rota
que guiaria a humanidade para os próximos séculos.

Utensílios do cotidiano se tornam melhores, assim como objetos e maquinas


inventados durante a 1ª e a 2ª Revolução Industrial se tornam indispensáveis, pelo menos
aqueles que poderiam pagar por eles, já que os maiores beneficiados com tantas novidades
eram os que possuíam bastante poder aquisitivo. Não somente bens móveis obtiveram
melhorias ou foram criados, a construção civil também começou a mudar a partir do momento
que materiais passaram a ser somados aos edifícios, novos usos começaram a ser testados.

Observou-se que alguns destes materiais não somente serviriam à fábricas, mas
também poderiam servir em acabamentos e até mesmo em construções inteiras, porque uma
das características marcantes deste período de foi uma adaptação da construção aos processos

677
industriais, tornando a arquitetura um produto mais consumível com a sua venda através de
catálogos (DERENJI, 1993).

Um destes materiais, dos mais fabricados e usados, foi o ferro. Não seria à toa chama-
lo de símbolo desta revolução que tomava conta da sociedade, já que:

“(...) a Revolução Industrial foi de suma importância para o aumento da


fabricação do ferro na arquitetura, pois, além do crescimento demográfico
urbano e da grande demanda por novas construções, o desenvolvimento
tecnológico permitiu que o ferro fosse produzido em uma escala industrial,
barateando seu preço e facilitando em todos os setores da vida moderna: nas
fábricas, na arquitetura e em utensílios para o dia-a-dia.” (BARRA, 2003,
p.11)

Assim o ferro passou a ser um material importante em grande parte do que era
fabricado, incluindo para peças de construção e de ornamentos. Algumas destas fábricas
estavam localizadas na Inglaterra, principal exportadora do ferro, mas outras também de igual
importância começaram a surgir na França, Alemanha e Bélgica.

O foco inicial dos empresários era o mercado europeu, contudo com o passar do tempo
a exportação passou a ser considerada pelas fábricas e colocada em prática, pois, o seu
mercado já não mais consumia seus produtos no mesmo ritmo em que eles eram produzidos.
Foi este um dos motivos que levou os fabricantes a verem seus produtos serem comprados e
levados para algumas colônias africanas e para o outro lado do atlântico como, por exemplo,
para o Brasil (BARRA, 2003), caracterizando assim as primeiras levas de produtos de ferro
para várias capitais brasileiras que, ainda no século XIX estava sob o poder de um imperador
e não possuía fábricas tal como se tinha no velho mundo.

Assim, dava-se começo as compras de peças de ferro por importação. Em Belém,


capital da então província do Grão-Pará e uma das grandes importadoras de um número
significativo de peças de ferro, a atividade começou a fazer parte do cotidiano da cidade por

678
um segundo fator, para além do interesse dos fabricantes em exportar para outros países, pois
a cidade estava entrando na sua famosa Belle Époque. A borracha, que à época das primeiras
importações estava começando a ser produzida na floresta e vendida para os países em
ascensão, trouxe para Belém uma época de prosperidade e crescimento.

A urbanização pela qual a cidade passou ocorreu de forma acelerada para atender a
uma sociedade que ansiava por querer estar em ambientes que pelo menos imitassem os ares
europeus e claro que não foi fácil, mas o trabalho feito pela intendência da época, com
comando de Antônio Lemos, ajudou a formar uma verdadeira “Paris na América” ao gosto
dos mais abastados da sociedade belenense. Foi por causa desta urbanização que se obteve
não somente a entrada de produtos perecíveis e objetos do dia-a-dia, mas também houve um
acréscimo de maquinas e de materiais para construções de edifícios e de ornamentos em ferro.

O pedido dos produtos era feito baseado no que se apresentava nos catálogos ou,
ainda, no que se apresentava nos anúncios de jornais. Os catálogos eram revistas
especializadas em mostrar todos os produtos que a fábrica tinha a disposição e cada peça era
vista com riqueza de detalhes; nos anúncios, como cada loja apenas dispunha de uma parcela
da folha de jornal para anunciar seus produtos importados o que apenas acabava-se por se ter
era: o nome da loja que estava revendendo as peças, a utilização (para calhas, para banheiros,
para maquinários, etc.) e o material (ferro, chumbo, etc.) das mesmas, isto tudo emoldurado
por letras que enfeitavam o nome da loja e alguns, que podiam pagar mais, enfeitavam com
ilustrações bem feitas. Estes anúncios costumavam ficar, dentre outras várias propagandas, na
página três ou quatro, dependendo do número de folhas que o jornal dispunha para as
mesmas.

Estes catálogos e revistas, entretanto, apenas nos dão uma pequena dimensão do que
era importado. Para compreender o quanto esta atividade foi forte durante esta época, com um
número alto de peças advindas da Europa, é preciso ir além dos anúncios. É na sessão que

679
fornecia, naquela época, a lista de entrada e saída dos produtos da cidade que iremos ter uma
real ideia do número de importação de produtos de todos os tipos, incluindo as peças de ferro.

Cada jornal, não incluindo todos os que circulavam em Belém, tinha em suas as
edições uma sessão reservada para deixar informados seus leitores o que estava entrando e
saindo dos portos da cidade. Em alguns jornais do final do século XIX, como por exemplo no
Diário de Belém (Figura 1), esta sessão tinha o nome de Importação, ficava logo na primeira
página e mostrava detalhadamente em qual embarcação e de onde haviam chegados
determinados produtos. Já em outros, ainda do mesmo período citado anteriormente, como no
jornal O Democrata, a sessão responsável por estas informações era a Comercial –
Manifestos, terceira página, seguindo a mesma ordem do primeiro exemplo: nome da
embarcação, local de saída e os produtos que havia sido encarregado de trazer.

Figura 1. Trecho da Sessão Importação com a carga advindo de Liverpool no ano de 1886;
é possível ver “ferragens” entre os produtos.

Fonte: jornal Diário de Belém.

680
Estas listas com o nome dos locais de saída das embarcações incluem desde
municípios próximos a Belém, outras demais capitais brasileiras e chega até as principais
cidades importadoras: Cidade do Porto (ou por vezes apenas titulado Portugal), Nova York,
Havre, Hamburgo e Liverpool. É por estes principais portos correspondentes a Portugal,
Estados Unidos, França, Alemanha e Inglaterra que chegava os produtos do velho e novo
mundo tão almejados pelos mais ricos. Os produtos de ferro são sempre encontrados em sua
grande maioria nas listas de Hamburgo e Liverpool, cidades portuárias dos países que mais
importavam ferro naquele período. Os produtos em ferro podem ser encontrados sob os
seguintes nomes nas listas: “ferro”, “ferragens”, “ferramentas”, “peças de ferro”, etc., seguido
as vezes pelo nome do comprador ou somente pela quantidade que foi importada.

Mesmo que ainda haja uma atividade portuária ativa, hoje esta sessão caiu em desuso,
mas entre o final do século XVIII e na primeira metade do século XX era de suma
importância repassar tal informação, pois era assim que muitas das vezes um comprador
poderia saber se sua carga finalmente havia chegado a cidade, ou ainda o público, os futuros
compradores em potencial, saberiam quais novidades haviam chegando em Belém.

Derenji (1993), fala como todas estas mudanças pela qual a cidade estava passando se
apoio na importação de produtos que foram de suma importância para o crescimento de
Belém, já que mudança na virada do século XVIII para o XIX significava o uso de produtos
industrializados. E que “dentro dessa ótica, o ferro obteve grande destaque pela facilidade e
variantes de emprego na construção. As vantagens na importação tornavam até mesmo o seu
preço competitivo” (DERENJI, 1993, p.160) já que era mais fácil conseguir importar algo
vindo da Europa do que comprar um produto de uma cidade mais próxima.

Assim Belém obtém um acervo de construções e ornamentos de ferros considerados


importantes para os estudiosos já que são poucas as cidades que conseguiram de certa maneira
preservar suas peças e edifícios. Manaus, Fortaleza e São Paulo são estas outras demais
cidades que, juntamente a Belém, formam o mais valoroso acervo de construções e

681
ornamentos de ferro do Brasil (COSTA, 2001). Em sua grande maioria, estas peças são de
origem da fábrica Walter MacFarlane’s, uma das mais importantes no ramo de fabricação em
ferro.

O uso das Calhas de ferro na arquitetura do século XIX:

A produção do ferro foi determinante para dar continuidade a Revolução Industrial. E


no que tange a aplicabilidade desse material na construção de novas edificações, seu uso foi
bastante abrangente. A industrialização de fato revolucionou a arquitetura, não devido
somente às potencialidades estéticas do ferro fundido, nem às diversas possibilidades
estruturais do aço. Mas a escala de produção do ferro, agora industrial, que foi o grande
diferencial de todos os processos construtivos anteriores. Também a constatação da
resistência a compressão, a possibilidade de vencer grandes vãos e a crença na
incombustibilidade do material em voga, teriam grande peso na decisão por utilizar fundições
de ferro na construção de edifícios (SILVA, 1986).

Nesse sentido, assim como na revolução, os ingleses foram pioneiros substituindo


materiais convencionais por ferro em: estruturas de madeira nas coberturas e em colunas e
vigas que sustentavam pavimentos nos edifícios. Posteriormente, o metal foi largamente
utilizado em vários países na construção de fábricas, armazéns, lojas desde a formação de
esqueletos independentes à arranha-céus. Galerias, coretos, mercados públicos, pavilhões de
exportação, e centenas de outros produtos de ferro também se faziam presentes na paisagem
urbana do século XIX (SILVA, 1986).

Edifícios pré-fabricados inteiros poderiam ser exportados para outros países europeus
menos industrializados e também para as colônias. No Brasil existem vários exemplos:

682
Fragmentos de sonho ou produtos arquitetônicos industriais, foram
fabricados e enviados ao Brasil pela Saracen Foundry de Walter
MacFarlane’s & Co. alguns dos exemplos mais expressivos de edifícios de
ferro que ainda se encontram em uso no país, como os pavilhões do pátio do
Mercado da Carne, em Belém; o chamado pavilhão das Tartarugas, os dois
pavilhões laterais e os pequenos café e botequim do Mercado de Manaus; o
Teatro José de Alencar, em Fortaleza; a ornamentação da Estação da Luz em
São Paulo, assim como a de todas as estações da antiga São Paulo Railway;
peças como o peculiar relógio e os postes da Praça do Relógio de Belém; as
grades e o pavilhão de entrada do cemitério de Manaus; as grades do Açude
do Cedro, em Quixadá, no Ceará; Coretos como o da Praça da Abolição em
Olinda; mictórios, fontes, bebedouros, calhas, parapeitos, varandas e demais
acabamentos de obras que escaparam às demolições. (COSTA, 1994, p.16)

No século XIX o panorama geral da produção arquitetônica na Europa abrangia os


estilos Neoclássico, passando pelo êxito do movimento Neogótico, até a difusão do estilo
Eclético, no qual melhor se poderia notar a estética industrial dos edifícios de ferro.

O ecletismo que pregava a reprodução formal de quaisquer outros estilos, tendo em


vista a crença de que a beleza ou a perfeição seriam alcançadas com a combinação das
melhores qualidades arquitetônicas dos estilos clássico, gótico, renascentista, fazendo uso dos
novos materiais, foi considerado o movimento arquitetônico de caráter progressista, capaz de
trazer a burguesia ascendente algo moderno que resolveria ao mesmo tempo dilemas de gosto
pela formalidade clássica ou medieval (ver figura 02). Essa “representação” estilística era
facilitada pela reprodução de formas através de moldes.

Quando o material empregado era o ferro fundido, era possível reproduzir,


infinitamente, um mesmo modelo, com igual perfeição. Como as colunas de
ferro fundido não necessitavam ter a mesma seção de colunas de pedra, dado
o alto poder de resistência à compressão do novo material, era possível
utilizar o vocabulário formal que se elegesse, com as proporções que se
quisesse. Com isso, além da possibilidade de reproduzir qualquer estilo, era
possível fazê-lo com elegância e leveza jamais conhecidos anteriormente.

683
O ferro fundido prestava-se tão bem aos propósitos ornamentais que, de fato,
o ornamento passou a ser um fim em si mesmo. (SILVA, 1986, p. 27)

Figura 2: Fachada do Edifício da Guarda Municipal em Belém.

A burguesia emergente que enriquecera com a produção do café, borracha e algodão,


era responsável por criar a demanda por todo tipo de peças de fundição. Foi a clientela
burguesa quem exigiu o progresso nas instalações técnicas, nos serviços sanitários e sua
distribuição em hotéis, balneários, lojas, bancos e escritórios. (FABRIS, 1987)

A vigência do estilo eclético foi determinante para empresas europeias colocarem no


mercado internacional produtos que eram dispostos em variados catálogos com toda sorte de
peças como canos, ornamentos, elementos sanitários, calhas, mobiliários urbano e doméstico.
A encomenda por catálogos era uma forma de convencimento do cliente, onde o fabricante
mostrava várias alternativas de montagem ao comprador. “Possuíam grande poder de

684
fascinação que advinha mais da beleza dos desenhos, da finura das gravações e, sobretudo, da
imensa variedade de objetos oferecidos do que das informações precisas que forneciam
quanto às dimensões e custos” (COSTA, 1994, p. 66).

Em países tropicais como o Brasil os componentes em ferro foram o que havia de mais
variado e em maior quantidade para caracterizar a arquitetura no século XIX. Esses
elementos, em geral extremamente ornamentados, significavam também a adesão ao
progresso da técnica. No entanto, os produtos industriais que eram consumidos e facilmente
aceitos no mercado brasileiro demonstravam o sistema de dominâncias cultural e econômica
europeia.

Dezenas de fundições foram importadas através de catálogos de fornecedores como o


da fábrica inglesa Walter McFarlane’s & CO que possuía uma das mais diversificadas linhas
de produtos com a visível intensão de embelezamento interno e de fachadas. Era comum, por
exemplo, que as habitações possuíssem varandas que atuavam como atenuantes para
incidência direta do sol sobre as paredes, daí o grande uso de grades para peitoris. Outro
componente bastante simbólico do uso do ferro na arquitetura era visto na elegância e leveza
das escadarias, a ferro fundido e forjado (SILVA, 1986).

Além destes, as calhas ornamentadas da McFarlane’s são elementos que merecem


destaque por serem internacionalmente conhecidas por seus valores histórico, artístico e
arquitetônico que podem ainda hoje ser encontradas inseridas nas fachadas de edificações de
estilo eclético, em sua maioria. Desse modo, também fazem parte do acervo que compõe o
patrimônio da Arquitetura do Ferro no país.

É importante lembrar que na região amazônica, o uso de elementos de fundição


aplicados a arquitetura corresponde diretamente ao período econômico do “Ciclo da
Borracha”. A capital paraense vivia as transformações urbanas ao estilo da belle époque,
espelhada na Paris Haussmanniana, que passara por reformas devido a intensa
industrialização e urbanização da cidade, desprovida de infraestrutura para abrigar o

685
contingente populacional que só aumentava. Do mesmo modo, Belém enfrentava problemas
como frequentes epidemias advindas da concentração populacional associada a falta de
saneamento básico.

Como medida para higienização e escoamento de águas na cidade, o intendente


Antônio Lemos implantou um código de postura que condenava quaisquer estruturas que
viessem a desencadear o acúmulo de água parada.

Diante das determinações constantes do Código de Posturas, nos anos


quarenta do século XIX, a lida com as águas deveria envolver tanto o poder
público como cada morador individualmente na promoção do
“enxugamento” da cidade, uma vez que esta se apresentava regularmente
molhada, com períodos de forte umidade em função da abundância de águas,
grande parte das quais provinha das chuvas. Nesse sentido, para os
moradores incomodados com o acúmulo e imobilidade das águas, estas não
poderiam permanecer estagnadas, providências como aterramento e
esgotamento das mesmas constavam do rol de determinações para o que era
pensado como funcionamento correto da cidade em relação à lida com a
água. Em outras palavras, as águas acumuladas e expostas em poças, valas,
canais e quintais de moradias, passaram a ser entendidas como elementos em
oposição à cidade que estava em expansão e que deveria enquadrar-se nos
ditames da civilização. (ALMEIDA, p.119, 2010)

Desde então, a preocupação com a aquisição de artigos para equipar as moradias para
a canalização das águas ficou evidente. De acordo com a moda da época, eram escolhidos
objetos cada vez mais refinados para tal fim, como por exemplo as calhas ornamentadas que
tinham a função de coletar e transferir águas escoadas dos telhados.

A sexta edição do Catálogo da fábrica McFarlane’s & Co, contempla três volumes
com peças de ferro, como ornamentos arquitetônicos, peças sanitárias e equipamentos
urbanos. No Volume I (ver figura 3) existem cerca de seiscentos e cinquenta produtos
somente na seção de “Calhas”. Dentre Cabeças ornamentadas, condutores verticais e peças de
acabamento como braçadeiras e parafusos, pode-se encontrar também modelos de meio

686
círculo, círculos completos ou retangulares presos a parede. Ao final das seções eram
apresentadas várias possibilidades de modelos da montagem final das peças ornamentadas.

Figura 3: Páginas do catálogo mostrando variedade de peças (Fonte: Catálogo da McFarlane’s)

Em suma, os ornamentos eram o que enriquecia o estilo eclético na busca pelo apelo
da visualidade europeia nas construções. Assim, pode-se encontrar nos delineamentos das
calhas, diferentes padrões elaborados, que harmonizavam estilos e revivals que acabavam se
tornando obsoletos na Europa, mas bastante duráveis em países mais distantes. Nos catálogos,
a decoração das peças com ornatos, aparentavam inspirações francesas do barroco, rococó e
Art-nouveau. Também não faltavam referências ao gótico, renascimento e a estilística
vitoriana.

687
As Calhas MacFarlane’s nos dias atuais:

Comprovando a qualidade do material, conforme apresentado nos catálogos


MacFarlane’s (COSTA, 1994), é possível encontrar atualmente, exemplares dos itens de ferro
na cidade de Belém, tanto nos bairros do centro histórico, quanto nos bairros adjacentes. As
calhas de ferro são um dos itens que ainda permanecem no cenário urbano.

Durante o levantamento in loco realizado nos bairros da Campina, Cidade Velha,


Reduto e Nazaré, observou-se que muitos exemplares MacFarlane’s ainda permanecem nas
fachadas de diversas construções históricas, desde casarões, centros comerciais, galpões e etc.
Até mesmo em construções que tiveram suas fachadas modificadas completa ou parcialmente,
há a continuidade de uso destes elementos.

Nos bairros do centro histórico da Cidade Velha e Campina foram documentadas 168
calhas de ferro da Walter MacFarlane’s, número maior do que nos bairros adjacentes, Reduto
e Nazaré, onde foram documentadas 137 calhas nos dois bairros. O maior número destes itens
nos bairros do centro histórico se dá principalmente pela Lei Municipal 7709/94, que trata da
preservação e proteção do patrimônio histórico de Belém, que proíbe a alteração da fachada
dos prédios do centro histórico da cidade.

Os bairros adjacentes, ainda assim, apresentam um grande número de calhas


MacFarlane’s. Os bairros Reduto e Nazaré ficam nos arredores do centro histórico da cidade e
possuem famosos representantes arquitetônicos em seus territórios, como o Palacete Bolonha,
no bairro de Nazaré, que apresenta não só as calhas MacFarlane’s, mas como também uma
sorte de outros itens importados da empresa, como gradis, luminárias e peitoris. As calhas
também podem ser vistas em inúmeros casarões de uso comercial e residencial, onde chamam
a atenção por sua beleza e estilo.

Entretanto, as calhas de ferro encontram-se em ambiente externo, onde ficam


diretamente expostas ao intemperismo, como umidade, temperaturas elevadas, poluição e

688
outros. Estes fatores contribuem diretamente para a degradação das ligas metálicas que
compõem as calhas históricas (PALÁCIOS, 2011). A exposição direta a estes fatores acarreta
na corrosão do metal e, consequentemente, em danos irreversíveis à estrutura das calhas.

A corrosão pode ser definida como um processo espontâneo de deterioração de


materiais metálicos, causado pela ação química ou eletroquímica do meio, aliada ou não a
esforços mecânicos (GENTIL, 1996). Este processo é contínuo e compromete definitivamente
a durabilidade e a estrutura dos materiais metálicos, perdendo assim suas características
principais, como a elasticidade e resistência mecânica, sendo o produto desta reação
extremamente pobre nestes termos (RAMANATHAN, 1988).

A corrosão, além de comprometer a estrutura da liga metálica, pode também


desenvolver outras anomalias, que são divididas em superficiais, quando a perda de metal
causa apenas alterações na superfície metálica, como o destacamento de tinta e a mudança na
cor do metal; e anomalias profundas, onde a perda do material atinge níveis maiores,
comprometendo sua estrutura, como diminuição na espessura do metal, lacunas e perda de
elementos (PALÁCIOS, 2011) (Figura 04).

689
Figura 4: Detalhe de uma braçadeira MacFarlane’s apresentando sinais de corrosão e destacamento da tinta.

Dentre os danos documentados nos levantamentos in loco, os principais foram:


Destacamento de tinta, manchas de sujidade e lacunas ocasionadas pela corrosão. Muitas
peças apresentavam danos estruturais, como a falta de componentes da calha (cabeça, corpo
ou braçadeiras). As contaminações por agentes biológicos (musgos ou plantas infiltradas na
estrutura das peças ou da edificação) também foram documentadas em alguns exemplares.

Por conta destes danos, durante o levantamento notou-se a descontinuidade do uso


destas calhas, seja na substituição de partes da calha por materiais contemporâneos, como
PVC, alumínio ou aço; seja na remoção completa da peça. Ambos descaracterizam a estética e
historicidade das peças, justificando assim, a necessidade de ações de salvaguarda – como o
levantamento, documentação e possíveis ações de intervenções restaurativas.

Considerações Finais

690
As calhas de ferro MacFarlane’s ainda estão presentes em grandes bairros da cidade de
Belém, principalmente nos bairros do centro histórico. É possível encontrá-las em fachadas de
casarões residenciais, comerciais e até mesmo em galpões, cada uma com seu estilo e
modelos característicos da empresa MacFarlane’s.

Apesar de suas características estéticas ainda estarem intactas na maioria dos casos,
algumas peças apresentaram danos, como a corrosão da liga metálica, destacamento da
camada de tinta, manchas de sujidade, lacunas na estrutura da peça e outros. A falta de
cuidado e manutenção adequada destes danos é, possivelmente, o motivo da descontinuidade
do uso de algumas calhas, com a remoção completa ou parcial das calhas.

Neste caso, é preciso entender a documentação destes itens como ferramenta de


conservação, uma vez que as transformações urbanas são aceleradas, necessitando assim de
mecanismos que busquem preservar o patrimônio histórico, que em alguns casos, não
recebem a atenção que merecem (ROCHA, 2008), como no caso das calhas de ferro e outros
ornamentos, que são removidos e/ou substituídos de forma arbitrária.

Estes processos também podem nortear as propostas de preservação destas calhas e a


continuidade de uso das mesmas, como a musealização in situ, uma vez que o ato de
musealizar inclui diversas etapas, entre elas a pesquisa, documentação e a conservação de
objetos, afim de atribuir o status de patrimônio ao bem (CURY, 2005).

Este tipo de musealização é um recurso utilizado em diversas áreas, como a


arqueologia, geologia, paleontologia e outros, e permite a permanência dos bens, permitindo a
maior interação com o público e buscando evitar a descontextualização dos objetos
(OLIVEIRA, 2014).

691
Referências Bibliográficas

ALMEIDA, Conceição Maria Rocha de. As águas e a Cidade de Belém do Pará: história,
natureza e cultura material no século XIX. São Paulo: Tese (Doutorado), Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, Programa de Pós-Graduação em História, 2010.

BARRA, Ana Carolina Regis. Fragmentos de sonho: a arquitetura do ferro em Belém.


Cadernos de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo. São Paulo, v. 3, n. 1, p. 9-28, 2003.

COSTA, Cacilda Teixeira da. O Sonho e a Técnica: a arquitetura de ferro no Brasil. São
Paulo: Ed. Universidade de São Paulo, 1994.

CURY, Marília Xavier. Exposição: concepção, montagem e avaliação. São Paulo:


Annablume, 2005.

DERENJI, Jussara da Silveira; CASTRO, José Liberal de (Org). Arquitetura do ferro:


memória e questionamento. Belém: Edições CEJUP: Ed. da UFPA, 1993.

FABRIS, Annateresa (Org). Ecletismo na Arquitetura Brasileira. São Paulo: Nobel; Ed.
Universidade de São Paulo: 1987.

GENTIL, Vicente. Corrosão. 3ª Edição, Rio de Janeiro. Editora LTC, 1996.

KÜHL, Beatriz Mugayar. Arquitetura do Ferro e Arquitetura Ferroviária em São Paulo:


Reflexões Sobre a sua Preservação. São Paulo: Ateliê Editorial, 1998.

PALÁCIOS, Flávia Olegário. Estudo tecnológico do Chalé de Ferro IOEPA: Subsídios


para a salvaguarda da arquitetura de ferro no Brasil. Dissertação (Mestrado) –
Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Arquitetura, Programa de Pós-Graduação em
Arquitetura e Urbanismo. Salvador - BA, 2011.

RAMANATHAN, L. V. Corrosão e seu Controle. São Paulo: Hemus, 1988.

ROCHA, Xavier Cortés. Documentar para conservar: La arquitectura del Movimiento


Moderno en México, Iván San Martín (comp.). México, Universidad Nacional Autónoma
de México, 2008.

692
SILVA, Geraldo Gomes da. Arquitetura do Ferro no Brasil. São Paulo: Nobel, 1986.

WALTER MACFARLANE’S & CO. Sarance Foundry MacFarlane’s Castings:


architectural, sanitary and general iron founders. England. Ed. 6. Volume I.

693
AÇÃO DA LUZ NA PLUMÁRIA:A COR E OS EFEITOS FOTOQUÍMICOS

Bianca Vincente*

Resumo: A pena é matéria prima presente em diversas tipologias de acervos museológicos desde os
Etnográficos e de Artes aos de História Natural. Este material é um tegumento das aves que tem
colorações diversas formadas por dois processos que existem em conjunto, o estrutural e a presença de
corantes. Entretanto, a radiação presente na luz, através de efeitos fotoquímicos, pode causar o
desvanecimento da cor e a fragilização das penas. Sendo assim, destaca-se as peculiaridades da pena,
bem como a necessidade dos profissionais de museus conhecerem os acervos e suas fragilidades, ainda
mais considerando a especificidade dos acervos brasileiros e dos estudos incipientes acerca da
preservação de objetos compostos por penas no Brasil.

Palavras-chave: pena; museus; efeitos fotoquímicos; preservação.

Abstract: The feather is a raw material presente in several typologies of museum collections from the
Ethnographic and the Arts to the Natural History. This material is a bird tegument that has several
colorations formed by two processes that exists together, the structural and the presence of colorants.
However, the radiation present at the light, through photochemical effects, can cause the color fading
and the embrittlement of the feathers. Therefore, the peculiarities of the feather, as well as the need of
the museum professionals to know the collections and their fragilities are highlighted, even more
considering the specificity of the Brazilian collections and the incipiente studies on the preservation of
objects composed by feathers in Brazil.

Key-words: feather; museums; photochemical effects; preservation.

694
A pena, elemento obtido através de pássaros diversos, tem sido uma matéria prima
bastante utilizada para múltiplas finalidades ao longo da história. Seja com o uso em
utilitários, como em travesseiros, ferramenta para a escrita ou mesmo no vestuário como
enfeites de chapéus, armaduras e vestes cerimoniais, é possível encontrar a presença deste
material em diferentes aspectos da vida de variados grupos culturais. Apesar dessa
multiplicidade de usos e consequentemente a grande presença em diferentes tipologias de
acervos museológicos, como os ornitológicos, etnográficos, históricos e artísticos, ainda são
poucas as pesquisas na área da preservação deste tipo de material, em especial no Brasil.

Considerando as pesquisas internacionais, principalmente norte americanas, é possível


encontrar estudos específicos acerca da preservação de objeto com penas, sendo que
atualmente o enfoque de tem sido principalmente o desvanecimento da cor por efeitos
fotoquímicos (HUDON, 2005; PEARLSTEIN et al. 2014; RIEDLER et al. 2014). A radiação
é conhecida como um dos agentes de degradação (MICHALSKI, 2004) entretanto, a forma
como ocorre a ação e como proceder para reconhecer tal degradação ainda é pouco conhecida
para certos materiais, como no caso das penas.

Decorrente de parte da pesquisa de mestrado acerca da conservação de arte plumária


em acervos museológicos, este artigo analisa alguns dos trabalhos publicados sobre o assunto
com o intuito de levantar esta problemática para os museus brasileiros com acervos de
plumária indígena e outros materiais históricos, etnográficos e artísticos que necessitam ter
maior atenção e cuidado sobre seus acervos.

Os efeitos da luz são cumulativos e irreversíveis e mesmo sendo um procedimento


padrão na maioria das instituições buscar evitar as fontes de iluminação que são conhecidas
como inadequadas para os bens culturais, entre outras atitudes voltadas para a preservação do
acervo, ainda assim não é comum ter o conhecimento do motivo real dos riscos desse agente
de degradação. Sendo a forma de ação da radiação e o porquê evita-la informações pouco
conhecidas, esta pode ser uma das causas de omissões, descaso ou mesmo a perda não
intencional de acervos.

695
Pena como matéria prima

Dentro dos museus as peças que são compostas por penas podem ser consideradas
como peças de risco, haja vista serem de grande fragilidade. As coleções que possuem são as
mais diversas pelo uso nas mais diversas esferas da vida humana. Durante toda a história
ocidental houve casos específicos acerca do uso de penas especialmente no vestuário. Há
registros desde a Antiguidade, onde romanos e gregos utilizavam penas de avestruz (Struthio
camelus), em trajes militares. Um fato muito conhecido foi o uso em escalas sem precedentes
de peles e penas de aves para a feitura de chapéus e leques que proliferou na indústria da
moda na Europa e na América durante o século XIX. Este uso exacerbado de pássaros foi
responsável por causar risco de extinção a diversas espécies de aves e posteriormente teve
como reação a mobilização de grupos que se reuniam em ações protetivas destes animais
(GRAEMER; KITE, 2006).

No Brasil o uso mais conhecido das penas é na arte plumária indígena proveniente de
várias etnias. As coleções de Etnografia de museus com acervos numerosos como o Museu
Nacional (RJ), o Museu Paraense Emílio Goeldi (PA), o Museu de Arqueologia e Etnologia
da USP (SP), o Museu do Índio (RJ), entre outros; reúnem significativas amostras da arte
plumária. Esta tipologia de peça geralmente tem a pena como matéria prima incorporada com
materiais como fibras, pelos, sementes, tecidos e outros que a partir das técnicas de
emplumação formam as peças plumárias. O próprio uso é muito variado, haja vista serem as
penas aplicadas a brinquedos, utensílios domésticos, adornos corporais de uso diário ou uso
cerimonial e mesmo aplicadas sobre o próprio corpo (NICOLA, DORTA, 1986). A plumária
indígena pode ser conceituada como:

[...] conjunto de técnicas destinadas ao tratamento de matéria-prima plúmea


para a manufatura de artefatos, compreendendo as técnicas de emplumação
(amarração, colagem, montagem), armazenagem e transformação (ex.

696
tapiragem), largamente utilizadas para confeccionar adornos corporais.
(MOTTA, 2006, p.102)

A pena também aparece em outras tipologias de acervos como a de História Natural


onde se tem coleções ornitológicas nas quais a pena costuma estar ainda acoplada a pele da
ave. As formas de preparação das amostras neste tipo de coleção são extremamente
específicas e são feitas voltadas principalmente para o uso em estudos científicos. No Brasil
muitos museus têm esta tipologia de acervo, sendo que no Museu de Zoologia da
Universidade de São Paulo, bem como no Museu Paraense Emílio Goeldi e no Museu
Nacional que estão as maiores coleções ornitológicas (PIANCENTINI, et al. 2010, p. 13).

Outra tipologia de acervos em que é possível encontrar a presença da pena como


matéria prima é na de Arte, em especial na arte contemporânea. Esta área é conhecida por
utilizar uma miscelânea de materiais, entre os quais também é possível elencar a pena, seja
como suporte ou material principal. Como exemplo é possível citar as obras da artista inglesa
Kate MaccGwire que usa penas de pombo em esculturas que se assemelham a um fluxo de
água (fig. 1) para discutir a ideia de belo e feio (DEVJACQUE, 2010).

697
Figura 1: Obra de arte contemporânea que faz uso de penas.

Fonte: http://obviousmag.org/archives/2010/03/esculturas_de_penas_como_fluxo_da_agua.html

Estes são apenas alguns exemplos que demonstram como a pena está presente em
diversos elementos da vida cotidiana e consequentemente inseridas nos mais diversos acervos
museológicos. Sendo assim, faz-se necessário que os profissionais de museu que trabalham
com a preservação, seja na área de conservação preventiva, conservação curativa ou restauro
desses acervos, estejam preparados para entender as demandas deste material e sejam
capacitados para tomarem as decisão que beneficiem o acervo. Portanto, o conhecimento
acerca da composição e estrutura, bem como das fragilidades deste material é essencial a sua
preservação.

A pena como matéria prima: estrutura e formação da cor

As penas, utilizadas como matéria prima em todas estas funções, obras e acervos são
tegumentos complexos e bem estruturados das aves. Uma pena é composta basicamente 91%
de proteína que é a queratina, 8% de água e 1% de lipídios (BISHOP MUSEUM, 1996). No

698
tipo de pena conhecido como pena de contorno, é possível observar uma simetria bilateral e
tem aparência fusiforme. Como possível observar na figura 2 a estrutura da pena é composta
por uma haste central, tendo sua parte superior chamada de raque, e a parte inferior conhecida
como canhão ou cálamo. Esta raque é lateada por centenas de eixos menores chamados de
barbas, sobre as quais estão outros filamentos ainda menores chamados bárbulas. Nas
bárbulas é possível encontrar diminutos ganchos também chamados de barbicelas ou hámulos.
As bárbulas são quase invisíveis a olho nu, porém, ao entreabrir o segmento de barbas é
possível visualizar estas pequenas estruturas e perceber o efeito de Velcro causado pelas
barbicelas (PROCTOR; LYNCH, 1993).

A união das barbas é conhecida como vexilo que é composto por diferentes gradações
de aparência das barbas. Cada tipologia de pena irá apresentar características próprias em
relação à disposição do vexilo, nas penas de voo conhecidas como rêmiges, por exemplo, o
vexilo é assimétrico sendo seu lado externo estreito em relação ao lado interno para favorecer
a aerodinâmica. Entre as diferentes gradações que formam o vexilo nas penas de contorno
podemos observar três etapas, a mais próxima ao cálamo é mais macia e solta, podendo ser
chamada de porção plumácea, por ter aparência característica das plumas. A parte superior é
composta por uma área onde há maior interligação entre as barbas deixando um aspecto mais
denso, conhecida como porção penácea normal. Por fim, há o contorno externo da porção
penácea normal que é um pouco menos denso e sendo assim a porção penácea aberta
(PROCTOR; LYNCH, 1993).

699
Figura 2: Estrutura da pena

Fonte: elaborado pela autora

Considerando as coleções museológicas brasileiras, o colorido destas peças deve


receber maior atenção no momento do seu acondicionamento e exposição, haja vista a
fragilidade de tais matérias primas. No caso dos acervos de arte plumária indígena e algumas
peças de vestuário, as penas podem receber alguma forma de tratamento para a alteração da
cor, seja através da tapiragem1 ou mesmo de tingimento. Neste trabalho apenas a coloração
natural será considerada.

1
Técnica permite ao artífice obter uma pena de coloração diferente da originalmente apresentada pelo pássaro
através de uma descoloração artificial da plumagem feito através do arranque das penas, principalmente de
araras e papagaios sendo, posteriormente, passando no local ou fazendo os pássaros ingerirem substâncias de

700
As penas são diretamente relacionadas com a riqueza do colorido da plumária. Apesar
de não ser o único, a coloração das penas é muitas vezes um dos principais aspectos para a
manufatura das peças plumárias indíegnas, por exemplo, sendo explorada tanto por sua
estética quanto por seu significado.

Enxergamos as cores através da luz que é composta por todas as cores visíveis, mas ao
entrar em contato com as superfícies pode ter parte de suas frequências absorvidas, deixando
o restante ser refletido, sendo esta a parcela que nos é possível enxergar. Portanto, são os
processos e absorção e reflexão das ondas de luz que moldam as cores como vemos.
Entretanto, a forma como enxergamos pode se diferenciar por influência de diversos outros
fatores que vão desde os ângulos de visão e incidência da luz, forma e estrutura das
superfícies observadas e até mesmo a percepção.

Nas penas a formação de cor é comumente dividida entre a coloração estrutural e a


coloração por corantes (PROCTOR, LYNCH, 1993; HUDON, 2005; RIEDLER et al., 2014).
A coloração por corantes é decorrente da absorção de específicas ondas de luz por
determinados elementos bioquímicos presentes na composição da pena, como os
carotenoides, a melanina, os psittacofulvins e as porfirinas, sendo que visualizamos as cores
que não são absorvidas. Por outro lado, a coloração estrutural está associada à dispersão
sofrida pela luz em nanoestruturas biológicas de diferentes índices de refração.

Apesar de tal divisão ser feita de modo a facilitar o entendimento da formação da cor
nas penas, é importante destacar que ela se refere às predominâncias encontradas e não na
exclusividade de um modo de produção de cor. Portanto, as penas com coloração por corantes
também possuem influência da cor formada em sua estrutura, enquanto que as com
predominância de coloração estrutural geralmente estão associadas aos corantes. As únicas
penas que podem não ser consideradas uma mistura das duas formas são aquelas totalmente
brancas que consequentemente vem a ser apenas estruturais (RIEDLER et al. 2014).

origem vegetal ou animal, o que fazem com que a plumagem originalmente verde ou azul nasça de uma cor
amarela (DORTA, CURY, 2000).

701
A coloração das penas das aves é feita através do absorver e refletir da luz
diferentemente de acordo com os distintos corantes e suas abundâncias. As cores decorrentes
de corantes podem ser endógenas, que são metabolizados pelo organismo do animal, ou
exógenas, os quais são obtidos através da dieta alimentar (RIEDLER et al. 2014). Entre os
corantes exógenos podemos elencar os carotenoides, os quais estão entre os principais
corantes naturais, enquanto que entre os endógenos, podemos destacar a melatonina. É
possível conhecer melhor os corantes na tabela 1.

Carotenoides são responsáveis pela coloração vermelha, amarela e laranja de frutas,


flores, fungos, bactérias, algas, assim como dos animais (MORAIS, 2006), entre eles diversas
espécies de aves. Estes elementos são sensíveis à luz, ao calor, ao oxigênio, à umidade e
acidez, agentes externos que podem provocar a isomerização. Apesar desta fragilidade,
também há outros mecanismos na pena que permitem a proteção dos carotenoides, como a
própria queratina que ajuda a inibir a oxidação (RIEDLER et al. 2014).

Outro corante é a melanina, um dos mais comuns nas penas. Diferente do carotenoide,
a melanina é um corante endógeno, ou seja, não depende de sua ingestão através da
alimentação. Este importante corante é responsável pela maioria das cores escuras como o
marrom, preto, castanho amarelado e alguns tons de marrom avermelhado que variam de
acordo com a quantidade, variedade e distribuição de melanina na pena. Diferentes tipos de
melaninas estão presentes em uma única pena, sendo que todas as penas melanizadas têm
grânulos tanto de eumelanina quanto de phaeomelanina e a proporção destes que irá
determinar a cor da estrutura. A melanina, além de contribuir para a coloração da pena
também auxilia na resistência da pena, fortalecendo sua estrutura, especialmente a eumelanina
(RIEDLER et al, 2014).

Além da melanina e dos carotenoides, que são os corantes mais conhecidos, há outros
como a porfirina e os psittacofulvins. Os psittacofulvins são corantes exclusivos da ordem dos
psitaciformes, que contém mais de 360 espécies das famílias Psittacidae, Strigopidae e
Cacatuidae, como os papagaios, cacatuas e araras. Estes corantes são responsáveis pela cor

702
vermelha, laranja e amarela, destas aves. São corantes endógenos, ao seja, não dependem da
alimentação do pássaro.

As porfirinas são responsáveis por diversas cores como rosa, marrom, vermelho e
verde. Existem duas classes de porfirinas nas penas, as naturais e as metaloporfirinas, sendo a
última diferente por conter ferro ou cobre, como por exemplo, alguns corantes presentes na
família do turacos como o turacin e o turacoverdin, responsáveis pelo vermelho e o verde,
respectivamente (RIEDLER, et al. 2014). As porfirinas geralmente são encontradas apenas
em novas penas, e é observada uma grande instabilidade fotoquímica nestes corantes, com
exceção do turacin que, é quimicamente estável.

703
Tabela 1: Corantes presentes nas penas e suas respectivas cores

Alguns corantes presentes nas penas e suas respectivas cores

Preto

Eumelanina Cinza

Marrom escuro
Melanina
Marrom claro

Phaeomelanina Vermelho tijolo

Amarelo opaco

Lutein (a
xanthophyll),
Amarelo brilhante
zeaxanthin, beta-
carotene
Carotenoides

Astaxanthin,
rhoxanthin, Vermelho brilhante
canthaxanthin

Turacoverdin Verde

Turacin Vermelho
Porfirinas

Marrom, marrom
Coproporfirina III
avermelhado

704
Fonte: Baseado em Proctor e Lynch (1993)

Por outro lado, a coloração estrutural, diferente da coloração com corantes, não é
obtida através da absorção de comprimentos de onda, mas de sua dispersão coerente ou
incoerente causada por questões estruturais da pena. A coloração estrutural também pode ser
subdivida em duas outras categorias a iridescente e a não iridescente, sendo classificada assim
por mudar ou não a cor em diferentes ângulos de visão ou iluminação (HUDON, 2005).
Algumas das cores e sua formação podem ser observadas na tabela 2. As cores não
iridescentes são produzidas na estrutura das barbas, e, não possuem uma estrutura altamente
organizada como no caso das iridescentes. Em geral, a coloração estrutural não iridescente
está associada aos corantes para gerar a tonalidade visível das penas.

As cores estruturais iridescentes estão vinculadas principalmente a grânulos de


melanina abundantes nas bárbulas de pássaros com este tipo de coloração e com a
organização complexa de suas nanoestruturas. Neste tipo de coloração é possível observar a
mudança de cor que varia dependendo do ângulo de iluminação e da posição do observador.
Para a formação deste tipo de cor é necessário que a pena tenha uma estrutura complexa de
camadas nas paredes de suas células que através de uma organização específica e ordenada de
componentes com diferentes índices de refração alternados é capaz de causar o efeito de
iridescência ao refletir a luz (PROCTOR, LYNCH, 1993; RIEDLER et al, 2014).

Tabela 2: Formação da coloração predominantemente estrutural.

Formação da coloração predominantemente estrutural

Branco Estrutural apenas

Azul Estrutural, raramente causado por

705
corantes

Geralmente estrutural, porém


algumas vezes é causada pela
Verde
combinação do amarelo
(carotenoide) e preto (melanina)

Principalmente estrutural, embora


os grânulos de melanina sejam
Cores iridescentes
quase sempre abundantes em
penas iridescentes

Fonte: Baseado em Proctor e Lynch (1993)

Efeitos da luz na plumária: desvanecimento da cor e fragilização da matéria.

Para entender a ação da luz nas peças de museus e neste caso em especial a pena, é
necessário conhecer alguns aspectos do espectro eletromagnético, haja vista que ao falarmos
da radiação como agente de degradação não é apenas se referindo a ação da luz visível, mas
também abarca outros níveis de radiação. Podemos classificar três principais faixas deste
espectro que são a radiação infravermelha (entre 100.000 nm e 700nm); a luz visível (entre
400nm e 700nm) e a radiação ultravioleta (entre 400nm e 10nm). Cada uma dessas faixas
afeta os bens materiais de uma forma específica de acordo com a interação com átomos e
moléculas que ocorre de acordo com as energias de radiação (SOUZA, 2008, p. 13). As
diferentes formas de radiação podem ser melhor observadas no espectro eletromagnético da
figura 3.

706
Figura 3: espectro eletromagnético

Fonte: SOUZA, 2008, p. 14.

Quanto maior o comprimento de onda maior a energia da radiação e quanto maior essa
energia mais prejudicial é a radiação. A radiação ultravioleta pode ser vista como mais
prejudicial, assim como a radiação da luz visível, tudo dependendo dos níveis encontrados de
acordo com os comprimentos de onda. A radiação infravermelha, por outro lado, apesar de
não ser tão prejudicial diretamente sobre o objeto, causa o aumento de temperatura. A
presença de radiação UV afeta especialmente os materiais orgânicos e pode causar alterações
químicas e físicas (SOUZA, 2008). A medição do nível de UV na luz visível é calculada
através da medida de microwatts por lúmen (µW/lúmen), sendo que atualmente o nível
aceitável para bens patrimoniais é de 75 µW/lúmen (TEIXEIRA, GHIZONI, 2012).

Além da quantidade de UV, também deve ser medida a luminescência, que é a


quantidade de luz visível que chega a uma superfície (SOUZA, 2008, p. 20), indicada pelo lux
(lúmens por m²). Comumente são tidas três faixas de níveis de lux para os materiais sendo que
para os mais resistentes a ação da radiação da luz visível o indicado é de no máximo 300 lux,
como por exemplo as pedras e metais; já um nível intermediário é de 150 lux para objetos em

707
madeira e gesso; aos mais frágeis, nos quais se enquadram objetos com plumas e penas, o
máximo indicado é de 50 lux (ALAMBERT et al. 1998)

O desvanecimento da cor causado pela luz é possivelmente a forma de degradação


mais estudada atualmente dentre os pesquisadores em plumária, como é possível observar em
trabalhos como Hudon (2005) Pearlstein et al. (2014); Pearlstein et al. (2015); Riedler et al.
(2014). Mesmo sendo vista nesse contexto como nociva para as penas, devemos considerar o
papel dúbio deste agente, pois, “para a Conservação Preventiva, a luz deve ser entendida de
várias maneiras: tanto como agente que permite ao observador apreciar uma obra de arte
através de suas cores, textura e brilho, como também um dos mais importantes agentes de
degradação.” (SOUZA, 2008, p. 13).

Para entender a ação da luz sobre a cor das penas é preciso entender a formação de cor
na pena, que, conforme anteriormente explicado, é através de corantes e pela conformação
estrutural de nanoestruturas das penas. A principal forma ação da radiação sobre a cor é
através da energia contida nas ondas de luz que atinge as penas e começa a quebrar suas
ligações moleculares. Essa quebra resulta em desbotamento da cor ou alterações visuais do
objeto, e dependendo do elemento presente na pena pode ocorrer através das reações de
oxidação e isomerização. Estas são, por exemplo, as principais formas de degradação do
carotenoide, haja vista estes processos causar danos ao carotenoide e com isso podem levar a
mudanças na coloração das penas (RIEDLER et al. 2014).

Demostrando como as marcas da ação da luz se mantém nas peças de plumária um dos
testes utilizados no estudo desenvolvido pela University of California, Los Angeles (UCLA) e
o Getty Conservation Institute (GCI), utilizou o teste de fluorescência visível induzida por
UV2. Técnica utilizada em diversos tipos de materiais desde ossos, têxteis e pinturas, este

2
Conforme explicado com o espectro eletro magnético, a radiação ultravioleta não é visível a olho nu,
entretanto, quando é emitido por uma lâmpada de ultravioleta para a superfície de um objeto pode algumas vezes
se transformar em cores visíveis e são estas cores conhecidas como a fluorescência visível induzida por
ultravioleta e apesar dos danos já apontados pela ação da radiação de ultravioleta este teste não é considerado

708
teste, unido a outros exames, permite que se obtenha informações sobre identificação de
material e sobre as condições em que se encontra o artefato (CONSERVE O GRAM, 2000).
No estudo de UCLA/GCI foi possível constatar que a técnica, ao ser utilizada na plumária,
auxiliou na identificação de certos mecanismos de formação das cores nas penas e além disso
foi capaz de destacar evidências de danos causados por efeitos fotoquímicos.

Com testes realizados em penas brancas de um peru branco doméstico (Meleagris


gallopavo) e penas de um íbis-escarlate (Eudocimus ruber), sendo estas mantidos em
diferentes ambientes de iluminação controlada para o envelhecimento e posteriormente
expostas ao teste com fluorescência induzida por UV, foi constatado que é possível perceber
alterações mesmo com exposições limitadas da pena a radiação ultravioleta. Seja durante a
vida de uso cultural ou nos museus, esta exposição leva a alterações químicas na queratina da
pena e que com longos períodos de exposição a esta radiação foi possível observar alterações
dramáticas tanto de cor como de fragilização em ambas as amostras de penas (PEARLSTEIN
et al, 2014).

Logo, é possível perceber que este desvanecimento da cor por exposição à luz é o dano
mais evidente, isso porque visualmente percebido, porém já está agindo sobre o objeto mesmo
antes de sua visualização a olho nu. Sendo que tais danos são graduais e irreversíveis, pois
como, explicitado anteriormente, os efeitos da luz sobre as superfícies são culmulativos.
Entretanto, como demosntrado na pesquisa supracitada a luz também pode causar outros tipos
de avarias como a fragilização das penas por danificar a queratina. Normalmente a primeira
indicação deste tipo de dano é o desprendimento de pequenos pedaços das barbas que se
quebram (BISHOP MUSEUM, 1996).

Algumas possíveis considerações

como destrutivo haja vista a quantidade absorvida pela peça durante o teste ser mínima (CONSERVE O GRAM,
2000).

709
Considerando que são acervos museológicos, a solução não é guardar as peças sem
nenhum acesso a iluminação, haja vista ser algo possível e indicado para objetos em reservas
técnicas, porém inviável em caso de exposição. Algumas medidas práticas são indicadas em
manuais de conservação preventiva como Teixeira e Ghizoni (2012) e Costa (2006). Entre as
principais medidas presentes em ambos casos podemos elencar o uso de filtros contra UV em
lâmpadas fluorescentes; evitar expor os objetos diretamente sob os raios solares podendo
fazer uso de cortinas e persianas; manter as luzes apagadas quando não houve visitação;
lâmpadas incandescentes devem ficar longe do acervo.

Estas recomendações, apesar de serem próximas ao que se entende como um bom


senso muitas vezes não têm suas utilidades compreendidas e são vistas como pouco
necessárias. Entretanto, assim como os objetos compostos por penas cada material vai ter sua
forma de reagir a ação da radiação e, portanto, faz-se necessário uma ação de conscientização
dos profissionais de museus de conhecer seus acervos e suas fragilidades, bem como a ação
dos diferentes agentes de degradação sobre eles.

Outrossim, é apontada a necessidade de haver maiores esforços dos museus e


profissionais brasileiros que atuam diretamente sobre a preservação de acervos para promover
e difundir estudos acerca de materiais mais específicos como a pena. É indubitável que cada
material tem especificidades que não necessariamente correspondem a uma tipologia de
acervo como um todo, e é essencial compreender que nossos acervos de plumária e nossas
aves brasileiras utilizadas para sua feitura têm suas peculiaridades que devem ser estudadas e
consequentemente mais bem preservadas.

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710
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711
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VOITKEVICH, A. A. The feathers and plumage of birds. New York: October House Inc.,
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712
CRITÉRIOS E PROCEDIMENTOS DE HIGIENIZAÇÃO E MARCAÇÃO NAS
COLEÇÕES ARQUEOLÓGICAS DO LEPA/UFSM (2012-2016)

Luciana Oliveira Messeder Ballardo*


Marjori Pacheco Dias*

Resumo: Este artigo apresenta os critérios e procedimentos relacionados a higienização, e a marcação


de objetos no acervo do Laboratório de Estudos e Pesquisas Arqueológicas da Universidade Federal de
Santa Maria no período entre 2012 e 2016, embasado em estudos teóricos e experimentações
realizadas por técnicos e pesquisadores da instituição.

Palavras-chave: Acervos arqueológicos; Preservação; Procedimentos.

Abstract: This article presents the criteria and procedures related to hygiene and to mark of objects in
the collection of the Laboratório de Estudos e Pesquisas Arqueológicas da Universidade de Santa
Maria between 2012 and 2016, based on theoretical studies and experiences which had been done by
institution’s technicians and researchers.

Key-words: Archaeological collections; Preservation; Procedures.

713
Os objetos são testemunhos que preservam intrinsecamente informações que, de outra
maneira, não teríamos acesso. Através deles é possível adquirir referências históricas e
culturais e familiaridade com contextos que permitem compreender melhor a memória
preservada de grupos e sociedades que hoje não existem mais.

Os desafios na preservação do patrimônio arqueológico estão diretamente relacionados


com as especificidades dos artefatos, que por sua vez, exigem diferentes métodos de
conservação que visem atender as particularidades dos objetos arqueológicos.

Os procedimentos apontados nesse texto podem parecer desconectados, visto ser o


primeiro da área de conservação preventiva, e o segundo, da documentação museológica, no
entanto, ambos são realizados visando a preservação do objeto, tanto em sentido físico como
direcionado para as informações, intrínsecas ao objeto (no caso da higienização), quanto para
manutenção da identificação e acesso aos dados (marcação).

Os dados apresentados a seguir estão relacionados aos trabalhos realizados no


Laboratório de Estudos e Pesquisas Arqueológicas da Universidade Federal de Santa Maria,
durante quatro anos mar/2012 a abril/2016, período em que as autoras m a equipe de pesquisa
da instituição.

Do estabelecimento de critérios e procedimentos


Inicialmente, ressalta-se que esses artefatos estiveram enterrados em espaços que
criaram um microclima, que permitiu, de certa maneira, sua preservação até nossos dias, mas
que, muitas vezes, quando retirados desse ambiente, precisam de cuidados especiais para não
sofrerem efeitos acelerados de degeneração. (SALLÉS, 2014) Em vista disso, é necessário
que o tratamento dos objetos coletados em campo inicie, o quanto antes, se possível, antes
mesmo da entrada do material na instituição.

É importante frisar que o objeto precisa de cuidados ainda maiores para manter seu
estado de conservação no seu tempo de vida depois da entrada instituição, não apenas para a

714
realização de futuras pesquisas, mas também como fonte de memória, levando em conta que
“é necessário refletir sobre o fato de que o patrimônio cultural é não renovável e que as
gerações futuras têm o direito de conhecê-lo.” (CÂNDIDO, 2004, p. 22).

Dessa forma, é importante estabelecer, a partir do estudo dos materiais que compõem
os objetos, os procedimentos mais adequados para realizar a conservação preventiva,
considerando que

(...) enfoca todas as medidas que devem ser tomadas para se aumentar a vida
útil do objeto ou retardar seu envelhecimento. Para isto, deve-se, em
primeiro lugar, conhecer a estrutura física da peça, ou seja, a matéria e a
técnica empregadas na sua confecção, as quais, conjuntamente, irão definir
procedimentos básicos de conservação. (DRUMOND, 2002, p.108).

Os materiais que compõem as peças promovem um equilíbrio físico-químico com o


espaço onde está inserido, e por isso é importante não apenas mantê-las em locais adequados,
mas também manter a estabilidade desses ambientes. A sobrevida do objeto depende
diretamente do monitoramento periódico efetuado pela equipe técnica, das condições
adequadas de conservação e da higienização regular do acervo.

A partir da observação e registro periódicos do estado de conservação dos artefatos


que compõem as coleções, concluiu-se que o material lítico, de forma geral, possuía um alto
nível de contaminação por fungos, enquanto o material de cerâmica pré-colonial, estava quase
inteiramente sob ataque de insetos.

Ambientes com alta umidade e pouca ventilação, como é o caso do Laboratório,


facilitam o desenvolvimento de agentes biológicos, principalmente os micro-organismos e
insetos. O ataque por fungos e bactérias pode ter efeitos profundamente danosos ao acervo.
Apesar de normalmente esses tipos de agentes atacarem os materiais orgânicos, também
danificam pedras e metais, principalmente na presença de umidade alta e poeira.

715
Na figura abaixo, observa-se um exemplar lítico do acervo do Laboratório
contaminado por fungos. Devido à inviabilidade financeira da instituição em adquirir
desumidificador e outros mecanismos que atenuassem os problemas causados, principalmente
pela umidade relativa alta que se apresenta no ambiente, optou-se por organizar o espaço de
maneira que as peças ocupassem partes do ambiente com menor umidade e afastados de
paredes e proceder a manutenção periódica da limpeza dos espaços onde as peças estavam
acondicionadas.

Figura 1: Material lítico contaminado com fungos. Acervo LEPA.

Foto: Acervo LEPA, 2012.

No acervo arqueológico principalmente a cerâmica sofre ataques de insetos,


frequentemente de cupins, que normalmente, preferem ambientes com temperatura
aproximada de 30°C com umidade relativa por volta dos 65%, assim como os demais insetos,
com exceção das traças que preferem ambientes mais secos. O LEPA-UFSM tem uma média
de temperatura anual acima de 70%, segundo dados coletados por termo higrômetro.

716
A Figura 2 apresenta um fragmento cerâmico em que foi detectado o ataque de insetos
a partir do monitoramento periódico do aparecimento de novos orifícios e micro-orifício nos
objetos.

Figura 2: Cerâmica atacada por fungos e com presença de micro-oríficios. Acervo LEPA.

Foto: acervo LEPA, 2013.

A higienização e o monitoramento periódico foram as principais táticas adotas para


combater o ataque de insetos nas peças cerâmicas, visto que a limpeza das peças é
procedimento fundamental para possibilitar a utilização do material na pesquisa arqueológica,
como também para o posterior acondicionamento e guarda.

717
No entanto, cada material possui necessidades diferentes quanto a realização de
limpeza, e estes devem ser adotados após análise não apenas da composição dos objetos, mas
também do estado de conservação do artefato.

Dos procedimentos de higienização

Os procedimentos empregados na higienização estão diretamente relacionados com a


tipologia dos materiais que o compõem, sendo assim, primariamente, se realiza um estudo
sobre os materiais que constituem a peça, para então determinar o melhor modo de proceder a
limpeza e acondicionamento.

Embora existam hoje técnicas mais avançadas de higienização, as mais usuais ainda
são: a limpeza física e a química. Cada peça deve ser avaliada individualmente para
verificação de qual(is) procedimento(s) deve(m) ser empregado(s).

As tipologias e procedimentos realizados são correspondentes aos materiais presentes


nas coleções do LEPA e estão assim distribuídas:

Para cerâmica, em geral, o procedimento de limpeza é escova de sapato ou pincel


com cerdas macias umedecido com água, e a escova de dente macia para aplicar nas
reentrâncias. No entanto, em caso de material cerâmico em processo de deterioração a
limpeza foi procedida com a extremidade dos dedos umedecidos. Diferentemente, no caso de
cerâmica pintada, o processo de limpeza foi realizado a seco com pincel para retirar o pó.

O lítico, em geral, tem uma boa resistência aos procedimentos de limpeza física, por
isso, utilizou-se água e uma escova de roupa de cerdas macias. No caso de ataque de fungos,
os pesquisadores do LEPA têm utilizado com sucesso uma escova de dente com cerdas
macias umedecida com álcool a 96%.

Para a higienização de metais no LEPA o processo de limpeza estabelecido aplicava a


retífica, conforme visualizado na Figura 3, visto que conserva as informações intrínsecas ao
objeto, retirando a sujidade e oxidação da peça, enquanto a higienização nas reentrâncias do

718
objeto optou-se pelo uso da micro-retífica, Figura 4. Esse instrumento é semelhante à
miniberbequim sugerida por Queimado & Gomes (2007, p. 141) para polimento de metais.

Figura 3: Procedimento de higienização de metais. Acervo LEPA.

Foto: acervo LEPA, 2012.

719
Figura 4: Pesquisadora do LEPA aplicando procedimento de higienização em metais. Acervo LEPA.

Foto: acervo LEPA, 2013.

Após a limpeza, adotou-se a prática de selar o material com cera, seguindo como
parâmetro o trabalho realizado pela equipe de conservação do Museu Nacional de Arte
Africana, vem utilizando o processo de aplicação da cera microcristalina, após o processo de
raspagem, conforme também proposto por Rodgers (2004, p. 20).
Para o vidro adotou-se como procedimento o uso de pincel ou escova de cerdas
macias, a seco, sem friccionar a peça, principalmente nas áreas frágeis ou que sofreram
processo de restauro.

720
Quanto ao material ósseo, o procedimento adotado para a remoção de sedimentos foi a
limpeza com álcool, por ser um líquido mais volátil e que minimiza os riscos de infiltração
nos ossos, sem exposição à luz solar, nem mesmo no processo de secagem.

A preservação do patrimônio arqueológico depende não apenas da utilização de


processos de conservação preventiva, mas também a aplicação de procedimentos adequados
ao realizar o processo de marcação dos objetos, tema este apresentado a seguir.

Procedimentos e critérios de marcação

A marcação de objeto é quesito a ser observado não apenas para manutenção da


conservação do artefato, mas também para evitar possíveis interferências que possam obstruir
a “leitura” da peça.

Na cerâmica efetuou-se a aplicação de camada de esmalte incolor com brilho e depois


da secagem, escrevia-se o Número de Registro com caneta nanquim 0,1 mm, preta ou branca
(para superfície clara, uso da tinta preta, enquanto para superfície escura, tinta branca), e após,
aplicava-se uma nova camada de verniz, realizando a impermeabilização do registro efetuado.

A aplicação da numeração era aplicada preferencialmente na parte interna – salvo o


fato de haver, no objeto, decoração na parte interna e não ter na externa -, em extremidade do
fragmento, nunca junto da borda, nem nas laterais do fragmento.

Para porcelana e semelhantes usou-se etiqueta de Papel Accid Free transparente, e a


marcação é feita com caneta nanquim 0,1 mm. Após a secagem, aplicava-se uma camada de
esmalte incolor para impermeabilização.

Para líticos, os procedimentos de marcação foram os mesmos usados para cerâmica.


Os critérios quanto à localização da marcação na peça, ficam definidos, segundo Comerlato
(2004, p. 37-38): para lascas, na parte ventral; instrumentos bifaciais e unificais, na posição
central; em ponta de projétil, na parte que estaria presa a uma haste; e em machado polido, no
local de encabamento do objeto.

721
Quando o vidro não era translúcido eram aplicados os mesmos procedimentos usados
para cerâmica. No entanto, para os translúcidos era utilizado o mesmo procedimento aplicado
em porcelanas: etiqueta de Papel Accid Free transparente marcada com caneta nanquim 0,1
mm e aplicação de camada de esmalte incolor após a secagem.

Figura 5: marcação de vidro. Acervo LEPA.

Foto: acervo LEPA, 2012.

A técnica aplicada para os metais e ossos são as mesmas da cerâmica, utilizando, no


entanto, o critério para a marcação em material ósseo era a aplicação, preferivelmente, nas
extremidades.
Em alguns casos, ocorria a impossibilidade de efetuar a marcação na peça, sendo
assim, realizava-se diretamente na embalagem onde o objeto está acondicionado, como é
possível visualizar na Figura 6.

722
Figura 6: marcação em fragmento ósseo em que o estado de conservação não permitiu marcação diretamente na
peça. Acervo LEPA.

Foto: acervo LEPA, 2012.


Em virtude dessas especificidades mencionadas, a preservação do patrimônio
arqueológico tem sido preocupação constante de conservadores e profissionais que trabalham
com a curadoria de maneira geral, e por isso, mais recentemente, têm discutido métodos
específicos de tratamento para serem aplicados neste tipo de acervo.

Considerações Finais

Os procedimentos relatados neste trabalho foram estabelecidos através das referências


bibliográficas citadas, e ainda outras estudas e consultadas, que de uma forma mais

723
abrangente nortearam os trabalhos desenvolvidos no laboratório e o embasamento técnico
para colaborar com a área de preservação do patrimônio arqueológico.

No entanto, muitos outros procedimentos aqui relatados e que são utilizados no LEPA
foram descobertos a partir da experimentação de membros da equipe de pesquisa. E em
alguns casos, foram realizadas experimentações antes mesmo de encontrado um suporte
teórico, que posteriormente, após pesquisas, foram descobertos a partir de referências de
trabalhos desenvolvidos na mesma direção em outras instituições.

Ainda há muito que se realizar e aprofundar na área de estudo da curadoria de acervos


arqueológicos e as contribuições são sempre bem-vindas. As experiências de profissionais
envolvidos nesses estudos aumentam o conhecimento técnico e científico para a preservação
de bens arqueológicos, objetivo deste trabalho.

Referências Bibliográficas
CÂNDIDO, M. M. D. Cultura material: interfaces disciplinares da Arqueologia e da
Museologia. Revista Cadernos do Ceom, v. 18, n. 21, 2014, p. 75-90.

COMERLATO, F. Caderno da Oficina Arqueologia & Preservação. XXI Encontro Regional


do NEMU. Gaspar, abril de 2004.

DRUMOND, M. Ce. de P. Preservação e Conservação em Museus. In: Ministério da Cultura,


Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/Departamento de Museus e Centros
Culturais (Org). Caderno de diretrizes museológicas I. 2. ed. Belo Horizonte: Secretaria de
Estado da Cultura/Superintendência de Museus, 2002, p. 107-133.

QUEIMADO, Paulo & GOMES, Nivalda. Conservação e restauro de arte sacra, escultura
e talha em suporte de madeira: manual técnico. Coimbra: CEARTE, 2007.
RODGERS, B. A. The Archaeologist’s Manual for Conservation. New York: Kluwer
Academic/Plenum Publishers, 2004.

SALLÉS, J.M. O patrimônio e o rol do conservador arqueológico. Boletim do MAE.


Salvador, fev/jul de 2014, Informativo semestral, Número 7, Ano 2, p. 5-6.

724
MUSEU DA FORÇA EXPEDICIONÁRIA BRASILEIRA: UMA EXPERIÊNCIA EM
DOCUMENTAÇÃO MUSEOLÓGICA

Aline Damasceno Santana*


Verona Campos Segantini*

Resumo: O presente artigo tem como objetivo discorrer acerca das atividades desenvolvidas no
Museu da Força Expedicionária Brasileira Regional Belo Horizonte (Museu da FEB-BH) que
privilegiou a área de documentação museológica, tendo como foco o acervo fotográfico doado pelo
Major John William Buyers à instituição. Parte-se, portanto, da importância da documentação
administrativa e museológica como ferramentas de salvaguarda de acervos. Ressaltando-se a
relevância em se estruturar nos museus sistemas de documentação que permitam que essas instituições
realizem a preservação e a gestão do seu acervo. Adentrando ao estudo de caso, pretende-se apresentar
os problemas encontrados na área de documentação museológica no Museu da FEB, bem como as
soluções imediatistas encontradas, apontando para ações futuras a serem desenvolvidas pelo museu.

Palavras-chaves: documentação; salvaguarda; acervo fotográfico; John Buyers; digitalização.

Abstract: The purpose of this article is to discuss the activities developed in the Museu da Força
Expedicionária Brasileira Regional Belo Horizonte (FEB Museum), which privileged the
museological documentation area, focusing on the photographic collection donated by Major John
William Buyers to the institution. Therefore, the importance of administrative and museological
documentation as tools to safeguard collections is taken into account. Emphasis is placed on the need
to structure documentation systems in museums allowing these institutions to carry out the
preservation and management of their collections. In this case study, we intent to present the problems
found in the area of museological documentation in the FEB Museum as well as the immediacy
solutions found, pointing to future actions to be developed by the museum.

Key worlds: documentation; safeguard; photographic collection; John Buyers; scanning.

725
Documentação museológica: conceituação, função e importância

Pôde-se considerar que os museus são espaços privilegiados para a promoção de


reflexões e de produção de conhecimentos e saberes, atividades essas que perpassam a
pesquisa sistemática dos testemunhos da cultura material por ele salvaguardado. Tais
investigações realizadas nos museus estão imbricadas com a área de documentação
museológica.

Considerando-se que as coleções e os acervos são, até hoje, um dos principais objetos
de investigação dentro dos museus, mas não mais o seu objeto exclusivo, como foi nos
séculos XVIII e XIX, JULIÃO (2006) aponta para dois vieses de pesquisa: a documentação
museológica e a pesquisa em si, investigações que tem por finalidade ser disseminada ao
público. Segundo a autora:

espécie de pesquisa instrumental, a documentação museológica procede à


identificação, classificação, organização e ao levantamento de dados
históricos do objeto, constituindo-se a base de informações sobre o acervo
dos museus [...] com o objetivo de decodificar as informações contidas nos
objetos, e criar um instrumento de pesquisa na forma de um inventário,
catálogo ou registro. Constitui-se um meio de acesso informacional aos bens
culturais, que subsidia a gestão do acervo e o desenvolvimento de diferentes
atividades do museu (JULIÃO, 2006, p. 97).

Entende-se a documentação como uma ferramenta museológica que permite os


museus conhecer profundamente o seu acervo e os objetos que foram inseridos nas coleções.
Tal área contribui para a organização e gestão de um acervo museológico, bem como para sua
difusão ao público através de exposições e atividades educativas. A atividade de
documentação está correlacionada à função de salvaguarda nos museus, pois para além de
fazer um levantamento geral das informações intrínsecas e extrínsecas pertencentes aos
objetos, permite sua identificação individual. Torna-se, portanto, uma ferramenta que permite

726
aos museus atestar a posse legal sobre o objeto, garantindo assim sua segurança contra
qualquer ameaça interna ou externa.

Segundo PADILHA (2014), às atividades de documentação “diz respeito ao registro


de toda informação referente ao acervo museológico” (PADILHA, 2014, p. 35), podendo ser
subdividida em duas abordagens: a documentação do objeto e a documentação administrativa.
A primeira consiste no levantamento de dados sobre o objeto e o seu tratamento, já a segunda
diz respeito a toda documentação de cunho administrativo produzido pelo museu. Ou seja, a
documentação administrativa pode ser considerada um instrumento de apoio às outras
atividades desenvolvidas pelo museu, auxiliando na gestão do seu acervo. Conceituando
documentação, RODRIGUES e TEIXEIRA (2012) cita o entendimento de Stuart Holm
(1991) sobre tal atividade:

Is all the recorded information a museu hold about the items in its care. It
also describes the activity of gathering, storing, manipulating and retrieving
that information. It is not an end in itself. It is the means by which both
museums staff and visitors can find the information they need [...] the
information can be about objects, photographs, films, books, paper archives,
tape recording, etc. It can include physical descriptions, historical
background, details of acquisitions, storage locations, accounts of work done
to objects whilst they are in the care of the museum, and much more besides
(RODRIGUES; TEIXEIRA, 2012, p. 292, apud HOLM, 1991, p.2)

Constitui-se portanto, no registro sistemático de todas as informações que permeiam o


objeto, entendendo-se como uma atividade de caráter processual, na medida em que as
informações sobre os objetos deverão ser sempre atualizadas. Ou seja, faz-se necessário
registrar toda a movimentação do objeto dentro da instituição e fora dela (PADILHA, 2014).

A teorização da área de documentação museológica, bem como os seus procedimentos


normativos não são estanques. Diferentes autores e comitês, como o International Committee
for Documentation do International Council of Museums (CIDOC/ICOM) e a Standard
Procedures for Collections Recording Used in Museus da Collections Trust (SPECTRUM),

727
tem se debruçado sobre a área, buscando a construção de uma normativa padrão. Tais
iniciativas visam fornecer um conjunto de ações mínimas a serem efetuados pelos museus que
subsidiem uma gestão eficaz do seu acervo (SPECTRUM, 2014) e também padronizar os
metadados a serem utilizados nas fichas de catalogação (CIDOC, 2014).

No que diz respeito à funcionalidade e a importância de se estabelecer um sistema


documental em museus, BOTTALLO (2010) pontua que é através da documentação que
ocorre a identificação dos objetos para fins culturais, acadêmicos e históricos, e a produção de
conhecimento sobre o mesmo. Através desses sistemas documentais pode-se realizar a
quantificação do seu acervo, aspecto que permite a comprovação da posse legal do bem pelo
museu. De acordo com BOTTALLO (2010):

a documentação museológica é importante por vários motivos, entre eles, é o


processo por meio do qual podemos conhecer alguns dos muitos valores e
significados do acervo preservado. Além disso, os registros sobre o histórico
dos objetos podem orientar processos de conservação e restauração, ajudar
no gerenciamento e monitoramento dos acervos e orientar curadorias cujo
intuito seja o de divulgar o acervo por meio de exposições e das ações
educativas orientadas para as demandas diferenciadas do público dos museus
(BOTTALLO, 2010, p.52).

A documentação permite também a salvaguarda dos objetos, potencializar o seu


acesso ao público e ampliar os seus “usos” através da informação, ao mesmo tempo em que é
“capaz de transformar os acervos em fontes de pesquisa científica e/ou em agentes de
transmissão de conhecimento” (CANDIDO, 2006, p.34), atendendo as necessidades do seu
público. Em síntese, se a documentação museológica

(...) for executada de uma forma adequada poderá contribuir para uma
efetiva gestão das coleções, definição de políticas de incorporação, áreas
temáticas e limites das coleções, controlo de movimentos e segurança dos
objetos, conservação, acondicionamento em reserva ou exposição,

728
acessibilidade às coleções com vistas à investigação e comunicação com os
públicos (RODRIGUES; TEIXEIRA, 2012, p.292).

O não desenvolvimento das atividades da área de documentação pelos museus podem


causar prejuízos ao cumprimento de outras funções museológicas, “pois inutiliza os objetos,
uma vez que não permite o acesso às informações contidas nele, e, por conseguinte, reduz sua
função social e cultural dentro de uma comunidade (PADILHA, 2014, p.38)”. Um objeto
dissociado de sua documentação respectiva perde, assim “grande parte da sua identidade e do
seu valor cultural e financeiro” (RODRIGUES; TEIXEIRA 2012, p. 293), ou seja, ele perde
sua legitimidade enquanto objeto musealizado. Portanto, se faz necessário que os museus
sistematizem suas atividades no campo da documentação. É a partir dessa indispensabilidade,
que foi proposto ações pontuais na área de documentação no Museu da Força Expedicionária
Brasileira Regional Belo Horizonte.

Museu da Força Expedicionária Brasileira e John William Buyers: uma


contextualização

O Museu da Força Expedicionária Brasileira Regional Belo Horizonte (Museu da


FEB) é uma instituição que se encontra vinculada à Associação Nacional dos Veteranos da
Força Expedicionária Brasileira (ANVFEB), organização responsável pela sua gestão. Tal
instituição foi fruto do desejo de seus membros associados e colecionadores em preservar a
memória e a história da participação da Força Expedicionária Brasileira no teatro de
operações na Itália, durante a Segunda Guerra Mundial. Fundado em 1973, o museu foi
instalado inicialmente no porão de um edifício localizado na Avenida Augusto de Lima com
Rua da Bahia, região central de Belo Horizonte, sendo transferido em 1986 para um casarão
tombado na Av. Francisco Sales nº 199, sua atual sede, tendo aberto novamente as suas portas
ao público em 1988.

729
Seu acervo foi formado a partir de doações realizadas pelos membros da ANVFEB,
familiares dos pracinhas da FEB e colecionadores particulares, abarcando diferentes
materialidades e suportes, como por exemplo, jornais, uniformes, medalhas, cartões postais,
armamentos, fotografias. Contudo, o museu não consegue precisar quantos objetos compõe o
seu acervo atualmente, pois ainda não foi realizado um inventário sistemático com todo o seu
acervo.

Permanecendo com uma expografia desatualizada e defasada por mais de vinte anos, o
museu passou, em 2011 por uma reforma de sua infra-estrutura, ficando fechado ao seu
público por quatro meses. Tal reforma tinha como intuito modernizar as suas instalações
físicas, suas exposições, e os mobiliários onde ficavam expostos o seu acervo. Com uma
doação expressiva realizada pelo Major John William Buyers em 2014, no ano seguinte o
museu reorganizou sua expografia visando exibir ao público os objetos e fotografias doados
pelo Major, nomeando a sala em sua homenagem.

Faz-se necessário elucidar brevemente a trajetória do Major John William Buyers e


sua ligação com a Força Expedicionária Brasileira, pois tal relação se evidencia na
constituição do acervo fotográfico doado ao museu. Filho de americanos, John William
Buyers nasceu na cidade de Juiz de Fora em Minas Gerais Gerais em 1920, tendo residido
naquele local até completar o ginásio. Foi enviado aos Estados Unidos para cursar o ensino
superior. Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial foi convocado para servir na Força
Aérea Americana (USAF), ganhando o posto de 2º Tenente. Posteriormente retornou ao
Brasil para servir na Base Aérea de Recife.

A cessão de bases militares brasileiras, principalmente as situadas na região nordeste,


aos Estados Unidos da América, teve como base a política de vizinhança adotada pelos Norte
americanos. A argumentação apresentada pelo Exército Americano seria de que essa região
seria alvo de ataques nazi-fascistas, resultando na criação, em 1940, da Comissão Mista
Brasil-Estados Unidos. Através dessa comissão, foi assinado um contrato entre os dois países
que cedia ao governo americano duas bases militares no Rio de Janeiro, e posteriormente na

730
costa brasileira (CPDOC, 2017). Ressalta-se que como forma de compensação, foi concedido
ao Brasil recursos financeiros para industrializa-lo, fomentando as indústrias siderúrgicas no
país.

Com a criação do 1º Grupo de Aviação de Caça (1º GAvCa) em dezembro de 1943, o


então Tenente Coronel Nero Moura, condecorado Brigadeiro posteriormente, atento ao
trabalho realizado por John Buyers em Recife, convidou-o para servir ao 1º GAvCa. Moura
negociou com o exército americano para que Buyers pudesse atuar como homem de ligação
entre os dois exércitos, devido a sua fluência nos dois idiomas: inglês e português.
Estabelecido essa relação, Buyers participou dos treinamentos realizados em Aguadulce no
Panamá e na Flórida, momento este retratado nas fotografias doadas ao museu. Apesar de sua
função burocrática, Buyers realizou junto ao 1º GAvCa diversas missões como ala,
participando de 21 missões de combate na Itália (LIMA, 1980), tornando-o uma
personalidade emblemática para a história militar brasileira.

Foi também um ávido colecionador de selos e fotografias, paixão essa que se


consolidou em uma expressiva coleção de fotografias que registraram o treinamento realizado
pelo 1ºGavCA no Panamá e nos Estados Unidos, e a participação da FEB na Segunda Guerra
Mundial. Tal acervo torna-se uma rica fonte daquele período. O acervo doado ao museu é
composto por mais de 1300 objetos, que incluem filmes, medalhas, passaportes, álbuns
fotográficos e fotografias. Ressalta-se que tal acervo ainda não foi quantificado, arrolado e
catalogado, o que dificulta precisar quantos objetos pertence a tal conjunto. Por se tratar de
uma coleção extensa, optou-se por trabalhar nessa “experiência” com o acervo fotográfico
colecionado pelo Major John William Buyers que não se encontra atualmente em exposição.

Diagnóstico da Área de Documentação: entre problemas e soluções

Buscando detectar quais as atividades da área de documentação realizadas pelo


museu, utilizou-se como metodologia o diálogo com os funcionários da instituição e análise

731
dos documentos utilizados pelo museu. Pôde-se constatar que as atividades de documentação
se encontravam bastante fragilizada, pois o museu não apresentava alguns dos principais
instrumentos utilizados em um “sistema” documental.

Constatou-se que o museu possuía um plano museológico, que se encontra defasado,


regimento interno de funcionamento da ANVFEB, o estatuto social da Associação de Amigos
do Museu da Força Expedicionária Brasileira e cópias de e-mails registrando as solicitações
realizadas pelo museu à entidades externas. Identificou-se que os termos de agradecimento de
doação utilizados pela instituição não apresentam unicidade textual, ressaltando-se que estes
começaram a serem utilizados somente em 2013. Constata-se que nem todos os termos de
agradecimento de doação analisados apresentavam uma quantificação exata dos objetos que
foram cedidos, o que não assegura ao museu a posse legal e física dos objetos.

Pôde-se pontuar a ausência de alguns instrumentos de documentação administrativas,


como por exemplo, o termo de comodato, termo de cessão de imagem, termo de doação,
termo de empréstimo, termo de permuta, termo de devolução de acervo e um modelo de
termo de agradecimento de doação padronizado a ser entregue à todos os doadores. Tais
documentos são essenciais para uma gestão de acervo eficaz, como bem orienta a normativa
SPECTRUM (2014). No que tange à documentação museológica, identificou-se a ausência do
livro de registro ou livro de tombo, ficha de catalogação, planilha de arrolamento com todo o
acervo identificado, termo utilizado para a realização do diagnóstico do estado de
conservação de cada objeto, bem como a ausência de um número de registro individual para
cada peça que é incorporada ao acervo da instituição e a sua marcação física. A ausência de
tais instrumentos compromete assim a função de salvaguarda do museu, a informação
intrínseca e extrínseca das peças e o seu valor como objeto museológico.

Outros problemas que pôde-se averiguar é o fato do museu não possuir em seu quadro
de funcionários uma equipe de profissionais que sejam responsáveis pela salvaguarda do
acervo, e a falta de um espaço adequado, como de uma reserva técnica, para a realização das

732
atividades de conservação preventiva do acervo, o que contribui para a não execução das
ações de documentação no museu.

No que tange ao acervo fotográfico doado pelo Major, constatou-se que este não foi
alvo de nenhuma atividade de registro, catalogação e quantificação. Outro problema
encontrado, e que também diz respeito à sua documentação, é a necessidade de digitalizá-lo,
devido ao fato da fragilidade do seu suporte.

Pôde-se portanto realizar algumas atividades de cunho “experimental” na área de


documentação do museu. Por não possuir nenhum instrumento de documentação que assegure
sua posse jurídica e física do objeto, a primeira ação desenvolvida na área de documentação
do Museu da FEB foi a criação dos termos a serem utilizados pela instituição, visto que estes
fundamentam e auxiliam à organização de um sistema documental.

Para tal, lançou-se mão de leituras bibliográficas que discutem o tema e da análise de
modelos já utilizados por outros museus. A partir desta metodologia, construiu-se os
seguintes termos: termos de abertura e de fechamento do livro de registro, o livro de registro,
o termo de empréstimo, doação, comodato, cessão de imagens, e de agradecimento de doação,
planilha de inventário em formato Excel, termo de devolução de acervo, termo de permuta e
relatório de estado de conservação. Foi produzido também uma ficha de catalogação que teve
como base o modelo proposto por CANDIDO (2006) ao Museu Mineiro, que inicialmente
seria utilizada tanto para os acervos bidimensionais - fotografias e documentos, como os
tridimensionais - armamentos, vestuários, equipamentos militares.

Buscando aferir o preenchimento dos campos propostos na primeira ficha de


catalogação criada, foi realizado um teste piloto com cerca de cinquenta objetos
tridimensionais e dez bidimensionais - pertencentes ao acervo fotográfico do Major John
Buyers. Com a realização do teste piloto constatou-se a necessidade de se criar uma ficha de
catalogação separada para o acervo fotográfico, devido a sua especificidade tipológica, e de se
atualizar alguns campos da primeira ficha, que se ajustam às especificidades do acervo

733
tridimensional, padronizando ambas às normativa do CIDOC (2014) e do SPECTRUM 4.0
(2014).

Para a construção da ficha de catalogação de acervos fotográficos, adotou-se como


metodologia a análise de outros modelos de fichas adotados por outras instituições,
principalmente aquela utilizada pelo Museu Histórico Abílio Barreto3. Um trabalho teórico
que subsidiou a criação da ficha de catalogação para acervo fotográfico é aquela exposta por
CAFÉ e PADILHA (2014) em um artigo. Tal trabalho realizou uma bricolagem dos
metadados propostos por KOSSOY (2001) e MANINI (2008) para uma ficha voltada para
acervos fotográficos. Tal bricolagem resultou em um quadro de itens mínimos que devem
estar presentes em uma ficha de catalogação para fotografias, tendo em vista as
especificidades desta tipologia de acervo.

Como forma de sistematizar e normatizar as práticas documentais do Museu da FEB,


foram criados três manuais de procedimentos: manual para catalogação de acervos
tridimensionais, manual para acervos fotográficos e um manual de procedimento sobre a
importância dos termos criados, principalmente os termos de documentação administrativa.

Para a construção do manual de procedimentos de catalogação de fotografias foram


adotados o trabalho de CAFÉ e PADILHA (2014), como citado anteriormente, e de KOSSOY
(1989). A escolha destes escritos se justifica pelas descrições que os autores fazem do modo
de se preencher cada metadado apresentado, apontando para a padronização do
preenchimento. O manual de procedimentos de catalogação de acervos tridimensionais teve
como base o trabalho de CANDIDO (2006) no Museu Mineiro e a normativa do CIDOC
(2014), uma vez que estes trabalhos apresentam uma linguagem didática no preenchimento
dos metadados por eles apontados e também por apresentarem campos mínimos de
informação para a composição da ficha. Ressalta-se que ambos os manuais registram o

3
Criada dentro do projeto de digitalização e organização do seu acervo fotográfico, iniciado em 1993 e que ainda
se encontra em fase de desenvolvimento (SANTOS, 2007).

734
processo de elaboração do número de registro a ser utilizado pelo museu da FEB. Optou-se
pelo modelo bipartido, composto pela sigla do museu e cinco dígitos separado por ponto (.).

Já o manual de procedimentos de uso dos termos de documentação teve como base a


normativa SPECTRUM 4.0, e as discussões propostas por PADILHA (2014), COSTA (2006)
e ROBERTS (2004). A criação deste documento teve por intuito assinalar a importância do
emprego dos termos confeccionados pelos profissionais que atuam no museu, inserindo o seu
uso nas práticas cotidianas da instituição. Ressaltando que até a presente “experiência”, o
Museu da FEB não utilizava nenhum documento que registrasse as informações sobre a
aquisição do seu acervo, o que provocou a dissociação dessas informações.

Digitalização das fotografias: considerações sobre o teste piloto realizado a partir do


acervo fotográfico Buyers

O acervo fotográfico doado pelo Major John William Buyers é composto de seis
álbuns fotográficos, na qual se encontram anexas 994 fotografias, uma fotografia autografada,
213 negativos de fotografias, 1 official filme, 3 filmes cine serviço 8mm, 2 filmes sony
recording tape 8 mm, 1 caixa com 212 slides, 4 rolos de filmes 16 mm, 15 slides kodak, 5
trechos de rolos de filmes 16 mm, 3 fitas de vídeos, 33 fotografias individuais, 2 fotografias
emolduradas e fotografias recentes e pessoais que não foram quantificadas no inventário. Tal
lista atesta a importância deste acervo como uma rica fonte documental para a história da
Força Expedicionária Brasileira e também para a história militar do Brasil.

Para a realização da “experiência” em digitalização foram disponibilizadas 128


fotografias, objetos que pertencem ao mesmo conjunto documental daquelas que se
encontram expostas. O delineamento do acervo experienciado se deu a partir da sugestão do
então presidente do museu, Marcos Moretzsohn Renault Coelho, em digitalizar as fotografias
pertencentes a esse acervo, tornando-o mais acessível aos diferentes públicos.

735
Para além da sua difusão ao público do museu em escala globalizada, a digitalização
pode ser entendida como uma ferramenta de salvaguarda desse acervo, pois a fotografia é um
suporte autodestrutivo que ao iniciar o seu processo degradativo, liberam substâncias
químicas que aceleram a sua degradação (CALMON; ALVES, 2016), gerando assim, danos
irreversíveis. A digitalização das fotografias culminaria na diminuição do seu manuseio,
contribuindo para a sua preservação física, tendo em vista que o manuseio é um fator
degradante à essa tipologia de acervo. Pode-se citar também que o processo de digitalização
permitiria melhorar a qualidade da imagem através do tratamento de cor e saturação, sendo
um importante instrumento auxiliar do campo da restauração dessa tipologia de acervo
(RODRIGUES, 2010).

Adotou-se como amostra para a realização do teste piloto dez fotografias pertencentes
ao acervo do Major Buyers, na qual essas passaram pelo processo de digitalização,
catalogação e foram inseridas na planilha de arrolamento de inventário. Devido a ausência de
um ambiente adequado para a realização da atividade, como já pontuado, bem como de
equipamentos que permitam a digitalização em alta resolução, o teste piloto realizado se
encontra comprometido, pois o equipamento utilizado permitiu digitalizar a fotografia
somente em até 900 DPI - número de pixels por polegadas - e salvá-las somente no formato
PDF e JPEG, o que faz com que as fotografias digitalizadas não estejam em alta resolução e
bem definidas, o que a distanciam da matriz de cor da fotografia original.

Constatou-se a partir do teste piloto a importância em se definir inicialmente os


parâmetros a serem adotados no processo de digitalização das fotografias, bem como as
ferramentas que serão utilizadas no seu tratamento, organização e disponibilização no meio
virtual, etapas que não foram contempladas durante esta experiência.

Confrontando experiências:

736
Com intuito de subsidiar práticas futuras no que tange à organização, tratamento e
digitalização do acervo fotográfico doado pelo Major John William Buyers, buscou-se
referências de projetos já realizado em outros museus de cunho militar. Encontrou-se alguns
exemplos que permite refletir acerca de tal prática no acervo do Museu da FEB.

Pode-se citar o projeto realizado no Museu do Expedicionário em Curitiba, em


parceria com o Departamento de História da Universidade do Paraná e escolas da rede
públicas e privadas da cidade. Apesar do cunho pedagógico do projeto, este buscou analisar
as fotografias em sua perspectiva representacional e discursiva quando inseridas no circuito
expositivo da instituição. A partir dessa análise foi constatado seis dimensões analíticas:

(...) balizas cronológicas que delimitam e circunscrevem os eventos


expostos, enfatizando alguns contextos e desprezando outros; construção do
protagonismo de personalidades; idealização de determinadas atividades
profissionais; propaganda de guerra; mascaramento da realidade histórica;
instrumento de rememoração dos mortos (OLIVEIRA, 2013, p.950)

O projeto realizado no Museu do Expedicionário, ainda que não abrangeu a


digitalização e a organização do seu acervo fotográfico, permitiu promover uma reflexão
sobre a sua coleção e o modo como elas foram expostas, o que revelou discursos hegemônicos
e contraditórios. Tendo em vista estes discursos, pode-se refletir sobre a potencialidade da
área de documentação museológica, bem como da realização de pesquisa sob os objetos do
museu. Tais atividades permitiriam à desconstrução de estereótipos discursivos, contribuindo
também para a construção de novos discursos museológicos que promovam a reflexão sobre a
participação da Força Expedicionária Brasileira na Segunda Guerra Mundial.

Um exemplo que pode se citar como referência no tratamento, organização e


digitalização de acervos fotográficos, é aquela desenvolvida a partir da coleção de fotografias
sobre a Guerra do Paraguai presentes no arquivo do Museu Histórico Nacional no Rio de
Janeiro. Atualmente tais fotografias se encontram disponibilizadas online no sistema de
informação da instituição. Composta por 743 documentos, essa coleção foi ganhando forma

737
através da doação, compra e transferência no período de 1924 a 1960 de fotografias e outros
suportes documentais, sendo dividida em seguintes espécies documentais:

álbuns de fotografias (GPfa); fotografias avulsas (GPf); estampas (GPe);


álbuns de estampas (GPea); documentos textuais (GP) manuscritos,
impressos e datilografados; documentos cartográficos (GPm) mapas e
plantas; atlas (GPat); e recortes (GPr) de vários jornais da época, inclusive
do Supplemento da Semana Illustrada (BANDEIRA, [20??])

Exemplos ilustrativos de projetos já desenvolvidos por outras instituições


museológicas em parceria com outras entidades, permite elucidar algumas práticas
desenvolvidas na área de documentação museológica, o que abrange a sua organização,
digitalização, tratamento e difusão ao público. Contudo, ressalta-se que no contexto brasileiro,
poucos são os exemplos de projetos que abarcam o tratamento de coleções fotográficas de
cunho militar, fontes férteis para a pesquisa sobre a história militar no Brasil.

Conclusão:

O presente trabalho teve por finalidade discorrer acerca das atividades experimentais
desenvolvidas na área de documentação museológica no Museu da Força Expedicionária
Brasileira Regional Belo Horizonte. Concluiu-se que tais atividades encontravam-se
fragilizadas, pois o museu carecia dos instrumentos básicos de documentação e não executava
nenhuma ação nessa esfera. Através de ações pontuais de estruturação dos termos e manuais
de procedimento buscou-se, dentro do escopo da proposta de vivência dentro da instituição,
sistematizar e conscientizar a equipe do museu acerca da importância do uso da
documentação na salvaguarda física e jurídica do seu acervo, resguardando o museu
legalmente.

Devido a abrangência da área de documentação museológica e a vulnerabilidade em


que encontrava o acervo do museu, constatou-se que esse campo de atuação ainda se encontra

738
fértil, pois ainda se é necessário realizar o preenchimento da planilha de arrolamento com
todo o acervo pertencente ao museu da FEB, a marcação reversível do número de registro em
cada peça, a sua catalogação individual em um sistema computadorizado e físico, seu registro
fotográfico, a realização do diagnóstico do estado de conservação desses objetos, a criação de
um thesaurus museológico.

No que diz respeito a digitalização do acervo fotográfico pertencente ao Museu da


FEB, sugere-se a criação de um projeto que transcende as experiências vivenciadas através do
teste piloto, definindo padrões normativos de digitalização e catalogação destas fotografias.
Faz necessário se estabelecer qual plataforma virtual será utilizada para organiza-los e
disponibiliza-los ao público, contratando mãos de obras especializada, comprando
equipamentos que permitam uma digitalização em alta resolução e em outros formatos de
arquivos - aspecto que deverão ser definidos no projeto de digitalização de acervo. Mas se faz
fundamental organizar um espaço dentro da instituição que ofereça condições adequadas para
a realização do trabalho proposto.

Pretendeu-se, por fim, fornecer subsídios para o desenvolvimento das ações internas
na área de documentação museológica no Museu da FEB, objetivo alcançado ao meu ver, pois
a instituição já utiliza os termos que foram criados. Contudo, a atividade experimental
desenvolvida na área de documentação não é estanque, e carece de novas reflexões
metodológicas que se intersecione com as discussões vigentes.

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742
PESQUISA, FORMAÇÃO E SALVAGUARDA: HISTÓRIAS DE VALORIZAÇÃO
DO PATRIMÔNIO DE BENS CULTURAIS MÓVEIS DO PIAUÍ

Elenilce Soares Mourão*


Fernado Antonio Baptista Pereira*

Resumo: Neste artigo apresentamos resultados finais de atividades desenvolvidas em Pesquisa-Ação


do Mestrado Profissional em Artes, Patrimônio e Museologia da UFPI/Parnaíba, com aprendizados em
estágio no Brasil e em Portugal. Procuramos investir na formação e propostas de salvaguarda do
Patrimônio de bens culturais móveis do Piauí, a partir da única Oficina de Restauração, setor de
preservação estadual que atualmente necessita de melhorias em todos os sentidos para prosseguir.
Realizamos ações para a sensibilização de nova geração de conservadores, com capacitações,
documentário e proposta de criação de oficina de conservação e restauro em Parnaíba.

Palavras-chave: Conservação e restauro contemporâneos; Bens Culturais Móveis; Oficina de


Restauração; Piauí

Abstract: In this article, we present the final results of activities developed in the action-research from a
professional Masters course in Arts, Patrimony and Museology at UFPI, Campus Parnaíba. The studies took
place both in Parnaiba and in Portugal. We attempted to focus on both creating and proposing safe-guard
measures to the patrimony of mobile heritage from Piauí, starting with the one and only restauration workshop
existing, which is a state preservation sector, currently in need of thorough improvements to keep functioning.
Actions have been carried out to create awareness on a new generation of restorers. They included training,
creation of documentaries, proposals for the creation of conservancy and restauration workshops in Parnaiba.

Key-Words: Contemporary conservation and restoration; Mobile Heritage; Restauration Workshop; Piauí.

INTRODUÇÃO

743
O Conselho Internacional de Museus – ICOM é uma instituição criada no seio da
UNESCO em 1946, por e para profissionais de museus, composta por 172 comitês, 35.000
membros e 20.000 museus cadastrados; congrega profissionais especialistas de 136 países e
territórios, para gerir as questões relacionadas à preservação do Patrimônio Cultural, com a
finalidade de manter diálogos e estabelecer normas para as boas práticas de gerenciamento
dos museus. É composto por 119 Comitês Nacionais e 30 Comitês Internacionais que, com
especialistas de diversas áreas afetas às atividades da museologia, trabalham para responder
aos desafios que os museus enfrentam diariamente em todos os continentes (ICOM, 2016).

Em cooperação com a UNESCO o ICOM tem como missão principal trabalhar para a
sociedade e seu desenvolvimento para garantir a conservação e a proteção dos bens culturais,
por meio cinco áreas de atividade: formação, informação, pesquisa, cooperação e advocacia.

Para isto reúne e trabalha com uma equipe interdisciplinar e multidisciplinar composta
por especialistas e instituições especializadas de todo o mundo; participa de campanhas
internacionais e organiza missões científicas para dar assistência aos Estados Membros, que
atualmente conta com cerca de 140 estados associados.

Para melhor disciplinar e difundir estas questões o ICOM junto aos comitês
desenvolveu um código de ética que estabelece normas mínimas para a prática profissional
das pessoas que atuam nos museus e a relação com os públicos envolvidos. Estes padrões
mínimos de conduta e atuação nele expressos fornecem ferramentas para a auto-
regulamentação a que os profissionais de museus no mundo todo podem aspirar e delimitam o
que a sociedade pode esperar dos museus (ICOM,2009). A partir daí cabe a cada estado
membro elaborar o seu código de ética, baseado nas diretrizes mundiais, para atender às
situações peculiares.

Dentro desta organização existem comitês específicos para atender a cada segmento da
Museologia, e o ICOM-CC, o maior dos Comitês Internacionais do ICOM é a comissão
responsável pela Conservação. Tem como objetivo promover a investigação, análise e

744
conservação de obras relevantes no contexto cultural e histórico dos museus, além de
promover os objetivos da profissão de conservador.

O ICOM-CC, um dos 172 Comitês do ICOM, possui 2600 associados e é composto


atualmente por 22 Grupos de trabalho onde se reúnem especialistas de várias áreas como
conservadores, restauradores, cientistas, curadores, museólogos e outros profissionais
empenhados em estudar e promover as questões relacionadas à preservação de obras e acervos
significativos, formação, normatização e atualização na área.

No Brasil, o ICOM foi fundado em 09 de janeiro de 1948, com objetivos semelhantes,


de promover a cooperação, a assistência mútua e o intercâmbio de informação entre seus
membros, profissionais de museus e instituições culturais. Integra o ICOM-LAC (Comitê
Regional para a América Latina e Caribe) e o ICOM-SUR (Comitê regional dos países do
MERCOSUL), o Comitê Brasileiro do Escudo Azul (brigada de salvamento em emergência).
Deste lugar privilegiado tem assento em diferentes foros e conselhos nacionais ligados à
preservação e promoção do patrimônio brasileiro. (ICOM BRASIL, 2017).

Tomamos o ICOM - CC como mote norteador deste artigo por se referir ao setor
majoritário, que trata especificamente de Conservação dentro dessa organização, responsável
pelas especificidades do nosso campo de atuação, para tratarmos do contexto da Conservação
e Restauro, suas tendências contemporâneas e desafios na preservação dos bens culturais
móveis no Piauí, e das ações realizadas para este fim dentro do projeto de Pesquisa-Ação do
Programa de Pós-graduação Mestrado Profissional em Artes, Patrimônio e Museologia da
UFPI (PPGAPM), Campus Parnaíba - Piauí.

Para atender minimamente às necessidades do contexto Piauí, buscamos estágios em


centros de referências no Brasil e em Portugal, que também resultou da necessidade de
atualização em conservação e restauro, conhecimento de métodos, técnicas e materiais
utilizados na atualidade, considerando as dificuldades surgidas no cotidiano das oficinas e
laboratórios, e mais especificamente no contexto do Piauí.

745
Para analisarmos algumas posturas que influenciaram a maneira contemporânea de
conservar e restaurar o patrimônio móvel em contexto mundial, nacional e local adotamos a
Teoria Moderna de Cesare Brandi (1906-1988), lançada em 1962, e a Teoria Contemporânea
do espanhol Muñoz Viñas (1964), proposta em 2003 e publicada em 2004, por identificarmos
em pesquisas anteriores atitudes que se concatenam com esses pensamentos, no contexto da
Oficina de Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis do Piauí (OR).

Tendências contemporâneas da conservação e restauro

Por tratarmos da preservação no domínio da conservação e restauro, sem


desconsiderar as teorias anteriores, fazemos referência a partir de Brandi (2004) e Muñoz-
Viñas (2010) que resultam num contraponto de fundamentos e conceitos no que diz respeito a
relação do bem cultural com seus detentores e com os peritos responsáveis por conservá-lo.

Cada uma dessas teorias tem contribuído para mudanças que vem ocorrendo no
restauro contemporâneo. Analisamos a partir dos princípios das teorias e da vertente
sustentabilidade que permeia atualmente todas as atividades multidisciplinares.

Cesare Brandi, teórico, crítico de arte, autor da teoria crítica do restauro, considera
uma série de fatores nas obras de arte ou objetos, no momento de intervir para conservar ou
restaurar, além de considerar os aspectos estéticos e históricos ao decidir a dimensão da
intervenção. Suas propostas tiveram grande influência na Carta Italiana do Restauro de 1972
e, por consequência, na prática atual da conservação e restauro. Para as autoras, a restauração
no conceito de Brandi recomenda que:

[...] a práxis da restauração ficou identificada como corrente do RESTAURO


CIENTÍFICO, passando a exigir uma postura crítica, científica e
interdisciplinar no momento da intervenção. Na tentativa de afastar a
intuição da ação profissional, foram instruídos os seguintes princípios

746
práticos: a mínima intervenção, o estudo prévio detalhado (pesquisa histórica
e análises científicas), a distinguibilidade sem prejuízo ao conjunto (formal e
estilístico), documentação minuciosa, respeito à autenticidade da obra,
compatibilidade entre o original e a intervenção e a reversibilidade de
materiais (SANTOS; GONÇALVES, 2013, p.4).

Salvador Muñoz Viñas, professor titular e atual diretor do Departamento de


Conservação e Restauração da Universidade Politécnica de Valência, na Espanha, discorre em
sua teoria sobre paradigmas antes não questionados por serem considerados por muito tempo
como afirmações inquestionáveis. Na interpretação de Caldas (2013) verificamos que:

Seu estudo indica que duas correntes dominantes orientaran grande parte das
intervenções nos bens culturais nos últimos cem anos: uma inclinada para
valores estéticos e outra para preceitos científicos. Sustenta que as teorias
clássicas apresentam-se limitadas para o escopo atual da cultura,
considerando que nem todos os objetos sujeitos ao restauro são obras de arte,
bem como os motivos que levam a restauração desses bens podem
relacionar-se a outros valores além do histórico e do artístico – sejam estes
ideológicos, afetivos, religiosos, etc. - não sendo, portanto, inerentes ao
próprio objeto nem, tampouco, cientificamente quantificáveis (CALDAS,
2013, p.2).

Esses fatores vêm se modificando ao longo do tempo a partir dos movimentos


modernos do final do século XIX e do pós-guerra na década de 50, pelo fato da obra de arte
ter alcançado maior subjetividade e diversificação nos modos de ser pensada, produzida e
apresentada ao público, e também às mudanças ocorridas no conceito da obra de arte como
Patrimônio e do próprio conceito de Patrimônio.

Considerando o percurso da obra em sua vida útil, o contexto museológico em que é


inserida e as substâncias que a materializam, encontramos outros fatores que contribuem para
a conservação contemporânea nas concepções das pesquisadoras da UNIRIO:

747
O ato de “musealizar” uma obra de arte contemporânea muitas vezes
contraria sua própria natureza que, freqüentemente, recorre a materiais
instáveis ou descartáveis, diferente do que se passava em momentos
anteriores, quando os materiais utilizados na arte eram escolhidos em função
da sua durabilidade.1 Na arte contemporânea o critério passa a ser a carga
semântica muito intensa e, assim, a relação entre o material e a técnica torna-
se, muitas vezes, complexa (SÁ; SOUSA, 2015).

Além da questão materialidade, não podemos considerar somente as questões estéticas


e históricas. Entram em contexto outros parâmetros como considera Muñoz Viñas em
publicação traduzida por Santos e Gonçalves (2013, p.4):

[...] a nova doutrina demonstra clara oposição às concepções objetivas e aos


conceitos de verdade das “teorias clássicas”, especialmente no que se refere
à autenticidade dos objetos culturais. Isso parece ficar mais claro quando o
autor passa a analisar os valores dos objetos de preservação, todos eles
subjetivos e relativos aos sujeitos que mantém relações com o universo
patrimonial. Para o autor, são as pessoas que conferem valor aos objetos, que
interpretam os eixos simbólicos e que tomam decisões sobre como conservar
determinado bem cultural.

Fora esses valores a serem respeitados, ocorrem mudanças não só na teoria, mas
também na prática da conservação e restauro, como na forma de trabalhar e na formação das
equipes:

Tendo em consideração o aspecto cada vez mais colaborativo em relação à


prática da conservação e da restauração, já na primeira década do século
XXI, em 2003, Salvador Muñoz Viñas publica A Teoria Contemporânea da
Restauração onde aponta para uma ação orientada na direção de uma ética
funcional, sincrética, sustentável e circunstancial, necessária à decodificação
da obra e à sua substancial longevidade (SOUZA; SÁ, 2015, p.7)

748
Em função das carências surgidas e de problemas diversificados no contexto da
preservação desenvolveram-se também novos materiais e tecnologias antes inimagináveis,
com a ajuda de profissionais de outras áreas como da química, da engenharia, a da física. Por
muitas vezes procedimentos e materiais foram observados em experiências de outras áreas do
conhecimento e puderam ser testados com bons resultados na conservação e no restauro. Hoje
podemos perceber o interesse da participação interdisciplinar das áreas de conhecimento para
este fim nas apresentações de congressos, simpósios e nos resultados de pesquisas publicadas.

Grandes institutos de pesquisa se aliaram às universidades partilhando espaços,


laboratórios, professores e oportunidades de parcerias, permitindo um trânsito de mão dupla
entre profissionais pesquisadores e alunos em estágios ou cursando disciplinas optativas
permitidas nos programa de graduação e de pós-graduação, a exemplo da UFMG e da
Universidade de Lisboa onde estivemos a estudar.

De acordo com Egido e Calderón, do Departamento Científico do Instituto do


Patrimônio Espanhol – IPHE, em publicação sobre a Ciência e a Arte na Conservação do
Patrimônio, apresentam um panorama das inovações ocorridas na área da conservação do
patrimônio:

El importante desarrollo tecnológico producido en la segunda mitad del s.


XX ha influido también en la conservación del patrimonio al ofrecer a los
profesionales de este sector poderosas herramientas para el análisis,
diagnóstico y tratamiento de los bienes culturales. Contamos ahora con la
experiencia acumulada durante los últimos cincuenta años de aplicaciones de
tratamientos protectores, eliminación del uso de productos por su toxicidad o
por los malos resultados registrados a medio plazo, introducción de técnicas
rediseñadas específicamente para bienes culturales, implantación de diversas
posibilidades de estudios in situ, minización de muestra necessaria,
elaboración de proyectos con instalaciones más racionales y de menor coste
de mantenimiento (2008,p.7).

749
Para os autores, a Arte e a Ciência não parecem caminhar juntas ao longo dos séculos.
No entanto não impediu que se aliassem e aproveitassem uma o conhecimento da outra para
melhor exercercimento e articulação nas questões da preservação do Patrimônio.

O estudo dos materiais e suas reações com o auxílio da química e da física, o uso da
incidência da radiação de diferentes comprimentos de onda nas prospecções, a tecnologia
digital que permite a manipulação precisa da imagem, os estudos de biodeterioração que
auxiliam na identificação, diagnóstico e tratamento das patologias, o profissional conservador
que despertou para conhecer as várias possibilidades científicas de abordagem e tratamento
dos problemas, ocupam lugar de destaque nos últimos anos nesse desafio constante que é a
conservação do Patrimônio (IPHE, 2008).

Outra questão pertinente à salvaguarda dos acervos frente à conservação


contemporânea, diz respeito à responsabilidade de preservar os bens. Encontramos conexões
sobre o tema nas concepções da restauradora e pesquisadora em conservação de Arte
Contemporânea, Magali Melleu que afirma que “nem sempre é possível identificar o real
comprometimento quanto à preservação daqueles que possuem a custódia ou o direito à
propriedade de um bem cultural, estando ou não sobre a proteção de tetos públicos e
privados” (SENH, 2014, p. 284).

O conhecimento dos problemas e das possibilidades de mudança nos motivaram a


estudar, pesquisar e a buscar os estágios dentro e fora do Brasil, para conhecermos de perto
todos esses aparatos e seus usos no cotidiano institucional e museológico, a fim de nos
prepararmos para intervir, o que relatamos nas experiências que ora apresentamos.

Estágios Brasil e Portugal

A necessidade de formação científica, técnica e superior, desde o princípio da


existência da Oficina de Restauração do Piauí, setor estatal crido em 1987 para atender ao
sistema de Museus do Piauí, orientou a busca de instituições que pudessem ampliar os

750
horizontes e atualizar os conhecimentos há muito tempo defasados, e também a missão de
promover em 2016, por meio da Pesquisa-ação do Programa de Mestrado em Artes,
Patrimônio e Museologia, capacitações para dar início à sensibilização e formação inicial de
uma nova geração de conservadores para o Piauí.

A preparação para esta primeira etapa teve início no Centro de Conservação e


Restauração de Bens Culturais Móveis – CECOR, da Escola de Belas Artes da Universidade
Federal de Minas Gerais, referência no Brasil onde realizamos o primeiro estágio.

As atividades desenvolvidas se configuraram em experiências que envolveram o


ensino, a pesquisa, a observação direta com realização de práticas, programadas nos diversos
setores onde tivemos a oportunidade de fazer percursos por todos os espaços da instituição,
observando cada atividade desenvolvida no cotidiano da instituição, desde reuniões de
trabalho, gerenciamento de equipes, aulas de teoria, processos de conservação e restauro,
palestras e visitas técnicas a 14 instituições museológicas.

As etapas de observação e participação ocorreram especificamente no Laboratório de


Documentação Científica por Imagem – ILAB, Laboratório de Ciências da Conservação –
LACICOR, Laboratórios de restauro em Papel, Escultura, Pintura, salas de aula e reuniões,
Pesquisas na Biblioteca setorial do CECOR, com acesso irrestrito aos acervos presenciais e ao
repositório virtual da UFMG.

Todas as etapas tiveram acompanhamento dos profissionais de cada setor, sendo dada
à aluna autonomia para intervir e questionar todos os processos, para melhor entender e
desenvolver posteriormente escritas críticas e mais seguras sobre a experiência.

Apresentamos na figura 01, na página seguinte, momento do estágio, em atividade de


coleta de amostras de fragmentos de uma obra de pintura de cavalete, para procedimentos de
análises químicas, no LACICOR.

751
Figura 01: Coleta em Laboratório de Ciências da Conservação - LACICOR/UFMG.

Fonte: Selma Otília, 2016.

A partir dessa primeira experiência despertamos para conhecer outras realidades na


preservação de bens culturais móveis, de maneira a poder comparar contextos diferenciados e
produzir ao final deste PPGAPM, um trabalho mais consistente baseado em situações reais,
motivado pelo método escolhido – a pesquisa-ação.

O segundo estágio ocorreu na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa


(FBAUL), nas aulas e orientações individuais no Mestrado em Ciências da Conservação,
Restauro e Produção de Arte Contemporânea; no Instituto José de Figueiredo; e no Museu do
Convento de Jesus, em Setúbal, Portugal, em restauro de pintura de cavalete e visitas técnicas
a 20 museus para conhecimento das formas de funcionamento, espaços, expografia, setores de
conservação, educativo, material de divulgação e relação com o público.

A Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa (FBAUL) é a escola superior


de ensino artístico mais antiga de Portugal. Com raízes na Academia de Belas-Artes fundada
em 1836, a Faculdade de Belas-Artes tem vindo a transformar-se numa escola de ensino

752
artístico vinculada à arte e ao design contemporâneos, cursos de graduação e de pós-
graduação em Ciências da Arte e do Patrimônio e Ciências da Conservação e Restauro e
Produção de arte Contemporânea (ULISBOA, 2017).

Na disciplina Conservação, Restauro e Produção de Arte Contemporânea pudemos


conhecer e experimentar materiais inovadores utilizados em restauro e reunir bibliografias que
atualizam os aparatos técnicos e relatam experiências de outros centros de referência como os
dos Estados Unidos, Espanha e Itália.

Outra etapa que compôs este estágio resultou em Visita Técnica feita ao Instituto José
de Figueiredo – IJF em Portugal, nos dias 23 e 28.11.2016, com acesso integral aos
departamentos de restauro em pintura sobre madeira, pintura mural, restauro em têxteis,
papel, laboratório de química e de física, visita guiada pela Diretora Maria Gabriela Carvalho
e pelos coordenadores de cada setor visitado (Laboratórios, ateliês e arquivos), para
conhecimento dos métodos de trabalho e tipos de acervos atendidos.

A Oficina de Restauro do Museu do Convento de Jesus em Setúbal acompanha a


conservação dos seus acervos há mais de 30 anos e localiza-se imediatamente ao lado do
Convento de Jesus, coordenada pela professora Maria José Mendes Francisco, restauradora
com vasta experiência na área, onde cumprimos 80 horas aula.

Nesta fase do estágio, com atividade intensiva de aulas teóricas e em maior parte
práticas, aprendemos métodos e técnicas de procedimentos em conservação e restauro de
pinturas de cavalete (telas), utilizando acervo do Museu de Setúbal. A escolha deste setor
pautou-se na deficiência da OR que há mais de dez anos pesquisa e realiza algumas
intervenções nesta tipologia.

Todas estas enriquecedoras experiências resultaram num total de 300 horas de estágio
(160 horas no CECOR e 140 horas FBAUL) de atividades acadêmicas em Minas Gerais e em
Portugal, de cunho teórico-práticas, orientação e consultoria, tanto para as questões amplas

753
como o acesso a referências e tecnologias atualizadas, quanto pontuais para a consultoria e
composição do Laboratório de Conservação em Parnaíba.

Demandas e Carências do Piauí

A preservação do patrimônio de bens culturais móveis do Piauí ocorre desde muito


tempo da mesma forma como ocorreu em muitos estados brasileiros até a primeira metade do
século XX, de maneira informal e incipiente pela ausência de pessoas com formação
específica para assumir o comando teórico e prático nas decisões de acervos atendidos e da
falta de sensibilidade e condições técnicas e financeiras por parte das instituições.

As demandas possíveis de conservação e restauro são atendidas há 30 anos pela única


Oficina de Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis do Piauí, setor criado em
1987 para atender ao Sistema de Museus da Secretaria de Cultura do Estado.

O trabalho da OR de Teresina é realizado por profissionais não formados na área da


Restauração, mas que passaram inicialmente por criteriosos treinamentos realizados com a
equipe desde a sua fundação. Estas atitudes sinalizam para a consciência da responsabilidade
de embasamento teórico, baseados em Cesare Brandi (1906-1988), que trabalha a
bipolaridade estético-histórica, bem como, uma preocupação por parte dos integrantes, quanto
à aplicabilidade dessas teorias, em sua difícil realidade.

No entanto, a falta de contato com outros centros de pesquisa e renovação dos


conhecimentos, materiais e técnicas que acompanhem a evolução dos problemas de
conservação e restauro, que surgem constantemente e de maneira mais acentuada e complexa
no contexto contemporâneo, provocaram dificuldades no andamento dos processos de
trabalho e atualmente, o distanciamento da formação e atualização vem causando
imprudências na forma de desenvolver as decisões e práticas de conservação e restauro.

754
A ausência dos pré-requisitos citados e as influências de ofertas fáceis de cursos de
curta duração em conservação e restauro obtidos na internet, têm contribuído para a forma de
decisão nos processos de trabalho e até mesmo descaracterização de algumas peças de acervos
públicos e particulares.

Nesses 30 anos a OR enfrentou inúmeros problemas como falta de formação,


atualização e intercâmbio com instituições congêneres, materiais, equipamentos, muitas
mudanças de endereço, espaços inadequados, além da insensibilidade de algumas gestões.

A partir deste panorama, do contexto sem perspectivas de mudanças, contando com


apenas quatro servidores atuantes, a OR corre sérios riscos de desaparecer, o que nos motivou
a buscar formas de intervir por meio das ações planejadas e cumpridas no Programa de
Mestrado Profissional da UFPI Parnaíba, para tentar minimizar estas questões e iniciar um
programa de salvaguarda do que ainda se mantêm íntegro.

Propostas e ações para a nova geração de conservadores

Dentre os produtos e serviços previstos na pesquisa-ação que realizamos, tivemos


como resultados dos objetivos planejados e metas, um texto escrito associado às memórias e
história da OR, capacitações de 31 novos potenciais conservadores em Teresina e Parnaíba,
um documentário de 20 minutos sobre a história da OR, e projeto elaborado para criação de
uma Oficina de Conservação e Restauro em Parnaíba.

Para a implantação de uma oficina de restauração em Parnaíba, elaboramos projeto


tanto para ser construído da forma ideal em projeto de implantação, como a partir de espaços
já existentes que podem ser adaptados da melhor forma para atender as demandas locais. Foi
escrito um Plano de necessidades em conjunto com a equipe do Mestrado, escritório de
Arquitetura Maloca, integrantes da OR e consultoria feita nos estágios no CECOR e na
FBAUL, para melhor entendimento do contexto geral e adequação às demandas locais.

755
A criação de uma Oficina de Conservação e Restauro exige um alto investimento
financeiro e de agentes locais: UFPI, do IFPI, do SESC, da SECULT e de outros agentes
públicos e privados, de forma a permitir a continuidade do trabalho pioneiro da OR iniciado
há três décadas na cidade de Teresina. Há agora a oportunidade de formação e renovação de
equipes, há muito saber-fazer a ser transmitido pelos membros da OR.

Mostramos na figura 02, aula do Curso de Capacitação em Conservação e Restauro,


ministrado na Cidade de Parnaíba - Piauí, em parceria com a Universidade Federal do Piauí -
UFPI e Serviço Social do Comércio – SESC, em agosto de 2016.

igura 2: Aula de Conservação e Restauro, SESC Caixeiral, Parnaíba-PI.

Fonte: Elenilce Mourão, 2016.

Para concretizar nossas propostas será feito um restart (reinício) do que ocorrera em
1987 com a criação da OR em Teresina, mas em nível superior, envolvendo comunidade,
agentes públicos e privados. Uma experiência que pode servir de apoio à OR de Teresina, que
na época de sua criação propunha a trabalhar com aporte científico, adotando métodos
comprovados, oriundos das Teorias Modernas do Restauro.

756
Este conjunto de ações constitui uma tentativa de salvaguardar o Patrimônio Cultural
de bens culturais móveis do Piauí, na medida em que planeja, mapeia, forma e desperta para
tomadas de atitudes individuais e coletivas, particulares e institucionais, para aplicação em
breve, médio e longo prazo, e dessa forma contribui sistematicamente para a salvaguarda do
patrimônio cultural do Piauí.

Considerações Finais

Como ex-integrante da OR e mestranda do PPGAPM corroboramos com o


pensamento da equipe que insiste em sobreviver; temos consciência da forma ideal de
funcionamento de uma oficina de restauro e da realidade encontrada. Portanto, partimos do
sonho para a realidade desde a escolha do local, de desejar o mais sofisticado equipamento a
sua aplicabilidade, nos moldes da conservação e restauro contemporâneos.

Insere-se, portanto, no conceito deste trabalho que tem como foco a sensibilização, a
atualização e a formação de agentes públicos e privados para a importância da preservação do
patrimônio cultural, sobretudo, àqueles sob a guarda do poder público, o que justifica o
investimento na continuidade da OR e criação de outro setor análogo, mas preparado para
enfrentar os desafios da conservação e restauro contemporâneos.

A experiência adquirida nos estágios nos permitiu uma aproximação maior com a
restauração científica, jamais experimentada na OR, tanto em termos de materiais e
equipamentos, como de procedimentos mais recentes, e além do mais, poder vê-los sendo
executados em acervos com relevante valor artístico e histórico, nos contextos vivenciados.

É necessário pensar na sustentabilidade de um equipamento dessa natureza, frente ao


conhecimento dos problemas já enfrentados e criar estratégias de geração de receita para a
nova Oficina. No processo de criação necessitará de materiais e equipamentos. Para a
construção do projeto de criação da nova Oficina foi significativa a observação durante
estágio na UFMG/CECOR e FBAUL, instituições com bastante experiência na área.

757
Além das soluções de sustentabilidade, as parcerias técnicas são de mais valia, em um
trabalho que integre equipes de conservadores-restauradores de várias instituições: CECOR,
IJF, Universidade de Lisboa etc. É preciso integrar nessas parcerias os equipamentos culturais
do Piauí sob a gestão do Estado e Prefeituras, diagnosticar os acervos, conhecer, aproximar-se
e trabalhar em parceria, atitude vital quando se trata de Patrimônio Cultural e Museologia.

De acordo com os pesquisadores da FBAUL há uma relação intrínseca entre teoria e


prática no pensar-fazer-conservar a obra de arte contemporânea, onde a atuação da academia é
fundamental:

[…] a reflexão teórica e a prática dirigida à conservação e restauro da arte (e


necessariamente da própria arte contemporânea) faz confluir a consciência
da materialidade da arte (fundamentada a investigação físico-química dos
próprios materiais), o vasto saber humanístico sobre ela acumulado […] e as
processualidades técnicas do fazer, conhecimento indispensável à
intervenção sobre qualquer tipo de obra (PEREIRA; DIAS, 2011, p. 220).

Reafirmamos a importância da academia em qualquer proposta sistêmica, pela


dinâmica da instituição universitária, da oportunidade de estar sempre vinculada à pesquisa,
que neste contexto da OR, ter-se-ia evitado: a repetição de rotinas defasadas, o abandono dos
mais capacitados em busca de melhores condições de trabalho e evitado, pelas circunstâncias,
certa acomodação e resistência a mudanças e inovações, frente às dificuldades constantes.

Vale ressaltar a importância das articulações feitas a partir dos estágios e viagens aos
centros de restauração, museus, universidades e outras instituições envolvidas por este
processo, que, certamente, cada uma delas contribuiu com uma parcela de conhecimento e
qualificação profissional, além de mantermos o diálogo entre as instituições e inovações.

758
Referências

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Editorial, 2004.

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Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural da Universidade Federal de Pelotas,
2013. Resenha. Disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/-
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Acesso em 09 de abr. 2017.

ICOM BR. Comitê Brasileiro do ICOM. Disponível em http://www.icom.org.br/.Acesso em


10 de abr. 2017.

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Português do ICOM – Conselho Internacional de Museus, 2009.

INSTITUTO DEL PATRIMONIO HISTÓRICO ESPAÑOL. La Ciencia y el Arte Ciencias


experimentales y conservación del Patrimonio Histórico. Coordinación de la Edición:
Socorro Prous. Jefedel Servicio de Documentación. IPHE • Coordinación Científica:
Mariándel Egido. IPHE. Tomás Calderón. UAM, 2008.
<http://pt.calameo.com/books/00007533584c6b757a9fb>. Acesso em mar de 2017.

MUÑOZ-VIÑAS, S. Teoría Contemporánea de la Restauración. Espanha: Editorial


Síntese S.A., 2010.

SEHN, Magali Melleu. Entre resíduos e dominós: preservação de instalações de arte no


Brasil. Belo Horizonte: Editora C/Arte, 2014.

PEREIRA, Fernando António Baptista, DIAS, Fernando Paulo Rosa. Ciências da Arte e
Criação Artística: Solidariedades para uma Investigação em Arte, in Investigação em
Arte e Design, Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2011, p. 214-
228.

759
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contemporânea da restauração aos profissionais de restauro no século XXI", en
Contribuciones a las Ciencias Sociales, Agosto 2013. Disponível
em:<www.eumed.net/rev/cccss/25/restaurazao.html>. Acesso em 12 de fev de 2017.

SOUZA, Geisa Alchorne; SÁ, Ivan Coelho de. Arte Contemporânea e sua Conservação:
revisitando Brandi e Viñas. Revista Mosaico, volume 6, número 9, 2015. Disponível
em:<http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/mosaico/article/view/64409>. Acesso em
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UNIVERSIDADE DE LISBOA. Página Institucional. Disponível em:


<http://www.belasartes.ulisboa.pt/belas-artes/>. Acesso em 02 de abr. 2017.

760
PRAGAS NO MUSEU: ANÁLISE DA PRESENÇA DE PRAGAS NO MUSEU
CASA DAS ONZE JANELAS E NO MUSEU DE ARTE DE BELÉM

Tayná Castro*
Sue Anne Regina Ferreira da Costa*
*Universidade Federal do Pará*

Resumo: As pragas são agentes de degradação prejudiciais para os acervos museológicos, portanto os
acervos salvaguardados por instituições museológicas requerem cuidados específicos de conservação,
por isso a Conservação Preventiva, responsável pela desaceleração dos efeitos causados por agentes de
deterioração em acervos museológicos, é essencial para que o patrimônio salvaguardado perdure mais.
Com o objetivo de aumentar o conhecimento no que concerne a conservação de acervos, este artigo
analisa a presença de pragas na área expositiva do Museu Casa das Janelas e do Museu de Arte de
Belém. Foi feito o levantamento geral das salas e dos acervos, considerando as características
relevantes da área interna e externa do edifício, e a coleta das pragas existentes nas salas analisadas,
para posterior análise das mesmas. Nas salas analisadas, foram encontrados diversos insetos mortos,
que causam diferentes tipos de degradação, por isso é necessária a consciência da instituição, acerca
dos potenciais riscos a que um acervo pode ser submetido, para assim realizar medidas eficazes de
salvaguarda.

Palavras-chave: Conservação Preventiva; Pragas; Museu Casa das Onze Janelas; Museu de Arte de
Belém; Patrimônio

Abstract: Pests are harmful degradation agents for museological collections, so collections protected
by museological institutions require specific conservation precautions, therefore the Preventive
Conservation, responsible for decelerating the effects caused by agents of deterioration in museum
collections, is essential for the patrimony safeguarded lasts longer. With the aim of increasing
knowledge regarding conservation of collections, this article analyzes the presence of pests in the
exhibition area of the Casa das Janelas Museum and the Museum of Art of Belém. A general survey in
the rooms and in the collections was done, considering the relevant characteristics of the internal and
external area of the building and the collection, and the collect of the existing pests in the analyzed
rooms, for later analysis of the same. In the rooms analyzed, several dead insects were found, which
cause different types of degradation. Therefore, the institution's awareness of the potential risks to a
collection is necessary, in order to carry out effective safeguard measures.

Key-words: Preventive Conservation; Pests; Museu Casa das Onze Janelas; Museu de Arte de Belém;
Patrimony

761
INTRODUÇÃO
Os objetos que estão em instituições museológicas possuem aspectos artísticos,
históricos e culturais considerados importantes para as sociedades onde estão inseridos, e por
isso devem ser conservados. Entre as diversas práticas nas instituições museológicas, destaca-
se a Conservação Preventiva, que engloba áreas como o transporte, embalagem, o manuseio
dos bens patrimoniais, o controle do ambiente das áreas de exposição e reserva, os materiais
de construção dos edifícios e equipamentos, ou seja, todas as ações que visam a diminuição
dos impactos de deterioração que atuam sobre os materiais que constituem os objetos
(ALARCÃO, 2007).
Esses impactos são causados pelos agentes de deterioração, que podem ser
classificados como: força física direta, fogo, água, radiação, temperatura e umidade relativa
incorretas (COSTAIN, 2001), e principalmente, as pragas, e dentre elas encontram-se os
insetos que podem ser atraídos pela disponibilidade de comida, proteção e temperatura
favorável para sua sobrevivência. Os ataques podem ser sazonais e estar relacionados às
condições ambientais. A presença de um organismo morto, excremento, ou produtos
metabolizados podem servir de comida e atrair outros (ALLSOPP; SEAL; GAYLARDE,
2004).
Por isso, a Conservação Preventiva atua através de intervenções conscientes e
controladas no ambiente que o acervo está inserido visando a diminuição dos impactos de
degradação que naturalmente atuam sobre os materiais que constituem os objetos.
Portanto, o reconhecimento dos materiais que compõem as coleções, é fundamental
para quem trabalha em museus (Souza; Froner, 2008), pois só então é possível serem
pensadas medidas de conservação adequadas a realidade de cada acervo. Como, por exemplo,
os acervos orgânicos e inorgânicos que são sensíveis em graus distintos aos fatores externos e
às predisposições internas de degradação (SOUZA; FRONER, 2008).
Em ambos os casos, ou seja, fatores externos ou internos, estes serão acelerados pelas
condições às quais o museu mantém seu acervo, e no caso das instituições que fazem parte do
Centro Histórico de Belém, os acervos encontram-se ou dispostos nas áreas expositivas, ou

762
em reserva técnica, com exceção do Museu Casa das Onze Janelas, pois neste há um espaço
idealizado como reserva técnica visitável, pois possui o caráter de salvaguarda e exposição
simultaneamente de objetos (FRONER, 2008).
O objetivo deste trabalho é analisar a presença de pragas em áreas expositivas, no
Museu Casa das Onze Janelas e no Museu de Arte de Belém, com o intuito de aumentar o
conhecimento no que concerne aos cuidados com acervos, para auxílio na elaboração de
ferramentas necessárias para ações de conservação preventiva em acervos museológicos.
O Museu Casa das Onze Janelas é um espaço de salvaguarda do patrimônio
museológico localizado no Centro Histórico de Belém do Pará, o acervo presente no Museu é
composto de obras de arte moderna e contemporânea de artistas nacionais e internacionais,
como por exemplo, Tarsila do Amaral, Babinski, Amilcar de Castro, Franz Weissmann,
Adriana Varejão, além de artistas paraenses como Emmanuel Nassar, Osmar Pinheiro e Ruy
Meira (MOKARZEL, 2013).
O Museu de Arte de Belém, assim como o Museu Casa das Onze Janelas, é um
importante espaço de salvaguarda e exposição da arte paraense, este possui, em sua maioria,
acervos compostos de mobiliário em madeira e pinturas que remetem ao período da “Belle
Époque”. Devido ao valor simbólico, artístico e histórico do patrimônio salvaguardado por
ambos os museus (Britto, 2009), são necessárias pesquisas em conservação preventiva, para
que haja subsídios para o desenvolvimento de práticas de preservação, que possam ser mais
eficazes.
A metodologia se dividiu em duas etapas, a primeira foi o Levantamento geral da sala e do
acervo, este considerou as características relevantes da área externa do edifício, bem como da
parte interna, a segunda etapa foi a coleta das pragas existentes nas salas analisadas, para
posterior análise das mesmas.
Considerando o clima natural da Amazônia, este pode ser considerado nocivo para a
conservação de objetos museológicos, de acordo com as bibliografias internacionais, e isso
reforça a necessidade de se construir ferramentas que possibilitem a durabilidade máxima dos
objetos, pois caso contrário os mesmos estarão em condições de temperatura e umidade

763
relativa altas durante o ano todo (BASTOS, et al 2002), condição está considerada inadequada
para a conservação, pois pode ajudar na atração e proliferação de pragas.

RESULTADOS

Museu Casa das Onze Janelas

O Museu Casa das onze janelas está localizado de frente para a baía do Guajará e
possui o entorno arborizado. A proximidade com a baía e áreas arborizadas pode gerar um
ambiente úmido no entorno, que tende a penetrar no interior da edificação através dos
materiais construtivos e assim aumentar a temperatura interna do museu, (GONÇALVES;
SOUZA; FRONER, 2008) o que pode contribuir para o ataque biológico, pois este costuma
estar associado à umidade relativa acima de 70% (SOUZA, 2008).
A sala analisada do museu Casa das Onze Janelas é intitulada “Ruy Meira” (Fig. 1C),
localizada no térreo, com 484 m³ e nela está a exposição de longa duração “Traços e
transições revisitada: Arte Moderna e Contemporânea Brasileira” que se propõe a traçar um
panorama da arte contemporânea brasileira (BRITTO, 2006). Em geral, as obras apresentam
tipologias e técnicas diferenciadas tais como pinturas, aquarelas, xilogravuras, serigrafias,
calcogravuras,litogravuras, pastel e esculturas de diferentes materiais como: ferro, argila,
acrílico e madeira.

764
Figura 1: Área de estudo 1, Museu Casa das Onze Janelas, A – Posição Geográfica do Prédio, B – Fachada do
Prédio, com destaque para a localização da sala Ruy Meira, C – Visão geral da sala Ruy Meira.

Fontes: A- Google Maps. Disponível em: <https://www.google.com.br/maps>; B e C – Produção das autoras.

Com relação a estrutura da sala, esta possui o piso de pedra, paredes de alvenaria de
pedra e uma porta de entrada de vidro não vedado que em geral fica semiaberta. As janelas
também são de vidro e embora fiquem fechadas, também não são vedadas, favorecendo assim
trocas com o ambiente externo, que por sua vez dificulta o desempenho dos aparelhos de
climatização, o que ocasionará em alterações químicas e possível proliferação das infestações

765
biológicas (SOARES, 2012). Além disso, pode favorecer também a entrada de agentes
biológicos, pois estes geralmente são introduzidos nos museus através do ambiente externo
(FRONER; SOUZA, 2008), portanto é essencial a vedação das janelas e portas.
Portanto, a sala analisada possui todos os atrativos para insetos, o clima é favorável e
os objetos são fonte de nutrientes, por isso eles procuram abrigo na sala, e isso permite que
estes se reproduzam provocando diversos danos ao acervo exposto (FRONER; SOUZA,
2008). Na sala de exposição em questão, foram encontrados insetos mortos (Fig. 2), como
barata, mariposa, grilo e formiga, coletados e fotografados para análises, pois a identificação e
o mapeamento das pragas encontradas são extremamente necessários, sendo que uma das
principais causas de atração dos insetos, ou outros tipos de pragas é a sujidade, que foi
bastante encontrada na sala.

Figura 2: Tipos de pragas encontradas no Museu Casa das Onze janelas

A barata (Fig. 2A) é do tipo doméstica, da espécie Periplaneta americana, este tipo de
inseto é mais adaptado ao clima quente de lugares tropicais e subtropicais, como por exemplo
o da Amazônia. Como a maioria das baratas, a doméstica desenvolve hábitos noturnos,

766
preferindo locais quentes e úmidos, ricos em matéria orgânica, como restos de alimentos, por
serem onívoras não possuem uma alimentação restritiva (FRONER; SOUZA, 2008).
A mariposa (Fig. 2B), do gênero Lepidóptera, ainda estava no período de larva, que
também é conhecida como traça de parede, as larvas alimentam-se logo após seu nascimento,
pois elas necessitam de vitamina B e sais, geralmente atacam materiais confeccionados com
fibras têxteis, como tapeçaria, vestuário e telas (FRONER;SOUZA, 2008) , há telas na sala
que não estão emolduradas ou no passe-partout, portanto as traças podem atacar esses objetos
com mais facilidade, causando prejuízos de diferentes ordens (material e simbólica) a
instituição.
O inseto da ordem Ortóptera e da família Grillidae (Fig. 2C) é possivelmente um
grilo, os danos causados por este inseto referem-se ao comportamento alimentar, pois também
é onívoro (KLEIN, 2008). A formiga alada da ordem Hyminoptera (Fig. 2D) estava em
período reprodutivo, e assim como os outros insetos encontrados, pode provocar lacunas,
galerias, e alterações superficiais ou profundas, dependendo da espécie (LOPES, 2011).
Os insetos atacam, em geral, os materiais orgânicos, que é o principal material
presente no acervo do Museu Casa das Onze Janelas, portanto é necessário um
monitoramento constante das salas de guarda, exposição e pesquisa a partir de um plano de
inspeção periódica e de um treinamento de pessoal de limpeza, que devem ser treinados para
identificar ocorrências de evidências de ataques biológicos, em locais como: nos peitoris das
janelas; atrás das portas; nas paredes, pisos e forros; ao redor do mobiliário. Pois apenas
retirar tais evidências pode mascarar uma situação de infestação, na medida em que remove os
vestígios de um ataque biológico (FRONER; SOUZA, 2008).
Quanto às medidas de prevenção contra pragas, de acordo com os funcionários do
Museu Casa das Onze Janelas, a instituição faz limpeza das áreas expositivas, entretanto
percebeu-se que não é uma limpeza sistemática, pois foi encontrado sujidades no chão, dentro
dos expositores e alta ocorrência de pragas, apesar disso a maior parte do acervo está em bom
estado de conservação devido ao armazenamento adequado. Porém a durabilidade dos
materiais fora do armazenamento, neste caso, é menor. O problema com relação a

767
sistematização da limpeza deve-se pelo número reduzido de funcionários para as atividades
diárias de conservação do museu, desse modo é necessário mais recursos para a limpeza do
acervo, pois a limpeza do ambiente de exposição e do acervo também é uma medida essencial
de prevenção contra pragas, pois diversos organismos são atraídos pela sujidade, que em geral
serve de alimentação para os mesmos (FRONER, 2008).

Museu de Arte de Belém

O Museu de Arte de Belém inaugurado em 1994, com o acervo proveniente da antiga


Pinacoteca Municipal e do Museu da Cidade de Belém (SILVA; ALVES, 2011). O Museu
está instalado no Palácio Antônio Lemos cuja construção foi concluída em 1885
(DERENJI,1996). Também integra o Centro Histórico da cidade, porém, ao contrário do
Museu anterior, este fica próximo a uma via bastante movimentada (Fig. 3A), e isto pode
gerar o acúmulo de sujeira dentro das salas expositivas devido a poluição atmosférica, e isto
pode atrair insetos e outros agentes de degradação (FRONER; SOUZA, 2008), e assim como
o outro Museus, há áreas de vegetação no entorno.

768
Figura 3: Área de estudo 2, Museu de Arte de Belém, A – Posição Geográfica do Prédio, B – Fachada do
Prédio, com destaque para a localização da sala Ismael Nery, C – Visão geral da sala Ismael Nery.

Fontes: A- Google Maps. Disponivel em: <https://www.google.com.br/maps>; B e C – Produção das autoras.

A sala analisada é intitulada “ Ismael Nery” e também é conhecida como “Salão dourado”,
fica localizada no andar superior (Fig. 3B), nela a exposição é composta de diversos

769
mobiliários referentes a Belle Époque. O piso é de madeira, as paredes revestidas de chapas
metálicas, o forro de gesso, e possui uma porta de entrada de madeira, que por ficar aberta
constantemente não isola a área do meio externo. E assim como no museu anterior pode
atrapalhar o desempenho do aparelho de climatização. As janelas possuem abertura dupla,
sendo que a que dá acesso direto a área externa fica fechada, e como medida de Conservação
Preventiva possui filtros contra radiação solar (Fig. 3C), pois apesar destes é possível
aproveitar a luz natural para a exposição. Porém é importante ressaltar que os filtros precisam
de manutenção regular, pois possuem validade (Fraser; Winsor; Ball, 2005).

No acervo há um predomínio de madeira, que é um dos tipos de materiais que sofrem


bastante com os agentes biologicos, principalmente, os xilofagos, por isso é
necessário compreender o comportamento desses agentes para que se possa evitar a
infestação das peças. Os danos normalmente estão associados a perda do material, redução
nas propriedades mecânicas da madeira, desprendimento da camada pictórica, soltura das
telas, entre outros (GIOVANELLA, 2009).
No MABE foram encontrados apenas sinais de mariposas da ordem Lepidoptera (Fig. 5B)
em período de larva, conhecida como traça, estas são atraídas pela umidade acima de 75%
(SOARES, 2012). A baixa ocorrência de pragas no local deve-se a limpeza periódica
realizada pelo museu, que além de retirar possíveis insetos mortos retira a sujidade, algo
considerado adequado para a conservação de acervos, pois a acumulação de sujidades torna-se
ambientes propícios para o desenvolvimento de insetos (SOARES, 2012). Além disso são
utilizadas pantufas pelos visitantes e funcionários dentro das salas de exposição que evitam a
entrada de sujeira e possíveis pragas através dos sapatos.

Considerações Finais
O ataque biológico à acervos museais é um enorme problema para as instituições
museológicas, pois o seu aparecimento é prejudicial devido a degradação que é causada aos
objetos. Os fatores de atração muitas vezes são sinérgicos, como por exemplo, as fezes da

770
barata encontrada que produz uma substância capaz de atrair insetos da mesma espécie, pois é
comum uma vida em grupo. Portanto, o controle ambiental, com temperatura e umidade
adequadas, limpeza periódica são medidas que ajudam a prevenir e repelir as pragas. Por isso
é necessária a consciência da instituição, acerca dos riscos potenciais de degradação, a que um
acervo pode ser submetido, para assim realizar medidas eficazes de salvaguarda.
Os dois museus possuem em sua maioria acervos orgânicos, que pela sua composição
química, constituem o maior fator de risco, podendo ser atacados por diversos agentes
biológicos (Alarcão, 2010), porém apesar das irregularidades encontradas nas salas de
exposição, o acervo salvaguardado por eles encontra-se em um bom estado de conservação.
Enquanto instituições museológicas, é dever do Museu Casa das Onze Janelas e do
Museu de Arte de Belém zelar pelo acervo sob sua guarda, pois a conservação é uma das
missões do Museu, de acordo com sua definição elaborada pelo Conselho Internacional de
Museus (ICOM) (DESVALLÉES; MAIRESSE, 2013).

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Museu Municipal de Faro. n.2, p.08-34, 2007.

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BASTOS, Therezinha Xavier; PACHECO, Nilza Araújo; NECHET, Dimitrie; SÁ, Tatiana
Deane de Abreu. Aspectos climáticos de Belém nos últimos cem anos. Belém: Embrapa
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BRITTO, Rosangela Marques de. A invenção do patrimônio histórico musealizado no bairro


da Cidade Velha de Belém do Pará, 1994-2008. 2009. Dissertação (Mestrado). Programa de
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Edifícios que abrigam coleções. Belo Horizonte: LACICOR − EBA − UFMG, 2008.
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772
SOUZA, Luiz Antônio Cruz. Conservação Preventiva: Controle Ambiental. Belo
Horizonte: LACICOR − EBA − UFMG, 2008.

773
UM APASA NO MUSEU: SE CORRER ELE PEGA, SE FICAR ELE COME

Mônica Lima Carvalho*

Resumo: Apresento três objetos etnográficos pertencentes ao Museu Antropológico da Universidade


Federal de Goiás, em quatro diferentes circunstâncias museológicas. Do ponto de vista da
antropologia, da etnografia, da conservação e da restauração, estes nos remetem às suas paisagens de
origem e se interagem em função da conservação e da preservação de suas materialidades enquanto
objetos museológicos. A abordagem apresentada busca a compreensão geral e a percepção sensível
dos aspectos desvelados da cultura material indígena subsistido fortemente à vida em Reserva Técnica
no museu.

Palavras-chave: Cultura material em museus; objetos etnográficos xinguanos; preservação,


conservação e exposições em museu.

Abstract: I present three ethnographic objects belonging to the Anthropological Museum of the
Federal University of Goiás in four circumstances, from a museological perspective. From the point of
view of anthropology, ethnography and conservation and restoration, they refer to their original
landscapes and interact in favour of the conservation and preservation of their materiality as museum
objects. The presented approach seeks the comprehensive understanding and the sensitive perception
of the unveiled aspects of the indigenous material culture subsisting strongly as the life in the
museum’s Storage.

Keywords: Material culture in museums; Xingu ethnographic objects; preservation; conservation and
museum exhibitions.

774
Introdução

Entendendo o Bem Cultural como parte do patrimônio, onde inexistem limites


conceituais, onde o simbolismo prima pelo seu potencial em nos despertar às mais elevadas
esferas do conhecimento, é que cada vez mais se manifestam a seriedade e o compromisso do
Conservador e Restaurador na interatividade com os bens salvaguardados em museus,
guardiões da veracidade e autenticidade da obra ou objeto a ser preservado como patrimônio
de inestimável valor histórico, artístico, cultural e documental à disposição da ciência e da
humanidade. Mas como atuar de fato na preservação de determinadas coleções que são
formadas no seio de pesquisas acadêmicas, onde a coleta prima atender ao colecionismo
indeliberado daqueles que exercem a prática em trabalho de campo? Ademais, a depositar os
mesmos em reservas técnicas de museus, muitas das vezes sem os devidos estudos específicos
que permitam que estes sejam documentados e identificados em seus contextos de origem?

O mundo material só pode ser trazido de volta à vida nos sonhos dos
teoristas conjurando-se um pó mágico que, aspergido entre seus
componentes, deve colocá-los fisicamente em movimento. Veio a ser
conhecido na literatura como agência, e grandes expectativas foram aí
depositadas. Trazer coisas à vida, portanto, não é uma questão de acrescentar
a elas uma pitada de agência, mas de restaurá-las aos fluxos geradores do
mundo de materiais no qual elas vieram à existência e continuam a subsistir
(INGOLD, 2015, p. 62-63).

O código de ética ICOM (Code Professional Ethics, do Conselho Internacional de


Museus) afirma que museus “provide opportunities for the appreciation, understanding and
management of the natural and cultural heritage” (ICOM, 2006, p. 8). Neste contexto e
segundo a concepção de Ingold, início o meu próprio caminho através da paisagem-da-tarefa,
como o fazem caminhantes pela paisagem, produzindo seu trabalho à medida que prosseguem
com suas próprias vidas (INGOLD, 2015, p. 309). Dessarte, transformando minha trajetória,

775
qualificando-me uma profissional que atua em museus, trago toda a experiência e
sensibilidade agregada em meu ser por todos os percursos já traçados e explorados enquanto
aprendiz.

A Exposição de longa duração do Museu Antropológico da UFG, “Museu: Expressão


de vida”, cujo tema era a diversidade cultural da região Centro-Oeste, configurada por objetos
representativos das etnias, constituiu o meu primeiro campo observatório de estudos da
cultura material indígena, no ano de 1994, quando de meu ingresso no corpo técnico-
administrativo do museu. Assim sendo, tornou o meu peculiar campo de pesquisa, território
fértil para as observações e as análises dos elementos constitutivos dos materiais a serem
preservados. A mim se configurava uma nova categoria – a dos “objetos etnográficos”.
Considerando o ambiente em destaque, a exposição de longa duração provê às pessoas que a
visitam o balizamento do quê ali existe em potencial a se transmitir em conhecimento
estudado, documentado e transformado visualmente, numa reunião especial de materiais em
continuum, tais quais as pessoas percebem o mundo ao seu redor. Hoje percebo o museu
como uma casa, considerando os esforços para manter a sua integridade matérica e funcional
em face às intempéries: “Como a própria vida, uma casa de verdade é sempre um trabalho em
progresso, e o melhor que os habitantes podem fazer é voltá-la para a direção desejada”
(INGOLD, 2015, p. 305).

E, nessa atmosfera de querer verdadeiramente entender ‘a nova casa’, tive o prazer de


recepcionar alguns dos índios cujas etnias estavam ali representadas por determinados
objetos, conforme a curadoria da exposição “Museu: Expressão de Vida”. Para minha
agradável surpresa, tratava-se de um cacique da aldeia Kuikuro no Xingu, quem seria,
dezenove anos mais tarde, o meu mestre nas atividades desenvolvidas no Xingu, durante o
meu mestrado. Apesar de ter sido a sua primeira vez no Museu Antropológico, ele estava de
passagem, vindo de outros museus de São Paulo e do Rio de Janeiro. Vários objetos
chamaram a sua atenção quanto aos aspectos da origem, da identificação e do uso ou da
função dos mesmos na vida diária das regiões ali representadas. Mas o objeto que o encantou

776
e o animou a discorrer mais detalhadamente a sua materialidade foi uma canoa confeccionada
a partir da casca do tronco da árvore originária do Xingu, posicionada no centro do circuito
expográfico, como mostra a imagem da foto (ilustração 1).

Figura 1: Exposição “Museu: Expressão de Vida”, suporte expondo duas canoas, confeccionadas a partir do
tronco de árvores, sendo a posicionada superior originária do Xingu, e a inferior, dos índios Karajá, Goiás.

Foto: Yacy-Ara Froner Gonçalves, 1995.

Cacique Jacalo fez uma atuação quase teatral, alinhando os seus movimentos e gestos
à representação do objeto que ali, simplesmente exposto, quase nada o sinalizava como índice
da importância vital que é a canoa para os povos indígenas. Até os dias de hoje, eles a
mantêm na tradição como o meio de transporte de um tudo que para eles é necessário às suas
sobrevivências nas aldeias, bem como visitando e transportando parentes e amigos das aldeias
vizinhas, pelo curso do Rio Xingu. A sua demonstração foi de cunho dinâmico, com vigor e
vitalidade, de como eles utilizam a canoa e de como ela poderia ali estar representada ou
abordada de forma mais plástica e expograficamente apresentada ao público, que muito pouco
sabe dessa paisagem tão importante de nosso país. Na oportunidade de meu trabalho de
campo no Xingu, pude vivenciar o que cacique Jacalo havia encenado há dezenove anos, em

777
nosso primeiro encontro no museu, porque experienciei ‘a viagem’ de barco, assim como
apresentada na imagem (Ilustração 2), com os índios do Xingu, rumo à aldeia Ipatsé.

Figura 2: Barco rumo à Aldeia Ipatsé Kuikuro, Rio Xingu, 2012.

Foto: A autora

A paisagem atua pela superfície do objeto

Chamo a atenção para a importância desse objeto para a vida dessas pessoas. Nos dias
atuais, mesmo que em algumas aldeias substituam a canoa confeccionada a partir da madeira
pelo barco a motor, ainda preservam o ritual da viagem como fosse a canoa tradicionalmente
usada por seus ancestrais. No entanto, a canoa Karajá, que também foi abordada na narrativa
de cacique Jacalo, encontra-se atualmente exposta na exposição de longa duração do museu
“Lavras e Louvores”, apenas disposta num design expográfico, como mostrada na ilustração
3. Atentei-me às palavras de Ulpiano Menezes:

No museu, o risco é que uma exposição, por exemplo, se transforme em


apresentação de coisas, das quais se podem inferir paradigmas de valores
para os comportamentos humanos e não na discussão de como os

778
comportamentos humanos produzem e utilizam coisas com as quais eles
próprios se explicam (1993, p. 212).

Figura 3: Canoa Karajá, exposição “Lavras e Louvores”, 2006.

Foto: A autora

Ademais, referente ao ICOM, no tocante às exposições em museus, “Interpretation of


Exhibitions – Museums should ensure that the information they present in displays and
exhibitions is well-founded, accurate and gives appropriate consideration to represented
groups or beliefs” (ICOM, 8). A identidade não é, pois, fruto do isolamento de sociedades ou
grupos, mas, pelo contrário, de sua interação (Meneses, 1993, p. 210), pois só assim o
percebemos. Nós, profissionais dos bastidores de um museu, saímos em busca da
interatividade com as pessoas que ainda trazem consigo o saber fazer, a ciência de trazer à
tona as substâncias das coisas materializadas em objetos, que academicamente são
classificados como ‘cultura material’. Não obstante, para os índios, esses mesmos objetos são
considerados e respeitados pela efemeridade de suas existências enquanto em uso em seu
habitat.

779
There are myths around indigenous material that have to some extent
become ingrained. One such myth is that all indigenous materials come from
the earth, have a natural cycle and therefore must return to the earth. The
implication is that indigenous people do not want their material to be
preserved in museums (BLOOMFIELD, 2008, p. 148).

Noutra situação por mim vivida, embora tragicômico, porém muito importante para
meu aprendizado, pude solidarizar com os índios do Xingu que visitavam o Laboratório de
Conservação e Restauro e Reserva Técnica Etnográfica do Museu, os nossos ingênuos desejos
de repatriamento de um objeto etnoarqueológico ao seu local de origem. Eles desejavam
conhecer os objetos que compõem as coleções representativas das etnias xinguana ali
salvaguardados. Eu os recebi prontamente, apresentei toda a cultura material por eles
solicitada, não propositadamente, mas por puro despreparo e desconhecimento do código de
ética internacional para os museus, que atentam para o

Return of Cultural Property – Museums should be prepared to initiate


dialogues for the return of cultural property to a country or people of origin.
This should be undertaken in an impartial manner, based on scientific,
professional and humanitarian principles as well as applicable local,
national and international legislation, in preference to action at a
governmental or political level (ICOM, 2006, p. 9).

Apesar da existência do ICOM (Code Professional Ethics) desde 1986, eu apresentei-


lhes o objeto (ilustração 4), material cerâmico coletado pelo Prof. Acary de Passos Oliveira,
então diretor do Museu Antropológico que, na época, era o chamado Museu Universitário da
UFG, mediante pesquisa na Lagoa Miararré, baixo curso do rio Culuene, Xingu, na década de
1970.

780
Figura 4: Fragmento arqueológico cerâmico, dimensões: 8,8 cm x 12,2 cm, originário da Lagoa Miararré, Xingu

Fonte: Coleção do Museu Antropológico da UFG. Foto: autora.

Embora muito anterior aos estudos de Steinen, a cerâmica Ipavu, cuja


datação ao redor de 1200-1300 d.C., para a fase Ipavu (COELHO, 1993, p.
225), apresenta decoração de cunho arqueológico idêntico ao dos desenhos
dos índios Bacairi registrados nos cadernos de campo de Schmidt.
Entretanto, ainda se fazem atuais à arte primordial xinguana contemporânea
(CARVALHO, 2014, p. 53).

Muito emocionados e surpresos eles ficaram ao depararem com o objeto que, segundo
eles, é um objeto de importância sagrada para a região da Lagoa de Miararré. Disseram ainda
que, depois que tiraram essa cerâmica da lagoa, nunca mais houve peixe para alimentar a
aldeia. Conseguintemente, eles reuniram a conversar na língua deles e decidiram me pedir
para que eu levasse o caso para a direção do museu e que o objeto fosse devolvido ao local de
origem, ou seja, pediram a reapropriação do objeto sagrado para o uso não museológico do
mesmo. Assim o fiz em respeito à situação, conversei com a diretora e, contrariamente àquilo
que esperávamos como resultado, a direção proibiu-me de mostrar determinados objetos,
como, por exemplo, esta coleção, sem que antes tivessem a anuência para que pudessem
realizar a visita técnica em reservas técnicas e laboratórios do museu. Somente então pude
entender o que acontecera e o quão delicada tornou-se a situação, principalmente quando eles
retornaram no dia seguinte para saber se conseguiriam levar com eles o objeto de volta para o

781
seu local de origem. Eu sequer pude recebê-los na reserva técnica etnográfica para que eles
apreciassem o ‘objeto sagrado’ uma vez mais.

Os casos aqui apresentados dialogam claramente com o posicionamento de Ulpiano


Meneses em relação a situações embaraçosas que são recorrentes nos museus:

Não cabe aos museus serem depositários dos símbolos litúrgicos da


identidade sagrada deste ou daquele grupo e cuja exibição deve induzir todos
à aceitação social dos valores implicados. Cabe, isto sim – já que ele é o
espaço ideal para tanto -, criar condições para conhecimento e entendimento
do que seja identidade, de como, por que e para que ela se compartimenta e
suas compartimentações se articulam e confrontam quais os mecanismos e
direções das mudanças e de que maneira todos esses fenômenos se
expressam por intermédio das coisas materiais (MENESES, 1993, p. 214).

Conhecimento tradicional essencial na preservação de uma cultura

Ainda em 1994, tive a oportunidade, juntamente com alguns Kuikuro, que hoje moram
na aldeia Lahatuá, no alto Xingu, de realizar uma importante atividade em Goiânia, no Museu
Antropológico da Universidade Federal de Goiás, relacionada à conservação dos artefatos da
cultura material xinguana, armazenada em Reserva Técnica, voltada aos aspectos da coleta e
do processamento de matéria-prima para a construção desses objetos (CARVALHO, 2014, p.
84). Ter improvisado na cidade e participar do processo de construção de uma máscara
xinguana, como a apresentada na ilustração 5, foi um aprendizado muito rico, que se
converteu em amizade, respeito e conhecimento.

782
Figura 5: Confecção da máscara xinguana, Casa do Índio, FUNAI, Goiânia, 1994.

Foto: A autora

Essa experiência despertou em mim uma crescente admiração pela cultura material
dos índios Kuikuro, com especial carinho, naturalmente cultivado e mantido pelas lembranças
dos momentos que compartilhamos juntos nessa ocasião. Pela cultura material, aproximei-me
dessas pessoas que estavam bem distantes das minhas atividades sociais e daquilo que eu
entendia por tradição. Encontrar com os Kuikuro, naquele momento de minha trajetória
profissional em processo de formação, como assim ainda me considero, foi um acontecimento
que o qualifico de natureza geoestético, e por geoestético eu percebo a paisagem das coisas
refletidas pela superfície do objeto.

Os materiais, os quais eu precisaria conhecê-los para poder preservá-los com


responsabilidade enquanto objetos musealizados, por si só não me conduziriam ao
conhecimento pleno de sua materialidade de cunho tangível bem como intangível, senão às
limitadas referências bibliográficas existentes ao momento. E, com essa situação em que me
deparei com o novo e com o desconhecido, pude expandir os meus sentidos numa atmosfera
imbuída de admiração e carinho e, assim, num movimento almático, senti profundo respeito
por aquelas pessoas que me mostrariam seus saberes e que, por suas sutilezas intuitivas,
desenhariam suas paisagens culturais. Tal revelação, de qualidade alquímica, sublimou, em

783
momentos por mim percebidos na singularidade de cada fenômeno de meu envolvimento, a
minha percepção poética na forma de apreender a cultura material e aos seus produtores.

“A growing respect for the knowledge of traditional owners as well as the increase in
museums that have policies on working with traditional owners, show that most conservators
desire a relationship of respect and understanding with indigenous people” (BLOOMFIELD,
2006, p. 144).

Desse feito, fui seduzida a focar atenções ao ritual de fatura do artefato e,


principalmente, pela arte do desenho, que se deu de forma tão especial, numa atmosfera
embevecedora desses momentos vividos e materializados na memória. Em trabalho de campo
para a pesquisa de mestrado, tive como principal objetivo o de estudar e documentar o
processo da coleta e da extração de matéria-prima da palmeira de buriti, assim como o de
acompanhar passo a passo o processamento das fibras e sua utilização na construção de uma
determinada categoria de cesto (CARVALHO, 2013, p. 84).

O conhecimento, ao qual me adentrei acompanhando o trabalho do cacique Jacalo de


tecer a trama em cesto, se distancia muito do seu próprio fazer, porque ‘o fazer’ vem da
experiência de uma vida de trabalho com o material. Como nos mostra Ingold (2015, p. 62),
esse é um conhecimento nascido da percepção sensorial e do engajamento prático, não com
uma preocupação com o mundo material, mas da participação de um profissional qualificado
de um mundo de materiais.

A superfície da materialidade

Em mais um exemplo envolvendo cultura material em museu, trago algumas questões


superpostas de importância museológica desde a sua preservação à apreciação ao público em
geral.

Da mesma forma como aconteceu com os outros objetos já abordados, Apasa também
foi identificado por alguns índios xinguanos que estavam visitando a Reserva Técnica

784
Etnográfica do museu. Assim sendo, eles me contaram a história da máscara no contexto da
sua aldeia de origem, falaram da essência da máscara, de sua atuação e do medo que ela causa
nas pessoas, principalmente quando corre atrás das crianças, assustando-as e levando-as para
o interior de suas ocas. Mas que, apesar de tudo, ela espalha alegria e euforia durante a sua
atuação por toda a área da aldeia. Essa foi, então, uma das variadas versões contadas pelos
representantes das diversas aldeias do Xingu ali presentes. Durante a visita, eles observaram
cuidadosamente cada detalhe da fatura da máscara, inclusive o estado de conservação da
mesma. Até discutiram entre eles algumas das possibilidades de recuperação do material,
esboçando técnicas de fatura e de reaproveitamento de matérias-primas utilizadas, o que
tornou a visita rica em informações e possibilidades para intervenções de conservação do
objeto em processo de degradação.

Aristóteles Barcelos (2002, p. 133) apresenta em seu livro a narração de um índio da


aldeia Wuaja, em português, sobre a Apasa, que diz o seguinte:

Apasa é tipo “gente” [i.e. antropomorfo], ele é apapaatai do mato, do mato


mesmo. Quando ele aparece, você o vê bem magrinho e barrigudinho, suas
pernas e braços são bem fininhos, e sua cabeça muito muito grande,
deformada. E seu corpo tem pinturas. Foram os yakapá que muito
antigamente viram e contaram. Meu pai [o yakapá Itsautaku] quem me
contou sobre o Apasa.
Normalmente não se vê Apasa. Mas se você morrer do feitiço dele, aí você
consegue vê-lo. Apasa te pega para passear no mato. Ele te leva para sempre.
Quando você adoece, pode ser Apasa que está lhe fazendo mal. Se você fica
falando besteiras e xingamentos feito um louco, ou comendo suas fezes e
bebendo sua urina, são sinais de que Apasa colocou feitiços em seu corpo.
Apapaatai é uma categoria complexa e genérica de seres extra-humanos.
Dividem-se em apapaatai mona (mamíferos, exceto o morcego), apapaatai
iyajo (monstros) e apapaatai onai (“roupas”-monstros). Em vários contextos,
as máscaras de dança e os instrumentos musicais são também referidos como
apapaatai (NETO, 2002, p. 133; 267).

785
Esta máscara Apasa encontra-se exposta na atual exposição de longa duração do
Museu: “Lavras e Louvores”, com a seguinte informação ao público visitante: “Máscara de
cabeça de cabaça – indumentária de ritual de dança confeccionada em cabaça e palha de
buriti. Índios Yawalapiti” (Ilustração 6).

Figura 6: Apasa na exposição “Lavras e Louvores”, 2006.

Foto: A autora

Assim sendo, podemos interpretá-la no contexto da semelhança entre representações


outras, porém, de uma mesma ‘categoria’ e, portanto, se destacando pela diferença entre os

786
demais elementos expostos neste circuito expográfico. Contudo, pouco se informa a respeito
dos objetos expostos.

Daí a reificação dos objetos, sua coisificação, fetichização. Isto é, cria-se a


ilusão de que eles é que se relacionam uns com os outros e exprimem
conteúdos próprios e não os das sociedades e grupos cujas interrelações é
que os produzem, mobilizam e lhes dão sentido – sempre em alteração
constante (MENESES, 1993, p. 212).

A atual exposição de longa duração do Museu Antropológico: “Lavras e Louvores” foi


resultado do projeto “Ação Museológica: implantação de um novo sistema de comunicação
museal para a exposição de longa duração do Museu Antropológico/UFG”. Este projeto foi de
autoria da Professora Edna Luísa de Melo Taveira, a diretora do museu na época, e teve
aprovação e financiamento pela extinta Fundação Vitae, numa duração totalizada em dez anos
de atividades que privilegiaram melhorias estruturais e arquitetônicas do edifício e melhorias
de preservação e salvaguarda do acervo do museu, sob minha coordenação técnica. A
exposição foi inaugurada em 2006 e, conforme a curadoria realizada pelas professoras Nei
Clara de Lima e Custódia Selma Sena:

Foi pensada para estimular a discussão sobre a região Centro-Oeste, da


perspectiva da construção simbólica das identidades regionais: o conjunto de
imagens, sentimentos, símbolos e objetos significativos da construção dessa
identidade. Dessa forma, os objetos são compreendidos como portadores de
sentidos, como signos desencadeadores de sentimentos, ideias,
conhecimentos, memórias que dizem sobre nossas identidades (Folder da
exposição).

Ingold pondera que estudiosos da cultura material inventaram a desmaterialização, ou


a sublimação em pensamento do próprio meio no qual as coisas em questão uma vez tomaram
forma e agora estão imersas (2015, p. 54). A materialização do Apasa se constrói a partir de

787
elementos do desejo da sua própria paisagem. Aqui, a superfície do artefato não é apenas a do
material em particular a partir do qual é feito, mas a da própria materialidade, uma vez que
confronta a imaginação humana criativa (INGOLD, 2000b, p. 53 apud INGOLD, 2015, p.
54). Assim sendo, quando a imagem está realizada no material, matéria-prima se transforma
em materialidade?

The surprising conclusion is that objects are important not because


they are evident and physically constrain or enable, but often
precisely because we do not “see” them. The less we are aware of
them, the more powerfully they can determine our expectations by
setting the scene and ensuring normative behaviour, without being
open to challenge. They determine what takes place to the extent that
we are unconscious of their capacity to do so (MILLER, 2005, p. 5).

Muitos desses objetos que foram coletados por Prof. Acary de Passos Oliveira e que
constituem coleções em Reserva Técnica Etnográfica já perderam parte da história e da
experiência etnográfica por ele vivida, mas ainda preservam na sutileza de sua materialidade
amostras de aromas, cores, tramas e textualidades, que nos transporta à paisagem de origem
dessas matérias, em formas.

Giro da matéria-prima a objeto, o tecido Apasa

Ah, quão complexa se torna a definição do tecido traduzido no sopro da imaginação!


Materializado por substâncias e pelo desejo que assim o animou, trazido à tona daquela
energia em movimento num instante fixo no tempo!

Irene Emery nos desperta para algo que vislumbra a vida em sua tridimensionalidade
material, no seu trabalho sobre as estruturas primárias do tecido:

Embora existam muitas bases possíveis para a classificação, é a construção


estrutural do produto e suas partes componentes que provê dados integrais
para virtualmente todos os estudos de objetos manufaturados,

788
independentemente de sua natureza ou origem, do interesse particular do
pesquisador, ou do objeto de seu estudo. A estrutura nunca está ausente; ela
é, com exceções negligenciáveis, determinantes; ela pode ser observada
objetivamente; e é suficientemente variável para agrupamentos e
subagrupamentos significativos. Embora os detalhes da estrutura (e da
composição de um elemento) não ofereçam, em si mesmos, uma visão
completa de um objeto, eles provêm bases factuais para uma descrição
compreensiva e, por serem determinantes, permitem classificar e fazer
estudos comparativos (EMERY, 1966, XI apud RIBEIRO, 1985, p. 23).

E como tão bem tratada aqui a importância da construção estrutural para o produto e
para os estudos de objetos manufaturados, trago uma visão parcial da fatura da indumentária
Apasa, fruto de minhas experiências vivenciadas com os indígenas nos momentos de nossos
encontros. Ela é composta de duas peças, sendo uma máscara presa a uma roupa inteiriça de
blusa com mangas compridas e calça, trançadas em palha torcida de palmeira de buriti, com a
trama em sentido vertical da composição da mesma. A urdidura costurada por cordinhas
confeccionadas a partir da seda extraída do broto da palmeira de buriti é disposta
horizontalmente em intervalos do suporte tecido. A trama da calça, na região dos órgãos
genitais, apresenta o trançado xadrezado e, tanto as bordas dos braços como as das pernas,
apresentam acabamento em franjas confeccionadas a partir da própria estrutura da trama
vertical da mesma, como se percebe na imagem a seguir (Ilustração 7).

789
Figura 7: Apasa – Máscara Xinguana pertencente ao acervo etnográfico do MA/UFG, 1994.

Foto: A autora

O tratamento da cabeça da máscara é concebido a partir do fruto da planta Legenaria


vulgaris, vulgarmente denominada por cabaça, muito conhecida pelos seus valores
medicinais, seu fruto pode ser aproveitado de várias maneiras, porém, é perigoso se ingerido
em grandes proporções podendo causar hemorragias mortais. Será que parte da grande
importância atribuída ao Apasa nas aldeias, dentre outras, a de assustar as crianças se dá para
que não abusem na ingestão desses frutos ou sequer nem os toque nas árvores, pois o mesmo
pode provocar lhes a morte acidentalmente? O fruto enquanto matéria e o seu giro à
materialidade do Apasa trouxeram com Ele o antídoto para o veneno contido na própria
matéria-prima, o medo. Bem, este questionamento pessoal é fruto de minha imaginação em
processamento das informações e das atividades no ambiente museal.

Assim sendo, como num passe de encantamento, Apasa convida o espectador a juntar
aquilo que traduzido no sopro da imaginação, e que em seu tecido, na

própria noção de cultura material, que ganhou um novo impulso na


sequência da sua longa hibernação nos porões da museologia, baseia-se na

790
premissa de que, como as encarnações de representações mentais, ou como
elementos estáveis em sistemas de significação, os objetos já se
solidificaram ou se precipitaram dos fluxos geradores do meio que lhes deu à
luz (INGOLD, 2015, p. 54).

Os materiais que dão à luz a carnação revelam a expressão grotesca da máscara,


trabalhada a partir do fruto da cabaça de grande dimensão, os materiais pigmentos de origem
vegetal, resinas de origem vegetal, fibras processadas do broto da palmeira de buriti,
sementes, cera de abelha, dentes e ossos de animais fornecem as substâncias para a superfície
na encarnação do ente Apasa e seus órgãos sensitivos, fundamentos matéricos para a sua
visibilidade. Agora Ele existe! Não somente pela composição de matérias substanciais à
superfície da imaginação, mas pelo sentido que veio à tona, que simbólica e estética é
comunicativa!

Conservação e restauro da máscara Apasa, a disjunção do ser em estar na materialidade

O seu processo de fatura na aldeia demanda de tempo prolongado, dada as atividades


de coleta das matérias-primas, do processamento das fibras do broto da palmeira de buriti, e
finalmente a da confecção propriamente dita do objeto, que envolve a costura do corpo da
máscara – a indumentária – e a preparação da cabeça da mesma. Ainda, para o acabamento da
indumentária, há os detalhes do preparo da seda do broto da palmeira de buriti no
processamento das cordinhas da seda de buriti para a realização de todas as costuras, assim
como do tratamento do suporte do fruto da cabaça ao acabamento da policromia e da fixação
dos elementos dos órgãos sensitivos, que demandam tempo e o domínio técnico para a
composição do Apasa.

Da mesma forma, as intervenções de conservação e restauro acontecem de maneira a


restabelecer a percepção sensorial, a ciência da materialização do objeto e de toda uma gama
de materiais que se moldam às coisas que deram ou tomaram esta forma singular e real em

791
seu mundo cosmológico, subsistindo fortemente a vida em Reserva Técnica do museu. O
material constituinte da máscara passou por intervenções de conservação, para que pudesse ter
a sua estrutura em condições de ser exposta por período determinado de tempo sem que
colocasse em sofrimento o seu suporte; e intervenções de restauro, a fim de prover o impacto
visual originariamente intuído por seus criadores.

Considerando o projeto anteriormente citado, financiado pela Fundação Vitae, “Ação


Museológica: implantação de um novo sistema de comunicação museal para a exposição de
longa duração do Museu Antropológico/UFG”, reestruturando e readequando seus espaços
físicos, com a duração de tempo de uma década de trabalho contínuo e ininterrupto,
privilegiou as práticas conservacionistas na proteção de seu acervo patrimonial ali
salvaguardado, para finalmente socializá-lo ao público. Desta forma, o Museu Antropológico
hoje tem às suas Reservas Técnicas um padrão homogêneo interno em qualidade, daquilo que
foi estudado e buscado na época, em fontes mais avançadas nas práticas desenvolvidas em
museus internacionais, trazendo ao bem cultural, seja em qual for sua categoria matérica a ser
estudada, preservada e disponibilizada, a possibilidade de preservação com as técnicas mais
bem adequadas às suas estruturas, que, de alguma forma, ali estão a darem sentido às
diversificadas iniciativas de pesquisas realizadas, no que tange afinal, a aproximação do ser
humano em essência, as infindáveis paisagens da vida.

No crescente desejo do entendimento das coisas, o restaurador imerge ao intrínseco da


paisagem as questões que nos traduzem a vida em si, enquanto fragmento matérico
classificável, ou mesmo as que transcendem a materialidade das coisas visíveis. Sendo assim,
neste momento de investigação do objeto em processo de intervenções de cunho teórico-
práticas, em laboratórios de conservação e restauro em museus, é que verdadeiramente o
conhecimento e suas substâncias se complementam e, em muitas das vezes, até colaboram
para uma curadoria mais aprofundada no encontro da função ou da razão de sua permanência
no museu, ou até mesmo de seu retorno ao próprio local à luz de origem, de onde nunca
deveria ter sido subtraído. “We must always view contemporary restoration in relative terms,

792
conceiving of it not as final and definitive, but as no more than a moment in the life of the
object, with the aim of ensuring its survival” (YOURCENAR, 1996, p. 207)

Apasa tem, em seu Dossiê de Conservação, no Laboratório de Conservação e Restauro


do museu, a sua documentação específica constando as etapas de tratamento de conservação e
de restauração do objeto, desde a sua remoção da Reserva Técnica Etnográfica a sua entrada
no Laboratório. Com os procedimentos iniciais de tratamento, desde os detalhes do manuseio
adequado à sua desmontagem ou separação da indumentária em partes a serem tratadas
distintamente, conforme o critério adotado para as condutas de intervenções de conservação e
de restauração, ao detalhamento dos materiais constitutivos do objeto em estado degradado.
Além dos procedimentos de documentação apropriadamente registrados em fichas
desenvolvidas especificamente para o registro das atividades desenvolvidas em LCR, o objeto
foi devidamente diagnosticado e encaminhado ao tratamento.

As etapas de tratamento de conservação e restauro compreenderam entre a limpeza das


superfícies trabalhadas em diferentes acabamentos e texturas a consolidação das fibras da
roupa, cujas estruturas apresentavam fragmentadas; umidificação por nebulização do suporte
em determinadas áreas do objeto, áreas quebradas como, por exemplo, o suporte da cabeça –
o fruto da cabaça – que apresentava partes quebradas; a refixação desses elementos soltos
como também as duas presas e o nariz da máscara; a reintegração pictórica dos elementos
visuais desenhados na cabeça do Apasa.

As intervenções de conservação e de restauro foram realizadas com o uso de técnicas,


produtos e de materiais que primaram pelo princípio da reversibilidade, sobretudo, por uso de
materiais com semelhantes características das matérias-primas vegetais do objeto, in natura,
havendo, assim, a compatibilidade estrutural entre os materiais utilizados quando da fatura da
máscara e os materiais selecionados para a realização do tratamento de restauro no LCR.
Conseguintemente, a introdução dos adesivos, das cargas e dos pigmentos primou pela
escolha de materiais que não caracterizaram adulteração ou mascaramento das substâncias
que originaram o objeto em sua totalidade física, da paisagem vegetal-lúdica da aldeia.

793
Considerações Finais

Apasa simboliza, a meu ver, a atmosfera transformadora das coisas em si em seu


estado alquímico, enquanto a mais pura verdade da materialidade da vida em transição. A
própria transmudação de todas as coisas fluídicas em movimento, o próprio éter do que não é
palpável, mas que em tudo está presente. Ela é lúdica, e a comparo à brincadeira do “pique -
esconde”, em que uma das pessoas de um grupo corre para pegar a todas as outras, mas
apenas uma por vez, e uma vez pega, esta se transforma no ente que pegará os próximos, e
assim por diante, num ritmo contínuo até sumirem todos, como num passe de mágica.

Considerando que, para os índios, autores da máscara Apasa, seja importante a


destruição da mesma logo após o seu uso em ritual na aldeia, do ponto de vista da
conservação e restauração, ela continuará interagindo na contemporaneidade, ainda que
salvaguardadas em reservas técnicas de museus, quando reanimada em sua visibilidade.
Dessarte, “conservation itself is a way of extending and solidifying cultural identities and
historical narratives over time, through the valorization and interpretation of cultural
heritage” (MATERO, 2000, p. 1), no conhecimento e na admiração pelas atividades pujantes
da interação entre o homem e as suas paisagens e as suas visualidades. A substancialidade
patrimonial revelada aos que penetrarem a materialidade das coisas na sua expressão estética,
formal e histórica, sendo essa experiência, a indicadora da sintonia entre o objeto e tudo o
mais que o traz à luz, expressar-se-á no instrumental de maior importância à sua preservação
no mundo das coisas que o anima.

Referências

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communities on preservation projects in Aotearoa, New Zealand. Preprints of the 15th
Triennial Conference of the ICOM Committee for Conservation, New Delhi, International
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YOURCENAR, M. et Alii. The Emergence of Modern Conservation Theory. In: Historical


and Philosophical Issues in the Conservation Cultural Heritage. Los Angeles: GCI, 1996.

795
OS TROFÉUS METÁLICOS DA TUNA LUSO BRASILEIRA:
DOCUMENTAÇÃO COMO SUBSÍDIO DA CONSERVAÇÃO

Jaiane Lima da Silva*


Flávia Olegário Palácios*
Bernardino da Costa e Silva Junior*
*Universidade Federal do Pará

RESUMO: O presente artigo trata da pesquisa realizada na agremiação paraense Tuna Luso
Brasileira, durante o segundo semestre do ano de 2016 e o primeiro semestre do ano 2017. Seu
principal objetivo foi aprimorar a documentação realizada por Silva Junior em 2014, visando
promover a preservação das informações encontradas na coleção de troféus metálicos da agremiação
centenária e também realizar levantamentos dos danos encontrados nos troféus do clube. A pesquisa se
fez necessária porque a Tuna é uma das mais antigas agremiações do estado do Pará e seu acervo de
troféus metálicos se apresenta como uma grande fonte documental que serve como testemunho da
história do esporte na capital paraense. Apesar da grande contribuição desses artefatos para a história
da cidade, estes sofrem com a falta de práticas de conservação tanto do material, quanto do imaterial,
que fazem parte deles, posto isso, realizar a documentação foi a medida encontrada para dar inicio a
uma série de práticas ligadas a preservação dos troféus. Como forma de aprimorar a documentação
realizada anteriormente, na tentativa de promover a preservação desses bens, foi pensada o
desenvolvimento de uma ficha catalográfica, que objetivou a extração de informações intrínsecas e
extrínsecas encontradas nos objetos, como as possíveis patologias encontradas nos troféus, os
materiais que compõe o acervo e o estado de conservação dos mesmos, compreendendo que estes se
apresentam como documentos da história do esporte paraense e com isso contribuem na construção da
história da cidade de Belém. No período de aproximadamente um ano foram documentados 156
troféus metálicos, onde a grande maioria apresentou danos como corrosão, manchas, alteração de cor e
danos à estrutura. Apesar dos significativos resultados obtidos a partir da pesquisa, compreende-se que
há ainda muito a se fazer se tratando desta temática, com isso faz-se necessário o desenvolvimento de
novos estudos que tratem desta linha de pesquisa.

Palavras-chave: Documentação; Preservação; Tuna Luso Brasileira.

796
ABSTRACT: The present article aims to discuss the research done in Tuna Luso Brasileira Club, in
the second semester of 2016 and the first half of 2017. Its main objective is to improve the
documentation made by Silva Junior (2014), aiming to promote the preservation of the information
found in the collection of metallic trophies of the centenary association and also to carry out surveys
of the damages found in the trophies. The research was necessary because Tuna is one of the oldest
associations of Pará and its collection of metallic trophies is presented as a great documentary source
that serves as a testimony of the history of sport in Belém. Despite the great contribution of these
artifacts to the history of the city, they suffer from the lack of both material and immaterial
conservation practices, and the documentation was the measure found to initiate a series of practices
related to the preservation of the trophies. As a way to improve the documentation previously made, in
an attempt to promote the preservation of these trophies, was the development of a documentation file,
which aimed at extracting intrinsic and extrinsic information found in the objects, such as alterations
found in the trophies, the materials that compose the collection and their conservation status
understanding that these are presented as historical documents, and contribute to the construction of
the history of Belém. In about one year, 156 metal trophies were documented, where the great
majority presented damages like corrosion, stains, change of color and damage to the structure of the
trophies. Despite the significant results of the research, it is understood that there is still a lot to be
done when dealing with this subject, with which it is necessary to develop new studies that deals with
this line of research.

Key-words: Documentation; Preservation; Tuna Luso Brasileira.

797
Introdução

O uso do metal está presente em nosso cotidiano desde o período Pré-Histórico quando os
primeiros indivíduos desenvolveram ferramentas e utensílios que auxiliavam nos seus
afazeres diários. Segundo Silva & Homem (2008), o uso de metais pode ser encarado como
um “marco significativo na inovação tecnológica”, já que a utilização destes colaborou de
forma significativa para a criação de materiais que contribuíram para o desenvolvimento de
diversas civilizações. Algumas características próprias dos metais (maior resistência a
tensões, deformações, compressão; elasticidade; flexibilidade; durabilidade; cor; textura; entre
outros) podem ter sido o ponto crucial para que eles ganhassem destaque no desenvolvimento
de materiais, que iam desde armas utilizadas para a caça e cultivo (VIEIRA, 200-?) até,
posteriormente, edifícios totalmente metálicos (PALÁCIOS, 2011). Os metais mais usados
eram aqueles comumente encontrados na superfície terrestre como o cobre – um dos
primeiros a serem descobertos pelo homem –; o ouro e a prata, conhecidos como metais
nobres. Ao longo do tempo a grande procura, para as mais variadas finalidades, acabou
contribuindo para a escassez desses minérios, que acabaram sendo substituídos por materiais
como bronze e latão.
No Brasil o uso de metais teve destaque durante a época conhecida como Ciclo da
Borracha, período na qual o país encontrava-se no auge da exportação de matérias
provenientes da extração do látex. Durante esse período ocorreram grandes mudanças
urbanísticas nas cidades brasileiras e houve uma enorme demanda pela importação de
materiais produzidos em países europeus, especialmente os metálicos, de intensa produção na
época. Ainda hoje podemos encontrar em diversas cidades brasileiras construções que contam
a história desse período, tais como: edifícios, elementos decorativos, objetos simbólicos,
elementos urbanísticos, entre outros.
Durante essa época surge na capital paraense o que seria hoje a Tuna Luso Brasileira,
uma agremiação esportiva fundada por caixeiros portugueses como forma de amenizar a
saudade da mãe pátria. Ao longo dos seus 114 anos a Tuna conquistou diversas premiações

798
em diferentes modalidades esportivas que acarretaram em uma enorme coleção de medalhas,
troféus, faixas, entre outros. Dentre as diversas premiações do clube o que chama muita
atenção são os seus troféus metálicos, tanto pela beleza, quanto pelo potencial museológico
que estes apresentam, visto que, como dizem Lima & Granato (2016), “os diversos
significados e usos atribuídos aos objetos metálicos documentam recursos, maestrias
profissionais, modas e requintes, permitindo visualizar o modo de vida das elites e dos
cidadãos comuns”, sendo assim, compreende-se que o estudar e documentar esses artefatos
pode contribuir diretamente para a compreensão do passado (LIMA & GRANATO, 2016).

Figura 1: Sede campestre da Tuna Luso Brasileira.

Fonte: Site Panoramio.

No entanto, apesar do seu grande potencial, a coleção apresenta lacunas na sua


preservação. Diante disso a pesquisa se fez necessária porque a Tuna é uma das agremiações
esportivas mais antigas encontradas na capital paraense e seu acervo de troféus metálicos se
apresentam como uma grande fonte documental que testifica a trajetória da cidade no esporte
paraense. Contudo, os troféus acabam sofrendo ações de degradação naturais, e
principalmente, ações causadas pela falta de ações de preservação voltadas para eles.
Considerando o valor que esses troféus representam para torcedores, sócios e paraenses, foi

799
desenvolvido, durante um período de aproximadamente um ano, a documentação de 156
troféus metálicos da agremiação e medidas de conservação preventiva em curto prazo, sendo
um dos primeiros passos para a preservação desse acervo. Com isso, foi possível obter
resultados relevantes que constataram a necessidade de se pensarem medidas mais
aprofundadas de conservação preventiva para a preservação desses bens, e surgiram também,
reflexões sobre o patrimônio histórico material da cidade de Belém. Diante disso, este artigo
visa apresentar o desenvolvimento da pesquisa e seus resultados.

Sobre A Tuna Luso Brasileira

O clube esportivo Tuna Luso Brasileira surge no ano de 1902, quando comerciantes
portugueses – conhecidos como caixeiros – embarcaram na capital do Pará. A princípio a
agremiação era apenas um grupo de músicos que promoviam reuniões como forma de
amenizar a saudade da saudosa pátria. Durante alguns anos as atividades do grupo foram
inteiramente dedicadas a reuniões beneficentes que tinham como finalidade promover a
socialização entre os conterrâneos portugueses residentes em Belém. Ao longo do tempo o
clube fez usos de diversas nomenclaturas como: Tuna Luso Caixeiral, Tuna Luso Comercial e
por fim Tuna Luso Brasileira nome que perdura até os dias de hoje (COSTA, 2012; SILVA
JUNIOR, 2015).

Durante os seus 114 anos, a agremiação promoveu diversas modalidades esportivas bem
como: hipismo, futebol, voleibol e natação. Com isso o clube arrecadou em sua história uma
enorme coleção de premiações (COSTA, 2012) dentre as quais se destaca o seu acervo de
troféus metálicos (Figura 2), que apresentam uma gama de informações intrínsecas e
extrínsecas que colaboram para a construção da história do clube e do esporte paraense.

800
Figura 2: Alguns troféus metálicos que compõem o acervo da Tuna Luso Brasileira.

O clube luso-brasileiro é um dos grandes contribuintes da construção da história da capital


paraense. A agremiação é uma das mais antigas no estado do Pará e suas conquistas no meio
esportivo contribuem de forma direta para o desenvolvimento desse meio. No entanto, apesar
do seu valor histórico e afetivo, a história do clube e sua importância para a sociedade
paraense, encontram barreiras relacionadas a falta de divulgação do acervo e a mesmo a falta
de acesso a ele, visto que os troféus fazem parte de um acervo privado, logo, o que acaba
dificultando o seu reconhecimento por uma grande parcela da população. Diante disso
compreendemos que há uma necessidade de desenvolvimento de práticas que visem à
divulgação e a preservação dessa história.

A Documentação Como Forma De Preservação

Considerando que, dentre as diversas instituições encontradas na cidade de Belém do Pará,


a Tuna Luso Brasileira é detentora de um rico acervo de medalhas, faixas, fotografias, troféus
que contribuí para o desenvolvimento da história do esporte paraense e com isso se apresenta

801
como uma grande contribuinte da história da cidade, a agremiação serviu como base de estudo
para a pesquisa realizada por Silva Junior que se iniciou a partir do ano de 2014.
A pesquisa teve como objetivo a aplicação de práticas de documentação museológica como
a seleção, o registro, a catalogação e a divulgação, com o intuito recuperar e promover a
salvaguarda das informações intrínsecas e extrínsecas do acervo (FERREZ, 1991). Contudo a
pesquisa apresentou algumas lacunas no âmbito da documentação, como por exemplo:
informações mais aprofundadas sobre os danos encontrados nos troféus, e diante disso foi
desenvolvida uma nova pesquisa iniciada durante o segundo semestre do ano de 2016 que
objetivou aprimorar as informações encontradas na documentação realizada a priori.
A pesquisa se fez necessária porque a Tuna Luso é uma das agremiações esportivas mais
antigas encontradas na capital paraense e seu acervo de troféus metálicos se apresenta como
uma grande fonte documental que testifica a trajetória da cidade no esporte paraense.
Contudo, esses troféus acabam sofrendo com as ações de degradação naturais dos objetos e,
principalmente com a falta de ações de preservação voltadas para os mesmos. Diante disso
compreende-se que há uma necessidade de se pensar medidas de preservação deles.
A documentação destes bens foi o meio encontrado para salvaguardar as informações que
fazem parte dos objetos, posto que se pretenda desenvolver futuramente práticas que
preservem diretamente não só as informações, mas também a materialidade dos troféus.
Seguindo a linha de pensamento encontrada em Silva & Homem (2008) de que:

os objectos metálicos de tempos mais recuados tendem a apresentar uma


diversidade e riqueza tecnológicas que espelham um carácter intrínseco de
irrefutável precisa fonte documental. É, pois, essencial que sejam protegidos
de vários agentes de deterioração de modo a serem preservados, quer para
nosso deleite perante a sua beleza quer para a observação e estudo pelo seu
interesse científico e tecnológico. (SILVA & HOMEM, 2008, p.9)

Diante disso, compreendemos que os troféus da Tuna Luso Brasileira apresentam um


grande valor, tanto pela estrutura quanto pela história, para o desenvolvimento de projetos e

802
trabalhos acadêmicos que podem beneficiar desde o meio cientifico em geral até o meio
tecnológico. A documentação dos troféus foi a forma mais adequada e mais próxima
encontrada para a preservação desses bens.
Como resultados preliminares a pesquisa gerou o desenvolvimento de uma ficha
catalográfica (Figura 3) baseada em diretrizes de Padilha (2014) e Costa (2006) que foram
adaptadas para as necessidades do acervo de troféus metálicos da Tuna Luso Brasileira. A
ficha conta com campos voltados para informações sobre os danos antrópicos (ranhuras,
amassados, fraturas, entre outros) e danos causados por ações do intemperismo (corrosão,
alteração de cor) no acervo.

803
Figura 3: Ficha catalográfica

● Identificação
● Dimensões
● Descrição intrínseca
● Descrição extrínseca
● Estado de conservação
● Observações
● Imagens

A ficha serviu como auxilio para a coleta de informações encontradas nos troféus e
posteriormente foi usada para o desenvolvimento da catalogação dos 156 troféus
documentados durante o período em que se realizou a pesquisa in loco (Figura 4).

804
Figura 4: Preenchimento manual das fichas catalográficas.

Sendo assim, durante o intervalo de aproximadamente um ano, entre o segundo


semestre do ano de 2016 e o primeiro semestre de 2017, foram realizadas práticas de
documentação como: arrolamento, preenchimento de fichas catalográficas e também medidas
em curto prazo de conservação preventiva como: o armazenamento provisório dos objetos
documentados.

Primeiros Passos Para A Conservação Preventiva Dos Troféus Da Tuna

Durante o desenvolvimento da pesquisa realizada na Tuna Luso Brasileira foi possível


notar a grande lacuna que a agremiação apresenta no âmbito da conservação de alguns dos
seus acervos, visto que, tanto os demais troféus, quanto os selecionados para o
desenvolvimento da pesquisa, enfrentam grandes dificuldades para preservarem a sua
materialidade a começar pelo ambiente inadequado para o armazenamento de acervos que não
apresenta condições favoráveis para a preservação destes (Figura 5).

805
Figura 5: Dano localizado na sala de armazenamento dos troféus usados na pesquisa realizada entre 2016 e
2017.

Compreendendo a existência de uma problemática relacionada à conservação dos troféus


localizados na sala de armazenamento que foi cedida pela instituição, surgiram
questionamentos sobre o estado de conservação do acervo. Para isso foi pensado um
parâmetro para identificar o estado de conservação dos objetos, e logo, o estado de
conservação do próprio acervo, sendo assim seriam:
● BONS: os troféus que apresentaram ao menos 30% da estrutura comprometida por
danos;
● REGULARES: os troféus que apresentaram ao menos 50% da estrutura
comprometida por danos;
● RUINS: os troféus que apresentaram acima de 70% da sua estrutura comprometida
por danos.

806
A partir dos parâmetros definidos para a pesquisa se chegou à conclusão de que a maioria
dos troféus está em um estado de conservação ruim, já que a maioria tem mais da metade da
estrutura comprometida por patologias como corrosão, alteração de cor, manchas e danos à
estrutura do objeto (Figura 6).

Figura 6: (A) Corrosão no troféu ATT.020.2017, (B) Alteração de cor no troféu ATT.151.2017, (C) Manchas
esbranquiçadas no troféu ATT.135.2017, (D) Dano à estrutura do troféu ATT.150.2017.

807
Sabendo da falta de práticas que visam a conservação desse acervo, foi pensado o
armazenamento provisório dos troféus como uma medida de conservação, em curto prazo, da
materialidade desse acervo. Para isso foram usadas caixas de papelão que com etiquetas
indicando a numeração dos troféus armazenados, organizando assim o acervo (Figura 7).

Figura 7: Armazenamento provisório dos troféus metálicos da Tuna Luso Brasileira.

Diante desses dados podemos compreender a necessidade de se aplicarem medidas de


conservação preventiva que visem prolongar a vida desses troféus. Uma medida a se pensar a
priori é a adequação do ambiente onde os troféus encontram-se armazenados, visto que este
não apresenta uma estrutura apropriada as especificidades do material que compõe o acervo e
apresenta lacunas na climatização, o que acaba colaborando para a degradação dos troféus.

Apesar de compreendermos que a história da Tuna Luso Brasileira não se faz apensas
pelos seus bens matérias, preservar a estrutura desses troféus é uma das formas de levar

808
adiante a história desse clube centenário que é um dos pioneiros no esporte paraense. Os
troféus metálicos da agremiação são testemunhos de uma trajetória de conquistas realizadas
pelo clube e diante disso compreendesse que nada mais justo do que buscar medidas para
preservá-los.

Os Troféus Metálicos Da Tuna Luso Brasileira: Patrimônio Desconhecido

A capital paraense é uma grande detentora de bens culturais que vão desde seus edifícios
históricos até seus contos populares. Esses bens compõem o rico patrimônio arquitetônico,
artístico, histórico, entre outros, sejam eles materiais ou imateriais. O Forte do Castelo e o
Mercado do Ver-O-Peso são de longe, grandes símbolos da capital e juntamente com outros
edifícios como igrejas, casarões e palacetes, constroem o patrimônio arquitetônico da cidade.
Há também os museus que contam um pouco da história da cidade através de acervos que vão
desde imagens de santos católicos encontrados no Museu de Arte Sacra até obras de arte
contemporânea expostas no museu localizado na Casa das Onze Janelas.
Posto isso, compreendemos que Belém é uma cidade permeada de artefatos históricos que,
apesar das problemáticas, contam uma parte da sua história. No entanto, podemos levantar
uma reflexão acerca da localização de boa parte desse rico acervo. Entre os bens patrimoniais
mais aclamados da cidade das mangueiras, podemos notar que, em sua maioria, estes se
encontram localizados no Centro Histórico que para Queirós (2007), de uma forma geral,
pode ser entendido como “um livro de memórias materiais e imateriais, que possui
importantes referências e indicações de identidades dos povos que aí habitam e habitaram ao
longo do tempo”.
Acontece que, assim como em diversas outras cidades brasileiras, uma grande parcela da
população apresenta certa tendência a afirmar como patrimônio tudo àquilo que está
localizado no Centro Histórico, mesmo que essa população não apresente a menor relação de
identificação com esse patrimônio. Diante disso, podemos levantar uma reflexão acerca dos

809
diversos patrimônios que apesar de não estarem localizados nos grandes centros históricos
apresentam um forte potencial para a construção da história e da identidade de uma sociedade.
Durante a realização de pesquisa in loco entre os anos de 2016 e 2017, foi possível
constatar que o clube Tuna Luso Brasileira apresenta um enorme potencial patrimonial por ser
um dos mais antigos clubes do estado e pela sua rica coleção de acervos, que dentre estas se
destaca a coleção de troféus metálicos que foram o objeto de estudo de pesquisas iniciadas a
partir do ano de dois mil e quatorze. A partir das práticas de documentação realizadas pela
pesquisa, foi possível constatar a importância das informações que fazem parte desses troféus
por apresentarem valor histórico e afetivo não somente para os sócios e torcedores do clube,
mas também para a sociedade paraense em geral, considerando que a agremiação é uma das
mais antigas do estado do Pará. No entanto, apesar do enorme potencial patrimonial
apresentado por essa coleção, grande parte da população não tem conhecimento algum acerca
desses objetos e da sua potencial contribuição para a construção das identidades belenenses.
Com a pesquisa realizada no clube luso-brasileiro surgiram ainda reflexões acerca do
patrimônio privado, já que apesar de a Tuna ser uma agremiação paraense, ela é uma
instituição fechada. Diante disso há certa dificuldade de todos os grupos de pessoas
encontradas em Belém terem acesso a esse acervo. Sendo assim, compreende-se que a
agremiação, juntamente com profissionais especializados, deve buscar medidas de divulgação
que alcancem os diferenciados públicos da cidade, tendo em vista que, se a população não
conhece os acervos do clube, as chances destes se identificarem com ele acabam se tornando
mínimas.
Posto isso podemos retornar a reflexão sobre a localização do patrimônio da cidade de
Belém e nos questionarmos sobre o fato de a grande maioria dos “holofotes do patrimônio” se
voltar para os centros históricos. O patrimônio de Belém é somente aquele que se encontra
disposto no centro histórico? Somente os edifícios históricos, museus e as igrejas constroem a
cultura belenense e a identidade de todas as classes dessa população? Essas são algumas
perguntas, ainda sem respostas, que podem nos instigar a refletir sobre a situação em que o
patrimônio, em todos os âmbitos, da cidade das mangueiras está fincado. Mesmo que ainda

810
não tenhamos encontrado respostas para os questionamentos podemos refletir acerca disso
visando futuramente apresentar formas de conseguir voltar nossas visões para os patrimônios
desconhecidos de Belém.

Considerações Finais

Desde os primeiros passos dados por Paul Otlet ao final do século XIX, pode-se dizer que
a documentação é uma forma eficiente e acessível de preservar as informações de um objeto,
um momento, entre outros. Com o surgimento dessa área de estudo começariam as primeiras
especulações sobre o que seria o documento e durante um considerável tempo a noção de
documento aceita pelos especialistas da documentação era a ampla visão “otletiana” de que
documento poderia ser tudo poderia ser considerado um documento, inclusive o que é
encontrado na natureza, porque para ele o documento não estava necessariamente ligado à
materialidade e sim a função que ele representaria (OTLET, 1934 apud SMIT, 2008).
Contudo, no decorrer do tempo surgiram novas teorias que beberam na fonte do “pai da
documentação”, mas passaram a afunilar a definição do que de fato poderia ser tido como
documento. Com isso, Suzanne Briet (1951) propôs em seu manifesto “O que é a
documentação?” afirma que documento será todo registro que afirma um fato. Para a teórica o
objeto por si só não seria documento, mas a relevância das informações encontradas nele
indicaria se este seria ou não um documento (BRIET, 1951 apud SMIT, 2008).
Seguindo a lógica de Briet, podemos compreender que as informações encontradas nos
troféus metálicos da Tuna Luso Brasileira apresentam enorme relevância para que estes sejam
considerados uma fonte documental que registram os primeiros passos da construção do
esporte paraense. Mediante a isso tornasse necessário se pensar medidas que visem conservar
tanto o material, quanto o imaterial desses bens. Algumas medidas já foram iniciadas para que
se preservem estes bens, mas entendemos que os primeiros passos para promover essa
preservação é pensar de forma conjunta formas de deixar esse acervo mais próximo dos
diferentes grupos sociais encontrados na cidade porque se compreende que quando “uma

811
sociedade atribui valor a um objeto, imediatamente a sua conservação se torna necessária” (LIMA &
GRANATO, 2016) e se a própria população não encontra formas de se identificar com estes bens,
tampouco se importará com a sua preservação.
Contudo, para que se possam pensar medidas de preservação voltadas para o acervo da
Tuna Luso Brasileira, é de suma importância compreender também, que o patrimônio
artístico, histórico, arquitetônico, entre outros, localizados na capital paraense, sejam eles
materiais ou imateriais, devem ser pensados para além das áreas aclamadas pelos órgãos
públicos e por algumas parcelas da população. É necessário compreender que a capital
paraense é rica em todos os seus aspectos e que a sua história foi construída a partir dos
grandes centros, mas não somente neles.

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Sistema Estadual de Museus/Secretaria de Estado da Cultura, 2006.

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QUEIRÓS, Felipa. Reabilitação dos centros históricos. Coimbra, 2007.

813
CONSERVAÇÃO: ALIADA PESSOAL DOS MUSEUS LEVANTAMENTO DE
PRAGAS NO MUSEU DA POLÍCIA MILITAR

Valéria Silva*
Lívia Souza Guimarães*

Resumo: A conservação se estabelece como principal fator quando se está dentro de um espaço
museal, justamente pelo seu caráter indispensável na manutenção dos bens culturais, portanto,
medidas de proteção devem ser tomadas para a manutenção desse patrimônio. Nesse trabalho será
abordada uma análise sobre a proliferação de pragas dentro do Museu da Polícia Militar, onde serão
descritos os processos de obtenção de material, as análises feitas relacionando os vestígios encontrados
com as tipologias existentes no Museu, bem como seus potenciais riscos as peças, e como isso se
relaciona com a composição do espaço, no sentido da proximidade com locais de “risco”, e os
componentes do espaço que facilitam a hospedagem das mesmas.

Palavras-chave: conservação; patrimônio; pragas.

Abstract: Conservation is established as the main factor when it is within a museum space, precisely
because of its indispensability in the maintenance of cultural assets, therefore, protective measures
must be taken to maintain this patrimony. In this work, an analysis of the proliferation of pests inside
the Museum of the Military Police will be discussed, where the processes of obtaining material will be
described, the analyzes made relating the traces found with the typologies existing in the Museum, as
well as their potential risks. Pieces, and how this relates to the composition of space, in the sense of
proximity to "risk" locations, and the space components that facilitate the hosting of them.

Key-words: Conservation; patrimony; pests.

814
O presente trabalho trata sobre a análise de pragas, realizada durante três meses, com
métodos de observação e coleta, realizados de maneira periódica e semanal, dos vestígios
encontrados no espaço em questão. O museu está localizado no salão nobre, dentro do Quartel
do Comando Geral da Polícia Militar, que está situado nas mediações da Avenida Augusto
Montenegro com a entrada de Icoaraci. O quartel tem formato quadrangular, com o centro
vazado, onde possui um jardim e uma “mureta” de flores que contorna os corredores,
separando o jardim do corredor de passagem das pessoas, sendo o salão nobre localizado no
meio do corredor noroeste.

Os objetivos desse trabalho estão em identificar as pragas no museu, para partir as


análises de como eles estão situados no ambiente, quais os ciclos biológicos de cada uma e de
que forma elas se relacionam com as tipologias do museu, além de identificar a condição de
permanência ou passagem das mesmas pelo local, assim como, o status de atividade, a fim de
elaborar um plano de ação para prevenção de ataques ou a possibilidade de futuras
infestações.

CONTEXTUALIZAÇÃO

O salão possui mais ou menos 600 m², com três portas de madeira, que estão localizadas na
porção sul, sendo uma situada no meio do salão, que dá acesso a uma segunda sala que possui
dois banheiros; a segunda na parte norte que dá acesso ao corredor onde ficam as salas da área
administrativa e uma mini copa, e no final possui uma copa e dois banheiros; a terceira porta
está localizada no início do salão e dá acesso a copa do comando geral, que é utilizada todos
os dias cinco vezes por semana.

A entrada do salão nobre é feita por uma porta na direção leste, que fica de frente para o
jardim, na qual o material é vidro, e não possui vedação ou filtros UV. Essa porta faz parte da
parede leste, que é inteiriça de vidro com armação de madeira, que vai do teto até o chão
composta por pedaços de vidro, que não são vedados.

815
Dados coletados

DATA INDIVÍDUOS LOCALIZAÇÃO

Besouro preto; Em baixo do aparador, lado esquerdo;


Casulo e estágio adulto, mariposa; Mostruário 37118 – n° 147;
Aranha de parede; Mostruário 37119 – n° 166;
05/01 Mosca verde; Porta de vidro, lado direito, rodapé;
(Quinta) Três moscas listradas; Porta de vidro, lado direito, rodapé;
Mariposa noturna; Lado direito;
Inseto alado; Mostruário 37149 – n° 153;
Fezes; Mostruário 37149 – n° 009.

Percevejo verde do mato;


09/01 Mariposa TINEA;
(Segunda) Mariposa imperial; Porta de vidro, canto lado direito, rodapé.
Barata;
16/01 Grilo;
(Segunda) Mosca comum; Porta de vidro, canto lado direito, rodapé.
01/03
Libélula. Porta de vidro, lado direito.
(Quarta)

Dia 18/02 foi realizada uma limpeza com aspirador de pó, nos mostruários, pela parte de
dentro e por cima com a ajuda de uma trincha, a fim de não levantar a poeira para o ambiente
e não contaminar as peças, além da aspiração de algumas fardas.

Dia 09/01 a barata encontrada foi utilizada como “isca” para verificação de animais maiores,
pois foram encontradas fezes, indicativas de roedores. Após uma semana, foi constatada a
inexistência de estabelecimento de pragas maiores no museu, levantando a hipótese de que o
local pode ser de passagem, por conta dos seguintes fatores: a existência de um jardim na
frente, uma área verde atrás e três copas numa distância curta do espaço.

816
Tipologias

O acervo do Museu da Polícia Militar está em sua maioria (90%) exposto no salão nobre,
onde são encontradas diversas tipologias, assim como objetos que possuem várias ao mesmo
tempo, mas em síntese temos as seguintes:

1. Têxteis;
2. Couro;
3. Metais e ligas metálicas;
4. Madeira;
5. Vidro;
6. Borracha;
7. Plásticos;
8. Papel;
9. Mármore;

Os mostruários são as maiores peças do museu, onde seu material constituinte já foi citado
mais a cima, e dentro ficam os objetos de pequeno porte, ou por ser o jeito mais seguro de
expô-los.

Nos mostruários localizados ao fundo do salão no lado direito, temos as seguintes tipologias:
ligas metálicas, têxtil (algodão e sintético), metais e plástico (acrílico).

Os do lado esquerdo possuem: papel, couro, metal, madeira, alumínio e vidro.

Os mostruários próximos à porta de entrada, localizados no lado direito possuem: têxtil,


papel, madeira, vidro e ligas metálicas.

Os do lado esquerdo possuem: metal (ferro), ligas metálicas e madeira.

Além disso, a exposição conta com 16 manequins fardados com uniformes da corporação,
variando de trajes simples para os mais elaborados como o da cavalaria.

817
Também existem três bustos, sendo dois de ferro e um de mármore; uma estatueta, um relógio
antigo, um cofre e uma réplica de canhão em ferro, sendo esse último com o cano em
madeira, e as rodas em ferro.

Possui ainda, em torno de 10 a 12 rádios de comunicação, variando entre portáteis e de


comunicação à longa distância, sendo esses de metal, madeira, plástico e ligas metálicas.

Na área religiosa, temos um altar com os instrumentos utilizados na realização das missas,
uma estatueta de Nossa Senhora com manto e alguns terços, sendo assim as tipologias ali
presentes são: metal, plástico, têxtil, papel e gesso.

Ciclo de vida das pragas coletadas

1. BESOUROS
1.1. “Percevejo-verde do mato”, se alimenta de sementes como milho e soja, trazendo
consequências para o meio agrícola.
1.2. “Passalidae”, suas larvas subterrâneas que sempre se encontram em se alimentam
das raízes das plantas, causando prejuízo aos agricultores. Outras larvas se
alimentam de material em decomposição. Alguns adultos são importantes
polinizadores, enquanto outros se alimentam de fezes de animais.
2. O grilo sai em busca de alimento durante a noite, pois fica entocado durante o dia. Sua
alimentação pode conter cereais, plantas, fungos, alimentos humanos tecidos de lã e
restos de outros insetos. O quadro de umidade e temperatura da nossa região é ideal
para seu desenvolvimento.
3. MOSCAS
3.1. Doméstica: Se alimenta de restos de corpos putrefatos, sendo animais ou corpos
humanos, também de comida e frutas.
3.2. Varejeira azulada: Possui a mesma dieta da mosca doméstica, porém prefere se
alimentar de frutas.

818
4. As libélulas possuem estágio larval que são aquáticas, carnívoras e extremamente
agressivas, podendo alimentar-se não só de insetos, mas também
de girinos e peixes juvenis. Dentro do seu ecossistema, são bastante úteis no controlo
das populações de mosquitos e das suas outras presas, prestando assim um serviço
importante ao Homem. As libélulas são predadoras e alimentam-se de outros insetos,
nomeadamente mosquitos e moscas têm preferência por habitats nas imediações de
corpos de água estagnada (poças ou lagos temporários), zonas pantanosas ou perto
de ribeiros e riachos.
5. As aranhas de parede se alimentam de pequenos insetos, como moscas, outras aranhas,
traças, pequenas mariposas e borboletas e todo tipo de inseto que apareça em sua teia.
Gostam de lugares escondidos, escuros e úmidos para se desenvolverem.
6. MARIPOSAS:
6.1. FASE LARVAL: TINEA PELLIONELLA É a traça da lã, das peles e dos panos,
pertencentes à família dos Tineidae. A dieta das suas larvas é constituída de
queratina, substância que encontram sob os substratos orgânicos: peles, plumas,
pelos de ovelhas, alpacas, lã com uma particular preferência pelo cashmere, mas
também seda e, às vezes, fibras vegetais como o algodão, também se alimenta de
cabelos caídos pela casa, pele e restos de animais mortos.
A temperatura ótima para o desenvolvimento das traças é de 25°C e uma umidade
de 75%, e em um ano podem desenvolver-se 2 ou 3 gerações.
6.2. FASE ADULTA: TINEA PELLIONELLA As partes bucais reduzidas sugerem que
esta espécie não se alimenta como um adulto.
7. As baratas têm alimentação variada, pois são insetos onívoros, ou seja, comem
qualquer coisa, tendo principal atração por doces, alimentos gordurosos e de origem
animal.

Relação objetos e pragas

819
Como panorama de associação entre as tipologias da exposição e as pragas
encontradas, pode-se verificar que a maioria delas não constitui perigo iminente, no que diz
respeito à alimentação. Entretanto, constituem perigo quanto as suas fezes e reprodução, pois
mesmo com aquelas que não possuem estágio larval, os restos desses ovos ou casulos ficaram
presos as peças, podendo servir de alimento para outras, como baratas e traças.

No que diz respeito à mariposa tinea pellionella, no qual constitui fase larval que se
alimenta de materiais presentes na exposição, como têxteis e papel, é um fator de risco e
possível perigo de infestação, haja vista que nesse período do ano, ela é encontrada de
maneira frequente, além de não ser fácil seu extermínio, principalmente por conta do
ambiente que ainda não possui regulação de temperatura e umidade, portanto, no momento o
cenário climático do local se encontra em condições perfeitas de estabelecimento para as
mesmas.
Além do mais, pôde ser constatado, que várias espécies de animais tem o salão nobre
como local de passagem, provavelmente para a copa que fica ao lado e não possui vedação,
como ratos, baratas, moscas e alguns besouros que supostamente se perderam do se habitat, o
jardim que fica em frente ao salão.

Considerações Finais
O presente trabalho teve a finalidade de avaliar a incidência de pragas existentes no
local em questão, assim como avaliar suas espécies e modos de vida para então associar com
as tipologias presentes na exposição, verificando se as mesmas constituíam perigos iminentes
de deterioração, ou se cuidados básicos como a limpeza, impediriam sua proliferação
causando perda de material museológico.
A julgar pelas análises feitas anteriormente, tanto de classificação das tipologias,
pragas e seus ciclos de vida, e suas ligações, tal como a relação estabelecida e confirmada
com a limpeza e a construção de isca para detectar a presença de animais maiores.

820
Foram de extrema importância para o entendimento da dinâmica do espaço, como
constituição de local de passagem e estabelecimento de alguns indivíduos, contribuindo para a
elaboração de um plano de limpeza e manejo de pragas, que está em construção, e visa a
prevenção contra algumas espécies, além de impedir o início de uma possível atividade
alimentícia dentro do local.

Referências Bibliográficas

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<http://dedetizadorasimoes.blogspot.com.br/2015/09/aranha-perna-longa-saiba-como-
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FRONER, Yacy-Ara, 1966 − Controle de pragas / Yacy-Ara Froner, Luiz


Antônio Cruz Souza. − Belo horizonte: LACiCor − eBA − UFMG,
2008. 28 p.: il.; 30 cm. − (tópicos em conservação preventiva; 7).
< http://www.insetologia.com.br/p/coleoptera.html >. Acesso em: mar. 2017

SCHÄFER, Stephan. Desinfestação com métodos alternativos, atóxicos e manejo


integrado de pragas (MIP) em museus, arquivos e acervos & armazenamento de objetos
em atmosferas modificadas. Versão modificada, pelo autor, de artigo publicado pela Revista
da Associação Paulista de Conservadores e Restauradores de Bens Culturais, na edição
número 1, de 2002.

821
PROBLEMÁTICAS NA CONSERVAÇÃO E PRESERVAÇÃO DE ACERVOS EM
INSTITUIÇÕES SECULARES: ESTUDO DE CASO DO MUSEU DE ARTE
SACRA DE PERNAMBUCO

Fátima Marília Lima de Andrade*


Suanny Pimentel Moreira*

Resumo: O trabalho presente tem por objetivo fazer uma análise das condições de instituições
museólogicas de caráter secular, tomando como base o estudo de um diagnóstico feito no Museu de
Arte Sacra de Pernambuco, cuja construção foi feita no séc XVII, localizada no Sítio Histórico da
Cidade de Olinda. No diagnóstico desse museu, são abordados diversos aspectos que influenciam a
sua gerência, tais como: seu macroambiente (vegetação, arredores, instalações, condições climáticas,
estado de degradação do acervo), médio ambiente (reserva técnica, segurança e roubo), microambiente
(agentes de deterioração), para que se possa apontar com eficiência as problemáticas e, assim,
possíveis soluções nos métodos de conservação da própria instituição e também do seu acervo. Além
disso, cabe ressaltar que geralmente os prédios que abrigam os atuais museus nem sempre foram
pensados com essa finalidade e, portanto, adaptados para isso, implicando em uma série de limitações
prediais, de conservação e de manutenção dos mesmos, que afetam a aplicação dos métodos
preventivos. Assim, a priori, é realizado um estudo histórico geográfico da estrutura e do contexto ao
qual o museu está inserido, para que se possa entender com segurança todas as modificações
realizadas e as que, por ventura, poderão existir. Em seguida são abordadas as características vizinhas,
como por exemplo, a vegetação predominante, a qualidade do ar atmosférico, o índice de umidade
relativa do ar, dentre outros fatores que influenciam diretamente no estado de conservação do museu,
seja em relação à estrutura física do prédio, como no que ele abriga. Ademais, ainda é apontado como
é feito atualmente o procedimento preventivo de conservação utilizado pela instituição em comento,
assim como quais as soluções encontradas para diminuir os impactos dos fatores externos no acervo e
no prédio e, por fim, comparação e proposta de melhorias adaptado ao caso e ao museu avaliado.

Palavras-chave: diagnóstico de conservação; instituições seculares; problemáticas em conservação;


MASPE

822
Abstract: The present work aims to make an analysis of the conditions of museological institutions of
a secular character, based on the study of a diagnosis made in the Museu de Arte Sacra de
Pernambuco whose construction was done in the 17th century, located in the Historic Site of the
Olinda City. In the diagnosis of this museum, several aspects that influence its management are
discussed, such as: its macroenvironment (vegetation, surroundings, facilities, climatic conditions,
degraded state of the collection), environment (technical reserve, security and theft),
microenvironment (agents of deterioration), so that the problems can be identified efficiently and,
thus, possible solutions in the conservation methods of the institution itself and also its collection.
In addition, it should be emphasize that generally the buildings that house the present museums have
not always been thought for this purpose and therefore adapted for this, implying in a series of
limitations of land, conservation and maintenance of the same, that affect the application of the
preventive methods. Thus, a priori, a historical geographic study of the structure and context to which
the museum is inserted is carried out, so that one can safely understand all the modifications made and
those that may exist. Next, the neighboring characteristics, such as predominant vegetation,
atmospheric air quality, relative air humidity index, and other factors that directly influence the
conservation status of the museum, either in relation to the physical structure of the museum. building,
as in what it houses. Besides, it is still pointed out how the conservation preventive procedure used by
the institution in question is currently done, as well as what solutions are found to reduce the impacts
of external factors on the collection and the building, and, finally, comparison and proposed
improvements adapted to the case and to the museum evaluated.

Key-words: conservation diagnosis; secular institutions; conservation problems; MASPE.

823
Introdução

Conservação e preservação são aspectos fundamentais para a manutenção de qualquer


acervo. Na verdade, são fundamentais para a manutenção de qualquer item que se deseje
manter por um tempo prolongado, seja ele musealizado ou não.

Percebe-se hoje em dia, uma preocupação maior com a valorização do patrimônio e


bens materiais (TEIXEIRA, 2012, p.12). No entanto, paralelamente a isso, há o déficit de
investimento por parte do governo para a execução dessas medidas preventivas, que deveria
ser bem alto para ser possível encaixar-se num parâmetro ideal de conservação de acervos.

O prédio onde hoje abriga o MASPE se localiza no Alto da Sé, cidade de Olinda do
estado de Pernambuco e foi construído no século XVII, e é resultado de uma adaptação de três
prédios anteriores: um correspondente a altura, ao trecho dos dois torreões, o segundo, que já
foi uma residência térrea, e por fim o terceiro que funcionava a Casa de Câmara (MENEZES,
1974, n.p). A instituição também já abrigou o Palácio Episcopal e um Quartel do Exército.

Em termos de construção, os dois prédios extremos utilizam a pedra calcária com


argamassa de barro e pedaços de tijolos, em alvenaria ciclópica, bem comum em construções
seculares. E o do meio consiste numa alvenaria de tijolos (MENEZES, 1974, n.p).

O edifício foi dotado de novas instalações elétricas, hidráulicas e sanitárias


compatíveis ao seu novo uso. A restauração procurou se adequar as necessidades do museu e
desde o início foi feita com o objetivo de abrigar um museu de Arte Sacra. Inclusive o plano
original recebeu sugestões e idéias da comunidade e as obras tiveram seu início no dia 1º de
Abril de 1974 e concluiu-se exatos 3 anos depois, no dia 1º de Abril de 1977. Segue na Figura
1 a atual fachada do museu.

A partir disso, nota-se um perfil comum em construções seculares que se tornaram


museu: o museu teve que se adaptar à construção e não o contrário. Neste trabalho, busca-se
então abordar, além do atual estado do museu, as medidas utilizadas pela coordenação do

824
Museu de Arte Sacra de Pernambuco para proteger e preservar o acervo, assim como formas
mais acessíveis de métodos para uma melhor conservação preventiva.

Metodologia

Para dar início a esse trabalho, inicialmente foi necessária uma carta de solicitação da
Universidade para que a responsável pelo museu, a Anazuleide Ferreira4 concedesse as visitas
técnicas necessárias para a realização do trabalho. Assim que concedida, foram feitas as
devidas visitas com fins de análise do prédio, acervo e arredores da instituição, registro de
fotografias e demais observações fundamentais. Foram também realizadas visitas técnicas ao
Museu da Abolição

Foi então realizada uma entrevista presencial com a arquidiocesana, utilizando um


roteiro previamente elaborado com uma série perguntas objetivas sobre todos os pontos
precisos de forma bem detalhada. Esse modelo está disponível no site do sistema estadual de
museus de São Paulo e foi extraído do mesmo.

Foram disponibilizadas também informações particulares sobre o passado histórico da


instituição, que foram de suma importância para a realização do trabalho. Um ‘passeio
técnico’ pelo museu também foi necessário, assim como foi permitida a tirada de fotos dos
pontos afetados pelos agentes de degradações (paredes e teto com infiltração, a ausência de
calhas, etc), para que fosse possível uma observação mais clara dos pontos sensíveis e do que
precisa ser melhorado. No entanto, o acesso a reserva técnica infelizmente não foi permitido,
somente informações verbais a respeito puderam ser passadas.

4
Anazuleide Ferreira é uma Historiadora com especialização em conservação do papel. É a arquidiocesana
responsável pelo Museu de Arte Sacra de Pernambuco.

825
Resultados

Após os métodos acima apresentados, extraiu-se o diagnóstico com os resultados, que


será apontado em tópicos.

1. Diagnóstico do Macroambiente: Foi notada uma presença forte de vegetação nos


arredores da instituição, pois o mesmo é rodeado pelo Horto del’ Rey, uma vasta área verde,
também conhecida como o antigo jardim botânico de Olinda, criado sob inspiração do
naturalista Manuel Câmara em 1811 (MEUNIER; SILVA, 2009, n.p). A vegetação se
caracteriza por elevada cobertura arbórea com copas se tocando e se sobrepondo. Há a
presença de inúmeras plantas frutíferas ao redor do museu, o que atrai muitos morcegos e
insetos. Geralmente são arvores grandes, copadas, pouca grama ao redor, e trepadeiras são
comuns recobrindo as copas das árvores com maior densidade, o que diminui a incidência de
luz solar direta no acervo.

O clima característico é o tropical úmido, com altíssimos índices de umidade relativa


do ar e elevadas temperaturas, e o prédio está situado em cima de uma colina, próxima ao
oceano atlântico, o que interfere decisivamente no clima mais ameno e úmido, visto que por
ser um lugar de elevada altitude e sem construções que interrompam a passagem do vento. De
acordo com o site do climate-data, a cidade de Olinda possui uma média de temperatura 26ºC
de temperatura de 70% de umidade, conforme mostra o gráfico.

826
Gráfico 1: Tabela climática da cidade de Olinda.

Um fato alarmante é que o museu não conta com nenhum equipamento para calcular a
variação de temperatura, tampouco para medir ou regular a umidade, ou seja, não há uma
tabela de dados sobre as temperaturas e níveis de umidade medidos diariamente, da forma
como deveria ser.

De acordo com Luiz Antônio Cruz Souza e Yacy-Ara Froner: “Uma temperatura
média elevada limita as oportunidades de resfriamento. E uma umidade relativa elevada limita
as oportunidades de secagem e aumenta a probabilidade de formação de mofo, ataque por
insetos e corrosão de metais”. (SOUZA; FRONER, 2008, p.15)

O desequilíbrio da temperatura e da umidade relativa também favorece a proliferação


de agentes biológicos, tais como: fungos, bactérias, insetos e roedores, o que é extremamente
danoso aos materiais componentes do papel, por exemplo.

Manutenção do edifício: As únicas intervenções que ocorrem na estrutura física da


instituição são as de manutenção, que não é ocorrida com regularidade. Não há calhas, por
exemplo, coisa que deveria ter sido instalada desde antes das chuvas. A manutenção predial

827
ocorre de acordo com as necessidades do museu e tudo relacionado a isso é encaminhado
através de solicitação para a FUNDARPE, que é a responsável pela manutenção do prédio.

2. Diagnóstico do Médio ambiente: Normalmente, os museus possuem coleções em


sua posse, elas podem se comunicar entre si ou não, contudo, independente do que será
exposto, o material deve ser conservado da melhor maneira possível, a fim de diminuir
possíveis riscos e/ou acidentes que possam existir no ambiente. Nesse contexto, sabemos que
nem todos os objetos do museu são expostos ao mesmo tempo e, por isso, a necessidade da
Reserva Técnica, lugar que mantém o acervo em um lugar seguro, longe do público e de fácil
manutenção. Desse modo, podemos dizer que a Reserva Técnica nada mais é que um abrigo
seguro para as obras que não foram expostas naquele momento e esse dispositivo está dentro
das normas da conservação preventiva.

Simone Mesquita acredita que: “Na conservação e restauro deveriam haver registros
de todos os procedimentos com fotografias e atualizados os bancos de dados, estando estes
vinculados ao programa principal de catalogação e documentação institucionais.’’
(MESQUITA, 2012, p.75). No caso concreto do MASPE, são notadas diversas dificuldades
estruturais, contudo, a Reserva Técnica, diante dos esforços pessoais dos empregados,
apresenta um razoável funcionamento e respeito às regras já expostas. O museu conta com
duas reservas técnicas: uma de Arte Sacra e outra de Arte Popular e quatro salas expositivas,
todas no primeiro andar, com aproximadamente 80 peças para exposição.

Nas reservas há 53 livros, dentre eles bíblias, livros direcionados a rituais funerários e
partituras que vieram dos conventos e os paramentos: vestes e acessórios, linhos e guarnições.
Ou seja, bastante papel suscetível ao ataque de insetos e traças.

Questões de segurança, roubo e incêndio: A questão da segurança contra roubos, e


incêndios em instituições seculares são muito delicadas. Pois, por serem construções antigas,
comportam muita madeira em suas estruturas, seja nas portas, janelas, piso, teto. O que deixa
museus desse porte altamente suscetíveis a um grave prejuízo em caso de incêndio. O
MASPE possui além das portas e janelas, o piso, o teto e os corrimões de madeira. O que se

828
assemelha à estrutura do MAB - Museu da Abolição5, por exemplo, que possui esse mesmo
perfil, exceto pelo piso. No MAB a situação é ainda mais delicada, pois as portas já estão
entrando em estado de decomposição, inclusive há espaçamentos enormes nas bordas, o que
abre possibilidade para vários invasores da natureza. E o museu não conta com câmeras, nem
brigada de incêndio, além de um sistema de segurança precário. O MASPE está bem próximo
dessa realidade, pois apesar de agora possuir câmeras, nem sempre foi assim, inclusive, há o
histórico de duas peças roubadas do museu, que nunca foram localizadas.

Ainda na questão da segurança, o MASPE conta com um extintor de incêndio em cada


sala, bem como câmeras de segurança e vigilância 24hrs. No entanto, não há uma brigada de
incêndio, nem um tipo de alarme que avise em caso de perigo. Então em caso de sinistros,
muitas peças seriam perdidas. Um fator crítico para o museu.

3. O microambiente da instituição: mobiliários e agentes de deterioração: Há


peças esculpidas de pedra e madeira, peças modeladas em barro e gesso, imagens sacras do
século XVII ao século XIX e imagens modeladas em gesso do século XIX e XX, assim como
peças em metal, tais como: castiçais, objetos litúrgicos, taças etc. O estilo das coleções é de
arte sacra e arte popular religiosa.

Há a parte da pinacoteca, com pinturas de óleo sobre tela, com uma vasta coleção de
Albert Simões. As cômodas são do estilo colonial. A coleção do mobiliário confere peças do
século XVII. O uso da coleção em sua maior parte é para exposição. É muito raro um
pesquisador da área sacra então não há muita oportunidade para pesquisas. Contudo, as peças
saem para empréstimos. Geralmente para rituais litúrgicos. Na semana santa a freqüência é

5
O Museu da Abolição é uma instituição federal vinculada ao IBRAM, criada por decreto federal no ano de
1954, em homenagem a Joaquim Nabuco e João Alfredo, ambos abolicionistas. Foi construído também no
século XVII, possuindo problemas de estrutura semelhantes ao MASPE.

829
maior, mas no geral no museu mais entra peças do que sai. O museu também atua como
guardião.

Por ser uma área cercada de vegetação, o museu está bem propenso à ataques de
pragas, e não há nenhum método de intervenção de insetos. Só o que existe é uma detetização
sistemática, para ratos, baratas e cupins, feita a cada 15 dias, cuja FUNDARPE é a
responsável, mas não há controle sobre as traças, por exemplo, que são fortes inimigos do
papel. Essa detetização geralmente ocorre nas segundas feiras, já que o museu é aberto ao
público e ninguém vai trabalhar por motivos de segurança.

As janelas não possuem telas então isso facilita ainda mais o acesso dos insetos ao
museu, incluindo os maruins, que podem chegar a atrapalhar significantemente no dia a dia
de trabalho. E a vegetação é tão presente que chega fica bem próxima de algumas janelas do
museu. A estrutura que diz respeito à madeira também atrai agentes de deterioração, inclusive
deixa o ambiente bem propenso a infiltrações e mofo, como também foi encontrado no MAB.

Considerações Finais

A presente pesquisa procurou entender as mais diversas questões envolvendo o


trabalho de restauro e conservação nos instrumentos de cultura, como o caso do MASPE e do
MAB, com a finalidade de proporcionar notoriedade e reconhecimento da importância desse
trabalho nessas instituições. Assim, a partir da análise feita pôde-se entender na prática a
importância da conservação como peça chave para a longevidade e qualidade no serviço
oferecido, visto que sem esse cuidado, o ambiente não teria condições de receber a sociedade,
causando até um provável encerramento de suas atividades, que é uma resposta muito comum
nesse meio.

Em consonância com o dito acima, deve-se ressaltar que um dos fatores negativos se
dá ao fato de que diversos museus estão alocados em prédios antigos, onde muitos destes

830
precisam de manutenção específica e quando não ocorre, agrava-se o processo de deterioração
e todo o custo envolvido em um possível restauro é muito alto, por isso, uma das máximas
levantadas por estudiosos é que precisamos cuidar e conservar, para não restaurar. Contudo,
quando se fala em conservação e restauro, ele se alastra para os bens internos possuídos pela
instituição, visto que muitos deles são doações, material de estudo, entre outros e chegam aos
museus nas mais diversas condições físicas, por isso cada peça tem sua particularidade e
manejo, devendo ser estudada, catalogada e conservada antes da exposição.

Deste modo, pôde ser observado que os devidos Planos Museólogicos de instituições
desse calibre não entram em vigor, fazendo com que vários déficits entrem em pauta, tais
como: a ausência de uma ventilação apropriada, condições climáticas fora de controle, insetos
e roedores sem grandes dificuldades de adentrar, devido a ausência de telas, e incidência solar
castigando o prédio e seu interior. Então é preciso não só planejar, mas também agir. Executar
os Planos Diretores que não saem do papel. Cobrar das instituições responsáveis por esses
museus providências cabíveis e urgentes. Aprofundar os estudos acerca da preservação dos
bens culturais. Porque uma vez que esses patrimônios forem perdidos, não haverá mais volta.
O patrimônio é de todos. E é dever de todos preservá-lo.

Referências Bibliográficas

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MEUNIER, I.M.J; SILVA, Horivani Conceição Gomes da. Horto D’el Rey de Olinda,
Pernambuco: História, estado atual e potencialidades da cobertura vegetal de uma área
verde urbana (quase) esquecida. REVSBAU: Piracicaba, 2009.

NORMA TÉCNICA. Edificações históricas, museus e instituições culturais com acervos


museológicos. No. 205: BGE, 2014.

832
VAMOS PUBLICAR SOBRE CONSERVAÇÃO PREVENTIVA? A PRODUÇÃO
ELETRÔNICA SOBRE CONSERVAÇÃO PREVENTIVA DE ESCULTRAS
DEVOCIONAIS EM MADEIRA – UMA BREVE ANÁLISE

Christiane Sofhia Godinho Santos*

Resumo: Os objetos devocionais, considerando aqui as esculturas confeccionadas em madeira,


passaram a fazer parte dos acervos museológicos ao serem percebidas enquanto bens detentores de
memória, que transcediam seu valor funcional. Todo o bem que pertence a uma instituição
museológica necessita de ações voltadas ao prolongamento de sua vida util, tem sido entao a
Conservação Preventiva uma prática atual nestas intituiçoes bastante discutida como meio para a
preservação de bens museológicos. Entendendo então a significância de tais bens patrimoniais e os
cuidados que os mesmos necessitam para a sua permanência, é de grande importância a produção e
difusão de literaturas que fundamentem e auxiliem o trabalho de conservação destes objetos, sejam por
instituições públicas ou privadas. Na contemporaneidade a busca por referencial bibliográfico parte
principalmente dos meios eletrônicos, sites de pesquisa, devido a facilidade de acesso. Considerando
isto, este trabalho buscou fazer um levantamento através de sites de pesquisa de textos em português
que abordassem a questão da Conservação Preventiva de esculturas devocionais em madeira, tentando
estabelecer um panorama atual de bibliografias disponíveis para pesquisas. Partiu-se então da premissa
de que sites de busca disponibilizam referencial bibliográfico que abordam a Conservação Preventiva
de esculturas devocionais em madeira e que possibilitam o estudo voltado a tais objetos.

Palavras-chave: Escultura Devocional em madeira; Conservação Preventiva; Patrimônio;


Preservação.; Produção eletrônica.

833
Abstract: The devotional objects, considering that the sculptures made of wood, became part of the
museum collections when they were perceived as memory possessign objetcs, which transcended its
functional value. All the museological institution patrimony needs actions aimed at the extension of its
useful life, and Preventive Conservation has been current practice in these institutions quite discussed
as a way for the preservation of museological heritage. Understanding that the significance of these
patrimonial assets and the care that they need for their permanence, it is very important that the
production and diffusion of literatures that support the work of conservation of these objects, whether
by public or private institutions. In the contemporaneity, the search for bibliographic reference mainly
comes from the electronic means, research sites, due to the ease of access. Considering this, this work
sought to make a survey through portuguese text search sites that addressed the issue of Preventive
Conservation of wooden devotional sculptures, trying to establish a current panorama of
bibliographies available for research. It was then based on the premise that search sites provide a
bibliographic reference that addresses the Preventive Conservation of devotional sculptures in wood
and that allow the study of such objects.

Key-Words: Devotional sculpture in wood; Preventive Conservation; Heritage; Preservation.;


Electronic production.

834
A Conservação Preventiva de Esculturas Devocionais em Madeira

O ser humano realiza o acúmulo de objetos desde os primórdios de sua história, ao


entender o valor que tais artefatos têm não só por sua utilidade funcional, mas, por sua carga
simbólica. Dentro da necessidade de salvaguardar os artefatos reunidos, os museus tornaram-
se responsáveis pelos bens considerados significativos a memória social, elevados a categoria
de patrimônio cultural, as esculturas em madeira passaram a fazer parte dos acervos
museológicos como bens detentores de memória.

Considerando a diversidade de sentidos e definições acerca da palavra Patrimônio,


atribuiremos o sentido de bens que podem ser acumulados individualmente ou coletivamente,
sendo estes de carácter material ou imaterial, sendo um elemento fundamental na construção
da identidade sócio/cultural de um indivíduo. Para entendermos qualquer forma de vida,
social ou cultural, inserem-se os usos individuais ou coletivos dos objetos, ao entendermos
que os mesmos não são significativos apenas pelo seu uso funcional, mas também por sua
carga simbólica, e é desta cultura material que se fará a composição do patrimônio histórico e
cultural de uma sociedade.

Esculturas devocionais (Fig. 1) tem em si a relação com o transcendental, aquilo que


ultrapassa a barreira do natural, talvez, diante disto, é complexa sua musealização e a forma
de pensar a sua conservação sem interferência no sagrado. A partir do século XVIII os objetos
religiosos ultrapassam os limites do sagrado e adentraram o ambiente museológico ao passo
que os museus tornam-se instituições guiadas por uma constituição para a conservação,
pesquisa e difusão dos bens de valor patrimonial.

835
Figura SEQ Figura \* ARABIC 1: Escultura de Santa Luzia,
madeira policromada datada do século XVIII.

Foto: Klistenes Braga e Bruna Leão. Retirado de


http://khristianos.blogspot.com.br/2014/03/exposicao-de-arte-sacra-
com.html

836
Segundo o Código Deontológico aprovado pelo ICOM em 2009, acerca dos objetos
devocionais em museus

Os acervos de remanescentes humanos e de material de caracter sagrado


devem ser adquiridos somente se puderem ser conservados em seguranca e
tratados com respeito. Isto deve ser feito de acordo com normas
profissionais, resguardando, quando conhecidos, os interesses e crencas [sic]
da comunidade ou dos grupos religiosos ou étnicos dos quais os objetos se
originaram. (p.9)

As imagens devocionais acabam por criar um elo de ligação entre o produtor e seu
tempo e o expectador e seu tempo, afinal “palavras e imagens são formas de representação do
mundo que constituem o imaginário” (PESAVENTO, 2003, p86 apud SOUSA, 2005, p.3).
Entendendo então a significância de tais bens patrimoniais e os cuidados que os mesmos
necessitam para a sua permanência, é de grande importância a produção e difusão de
literaturas que fundamentem e auxiliem o trabalho de conservação destes objetos, sejam por
instituições públicas ou privadas.

Considerando os avanços da tecnologia da informação não se limita apenas a suportes


tradicionais, como o papel, “se fazendo presente cada vez mais os documentos em suportes
informáticos, contribuindo para o acelerado aumento do volume documental e informacional”
(ZANON, 2014, p. 69). Para os métodos de busca foram consideradas principalmente as
seguintes expressões: “escultura”; “devocional”; “madeira”; “Conservação Preventiva”;
“conservação”; “madeira policromada”; “policromia”. A busca estava direcionada a textos
que estivessem disponíveis para download e meios que não ferissem a propriedade dos
autores.

Na tabela a seguir podemos ver alguns textos disponíveis que estão voltados a
discussão sobre as esculturas em madeira (Tabela 1).
Tabela 1: Listagem de textos disponíveis em plataforma eletrônica que abordam questões relativas a
preservação de escultura em madeira.

837
Título Autor(es) Ano Obs.

Intervenções De Restauro: Imaginária Sacra Yacy-Ara Froner 1994 *CP

Boletim CEIB v. 4, n.15 2000


Maria Cecilia De Paula
Prevenção E Conservação Em Museus 2006
Drumond
Beatriz Ramos De
Imagens Religiosas Em Minas Gerais 2006 *CP
Vasconcelos Coelho
Conservação Preventiva Da Escultura Colonial Mineira Em
Alessandra Rosado E Luiz
Cedro: Um Estudo Preliminar Para Estimar Flutuações 2007
Antonio Cruz Souza
Permissíveis De Umidade Relativa

Caracterização De Materiais E De Técnicas De Policromia


Da Escultura Portuguesa Sobre Madeira De Produção Erudita Carolina Barata (Mestrado) 2008 *CP
E De Produção Popular Da Época Barroca

Carolina Barata, António


Forma E Matéria: A Escultura Barroca De Santo Estêvão Do João Cruz, Jorgelina Carballo
2009 *CP
Museu De Santa Maria De Lamas, Portugal , Maria Eduarda Araújo E
Vítor Teixeira
Comissão Diocesana Para Os
A escultura de São Francisco Xavier da Sé catedral de
Bens Culturais Da Igreja — 2009
santarém - conservação e restauro
Diocese De Santarém

São Manuel: conservação - restauração de uma escultura em


Keli Cristina Scolari 2010 *CP
madeira dourada e policromada
Estado atual da conservação do patrimônio escultórico no Beatriz Ramos de
2011
brasil Vasconcelos Coelho
Conservação e restauro da escultura sobre madeira Rita Medina de Faria Taveira
2012
policromada de S.Francisco De Assis De Machado De Castro Peixoto
Lia Canola Teixeira e
Conservação preventiva de acervos 2012
Vanilde Rohling Ghizoni

Estudo e tratamento de conservação e restauro da escultura de


madeira dourada e policromada de s. joão baptista da igreja Carla Matos 2012
de s. francisco do porto

Carolina Barata, Jorgelina


Caracterização através de análise química da escultura Carballo, António João Cruz,
portuguesa sobre madeira de produção erudita e de produção João Coroado, Maria Eduarda 2012
popular da época barroca Araújo E Maria Helena
Mendonça

838
Restauração de uma escultura sacra em madeira policromada,
Ana Carolina Rodrigues 2013 *CP
com ênfase no processo de limpeza

Antônio Francisco Lisboa e o conjunto escultórico dos passos


da via-sacra do Santuário Do Senhor Bom Jesus De Lucilenne Maria De Almeida
Matosinhos em Congonhas, Minas Gerais – dados históricos, Elias, Luiz Antonio Cruz
2014
aspectos iconográficos e técnicas da fatura do escultor: Souza E Antonio Fernando
Antônio Francisco Lisboa, Mestre Aleijadinho e os aspectos Batista Santos
da fatura do conjunto escultórico dos Passos de Congonhas.
Karen Kremer, Letícia Da
I Seminário de conservação de igrejas e arte sacra de Santa
Silva Gondim E Marcelino 2015
Catarina
Donizeth De Melo

Escultura em madeira em laranjeiras/se: perspectivas do


Janaina Cardoso De Mello 2015
patrimônio material e imaterial no século XXI.

S. Roque: estudo iconográfico, material, técnico e estético de Susana Patrícia Ribeiro


s/d
uma escultura da época barroca. Relatório de estágio Teixeira

Estudo de esculturas em madeira, representando a virgem em Melissa Daniela Morais


s/d
majestade com o menino. Relatório de estágio Machado

É importante destacar que a relação de textos apresentadas na tabela não limita os


estudos acerca das esculturas em madeira, a intervenção na perspectiva de preservação de tais
objetos já ocorre desde o momento da confecção de tais exemplares a vários séculos, porém,
considerando a língua portuguesa, há um número relativamente pequeno de textos
disponíveis/acessíveis em meios eletrônicos.

Outra problemática é que nem todas as bibliografias aqui levantadas concentram-se


em escultura devocional, muitas consideram apenas a composição química dos objetos,
esculturas em madeira, não pontuando o papel devocional de tais bens ou mesmo observando
aqueles que não tem a relação com o sagrado. O que é possível observar na maioria dos textos
relacionados na tabela acima, é que a abordagem da conservação é considerada apenas como
meio de permanência, voltado principalmente a práticas de conservação interventiva ou

839
restauro em detrimento da conservação preventiva – apenas os textos com o item *CP trazem
uma preocupação com tal prática de conservação.

As ações de Conservação Preventiva se estabeleceram de fato a pouco tempo, e ainda


vem ganhado espaço nos estudos sobre acervos museológicos, sendo assim, são necessárias
expansões quanto aos objetos de estudo, abordando as esculturas devocionais em madeira,
tanto as que estão armazenadas em ambientes museológicos como aquelas que permanecem
nos locais primeiramente destinados a sua salvaguarda, como igrejas por exemplo.

Toda a ação de conservação de um bem patrimonial necessita de uma compreensão da


população de forma a sensibilizar para a relevância de tais objetos, é importnte entao a
difusão de literaturas em português que não restringisse o acesso apenas aos museus ou aos
locais onde as mesmas são produzidas, ao investir em publicações e torna-las acessível ao
público “haveria uma maior partilha de informação, sendo que mais gente tomaria consciência da riqueza
patrimonial do nosso país” (PEIXOTO, 2012, p.89).

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Considerações sobre o valor, seus Institutos e Regimes Jurídicos. 2005. 108 p. Dissertação
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840
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ca.pdf

843
SALVAGUARDA NO MUSEU DA MEDICINA DE PERNAMBUCO – MMP
PRESERVAÇÃO DA COLEÇÃO DR. OCTÁVIO DE FREITAS

Maria Cristina de Freitas Gomes*


Lucas Peng Chieh Long*

Resumo: O trabalho apresenta a ação de salvaguarda da Coleção Dr. Octávio de Freitas, localizada no
acervo do Museu da Medicina de Pernambuco – MMP, que vem sendo realizada por docentes,
técnicos e discentes de cursos da UFPE (Museologia e Ciências Sociais). O Museu faz parte do
complexo educativo-cultural “Memorial da Medicina de Pernambuco”, situado em sítio histórico no
bairro do Derby, Recife-PE, pertencente e coordenado pela Universidade Federal de Pernambuco –
UFPE, que acolhe, ainda, a Sociedade Brasileira de Médicos Escritores - Regional de Pernambuco, a
Associação dos ex-Alunos da Faculdade de Medicina do Recife, o Instituto Pernambucano de História
da Medicina, o Instituto de Pesquisas e Estudos da 3ª Idade, a Academia de Artes e Letras de
Pernambuco, e a Academia Pernambucana de Medicina, entidades cujos funcionamentos ocorrem
administrativamente de forma autônoma. O Museu da Medicina é oriundo do estatuto, datado
em 1953, do referido Instituto Pernambucano, e somente instalado em 1987, no Hospital D.
Pedro II; passando a funcionar no Memorial, em 1999, após anos fechado. O processo de
Salvaguarda teve início com a retirada de 102 itens da coleção que se encontravam na exposição de
longa duração, há mais de 10 anos, no interior de uma estante de madeira e vidro, também componente
da coleção, cujo procedimento ocorreu nos dias 25 de julho, 2, 3, 5 e 8 de agosto de 2016, e executou
uma higienização elementar, acondicionamento e documentação básicas, em virtude da fragilidade do
acervo e limitação de recursos, decidindo-se, a seguir, pelo encaminhamento da problemática a
especialista em conservação e restauração, e cuja análise da questão resultou na elaboração e envio de
projeto para a recuperação de 82 itens de suporte papel, à seleção do Programa de Fomento
FUNCULTURA, patrocinado pelo Governo do Estado de Pernambuco. A ação também promove
atualização da documentação e pesquisa da coleção.

Palavras-chave: Patrimônio C&T; História da Medicina; Conservação de Bens Culturais; Dr. Octávio
de Freitas; UFPE.

844
ABSTRACT: This work presents an act to protect the Collection of Dr. Octávio de Freitas, located in
the Museu da Medicina de Pernambuco (MMP), that has been used by professors, experts and students
of the Museology and Social Science course of the University Federal of Pernambuco (UFPE). The
museum is part of the Memorial da Medicina de Pernambuco, placed on the historical site of Derby
neighborhood, located in Recife-PE, belonging and coordinated by UFPE. The museum also houses
the Sociedade Brasileira de Médicos Escritores - Regional de Pernambuco, the Associação dos ex-
Alunos da Faculdade de Medicina do Recife, the Instituto Pernambucano de História da Medicina, the
Instituto de Pesquisas e Estudos da 3ª Idade, the Academia de Artes e Letras de Pernambuco, and the
Academia Pernambucana de Medicina, which each one of them work autonomously. The Museu da
Medicina is derived from the statute, dated 1953, of the aforementioned Instituto Pernambucano, and
just found a place in 1978, in Hospital Dom Pedro II; it moved to Memorial, in 1999, after long years
closed. The Safeguard process began with a recall of 102 items from the collection that is found in the
long-standing exhibition, more than 10 years ago, inside a shelf composed by wood and glass, also
part of the collection. The Safeguard happened on the 25th of July, and on the 2nd, 3rd, 5th and 8th of
August, 2016, and carried out basic hygiene, basic packaging and documentation. Due to the fragility
of the collection and limitation of resources it was decided to refer the problem to a specialist in
conservation and restoration, whose analysis of the issue resulted in the preparation and submission of
a project for the recovery of 82 paper support items, to the selection of the FUNCULTURA
Development Program, sponsored by the Government of the State of Pernambuco. The action also
promotes updated documentation and collection research.

Key-words: Science and technology heritage; History of medicine; Conservation of cultural heritage;
Dr. Octávio de Freitas; UFPE.

845
Introdução

O trabalho apresenta a ação de salvaguarda da Coleção Dr. Octávio de Freitas, localizada no


acervo do Museu da Medicina de Pernambuco – MMP, que vem sendo realizada por
docentes, técnicos e discentes de cursos da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE
(Museologia e Ciências Sociais), e vinculada a Preservação Museológica.

O Museu faz parte do complexo educativo-cultural “Memorial da Medicina de Pernambuco”,


situado na cidade do Recife, Pernambuco, em sítio histórico no bairro do Derby, em prédio
que levantou a proposição da criação do Memorial iniciada em 1993 com a restauração do
antigo edifício da 1ª Faculdade de Medicina do Recife (instalada no local entre 21 de abril de
1927 e 19 de janeiro de 1958, antes de ser transferida para o campus). O Memorial foi criado
e é coordenado pela UFPE, através da Pró - Reitoria de Extensão e Cultura – PROEXC, e,
acolhe, ainda, a Sociedade Brasileira de Médicos Escritores - Regional de Pernambuco, a
Associação dos ex-Alunos da Faculdade de Medicina do Recife, o Instituto Pernambucano de
História da Medicina, o Instituto de Pesquisas e Estudos da 3ª Idade, a Academia de Artes e
Letras de Pernambuco, e a Academia Pernambucana de Medicina, entidades cujos
funcionamentos ocorrem administrativamente de forma autônoma.

O Museu da Medicina6 recebe apoio administrativo de pessoal do quadro de servidores


efetivos da UFPE, desde sua reinauguração, em 24 de fevereiro de 1999. É administrado pelo
Dr. Luiz Barreto, presidente da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores - Regional de
Pernambuco. A partir de 2011, os acervos passaram a ser trabalhados por equipe do DAM -
Departamento de Antropologia e Museologia da UFPE, segmento que vem participando de
seu processo de musealização, em virtude da criação, em 2009, do Curso de Bacharelado em
Museologia, atuando através de atividades de extensão, pesquisa e ensino, e, em especial, de

6
O Museu está registrado no Cadastro Nacional de Museus, do IBRAM - Instituto Brasileiro de Museus, como
uma instituição privada. Ver:
http://sistemas.museus.gov.br/cnm/pesquisa/listarPorMunicipio?coMunicipio=1595.

846
práticas de estágio supervisionado (não obrigatório e curricular)7, diante de ações relacionadas
com as seguintes funções museológicas: gestão de museus (plano museológico),
documentação e pesquisa, conservação e exposição. E, entre os primeiros projetos de
extensão, aponta-se: Memória Social da Medicina: preservação e divulgação do Museu da
Medicina de Pernambuco, de autoria da Profa. Dra. Emanuela de Sousa Ribeiro, que trata,
entre outras questões, da documentação museológica. Enquanto discente do Curso de
Museologia, a museóloga Manoela Lima, protagonizou uma das primeiras ações dirigida ao
processo de musealização, quando em 2013 apresentou em seu Trabalho de Conclusão de
Curso, um estudo sobre a história do museu e um arrolamento do acervo composto por 1576
itens.

Seus acervos são originários de doações levantadas e enviadas, no geral, por profissionais da
área da saúde, em especial, médicos e seus familiares, contando, ainda, com aquisições
advindas de entidades referentes locais, como a Santa Casa da Misericórdia e a UFPE.

A Coleção Octávio de Freitas é abordada no projeto Objeto, Ciência e Pessoa: aspectos sócio
antropológicos do acervo de Octávio de Freitas no Museu da Medicina de Pernambuco,
elaborado por professoras do Departamento de Antropologia e Museologia da UFPE, e tratada
como referência que diz respeito a história da Medicina, detendo-se em Pernambuco e a
biografia do médico Octávio de Freitas; informando que a Coleção encontra-se em precárias
condições de conservação e praticamente desconhecida do público.

7
Ver: FREITAS GOMES, Maria Cristina de (org.). Programa de Estágio Supervisionado do Museu da Medicina
de Pernambuco – MMP para discentes do curso de bacharelado em museologia da Universidade Federal de
Pernambuco, 2014-2017.

847
A Importância de Octávio de Freitas para o MMP e a Medicina

A criação do Museu da Medicina ocorreu a partir de considerações do médico e professor


José Octávio de Freitas, que como um dos fundadores, em 1946, do Instituto Pernambucano
da História da Medicina, verificou a necessidade de se preservar, investigar e comunicar
representações da memória das ciências da saúde, em especial, do Estado de Pernambuco,
através da implementação de um museu, um arquivo e uma biblioteca. A intenção foi
formalizada, em 1953, no Estatuto do Instituto Pernambucano, que registrado em Cartório
somente no ano de 2004. Portanto, sua criação encontra-se vinculada a história do Instituto
Pernambucano da História da Medicina e sua primeira instalação só foi possível, em 1987,
com o apoio da Secretaria da Saúde do Estado de Pernambuco, quando o museu foi
inaugurado em 10 de março, no primeiro andar do Hospital D. Pedro II, e estabelecido por um
curto período, devido ao precário funcionamento do hospital, assim como por mudanças
ocorridas na administração do Governo Estadual.

A existência do casarão que abriga o MMP é fruto do esforço do Dr. Octávio de Freitas,
personagem histórico muito importante ao desenvolvimento do ensino médico em
Pernambuco e sanitarista reconhecido nacionalmente. Ele nasceu na cidade de Teresina,
Estado do Piauí, no dia 24 de fevereiro de 1871, filho do desembargador José Manuel de
Freitas. Ao longo de sua existência morou em diversas cidades, residindo no Recife, onde
permaneceu até os últimos dias de sua vida, falecendo em 1949. Ingressou na Faculdade de
Medicina da Bahia e posteriormente na do Rio de Janeiro, atuando como médico no Hospital
São João Batista, em Niterói e posteriormente na Policlínica desta cidade; participou de
missão para combater a febre amarela na cidade de Pirassununga, no Estado de São Paulo,
onde a epidemia assolava a população. Participou de algumas causas abolicionistas e foi um
dos fundadores do Clube Republicano da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. No
Recife ocupou diversos cargos: Ajudante da Superintendência da Higiene Municipal, diretor-
fundador do Instituto Vacinogênico, Inspetor geral de higiene do Estado (1899), Diretor e
organizador do Instituto Pasteur de Pernambuco (1901/1930), Diretor Geral de Higiene

848
(1918/1919) - período em que dirigiu e organizou a campanha de combate à epidemia de
influenza, Diretor do Departamento de Saúde Pública (1937/39); fundou a Liga
Pernambucana contra Tuberculose; além de participar da organização de eventos médicos,
sanitários e acadêmicos. Autor de significativos estudos, em 1895 publicou “Estatísticas
Demográfico-Sanitárias” e “Anuário de Estatística Demográfico-Sanitário da cidade do
Recife”, levantamentos de extrema relevância. Bastante engajado em causas sociais, Octávio
de Freitas viu a necessidade urgente de criar uma Faculdade de Medicina no Recife e sua
atuação foi fundamental para a criação da instituição, articulando-se com docentes do Curso
de Farmácia. Em 16 de junho de 1920 fundou-se a Faculdade de Medicina, resultado do
esforço de Octávio e seus companheiros, sendo ele o primeiro diretor.

Metodologia de trabalho

As atividades e estudos provenientes das ações que vem sendo realizadas pela estrutura
oferecida pela UFPE junto ao processo de musealização do MMP, revelaram situações de
carência à manutenção do Museu durante sua existência, após dezoito anos de sua reabertura
ao público. Entre as problemáticas encontradas, a ação de salvaguarda iniciada e realizada nos
dias 25 de julho, 2, 3, 5 e 8 de agosto de 2016, por meio da atuação de estagiários e
supervisão museológica em itens da Coleção Dr. Octávio de Freitas que encontravam-se em
mostra lacrada no interior de uma estante de madeira e vidro, objeto também pertencente a
Coleção, após passar mais de dez anos na exposição de longa duração. A ação resgatou
documentos/objetos relativos a acervos da Museologia, Arquivologia e Biblioteconomia para
fins de conservação, documentação e pesquisa. O acontecimento trouxe uma grande
preocupação aos que lidam com a questão, em virtude da precária condição de preservação
encontrada.

Adotando-se, a princípio, os seguintes procedimentos conceituados por uma metodologia


experimental, com a retirada da coleção do espaço expositivo:

849
1 – Realização de Inventário e Registro Fotográfico. Registro de 102 itens (fotografias,
documentos, livros, revistas, objetos médicos e pessoais) em formulário criado com campos
informativos que abordam: numeração, tipo de acervo, autoria/fabricante, nome do objeto,
data e origem, material e técnica, dimensão, modo de aquisição, estado de conservação,
localização, observação; adotando-se numeração provisória, em virtude desses itens não
estarem listados no arrolamento existente, visando posterior inserção no inventário geral do
MMP. Utilização de recomendações da “Cartilha de Orientações Gerais para Preservação do
Patrimônio Cultural de Ciência e Tecnologia”, publicada pelo MAST e CNPq.

2 – Acondicionamento provisório em capilha e outros suportes de acondicionamento, guarda


na Reserva Técnica do MMP e armazenamento em arquivo de aço tipo “paulista”. Devido à
fragilidade que se encontram os objetos optou-se em não fazer nenhum tipo de intervenção
sem o acompanhamento de profissional experiente em conservação e restauro. Foram feitas
apenas embalagens para condicionar na reserva técnica, separadas e organizadas por tipo de
acervo.

3 – Análise do Estado de Conservação pela especialista em conservação – restauração,


Suzana Omena Pedrosa, que selecionou 82 itens de suporte papel para a primeira intervenção
a ser realizada. A insuficiência de infraestrutura do Museu leva aos acervos condições
ambientais inadequadas, como: ataque de micro-organismos e insetos, alta temperatura e
umidade (ocorre que o Museu se encontra na margem do Rio Capibaribe), entre outros.

Apontando-se na análise realizada que os itens estão em estado ruim de conservação e


precisam ser tratados, para poderem ser disponibilizados ao público. Os problemas são
fungos, rasgos, perda de suporte, fitas adesivas ácidas, grampos e tachas oxidadas, sujidades
generalizadas, entre outros. Ressaltando-se a existência dos acervos no Museu em insegurança
quase que total.

Propondo-se como tratamento: 1) Desinfecção e desinfestação das obras contaminadas - o


acervo deverá ser embalado e lacrado para tratamento pelo método de congelamento

850
controlado a - 18º, por 20 dias; 2) Higienização de todo acervo, com trinchas de pelo macio,
em mesas específicas para higienização; 3) Pequenos reparos nos documentos, caso
necessário, com materiais apropriados a conservação de acervos; 4) Acondicionamento do
acervo, em caixas e pastas, confeccionadas com Synt paper.

4 - Elaboração e envio de projeto pelo Memorial a Programa de Fomento, intitulado


Museu da Medicina de Pernambuco – MMP. Salvaguarda: Conservação de 82 itens da
Coleção Octávio de Freitas, à seleção do FUNCULTURA, patrocinado pelo Governo do
Estado de Pernambuco, em virtude da inexistência de recursos, por parte da instituição
gestora.

APRESENTAÇÃO DE PARTE DA
DOCUMENTAÇÃO FOTOGRÁFICA
REALIZADA8

A coleção na exposição de longa duração, antes


de ser retirada

8
Documentação fotográfica por: Cristina de Freitas, Paulo de Tarso e Suzana Omena.

851
Estagiários participando da ação de salvaguarda

Lucas Peng, estagiário efetivo da ação

Amanda Borges e Davi Santos (estagiários colaboradores) com Lucas Peng

Exemplos de deteriorações encontradas:

Documentos com perda de suporte, rasgos, acidez, fitas adesivas ácidas, manchas, oxidação
por grampos e tachas, sujidades, lombadas danificadas. Diplomas fixados por tachas no
interior da estante foram encontrados e retirados.

852
853
Considerações finais

A presente ação de salvaguarda apresenta entre seus objetivos: minimizar as condições


precárias do estado de conservação da Coleção Octávio de Freitas, propiciar condições
adequadas de preservação para o acesso público e comunicar a atuação do Dr. Octávio de
Freitas na vida médica de Pernambuco, procurando contribuir com o crescimento do
funcionamento do MMP e conhecimento sobre questões das ciências da saúde, além de

854
colaborar com o desenrolar da função social do Museu. A Coleção é considerada Patrimônio
Histórico de Ciência e Tecnologia e sua recuperação é urgente.

Referências bibliográficas
BARRETO, Luiz. Museu da Medicina de Pernambuco. Estudos Universitários, Revista de
Cultura da Universidade Federal de Pernambuco, v. 27, n. 8, p.133-140, 2011.

GRANATO, Marcus, RIBEIRO, Emanuela Sousa, CERAVOLO, Suely, HANDFAS, Ethel


Rosemberg (org.). Cartilha de orientações gerais para preservação do patrimônio de
ciência e tecnologia. Rio de Janeiro: Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST),
Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq), 2013.

LIMA, Manoela Edna. Quando o museu encontra a museologia: um patrimônio da


medicina em Pernambuco. Monografia (Bacharelado) Graduação Museologia, Universidade
Federal de Pernambuco, Recife, 2013. Orientador: Profa. Dra. Emanuela de Sousa Ribeiro.

et al. Um Museu de Medicina em Pernambuco e as perspectivas de


musealização, comunicação e institucionalização. In: Anais do IV Seminário Internacional
de Cultura Material e Patrimônio de C&T. Disponível em:
http://www.mast.br/hotsite_anais_ivspct_2/pdf_01/6%2043.pdf. Acesso em 9 fev. 2017.

PEDROSA, Suzana Omena. Orçamento para Conservação de Itens da Coleção Dr.


Octávio de Freitas do Museu da Medicina, Recife, 23 mar 2017.

ROCHA, Leduar de Assis. Instituição do ensino médico em Pernambuco. Recife: UFPE-


Editora Universitária, 1974.

SILVA, Ana Cláudia Rodrigues; RIBEIRO, Emanuela de Sousa (colaboradora). Objeto,


Ciência e Pessoa: aspectos sócio antropológicos do acervo de Octávio de Freitas no Museu
da Medicina de Pernambuco (projeto). EDITAL FACEPE 02/2016 – PIBIC 2016
PROGRAMA INSTITUCIONAL DE BOLSAS DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA /
PIBIC/FACEPE – 2016.

TEIXEIRA, Lia Canola; GHIZONI, Vanilde Rholing. Conservação preventiva de acervo.


Florianópolis: Edições FCC, 2012. Coleção Estudos Museológicos, v.1.

VAINSENCHER, Semira Adler. OCTÁVIO DE FREITAS. Pesquisa Escolar Online, Fundação


Joaquim Nabuco, Recife. Disponível em: <http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar>.
Acesso em: 16 de julho de 2017.

855
MUSEU ITINERANTE DO ATLETISMO PARAENSE: A CONCRETIZAÇÃO DO
FAZER MUSEOLÓGICO

Gabriele de Oliveira Martins*


Paloma Silva da Costa*
*Universidade Federal do Pará

Resumo: O presente trabalho apresenta uma pesquisa realizada entre os anos de 2016 e 2017 por
discentes do curso de Bacharelado em Museologia da Universidade Federal do Pará. A pesquisa
consiste em documentar o acervo esportivo do atletismo paraense referente às décadas de 1970 ao ano
2000. Esta necessidade surge em função de haver uma salvaguarda deste patrimônio - o qual possui
uma memória afetiva e uma historicidade para com a sociedade. Desse modo, compreendemos que
essa coleção apresenta um valor histórico e simbólico tanto para os proprietários, quanto para os
amantes do atletismo. Assim, ações de documentação foram pensadas como forma de resgatar as
informações destes artefatos visando posteriormente o desenvolvimento de ações de conservação
preventivas mais aprofundadas que auxiliem na preservação tanto das informações, quanto da
materialidade desse acervo, pois a coleção encontra-se suscetível às diversas ações de degradação - por
não haverem medidas de conservação preventiva que visem minimizar estes processos – e também por
não possuir um local de guarda definitiva do museu. Portanto, iremos apresentar os resultados obtidos
durante a realização da documentação e da conservação; bem como apresentaremos as discussões
acerca das memórias individuais e coletivas que fazem parte desses objetos.
Palavras-chave: Memória; Atletismo; MIAPA; Documentação; Conservação.

Abstract: The present paper shows a research fulfilled during the years of 2016 and 2017 by the
Museology’s bachelor degree students from the Universidade Federal do Pará. The research consists in
to document the sporting collection of paraense athletism, it refers to the decades of 70’s until the
2000 year. This lack arises depending on there is a safeguard of this heritage – which that has an
affective memory, and a historicity towards the society. Thereby, we comprehend that this collection
shows a historic and symbolic value as well the owners as the athletics lovers. So, documentation’s
actions were preserved as a way to rescue the reports of these artifacts seeking subsequently the
development of deeper preventive conservation actions which help in the preservation both
information and materially of this collection, because it is susceptible to many actions of degradation –
because there isn’t a place of definitive safety at the museum. Therefore, we are going to present the
reached results during the development of the documentation and the conservation; as well we are
going to show the discussions about the individual and collective memories that are part of those
objects.
Key-words: Memory; Athletics; MIAPA; Documentation; Conservation.

856
Introdução

O Projeto de criação do Museu Itinerante do Atletismo Paraense (MIAPA) se deu no


ano de 2016, durante a disciplina curricular “Laboratório de Documentação”, ministrada pela
Professora Msa Marcela Cabral, no qual os alunos deveriam realizar a prática documental de
todo processo de geração e gestão de um museu – incluindo a elaboração de “Ata de criação
do museu”, “Políticas de aquisição e descarte”, “Laudos técnicos de entrada e saída de
acervos para exposição”, “Documentos de aquisição de acervo (troca, doação, empréstimo,
compra)”, “Termos de aceite e recusa”, “Inventário” e “Fichas catalográficas”.

Desse modo, o projeto foi levado para além da disciplina e está sendo aperfeiçoado,
dando continuidade ao que foi iniciado em sala de aula. Assim, o MIAPA é formado pelo
acervo pessoal da ex atleta Suzete Montalvão e demais atletas do circuito. Até o presente
momento foram inventariados 156 objetos, referente à Coleção Suzete Montalvão, dentre eles
encontramos indumentárias, troféus, medalhas, placas comemorativas, documentos e
fotografias que estão sendo catalogadas pelos integrantes da equipe.

O principal objetivo deste projeto é realizar um diálogo com a população sobre os


benefícios que o esporte pode trazer para o indivíduo no seu caráter social, pois o atletismo,
além de estar entre os mais praticados no mundo, tem a capacidade de alcançar pessoas das
camadas sociais mais baixas – que inclui, aponta oportunidades e ressalta seus potenciais para
além das aptidões físicas e também possui característica crítica e de superação.

Por fim, o MIAPA, enquanto espaço de produção e de compartilhação de


conhecimento, tem em suas propostas subsequentes realizar exposições itinerantes que
possam percorrer o território paraense e, assim, apresentar as ações realizadas pelos atletas
praticantes de atletismo do estado do Pará das últimas décadas – por meio dos objetos
referentes às conquistas obtidas no cenário estadual, nacional e internacional; e provocar o
interesse e a inspiração aos que pretendem ingressar no cenário esportivo. Ademais, o acervo
possui uma grande potencialidade para a elaboração de pesquisas que incluem o universo

857
material e o imaterial, decorrente de sua vasta tipologia e das memórias que circundam cada
objeto junto ao seu contexto de criação.

Documentação museológica como ferramenta de salvaguarda da memória

Segundo Ferrez (1991), todo objeto é detentor de informação logo eles possuem um
conjunto de sentidos que são fundamentais para os mais diversos públicos tais como
estudantes, pesquisadores, professores, etc. Portanto, a documentação museológica realizada
no acervo do MIAPA busca, através das práticas documentais, o detalhamento das
informações intrínsecas - as deduzidas do próprio objeto, através da análise das suas
propriedades físicas - e extrínsecas - aquelas obtidas de outras fontes que não o objeto e que
só muito recentemente vêm recebendo mais atenção por parte dos encarregados de
administrar coleções museológicas - para em seguida dar continuidade ao processo de análise
de patologias.

Assim, é no primeiro semestre de 2016 que demos início à criação do museu e,


consequentemente, elaboramos os documentos precisos para sua efetivação – ata de criação,
inventário, política de aquisição e descarte, ficha catalográfica, laudos técnicos e termos de
aceite e de recusa de objetos. Em relação à catalogação fizemos a seleção dos objetos e o
arrolamento – os quais totalizaram em 156. Para o inventário, optamos em uma numeração de
caráter alfanumérico em que consta sigla da instituição, algarismo da coleção, número de
classe, número de subclasse e o número sequencial do objeto – MIAPA.I.1.1.001. Tomando
como base o Thesaurus (1987), o descritivo dos itens de classificação dos objetos foi
organizado segundo número de ordem, número de inventário, termo/objeto, título, ano de
aquisição classe, subclasse, autor/fabricante, material, técnica e, por fim, observação:

858
Tabela 1: Organização do Inventario do Museu Itinerante do Atletismo Paraense.

Fonte: Documento pertecente ao MIAPA.

Em seguida, criamos a ficha catalográfica utilizada para este processo e pensada a


partir da necessidade do acervo. Esta soma 30 itens descritivos que compõem o documento –
coleção, classe, subclasse, número de registro, data/período, termo, material, técnica,
procedência, autor/fabricante, modo de aquisição, ano de aquisição, origem, localização,
título, marcas de inscrição, dimensão1/2, dados históricos, características iconográficas,
imagem, descrição do objeto, estado de conservação, percentual de comprometimento,
descrição e localização de danos, histórico de exposição, recomendações, intervenções,
observações, responsável pelo preenchimento e data de preenchimento.

Neste ano de 2017 demos continuidade ao preenchimento das fichas catalográficas em


vista da inserção de novos objetos no acervo; paralelo a isto, inserimos as etiquetas numéricas
e substituímos os materiais de base dos suportes expositores. Em nosso cronograma, ainda
para este ano, pretendemos finalizar a catalogação do acervo, realizar a higienização da
coleção, e também a elaboração da ficha técnica de conservação para identificar as patologias,
os diversos tipos de materiais e poder adequar ao ambiente expositivo e de guarda.
Ressaltamos, por fim, que estes procedimentos são válidos tanto para o trabalho museológico,
mas, sobretudo, para comunicar de maneira adequada os diversos públicos que poderão
conhecer este acervo.

859
O acervo e a conservação como processo de preservação do objeto

[...] podemos inferir que não somente os objetos ou as coisas, mas suas
representações imagéticas e simbólicas circulam nas entranhas das memórias
dos sujeitos sociais, em meio a sentimentos e vivências que resistem ao
ocaso e se mantêm devotadas a sustentar vínculos com os seus lugares de
pertencimento, historicamente construídos. (PELEGRINI, 2007:5)

Um bom acondicionamento das peças é essencial para prolongar a vida útil dos
objetos, além do mais, os objetos usados para esta pesquisa, fazem parte de uma história que
foi vivida por milhares de pessoas, que prestigiaram as competições estaduais, nacionais e
internacionais em que esses atletas paraenses estiveram presentes afirmando, deste modo, que
a materialização da memória através dos objetos, auxilia na reminiscência e esquecimento de
determinadas lembranças (PELEGRINI, 2007). São estas vivências que, consequentemente,
nos permitiram poder dar continuidade ao trabalho de criação do MIAPA e, logo, estudar
mais a fundo os modos adequados referentes à Conservação Preventiva para que pudéssemos
realizar ações sobre os diversos tipos de materiais que o acervo nos ofereceu ao longo das
análises.

Desta maneira, partimos de estudos iniciados de modo macro ao micro analítico: o


acervo concentra objetos em estruturas materiais orgânicas e inorgânicas, cada qual com sua
particularidade e predisposições aos fatores externos e internos de degradação (SOUZA;
FRONER, 2008). Em seguida, identificamos os materiais particulares e mistos pertencentes
ao acervo, posto que é importante compreender as características dos materiais encontrados
nas coleções para que seja possível identificar os fatores potenciais de degradação, de que
modo e em qual medida eles podem prejudicar o acervo e como eles atuam” (idem).

De acordo com Teixeira e Ghizoni (2012), os objetos em papel podem sofrer


deterioração tanto por interferências internas quanto externas, desta maneira a composição

860
deste material pode conter alguns resíduos que “reagem e destroem aos poucos as cadeias
moleculares da celulose” e/ou devido à influência do ambiente externo como calor, umidade,
poeira, microrganismos, etc. Assim como o papel, os têxteis sofrem externamente devido as
suas fibras – orgânicas, inorgânicas e sintéticas – entrarem em contato com agentes externos
como a luz e assim, afetar a pigmentação e coloração das fibras juntamente com a
desestruturação dessas tramas. Além desses, ainda podemos citar a degradação por radiação,
gases atmosféricos, catástrofes, vandalismo, entre outros. Mediante as condições climáticas
amazônicas em que, a temperatura é 30ºC e a umidade fica cerca de 70% (COSTA;
PALÁCIOS; CASTRO, 2015), acervos metálicos requerem um cuidado especial, pois suas
condições de climatização devem ser ideais para este tipo de material, ou seja, a umidade deve
ser baixa e a temperatura relativa a esta coleção, o que é difícil quando se tem um acervo
misto.

As outras tipologias do acervo aqui trabalhado não fogem muito da realidade desses
materiais citados acima, portanto, para dar início aos procedimentos de conservação
preventiva, foi analisada a quantidade de materiais que compõe o acervo – que totaliza 156
objetos – e dividida por seu material de constituição predominante: metais (99), têxteis (19),
papeis (24), plásticos (1), cristal (1), madeira (1), mistos (11). Sendo assim, as práticas foram
pensadas de maneira que suprissem a necessidade de cada tipologia, levando em consideração
a região onde nos situamos: a Região Amazônica.

Em consequência disto, nos é necessária a adaptação de temperatura e da umidade


relativa que difere da climatologia europeia (COSTA; PALACIOS; CASTRO, 2015). Deste
modo, algumas medidas imediatas a curto, médio e longo prazo entre as quais: os meios de
armazenamento substituídos – incluem placas de polietileno para por na base dos suportes
expositivos das medalhas; estruturas de revestimento e fixação – polietileno em rolete para
confecção de estrutura que envolva os troféus, evitando impacto das extremidades com outros
objetos; acondicionamentos – capas de TNT às indumentárias; e embalagens - confecção de
suportes de papel com PH neutro para acomodar as fotografias e documentos.

861
É importante ressaltar que à medida que vamos conhecendo mais sobre a composição
deste acervo assim, também, realizamos melhorias mais rentáveis, que estejam dentro de
nossas possibilidades, e, sobretudo, que estejam acessíveis e comunicáveis tanto para os
grupos de pesquisas quanto para o público em geral que possa desejar conhecer o acervo e sua
sistematização tanto de informações quanto as ações em conservação preventiva.

Considerações finais

Podemos dizer que esses objetos, em seus processos de fabricação, trazem consigo um
valor simbólico o qual, posteriormente, se transforma em valor histórico. Compreendendo que
estes objetos podem apresentar uma potencialidade para representarem memórias e
identidades, pensamos a documentação e conservação desta coleção de ex-atletas paraenses a
partir da compreensão de que estas podem contribuir para a construção das histórias, de
identidades e das memórias de variados grupos de moradores da capital paraense.

Para as apresentação feitas sobre Documentação e Conservação chegamos em algumas


perspectivas conclusivas, embora não finalizadas: ressaltamos que os estudos realizados sobre
a elaboração documental – principalmente a ficha catalográfica – está em processo de
melhoramento porque novas informações surgiram e, com isso, adicionamos essas
particularidades continuamente; também é de nosso interesse efetivar a criação do MIAPA via
autenticação de suas atas em um cartório e em outros órgãos regulamentadores. Em relação à
conservação, é importante salientar que a temperatura e umidade são fatores que influenciam
demasiadamente no acondicionamento do acervo, tendo em vista que por se tratar de uma
coleção que não possui um lugar de guarda fixo, estes se encontram suscetíveis aos agentes de
degradação externos como poeira, radiação, proliferação de xilófagos, gases atmosféricos,
catástrofes, entre outros.

862
De modo geral, o MIAPA se apresenta como um museu que atualmente está em
formação e que, unindo esforços colaborativos, nasce de uma necessidade de pôr em prática o
aprendizado e as trocas de conhecimentos experenciadas tanto em sala de aula quanto em
laboratórios. Desta forma, compreendemos a importância que ele tem para grupos presentes e
futuros de discente/pesquisadores e, posteriormente, para todas as pessoas que desejarem
conhecer esta história ligada ao atletismo paraense e, assim, concretizarem conjuntamente as
validações essenciais de um museu: proporcionar vivências e expansão de saberes
considerando o poder simbólico do acervo, sua polissemia e, também, os espaços que ele irá
se estabelecer.

Referências bibliográficas
COSTA, S. A. F.; PALACIOS, F. O.; CASTRO, T. M. Desafios para a Conservação
Preventiva na Amazônia: Perspectiva a partir de dois Museus do Centro histórico de
Belém-PA. In: Seminário Brasileiro de Museologia, 2015, Recife. Ananis do II Seminário
Brasileiro de Museologia. Recife: Fundação Joaquim Nambuco, 2015. V. 1.

FERREZ, Helena Dodd. Documentação Museológica: Teoria para uma boa prática.
Recife, 1991.

LOGAN, J. Basic Care of Coins, Medals, and Medallic Art. – CCI Notes 9/4. Revista
Canadian Conservation Institute, 2007.

PELEGRINI, S. C. A. O Patrimônio Cultural e a Materialização das Memórias


Individuais e Coletivas. In: Patrimônio e Memória. UNESP – FCLAs – CEDAP, v.3, n.1,
2007 p. 87.

SOUZA, L. A. C.; FRONER, Y. A. Reconhecimento de Materiais que compõem Acervos.


− Belo Horizonte: LACICOR − EBA − UFMG, 2008, 31 p.: il.; 30 cm. −
(Tópicos em conservação preventiva; 4).

TEIXEIRA, L. C.; GHIZONI, V. R. Conservação Preventiva de Acervos. Florianopolis:


FCC, 2012. Coleção Estudos Museologicos, V. 1.

863
Museologia e
patrimônio: discussões
sobre as relações de
preservação pelas
chaves da colonialidade
ou do póscolonialismo –
Museus e cultura
política

864
ATRIBUIÇÃO DE AUTORIA PELA TRADIÇÃO: COLEÇÕES EM MARFIM

Isis Molinari*
*Universidade Federal do Pará

Resumo: As nomenclaturas comumente presentes em alguns museus e repetidas em estudos


científicos é de que artefatos em marfins, originários do contato entre os povos colonizadores e os
colonizados (século XV – XIX) tem uma denominação em relação à sua procedência que é dupla,
representando o estilo pelos seus lugares (produção/encomenda ou vice-versa), a saber: sino-
portugueses; nipo-portugueses, luso-africanos, hispano-filipinos; sapi-potugueses; cíngalo-
portugueses, indo-portugueses. A atribuição da autoria pela tradição é uma abordagem sugerida neste
artigo para se estabelecer um novo critério de nomenclatura dessa produção originários da idade
moderna, seja para uma revisão dos termos de catalogação em museus, seja para a reavaliação dos
conceitos subjacentes à conotação atual. Considerando os traços identitários e os estilemas advindos
das tradições milenares, chinesas, japonesas e africanas, este artigo questiona se tal nomenclatura, que
presume autoria compartilhada entre Portugal, Espanha e as suas respectivas colônias é ainda
importante de ser perpetuada. Para discutir o uso do marfim serão apresentados exemplos advindos
das tradições chinesas, japonesas e africanas anteriores à época das grandes navegações, para concluir
que a autoria compartilhada prevê um certo empoderamento de uma sociedade sobre a outra. Os
aportes teóricos utilizados são oriundos do campo da Arte, mas avançam pelos limites da Museologia
ao discutir uma outra nomenclatura para a utilização em museus e coleções.
Palavras-chave: tradição; autoria compartilhada; marfim; nomenclatura, coleção.

Abstract: The terms commonly found in some museums and repeated in scientific studies are that
ivory artifacts originating from the contact between the colonizing and the colonized peoples (15th to
19th century) have a denomination in relation to their origin, which is double, representing the style by
their places (production / order or vice versa), namely: Sino-Portuguese; Japanese-Portuguese; Luso-
African; Spanish-Filipino; Sapi-Portuguese; Cingalo-Portuguese; Indo-Portuguese. The attribution of
authorship by tradition is an approach suggested in this paper to establish a new nomenclature
criterion for this production, originating in the modern age, either for a revision of the cataloging terms
in museums or for the reassessment of the concepts underlying the current connotation. Considering
the identitarian traits and the style elements arising from the millennial traditions, as the Chinese,
Japanese and African, this paper questions whether such nomenclature, which assumes the shared
authorship between Portugal and Spain and their respective colonies, is still important to be
perpetuated. In order to discuss the use of ivory, examples from the Chinese, Japanese and African
traditions prior to the age of the great navigations will be described, to conclude that the shared
authorship presupposes a certain empowerment of one society over another. The theoretical references
of this article come from the field of Art, but advance the limits of Museology when discussing
another nomenclature for use in museums and collections.
Keywords: tradition; shared authorship; ivory; terminology, collection.

865
Introdução
São poucos os museus brasileiros1 que têm uma coleção eminentemente em marfim2 e
as destacam isoladamente pelo critério da materialidade. Muitas vezes, as coleções
etnográficas ou as coleções dos museus de Arte Sacra têm peças de marfim ou de objetos que
possuem uma incrustação desse material sobre um suporte de madeira ou de metal, no
entanto, as que são exclusivamente entalhadas em marfim, quando se apresentam em
proporção reduzida não estão isoladas, mas agrupadas a outros materiais pela temática, e,
consequentemente, expondo o material a um ambiente híbrido composto pela presença de
outros materiais.
Há também, evidente falta de protocolos de conservação preventiva das peças em
marfim nos museus brasileiros. Ao manusear os inventários de tombamento dos bens
materiais, tanto do Museu de Arte Sacra de Belém quanto do Museu de Arte Sacra de São
Luís, lócus de minha pesquisa atual3, é explícito que as informações sobre as peças em
marfim são escassas, tanto no que diz respeito à datação como a sua procedência.
O código de ética dos museus4 estabelecido pelo Comitê Internacional de Museus
(ICOM) deve ser o instrumento que permeie tanto a aquisição de novos exemplares em

1
A maior coleção de objetos de marfim, denominada de marfins religiosos foi organizada por José Luiz de
Souza Lima, composta por 572 peças que foram recolhidas e adquiridas pelo colecionador em diversos estados
do Brasil, aproximadamente entre 1919-1930 e hoje fazem parte do acervo do Museu Histórico Nacional. Outro
acervo importante que abriga objetos em marfim é o de Mario de Andrade do Instituto de Estudos Brasileiros da
Universidade de São Paulo. Com aproximadamente 8000 peças, a coleção de Artes Visuais abriga uma sessão de
Religião e Magia em que estão catalogadas 12 esculturas religiosas em marfim e 1 em madeira com face e mãos
em marfim (BATISTA, 2004, pp. 94-293).
2
Quando se adota o termo “marfim” indiscriminadamente é bom ficar atento a essa classificação generalista,
pois os artefatos elaborados com ossos, presas, dentes de variados animais confundem o observador e somente
um exame técnico minucioso poderá dar realmente a procedência desse material orgânico.
3
Tema relacionados à escrita da tese: Estudos imagéticos de esculturas em marfim presentes em Museus de Arte
Sacra do Norte do país. Atualmente faço parte do grupo de investigadores do projeto Marfins Africanos no
Mundo Atlântico: uma reavaliação dos marfins luso-africanos, do Centro de História da Universidade de Lisboa
conveniado à Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Departamento de História e Escola de Belas
Artes. Meus estudos atuais estão relacionados ao Inventário das Igrejas e Capelas dos Jesuítas no Estado do
Maranhão e Grão-Pará no ano de 1760, com destaque para os crucificados em marfim e outros achados dessa
materialidade.
4
O Código de Ética do ICOM foi adotado por unanimidade pela 15ª Assembleia Geral do ICOM realizada em
Buenos Aires (Argentina) em 4 de novembro de 1986, modificado na 20ª Assembleia Geral em Barcelona

866
marfim, como a salvaguarda do acervo já constituído, tendo como parâmetros as formas éticas
de aquisição de coleções e de conservação5.
Este artigo, tem como objetivo principal apresentar, do ponto de vista da conservação
do patrimônio cultural material, um meio de resguardar a história dos estilos da escultura em
marfim pela tradição de produção. A partir de uma concisa e ilustrativa amostragem de
objetos dos mais variados marfins encontrados em diferentes sociedades, é notório a marca
identitária de uma ou outra tradição. Esse apanhado de exemplos, retirados das culturas
Chinesa, Japonesa e Africana em que são simbolizados os seus deuses, santos ou objetos
utilitários e populares só reafirmam a necessidade de dar os créditos de autoria6 a quem de
direito exerceu por mais tempo o ofício. E para além dessa questão, entender que mesmo que

(Espanha) em 6 de julho de 2001 sob o título Código de Ética do ICOM para os museus e revisado pela 21ª
Assembleia Geral realizada em Seul, Coreia do Sul, a 8 de outubro de 2004.
5
Consultar no documento acima citado principalmente os itens 2.3. Procedência e diligência obrigatório; 2.4.
Bens e espécimes provenientes de trabalhos não científicos ou não autorizados; 2.5. Materiais culturais sensíveis;
2.6. Peças biológicas ou geológicas protegidas, e no que concerne às questões de salvaguarda, os itens 2.20.
Documentação dos acervos; 2.23. Conservação Preventiva; 2.24 Conservação e restauração de acervos.
6
*O conceito de autoria, para as esculturas em marfim produzidos em decorrência das grandes navegações, e
entalhados para fins religiosos, independentemente da sua motivação, ou seja, se por encomenda ou por razões
culturais autóctones deve ser concedida àquele que produziu a obra. Tendo em vista que a assinatura é que indica
a sua autoria, e sabendo-se de antemão que a maioria das imagens sacras, seja em marfim ou outra materialidade
não era assinada pelos artesãos, a atribuição deve ser dada, sob o meu ponto de vista à tradição escultórica
nominando o grupo étnico que a confeccionou.
* O conceito de autoria na História da Arte está intimamente relacionado ao momento da liberalização das artes
plásticas, que ocorreu no Renascimento. Nesse contexto, os artistas por volta do século XVI intensificaram o seu
relacionamento autoral com os mecenas e surgiram as academias em substituição a um trabalho oficinal e
coletivo desenvolvido conjuntamente entre mestres e aprendizes sem autoria; tais modelos eram comumente
usuais na Idade Média. A História da Arte clássica nasce, portanto, quando os artistas são vistos como
intelectuais, interessando-se pela filosofia e ciência, e acabam, por essa razão, transformando o status das artes
plásticas, até então consideradas como mecânicas e inferiores desde a antiguidade, em artes liberais. (PEREIRA,
2106, 21-26).
*O conceito de autoria sob o ponto de vista jurídico, relaciona-se ao direito autoral cuja Lei nº 9610, de 19 de
fevereiro de 1998 regula esse direito (BRASIL, 1998). Sob a questão levantada neste artigo é necessário reunir
mais caracterizações para tal proteção. A Constituição Brasileira de 1986 deixa evidente, no Artigo 215 a
proteção às manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos
participantes do processo civilizatório (BRASIL, 1988). No âmbito internacional, a Convenção n° 169 da
Organização Internacional do Trabalho (2004) sobre Povos Indígenas e Tribais, da Organização Internacional do
Trabalho (OIT), órgão da Organização das Nações Unidas (ONU), foi adotada em Genebra, em 27 de junho de
1989, e entrou em vigor internacional em 5 de setembro de 1991 e sob Decreto Nº 5.051, de 19 de abril de 2004
foi promulgada no Brasil (BRASIL, 2004).

867
tenha havido encomenda sob a lei dos cânones copiados de gravuras europeias, ainda assim, o
autor é aquele que entalhou a obra.

A tradição escultórica do entalhe em marfim


A prática de entalhar esculturas em marfim tem origem longínqua. Muitos povos de
distintas culturas e de diversos tempos históricos esculpiram sobre o material, mas
erroneamente atribui-se às presas do elefante a única fonte para tal ofício. O marfim advém
das presas dos mais variados animais: morsas, hipopótamos, narvais, rinocerontes, calaus e
das formas fossilizada dos mamutes e mastodontes siberianos, mas os marfins derivados dos
elefantes indianos e africanos são considerados os mais valiosos, denominados de “ouro
branco” num contexto histórico mais próximo ao da atualidade em função de sua beleza
causada provavelmente pela harmoniosa conjunção de textura, brilho e cor. Mas outros
materiais orgânicos de estrutura similares são reconhecidos nos usos dessa talha como as
presas de javali africano, dentes de cachalote, de orcas (SECRETARIADO CITES, sem data).
No Brasil há registros da presença de materiais orgânicos em diversos artefatos musicais
indígenas (etnias Tiriyó, Tukuna, Tukano, Kaxuyana) como os ossos de diversas aves, unha
de caranguejo, osso de veado, carapaça de tracajá; fêmur de onça (DUARTE; SILVA, 2014).
Não podemos desconsiderar também os marfins vegetais (jarina ou noz de tagua) advindos de
sementes de uma palmeira chamada Phytelephas aequatorialis e os marfins sintéticos a partir
de materiais como o plástico, resina, poliester, caseína e celuloide.
O simples ofício manual em criar objetos de uso cotidiano ou popular, por motivos de
culto, devoção, ou por motivos utilitários tem sido alvo, ao longo do tempo, de omissões,
tanto por estudiosos da arte como pelo senso comum, pois o trabalho do entalhe é tido como
mera habilidade técnica não possuindo um valor intrínseco complexo, além da expertise.
Como bem salienta Marilena Chauí (2008), e conforme também ressalta Antunes (2011), a
grande influência dos nossos julgamentos a respeito da menor importância dada à técnica
podem ter sido originadas a partir do pensamento aristotélico.
Se examinarmos as ações humanas, veremos que a teoria das quatro causas leva a
uma distinção entre dois tipos de atividade: a atividade técnica (ou o que os gregos

868
chamavam de poiésis) e a atividade ética e política (ou o que os gregos chamavam
de práxis). A primeira é considerada uma rotina mecânica, em que um trabalhador é
uma causa eficiente que introduz uma forma numa matéria e fabrica um objeto para
alguém. A práxis, porém, é a atividade própria dos homens livres, dotados de razão
e de vontade para deliberar e escolher uma ação. Na práxis, o agente, a ação e a
finalidade são idênticos e dependem apenas da força interior ou mental daquele que
age. Por isso, a práxis (ética e política) é superior à poiésis (o trabalho) (CHAUÍ,
2008, p.11).
Contrariando qualquer pensamento que rebaixe tais objetos (utilitários, populares, de
culto e devoção) a uma categoria inferior quando pensados e comparados a objetos de arte7, e
sem desenvolver essa questão aqui, ou seja - o que é arte e o que não é - e suas concepções
moventes, é certo de que impregnado no contexto histórico, existe uma certa tecnologia que
não se desassocia de simbologias, significados e de uma estética própria.

O marfim chinês e japonês: tradição e contato com o mundo moderno


A translucidez, a dureza e as sutis tonalidades do marfim têm testado a
virtuosidade dos escultores desde tempos pré-históricos, e essa arte tem sido
reverenciada no Extremo Oriente há séculos (MALLALIEU, 1999, p.232).

O autor em que iremos nos apoiar nesta seção é Huon Mallalieu que em seu livro
História ilustrada das antiguidades (MALLALIEU, 1999, pp. 232-237) estabelece uma
divisão entre os marfins orientais, destacando os de origem chinesa e japonesa e os de origem
europeia que não iremos abordar neste texto.

Tradição Chinesa
Os cinco mil anos através dos quais se desenrola a história chinesa parecem quase
perderem-se no mito. O sistema de domínio e o registro de eventos dinásticos
representam uma espécie de rede sobre a qual a China tece a própria história
divulgando as suas expressões artísticas e culturais mais características. Na trama
das dinastias (de Shang 1500-1050 a.C a Sui 581 -618 d.C.), vai ganhando forma
uma arte prática e refinada, num intercâmbio constante e profícuo entre expressões

7
O termo ”arte”, sob a ótica do ocidente, remonta os conceitos elaborados pelos filósofos clássicos. E a arte
daquele tempo relacionava-se ao ofício e não a “obra de arte” em sua concepção moderna que possuía uma aura
e uma autoria. A arte começa a tomar corpo autônomo com o Renascimento. Um marcador dessa mudança de
pensamento para um estado de autonomia da arte foi a obra do historiador e arquiteto Giorgio Vasari (1511-
1574). As vidas dos mais excelentes pintores, escultores e arquitetos, 1550. E, dando a esta História da Arte o
contributo filosófico, Baungarten (1714-1762) arquiteta a Estética como uma ciência da sensível. Consultar
Medeiros (2012 e 2017).

869
da corte e expressões populares, sem ignorar o mundo exterior (VECCHIA, 2010,
p.7).

Os objetos feitos de marfim chinês, confeccionados a partir de presas de elefantes


nativos da China existiram até a sua extinção, no século VI a.C. Daí em diante, com a
finalidade de manter a tradição do uso do marfim foi necessária sua importação de outros
locais. Com os vestígios das influências do budismo na China e das inscrições muçulmanas
nos bronzes, edificações e esculturas chinesas, Mallalieu (1999) sublinha que a rota comercial
da matéria bruta “marfim” tenha vindo do extremo Oriente, Índia e Arábia.
Para o Mallalieu (1999), os marfins Chineses se destacam em três fases importantes:
os produzidos na Dinastia Ming (1368-1643); os produzidos durante o reinado do imperador
K’ang Hsi (1622-1722) e a produção em série de Cantão, pois “é justamente nessa época de
facto, que o território chinês, desde sempre o centro dos interesses comerciais e políticos do
Ocidente, torna-se objeto de intensas trocas comerciais com a concessão aos comerciantes
portugueses (1557) do território de Macau” (VECCHIA, 2010, p.75).
Na dinastia Ming (1368-1643) foram produzidas estatuetas de divindades e se
destacam “os oito imortais” (Figura 1) que eram:
[...] figuras lendárias que alcançaram a imortalidade por sua compreensão da
natureza e representam todas as condições da vida: masculino e feminino,
pobreza e riqueza, juventude e velhice, instrução e ignorância. Elas foram
adotadas pelo culto chinês do “caminho”: o taoísmo (MALLALIEU,1999, p.
232).

870
Figura 1: Imortal taoísta com flauta.

Fonte: Vecchia (2010, p.81). Autor desconhecido. Ca 1550-1644. Marfim. Museum of East Asian Art, Bath.

Sob o reinado de K’ang Hsi (1662-1722) foram reunidos artesãos habilidosos de toda
a parte do império para criar uma grande variedade de manufaturas, incluindo aí artefatos de
marfim para adornar os limites de seu palácio em Pequim, perdurando por mais de um século
essas atividades.
Finalmente, a produção em série, instaurada no século XIX em Cantão, para fins de
exportação, priorizou um alto grau de acabamento técnico e um detalhado figurativismo que
acabou deixando para trás a originalidade dos trabalhos iniciais (MALLALIEU, 1999).

Tradição japonesa

Terra por tradição criada pelos deuses, o Japão apresenta desde o início da sua
história características de destacada individualidade. Fé, arte e sociedade são
influenciadas pela força dos acontecimentos naturais que plasmam ainda hoje o
território e a arte japonesa reflecte esta realidade. A partir da primeira tradição
consolidada, a chamada Cultura Yayoi no século III a. C., o uso de materiais
naturais, a introdução da paisagem, o equilíbrio das manifestações artísticas, são

871
fruto de uma estética aplicada tanto às artes cultivadas como à vida quotidiana
(VECCHIA, 2010, p. 121).

O marfim japonês é assim organizado, por Mallalieu (1999), para fins de estudo:
esculturas pequenas de uso cotidiano; esculturas com as contaminações ocidentais.
Após o fim das esculturas de templos monumentais dos períodos Muromachi (1392-
1573) e Momoyama (1573-1615), os escultores se detiveram em confeccionar esculturas
menores de marfim, como nos netsuke (Figura 03) que eram objetos de uso cotidiano usados
para prender sagemono - objetos pendurados (MELLALIEU 1999, p. 235):

Figura 3: Rabbit in full moon shape

Fonte: Netsuke Online Research Center. Ivory Manju Netsuke 8.

No começo do século XVII até em 1853 o Japão isolou-se do resto do mundo em


razão da chegada da esquadra americana do comandante Perry (NUNES, 2012)9. Somente em
1868, com a deposição da dinastia militar governante, a restauração do Império é estabelecida
e há crescentes influências ocidentais. Nesse sentido os escultores de netsuke esforçaram-se
em produzir itens vendáveis que seriam direcionados aos visitantes estrangeiros. Os okimono

8
Kyoto School, Circa 18th Century, Signed: Okatomo D:1 1/2. “This is a good example of Manju netsuke as a
form and function which is typical Japanese style. Provenance: Ex. Bushell’s Collection” (NETSUKE ONLINE
RESEARCH CENTER, s/d, s/p). Disponível em http://netsukeonline.org/htm/antique_netsuke_rabbit.html.
Acesso em 30 jul. 2017.
9
“A contribuição do Bushidô de Nitobe na criação do estado moderno japonês. Segundo o autor “Com a
abertura dos portos japoneses em 1853, após a chegada da esquadra estadunidense liderada pelo comandante
Perry, ficou evidente que o Japão enfrentaria problemas com os novos paradigmas inseridos pelo contato com as
nações europeias” (NUNES, 2012, p.17-34).

872
(objetos em pé) que eram versões maiores dos netsuke foram itens produzidos para enfeites de
mesa, no entanto a qualidade era inferior em função do objetivo ser eminentemente comercial.
Com a proibição da exportação do marfim no final da década de 1980 este tipo de
escultura extinguiu-se.

O marfim africano: revisão bibliográfica e reflexões


Assim como nas tradições chinesa e japonesa, o continente africano tem a sua tradição
cultural específica, que é milenar. Também é fato que não é possível de generalizar o discurso
e resumir que no Continente Africano só existisse uma única tradição, isto é inconcebível.
Nesse contexto, diversas culturas coexistem, resistem e se enfrentam até hoje. Há na cultura
material dessas sociedades, uma sabedoria complexa e um sistema filosófico que transcende o
pensamento ocidental, pois não se enquadra nos parâmetros da ciência iluminista.
A escultura em marfim, também foi utilizada por diferentes grupos étnicos africanos, e
não poderia ser diferente, visto que a matéria prima, de forma geral, estava em seu território.
Ainda há certos esquecimentos sobre a atribuição de autoria a esses grupos ou será que
o poder colonial impediu que essa imaginária originária chegasse até o ocidente com a correta
autoria?
Atualmente há, a título de informe sobre o estado da arte dos marfins africanos, um
projeto em andamento10 na Universidade Federal de Minas Gerais e outro decorrente11que

10
A Produção, circulação e utilização de marfins africanos no espaço Atlântico entre os séculos XV e XIX foi o
título do projeto inicial que iniciou em 2013, fruto de parceria entre a Universidade Federal de Minas Gerais e a
Universidade de Lisboa (UL) sob coordenação dos professores Vanicléia Silva Santos (Departamento de História
da Universidade Federal de Minas Gerais) para a equipe brasileira e José da Silva Horta (Centro de História da
Universidade de Lisboa) para a equipe portuguesa. No ano de 2015, foi aprovado o projeto Marfins Africanos no
Mundo Atlântico – uma reavaliação do marfins luso-africanos. Projeto PTDC/EPHPAT/1810/2014. E, em 2016,
foi aprovado o projeto Marfins Africanos no Mundo Atlântico com unidades de investigação adicionais: ARTIS
– instituto de História da Arte da Universidade de Lisboa; LACICOR – Laboratório de Ciência da Conservação –
UFMG do Centro de Conservação e Restauração da Escola de Belas Artes da UFMG e Laboratório Hercules
(Universidade de Évora).
11
No âmbito desse projeto maior, outros se desenvolvem, como o projeto de pesquisa aprovado em 2014 e
coordenado pela professora Yacy Ara-Froner, intitulado: O Acervo Luso-afro-oriental no Brasil: pesquisa
introdutória nos acervos de Minas Gerais. Bem se vê, que mesmo que tais projetos sejam recentes, há um
esforço acadêmico de revisão desses marfins africanos no espaço Atlântico.

873
tem como objetivo a reavaliação dos marfins africanos no espaço atlântico. Conforme pontua
Santos (2017), coordenadora do lado brasileiro,
o projeto pretende inaugurar um novo campo de estudos no Brasil, a partir
de três aspectos: (1) reavaliar os conceitos para estudo dos marfins (o que
significa marfim africano, marfim luso-africano); (II) investigar a produção e
circulação de marfins e matérias-primas africanas esculpidas no mundo
Atlântico, entre os séculos XV e XIX; e (III) construir um banco de dados
sobre os marfins que chegaram ao Brasil colonial, de modo a identificar os
tipos de objetos de marfim que circularam no Brasil. Do lado Português, o
projeto tem semelhantes objetivos (SANTOS, 2017, p.7).

Mas vale a pena refletir sobre o que Santos (2017) ressalta:


Desde 1959, apenas o seguimento de “marfins luso-africanos” tem sido
objeto de estudo e interesse acadêmico, porque é considerado uma das
primeiras expressões artísticas e materiais da globalização moderna
justificava (e continua a justificar) o estudo deste segmento no contexto da
escultura em marfim Africano em geral. Além disso, este projeto baseia-se
em novos dados que estão sendo pesquisados em Portugal e no Brasil, o que
coloca ênfase na produção e circulação de marfins africanos do mundo
Atlântico ao longo de períodos muito maiores de tempo (SANTOS, 2017,
p.7, grifo nosso).

A tradição africana no cômputo da cultura material de estátuas, objetos cerimoniais,


tecelagem e cestaria, armaria e objetos diversos, como, cachimbos, pulseiras, polvarinhos,
terrinas, pentes, buzinas etc derivam de diferentes matrizes culturais, mas esses objetos não
têm, definitivamente, a finalidade de serem colocados à exposição para apreciação e deleite,
como é comum nas sociedades ocidentais. Para Salum (2005),
[...] cada objeto é apenas uma parte da manifestação estética a que pertence,
constituída por um conjunto de atitudes (gestos, palavras), danças e músicas.
Isso pode determinar as diferenças entre a arte de um grupo e de outro,
tendo-se em vista também o lugar e época ou período em que o objeto
estético-artístico era visto ou usado, de acordo com a sua função (SALUM,
2005, p. 6).

As sociedades de matrizes africanas utilizavam, e ainda utilizam cânones que se


voltam para o domínio do “outro mundo”, a saber, o da sua ancestralidade. A importância da
oralidade, do conhecimento transmitido de geração para geração pelos tradicionalistas – os

874
guardiões da tradição oral – é de grande importância para as sociedades africanas. Segundo
Mattos (2014), “alguns ofícios existentes nas sociedades africanas estão relacionados à
tradição oral, a um conhecimento sagrado, a serem revelado e transmitido para as futuras
gerações [...] e conclui “Os mestres que realizam essas atividades fazem-no ao mesmo tempo
em que entoam cantos ou palavras ritmadas e gestos que representam o ato da criação”
(MATTOS, 2014, p. 19).
Quando, na época das grandes navegações que ocorreram a partir do século XVI,
estendendo-se até o início do século XVII, os portugueses iniciam aquilo que chamariam de a
primeira globalização, um novo modelo de produção surge a partir da encomenda dirigida
aos artesãos das mais diversas localidades geográficas do processo colonizador. Para essa
constatação muitos autores relatam a importância das gravuras europeias que circulavam entre
os mercadores para tal atividade:
Na Costa do Marfim, na Serra Leoa e no Benim foram impressionantes as
criações em marfim, fazendo-se belas obras para exportação para a clientela
portuguesa, com motivos tirados das gravuras que então começavam a surgir
e também com heráldica portuguesa. Temos que destacar as fantásticas
trompas de caça, as píxides, os saleiros, as caixas, as colheres, tudo com
funcionalidades europeias, mas uma técnica local que é distinguível de sub-
região para sub-região. [...] São muito interessantes as pequenas imagens de
santos em marfim e os crucifixos, que se começaram a fazer logo no início
do século XVI (AGUIAR BRANCO, ROQUETTE, s/d, p. 10).

Apenas a título de exemplificação formal, sem a preocupação de adentrar em sua


simbologia e significados intrínsecos, duas esculturas de cariz tradicional africana são
apresentadas abaixo (Figuras 9 e 10). O primeiro exemplo trata-se de uma escultura em
marfim da região do Congo, e a segunda trata-se de uma máscara da Região da Nigéria:

875
Figura 9: Three Males

Fonte: Met Museum, 197812

Figura 10: Queen Mother Pendant Mask: Iyoba

Fonte: Met Museum, 197213

12
“Date: 18th–20th century. Geography: Democratic Republic of the Congo, Loango Region. Culture: Kongo
peoples. Medium: Ivory. Dimensions: H. 3 1/4 x W. 1 3/8 x D. 15/16 in. (8.3 x 3.5 x 2.4 cm). Classification:
Bone/Ivory-Sculpture. Credit Line: The Michael C. Rockefeller Memorial Collection, Gift of Nelson A.
Rockefeller, 1964. Accession Number: 1978.412.348”. Disponível em: <
http://www.metmuseum.org/toah/works-of-art/1978.412.348/>. Acesso em: 20 ago. 2017.
13
“Date: 16th century. Geography: Nigeria, Court of Benin. Culture: Edo peoples. Medium: Ivory, iron, copper
(?). Dimensions: H. 9 3/8 x W. 5 x D. 3 1/4 in. (23.8 x 12.7 x 8.3 cm). Classification: Bone/Ivory-Sculpture.
Credit Line: The Michael C. Rockefeller Memorial Collection, Gift of Nelson A. Rockefeller, 1972.Accession

876
Com esses exemplos é possível de se concluir que o traço identitário na talha do
marfim denuncia a sua autoria. É certo que em se tratando do Continente Africano é
necessário um minucioso e rigoroso estudo dos grupos étnicos das inúmeras sociedades
tradicionais, pois há diferenciação clara entre elas, em função dos usos, dos materiais
utilizados e de sua estética. Mas, como diz Salum (2005), há em comum entre esses povos um
pensamento voltado à ancestralidade e a uma filosofia de vida complexa:
Uma estátua não representa, normalmente, um Homem, mas um Ser
Humano integral, que tem uma parte física e espiritual - do passado e do
futuro. Tem, por isso, um lado sagrado, ligado às forças da Natureza e do
Universo. Uma máscara ou uma estátua concentram forças inerentes do
próprio material de que são constituídas, ou que comportam em seu interior
ou superfície, além de sua própria força estética. Elas não têm, portanto, uma
função meramente formal (SALUM, 2005, p. 7).

Para qualquer sociedade que possua uma cultura tradicional, as análises


exclusivamente formais ou estilísticas de sua cultura material serão descabidas e vazias. E
mesmo que peças sejam encomendadas a partir de modelos prontos, haverá, por parte dos
artífices estrangeiros, ao menos uma intenção de endereçamento às suas origens pelo respeito
à matéria e pelos seus traços identitários indissociáveis de suas técnicas e gostos.

Refletindo sobre os termos - Sino-Português, Nipo-Português e Luso-Africano


Estamos nos referindo nesse momento, aos marfins encomendados pelas sociedades
ocidentais aos povos orientais ou africanos. Como nesse artigo há referência somente aos três
grupos, é sobre esses que o pensamento elaborado será exemplificado.
Trazendo a atividade da encomenda para o nosso lugar atual, façamos uma pergunta:
se alguém fizer uma encomenda de um trabalho artesanal e pagar pelo serviço, quem será o
autor do artefato?
A Idade Moderna abriga na sua construção ideológica, social e política, vários
elementos que mudaram as relações comerciais entre os povos colonizadores e os

Number: 1978.412.323”. Disponível em: <http://www.metmuseum.org/art/collection/search/318622>. Acesso


em: 20 ago. 2017.

877
colonizados. O Capital, o Cristianismo - como ferramental de catequese, e a ocupação
territorial - pela força militar - são alguns acontecimentos que transformariam essas relações
culturais pelo contato entre sociedades.
Nesse âmbito, a autoria é uma questão que deve ser revista e reavaliada. O conceito de
autoria no pensamento ocidental, nasceu na Idade Moderna, com o iluminismo atribuindo ao
homem europeu o poder do saber absoluto e central. Os artistas renascentistas são os
primeiros a assinar suas telas, e Giorgio Vasari (1511-1574) em seus escritos sobre “As vidas
dos mais excelentes pintores, escultores e arquitetos, 1550” - inaugura a história dos artistas,
dando a estes um empoderamento.
Tendo em vista as necessidades de afirmação de autoria e de domínio estético, seja
pelos cânones ocidentais relativos aos estilos vigentes, primordialmente clássicos, e pelos
ditames do cristianismo, há pelas sociedades ocidentais uma grande demanda da encomenda
do exótico e do estrangeiro.
Surge nesse contexto a encomenda por dois vieses: do mecenato europeu local, a partir
de financiamento de obras pictóricas ou escultóricas a grandes nomes de artistas em voga que
atuaram sob o mando de mecenas em palácios e espaços cristãos e, as encomendas à artífices
estrangeiros sob a égide de gravuras (que já eram cópias).
Os gabinetes de curiosidade que desde o século XV existiram, demonstraram essa
necessidade de exibir o exótico como um troféu, um tributo à conquista ou um testemunho da
submissão.
Pensando sobre esse aspecto, a repetição dos termos Sino-Português, Nipo-Português e
Luso-Africano, seria ainda apropriado? E essa reavaliação não deve se encerrar nesse embate,
devemos refletir para os outros grupos de autoria conjunta não autorizadas pelos detentores
dos saberes tradicionais, como os marfins Hispano-Filipinos, os Indo-Portugueses, os
Cíngalo-Portugueses etc.

878
Considerações Finais
Com as grandes navegações que ocorreram a partir do século XVI, estendendo-se até
o início do século XVII, as encomendas de imagens cristãs são dirigidas aos povos em que a
colonização se estabeleceu, seja por conquista dos seus territórios, seja pelas feitorias
instaladas para a mercantilização de produtos diversos.
No que se referem às imagens sacras, do ponto de vista ocidental, ao serem
encomendadas às sociedades estrangeiras, possuidoras de outra concepção em relação à
divindade, há algumas possibilidades relativas à produção final: artefatos vazios de
significado por parte de quem as produziu e uma produção com imposição de significados
embutidos, disfarçados e presentes na imaginária criada.
Mas, para além, da resistência dessas sociedades, somente pela manipulação,
conhecimento técnico, interpretação das gravuras (que eram cópias) ou da transposição de
leitura do bidimensional para o tridimensional, é lícito afirmar que a autoria dessas peças é
Chinesa, Japonesa ou de grupos étnicos africanos. Devemos repensar, nesses casos a
denominação de autoria conjunta com àqueles que a encomendaram. Dar os créditos aos seus
artífices anônimos, ou às suas tradições, especificamente em se tratando das imagens sacras, é
reconhecer a grande contribuição dada pelas culturas estrangeiras às europeias. Uma
alternativa seria dar a autoria àqueles que comumente trabalhavam com essa materialidade e
dominavam a técnica do entalhe.
Há, portanto em todos os casos expostos, das culturas tradicionais, chinesa, japonesa e
dos grupos étnicos africanos, um fenômeno de transposição da cultura originária pelos
modelos impostos pelo mundo ocidental, que inegavelmente exerceram grande influência na
cultura material dessas sociedades e nos seus costumes tradicionais, mas, retirar a autoria
dessas encomendas é ainda assumir as relações de poder existentes em tempos passados.

879
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Isis de Melo Molinari Antunes (1966). Doutoranda do PPGArtes da Escola de Belas Artes - UFMG
(Preservação do Patrimônio Cultural) sob orientação da Prof.ª Drª Maria Regina Emery Quites e
coorientação da Profª Drª Yacy-Ara Froner. Atualmente é Professora lotada no Instituto de Ciências da
Arte (UFPA- FAV), e investigadora do projeto “Marfins Africanos no Mundo Atlântico: uma
reavaliação dos marfins luso-africanos”, do Centro de História da Universidade de Lisboa conveniado
à Universidade Federal de Minas Gerais, Departamento de História e Escola de Belas Artes. Tema
relacionados à escrita da tese: Estudos imagéticos de esculturas em marfim presentes em Museus de
Arte Sacra do Norte do país.

881
DIAGRAMAS DA SEGREGAÇÃO URBANA: O PATRIMÔNIO CULTURAL
COMO RECURSO
Francisco Sá Barreto*
Izabella Medeiros**

Resumo: É difícil pensar um replanejamento das grandes cidades dos países do Ocidente do
globo depois da Segunda Guerra Mundial sem que isso seja efetivamente atravessado por um
debate sobre uma necessária relação entre Estado (gestão) e Cultura. Esse imperativo seria
montado para atender a duas demandas estruturais: a) administrar as insatisfações ligadas à
injusta distribuição de capital nos ditos países desenvolvidos, refletidas, por sua vez, em
zoneamentos culturais nas crescentes metrópoles; e b) reforçar políticas de compensação pela
cultura, fortemente vigentes até os nossos dias. Como resultado direto do primeiro eixo, seria
possível falar em um sofisticado dispositivo disciplinar que se utiliza da memória cultural
como recurso para a ordem pública. O produto imediato do segundo eixo estaria configurado
nas políticas de financiamento cultural, responsáveis por alinhar os interesses dos gestores
com o produto cultural das organizações-produtores-objetos das políticas culturais. A cultura
como recurso não diz respeito somente à produção de divisas a partir da mercadoria cultural –
o que, está claro, não é pouco. Versa sobre a cultura como dispositivo de gestão. Notadamente
a partir dos anos 1990, em grandes cidades brasileiras, os programas de requalificação urbana
foram intensamente atravessados pela mercadoria cultural, sofisticando políticas de
segregação urbana a partir do dispositivo cultural. É exatamente o esforço para visualizar e
entender essa dinâmica que justifica este trabalho. Em primeiro lugar, por destacar a
centralidade da questão urbana para uma reflexão sobre desigualdades contemporâneas e
políticas de exclusão. Em um segundo lugar, por investigar o patrimônio, entendido como
mercadoria cultural, funcionando enquanto dispositivo de reforço das políticas de segregação
urbana na cidade brasileira contemporânea.

882
Delimitando uma questão

Em 4 de outubro de 2008, foram a leilão, em São Paulo, os antigos galpões da Rede


Ferroviária Federal (RFFSA), localizados no Cais José Estelita, em Recife. Naquela ocasião,
tratava-se de grande área “desocupada” pela empresa cujo funcionamento, no local, havia sido
encerrado em 1996. A perspectiva de venda do terreno, em tese, serviria para quitar os
passivos da empresa bem como dar andamento ao grande volume de investimentos na região,
o que já vinha ocorrendo desde a década anterior. Os jornais pernambucanos de grande
circulação à época – Jornal do Commercio, Diário de Pernambuco e Folha de Pernambuco –
veicularam, naqueles dias, notícias referentes à venda e aos projetos para a área. Eles
versavam sobre a necessidade de “recuperar”, “resgatar” o uso da área, “devolvendo” à cidade
um cais que deveria retornar às paisagens postais da cidade e, ao mesmo tempo, orientar o
Recife para o futuro.
As matérias referentes à venda e aos projetos para o terreno, contudo, não vinham nos
cadernos de economia ou política dos jornais. Quando não estavam nas capas, as reportagens,
recorrentemente, eram veiculadas nas seções de cultura e entretenimento, sugerindo um vasto
número de intervenções para verticalização e “reurbanização” da área como traço estratégico
para o desenvolvimento cultural da região e da cidade como um todo.
O leilão do terreno marcaria, para a área, a transferência da gestão de desenvolvimento
cultural do Estado para a iniciativa privada, que, para tanto, deveria pagar o lance mínimo de
R$ 55 milhões. O Projeto Recife e Olinda, em desenvolvimento desde o final dos anos 1990,
representava investimentos para intervenção em oito quilômetros de margem d’água entre as
cidades supracitadas. Na faixa, deveriam se distribuir, além de equipamentos “requalificados”
– tais como o próprio Porto do Recife, convertido estrategicamente em terminal náutico de
passageiros –, edificações residenciais de luxo e novos aparelhos de cultura, como, por
exemplo, os recém-inaugurados Paço do Frevo e Museu Cais do Sertão.
Os investimentos ainda previam, desde os anos 1990, a remoção da pequena população
remanescente do intenso empreendimento de gentrificação ao qual foi submetido o Bairro do

883
Recife durante aquela década, processo que culminou com o curioso tombamento do bairro
pelo IPHAN em 1998. A região que circunda a antiga Igreja do Pilar foi, naquela ocasião,
ainda mais isolada e teve aprofundada a sua invisibilidade no bairro, cuja população de
moradores além da comunidade é praticamente nula.
A ocasião do leilão do terreno da RFFSA deveria funcionar como marco para uma
política de gestão da cidade que ratifica a regulação enquanto parte do interesse de uma
iniciativa privada comprometida com um sentido sofisticado de desenvolvimento. Este
deveria ser fortemente vinculado ao reforço político-institucional de específicas identidades
culturais e ao estímulo do mercado do turismo global, tendência anotada já a partir dos anos
1970, mas com fôlego intensamente mais evidente a partir da década de 1990. Edifícios
destoantes da paisagem da região e voltados para as elites locais e investidores ratificariam,
portanto, importante virada nas políticas de planejamento e gestão da cidade de Recife no
século XXI.
De que maneiras, no entanto, grandes investimentos em edificações de luxo e forte
especulação imobiliária podem representar qualquer nível de desenvolvimento cultural? A
aporia sinaliza importante enigma do tempo. Ela diz respeito à sofisticação das políticas de
segregação urbana que, notadamente, a partir dos anos 1990, incluem a “requalificação” ao
rol de dispositivos de produção de uma nova experiência de cidade, cujo enclave fortificado
(CALDEIRA, 2000) não é mais aquele diante do qual habita a população “indesejável” das
grandes cidades. Um novo tipo de enclave que se confunde com a própria cidade – ou regiões
inteiras dela –, da qual parte significativa não toma qualquer parte.
Nesse sentido, edifícios de luxo produzem desenvolvimento em movimento semelhante
ao que poderíamos chamar de “dubaização”, mas isso ainda diz pouco, haja vista que a
estética pastiche de Dubai se esforça para produzi-la enquanto lugar de todos os lugares e, ao
mesmo tempo, lugar nenhum. Uma nova fase para a gentrificação em cidades como Recife
não diz respeito somente à reconstrução de zonas “degradadas” da cidade e seus fins
especulativos e voltados a grandes estímulos ao mercado imobiliário, mas a um discurso de
ganhos culturais fortemente vinculado ao empreendimento (LEITE, 2007). Isso explica o

884
Projeto Recife Olinda como um programa para páginas de cultura dos jornais, razão para um
discurso orgulhoso sobre a cidade, cuja complexa pauta é uma simbiose entre tradição e
modernidade, identidade e desenvolvimento enquanto marcadores para a Recife do século
XXI.
Dois importantes sentidos de cultura como dispositivo são mobilizados para tanto
(YUDICE, 2004). Em primeiro lugar, a gestão do Estado sobre a memória cultural remonta
aos esforços desenvolvidos pelas grandes cidades globais a fim de administrar os traumas
políticos produzidos pelas duas grandes guerras do século XX e o colapso de um modelo de
colonialismo. Gerir a memória cultural configurou-se questão central para centros
cosmopolitas comprometidos com uma economia dos lugares, haja vista as complexas formas
que essas grandes cidades tomaram depois das políticas de reconhecimento e as imigrações
pós-45. A cidade em que todos devem ter seus lugares passou a ser a cidade em que os
espaços calculados de poder – ou mesmo as paisagens de poder de Zukin (2000) – traduziram
lugares diagramados para todos.
Em segundo lugar, mas não menos importante, trata-se da compreensão de cultura
enquanto recurso econômico, linguagem para novos mercados, em um contexto de colapso de
um sem-número de empreendimentos em setores mais tradicionais. Notadamente com a queda
do Muro de Berlim, grandes investimentos no mercado do consumo cultural foram feitos,
como veremos mais adiante, para viabilizar novos usos da tradição e a explosão do turismo
global. Em Recife, é exemplar o conjunto de intervenções às quais as regiões centrais da
cidade foram (e são) submetidas para se adaptar às demandas do tempo, fundamentalmente o
conjunto de investimentos do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), por meio do
programa Monumenta, que observou grandes cidades brasileiras enquanto importantes objetos
culturais comercializáveis.
Nos termos de Hall (2003), o multiculturalismo é o mais destacado dispositivo para
gestão do cruzamento desses dois sentidos contemporâneos de cultura. Trata-se das políticas
de Estado para uma economia de nações multiculturais – essas ainda mais complexas a partir
de uma nova geopolítica dos lugares no mundo contemporâneo. O multiculturalismo – ou a

885
lógica cultural do capitalismo multinacional (ŽIŽEK, 2005) – converte a dimensão étnica da
cultura em bem-acabado produto ora dos equipamentos culturais que compartilham a gestão
do Estado e da iniciativa privada, ora das próprias políticas de planejamento e gestão urbanas
a partir das quais toda tensão social precisa e deve ser transformada em peculiaridade da
cultura local. Marcadores das complexas desigualdades contemporâneas, portanto, a partir dos
anos 1970, vão sendo emulados como parte da riqueza cultural do lugar, objetos (quase)
museológicos de uma mercadoria cultural economicamente extremamente bem-sucedida.
É o que se pode observar, por exemplo, com o projeto Nordestes Emergentes, da
Fundação Joaquim Nabuco (Pernambuco), mais especificamente desenvolvido pelo Museu do
Homem do Nordeste (MUHNE), paradigmaticamente resumido pela passagem do Jornal do
Commercio do dia 13 de outubro de 2013, matéria intitulada “Pesquisa da Fundaj [sic]
apresenta um Nordeste Emergente”:
Na orla de Fortaleza o Nordeste parece Miami. Fortalezas verticais
inundam a beira mar. Espigões de vidros reluzentes espelham o desejo
de exibir uma riqueza emergente. A antropóloga carioca Ciema Mello
batizou de “miamização” esse fenômeno de transformações no estilo
de vida na capital cearense. O cenário é parte de um Nordeste que se
opõe aos estereótipos de uma região engessada, há séculos, na
condição de “primo pobre da nacionalidade”. Com proposta de
desfazer esse mito, a Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) realizou a
pesquisa Nordestes Emergentes.

A “miamização” destacada na fala da pesquisadora não reproduz a crítica recorrente a


um tipo de esvaziamento da cidade contemporânea. Não desejamos diminuir a cidade de
Miami enquanto importante traço de um sem-número de tensões que exemplificam bem as
questões mais importantes para a tomada da cidade como cosmo político contemporâneo. Na
matéria do jornal em questão, contudo, é a glorificação de um sentido de progresso que está
em questão. Comumente representada como mais latina cidade estadunidense, Miami parece
ser descrita como a mais bem-sucedida cidade brasileira, imagem que ganharia muita força
notadamente a partir dos movimentos de rua de 2013 (o ano da reportagem não parece ser um
mero acaso). Complexidade cultural, riqueza e gestão mista (Estado e mercado) funcionam

886
como razões fundamentais para tal compreensão, descartando, para tanto, as cada vez mais
complexas camuflagens das tensões sociais estruturantes de cidades complexas, tais como a
própria Miami – uma encruzilhada de razões culturais e políticas de segregação que produzem
como americanos “menores” o estrato latino da população.
Não por acaso, os investimentos giram em torno da produção de uma sofisticada
mercadoria cultural que tem o turismo global como mais destacado dispositivo, tal como
podemos observar em mais um trecho da reportagem:
A empresária Ivana Bezerra de Menezes representa essa nova geração.
Filha de Ivan Bezerra de Menezes (dono da Têxtil Bezerra de
Menezes, uma das maiores companhias da América Latina), ela
migrou para a indústria do turismo. O grupo investiu cerca de R$ 10
milhões na construção do Hotel Sonata de Iracema. “Esse era um
desejo do meu pai, que realizei. O hotel completou 8 anos e vamos
investir em outros dois, que devem entrar em operação até 2016”,
adianta.

Nesse caso específico, outro elemento paradigmático nos é apresentado: a passagem da


produção de divisas a partir da industrialização – e do poder político vinculado à complexa
tradução do senhor de engenho colonial em usineiro “republicano” – para o reconhecimento
do mercado do turismo global como objeto estratégico para a cidade contemporânea. A
mercadoria em questão é o próprio objeto da pesquisa-exposição: o Nordeste Emergente. A
conversão do interesse na produção industrial em desenvolvimento cultural é, ainda, pautada
na mudança de gerações: a filha que supera o pai a partir da gestão de uma mercadoria mais
complexa e promissora que a oferecida pela indústria têxtil.
A seleção por negação estrutura o projeto, que obviamente exclui da ideia de
emergência a superação da razão indolente que pauta a urgência do conceito (SANTOS,
2010). Nenhuma emergência é efetivamente apresentada, de modo que as tensões, as políticas
de segregação urbana, a violência contemporânea e seus diversos males são, todos eles,
elementos excluídos dessa “representação de ruptura” produzida pelo trabalho em questão.
Superar os males que estão estruturalmente ligados ao conceito de Nordeste, segundo a
perspectiva do projeto, seria pautar uma outra imagem de região, tomando a disposição para o

887
desenvolvimento como mais importante indicador. O conjunto de fotografias produzido por
duplas de fotógrafos em cada um dos estados da região deveria traduzir uma paisagem
política diferente daquela projetada como traço identitário regular para os nove estados
brasileiros em questão. A alternativa a uma tradição de pobreza e aridez, contudo,
efetivamente se daria a partir de uma leitura bem específica de desenvolvimento que, não por
acaso, tinha na verticalização das principais cidades e na monumentalização do progresso
econômico seus mais destacados ícones gráficos. Nordestes emergentes – em o “abissal”
desacordo com a noção de emergência em Boaventura de Sousa Santos – são, portanto, um
renovado produto de um novo milagre brasileiro: crescimento econômico entendido como
desenvolvimento cultural.
Nesse estágio, não parece difícil compreender os sentidos de cidade atribuídos pelas
políticas de Estado no início do século XXI. Apresentar um conjunto de edifícios de luxo
como eixo em prol de uma virada no planejamento urbano para a cidade do novo século não
nos deve causar estranhamentos. Discutir esse movimento a partir de iniciativas que se
apresentaram como políticas de cultura para a cidade do Recife no início do século XXI é,
assim, principal objetivo deste trabalho. O exercício adiante se dividirá em três novas partes:
a) a compreensão política da ambivalência da cultura como recurso, seção onde pretendemos
desenvolver a dupla face da cultura enquanto dispositivo político contemporâneo; b) a
gentrificação como linguagem de produção de cidade e sua tradução em Recife nos anos 1990
e 2000; e c) as políticas de cultura na cidade do Recife no século XXI como traço de um
mercado cultural que tem a cidade como principal objeto.

A cultura como recurso

“O patrimônio compensa”. Parece ser essa a máxima de dupla face que orienta as
políticas de Estado para gestão urbana de grandes cidades a partir dos anos 1970. Esse
empreendimento traduz movimentos que se produziram notadamente no pós-1945 para darem
conta de uma série de compensações pela guerra extremamente violenta que o mundo

888
ocidental tinha conhecido nos anos anteriores. O desenvolvimento de novas políticas e de
fortes ajustes econômicos transformou planos/modelos de gestão política em normativas para
um mundo que, de um lado, deveria evitar, a qualquer custo, um novo evento de efeitos
catastróficos como uma guerra mundial sem que, de outro lado, a população esquecesse os
maiores horrores da experiência contemporânea da guerra: as mortes, o campo de
concentração, o Holocausto (HUYSSEN, 2000; AGAMBEN, 2002, 2004). Essas políticas de
gestão (política e econômica) deveriam ser acompanhadas por um novo projeto de Estado-
Nação pretensamente forte em suas economias, como seus antecessores, e, ao mesmo tempo,
disposto para lidar com o diferente como problema político contemporâneo fundamental. A
emergência das políticas de reconhecimento está diretamente ligada a esse desafio. Esse
exercício somente foi possível porque aquilo que pretendeu ser o nascimento de um novo
paradigma político seria traduzido por forte convergência ao campo da cultura.
Nesse cenário, os equipamentos culturais ocupariam lugar de destaque para realização
de uma tripla tarefa. Em primeiro lugar, seriam o mais destacado recurso discursivo para uma
inclusão administrada do diferente. O desenvolvimento de novas tipologias de museus que,
por um lado, seriam apresentadas como importante solução política para uma instituição em
progressivo desgaste produziu, por outro lado, importante sofisticação das retóricas de
inclusão dos novos Estados-Nação, todos mobilizados pelo desafio de uma “nova política”,
construção de zonas de reconhecimento da diferença cultural e a realização material de uma
fala para/do subalterno, indicando um sorridente “sim” como resposta à questão-problema de
Spivak (2010). A cultura demonstrou ser, dessa maneira, importante recurso para um novo
modelo de gestão urbana, tendo, como fundamento, o imperativo da inclusão do outro.
Em segundo lugar, os equipamentos culturais traduzem a cultura como recurso à medida
que compreendemos a noção de recurso enquanto dispositivo de gestão estatal. Como política
de governo, o elemento cultural precisaria ser materializado em aparelhos que transformassem
a indisposição para lidar com o Outro em memoriais, centros culturais, monumentos
dedicados à memória de um tempo que não deveria ser esquecida. Como Huyssen (2014)
destacou, a emergência de uma cultura do passado-presente está intimamente ligada a uma

889
força disciplinar que ordena funcionamentos políticos a partir da gestão de memória e
arquivos do social. O resultado desse empreendimento é diverso. O destaque que nos
interessa, aqui, é uma tomada instrumental da cultura pelo dispositivo político-institucional.
Por fim, em terceiro lugar, os usos políticos dos novos aparelhos culturais do pós-guerra
reforçam a cultura enquanto importante mercadoria, objeto de interesse de mercados que
estenderam à cultura seus campos de atuação, fazendo de chavões, como “economia cultural”
ou “desenvolvimento cultural”, elementos presentes nos discursos de políticos ou
empresários, todos “comprometidos” com o recurso à cultura como paradigma para
administração do Estado e para a boa gestão dos mercados. Esse movimento torna possível a
conclusão de que “... [n]a nova fase do crescimento econômico, a economia cultural, também
é uma economia política” (YÚDICE, 2004, p.35).
A complexa junção entre uma tomada político-institucional da cultura – cultura como
problema de Estado/governo – e uma inevitável economia da cultura – entendendo a noção de
economia, nesse estágio, em um sentido estrito – produz o jargão presente em dez entre dez
relatórios institucionais elaborados por equipes representantes dos gestores de aparelhos de
cultura – museus, centros culturais, cinemas, parques temáticos, galerias, memoriais etc. –: a
economia criativa.
Produto de políticas multiculturais e do uso instrumental da cultura, a economia criativa
atende um sem-número de editais e é a pauta do dia dos aparelhos de cultura que se mantêm a
partir de linhas de financiamento do Estado ou de instituições privadas que investem em
cultura como recurso para ampliação de mercados ou isenção fiscal. Nesse cenário, não é
difícil observar a interdependência entre as lógicas de gentrificação (LEITE, 2007) – projetos
de “requalificação” urbana intensamente ligados a um tipo sofisticado de exclusão – e uma
economia criativa como principal expoente capitalista do mundo contemporâneo.
Se Yúdice destaca essa característica para demonstrar de que maneiras a cultura deveria
ser mobilizada como conteúdo para uma sociedade em rede, nós podemos afirmar, além disso,
que o principal produto desse empreendimento é uma noção de cidadania fortemente
vinculada às políticas de acesso (via) cultural tão recorrentes nos produtos adjetivados com a

890
alcunha de multiculturais (HALL, 2003). A simbiose contemporânea entre cultura, política e
economia produziu a cidade como mais sofisticado equipamento cultural e, por isso, também
seu principal palco para as organizações de resistência.
A tríade foucaultiana (2008) de segurança, território e população, nesse contexto,
descreve bem os desafios postulados para o nosso tempo: entender os mecanismos que, a
partir da gestão política da cultura (segurança), estabilizam o espírito urbano (população) e se
materializam nas comunidades a partir do nascimento dos direitos culturais (território).
Nesse cenário, até mesmo os discursos de resistência, tais como os dos Movimentos
Sociais ou mesmo daqueles projetados como Novíssimos Movimentos Sociais –
recorrentemente ligados aos recentes levantes globais contra formas específicas do
capitalismo – incorrem no risco permanente de um tipo sofisticado de “adesionismo” político
bem constituído, por excelência, em instituições tais como o museu.
É o que ocorre, a título de exemplo, com o Movimento dos Sem Terra (MST),
transformado em objeto na exposição de longa duração do Museu do Homem do Nordeste,
em Recife. Nesse caso específico, o movimento é apresentado a partir de tomada estética que
o interdita completamente enquanto movimento, registrando-o apenas como objeto museal
despido de sua agenda política. No mesmo museu, o charme crítico – mas apenas isso –
também está presente em uma lápide cujo texto inscrito é maravilhosamente ambíguo: “Aqui
jaz nosso protesto contra todas as arbitrariedades da história!”. Não é o caso, neste trabalho,
de investigar o campo semântico do verbo “jazer”, mas sua compreensão mais corriqueira já é
suficiente para crítica que também não cabe aqui. Jazer é descansar em paz. A lápide gostaria
de dizer que descansam em paz ali todos os protestos contra as arbitrariedades a história?
Provavelmente não, mas essa passagem bem sugere o recurso da cultura como produto que
deve dar retornos políticos e econômicos para o social, sem os quais, por certo, sequer precisa
ser considerada cultura.
Se esse movimento de tomada política de uma economia da cultura pode ser observado
como programa de Estado fundamentalmente na experiência do pós-guerra – ainda que no
Brasil, possivelmente, esse recuo remonte aos anos 1930, quando da criação do SPHAN e do

891
grande esforço para a consolidação de um panorama de identidade nacional –, é bem nítido
que ele ganha cifras intensamente novas com a queda do Muro de Berlim, em 1989. As
políticas para o registro e a grande ampliação do número de patrimônios materiais mundiais
são paradigmáticas para essa compreensão.
É bem sabido o quanto o dispositivo patrimonial serviu à consolidação das políticas de
afirmação do poder do Estado (LEITE, 2007; YÚDICE & MILLER, 2004; PEIXOTO, 2009)
e o caso brasileiro demonstra esse movimento com grande clareza no recorte citado acima. A
criação da UNESCO (braço cultural da ONU) e do ICOM (Conselho Internacional de
Museus) sinaliza importante movimento para uma nova burocratização do patrimônio,
circunscrevendo-o economicamente e convertendo-o em objeto de central interesse aos
Estados do G7. A grande expansão do mercado do turismo cultural está intimamente
relacionada a esse movimento. Basta observar, segundo dados da própria UNESCO, que o
número de cidades patrimônio-mundial na Europa sobe de 66 em 1995 para 133 em 2008, ou
55,7% do total. No mesmo período, na América do Sul, Central e Caribe, às 19 cidades em
1995 juntaram-se apenas outras 10, ou 12,1% do total (PEIXOTO, 2010).
Produzir patrimônios mundiais passou a significar estimular o mercado do turismo
global. Ainda com dados de Peixoto, é possível observar que a Itália, em 1990, possuía 6 bens
inscritos na lista do patrimônio mundial. Em 2008, esse número é de 43 bens, o que levou
aquele país a sair de 18º colocado na lista em 1990 para 1º em 2008, garantindo-lhe a 5ª
colocação na hierarquia dos destinos turísticos globais. No mesmo período, a China passou de
7 a 37 o número de patrimônios na lista e isso representou elemento significativo no salto de
12º para 4º na hierarquia dos destinos turísticos. A Índia, por sua vez, ocupava a 1ª colocação
na lista de patrimônios mundiais em 1990, com 19 bens registrados. Em 2008, esse número
subiu apenas para 27, e o país passou a ocupar a 7ª colocação na lista. O Brasil, entre 2001 e
2008, não registrou nenhum novo bem na lista, passando de 7 em 1990 a 17 em 2008, o que
lhe rendeu apenas a 41ª colocação na hierarquia dos destinos turísticos globais. Basta observar
que a França recebeu 81,9 milhões de turistas em 2008, enquanto, no mesmo ano, o Brasil
recebeu 5 milhões.

892
Este fato permite-nos afirmar que não nos encontramos apenas perante
uma corrida ao estatuto de patrimônio mundial (...). Encontramo-nos,
na verdade, perante uma corrida que se intensificou fortemente à
medida que as cidades dos países que dispõem de conjuntos
patrimoniais mais valiosos ou mais valorizados pela indústria turística,
animadas pela retórica da concorrência e pela densificação dos fluxos
turísticos, se empenharam profundamente na transformação de sua
identidade simbólica (PEIXOTO, 2009, p.10).

Desprezar a gestão do patrimônio como traço de uma economia global é, para as


cidades que pretenderam atingir patamares significativos de crescimento econômico,
impossível. Nesse sentido, é absolutamente plausível que todo o discurso sobre cultura e
turismo das gestões institucionais dessas cidades assuma como elemento estrutural uma
narrativa do marketing do turismo cultural urbano, tendo no patrimônio uma mercadoria que
precisa ser valorizada e não exatamente preservada.
Os números de 2017 da UNESCO referentes a registros de patrimônio cultural e natural
por regiões do globo são bem emblemáticos dessa conclusão. Segundo eles, a Europa e
América do Norte – com um total de 50 países inscritos – detêm 498 bens registrados
(culturais ou naturais), o que representa 47% do total de registros. Os 18 países árabes na lista
detêm apenas 8% do total de bens (81 registros). Toda a Ásia e Oceania possuem 246
registros, ou 23% do total, com 36 países inscritos. A América Latina coube 13% do total,
com 137 registros e 28 países na lista. Os percentuais se mantêm basicamente os mesmos nos
últimos 7 anos, mesmo considerando que a China tenha investido grandes montantes em
novos registros. Ainda segundo esses dados, dos 193 membros da ONU, 28 países não têm
qualquer registro na lista dos patrimônios mundiais. Os demais 165 membros possuem um
total de 1052 bens registrados, dos quais 249 (23,6%) estão em países do G8. Portanto, 8
países administram quase um quarto dos bens culturais/naturais registrados como patrimônios
mundiais. Os indicadores sugerem o poder econômico fortemente vinculado ao registro de
bens culturais que, por sua vez, exercem importante função nas gestões das grandes cidades
dos principais países do globo.

893
A discussão fica ainda mais interessante quando levamos em consideração os registros
de patrimônios mundiais imateriais, categoria posteriormente criada para dar conta de uma
política de registros que, ora reforçaria o caráter étnico dos bens, ora atingira países ou regiões
que não estariam “habilitados” à primeira categoria de registro. A tese do patrimônio como
compensação ganha força quando quatro dos oito países membros do G8 sequer são
signatários da convenção de 2003, quando 127 países assinaram a lista. Entre os registros,
França (5), Itália (2) e Rússia (2) apresentam números desprezíveis diante de suas listas de
patrimônios mundiais materiais. Na lista de intangíveis, Ásia e Oceania detêm 44,4% dos
registros, enquanto Europa e América do Norte, apenas 12,9%. “As maiores potências
mundiais ocidentais, aparentemente, não têm interesse na preservação de tradições orais,
práticas, representações, expressões e conhecimentos diversos (PEIXOTO, 2009, p.18), o que,
novamente, sugere um uso político-econômico da cultura enquanto importante recurso para
produzir experiência de vida e consumo coletivos em grandes cidades globais, tendo o
mercado do turismo global como mais importante parâmetro. Nesse estágio, retornamos à
máxima que abre esta seção: o patrimônio compensa. Ele fica ainda mais complexo quando
cruzado pelas políticas de “requalificação” urbana numa cidade como Recife durante os anos
1990 e, fundamentalmente, a partir dos anos 2000, objeto de nosso interesse na seção que
segue.

A gentrificação como dispositivo de produção de cidade

A história do adensamento populacional naquelas que viriam a ser as grandes cidades


brasileiras é, basicamente, uma história do século XX. Até 1872, apenas 5,9% da população
vivia nas cidades. Em 1900, na virada de século, esse percentual era de 9,4 (SANTOS, 2013,
p.22). Em 2010, esse número já era de 84,3%. Estima-se que, em 2017, estejamos próximos
dos 90% de população urbana no Brasil. Esses dados facilitam algumas conclusões.
A primeira delas é a de que a história da urbanização brasileira está fortemente ligada à
tradição colonial. Milton Santos (2013) entende esse traço como indicativo de um país gerido

894
por hábitos agrários, que efetivamente só superou a herança da tradição agrícola com a
experiência da vida urbana do século XX. Se, poucos concentrados na produção agrícola –
extremamente relevante ainda em nossos dias –, deslocamos o foco de observação para o
léxico do colonial, podemos inferir uma formação das grandes cidades brasileiras
intensamente pautada no traço da experiência política colonial em complexa atualização,
traduzida nos dispositivos de segregação urbana ao longo do século XX e início do XXI.
A cronologia de Teresa Caldeira (2000) para tais dispositivos é um forte indicativo
disso. Segundo a antropóloga, entre 1890 e 1940, a urbanização da cidade de São Paulo
descreve lugares compartilhados por moradias de populações de baixa renda e de grupos de
elite. Entre 1940 e 1980, essa característica foi sendo radicalmente transformada por uma
forte periferização das moradias populares, o que marcou geograficamente uma óbvia cisão
entre zonas ricas e pobres das grandes cidades – São Paulo, no caso da análise de Caldeira.
Por fim, entre 1980 e 2000, segundo a mesma divisão, observamos o nascimento dos enclaves
fortificados como novo paradigma urbano para a maior cidade do país, modelo facilmente
visualizável em cidades como Rio de Janeiro, Salvador ou Recife.
Nos três recortes em questão, as políticas de segregação urbana foram sendo
sofisticadas por uma narrativa do crime como razão, ao menos imaginária, fundamental para a
apartação das populações e progressiva elaboração de políticas agressivas de segurança que
visavam garantir a distinção entre as elites e as classes baixas nas grandes cidades. O
argumento de Caldeira é de que o crime é a razão formal para uma complexa política de
distinção que não estaria simplesmente traduzida no letramento, mas no acesso ao consumo
de bens específicos às classes.
Dessa forma, a tradução para o meio urbano elaborada por Freyre do protótipo da
sociedade brasileira – o par simbiótico estruturante da Casa Grande e Senzala convertido nos
citadinos Sobrados e Mocambos – pauta um modelo de urbanização que não pode ser
simplesmente resumido pela influência da cultura agrícola. Bem além disso, podemos
observar ao longo do século XX um grande esforço para consolidar um projeto colonial de
sociedade, até então irrelevante para o empreendimento de urbanização – como afirmamos,

895
restrito, no Brasil, basicamente ao século XX –, que tinha a conservação da simbiose entre
senhores e escravos como motor das novas experiências urbanas.
Já em 1902 é possível visualizar tal empreendimento já no discurso de posse do
presidente Rodrigues Alves, quando afirmou que seu simples plano de governo estava quase
que absolutamente restrito à reestruturação da zona portuária do Rio de Janeiro e ao
saneamento daquela cidade, bem como aos eventos que se seguiram à realização política de
tal empreendimento, descritos paradigmaticamente como a Revolta da Vacina (1904). Nesse
contexto, a lei da vacinação antivariólica obrigatória é apenas um elemento parcial – não
pouco importante, haja vista que descreve a gestão da vida pelo Estado, uma peça brilhante da
biopolítica como dispositivo urbanizante – do grande empreendimento de “requalificação” e
“reabilitação” de espaços na capital da República, que visavam, fundamentalmente: a)
adequar à cidade à lógica da eficiência mercantil que caracterizaria os governos paulistas na
primeira experiência republicana; b) levar a cabo um complexo empreendimento higienista,
seguindo o modelo haussmaniano, responsável por intensa periferização e formação das
grandes favelas da cidade, não por acaso habitadas majoritariamente por população negra,
advinda da mal (ou seria melhor “não”) finalizada sociedade colonial escravista.
Na divisão cronológica de Caldeira, a passagem do século XIX ao XX marca
exatamente os primeiros esforços para a construção de marcos regulatórios urbanos,
dispositivos suficientes para converter uma ocupação quase espontânea dos espaços em
lugares políticos estratégicos que precisavam ser objeto de “gestão cuidadosa” desde então.
Não por acaso, a distribuição das populações na região de centro de São Paulo passa a
obedecer a um empreendimento de verticalização e de sua exclusividade aos grupos de elite.
Em Recife, as gestões interventoras do Estado Novo, tanto no governo estadual quanto
municipal, reforçam o mesmo objetivo, com destaque para a criação da Liga Social Contra os
Mocambos, organização apoiada pelos governos de Agamenon Magalhães (no estado) e
Novais Filho (na prefeitura), comprometida com a “reabilitação” de espaços da cidade, que
possuía, em 1942, mocambos como 66% de suas edificações (PONTUAL, 2001). Que
espaços precisavam ser reabilitados? Como é possível investir em um planejamento urbano

896
que considera dois terços de edificações na cidade como zonas de degradação? “A prática da
reabilitação urbana é uma prática ideológica” (PEIXOTO, 2009, p.49). Essa conclusão faz ser
ainda mais complexa a cronologia de Caldeira quando tomamos como referências as soluções
políticas para continuidade do processo no início do século XXI.
Se, nas duas últimas décadas do século XX, a mancha de ocupação das zonas
ampliadas de centro da cidade significou a produção do enclave fortificado (edifício de luxo,
protegido da violência urbana) como linguagem urbana, já parece claro que ele é insuficiente
para compreender um empreendimento de desenvolvimento cultural que confunde zonas
inteiras da cidade com a noção de enclaves.
A gentrificação produz a cidade como enclave. No contexto de sua realização –
processo de, ao menos, duas etapas paradigmáticas –, as políticas de isolamento populacional
se confundem com a própria cidade, fazendo do dispositivo patrimonial o principal recurso,
como já visualizado nos anos 1930 e 1940, mas potencializado por uma empresa cultural, cuja
mercadoria, observamos na seção anterior, é extremamente lucrativa e politicamente eficiente.
Essa compreensão é o importante ponto de partida para a leitura a respeito da atuação do
programa Monumenta para a “revitalização” de centros históricos de grandes cidades
brasileiras na primeira década do século XXI.
O programa foi uma iniciativa do Ministério da Cultura com financiamento do BID
(Banco Interamericano de Desenvolvimento), que visava recuperar centros históricos de
algumas das principais cidades brasileiras – atuando em 25 cidades. O IPHAN seria a
instituição responsável pela regulação técnica do processo, produzindo pareceres para o que
devia, ou não, ser objeto das políticas de requalificação. Isso já parece ser suficientemente
complexo, como podemos observar na crítica ao conceito em Paulo Peixoto:
A extensa normatividade que tem suscitado o uso intenso do termo
nas operações de intervenção urbana e, sobretudo, a filosofia
patrimonial que a anima, conferem à reabilitação um sentido que a
liga intimamente à nostalgia de sociabilidades de tempos e de espaços
perdidos. Ao mesmo tempo, apoiada na ideia de requalificação
urbana, ela parece transportar e fazer-se transportar por inusitado
desejo de transformação da realidade no sentido de configurar um

897
futuro promissor. Balançando entre a paixão pelo passado, o
desencanto pelo presente e a confiança no futuro, a reabilitação e a
requalificação urbanas têm estado sujeitas a contingências que as
colocam entre ensejos de um preservacionismo rígido e ambições de
execução de uma política de tábua rasa (2009, p.49).

O caso recifense é, contudo, ainda mais paradigmático, haja vista o conjunto de


intervenções às quais tinha sido submetido o Bairro do Recife na virada do século XIX para o
XX. O seminal trabalho de Rogério Proença Leite (2007) já apresenta com grande riqueza
documental um volume considerável de dados para analisar a questão. Desse conjunto,
precisamos destacar alguns elementos.
O primeiro deles diz respeito ao processo de tombamento do Bairro do Recife,
concluído em 1998, e que tinha como pauta central a adequação da cidade ao programa
financiado pelo BID. Naquela ocasião, o principal imbróglio em questão residia no fato de o
bairro não guardar características de uma arquitetura primitiva – seguindo o modelo Ouro
Preto, referência técnica para o IPHAN –, nem exatamente traduzir o modernismo
arquitetônico brasileiro. Ao contrário disso, representava o ecletismo que estava fora dos
programas de preservação das instituições de regulação. O texto técnico que defende o
tombamento, nesse aspecto, é uma pérola das políticas de gestão eficiente e dos
empreendimentos de desenvolvimento cultural.
Segundo ele, o tombamento do bairro – e não apenas da Igreja Madre de Deus, único
edifício do bairro enquadrado nas normativas do IPHAN – se justificaria pela excelência
estética produzida pela descaracterização dos anos 1910, construindo a reunião de estilos
mistos e relicários como linguagem que bem traduz a diversidade cultural da cidade do
Recife. A peça nos informa, então, que a descaracterização é por excelência a política de
produção de sentido para o lugar e que exatamente essa é a razão de seu tombamento. Ora, há
aí uma aporia evidente, um contrassenso lógico por cima do qual é difícil passar. Qual o
sentido do tombamento daquilo que complexamente poderíamos chamar de uma estética dos
fluxos urbanos? Não seria o tombamento um direto desacordo com a principal “característica”
destacada para o bairro, a saber, a própria disposição para se fazer enquanto palimpsesto?

898
Como observamos no trecho de Peixoto, acima transcrito, o desenvolvimento cultural
produz não somente uma disposição para o futuro, mas, no caso específico da cidade de
Recife, é nítido o entendimento de que a perspectiva de financiamento do BID, por meio do
programa Monumenta, funcionou como linguagem para estabilização de um passado
compreendido como conveniente recurso político para complexas estratégias contemporâneas
de segregação urbana. Trata-se daquilo que, ainda na seção anterior, chamamos, como o fez
Huyssen (2014), de culturas do passado presente.
No caso específico da atuação do projeto do Ministério da Cultura na cidade de Recife,
devemos observar que ele procurava dar conta da gestão político-cultural de cerca de 800
edificações, onde habitavam pouco mais de 500 moradores. Segundo dados de relatórios do
próprio Monumenta, até 2008, cerca de 9,4 milhões seriam investidos na recuperação de
imóveis – 1,5 milhões para edifícios privados. Ainda que um discurso geral do projeto tenha
seu foco na integração entre as edificações e o que se convém chamar de reabilitação urbana,
fica nítido que o conjunto de intervenções estava intensamente voltado para o estímulo de
uma atividade comercial específica bem como ao incentivo para a criação de um novo perfil
de visitante do bairro, pautado em um conjunto de equipamentos de cultura e entretenimento:
livrarias, cafés, shopping, artesanatos, museus, cinemas e teatro. Todos esses equipamentos,
não por acaso, ficariam – e efetivamente ficam – concentrados no cone sul do istmo, zona
radicalmente oposta àquela onde se concentra quase a totalidade de moradores do bairro, a
saber, a comunidade do Pilar, ainda mais invisível desde os empreendimentos de gentrificação
do final da década de 1990 e dos projetos para a área no início do século XXI.
Os relatórios bem como os discursos de gestão apontam a comunidade do Pilar como
objeto de um tipo diferente de interesse, fazendo daquela região produto de programas de
“retomada” de desenvolvimento, como o PAC. O relatório fala em Programa de
Requalificação Urbanística e Inclusão Social como aquele que efetivamente seria responsável
por atuações na comunidade, o que chama atenção pelo dado implícito do não envolvimento
do Monumenta com a ideia de que a cidade seria construída por empreendimentos de inclusão
que, estes sim, justificariam projetos de requalificação/reabilitação. O dado é que a

899
comunidade recebeu a construção de um conjunto habitacional que serviu apenas à metade da
população local, aprofundando dispositivos de diferenciação social, haja vista que novos
conflitos surgiram entre moradores das zonas de mocambos e residentes nos cortiços
construídos pela gestão municipal (LIMA, 2017). Até 2017, a Igreja do Pilar, uma das mais
antigas da cidade, permanece fechada, com seus acessos lacrados por alvenaria.
À paisagem urbana destacada pelo Monumenta caberia quase exclusivamente uma
noção de documento – a qual, no caso de Recife, nem é exatamente verdadeiro – que produz a
cidade reabilitada basicamente como paisagem postal, condição fundamental para alinhar a
cidade numa corrida por bons lugares do mercado do turismo global e suas divisas. Mas não
somente. A segunda face do empreendimento de gentrificação é aquela que diz respeito, na
capital pernambucana, às políticas de expansão do produto requalificado além dos limites do
bairro, inclusive com novos projetos habitacionais. É o que basicamente descreve o Projeto
Novo Recife.
O ponto de partida do projeto é a imperativa necessidade de intervenção no que o
próprio texto chama de “uma das regiões mais degradadas da cidade”14. Parte-se do princípio
de que degradação – fenômeno muito recorrente com o conceito de gentrificação – é um
termo dado e que todos compreendem bem do que se trata. O que faz dos bairros de Santo
Antônio e São José regiões degradadas da cidade? Há um já consolidado volume de estudos a
respeito do decréscimo populacional na região, que se converteu nos últimos quarenta anos
em basicamente espaços compartilhados para comércio e burocracia municipal. A zona de
comércio popular, contudo, traduz intensa vitalidade na região, o que faz o léxico da
reabilitação parecer, no mínimo, cínico.
Segundo o projeto, a construção de 1042 unidades habitacionais, um polo cultural (junto
ao Forte das Cinco Pontas), uma praça gigante – que, aliás, separa a zona comercial da região
dos edifícios – e um polo de turismo e esportes, localizado ao lado da já existente marina da
região, seriam argumentos suficientes para reposicionar o debate sobre ocupação na região,

14
http://www.novorecife.com.br/o-projeto

900
“devolvendo” ao lugar uma atividade que ele não tem. Além disso, o projeto se conecta ao
desenvolvimento de um novo polo hoteleiro para a região, que prevê a instalação de mais de
600 leitos com a construção de novos hotéis conectados ao novo terminal náutico de
passageiros. Ainda segundo dados do próprio site do projeto, o esboço final das construções
respeita a linha do horizonte da cidade e da paisagem da região15, mas, ainda assim, prevê o
repasse de montante suficiente para a construção de 200 habitações populares como “recursos
de mitigação” para a gestão municipal, destinado a construções num raio de 300 metros das
torres do projeto. Por que mitigação se o projeto só traria benfeitorias?
Desde o leilão do terreno em 2008, citado ainda no início deste texto, uma série de
irregularidades foram anotadas. São problemas que vão desde a fraude de dados referentes ao
saneamento das edificações e da capacidade de tratamento de esgoto da unidade do Cabanga –
a mais próxima da região –, até a ilegitimidade do próprio leilão bem como a gestão
financeira dos grupos envolvidos para a formação do Consórcio Novo Recife, formado pelas
empresas Ara Empreendimentos, GL Empreendimentos, Moura Dubeux Engenharia e
Queiroz Galvão.
A despeito de todas elas, o que desejamos destacar é o movimento de intervenção
urbana, sustentado pelo discurso desenvolvimentista da requalificação, produzindo,
novamente, na história da cidade, complexas políticas de segregação. Nesse caso específico,
não se trata da construção de fortificados enclaves individuais, haja vista que os edifícios não
devem reproduzir o padrão de altos muros e sofisticados sistemas de vigilância tão
característicos da região de Boa Viagem – seguindo o modelo descrito por Caldeira na cidade
de São Paulo. O projeto prevê unidades comerciais nos andares térreos, voltadas para cafés,
um centro gastronômico e equipamentos culturais.
Toda a região gentrificada converte-se, ela mesma, em enclave fortificado, tendo o
aparelho policial do Estado como dispositivo de produção de segurança e isolamento das
populações mais pobres da cidade. O Novo Recife, tal qual o Recife de sua moderna

15
Uma leitura rápida das primeiras páginas da tese de doutoramento de Lúcia Veras (2014), Paisagens Postais, é
já suficiente para tecnicamente observar a fragilidade da apresentação.

901
urbanização, não é um projeto de cidade para toda sua população, como já era fácil observar
desde as intervenções da década de 1940. Pelo contrário, direcionou suas políticas de
modernização e desenvolvimento, mobilizando um recorrente discurso da tradição, para
aprofundamento dos deslocamentos populacionais e reforço das políticas de segregação. O
paradigmático elemento em questão, objeto deste trabalho, contudo, é o recurso das políticas
de cultura como sofisticado dispositivo para tanto, discussão que mobilizamos na quarta e
última seção deste texto.

Cultura política e políticas culturais para a cidade

A relação entre Estado e cultura no Brasil, está claro, não é algo novo. Ela remete, como
se pode verificar no próprio projeto de Estado moderno, a uma conexão estruturante que versa
sobre o complexo cruzamento entre três dimensões essenciais para a construção da sociedade
moderna.
Em primeiro lugar, a imperativa transição de uma esfera pública mobilizada pela corte
para uma dimensão de vida pública que deveria ser habilitada por um espírito cultural, uma
narrativa ficcional que desse corpo a um projeto de vida e consumo coletivos radicalmente
diferente: a nação. O clássico trabalho de Anderson (2008) e mesmo os diversos
questionamentos possíveis a ele (CHATTERJEE, 2008; BHABHA, 2010) sugerem a ideia de
nação como um esforço para emular um pertencimento nacional pré-moderno em uma
estrutura de vida coletiva em que, fundamentalmente, as pessoas investem numa experiência
compartilhada sem efetivamente se conhecerem. A nação como narrativa habilita o Estado
moderno à medida que dá à poderosa estrutura burocrática o corpo público que a família real
não mais pode fazê-lo.
Em segundo lugar, é a própria estrutura burocrática condição fundamental para a
constituição de uma experiência moderna de Estado e não é necessário voltar aos clássicos
para descrever esses processos. Nos interessa apenas ratificar que a burocracia regula a gestão
como dispositivo social fundamental. Cruzado pelo elemento cultural, burocracia e nação

902
habilitam um modelo de sociedade, regulando-o com leis e políticas que são, obviamente,
revistas de acordo com as tensões da vida pública e os usos desiguais dos poderes.
Por fim, em terceiro lugar, o complexo cruzamento entre Estado e cultura ainda
mobiliza politicamente uma dimensão biológica da vida, fazendo de uma condição “rasa” do
ser vivente uma implicação, necessariamente, política e cultural. Nascer na comunidade
imaginada, portanto, é “ser” culturalmente no Estado e, por isso, habilitar direitos vinculados
a uma estrutura burocrática. Não há, portanto, qualquer Estado moderno sem políticas para
gestão de vida e consumo coletivos na e para a cultura.
Isso não significa dizer que são claros e bem colocados os dispositivos de administração
da vida pública pela cultura bem como que isso sempre esteve traduzido em regulações e
controles sobre bens culturais, materialidades da maquinaria patrimonial. Num país como o
Brasil, as políticas de Estado para a cultura descrevem uma linha do tempo sinuosa e obscura,
vivendo sua fase de efetiva profissionalização apenas entre os anos 1980 e 2010. “O
menosprezo e a perseguição das culturas indígenas e africanas; a proibição de instalação de
imprensas; o controle da circulação de livros; a inexistência de ensino superior e
universidades...” (RUBIM, 2008, p.52) são traduções evidentes, ao mesmo tempo, de um
comportamento estratégico do Estado que flertou com estruturas modernas de funcionamento
sem prescindir dos poderes pré-modernos, e de um obscurantismo que, ainda segundo Rubim,
marca como ausência a condução do Estado colonial brasileiro sobre políticas de cultura até o
fim do século XIX. Não por acaso, as políticas de gestão cultural acompanham,
cronologicamente, a história da urbanização brasileira. O próprio Rubim resume esse traço
comportamental do Estado em relação ao desenvolvimento de políticas culturais:
A República também continuou a tradição de ausência do Império. As
esporádicas ações na área de patrimônio igualmente não podem ser
vistas como uma nova atitude do Estado no campo cultural. Do
mesmo modo, um momento privilegiado do desenvolvimento da
cultura no Brasil, acontecido entre os anos “democráticos” de 1945 a
1964, não foi caracterizado por uma maior intervenção do Estado na
área da cultura. O uso em 1953 da expressão cultura para designar
secundariamente um ministério, Educação e Cultura, e a criação do

903
Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), além de outras
medidas menores, não sugerem nenhuma mutação essencial a esta
persistente ausência de políticas culturais no Brasil (2008, p.53).

Esse obscurantismo permanece como linguagem política do Estado no Brasil,


fundamentalmente, até os mandatos de Fernando Henrique Cardoso – e o ministro da cultura
Francisco Weffort. Exceto por investimentos esporádicos durante regimes autoritários, como
bem pode ser visualizado no final da década de 1930 e durante os anos 1970, a
profissionalização de um dispositivo de gestão cultural está intimamente ligada à complexa
conexão entre Estado e mercado. É o que podemos observar com as leis do Audiovisual e
Rouanet, durante o governo FHC, haja vista que ambas representam, formalmente, o
financiamento cultural privado como traço do comportamento estatal sobre a cultura.
Os críticos, por um lado, caracterizam esse movimento como virada precária da gestão
de cultura no Brasil. Comparando com movimentos similares em outros países de economia
potente no globo, contudo, podemos afirmar que uma agenda política brasileira vive sua
primeira fase de privatização – e não exatamente precarização – durante o governo FHC,
quando se pauta de forma evidente um conjunto de políticas de compensação pela cultura
como técnicas de gestão pública. Nesse caso específico, as empresas eram estimuladas a
converter divisas fiscais em produtos culturais, num movimento cuja noção de compensação
era voltada à iniciativa empresarial. Era a ela que compensava transferir gastos para a cultura,
pois o retorno publicitário traduzia-se sem grande dificuldade em novas divisas. Assim, as
empresas podiam transformar tributos em investimento em si mesmas a partir de sofisticado
dispositivo que tinha como única contraparte governamental a elaboração de um produto
cultural. O mercado assumia uma parte do papel do Estado nas seleções e elaborações dos
projetos que deveriam ser apoiados e realizados. A política em questão é um marco
paradigmático para uma compreensão da cultura como recurso no Brasil, mas não era uma
novidade no contexto do debate internacional sobre cultura, como pode ser observado em
trabalhos seminais de Huyssen (2000, 2014), Yúdice (2004) ou Miller e Yúdice (2004).

904
Afirmamos que a privatização não implicaria precarização não para defender o primeiro
processo de ser acusado do segundo. Entendemos que o movimento em questão produziu
ainda mais complexidade para as políticas de gestão de cultura no Brasil, mobilizando um
conjunto grande de investimentos e ratificando o mercado como fio de Ariadne para a questão
cultural brasileira. O resultado de tais políticas é um emaranhado de grandes debates
possíveis, que vão desde dispositivos multiculturalistas para regular discussões sobre uma
nova gestão para o “popular” – o que não está restrito ao caso brasileiro, como é possível
observar em Hall (2003) –, até as políticas de segregação urbana sob a forma complexa da
gentrificação, revitalização, reabilitação etc.
Em Recife, por exemplo, desde 1994, a lei municipal 15.906 regula a gestão de
equipamentos públicos urbanos por pessoas jurídicas. Trata-se basicamente de um programa
para adoção de praças por empresas, que ficavam responsáveis não somente pelos serviços de
limpeza como também por composição estética e políticas de uso do espaço. A ponte entre
um registro estético da cultura e uma gestão dos hábitos culturais (modos de vida), o que em
Miller e Yúdice (2004) constitui a própria noção de políticas culturais, consolida-se como
objeto de promissora gestão mercadológica, o que ratificaria a própria cidade como grande
produto da gestão de políticas culturais.
Os dois governos Lula – ministério de Gilberto Gil – são emblemáticos nesse aspecto.
Somente nos três primeiros anos de mandato, o orçamento do Ministério subiu de 289
milhões de reais para 513 milhões, além da transferência para políticas culturais de um
montante de recusa fiscal que em 2002 era de R$ 345 milhões e em 2005 já era de R$ 691
milhões. A consolidação de instituições de gestão é também um inegável avanço em relação
às gestões de FHC. A construção do Sistema Nacional de Cultura bem como a criação do
Instituto Brasileiro de Museus e de um Sistema Nacional de Museus com plano específico
traduzem a disposição do governo para consolidar uma estrutura burocrática para a gestão
cultural no Brasil, o que, no entanto, não significou uma reversão do conceito observado na
gestão Cardoso/Weffort. Dois importantes aspectos desse movimento precisam ser
destacados.

905
O primeiro é a gestão da criação. Em Pernambuco, o fomento de produtos culturais, a
partir de 2003, esteve voltado, de forma cada vez mais intensa, ao edital de financiamento
pelo Estado, o FUNCULTURA16. No primeiro ano de edital, o Estado destinou R$ 8,1
milhões a pouco mais de 100 projetos aprovados. A seleção é realizada em um conjunto de
etapas que compreende desde pareceres técnicos de especialistas em cada área específica de
atuação a rubricas institucionais que, ao final, decidem pelo produto a ser desenvolvido. Em
2013, o montante de R$ 33,5 milhões destinados a 400 projetos já demonstra, ao mesmo
tempo, o grande interesse do Estado em manter uma gestão sobre a produção cultural em
Pernambuco e, importante observar, uma progressiva dependência do edital ao qual se
vinculam os agentes de cultura, estes, por sua vez, cada vez mais profissionalizados pelas
demandas do campo. Desde sua implantação, o FUNCULTURA destinou R$ 159,1 milhões à
realização de projetos culturais, o que tem amarrado um campo de produção cultural no
Estado a uma “cultura dos editais”.
A construção e consolidação de dispositivos de regulação, marca da gestão que
pretendeu superar o modelo FHC/Weffort, produziu um complexo conjunto de
enquadramentos que deveriam representar uma cultura política do Estado e sua versão para a
produção cultural. Ao longo dos anos, é possível observar uma progressiva gestão da criação
fortemente ligada a um tipo de financiamento cultural que só faz ser possível a reprodução de
uma noção de cultura ligada aos interesses do Estado, lugar excelente para a reprodução da
cultura como parte do maquinário de consolidação e reforço identitário. Mas não é só.
O segundo aspecto a ser destacado é a política cultural para a gestão da diferença. Se os
ganhos com o Lulismo estão fortemente ligados à redução da miséria, com importante política
de distribuição de renda – ainda que isso não tenha afetado as grandes fortunas do país – e
redução efetiva do desemprego e seus males associados, as políticas de gestão cultural
serviram para consolidar e sustentar as teses de cultura como compensação. Os programas de

16
Com primeiro edital publicado ainda em 2003, no segundo mandato de Jarbas Vasconcelos e primeiro ano de
mandato presidencial de Lula. O fundo recolhe verbas do ICMS e transfere ao fomento de atividades culturais
em diversas linhas de atuação.

906
governo desenvolvidos em zonas pobres de cidades como Recife – Pontos de Cultura e Pontos
de Memória, por exemplo – funcionaram como importantes dispositivos de análise dos
funcionamentos comunitários, mas indicaram pouca possibilidade de gestão coordenada pelas
próprias comunidades. Ao final, o trabalho servia fundamentalmente para destacar o lugar da
pobreza enquanto traço patrimonial da comunidade, como pode ser observado no bairro do
Coque, em Recife, onde a construção do Museu da Beira da Linha do Coque – instituição por
si só com diversos problemas que não nos caberá aqui destacar – está ligada ao esforço dos
moradores para diminuir o impacto produzido pelo programa de gestão do ponto de memória
instalado naquele bairro (SANTANA, 2016). Vê-se sem grandes dificuldades, tal qual
observa Fanon (2005) ao estudar as políticas de violência do Estado moderno, o recurso do
bem cultural como dispositivo de pacificação, substituindo progressivamente a força policial.
A cultura como compensação, nesse contexto, é a cultura como atenuante das tensões
que revelam uma cidade erguida sobre lógicas cruéis de desigualdade. A política da cultura
para gerir diferença cultural também é uma importante ferramenta para “completar” a
experiência cultural das elites com o selo da diversidade cultural, máxima de uma razão
indolente que produz a meritocracia como estrutura para compreensão das desigualdades
sociais.
O desafio das estratégias de resistência parece se concentrar ainda mais na pauta de
superar uma política cultural como traço do paradigma da gestão eficiente por uma política
cultural que traduza mudança social. “En suma, se trata de una lucha entre concebir la
política cultural como una esfera transformadora frente a considerarla una esfera
funcionalista”17 (MILLER & YÚDICE, 2004, p.13).
Em Recife, nos primeiros anos do século XXI, esse embate tem se traduzido no choque
entre um esforço para a profissionalização de uma política de gestão cultural pautada em uma
perspectiva de desenvolvimento cultural e financeirização da cultura, materializada em
equipamentos voltados ao mercado do turismo global ou às técnicas de “requalificação”

17
Em suma, se trata de uma luta entre conceber a política cultural como uma esfera transformadora contra a
considerá-la uma esfera funcionalista (Tradução livre dos autores).

907
urbana, e, num outro lado, no imperativo de outras (ou novas) organizações sociais que têm
no reverso da sofisticação das políticas de segregação urbana seu principal objeto de atuação.
Até 2017, as torres do “Novo Recife” sequer começaram a ser levantadas. Do mesmo modo
que o projeto não representa sozinho um conjunto de reproduções de uma cidade cuja
desigualdade é paradigma urbano, as resistências se estendem da luta contra as torres no cais
às políticas cotidianas de denúncia e contra-silenciamento das lógicas de apartação na cidade
contemporânea. O momento, nesse aspecto, é promissor para a ambiguidade que estrutura a
noção de conveniência (recurso) da cultura em Yúdice (2004). Ele diz respeito à fertilidade
dos usos possíveis da cultura também enquanto instrumento de rasuras do social, cisões de
estruturas solidificadas pelo discurso do desenvolvimento e por um sentido sufocante e,
eventualmente, simulado de tradição. Investigar as formas dessas resistências e suas políticas
de ação, contudo, é um exercício que este trabalho não comporta.

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910
DO DISPÊNDIO IMPRODUTIVO AO USO SUSTENTÁVEL: NOTAS SOBRE O
CONCEITO (GERAL) DE PATRIMÔNIO E SOBRE O PATRIMÔNIO
GENÉTICO

Alexandro Silva de Jesus*

Resumo: Encontram-se urdidas nessa breve comunicação notas de pesquisa que o Grupo
Museo-lógica vem desenvolvendo sobre a experiência do ocidente com os bens culturais,
precisamente, daqueles que são consignados pela termo patrimônio. Aqui, o esforço segue em
duas direções. De um lado, procura-se traçar sua história desde o século XVIII até a
atualidade. Disto, não se saberá apenas sobre a trajetória desses bens culturais apenas; será
possível, também, dizer alguma coisa sobre o modo como o Estado age sobre os sujeitos. De
outro, em analisar a emergência do patrimônio genético: sobre o modo como ele coloca em
jogo natureza e cultura, e alinha saberes como a museologia e antropologia em torno do
conceito – também emergente – de comunidades tradicionais. Esse aspecto permitirá,
também, apontar a exigência de uma curadoria do conceito de conservação, na medida em que
essa nova qualidade de patrimônio encena uma relação outra com a economia.
Palavras-chave: Patrimônio; dispêndio improdutivo; sustentabilidade; consumo.

Abstract: This brief communication research presents results that the Museo-Logica Group
has been developing on the experience of the West with the cultural goods, precisely, those
that are consigned by the term patrimony. Here the effort goes in two directions. Firstly, we
try to draw the historical curve that has been designed since the eighteenth century until the
present time. In this perspective, we can understand aspects of the trajectory of these cultural
goods, as well as to spotlight the way the state acts on the subjects. On the other hand, the
second effort correspond to analyze the emergence of genetic patrimony. This means
discussing how it puts nature and culture into play and aligns knowledge such as museology
and anthropology around the concept - also emerging - of traditional communities. This issue
will also allow us to point out the need for a curation of the concept of conservation; since this
new quality of heritage represents a distinct relationship with the economy.
Key-words: Heritage; unproductive expenditure; sustainability; consumption.

911
Faz-se cada vez mais necessário dar conta, antes de qualquer qualificação que possa
delimitar seu sentido (neste caso, os delimitadores cultural e natural), desse conjunto de
coisas que se recolhe sob a denominação de patrimônio. Não há dúvidas de que o termo
experimenta, hoje, uma inflação, e é por isso mesmo que seu sentido se torna cada vez mais
etéreo; de outro modo, trata-se de um objeto que tem se prestado cada vez mais a política no
momento mesmo em que aumentam as dificuldades para pensá-lo. É necessário, desse modo,
submeter o patrimônio a uma curadoria: encontrar, na heterogeneidade das coisas que se
fazem reconhecer a partir de sua rubrica, um traço comum.

O pressuposto que conduz, aqui, o pensamento, afirma que este traço ou marca torna-
se mais ou menos legível na medida da disposição para pensar o patrimônio a partir de
perspectivas econômicas, a saber, de um ponto de vista que empenhe, de partida, os dados da
economia clássica, e que se desloque, por necessidade, à posição da economia geral
(BATAILLE, 2013). Para aquela primeira circunscrição (clássica) não passará desapercebido
que os novos objetos que o termo acolhe a partir do século dezenove – os monumentos; mais
tarde, a cultura e, atualmente, a biodiversidade e mesmo o âmbito anexo onde seu jogo passa
a se efetuar (no corpo das nações) – não altera sua dinâmica econômica: trata-se, em qualquer
dos casos e de diferentes maneiras, da produção de riquezas, de sua transferência e
conservação – e tudo isso encontra, como se verá, sua experiência mais ambivalente com a
emergência do patrimônio genético.

Essa mesma circunscrição permite discriminar, ainda, a diferença que separa a


segunda geração de patrimônios (os monumentos, as obras artísticas) daquela que a
antecedera; pois quando se está às voltas com o patrimônio que se resolve no domínio privado
e familiar, ainda que haja uma expectativa de que seu consumo (mínimo) ocorra na intenção
de sua conservação – e, no melhor caso, crescimento –, existirá sempre a possibilidade de sua
dilapidação sem reservas. Ora, essa consumação desmedida, para a qual nossa lógica
econômica se apressa em caracterizar como insensatez ou imprudência, está, desde o começo
do jogo, impedida, quando passou a se tratar daqueles patrimônios de caráter público – e que,

912
de resto, não é o mesmo que dizer coletivo. Essa diferença abre para uma primeira questão,
formulada aqui a partir da poderação de Françoise Choay (2006) sobre o que seja o
patrimônio histórico:

A expressão significa um bem destinado ao usufruto de uma


comunidade que se ampliou a dimensões planetárias, constituído pela
acumulação contínua de uma diversidade de objetos que se congregam
por seu passado comum: obras e obras-primas das belas-artes e das
artes aplicadas, trabalhos e produtos de todos os saberes e savoir-faire
dos seres humanos (CHOAY, 2006, p. 11).

Sei que não é mais possível adiar uma crítica à ideia de comunitário e de comum que o
conceito de patrimônio recolhe e abriga, ou deixar de considerar os desdobramentos
miméticos que permitem afirmar sua dimensão planetária. Por ora, quero apenas marcar que
Choay não pôde definir a relação da comunidade com o patrimônio, a não ser recorrendo à
categoria jurídica do usofruto, ou seja, do “direito de usar e de gozar de coisa alheia,
respeitada a substância da coisa.” (JUSTINIANO I, 2005, p. 90). É uma pena, portanto, que
sua definição não tire daí suas últimas consequências: consoante ao sentido atual de
patrimônio, já seria possível pressentir a condição política que a impossibilidade de consumo
(da substância do que seja a coisa patrimonial) introduz na relação de um povo com aquilo
que supostamente faz sua herança, qual seja, a de uma minoridade que exige – e quase nunca
se trata de auto-exigência, mas de um exigir que vem de fora –, por necessidade, de uma ação
tutelar, de um estar sempre às vistas de um pai, assombroso, não por estar morto mas justo
porque, real ou simbolicamente, nunca morre. Deste ponto de vista, a história desses novos
patrimônios deverá traduzir a história de uma emancipação que se atrasa sempre e sempre18.

Entretanto, o conceito de usofruto faz algo ainda mais radical. Pois ele destrói
18
O artigo de Victor Hugo, intiulado Guerra aos demolidores e publicado na revista Dois mundos, é um dos
lugares onde a relação entre patrimônio e reconhecimento se esclarece.

913
qualquer ideia ou expectativa de emancipação e reconhecimento, posto que denuncia a ilusão
do patrimônio comum, quer dizer, da retórica sobre o comunitário que não se destinaria outra
função a não ser encobrir o exercício do Estado, a um só tempo como o pai de todos e dono
de tudo. Nesse sentido, se torna possível dizer que, em relação ao patrimônio, a experiência
comunitária – que é a de comunidade a cada vez imaginada – é sempre à maneira franciscana:
traduz sua altíssima pobreza.

Os dados de uma economia geral, por sua vez, deixa perceber que, se o ocidente
passou a desejar a produção de patrimônios perenes – e o que esse delimitador faz é apenas
deixa claro o elemento de conservação que é inerente a ideia mesma de patrimônio, ainda que
seja possível, no limite, atentar contra ele –, e de maneira tal que qualquer consumação de
uma parte sua fosse desde o início barrada19, isso ocorreu às custas de que estes mesmos
patrimônios passassem de partida a figurar, para sua preservação, como dispêndios
improdutivos (BATAILLE, op. cit.), ou, de outra maneira, exigia-se que sua produção e
conservação constituíssem atividades cujas finalidades residissem em si mesmas – que aqui é
o mesmo que dizer que se tratam de atividades que não se achavam submetidas ao princípio
da utilidade – e que o sentido último dessas atividades fosse manifesto, a cada vez, pelo maior
dispêndio que estas requeiram para si. O que os dados da economia geral deixa assim exposto
é o caráter suntuoso dos monumentos e dos bens culturais20. Essa sua relação com o
dispêndio – e isso diz necessariamente todo o bem cultural que se possa recolher sob o
conceito de patrimônio – compõe exemplo – insclusive sobre as dimensões do conceito:

Com relação ao dispêndio, as produções da arte devem ser divididas


em duas grandes categorias; a primeira é constituida pela construção
19
Deve-se ter em mente, aqui, a exprência de consumação do conjunto de coisas que se recolhe na categoria de
patrimônio de segunda geração equivale, para o imperativo de perenidade, à um ato de vandalismo.
20
Esse aspecto explica as somas vultosas dedicadas a museus de arte em relação as verbas que circulam em
pontos de memória: esses primeiros espaços podem dar exemplos incontestáveis de sua força tanto como fins em
si mesmos, quanto como utilitários.

914
arquitetônica, pela música e pela dança. Essa categoria comporta
dispêndios reais. Contudo, a escultura e a pintura, sem falar da
utilização dos locais para cerimônias ou para espetáculos, introduzem
na própria arquitetura o princípio da segunda categoria, o do dispêndio
simbólico (Idem, p. 23).

Partindo, portanto, dessa noção de dispêndio improdutivo, noção que pode dizer com
muita justeza o que se passou com o patrimônio até parte da primeira metade do século vinte,
seria preciso avançar para o que ocorreu aí depois dessa altura histórica, a saber, para o como,
em sua vida mais recente, o patrimônio se vê conformado cada vez mais ao princípio da
utilidade clássica, princípio que faz retornar a consumação com vistas à sua fruição. Essa
relação entre o consumo e a fruição que empurra o conceito e a prática de conservação para o
seu limite, pode muito bem fazer-se o sintoma da parcimônia dos estados modernos – e que é
a sua realidade pelo menos desde a segunda grande guerra –, e que hoje impõe ao patrimônio
solução pela via do desenvolvimento sustentável.

Se, de um lado, esses dados da economia geral fecham a análise sobre o que está em
jogo no conceito geral de patrimônio, de outro, um novo conjunto de fatos recolhidos sob essa
categoria (patrimônio genético) dará as condições de avaliar a consistência de sua
circunscrição para abarcar certo cruzamento entre natureza e cultura, a partir do conceito de
campo. Aqui, tal noção encontra em Pierre Bourdieu (2004) sua fiança. Pensado como espaço
de autonomia relativa, a projeção de sua sombra por sobre a experiência patrimonial permitirá
discriminar leis singulares que permitiriam sua dinâmica, e, também, demonstrar as traduções,
em termos próprios, das pressões chegadas do seu lado de fora. Deverá ser possível ainda, a
definição dos agentes e instituições – e de suas relações de poder e força – responsáveis por
produzir, reproduzir e difundir o patrimônio cultural e natural.

Pressuponho, então, que tais demonstrações e definições não encontram nesses

915
estados gerais (de natureza, de cultura) suas condições de possibilidade. Ao contrário: tudo o
que se quererá demonstrar é que o patrimônio natural e cultural – ou, pelo menos, este
segundo termo – não se deixa limitar radicalmente, posto se tratar, aí, respectivamente, da
vida e dos modos de existência. De outro modo, o que se configura como natureza ou
biodiversidade e, também, cultura, participa de um jogo cósmico: trata-se num e noutro caso
de produção de riquezas, que não é outra coisa senão a intervenção e apropriação da energia
que percorre o globo terrestre e que sustenta a vida e, no caso humano, sua existência
(existência como modo especifico que a vida assume em função da cultura). Pressente-se
desde já, que estes aspectos não estão separados (natureza e cultura), e que os modos de
existência são, em sua base, formas distintas de resolução das necessidades vitais (DELEUZE,
2004, 29).

Tal ponto de vista permite apontar a insuficiência das definições institucionais – e de


fazer passar tais definições por exercício teórico – como a do Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) sobre o patrimônio natural, qual seja, elementos
naturais [que] constituem a matéria-prima da produção cultural. Pois se é verdade que essa
percepção traz à tona aspecto essencial da relação natureza/cultura (cultura ou, pelo menos,
seus objetos materiais como natureza morta), ela ainda inscreve essa relação a partir de um
traçado de colonialidade, na medida em que só é possível perceber a natureza pelo critério de
sua finalidade para o humano – e esse é, a meu ver, o problema da expressão partilha do
sensível, de Jacques Rancère (2005), e do próprio conceito de colonialidade, do grupo
Modernidade/Colonialidade (CASTRO-GÓMEZ & GROSFOGUEL, 2007)21. Faz-se preciso
caminhar, portanto, para as implicações da ambiguidade que esse traçado institui no próprio
21
Insiro, aqui, uma nota de rodapé que integra um ensaio meu, no prelo, sobre a experiência colonial, e que situa
os sentidos do termo colonialidade: “Posto que da Gênesis até Nietzsche e além, a entrada do homem na
linguagem marcou o começo da experiência de colonização do mundo e das coisas que nele habitam, incluindo
aí, o próprio homem, esse seria o primeiro sentido com que se deveria marcar a colonialidade como experiência
geral e anterior a qualquer colonização específica, incluindo aí, a moderna. Por outra via (Étienne de La Boétie),
a colonialidade seria a experiência própria da sociedades com Estado ou, o que dá no mesmo, de servidão
voluntária, o que reservaria para a expressão colonial, contextos determinados, como o moderno (Séc. XVI),
caracterizados, então, pelo caráter involuntário da servidão. Esses dois primeiros me sugerem, portanto, a
anterioridade da colonialidade em relação ao colonial”.

916
desejo de conservação, posto que sua motivação se baseia em um traço narcísico. Em todo
caso, projetar-se-á, assim – e somente a partir de uma curadoria –, o êxito da conservação
atrelado às condições de possibilidade para uma mudança de perspectiva.

Encontra-se em resumo, até aqui, a primeira das curadorias necessárias – mediadas


pelo processo de pesquisa – para o diagnóstico da relação em análise (a emergência de um
campo e sua relação com práticas conservação).

Outras séries retornarão ao conceito de desenvolvimento, ou, precisamente, a ideia de


uso sustentável. Posto que, como se verá, naquilo que concerne ao patrimônio natural ou
biodiversidade, a ideia de uso sustentável deve, ela mesma, sustentar práticas ou atitudes de
conservação. O que se tem em disputa, nessa altura da análise, é, propriamente, a prática do
uso: tratar-se-á de questionar suas condições de possibilidade para a experiência. Ora, isso é
mais do que necessário, é essencial, já que na atualidade a experiência tem sido conduzida, a
partir de outro termo e prática que figura em sua oposição, a saber, o consumo. Dedicando ao
conceito de uso a regência de uma de suas características irredutíveis (o livre uso), será
possível indicar sua rarefação desde a condução capitalista, concomitante a hegemonia do
consumo, que é o seu oposto. Essa dedicação está em curso, hoje, a partir de uma filosofia da
cultura (AGAMBEN, 2007).

Importante, aqui, é enfatizar o caráter sacro da experiência de consumo, como reflexo


mesmo da condução capitalista. Isso é possível porque a filosofia da cultura que lastreia esse
ponto da pesquisa, opera, a seu turno, uma curadoria do conceito de religião, que deixa de
indicar, após o gesto, o sentido de uma ligação (religare), e passa a dar conta daquilo que
separa as coisas (relegere), ou melhor, as reserva numa esfera onde a possibilidade do livre
uso é barrado, em benefício da aquisição via consumo. Mais ainda: tal gesto filosófico acusa o
Museu como o lugar tópico desse impedimento ao uso:

A impossibilidade de usar tem o seu lugar tópico no Museu. A


museificação do mundo é atualmente um dado de fato. Uma após
outra, progressivamente, as potências espirituais que definiam a vida

917
dos homens — a arte, a religião, a filosofia, a idéia de natureza, até
mesmo a política — retiraram-se, uma a uma, docilmente, para o
Museu. Museu não designa, nesse caso, um lugar ou um espaço físico
determinado, mas a dimensão separada para a qual se transfere o que
há um tempo era percebido como verdadeiro e decisivo, e agora já não
é. O museu pode coincidir, nesse sentido, com uma cidade inteira
(Évora, Veneza, declaradas por isso mesmo patrimônio da
humanidade), com uma região (declarada parque ou oásis natural), e
até mesmo com um grupo de indivíduos (enquanto representa uma
forma de vida que desapareceu). De forma mais geral, tudo hoje pode
tornar-se Museu, na medida em que esse termo indica simplesmente a
exposição de uma impossibilidade de usar, de habitar, de fazer
experiência (AGAMBEN, op. cit., p.73)

E, ainda que se detenha aí (no Museu), não será difícil dilatar essa conclusão para a
experiência patrimonial; por um lado, não existe diferença de intenção ou funcionalidade
entre processos de musealização e processos de patrimonialização22 – nenhuma
especificidade técnica responderá por uma dissolução dessa natureza comum; noutra via, o
próprio conceito em análise (desenvolvimento sustentável) dá evidência da orientação do
patrimônio cultural e natural para o mercado.

Bem traduzida, essa orientação deverá indicar: a) a necessidade de referir e analisar a


realidade patrimonial não em termos de uso mas de consumo (dimensão religiosa do
patrimônio); b) a dificuldade de conciliar este último termo, curado a partir da filosofia da
cultura – o que significa levar em conta não apenas o sentido do conceito, mas sua localização
e funcionamento nesse acidente econômico que é o capitalismo – com a noção de
sustentabilidade, dado o caráter compulsivo do primeiro termo (o consumo, portanto, como
elemento de uma religião negativa); c) certo desacordo que estaria na base da relação entre
consumo e conservação, já que a curadoria do termo acentua o caráter de destruição das

22
Sobre os sentidos dessa indistinção, vide Espelho das cidades (Jeudy, 2005), particularmente, sua primeira
parte (A maquinaria patrimonial).

918
coisas – mas não somente delas – que lhe é inerente.

Ora, por tudo que já se aponta aqui será necessário ter em mente o que se passou no
primeiro gesto curatorial, a saber, da resolução do patrimônio, seja qual for a sua espécie, a
partir do econômico: enxergar, no modo como se efetiva a condução capitalista, ou seja,
naquilo que, a um só tempo, estrutura e recobre tudo e todos – e o desvelamento desse aspecto
fecha o circuito dos desejos de totalidade, posto que já havia mostrado o absolutismo do
Estado, que é pai e dono –, o problema mesmo da conservação do patrimônio cultural e
natural. Será possível, então, compreender o que se acha em jogo na expectativa manifesta
por parte daqueles que se acham às voltas com as questões referentes à biodiversidade,
particularmente os cientistas sociais, de que sua função seja, literalmente, a de mediação de
conflitos.

Por isso mesmo, as ações de curadoria acima discriminadas, contribuem para a análise
de certo arranjo conservador com o qual a experiência brasileira tem marcado a relação entre
patrimônio cultural e natural. Trata-se da urdidura complexa estabelecida lá onde a
biodiversidade, as comunidades tradicionais e a intervenção antropológica se cruzam. Há, de
um ponto a outro desta série, respostas e responsabilidades: tudo se passa fazendo com que as
comunidades tradicionais respondam pela conservação da biodiversidade, assim como a ação
antropológica deve responder, a seu turno, pela cnservação daquelas comunidades.

Sobre esse aspecto, a mim parece fundamental esclarecer, de partida, que o que se está
a evidenciar aqui é um arranjo de Estado. Isso que se afirma tem valor de verdade tanto para
a relação entre biodiversidade e comunidades tradicionais, com para estas em sua relação com
a Antropologia. Por uma via, o lugar tópico dessa governamentalidade que faz funcionar
certas formas do cultural em benefício da biodiversidade, se encontra na Convenção sobre a
Diversidade Biológica – que constitui somente os Estados como partes contratantes de seu
acordo –, que tanto reconhece a estreita e tradicional dependência de recursos biológicos de
muitas comunidades locais com estilos de vida tradicionais, como supõe haver, nessas
mesmas comunidades, saberes e práticas relevantes para a conservação da diversidade

919
biológica. É evidente assim que trata-se, a um só tempo, de uma política de conservação e de
reconhecimento23. Noutra via, tem sido a Antropologia mesma, quem diz sobre a construção
de conjugação antropológica às políticas de reconhecimento levadas à cabo pelo Estado
brasileiro.

Ora, essa linha de força, na antropologia, atravessa e enforma sua fase recente,
esclarecidamente projetiva, na qual o seu saber assume para si a função de desenhar conceitos
e categorias – que não seria outra coisa senão a produção de tipos humanos e comunitários –
para serem in-corporados a posteriori, como demonstra a passagem explicativa sobre o
conceito de comunidades tradicionais:

Por enquanto, achamos melhor definir as ‘populações tradicionais’ de


maneira ‘extensional’, isto é, enumerando seus ‘membros’ atuais, ou
os candidatos a ‘membros’. Essa abordagem está de acordo coma
ênfase que daremos à criação e à apropriação de categorias e, o que é
mais importante, ela aponta para a formação de sujeitos por meio de
novas práticas (CUNHA, 2009, p. 278).

E, aparentemente, não parece problemático que essa função teórico-dispositiva recolha


seu exemplo e mesmo sua linhagem da experiência colonial:

Isso não é nenhuma novidade. Termos como ‘índio’, ‘indígena’,


‘tribal’, ‘nativo’, ‘aborígene’ e ‘negro’ são todos criações da
metrópole, são frutos do encontro colonial. E embora tenham sido
genéricos e artificiais ao serem criados, esses termos foram
progressivamente habitados por gente de carne e osso (Idem).

23
Da Convenção da biodiversidadede para cá, parte das políticas públicas replicam esse reconhecimento. Dois
exemplos emblemáticos: a Política Nacional de Museus que elege o patrimônio cultural como dispositivo
estratégico de aprimoramento dos processos democráticos. Essa política parte do pressuposto que o patrimônio
cultural implica [...] a dimensão cultural pressuposta na relação dos diferentes grupos sociais e étnicos com os
diversos elementos da natureza [...]; a Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos, em sua
Apresentação por exemplo, ao afirmar o Brasil como país de maior biodiversidade do planeta que, associada a
uma rica diversidade étnica e cultural que detém um valioso conhecimento tradicional associado ao uso de
plantas medicinais.

920
É por isso que, do ponto de vista metodológico, a avaliação sobre o êxito dessa
urdidura em conservação dependerá de análises precedentes e mais ou menos isoladas de dois
dos elementos dessa tríade; eles serão necessárias para que se possa saber e dizer com alguma
consistência sobre os efeitos de seus cruzamentos. Esses elementos serão as comunidades
tradicionais e a operação antropológica. No caso da biodiversidade, seu sentido já se
encontrará submetido, à essa altura, aos dados da Economia Geral (ou Energética).

Sobre as comunidades tradicionais afirmo que, na atualidade, este conceito não


permite pensar que as políticas públicas que asseveram reconhece-las opere aí alguma coisa
que se passe por uma espécie de recuperação histórica. Isso é o mesmo que dizer que os
sujeitos que o termo circunscreve estão sendo produzidos agora. Produção que se efetiva
tanto na prática política como na operação antropológica. Num e noutro lugar, contudo, a
produção coincide: trata-se, aqui e ali, de comunidades que se acham ou se colocam cada vez
mais dentro do mercado e que sua qualificação (como tradicional) não deverá dizer,
necessariamente, de uma condução da existência pelos critérios de uma tradição. O traço
irredutível dessas comunidades que se está a produzir reside em suas atividades de baixo
impacto ambiental, e por isso mesmo, afirma-se, ecologicamente sustentáveis (CUNHA, op.
cit.).

Essa categoria não se confunde, portanto, com sujeitos que, antes, poderiam aí se
recolher. Esse aspecto é demonstrável, dentre outros meios, a partir da natureza das políticas
públicas e das atitudes que se dirigem ao meio ambiente de remanescentes de quilombo. Por
isso mesmo, é possível asseverar que a experiência política opera nessas comunidades a partir
de uma disjunção entre o conjunto de seus enunciados sobre reconhecimento e suas práticas
de produção do tradicional. Reside nisso o sentido político para essas comunidades
imaginadas (ANDERSON, 2008); e o que está em jogo aí é sua propriedade conservadora.

A partir daí, importa avaliar a parte antropológica dessa imaginação. Será preciso

921
reelaborar a crítica da Antropologia. Já se terá sabido, então, que a operação antropológica
conserva as comunidades tradicionais a partir de sua imaginação e de seu arquivo. O que se
deve demonstrar, a partir daí, são os limites dessa conservação. E para que esses limites se
tornem evidentes, me parece necessário recorrer a duas lembranças sobre a operação
antropológica.

A primeira consiste em fazer lembrar a vizinhança da operação antropológica com a


científica. Essa lembrança será fundamental, posto que uma das condições de possibilidade da
ciência moderna é dado pelo desacordo de base entre a experiência tradicional e o
experimento científico (BACON, 2014). Essa diferença se traduz, ainda, na diferença entre
técnica tradicional e técnica moderna. Posto que, enquanto a primeira produz um
desencobrimento poético da biodiversidade (ou Natureza) – que é o mesmo que afirmar um
uso que não desafia a natureza e que, por isso mesmo, se efetua um baixo impacto ambiental,
esta só, em função mesmo de sua essência, só é capaz de desencobrir a natureza para a
exploração, ou, de outra forma, de sua utilização como reserva disponível (HEIDEGGER,
2006). Chega-se, assim, ao desencobrimento da cultura como recurso (YÚDICE, 2004).

A segunda lembrança – e essa não é sua primeira vez, Já me expressei sobre a


problemática que ela encerra em outra ocasião (JESUS, 2013) – traduz outra diferença de
partes neste encontros da operação antropológica com as comunidades tradicionais. Na maior
parte dos casos trata-se do encontro entre de, um lado, culturas que definem sua existência,
fundamentalmente, a partir da memória (mesmo individual sempre coletiva) e de, outro, de
outras que se constituem a partir da constituição de arquivos. Ora, assumindo o ponto de vista
de certa ciência do arquivo, esse dispositivo se erige a partir de um déficit de memória. Pois o
arquivo é a inscrição da memória sobre um suporte que, no mesmo momento que a pereniza,
destrói sua maleabilidade. A descrição etnográfica é uma produção de arquivo. Sobre essa
produção e de sua relação possível com o desaparecimento das comunidades tradicionais, o
discurso de Lévi-Strauss sobre a obra do Bureau of American Etnology e suas lições é

922
exemplar24.

Por outro lado, a própria consistência da antropologia deverá ser pensada, no mesmo
sentido apontado por Henri-Pierre Jeudy:

A museografia provocou a perda dos objetivos teóricos da etnologia?


A exposição museográfica oferece a garantia de um sentido preliminar
às pesquisas etnográficas. E a perspectiva epistemológica que ela pode
ensejar diz respeito às etapas da disciplina em si, à apresentação
retrospectiva de seus campos e de seus modos de investigação. A
teoria não é exposta, mas em compensação o que continua possível de
ser exposto é o ‘olhar’ que ela induziu, ou o modo de observação que
ela conduziu (JEUDY, 2005, p. 35).
Por fim, ver-se-á que esse encontro reserva, para as comunidades tradicionais, as
condições de seu desaparecimento ou de sua desnecessidade: o arquivo (a descrição
etnográfica e, no limite, qualquer descrição científica) sobre os saberes e práticas dessas
comunidades, institui, no coração desse patrimônio cultural, aquilo mesmo que produz um
reconhecimento parcial dessas comunidades. Isso circunscreve, mais que o limite da operação
antropológica como ação em conservação; traduz a descrição etnográfica como um problema.

Referências bibliográficas

ABREU, Regina. Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro:


Lamparina, 2009.

24
Eis uma de suas passagens mais emblemáticas: […] estes desastres não tiveram apenas consequências de um
tipo. Ao obrigar Malinowski a compartilhar da vida dos indígenas das ilhas Trobriand de maneira mais durável e
mais íntima do que ele teria, talvez, previsto, a primeira guerra mundial contribuiu indiretamente para fazer
entrar a antropologia numa era nova; uma consequência igualmente indireta da segunda, foi a de abrir à pesquisa
antropológica este mundo novo que é o interior da Nova Guiné, com uma população da ordem de 600.000 a
800.000 almas e cujas instituições colocam novos problemas aos antropólogos, e os obrigam a reconsiderar
algumas de suas ideias teóricas que eles acreditavam estarem bem assentadas. Igualmente, a transferência da
capital federal para o coração do Brasil, a construção de estradas e a aeródromos em regiões recônditas do país,
revelaram a existência de pequenas tribos isoladas exatamente onde se acreditava na ausência de toda e qualquer
vida indígena (LÉVI-STRAUSS, 2013, p. 66).

923
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925
MUSEUS E AS CONVENIÊNCIAS DESCOVENIENTES DA CULTURA
POLÍTICA NO CENÁRIO CONTEMPORÂNEO

Manuela Dias de Melo*


Tatiana Coelho da Paz**
Joice Taiana da Silva***

Resumo: Depois do século XX, o mercado da cultura se confunde com o próprio mercado, e a cidade
simboliza a conversão de um empreendimento da cultura em divisas: “não há nenhum espaço puro
fora da cultura da mercadoria, por mais que possamos desejar um tal espaço” (HUYSSEN, 2000, p
.21). Os equipamentos culturais são usados para produzir divisas, existe um uso conveniente da
cultura, um tipo de gerenciamento, em que a agenda das culturas políticas contemporâneas é
fortemente marcada por um “negócio da cultura”. Nesse contexto, os museus são significativos
equipamentos culturais, na composição de uma agenda de cultura política, e não escapam da
transformação de uma memória do passado em produto, ou seja, produto de mercado. A tomada da
cultura por um empreendimento “conveniente” atua como um importante recurso disciplinar e
político. Assim, discutir cultura é discutir gestão da cultura, e quem são seus “administradores”. Nesse
sentido, esse breve texto tem como objetivo pontuar algumas questões sobre os complexos
cruzamentos entre: os museus e a emergência da cultura enquanto produto da sociedade
contemporânea.
Palavras-chave: Museus; Cultura Política; Negócio da cultura; Epistemologia colonial; Construção de
Subjetividades.

Abstract: After the twentieth century, the market for culture merges with the market itself, and the
city symbolizes the conversion of a culture enterprise into foreign exchange: "there is no pure space
outside the commodity culture, however much we may desire such a space "(HUYSSEN, 2000, p. 21).
Cultural equipment is used to produce foreign exchange, there is a convenient use of culture, a type of
management, in which the agenda of contemporary political cultures is strongly marked by a "culture
business". In this context, museums are significant cultural equipment in the composition of an agenda
of political culture, and do not escape the transformation of a memory of the past into product, that is,
market product. The taking of culture by a "convenient" enterprise acts as an important disciplinary
and political resource. Thus, discussing culture is discussing culture management, and who are its
"managers". In this sense, this brief text aims to answer some questions about the complex
intersections between: museums and the emergence of culture as a product of contemporary society.
Key-words: Museums; Political Culture; Culture Business; Colonial Epistemology; Construction of
Subjectivities.

926
Os museus e a emergência da cultura enquanto produto da sociedade contemporânea

A grande cidade da atualidade emergiu como local estratégico para uma vari
edade de novos tipos de operações – políticas, econômicas, culturais e subjet
ivas.
Saskia Sassen, 2010, p. 91

Após a 2ª guerra mundial (1939-1945), existe uma ênfase nos aspectos culturais, e o
entendimento do que é cultura passou por diversas modificações. (HALL, 1997). Desde uma
divisão marcada pela noção de uma cultura superior e uma cultura inferior (que embora
criticada, e em muitos aspectos modificada, continua atual), passando pelo relativismo
cultural, com a concepção de convivência das diferentes culturas, até um funcionamento que
relaciona de modo direto cultura e economia, ou seja, o multiculturalismo, um investimento
mais administrativo que de produção cultural; o lugar de desenvolvimento de um tipo de
fomento- o utilitarismo da cultura.
Segundo George Yúdice depois do século XX o mercado da cultura se confunde com o
próprio mercado, e a cidade simboliza a conversão de um empreendimento da cultura em
divisas. Para Yúdice a cidade é um sistema de pensamentos, e é preciso discutir suas políticas
de uso e entender as novas formas de agenciamento da cultura. A ideia não é resgatar um
conceito de cultura de um traço original, mas perceber suas lógicas sofisticadas de
administração do diferente:

La relación entre la esfera cultural y la política o entre la esfera


cultural y la económica no es, ciertamente, nueva. Por un lado, la
cultura ES el ámbito donde surge la esfera pública en e! siglo XVIII, y
como lo afirman los foucaultianos y quienes se dedican a los estudios
culturales, se convirtió en un medio para internalizar el control social,
a través de La disciplina y la gubernamentabilidad, durante los siglos
XIX y XX. (YÚDICE, 2004, p. 24)

Sonia Salcedo del Castillo, propõe pensar um projeto de Modernidade atrelado a um


projeto museológico, pois a imagem e o lugar mais comum ocupado pelo museu esta ligado

927
diretamente ao passado. No entanto, essa aparente contradição ganha novos contornos, pois o
museu não está mais relacionado só a uma memória do passado, existe uma transformação da
concepção de museu e desse passado em produto, ou seja, produto de mercado. “Semelhante à
imagem do escorpião por Baudelaire para expressar os efeitos do progresso, a modernidade é
impensável sem um projeto museológico”. (CASTILLO, 2008, p.237).
A compreensão do que seria um museu, passou por muitas alterações, desde os anos 80,
os museus experimentam um crescimento espetacular de tipologias, temas, e plataformas. No
cenário atual, existe um acalorado debate sobre as novas composições de museus, que, por um
lado, atuam enquanto instrumentos de representação dos grupos que derivam das praticas
sociais/econômicas/culturais não absorvidas pelo sistema e pretendem, em grande parte,
agregar os programas contemporâneos de fazer museu com as emergentes mobilizações
globais para extensões das políticas de reconhecimento, como os museus comunitários; e por
outro lado, os museus são pensados como negócios e geridos como modelos empresariais, em
uma lógica de entretenimento cultural: “o museu como cultura de massa, se aproximam do
mundo do espetáculo ou seja, como um espaço mise-en-scène espetaculares e de exuberância
operística” (HUYSSEN, 2001, p.35).
O “Boom dos museus”, que Castillo analisa está intimamente relacionado à indústria do
entretenimento, a vida que se traduz em produção. O laser/entretenimento, enquanto
imperativos da modernidade, estão extremamente ligado ao consumo, que transforma tudo em
mercadoria. De acordo com Castillo, o museu deve responder ao “novo mundo dos museus”,
uma instituição comprometida com o consumo, o mercado, uma relação de dependência com
a indústria midiática, existe um padrão de comercialização, um museu que tem grandes
públicos e gera lucros. “Isso acontece porque a finalidade dos novos museus não é tão-
somente exibir objetos, mas acima de tudo representar imagens. Daí, o tradicional museu dos
objetos ver-se substituído pelo museu de espectadores”. (CASTILLO, 2008, p.274)
O museu deixou de ser comprometido com o passado para ser comprometido com o
consumo, assim a museu mania, não oferece como produto só o passado, mas pode oferecer:
“a memória se tornou uma obsessão cultural de proporções monumentais em todos os pontos

928
do planeta” (HUYSSEN, 2000, p.16). O museu, nesse sentido, tem uma forte dimensão
empresarial, administrativa, que tem como elemento fundador a comunicação de massa.
Com o objetivo de pontuar algumas questões sobre os complexos cruzamentos entre a
emergência da cultura enquanto produto da sociedade contemporânea, e os museus, pode-se
destacar o consumo como um elemento fundante dessas interpelaçõe, e podemos dizer que a
agenda das culturas políticas contemporâneas produz divisas e predomina a concepção de
cultura enquanto recurso, pois mesmo com os outros usos para a cultura, como por exemplo:
os museus comunitários, que tem a cultura como elemento de resistência, instrumento de luta,
de mudança social; na maior parte dos casos, a cultura não é vista como potencia, mas como
administração do “comunitário”, em que é preciso produzir lugares para o diferente, os
indivíduos devem ficar “felizes” nos lugares criados para eles. A cultura como
reconhecimento, precisa ser legitimada, pelos menos grupos que a produziram.

As políticas de gestão da cultura enquanto dobras permanentes de produção de sentidos

“conhecer é desdobrar uma complexidade interior”


Boaventura de Sousa Santos, 2001,p 36

Os processos de patrimonialização e estetização urbanas se mostram como estratégias


de mercado, que garantem às cidades um lugar de destaque para o turismo, dentro da
mentalidade contemporânea de consumo. Daí a possibilidade de patrimonialização de tudo e
de transformar cada lugar em museu. Com a visão para o turista global, a cidade
patrimonializada esquece o usuário local. Em consequência disso, esse apelo turístico da
cidade leva a construí-la para o turista e muito pouco para o seu habitante. A cidade não se
apresenta, como afirma Huyssen, “como texto múltiplo codificado para ser preenchido com
vida pelos seus habitantes e seus leitores” (HUYSSEN, 2000).

929
Na intenção de atrair esse turista global, a cidade se transforma a partir de um padrão
internacional, que também influencia nas normas de patrimonialização, ditando um modelo de
gestão patrimonial (JEUDY, 2005). A atuação da UNESCO, com suas cartas e declarações
patrimoniais, além da titulação de “Cidades Patrimônio da Humanidade” são um exemplo
dessa globalização da gestão patrimonial no mundo. Além disso, o mundo contemporâneo
caracteriza-se pelo mundo de excessos.
Para Jeudy (2005), existe a universalização da visão europeia, uma reduplicação da
Europa. A cidade tem que ser a minha cidade, e o braço patrimonial é um recurso utilizado
para isso. Segundo Jeudy, o princípio da reflexividade é o motor da lógica patrimonial. É
como se olhar no espelho. O patrimônio é pensado de uma forma global e não local. Numa
sociedade em que tudo pode ser monumentalizado, a morte passa, também, a ser objeto da
“plasticidade museográfica”, numa tentativa de atualização do passado.
Dessa forma, Jeudy (2005) afirma a necessidade de observar o fluxo da cidade e refletir
sobre ela a partir dela. Reabilitar a estética do uso; ver a cidade como uma paisagem que se
move, que produz movimento, que costura; ver como a cidade se revela. A agenda das
culturas políticas contemporâneas é fortemente marcada por um “negócio da cultura” -
economia da memória monumentalista e patrimonializada. Essa agenda produz divisas e
predomina a concepção de cultura como reconhecimento, assim, precisa ser legitimada. A
cultura não é vista como potência, mas como administração do comunitário; a estética urbana
marginalizável, converte a periferia no aparelho administrado pela cidade.
O museu tem um lugar tópico na sociedade contemporânea. Andreas Huyssen descreve
uma musealisação das sociedades ocidentais, o advento de uma verdadeira obsessão
memorial, uma “cultura da memória”, uma valorização do passado como elemento que dá
coerência à nossa própria experiência, em oposição a um presente fraturado em instantes, que
não nos oferece nenhum vislumbre de um futuro promissor. Em um contexto social, que
promove uma imaginação “esterilizada”, guiado por uma lógica imperativa do consumo, que
captura e despontecializa a valorização da cultura, e diante da fragilidade e pobreza de narrar
nossas experiências.

930
Breves Considerações Finais

Vivemos em um projeto de humanidade regido por uma intensa lógica de consumo. No


cenário contemporâneo, em via de regra, o mercado dita as regras; assim, a cultura de
memória se rebate em uma cultura de mercado, como importante traço. Cultura como marca,
como uma grife a ser consumida. E o lugar onde esse evento se materializa é a cidade.
O elemento colonial produz política de produção de submissão, existe uma imposição
cultural que cria políticas de invisibilidade e reconhecimento do “outro”, em forma de
inclusão/exclusão. A “colonialidade do poder” implica, ainda hoje, em algo fundamental, a
invisibilidade sociológica dos não-europeus, com relação à produção de subjetividade, de
memória histórica, de imaginário, de conhecimento "racional". Não há a figura do
colonizador, nos moldes anteriores, mas a lógica do elemento colonial continua inserida na
sociedade contemporânea, em uma sofisticação dos veículos de dominação.
Assim, a lógica museal torna-se um instrumento importante nas construções subjetivas
das sociedades. A partir do momento em que são delimitadas fronteiras culturais, localizando
indivíduos e coletividades, são impostos determinados padrões identitários que,
consequentemente, deverão ser aceitos pelos grupos, e tornar-se-ão regras, moldes identitários
aos quais os indivíduos se enquadrarão, mesmo que não consigam encontrar reflexo naqueles.
E o dispositivo museal se encarregará de produzir todo o “espetáculo”. Parte da crítica de
Jeudy recai, especificamente, sobre a espetacularização das cidades, a monumentalização
destas, que se rendem à lógica do consumo turístico, do capitalismo. Para Jeudy não é o
museu que deve ser criticado, mas o dispositivo museal.
È preciso pensar essa forma museal disposta a cumprir percursos, comprometido em
construir experiências ligadas ao consumo, como problemática. É preciso nutrir a composição
de uma agenda de cultura política que não mantenha a preservação do elemento colonial,
enquanto uma experiência constitutiva do contemporâneo. Nnão há construção de
subjetividade que não seja precedida por relações intersubjetivas. (BRAYNER, 2001). A

931
Subjetividade é construída em um nível individual e coletivo. É ao mesmo tempo fruto de
uma experiência singular, é um processo de interação com o “outro”, e com aspectos: sócio,
políticos, educacionais, culturais, emocionais. Para Félix Guattari (1993) a subjetividade não é
passível de totalização ou de centralização no indivíduo. A subjetividade entendida como algo
que é construído, individual e coletivamente. Frantz Fanon (2008) coloca que a colonialidade
provoca uma desvalorização constitutiva, um corpo de dominado, e que a desconstrução
dessas formações discursivas, só será possível a partir da construção de novas subjetividades.

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932
O MUSEU DA BEIRA DA LINHA DO COQUE (PE) COMO CONTRAPÚBLICO

Gleyce Kelly Heitor*

Resumo: O Museu da Beira da Linha do Coque é uma iniciativa comunitária, de articulação e difusão
de memórias. Criado em 2013, pelo Ponto de Cultura Espaço Livre do Coque, tem como objetivo
desmistificar os estereótipos sobre o bairro recifense, que figura entre os mais violentos, nas narrativas
e no imaginário da cidade. Estigma herdado ao longo de anos de exclusão e de políticas sociais no
local e que serviu de critério para entrada do Programa Pontos de Memória do Instituto Brasileiro de
Museus (IBRAM) no bairro. Nos interessa, com esta comunicação, analisar como as dissidências no
processo de criação do Museu do Mangue do Coque deu origem ao seu contrapúblico (FRASER,
1992; WARNER, 2016) – o Museu da Beira da Linha do Coque.
Palavras-chave: Museu; Pontos de Memória; Contrapúblicos;

933
As disputas do memória no bairro do Coque (Recife – PE)

De perto a cor é outra


Se enxerga inteiro
O defeito aparece
É bem diferente
Nada é como se quer
Nada (NAÇÃO ZUMBI,
2014).

No âmbito da ficção o filme Narradores de Javé (CAFFÉ, 2004) tem como enredo a
escrita da história de uma pequena cidade fictícia, que será submersa pelas águas de uma
represa, sem a notificação prévia, ou mesmo indenização dos seus habitantes, pois estes não
possuem documentos que comprovem seu direito às terras. Inconformados, descobrem que o
local poderia ser preservado se tivesse um patrimônio histórico de valor comprovado e
documentado.
Esta solução mobiliza os moradores na invenção de narrativas que insiram a cidade na
história. O projeto terá como primeiro obstáculo o analfabetismo dos habitantes, restando ao
único homem letrado de Javé, o carteiro Antônio Biá, a missão desta escrita. O filme se
sucede com a busca desses sujeitos por conciliar a urgência por uma história plausível e
relevante sobre a cidade e a vontade de cada pessoa por inserir seu nome na história a ser
contada.

Através de suas metáforas, o filme nos faz pensar sobre as negociações entre
memórias de sujeitos, memórias de grupos e também sobre memórias de sujeitos como
memórias de grupos. Neste sentido, cabe retomamos as contribuições de Maurice Halbwachs
(1990), para quem a memória é sempre uma construção social, erigida no presente, em
referência ao grupo social, pessoas, lugares, objetos e outros signos de nossa experiência,
jamais apenas uma faculdade individual, elucidando ainda que a construção de memórias é
sempre intencional.

934
No embate entre produções de memórias individuais e coletivas, não são poucas as
relações entre os moradores da fictícia Javé e alguns dos diferentes grupos de habitantes do
bairro do Coque25. Nas disputas cotidianas pela cidade, pela vida, por moradia e pelo direito a
outras representações, o bairro popularmente conhecido como o mais violento e um dos mais
pobres do Recife26 foi reconhecido em 2009 pelo Programa Pontos de Memória27 do Instituto
Brasileiro de Museus (IBRAM), não por critérios de herança cultural, ancestralidade ou
relevância para a história da cidade, mas por figurar entre os menores Índices de
Desenvolvimento Humano do Município (IDH-M), conforme metodologia deste programa.

25
Bairro que se desenvolveu nas margens da Ilha de Joana Bezerra, região central da cidade,
sendo cortado pela Avenida Agamenon Magalhães (ponto estratégico, pela conexão com o
Centro, o bairro litorâneo de Boa Viagem e o munícipio de Olinda. E pela vizinhança com os
polos médicos, hoteleiro, comercial e turístico. Razão pela qual enfrenta constantes processos
de gentrificação e especulação imobiliária, agravadas desde 2011, com o advento do projeto
Novo Recife.
26
O Coque é demarcado pelo município como Zona Especial de Interesse Social (ZEIS). Conceito que surgiu no
Recife, na década de 1980, para nomear áreas demarcadas no território da cidade, que de acordo com a lei
municipal, são áreas de assentamentos habitacionais de população de baixa renda, surgidos espontaneamente,
existentes, consolidados ou propostos pelo Poder Público, onde haja possibilidade de urbanização e
regularização fundiária. Conforme: http://www.recife.pe.gov.br/pr/leis/luos/soloZEIS.html Acesso em: 01 de
agosto de 2017.
27
O Programa Pontos de Memória foi criado em 2009 pelo Ministério da Cultura do Brasil
(MinC) em parceria com a Organização dos Estados Ibero–Americanos para a Educação, a
Ciência e a Cultura (OEI). Como uma das ações da Política Nacional de Museus, surgiu com
o pressuposto de “atender os diferentes grupos sociais do Brasil que não tiveram a
oportunidade de narrar e expor suas próprias histórias, memórias e patrimônios nos museus”
(PROGRAMA PONTOS DE MEMÓRIA). Tendo como objetivo favorecer a construção de
uma política pública que garanta o direito à memória, passou a atender diferentes
comunidades, em todas as regiões do Brasil, a partir do critério de vulnerabilidade social em
contextos urbanos. O projeto foi, a princípio, realizado em parceria com o Ministério da
Justiça do Brasil por meio do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania
(Pronasci). (INSTITUTO BRASILEIRO DE MUSEUS E ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS
IBERO-AMERICANOS; PROGRAMA PONTOS DE MEMÓRIA).

935
Além de narradores, os habitantes das duas espacialidades – Javé e Coque – estão
literalmente e simbolicamente às margens (margem do rio, margem da linha férrea, margem
da sociedade). Fato que os levam – diante de uma contexto de diversidade restrita e de um
regime de patrimonialização que comumente preza pela herança, pelo reconhecimento de um
passado comum, e que é geralmente pautado pela valorização do valor de ancianidade,
tradição e conservação – à busca pela comprovação de que o local onde habitam possui
história e que essa história é importante para a cidade. Sendo assim, recorrem à produção de
memórias, que lhes possibilitem existir.

A entrada do Programa Pontos de Memória no bairro do Coque se deu pelo fomento à


criação do Museu Mangue do Coque em 2009, a partir da articulação e formalização de um
Ponto de Memória homônimo. Seguindo a metodologia e os objetivos do programa28, as
lideranças locais foram capacitadas para o desenvolvimento do projeto de museu que teria
como escopo sistematizar e difundir as memórias deste bairro. Aspirando, a partir da criação
de um museu, impulsionar processos de desenvolvimento local29. Porém, mesmo afirmando
prezar pela escuta, participação e protagonismo comunitários, a metodologia dos Pontos de
Memórias não se mostrou eficiente para mediar os diferentes anseios e acolher os dissensos e
diferenças de projetos, gerando “novos conflitos” (SANTANA, 2016) em torno das
narrativas, formas e conteúdos que comporiam o museu a ser criado.

28
Conhecimento e valorização da memória local; Fortalecimento das tradições locais, da
identidade e dos laços de pertencimento; Valorização do potencial local, impulso ao turismo e
à economia local; Desenvolvimento sustentável das localidades; Melhoria da qualidade de
vida, com redução da pobreza e da violência. (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS IBERO-
AMERICANOS)
29
Tais objetivos podem ser lidos e problematizados a partir das análises sobre a emergência da “ideologia do
desenvolvimento” (YÚDICE, 2013), vigente desde o início da década de 1970, com o advento da ideia de
“cultura como recurso” (YÚDICE, 2013) e elemento catalisador do desenvolvimento humano. Segundo Lima
(2014), esta perspectiva se tornou majoritária no campo dos museus, contribuindo significativamente na
determinação dos rumos das políticas para o setor no Brasil.

936
Se conforme Chaumier (2014, p. 275) os museus têm por função unir o corpo social
através da comunidade reunida em torno de tesouros em comum. Tendo como base território e
coleção, e mesmo quando rompem com sua versão tradicional, seus discursos demandam a
afirmação de conjuntos de objetos, práticas, afetos e/ou saberes destinados à coesão social. É
neste sentido que indagamos: como pensar um museu a partir de grupos que dividem o
mesmo espaço, sem impor ou forjar uma ideia homogênea de comunidade?

Ao dialogar com Halbwachs, mas indo além de suas perspectivas, Michel Pollack
(1989) amplia os debates sobre memória, compreendendo-a como resultante de disputas
sociais e culturais sobre os significados do passado. Para este autor, as “batalhas pela
memória”, são empreendidas através de lutas simbólicas contra o silenciamento, por
visibilidade e pela instituição de versões do passado. É neste sentido que ele reflete sobre a
coexistência de discursos oficiais, com outras narrativas e entendimentos sobre os fatos
transcorridos. Por esta perspectiva, as memórias que não aspiram [ou não logram] tornar-se
parte do discurso oficial passam a ser transmitidas e preservadas em circuitos privados, ou
seja, através de redes de sociabilidade afetivas, como amigos, vizinhos, famílias, pequenos
grupos, associações e partidos políticos.

Se apoiando em dispositivos da cultura brega, da estética camelô, nas redes sociais e


na implementação de um ponto de memória pirata, o Museu da Beira da Linha do Coque
surgiu em 2013, por iniciativa do Ponto de Cultura Espaço Livre do Coque. Esse museu,
conforme Santana (2016, p.26), é fruto das “divergências” de parte dos moradores com as
propostas e as metodologias do IBRAM, no processo de implementação do Museu do
Mangue do Coque – projeto que dividiu os lideres locais e se desdobrou na criação de dois
museus, empenhados na disputa pela “história do Coque”. O primeiro museu, porém, foi
criado com o respaldo das políticas públicas oficiais, o segundo por sua vez, acionou as
mesmas nomeclaturas, metódos e tendências presentes nesta política, mas se construiu contra
(portanto sem legitimação) a política do IBRAM.

937
Os criadores do Museu da Beira da Linha do Coque o definiram como um museu
audiovisual itinerante. Seu acervo – inventado juntamente com o museu – é composto por
vídeos e entrevistas coletadas entre moradores, que foram transformados em contadores de
histórias, com o objetivo de desmistificar os estereótipos herdados ao longo de anos de
exclusão e ausências no local. Sobretudo o de bairro violento. Segundo informações do
website:

a comunidade é discriminada e explorada por pesquisadores,


jornalistas, ongs e políticos que se aproveitam da miséria dos
moradores sem que eles possam participar dos benefícios de seus
trabalhos. A marginalização e falta de oportunidades se torna estigma
numa história que tem sido registrada somente por quem olha o Coque
de fora, representando - o sempre pela via da miséria e da violência,
não nos vendo em outros lugares que não os de ameaças ou de
vítimas. (MUSEU DA BEIRA DA LINHA DO COQUE, grifo nosso)

Neste sentido, os articuladores desta iniciativa vêm criando uma coleção de


entrevistas, denominada Cadastro dos Contadores e Contadoras de Histórias do Coque, um
inventário/arquivo de pessoas, que antes de disputar identidades ou passados comuns, visa
afirmar sua permanência no bairro e na cidade, através da reescrita da história do lugar e de
seus cotidianos pela eliminação de porta-vozes ou intermediários.

O Ponto de Cultura Espaço Livre do Coque, articulador da iniciativa, não é


formalmente um ponto de cultura, pois não possui certificação do Ministério da Cultura.
Sendo assim, o uso do termo ponto de cultura é uma livre apropriação dos seus integrantes e
certamente se relaciona com a posição que o movimento ocupa na comunidade. Mas a
ausência de certificação o torna desqualificado para participar de alguns processos públicos de
fomento – ao menos como museu. O que nos faz refletir que não basta que as comunidades ou
grupos tenham aderência ao discurso do desejo de memória. É preciso responder às normas,
dominar léxicos e saber ler as nuances tanto das oportunidades de financiamento, como de
outros dispositivos de reconhecimento das práticas museológicas e patrimoniais. É neste

938
sentido que, o discurso da diversidade é por vezes restrito e não se mostra poroso aquilo que
não é organizado segundo os critérios de um campo disciplinar e político.

Um ponto de cultura pirata e o sentido de contrapúblico no caso do Museu da Beira da


Linha do Coque

O discurso público pode ter grande urgência e um


significado íntimo. No entanto, sabemos que ele
foi dirigido não exatamente pra nós, mas para o
desconhecido que erámos até o momento em que
passamos a ser destinatário dele. (WANER, 2016,
p.7)

A esfera pública tal qual proposta por Habermas – como um “espaço” onde a
participação política se dá por intermédio da fala; uma arena institucionalizada de interações
discursivas distinta do Estado e que possibilita a produção e a circulação de discursos livres
que podem, inclusive, ser críticos ao Estado – é analisada por Nancy Fraser (1992). A autora
pondera que o conceito, conforme formulado pelo filósofo, vislumbra um espaço aberto e
acessível para todos, afirmando ainda que a interação discursiva inerente à essa proposta de
esfera pública é marcada por protocolos de estilo definidos por diferenças de status social, por
barreiras informais que persistem e que mesmo quando todos estão formal e legalmente aptos
a participar do debate, a participação política de grupos minoritários não está garantida.

Por sua vez, os grupos minoritários podem não encontrar os meios necessários para
expressar suas idéias e demandas nos meios deliberativos, fazendo com que a opinião dos
grupos dominantes prevaleça de modo a parecer universal. Algo que ocorre devido à
existência de uma única esfera pública, que se pretende acessível a todos os grupos,
desconsiderando suas condições sociais. Neste sentido, os membros de grupos minoritários

939
são impelidos a constituir espaços alternativos de deliberação, arenas discursivas onde seja
possível inventar e circular contradiscursos.

Tais espaços foram nomeados por Fraser (1992) de “contrapúblicos subalternos”, uma
vez que permitiriam aos grupos formularem interpretações dos assuntos públicos levando em
consideração suas identidades, interesses, necessidades. Porém, conforme a autora, não é por
emergir de grupos minoritários que

as esferas públicas subalternas sejam sempre virtuosas. Algumas delas


são explicitamente antidemocráticas e anti-igualitárias, e mesmo
aquelas com intenções democráticas e igualitárias eventualmente
praticam seus próprios modos de exclusão informal e marginalização
(1992, p. 124)30.

Desdobrando e em diálogo com o pensamento da autora, Michael Warner (2016)


afirma, ao tratar das diferenças e da produção de “públicos” e “contrapúblicos”, que o sentido
de público não se refere a um grupo de pessoas compartilhando um mesmo tempo e espaço,
muito menos a um tipo de totalidade social. Segundo o autor, aquilo a que se pertence,
quando se pertece a um público, não configura nenhuma comunidade ou grupo social em
sentido estrito. Um discurso público, quando proferido, não se dirige a identidade concreta
dos destinatários, mas à sua identificação ou desidentificação com aquilo a que o discurso se
dirige. É pensando nisso, que Simon Sheikh (2009, p.80) nos convida a perceber a
importância de ressaltar neste autor

a noção de público como sendo constituído, por um lado, pela


participação e pela presença, e por outro pela articulação e pela
imaginação. Em outras palavras, o público é uma tentativa imaginária
com efeitos reais: um público espectador, um grupo, um adversário,

30
I do not suggest that subaltern counterpublics are always necessarily virtuous. Some of them are explicitly
antidemocratic and antiegalitarian, and even those with democratic and egalitarian intentions are not always
above practicing their own modes of informal exclusion and marginalization. (Tradução nossa)

940
um simpatizante ou uma comunidade, são capazes de imaginar e
serem imaginados através de um modo de endereçamento específico.

Mobilizamos aqui esses autores como possibilidade de leitura da criação do Museu da


Beira da Linha do Coque como um episódio no qual se dá a emergência de um
“contrapúblico”, nos interessa, por sua vez, ao invés de focar nas dissidências entre os dois
grupos de moradores, olhar como, na medida que afirmo que o projeto Pontos de Memória,
como política e discurso públicos, imagina e se endereça para destinatários desconhecidos,
imaginando-os e conformando-os a partir desses endereçamentos, é possível afirmar que os
articuladores do Museu da Beira da Linha do Coque (aqui apresentado como exemplo da
cisão com o ideal homogêneo de comunidade), atuam neste processo como destinatários “não
captado” (WARNER, 2016, p. 5) da política pública. Primeiro, por renegar um dos principais
pressupostos do programa: a ênfase nos índices de pobreza e violência. Sendo do interesse do
grupo dissidente, apresentar um Coque estranho às representações recorrentes na mídia –
culturalmente rico, ativo, resistente. Abrigo de trabalhadores, de artistas, de cidadãos;
segundo, refutar a metodologia do programa: que do ponto de vista do grupo, não promovia o
protagonismo dos moradores, ali submetidos aos interesses do Estado e ao modus operandis
dos seus técnicos.

Lembrando as ressalvas de Fraser, não se trata ainda de analisar o caráter virtuoso ou


anti-democrático desta ruptura, no que diz respeito às disputas internas que mobilizaram tal
dissidência. Interessa, porém, neste momento afirmar esse projeto como “contrapúblico” do
Estado e sua impossibilidade de acolher e mediar os diferentes projetos de Coque, na esfera
pública aberta pelo fomento ao desejo de memória. Atuação que gera, na medida que
reconhece apenas uma das iniciativas, não só a marginalização do dissenso, como sua sanção,
na forma de dificuldades aos meios e recursos disponibilizados pela política pública.

É neste sentido que, mais do que aspirar aos traços formais e oficiais da ideia de
museu, o que está em questão no Museu da Beira da Linha do Coque é a perseguição do “[...]

941
rastro da possibilidade de um cruzamento de subjetividades individuais em um compartilhado
empreendimento de patrimonialização, de fabricação das memórias coletivas” (BARRETO,
2014, p. 15). O que torna este museu, com suas estratégias de apropriação de saberes, fazeres
e procedimentos, uma demonstração de que existe uma diversidade que não está pronta para
ser catalogada, pois é criada e experimentada cotidianamente, nas negociações pelos lugares.

Experiência que insinua ainda que ao piratear o termo ponto de cultura, ao se afirmar
como museu, ao recorrer a novas e antigas estratégias de financiamento de projetos, ao expor
através de práticas ligadas ao imaginário do camelô e ao improvisar um conjunto de
entrevistas, os protagonistas deste projeto fundam uma museologia que mesmo na sua
informalidade, possibilita que pessoas e coletividades – ancestrais ou temporárias – se
utilizem e refaçam a noção de museu e de patrimônio cultural não para se perpetuar, mas
como licença para existir. Práticas que podem tanto reafirmar o caráter legitimador dos
museus, como indicar o acionamento de munição nas negociações por representação e
diversidade. Mas, que sobretudo, são índice da extrema dificuldade de alguns agentes por
operar a gramática disciplinadora e normativa das políticas culturais no âmbito dos museus e
dos patrimônios, por não corresponderem à critérios essencialistas (YÚDICE, 2016, p.13). O
que torna evidente, no âmbito dos museus, as lacunas, os limites e as restrições na garantia de
diversidade cultural.

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WARNER, Michel. Públicos e Contrapúblicos (versão abreviada). In: HONORATO, Cayo;
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944
REFLEXÕES SOBRE AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA OS MUSEUS NOS
GOVERNOS DEMOCRÁTICOS POPULARES DO SÉCULO XXI: ARGENTINA -
BRASIL - URUGUAI
Ana Ramos Rodrigues*

Resumo: Este texto aborda algumas reflexões sobre a construção das políticas culturais para a área
museológica no contexto do surgimento de três governos democráticos e populares na América do Sul
no século XXI (Argentina: governos de Néstor Kirchner – 2003/2006 e Cristina Fernández Kirchner –
2007/2015; Brasil: governos de Luís Inácio Lula da Silva– 2003/2010 e o primeiro mandato de Dilma
Rousseff – 2011/2014; Uruguai: governos de Tabaré Vasquez – 2005/2010 e José Mujica–2010/2015).
As políticas públicas voltadas para os museus nas últimas décadas tiveram muitos avanços e desafios.
Um dos avanços mais expressivos de políticas públicas para os museus foi iniciar uma política de
integração entre os países ibero-americanos, a partir da realização do “I Encontro Ibero-americano de
Museus” em Salvador, Bahia, em junho de 2007 registrada pela “Declaração de Salvador”, este
documento estabeleceu a necessidade de se criar um programa que fosse um espaço de diálogo entre
os museus e os países ibero-americanos, assim criando-se o Programa Ibermuseus, como espaço de
integração e articulação de uma política museológica ibero-americana. Com o Estado re-orientando
suas políticas culturais em um sentido mais amplo e abrangente, procurou-se compreender,
contextualizar e analisar o lugar dos museus nessa política cultural nos países Argentina, Brasil e
Uruguai.
Palavras-chave: governos democráticos; políticas públicas; museus.

Abstract: This text approaches some reflections on the construction of cultural policies for the
museological area in the context of the emergence of three democratic and popular governments in
South America in the 21st century (Argentina: governments of Néstor Kirchner - 2003/2006 and
Cristina Fernández Kirchner - 2007 / 2015: Brazil: governments of Luís Inácio Lula da Silva -
2003/2010 and the first term of Dilma Rousseff - 2011/2014; Uruguay: governments of Tabaré
Vasquez - 2005/2010 and José Mujica-2010/2015). Public policies for museums in recent decades
have seen many advances and challenges. One of the most significant advances of public policies for
museums was to initiate a policy of integration among Ibero-American countries, starting with the
"First Ibero-American Meeting of Museums" in Salvador, Bahia, in June 2007, registered by the "
Declaration of Salvador, "this document established the need to create a program that would be a space
for dialogue between museums and Ibero-American countries, thus creating the Ibermuseus Program
as an area for the integration and articulation of an Ibero -American. With the State re-orienting its
cultural policies in a broader and more broad sense, it was sought to understand, contextualize and
analyze the place of museums in this cultural policy in the countries Argentina, Brazil and Uruguay.
Key-words: Democratic governments; public policy; Museums

945
Introdução

O tema das políticas públicas para a cultura ingressou de forma mais significativa na
agenda de discussões dos países da América Latina no final dos anos 199031. Entendendo a
cultura como elemento fundamental para a integração regional, as nações do bloco do
Mercado Comum do Sul (MERCOSUL) criaram, em 1998, o MERCOSUL Cultural. Com o
objetivo de estimular o debate e fortalecer a área, os pontos destacados nesse encontro
visaram estimular o intercâmbio de políticas culturais, o desenvolvimento de estudos, a
integração de sistemas de informação e estatística, a promoção de intercâmbios técnicos e
artísticos, a gestão do patrimônio cultural e a valorização da memória social e da diversidade
cultural.
O Mercosul Cultural é constituído pela Reunião de Ministros da Cultura (RMC),
entidade máxima do setor, e conta com uma Secretaria, um Comitê Coordenador Regional
(CCR), onde se reúnem representantes dos Ministérios de Cultura para articular a agenda do
setor e três Comissões especializadas, entre elas, a de Patrimônio Cultural (CPC); a de
Diversidade Cultural (CDC); e a de Economia Criativa e Indústrias Culturais (CECIC).
Embora definidas as diretrizes gerais culturais do Mercosul, somente anos mais tarde
se discutiu um plano político para o setor museológico. Em 19 de setembro de 2005 em
Buenos Aires, Argentina, ocorreu a Jornada Los Museos y la Política de Mercosur, onde se
ressaltou a dimensão dada à política de museus dos países do bloco32. Com o objetivo de
aprovar uma agenda de trabalho para articular um plano estratégico para a integração dos
museus da região, a "Declaração de Buenos Aires para os Museus do Mercosul" apresentou os
aspectos essenciais a serem trabalhados: os museus do século XXI; Governabilidade e Gestão;
Interpretação e Proteção dos Bens Culturais: Prevenção contra o tráfego ilícito de Bens

31 31
Reunión de Ministros y Responsables de Cultura de los países iberoamericanos (Salvador de Bahía,
Brasil, 9 y 10 de julio de 1993); Reunión Informal de Ministros y de Responsables de las Políticas Culturales
en Iberoamérica (Madrid, España, 25 y 26 de junio de 1997); Encuentro Iberoamericano de Ministros de
Cultura (Isla Margarita, Venezuela, 20 y 21 de octubre de 1997) e
III Reunión de Ministros y Encargados de Políticas Culturales de Iberoamérica (La Habana, Cuba, 10 y 11 de
junio de 1999). Acesso em http://www.oei.es/historico/cumbres.htm
32
Além dos países membros, este encontro contou com a presença do Chile, país associado ao Mercosul.

946
Culturais; Circulação de Bens Culturais; Comunicação e Acessibilidade ao Patrimônio; e
Política(s) Nacional(ais) de Museus.
Estes encontros e acordos governamentais para a área da cultura e mais
especificamente no âmbito dos museus tiveram seus avanços mais expressivos nas últimas
décadas. A conjuntura política que acontecia nos primeiros quinze anos do século XXI na
América Latina foram caracterizados por um fenômeno marcante: a chegada ao poder de
partidos, movimentos e lideranças de esquerda. Trata-se de algo novo na história latino-
americana, marcada por regimes oligárquicos ou patrimonialistas, por ditaduras ou (no
máximo) por governos conservadores formados democraticamente (SILVA, 2015).
Em novembro de 2006 ocorreu a XVI Conferência Ibero-Americana de Chefes de
Estado e de Governo em Montevidéu, Uruguai. Este encontro resultou na redação da “Carta
Cultural Ibero-americana”, favorecendo uma maior articulação e melhor cooperação entre os
países da região ibero-americana. Um projeto político de grande proporção que teve como
objetivo promover a valorização da cultura como meio de relação e integração, como fator de
desenvolvimento e como estratégia para uma governança global equilibrada. Reconhecendo a
diversidade cultural como uma grande riqueza, este documento encontra-se em diálogo com a
Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade de Expressões Culturais (UNESCO,
2005).
As políticas públicas voltadas para os museus nas últimas décadas tiveram muitos
avanços e desafios. Um dos grandes progressos para as políticas públicas para os museus foi
iniciar uma política de integração entre os países ibero-americanos, no Brasil em junho de
2007 com a realização do I Encontro Ibero-americano de Museus (Salvador/Bahia) que
contou com a participação de representantes do campo da museologia e dos museus dos
países ibero-americanos33.

33
Países participantes: Andorra, Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, El Salvador,
equador, Espanha, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, Portugal, república
Dominicana, Uruguai e Venezuela.

947
Este encontro resultou na elaboração da “Declaração da Cidade do Salvador”,
documento que estabeleceu a necessidade de se criar o Programa Ibermuseus com um espaço
para o diálogo e o intercâmbio nos distintos âmbitos de atuação dos museus, visando o reforço
na relação entre as instituições públicas e privadas, entre os profissionais do setor
museológico ibero-americano, além de promover a proteção e a gestão do patrimônio, o
intercâmbio de experiências e do conhecimento produzido na área.
Para Mario chagas e Marcelo Lages (2016), a “Declaração de Salvador” em termos
conceituais e na forma como foi concebida tem como referencia a Mesa Redonda de Santiago
do Chile realizada em 1972, ainda sob o governo de Salvador Allende.
O Ibermuseus foi aprovado como iniciativa34 em julho de 2007, na X Conferência
Ibero-Americana de Ministros de Cultura em Valparaiso (Chile)35 e em novembro deste
mesmo ano, na XVII Cúpula Ibero-Americana de Chefes de Estado e de Governo de Santiago
do Chile, e somente como Programa, na XVIII Cúpula Ibero-Americana de Chefes de Estado
e de Governo, em outubro de 2008, na cidade de San Salvador, República de El Salvador36.
O Programa Ibermuseus foi criado a partir das propostas de linhas de ação da
“Declaração de Salvador”. Programa intergovernamental desenvolvido para o fortalecimento
das políticas públicas de museus na Ibero-América, o Ibermuseus é um mecanismo de
cooperação e integração dos países signatários por meio de intercâmbios, troca de
experiências e avanços na institucionalização de políticas públicas, incluindo grupos sociais
deslegitimados pelas narrativas tradicionais, promovendo o respeito aos direitos humanos, à
igualdade de gênero, entre outras questões da atualidade, abarcando desde questões locais até
problemáticas ibero-americanas e globalizadas.
No encontro de Salvador definiu-se o ano de 2008 como o Ano Ibero-americano de
Museus. Com o tema “Museus como agentes de mudança e desenvolvimento” neste

34
Estatuto da Iniciativa Ibermuseus – Documento anexo a Ata da Primeira Reunião do Conselho
Intergovernamental da Iniciativa Ibermuseus realizada em Brasília, Brasil, nos dias 28 e 29 de janeiro de 2008.
35
Declaração de Valparaíso - X Conferencia Iberoamericana de Cultura Valparaíso, Chile, 26 e 27 de julho de
2007.
36
Para saber mais ver: Relatório final: Conferência Ibero-Americana de Chefes de Estado e de Governo -
Reuniões Ministeriais Setoriais. Editado pela: Secretária-Geral Ibero-Americana (2008).

948
respectivo ano foram desenvolvidas atividades com o fim de promover uma agenda comum e
para a construção de ações mais efetivas dos 22 países ibero-americanos, indicando, assim, a
programação futura para os museus.
Neste mesmo ano de 2008, ocorreu o “II Encontro Ibero-americano de Museus”, com
o tema “Museus como agentes de transformação social e desenvolvimento” realizado entre 7 a
11 de julho em Florianópolis, SC, Brasil. Neste encontro foi apresentada a proposta de criar-
se um Portal Ibermuseus e também a Rede Ibero-americana de Museus.
A Declaração de Salvador e o Programa Ibermuseus são legatários de documentos
que resultaram de várias reuniões de trabalho realizadas durante as últimas décadas no âmbito
da cultura, do patrimônio, da memória e da museologia na Ibero-América: a Declaração da
Mesa Redonda de Santiago do Chile (1972), a Declaração de Oaxtepec (1984), a Declaração
de Caracas (Venezuela, 1992), a Convenção sobre a proteção e promoção da Diversidade das
Expressões Culturais (Unesco, 2005) e a Carta Cultural Ibero-Americana (2006).
O Programa Ibermuseus37 oficialmente iniciou suas atividades somente em 2009 e
desde então vem se consolidando como um importante espaço de fomento e articulação de
políticas públicas para os museus, além de servir de apoio para a realização de
diferentes projetos voltados à mobilização do campo museológico da região ibero-americana.
As linhas de ação do Programa Ibermuseus são: Ação Educativa; Apoio ao
Patrimônio Museológico em Situação de Risco; Programa de Apoio a Projetos de Curadoria;
Observatório Ibero-Americano de Museus; Programa de Formação e Capacitação e
Sustentabilidade das Instituições e Processos Museais Ibero-Americanos.
O Programa Ibermuseus encontra-se vinculado à Secretaria Geral Ibero-Americana
(Segib), é dirigido por um Comitê Intergovernamental integrado por representantes de doze
países membros38. Conta com a colaboração administrativa da Organização dos Estados
Ibero-Americanos (OEI), e do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), além do apoio

37
O Portal Ibermuseus foi criado como um espaço de difusão das ações realizadas entre os 22 países ibero-
americanos participantes do Programa Ibermuseus: Para saber mais acesse: http://www.ibermuseus.org/
38
Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, Espanha, México, Paraguai, Peru, Portugal e
Uruguai, e presidido pelo México, a partir de 2016.

949
financeiro da Agência Espanhola de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento
(AECID). Dentro desta estrutura encontra-se a sua Unidade Técnica, responsável pela
execução dos Planos Operacionais Anuais, e pelo funcionamento do Programa.
Dos países da América Latina que participam do Programa Ibermuseus, somente seis
dispõem de uma Política Nacional de Museus explícita (Brasil, Colômbia, Cuba, Equador,
República Dominicana e Uruguai)39. Nos demais países as políticas públicas para museus
estão inseridas dentro de um plano político cultural geral.
O Programa Ibermuseus apresenta um regulamento de funcionamento com dezoito
artigos, divididos em doze capítulos40 e apresenta com objetivo geral promover a integração, a
consolidação, a qualificação e o desenvolvimento dos museus ibero-americanos. Os objetivos
específicos do Programa Ibermuseus são:

1. Fortalecer as políticas públicas se museus dos países ibero-


americanos; 2. Estabelecer mecanismos de intercâmbio, informação e
difusão entre os museus; 3. Promover a formação e a capacitação de
pessoal dos museus; 4. Estabelecer mecanismos para a ampliação da
capacidade educativa dos museus; 5. Fomentar a circulação de acervos
e exposições nos países participantes do Programa; 6. Promover a
proteção e a gestão do patrimônio museológico; 7. Fomentar a
pesquisa no campo dos museus; 8. Promover o direito à memória das
diferentes etnias e gêneros, de grupos e movimentos sociais, apoiando
ações de apropriação social do patrimônio e de valorização dos
distintos tipos de museus.

39
Os Planos Nacionais de Museus dos países são documentos de elaboração recente, sendo o mais antigo o do
Brasil (2003), seguido pela Colômbia e por Cuba (2009), Equador e Uruguai (2012). Já a República Dominicana
criou seu plano estratégico para ser posto em prática entre os anos de 2012 e 2016.
40
Capítulo I – Definição do Programa Ibermuseus; Capítulo II – Objetivos do Programa Ibermuseus; Capítulo
III – Estrutura organizativa do Programa Ibermuseus; Capítulo IV – Da Secretaria Geral Ibero-Americana;
Capítulo V – Dos integrantes do Programa Ibermuseus; Capítulo VI – Dos representantes dos países no
Programa Ibermuseus; Capítulo VII – Da vigência do Programa Ibermuseus; Capítulo VIII – Do Fundo
Ibermuseus; Capítulo IX – Do destino dos recursos; Capítulo X – Funcionamento do Programa Ibermuseus;
Capítulo XI – Acompanhamento e avaliação do Programa Ibermuseus; Capítulo XII – Da vigência do
Regulamento e Considerações Finas.

950
Dos países da América Latina que participam do Programa Ibermuseus, somente seis
dispõem de uma Política Nacional de Museus explícita (Brasil, Colômbia, Cuba, Equador,
República Dominicana e Uruguai)41. Nos demais países as políticas públicas para museus
estão inseridas dentro de um plano político cultural geral.
Em setembro de 2009, em Santiago, Chile foi realizado o “III Encontro Ibero-
americano de Museus”, com o tema “Museus em um contexto de crise”. Este encontro
resultou na “Declaração de Santiago do Chile”. Diante aos contextos de crise econômica,
ecológica, sanitária, social e política presentes na sociedade, percebeu-se uma oportunidade
de reflexão, mudança e fortalecimento. Assim, definindo e criando políticas públicas para se
investir no setor de museus como fator de desenvolvimento cultural e social em momentos de
crise.
Em maio de 2010, em Toledo, Espanha, foi realizado o “IV Encontro I erro-
americano de Museus”, com o tema “A institucionalização das políticas públicas na área de
museus nos países da Ibero-Americanos”. O resultado deste encontro foi a “Declaração de
Toledo”, o qual se destaca como uma das propostas: a “criação, implementação e
fortalecimento de políticas de museus, buscando a aproximação baseada na cooperação”
(DECLARAÇÃO DE TOLEDO, 2010).
Em junho de 2011, ocorreu no México o “V Encontro Ibero-americano de Museus”
com o tema “Preservação do patrimônio museológico, repatriação de bens e cooperação
internacional”. Este encontro resultou na “Declaração do México”, destaca-se “a necessidade
de estabelecer e fortalecer as políticas públicas para a proteção, preservação e difusão do
patrimônio museológico no âmbito ibero-americano” (DECLARAÇÃO DO MÉXICO, 2011).
Em outubro de 201242, em Montevidéu-Uruguai ocorreu o “VI Encontro Ibero- Americano
de Museus”, com o tema “Museu: território de conflitos? Olhares a 40 anos da

41
Os Planos Nacionais de Museus dos países são documentos de elaboração recente, sendo o mais antigo o do
Brasil (2003), seguido pela Colômbia e por Cuba (2009), Equador e Uruguai (2012). Já a República Dominicana
criou seu plano estratégico para ser posto em prática entre os anos de 2012 e 2016.
42
Neste mesmo ano de 2012, foi realizado, em 23 de novembro em Brasília, a XXXV Reunião de Ministros de
Cultura do Mercosul. Nesta reunião foi apresentada a proposta da criação do Programa MercoMuseus, tendo

951
mesa redonda de Santiago do Chile”. Este encontro teve como resultado a “Declaração de
Montevidéu”, destaca-se “a importância do funcionamento das instituições democráticas para
a recuperação dos princípios e valores da Mesa Redonda do Santiago do Chile e sua aplicação
nas políticas públicas de museus” (DECLARAÇÃO DE MONTEVIDÉU, 2012).
Em outubro de 2013, ocorreu o “VII Encontro Ibero-americano de Museus” em
Barranquilla, Colômbia com o tema “Memórias e mudança social”. Este encontro resultou na
“Declaração de Barranquilla” o qual reconhece:
a luta pela manutenção das identidades locais e nacionais tem sido um
trabalho de muitos anos no contexto das democracias, nas quais a
cultura se identifica como fator de valorização da igualdade e da
coesão social, e em que o reconhecimento e o respeito à diversidade
de identidade contribui para equiparar os direitos e para minimizar a
superemacia de grupos e discursos hegemônicos (DECLARAÇÃO
DE BARRANQUILLA, 2013).

Em outubro de 2014, ocorreu o “VIII Encontro Ibero-americano de Museus”, em


Lisboa, Portugal com o tema “Caminhos de futuro para os museus ibero-americanos:
tendências e desafios na diversidade”. Resultando na “Declaração de Lisboa”, o qual se
destaca ser meta prioritária: “O compromisso em aprofundar ações conjuntas no campo
museológico, mediante um modelo de cooperação horizontal, de intercambio de saberes e
experiências, e com respeito às diversidades culturais” (DECLARAÇÃO DE LISBOA, 2014).
Percebe-se por meio dos encontros apresentados nos últimos anos, uma conjuntura favorável
para a construção de um espaço cultural ibero-americano e para a criação de uma política de
cooperação internacional e de acordos entre os países da América Latina no âmbito dos
museus, avançando para uma integração entre as nações ibero-americanas no papel social
dos museus e o respeito à diversidade cultural.

como fim reunir instituições e profissionais de museus dos países do Mercosul, em um esforço continuado para o
aperfeiçoamento de suas ações e o desenvolvimento de políticas públicas para a cultura, seguindo assim a
proposta de estimular a integração sul-americana por meio da aproximação entre culturas
Fonte:< file:///C:/Users/sem-sedac/Downloads/Presentacin_de_propuesta_MERCOMUSEOS%20(1).pdf>
Acesso em: 20/09/2015

952
Neste sentido, este texto pretende realizar algumas reflexões sobre as políticas
públicas para a área museológica dos países da Argentina, do Brasil e do Uruguai no contexto
do surgimento de governos democráticos e populares no século XXI. Re-orientando suas
políticas culturais em um sentido mais amplo, pretende-se compreender, contextualizar e
analisar o lugar dos museus nessa política cultural, tendo por eixo as legislações e a área
institucional na área dos museus presentes nestes governos democráticos por meio dos
acordos de cooperação internacional em relação às políticas públicas voltadas para os museus.

Os museus e a Museologia Social


Os museus são instituições que atualmente crescem cada vez mais como um espaço e
fenômeno de afirmação de segmentos sociais, podendo se perceber isto, através das diferentes
tipologias de museus existentes, tais como comunitários, ecomuseus, museus de território,
museus locais, museus de resistência, museus populares, étnicos, temáticos, museus de
direitos humanos e além dos museus tradicionais.
Reafirmando a perspectiva dos autores Mario Chagas e Inês Gouveia (2014) que a
museologia social não é o fato de existir em sociedade, mas sim, os compromissos sociais que
assume e com os quais se vincula. Refere-se, portanto, a compromissos éticos, especialmente
no que dizem respeito às suas dimensões científicas, políticas e poéticas; diferenciando-se de
uma museologia com base conservadora, burguesa, neoliberal e capitalista. Ampliando este
conceito, Mário Moutinho (1993) apresenta a Sociomuseologia, como sendo um esforço de
adequação deste conceito as estruturas museológicas e as condições da sociedade
contemporânea.
Conforme Hugues de Varine sobre esta nova concepção da museologia, nos afirma:
Não há como afirmar que existe uma “nova” museologia, mas sim
uma museologia diferente, decorrente de uma ideia diferente do
museu e de seus objetivos, diferente da concepção “normal”, ou
predominante, do museu, tal como imposta pelas grandes instituições,
os grandes profissionais e as organizações que os agrupam nos planos
nacional ou internacional. (VARINE, 2000, p.22).

953
O aumento de diferentes tipologias de museus demonstra uma nova perspectiva
destes espaços museológico em reivindicar uma afirmação da diversidade cultural e fortalecer
a identidade cultural com a ideia de pertencimento a uma determinada coletividade. Neste
sentido, o campo das Políticas Públicas tem como desafio construir políticas voltadas para as
comunidades culturalmente marginalizadas.
Nesta perspectiva, é preciso contribuir na produção de novos dados e reflexões
através de um estudo comparativo sobre as políticas públicas para os museus e as ações e
programas realizados por estes países da América Latina.
Dessa forma, pretende-se visualizar a construção de uma articulação política do setor
cultural dos países Argentina, Brasil e Uruguai para fortalecer o papel dos museus como
instituições centrais para a promoção de políticas para a diversidade cultural e o direito à
memória.

Os museus e as políticas públicas


O museu, como uma ferramenta política e social utilizada para inclusão de identidade
e cidadania para garantir o direito à memória dos grupos e movimentos sociais, é um
instrumento com potencial para fortalecer a percepção crítica e reflexiva da realidade social
de cada país.
Como um construtor de memórias e identidades, o museu também age como um
“selecionador” do patrimônio. Neste processo de seleção, apresentam-se algumas implicações
de escolha, refletindo-se assim as concepções políticas e ideológicas da coletividade. Ou seja,
trata-se de uma delicada equação do que deve ser lembrado e do deve ser esquecido.
Ao analisar as políticas públicas para os museus de Argentina, Brasil e Uruguai,
estaremos analisando, por conseguinte, a trajetória de suas criações, bem como às suas
adequações aos tempos de regimes democráticos e populares, pois estes três países passaram
por ditaduras militares43. Igualmente, por serem países participantes dos encontros Ibero-

43
Período de governos ditatoriais: Argentina entre 1976 a 1983; Brasil entre 1964 a 1985 e Uruguai entre 1973 a
1985.

954
Americanos de Museus, se verificará a importância dos três países na construção de uma nova
orientação museológica, que visa, entre outras coisas, atender as reivindicações da diversidade
cultural.
Neste sentido, será apresentado um panorama sobre a legislação dos museus para
conhecer em quais órgãos institucionais estes se encontram subordinados dentro das suas
políticas públicas para os museus nestes países com governos democráticos.
Na Argentina na década de 1930, os museus estavam sob tutela da Comisión
Nacional de Museos y de Monumentos y Lugares Históricos (CNMMyLH)44. Embora a
Argentina não possua uma legislação nacional específica, existe uma lei de patrimônio que
regulamenta o âmbito dos museus, denominado de Dirección Nacional de Patrimonio y
Museos45, vinculada à Secretaria de Cultura da Nação, criada no ano de 2002, passa a ser
Ministerio de la Cultura desde 2014 durante o governo de Cristina F. Kirchner. Trata-se de
uma Secretaria de Estado com status de ministério, subordinada diretamente à Secretaria
Geral da Presidência. Atualmente os museus nacionais estão vinculados ao órgão denominado
Dirección Nacional de Museos46. A República Argentina está organizada sob um sistema
federal que consiste em 24 jurisdições: 23 províncias e a Cidade Autônoma de Buenos Aires
sede do governo nacional. Existem duas províncias que possuem uma legislação própria para
seus museus: Chaco – Ley de Museos de la Provincia del Chaco (Ley 6.201 de 20/08/2008) e
Santa Fé - Ley Nº 12955 de Protección, Preservación y Conservación del Acervo Natural,
Histórico y Cultural de Los Museos de La Provincia de Santa Fe, Promulgada em 05/01/2009
- Decreto Nº 2789 Regulamentado da Lei 12.955 e 20/12/2010. A Argentina não possui uma

44
Lei nacional nº 12.665 sancionada em 30/09/1940. Em 20/01/2015, mediante a Lei n° 27.103, o órgão recebeu
o nome de Comisión Nacional de Monumentos, de Lugares y de Bienes Históricos.
45
Tem a responsabilidade de entender, conduzir e planejar estratégias para a investigação, promoção, resgate,
preservação, estímulo, melhoramento, acrescentamento e difusão, no âmbito nacional e internacional, do
patrimônio cultural da nação, tangível e intangível, imaterial e oral, em todos os campos em que se desenvolve.
46
Encontra-se submetida a Subsecretaría de Gestión Patrimonia e a Secretaría de Patrimonio Cultural a qual
se propõe a modernizar as políticas públicas dos museus nacionais, a gestão dos bens e sítios culturais, e a
investigação sobre o patrimônio com o fim de interagir com os hábitos culturais contemporâneos e construir
cidadania. Acesso em https://www.cultura.gob.ar/institucional/organismos/subsecretaria-de-gestion-patrimonial/

955
definição legal do termo museu, utilizando o conceito do Conselho Internacional de Museus
(ICOM):
O museu é uma instituição permanente, sem fins lucrativos, a serviço
da sociedade e do seu desenvolvimento, aberta ao público, que
adquire, conserva, estuda, expõe e transmite o patrimônio material e
imaterial da humanidade e do seu meio, com fins de estudo, educação
e deleite (ICOM, 2007).

No Brasil, antes de ter um órgão específico na área da Política Nacional de Museus


(PNM), na década de 1930 os museus federais, encontravam-se sob a tutela do Instituto
Patrimônio Artístico Nacional (IPHAN), a partir de 2003, com a entrada de Gilberto Gil no
Ministério da Cultura (Minc), foi criada a PNM47, compreendendo a renovação e a
importância dos museus na vida cultural e social brasileira. A etapa seguinte desta política foi
a criação do Sistema Brasileiro de Museus (SBM), por meio do Decreto nº 5.264, de 5 de
novembro de 200448. Dando continuidade à implementação da política no setor, em 2009 foi
criado o Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM)49 (Lei nº 11.906, de 20 de janeiro), a qual
apresenta uma definição legal de museu no Brasil. Com a criação do IBRAM, em 2009, os
museus que estavam sob tutela do IPHAN passaram para o IBRAM. Em consequência foi
instituído o Estatuto de Museus (Lei nº 11.904 criado em 14/01/2009), criando uma legislação
própria que se estendeu para todos os museus brasileiros, diferentemente da portaria do
IPHAN que abrangia somente os museus federais. Durante o governo Lula foram criados
outros órgãos como o Sistema Nacional de Cultura (SNC), o Plano Nacional de Cultura
(PNC) e a construção de um Sistema Nacional de Indicadores e Informações Culturais

47
Tem como objetivo geral promover a valorização e a fruição do patrimônio cultural brasileiro, considerado
como um dos dispositivos de inclusão social e cidadania, por meio do desenvolvimento e da revitalização das
instituições museológicas existentes e pelo fomento a criação de novos processos de produção e
institucionalização de memórias constitutivas da diversidade social, étnica e cultural do País.
48
Constituindo um marco na atuação das políticas públicas voltadas para o setor museológico. Tem como
proposta o aperfeiçoamento de instrumentos legais para o melhor desempenho e desenvolvimento das
instituições museológicas no Brasil Disponível em < http://www.museus.gov.br/sistemas/ >. Acesso em 15/07/
2016.
49
Este órgão foi um marco de uma política pública no setor. As ações propostas pelo IBRAM buscaram (e
buscam) qualificar e modernizar os espaços museológicos existentes, garantindo o processo de preservação da
memória nacional sob a guarda destas instituições.

956
(SNIIC), bem como os investimentos na área de Economia da Cultura em ação conjunta com
o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (IPEA), representando um avanço importante para a gestão da cultura, numa
perspectiva democrática e popular. Diferentemente da Argentina, o Brasil apresenta uma
definição legal de museu:

Art. 1º Consideram-se museus, para os efeitos desta lei, as instituições


sem fins lucrativos que conservam, investigam, comunicam,
interpretam e expõem, para fins de preservação, estudo, pesquisa,
educação, contemplação e turismo, conjuntos e coleções de valor
histórico, artístico, científico, técnico ou de qualquer outra natureza
cultural, abertas ao público, a serviço da sociedade e de seu
desenvolvimento. Parágrafo único. Enquadrar-se-ão nesta lei as
instituições e os processos museológicos voltados para o trabalho com
o patrimônio cultural e o território visando ao desenvolvimento
cultural e socioeconômico e à participação das comunidades
(BRASIL, Lei Nº 11.904/2009).

No Uruguai as mudanças na área dos museus iniciaram durante o governo de José


Mujica com a assinatura da legislação para os museus, com a Lei nº 19.037 de 28 de
dezembro de 2012, denominada de Lei de Museus do Sistema Nacional de Museus50, e o
respectivo Decreto de Regulamentação nº 295/014, de 14 outubro de 2014. O Sistema
Nacional de Museus está vinculado ao Departamento Nacional de Cultura, criado em 2007,
que, por sua vez, está subordinado ao Ministério de Educação e Cultura (MEC). Assim como
o Brasil, o Uruguai possui uma definição legal do termo museu, aplicada tanto para os museus
do Estado como para os museus privados:

Artigo 2º São museus a efeitos da presente lei, aquelas instituições


sem fins lucrativos, criadas a partir de um conjunto de bens culturais
50
O sistema Nacional de Museus foi criado com o objetivo de conformar um sistema nacional que fortaleça a
institucionalidade, promova a cooperação e a otimização de recursos humanos e econômicos dos museus no
Uruguai. Acesso disponível em <
http://www.museos.gub.uy/index.php?option=com_k2&view=item&layout=item&id=287&Itemid=60> Acesso
em 10/07/2016.

957
ou naturais considerados de interesse patrimonial, documentados,
estudados e expostos, com a finalidade de promover a produção e a
divulgação de conhecimentos, com fins educativos e de deleite da
população (URUGUAI, Lei Nº 19.037/2012).

Considerações Finais
As questões colocadas neste texto apresentam algumas reflexões importantes para
compreendermos como estes países estão trabalhando suas políticas culturais no campo dos
museus.
Sinteticamente, os primeiros desafios dos novos governos foram ampliar o
entendimento sobre as questões culturais e estabelecer o alcance pretendido pelas políticas
públicas para a área. Para isso, foram realizados encontros e reuniões criando grupos de
trabalho e debates entre especialistas com o fim de ampliar os horizontes e tornar a cultura
mais acessível e participativa, enfatizando, assim, a diversidade cultural de cada país. Como a
participação destes países nos Encontros Ibero-Americanos de Museus reuniões anuais
promovidas pelo Programa Ibermuseus, onde representantes do campo museal da região
ibero-americana se encontram para o intercâmbio de experiências, para discutir assuntos de
interesse mútuo, de cooperação, e para debater a respeito do estabelecimento de ações
conjuntas para o setor museológico.
O passo seguinte foi a criação e o aperfeiçoamento de legislações no campo dos
museus, no sentido de criar e fomentar políticas públicas para o setor. Neste ínterim, o museu
ficou entendido como uma ferramenta política e social utilizada para inclusão de identidade e
cidadania para garantir o direito à memória dos grupos e movimentos sociais.
Em relação à gestão cultural na área dos museus é importante identificarmos os
órgãos institucionais as quais se encontram vinculadas as políticas públicas para os museus,
nos países investigados, assim possibilitando diferentes reflexões sobre a gestão de museus
presentes nos países Argentina, Brasil e Uruguai em relação às políticas para os museus.

958
A gestão cultural é um dos desafios contemporâneos presentes na área da política
cultural, abordando as transformações contemporâneas associadas às novas dimensões
atribuídas ao campo da cultura, neste caso destacando a institucionalização da área dos
museus como um dos processos estratégicos e de planejamento gerais para as políticas
públicas para os museus.
O aumento de diferentes tipologias de museus, tais como comunitários, populares,
étnicos, temáticos, além dos museus tradicionais, e do crescente número de encontros de
cooperação internacional voltados para a área dos museus durante governos democráticos
populares do século XXI na América Latina demonstram um avanço destes espaços como
locais de afirmação de segmentos sociais e uma nova perspectiva dos museus dentro de uma
política cultural voltada para a diversidade cultural.

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960
SOBRE POLÍTICA CULTURAL, CRIATIVIDADE E MUSEUS

Glauber Guedes de Lima*


Hugo Menezes**

Este trabalho corresponde a uma reflexão sobre como nas políticas culturais a
burocracia maneja as iniciativas de forma a formata-las segundo conveniências do Estado e do
Mercado. A partir do processo que deu origem ao Paço do Frevo em Recife – sob
financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento - BNDES, será apresentada aqui a
articulação entre financiamento e uma concepção neoliberal de Cultura, a qual materializou-se
a nos dispositivos burocráticos que disciplinaram um desejo de memória sobre o Frevo e
transformaram-no em um instrumento de desenvolvimento econômico.

No contexto atual, em que os usos da cultura são determinados a partir de uma lógica
da conveniência (YUDICE, 2006), a condição disciplinadora das politicas culturais é
certamente o elemento mais potente em favor de sua instrumentalização. Compreender a
dinâmica com a qual essas políticas operam, enseja produzir uma análise que conceda
centralidade aos dispositivos que normatizam as iniciativas culturais em favor de inseri-las na
ordem de sentido que atende aos interesses do establishment.

Tais dispositivos (Foucault: 1984; Agamben: 2014) se manifestam de forma a


estrutura e determinar o campo do possível às, então, pretensas iniciativas interessadas em se
posicionarem em meio à dinâmica da cultura, assim como pautar sua admissibilidade e
regular a sua execução. Do desejo à materialização, muito pouco escapa aos fluxos
determinados pelos canais condutores da burocracia.

Embora a regulamentação dos Direitos Culturais assegure ao indivíduo a liberdade de


se manifestar culturalmente, assim como delegue ao Estado a responsabilidade de criar
condições para o exercício de uma cidadania cultural, a forma como as politicas culturais se
estruturam tronam esse exercício de direitos condicional e disciplinado por dispositivos de

961
governo. Compreender esta dinâmica enseja por luz sobre os fluxos que regulam a dinâmica
da cultura.

Para tanto, torna-se importante olhar para as políticas culturais sob as lentes de uma
perspectiva que a perceba como um expediente de governamentalidade (Foucault: 1984). Em
outros termos, deve-se ter em vista uma análise que dê centralidade ao aparelho burocrático
como produtor de sentido (e não uma instância pré-discursiva e neutra), o que implica
considerar as políticas culturais como uma ferramenta à serviço do controle e da normatização
de corpos e subjetividades em favor de um projeto de sociedade e estado.

É este entendimento – associado a uma forte influência dos Estudos Culturais – que
está presente na concepção de política cultural de Toby Miller e George Yúdice (2002), e que
serve de importante referência para este trabalho. Nesta proposição, tais autores oferecem
uma potente crítica ao axioma que associa cultura e formação enquanto um imperativo em
favor do aprimoramento do indivíduo. Esta problematização se apresenta por meio da análise
de questões como gosto, critérios para financiamento, cidadania e incompletude, projetos de
identidade, e outros; e se volta para a transformação social enquanto um objetivo da discussão
realizada, tendo nos movimentos sociais, ao invés do Estado, seu alvo de interlocução
prioritário.
Sendo assim, é aqui a política cultural concebida muito mais como uma esfera potente
em produzir transformação social que uma esfera funcional na qual operam estavelmente
suportes de práticas culturais. São nossos pontos de partida muito mais questões de teoria
crítica e política que compromissos com efetividade, eficiência e descrição da dinâmica da
cultura. São nossos pontos de chegada a própria crítica desestabilizadora dessa dinâmica ao
invés de sua celebração e aprimoramento.

I – Criatividade: A Nova Direita das Políticas Culturais

962
Em meio ao contexto contemporâneo das políticas culturais brasileiras tem emergido
com grande vigor o conceito de criatividade – associado aos termos economia, indústrias ou
cidades – enquanto um imperativo a ser adotado em meio às políticas culturais (mas não
apenas por elas), o qual se apresenta enquanto passível de produzir desenvolvimento
econômico e melhoria social a partir de performances econômicas criativas.

As tentativas de demarcar o que vem a ser a criatividade são aspecto relevante por si
só do debate por revelarem aspectos importantes em meio aos caminhos escolhidos para
construir tais definições. No que diz respeito as instituições internacionais, a Organização das
Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura - UNESCO, entende economia criativa
enquanto um conjunto de atividades definidas a partir do conteúdo que está sendo criado,
produzido e comercializado, sendo este intangível e cultural em sua natureza e sob a proteção
dos direitos de seu autor, e que, naturalmente, poderá tomar a forma de bens e serviços. São
estas atividades ainda intensivas em trabalho e conhecimento e com um potencial de estímulo
à criatividade e a inovação.

A Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento - UNCTAD,


por conseguinte, concebe a economia criativa muito mais a partir de um setor da economia, o
qual se caracteriza por seu dinamismo comercial, geração de empregos, divisas e a promoção
de inclusão social e desenvolvimento humano. A criatividade seria o ativo e insumo principal
do processo produtivo, gerando um ciclo que envolve a criação, produção, e distribuição de
produtos e serviços a partir dela51.

O Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID refere-se à criatividade como


“economia Laranja”, e a define enquanto o conjunto dos setores em que os valores dos seus

51
http://unctad.org/pt/docs/ditctab20103_pt.pdf

963
bens e serviços se fundamentam na propriedade intelectual, dentre eles arquitetura, artes
visuais e cênicas, artesanato, cinema, moda e videogames52.

Outras formulações produzidas por importantes intelectuais ligados às áreas das


políticas culturais e da economia da cultura, como David Throsby tem obtidos grande
influência mediante os stakeholders da cultura e do desenvolvimento. Throsby (2001) estipula
a presença de três elementos para configurar o que ele chama de indústria criativa: A presença
de alguma forma de criatividade em suas atividades de produção, o interesse na geração e
comunicação de sentidos simbólicos, e, por fim, que seus produtos incorporem – ao menos
potencialmente – alguma forma de propriedade intelectual.

No Brasil, a narrativa convencional do que vem a ser a criatividade, e de sua ascensão


no cenário mundial – associada as ideias de cidade, industrias ou economia - é bastante
conhecida e está presente em boa parte da literatura produzida sobre o tema. Aparentemente,
em razão da propalada dificuldade em definir contornos claros do que ela é (e especialmente
do que ela não é)53 , a apresentação de sua trajetória histórica funciona como tentativa de
oferecer um sentido ao que é criatividade preenchendo a pouca clareza que o conceito
possui54. Na referida narrativa, a criatividade, enquanto um modelo de desenvolvimento,
emerge na década de 1990, em meio à formulaçōes australianas do Creative Nation 55 e das
forças de trabalho conduzidas pelo novo trabalhismo inglês interessado em mapear
alternativas de desenvolvimento que reposicionassem o país na economia global.

52
https://publications.iadb.org/bitstream/handle/11319/3659/La%20economia%20naranja%3a%20Un
a%20oportunidad%20infinita.pdf?sequence=4
53
Discussao de Cuninghanm sobre o nome etc e etc
54
Este tipo de narrativa está presente em muitos textos brasileiros sobre economia criativa. Dois dos mais
importantes pesquisadores sobre o tema no Brasil, Ana Carla Fonseca (2008), e Paulo Miguez (2007)
narram esta gênese como forma de complementar o sentido do que viria a ser economia criativa.
55
Creative Nation foi um plano que se apresentou como sendo a primeira vez em que o
governo australiano desenvolvia formalmente o que seria uma política cultural e que semeou
as bases do seria a economia política da criatividade posta em prática em países do Reino
Unido.

964
Rapidamente, este discurso se alastra para diversos países, sendo resignificado e adequado às
peculiaridades das economias locais, inclusive no Brasil.

Em meio à difusão realizada por instituições internacionais56 e o sucesso do best seller


de Richard Florida (2011), a criatividade chega ao Brasil com forte amparo do estado e de
setores estratégicos da sociedade. Não coincidentemente (em razão do potencial do
Patrimônio Cultural enquanto insumo deste processo), em 2011 foi criada formalmente,
dentro da estrutura do Ministério da Cultura, a Secretaria de Economia Criativa57. Esta, que
funcionou impulsionando a formulação e implementação de iniciativas desta natureza (e as
monitorando) tinha por objetivo maior transformar-se na pasta responsável por posicionar a
Cultura enquanto eixo estratégico do desenvolvimento do estado brasileiro58.

Embora sejam fartos os posicionamento que apresentam a criatividade como grande


estratégia do desenvolvimento econômico, assim como também é ostensiva a disseminação
deste entendimento por organismos transnacionais como o BID,UNCTAD, UNESCO e o
British Council, tais discursos são controversos, assim como sugere Stuart Cunningham
(2010), em razão da própria dificuldade de delimitá-la e, por conseguinte, apreender o que há
de específico em comparação a outros setores produtivos para que se possa afirmar que há,
realmente, uma performance econômica criativa produzindo positividades.

A dimensão e os efeitos da dificuldade em delimitar o que vem a ser a criatividade,


assim como da relação dela com a cultura, já foi apontada pelo próprio David Throsby (2008).
Este afirma que tal dificuldade advém do problema em delinear com clareza os contornos do

56
Instituições como o BID, UNCTAD, UNESCO e o British Council tem realizado esforços por meio de
estratégias (que vāo desde o financiamento de iniciativas à articulação de intelectuais) no sentido de
disseminar a criatividade enquanto saída inequívoca para o desenvolvimento no país.
57
A Secretaria passou por transformações a partir do ano de 2015 e atualmente é denominada Secretaria
de Economia da Cultura. No entanto, de acordo com o atual Ministro da Cultura, Sérgio Sá Leitão, em
entrevista publicada na Folha de São Paulo em 25/08/2017 (link disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2017/08/1912651-desenvolver-a-economia-criativa-sera-
prioridade-diz-ministro-da-cultura.shtml), tal mudança trata-se apenas de uma questão acadêmica, o
sentido permanece o mesmo.
58
Plano da Secretaria de Economia Criativa

965
que vem a ser cultura e criatividade; das diferenças existentes sobre os sentidos dessas
expressões em vários países; assim como da dependência política em definir tais categorias
em sintonia com as prioridades de cada governo. Consequentemente, o próprio sentido do que
vem a ser uma política cultural tem mudado em alguns países, já que esta acaba sendo
moldada a partir de uma agenda econômica do desenvolvimento, onde cultural e criatividade
ganham definições decorrentes das conveniências locais.

Nicholas Garnham (2005) também sugere que classificações, concepções teóricas e


discursos políticos em torno da criatividade estão dotados de problemas substanciais de ordem
política e ideológica. Isto se dá em razão de existir, de forma oportunista, uma apropriação de
alguns elementos inerentes à sociedade da informação como forma de aumentar seu prestígio
junto aos governos. Além disto, estas concepções estão permeadas (em suas entrelinhas) de
uma lógica gerencialista que opera no sentido de padronizar a agenda e entendimentos em
meio às questões de mídia e de políticas culturais.

No entanto, é em Toby Miller (2011) que os problemas das formulações da


criatividade nos parecem melhor expostas e criticadas. Este entende serem as indústrias
criativas uma espécie de nova direita dos estudos culturais, ao passo que seriam estas uma
reação à aproximação que se construiu no campo das políticas culturais que pensavam a
cultura enquanto arena de disputa com a hegemonia, a qual implicou em uma agenda que
distanciou as questões de cultura dos mercados e do consumo. A criatividade, por
consequência, ascende como uma tentativa de relacionar (e colocar a serviço) as humanidades
à indústria, processo este construído a partir de uma argumentação muito mais retórica e
ideológica (de natureza neoliberal) que da comprovação de sua real efetividade enquanto
modelo de desenvolvimento.

Toby Miller (2009) revisita ainda a historicidade em torno dos usos do discurso da
criatividade a fim de produzir uma narrativa que, ao invés de funcionar como um apoio ao seu
conceito, espelhe sua gênese conservadora. Para o autor, foi na década de 1960, na campanha
de Ronald Reagan para o governo da Califórnia, que, por meio da proposta de uma Creative

966
Society, surgiu um discurso que atribuiu papel central à tecnologia em desbloquear a
criatividade retida dos indivíduos, prometendo-os torná-los felizes e produtivos sem ter que se
submeter ao domínio do estado e desencorajando-o a se organizar coletivamente. Nas décadas
seguintes, o mercado de mídia, tecnologia e cultura cresceu exponencialmente colocando em
evidência o potencial econômico dos direitos autorais enquanto ativos. Nesse meio tempo, o
já referido novo trabalhismo inglês formulou uma proposição que colocou definitivamente
estas áreas sob o foco de politicas de desenvolvimento e reproduziu práticas comuns ao
conservadorismo, mas agora sob uma roupagem mais amena: As indústrias criativas. Por fim,
este processo chegou também ao campo das humanidades no mundo acadêmico anglo-saxão,
onde alguns intelectuais – já interessados por políticas culturais – ligados aos estudos
culturais são atraídos pelo prestígio de serem parte de uma agenda que, naquele momento,
estava conectada com o centro do poder, e pela disposição dos governos e das agencias em
financiar suas pesquisas.

A crítica de Toby Miller à criatividade – que a enxerga enquanto uma performance da


lógica contemporânea do capital – encontra sintonia com o que dizem alguns autonomistas
italianos como Maurizzio Lazzarato e Antonio Negri (2001), que percebem o trabalho
imaterial enquanto característica central do capitalismo contemporâneo. Neste sentido, aquilo
que diz Richard Florida (2011), e que é replicado pelos seguidores do “novo credo da
criatividade” (Peck. 2005, p. 740), que a classe criativa se impõe enquanto produtora de
subjetividades, é absolutamente inversa ao que sugerem Lazzarato e Negri. Para estes, todo
trabalho é produtor de sentidos os quais interessam ao centralmente ao capital, o qual opera
por meio de dispositivos que ditam imperativamente a necessidade de criação e produção de
subjetividades as quais deverão ser acumuladas.

Diante disso, nāo é de se surpreender que grandes corporações de mídia, bancos e


agencias de desenvolvimento dediquem grande interesse à agenda da criatividade e da cultura.
É desta simbiose que emergem processos de revitalização de cidades pautadas no turismo,
mercantilização de práticas e saberes culturais, inclusão de novos agentes na economia

967
formal, relações de trabalho flexíveis, entre outros efeitos que são atraentes à agenda do
mercado.

No Brasil, o Banco Nacional de Desenvolvimento – BNDES surge como um dos


grande agentes da economia da cultura nacional (possivelmente o maior em termos de
financiamento), e em plena sintonia com essa agenda que envolve desenvolvimento, cultura e
criatividade. Não coincidentemente, “Para o BNDES, cultura é desenvolvimento” é a
mensagem em destaque em seu website, conectando esta ideia com a proposição de economia
criativa. Como consequência, o BNDES foi no ano de 2016 o maior financiador (97%), entre
as empresas estatais brasileiras, de projetos culturais por meio de incentivos fiscais.

Fonte: Dados do Portal mais cultura

968
Em meio a esta participação, o BNDES elegeu a área do Patrimônio Cultural como
segmento prioritário de seus investimentos. Comparativamente, não são poucos os retornos
econômicos da “cadeira produtiva do Patrimônio”, como se refere a esta o BNDES, ao passo
que nestas se encaixam projetos conectados ao turismo e mercantilização de bens culturais.

Fonte: Dados do Portal mais cultura

Referências bibliográficas

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2009.

969
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970
DJA GUATA PORÃ: CONSTRUÇÃO EM DIÁLOGOS

Leandro Guedes*
Luciana Souza*
Bruno Brulon*
*Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)
Resumo: O presente trabalho tem por objetivo analisar a participação dos indígenas na curadoria da
exposição “Dja Guata Porã: Rio de Janeiro Indígena”, realizada no Museu de Arte do Rio, entre os
meses de maio de 2017 e março de 2018. Procuramos refletir sobre possíveis problemas e potências
nas negociações interculturais no desenvolvimento da montagem expositiva realizada por indígenas e
não-indígenas, e que se propunha a tratar do processo de silenciamento e apagamento da memória de
diferentes etnias nativas no Estado do Rio de Janeiro a partir do colonialismo. Este artigo toma como
base a participação de um dos agentes envolvidos no processo de pesquisa que fundamentou as
diferentes etapas do desenvolvimento expositivo envolvendo diretamente a relação com populações
indígenas existentes em diferentes regiões do estado. Dja Guata Porã se configurou como um projeto
inédito no Museu de Arte do Rio, esgarçando os limites e as potencialidades de um museu de arte
contemporânea no imenso desafio de abordar a complexidade das culturas indígenas de forma crítica e
colaborativa.
Palavras-chave: museu, colonialidade, povos indígenas

Abstract: The objective of this article is to analyze the participation of the indigineous people
in curating the exhibition "Dja Guata Porã: Rio de Janeiro Indígena", on May 2017 to March
2018 in Art Museum of Rio. We intend to bring reflections about the role played by the
indians on the curatorial process, the intercultural negotiations between indigenous and non-
indigenous, considering the historical silencing and extinguish of indigenous memories in the
state of Rio de Janeiro by the history of colonization. This article is based on the participation
of one of the agents involved on the creation of the exhibition and the different stages of
curation and research among the indigenous, which was an unprecedented project at the Art
Museum of Rio.
Keywords: museum, coloniality, indigineous people

971
Em diversas experiências espalhadas pelo país, indígenas de diferentes etnias
procuram, por meio da linguagem museal, questionar violências e reivindicar direitos. Nesse
processo, o museu por vezes desponta como ferramenta de resistência política desses sujeitos,
funcionando como espaço de memória da cultura material e de publicização de reivindicações
sociais e políticas. Contudo, a complexidade dessa ferramenta muitas vezes acaba por
configurar situações dúbias que vão desde a tentativa de combate a preconceitos culturais a
partir da evidenciação da diversidade de identidades étnicas, artes e cosmogonias, até mesmo
a própria reificação de uma identidade monolítica, fundamentada na interpretação de não-
indígenas.
Essas experiências museais surgem em museus etnográficos governamentais que
repensaram seus processos de musealização e propuseram a participação pontual dos
indígenas nos processos previstos na cadeia museológica. Sem entrar no mérito dos trabalhos
realizados pelas diferentes instituições atuantes no país, importa destacar a variedade de
iniciativas que se dedicam à memória indígena, organizada por membros de determinadas
etnias, com auxílio de antropólogos e museólogos, tais como o Museu Magüta dos Ticuna, no
município de Benjamin Constant (AM), o Museu Kuahí dos Povos do Oiapoque, no Oiapoque
(AP), que abrange quatro etnias: Galibi Kalinã, Galibi Marworno, Karipuna e Palikur, e no
Ceará o exemplo mais conhecido talvez seja o do Museu Kanindé organizado pelo cacique
Sotero, do povo Kanindé. Outros exemplos seriam o Memorial dos Povos Indígenas em
Brasília, o Museu Índia Vanuíre na cidade de Tupã, interior de São Paulo e o Museu do Índio,
no Rio de Janeiro, primeiro museu etnográfico do Brasil considerado por seu criador e
fundador Darcy Ribeiro (1998: 195) como “o primeiro museu do mundo criado,
especificamente, para combater o preconceito” contra os povos indígenas. Para este
antropólogo, os antigos museus de etnologia estavam entre os principais responsáveis pela
maneira com a qual o restante do povo brasileiro via os indígenas: atrasados, “fósseis vivos”.
Por essa razão, segundo ele, não havia nenhum interesse por parte do público em vê-los
humanizados, compreendendo-se a complexidade de suas criações artísticas, histórias e suas
realidades distintas. Para todos os efeitos, a criação do Museu do Índio representava uma

972
mudança no discurso político e social de como enxergar e retratar os povos indígenas dentro
dos museus, evidenciando-os como parte integrante da cultura nacional.
Tais experiências emblemáticas nos levam a refletir sobre a presença e a representação
indígena em outros museus do país e situar a discussão a que pretendemos desenvolver sobre
o caráter intercultural de elaboração da exposição Dja Guata Porã no Museu de Arte do Rio
(MAR), inaugurada em maio de 2017 e que teve como inspiração alguns destes modelos, mais
especificamente o sistema de parcerias estabelecido pelo Museu do Índio no início dos anos
2000. Em 2001, o Museu do Índio inaugurava a exposição “Tempo e Espaço no Amazonas:
os Wajãpi”, com curadoria da antropóloga Dominique Gallois, a primeira no sistema de
parcerias indígenas. Esta exposição estava ancorada em quatro metas norteadoras
estabelecidas pelo antropólogo e diretor do Museu, José Carlos Levinho
Em primeiro lugar, realizar exposições que focalizassem culturas indígenas
particulares, questionando a visão que perdurou por muito tempo dentro e fora da
instituição a respeito da representação de um índio brasileiro genérico. Em segundo
lugar, realizar exposições assinadas por antropólogos que trabalhassem com grupos
indígenas específicos, valorizando as curadorias, ou seja, valorizando a adoção de um
ponto de vista particular, nomeando o sujeito do conhecimento, a perspectiva a partir
da qual cada cultura é construída. Em terceiro lugar, estimular a participação dos
próprios grupos cujas culturas eram representadas no museu, de modo a favorecer o
intercâmbio entre esses grupos, os curadores da exposição e os técnicos do museu e de
modo que as exposições apresentassem resultados também para os índios. E, em
quarto lugar, inserir a exposição num contexto de modernização da instituição,
utilizando sofisticadas técnicas museográficas e visando conferir a essas culturas
particulares o mesmo status de outras exposições em museus das chamadas ‘altas
59
culturas .

Tratava-se, portanto, de um projeto de revaloração da autoridade indígena e de


ressignificação do próprio Museu. O projeto de parcerias recebeu o nome de “Museu do Índio
de Cara Nova: instalação de uma exposição de longa duração e implantação de um sistema de
proteção patrimonial”, e teve o objetivo de divulgar amplamente as culturas indígenas e de
incluir os indígenas nos processos de musealização, visando uma maior integração das etnias
envolvidas com a equipe do museu. (GRUPIONI e LEVINHO, 2008). Essa discussão faz-se
necessária, sobretudo, pela presença/ausência histórica dos indígenas nos museus brasileiros,
59
Jornal Museu ao Vivo (n. 20, ano XII, fev. 2001 a jan. 2002), Rio de Janeiro:Museu do lndio, 2002.

973
comumente representados de forma inferiorizada como selvagens, com seus artefatos
coletados muitas vezes de forma discricionária, exibidos de maneira agrupada, colaborando
para formar no imaginário comum a ideia de “índio genérico” (BESSA FREIRE, 2016).
Nesse sentido, como levar em consideração perspectivas e olhares tão distintos entre
indígenas e não-indígenas, e materializar numa exposição – desde sua etapa de planejamento
e criação conceitual – dentro de um museu?
Se esses povos passam a expressar a própria cultura na chave da propriedade
intelectual coletiva com lógica interétnica (CUNHA, 2009), interessa refletir sobre a
(im)possibilidade de negociação e participações interculturais entre indígenas e não-
indígenas, com entendimentos da realidade museológica por vezes diametralmente opostas
aos saberes compartilhados por esses sujeitos. A museóloga Marilia Xavier Cury (2012) lança
algumas questões que refletem parte dos desafios dessa investigação, colocadas a partir do seu
trabalho de reformulação do Museu Índia Vanuíre: “onde entram as culturas indígenas nos
museus?”; “como ampliar o contato dos profissionais de museus com grupos indígenas e
quais metodologias poderiam ser aplicadas para essa aproximação?”; e, finalmente, “o que os
museus podem fazer pelas culturas e povos indígenas?”. Tais questões de ordem política e
também simbólica nos apontam para novas aplicabilidades do instrumento museu nas disputas
identitárias, nas lutas por demarcações de terras, e na representação social no mundo
contemporâneo.

Dja Guata Porã: a configuração de uma exposição compartilhada

A exposição “Dja Guata Porã: Rio de Janeiro Indígena” foi construída por diversos
atores a partir de um núcleo fixo de quatro curadores: Clarissa Diniz, Pablo Lafuente, José
Ribamar Bessa Freire e a guarani Sandra Benites. Esta última, indígena guarani, a única a se
identificar etnicamente como indígena entre os curadores. Em seu processo de
desenvolvimento a partir da concepção no MAR, a exposição contou com o esforço de

974
diversos atores indígenas e não-indígenas e analisaremos aqui como se deu a representação
indígena nos processos compartilhados de criação da referida exposição dentro da estrutura de
uma instituição cultural com hierarquias (e assimetrias) demarcadas pela institucionalidade
(jurídico-burocrática) e pelo mundo das artes. A partir da investigação deste processo de
comunicação museológica envolvendo a partilha de autoridades e a suposta relativização do
olhar qualificado sobre o patrimônio indígena, pontuamos os limites e a potência do museu
enquanto ferramenta criada no mundo ocidental para o desenvolvimento de um projeto
civilizatório. Para tanto a reflexão se pauta em autores e autoras voltados a uma crítica sobre
as heranças do colonialismo, os quais parecem ainda atravessar a intersubjetividade do mundo
de forma prolongada, envolvendo o controle do trabalho, do Estado e de suas instituições,
bem como da produção de conhecimento e a construção de valores.
O museu em análise – o MAR – foi inaugurado em 2013 como um equipamento da
Prefeitura do Rio de Janeiro a ser gerido por uma parceria público-privada, a qual envolveu
agenciamentos da Fundação Roberto Marinho e contratos com o Instituto Odeon. O
equipamento, desde então, concentra parte significativa do orçamento da Secretaria de Estado
da Cultura, contando ainda com parcerias privadas a partir de mecanismos diversos – como as
leis de incentivo. Sua criação se contextualiza no processo de requalificação da zona portuária
da cidade a partir de políticas urbanas direcionadas à realização de dois grandes eventos
internacionais: a Copa do Mundo, em 2014, e as Olimpíadas, em 2016. A referida região,
popularmente conhecida como “Pequena-África” por ter compreendido uma grande área de
circulação e comercialização de pessoas escravizadas, compreende espaços urbanos
monumentalizados, como o Cais da Imperatriz – um dos maiores portos de chegada, no
Brasil, da população negra traficada a partir do continente africano. A história de brutalidade
envolvendo os escravizados vem sendo trabalhada pela população da região e reivindicada
como foco de resistência política e cultural na cidade, atravessando direta e indiretamente as
atividades do museu – seja no plano conceitual das exposições e do acervo, seja nos
programas educativos em parceria com a vizinhança.

975
Nesse contexto, “Dja Guata Porã” se revela como um marco na história recente do
MAR, uma vez que o museu não havia realizado uma exposição inteiramente voltada à
temática indígena. Os índios até então apareciam retratados ocasionalmente em outras
exposições, com exibição de artefatos, mas nunca como colaboradores ou como tema
principal em uma abordagem focada nas complexidades étnicas. A mostra foi idealizada para
ocupar o terceiro andar do Museu, tradicionalmente dedicado à história do Rio de Janeiro,
servindo como alicerce para responder à missão pública do equipamento municipal em
promover “uma leitura transversal da história da cidade, seu tecido social, sua vida simbólica,
conflitos, contradições, desafios e expectativas sociais”60.
O interesse do museu sobre uma exposição com esta temática não era novo: o
responsável anterior pela curadoria do MAR, Paulo Herkenhoff, já havia articulado ideias
com o curador espanhol Pablo Lafuente. Mas a retomada do tema se deu com a atual curadora
da Instituição, Clarissa Diniz, que assumiu o diálogo com Lafuente convidando-o a uma
parceria na exposição. Com ocasiões propícias, surgiu, em molde diferente das conversas
iniciais com Herkenhoff, a exposição chamada primeiramente de “Guanabara antes dos
cariocas”.
O processo contou com o especialista sobre as questões indígenas nacionais e no Rio
de Janeiro, José Ribamar Bessa Freire, dedicado às práticas dos índios no campo da
museografia, ao papel educativo e mobilizador dos museus indígenas na organização da
memória e no fortalecimento da identidade étnica, e preocupado em refletir sobre a
redefinição do conceito de museu pelos indígenas. Com a temática indígena definida, o
professor Bessa levou a uma das reuniões entre os curadores a proposta de integrar a
educadora e mestranda em Antropologia Social pelo Museu Nacional, a guarani-nhandewa
Sandra Benites, à equipe curatorial. Sandra atuou como educadora indígena no município de
Aracruz (ES). Teve contato com o professor José Bessa em 2010, em uma turma de formação

60
Informação disponível em “http://www.museudeartedorio.org.br/pt-br/o-mar”.

976
intercultural de professores guarani na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), onde
fez sua graduação sobre a educação guarani.
Segundo a própria Sandra, em conversa com membros da equipe de pesquisa, ela mal
sabia o que significava ser curadora61 de uma exposição e que papel deveria desempenhar.
Para ela a função de curadora, importante para os museus, possui importância distinta para os
índios. No seu entendimento, o mais importante no seu papel na curadoria seria a
oportunidade de “dar visibilidade aos parentes, à causa indígena e ao combate ao preconceito
sofrido pelos indígenas”. O processo curatorial contou com uma dinâmica de participação
coletiva, mas devido à área de expertise de cada um dos curadores e aos trâmites
institucionais, Pablo e Clarissa atuaram mais diretamente em questões ligadas ao acervo, à
construção discursiva e mais especificamente nas demandas relacionadas ao intercâmbio de
informações e exigências entre a instituição e indígenas. José Bessa se tornou o responsável
pela pesquisa e história indígena e Sandra a principal articuladora entre os grupos indígenas
que participaram da exposição e também pela atuação como pesquisadora, fornecendo dados
especialmente sobre os guaranis, índios não-aldeados e mobilizações de movimentos
indígenas em busca de direitos. Após as primeiras reuniões, ficou evidente que os conflitos e
as negociações entre distintas visões sobre as vivências e o patrimônio indígena no Rio de
Janeiro marcariam o processo de trabalho em direção à uma visão adotada pelo museu.
Importa destacar que nos museus ocidentais comumente há a predominância dos
discursos e das representações de arte ocidentais, onde a arte indígena acaba sendo
subalternizada, retratada como artesanato e sem valor de mercado, ignorando-se o artista ou
povo ou, ainda, retratando determinada obra ou objeto como artefato etnográfico. O MAR,

61
A figura do curador de exposições surge nos anos 1980 em museus dos Estados Unidos e Europa, como um
novo tipo de intermediário cultural. Até então a organização de exposição era quase sempre realizada por um
conservador de museu que permanecia anônimo. Contentava-se em selecionar obras da coleção, emprestar outras
obras de diferentes museus, dirigir a colocação de quadros, e redigir as notas do catálogo, estas também
anônimas. Pouco a pouco os promotores passaram a assinar um ensaio introdutório ao catálogo, mesmo não
aparecendo como seu autor (HEINICH, 2008, p.90). O trabalho deles se torna complexo na medida em que os
temas de exposições revelam uma problemática mais pessoal e o sentido da autoria individual passa a ser
associado à curadoria. O curador, neste sentido, é o resultado de uma atribuição de autoridade do autor, o que
pode se complexificar particularmente quando os museus propõem curadorias coletivas.

977
inserido na lógica do mercado de arte, corria o risco de reproduzir as mesmas hierarquizações
em sua relação institucional de desigualdades nas subvenções e de prestígio que obedecem à
lógica do sistema arte-cultura dos museus de arte norte-americanos e europeus (CLIFFORD,
2003). Entretanto, segundo Clifford (idem), é possível derrubar certa lógica científico-política
dominante de coleções e práticas centralizadas - e centralizadoras - dos museus e tentar
superar a dificuldade destes em operarem fora da lógica estética ocidental, revertendo seus
procedimentos em direção a uma museologia cooperativa que se contrapõe à museologia
colonial. O museu, portanto, não deveria superar os discursos e narrativas do colonizador - o
ponto de vista colonial.

O processo de pesquisa e as evidências de uma história de apagamentos

Desde os primeiros momentos do processo a equipe manteve diálogos pautados na


ideia de construção conjunta de conhecimentos e significados, na tentativa de uma não-
hierarquização de produção de sentidos e interpretações que pudessem resvalar em
etnocentrismos. Para tanto, coube a José Bessa a escolha da equipe de pesquisadores, que foi
composta pela historiadora e doutora em Memória Social da Universidade Federal do Estado
do Rio de Janeiro (UniRio) Ana Paula Silva, do historiador e mestre em Memória Social pela
mesma universidade Ignacio Gómez, da museóloga e também mestre pelo programa de
Memória Social, Mariane Vieira e pelo aluno de graduação de Museologia da UniRio,
Leandro Guedes. Este núcleo acabou se tornando o responsável por conduzir as primeiras
reuniões e atividades, que também contaram com a participação ativa ou como observadores
da coordenadora de museologia do MAR, Andrea Santos, a gerente de educação Janaína Melo
e a equipe de curadoria que além de Clarissa, contou com a assistente curatorial Julia Baker e
as estagiárias Mariana Novais e Marina Martinez.
Diversos encontros da equipe focaram-se em temas comuns como: demarcação de
terra; arte indígena; noções distintas de temporalidade e perspectivas de mundo; as línguas
indígenas; a educação indígena diferenciada e os processos históricos que dessem conta de

978
analisar e contemplar o genocídio dos povos indígenas no Brasil; os apagamentos e
silenciamentos da presença indígena no estado do Rio de Janeiro; as alianças criadas com os
invasores como estratégia de sobrevivência; os movimentos de luta e resistência e atuações
políticas dos povos indígenas; entre outros. Dentre os temas citados, alguns fatos foram
elencados e cronologicamente ordenados pela historiadora Ana Paula Silva em forma de uma
linha do tempo, com base em sua pesquisa para a tese de doutoramento voltada à presença dos
indígenas em contexto urbano no Rio de Janeiro do século XIX62. Tal trabalho acadêmico
auxiliou a organização dos acontecimentos e serviu como um organizador de dados que não
poderiam ser ignorados, pois confeririam à presença indígena uma historicidade em relação à
história conhecida do Rio de Janeiro.
A equipe de pesquisa se dividiu, portanto, por séculos: do século XVI ao XXI, do
primeiro contato com a chegada dos portugueses em 1500 até as políticas refratárias às
questões indígenas e ambientais promovidas pelo governo federal sob a gestão de Michel
Temer. O ponto de partida para se pensar a presença indígena no território fluminense em
uma perspectiva histórica tomou como base as alianças estabelecidas entre índios,
portugueses e franceses com a invasão francesa e a criação da França Antártica, discutindo a
relação destas nos conflitos e relações com o colonizador português. Assim, a pesquisa se
voltou aos aldeamentos indígenas do século XVI do que hoje conhecemos como território do
Rio de Janeiro e ao processo de dizimação dos povos promovido pelos portugueses através do
uso dos indígenas como força de trabalho escravo, das guerras justas e “resgates”, entre outros
instrumentos de violência física e simbólica. Aqui importou destacar a política de
catequização forçada que, ao logo dos séculos, colaborou com o desaparecimento de línguas e
saberes milenares, com o abandono de costumes e cosmogonias, e com mudanças na
organização social das aldeias.

62
Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Memória Social (PPGMS) da Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) em 2016, sob o título “O Rio de Janeiro continua índio: território
do protagonismo e da diplomacia indígena no século XIX”.

979
Ao longo do processo de pesquisa e discussão curatorial evidenciou-se que a
abordagem histórica com uso de iconografias conhecidas poderia incorrer no risco de repetir
modelos discursivos igualmente silenciadores e violentos. A questão dos apagamentos, ora
conduzidos forçosamente pelos colonizadores, através da transmissão de doenças pelo contato
e pela violência física, ou pela força da pena e da tinta, ou seja, pelo estabelecimento de
decretos e leis que faziam os índios deixarem de existir nos registros oficiais, serviram como
justificativa para massacres e usurpações de terras indígenas.
O Rio de Janeiro foi tratado como uma “zona de contato cosmopolita” entre os povos.
Temas como a presença do indígena no contexto urbano e as relações interétnicas
contemporâneas foram trazidos para a conversa pelas curadoras Clarissa Diniz e Sandra
Benites – indígena inserida no contexto urbano, na chamada Aldeia Vertical que atualmente
se constitui como moradia de famílias indígenas que compunham o movimento de ocupação
do antigo prédio do Museu do Índio no bairro Maracanã em 201363.
Considerando a diferença entre a percepção temporal indígena e a não-indígena,
lançou-se outro desafio pela equipe curatorial e de pesquisa. Dois povos foram levantados
como pontos de partida no diálogo entre um possível passado e presente da presença indígena
no Rio de Janeiro: os puris, dados como extintos no século XIX, mas em um importante
processo de etnogênese64; e os guarani, atualmente o povo aldeado em maior número no
estado. No sentido de compreender tais presenças, cabe destacar as contribuições fornecidas
pelo historiador Marcelo Lemos (2016) sobre os povos indígenas do século XIX que
ocupavam a região sul do estado – os coropós, coroados e puris, discutindo o processo
violento de extermínio dos indígenas do Vale do Paraíba, onde os barões do café dizimaram
populações inteiras e os que sobreviveram, tiveram suas identidades indígenas suprimidas,
muitas vezes por iniciativa própria, como estratégia de sobrevivência. Os puri enquadram-se

63
Resistência formada por indígenas de diversas etnias que ocuparam o antigo prédio do Museu do Índio em
2013 e fundaram a Aldeia Maracanã com a finalidade de evitar a demolição do prédio, prevista no conjunto de
obras do estádio Maracanã.
64
Conceito cunhado para dar conta do processo social e histórico de emergência ou reconfiguração de
coletividades étnicas como resultado de migrações, invasões, conquistas, fissões ou fusões. (BARTOLOME,
2004)

980
na definição de Miguel Bartolomé (2006) de ressurgência étnica de “[grupos] considerados
extintos, totalmente ‘miscigenados’ e que, de repente, reaparecem no cenário social,
demandando seu reconhecimento e lutando pela obtenção de direitos ou recursos (Rossens
1989; Pérez 2001; Bartolomé 2004)” (pp.39-40).
Os guaranis, por ser o povo indígena aldeado mais numeroso do estado do Rio de
Janeiro. Atualmente podemos identificar sete aldeias dessa etnia no estado do Rio de Janeiro,
localizadas nos municípios de Paraty, Angra dos Reis e Maricá. Sendo assim, constituem uma
presença que não poderia passar despercebida, especialmente pelo fato de a curadora Sandra
Benites também pertencer a esta etnia. Sandra constituiu a principal referência de consulta nas
pesquisas realizadas e foi a principal articuladora entre os guaranis para inclui-los na
exposição.
Estas três fortes “presenças” indígenas contemporâneas – dos puris, dos guaranis e dos
índios em contexto urbano – estavam definidas para serem discutidos, debatidos e estarem
presentes de algum modo na exposição que tomava forma: com os três grupos indígenas e
com uma linha do tempo -– ainda sem formato definido -– que desse conta de tratar de fatos e
de contextualizações históricas da causa indígena em âmbito nacional. Esta forma foi
modificada futuramente com a inclusão dos Pataxós, que surgiram nas discussões um pouco
mais tarde que os demais povos, acontecimento que será abordado posteriormente. A ausência
de uma terminologia mais adequada levou também a equipe de pesquisadores e curadores a
adotar a categoria de “índios urbanos”, emprestada dos próprios indígenas residentes na
Aldeia Vertical que assim se reconhecem. Entretanto, importa destacar os riscos que tal
terminologia oferece em induzir à noção de “índio genérico”, uma vez que não dá conta de
demonstrar a vasta heterogeneidade cultural indígena que vive nas cidades, sendo capaz de
incentivar julgamentos hierárquicos em relação ao índio aldeado.
Ainda havia a questão não solucionada pela curadoria a respeito do formato que a
exposição deveria adquirir, tal como a participação dos indígenas nesse processo, e tampouco
os acervos e objetos a serem expostos. A curadora Clarissa Diniz propôs duas frentes de
atuação para a equipe atuar e se aproximar dos indígenas: estabeleceu junto a Pablo Lafuente

981
a ideia de criar colóquios com a participação de indígenas cuja lógica colaborativa
possibilitasse aos poucos definir rumos, caminhos e possibilidades em diálogos que
funcionariam mais como um fórum de debates de questões indígenas de um modo geral e não
como um processo de preparação público da exposição e de acordo com a necessidade,
reuniões privadas com os núcleos e atores envolvidos, separadamente, realizadas no museu ou
em campo. Surgia assim os “Dja Guata Porã”; que em guarani significa algo como “um
caminho bonito a ser percorrido junto”. A segunda frente constituiu no trabalho de campo
realizado nas aldeias com a finalidade de se ter contato com as realidades dos povos que
seriam retratados na exposição e de convidá-los a fazer parte dos processos expositivos.
Os “Dja Guata Porã” ocorreram em quatro oportunidades; o primeiro encontro,
realizado no dia 04 de novembro de 2016 foi mediado por Pablo Lafuente e dividido em duas
partes: pela manhã foram realizadas falas dos curadores Sandra Benites e José Bessa e do
convidado indígena Edson Kayapó, historiador e doutor em educação, professor do Instituto
Federal da Bahia (IFBA). A segunda parte do encontro, no período da tarde, revelou-se como
uma conversa mais aberta entre a plateia, formada por indígenas, dentre os quais destacam-se
os moradores da chamada Aldeia Vertical, moradores das remoções da Aldeia Maracanã do
bairro do Estácio no Rio de Janeiro, incluindo seu cacique, Carlos Tukano e alguns puris que
vivem em contexto urbano – alguns moradores da Aldeia. Com o sucesso deste primeiro
encontro, um segundo foi marcado para o dia 25 do mesmo mês, o terceiro no dia 09 de
dezembro de 2016 e o último dia 12 de fevereiro de 2017, sendo este último inteiramente
dedicado à questão da mulher indígena.
No primeiro encontro enfatizou-se a abordagem da arte indígena no mundo ocidental,
incluindo sua entrada e representação nos museus, sua inserção dentro do sistema denominado
arte-cultura (CLIFFORD, 1994) e a insuficiência de dados dos acervos indígenas catalogados
nos museus do mundo todo. Outros aspectos práticos do cotidiano indígena foram trazidos
para debate: a necessidade da produção de sua arte para venda e como ela se transforma na
maioria dos casos na principal fonte de renda destes grupos; a substituição de materiais
naturais usados pelos indígenas, motivada pelo desmatamento; a expulsão de suas terras; ou a

982
vida em contexto urbano; elementos que levam a adaptações materiais para as miçangas, por
exemplo. O encontro abarcou o debate sobre as artes indígenas enquanto expressões de
universos que ligam os humanos e outros seres (VAN VELTHEM, 2012) e também
contemplou a discussão sobre a apropriação indígena de novas tecnologias como instrumento
de resistência – aqui destacou-se seu protagonismo nas áreas do audiovisual, produzindo
materiais que salvaguardam suas culturas.
Estes debates se tornam ainda mais relevantes dentro de um museu de arte que se
propõe a fazer um exercício de descolonização da representação do indígena, possibilitando
aos funcionários, que de um modo ou de outro trabalhariam na exposição, tivessem contato
pela primeira vez com índios e suas perspectivas sobre o modo de fazer museu e se fazer no
museu. Ao possibilitar o acesso a estas dimensões culturais e simbólicas colocando indígenas
em evidência, o museu auxiliaria numa possível desestigmatização dos povos dentre seus
próprios funcionários. Ainda não é comum para uma parcela considerável da população
brasileira – o que se percebia mesmo dentro do museu -– conceber um indígena como
professor universitário, conforme o caso de Edson Kayapó, ou mesmo uma mulher indígena
que desempenhasse a função de curadora de uma exposição, como Sandra. Sendo assim, para
além da troca de informações e da expressão da representação indígena no interior do museu,
a experiência de compartilhamento de saberes e fazeres museais indígenas e especializados
levou à relativização da própria noção de “expertise cultural” (TORNATORE, 1998) que
comumente fundamenta as práticas e hierarquias em instituições marcadas pela lógica
jurídico-burocrática ocidental – traço de um colonialismo evidente.

Desafiando a musealização: olhares indígenas sobre a cadeia museal

A primeira etapa do segundo encontro funcionou como a extensão do primeiro,


contando com a participação do professor e pesquisador Josué Carvalho, índio Kaingang, que
trouxe a abordagem da produção comercial, sagrada e de uso cotidiano dos objetos entre os
kaingang e as possíveis relações com a musealização. A questão que se fez presente referiu-se

983
à possibilidade ou não de os museus estarem preparados para lidar com as múltiplas e
complexas relações dos objetos indígenas dentro da Instituição, respeitando as dimensões
sagradas e obedecendo as regras dos povos indígenas sobre aquilo que poderia ou não ser
exibido e quanto ao respeito às tradições culturais no processo expositivo. Segundo Josué
Carvalho (2012), o museu deveria funcionar como um “espelho refletor de memórias” para os
indígenas. Um local onde depositam seus objetos não apenas com intuito de salvaguarda, mas
também pela possibilidade de reviver memórias.
O terceiro encontro, realizado em dezembro no próprio museu, revelou maior
quantitativo na participação de indígenas: índios guarani de Paraty, Angra dos Reis e Maricá,
e puris além de diversas etnias que vivem em contexto urbano. Estes últimos conduziram as
conversas da manhã com os moradores da Aldeia Maracanã, representados por Carlos
Tukano, Salissa Rosa e a curadora Sandra, e Afonso Aporinã – que participou desde o início
do movimento de resistência do Museu do Índio no Maracanã, mas que não reside na Aldeia
Vertical. Neste encontro, foram abordados temas como a responsabilidade do museu em
assumir um compromisso em mostrar a realidade dos povos indígenas na atualidade, a
capacidade de organização e mobilização indígena, a questão da demarcação de terras, a
dinâmica do índio na cidade, os preconceitos sofridos e o apagamento e diluição de suas
identidades quando chegam na cidade, forçados a viver sob outras dinâmicas e estruturas
sociais. A segunda parte do encontro dedicou-se aos guarani, sendo conduzida quase que
integralmente em idioma guarani. Uma experiência singular para os não-indígenas envolvidos
no processo expositivo, considerando que os guarani têm como segundo idioma o português.
Nessa situação, a equipe envolvida experienciou a incompreensão linguística e a breve perda
do protagonismo político e simbólico na arena de debate65.
Nesse momento os guarani questionaram o objetivo e a proposta da exposição,
manifestando preocupação, dentre outras coisas, com relação à sua capacidade de produzir

65
Sobre esse tema, interessa mencionar a discussão de Ortiz (2004) e Maia (2011) a respeito da hegemonia
linguística e seus efeitos cognitivos e epistemológico produzidos pelas línguas hegemônicas em disciplinas
dedicadas à teoria social. Para eles, essa hegemonia refere-se ao poder de pautar debates e organizar a agenda
intelectual em função de problemas geolocalizados em países europeus ou da América do Norte.

984
material suficiente para a demanda do museu. Vale observar a postura de alguns indígenas
que se mostrava atravessada por uma desconfiança sobre o que esperar da Instituição. Nesse
sentido, o papel do museu e sua utilidade foram constantemente questionados pelos indígenas
nos encontros, duvidando de sua validade, na medida em que compartilhavam da crença de
que a Instituição só reforçaria estereótipos preconceituosos. O receio era de que se abordasse
o indígena a partir de uma historicidade ocidentalizada, reproduzindo a imagem convencional
da identidade indígena monolítica construída na perspectiva moderno/colonial. Cabe
mencionar o posicionamento de lideranças e jovens guarani sobre a legitimidade do museu na
construção dessas representações66. Os “juruá”67 respeitariam suas danças, sua reza, sua
língua?
Os trabalhos de campo e reuniões conduzidas dentro do museu em 2016 com os
grupos em separado foram desdobramentos das questões apresentadas dentro dos contextos
dos colóquios “Dja Guata Porã”. Foram realizadas visitas às aldeias Vertical, à Paraty-Mirim
e Sapukai e a Ho’ovy Porã em Maricá. A última visita aos guaranis ocorreu em janeiro de
2017, em um encontro de dois dias na aldeia de Rio Pequeno, visando definir o acervo que os
guaranis gostariam de produzir para se verem representados na exposição. Iniciativas
idênticas foram realizadas com os puri e o grupo de indígenas em contexto urbano. Por fim, a
visita à Rio Pequeno também foi marcada pela chegada de um quarto grupo à exposição: os
pataxós, instalados na Costa Verde. A abordagem foi a mesma: apresentação da exposição e
seu propósito pela curadora Clarissa Diniz, reforçando o caráter participativo e educativo,
demonstrando realidades indígenas contemporâneas, garantindo espaços de autonarrativas e

66
Aqui importa destacar a discussão desenvolvida por Márcia Kersten e Anamaria Bonin no artigo “Para pensar
os museus ou quem deve controlar a representação do significado dos outros?” referente a coleções etnográficas
e a relação com a antropologia na construção de representações sobre o “outro”. Ver: KERSTEN & BONIN,
2007. Outro artigo que interessa mencionar nessa mesma perspectiva é “Escolha seu menu no Museu Canibal”,
publicado na revista eletrônica Público. O artigo trata de uma exposição realizada por Jacques Hainard em 2002
no Museu de Etnografia de Neuchâtel, Suiça, e se propunha a problematizar o poder de legitimação dos
discursos dos museus e suas orientações políticas e teóricas na construção de representações sobre outras
culturas. Disponível em: <https://www.publico.pt/temas/jornal/escolha-o-seu-menu--no-museu-canibal-286646>
Acesso em: 20 de maio 2017.
67
“Homem branco” em guarani.

985
estendendo a eles um convite, prontamente atendido, de visitar o museu em fevereiro de 2017
para prosseguir às conversas relacionadas à participação indígena na exposição.

Considerações

“Dja Guata Porã: Rio de Janeiro Indígena” seguiu um formato inédito no MAR, desde
a sua concepção, enquanto resultado de pensamentos de vários atores, saberes e visões de
mundo até sua execução museográfica. A questão que pensamos ser necessária de ser
colocada sobre tal processo, então, diz respeito aos limites que a instituição museu possui na
efetivação de uma curadoria participativa. Precisamos nos perguntar em que medida o museu
se fundamenta em conhecimentos provenientes do projeto civilizatório moderno responsável,
entre outras coisas, pela histórica dizimação e silenciamento indígena dos quais os museus
também tomaram parte. Poderia o museu, com suas rotinas financeiras, jurídicas, burocráticas
e disciplinares – provenientes de uma racionalidade ocidental – e com a relação que
estabelecem, por exemplo, com o mercado de arte, operar de fato em colaboração com saberes
e culturas outras? Por outro lado, seria possível pensar na reinvenção dessa instituição e sua
instrumentalização em benefício de alguma justiça social?
Para fomentar o debate sobre a relação de um museu de arte contemporânea e a
produção de uma exposição do porte da “Dja Guata Porã: Rio de Janeiro Indígena”, é
interessante recorrer a Walter Mignolo e Pedro Pablo Gomez (2012) e seus debates
decoloniais no âmbito da arte e da estética. Para os autores, a subjetividade, ou a libertação da
subjetividade latino-americana – que inclui os diversos povos indígenas existentes em toda a
região – seria possível a partir de uma crítica decolonial a afetar os sentidos, as emoções e o
intelecto, “[...] trabajando em el plano de la descolonización del conocer, del sentir, del pensar
y del ser” (MIGNOLO & PABLO GOMEZ, 2012, p.6). Segundo os autores, a arte e a estética
foram instrumentos de colonização das subjetividades contribuindo na expansão da matriz
colonial da Modernidade em seus modos de representação, em seus corpos discursivos, em
suas instituições, em seus modos de distinguir e produzir sujeitos e subjetividades (idem,

986
p.15). Nesse sentido, é possível perceber a existência de uma hegemonia de narrativas
museais que atribuem caráter evolutivo na abordagem de diferentes povos que não
compartilham com esquemas de pensamento e ação ocidentais ou ocidentalizados,
categorizando-os enquanto organizações primitivas em processo inexorável de modernização.
Por essa perspectiva, será possível, a partir de casos como o da exposição aqui
analisada, pensar as relações de poder que envolvem a noção (universalizada) de “arte” e
sobre a própria estrutura “museu” que muitas vezes escamoteia dinâmicas de colaboração
forçada. Importa pensar em que medida os esquemas de representação aparentemente
colaborativos não esclarecem as disputas de classe, as diferenças jurídicas, as hierarquias
discursivas e linguísticas, as assimetrias decisórias, enfim, os esquemas político-burocráticos
que envolvem necessariamente a existência e manutenção de uma Instituição.
Mas vale destacar também a importância de uma exposição nesses moldes em um
contexto em que o Museu do Índio no Rio de Janeiro – um museu federal – encontra-se
fechado. Numa conjuntura de fragilidade democrática que desde 2016 tem propiciado a
retomada com afinco de questões prejudiciais aos povos indígenas, como o marco temporal68,
a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da FUNAI69 e do INCRA70, a nomeação de um
General do Exército à presidência da FUNAI, o enxugamento e precarização das atividades
deste órgão, e a tramitação da PEC 21571.
Outra questão possível de ser levantada a partir desta exposição é a representação
indígena convencionalmente construída por um considerável número de museus históricos em
diferentes lugares do mundo. Aqui cabe mencionar, por exemplo, que o termo
“descobrimento” ainda é utilizado largamente por instituições de ensino e equipamentos
culturais no Brasil e em outros países como Portugal, por exemplo. Pesquisadoras da
Universidade de Coimbra têm se dedicado ao tema e relacionado a postura historiográfica

68
O Marco Temporal impõe a data da Constituição Federal de 1988 como referência para a constituição de
direito às terras, direito esse que, para os indígenas, seria originário – não se limitando à década de 1980.
69
Fundação Nacional do Índio (FUNAI)
70
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA)
71
Retira do Executivo a atribuição sobre a demarcação de terras, delegando ao Poder Legislativo.

987
portuguesa – largamente reproduzida por museus e institutos de patrimônio – à constituição
de um imaginário português sobre uma colonização “boa” e “benevolente”. A conquista, a
escravização, as chacinas e a expropriação material, na narrativa dos “descobrimentos”, são
neutralizados pela ideia de um expansionismo que “deu novos mundos ao Mundo”,
largamente divulgada em museus tradicionais e museus tratados como “parques temáticos”
(MAESO, 2016).
As gramáticas museais no mundo pós-colonial se beneficiam das linguagens e visões
de mundo não-eurocêntricas que desafiam, a partir de lógicas de poder outras, as hierarquias
herdadas do colonialismo. Por meio de diálogos culturais e negociações patrimoniais,
relativiza-se a autoridade das próprias instituições como instâncias produtoras de verdades
excludentes a partir de ausências e silenciamentos historicamente fundados. Assim, o
“caminho percorrido junto” em Dja Guata Porã, nem sempre harmonioso ou desprovido de
embates culturais, longe de representar um modelo de participação ou de compartilhamento
curatorial, pode servir de inspiração para novas e futuras empreitadas das pontes menos
assimétricas que ainda restam se abrir sobre a diversidade dos patrimônios e museus. Nesse
sentido, a provocação que fica é sobre a possibilidade de olhar para o museu e fazer o museu a
partir ferramentas e reflexões que coloquem à prova estruturas marcadas pelo capitalismo e
pelo eurocentrismo no mundo ocidental e ocidentalizado.

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990
MUSEALIZAÇÃO DE OBJETOS ARQUEOLÓGICOS: ESTUDO DE CASO
SOBRE AS LOUÇAS DO SÍTIO ENGENHO DO MURUTUCU EM BELÉM-PA

Amanda Daltro de Viveiros Pina*

*Universidade Federal do Pará

Resumo: A Arqueologia Histórica e a Museologia trabalham de forma interdisciplinar visando a


salvaguarda do patrimônio histórico por meio da musealização. Este artigo, portanto, problematiza
conceitos de campo da Museologia aplicados ao contexto arqueológico. Teremos como estudo de caso
os vestígios de louça provenientes das escavações do Sítio Engenho do Murutucu. Com base nesse
material, poderemos colaborar com os debates sobre processos de musealização e analisar uma
possível musealização voltada às louças arqueológicas em território amazônico.

Palavras-chave: Museologia; Arqueologia Histórica; Amazônia; Engenho do Murutucu.

Abstract: Historical Archaeology and Museology work together to improve the historical heritage
through a different musealization of archaeological objects. This article aims to study concepts from
the teory of Museology applied to the archaeological contexto. We will have a case study about
tablewares excavated in the Sítio Escola Engenho do Murutucu/ Brazil. From the tablewares of this
site we can observe the possible musealization of these objects in the Amazon territory.

Keywords: Museology; Historical Archaeology; Amazon; Engenho do Murutucu.

991
Introdução

A Museologia é um campo de conhecimento interdisciplinar e dialoga frequentemente


com diversas outras áreas, dentre elas, a Arqueologia. Ambas as disciplinas trabalham em prol
da salvaguarda do patrimônio histórico, porém, precisamos problematizar de que forma a
Museologia pode pensar no conceito de musealização aplicado especificamente para objetos
arqueológicos. Os remanescentes materiais em louça exumados do Sítio Engenho do
Murutucu servirão como estudo de caso para pensarmos a musealização de forma
diferenciada para materiais arqueológicos.

O presente artigo inicia-se com a articulação e problematização de conceitos ligados à


Museologia, tendo como objetivo colaborar com este campo de conhecimento, a partir da
análise de seus conceitos teóricos e práticos. Validando sua natureza autônoma e
independente, no sentido de criar-se e recriar-se livremente no tocante à sua linguagem e
técnicas profissionais (LIMA, 2013, p. 383).

Os museus são considerados instituições públicas que promovem ações educativas em


prol dos bens arqueológicos, demonstrando a clara conexão entre Arqueologia, sociedade e
Museologia. Neste enfoque, em parceria com a Museologia, a Arqueologia poderá vislumbrar
uma maior democratização do patrimônio e do conhecimento produzido em laboratório,
partilhando os resultados advindos de diversas pesquisas que circundam a cultura material
estudada (BRUNO, 2014, p. 5 e CÂNDIDO, 2005, p. 78).

A base para nosso estudo de caso encontra-se ancorada em uma produção de iniciação
científica (PIBIC/CNPq) o qual foi produzido durante o período de 2013 a 2016, referente
especificamente às louças exumadas do Sítio Histórico e Arqueológico Engenho do
Murutucu. Esta produção científica está vinculada ao Projeto Sítio Escola Engenho do

992
Murutucu: Uma Arqueologia dos Subalternos.

Foi desenvolvida uma ampla pesquisa bibliográfica direcionada à conceitos amplamente


utilizados no campo da Museologia em consonância com conceitos ligados à Arqueologia e à
Antropologia, dentre eles: o conceito de musealização, patrimônio histórico, ressignificação e
cultura material. A pesquisa em questão foi a serviço da crítica que tecemos acerca do
tratamento diferenciado para objetos arqueológicos quando falamos no conceito de
musealização.

Aliada às bibliografias, realizou-se a etapa laboratorial para a devida coleta de


informações advindas da louça. A fase de laboratório teve início com a realização da lavagem,
separação e numeração de todas as peças. Posteriormente, ocorreu a análise das louças
observando seus atributos morfológicos e tecnológicos (ZANETTINI, 1986, p. 120). Após a
catalogação das peças, planilhas e gráficos foram montados. Por fim, analisaremos os dados
mais significativos e os pensaremos de acordo com conceitos relacionados à cultura material
(PINA, 2016, p. 5).

O processo de musealização destes objetos será tratado por meio de uma visão crítica.
Utilizaremos diversos autores que trabalham com o conceito de musealização para então
aplicá-los ao contexto arqueológico, levando em consideração o objetivo deste trabalho:
contribuir com o campo teórico e prático da Museologia no tocante a objetos arqueológicos
(BRUNO, 2014, p. 5 e LIMA, 2013, p. 381).

Por conseguinte, teremos um tópico intitulado o ciclo das louças, que abordará o objeto
material em si, por meio de um esquema didático e explicativo. Iremos explicar as etapas
deste processo e demonstraremos de que forma a musealização das louças do Sítio Engenho
do Murutucu pode ser efetivada.

A pesquisa dentro do Sítio Engenho do Murutucu mostra-se também importante para a


história da Amazônia, pois elucidará importantes fases do período colonial e “pós-colonial” a
partir de estudos dos remanescentes materiais coletados no sítio. Estamos falando de algo

993
inovador quando nos referimos a louças em solos amazônicos, sobretudo estudos acerca de
uma possível musealização diferenciada para objetos arqueológicos. As críticas produzidas
podem colaborar com os debates no campo da Museologia e da Arqueologia. Por essas
razões, este artigo torna-se importante para acadêmicos oriundos do campo da Museologia e
da Arqueologia.

Como proposta de musealização, trouxemos a sugestão de uma exposição de peças em


louça advindas do Engenho do Murutucu atrelada ao Projeto de Extensão já existente como
parte do Projeto Sítio Escola Engenho do Murutucu: Uma Arqueologia dos Subalternos.
Através da exposição, teremos o alicerce para a efetiva musealização das louças, inter-
relacionando a teoria e a prática museológica (LOUREIRO, 2009, p. 108).

Musealização de objetos arqueológicos

Um campo de conhecimento é constituído a partir de um processo histórico com o


objetivo de alcançar autonomia, juntamente com a fixação de suas bases teóricas e práticas.
De acordo com Diana Farjalla Correia Lima “a condição independente ou autônoma,
exatamente e de modo exclusivo, é o elemento que distingue e define um campo” (LIMA,
2013, p. 51).

O campo da Museologia vem firmando suas bases como conhecimento científico há


pouco mais de meio século, portanto, pode ser considerado um campo relativamente novo e
que necessita delimitar constantemente suas “linhas invisíveis” no meio científico e também
no território acadêmico (LIMA, 2013, p. 50).

A Museologia legitima-se como conhecimento científico de diversas formas (LIMA,


2013), dentre elas: sua linguagem própria, universalizada para pessoas que trabalham no
âmbito dos museus; especialistas na área, com formação acadêmica; teorias e práticas
museológicas, desenvolvidas de forma dinâmica e ainda em construção; delimitação de seu
objeto de estudo (LOUREIRO, 2009, p. 106).

994
O objeto não pode ser encarado apenas como algo material, físico e palpável. Quando
enxergamos as diversas etapas que aquele objeto passou, percebemos o porquê de ele ter sido
criado daquela forma, coma aquele aspecto físico e suas adaptações, analisando além de sua
aparência palpável.

Os objetos não são apenas apetrechos, constituem a cultura de cada sociedade que os
utiliza. Não são manipulados apenas para fins utilitários ou com funções pré-estabelecidas,
podem mudar de função com o passar do tempo e adaptarem-se à época em que vivem. O
significado os objetos é uma construção, porém, não podemos delimitá-lo apenas à uma
análise formal. Torna-se primordial pesquisar sobre “a vida social” dos objetos, do seu
processo social, envolvendo sua fabricação, uso, valorização, reaproveitamento, descarte ou
possível musealização (APPADURAI, 2008, p. 15).

Ao analisarmos as diversas interfaces do objeto material, passaremos então a falar de


um conceito ligado ao campo da Museologia denominado “musealização”:

[...] a operação de tentar extrair, física ou conceitualmente, algo de seu


ambiente natural ou cultural para dá-lo um status museal,
transformando-o em musealium ou musealia, ‘objeto de museu’, ao
fazê-lo entrar no campo do museal [...]. Um objeto de museu não é
mais um objeto destinado a ser utilizado ou trocado, mas que é levado
a dar um testemunho autêntico sobre a realidade (DESVALLÉES;
MAIRESSE, 2010, p. 26 e 28).
Ao pensarmos nesta definição, a musealização seria o processo, enquanto a museália
seria o objeto dentro do museu. Esta gama de processos infocomunicacionais acontece através
de procedimentos ligados à seleção, aquisição, conservação, documentação, pesquisa e
comunicação dos objetos que adentraram ao contexto museológico (LOUREIRO, 2015: 122).

O objeto, para tornar-se museália, precisa perpassar por etapas de documentação,


atrelados a conhecimentos de conservação para a devida preservação da peça. As pesquisas
são essenciais para que o museu possa, por meio da museografia, exercer seu papel de veículo
informacional.

995
Precisamos esclarecer que existem diversos autores que abordam o conceito de
musealização das mais variadas formas. Alguns cunham este termo para denominarem uma
gama de processos; outros o utilizam para elucidar que o objeto torna-se automaticamente
museológico, sem precisar passar por todos os processos. Portanto, ao utilizarmos o termo
“musealização”, estaremos utilizando especificamente os trabalhos de autores como: Diana
Lima, André Desvallées, François Mairesse, Martin Schärer e Maria Lúcia Loureiro.

Nas palavras de Diana Lima, a musealização: “diz respeito ao processo que abrange o
juízo/atitude – eivado de significações, de conteúdo simbólico – em facetas [...] capazes,
também, de ajustarem-se em movimentação permanente” (LIMA, 2013, p. 51). Portanto, esse
processo não está somente limitado às condições físicas do objeto (documentação,
conservação, seleção, aquisição), mas também adentra ao seu campo simbólico, cheio de
significados que podem ser modificados com o tempo e/ou a partir do olhar de interlocutores
diversos.

Os atores sociais atribuem ao objeto uma carga de valor simbólico (não estritamente
econômico), portanto, aquele objeto deve ser guardado, preservado, patrimonializado. Para
Diana Lima, o objeto sofre a musealização e:

Assim, dota-o de teor museológico, colocando-o sob tutela


especializada para a proteção e guarda: a salvaguarda para
preservação. O procedimento instaurado pela Revolução Francesa e a
Patrimonialização ou institucionalização dos bens que se solidificou
na seara dos Museus ao longo dos séculos seguintes, especificamente
por volta da segunda metade do século XX e com feição de sentido
similar denomina-se Musealização (LIMA, 2012, p. 40).
A partir do conceito de musealização, podemos pensá-la voltada a peças arqueológicas,
tendo em vista sua possível musealização através de um objeto dotado de um significado que
pode ter sofrido modificações durante o seu “ciclo de vida”.

Ao consultarmos Maria Cristina Oliveira Bruno, nos deparamos com o seguinte


conceito: “[...] pode-se inferir que os processos de musealização estão vinculados à

996
valorização e à sistematização dos sentidos e significados extraídos das referências culturais
que são alvo da atenção museológica” (BRUNO, 2014: 7). Portanto, acreditamos que após a
exumação e pesquisa das peças encontradas nos trabalhos arqueológicos, podemos verificar
que esses objetos estão diretamente vinculados a uma catalogação a partir da função e forma
do objeto, advindos das pesquisas arqueológicas e posteriormente podem participar de um
processo de ressignificação, perpassando por uma possível musealização.

Diana Lima (LIMA, 2013: 390) exemplifica em um de seus artigos, os processos de


musealização conjuntamente com uma mudança de estado deste objeto para um contexto
museológico. De acordo com a autora em questão, os objetos vão de um “Estado comum à
museália”, sendo a simbolização uma força que mudaria o sentido do objeto, para este ser
musealizado:

A força da simbolização transmuda o sentido de uma coisa qualquer


do nosso mundo para significar um objeto musealizado, o mesmo que
museália. O novo status integra-o à coleção, ao acervo, caracteriza-o
inserido no campo museológico (LIMA, 2013, p. 390).
Ao pensarmos em objetos arqueológicos, devemos destacar que esse material não está
sendo integralizado ao museu por ser um objeto qualquer e estar envolto no que chamamos de
museália. Este objeto está sendo integralizado à instituição museológica justamente por já ser
um objeto diferenciado e que, por lei, deve ser preservado, guardado e conservado.

Quando citamos Martin Schärer abordando musealização, passamos por uma grande
problematização ao tratarmos objetos arqueológicos, pois, para este autor:

[...] no processo de musealização, o espírito original e o contexto


social íntegro das coisas desaparecem [...] Uma coisa musealizada
tornou-se algo diferente de sua realidade anterior, embora seja
fisicamente idêntica ao que era (SCHÄRER, 2009, p. 88, tradução:
Diana Lima).

Não podemos esquecer que, no contexto arqueológico, o contexto do objeto já


desapareceu desde o seu desuso/descarte. O material arqueológico perpassou por diversas

997
realidades antes de chegar efetivamente ao museu. Houve a perda de seu contexto anterior,
quando feita a sua fabricação, porém adquiriu-se um novo contexto, no caso, a museália.
Porém, entre a escavação do objeto até ele se tornar museália, neste interim, o material
arqueológico já é considerado, pela legislação, como patrimônio histórico. Daremos
continuidade ao nosso pensamento acerca do patrimônio com Desvallées e Mairesse em
Conceitos Chaves de Museologia:

O campo mais complexo que constitui a problemática da transmissão


– o campo patrimonial – induziu, nos últimos anos, uma reflexão mais
precisa sobre os mecanismos de constituição e de extensão do
patrimônio: a patrimonialização. Para além da abordagem empírica,
numerosas pesquisas atualmente tentam analisar a instituição, a
fábrica do patrimônio, como a resultante de intervenções e de
estratégias enfocando a marcação e a sinalização (enquadramento) [...]
(DESVALLÉES; MAIRESSE, 2010, p. 75 e 76).
Primeiramente, devemos pensar que os objetos arqueológicos já são patrimônio da
nação de forma instantânea, desde o momento em que foram achados em escavações
arqueológicas, feitas de forma legal ou até mesmo as ilegais. Neste trabalho, abordamos o
conceito legal de patrimônio histórico para enfatizarmos a necessidade do tratamento
conceitual diferenciado dos objetos arqueológicos no contexto museológico. Esse material
está devidamente protegido através de legislação específica, como podemos ver no Art. 1º e 4º
do Decreto-Lei n. 25 de 1937 e no Art. 2º da Lei n. 3924 de 1961:

Art. 1º Constitue o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos


bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de
interêsse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do
Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico,
bibliográfico ou artístico.

Art. 4º O Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional possuirá


quatro Livros do Tombo, nos quais serão inscritas as obras a que se refere o
art. 1º desta lei, a saber:
1) no Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, as coisas
pertencentes às categorias de arte arqueológica, etnográfica, ameríndia e
popular, e bem assim as mencionadas no § 2º do citado art. 1º.

998
Art. 2º Consideram-se monumentos arqueológicos ou pré-históricos:
c) os sítios identificados como cemitérios, sepulturas ou locais de pouso
prolongado ou de aldeamento “estações” e “cerâmios”, nos quais se
encontram vestígios humanos de interesse arqueológico ou paleoetnográfico,

Portanto, quando nos referirmos sobre a musealização de objetos arqueológicos,


devemos considerar que a patrimonialização deste tipo de objeto não decorre da musealização
em si, mas sim de lei vigente em território brasileiro que trata da guarda e da conservação
destes conjuntos de bens móveis e imóveis vinculados à fatos memoráveis da História do
Brasil. Ao conceituarmos a palavra “Patrimônio”, também nos deparamos com uma
conceituação específica, voltada aos objetos arqueológicos como patrimônios
independentemente de sua musealização. Como exemplo, traremos a seguir o conceito de
Patrimônio difundido pela UNESCO:

os monumentos: obras arquitetônicas, de escultura ou de pintura


monumentais, elementos ou estruturas de natureza arqueológica, inscrições,
cavernas e grupos de elementos que tenham um valor universal excepcional
do ponto de vista da história, da arte ou da ciência (UNESCO, 1972).
Portanto, de acordo com a UNESCO, objetos arqueológicos estão inseridos como bens
culturais, ou seja, patrimônio cultural, portanto, são considerados patrimônio de forma
intrínseca e instantânea. Cabe ao Instituto do Patrimônio Artístico e Histórico (IPHAN) zelar
por esses bens e mantê-los preservados para as gerações vindouras.

A ideia de tratar a musealização de uma forma mais específica não acontece apenas no
contexto de objetos arqueológicos, podemos pensar em outros tipos de objetos que entram no
museu já patrimonializados, como por exemplo, os objetos paleontológicos ou os patrimônios
imateriais. Vale ressaltar que existe a imposição legislativa sobre o que é patrimônio, porém,
quem valora e escolhe o que considera patrimônio são as pessoas. Portanto, relações de poder
atravessam essa relação assimétrica, pois a legislação impõe os tipos de patrimônios que
devem ser considerados.

Estudo de caso: as louças do sítio engenho do murutucu em Belém-PA

999
O sítio histórico e arqueológico Engenho do Murutucu localiza-se na Estrada do Ceasa,
no bairro do Curió Utinga em Belém do Pará, e foi um dos principais engenhos de açúcar e
água ardente da região amazônica desde meados do século XVII. (PINA 2016: 1).

O Engenho do Murutucu entrou em ruínas no ano de 1850 e deixou de exercer funções.


Foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico Artístico e Nacional – IPHAN em 08 de
outubro de 1981 e, a partir desta data, passou a ser conhecido como Sítio Histórico Engenho
do Murutucu. Atualmente, o referido sítio é propriedade da Empresa Brasileira de Pesquisa
Agropecuária (EMBRAPA), porém, o uso e exploração do sítio está em negociação, para que
estes sejam passados à Universidade Federal do Pará (UFPA), visando fomentar a pesquisa
acadêmica (COSTA, 2015: 4).

Por ser um sítio de extrema importância para a região amazônica, diversas intervenções
arqueológicas já aconteceram ali. As intervenções anteriores aconteceram entre os anos de
1986 e 2000.

Os remanescentes materiais coletados nas escavações de 1986, 1996-97 e 2000


encontram-se no acervo do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), em seu laboratório
destinado aos estudos de Arqueologia Histórica. Dentre os remanescentes coletados podemos
encontrar vários tipos de materiais como louças, vidros, metais e cerâmicas.

A partir de 2014 o Sítio Histórico Arqueológico recebeu o Projeto Sítio Escola Engenho
do Murutucu: Uma Arqueologia dos Subalternos que vem sendo coordenado pelo professor
Dr. Diogo Costa (PPGA/UFPA) e tem como objetivo a coleta de remanescentes da cultura
material de diversos grupos sociais que viveram no Engenho do Murutucu. O projeto teve, até
então, a duração de três anos (2014, 2015 e 2016), tendo a sua última escavação acontecido
em Julho de 2016. A base de todos os dados utilizados em nosso estudo de caso encontra-se
em uma produção de iniciação científica (PIBIC/CNPq) (PINA, 2016: 1) produzida durante o
período de 2013 - 2016, referente especificamente aos atributos morfológicos e tecnológicos
das louças exumadas do Sítio Histórico e Arqueológico Engenho do Murutucu.

1000
De forma específica, as louças são símbolos de um período intenso na produção de
artefatos voltados ao consumo de alimentos sólidos, consumos de alimentos líquidos, bibelôs,
dentre outros objetos que demonstravam certo status social, dando aos seus proprietários
algum diferencial no que tange à demonstração de poder econômico em meados do século
XVI, estendendo-se inclusive aos dias contemporâneos (LIMA, 1997: 131).

Em um primeiro momento, torna-se válido destacar que as louças podem ser


consideradas cultura material, portanto, são objeto direto de estudo da Arqueologia Histórica
juntamente com a Museologia. Ambas as disciplinas apresentam caráter interdisciplinar,
dialogando frequentemente em assuntos voltados ao patrimônio, ao estudo de remanescentes
dos mais diversos tipos de cultura material e também quando tratamos de conservação, guarda
ou eventual descarte de objetos arqueológicos.

Partiremos da união de todas as planilhas que documentaram as louças retiradas do


Engenho do Murutucu, para uma identificação conjunta do material em louça. Analisaremos
os dados em sua totalidade para então conseguirmos chegar a resultados específicos
envolvendo o seu uso, grafismo, significado, sua ressignificação e também a possível
musealização dos objetos em louça encontrados no Sítio Engenho do Murutucu.

Quanto às formas das louças, percebemos que mais de 40% dos fragmentos de louça
exumados do Sítio Engenho do Murutucu têm relação com fragmentos de pratos. Vale
ressaltar que as louças não podem ser compreendidas apenas pelo seu papel funcional,
devemos considerar também o seu significado, intrínseco à matéria em si, lembrando que este
significado é dinâmico, sofre mudanças ao longo dos anos. A dinamicidade deste significado
está diretamente relacionada à ressignificação das louças que será tratada mais profundamente
no decorrer deste artigo (LIMA, 1995: 143).

Quanto às pastas das louças, percebemos que os fragmentos encontrados em maior


número são as Faianças Simples e as Faianças Finas, ambas procedentes da Europa. A faiança
simples teve sua produção iniciada anteriormente à produção da faiança fina, sendo a faiança

1001
fina um aprimoramento da técnica de fabricação utilizada na produção da faiança simples,
portanto, torna-se importante observar que no período de ocupação do Sítio Engenho do
Murutucu não havia a produção nacional deste tipo de louça, por conseguinte, tanto a faiança
simples quanto a faiança fina eram importadas da Europa diretamente para o Brasil,
especificamente para Belém do Pará (PINA, 2016: 5).

Com a reprodução em grande escala, os grafismos presentes nas louças de faiança fina
disseminaram-se rapidamente por diversos locais, atravessando continentes e afetando
diretamente o dia a dia dos diversos consumidores que as adquiriam. Particularmente no
Brasil, a utilização das louças foi impulsionada a partir do momento que a família real
portuguesa se mudou para o Brasil, trazendo consigo novos modelos e padrões de
comportamento da elite europeia. O objeto não era mais apenas um objeto, simbolizava um
processo de urbanização, um estilo de vida, transmutava-se em signos de distinção social
(SYMANSKI, 2002: 48).

Quanto às cores encontradas nos fragmentos de louça provenientes do Engenho do


Murutucu, podemos perceber que a cor predominante nas peças analisadas é a cor azul,
aparecendo em mais de 50% dos fragmentos de louça analisados. Juntamente com a técnica, a
coloração é um elemento de extrema importância para podermos mensurar uma datação
aproximada daquele fragmento de louça, pois algumas cores tiveram o seu surgimento
posterior, portanto, podemos aproximar seu período inicial de utilização com maior precisão.

As louças, encaradas como objetos da cultura material podem ser consideradas agentes
materiais sobre os indivíduos que dela se utilizam. A agência de objetos está presente em
diversos campos, como por exemplo, no campo utilitário, estando estritamente ligado ao uso
do objeto. Ao perpassarmos pelo campo utilitário, podemos nos deparar com o campo
simbólico, analisando de que forma a utilização das louças no campo utilitário estaria
reverberando significados e significações aos seus usuários (MILLER, 2013: 66; LIMA,
2011: 12 e MENESES, 1983: 112).

1002
Ao falarmos de louças, devemos elucidar que o conceito de cultura material está
vinculado diretamente como correlato ao conceito de “Patrimônio” (DESVALLÉES e
MAIRESSE, 2010: 121). Levando em consideração os pensamentos de Maria Lucia Loureiro:

Os estudos de cultura material abordam o mundo das coisas materiais como


uma das forças que constituem a sociedade e desempenham um papel
mnemônico que não se limita a aspectos puramente simbólicos. Em outras
palavras, objetos não são meros elementos do mundo, subordinados
exclusivamente à experiência e interpretação do sujeito pensante
(LOUREIRO, 2015, p. 121).
Portanto, ao estudarmos a cultura material, compreendemos que existe, de fato, uma
agência dessa materialidade na interpretação do sujeito pensante que está interagindo com o
objeto. As interpretações podem ser diversas, portanto, o objeto carrega consigo o material e o
imaterial, de forma dinâmica, mudando com o passar dos anos e também a partir do olhar
daquele que o vê e o percebe como objeto simbólico. Durante a vida social deste objeto,
especificamente das louças, percebemos a agência dessa materialidade sobre a vida de seus
usuários (LIMA, 2011: 12).

O ciclo da louça: Da produção à musealização

Elucidaremos a “vida social” da louça, desde a sua fabricação, venda e comércio, uso
primário (exercendo a função que foi designada), o seu descarte, sua recuperação/ativação
por meio do trabalho do arqueólogo e, por conseguinte, a sua possível musealização. Vale
ressaltar que não são todas as louças produzidas que passam por esse ciclo, o contingente de
material produzido não pode ser comparado ao número de peças que são encontradas nas
escavações e ressignificadas posteriormente. Iremos focar nas louças advindas do Engenho do
Murutucu, porém, este ciclo pode ser utilizado com as devidas ressalvas quando formos falar
de louças originadas de diferentes contextos.

Essa possível musealização seria consolidada a partir de processos ligados à


documentação, conservação, acondicionamento e preservação das peças em louça. Após os
procedimentos de musealização, poderíamos analisar a viabilidade de expor as louças ao

1003
público, para concluirmos o processo infocomunicacional museológico (LOUREIRO, 2015:
121).

Produção Venda e
Comércio
1
2

Uso do
Musealização
objeto
7
3

Descarte
Ressignific /
ação
Recupera Desuso
6 ção/ 4
Reativaçã
o
5

Figura 1: Ciclo relativo às louças desde a sua produção até a sua musealização.

Primeiramente tivemos a produção da louça, confeccionada desde meados do século X


(no caso das porcelanas) e meados do século XVI (no caso das faianças). As porcelanas
começaram a ser produzidas e comercializadas na China em meados do século X e eram
cobiçadas por terem uma qualidade incrível em razão de sua produção seguir padrões rígidos
e por sua pasta ser completamente uniforme.

Houve então a venda progressiva, fomentando o comércio dessas louças para diversas
partes do mundo. Com o início da revolução industrial conseguimos perceber um grande
aumento no contingente de louças produzidas, portanto, os mercados ultramarinos puderam

1004
ser explorados de forma exponencial. Localidades além-mar europeu conseguiram receber
diversos tipos de louças (faianças, porcelanas e grês) fruto do comércio ultramarino. Uma
dessas localidades é o Brasil, por conseguinte, Belém do Pará.
O uso das louças estava ligado ao âmbito doméstico, elas eram utilizadas como
utensílios do cotidiano (as mais simples) ou para celebrações e ocasiões especiais (as mais
elaboradas). O posterior descarte das peças acontecia em virtude de impactos mecânicos que
faziam o material despedaçar-se, perdendo seu uso e função original. Ressaltamos que
existem diversas formas de abandono de objetos materiais registrados no âmbito
arqueológico. Falando especificamente das louças, podemos observar que seu descarte/desuso
pode acontecer por diversos fatores inerentes à peça em si (PINA, 2016: 15).

Quando as peças são encontradas por profissionais da Arqueologia, percebemos que


essas peças passam por uma reativação de seu sentido como objeto, portanto, perpassamos
pelo processo de musealização. Estamos dando às peças encontradas uma camada de
significação, pois levamos em consideração que o objeto não está mais sendo utilizado para
fins domésticos, portanto, passamos a lidar com um artefato arqueológico recuperado.
Lembrando que, cabe ao IPHAN zelar e salvaguardar este artefato protegido por lei.

As peças, depois de encontradas, passam por uma ressignificação, modificam o seu


significado, seu uso e sua função. Não são mais encaradas como peças de utensílio doméstico,
agora são consideradas patrimônio cultural, que deve ser protegido e salvaguardado. Podemos
acrescentar que, não são todos os materiais que perpassam por todas as etapas da Figura 1,
como por exemplo as peças que são descartadas logo após o seu fabrico.

Por fim, as louças, também possuem uma vida social que remonta desde a sua produção,
perpassando por sua recuperação em escavações arqueológicas e, por fim, sua possível
ressignificação tanto dentro dos museus, adquirindo uma forma de “aura” museal
(perpassando pela musealização), quanto na sua possível ressignificação simbólica, por meio
de sua reprodução em acessórios como roupas, joias, sapatos, dentre outros diversos tipos de
suporte. Percebemos que com o passar do tempo, o objeto modifica seus significados.

1005
Temos um significado atrelado ao uso doméstico; de forma posterior, apresenta o
significado de artefato arqueológico, quando encontrado em contexto; após sua coleta e
pesquisa, “veste-se” de seu significado museal, tornando-se objeto museológico.

Partiremos agora para a análise da possível musealização das louças do Sítio Histórico
Engenho do Murutucu. As louças, como objeto arqueológico, pertencente ao conceito de
patrimônio cultural, consequentemente são consideradas bens culturais. De acordo com a Lei
11.906/2009:
Consideram-se bens culturais passíveis de musealização os bens
móveis e imóveis de interesse público, de natureza material ou
imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de
referência ao ambiente natural, à identidade, à cultura e à memória dos
diferentes grupos formadores da sociedade brasileira (BRASIL, Lei
11.906/2009 – IBRAM, 2009b).
A musealização dos artefatos em louça do Engenho do Murutucu aconteceria de acordo
com os processos já elencados da musealização, respeitando: a conservação, pesquisa,
documentação, preservação dos objetos e também incluiria uma exposição acerca desses
artefatos, um dos principais momentos da musealização, levando em consideração a
comunicação. Não podemos deixar de mencionar que os objetos arqueológicos já são
patrimônio protegido por legislação específica e não sofreram o processo de
patrimonialização apenas quando se tornaram objetos de museu, pois são patrimonializados a
partir do momento que são retirados do solo.

Em se tratando especificamente de objetos arqueológicos, portanto, louças, sua função


original já foi modificada desde o seu descarte. Quando este objeto arqueológico chega ao
museu, tem função de patrimônio, eivado de significados oriundos de grupos formadores da
sociedade brasileira. Após o trabalho do arqueólogo na tentativa de encontrar artefatos e
reativar seus sentidos como objetos, estes mudam sua função. A louça arqueológica é
patrimônio da nação e não mais um utensílio doméstico.

1006
Para pensarmos efetivamente na musealização das louças do Engenho do Murutucu,
devemos torná-la palpável e real. Vinculado ao projeto original, temos um Projeto de
Extensão chamado: Arqueologia e o Público no Engenho do Murutucu que visa estabelecer
visitas guiadas no próprio Sítio, para os diversos públicos (acadêmicos e não acadêmicos)
interagirem com o patrimônio cultural presente no espaço. A possível exposição das louças
estaria ligada ao projeto de extensão citado, podendo acontecer dentro das escolas, para o
público escolar ou até mesmo dentro do próprio complexo do Engenho do Murutucu, havendo
a musealização in situ e fazendo deste sítio, um museu. Transformar o Engenho em museu é
uma ideia que poderá ser executada futuramente.

Os museus existem para servir à sociedade, esta é a sua função social. “Assim como a
conquista da leitura de um texto se faz dispensar a figura alheia que leria para nós, a
exposição também mostra sua eficiência ao criar formas de comunicação e dispositivos de
reflexão sem tutela” (RAMOS, 2004: 5). Os museus têm uma:

[...] dupla missão [...] em relação à preservação física e acesso ao patrimônio


cultural. Comprometidos com a salvaguarda de bens para o futuro e,
simultaneamente com seu acesso e uso no presente, os museus necessitam
enfrentar esse dilema (LOUREIRO, 2015, p. 101).
Cabe ao museu servir como centro de divulgação de conhecimento científico, através
de suas exposições (expografia), pois tendo uma dupla missão, a de informar e a de preservar,
deve balancear da melhor forma possível a inter-relação entre público e objetos de museu.
Vale ressaltar que a comunicação é, para diversos autores, o principal momento da
musealização (LIMA 2013; Loureiro 2009).

Considerações finais

Tendo como base o que foi exposto neste artigo, aplicamos o conceito de musealização
no contexto arqueológico com o intuito de tratarmos de forma diferente o conceito de
musealização em relação aos objetos arqueológicos. Pensar nesse processo de forma crítica e
mais específica para diferentes contextos, tendo em vista que os artefatos já são patrimônio

1007
desde a sua exumação e não são objetos ditos “comuns”. Devemos voltar o nosso olhar para
objetos que adentram ao espaço museológico já patrimonializados, como por exemplo, os
objetos paleontológicos.

A discussão aqui exposta não se restringe apenas ao contexto arqueológico, ela é uma
discussão conceitual sobre o processo de musealização de objetos específicos. A partir do
estudo de caso das louças do Engenho do Murutucu, conseguimos esclarecer de que forma é
possível a musealização dos objetos arqueológicos, porém, não podemos nos fechar apenas ao
estudo de caso. O conceito base de pensar em uma musealização específica vai além do
contexto arqueológico. Precisamos expandir o conceito de musealização e pensá-lo a partir de
contextos específicos. Não podemos pensá-lo a partir de uma visão generalista, pois seus
processos dependerão do objeto, do conteúdo e consequentemente do contexto que estamos
lidando.

Parte importante para na contribuição da Museologia para a Arqueologia seria a


utilização no campo arqueológico dos preceitos museológicos no que tange a conservação,
salvaguarda e documentação. Não podemos olvidar o fato de que a Museologia trará para os
acervos arqueológicos a possibilidade de mostrar este acervo para os mais diversos tipos de
público, havendo a musealização diferenciada no que tange contextos diferenciados. A
exposição das peças do Engenho através do Projeto de Extensão “Arqueologia e o Público no
Engenho do Murutucu” é uma importante etapa para concretizarmos a musealização das
louças, pois a informação e comunicação constante na exposição é um dos principais focos
para a musealização. Através da exposição, uma ressignificação ou re(leitura) será feita pelo
público que frequenta o museu, tendo em vista a sua experiência museal individual.

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1010
VALORIZAÇÕES E MUSEALIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO MUNDIAL NO
BRASIL: ESTUDO DE CASO DO PLANO PILOTO DE BRASÍLIA E DO
COMPLEXO DE CONSERVAÇÃO DA AMAZÔNIA CENTRAL

Flávia Sena Campos*

Deusana Maria da Costa Machado**

**Departamento de Ciências Naturais, Instituto de Biociências, Universidade Federal do


Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

Resumo: O desenvolvimento dos conceitos de patrimônio, natureza e museu, buscando perceber suas
tipologias e inter-relações através da história humana. Propõe um exercício analítico das múltiplas
valorações e da musealização presentes em dois territórios brasileiros eleitos pela Unesco como
Patrimônio Mundial, a saber, o Plano Piloto de Brasília e o Complexo de Conservação da Amazônia
Central. Reflete sobre as estratégias de conservação no contexto de sítios naturais e históricos na
qualidade de etapa do processo de musealização, avaliando seus desafios e especificidades. Discute os
conceitos contemporâneos de museu ao problematizar sua relação com o patrimônio integral,
requalificando-os na medida em que vê na Museologia a missão de congregar homem e natureza,
portanto, integrar geodiversidade, biodiversidade e cultura.
Palavras-chave: musealização; patrimônio; Brasília; Amazônia

Abstract: the development of the concept of heritage, nature and museum, analyzing their typologies
and interrelation throughout human history. The article proposes an analysis of the multiple valuations
and of the musealization present in two Brazilian territories elected by UNESCO as World Heritage:
Brasilia and Central Amazon Conservation Complex. This study discusses the conservation strategies
of the natural and historical sites as a stage of the musealization process, evaluating their challenges
and specificities. It also presents a discussion on contemporary museum concepts when questioning its
relation with the integral heritage, requalifying them by seeing in Museology the mission to
congregate human being and nature, therefore integrating geodiversity, biodiversity and culture.
Key-words: musealization; heritage; Unesco; Brasilia; Amazon.

1011
Introdução

O conceito de patrimônio deve se fundamentar na interdependência entre


geodiversidade, biodiversidade e cultura. Scheiner72 apontou a construção histórica dos
conceitos de ‘patrimônio’ e de ‘natureza’, característica que os torna mutáveis com o passar
do tempo, tendo sua semântica adaptada à instabilidade das demandas socioculturais. Além de
serem invenções humanas, ambos necessitam ser percebidos como conceitos
interdependentes, uma vez que não pode existir patrimônio sem que inicialmente haja um
meio ambiente propício à sua concepção, que forneça os recursos e/ou matérias-primas caras
ao desenvolvimento da cultura; ao passo que, não é possível existir a ideia de natureza fora de
um contexto cultural, o qual também é patrimonial, mesmo porque sendo correlatos, tanto a
cultura quanto o patrimônio transitam por uma mesma esfera: a esfera de percepções
identitárias. Desse modo,
O próprio conceito de patrimônio remete à ideia de valor, o que nos permite
lembrar o seu caráter de signo. Lembremos aqui, mais uma vez, que o
Patrimônio é uma poderosa construção sígnica, constituída e instituída a
partir de percepções identitárias e integralmente vinculada à ideia do
sentimento de pertença – a partir do qual se reflete em todos os jogos da
memória e se expressa em todas as representações sociais. (...) Impregnado
de um sentido econômico, expressa as relações que cada grupo social
estabelece com a natureza ou com sua produção cultural – estando
diretamente influenciado pelas maneiras sob as quais cada sociedade
compreende Natureza e Cultura. (SCHEINER, 2012, p.1).

É precisamente no terreno dos valores que os patrimônios mundiais da UNESCO


foram propostos e classificados na dicotomia entre “cultural” e “natural”. Entretanto, essa
instituição ao unificar a sua lista de critérios (UNESCO, 2011) demonstra que esses dois
territórios podem conter as mesmas valorizações, apesar de aparecerem tão dicotômicos e/ou
antagônicos à primeira vista.
Ou seja, ao comparar áreas aceitas como patrimônios natural e cultural mundiais no
Brasil, posicionando o patrimônio natural naquelas áreas onde se imagina estar abrigada uma

72
SCHEINER, Teresa Cristina. Repensando o museu integral. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências
Humanas. Belém, v. 7, n. 1, p. 15-30, jan.-abr., 2012.

1012
natureza selvagem ou “intocada”, e, patrimônio cultural, espaços ou manifestações que
pareçam estar no extremo oposto, como representante de um produto totalmente humano.
Mas, se analisarmos de perto, ambos convivem com o casamento da Cultura e da Natureza de
forma mais harmônica possível. Isso ressalta como a separação do Patrimônio em Cultural e
Natural da Humanidade pela UNESCO representa, na realidade, determinados períodos da
história que sustentaram uma mentalidade de divórcio do ser humano com o meio ambiente,
colocando o primeiro numa superioridade em relação ao segundo, muito devido à sua
capacidade de pensar (a racionalidade) e isso, infelizmente, ainda continua até os nossos dias.
Por isso, o presente trabalho analisou a diversidade de valorizações atribuídas ao
Patrimônio Mundial no Brasil em dois casos específicos e suas estratégias de musealização,
como no Complexo de Conservação da Amazônia Central e no Plano Piloto de Brasília,
problematizando a relação entre patrimônio cultural e natural com vistas a defender a
unificação do conceito de patrimônio, assim como, discutindo as potencialidades de museu e
quais tipologias podem ser identificadas nesses dois patrimônios.

Patrimônio: integração Geodiversidade, Biodiversidade e Cultura


Em relação à importância patrimonial do Plano Piloto de Brasília, com base nos
critérios da UNESCO73 e nos valores de Gray (2004), pudemos analisar a presença das seis
valorizações: histórica; artística; arquitetônica; geológica; biológica e científica ex situ.
O Complexo de Conservação da Amazônia Central foi elevado a Patrimônio Mundial
no ano 2000. A inscrição justificou-se por se tratar do bem natural brasileiro que contempla a
maior área protegida da Bacia Amazônica (com mais de 6 milhões de hectares), além de ser
uma das regiões mais ricas do planeta em termos de biodiversidade. Localizado no estado do
Amazonas, o Complexo é formado por quatro unidades de conservação, com seu respectivo
ano de fundação (vide TABELA 1):

73
Há correspondência entre os critérios da UNESCO a determinadas áreas de conhecimento para identificar a presença de
múltiplas valorizações.

1013
Tabela 1 – Unidades de conservação do complexo
Unidades de conservação do Complexo
74
1) Parque Nacional do Jaú (1980)
Criado por iniciativa do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) a partir de estudos do Instituto de
Pesquisa da Amazônia (Inpa) e administrado pelo Instituto Chico Mendes para Conservação da
Biodiversidade – ICMBio e localizado ao norte do estado, entre os municípios de Novo Airão e
Barcelos. Inicialmente fora inscrito na Lista do Patrimônio Mundial somente o Parque Nacional do Jaú.
Mais tarde, em 2003, as demais áreas foram incorporadas à propriedade atual, classificada como
Complexo de Conservação da Amazônia.
2) Estação Ecológica Anavilhanas (1981) – Parque Nacional de Anavilhanas (2008)
É administrado pelo Instituto Chico Mendes para Conservação da Biodiversidade – ICMBio. Localizado
nos municípios de Manaus e Novo Airão, o parque foi criado com o objetivo de preservar o arquipélago
fluvial de Anavilhas e suas diversas formações florestais, além de estimular a produção de conhecimento
por meio da pesquisa científica e valorizar a conservação do bioma Amazônia com base em ações de
educação ambiental e turismo sustentável.
3) Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamairauá (1996)
É a primeira Reserva de Desenvolvimento Sustentável brasileira, criada por decreto do Governo do
Amazonas. Localizada a seiscentos quilômetros a oeste de Manaus, na região do curso médio do rio
Solimões. A área total de um milhão e duzentos mil hectares passa pelos municípios de Uarini, Fonte
Boa e Maraã e atualmente, funciona sob a gestão do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá
em parceria com o Governo do Estado.
4) Reserva de Desenvolvimento Sustentável Amanã (1998)
Instituída por decreto estadual em 4 de agosto de 1998, é administrada pelo Instituto de
Desenvolvimento Sustentável Mamirauá. Localizada na região do médio curso do rio Solimões, próximo
à confluência com o rio Japurá, a aproximadamente 650 quilômetros a oeste de Manaus e abrange os
municípios de Maraã, Barcelos e Coari.

Em relação à importância patrimonial do Complexo de Conservação da Amazônia,


pudemos analisar a presença das quinze valorizações: histórica75; antropológica;

74
O endereço da sede fica na Rua Ministro João Gonçalves de Souza, Rodovia BR 319, km 1, s/n, Distrito Industrial, CEP
69075-830 — Manaus — AM — Brasil.
75
Informações baseadas no Plano de Manejo do Parque Nacional do Jaú (1998, p. 47-53). As fontes consultadas pelo foram:
Guia Comercial de Manaus (1997) e Amazônia da conquista ao desenvolvimento (1988).

1014
arqueológica76; folclórica77; religiosa ou espiritual; turística78; linguística; artística;
arquitetônica; econômica; geográfica; geológica; paleontológica; biológica e científica ex situ
(PLANO DE MANEJO PNJ, 1998).
Como mencionado acima, apesar de ambos os Patrimônios da Humanidade serem em
categorias distintas, observa-se valorizações em um amplo espectro. No Caso do Plano Piloto
de Brasília, integra-se a sua própria concepção do design geral da cidade comparado à forma
de um pássaro durante o voo, assim como, cada obra de arte e literatura apresenta uma
delimitação com o meio ambiente, como no “poema da curva”:
“Não é o ângulo reto que me atrai.
Nem a linha reta, dura, inflexível,
criada pelo homem.
O que me atrai é a curva livre e
sensual. A curva que encontro nas
montanhas do meu país, no curso sinuoso
dos seus rios, nas nuvens do céu, no corpo
da mulher amada.
De curvas é feito todo o Universo.
O Universo curvo de Einstein.” (O poema da curva, Oscar Niemeyer)
Essa mesma perspectiva é encontrada no Complexo de Conservação da Amazônia,
onde se espera observar somente o meio ambiente como a essência patrimonial e defronta-se
com uma riqueza social, antropológica e mitológica, as quais não podem ser desassociadas do
meio ambiente. Um exemplo bem claro disso são as Reservas de Desenvolvimento
Sustentável Mamairauá e Amanã.
É dentro de uma perspectiva de patrimônio integral, pois acreditamos que apesar de
sua potência de se desdobrar em variadas tipologias, ele é um ente único e, filosoficamente,
indivisível. Temos bastante segurança em afirmar essa visão que, de modo nenhum, quer
restringir a força dessa palavra. Ao contrário, Patrimônio é um conceito, no qual está inserido

76
Informações baseadas no sítio eletrônico do Instituto Mamirauá. Disponível em: http://www.mamiraua.org.br/pt-
br/comunicacao/noticias/2015/2/26/pesquisas-arqueologicas-buscam-identificar-vestigios-da-ocupacao-humana-na-
amazonia/. Acesso em janeiro de 2017.
77
O mito do boto cor de rosa aqui apresentado foi baseado na descrição encontrada através do link: <http://www.lendas-do-
amazonas.noradar.com/a-lenda-do-boto-cor-de-rosa/> Acessado em janeiro de 2017.
78
Parte considerável dos dados aqui mencionados encontra-se disponível no link
http://www.icmbio.gov.br/parnaanavilhanas/guia-do-visitante.html. Acesso em janeiro de 2017.

1015
toda a riqueza de conhecimentos que podem compô-lo harmoniosa e holisticamente. Isto não
é privilegiar um saber em detrimento de outro; mas, sim, buscar incessantemente a
congregação entre todos os saberes no Patrimônio:
O processo de musealização implica (...) investigar que significados têm as
referências que se musealizam, nos distintos âmbitos do conhecimento:
Filosofia, História, Ciência e Arte. Articulam-se aqui os conhecimentos
específicos de um ou mais desses campos, visto que praticamente todo grupo
de referências culturais é submetido aos aportes conjuntos de pelo menos
dois desses âmbitos, ao longo dos processos de patrimonialização e
musealização. Teremos assim, no viés da cultura material, as coleções -
conjuntos articulados de objetos móveis, reconhecidos sob um ou mais
critérios de classificação, emprestados pelos campos que as qualificam:
Paleontologia, Botânica, Zoologia, Ciências Matemáticas, Engenharias,
Artes Contemporâneas, entre tantos outros. No caso da cultura não-material,
a contribuição desses saberes permanece, aliada a conhecimentos advindos
da História, da Sociologia, das Artes Plásticas e Cênicas, da Crítica da Arte
ou da Psicologia da Cultura. Cabe lembrar que tais processos não são novos,
e que integram as metodologias tradicionais de trabalho para a formação e o
trato de coleções. Nova é a percepção de que, na esfera patrimonial, há uma
instância (ou âmbito) de encontro de todos esses saberes - e essa instância,
nós a conhecemos como Museologia. (SCHEINER, 2015, p.12-13).

Ainda que se saiba que nem todo patrimônio é museu, mas que todo museu pelo
processo museológico resignifica seu acervo, tornando-o patrimônio e, consequentemente, se
concebendo como tal. Isto não inviabiliza que tentemos perceber em territórios
patrimonializados, uma potencialidade de ter musealização e de ser museu. Hoje, as tipologias
de museu são múltiplas; seus formatos, inúmeros; sua apropriação, alcance e reinvenção,
infinitos. O Conselho Internacional de Museus – ICOM na Declaração de Quebec (1992)
elaborada após a 16ª Assembleia Geral, entendeu que os museus não teriam quaisquer limites,
senão aqueles impostos pelas próprias pessoas e que podem vir a ser de ordem política,
socioeconômica, institucional ou cultural.79 O Conselho também propôs uma sistematização
mais clara para as diversas manifestações museais existentes no tempo e no espaço,
organizando-as em duas grandes categorias contendo subtipos cada uma (vide TABELA 2).

79
Disponível em: <http://icom.museum/the-governance/general-assembly/resolutions-adopted-by-icoms-general-assemblies-
1946-to-date/quebec-city-1992/> Acessado em janeiro de 2017.

1016
Tabela 2. Tipologias de museu (ICOM, 1992)
1. Museu tradicional 2. Museus de território
Museu tradicional ortodoxo (acadêmico) Museus comunitários e ecomuseus
Museu tradicional interativo (exploratório) Parques nacionais e sítios naturais musealizados
Museu tradicional com coleções vivas Cidades monumentos
- Museus virtuais

Os museus apresentam oito tipologias (categorias) em relação à sua arquitetura,


segundo Santos e Lima (2014) ao adaptarem as categorias de Oliveira (2007). Na tabela
abaixo, ainda constam os formatos que cada categoria de museu pode assumir e o tipo de
acesso: (vide TABELA 3)

Tabela 3. Tipologias de museu (Oliveira, 2007)


Categoria Formatos Acesso
Museu casa (residência Mantém 90% da arquitetura original. Presencial
histórica)
Edifício convertido ou Estrutura antiga ou nova aproveitada para museu, Presencial
adaptado com bastante alterações.
Edifício concebido Criado especialmente para ser museu. Presencial
Museu ao ar livre Museu in situ, Museu jardim e Ecomuseu. Museu Presencial
de cidade, cidade monumento e museu à céu
aberto80.
Museu virtual Museus que podem ser estendidos em CD-ROM, Remoto
DVD e VHS, mas que se off-line, não possuem
novidade no suporte apresentado.
Museu digital Possui interface presencial e está na Web. Os Presencial e
Cibermuseus, em contrapartida, estão disponíveis Remoto
somente na Web.

80
Modificado.

1017
Museum bus Estrutura criada em um carro, com mobilidade. Presencial
Para-museus Parques temáticos e zoológicos. Estruturas Presencial
possíveis de serem museus.

Consoante ao último exemplo citado, temos garantida a certeza de que não existem
limites no campo dos museus e que ele se constitui um celeiro fértil de atuação para os
museólogos. No caso do Complexo de Conservação da Amazônia Central, vimos quatro áreas
protegidas compondo o seu conjunto: o Parque Nacional do Jaú, o Parque Nacional de
Anavilhanas, a Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamairauá e a Reserva de
Desenvolvimento Sustentável Amanã. Conforme os pressupostos do ICOM (2001), essas
áreas de sítios e parques naturais são museus.
Para Oliveira (2007) são museus ao ar livre ou museus in situ. E mediante ao que fora
estabelecido pelo ICOM (1992) o Complexo é, todo ele, um museu de território; embora, no
caso do Complexo possamos reconhecer duas subcategorias, sendo a primeira delas a dos
‘parques nacionais ou sítios naturais musealizados’. Nos seus representantes, Parque Nacional
do Jaú e de Anavilhanas, é possível observar a musealização de um território cuja ênfase está
nas relações entre os diversos componentes dos ecossistemas (inclusive quando há presença
humana). Entre suas características figuram a valorização de processos naturais e culturais
somada às consequências desses processos e produtos fabricados; o tempo natural ou
biológico e podem ou não abrigar expografias com espécimes e objetos (no sentido clássico
da palavra).
Todavia, no interior da tipologia de ‘museu de território’, as duas Reservas de
Desenvolvimento Sustentável do Complexo (Mamairauá e Amanã) atendem perfeitamente ao
‘conceito ecomuseu81’ e nele podem ser definidas. Basta lembrarmos das ‘valorizações
econômica e artística’ presentes para perceber a forte relação que aquelas populações
tradicionais têm com o desenvolvimento local ao utilizarem dos recursos naturais de seu meio
pela ótica da sustentabilidade. Dentro da tipologia de ‘museus comunitários ou ecomuseus’

81
O ecomuseu foi considerado na época de sua criação o nec plus ultra da museologia moderna (Varine, 1970, p.62).
Nec plus ultra é uma locução latina que expressa a ideia de um limite que não pode ser ultrapassado. Ex.: aquele vinho
era um nec plus ultra. Do latim, nec (não), plus (mais) e ultra ('além').

1018
(ICOM, 1992) haverá a musealização de um território com ênfase dada para as relações
culturais e sociais ser humano/território, apresentando como características: a valorização de
processos naturais e culturais e não dos objetos enquanto unicamente produtos da cultura; o
tempo social, ou seja, referem-se a populações tradicionais presentes no mundo
contemporâneo e, pode ou não conter expografias baseadas em objetos (sentido clássico do
termo)82.
A ideia de ecomuseu se originou na Europa no começo dos anos 1970 como forma de
responder as novas necessidades culturais da sociedade através de uma museologia
comunitária adaptada ao desenvolvimento sustentável. Seu idealizador foi o museólogo
Hugue de Varine, o qual empreendeu um esforço reflexivo na companhia de Georges Henri
Rivière, tendo este último redigido a seguinte definição:
O ecomuseu, [...] sobre um território, exprime as relações entre o homem e a
natureza através do tempo e através do espaço desse território; ele se compõe
de bens, de interesses científicos e culturais reconhecidos, representativos do
patrimônio da comunidade que serve: bens imóveis não construídos, espaços
naturais selvagens, espaços naturais humanizados; bens imóveis construídos;
bens móveis; e bens integrados. Ele compreende um centro de gestão, onde
estão localizadas as suas estruturas principais: recepção, centros de pesquisa,
conservação, exposição, ação cultural, administração, abrangendo ainda os
seus laboratórios de campo, outros órgãos de conservação, salas de reunião,
um ateliê sociocultural, moradias, etc., percursos e estações para a
observação do território que ele compreende, diferentes elementos
arquitetônicos, arqueológicos, geológicos, etc., assinalados e explicados.
(VARINE; RIVIÈRE, 1978 apud DESVALLEÉS, MAIRESSE, 2013, P.66).

A missão do ecomuseu, por assim dizer, é administrar, estudar e explorar com


finalidades de ordem científica, educativa e cultural o patrimônio global de uma determinada
comunidade, compreendendo a totalidade do seu ambiente natural e cultural. Por este motivo,
o ecomuseu é um instrumento de participação popular no planejamento do território e no
desenvolvimento comunitário e deve empregar todos os recursos e métodos disponíveis para

82
O que é museu? Definições e tipologias. Disponível em: <http://www.unifal-
mg.edu.br/museumpunifal/sites/default/files/museumpunifal/eventos/VI-semana-nacional-de-museus/Curso-
introducao-museus/AULA%2001%20-
%20O%20QUE%20E%20MUSEU%20E%20TIPOLOGIA%20DE%20MUSEUS.pdf> Acessado em janeiro de 2017.

1019
fazer com que a comunidade apreenda, analise, critique e domine de maneira livre e
responsável os problemas que se apresentam a ela em todos os domínios da vida. Ele utiliza
essencialmente a ‘linguagem do objeto’: do quadro real da vida cotidiana, das situações
concretas e assim que criado correspondeu, acima de tudo, como um fator almejado de
mudança83.
Uma vez que o Complexo pode ser visto como museu, ele obrigatoriamente convive
com os processos de musealização: a seleção (coleta), interpretação (pesquisa), documentação
(registro, classificação, catalogação e indexação), conservação (preventiva, curativa e
restauração), preservação (física e informacional) e comunicação (exposição, educação
patrimonial ou ambiental, publicações etc.).
Para existirem, por exemplo, Parques Nacionais (PARNAs) e Reservas de
Desenvolvimento Sustentável (RDSs), estes sofrem exaustivo trabalho de inventariado,
pesquisa, exploração científica, desenhos cartográficos, documentação fotográfica,
legislaturas... o que já se perfaria numa primeira musealização. E, não só por isso, pode-se
dizer que o Complexo como um todo seja musealizado, pois além de ser institucionalizado,
também apresenta instrumentos que o documentam para fins de preservação e conservação,
como os Planos de Manejo (no caso dos parques nacionais) e os Planos de Gestão (no caso
das reservas de desenvolvimento sustentável). Na maior parte desse patrimônio se opera a
conservação in situ, com desafios84 que lhe muito próprios; mas, além dela, podemos citar que
haja uma efetiva comunicação com o público no Complexo, haja vista a valorização turística
da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamairauá, o Centro de Visitantes localizado no
Parque Nacional do Jaú, a disponibilização de informações (textuais, audiovisuais e
fotográficas) acerca dele nos sites da UNESCO, da Representação da UNESCO no Brasil e no
do Iphan, por exemplo. Quase todas as áreas protegidas do Complexo desenvolvem atividades
de educação patrimonial (ou ambiental) e estão abrigando instituições de pesquisa
relacionadas ao seu universo (conforme mencionamos na ‘valorização científica ex situ’).

84
Ver Ponciano et al., 2011.

1020
O Parque Nacional do Jaú está vinculado ao Projeto de Parques e Reservas do ICMBio
(Projeto Corredores Ecológicos), criado para unir diferentes espaços protegidos e unidades de
conservação da região biogeográfica em um imenso corredor verde. Além da consolidação
dessas unidades, o objetivo é fomentar planos para o desenvolvimento sustentável da região.
O conceito de corredores ecológicos surgiu a partir da biologia da conservação de uma região,
onde corredores naturais ligam fragmentos de florestas, permitindo a integridade biológica e
genética das populações da fauna. O Parque Nacional do Jaú é o centro geográfico do
Corredor Ecológico da Amazônia e o primeiro a ser implantado.
Por conseguinte, a conservação das áreas protegidas é certificada por planos de
proteção implementados pelos vários órgãos responsáveis. Já a investigação científica e
atividades de educação ambiental, segundo a UNESCO, têm sido estimuladas e desenvolvidas
no Complexo e todas as áreas protegidas da propriedade também fazem parte da Reserva da
Biosfera, a qual compreende, com outras áreas, o Mosaico de Áreas Protegidas do Baixo Rio
Negro. Por fim, o conjunto é integrado a um amplo programa de corredor ecológico regional,
no quadro de programas e políticas destinadas a garantir a reunião entre gestão e conservação
desta vasta porção do bioma amazônico.
Direcionando-nos para o caso de Brasília, temos mais uma vez o ICOM (2001)
reafirmando sua condição de museu, quando considera dentro desse conceito os sítios
históricos. Já segundo Oliveira (2007), ela é também um ‘museu ao ar livre’ e, remetendo ao
que preconizou o ICOM (1992), Brasília se encaixa na tipologia de ‘museu de território’, mais
especificamente a de ‘cidade-monumento’. Tal conceituação se orienta na musealização de
um território em que a ‘exposição’ signifique, na verdade, todo o conjunto arquitetônico
construído pelo ser humano. As cidades-monumento evidenciam as relações entre os diversos
componentes do ecossistema, priorizando o aspecto antrópico. As características facilmente
identificáveis ensejam na valorização aos resultados da presença humana sobre o território,
onde predomina o ‘tempo social’ (e o ‘tempo geo-humano’, quando se tratar de sítios
arqueológicos. As cidades-monumento podem ou não conter expografias com espécimes e

1021
objetos (no sentido clássico da palavra). Mas, acima disso, elas podem conter todas as
tipologias de museus. (ICOM, 1992).
No que concerne à sua musealização, antes de qualquer coisa é imprescindível apontar
que Brasília, em sua gênese, foi projetada para ser patrimônio, e porque não para ser um
grande museu a céu aberto?! Mencionamos que pouco antes de sua inauguração nos anos
1960 promulgou-se a Lei Orgânica do Distrito Federal responsável por controlar qualquer
intervenção que se proponha ao Plano Piloto, submetendo-as ao Senado Federal para votação;
além do tombamento pelo Iphan.
Em Brasília, outras incontáveis etapas de musealização podem ser identificadas, afinal
são inúmeros os registros de documentos históricos, fotográficos, audiovisuais, sonoros que se
referem a ela, salvaguardados por instituições de referência como a Câmara dos Deputados, o
Senado Federal, Arquivo Nacional, Biblioteca Nacional etc. etc. e, certamente, eles contam
com uma organização museológica e/ou arquivística e, sua grande maioria é disponível para
consulta pública. Parques nacionais dentro da cidade, tais como o Parque Nacional de
Brasília, possuem plano de manejo, pesquisa, comunicação de seu acervo in situ e ex situ.
Seria interminável detalhar as instituições culturais abrigadas por Brasília, afinal ela é um
“museu de museus” - vide as modernas construções85 (monumentos por si mesmas) que lhe
fazem parte, como o Museu Nacional de Brasília (integrante do Conjunto Cultural da
República); o Museu da Cidade de Brasília86 (que integra o Conjunto Cultural Três Poderes);
o Memorial Juscelino Kubistchek; o Museu Vivo da Memória Candanga e o Memorial dos
Povos Indígenas, por exemplo. Todos eles são detentores de preciosas exposições, eventos e
ações educativas com linguagem adaptada para diversos segmentos de público (inclusive

85
Mais informações disponíveis em: http://www.soubrasilia.com/brasilia/museus-brasilia/. Acesso em janeiro de 2017.
86
“O Museu da Cidade foi projetado por Oscar Niemeyer com o objetivo de preservar os trabalhos relativos à história da
construção de Brasília. É o museu mais antigo da capital, foi inaugurado no dia 21 de abril de 1960 – mesmo dia da
inauguração da cidade e representa um marco histórico, pois a inauguração representou a transferência oficial da Capital do
RJ para Brasília. Possui uma exposição permanente com inscrições históricas também transcritas em Braille. (...) Na
fachada leste [do edifício] existe incrustada uma grande cabeça de Juscelino, de autoria de José Alves Pedroza, e está inscrita
a célebre frase do presidente: deste Planalto Central, desta solidão que em breve se transformará em cérebro das altas
decisões nacionais, lanço os olhos mais uma vez sobre o amanhã do meu país e antevejo esta alvorada, com fé
inquebrantável e uma confiança sem limites no seu grande destino.” [grifo nosso] Extraído de:
http://www.soubrasilia.com/brasilia/museu-da-cidade-de-brasilia/. Acesso em janeiro de 2017.

1022
adaptando os espaços e conteúdos expostos para pessoas com necessidades especiais). Os três
embasamentos teóricos utilizados até aqui para discutir as tipologias de museu, culminaram
na conceituação máxima do museu integral de acordo com a museóloga Teresa Scheiner
(SCHEINER, 2012, p.19).
Pensando aspectos culturais da História da Humanidade, tão caros aos museus, ao
processo de musealização e a Museologia, propomos refletir nas palavras de Carvalho (1991)
quando argumenta a respeito da distinção dos lugares e em como a produção de artifícios, por
sinal cada vez maior, passou a nortear as relações de poder entre os homens. Com respeito a
isso, sabemos que quanto maior a quantidade de artifícios (cultura), tanto mais evidente a
natureza se tornou, pois o ser humano no exercício de modificar os elementos naturais passou
a se perceber como ente destacado da Natureza. Daí as dicotomias entre primitivismo e
civilização, entre o progresso das metrópoles e o ‘atraso’ as áreas rurais.
Atualmente, o campo patrimonial possui muitas adjetivações, pois inúmeras esferas de
conhecimento têm se apropriado dele para valorizar os seus bens. Falando mais propriamente
com respeito a UNESCO e ao Iphan encontramos, dentro do conceito de ‘patrimônio
mundial’ (como vimos), as subcategorias87 ‘patrimônio cultural’, ‘patrimônio natural’ e
‘patrimônio misto’. Scifoni (2008) analisa as duas primeiras subcategorias, respectivamente:
“O conceito de patrimônio cultural e o seu derivado, o patrimônio natural,
pressupõe duas perspectivas de entendimento. Na primeira, [...] o patrimônio
firma-se como expressão de grandiosidade e beleza que, por sua vez advém
do sentido de monumentalidade e ‘pressupõe’ a intocabilidade, ou seja, os
grandes testemunhos da natureza que foram poupados da intervenção
humana. Assim, o patrimônio guarda uma legitimidade dada pelo discurso
técnico-científico. Nesta dimensão, o reconhecimento público [seria] direto e
inquestionável.” (SCIFONI, 2008).

No entanto, a autora problematiza a “intocabilidade” do patrimônio natural, pois - ao


seu (e ao nosso) ver – ele não poderia representar unicamente os testemunhos de uma
vegetação nativa, intocada ou ecossistemas pouco transformados pelo ser humano. À

87
Inclui-se também, no âmbito da UNESCO, a subcategoria da paisagem cultural (que no tocante à nossa análise não
convém tratar).

1023
proporção que faz parte da memória social, o patrimônio natural amalgamaria quaisquer
paisagens que fossem os objetos das atividades culturais onde a vida humana se processa.
Desse modo, áreas protegidas e monumentos naturais estariam proporcionalmente passíveis
de regulamentação jurídica para estabelecerem um convívio harmonioso com as populações
que abrigam.
Choay (2001) vem complementar esta reflexão dizendo-nos que “a tripla extensão -
tipológica, cronológica e geográfica - dos bens patrimoniais foi acompanhada pelo
crescimento exponencial de seu público” (CHOAY 2001, p.15). E nós acrescentamos que
esse público não se refere apenas ao turista que emigra (imigra ou migra), mas também às
pessoas que circundam, moram, trabalham e vivem no interior dessas ‘zonas
patrimonializadas’ de conservação do meio ambiente, conforme vimos no caso do Complexo
de Conservação da Amazônia.
No seio do movimento ecológico do século XX, não cabia mais compreender natureza
e cultura de maneira fragmentada, dissociada. Senão enquanto inter-relacionais na construção
da identidade e da reafirmação da memória do povo e foi nesse exato momento que o conceito
de Patrimônio Integral abriu o seu caminho (SCHENEIR, 2004).
Através do cenário acima descrito, no século XXI a natureza passou a ser olhada pela
ótica do desenvolvimento sustentável. Entrou em voga a sustentabilidade não só nas
preocupações de ordem econômica, mas também em outros campos, como no das políticas
públicas, no judiciário, legislativo, administrativo, social, bem como no universo da cultura,
das artes, da arquitetura etc., pois um discurso em defesa da ‘conservação da natureza’
decorria inflamado, alimentado pela consciência de que os recursos naturais fossem ‘bens não
renováveis’. Tal conscientização entrou nos debates da época, e se propagavam pela mídia e
meios de comunicação de massa. Encontros internacionais foram organizados em prol desse
objetivo, como a ECO-92, a Campanha contra o desmatamento da Amazônia e, mais
recentemente, a RIO+2088.

88
Acerca desses eventos e do tema da sustentabilidade.

1024
A partir do conceito de patrimônio integral percebemos que “se a natureza é bem
patrimonial e pode ser herdada, o mesmo pode acontecer com tudo aquilo que ela abarca ou
representa, incluindo o humano e sua cultura - o que vem justificando os jogos de conquista e
pertencimento operados pelas diferentes sociedades, ao longo da história. A relação
fragmentária entre patrimônio natural e patrimônio cultural [costuma desencadear na]
percepção de que o patrimônio pode apresentar-se sob um modo tangível e um modo
intangível. O primeiro institui-se pela separação entre o que se pode conquistar pela herança,
pelo jogo ou pela guerra; o segundo, pela sutileza dos processos imateriais de transmissão
biológica e/ou cultural. Aqui, mais que o bem material, o que importa ao homem é a sua
relação de pertencimento, é o domínio sutil da ideia, da fala, crença, da música e do gesto
sobre a sua própria natureza - seu território emocional, aquilo que o define para si mesmo e
para o mundo.” (SCHEINER, 2004, p.62-63).
O pensamento patrimonial do Ocidente foi como que, ecumenicamente, globalizado;
seus valores, mundializados. Podemos considerar a Convenção relativa à proteção do
patrimônio mundial cultural e natural, adotada em 1972 pela Assembleia Geral da UNESCO
como a pedra fundamental dessa efeméride. O texto da convenção baseava o conceito de
patrimônio cultural universal no de monumento histórico - monumentos, conjuntos de
edifícios, sítios arqueológicos ou conjuntos - que apresente “um valor universal excepcional
do ponto de vista da história da arte ou da ciência”: proclamava-se a universalidade do
sistema ocidental de pensamento e de valores quanto a esse tema.
Esse pensamento tem gerado diversas discussões e instigado cada vez mais qual o
significado de “valor universal”. Outra problemática nos critérios da UNESCO tem sido a
tentativa de acabar com o divórcio imposto historicamente às suas duas categorias (Cultural e
Natural), criando o conceito de ‘patrimônio misto’. Todavia, a operação deste conceito não
tem sido fidedigna ao conceito de ‘patrimônio integral’. Parece que a primeira acepção seja de
ordem mais política, administrativa e, portanto, relacionada a uma gestão de cunho prático;
enquanto a segunda, por problematizar a ‘essência’ da ideia, seja mais teórica e tanto mais
afim de um exercício filosófico. Mas ainda no campo da prática fica a pergunta: continua

1025
valendo apena separar o patrimônio cultural do natural se todo complexo que envolve o Real
carrega o tripé geodiversidade-biodiversidade-cultura? Fica o convite de pensar mais a
respeito.

Conclusão
Em razão das ‘dimensões de valor’ exploradas, o andamento metodológico da
pesquisa desencadeou na elaboração do seguinte gráfico que buscou interpretar os critérios da
UNESCO (2011) tentando perceber as áreas de conhecimento inerentes a cada um deles e
convertê-las ao entendimento das ‘valorizações’ do patrimônio:

1026
Critério (i):
valorização
artística
Critério (x): Critério (ii):
valorização valorização
ecológica, arquitetônica
museológica e
educação
patrimonial

Critério (ix):
Critério (iii):
valorização valorização
ecológica, antropológica
biológica e
paleontoógica

Patrimônio
Integral
Critério (viii): Critério (iv):
valorização valorização
geológica e histórica
geográfica

Critério (vii): Critério (v):


valorização valorização
química, física antropológica,
arqueológica
e biológica Critério (vi): ecológica e
valorização museológica
artística e
filosófica

Gráfico
1. Interpretação dos critérios por valorizações ou áreas de conhecimento. Autoral.

No cenário internacional, pelo fato de destacar o papel das comunidades locais, a


Convenção de Paris (1972) funcionaria como uma ferramenta eficaz para o monitoramento da
mudança climática, da urbanização acelerada, do turismo em massa, do desenvolvimento
socioeconômico e dos desastres naturais, além de outros desafios contemporâneos. Nesse
sentido, esta convenção é única por ter conseguido combinar os conceitos de conservação

1027
natural e de preservação de bens culturais; isto seja, por haver se mostrado uma feliz
alternativa de casamento entre cultura e natureza no campo patrimonial.
Todavia, há um contraponto: nesse combinar sente-se uma parcialidade, pois o
conceito de Patrimônio pela UNESCO, na prática, ainda não se encontra unificado no instante
em que ele é subdividido nas três categorias já mencionadas. Disto decorre uma discrepância
percentual considerável, como é possível constatar no gráfico a seguir. Nele percebemos que
77,3% dos bens são de orem cultural (correspondendo a mais da metade), enquanto uma
parcela de 19,5% são naturais e apenas 3,07% são de ordem mista. O agravante é que este
último seria aquele - por excelência - que mais coaduna-se com o conceito de Patrimônio
Integral que aqui apresentaremos: justamente ele encontra-se tão irrisoriamente representado,
embora razões de ordem histórico-cronológica89 possam justificar tal discrepância, pois esta
categoria é surgida apenas de 1990 enquanto as demais se enquadram nas décadas de 1940 e
1970 respectivamente.
Nossas conclusões compreendem que o conceito de Patrimônio Integral é uma
proposta de Pensamento (no sentido mais rico que essa palavra pode ter). Este conceito é
intimamente atravessado pelos de Natureza, Cultura e Ecologia (estando neles subentendida a
geo/biodiversidade). Por isso concordamos com Castro e Machado (s/d) quando conceituam
as múltiplas valorizações inerentes a todo patrimônio:
“o patrimônio (...) pode ser entendido de forma integral ou fragmentada. A
primeira contempla conjuntamente os fenômenos culturais e naturais de
forma indivisível, única, e sem pertencer exclusivamente a uma área do
conhecimento. A segunda é capaz de receber adjetivações para especificar a
sua área de importância, permitindo a concepção de um patrimônio natural e
outro cultural, por exemplo. Essas concepções também podem ser cada vez

89
É válido relatarmos que haja uma concentração de patrimônios mundiais nos continentes da Europa (detentora do maior
número de bens inscritos) e da Ásia (mais propriamente na China) e, a África (o maior de todos os continentes em extensão
geográfica e berço da história da humanidade) é aquele que menos possui bens inscritos. É possível que pensemos juntamente
com Choay (2001) se o patrimônio também não serve como meio de segregação entre culturas, cuja demonstração de poder e
dominação perpetua a preconceituosa dicotomia entre primitivos e civilizados, conquistadores e conquistados e um lantente
eurocentrismo em pleno século XXI. Chagas também ajuda-nos a pensar na potência ambígua do campo do patrimônio que,
tanto pode expressar-se positivamente por meio do “poder da memória” quanto coercitivamente através da “memória do
poder” (in Memória e Poder: contribuição para a teoria e prática nos ecomuseus). Disto, resta-nos uma intrigante questão:
porque a grande maioria dos Patrimônios da Humanidade se concentra na Europa e China?

1028
mais específicas acompanhando as áreas do conhecimento, onde o
patrimônio natural contemplaria, entre outros, o patrimônio geológico,
biológico, genético, ambiental, e o patrimônio cultural abarcaria o histórico,
arquitetônico, artístico, arqueológico, entre outros. Esses são exemplos das
múltiplas facetas (desdobramentos) que se atribui ao patrimônio.” (CASTRO
E MACHADO, s/d, p.2)
Dialogando com as contribuições anteriores, vemos como positivo o encaminhamento
que a relação ser humano-natureza (ou cultura-natureza-ecologia) vem desenvolvendo em
nosso tempo, pois parece andar cada vez pra mais perto do que o antropólogo Damata (2000)
define como a razão de ser do humano: “reconhecer-se a si mesmo em todos os desafios que
enfrenta e em todos os instrumentos que fabrica”90. Não ver-se como diferente do meio
natural, mas dentro dele como ser biológico que é; como uma espécie animal composta de
elementos químicos, sujeita às leis da física... O homem, para que admire o patrimônio de seu
entorno e de outros territórios - os próprios Patrimônios da Humanidade! - e seja reverente à
apropriação de todas as culturas, precisa criar a empatia com o seu semelhante. Quando as
relações do patrimônio forem mais em direção do “poder da memória” do que da “memória
do poder”, sem dúvida o mundo há de ser uma casa melhor para se viver e a Vida - esse
Museu de tudo, Museu fenômeno - ganhará, com toda a potência, seu sentido máximo de
patrimônio!
Findamos a tessitura da pesquisa indicando que toda a riqueza de valorizações que
conseguimos identificar e analisar com o auxílio dos referenciais teórico-metodológicos
escolhidos e critérios da UNESCO (2011), se mostrou bem maior do que as valorizações
reconhecidas durante o processo de interpretação dos dados. Pelo escasso tempo que tivemos,
não houve possibilidade de investigar exaustivamente o maior número de dados possíveis,
num exercício de inventário, propriamente dito. Assim, não conseguimos redigir as
valorizações turística, arqueológica, econômica e paleontológica de Brasília, tampouco
acrescentar outras valorizações como a gastronômica, por exemplo.

90
Nossa epígrafe.

1029
Acreditamos que, com um tempo maior para a realização deste inventário e com a
possibilidade de visitar presencialmente os dois espaços, alcançaríamos resultados mais
satisfatórios mais com relação à musealização deles.

Referências bibliográficas

CASTRO, Aline Rocha de Souza Ferreira de; MACHADO, Deusana Maria da Costa.
Múltiplos olhares para um patrimônio: o estudo de caso do Parque Paleontológico de São
José de Itaboraí. 2009. Disponível em:
https://www.researchgate.net/publication/281649892_MULTIPLOS_OLHARES_PARA_UM

_PATRIMONIO_o_estudo_de_caso_do_Parque_Paleontologico_de_Sao_Jose_de_Itaborai.
Acesso em janeiro de 2017.

CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Estação Liberdade, 2001.

DAMATTA, Roberto. Relativizando. Uma introdução à antropologia social. Rio de Janeiro:


Ed. Rocco, 2000.

DESVALLÉES, André; MAIRESSE, François. Conceitos-chave de Museologia. Tradução e


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INSTITUTO CHICO MENDES DE CONSERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE – ICMBio.


Site. Disponível em: <http://www.icmbio.gov.br/portal/. Acesso em 13 de outubro de 2016.

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Desenvolvimento Sustentável Mamairauá. Disponível em:
ftp://ftp.mct.gov.br/Biblioteca/44376-
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janeiro de 2017.

1030
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capitalista. Revista Pegada, vol.3, número especial, 2002, São Paulo, 9p. (disponível
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SCHEINER, Tereza Cristina Moletta. Imagens do Não Lugar: comunicação e o patrimônio


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Informação, memória e patrimônio – do documento às redes. GT 9 – Museu, Patrimônio e
Informação (Comunicação Oral). Paraíba, 2015.

1031
A MUSEALIZAÇÃO COMO PROCESSO DE SACRALIZAÇÃO DOS OBJETOS

Jennifer Monteiro*

Resumo: O autor Zbyněk Stránský em “Museologia – ciência ou apenas trabalho prático?¹ (1980),
disserta sobre a desvantagem da Museologia em relação as exigências científicas de sua época. Um
dos aspectos abordados pelo autor compreende-se como a defasagem de publicações referentes a
reflexão teórica da área. Diante desse quadro, este trabalho tem como objetivo somar conteúdo a área
de forma a produzir indagações sobre o método musealização apresentado por Waldissa Rússio em sua
definição de museu e fato museal, relacionando-o a teoria da Profanação concebida pelo filósofo
italiano GiorgioAgamben. Para Rússio, um dos termos significativos para a área Museal se apresenta
como “Processo de Musealização”, método este que pode ser compreendido como a retirada um objeto
da sua concepção primordial de forma a atribuir-lhe um novo significado com valor de bem cultural.
Ao se compreender a teoria de Agamben, a musealização do objeto torna-se um processo de
sacralização onde se interrompe o seu uso comum e lhe atribuído status. Para o filosofo, profanar
significa interromper a sua aura sagrada da coisa, sendo sagrado tudo aquilo que, real ou
figurativamente, pertence aos Deuses e torna-se aquilo que não deve ser tocado pelo homem. Ao se
profanar um objeto, interrompesse seu status sagrado e restituindo ao uso comum. Conclui-se que, ao
refletir o ponto de vista de Agamben sobre a profanação, tal concepção se faz presente na museologia
diante do método adotado pela área ao transformar um objeto de uso comum em acervo de museu.
Esse processo, que exige sua interdição à todo uso possível, nada mais é que a sacralização de seu
novo status.
Palavras-chave: musealização; sacralização; objeto.

Abstract: The author Zbyněk Stránský in "Museology - science or just practical work?" (1980),
discusses the disadvantage of Museology in relation to the scientific demands of its time. One of the
aspects addressed by the author is understood as the lag of publications referring to the theoretical
reflection of the area. In view of this, this work aims to add content to the area in order to produce
inquiries about the musealization method presented by Waldissa Rússio in its definition of museum
and museum fact, relating it to the theory of Profanation conceived by the Italian philosopher
GiorgioAgamben. For Rússio, one of the significant terms for the Muse area is presented as a
"Musealization Process", a method that can be understood as the withdrawal of an object from its
primordial conception in order to give it a new meaning with a cultural value. By understanding
Agamben's theory, the musealization of the object becomes a process of sacralization where its
common use is interrupted and assigned status. For the philosopher, to desecrate means to interrupt his
sacred aura of the thing, being sacred everything that, real or figuratively, belongs to the Gods and
becomes that which is not to be touched by the man. In profaning an object, interrupt its sacred status
and restore it to common use. It is concluded that, in reflecting Agamben's point of view on
profanation, such a conception is present in museology in the face of the method adopted by the area
in transforming an object of common use into a museum's collection. This process, which requires its
ban on all possible use, is nothing more than the sacralization of its new status.
Key-words: musealization; sacralization; object.

¹ Tradução publicada pela Revista Eletrônica do PPGMus (Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio.) da
UNIRIO.

1032
Como área de conhecimento em ascensão, a Museologia vem galgando passo a passo
sua qualificação como campo capaz de produzir conhecimento. Em 1980, Stránsky, ao
considerar a literatura disponível na área, debruçou-se sobre a teoria e a prática dentro do
fenômeno museu. Após anos de dedicação, o autor chegou à conclusão de que existe uma
infinidade de trabalhos que buscam apresentar descrições de atividades relativas a museus,
porém pouquíssimos trabalhos se preocupam em discutir criticamente a abordagem teórica da
Museologia. Stránsky (1980) argumenta que embora existam outros fatores dificultando o
reconhecimento da área como ciência, a inconsistência de sua base teórica pode ser
configurada como um dos aspectos mais importantes dessa instabilidade.
O estudo de Museologia tem como objetivo a compreensão da importância de
salvaguardar o patrimônio histórico, natural ou cultural para além de instituições estruturadas
e leis governamentais. Como método de ensino, os cursos universitários costumam optar por
um caminho metodológico que perpassa por vias teóricas e práticas. Tal abordagem visa
formar um profissional proficiente em todos os campos museais. Contudo, diante do quadro
de publicações referentes ao campo museológico, é perceptível o déficit referente a produções
de cunho teórico. Grande parte dos autores da área dedicam-se a produção de conhecimentos
e métodos práticos, tal déficit apresentado por Stránsky (1980), reflete na estabilidade da
museologia como campo científico. Sem uma de base teoria satisfatoriamente consolidada, o
campo museal se torna instável e sujeito a constantes críticas negativas referentes a sua
construção acadêmica.
Como um esforço para sanar tal problemática do campo, Waldisa Rússio Camargo
Guarnieri, uma importante teórica brasileira do campo da museologia, dedicou grande parte
da sua carreira acadêmica a definição do objeto de estudo da Museologia. Após anos de
pesquisa a autora chegou à conclusão de que o Fato Museal, “relação profunda entre o
Homem, sujeito que conhece, e Objeto, parte da realidade à qual o homem pertence” define-se
como o objeto de estudo da área (RUSSIO, 1990, p.7).
Para Carvalho, Doutora em Museologia pela Universidade Federal do Estado do Rio
de Janeiro, um dos melhores caminhos para uma total compreensão do Fato Museal de Rússio

1033
perpassa pela construção teórica de outra ciência humana, a Sociológica. Segundo Carvalho, o
Fato Social apresentado por David Émile Dürkheim, representa parte do caminho teórico
optado por Rússio na construção de seu argumento. Fato, por excelência é considerado como
aquilo que acontece, para Dürkheim, o Fato Social refere-se a:

[...] toda maneira de agir, fixa ou não, suscetível de exercer sobre o


indivíduo uma coerção exterior; ou, ainda, que é geral ao conjunto de
uma sociedade dada e, ao mesmo tempo, possui existência própria,
independente das manifestações individuais que possa ter [...]
(DÜRKHEIM, 1972. p.6)

Após definir o que considera o Objeto de estudo da Sociologia de maneira menos


abrangente do que o simples “Estudo da Sociedade” Dürkheim delimitou nortes para a
concepção do Fato Social, pois os fenômenos sociais necessitam ser estudados como um
conjunto de situações. Outro aspecto importante da teoria, é que para Dürkheim, torna-se
essencial separar os fatos sociais do sujeito que o estuda. Dessa forma, compreende-se que as
semelhanças entre teorias, visto que a museologia estuda não apenas o objeto, mas o conjunto
de situações que o condiciona. Portanto, o relacionar o Objeto de estudo da Sociologia com a
teoria de Rússio, concebe-se que o museu, enquanto fato museal, ganha uma nova definição e
características próprias que o diferencia das demais instituições. (CARVALHO, 2011).
Agora, de acordo com o Fato Museal de Rússio, percebe-se que o museu torna-se mais
do que uma edificação estabelecida com o objetivo de preservar a memória e produzir
conhecimento, ele torna-se fundamental para a construção da Museologia como área de
conhecimento:
[...] o museu é o local do fato “museal”; mas para que esse fato se
verifique com toda a sua força, é necessário “musealizar” os objetos
(os objetos materiais tanto quanto os objetos-conceito). Podemos
assim “musealizar” objetos que são vestígios, provas da existência do
homem e seu ambiente, de seu meio natural ou modificado por ele
próprio. (GUARNIERI, 2010, p.124-125)

Rússio, ao citar a palavra musealizar, refere-se ao processo de musealização no qual


um objeto é submetido ao passar da esfera das coisas para a esfera museal, esse processo, que

1034
visa transformar o objeto em um documento como uma forma de valorização. Para Desvallées
e Mairesse a musealização é uma “operação destinada a extrair, física e conceitualmente, uma
coisa de seu meio natural ou cultural de origem e a lhe dar um estatuto museal, transformá-lo
em musealium ou museália(...) ou seja, parte do museu. (Desvallées e Mairesse, 2010, p. 48-
50).
Esse processo apresentado por Russio, Desvallées e Mairesse também pode ser
compreendido como um processo de interdição do uso do objeto, tendo em vista que a
musealização atribui ao objeto uma aura sagrada que impossibilita a sua violação,
impossibilitado sua função no mundo das coisas. Essa concepção permite a apresentação da
teoria da profanação do sagrado apresentar por Giorgio Agamben (2007).
A premissa do pensamento atribuído ao sociólogo italiano dedica-se a apresentar o
significado do sagrado assim como os métodos e meios para sua profanação. Segundo o autor,
o significado básico de sagrado representa todas as coisas que, em alguma instância,
pertenciam aos deuses. Sendo assim, um objeto ou coisa que é atribuído o sentido de sagrado,
passa automaticamente a uma esfera superior onde é impossível a violação e comercio
humano. Aplicando a teoria de Agamben ao museu, percebe-se que quando um objeto é
submetido a um processo de musealização, ele torna-se sagrado, visto que lhe é atribuído uma
série de características e impossibilidades automaticamente anexadas a sua existência.
Um objeto sagrado não pode ser levado à esfera mundana sob nenhuma circunstância,
sua integridade física precisa ser mantida e seu valor de comércio é extinto. Desta forma,
pode-se ver a exata compatibilidade das características sagradas com os parâmetros e
finalidades adotadas no processo de musealização, onde o processo se fundamenta na
interdição do uso do acervo com a finalidade de salvaguardar os objetos de museu.
Concluindo assim que, por mais que o Museu se dedique diariamente ao esforço de
garantir seu status de instituição capaz de produzir conhecimento cientifico, seus processos
reafirmam sua definição ancestral, o museu para além de uma instituição, permanece um
templo dedicado a consagração da cultura, arte e ciência.

1035
Referências bibliográficas

AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007.

CARVALHO, Luciana Menezes de. Waldisa Rússio e Tereza Scheiner - dois caminhos,
um único objetivo: discutir museu e Museologia. Revista Eletrônica do Programa de Pós-
Graduação em Museologia e Patrimônio – PPG-PMUS Unirio | MAST - vol. 4 no 2 – 2011.

DESVALLÉES, André, MAIRESSE, François. eds. 2013. Conceitos-chave de Museologia.


Tradução de Bruno Brulon Soares e Marilia Xavier Cury. ICOFOM. Armand Colin. ISBN:
978-85-8256-025-9.

GOMES. Carla Renata. O Pensamento de Waldisa Rússio sobre a Museologia. Inf. &
Soc.:Est., João Pessoa, v.25, n.3, p. 21-35, set./dez. 2015

ROSARIO, Cláudia Cerqueira do. O lugar lítico da memória. Morpheus - Revista Eletrôni ca
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RÚSSIO, W G. In: Symposium Collecting Today for Tomorrow. Leinden: ICOM,


International Committee for Museology/ICOFOM, 1984. p. 51-59. (ISS: ICOFOM STUDY
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. Museu, Museologia, museólogos e formação. Revista de Museologia,


São Paulo: Instituto de Museologia de São Paulo Fesp/SP; 1 (1),p. 7-11,1989

. Conceito de cultura e sua interrelação com o patrimônio cultural e a


preservação. Cadernos Museológicos. Rio de Janeiro: IBPC, n. 3, p. 7-12, 1990.

. Waldisa Rússio Camargo Guarnieri: textos e contextos de uma


trajetória profissional. São Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2010.

STRÁNSKÝ, Z.Z. Sobre o tema “Museologia – ciência ou apenas trabalho prático?”


(1980). Revista Eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio –
PPG-PMUS Unirio/MAST, vol. 1, no 1, jul/dez de 2008, p.101-105. Trad. Tereza Scheiner.

1036
A PROBLEMÁTICA DOS PROCESSOS DE CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES
COLETIVAS: REFLEXÕES A RESPEITO DAS RELAÇÕES ENTRE OS
PROCESSOS DE CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES COLETIVAS, E A
UTILIZAÇÃO DOS PATRIMÔNIOS CULTURAIS COMO RECURSO DE
MANUTENÇÃO DAS IDENTIDADES.

Cynthia Mirella Rabelo Barros de Lima*

Resumo: O trabalho a seguir é o início de um projeto de pesquisa que sugere uma reflexão a respeito
dos processos de construções identitárias e da utilização dos processos de patrimonialização como
recurso de afirmação e manutenção destas identidades, abordaremos, portanto, conceitos que
interligam e colaboram na produção destes sistemas, como o dever de memória, e os bens culturais
que permeiam o processo construtivo destas identidades e as relações pouco questionadas entre os
agentes que compõem este cenário.
Palavras-chave: Identidade, patrimônio, memória.

Abstract: This work is a research project that suggests a reflection about the processes of identity
constructions and the use of patrimonialization processes as a resource for affirmation and
maintenance of these identities. Therefore, the work will aproach concepts that interconnect and
collaborate in the production of these systems, as the duty of memory, the cultural goods that permeate
the constructive process of these identities as well as the little questioned relations among the
stakeholders that compose this scenario.
Key-words: Identity, patrimony, memory.

1037
Introdução
Quando as práticas, os valores e os costumes de determinado grupo de indivíduos
passam a ser reconhecidos pelo próprio grupo como um movimento relevante, é possível
que essa tomada de consciência gere nos indivíduos que protagonizam as vivências, a ideia de
uma identidade coletiva.
Ao terem consciência de sua condição os integrantes do grupo, induzidos pelo dever
de memória, certamente necessitaram de recursos que garantam a manutenção dessa
identidade cultural coletiva que surge. Este resumo é o início de um projeto de pesquisa que
sugere uma reflexão a respeito dos processos de construções identitárias e da utilização dos
processos de patrimonialização como recurso de afirmação e manutenção destas identidades,
abordaremos, portanto, conceitos que interligam e colaboram na produção
destes sistemas, como o dever de memória, e os bens culturais que permeiam o processo
construtivo destas identidades.
Tomando como referência os textos de teóricos como Michel Argier, Paulo
Peixoto, e Stuart Hal, que produziram estudos que nos fornecem estrutura para nortear
pesquisas no campo, contribuem nesta ocasião para uma reflexão crítica a respeito da criação
destas identidades na área da museologia que é um campo que lida de forma direta com
abordadas neste trabalho.

Identidades culturais coletivas


O conceito de identidade no campo dos bens culturais e museológicos está bastante
relacionado ao dever de memória e a preservação de práticas e costumes de grupos de
indivíduos que partilham de experiências comuns, a consciência desta condição, de que suas
histórias trazem consigo uma singularidade plena de valores necessários
de salvaguarda, e também a possibilidade de que os processos de patrimonialização possam
sugerir o surgimento de novas identidades coletivas são questões que pretendemos
compreender nesta pesquisa.

1038
Os processos que desencadeiam
nas construções de identidades coletivas, são moldados por valores e costumes de uma cultura
pré-existente e que geralmente são acrescentadas de velhos e novos esquemas dos grupos de
indivíduos que tomando consciência da relevância de sua cultura, passam a reclamar o
reconhecimento dessas identidades. Assim, as identidades coletivas surgem a partir da soma
dos costumes, hábitos, valores e experiências absorvidos como a realidade social
de grupos que compartilham dos mesmos sentimentos relacionados a sistemas específicos,
experimentados em um meio comum, onde se faz possível que um povo ou um grupo
possa ser considerado singular, e assim se diferenciar entre os outros.
As propostas museológicas e as políticas dos bens culturais sugerem a estes grupos a
necessidade da preservação de seus hábitos para evitar o desaparecimento de sua cultura,
assim, a construção e o fortalecimento de identidades coletivas se apoiando no dever de
memória, utilizam como estratégia para a resistência dessa cultura a identidade cultural
coletiva, que por sua vez se apoia nos processos da indústria de bens culturais
para garantir sua manutenção.
A respeito da concepção de identidades culturais coletivas, o texto
Distúrbios identitários em tempos de globalização, de Michel Agier nos ajuda
a compreender a dinâmica desse conceito e então ter condições de relacionar com os demais
conceitos elencados, o autor explica que toda identidade individual ou coletiva é
inacabada, instável e ao relacionar-se com outras identidades distintas modificam os
pertencimentos originais referentes a regiões e etnias, ocasionando a problemática
e a transformação da cultura ( Agier, 2001) Diante disso, reconhecemos rapidamente a
fragilidade das estruturas que alicerçam os processos de patrimonialização que se apoiam nas
performances identitárias.
Para pensarmos a problemática das relações Inter identitárias ou as possibilidades de
construção, entendendo neste caso o termo construção como edificação ou mesmo criação de
algo novo, algo que não existia anteriormente - ainda no texto de Agier temos o exemplo de
sua pesquisa relacionada à fundação do Grupo carnavalesco Ilê Aiyê da Bahia, onde podemos

1039
experimentar de fato um processo de construção identitária e as consequências que
movimentos como estes podem causar na cultura, seria talvez este tipo de problema e
transformação a qual Agier se referia, onde a cultura poderia ser acometida por danos
causados pelos processos de construção de identidades culturais coletivas.

Dever de memória
O modo de vida das sociedades contemporâneas motiva os indivíduos dos
grupos sociais a aderir a prática do registro de seus hábitos e vivências, sentimo-nos por
vezes, obrigados a manter vivas, memórias dos mais diversos aspectos da nossa existência,
essa prática sai do reduto pessoal e individual, se estende ao âmbito familiar e chega na
camada coletiva onde os grupos sociais "organizados", reivindicam seu direito a memória.
Quando chegam às camadas coletivas, os problemas que estas questões envolvem
podem ocasionar transformações importantes e graves em diversos âmbitos das relações
sociais. Importantes escolhas são feitas e como em todos os casos e por mais que seja real o
desejo de manter viva toda a memória que permeia nossa existência, sem nos darmos
conta, por diversas vezes estamos fazendo um importante exercício de curadoria, costurando
assim, a narrativa que contará a história de nossas vidas. Ao acolher equipamentos culturais
como objetos representantes de uma identidade ou cultura, os indivíduos devem estar atentos
se estes equipamentos realmente estão sendo utilizados a favor do grupo representado, e
lembrar que existem os casos em que o patrimônio cultural não estará a serviço das
identidades culturais. (PEIXOTO, 2004)

Processos de patrimonialização
Desde que o conceito da palavra patrimônio se expandiu deixando
de corresponder apenas a um conjunto de bens transmitidos de uma geração a outra, a
expressão passa a ter usos diversos e entre eles designa a noção de "patrimônio
cultural", este conceito permite que qualquer indivíduo que se reconhece pertencente a uma
cultura, se veja representado por determinados bens culturais. O que acontece é que nem

1040
todos os casos em que patrimônios são nomeados ou elegidos com bens culturais de
grupos específicos dentro de uma sociedade, nem todos os indivíduos pertencentes a um
mesmo núcleo cultural se sentirão representados ou nutrirão um sentimento de pertencimento
por esse bem, isso se deve ao fator da possibilidade de que um único indivíduo possua mais
de uma identidade. (HALL,2002)
Quando se trata, então, de relacionar os bens culturais aos processos que se dá durante
a construção das identidades culturais coletivas, esta é uma das problemáticas que traz
consigo a noção do patrimônio cultural. Outra situação de conflito é a forma de produção
destes patrimônios e das identidades, pois quando determinada prática, costume ou até mesmo
bem material é acrescentado de signos, valores e memórias, é possível que isto suscite em
grupos sociais a identificação este ou aquele bem fazendo com que estes grupos se apoiem em
torno do patrimônio, o reconhecendo como patrimônio cultural representante de suas culturas
e identidades coletivas, no entanto o percurso feito tanto pelas identidades coletivas
quanto pelos patrimônios culturais é uma via de mão dupla, pois na mesma medida em que o
patrimônio servirá aos integrantes dos grupos identitários como garantia de reconhecimento e
afirmação de suas identidades no meio social, por outro lado possa também as identidades ser
utilizadas como ferramentas a serviço do surgimento de novos bens culturais. A
terceira possibilidade é à proposta por Paulo Peixoto em seu texto A identidade como recurso
metonímico dos processos de patrimonialização, onde ele diz o seguinte:
"Patrimônio e identidade aparecem frequentemente como termos de uma mesma
equação. Um patrimônio faz prova da existência de uma determinada identidade. Uma
identidade insinua-se e justifica-se na medida em que se revela caucionada por um
patrimônio." (PEIXOTO,2004, p. 183)
A partir dessas considerações compreendemos que mesmo sendo estreita a relação
entre patrimônio e identidade, os processos de patrimonialização nem sempre irão assegurar
que a identidade será representada da forma esperada, tanto como as construções identitárias
algumas vezes também não darão conta de socorrer os patrimônios. Sabendo que o patrimônio
e a identidade apoiam-se um no outro para alcançar seus objetivos como objetos do campo

1041
dos bens culturais que são, observamos que nem todas as práticas que produzem identidades
são abraçadas pelos patrimônios, pois o mesmo geralmente pretende alcançar espaços
distantes dos alvos dos processos identitários.
Sendo assim, o trabalho sugere investigações empíricas sobre as relações entre os
patrimônios culturais e os grupos sociais que são representados por estes
equipamentos na cidade, para testar as referências teóricas utilizadas neste trabalho no campo
museológico da cidade do Recife.

Referências bibliográficas
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GLOBALIZAÇÃO. Mana [online]. 2001, vol.7, n.2, pp.7-33. ISSN 0104-9313.

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2002.

1042
COMUNICAR É PRESERVAR: ANALISANDO VIA WEB A MUSEALIZAÇÃO
DA COLEÇÃO PALEONTOLÓGICA DO MUSEU PARAENSE EMÍLIO
GOELDI.
Leonardo De Souza Silva*
Sue Anne Regina Ferreira Da Costa*
*Universidade Federal do Pará

Resumo: Compreender os museus para além do depósito de objetos é crucial para desenvolver o
potencial social e educativo da instituição. A sociedade carece e depende de informações para se
apropriar de forma comprometida do patrimônio que a rodeia. Em torno disso, analisamos o site do
Museu Paraense Emílio Goeldi em busca de informações sobre exposições realizadas pelo museu,
envolvendo os fósseis da Formação Pirabas, haja vista que trás consigo grandes pesquisas e
salvaguarda uma considerável coleção de fósseis do estado. No site não há conteúdos expositivos
sobre tal acervo, nos levando a questionar se há o processo de Musealização no museu, haja vista que
tal procedimento requer a propagação de informações sobre o que está sendo salvaguardado, pois
preservar não envolve apenas proteger fisicamente o objeto, mas produzir e expor conhecimento para
quem pode contribuir incisivamente para a continuidade desse bem: A sociedade. Conclui-se que não
há a disponibilidade de catálogos expositivos envolvendo um considerável patrimônio paleontológico
do estado, nos levando a refletir o papel do museu. Informar o corpo social pode gerar consciências,
inclusive desconstruindo o museu como um mero celeiro de itens desconhecidos.
Palavras-chave91: Patrimônio; Fósseis; Museu; Musealização; Comunicação.

Abstract: Understanding museums beyond the storage of objects is crucial to developing the social
and educational potential of the institution. Society lacks and relies on information to appropriately
compromise the heritage surrounding it. Around this, we analyze the site of the Museu Paraense
Emílio Goeldi in search of information about exhibitions carried out by the museum, involving the
fossils of the Pirabas Formation, since it brings with it great researches and safeguards a considerable
collection of fossils of the state. On the site there is no expository content about such collection,
leading us to question whether there is a process of Musealization in the museum, given that such
procedure requires the propagation of information about what is being safeguarded, since preserving
does not only involve physically protecting the object, but to produce and expose knowledge to those
who can contribute incisively to the continuity of this good: the Society. We conclude that there is no
availability of exhibition catalogs involving a considerable paleontological heritage of the state,
leading us to reflect on the role of the museum. Informing the social body can generate awareness,
including deconstructing the museum as a mere barn of unknown items.

Key-words: Heritage; Fossil, Museum, Musealization, Comunication.

1043
Introdução

Museus são espaços abertos, atualizáveis e sem fins lucrativos, caracterizados por
comportar testemunhos materiais ou imateriais, móveis ou imóveis, produzidos ou não pelo
homem, dentro de ações de musealização institucional, tática de salvaguarda, que se inicia na
obtenção de um objeto, e depois perpassa por processos de pesquisa, conservação,
documentação e comunicação, que unidas irão potencializar um conhecimento, assim como o
valor educativo e social do museu (CASTRO et al, 2011; ISZLAJI & MARANDINO, 2013;
PÁSSARO et al, 2014; SOUZA, 2009).

Em meio a esse contexto, no Brasil há vários e significativos tipos de museus, porém,


poucos se dedicam a salvaguardar e expor vestígios fósseis, apesar de existirem, de norte a
sul, diversos afloramentos de grande relevância social, científica e econômica que os
caracterizam como patrimônio (BENTO & RODRIGUES, 2010; MARANDINO, 2008;
PÁSSARO et al, 2014; PONCIANO et al, 2013; SHIBATA, 2014).

Uma dessas instituições é o Museu Paraense Emílio Goeldi, que fundado em 1866, e
vinculado ao Ministério de Ciência e Tecnologia (MCT), possui cerca de 4.000 vestígios
fósseis de invertebrados, vertebrados, plantas e microfósseis coletados desde 1896, sendo
aproximadamente 2.500 provenientes da Formação Pirabas, unidade geológica reconhecida
por pesquisadores como o melhor reservatório paleontológico do Cenozóico marinho
brasileiro (OLIVEIRA JUNIOR, 2014; PÁSSARO et al, 2014; SANJAD, 2007; TÁVORA et
al, 2007).

Essa coleção, em tese, colabora para o entendimento público das mudanças na


biodiversidade e ambiente terrestre ao longo de milhões ou até bilhões de anos, assim como,
na acessibilidade de um conteúdo único, proveniente de áreas distantes dos grandes centros ou
em afloramentos comprometidos ou já destruídos por empresas mineradoras que visam a
produção de carvão, petróleo e cimento (NASCIMENTO et al, 2008; PÁSSARO et al, 2014;
SILVA et al, 2015; SIMÕES et al, 2015). Fato que segundo Sanjad (2007), caracterizará a
instituição como um espaço promotor da ciência, onde há a possibilidade de realizar

1044
investigações, seja através do engajamento de seus pesquisadores, ou seu processo
comunicativo.

Contudo, para Beltrão (2013), a produção científica ainda não está inserida no
cotidiano de parte da sociedade, ou seja, não está sendo devidamente comunicada, uma vez
que depende da vontade e do interesse dos pesquisadores e meios midiáticos em repassá-la
como uma chave para uma melhor condição de bem-estar social.

É nesse sentido, e considerando que para Morais (2013), o Museu Paraense Emílio
Goeldi, entidade científica mais antiga da Amazônia, trás consigo o fim último de comunicar
o saber científico relacionado a seus acervos, sejam eles da área das ciências humanas ou das
ciências naturais, que é compreensível analisar se o museu tem usufruído de recursos digitais
como o próprio site, para disponibilizar conteúdos sobre seu acervo fossilífero, haja vista que
a internet, segundo Marin (2011), Martins (2016) e Anastacio (et al, 2011), é um meio
cotidiano barato, as vezes até gratuito, de amplo alcance e capacidade comunicacional, que
conecta até mesmo indivíduos geograficamente distantes, em prol de um fim comum, que no
caso desse artigo é o conhecimento.

Materiais e métodos

Com o intuito de apresentar o que o Museu Paraense Emílio Goeldi tem


disponibilizado sobre os fósseis da Formação Pirabas, principal unidade geológica do estado
do Pará, analisamos o site eletrônico da instituição, levando em consideração apenas
conteúdos documentais relacionados a exposições já realizadas e divulgadas pela instituição.

Resultados

Tendo em mente que por volta de 1970 a divulgação científica tem ampliado seu
potencial com a inclusão de novas tecnologias e meios de comunicação como a internet,
inclusive ganhando a aderência de meios acadêmicos como universidades, centros de pesquisa
e principalmente os museus que têm como fim último informar a sociedade, nossos dados

1045
foram adquiridos por meio do site eletrônico do Museu Paraense Emílio Goeldi, pois o
mesmo surge como meio de combate ao descaso e desconhecimento dado a determinados
temas científicos (CASSETTARI, 2011; CHELINI & LOPES, 2008). De sua página
eletrônica, analisamos a aba referente a exposições realizadas e informadas ao público a partir
de seus catálogos, uma vez que segundo Cavalcante (et al, 2012), as exposições são
indispensáveis para a comunicação de instituições museais.

A partir dessa análise virtual, tivemos como resultados apenas três (3) catálogos sobre
exposições, e nenhum abrangendo fósseis da Formação Pirabas (Tabela 1).
Catálogos expositivos encontrados Abrange os fósseis da Formação Pirabas

Sim Não

Exposição Visões – a Arte Rupestre de Monte Alegre x

Exposição Rebio Gurupi x

Exposição Parque Zoobotânico do Museu Goeldi: O primeiro x


do Brasil

TABELA 1: Catálogos expositivos disponíveis no site.

Nos catálogos encontrados, foram abordados temas como a arte rupestre do município
de Monte Alegre; a biodiversidade da reserva Gurupi, área de conservação da floresta
amazônica; e o histórico e revitalizações pelo qual passou o Parque Zoobotânico do Museu
Goeldi, dando razão a Castro (et al, 2015), que alerta para a precariedade da divulgação de
conteúdos relacionados as Geociências para um público que segundo Beltrão (2013), tem o
poder de se apoderar do conhecimento, para em seguida trabalhá-lo a seu favor, de maneira
comprometida, gerando então o que chamamos de cidadãos.

Nesse sentido, no que se refere ao acervo fossilífero, tendo em vista a ausência de


catálogos expositivos dessa coleção, podemos inclusive questionar se há o processo de
Musealização no Museu Paraense Emílio Goeldi, haja vista que, conforme Santos e Loureiro
(2012), tal procedimento requer a propagação de informações sobre o que está sendo

1046
salvaguardado, uma vez que preservar não envolve apenas reservar um espaço que proteja
fisicamente o objeto, mas sim, a produção e exposição de conteúdos para quem pode
contribuir incisivamente para a continuidade desse bem: A sociedade.

O próprio museu, com seu caráter institucional, conforme Cury (2005), a partir de seu
grupo profissional, torna-se um espaço de destaque quando formula e repassa um
conhecimento nele presente, capaz de criar uma aproximação e novas informações, ou seja,
novos olhares polissêmicos para o patrimônio (SANTOS & LOUREIRO, 2012).

A partir de agora, entendendo que o processo de musealização e o papel do museu não


estão sendo completamente cumpridos, pode-se propor que a instituição divulgue a sua
coleção fossilífera por meio de catálogos expositivos em seu site virtual, partindo do
pressuposto de que, conforme Souza (2009), a musealização somente ocorre de fato quando
há o contato entre museu, patrimônio e sociedade; e a internet, de acordo com Martins (2016),
colabora para essa junção através da praticidade, interatividade e reflexões que ela
proporciona ao público e aos museus.

Conclusão

Sendo assim, conclui-se que no site do Museu Paraense Emílio Goeldi não há a
disponibilidade de catálogos expositivos envolvendo um considerável patrimônio
paleontológico do estado, apesar da instituição possuir pesquisas pioneiras e uma considerável
coleção de fósseis provindos da Formação Pirabas, principal unidade geológica do Pará.

Essa ausência nos faz refletir sobre o papel do museu, sua seletividade de conteúdos
que devem ser ou não repassados, como a informação é trabalhada e os critérios para a
musealização do patrimônio. Salvaguardar envolve além da proteção física, mas o retorno
social do conhecimento, independente do meio em que se é disponibilizado, seja ele físico ou
virtual, informar o corpo social pode gerar consciências, inclusive desconstruindo o museu
como um mero celeiro de itens desconhecidos.

1047
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Geológicos e Paleobiológicos (SIGEP), 2007, v. II, P-

1050
Coleções e museus
universitários

1051
CRIAÇÃO E MANUTENÇÃO DO CENTRO DE MEMÓRIA DA FARMÁCIA DA
UFMG: UM TRABALHO INTERDISCIPLINAR E EM REDE

Lucinéia Maria Bicalho*


Gerson Antônio Pianetti*
*Faculdade de Farmácia/Universidade Federal de Minas Gerais/UFMG

Resumo: São apresentados os principais resultados de projeto de pesquisa interdisciplinar,


desenvolvido em ambiente de rede, que constituem as bases da experiência de criação e manutenção
do Centro de Memória da Farmácia da UFMG (CEMEFAR/UFMG). A instituição tem como objetivo
divulgar a história da Faculdade de Farmácia da UFMG, com foco na formação de pessoal, no
desenvolvimento de pesquisas e na prestação de serviços, bem como aspectos do desenvolvimento da
área como um todo, no Brasil. Para tanto, o CEMEFAR busca valorizar memórias; preservar o acervo
que mantém sob sua guarda (bibliográfico, documental e museológico); mostrar a participação do
profissional farmacêutico na promoção da saúde dos brasileiros e na constituição da sociedade em
geral; divulgar a história da Faculdade de Farmácia da UFMG. Desde a sua criação, em 2011, o
CEMEFAR busca se consolidar como uma referência interna e externa, fortalecendo identidades e o
sentimento de pertencimento da comunidade da Farmácia. Trata-se de uma instituição com fortes
características de um museu e, por se localizar no âmbito universitário, sofre influências deste meio
em sua forma de organização, desde sua constituição até seu funcionamento diário. Espera-se, com
este relato de experiência, contribuir para as discussões relativas ao patrimônio cultural universitário
brasileiro, bem como para fortalecer o debate em torno do antigo Fórum Permanente de Museus
Universitários e da importância desse tipo de associação que, em rede, promove a troca de
conhecimentos e iniciativas de preservação e divulgação deste campo do patrimônio cultural.

Palavras-chave: centro de memória; farmácia; universidade; museu; interdisciplinaridade.

1052
Abstract: The main results of an interdisciplinary research project, developed in a network
environment, are presented. They are on the basis of the creation and maintenance experience of the
Center of History of the Pharmacy of UFMG (CEMEFAR/UFMG). The purpose of the
institution is to publicize the history of the Faculty of Pharmacy of UFMG, focusing on teaching,
research development and service rendering, as well as on the development aspects of the area as a
whole in Brazil. To do so, CEMEFAR seeks to value memories; preserves the collection that it holds
(bibliographical, documentary and museological); shows the participation of the pharmaceutical
professional in promoting the health of Brazilians and in the constitution of society in general;
publishes the history of the Faculty of Pharmacy of UFMG. Since its creation in 2011, CEMEFAR
seeks to consolidate itself as an internal and external reference, strengthening identities and the sense
of belonging of the Pharmacy community. It is an institution with strong characteristics of a museum
and, because it is located in the university sphere, is influenced by this medium in its form of
organization, from its constitution to its daily functioning. It is hoped, with this experience report, to
contribute to the discussions regarding the Brazilian university cultural heritage, as well as to
strengthen the debate around the former Permanent Forum of University Museums and the importance
of this type of association that in network promotes the exchange of knowledge and initiatives for the
preservation and dissemination of this field of cultural heritage

Key-words: centre of history; pharmacy; university; museum; interdisciplinarity.

1053
Introdução

Apresenta-se a trajetória do Centro de Memória da Farmácia (CEMEFAR) da


Faculdade de Farmácia (FAFAR) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG),
inaugurado em 2011, por ocasião das comemorações do centenário da Faculdade. O
CEMEFAR/UFMG tem como objetivo divulgar a história da área na promoção da saúde e
também na construção da sociedade brasileira com ênfase no papel da FAFAR na formação
de profissionais, no desenvolvimento de pesquisas e na prestação de serviços. Ao lado da
história da Farmácia, o CEMEFAR busca fortalecer laços de identidade e de pertencimento da
comunidade interna à Faculdade, valorizando memórias e ressignificando a história. Como
resultado, tem se firmado como órgão responsável pela salvaguarda do patrimônio cultural da
instituição e como referência nas questões relativas a sua valorização e divulgação. Essas
atividades e seus resultados são relatados, a seguir, justificando a intenção de promover o
intercâmbio de experiências vividas no ambiente do Cemefar, instituição que caracteriza-se,
em grande medida, como um museu universitário pelo seu tipo de acervo e por seu
funcionamento. Espera-se, ao final, contribuir para as discussões em torno da revitalização do
antigo Fórum Permanente de Museus Universitários e seu fortalecimento como importante
espaço de discussão das questões relativas ao patrimônio cultural universitário no Brasil.
As experiências de salvaguarda, pesquisa e comunicação de acervos universitários
como o do CEMEFAR/UFMG são fortemente influenciadas pelo ambiente acadêmico onde
se desenvolvem, revelando por meio dessas experiências, aspectos da cultura organizacional e
de sua forma de lidar com o conhecimento, próprios do contexto de uma universidade, no
caso, pública e federal. De acordo com Ribeiro (2013), e com nossa própria experiência, é
possível afirmar que museus e espaços similares que se inserem no âmbito de instituições
universitárias trazem em si a preocupação com o ensino, a pesquisa e a extensão, fazendo
deste tripé a base de suas ações que são fortemente voltadas para a produção e divulgação do
conhecimento, independentemente do público para o qual são focalizadas suas ações. Um
pouco da história do Cemefar, acrescida de informações sobre as atividades que desenvolve
em rede com outros espaços semelhantes, ajudará a compreender como atua neste ambiente.

Da ideia à inauguração

1054
A ideia de se constituir uma coleção que pudesse ser exposta e, de alguma forma,
representar as atividades desenvolvidas pela Faculdade de Farmácia, principalmente na
formação profissional de farmacêuticos, foi fortalecida pela proximidade das comemorações
dos 100 anos de criação do Curso de Farmácia, iniciado em 1911. A Faculdade de
Odontologia e Farmácia, ao lado da Faculdade de Medicina, Faculdade de Engenharia e
Faculdade de Direito, compuseram, posteriormente, os quatro pilares sobre os quais se
constituiu a Universidade Federal de Minas Gerais, atual UFMG, em 1927.
A costumeira seleção de materiais, feita por ocasião de mudanças, foi a oportunidade
vista por profissionais professores e servidores técnico-administrativos de dar início a uma
coleção de objetos representativos da história centenária da instituição, quando a sede da
Faculdade, que funcionava na região central de Belo Horizonte, estava em vias de ser
transferida para o Campus da Pampulha, em 2004. Os objetos, documentos e livros salvos,
muitas vezes das lixeiras, começaram a compor este acervo que, em 2007, foi tratado e
inventariado por uma equipe do Departamento de História da Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas (FAFICH) da UFMG, coordenada pela Profa. Betânia Gonçalves
Figueiredo, que contou com alguns bolsistas de graduação para a tarefa. O Diretor da
Faculdade, à época, Prof. Gerson Antônio Pianetti e sua vice-diretora Professora Jane Maciel
Almeida Baptista, foram os grandes incentivadores da criação do Centro e os principais
coletores dos objetos e documentos raros ou antigos, que ajudariam a contar a história da
instituição por meio de uma exposição museológica, conforme imaginavam. O acervo acabou
sendo constituído com o recolhimento e também com doações feitas posteriormente,
principalmente pela comunidade da Faculdade. Esses objetos compõem, hoje, a exposição de
longa duração do CEMEFAR, inaugurado em 2011, como parte das comemorações do
Centenário da Faculdade.
Mas, o grande diferencial da história da criação do CEMEFAR foi a iniciativa de
submeter à CAPES um projeto de pós-doutorado, que contava com uma equipe
interdisciplinar reunindo pesquisadores da área da História e da Farmácia, que propunha
“Mais do que simplesmente narrar a história de uma instituição que completa seu jubileu, [...]
uma discussão, partindo do rico e singularmente abundante corpus documental que ela nos
oferece, sobre como se deram e o que representaram as transformações do conhecimento

1055
científico do curso de Farmácia da Universidade Federal de Minas Gerais”. Este projeto,
aprovado e implementado em 2012, propiciou ao Centro de Memória condições muito
favoráveis para que se desenvolvesse como uma instituição respaldada pelo conhecimento de
profissionais competentes e dedicados que acabaram por desenvolver também atividades de
extensão universitária e de administração do CEMEFAR/UFMG, até o ano de 2016, quando o
projeto foi concluído. Sólidas bases foram plantadas e o órgão tem seguido seu curso, em
ritmo próprio, fortemente influenciado pelas atividades de ensino, pesquisa e extensão
presentes no referido projeto, convencido de que tem um papel importante a cumprir.
Desde sua inauguração, a Faculdade de Farmácia tem apoiado as atividades do
CEMEFAR, que conta também com o apoio da Rede de Museus e Espaços de Ciências e
Cultura da UFMG, da qual é membro, e de outros órgãos da administração central da UFMG.
A Rede de Museus tem se mostrado um importante ambiente de trocas de experiências e
busca de solução de problemas mais ou menos comuns a todos os espaços.
O CEMEFAR, como outros centros de memória, possui uma estrutura híbrida que
permitiria classificá-lo como um museu, uma biblioteca ou um arquivo, entre outras
denominações, em função dos tipos de acervo que salvaguarda e comunica. O Centro tem
feito a comunicação de seus acervos de forma contínua, pela montagem de exposições
temporárias e de longa dura-ção, de postagens em mídias eletrônicas e de atualizações da
documentação de seu inventário, bem como por ações educativas voltadas a estudantes de
Ensino Médio e Fundamental.
Os relatos, a seguir, são referentes a essas experiências, bem-sucedidas ou fracassadas,
que têm conduzido o trabalho de equipe interdisciplinar, em busca dos objetivos da
instituição.

Pesquisa e gestão institucional


Conforme mencionado anteriormente, o projeto de desenvolvimento do CEMEFAR
teve início com projeto de pesquisa interdisciplinar em nível de pós-doutorado, aprovado pela
CAPES, que disponibilizou uma bolsa de pesquisa que foi ocupada inicialmente por uma
historiadora e, posteriormente, por uma cientista da informação. Como resultado da primeira
parte do projeto, que durou cerca de um ano, houve a realização de pesquisas que resultaram

1056
na publicação de um trabalho em evento e de um artigo em periódico da área da saúde1. Da
segunda fase, de 2013 a 2016, deu-se continuidade à pesquisa e o desenvolvimento de vários
sub-projetos de pesquisa e de extensão voltados, também, para a gestão do órgão. Para tanto,
desenvolveu-se trabalho intenso para aumento da equipe, especialmente de estagiários
bolsistas, que obteve êxito e permitiu a continuidade de projetos já iniciados e abertura de
novas investigações e ações extensionistas. Os resultados foram divulgados em diversos
trabalhos apresentados em congressos (cinco trabalhos completos e 14 resumos), na
reorganização da exposição permanente, na montagem de três exposições temporárias e em
três artigos científicos em fase de redação. A equipe do CEMEFAR passou a contar com mais
cinco bolsistas de pesquisa e extensão, totalizando em média seis bolsistas, das áreas de
Farmácia, Museologia, Biblioteconomia, História, preferencialmente, e outros de áreas
específicas de projetos, como um bolsista de Letras, que atuou em projeto ligado à literatura e
à poesia. Dessa forma, o CEMEFAR/UFMG afirma-se como um órgão que privilegia a
interdisciplinaridade e atua de segundo seus princípios para a geração de conhecimentos e
para a solução de problemas.
O papel desempenhado na formação de pessoal tem grande importância, sendo é um
desafio coletivo e colaborativo. Cada membro da equipe disponibiliza seu conhecimento e
empenho e cada um se responsabiliza pelo todo ao mesmo tempo em que desempenha as
atividades próprias da área de sua formação. Desta maneira, há um aprendizado constante por
meio da troca de conhecimentos específicos e também pelas demandas comuns a todos, como
as questões relativas à gestão pública universitária, âmbito de atuação do CEMEFAR. O
exercício de sistematização do conhecimento nas áreas específicas de cada pessoa da equipe é
exigido para registro de protocolos, na produção de textos para publicação na fanpage ou em
relatórios, eventos e periódicos. Os textos são compartilhados e a versão final é, portanto,
avaliada e aprovada por todos.
As maiores dificuldades, neste setor, podem ser reduzidas basicamente a três aspectos
principais: a grande rotatividade de pessoal, uma vez que todos são estagiários bolsistas de
graduação ou em desenvolvimento de atividades obrigatórias; a falta de recursos para as

1
REZENDE, Irene Nogueira de. Literatura, História e Farmácia: um diálogo possível. História, Ciência e
Saúde: Manguinhos, v.22, n.3, jul./set. 2015. p. 813-828.

1057
demandas e iniciativas do órgão e até para sua manutenção; o reduzido espaço físico
destinado ao Centro, pois se destina tanto à exposição de longa duração como também às
atividades administrativas. Tal fato acaba constrangendo a entrada de muitos visitantes e, por
outro lado, dificulta o trabalho administrativo ou de pesquisa que precisa ser desenvolvido.

Preservação
A preservação do acervo é a principal função do Centro de Memória. Grande parte de
seu acervo é da cultura material, principalmente de ciência e tecnologia. Objetos que foram
utilizados na pesquisa e no ensino da Farmácia compõem a maior parte da exposição de longa
duração, sendo também, por isso, a sua parte de mais visível.
O inventário da exposição permanente está completo, com as fichas de inventário
preenchidas com informações e fotografias do acervo. A catalogação do acervo em reserva
técnica está sendo revisado e seu inventário já se encontra em andamento. Essas atividades
são registradas na forma de protocolos, considerando-se a grande rotatividade da equipe,
composta em sua totalidade por estagiários, a fim de preservar e facilitar a recuperação do
conhecimento produzido nas discussões, na apresentação das soluções para as dificuldades
encontradas, ou até mesmo, para amenizar o treinamento de novos membros da equipe.
O local onde se encontra a exposição de longa duração recebe grande quantidade de
poeira devido a sua localização, exigindo a limpeza constante das prateleiras e dos objetos. O
espaço utilizado como Reserva Técnica não apresenta condições adequadas para o manuseio e
acondicionamento dos objetos, sendo, ainda, insalubre devido à falta de iluminação artificial e
ao espaço muito reduzido. Um novo espaço para a reserva técnica já foi disponibilizado pela
Direção da Faculdade, devendo representar um grande avanço no tratamento do acervo.
Para as ações de conservação preventiva e recuperação do acervo bibliográfico o
Cemefar tem contado com a colaboração de profissionais da Biblioteca da Faculdade, bem
como da equipe do setor de Obras Raras da Biblioteca Universitária, que tem sido de grande
valia.
O acervo de documentos históricos encontra-se em boas condições de conservação por
ter passado por um projeto arquivístico, há cerca de 10 anos, que identificou e acondicionou

1058
adequadamente documentos e imagens adequadamente. O local ainda não é climatizado, mas
mesmo assim, não traz grandes riscos aos documentos.

Atividades de divulgação
Como forma de difundir a história da Faculdade, envolvendo a formação que oferece
em vários níveis, a pesquisa que desenvolve, as ações extensionistas e a participação de seus
membros em instâncias político-administrativas na Universidade e fora dela, o Cemefar atua
em várias frentes. As exposições têm sido muito utilizadas.
A primeira e mais importante – a exposição de longa duração de ciência e tecnologia –
foi montada em espaço desenhado para tal fim, estando próxima à entrada principal do prédio
da Faculdade e ao lado da entrada da Biblioteca, lugares de fluxo de pessoas da comunidade.
Esta configuração espacial tem confirmado o local como um lugar de encontro com o público.
Estão expostos, principalmente, objetos utilizados nas pesquisas e em aulas práticas do Curso
de Farmácia da UFMG. Por meio deste acervo, busca-se contar a história do desenvolvimento
da área e da participação da FAFAR nesse processo. O visitante reconhece suas histórias
pessoais em vários dos objetos expostos, e a comunidade da Farmácia mostra-se interessada
na sua manutenção e melhoria, o que pode ser observado pelo número de doações recebidas.
Foram montadas três exposições temporárias: em 2013, 2015 e 2016, reafirmando o
papel da exposição como principal meio de comunicação do museu com seu público e
corroborando os estudos que mostram a exposição também como um “espaço de construção
de valores” (CURY, 2005, p. 42). A primeira exposição de curta duração realizada teve como
título e tema “A essência da história da Farmácia” e como objetivo principal promover a
aproximação da comunidade da Faculdade de Farmácia com sua história, bem como o
reconhecimento do Centro de Memória, recém-inaugurado, como responsável pela sua
salvaguarda e divulgação. Desejava-se, como desdobramento, que o local fosse reconhecido
como apropriado à realização de ações destinadas ao aprimoramento e ao registro dessa
história e como um lugar de convivência da comunidade da FAFAR. Para tanto, a exposição
apresentou a história da Faculdade com imagens selecionadas em acervo de mais de 3.000
fotografias, divididas em cinco conjuntos temáticos: moradias, ou sedes que abrigaram a
Faculdade (26 imagens), eventos socioinstitucionais (60 imagens), formação acadêmico-

1059
profissional (73 imagens); memória pelos objetos (22 imagens) e memória pelos livros (19
imagens), utilizados para contar a história da instituição e da formação acadêmico-científica
oferecida por ela (BICALHO; PIANETTI; FIGUEIREDO, 2014). A partir desse momento, o
CEMEFAR passou a fazer parte, efetivamente, da história da instituição que representa e que
o mantém.
A segunda exposição, inaugurada em 2015, teve como tema o um dos mais famosos
farmacêuticos formados na UFMG: Carlos Drummond de Andrade, sob o título “Drummond,
alquimia poética” (Figura 1), e teve como objetivo mostrar a fase do poeta, antes de tornar-se
o Drummond conhecido mundialmente. A exposição mostrou imagens inéditas e,
principalmente, documentos inéditos produzidos por Drummond ao longo de sua vida
acadêmica, além de produções artísticas e cartas que mostram de que maneira o curso de
Farmácia fez parte de sua vida pessoal e de escritor. Esta exposição teve grande repercussão,
em nível local e nacional, tendo exigido extensa pesquisa e negociações políticas para sua
realização. Como resultado, acabou tornando o Centro de Memória da Farmácia conhecido,
seja pelo número de visitantes que atraiu, seja pela divulgação jornais, internet e em rádios
que atuam em nível regional e também em nível nacional. Um dos pontos importantes da
exposição foi a solenidade de sua abertura, da qual participou o Prof. Dr. Sérgio Alcides do
Amaral, proferindo palestra, e a Sra. Georgeta Amorim, viúva do amigo e colega de turma de
Drummond Antonio Martins Amorim, que cedeu fotografias, imagens e histórias inéditas
envolvendo o poeta, durante o evento.
Atendendo a demanda do público que não pode comparecer, a exposição teve uma
nova montagem, realizada em formato reduzido, com o título “Drummond: o poeta
farmacêutico”, em 2016, que apresentou principalmente a documentação do aluno, composta
de provas, requerimentos de matrícula e atestados pessoais para matrícula inicial no curso,
além de fotografias e cartas do poeta ao citado colega de turma.
Para exposição do acervo bibliográfico, criou-se, em espaço cedido pela Biblioteca da
FAFAR, em seu interior, que foi denominado “Biblioteca da Memória” e em cujas prateleiras
estão disponíveis, para consulta local, a parte do acervo que já tratado e catalogado.
As formas de comunicação com o público têm sido incentivadas e reforçadas pelo uso
da internet, com a criação de site para o CEMEFAR/UFMG, abrigado no portal eletrônico da

1060
FAFAR, e pela criação de fanpage no Facebook, onde são publicadas postagens periódicas
relacionadas à história e à memória da Faculdade e da área da Farmácia, bem como notícias
sobre o Cemefar, de interesse do público em geral.

Figura 1: Painel da exposição “Drummond, alquimia poética”, realizada no Cemefar/UFMG (2015)

Ações educativas
Como parte das atividades voltadas ao público oriundo do Ensino Fundamental e
Médio, o CEMEFAR organizou roteiro de visitas de grupos de estudantes, em parceria com
outros três espaços da Rede de Museus e Espaços de Ciência e Cultura da UFMG, que
coordenou projeto2. Durante as visitas ao CEMEFAR, apresenta-se a história e as atividades
da Faculdade, iniciando-se por vídeo institucional de curta duração (cerca de três minutos),
uma atividade lúdica sob forma de um jogo de tabuleiro, seguidos de exploração do acervo da
exposição de longa duração. Em todas as atividades são explorados temas relacionados à
história da Farmácia e da FAFAR/UFMG, tais como: disciplinas que compõem o curso;
2
Projeto aprovado pelo conselho nacional de desenvolvimento científico e tecnológico/cnpq, sob o título
“Aprimoramento do circuito de divulgação científica da rede de museus e espaços de ciência e cultura da
universidade federal de minas gerais: despertando vocações e incentivando a formação de jovens estudantes”.

1061
possibilidades de atuação do farmacêutico, história e curiosidades relacionadas à área,
farmacêuticos que ficaram famosos, etc. em uma linguagem lúdica e atraente. Os visitantes
participam, ainda, de atividade em que recebem informações sobre fitoterapia e um brinde
composto de um envelope transparente contendo sementes para plantar uma flor utilizada na
produção de medicamento (FIGURA 2), com a ilustração de sua apresentação na natureza e
informações sobre sua composição química, a fim de promover uma contiguidade com os
locais de origens dos visitantes.

Figura 2: Brinde para visitantes – Calêndula – CEMEFAR/UFMG

A Rede de apoio
Não é possível descrever o trabalho desenvolvido no Cemefar/UFMG sem
mencionar a importância de que o órgão pertença à Rede de Museus e Espaços de Ciência e
Cultura (RMECC) da UFMG, desde sua criação. As trocas promovidas entre os membros são
muito importantes, como o é também o papel da Rede como catalisadora das demandas e
proponente de soluções institucionais envolvendo todos os espaços. Essa associação tem sido
fundamental para a sustentação do projeto político e para a continuidade das atividades de
cada espaço. A Rede de Museus da UFMG tem sido, ainda, porta-voz dos espaços junto à
administração central, buscando novas possibilidades para realização de atividades dos e nos
espaços. A abertura de edital de bolsa de iniciação científica específico para os espaços
membros da Rede de Museus, é um exemplo, permitindo o desenvolvimento de projetos de
pesquisa em nível de graduação que muito contribuem renovar e impor novas dinâmicas de
atuação dos espaços. Outra iniciativa que deverá solucionar um problema comum a todos os

1062
espaços da Rede é a documentação dos acervos em sistema eletrônico de documentação
museológica, a um custo possível, que possibilitará melhores condições de exploração dos
acervos para usos diversos.

Considerações finais
Os êxitos e as dificuldades são muitos e, em nossa avaliação, não muito diferentes da
maioria dos espaços que lidam com patrimônio cultural de diversos tipos. O Centro de
Memória da Farmácia, repetimos, não possui nenhum funcionário próprio, e nessas condições,
é mantida a visitação diária, de 8h às 12h e de 14h às 17h, o que não se verifica em muitos
espaços do país, e que é motivo de muita satisfação. Sua infraestrutura é sustentada pela
Faculdade de Farmácia. Os estagiários e bolsistas são mantidos pela UFMG por meio da
Fundação Universitária Mendes Pimentel-FUMP, da Pró-Reitoria de Pesquisa e da Pró-
Reitoria de Extensão, além de outra bolsa de estágio que tem sido patrocinada pelo Conselho
Regional de Farmácia. As atividades rotineiras e extraordinárias são sustentadas pela
Administração Central da Universidade, com aproximadamente 10 mil reais por ano, através
da Pró-Reitoria de Extensão, via projeto de extensão coordenado pela Rede de Museus.
Acreditamos que a organização em Rede, a exemplo do que ocorre na UFMG,
fortalece os espaços individualmente e abrem perspectivas que seriam impensáveis para
espaços pequenos como é o caso do CEMEFAR/UFMG. Além disso, reafirmamos nossa
convicção de que esses espaços devem priorizar a realização de trabalho interdisciplinar para
que obtenham êxito, com a participação de profissionais com formações de áreas distintas, em
que deve ser considerada a demanda por conhecimentos tecnológicos. Igualmente importante
a aliança entre teoria e prática museológica para enriquecimento mútuo da área e das
instituições.
O trabalho é diário, contínuo e em grupo, considerando-se sempre que o
museu/centro de memória é um sistema aberto que, como tal, influencia e é influenciado pelo
ambiente à sua volta, funcionando de acordo com a complexidade própria desse tipo de
organização. Esperamos que as ações que estão sendo empreendidas visando ao
fortalecimento dos museus universitários, nos moldes do que foi o Fórum Permanente de
Museus Universitários, seja, um sinal de que “novos apaixonados começam a se contagiar e

1063
os resultados prometem”, como expressou sua fundadora por ocasião de sua criação
(RIBEIRO, 2015, p. 98).

Referências
BICALHO, Lucineia Maria; PIANETTI, Gerson Antônio; FIGUEIREDO, Betânia
Gonçalves. Resgatando a memória pela imagem fotográfica. In: XV Encontro Nacional de
Pesquisa em Ciência da Informação – ENANCIB, 2014, Belo Horizonte, MG. Anais..., Belo
Horizonte, MG: UFMG, 2014. p.5179-5185. Disponível em:
<http://enancib2014.eci.ufmg.br/documentos/anais/anais-gt10>. Acesso em: 13 jun. 2016.

CURY, Marília Xavier. Exposição: concepção, montagem e avaliação. São Paulo:


Annablume, 2005.

RIBEIRO, Maria das Graças. Patrimônio biológico universitário – Relação ensino, pesquisa,
extensão e museus universitários. In: NASCIMENTO, Adalson; MORENO, Andrea (Orgs.).
Universidade, memória e patrimônio. Belo Horizonte: Mazza Edições. 2015. 152p. (Coleção
Pensar a Educação Pensar o Brasil).

1064
CULTURA MATERIAL, MUSEUS E SOCIEDADE: PASSADO E PRESENTE NA
COLEÇÃO DE ARQUEOLOGIA URBANA DO MUSEU DA UFPA EM BELÉM-
PA

Luciana Cristina de Oliveira Azulai*


*Universidade Federal do Pará- UFPA

Resumo: o presente artigo pretende abordar alguns pontos a respeito da cultura material,
correspondendo à relação entre objetos e sociedade, assim como sobre coleções e museus visando sua
relevância social. O foco principal é o estudo que tem sido desenvolvido sobre o Museu da
Universidade Federal do Pará- MUFPA e uma coleção de arqueologia urbana que se encontra sobre a
guarda desta instituição. Deste modo, o trabalho busca trazer contribuições acerca da importância do
tema dos museus universitários e suas coleções.

Palavras-chave: Cultura material; Museu da UFPA; Coleção; Arqueologia.

Abstract: the present paper intends to address some points regarding material culture, corresponding
to the relation between objects and society, as well as about collections and museums and aiming at
their social relevance. The main focus is the study that has been developed on the Federal University
of Pará Museum - MUFPA and a collection of urban archeology that is on the guard of this institution.
That way, the work seeks to bring contributions about the importance of the theme of university
museums and their collections.

Key-words: Material culture; UFPA Museum; Collection; Archeology.

1065
Introdução

Podemos começar este trabalho fazendo a seguinte pergunta: o que são os objetos
materiais em nossas vidas? Talvez o significado deles para nós esteja muito além do seu
sentido concreto, mas de certa forma, eles nos remetem as nossas memórias e lembranças de
momentos que vivemos no passado. Estes objetos podem constituir os segmentos mais
profundos de nossas memórias, desde os acontecimentos mais felizes a aqueles, que por
vezes, queremos esquecer. Uma peça de roupa, uma fotografia de família, um par de sapatos,
uma carta ou até velhos chinelos podem ser objetos significativos para nós, pois atribuímos a
eles algum valor, seja material, funcional, monetário ou mesmo um valor agregado aos
sentimentos, emoções, lugares e coisas que nos fazem lembrar pessoas amadas.

Esses objetos são materiais, físicos e efêmeros como nós. A memória é o que resta
quando a materialidade deixa de existir. Não existe máquina do tempo, porém é possível
“viajar” para o passado através desses objetos que nos tocam pela afetividade e ao mesmo
tempo nos formam no presente enquanto seres sociais. Diante disso, chama-se a atenção para
a importância da cultura material na vida das sociedades, assim como para a constituição das
coleções e do papel social dos museus.

Este trabalho é uma parte do desenvolvimento de pesquisa do mestrado no Programa


de pós-graduação em Antropologia- PPGA/UFPA oriundo do projeto intitulado “Arqueologia
Urbana: uma relação do passado com o presente no acervo arqueológico do Museu da
UFPA”. O estudo tem se concentrado no espaço do Museu da Universidade Federal do Pará-
MUFPA e a coleção arqueológica que está sob a guarda desta instituição. O objetivo deste
artigo é apresentar alguns aspectos da referida pesquisa até o presente momento do trabalho
dissertativo, focando primeiramente em abordagens a respeito da cultura material, objetos e
sociedade, bem como sobre coleções e museus universitários.

1066
Cultura material: os objetos materiais e as pessoas

Falar no tema da cultura material é extenso e complexo, considerando a diversidade


que seus estudos abrangem em diferentes instâncias. No entanto, nas definições mais
genéricas que existem, a cultura material é tudo aquilo que é formado pela materialidade, isto
é, composta de objetos e coisas materiais presentes no mundo. A expressão cultura material
refere-se a todo segmento do universo físico socialmente apropriado (MENESES, 1998).
Porém, não estamos aqui pretendendo tratar de definições prontas e nem gerais da cultura
material, e sim quais relações seus estudos podem fazer refletir, como o caso da relação dos
objetos materiais e as pessoas.

Um vasto conjunto de objetos materiais como casas, mobílias, roupas, ornamentos


corporais, joias, armas, instrumentos de trabalho, diversas espécies de alimentos e bebidas,
meios de transporte e de comunicação, objetos sagrados, imagens de divindades, objetos
cerimoniais, objetos de arte, monumentos, toda uma gama circulam significativamente em
nossa vida social através das categorias culturais ou de sistemas classificatórios nos quais
estamos inseridos, separando, dividindo e hierarquizando (GONÇALVES, 2007).

Os objetos materiais, de certo modo, constituem nossa subjetividade individual e


coletiva, segundo o antropólogo Roy Wagner:

Existe uma moralidade das “coisas”, dos objetos em seus significados e usos
convencionais. Mesmo ferramentas não são tanto instrumentos utilitários
“funcionais” quanto uma espécie de propriedade humana ou cultural comum,
relíquias que constrangem seus usuários ao aprenderem a usá-los. Podemos
mesmo sugerir [...] que esses instrumentos “usam” os seres humanos, que
brinquedos “brincam” com as crianças, e que armas nos estimulam à luta.
[...] Assim, em nossa vida com esses brinquedos, ferramentas, instrumentos
e relíquias, desejando-os, colecionando-os, nós introduzimos em nossas
personalidades todo o conjunto de valores, atitudes e sentimentos – na
verdade a criatividade – daqueles que os inventaram, os usaram, os
conhecem e os desejam e os deram a nós. Ao aprendermos a usar esses
instrumentos nós estamos secretamente aprendendo a nos usar; enquanto
controles, esses instrumentos mediam essa relação, eles objetificam nossas
habilidades (WAGNER, 1981, p.76-77, apud GONÇALVES, 2007, p.26-
27).

1067
A citação acima aponta para a função simbólica dos objetos materiais no que diz
respeito aos processos da vida individual e coletiva dos seres humanos. Segundo José
Reginaldo Santos Gonçalves (2007) a ideia é que sem os objetos não existiríamos, pelo menos
enquanto pessoas socialmente constituídas, além disso, os objetos materiais sejam
considerados nos diferentes contextos sociais, simbólicos e rituais da vida cotidiana de
qualquer sociedade, sejam eles retirados de tal circulação cotidiana e deslocados para os
âmbitos institucionais, como os museus, integrando-os em suas coleções. O interessante é
notar que os objetos não apenas dizem respeito às funções identitárias, revelando de forma
simbólica nossas identidades individuais e sociais, mas também organizando na medida em
que os objetos são “categorias materializadas”, a percepção que temos de nós mesmos
individual e coletivamente.

Repensando a própria noção de objetos no mundo contemporâneo e suas relações com


as sociedades, existem diversos pesquisadores que tem trilhado neste caminho, pensando a
cultura material de diferentes formas em seus trabalhos. Podemos citar o antropólogo e
arqueólogo inglês Daniel Miller (2005), o qual afirma que “as coisas” fazem as pessoas e as
coisas também tem uma vida social. Miller faz uma abordagem interessante no que diz
respeito aos estudos de cultura material, ou melhor, dizendo sobre “a teoria das coisas”,
através de uma perspectiva sobre a “agência” das coisas que se refere aos efeitos dos objetos
sobre as pessoas, e a ideia da “humildade das coisas” que não são percebidas por nós, na
verdade são invisibilizadas, mas detentoras de uma força que age sobre nós o tempo todo.

A partir de um trabalho3 baseado em etnografias e através de um olhar antropológico,


Miller mostra uma série de exemplos de diferentes lugares e Culturas distintas sobre essa
teoria, passando por temáticas como a indumentária, no qual afirma que “as roupas não são
superficiais, elas são o que faz de nós o que pensamos ser” (2005, p.22). Miller traz outros
exemplos como a questão das casas que enquanto moradias são dotadas de poder, pois as
casas tem uma potência muito forte na medida em que evocam memórias, desejos e sonhos
nas pessoas, nas palavras de Miller, as casas são o “elefante dos trecos, imensas bestas
pesadas, excessivamente difíceis de controlar” (2005, p. 121). O autor também mostra
3
MILLER, D. Trecos, troços e coisas: estudos antropológicos sobre a Cultura Material. Rio de
Janeiro: Zahar, 2005.

1068
questões de vida ou morte, abordando como as coisas estão intimamente relacionadas com o
nascimento e a morte e os efeitos que causam nas pessoas. Em todo o seu trabalho Miller nos
deixa a mensagem que as coisas têm “um mana” e são cheias de subjetividades que nos
tocam de diferentes formas.

É válido ressaltar que o potencial das abordagens teóricas da materialidade e dos


“trecos” não se esgota em uma mesma linha de pensamento, pois há outros pensamentos
acerca da cultura material, nos quais estes se diferenciam um pouco de Daniel Miller. Sobre
isto, o próprio Miller pontua trabalhos como o de Bruno Latour que acredita em uma teoria
dialética suscitada apenas na oposição entre sujeitos e objetos, e Alfred Gell que assim como
Latour, buscou uma forma de transcender a oposição entre coisas e pessoas dizendo que os
objetos tem “agência”, embora a utilize para abordar a arte. Há outros que exercem
influências nas várias versões da fenomenologia da cultura material, como por exemplo, os
antropólogos Tim Ingold e Christopher Tilley, que propiciam outras formas mais amplas de ir
além do dualismo natural entre pessoas e coisas, direcionando os olhares para substâncias
como pedra, madeira e outros elementos “naturais” ao invés de pensar somente nos objetos
como artefatos ou coisas. Mas apesar das diferenças todas as abordagens têm em comum a
vontade de dar mais atenção e respeito à materialidade e a cultura material (MILLER, 2005).

No entanto, é necessário dizer que as sociedades ocidentais em especial, têm uma


visão delimitada sobre os objetos, acreditando que há uma separação entre o mundo das
pessoas e o mundo dos objetos, onde os últimos apesar de “servirem” aos primeiros não se
misturam e nem podem ser comparados, são vistos como inferiores. Por outro lado, nessa
hierarquia entre pessoas, objetos e coisas, há um forte vínculo que por vezes não é percebido.
Sobre isto Igor Kopytoff (2008) argumenta que a predisposição do mundo ocidental em
separar conceitualmente as pessoas das coisas, advém da maneira de ver as pessoas como
territórios naturais da individuação (ou singularização) e as coisas como territórios naturais da
mercantilização, referindo-se a questão de que as pessoas não são vendidas e nem compradas,
pois não são objetos ou coisas e somente objetos podem ser comercializados. Porém, como
Kopytoff destaca a própria prática da escravidão desmitifica essa ideia de separação, no
momento em que pessoas passaram a ser trocadas e comercializadas como mercadorias,
transformando-se em objetos de fato.

1069
Diferentemente da visão ocidental, podemos dizer que há sociedades como as
indígenas amazônicas, por exemplo, que possuem um olhar mais aberto sobre a materialidade
dos objetos ao agrupá-los do lado da produção cultural, presente nas ontologias e em suas
visões de mundo, nas quais os objetos são considerados como subjetividades que possuem
uma vida social, e que as esferas dentro das relações humanas podem incluir as plantas, os
animais e também os seres espirituais, convivendo e em constante interação uns com os outros
(SANTOS-GRANERO, 2012).

Trazendo um exemplo sobre objetos e a relação com as pessoas, podemos citar o


trabalho4 de Peter Stalybrass (2008) sobre “a vida social das coisas: roupas, memória, dor”,
que nos mostra de uma forma comovente e profunda como as roupas nos constroem,
baseando-se na própria história e em vários exemplos que mostra ao longo de seu texto.
Stalybrass afirma que a roupa é um tipo de memória, e quando a pessoa está ausente ou
morre, a roupa absorve sua presença ausente, é o que acontece com o próprio autor com a
jaqueta que “herdou” depois da morte de seu amigo Alon White. Dessa forma, conforme
Stalybrass dos objetos que mais evocam os sentimentos de lembrança e também de dor e
solidão, as roupas são um dos mais profundos, pois a roupa é o que veste, molda, forma,
constitui uma pessoa, deixando marcas, traços, e o cheiro daquela pessoa que a vestia. Por
isso roupas não são apenas roupas, elas “têm uma vida própria: elas são presenças materiais e,
ao mesmo tempo, servem de código para outras presenças materiais e imateriais”
(STALYBRASS, 2008, p.29-30).

Outro exemplo interessante é o trabalho de Lúcia Van Velthem5 (2007), no qual a


autora foca em aspectos da estreita relação das pessoas de comunidades rurais com a
constituição e percepção dos objetos da casa de farinha no estado do Acre. A autora irá
mostrar que os objetos constituem famílias, relações entre si e com os seus donos, nas quais
trabalham juntos no processamento de mandioca no espaço da casa de farinha. Estes objetos

4
Capítulo I do livro “O Casaco de Marx; roupas, memória e dor” de Peter Stalybrass (versão traduzida e
publicada, 2008).
5
VAN VELTHEM, L. H. Farinha, casas de farinha e objetos familiares em Cruzeiro do Sul (Acre).
Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 50 (2), p.605-631, 2007.

1070
são mais do que utilitários, pois são humanizados na medida em que recebem nomes, são
classificados, possuem laços de parentesco, possuem distinções de gênero e são
hierarquizados. Para Van Velthem tanto os objetos quanto a própria casa de farinha
constituem um conjunto “dotado de valores que ultrapassam os valores de uso” (2007, p.607),
fazendo parte da vida cotidiana das pessoas estabelecendo um vínculo social com as mesmas,
além de exercerem o domínio dos procedimentos que transformam a mandioca em farinha, e
sem a agência deles nada seria feito.

Diante do que foi mencionado até aqui, a grande questão a ser chamada a atenção é
que os objetos, as coisas enquanto fenômenos que vão além do sentido material estão sempre
nos construindo, vão moldando e interagindo com as pessoas em tempos e espaços distintos,
isto é, acompanham o processo de vida coletiva dos seres humanos. Como discorre Miller:

[...] coisas, veja bem, não coisas individuais, mas todo o sistema de coisas,
com sua ordem interna, fazem de nós as pessoas que somos. Elas são
exemplares em sua humildade, sem nunca chamar atenção para o quanto
devemos a elas. Apenas seguem adiante em sua empreitada. Porém, a lição
da cultura material é que, quanto mais deixamos de notá-la, mais poderosa e
determinante ela se mostra. Isso propicia uma teoria da cultura material que
dá aos trecos muito mais significado do que se podia esperar. Acima de tudo,
a cultura vem dos trecos (MILLER, 2005, p.83).

Assim, se a cultura vem dos “trecos”, a importância dos objetos na vida das pessoas
gira entorno dessa invisibilidade das coisas que as constroem, mas que encontram-se no
cenário que constitui a vida humana. A partir disso, podemos pensar nos objetos do passado,
os objetos arqueológicos, por exemplo, artefatos estes que contam e remontam memórias,
marcam fatos e acontecimentos, bem como são registros das próprias pessoas a quem
pertenceram. Sobre isto, iremos focar a seguir nas coleções arqueológicas e sua relevância em
instituições como os museus.

Coleções arqueológicas e Museus


Os museus como espaço que abrigam e exibem as coleções de diversas categorias e
classificações, embora de início ainda não possuíssem um objetivo estritamente científico e

1071
educacional, enquanto instituições culturais têm acompanhado os últimos séculos de história
da civilização ocidental, sendo encarregado de funções e significados diversos ao longo desse
tempo e em diferentes contextos socioculturais. Essa instituição tem traduzido ou
representado uma diversidade de concepções que abrangem a ordem presente no mundo
ocidental, no qual tem ocorrido desde os “gabinetes de curiosidades” às coleções privadas da
burguesia Renascentista, passando pelos “museus de história natural” e pelos “museus
nacionais” do século XIX e início do século XX, até os museus do final do século XX e início
do século XXI (GONÇALVES, 2007; JULIÃO, 2006; SCHWARCZ, 1993).

No Brasil, os primeiros museus6 criados a partir do século XIX, entraram no século


XX “com coleções arqueológicas provenientes de coletas assistemáticas, como locais de
ensino e produção científica, como depósitos de objetos ordenados, atuando por meio de uma
perspectiva enciclopédica, evolucionista e classificatória” (BRUNO, 2005, p.243). Destaca-se
que as coleções arqueológicas no país passaram por longos confrontos desde a
institucionalização da Arqueologia dentro dos museus e centros de pesquisa científica no final
do século XIX, no qual traduzem várias formas de identificação e ao mesmo tempo de
rejeição das raízes indígenas por parte da sociedade nacional que nem sempre reconhece um
passado pré-histórico ou pré-colonial (BARRETO, 2000).

Uma gama de objetos materiais tem sido deslocada ao longo de sua existência para os
espaços de coleções privadas ou públicas e para os museus, constituindo uma diversidade de
coleções. No que tange as coleções arqueológicas, os objetos provindos de diferentes épocas e
sociedades, pressupõem de forma evidente a sua circulação anterior e posterior em outras
esferas, ou seja, “antes de chegarem à condição de objetos de coleção ou de objetos de museu,
foram objetos de uso cotidiano, foram mercadorias, dádivas ou objetos sagrados”
(GONÇALVES, 2007, p.24). Pois, na realidade conforme sugere Kopytoff (2008), cada
objeto material possui uma “biografia” assim como as pessoas, seja ela cultural, social ou
econômica. Podemos entender então, que:

6
Em especial os etnográficos como o Museu Nacional ou Museu Real (1808), o Museu Paraense Emílio Goeldi
(1866), o Museu Paranaense (1876), e o Museu Paulista (1894) estiveram vinculados aos parâmetros biológicos
de investigação e aos modelos evolucionistas de análise, desempenharam nessa época um papel de hierarquia e
inferioridades das raças. Nas coleções arqueológicas e etnográficas, os objetos coletados eram vistos como
mostras exóticas das sociedades das quais estes pertenciam (SCHWARCZ, 1993).

1072
Esse processo de deslocamento dos objetos materiais do cotidiano para o
espaço de museus e patrimônios pressupõe uma categoria fundamental: o
colecionamento. Na verdade, toda e qualquer coletividade humana dedica-se
a alguma atividade de colecionamento, embora nem todas o façam com os
mesmos propósitos e segundo os mesmos valores presentes nas modernas
sociedades ocidentais. Quem coleciona o quê, onde, segundo quais valores e
com quais objetivos? Basicamente, toda e qualquer “coleção” pressupõe
situações sociais, relações sociais de produção, circulação e consumo de
objetos, assim como diversos sistemas de ideias e valores e sistemas de
classificação que as norteiam [...] (GONÇALVES, 2007, p.24).

Dessa forma, pensar que cada objeto possui uma trajetória, uma vida social antes de
chegar às coleções de museus, sendo estes reclassificados e resignificados, inclui pensar
também os objetos arqueológicos, enquanto vestígios que foram deixados para trás pelas
sociedades passadas, no qual marcam suas histórias e seus traços constituidores. Pois, o
estudo do conjunto de objetos vistos como evidências das antigas sociedades, em meio à
paisagem, e os sítios arqueológicos, “possibilita compreender como eles viviam, que tipo de
alimentos preferiam e as formas que sepultavam os mortos, entre muitas outras atividades”
(PARELLADA, 2009, p. 5). Podemos pensar mais além nas ideias biográficas dos objetos, os
objetos não contam apenas histórias ou remetem memórias, eles possuem também suas
próprias histórias.

Diante disso, pensar nos estudos de cultura material e nas coleções, é perceber que
estudar os objetos e museus implica:

[...] também estudar essa relação dos homens com os artefatos, que, no
passado está muito ligada ao fenômeno do colecionismo, mas que nos dias
da contemporaneidade, tem os museus como espaço privilegiado desta
relação. Sem o entendimento que o colecionismo representa uma etapa no
desenvolvimento da relação homens-artefatos, ficaria vedada a possibilidade
de observação do sentido amplo que implica a visualização de uma obra,
notada a partir do viés de valorização do que a observação direta desta tem a
oferecer no concernente à apreensão de suas características e sequente
atribuição de seu valor de época (SILVA, 2008, p.37-38).

1073
A partir dessa breve abordagem, é necessário salientar que o entendimento sobre
museus e coleções na realidade é bastante amplo, considerando seu próprio histórico, bem
como as políticas patrimoniais que giram entorno deste assunto. Mas o enfoque principal aqui
é atentar para a importância deste tema, para as sociedades do passado assim como as
sociedades do presente, visto que o museu enquanto lugar de memória, de guarda,
preservação, conservação, pesquisa e comunicação, atua no pensar das representações dos
objetos que compõe suas coleções e como estes irão passar o conhecimento para o público
seja através de seus acervos, seja nas reflexões por meio das exposições e ações educativas.

Museus universitários e coleções


Os museus universitários se configuram como instituições de importante significância
para a produção de conhecimento dentro e fora do meio acadêmico. Segundo Fernando
Bragança Gil (2005) à autonomia de que usufruem as Universidades, o planejamento dos
museus universitários não deve ser da iniciativa de qualquer Ministério, mas de cada
Universidade interessada na criação de uma instituição museológica no seu seio, desde que
haja disponibilidade de condições para fazê-lo.

Desde o século XVII já havia a existência de coleções ligadas ao ensino e investigação


em determinados domínios, principalmente em História Natural e Medicina. Estas coleções
começaram a ser formadas por exemplares com o objetivo de auxiliar no ensino e
aprendizagem não constituindo propriamente museus, embora viessem a ser, pelo menos em
parte, integradas nestas instituições geralmente com caráter universitário. Outra origem das
coleções dos museus universitários situa-se nas “coleções de curiosidades” que começaram a
se constituir a partir do Renascimento, cuja primeira iniciativa parece ter sido tomada em
Florença pelos Médicis. Entretanto, é geralmente admitido que o primeiro museu universitário
foi o Ashmolean Museum, também considerado por alguns autores, como o primeiro museu
moderno, tendo aberto as suas portas ao público em 1683. Este museu foi criado a partir da
coleção doada à Universidade de Oxford pelo grande colecionador Elias Ashmolean (GIL,
2005).

1074
Os museus universitários, propriamente ditos, têm características específicas que faz
com que atravessem transversalmente a tipologia museológica. É essa especificidade que
provém da integração dos museus nas universidades e da participação ativa daqueles nas
atividades culturais (incluindo as científicas). Para além das outras missões atribuídas a um
museu universitário este deverá constituir uma “janela” através da qual, a Universidade se
abre à comunidade onde se insere (GIL, 2005).

No entanto, conforme o pensamento de Ulpiano Meneses (2000) sobre o caso


brasileiro, pode-se indagar se os museus universitários têm conseguido articular as funções de
conhecimento às demais. Para o autor a resposta é negativa, infelizmente. Na verdade, várias
universidades assumiram museus nos últimos anos (Rio de Janeiro, São Paulo, Espírito Santo,
Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Rio Grande do Norte, Goiás, Bahia,
etc), mas se pode antes falar de museus na Universidade do que de museus da Universidade.
Sobre isto o autor discorre que:

O museu da Universidade, isto é, o museu universitário propriamente dito,


teria de integrar solidariamente as funções científico-documentais,
educacionais e culturais da Universidade com a marca da ação museal – e
não apenas existir como museu que se vincula administrativamente à
Universidade. Em outras palavras, é o ideal de curadoria dos museus
americanos do século passado – ideal de integrar solidariamente propósitos
científicos, de educação popular e profissional e de referência cultural – que
está fazendo falta. Não basta um museu para a Universidade, como tem sido
frequente; é preciso um museu que atinja toda a sociedade pela
Universidade. Este potencial ímpar, por exemplo, de socializar imediata e
eficazmente o conhecimento produzido, não tem sido percebido pelos
formuladores de políticas de extensão universitária – na maioria concebidas
como tarefas extra desenvolvidas sem qualquer marca profunda do que seria
a especificidade universitária. Como deveria ocorrer com uma orquestra
universitária, um hospital universitário ou uma farmácia universitária, um
museu universitário não poderia ser apenas mais um (bom) museu, mas
deveria ser totalmente universitário, sendo totalmente museu (MENESES,
2000, p. 33) [Grifo da autora].

O caráter da especificidade dos museus universitários e de suas coleções –


considerando diversas áreas do conhecimento – está relacionado também à gestão e
funcionamento coerente de acordo com a missão e necessidades no âmbito das universidades.

1075
Emanuela Sousa Ribeiro (2013) analisa a gestão dos museus e acervos universitários, situados
na interface entre a gestão das instituições de ensino superior públicas, o campo
científico/acadêmico apontando para a complexa tarefa da gestão de museus, no qual acentua
criticamente os problemas relacionados à falta de atenção dada à importância dos museus
universitários no contexto da pesquisa, ensino e extensão.

Sobre o nosso país, estamos falando de universidades jovens, pois a


institucionalização do patrimônio universitário ainda é recente. A maioria das universidades
foi criada no século XX, sem uma experiência acumulada com a gestão dos museus e
coleções universitários, os quais têm sido criados a serviço da pesquisa (especialmente no
caso das ciências da terra e de algumas áreas que necessitam do espécime como os herbários,
ou as coleções zoológicas, entre outras) ou, o que é mais comum, são produto de ações
individuais de pesquisadores, ou grupos de pesquisadores, que têm particular interesse para a
preservação de algum acervo (RIBEIRO, 2013).

A realidade brasileira da situação dos museus universitários se reflete até mesmo na


disputa por condições mínimas de infraestrutura material, assim como a alocação de espaço
físico, a distribuição de verbas de manutenção, a reposição de funcionários e os recursos para
publicação (GIL, 2005; RIBEIRO, 2013). Evidentemente há a falta de profissionais
especializados na área museológica para atuar nos museus universitários. Poderíamos estender
essa realidade para a grande maioria dos museus universitários brasileiros, pois, de maneira
ampla, podemos afirmar que nas universidades brasileiras a função pesquisa está dissociada
dos museus, e vice-versa. Enfatiza-se assim, a importância de correlacionar a gestão dos
museus com o funcionamento do campo científico, pois, são as dinâmicas internas deste
campo que atribuem o lugar dos museus nas universidades (RIBEIRO, 2013).

No caso deste trabalho, dentro do que já foi referido sobre a cultura material e a
importância dos objetos na vida das sociedades, o foco principal é a pesquisa sobre uma
coleção arqueológica em um museu universitário, no qual a mesma se encontra
salvaguardada, o Museu da Universidade Federal do Pará- MUFPA.

O Museu da UFPA e a Coleção de Arqueologia Urbana

1076
Conforme mencionado na introdução deste trabalho, o projeto de pesquisa “Arqueologia
Urbana: uma relação do passado e do presente no acervo arqueológico do Museu da UFPA”
partiu do estudo dos objetos arqueológicos encontrados no centro urbano da cidade de Belém,
no Museu da Universidade Federal do Pará- MUFPA, sendo que o mesmo não se encontra
situado no campus da Universidade e sim no bairro de Nazaré, entre as Avenidas Governador
José Malcher e Generalíssimo Deodoro. De início a pesquisa tomou como foco a coleção de
arqueologia urbana, mas com o desenvolvimento da mesma o Museu passou a ganhar mais
atenção como veremos mais adiante.

O Museu da UFPA está instalado no Palacete Augusto Montenegro, um casarão


Histórico construído no início do século XX, mais precisamente em 1904, para servir de
moradia para o ex-governador do Estado Augusto Montenegro (1901- 1909) e sua família. O
prédio foi projetado pelo arquiteto italiano Filinto Santoro que incorporou ao mesmo o estilo
arquitetônico renascentista italiano (BRITTO & ABREU DA SILVEIRA, 2011).

O Palacete Montenegro, como também é chamado, foi construído em alvenaria e ferro


de estilo eclético possuindo uma bela arquitetura que corresponde há uma época de riqueza e
ostentação da Belle Époque paraense no período áureo da extração da borracha na região
amazônica (entre 1870-1912). No início dos anos 60 o palacete serviu de residência para
algumas famílias de nomes tradicionais na cidade de Belém tais como: Cardoso, Faciola e
Chamié. Nos anos de 1948-50, a família que ocupava o prédio na época comprou seis
residências que eram localizadas na Avenida Generalíssimo Deodoro, e as demoliu para
construir um jardim de estilo neoclássico (BRITTO & ABREU DA SILVEIRA, 2011;
SOUZA, 2010).

No ano de 1965, sob a gestão do Reitor José Rodrigues da Silveira Netto, a


Universidade Federal do Pará compra o palacete Augusto Montenegro e instala no prédio a
sua reitoria. Em 1983, com a construção do Campus Universitário no bairro do Guamá, a sede
da reitoria da UFPA muda-se e, neste mesmo ano é criado o Museu da UFPA – MUFPA
instalado no palacete Augusto Montenegro, oficialmente inaugurado em 1984. Em 2003, o
palacete foi tombado como Patrimônio Histórico pelo Governo do Estado do Pará (BRITTO
& ABREU DA SILVEIRA, 2011; SOUZA, 2010).

1077
O Museu da UFPA possui um acervo constituído por diversas tipologias como: o
acervo de artes visuais, formado por pinturas, desenhos, cartuns, fotografias, esculturas dos
séculos IX, XX e XXI, gravuras, adquiridos por meio de doações e permutas; o acervo
bibliográfico ou documental, formado pela Coleção Vicente Salles, com ênfase para cultura
popular, dança, teatro e presença do negro no Pará, e pela Coleção Marx Martins com seus
textos e diários ilustrados; e o acervo fotográfico. No acervo de artes visuais está
salvaguardada a coleção de Arqueologia Urbana.

O MUFPA embora esteja vinculado a uma Universidade, usufrui de certa autonomia


que lhe dá um caráter diferenciado dos demais existentes no campus universitário7, pois como
um espaço museológico além de suas funções básicas de salvaguarda, conservação,
preservação, documentação, gestão de acervos, pesquisa, exposição e atividades educacionais
com o público, é um espaço de promoção social incluindo diversos eventos culturais, como
por exemplo, a realização de eventos regionais de arte contemporânea, palestras temáticas,
oficinas e minicursos. Os eventos citados são geralmente realizados no interior do prédio de
forma solene. Na área externa do museu, no jardim, dois eventos foram recentemente
incorporados a sua programação cultural, sendo estes, a feira cultural do Museu ou “feirinha
do MUFPA” e o projeto de Capoeira no Museu (coordenado pelo museólogo da instituição,
Wanderson Amorim).

No campo da Arqueologia urbana, sítios arqueológicos urbanos nas cidades têm sido
cada vez mais recorrentes, no qual estes são descobertos em decorrência de obras e
intervenções realizadas para construções de empreendimentos, como por exemplo, em obras
de metrôs, mercados, praças, prédios históricos, entre outros. Durante a execução destas,
vestígios arqueológicos são encontrados no subsolo, e estes por sua vez são registros do nosso
passado, pois fazem parte da história da formação urbana e marcam as mudanças ocorridas
em um território (TELLER & WARNOTTE, 2003; COSTA, 2014).

7
Geralmente se referem a espaços situados dentro de institutos da Universidade dedicados a alguma coleção
específica. Em sua maioria são atribuídos como museus, porém muitas vezes não funcionam e não são geridos
como tais.

1078
No caso da coleção de Arqueologia Urbana, sua coleta ocorreu durante as reformas do
Museu (2003-2006), no casarão e no jardim da instituição. Nesta pesquisa, o estudo se
concentrou no material encontrado no jardim do MUFPA, onde houve “escavações8” nessa
área, realizadas pelos operários responsáveis pela obra, na qual foram encontrados de forma
não intencional, diversas peças fragmentadas e inteiras de objetos arqueológicos como louças
decoradas (faianças, faianças finas e semi porcelanas), cerâmicas (vasilhas e jarros), vidros
(garrafas, e recipientes), metais (moedas), materiais de construção (fragmentos de piso,
azulejos), entre outros. De acordo com a diretora do museu, a professora Jussara Derenji, o
primeiro achado no jardim foi uma moeda antiga encontrada por um operário que trabalhava
no local da obra, e este pequeno objeto evocou o interesse e curiosidade em “escavar” e
“coletar” os outros vestígios materiais encontrados no jardim, formando então a coleção
(comunicação pessoal).

Segundo algumas informações dos funcionários do MUFPA, após a retirada dos


objetos da área do jardim, uma equipe técnica do Museu Paraense Emílio Goeldi- MPEG se
deslocou ao Museu, para realizar a limpeza, numeração, e armazenamento no acervo. Houve a
elaboração de um inventário da coleção pelos professores Fernando T. Marques e Rosangela
M. Britto. Este inventário tem sido usado nesta pesquisa como uma importante fonte de
estudo, visto a falta de outras informações detalhadas sobre os achados arqueológicos.

Inicialmente a pesquisa partiu da hipótese que os vestígios encontrados possivelmente


pertenceram às pessoas que viveram na área onde hoje é o museu, tendo em vista que o local
antes de se tornar museu propriamente dito, teve várias ocupações, bem como serviu de
moradias de nobres famílias de Belém (Cardoso, Faciola e Chamié) na década de 60, e
também havia residências no lote onde hoje é o jardim. Neste sentido, através do estudo
desses objetos, o objetivo geral da pesquisa tem sido a investigação baseada na análise da
cultura material que compõe a coleção arqueológica, buscando entender sua trajetória até a
formação da coleção dentro do Museu. Dessa forma, no processo de pesquisa até o momento
tem se procurado conhecer quais as informações que podem ser obtidas através do estudo da

8
O termo refere-se a pequenos buracos “escavados” aleatoriamente no local, e não propriamente escavado como
em um trabalho de campo arqueológico.

1079
coleção e como este pode contribuir para o conhecimento sobre o passado trazendo
perspectivas para o Patrimônio Cultural amazônida em um contexto urbano contemporâneo.

Portanto, a justificativa do trabalho está na significativa relevância para o


conhecimento da própria história do local onde o Museu está instituído, na medida em que o
local já obteve várias ocupações no passado, porém ainda se tem poucas informações a
respeito. Assim, entende-se que o estudo da cultura material que compõe a coleção
arqueológica do MUFPA poderá possibilitar compreender a história dos grupos sociais que
possivelmente viveram na localidade, estabelecendo possíveis diálogos entre as relações
existentes nesse espaço e a importância para o Patrimônio Cultural da cidade. O trabalho
metodológico tem seguido em direção ao levantamento histórico do Palacete/Museu; visitas
técnicas no Museu da UFPA; observação participante de eventos culturais no Museu e estudo
da coleção de Arqueologia urbana a partir do seu inventário, documento no qual constam as
informações das análises dos materiais.

A partir do estudo da cultura material que compõe a coleção de Arqueologia urbana do


museu, pode-se pensar sobre os objetos e a sociedade, envolvendo a presença desses objetos
do dia-a-dia das pessoas a quem pertenceram, refletindo questões de classe, economia e
consumo, saúde e lazer, dentre outros aspectos que os objetos podem trazer. Considerando as
observações da coleção durante as visitas realizadas no Museu da UFPA até o presente
momento, os objetos dessa coleção, apresentam uma imensa diversidade no que corresponde a
tempos, estilos e técnicas diferentes, bem como grupos e famílias distintas. Então, mais do
que trabalho de análise, a pesquisa tem procurado entender o motivo de tal diversidade, e a
trajetória deles em contraponto com a história do local, isto é, do Casarão e do Museu. Por
outro lado, com o desenvolvimento da pesquisa também se passou a perceber não só a coleção
como foco de estudo, mas sim o próprio museu, na medida em que se passou a observar o
espaço como um todo, e não mais de forma fragmentada.

Em suma, a coleção arqueológica, o casarão e o museu formam um conjunto


patrimonial de importância para a história da cidade de Belém, o que nos instiga a ideia de
compreendê-los enquanto artefatos no seio urbano contemporâneo. A pesquisa ainda não está

1080
concluída, mas poderá ser relevante não só para o campo acadêmico, como também para a
sociedade e a preservação do patrimônio cultural da cidade.

Considerações Finais
Este artigo pretendeu refletir a respeito da Cultura material, dos objetos e das coleções
nos museus. Certamente este assunto é bastante amplo, mas através do estudo específico com
o Museu da UFPA e a coleção de arqueologia urbana podemos pensar em diferentes questões
relacionadas à temática. Diante disso, retornando a pergunta realizada na introdução deste
trabalho sobre o que são os objetos em nossas vidas, podemos partir para outras como: o que
eles querem de nós? O que eles nos evocam? Por que os guardamos e colecionamos? Na
realidade, não há respostas gerais para tais perguntas, mas algo certo em se dizer, baseado nas
acepções de Daniel Miller (2005), é que os objetos realmente não nos representam e sim nos
constituem enquanto seres sociais, e que essa relação não está separada, opondo sujeitos e
objetos, mas sim em constante dinamismo e interação. Contudo, a partir dos estudos da
cultura material, da coleção de Arqueologia e da importância do Museu da UFPA é possível
traçar um olhar para além da materialidade, pensando e refletindo em sua significância não só
para a memória e história da cidade ou para o museu/palacete, mas também para proporcionar
o conhecimento e a divulgação social, bem como servir para outras pesquisas que possam
surgir futuramente.

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1083
ESTUDO DA SISTEMATIZAÇÃO DA DOCUMENTAÇÃO MUSEOLÓGICA À
COLEÇÃO CARMEN SOUSA DO MUSEU DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO
PARÁ (MUFPA)

Sandra Regina Coelho da Rosa*


*Universidade Federal do Pará (UFPA)
Rosangela Marques de Britto*
*Universidade Federal do Pará (UFPA)

Resumo: Esta pesquisa teve por objetivo analisar e propor a sistematização da documentação
museológica à coleção da artista plástica Carmen Sousa (1908-1950), salvaguardada pelo Museu da
Universidade Federal do Pará (MUFPA). A coleção é composta dos acervos de arte visuais (pintura,
escultura e desenho) e de comunicação (cartas, diário, fotografias, recorte de jornais e outros). A
justificativa do estudo foi na intenção de expandir o entendimento da investigação da coleção,
interligando as obras artísticas e os documentos, de modo que promova a recuperação das informações
em relação à trajetória da vida e obra da referida artista. Como instrumento metodológico aplicado,
adotou-se a realização de estudos investigativo e exploratório dos objetos e documentos
acondicionados na reserva técnica do museu, alinhando-os com o filtro teórico-prático das ações e
procedimentos da documentação para acervos museológicos. Os resultados alcançados por este
trabalho visaram à criação de uma proposta para a classificação da coleção, a elaboração de fichas de
arrolamento e catalográfica do acervo de artes visuais e documental, no intuito de possibilitar aos
funcionários e pesquisadores interessados, o controle e a consulta da coleção associados à organização
informacional do acervo, ajustando nitidamente ao processo de recuperação e disseminação de
informações contidas nesses artefatos sob a guarda do MUFPA.

Palavras-chave: Documentação Museológica; Museu da UFPA; Coleção Carmen Sousa.

1084
Abstract: This research had the objective of analyzing and proposing the systematization of the
museological documentation to the collection of the plastic artist Carmen Sousa (1908-1950),
safeguarded by the Museum of the Federal University of Pará (MUFPA). The collection consists of
visual art collections (painting, sculpture and drawing) and communication (letters, diary,
photographs, newspaper clipping and others). The justification of the study was the intention to
expand the understanding of the investigation of the collection, interconnecting the artistic works and
the documents, to promote the retrieval of the information in relation to the trajectory of the artist's life
and work. As an applied methodological instrument, research and exploratory studies were carried out
on the objects and documents placed in the museum's technical reserve, aligning them with the
theoretical-practical filter of the actions and procedures of the documentation for museum collections.
The results achieved by this work aimed at the creation of a proposal for the classification of the
collection, the preparation of catalog and catalog files for the collection of visual and documentary
arts, in order to enable interested employees and researchers to control and consult the collection
associated to the informational organization of the collection, clearly adjusting to the process of
retrieval and dissemination of information contained in these artifacts under MUFPA custody.

Key words: Museological Documentation; UFPA Museum; Carmen Sousa Collection.

1085
A Trajetória do Estudo da Coleção Carmen Sousa
A base de partida desta pesquisa foi o Edital 04/2015, do Programa Especial de Apoio a
Projetos de Pesquisa – Acervos da Universidade Federal do Pará (UFPA), da Pró-Reitoria de
Pesquisa e Pós-Graduação (PROPESP), quando foi selecionada a proposta do Projeto de
Pesquisa "Coleções e Artistas Plásticos e Visuais do Acervo do Museu da Universidade
Federal do Pará (MUFPA): pesquisa sobre arte e pesquisa em arte", da professora. Dra.
Rosangela Marques de Britto.
Em decorrência do referido edital a pesquisa teve dois planos de trabalho. O primeiro
"Coleção Carmen Sousa: Pesquisa das Coleções e Artistas Plásticos e Visuais do Acervo do
Museu da Universidade Federal do Pará (MUFPA)" desenvolvido pelo discente do Curso de
Licenciatura e Bacharelado em Artes Visuais da Faculdade de Artes Visuais (FAV), Dávison
Cirilo Queiroz Miranda, bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica
(PIBIC/PROPESP), de agosto de 2015 a agosto de 2016. Enquanto, o segundo plano
relacionado a pesquisa foi intitulado “Coleção Carmen Sousa: coleção de artes visuais e
documentos de arquivos", desenvolvido pela discente a época do Curso de Bacharelado em
Museologia da UFPA, Sandra Regina Coelho da Rosa, no PIBIC/PROPESP, agosto de 2016 a
agosto de 2017, como parte do estudo direcionado, também, para a elaboração do Trabalho de
Conclusão de Curso intitulado "Coleção Carmen Sousa do Museu da Universidade Federal do
Pará (MUFPA): uma análise do acervo pelo processo de documentação museológica",
defendido em abril de 2017.
O MUFPA foi fundado em 1982, mas sua implantação foi em 1984, sediado nas
dependências do “Palacete Augusto Montenegro9”, em um bairro nobre da capital paraense.
Em relação às tipologias de museus no âmbito da museologia, o MUFPA classifica-se como
um museu tradicional, em decorrência da ligação com os três elementos: o Edifício (casa-
palacete), que é o ambiente arquitetônico que se representa como um panorama museológico;

9
O prédio é uma construção do início do século XX, precisamente de 1903, conhecido como palacete Augusto
Montenegro. Foi projetado pelo arquiteto italiano Filinto Santoro, para residência do então Governador do estado
do Pará, Augusto Montenegro. Este arquiteto era formado pela Academia de Nápoles e viveu em Belém no
início do século XX. Neste projeto, Santoro buscou informações no estilo arquitetônico renascentista italiano; e
Lugui Bisi foi o mestre de obras e construtor do prédio, tendo a sua mão de obra e grande parte do material
utilizado na obra oriundos da Itália. Fonte: Museu da UFPA. Disponível em:
<https://mufpa.wordpress.com/historico/>. Acesso em: 18 abr. 2017.

1086
a Coleção, que está vinculada aos artefatos pesquisados e adquiridos, salvaguardados pela
instituição; e o Público, os usuários do museu (BRITTO, 2014). Na sua história como museu
tradicional, o MUFPA dedica-se à salvaguarda e a comunicação de seus acervos de artes
visuais.
Esse trabalho tem como objeto de estudo uma Coleção específica do MUFPA: A
Coleção Carmen Sousa, cuja relevância justifica-se pela pesquisa dos objetos/documentos
acondicionados na reserva técnica do MUFPA, na intenção de ampliar o entendimento da
investigação, interligando as obras artísticas e os documentos, de modo que promovam a
recuperação de informações referentes à trajetória de vida e obra da referida artista por meio
da documentação de acervos museológicos em relação aos artefatos/objetos artísticos.
A documentação de acervos museológicos segundo Helena Dodd Ferrez (1994) é o:

[...] conjunto de informações sobre cada um dos seus itens e, por conseguinte, a representação desses
por meio da palavra e da imagem (fotografia). Ao mesmo tempo, é um
sistema de recuperação de informação capaz de transformar as coleções dos
museus de fontes de informações em fontes de pesquisa científica ou em
instrumentos de transmissão de conhecimento (FERREZ, 1994, p. 66, grifo
nosso).

Para essa comunicação, o recorte do estudo foram os objetos e documentos do acervo da


artista plástica Carmen Sousa, os quais foram adquiridos pela UFPA entre os anos 1971 e
1983, por intermédio da Sra. Helena Sousa, irmã da artista. Entretanto, no ano de 1996, a
coleção recebeu outros artefatos oriundos de Vicente Salles (1931-2013) enquanto Diretor
dessa Instituição no período de 1996 a 1997, para a qual doou todo o seu material de pesquisa
coletado ao longo da vida: livros, discos, partituras, recortes de jornais, folhetos e muitos
outros (BRITTO, 2014).
A pesquisa apoiou-se no filtro teórico-prático da documentação, em busca do conjunto
de informações da Coleção Carmen Sousa, considerada aqui como fonte de pesquisa científica
por meio da análise das etapas/ações direcionadas a esse acervo ao adentrar no MUFPA –
seleção, aquisição, pesquisa, conservação, documentação e comunicação (CURY, 2005), ou
seja, os processos ora citados em que os objetos e documentos perpassam por cada uma
dessas ações, deixando um registro informacional dessas etapas; e quando sistematizadas em

1087
uma proposta de catalogação das peças, com campos de registros definidos para gerar novas
informações e produção de conhecimento, pois, mediante a sua estrutura organizacional, os
museus estão ligados diretamente aos métodos de salvaguarda e ao processo de comunicação
dos bens culturais para com o seu público.
Para ter conhecimento e entendimento dos objetos e documentos em referência à
coleção, fez-se necessário o estudo sobre a trajetória artística de Carmen da Gama de Oliveira
e Sousa, nascida em 24 de abril de 1908, em Portugal, na cidade de Lisboa. Em 1925, na sua
terra natal, fez seus primeiros estudos de desenho com o professor Espírito Santo de Oliveira,
baseados em esculturas greco-romanas clássicas, um exercício típico da escola academicista.
Posteriormente, a artista plástica teve outros mestres ao longo de sua carreira artística e filia-
se de certa maneira à escola acadêmica, mas a sua produção também tem evidente influência
moderna, em especial nas suas pinturas de paisagem, em que expressa a base do movimento
impressionista (BRITTO, 2017).
Em 9 de abril de 1942, a artista plástica se naturalizou brasileira, tornando-se assim
representante oficial do Estado do Pará nos grandes eventos promovidos no cenário artístico
nacional na década de 40 do século XX, com participação em diversos Salões de Arte
Nacionais e Regionais, nos quais recebeu prêmios e menções honrosas pelo reconhecimento
de seus trabalhos (BRITTO; MIRANDA, 2016).
O “olhar museológico”, segundo Mário Chagas (1996, p.56) versa sobre o campo de
atuação da Museologia, como ciência, que “transforma os mais diferentes espaços/cenários
em museu” (CHAGAS, 1996, p.57), assim como é, ao mesmo lance, um olhar “que sem
eliminar definitivamente a função primeira dos objetos/bens culturais, acrescenta-lhes novas
funções, transformando-os em representações, em documentos ou suportes de informação”
(CHAGAS, 1996, p.57). Nestas veredas abertas pelo campo da Museologia que a metodologia
adotada nesta pesquisa consistiu em lançar esse filtro de conhecimento, como um olhar
museológico sob a Coleção Carmen Sousa.
Nesta perspectiva de análise no âmbito da Museologia, em especial da Documentação
Museológica voltada para acervos, no intuito de compreender a Coleção Carmen Sousa em
dois arranjos das peças, sendo estes o acervo de artes visuais e o acervo de comunicação. A
ênfase da pesquisa pauta-se nos estudos destes artefatos, ou seja, as obras (pinturas, esculturas

1088
e desenhos) e nos documentos da artista (fotografias, recortes de jornais, cartas, convites,
agendas, diário, carteiras identificação e outros). A partir deles, e ao encontro do filtro do
olhar museológico lançado sobre a Coleção, foi aprofundada a investigação no âmbito teórico
da Museologia, conforme a necessidade demandada no objeto de estudo, sendo também
acionadas outras áreas do conhecimento, como, por exemplo, as teorias da Arquivologia,
Biblioteconomia e da Ciência da Informação, a fim de obter respostas para discussão sobre o
conjunto de acervos e posterior sistematização de informações das etapas da documentação
museológica.

As Discussões e os Resultados
Segundo Ulpiano Meneses (1998), a transformação do artefato em documento é
possível pelas ações da musealização, constituída e compreendida em diversos processos para
assumir a função documental. Ampliando o entendimento, Waldisa Rússio (1990) assegura
que o ato de musealizar pondera a informação trazida pelos objetos em termos de
“documentalidade, testemunhalidade e fidelidade” (RÚSSIO, 1990, p. 8). Esses
procedimentos são mais bem interpretados por Marília Cury (2005), sobre os caminhos
percorridos pelos objetos almejando a musealização. Esses caminhos iniciam-se na aquisição,
depois passam pelos processos de pesquisa, conservação e documentação e finalizando com a
comunicação, como mostra a representação gráfica do processo de musealização dos objetos
no Diagrama 1.

Diagrama 1: Diagrama do Processo de Musealização.

Fonte: Cury (2005, p. 26).

O diagrama exemplificado por Cury (2005) expõe resumida e visualmente o circuito de

1089
tratamento do objeto em meio às ações específicas que integram o processo de musealização.
No caso deste trabalho atenta-se para a documentação como forma de sistematizar a
informação sobre objeto a partir do processo investigativo de sua materialidade patrimonial.
Maria Inez Cândido (2006), afirma que o papel dos museus é criar métodos e
mecanismos que permitam o levantamento e o acesso às informações das quais
objetos/documentos são suportes, estabelecendo a intermediação institucionalizada entre o
indivíduo e o acervo preservado. Diante dessa afirmação, podemos perceber a necessidade da
documentação museológica como meio de recuperar as informações intrínsecas e extrínsecas
ao objeto museológico (MENSCH, 1987), como ação de suma importância para potencializar
a mediação/comunicação entre a Coleção e o público. Segundo a explicação de Cândido
(2006), sobre as informações acerca dos objetos:

[...] As informações intrínsecas são deduzidas do próprio objeto, a partir da descrição e análise das
suas propriedades físicas (discurso do objeto); as extrínsecas, denominadas
de informações de natureza documental e contextual, são aquelas obtidas de
outras fontes que não o objeto (discurso sobre o objeto). Essas últimas nos
permitem conhecer a conjuntura na qual o objeto existiu, funcionou e
adquiriu significado e, geralmente, são fornecidas durante a sua entrada no
museu e/ou por meio de fontes arquivísticas e bibliográficas (CÂNDIDO,
2006, p. 33, grifo nosso).

Conforme grifado na citação de Cândido (2006) é importante diferenciar as formas ou


maneiras de obter as informações referentes às codificações acerca de cada objeto,
diferenciando-se em informações intrínsecas, o discurso do objeto e as informações
extrínsecas, de natureza documental e contextual (MENSCH, 1987 apud FERREZ, 1994).
Sendo assim, as informações sobre o objeto museológico devem ser estudadas
minuciosamente, não apenas a identificação preliminar no que tange às características
anatômicas, mas conferir os dados documentais sobre a trajetória do objeto antes de adentrar
no museu e passar pelo processo de musealização, para compreender o seu valor museológico
como bem cultural de representatividade artística e sociocultural.
A documentação museológica configura-se como um dos elementos mais relevantes
para a gestão de acervos, funcionando como fio condutor entre as informações sobre os
objetos e os setores do museu, ou seja, essa atividade está alinhada à estruturação e a

1090
recuperação da informação contida no acervo, gerando novos conhecimentos para as próprias
ações desenvolvidas na instituição, tais como curadoria, pesquisa científica, ações culturais e
educativas, publicações diversas, entre outras (PADILHA, 2014, p. 35).
Na visão de Heloisa Barbuy (2008), o objetivo da documentação museológica consiste
em:

[...] constituir uma base ampla de informações, que alimente pesquisas e ações de curadoria, tanto da
própria instituição como externas, e se alimente, por sua vez, das pesquisas
realizadas sobre o acervo institucional ou em torno dele (BARBUY, 2008, p.
37).

Segundo Fernanda Camargo-Moro (1986), documentar cada peça de forma completa


não é tarefa fácil, pois o reconhecimento dos objetos/documentos, ao serem integrados nas
instituições museológicas, agregam "valores" documentais quando comunicados, preservados
e pesquisados, transpassado pelo processo de codificação das informações acerca de cada
objeto.
Renata Padilha (2014) nos leva a compreender que todo objeto pode ser potencialmente
um objeto museológico, porém só alcançará esse status mediante uma análise da instituição
museológica pela qual foi adquirido, isto é, o objeto deve ter conformidade com a tipologia do
acervo salvaguardado pela instituição, mas promova um diálogo com a sua missão, visão,
valores e objetivos institucionais.
Analisamos a Coleção Carmen Sousa nessa perspectiva teórica, como objeto de estudo
da importância dos processos de documentação museológica e a pesquisa que ela enseja. Esta
coleção dispõe em seu acervo desenhos, documentos, esculturas e pinturas, os quais só se
tornarão fonte de pesquisa se forem estudados e/ou interrogados em diferentes perspectivas,
ou seja, é necessário sistematizar as informações dos objetos a partir da sua descrição, contato
com a obra, e análise das fontes arquivistas e bibliográficas sobre este acervo.
Compreendemos o termo coleção como:

[...] um conjunto de objetos materiais ou imateriais [...] que um indivíduo, ou um estabelecimento, se


responsabilizou por reunir, classificar, selecionar e conservar em um
contexto seguro e que, com frequência, é comunicada a um público mais ou

1091
menos vasto, seja esta uma coleção pública ou privada (DESVALLÉES;
MAIRESSE, 2013, p. 33).

Partindo dessa perspectiva, na pesquisa exploratória e descritiva realizada no acervo da


Coleção Carmen Sousa, os objetos e documentos foram identificados de acordo com a sua
respectivas tipologias e categorias museológicas (PADILHA, 2014). As Figuras 1, 2, 3 e 4
apresentam obras da Coleção Carmen Sousa, respectivamente, um desenho, uma pintura, um
recorte de jornal e uma escultura, como uma mostra da sua produção artística em diferentes
períodos.
As imagens apresentam facetas da Coleção, em destaque, o desenho elaborado na
técnica de crayon sobre papel, de 1925 (Figura 1), soma-se a outros desenhos desse período,
na fase da sua iniciação aos estudos em artes plásticas em Portugal, nas aulas do professor
Espírito Santo de Oliveira, denota a formação artística baseada nos cânones da academia de
belas artes, com os exercícios e metodologias dos desenhos de observação e jogos de luz e
sombra (BRITTO, 2017).

Segundo Sônia Gomes Pereira (2008), o desenho não apresenta uma ruptura radical,
permanecendo a existência de traços em comum ao lado das diferenças e influências dos
movimentos modernos no âmbito das artes plásticas na Europa. Nesses termos, a autora
reporta-se aos “conflitos artísticos” (PEREIRA 2008, p.103), assim expressos:

[...] os conflitos artísticos não podem ser reduzidos a uma visão reducionista, que separa rigidamente
acadêmicos de um lado e modernos do outro. Se dentro da Academia
Imperial de Belas Artes fazia-se predominante uma arte oficial, a serviço do
Estado, muitos dos seus artistas refletiram e empregaram muitas das ideias
plásticas dos movimentos, que na Europa eram considerados dissidentes e
seus artistas independentes (PEREIRA, 2008, p.103).

Rosangela Britto (2017), a partir da sua pesquisa voltada à coleção de artes visuais da
artista, apresenta-nos uma análise da obra de Carmen Sousa, incluindo referências artísticas
de sua formação acadêmica e realista, com obras nos gêneros considerados tradicionais, como
o retrato, paisagem, figura humana, pintura histórica e sacra e, ao mesmo tempo, aberta a
alguns ensejos expressivos modernistas. Como exemplo, a pintura da paisagem urbana de
Belém, de 1949 (Figura 2), apresenta uma vigorosa pincelada da artista sobre a tela,

1092
representa outro momento da artista, com algumas influências dos impressionistas de pintura
de paisagens ao ar livre (BRITTO, 2017), que em Belém nesse período teve o Grupo do
Utinga10, formado por artistas como Ruy Meira11, Benedicto Mello, João Pinto, Arthur
Frazão, dentre outros (MEIRA, 2008).

Maria Angélica Meira (2008) no estudo sobre Ruy Meira e o período da arte paraense
entre os anos de 1940 e 1980, enfatiza Carmen Sousa entre outros ligados a uma geração de
artistas que produziam substancialmente na década de 1940. Nas palavras da autora:

Muitos outros artistas, entre os quais João Pinto, Geraldo Correa, Carmen Sousa, Antonieta Santos
Feio, Veiga Santos e Augusto Morbach, já produziam sistematicamente,
constituindo uma geração que se consolidaria na década de 1940, como
participantes e premiados nas várias versões dos Salões Oficiais de Belas
Artes, patrocinados pelo Governo do Estado (MEIRA, 2008, p.36, grifo
nosso).

Carolina Fernandes (2013) apresenta o ensaio que empreita um esforço de “conhecer e


fazer conhecer os mundos da arte moderna em Belém dos anos 1940 e 1950” (FERNANDES,
2013, p. 18). Em 1940, o governo do estado do Pará institui Salão Oficial de Belas Artes,

10
“Grupo do Utinga”, segundo Maria Angélica Meira (2008), o grupo de artistas reunia-se a partir de Ruy
Meira, figura influente no meio artístico em “meados da década de 1940, produzindo inicialmente paisagens
acadêmicas, chega ao ano de 1960 inaugurando a primeira exposição de arte abstrata do Pará” (MEIRA, 2008,
p.89).
11
Ruy Meira manteve amizade com vários artistas na década de 1940, incluindo Carmen Sousa (MEIRA, 2008,
p.72).

1093
dividido em duas categorias: Arte Geral ou Clássica e Arte Moderna (FERNANDES, 2013).
Carmen participou no 1º Salão, com uma pintura e sete esculturas; em 1943 participa da 3º
edição do salão oficial com três esculturas e oito pinturas, das quais paisagens da praia de
Mosqueiro; em 1944 também participa do 4º salão, com duas pinturas e três esculturas, entre
estas os “Três Risos”; em 1947 participa do 8º Salão de Belas Artes, com cinco esculturas. As
Figuras 3 e 4 apresentam, respectivamente, o jornal do acervo documental da artista (Figuras
3), que enfoca a notícia de premiação da escultura Cabeça de Negra Paula, que recebeu
medalha de bronze no Salão Nacional de Belas artes do Rio de Janeiro, em 1949 (Figura 4).

Carolina Fernandes (2013) formula o conceito de “moderno em aberto”, visto que na


década de 1940-1950 o sistema da arte local indica “que tenha havido várias interpretações e
utilizações diferentes, inclusive antagônicas, do mesmo critério de modernidade”
(FERNANDES, 2013, p. 57). De certa forma nessa década o “moderno não se
institucionalizou, não ganhando contornos próprios na crítica local, mantendo-se a forma do
moderno em aberto” (FERNANDES, 2013, p.57).

1094
Entre as facetas da Coleção observa-se, respectivamente, o recorte de jornal divulgando
a premiação da artista no salão, o desenho de sua fase de formação em Portugal e a escultura
premiada fundida em bronze.
Uma das ações para mapear os objetos dentro dos museus são os Inventários. Fernanda
Camargo-Moro (1986) define este procedimento:

Denomina-se inventário o levantamento individualizado e completo dos bens relativos a uma


instituição ou pessoa, abrangendo registro, identificação e classificação. Esse
conjunto, quando é completo em relação a uma instituição, nomeado de
inventário geral (CAMARGO-MORO, 1986, p. 41).

Para ter uma ideia da dimensão e abrangência da coleção foi realizado um mapeamento
dos objetos e documentos do acervo da Coleção Carmen Sousa a partir dos mecanismos e
ferramentas de controle disponibilizadas pelo museu, tanto na reserva técnica quanto nos
arquivos administrativos.
O primeiro Inventário consultado foi realizado pelo MUFPA em 2011. Com base nas
informações obtidas sobre quantitativo das peças existentes agrupadas de acordo com a
tipologia: 215 (duzentos e quinze) desenhos; 43 (quarenta e três) esculturas; e 33 (trinta e três)
pinturas. Esses quantitativos e qualitativos do acervo estão contidos no referido inventário do
museu.
Outro mecanismo de controle e consulta disponibilizado pelo MUFPA para pesquisa
exploratória e investigativa foi o Catálogo das Obras da Coleção Carmen Sousa, organizado
em 2005. O qual deu ênfase às pinturas, desenhos e as esculturas salvaguardas pela
instituição. Essas informações estão sistematizadas e agrupadas em três cadernos impressos.
Para Nicolas Ladkin (2004), o controle do inventário e catalogação faz parte do sistema
de documentação de um museu, pois essa atividade promove a disseminação das informações
sobre a individualidade dos objetos do acervo, visto que os registros dos dados nessas
ferramentas de consulta permitem a sua utilização como base de investigação, acesso ao
público, exposição, educação, desenvolvimento do acervo, gestão e segurança do acervo.
Entretanto, foi citado antes do processo exploratório e investigativo do
“reconhecimento” das peças da coleção sendo constatado um acervo de documentos
localizados na mapoteca da reserva técnica (carteiras de identificação, recortes de jornais,

1095
cartas, fotografias, cadernos e outros). Essas informações constam em uma listagem simples,
ora digitalizada ora manuscrita, sem data ou assinatura do responsável pelo arrolamento.
Mediante as informações obtidas nos arquivos do MUFPA, tanto no Inventário quanto
nos Catálogos, e, também na listagem não oficial dos documentos pessoais, foi possível
elaborar uma planilha com três campos de registro (número de ordem, termo (nome do objeto)
e quantidade de artefatos), visando quantificar e qualificar os objetos e documentos da
Coleção Carmen Sousa de forma geral, abrangendo o mapeamento de todas as peças que
fazem parte do acervo, conforme representado no Quadro 1.

Quadro 1: Relação do Quantitativo e Qualitativo do Acervo da Coleção Carmen Sousa.

Nº TERMO/OBJETO QUANTIDADE
01 Desenho 215
02 Escultura 43
03 Pintura 33
04 Documento 881
TOTAL 1.172
Fonte: Catálogo da Coleção Carmen Sousa, (2005); Inventário do MUFPA (2011) e Mapoteca do MUFPA,
(2017).

Nessa etapa da pesquisa ficou claro que existe dois tipos de acervos dentro da coleção,
um de artes visuais e outro de comunicação. Diante disso, para melhor entendimento do
assunto em relação a categorização dos objetos e documentos desenvolveu os estudos acerca
da classificação desse acervo.
A classificação do acervo museológico é o campo pertinente à identificação do objeto,
de acordo com seu vínculo cultural e/ou sua origem e/ou modo de confecção e/ou de como foi
congregado socialmente, além da sua colaboração para a coleção museológica pela qual é
percebido. Portanto, um objeto museológico é capaz de ser classificado de diversas formas, ou
seja, a classificação é uma área que necessita de pesquisa para evitar a subjetividade. Em
outros termos, a classificação deve ser impessoal, mas precisa ser entendida de uma forma
cultural mais extensa, ou seja, resultante de uma compreensão pela qual o papel daquele
objeto se desenvolve no acervo (DOCUMENTAÇÃO..., 2010, p. 74).

1096
Para Helena Ferrez e Maria Helena Bianchini (1987), a classificação ou categorização
de acervo trata especificamente da complexidade do objeto, ou seja, são os fragmentos da
peça em relação às partes e acessórios, visando associá-los no propósito da própria
classificação da peça tanto por semelhanças estruturais quanto pela sua funcionalidade.
No esquema classificatório Thesaurus, elaborado por Ferrez e Bianchini (1987), com
uma estrutura de camadas hierárquicas que se dividem em três níveis básicos de terminologia,
bem como a classificação (gênero), que são as estruturas de referência, que considera o
universo dos objetos coletados; a subclassificação (espécie), que são as subdivisões das
classificações principais, pois os objetos estão reunidos por conjuntos funcionais concisos; e
os termos (nomes de objetos) são expressões usadas para identificar os objetos específicos,
que são as subdivisões da subclassificação.
Assim compreendido, segundo aplicação adaptada ao Plano Geral de Classificação pelo
Thesaurus para Acervos Museológicos, o qual adota um sistema de classificação para os
objetos, que reconhece conceitos — termos, classes e subclasses — do referido manual
(FERREZ; BIANCHINI, 1987, p.60-61), como exemplificado no Quadro 2.

1097
Quadro 2: Modelo de esquema classificatório para acervos museológicos.

Fonte: Ferrez; Bianchini (1987) e Cândido (2008).

A partir dos estudos Thesaurus para Acervos Museológicos, no levantamento dos


objetos e/ou documentos da Coleção Carmen Sousa foram identificados dois acervos
distintos, um de Artes Visuais e outro de Comunicação, assim definidos por Helena Ferrez e
Maria Helena Bianchini (1987):

O acervo de Artes Visuais corresponde aos objetos criados, geralmente com finalidade estética ou
demonstração de criatividade e que integram as artes gráficas, plásticas e
cinematográficas, enquanto o de Comunicação são os objetos usados pra
transmitir informações aos seres humanos (FERREZ; BIANCHINI, 1987, p.
3; 7-8).

Essa fase classificatória dos objetos e/ou documentos da Coleção Carmen Sousa
proporcionou um entendimento geral sobre o acervo, contribuindo para o avanço da
investigação da sistematização da informação, visto que a primeira etapa da verificação do
acervo, dentro dos parâmetros do MUFPA, utilizou também a classificação definida em seu
inventário de obras de Artes Visuais, acrescentando a identificação dos documentos inseridos
na categoria de comunicação, assim como a sua inserção no referido inventário institucional.
Na etapa anterior mostrou o processo de categorização e inventário dos objetos e
documentos da Coleção Carmen Sousa, os quais contribuíram para análise da sistematização
da informação referente à classe, subclasse e os termos do acervo. Essa definição será de

1098
suma importância para a identificação desses objetos no desenvolvimento da proposta de
arrolamento para referida coleção.
Renata Padilha (2014) apresenta a definição arrolamento:

É o ato por meio do qual se realiza a contagem de todos os objetos que fazem parte do museu, sendo
criada uma lista numerada para controle e identificação geral do acervo
museológico. Refere-se a um primeiro reconhecimento detalhado. Dessa
forma, recomenda-se que o profissional numere provisoriamente a peça com
o número de inventário e que faça isso a lápis ou com etiquetas em material
neutro amarradas por um barbante ou cordão de algodão cru que envolva o
objeto. Além disso, é imprescindível o registro em um livro ou caderno,
especificamente para essa função, do que foi arrolado. Para essa atividade, o
registro do número e do nome do objeto é suficiente para uma identificação
inicial (PADILHA, 2014, p. 41).

Portanto, a realização desta atividade com processamento das informações para o


controle dos objetos/documentos no âmbito do museu também facilita a reorganização do
acervo em caso de roubos, desastres/fenômenos naturais e extravio, pois todas as instituições
estão sujeitas a essas ocorrências.
Seguindo esses princípios, torna-se possível propor, inicialmente, uma adequação à
Coleção Carmen Sousa, tendo como primeira medida delinear a sistematização da informação
do acervo de artes visuais e de comunicação, por meio de uma planilha com campos bem
definidos para os dados dos objetos e/ou documentos a partir das convenções estabelecidas
pelo glossário de preenchimento.
Segundo Fernanda Camargo-Moro (1986), o vocabulário controlado apresenta as
convenções que devem acompanhar os modelos de instrumentos instituídos pelo museu.
Neste aspecto, os glossários devem ser organizados com normas básicas definidas a fim de
codificar as informações do objeto inserido no sistema de documentação museológica,
lembrando que nenhuma ficha deverá ser preenchida sem o glossário correspondente, no
intuito de reduzir ao máximo os erros nos campos de dados.

1099
A planilha de arrolamento desenvolvida para o controle da Coleção Carmen Sousa foi
do aplicativo Excel12 empregado para realizar uma infinidade de tarefas (cálculos simples e
complexos, criação de lista de dados, elaboração de relatórios e gráficos, etc.). Neste caso,
elaborou-se uma planilha bem simples, com comandos de filtro para localização dos objetos
e/ou documentos dentro da reserva técnica, facilitando assim as atividades de consulta tanto
dos agentes do museu quanto dos pesquisadores e/ou público em geral.
O MUFPA dispõe dessa ferramenta em suas aplicações mais comuns nas rotinas
administrativas, por isso não acarretará investimento financeiro para treinamento dos
profissionais responsáveis pela gestão do acervo.
A etapa anterior enfatizou os caminhos do processo de arrolamento quantitativo
realizados no acervo da Coleção Carmen Sousa, como parte das atividades desta pesquisa, da
qual resultou em uma planilha com dados específicos referentes à identificação dos objetos e
documentos, com objetivo de disponibilizar uma ferramenta de busca/consulta capaz de
facilitar o acesso às fontes de pesquisa. Essas informações também dão suporte à elaboração
da ficha catalográfica proposta para esta Coleção.
Para Heloisa Barbuy (2008), a ficha de catalogação permite organizar o máximo de
informações que o museu dispõe sobre cada objeto. A autora explica que a catalogação vai
muito além da descrição da peça, pois trata as informações de forma consistente a partir da
documentação textual e icnográfica, com descrição total do objeto desde a ornamentação até a
função. Desse modo, promove uma narrativa tanto da relação de continuidade e
interdependência entre as partes quanto da hierarquia simbólica que o objeto possa conter.
A ficha de catalogação pode ser entendida como a codificação das informações mais
relevantes por meio da descrição sistemática dos objetos da coleção, objetivando a
organização desses dados para formalizar um arquivo catalográfico dos objetos e/ou
documentos da Coleção Carmen Sousa. Nesse caso, a utilização de campos que contenham
informações especificamente definidas no intuito de sistematizá-las dentro das normas
estabelecidas para o preenchimento da ficha catalográfica, como mostrado na Figura 5.

12
Excel é o software desenvolvido para empresas. As planilhas são constituídas por células organizadas em
linhas e colunas. É um programa dinâmico, com interface atrativa e muitos recursos para o usuário. A primeira
versão do Excel para o sistema Macintosh foi lançada em 1985 e para o Microsoft Windows em 1987.
Disponível em: <https://www.significados.com.br/excel/>. Acesso em: 3 fev. 2017.

1100
Figura 5: Modelo de Ficha Catalográfica proposta para a Coleção Carmen Sousa.

Fonte: Baseado no Modelo de Cândido (2006).

De acordo com Maria Inez Cândido (2006), as diferenças entre as informações


intrínsecas estão relacionadas à descrição e análise das propriedades físicas das peças
(discurso dos objetos) enquanto as extrínsecas estão associadas a natureza documental e
contextual (discurso sobre os objetos), expandindo o entendimento sobre esses campos de
preenchimento a partir das definições atribuídas a cada dado a ser registrado.
Desse modo, a proposta sobre a sistematização informacional do acervo da Coleção
Carmen Sousa, ao ser adotada pelo MUFPA, poderá auxiliar no processo de controle, consulta
e pesquisa dos objetos e documentos, a fim de oferecer agilidade nas atividades dos
profissionais do museu e também a disseminação do conhecimento a partir das fontes de
pesquisas nele contidas, e assim compor uma documentação eficiente que seja capaz de
promover o diálogo com a missão institucional e gerar um circuito de informações entre
pesquisadores, estudantes e o público em geral.

Considerações Finais
Considerando que a Coleção Carmen Sousa encontra-se acondicionada na reserva
técnica do MUFPA, é importante destacar que apenas o acervo de artes visuais passou por um
tratamento da informação com a realização de inventário, arrolamento e catálogo, enquanto o
acervo de comunicação necessita de tratamento da informação nessa mesma metodologia da
documentação realizada nas obras, por isso a proposta de documentação museológica

1101
contempla os dois acervos, a fim de proporcionar a sistematização da informação sobre a
artista plástica, associando os documentos e os objetos da sua trajetória artística.
Neste sentido, a documentação museológica é primordial, pois orientará na organização
das informações sobre o acervo no museu. Esta ação vai muito além de recuperação de dados,
consiste em uma base referencial para fonte de pesquisa em relação ao contexto social e
cultural da artista plástica Carmen Sousa no cenário artístico paraense no período de 1940 a
1949, ou seja, salvaguardando e disseminando as informações sobre o cenário artístico
naquele contexto e atualizando as informações sobre os novos olhares lançados pela pesquisa
sobre arte brasileira local e nacional produzida nesse período.

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1104
UM OLHAR MUSEOLÓGICO PARA OS MUSEUS UNIVERSITÁRIOS DE
CIÊNCIAS DA UFPA

Manuela Soutello Mendes da Fonseca Santos*


*Discente do curso de Museologia/UFPA
Sue Anne Regina Ferreira da Costa**
**Universidade Federal do Pará

Resumo: Os museus universitários surgiram no Brasil com a criação das Universidades,


predominantemente nos anos 1950 do século XX. Em sua maioria, esses locais formaram-se a partir
de museus já existentes que foram agregados às universidades ou devido a doações de grandes
coleções particulares feitas às instituições. A partir dos museus de ciências surgiram os centros de
ciências, isto por que a denominação museu remete ao velho, estático e outros sinônimos. Esses
espaços se mostram como locais que transformam seu acervo e os princípios científicos em uma
linguagem mais acessível e de fácil compreensão ao público. Visto isso, percebemos que os museus e
centros universitários de ciências inseridos na UFPA possuem esse caráter interativo, atuando, em
especial, na rede de ensino básico. Após a investigação, os classificamos em: museu de ciências,
centro de ciências e coleção universitária. Apesar de existir um número considerável de espaços, não
há tanto conhecimento sobre eles no campus. Relacionamos isso com a forte ideia de Museu
Tradicional, porém apontamos como esse quadro está se modificando em razão da aproximação entre
Museologia e museus universitários.
Palavras-chave: Museus Universitários; Museus de Ciências; Centros de Ciências; Museologia.

Abstract: The university museums emerged in Brazil with the creation of the Universities,
predominantly in the 1950’s of the 20th century. In their majority, these locations were formed by
museums that already exist and that were attached to the university space or with the donation of
private collections for the institutions. From the science museums came the science centers. This
happens because the denomination museum remains the old, static and other synonyms. These spaces
show themselves as places that transform their collection and the scientific principles into an
accessible language and easier to comprehend. Seen that, we noticed that the museums and university
science centers inserted at UFPA have this interactive character, acting especially, in the basic
education network. After the investigation, we classified them in: museum of sciences, center of
sciences and university collection. Although there are a considerable number of spaces, there is not so
much knowledge about them on campus. We relate this to the strong idea of Traditional Museum, but
we point out how this picture is changing due to the approximation between Museology and university
museums.
Key-words: University Museums; Science Museums; Science Centers; Museology.

Sobre Museus Universitários no Brasil

1105
Os museus universitários surgiram, no Brasil, com a criação das Universidades, em sua
maioria nos anos 50 do século XX. Nessa época existiam museus – fomentando ensino e
pesquisa – e escolas de nível superior, mas a aglutinação das escolas em único centro e a
criação de universidades veio como resposta às necessidades da sociedade moderna. Com essa
junção, vários museus foram agregados às instituições, como o caso do Museu Nacional do
Rio de Janeiro. Criado em 1818, como Museu Real, o Museu foi um espaço de grandes
pesquisas e ensino, até que no século XX, com a criação de centros de pesquisas e escolas
superiores, o Museu passou por crises e, em 1946, foi integrado à Universidade Federal do
Rio de Janeiro (ALMEIDA, 2001).

Visto isso, por museus universitários podemos considerar como sendo a criação ou
incorporação de um recinto, a partir de uma coleção sob domínio, parcial ou total, e
relacionada a uma Universidade; dependendo da instituição para o espaço, a salvaguarda do
acervo e quadro de pessoal (ALMEIDA, 2001; GIL, 2005). Em sua maioria, esses locais
formaram-se a partir museus já existentes que, posteriormente, foram agregados às
universidades ou por consequência de doações de grandes coleções particulares feitas às
instituições. Também podemos considerar a aquisição de objetos e coleções através de doação
ou compra, pesquisa de campo e coleta, e a mistura de todos esses fatores (ALMEIDA, 2001).

Inclusive, Marques e Silva (2011) atentam para as coleções universitárias, onde se


adquire, conserva e pesquisa, mas não há preocupação em promover a divulgação e/ou
exposição dos bens. Diferente dos museus, onde se faz o mesmo, porém a comunicação se dá
através da divulgação e exposição do acervo.

1106
Centros de Ciências não são museus?

Baseando-se em Gaspar (1993), os centros de ciências surgiram dos museus de ciências,


não por meio de uma ramificação, mas através da caraterística interativa e educativa de certos
museus. A denominação museu remete ao velho, estático e outros sinônimos, isso se deve aos
séculos de abertura dos museus ao público geral, que mesmo proporcionando acesso livre, a
coleção e linguagem ainda eram voltadas a uma parcela da população – a classe erudita.
Desse modo, alguns lugares começaram a adotar o nome “centro de ciências”.

Com base nas considerações de Gil e Lourenço (1999 apud CURY et al, 2000) podemos
definir os centros de ciências como espaços que transformam seu acervo e os princípios
científicos em uma linguagem mais acessível e de fácil compreensão ao público, o uso de
modelos e a interatividade, ao permitir o manuseio dos modelos – este último é considerado
como decisivo para o alcance da experiência museal nos centros. Apesar dos autores
considerarem centros de ciências como museus, eles diferenciam a prática de estudar e expor
coleções com relevância histórica e documental, com a criação de modelos para maior
compreensão do público. Ademais, esses lugares tendem a noticiar questões atuais e
perspectivas para o futuro (GASPAR, 1993).

Cury et al (2000, p. 9), em seu “Estudo de museus e centros de ciências”, elaborou uma
tabela mostrando as diferenças e dinâmicas de ambos os espaços, como exposto a seguir:

MUSEUS CENTROS DE CIÊNCIAS

Função social e educacional Função social e educacional

Política de atuação Política de atuação

Comprometimento com a socialização do Comprometimento com a socialização do


conhecimento conhecimento

Preserva e comunica Comunica

Método de trabalho centrado no processo Método de trabalho centrado no processo de


curatorial comunicação

1107
Aquisição de acervo/formação de coleções Fabricação de “acervo” de modelos

Conservação preventiva e restauração Renovação, manutenção e reposição

Comunicação dos temas pertinentes ao acervo Comunicação de temas científicos ligados à


por meio de exposição, monitoria e outras política científica do centro por meio de
estratégias exposição, monitoria e outras estratégias

As atividades são orientadas pela divulgação


As atividades são orientadas pelo acervo e a
científica e nem sempre há uma ênfase sobre um
exposição é a principal forma de comunicação
meio específico

Nota-se que a diferença entre eles se dá, principalmente, a respeito do acervo e


parâmetros para a comunicação. Alguns pontos são: enquanto o museu forma o seu acervo
através de aquisições e/ou coleções, o centro fabrica modelos, seja de peças ou experimentos.
Isso leva o museu a preservar e comunicar, entretanto o centro se concentra somente na
comunicação.

UFPA: Museus e Centros Universitários


Na Universidade Federal do Pará, assim como em outras, a maioria dos museus e
centros foram criados a partir de laboratórios de pesquisa e ensino, ou através de projetos.
Realizamos o processo de mapeamento em três etapas, sendo estas: consulta no Guia dos
Museus Brasileiros (2011), visita nos institutos da universidade para procura e localização dos
espaços, e busca na internet. Como resultado, obtivemos os seguintes locais – de acordo com
os institutos pertencentes:
● Instituto de Ciências Exatas e Naturais
Núcleo de Astronomia
Museu Interativo da Física
Laboratório de Demonstrações
Museu de Ciências, Tecnologia e Inovação
● Instituto de Geociências
Museu de Geociências
● Instituto de Ciências Biológicas

1108
Laboratório/Museu de Anatomia Humana e Funcional
Laboratório Museu de Zoologia

Museus, Centros e Coleções da UFPA


Para poder classificar as instituições faremos um breve histórico, expondo a
composição e as atividades realizadas. Após a análise desses dados, agruparemos em: museus
de ciências, centros de ciências e coleção universitária, conforme as características de cada
espaço.
Como apresentado anteriormente, consideraremos como museu de ciências os locais
que possuírem acervo a partir de aquisição, coleta, formação de coleções, pratiquem
conservação, preservação, restauração e que tenha a exposição como meio principal de
comunicação. Por centro de ciências, os espaços que pratiquem a fabricação de modelos –
constituindo o acervo majoritário –, permitindo o manuseio por parte do visitante e
divulgação da ciência e tecnologia, além de desempenhar atividades em cima do público
escolar. E por coleção universitária, os espaços que detêm um acervo, conservam, preservam,
porém não há prática de comunicação do mesmo.
1. Núcleo de Astronomia (Nastro): Concebido em 2004 devido as frequentes
atividades relacionadas à Astronomia e Astronáutica, o Nastro começou intitulado como
Clube de Astronomia. Com o crescimento da equipe e vínculo a Pró-Reitoria de Extensão
(PROEX), em 2007, surge o Núcleo de Astronomia. Atuando através de projeto de extensão
para atender a carência do ensino sobre astronomia e astronáutica, e estimular o crescimento
da educação científica, em especial nas escolas públicas. As atividades desenvolvidas pelo
Núcleo permitem a interação do público com a ciência, encorajando a aproximação com o
tema tanto no ensino básico como no público geral. O Nastro utiliza materiais especializados,
como telescópios, e de baixo custo, como modelos de experimentos e representações
científicas; o espaço se denomina como centro de ciências13 14.

13
NÚCLEO DE ASTRONOMIA. Histórico: Breve Histórico do Núcleo de Astronomia da UFPA.
<http://nastro.ufpa.br/index.php/historico.html>.
14
CALDAS, Jocasta; FRANCA, Rodrigo R. de; CRISPINO, Luís C. B. Astronomy Communication and
Popularization in the Brazilian Amazonia: The Astronomy Nucleus of the Federal University of Pará. Rev. Bras.
Ensino Fís., São Paulo, v. 39, n. 4.

1109
2. Museu Interativo da Física (MINF): O MINF foi criado em 2008 e, assim como o
Nastro, atua através de projeto de extensão. A criação surgiu por meio de um grupo de
professores e estudantes do curso de Física que visavam o ensino, divulgação e popularização
da Ciência, além da aquisição de equipamentos interativos baseados em experimentos
históricos, o que instigou a fundação do Museu. O MINF tem como proposta a contribuição
no ensino informal de ciência e tecnologia, particularmente na Física, atrelando a evolução da
ciência aos acontecimentos históricos para melhor compreensão, além de se utilizar de
experimentações e instrumentos interativos. O espaço se considera tanto como museu de
ciências, quanto centro de ciências15 16.
3. Laboratório de Demonstrações (Labdemon): Criado em 2004, o Labdemon atua
como um centro de ciências, difundindo e popularizando a ciência e tecnologia, tanto em
estudantes de ensino fundamental e médio, quanto em universitários. Inicialmente tinha como
propósito auxiliar a prática nos cursos de graduação da universidade, porém, com as
ampliações, o projeto se estendeu a rede de ensino básico. O Laboratório conta com 3 (três)
salas no pavilhão do ICEN, possui acervo fabricado pela equipe e adquirido de empresas
especializadas17 18.
4. Museu de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI): Criado em 2013 pelo
professor Antonio Maia e iniciado em 2014 por meio do Programa Integrado de Apoio ao
Ensino, Pesquisa e Extensão – PROINT, o MCTI propunha aproximar a comunidade com a
Universidade através da interação, visando contar a história do ser humano e as
transformações da Terra, além de executar experimentos e seminários, relatando o passado,
presente e futuro. Com desenvolvimento do projeto, o MCTI atua na união da aula com a
tecnologia, levando ao ensino básico o melhor entendimento das Ciências Exatas e Humanas.
O espaço divulga as ações do Laboratório de Preparação e Computação de Nanomateriais

15
MUSEU INTERATIVO DA FÍSICA. Histórico: Início das Atividades.
<http://www.minf.ufpa.br/index.php/inicio/historico/inicio-das-atividades>.
16
CALDAS, Jocasta; LIMA, Marcelo C. de; CRISPINO, Luís C. B. Explorando História da Ciência na
Amazônia: O Museu Interativo da Física. Rev. Bras. Ensino Fís., São Paulo, v. 38, n. 4.
17
LABORATÓRIO DE DEMONSTRAÇÕES. Pagina Inicial. <http://labdemon.ufpa.br/>.
18
CALDAS, Jocasta; CRISPINO, Luís C. B. Divulgação científica na Amazônia: O Laboratório de
Demonstrações da UFPA. Rev. Bras. Ensino Fís., São Paulo, v. 39, n. 2.

1110
(LPCN) e de assuntos de história natural, contando com filmes, documentários e réplicas de
animais pré-históricos. O Museu também trabalha questões sobre energias renováveis e meio
ambiente19 20.
5. Museu de Geociências (MUGEO): Fundado em 1984, o MUGEO é, desses
espaços, o mais antigo. Possui uma coleção predominantemente de minerais, rochas, gemas e
outros materiais como fósseis, oriundos de várias partes do mundo, porém focando na região
Amazônica; o acervo conta com mais de 2 (duas) mil peças. O Museu tem como propósito a
divulgação, ensino e pesquisa da geociência no território amazônico, através de exposições,
oficinas e por meio do Boletim do Museu de Geociências da Amazônia (BOMGEAM). Além
disso, é o único espaço museal da universidade a participar da Semana Nacional de Museus21
22
.
6. Laboratório/Museu de Anatomia Humana Funcional: O Museu de Anatomia foi
reinaugurado em 2016, após diversas reformas e aprimoramentos no Laboratório. Com dois
espaços expositivos, o Museu integra as peças do acervo a tecnologia para difusão da
informação. O acervo é composto por modelos anatômicos em 3D, peças em meio úmido,
previamente retiradas de matéria morta, e aparelhos audiovisuais. Além de ser recurso para
aulas práticas de vários cursos na área da saúde, o Museu é aberto para escolas e público
geral, divulgando e facilitando o entendimento de anatomia. Também possui uma plataforma
virtual disponibilizando materiais explicativos e atlas interativo dos sistemas presentes no
corpo humano23 24.
7. Laboratório Museu de Zoologia (MZUFPA): Criado em 2010, o Museu de
Zoologia detém espécimes da fauna, adquiridos a partir de coletas do grupo de zoologia. Até
2012, o Museu possuía cerca de três mil exemplares, os quais são registrados pelo museu e

19
NETO, Antonio M.J.C. Currículo do sistema currículo Lattes. <http://lattes.cnpq.br/3507474637884699>.
20
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ. Professor da UFPA cria museu e busca apaixonar visitantes
pela ciência. <https://ww2.ufpa.br/imprensa/noticia.php?cod=10564>.
21
INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS. Geociências: Estrutura Complementar: MUGEO – Museu de
Geociências. <http://www.ig.ufpa.br>.
22
COSTA, Marcondes; SANTOS, Pabllo. Relatório de Atividades do Museu de Geociências – Ano 2016.
23
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ. UFPA inaugura Museu de Anatomia Humana e Funcional.
<https://ww2.ufpa.br/imprensa/noticia.php?cod=11969>.
24
MUSEU VIRTUAL ANATOMIA HUMANA E FUNCIONAL. Sobre: O Museu.
<http://museuvirtual.wixsite.com/ufpa/em-branco>.

1111
auxiliam no estudo e pesquisa de cursos superiores, inclusive é possível o empréstimo do
material para feiras de ciências, sendo esta a ação de extensão. A exposição e visita ao acervo
não é feita devido à falta de espaço, mas está em vista pelos responsáveis25 26.
Visto isso, surgiram as questões problema: Como estes espaços se enxergam e o que
realmente são? Para respondê-las, utilizaremos a classificação de museu de ciências, centro de
ciências e coleção universitária.
O Núcleo de Astronomia se designa como centro de ciências e ao observar as práticas
realizadas, como fabricação do acervo e atenção para o público escolar, percebemos que ele
se encaixa na categoria de centro. Assim como Nastro, o Laboratório de Demonstrações segue
o mesmo caminho, e se diz e entra no conceito de centro. Apesar de possuir uma linha
histórica e ter adquirido a maior parte do acervo, além de se denominar tanto como museu
quanto centro, percebemos que os traços de centro de ciências são predominantes no Museu
Interativo da Física – como fabricação de modelos, interatividade –, por isso o qualificamos
como centro. Agregando a esses espaços, o Museu de Ciências, Tecnologia e Inovação
também entraria como centro, pois há a proposta de ensino de ciências através da
experimentação, como forma de aproximar a comunidade da universidade. Desse modo, esses
são os quatro espaços considerados como centros de ciências.
O Museu de Geociências e o Museu de Anatomia são espaços que se denominam
museus e se encaixam na definição, pois há a formação de coleção, preservação, as atividades
são elaboradas a partir do acervo e a exposição se mostra como principal meio de
comunicação. Assim, esses são os dois espaços considerados como museus de ciências.
Por fim, o Museu de Zoologia apesar de levar o nome, se caracteriza como uma
coleção universitária, mesmo realizando as atividades pertinentes a museus como aquisição,
conservação, documentação, mas é uma coleção por que não há comunicação do acervo.

Sendo assim, a relação dos sete espaços encontrados, fica:


● Centros de Ciências (4):

25
INSTITUTO DE CIÊNCIAS BIOLÓGICAS. Laboratórios: Laboratório Museu de Zoologia – MZUFPA.
<http://www.ufpa.br/icb/sobre/laboratorios/>.
26
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ. Conheça o Museu de Zoologia e Museu Interativo da Física.
<https://ww2.ufpa.br/imprensa/noticia.php?cod=6040>.

1112
Núcleo de Astronomia
Laboratório de Demonstrações
Museu Interativo da Física
Museu de Ciências, Tecnologia e Inovação
● Museus de Ciências (2):
Museu de Geociências
Laboratório/Museu de Anatomia Humana e Funcional
● Coleção Universitária (1):
Laboratório Museu de Zoologia
Apesar de existir um número considerável de espaços, não há tanto conhecimento
sobre eles no campus. Percebemos durante o mapeamento, ao perguntar nas secretarias se
havia algum espaço museológico e recebermos respostas como: “não”, “não sei”, ou “museus
são aqueles históricos, certo?”. Infelizmente, essa concepção é comum, visto que a ideia do
Museu Tradicional, exaltando as edificações e coleções, esteve em voga por séculos (SOTO,
2014).
Somando-se a isso, consultamos o banco de dados do Comitê Internacional para
Acervos e Museus Universitários (UMAC), subcomitê do Conselho Internacional de Museus
(ICOM), e a publicação “Guia dos Museus Brasileiros” (2011) do Cadastro Nacional de
Museus (CNM), uma plataforma criada em 2006 pelo Sistema Brasileiro de Museus (SBM).
Como parâmetro, usamos as pesquisas de Almeida (2001) e Marques e Silva (2011).
Em sua pesquisa Almeida (2001) encontrou 129 museus universitários no Brasil. Após uma
década, Marques e Silva (2011) identificaram, através do CNM, 162 museus universitários
brasileiros. Desses últimos, a região Norte representa 5% do total, do qual pertencente ao
campus UFPA/Belém, apenas consta o Museu de Geociências da UFPA, além do Museu da
UFPA (MUFPA). Em busca no banco de dados do UMAC, há somente o MUFPA –
identificado como “Museu da Universidade” – e o Centro de Ciências e Planetário do Pará,
referente à Universidade do Estado do Pará (UEPA).

Conclusão

1113
Talvez esse quadro pudesse ser outro se houvesse o trabalho interdisciplinar nesses
espaços, não somente na área das ciências afins, mas inclusive com a área museológica. Os
museus universitários se constituem como cenários ideais para a experimentação teórico-
metodológica da museologia, pois possuem coleções onde é possível exercer atividades
curatoriais, salvaguarda (conservação e documentação) e “comunicação do conhecimento
através da exposição, atividades pedagógicas e de ação cultural” (BRUNO, 1992, p.30).
Por se tratar de um campo novo na região Norte – o curso de Museologia da UFPA foi
criado em 200927 e é o único da região – ainda há certo desconhecimento sobre a sua
existência. Porém, a aproximação da Museologia com os museus universitários já vem se
realizando. Nota-se isto em matérias presentes no portal da UFPA (https://portal.ufpa.br/)
como “Conheça o Museu de Zoologia e Museu Interativo da Física”28, onde o Museu de
Zoologia relata que está em parceira com o curso de Museologia. Além de ações do Centro
Acadêmico de Museologia, que em 2017 integrou os museus universitários na programação
da Semana do Calouro, onde podemos ver no Boletim do Museu de Geociências ano 4, n.229.
A concretização e fortalecimento da parceria entre esses espaços e o curso pode, no
futuro, proporcionar otimização de suas práticas, seja com a adequação das suas atividades ao
que se refere a tipologia, seja ela museu, centro ou coleção. Assim como na incorporação de
alunos de museologia no planejamento e execução de tais atividades, garantindo a estes o
aprimoramento de práticas profissionais. Sem esquecer que estes são espaços pertencentes a
institutos de ciências exatas, o que os torna um ponto importante de exercício da
interdisciplinaridade, com o convívio entre estagiários de diferentes áreas, tornando-o um
excelente local de contato e troca entre áreas consideradas distantes, reforçando, assim, o
exercício do diálogo.

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1117
ESTUDO DE PÚBLICO DO MUSEU DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO
PARÁ: DIAGNÓSTICO PARA CONSTRUÇÃO DO PLANO MUSEOLÓGICO

Ana Daniela Nogueira da Silva*


*Discente Museologia da UFPA
Rosangela Marques de Britto**
**Docente UFPA

Resumo: Apresentaremos os resultados do Estudo de Público realizado no Museu da Universidade


Federal do Pará – MUFPA, abordagem panorâmica baseada em uma pesquisa quantitativa e
qualitativa possível pela realização do Projeto de Extensão: Plano Museológico do MUFPA. O Estudo
de Público é uma prática do fazer Museológico que permite à instituição museu conhecer mais
efetivamente seu público e avaliar a qualidade da relação público/museu, uma vez que muitas tomadas
de decisão no que diz respeito à gestão do museu são baseadas nessa avaliação. Nesta pesquisa o
objetivo geral foi subsidiar a construção do Plano Museológico do MUFPA, e o especifico foi levantar
e analisar dados para a construção de um diagnóstico de Público. A metodologia e o método
empregado foi o estudo quantitativo dos visitantes, a partir do livro de assinaturas das exposições dos
anos de 2014 e 2015. O qualitativo foi realizado através de entrevistas semiestruturadas com algumas
categorias de público do entorno (trabalhadores formais e informais e moradores), além de
questionário, aplicado a um grupo de universitários do Instituto de Ensino Superior da Amazônia. A
abordagem de cunho qualitativo foi possível pela etnografia da feirinha do MUFPA, iniciada em
março de 2016. Os resultados do estudo quantitativo de público geraram gráficos que apontam as
caraterísticas do público do museu como: a que apresenta maior frequência são estudantes, seguido
dos professores, que envolveu profissão; em relação categoria de gênero, a maioria do público é
feminina; procedência, é proveniente de Belém. Em síntese das análises qualitativa observamos que
alguns destes públicos conhecem o museu que se destaca na paisagem da esquina do bairro de Nazaré,
mas nunca visitaram nenhuma exposição, alegando vários motivos. Entretanto, observa-se que o
MUFPA tem buscado estratégias de aproximação deste público potencial, ou seja, que não tem o
hábito de frequentar o museu.

Palavras-chave: Gestão; Plano Museológico; Estudo de Público; Museu Universitário.

1118
Abstract: We will present the results of the study of Public held at the Museum of the Federal
University of Pará – MUFPA, panoramic approach based on a quantitative and qualitative research
possible for realization of the project of extension: Museum of the MUFPA Plan. The study of
audience is a practice of making the Museum institution Museum learn more effectively your public
and assess the quality of the relationship public/museum, since many decisions regarding the
management of the Museum are based on that evaluation. In this research the general objective was to
subsidize the construction of the Museum of the MUFPA Plan, and specific was up and analyze data
for the construction of a Public diagnosis. The methodology and the method employed was the
quantitative study of visitors, from the book of signatures of the exhibitions of the year 2014 and 2015.
The quality was performed through Semistructured interviews with some of the surrounding public
categories (formal and informal workers and residents), in addition to questionnaire, applied to a group
of University students from the Institute of higher education of the Amazon. The qualitative oriented
approach was possible by the Ethnography of the handicraft market of the MUFPA, initiated in March
2016. The results of the quantitative study of audience generated graphs that indicate the
characteristics of the audience of the Museum as: featuring more often are students, followed by the
teachers, which involved profession; regarding gender category, most of the audience is female;
origin, comes from Bethlehem. In summary of qualitative analysis we found that some of these
audiences know the Museum that stands out in the landscape of corner in the neighborhood of
Nazareth, but never visited any exposure, citing various reasons. However, it is observed that the
MUFPA has sought rapprochement strategies of this Pub.

Key-words: Management; Museum Plan; Public study; University Museum.

1119
Introdução

Esta pesquisa é resultado do projeto de extensão intitulado Plano Museológico do


Museu da Universidade Federal do Pará, iniciado no ano de 2014 pela Professora Rosangela
Marques de Britto. O objetivo do Projeto era a construção do Planejamento estratégico da
instituição, para adequá-la a legislação vigente de museus no país, que exige que todas as
instituições museológicas tenham um planejamento de gestão.
Para a construção do Planejamento de Gestão do MUFPA foram observados critérios
específicos, que visam sua padronização, nele podem ser identificadas possíveis
problemáticas na atuação do museu e apontadas as melhores condutas para alcançar soluções
(DAVE, 2001, p 15).
O primeiro passo foi fazer um diagnóstico geral do Museu, avaliando suas
potencialidades e necessidades. Dentro desta perspectiva encontra-se o diagnóstico externo,
que se refere ao público do museu e sua forma de se relacionar com ele.
A partir desses resultados foi obtido um panorama da atuação da instituição junto ao
público presente diariamente no entorno e do público que efetivamente visita suas exposições.
Com o domínio dessa informação foi possível incluir no planejamento estratégico os
apontamentos necessários para potencializar a relação público-Museu.
Este artigo visa apresentar os resultados do Estudo de Público do MUFPA refletindo
sobre a forma como este museu é percebido pelo público, levando em consideração o fato de
ser ele um Museu universitário. Para isso, nossa pesquisa inicialmente foi de caráter
quantitativo e qualitativo, para saber qual a média de visitação das exposições, quem é este
visitante e como se dá a interação entre público e museu. Os dados quantitativos foram tirados
do livro de assinatura das exposições que ocorreram durante os anos de 2014 e 2015. Os
dados qualitativos foram obtidos através de pesquisa etnográfica no entorno do museu.
Esta pesquisa se justifica no fato dos seus resultados serem de real importância para a
conclusão do projeto de extensão Plano Museológico do MUFPA ao qual é vinculado, junto à
Pró Reitoria de Extensão da UFPA; no fato de ter possibilitado ao bolsista do projeto as
práticas dos processos museológicos estudados na graduação de Museologia; e, finalmente ser
usada como ferramenta de gestão pelo museu a fim de potencializar sua relação com o
público.

1120
A estrutura usada para organizar este trabalho pretende chamar a atenção do leitor para
o Museu da Universidade Federal do Pará em seu aspecto institucional e histórico, como um
museu Universitário que tem uma função específica. Para isso no primeiro tópico trago um
breve histórico da instituição no tocante a sua missão enquanto unidade de pedagógica; no
segundo faço apontamentos históricos sobre a relevante edificação que o abriga; no terceiro
trago os dados e resultados da pesquisa de público e no quarto as considerações finais.

O Museu da UFPA como agente de Ensino, Pesquisa e Extensão.


O Plano de Desenvolvimento Institucional da Universidade Federal do Pará - UFPA
2016-2025 (PDI UFPA, 2015) prevê a relação entre as unidades de ensino e as de natureza
especial da universidade, como a Biblioteca Central30, o Centro de Memória da Amazônia31 e
o MUFPA, dentre outros, que são considerados órgãos suplementares da universidade, as
seguintes características e função desses órgãos na estrutura da UFPA são:

[...] unidades de natureza técnica, voltadas ao desenvolvimento de serviços


especiais, com estrutura administrativa própria, podendo colaborar em
programas de pesquisa, de extensão e de qualificação profissional das
unidades acadêmicas. Na estrutura universitária, os órgãos suplementares
existem também como instrumentos de apoio ao ensino, à pesquisa e à
extensão e atuam dando suporte às atividades (PDI da UFPA para 2016-
2025:117, grifo nosso).

Nestes termos, conforme previsto no Plano de Desenvolvimento da Instituição da UFPA


(2015), nos trechos marcados acima, o MUFPA tem mantido parcerias com algumas
faculdades desde 1984, atualmente elas, atualmente, com Curso de Museologia da Faculdade
de Artes Visuais, o MUFPA vem sendo aproveitado como campo pedagógico, de pesquisa e
extensão aos discentes e docentes do Curso de Museologia, tornou-se, assim, um importante

30
O órgão responsável em prover e disseminar informação à comunidade universitária de modo presencial e em
meio à rede, contribuir para a formação profissional e para o espírito de cidadania, coordenando tecnicamente as
bibliotecas que compõem o Sistema de Bibliotecas da UFPA – SIBI.
31
É o órgão suplementar cujo principal objetivo é preservar a memória social, favorecer pesquisas, além de
aproximar esses conhecimentos às redes de ensino fundamental, médio e superior.

1121
instrumental de apoio à extensão das unidades de ensino e pesquisa de vários cursos da
universidade federal do Pará, como explicitado no documento citado.
Nesse sentido, ainda que tenha autonomia administrativa a gestão do MUFPA não deve
perder esta diretriz de vista, antes deve primar por tornar esta missão acessível aos atores
envolvidos nos processos educativos que dependem de sua estrutura para acontecerem, como
é o caso dos projetos de pesquisa, estágios obrigatórios e pesquisas das áreas afins. Para
Emanuela Ribeiro (2013) obviamente, o Museu universitário carrega a responsabilidade de
uma atuação mais ampla por ter que incluir suas obrigações como órgão suplementar mas isso
no fim torna sua atuação ainda mais rica pois inclui um terceiro elemento ao conjunto cultura-
museu, a comunidade acadêmica, no caso abordado a comunidade acadêmica do curso de
Graduação em Museologia que prevê em seu Projeto Pedagógico a Política de Extensão,
realizada preferencialmente em “Museus Universitários”, por visar uma colaboração mutua de
trocas de informações nas áreas de ensino-pesquisa e extensão.

O MUFPA e o Palacete Augusto Montenegro


Segundo Britto (2014), a edificação construída no início do século XX, para abrigar a
sede do governo do Estadual de Augusto Monte Negro, nome também dado ao Palacete,
passou por mudança de usos ao longo dos anos. Após deixar de servir como espaço
administrativo passou a ser residência de famílias abastardas da sociedade belenense até 1965,
quando foi adquirido pela Universidade Federal do Pará para servir como sede da reitoria. Em
1984 o palacete passou a sediar o Museu da Universidade. Sua arquitetura eclética o levou a
ser tombado pelo Departamento de Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural da Secretaria de
Cultura do Estado do Pará em 2002.
Segundo Jussara Derenji, diretora do MUFPA há mais de doze anos, o MUFPA é
considerado um museu de arte contemporânea pois tem sob sua salvaguarda um importante
acervo de arte contemporânea paraense. Assim como, tem realizado expressivas mostras
temporárias com essa abordagem. Estima-se conforme inventário realizado em 2011 pelo
museu, que seu acervo possua aproximadamente 831 peças entre pinturas, desenhos, gravuras,
esculturas, fotografias e objetos. É uma coleção composta por artistas plásticos e visuais de
vários meios e linguagens, que abrange um período entre os séculos XIX ao XXI, como:

1122
Joseph Leon Righini, Theodoro José da Silva Braga, Antonieta Santos Feio, Ruy Meira, Antar
Rohit, dentre outros. Além de artistas contemporâneos, como a Coleção de Artistas
Contemporâneos Paraenses, como Ruma, Geraldo Teixeira, Aramando Queiroz, e outros.

Um panorama geral da relação público-museu


A metodologia adotada para fazer o diagnóstico externo do MUFPA foi o Estudo de
Público. Para identificar os grupos sociais que frequentam o MUFPA, suas aproximações e
distanciamentos com a instituição, de forma que se possa identificar as problemáticas de
comunicação entre o museu e o público a fim de buscar soluções adequadas para resolve-las
(CANDIDO, 2014).
O presente Estudo de Público foi realizado através de ações distintas: 1) Contagem dos
sujeitos que assinaram nos livros de visita das exposições, que geraram gráficos com o
percentual de visitas para as categorias: masculino, feminino e não identificados. 2)
Entrevistas gravadas com 12 trabalhadores de estabelecimentos comerciais, ambulantes e
comerciantes das proximidades do museu, que estão diariamente ali. 3) Entrevistas
semiestruturadas realizadas com 30 estudantes universitários na faixa etária entre 20 e 30 anos
de idade da Instituição de Ensino Superior da Amazônia (IESAM), atual Estácio, localizada
próxima ao MUFPA, que buscou saber o quanto o museu se faz conhecido pela categoria
universitários. 4) Observação direta da Feirinha do MUFPA, evento que acontece uma vez a
cada mês nos jardins da instituição como um mecanismo de abertura do museu ao público.
Esses dados se referem às visitas das exposições dos anos de 2014 e 2015.
O gráfico 1. Estudo de Público por gênero, detalha a visitação dessa categoria. Os
percentuais encontrados foram: masculino trinta e seis por cento de visitação; feminino
cinquenta e três por cento de visitação e onze por cento de não identificados.
O público que visitou as exposições do MUFPA, nesse período, se constitui por
homens mulheres, com uma variação quantitativa constante de dez por cento entre os gêneros.

1123
Fonte: livro de assinaturas 18 do MUFPA

Gráfico 2. Estudo de Público por Profissão, detalha a visitação dessa categoria. Aponta
que o público que efetivamente visita as exposições do MUFPA é heterogêneo no tocante a
profissão, e por conseguinte, sujeitos de variadas classes sociais. Aparecem com maior
frequentes os Estudantes e Professores. As demais classes, embora em menor quantidade, se
analisadas juntas, somam quase a metade do público.

Fonte: livro de assinatura n. 18 do MUFPA.

Gráfico 3. Estudo de Público por Procedência. O Público do MUFPA não procede


apenas das proximidades do museu, seus visitantes vêm dos mais variados municípios do
estado do Pará, de todo o Brasil e ainda do exterior. Este percentual se manteve constante
para os dois anos analisados.

1124
Fonte: livro de assinaturas n.18 do MUFPA.

O perfil panorâmico do público do MUFPA é de um público variado. São pessoas que


vem dos mais variados bairros, da região metropolitana de Belém e de outros municípios.
Estão presentes também pessoas de outros estados e países. Isso reflete na diversidade cultural
presente neste público, razão pela qual o museu deve se preocupar com a linguagem que vai
usar em suas exposições. O museu deve buscar se fazer entender usando uma linguagem clara
que leve em conta a variedade e níveis de entendimento destes grupos com características
distintas. Assim, segundo Chagas (2009), esta ação vai contribuir para que a instituição possa
alcançar a interação social, experiências afetivas, culturais e cognitivas que resultarão em
diálogo efetivo com seu público.
Outra questão a ser observada é a significativa presença de estudantes da rede pública
de ensino. Para um museu de Arte Contemporânea, constitui um desafio criar uma linguagem
que possibilite a reflexão a partir das narrativas conceituais presente em tal categoria de arte,
que vai além da apreciação ou fruição estética. Para De Varrine (2013), o patrimônio de um
museu, os objetos que fazem parte das coleções dos museus devem estar a serviço do
desenvolvimento da comunidade local por tanto se não houver reflexão por falta de
entendimento o desenvolvimento daquele individuo, ou grupo, estará comprometido e o
museu não alcançou seu objetivo de comunicação.
Este mesmo princípio se aplica no tocante às placas com legendas e textos das
exposições. Faz-se importante disponibilizar, tanto quanto possível, as principais informações

1125
em outro idioma, uma vez que, o MUFPA, mesmo estando fora do circuito dos museus que
integram o Sistema Integrado de Museus – SIM32, de Belém, e relativamente longe do centro
histórico da cidade, local mais procurado por turistas que procuram na cidade os pontos
históricos, recebe número constante de visitantes de outras nacionalidades. Essa foi uma
preocupação de um dos entrevistados da sessão a seguir, o Sr. Carlos:

Olha eu já fui em vários outros museus, em vários outros países, e eu te digo


que não tem nada a desejar, só faltam assim. umas palavras em inglês porque
se vier um turista ele não... Não vai falar, acho que ai bem duas línguas pra...
O inglês era o mínimo né? Cê vai no interior do Ceará... um museu que eu
fui lá da cachaça, Itaipava, [...] Mas esse museu é muito interessante, e eu só
vejo necessidade nisso, nessa situação de colocar uma coisa em inglês, pro
cara sentir que a gente está um pouquinho mais adiantado... Fora isso
entendeu, eu gostei muito.

Tabela 1: Entrevista com trabalhadores formais, informais e comerciantes.

Categorias Quantidade Já foi a uma exposição no Conhecem o


analisadas MUFPA? MUFPA?
Trab. informais 03 Não Sim
Trab. formais 04 Não Nem todos
Comerciantes 05 Sim Sim

A categoria de trabalhadores escolhidas foi para essa fase pelo fato de que estão
diariamente no entorno do MUFPA. Nosso intuito foi perceber se estas pessoas costumam
visitar o museu. São no geral funcionários de estabelecimentos comerciais diversos
localizados à Avenida Generalíssima Deodoro e Governador José Malcher, no bairro de
Nazaré em Belém. Iniciamos o período das entrevistas no mês de junho de 2016.
A abordagem foi com um gravador de voz, ao percebermos a reticencia das pessoas
abordadas, optávamos por explicar que se tratava de uma pesquisa oriunda do MUFPA, o que
os deixava bastantes solícitos em responder aos questionamentos e propensos a fazer suas
observações críticas. Isso evidencia o desejo de participar de alguma forma das decisões do

32
O Sistema Integrado de Museus e Memoriais – SIM, é um órgão ligado à Secretaria de Estado de Cultura do
Pará, criada em 1999.

1126
museu, como exemplo disso temos a resposta da Suzana, que atua como comerciante quando
inquerida se seus conhecidos do entorno costumam visitar o MUFPA:

[...] É falta um pouco, eu acredito de mais divulgação porque o Museu é um


lugar muito bonito. Eu acho incrível... Assim, encantador, tudo pela questão
da história, da arte e das exposições também, eu acho que deveriam ser mais
valorizados entende? Principalmente nas redes sociais que são um meio bem
bacana de comunicação principalmente, por exemplo, entre os jovens a
promoção de mais eventos e participação de eventos... Acho que seria uma
boa ideia.

O Problema da falta de interação entre os trabalhadores formais e informais do


entorno tem entre outras seu fundo na falta de divulgação do museu se faz conhecer e não
promove ações mais específicas para alcançar este público. Nesse sentido, a pouca divulgação
visual do museu e de suas programações fazem com que tudo que ali acontece passe
despercebido em seu cotidiano. Eles pouco conhecem do MUFPA, não costumam ir às
exposições lá, isto porque aquele cotidiano de trabalho lhes toma maior parte do tempo. É
uma categoria que mora longe dali e que nos finais de semana, quando não estão trabalhando,
estão ocupados com outras responsabilidades como lar, família e lazer. Segundo relatos não
resta tempo e disposição para vir ao centro e visita o Museu. Alguns relataram não se sentir
vontade para entrar espontaneamente por causa da imagem imponente e fechada do prédio.
Há os que sabem da presença do museu ali, porém não se sentem interessados ou estimulados
a visita-lo. Outros não sabem nem mesmo que a entrada é franca. Essa relação de saber que o
museu está ali, mas não interagir com ele é a situação da maioria dos entrevistados. Segundo
Marília Xavier Cury (2005, p.122) esta categoria é chamada de público potencial, são pessoas
que deveriam estar interagindo com o museu, mas não estão, essa questão nos faz pensar que
deve partir do museu a iniciativa de buscar um meio pelo qual os laços possam ser estreitados
com esses grupos. Já os comerciantes, que também são moradores da proximidade observou-
se que, ao contrário dos trabalhadores, eles sabem da existência de um museu ali, conhecem e
já visitaram a instituição e suas exposições. Embora não a visitem com frequência aprovam a
organização do espaço com algumas poucas críticas. As críticas foram apenas no sentido de
melhorar a comunicação e ampliação de ações que já existem.

1127
Tabela 2: Questionário semiestruturado com estudantes universitários da Instituição de ensino superior IESAM,
atual Estácio.

Universitários Conhecem Não Já Não Total


o MUFPA Conhecem visitaram visitaram entrevistados

Homens 12 5 8 4 17

Mulheres 11 2 7 4 13

Esta categoria de público encontra-se presente diariamente no entorno do MUFPA em


período letivo, trata-se de estudantes de um estabelecimento de ensino superior da rede
privada. A pesquisa foi realizada com questionário que inqueria se eles conheciam e
costumavam visitar o museu. O intuito aqui, era verificar o nível de interação entre o MUFPA
e estudantes universitários do entorno.
Esta categoria é importante para pensarmos a interação museu universitário e
estudantes universitários. Há o debate que deve ser aprofundado, o que de fato se espera da
configuração de museu universitário, sem perder as funções museológicas, que verse sobre
um sistema museológico ligado às funções de preservar, de documentar, de pesquisar e de
comunicar (por meio das ações de exposições e de visitas orientadas), coadunando-se à tríade
universitária: ensino, pesquisa e extensão. Porém, este mesmo museu pode vir a agenciar um
diálogo com a sua vizinhança, a externa ao prédio, os moradores e habitués do bairro de
Nazaré ou os discentes, docentes, técnicos e pesquisadores das unidades de ensino e pesquisa
da UFPA.

1128
Etnografia da “feirinha do MUFPA”
A Feirinha do MUFPA é um evento que acontece uma vez por mês, aos domingos,
nos jardins do museu. Criada em março de 2016, foi uma iniciativa da Associação Amigos do
Museu33, com a intenção de aproveitar o espaço dos jardins e assim estabelecer um vínculo
com a comunidade local.
Nossa investigação procurou compreender o evento para poder pensar nas relações
sociais que, a partir dele, podem acontecer nos jardins do MUFPA e como elas podem refletir
nas em uma maior interação público/museu/espaço expositivo.
A dinâmica da Feirinha: Logo cedo os vendedores chegam para organizar seus stands
em lugar pré-definido no momento da inscrição para que cada stand mantenha a mesma
posição por todas as demais edições.
A organização é primorosa e sempre supervisionada por algum funcionário do museu
e da liderança dos expositores34. Há sempre alguns funcionários, do museu, presentes,
participando da supervisão. Dois mediadores da exposição vez por outra convidam os
visitantes para ir ver as exposições. Segundo relatos de uma funcionária, houve crescimento
de número de visitas nas exposições nos dias que que acontece a feirinha. “A quantidade de
pessoas que normalmente visitam o Museu girava em torno de 5 a 10 pessoas por dia e depois
da criação da feirinha, esse número subiu para 60 pessoas por edição, que acontece sempre
aos domingos” (DANTAS, 2017).
Na etnografia é possível perceber que o público presente é formado por moradores do
entorno do museu, por amigos e familiares dos expositores. As chamadas nas redes sociais
promovem visibilidade ao evento e fomentam reencontros de pessoas. Outra ação que
acontece é a distribuição de convites impressos com informações da feirinha para vizinhança.
A Feira só acaba ao entardecer por isso há venda de alimentos variados, que podem ser
típicos, como foi o caso da edição visitada em junho, quando a configuração ganhou ares de
arraial junino.

33
AAMUFPA, criada em 2003. Disponível em< http://www.ufpa.br/museufpa/index.php?link=4>.Acesso em
07.03.17.
34
Nome adotado pela organização do evento para se referir ao comerciante que expõe na feirinha.

1129
O movimento se intensifica no período da tarde quando acaba a missa das igrejas
próximas e as pessoas passam ali pelo museu, no caminho de casa. Eles entram mesmo sem a
intenção de comprar, assim, a feirinha vai sendo propagada e ficando conhecida no bairro.
As aproximações são inevitáveis. Pessoas passam a se familiarizar com o espaço,
outras, impelidas pela necessidade ou apenas pelo desejo de comprar um artigo que necessite,
encontram um tempo para entrar. Se essa experiência ficar em suas memorias, certamente
serão repassadas a um parente ou amigo, de maneira que possa causar no ouvinte o desejo de
visitar o museu, os jardins ou a Feirinha, tornando a informação sobre o espaço mais
dinâmico.
A Feirinha por si só não constitui um elemento de aproximação do público com o
museu, mas quando agregadas ações com esse objetivo pode se tornar uma ação efetiva de
interação com o público. A ação de abrir os jardins da instituição torna o lugar mais atrativo, o
aglomerado de pessoas demonstra que o lugar é acessível.

Considerações finais

A avaliação museológica é uma prática que visa lançar olhar para a forma como o
público se relaciona com o museu. Sua aplicação iniciou-se de maneira empírica e foi se
intensificando nos anos de 1970 a partir de metodologias extraídas de áreas transversais 35 do
conhecimento (CURY, 2009, p.153). A avaliação proporciona ao museu a possibilidade
perceber suas fragilidades e seus pontos fortes, segundo Cury (2008, p.124) traz o
aperfeiçoamento das atividades institucionais a fim de aprofundar a própria compreensão que
ela tem de si mesmo e de seu trabalho.
A avaliação de público do MUFPA já constitui um ato de aproximação do museu com
a sociedade. A pesquisa quantificou o público real e analisou as categorias de público
potencial. Para o quantitativo verificou-se a constância do público, sua variedade e perfil. Para
o qualitativo verificou-se que existem categorias no entorno do museu que não estão sendo
alcançada por nenhuma das ações que o MUFPA proporciona. Nesse caso o planejamento
museológico necessita pensar em como reverter este quadro.

35
Dos Estudos Culturais, da Psicologia, e por fim da Etnografia, Comunicação e Pesquisa de Recepção.

1130
Referências bibliográficas

BRITTO, Rosangela Marques. Os Usos do espaço urbano das ruas e do patrimônio


cultural muzealizado na “esquina’ da “José Malcher” com a “Generalíssimo”: Itinerários
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1131
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Científico, o Ensino, a Pesquisa e a Extensão. In: Museologia e interdisciplinaridade.Vol.I1,
nº4, maio/junho de 2013.

1132
MUSEU DA UFRGS: HISTÓRIA E TRAJETÓRIA DE UM MUSEU
UNIVERSITÁRIO

Ligia Ketzer Fagundes*


Mário de Souza Chagas**

Resumo: Este trabalho tem como foco a trajetória de um museu universitário, Museu da UFRGS,
refletindo sobre sua construção institucional, analisando as práticas museológicas desenvolvidas em
sua historicidade, enfatizando suas características específicas, o papel ocupado e as relações
desenvolvidas com a comunidade universitária em relação à construção de uma política de gestão de
acervos e museus na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Palavras Chave: Museus universitários; História; Patrimônio.

Abstract: This work focuses on the trajectory of a university museum, Museum of UFRGS, reflecting
on its institutional construction, analyzing the museological practices developed in its historicity,
emphasizing its specific characteristics, the role occupied and the relations developed with the
university community in relation to Construction of a collection and museum management policy at
the Federal University of Rio Grande do Sul.

Key-words: University Museums; History; Patrimony.

1133
Em torno dos Museus Universitários
Este trabalho pretende investigar um museu universitário, Museu da UFRGS,
refletindo sobre sua construção institucional, analisando suas práticas museológicas em sua
historicidade, enfatizando suas características específicas, o papel ocupado e as relações com
a comunidade universitária no sentido de construção de uma política de gestão de acervos e
museus na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Os museus universitários são museus presentes e atuantes em muitas universidades,
com tamanhos, acervos e trabalhos variados. Este trabalho pretende analisar a história, a
biografia deste museu universitário, buscando as intenções, escolhas, caminhos e grupos
sociais diretamente envolvidos em sua constituição nos anos 1980, inicialmente sem acervo e
espaço expositivo próprio, centralizado junto a administração central.
Entendemos que a investigação científica das instituições museológicas, de sua
origem, elaboração de missão e objetivos, formação e constituição de acervos, processos de
escolhas de exposições, e, no caso dos museus universitários, sua relação com a comunidade
universitária e sua inserção dentro da mesma, constituem-se em importantes objetos de estudo
e reflexão. Abordar os Museu, suas práticas e competências como objeto central de estudos
pode intensificar e potencializar o papel e o lugar ocupado por eles na sociedade, assim como
aprofundar e contribuir para estudos no campo dos museus, da museologia, do patrimônio
cultural, da história, da memória, da educação entre outros. Contribuem também para
explicitar para o público as escolhas feitas pelos museus no presente, estabelecendo com os
mesmos diálogos e conexões. De acordo com Ramos “Além de expor o resultado de
pesquisas sobre a história que há nos objetos, o museu deve se expor ao conhecimento
histórico, tornando-se tema de estudo e perdendo ares de sacralidade.” (RAMOS, 2004:48)
De acordo com Chagas podemos “(...) considerar o museu como ponte entre tempos,
espaços, indivíduos, grupos sociais e culturas diferentes” (CHAGAS, 2005:18). Mas, o autor
nos adverte que devemos ultrapassar o encantamento que os museus nos provocam e entende-
los como espaços de poder em constante conflito. “Assim os museus são a um só tempo:
lugares de memória e de poder. Esses dois conceitos estão permanentemente articulados em
toda e qualquer instituição museológica”. (CHAGAS, 2006:31)

1134
Em nosso entendimento os museus são fenômenos sociais que devem estar envolvidos
com o humano em todas as suas dimensões, podendo ser ferramentas para a inclusão, para a
formação de uma sociedade justa e igualitária. Nem todos os museus buscam os mesmos
caminhos e o reconhecimento dos mesmos como espaços de poder e conflito potencializa suas
possibilidades.
Em nosso caso, os museus universitários, componentes das estruturas das
universidades, trazem para a discussão o compromisso das mesmas com o processo de
transformação da sociedade. E aqui vamos tratar de um museu universitário de uma
universidade federal pública que, como tal, tem responsabilidade de participar ativamente no
processo de desenvolvimento social, buscando a livre expressão e construção de
conhecimentos e saberes, o reconhecimento da diversidade cultural, e o exercício de
ferramentas de igualdade, democracia e ética.
Os museus universitários são muitos e variados em sua origem, relações com suas
universidades e tipologias de acervos. Diversidade que, de acordo com Cristina Bruno (1997),
abrange desde temáticas diferentes, muitas específicas dentro de algumas áreas da ciência ou
específicas quanto a aspectos regionais do conhecimento a, principalmente, estruturas de
organização diversas. Em comum, tem a configuração institucional de estarem abrigados e
responderem a gestão de instituições de ensino superior - universidades. São encontrados nas
universidades federais, estaduais e particulares, grandes e pequenos, localizados junto aos
campi universitários ou descolados dos mesmos envolvidos nas cidades. Sua diversidade
temática também é muito ampla, existindo museus universitários em todas as áreas de
conhecimento. No geral, aparecem dividindo ou disputando seus espaços com salas de aula,
laboratórios de pesquisa, espaços burocráticos, bibliotecas, apresentando uma estrutura física
adaptada ou totalmente inadequada para as atividades desenvolvidas. Uma grande parcela
ainda está desconhecida dentro das instituições que os abrigam. Suas coleções, organização,
funcionamento, mesmo que precário são resultado da iniciativa pessoal e trabalho abnegado
de professores, técnicos e alunos, resultando em uma fragilidade institucional.
Segundo Hernandez (1994) os museus universitários têm algumas especificidades em
relação aos outros museus quanto as motivações para sua criação que, em sua maioria,
remetem ao fomento à pesquisa, o estudo e aprendizagem entre professores, alunos e técnicos.

1135
Em decorrência, apesar de se autodeclararem como museus, muitos estão distantes das
características necessárias para tal. Destaca-se também a falta ou a descontinuidade de
recursos técnicos, de infraestrutura e financeiros que permitam um trabalho contínuo e seguro
por parte destes museus. A terceira característica, esta não exclusividade dos museus
universitários, é que a maior parte deles foi constituída por doações de particulares, muitas
vezes acrescidos de coletas de campo por parte de pesquisadores.
De acordo com Gil (2005) “os museus universitários têm características especificas
que fazem com que atravessem transversalmente a tipologia museológica” (GIL, 2005:45).
No caso, o autor está se referindo a origem das coleções e bem como seu uso após a
musealização. Ribeiro (2013) aborda que as coleções constituídas no âmbito universitário
têm características diferentes das coleções de museus fora das universidades, diferenças
quanto a classificação das peças, uso dos acervos e sistemas de documentação. Ainda
segundo a autora, o sistema de valores, modos de vida e função social das universidades e,
consequentemente do seu patrimônio e dos seus museus é, portanto, um dos principais
elementos que constituem o acervo dos museus universitários. Este patrimônio imaterial
explica características e questões comuns dos museus universitários e que independem de
suas coleções e tipologias.
Os museus universitários, de acordo com Adriana Mortara de Almeida (2001), para
além das funções de um museu (de acordo com o ICOM), devem estar comprometidos com o
tripé formado por pesquisa, ensino e extensão.
Maria das Graças Ribeiro (2007) aborda os museus universitários dentro de um
contexto transmuseal, com produção de conhecimento, formação profissional, exercício da
interdisciplinaridade e atuação significativa em programas de extensão que possibilitam a
inclusão social.
Maria Celia Santos (2006) destaca a importância de uma política nas universidades
que englobe e envolva os museus universitários, definindo sua atuação e inserindo-os dentro
de um planejamento estratégico nas instituições.
Para além das atribuições comuns a todos os museus, os museus universitários devem
atender a demandas específicas dos órgãos universitários, ligadas a atividades de pesquisa,
ensino e extensão, tripé indissociável contemplado nos estatutos das universidades. Nesse

1136
sentido os museus universitários realizam e propiciam pesquisas acadêmicas, são espaços de
ensino de disciplinas, cursos e estágios acadêmicos, participam e atuam em diversos projetos
de extensão e devem desenvolver projetos educativos abrangentes voltados ao público
externo, não vinculado diretamente as universidades. Por seu lado, as universidades, em sua
maioria, não possuem políticas especificas de gestão de seus espaços museológicos e coleções
universitárias, na medida em que os mesmos não constituem suas atividades fins, situação que
gera problemas ao deixar os museus e coleções desprotegidos de salvaguardas institucionais.

Sobre o Museu da UFRGS


Nesta perspectiva vamos buscar os elementos, intenções e projetos que levaram a
criação de um Museu Universitário na Universidade Federal do Rio Grande do Sul nos anos
80 do século XX. Museu centralizado, sem coleção própria que o definisse e justificasse e
que, no nosso entendimento foi uma estratégia de ação para o patrimônio da universidade. O
passar do tempo, as mudanças administrativas das diferentes gestões universitárias, os
diversos projetos em que o Museu foi protagonista, com ou sem sucesso, ainda mantiveram
algumas das características iniciais. De um museu sem acervo próprio e sem espaço
expositivo de 1984, chegamos a 2017 com um Museu com acervo e prédio próprio e
articulador e coordenador da Remam – Rede de Museus e Acervos da UFRGS.
Mas vejamos um pouco como e porque nasceu o Museu da UFRGS, inicialmente
denominado Museu Universitário. Entre 1984 e 1988, assume a Reitoria da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul o Prof. Francisco Ferraz com a proposta de revitalização da
Universidade. Cientista Político, com formação no exterior, havia atuado com Pró-Reitor de
Planejamento na gestão anterior. Tinha como proposta central de sua gestão a modernização
da universidade e seu projeto principal seria a criação de um Centro Cultural.
O Centro Cultural era um projeto dirigido diretamente pelo Reitor,36 resultante de um
diagnóstico sobre o espaço físico da Universidade, o espaço que seus prédios históricos
ocupavam no contexto da cidade e a função cultural que a universidade poderia ocupar junto a
36
Segundo o ex-reitor Francisco Ferraz, em entrevista no ano de 2013, a ideia do centro cultural sofreu forte
reação por parte da comunidade acadêmica e ele levou adiante quase como um projeto pessoal, junto com uma
pequena equipe de assessores. https://cidadaniaearte.wordpress.com/2014/11/12/entrevista-o-centro-cultural-
campus-central/. Acesso em março de 2015.

1137
cidade e o estado. O Centro Cultural consistia, resumidamente, em recuperar os prédios
históricos, recuperar seus entornos com ajardinamentos e espaços de convívio e destiná-los a
atividades diversas relativas a um centro cultural. Dentre as atividades estava a criação de
vários museus. Ainda, de acordo com o Reitor, ao contrário de outras grandes cidades do
mundo, Porto Alegre não possuía equipamentos culturais suficientes e “(...)nem instituições
com acervos bem cuidados, recolhidos a dezenas ou centenas de anos, todos beneficiados pela
prática já longeva do mecenato.” (FERRAZ, 2004: 110). Seguindo, argumenta que em outros
países o ensino dos jovens é suplementado pela visita a instituições culturais e cita como
exemplos La Villette, Beaubourg, Invalides, Musée de L’homme, Musée D’histoire Naturel,
Britsh Museum, Museum of Natural History, Smithsonian, National Gallery, segundo ele
referencias internacionais de cultura. Continuando, fala da importância dos acervos
universitários e destaca a universidade como instituição que forma acervos e coleções para
fins científicos e culturais. Cita os acervos de paleontologia, mineralogia, botânica, zoologia,
máquinas e equipamentos, mobiliário, livros, pinacoteca, manuscritos, fotografias enfatizando
que a universidade possuía “autoridade científica e cultural” para conseguir expor acervos
próprios e acervos que não lhe pertenciam, o que já demonstra o interesse por exposições e
intercâmbios e finaliza falando da criação do Museu Universitário.

Esse o gérmen da ideia do Museu Universitário e das exposições dos nossos


acervos, montadas, dirigidas e apresentadas pelos nossos professores e
alunos das respectivas áreas. Não tínhamos ainda um espaço exclusivo onde
instala-las de maneira definitiva. Mas podíamos fazer exposições sucessivas,
abrindo-as para as crianças e jovens de nossas escolas e para os nossos
próprios alunos. (FERRAZ 2004:110)

Para melhor operacionalizar o Projeto central do Centro Cultural, o Reitor Francisco


Ferraz cria os Projetos Especiais. De acordo com o Reitor eram estruturas com formato
horizontal, menos burocráticas, que as Pró Reitorias, ligadas diretamente ao Gabinete do
Reitor e com possibilidades de buscar recursos – humanos e materiais nos departamentos,
institutos e Pró-Reitorias. Os projetos especiais tinham como atribuição projetos que as Pró-
Reitorias não teriam condições de realizar. Dentre os Projetos Especiais estava o Museu
Universitário.

1138
No discurso de posse, como coordenadora do Projeto Especial de Implantação e
organização do Museu Universitário a Professora da Faculdade de Arquitetura, Maria Helena
Bered fala do desafio que só será possível através de um trabalho de equipe, capaz de
“alicerçar sólidos sustentáculos, base indispensável para caracterizar a expressão viva da
história desta universidade”. De acordo com ela,

a implantação de um museu universitário se impõe, à medida que se visa


criar um espaço cultural onde, preservada a memória desta Instituição,
através de uma apresentação condigna de seu acervo, símbolo da
autenticidade e evolução das diferentes áreas, se possibilite vivenciar de
forma atual, viva e polivalente, o progresso das técnicas e a evolução das
ideias nas áreas: Tecnológica, Científica, Humanística e Artística. (BERED,
1984:3) 37

Aqui percebemos claramente a criação de um Museu como um agente legitimador da


memória, para enaltecimento de uma instituição, no caso, de uma universidade, e da
importância dos acervos também como legitimadores da autoridade científica e
exemplificariam para a sociedade em geral a “evolução” que o conhecimento acadêmico é
capaz de proporcionar para a sociedade.
Seguindo no discurso, a Prof.ª Maria Helena Bered fala em propiciar para a
comunidade a intimidade com os resultados da pesquisa e do avanço tecnológico, através de
“novas formas diversificadas de educação, revestidas de caráter dinâmico” com experiências
“vivas e Criativas”. Continuando no documento, a criação e desenvolvimento do Museu
Universitário tem os seguintes objetivos:

Incentivar a inovação, a criatividade e o espirito inventivo, através de uma


abordagem científica, visando o desenvolvimento crítico;
Propiciar uma melhor compreensão do processo de formação histórica da
universidade, para melhor gera-la no futuro;
Aprimorar a imagem que a comunidade tem da Universidade;
Estimular as vocações tecnológicas, científicas, humanísticas e artísticas;
Possibilitar a integração entre os níveis de ensino de 1º, 2º e 3º graus;
Promover a integração entre a universidade e comunidade através de
atividades de formação de caráter permanente ou temporário;

37
BERED, Maria Helena. Discurso de Posse como coordenadora do Projeto Especial Implantação Museu
Universitário. 29/agosto/1984. Museu da UFRGS – Arquivo Caixa 01.

1139
Divulgar, informar e documentar todo o acervo universitário e os eventos a
serem realizados;
Estimular trabalhos de pesquisa e intercâmbio a nível local, nacional e
internacional. (BERED, 1984:7).

A diretora segue falando no museu como organismo vivo, dinâmico e polivalente. A


sustentação do projeto exigiria estrutura de suporte, com flexibilidade e, para tal, foram
estabelecidas metas de curto, médio e longo prazo.
A curto prazo, realizar uma exposição, junto com a Comissão de História
comemorativa aos 50 anos da UFRGS com recursos audiovisuais e utilização do acervo da
universidade. Esta foi a exposição de inauguração do Museu Universitário e do Centro
Cultural inaugurada em 26 de novembro de 1984, data de comemoração do aniversário da
UFRGS.
A Médio e longo prazo tinha como objetivos trabalhar junto com os setores da
universidade criando as condições de instalação e conservação dos elementos que compõe seu
acervo: equipamentos, mobiliário, documentos, obras de arte e outros. Para alcançar este
objetivo o recém implantado Museu Universitário envia para todas as unidades acadêmicas,
laboratórios e museus existentes tabelas e questionários relativos a tipologia, descrição e
quantificação de acervos variados. A documentação histórica do museu não possui nenhum
retorno das tabelas e questionários, entretanto, observamos que em 1989, por ocasião da
proposta de um projeto para os Museus da UFRGS, o museu possui muitas informações
detalhadas sobre acervos, história das unidades e quantificação de peças. O que nos leva a
pensar que algum retorno foi dado ao Museu por ocasião deste levantamento de acervos.
Ainda junto das metas, fala-se em elaborar exposições e mostras com caráter
constante, privilegiando linguagem dinâmica e trazendo em paralelo cursos, seminários,
estágios, ciclo de palestras, encontros, debates. O discurso da diretora finaliza falando em dar
ao Museu um caráter de centro de cultural.
Aqui destacamos que a investiga nos aponta que o museu foi criado como um braço
operacional do Projeto do Centro Cultural. Localizado no prédio da Reitoria, em uma sala no
segundo andar, junto da administração central e totalmente centralizado em relação ao
restante dos prédios e espaços que comporiam e constituiriam o centro cultural. O Museu
permanece no local até 2002, quando recebe um prédio próprio. Não possuía espaço

1140
expositivo, utilizando para tal o salão de Festas da Reitoria e a Sala Fahrion38 que até 1988
aparece referida nos relatórios do Museus com espaço Museu Universitário. A partir de 1989
passa a ser chamada de Sala Fahrion novamente.
Outra questão que podemos destacar em relação ao Museu é a relativa ao nome.
Muitos museus universitários têm nome vinculado a sua tipologia de acervo, vinculado a sua
área de conhecimento ou no nome prestam homenagem a alguma personalidade importante
para sua história. Museus universitários de arqueologia e etnologia, museus universitários de
arte, museus universitários de ciências, museus universitários de mineralogia, etc. O Museu
denominava-se Museu Universitário, denominação que muda para Museu da UFRGS no ano
2002 quando das festividades para ocupação de um prédio próprio. Continua mantendo no
nome a mesma ideia: é um museu de toda a universidade, não pertence a nenhum curso,
departamento ou instituto e não é definido e ou identificado por nenhum acervo. Até
hoje manteve a centralidade na questão de exposições e eventos de caráter cultural. O final da
gestão do Reitor Francisco Ferraz, com os problemas de vinculação do Centro Cultural com a
personalidade do reitor, em 1988 aliados a falta de financiamento federal modifica o Projeto
na gestão seguinte. Outro grande entrave para o Projeto do Centro Cultural foi a necessidade
de tombamento dos prédios históricos do Campus Central, sua desocupação pelos cursos
(principalmente a Engenharia e a Medicina) e a concomitante construção dos novos prédios
no Campus do Vale e no Campus Saúde para onde os cursos seriam transferidos. A carência
de recursos compromete as obras que seriam realizadas com recursos da universidade e, ao
mesmo tempo, a universidade continua crescendo e com exigências de recursos e espaços
cada vez maior.
Em 1988 assume a Reitoria o Prof. Gerhard Jacob, vice-reitor na gestão anterior que
fica apenas dois anos como reitor, convidado a assumir a direção CNPq. O cargo de reitor é
assumido pelo seu vice e a gestão se caracteriza por muita polêmica e resistências por parte da
comunidade acadêmica. A troca de comando significa uma continuidade do grupo que está
no poder e de seus projetos, passando os mesmos apenas por reacomodações administrativas.
Os projetos especiais continuam existindo, mas pouco a pouco vão passando para a Pró-

38
O Salão de Festas e a sala Fahrion são espaços nobres da universidade para eventos em geral. O museu
precisava dividir a agenda dos mesmos com a administração central.

1141
reitoria de Extensão. A Prof.ª Sandra Jatahy Pesavento foi convidada a coordenar o Projeto
Especial de Recuperação do Acervo que logo amplia sua atuação em parceria sempre muito
próximo do Museu Universitário.
No início do ano de 1989, coordenados pelo Museu Universitário e pelo Projeto
Recuperação do Acervo é montado na UFRGS um grupo de Trabalho para Implantação dos
Museus da Universidade. O Projeto final é encaminhado ao Conselho Universitário e ao
Reitor em agosto de 1989 e, após sua aprovação é enviado ao CNPq, que aprova o mérito,
mas nega o financiamento na medida em que envolveria obras físicas. O CNPq se
compromete com verbas para ampliação dos acervos, após a instalação dos museus. Mais uma
vez, a equação de necessidade de verbas para obras nos prédios históricos, desocupação dos
mesmos, verbas para ampliação do Campus do Vale e a transferência dos cursos foi um
grande entrave.
O Projeto de Implantação dos Museus é uma retomada do anterior projeto de Centro
Cultural da gestão Ferraz, agora incorporando claramente a questão dos Museus e acervos, e
transformando a proposta de Museu Histórico em Museu de Memória Social. A justificativa
para um museu de Memória Social e não mais um Museu de História da universidade,
conforme o Projeto anterior fica a cargo da Prof.ª Sandra Pesavento e do Projeto Recuperação
do Acervo por ela coordenado.39 O conceito era preservar a memória social com a criação de
um centro de documentação centralizado que preservasse os documentos impressos (acervo
que já existia da Comissão de História) e a incorporação de outra documentação como fontes
orais e fotográficas no sentido de buscar a incorporação de novos temas e preocupações que
resgatariam fontes até então desconsideradas pela história.
O referido Projeto destacava que o restauro dos prédios históricos e sua transformação
em Museus e Parque da Ciência Criação dotaria a UFRGS de museus em áreas especificas,
com características modernas e inspiradas em experiências consagradas nos EUA e Europa,
fugindo do “(...) estereótipo via de regra aceito para as instituições deste gênero e que,
lamentavelmente ainda predominam no país.” Segue falando em fugir da concepção de Museu
39
O Projeto Especial Recuperação do Acervo é um dos Projetos Especiais de 1984. Tem por objetivo gerenciar o
acervo Histórico da UFRGS e incorpora a Comissão de História, criada em 1977 como embrião de um museu
histórico. Sob coordenação da Prof. Sandra Pesavento o Projeto Especial Recuperação do Acervo se transforma
em Núcleo de Documentação e Memória Social. Em 1993 é dissolvido administrativamente e o acervo e
funcionários são incorporados ao Museu Universitário.

1142
como depósito de coisas velhas e como galeria de objetos apresentados de forma estanque. A
concepção teórica aqui era no sentido de redimensionar a dimensão temporal associando a
sucessão cronológica os conceitos de processo e espaço e, a partir deles, estabelecer as
relações possíveis. Identificamos no discurso os conceitos da história e memória social e a
preocupação com uma nova forma de museus, dinâmicos, vivos, onde a pesquisa científica, as
perspectivas didáticas e lúdicas estabelecessem um diálogo e levassem o conhecimento
acadêmico para o público.
O documento segue ressaltando que a UFRGS já possui um museu assim, o Museu
Universitário. Falava de sua história, objetivos e destacava as principais exposições realizadas
entre 1984/1989 e das suas atividades educativas, mostrando aqui, mais uma vez, a
centralidade e o papel de articulador do mesmo. Aqui percebemos um alinhamento com as
questões do cenário museológico internacional e nacional. A UFRGS seria dotada de um
moderno Centro de Ciências, baseado em experiências internacionais e nacionais, como as
recém-criadas Estação Ciência em São Paulo e o recente MAST, no Rio de Janeiro.
A etapa inicial do Projeto previa a criação do Museu de Ciência e Tecnologia e do
Museu de Memória Social.

A proposta é que, a partir daquela concepção mais ampla de MUSEU


anteriormente exposta, as duas entidades interajam de maneira dinâmica e
criativa, proporcionando experiências e fornecendo informações, através de
atividades temporárias e permanentes. (Projeto de Implantação dos Museus
da UFRGS. 1989)

Destaca-se no Projeto a intenção de exposições temporárias, aqui no sentido de


dinamizar os assuntos e diferenciar dos museus tradicionais, aproximando o conceito de um
Centro de Ciências – vivo, dinâmico, baseado em experimentações e interatividade e não mais
no estudo observação/contemplação desenvolvido nos museus tradicionais.
Ressaltava ainda que, de acordo com as demandas, outros museus poderiam ser
criados. Segundo o documento, é o presente e suas necessidades que orientarão os elementos
do passado que será resgatado e tematizado cabendo aos Museus “(...) lidar com a
interdisciplinaridade de eventos, abrangendo todas as áreas onde se manifesta o

1143
desenvolvimento cientifico e tecnológico do estado, possibilitando uma visão do atual estágio
em que se encontra o Rio Grande”. (Projeto de Implantação dos Museus da UFRGS. 1989)
Os acervos de Paleontologia, Física e do Museu de Mineralogia estavam todos
descritos, assim como a história dos cursos. Em relação ao Parque da Ciência, os
equipamentos que seriam construídos já estavam definidos e suas justificativas detalhadas.
Uma das questões que aqui se colocam é do papel do Museu Universitário após a instalação
do Projeto dos Museus da UFRGS. Parece-nos que o Museu Universitário seria o articulador
e gerenciador dos Museus da área de Ciência e Tecnologia, bem como do Parque da Ciência.
Quanto ao Projeto Especial Recuperação do Acervo, coordenado pela historiadora
Sandra Pesavento, seria transformado no final do ano de 1989 em Núcleo de Documentação e
Memória Social, e constituiria o Museu de Memória Social composto pelo acervo existente de
História da UFRGS, de Porto Alegre e do RS integraria o Museu. As exposições temporárias
produzidas pelo Museu de Ciência e Tecnologia também integrariam o acervo do Museu de
Memória Social após sua apresentação, o que mostra uma forte ideia de retroalimentação e
trabalho integrado entre os museus. O acervo seria integrado ainda por doações de conjuntos
documentais relativos à Memória Social da Universidade e da cidade de Porto Alegre e por
um banco de dados relativos a coleções e conjuntos documentais existentes em outros locais
do RGS.
O projeto justificava a necessidade de dar nova dimensão aos recursos materiais e
humanos já existentes na universidade, iniciando a descrição dos mesmos recursos pelo
Museu Universitário, destacando seu papel de articulador e o levantamento e descrição de
acervos feito pelo mesmo, do conjunto dos prédios históricos do Campus Central que
deveriam ter uma utilização cultural para a universidade e comunidade e apontava ainda a
presença de um corpo técnico e acadêmico especializado. Como objetivos gerais colocava a
necessidade de implantar, de forma permanente, com os Museus da Universidade, um centro
de divulgação do conhecimento científico produzido no âmbito acadêmico. Destacava que
Museus oportunizarão experiências vivas de conhecimento a estudantes e ao público em geral
com suas atividades temporárias, divulgação e ampliação dos seus acervos, criando um
“centro dinâmico e um laboratório vivo da socialização do conhecimento científico”.

1144
Destacamos aqui que os dois Projetos analisados em que o Museu Universitário teve
papel central, o Centro Cultural e o seguinte Projeto de Implantação de Museus, colocavam
como ponto central a Recuperação do Patrimônio cultural e material edificado – conjunto dos
prédios históricos e sua transformação em espaços museológicos e culturais. As dificuldades
desses empreendimentos sempre foram grandes. Envolviam financiamentos e recursos
externos para restauro e recuperação de patrimônio histórico edificado; recursos internos e
externos para edificação de prédios que substituíssem as funções de aulas e laboratórios ainda
desenvolvidas nos prédios históricos e que, ao mesmo tempo, atendessem as demandas de
crescimento das universidades federais no Brasil. Para além destas questões, encontramos
demandas internas de negociação política dentro da universidade no sentido de que os cursos
desocupassem seus antigos prédios (que faziam parte importante de sua história) para que os
mesmos fossem ressignificados como espaços de memória e de conhecimento para toda a
sociedade. Os desafios eram grandes e não foram superados, ficando o Projeto de Implantação
de Museus da UFRGS desconhecido da comunidade acadêmica e abandonado pelas
administrações seguintes.
Entre 1992 e 1996 assume a reitoria o Prof. Hélgio Trindade. Cientista político tem
uma proposta de “universidade por inteiro” e assume com um grupo preocupado em
modernizar e ampliar o papel da universidade frente a comunidade. Neste período são criadas
várias instâncias importantes de discussão acadêmica e ocorre uma ampliação da ideia de
extensão destacando-se os projetos de atuação junto com as comunidades. No entanto, o
Núcleo de Documentação e Memória Social e o Museu Universitário passam por
questionamentos em relação ao seu papel frente a universidade, finalizando com a extinção do
referido Núcleo e com a incorporação do acervo e funcionários do Núcleo ao Museu
Universitário. Em 1994 o Museu Universitário adquire um novo perfil, incorpora um acervo e
o trabalho de suporte de ações documentais em que o Núcleo de Documentação e Memória
Social era referência como veículo de divulgação e informação de sua produção de pesquisa
no âmbito da memória da cidade de Porto Alegre, território cuja história é atravessada pela
fundação da UFRGS. Por outro lado, fica com a incumbência de atender prioritariamente as
demandas internas do público universitário em relação a eventos e exposições. O trabalho
suporte de ações documentais e museológicas aos diversos núcleos de pesquisa e museus

1145
setoriais da UFRGS, que já vinha sendo realizado, aparece agora como diretriz de trabalho do
Museu Universitário que assumiu um papel de espaço cultural responsável pela memória e
priorizando as atividades da instituição, atendendo também as demandas de eventos culturais
da universidade. A direção do Museu Universitário fica a cargo da Prof.ª Luiza Klieman,
vinculada ao Depto de História da UFRGS e com forte atuação em arquivos de pesquisa e
Museus em Porto Alegre. Segundo relatório de 1995, a equipe após discutir as prioridades e
finalidades do Museu, apresentou como proposta, trabalhar com a História e memória social
da UFRGS, interligada com a memória da cidade e do estado.
Em relação ao trabalho de suporte e assessoria aos outros Museus e Núcleos de
Documentação, o documento destaca a criação de um Sistema Integrado de Museus da
UFRGS. Aqui devemos ressaltar que o Rio Grande do Sul já possuía um organizado e
combativo Sistema Estadual de Museus, em atuação desde 1990, mas criado oficialmente em
21/01/1991, pelo decreto estadual n. 33.791. O Museu Universitário passa a frequentar as
reuniões da 1ª Região de Museus, localizada em Porto Alegre e dessa organização
museológica parece vir a ideia de Sistema Integrado de Museus da UFRGS, que passa a ser
uma das metas do Museu.
A partir de 1996, na gestão da então Reitora Wrana Panizzi (1996 – 2004), a questão
dos prédios Históricos da UFRGS é retomada, através do Programa Resgate do Patrimônio
Histórico. O Programa foi aprovado pelo PRONAC – Programa Nacional de Apoio á Cultura,
contando com financiamento baseado nas leis de incentivo fiscal com doações de recursos por
pessoas físicas e jurídicas.
Em 1997, o Museu Universitário agora tendo como diretor o Professor Francisco
Marshall do departamento de História, novamente tem o protagonismo frente a questão da
Memória, do Patrimônio Cultural universitário e da organização dos espaços de memória da
UFRGS através do Projeto de implantação do Centro de Memória e Documentação da
UFRGS – CEMEDOC. Elaborado em conjunto com grupo de estudos do Departamento de
História da UFRGS e professores do curso de arquivologia que ainda estava em fase de
implantação, da Faculdade de Ciências da Informação.
Através de projetos de pesquisa financiados pela FAPERGS – Fundação de Apoio à
Pesquisa do Rio Grande do Sul, o projeto foi responsável pelo levantamento preliminar da

1146
documentação de caráter histórico em situação de risco existente na universidade. Destacava a
importância do trabalho desenvolvido até então pelo Museu Universitário e pela Biblioteca
Central e alertava para a inexistência de uma política de preservação da memória
institucional. Segundo o Projeto os recursos desses dois setores eram limitados frente ao
montante da documentação em situação de risco pela precariedade de seu armazenamento ou
por estar em mãos de particulares.
Sobre a Memória, o projeto retomava e ampliava a discussão da memória social,
enfatizando que o trabalho seria com um horizonte de heterogeneidade documental e citava
como fundos documentais que seriam recuperados e produzidos coleções fotográficas,
correspondências administrativas ou oficiais, projetos e publicações de origens diversas.
Destacava a necessidade de registrar as memórias dos indivíduos e grupos que fizeram a
história da instituição. Aqui o projeto destaca a necessidade de um espaço de coleta e
disponibilização de depoimentos, com recursos adequados de áudio e vídeo e citava como
exemplo de trabalho o Museu da Pessoa, destacando o formato como um recurso com um
potencial ainda de todo não explorado.
O CEMEDOC ficaria localizado no prédio da Engenharia conhecido como Parobé,
integrante do conjunto dos prédios históricos e que no Projeto de Implantação de Museus
estava destinado a Biblioteca Central. Mais uma vez, com coordenação e protagonismo do
Museu se elabora um projeto visando recuperar e disponibilizar para o público em geral, a
memória e a produção científica da universidade retomando a questão da disponibilização dos
prédios históricos. Como metodologia salientava a iniciativa como inter e multidisciplinar,
delimitando as áreas da história e da museologia como curadoria, a biblioteconomia no
registro e tombamento, a arquivologia para o arquivamento e a informática para as necessárias
digitalizações e sistemas necessários. Propunha que a UFRGS implementasse a criação de um
Sistema de Arquivo e o CEMEDOC teria as atribuições de definição da política documental
da universidade. Indicava como fontes de financiamento as políticas em implementação na
época pela UNESCO e pelo ICOM. A desocupação do prédio pela faculdade de Engenharia
encontra uma série de resistências por parte da Escola e mais uma vez questões de
direcionamento de poder impedem o avanço do projeto e inviabilizam o projeto do
CEMEDOC. Mas um dos prédios priorizados na primeira parte da campanha de Recuperação

1147
dos prédios históricos é do “Curtume e Tanantes”40, localizado no Campus Central. O prédio
estava abandonado e interditado desde 1996 e, após o restauro e adaptação foi designado para
ser a sede do Museu Universitário.
Em agosto de 2002 três prédios históricos são reinaugurados e entregues para a
comunidade universitária e sociedade em geral em um grande evento amplamente noticiado
na mídia. A Rádio da Universidade, o Observatório Astronômico e um novo Museu para a
comunidade gaúcha, agora renomeado de Museu da UFRGS. A solenidade contou com a
presença de autoridades federais, estaduais e municipais, além da presença da comunidade
universitária e de Porto Alegre. Simbolizando a importância da relação da universidade com a
cidade, a solenidade aconteceu na frente do Museu, destacando a importância deste para a
universidade que o oferecia a comunidade como um todo. Simbolicamente as portas do
Museu foram abertas por todas as autoridades presentes e o Museu da UFRGS foi oferecido
oficialmente como um equipamento cultural novo, ressignificado para a sociedade.
O Museu da UFRGS abre suas portas em novo prédio com a mesma proposta de
trabalhar com a Memória social da UFRGS e a exposição elaborada pela equipe é com o
acervo Histórico da Pinacoteca Barão de Santo Ângelo do Instituto de Artes. O acervo é
documentado, são restauradas as obras que precisavam de cuidados e é providenciado o
seguro das obras mais significativas da Pinacoteca. Um catálogo é elaborado e lançado com
toda a documentação.
Em relação as exposições, o Museu da UFRGS nunca contou com uma exposição de
longa duração de seu acervo. Desde sua origem já realizou aproximadamente 154 exposições
(levantamento de dados de agosto de 1984 a março 2017), que abordaram diversas temáticas e
articularam acervos oriundos de coleções de unidades acadêmicas, institutos, núcleos de
pesquisa, laboratórios de ensino, bibliotecas, herbário e demais museus universitários da
UFRGS. Destacamos que, ao integrarem uma exposição em um Museu centralizado, com
projeto educativo amplo, os acervos são ressignificados, articulados e ampliados em suas
possibilidades de pesquisa, ensino e extensão, e estabelecem relações com a comunidade

40
Prédio em construído em 1910/1914 para ser o Laboratório de Resistencia de Materiais da Escola de
Engenharia. Ocupado desde 1980 pela Engenharia Química com o laboratório de couros, conhecido como
Curtume e Tanantes.

1148
interna e externa a universidade, que passa a buscar e solicitar informações, demandas e
visitas a seus museus e coleções.
Os projetos para as exposições são construídos em parceria e diálogo entre a equipe de
pesquisadores/curadores e a equipe do Museu, resultando assim em exposições elaboradas e
realizadas dentro da universidade, envolvendo diversas áreas acadêmicas, utilizando os seus
recursos intelectuais, materiais e profissionais/técnicos disponíveis na UFRGS. A equipe do
Museu sempre integra a curadoria no sentido de construir exposições e projetos educativos de
caráter interdisciplinar e intercultural onde diferentes áreas do conhecimento possam compor
uma narrativa museológica acessível a variados públicos, visando difusão do conhecimento
científico, o acesso, conhecimento e proteção do patrimônio cultural, a educação continuada,
a inclusão social, a construção da cidadania e o lazer.
Destacamos o protagonismo do Museu da UFRGS nas diversas ações de articulação,
gestão e preservação de acervos, memória e patrimônio cultural da universidade. Os acervos
ressignificados e articulados nas exposições e projetos educativos possibilitaram a
organização, a reorganização e o estabelecimento de novas perspectivas museológicas para os
outros museus e acervos da UFRGS. Ao estabelecer diálogos, projetos e conexões entre os
espaços de memória, o Museu da UFRGS torna-se o articulador da REMAM – Rede de
Museus e Acervos da UFRGS, oficialmente criada e institucionalizada em 2011.

Sobre a REMAM – Rede de Museus e Acervos da UFRGS


Definida como uma reunião articulada estre os espaços coletivos de memória que
abriguem bens culturais tangíveis e intangíveis, numa relação de cooperação e solidariedade,
a REMAM tem por finalidade a consolidação de uma política de gestão de acervos científicos
culturais e a integração dos espaços de memória da UFRGS como forma de potencializar a
valorização desse patrimônio. Sem deixar de lado a formalização e a institucionalização
necessárias para nossos atingir os objetivos, o caráter pretendido para esta forma de
organização é o da democratização, cooperação e horizontalidade entre os membros. Nesse
sentido é voluntaria a adesão dos espaços de Memória a Remam. Atualmente estão
cadastrados 29 membros. São espaços distintos como Museus, Memorial, Arquivo Histórico,
Planetário, Herbário, Observatório Astronômico, acervos de pesquisa e ensino variados.

1149
A adoção de sistemas em rede tem como objetivo fortalecer e valorizar as práticas, as
ações de pesquisa, documentação, preservação e socialização do patrimônio. Considera-se que
uma rede é mais do que o somatório de seus membros, pois se constitui num sistema sinérgico
que potencializa o conjunto de suas ações.
Nessa perspectiva a REMAM visa incentivar e qualificar a atuação museológica,
ressaltando a valorização do patrimônio da UFRGS, atuando como aglutinadora dos
diferentes espaços de memória da universidade, fomentando a articulação entre os mesmos,
de modo a favorecer a mediação, a parceria, o intercâmbio de informações e a formação
profissional de seus membros. Tem a coordenação do Museu da UFRGS que, como
procuramos demonstrar, desde sua criação em 1984 vem articulando os acervos e a memória
da universidade. Entretanto, de acordo com as características de uma rede, o que se busca é a
atuação integrada dos membros, sem hierarquização. Assim, as decisões são tomadas de
forma democrática no Fórum REMAM, caracterizado por encontros mensais nos quais todos
os membros são convidados a participar. Além disso a metodologia de organização em grupos
de trabalho, busca potencializar a agilidade das ações e favorecer o caráter cooperativo.
Finalizando, entendemos que os museus, arquivos, bibliotecas, núcleos de pesquisa e
demais espaços de memória, membros da REMAM, expõem e guardam em seus acervos além
de artefatos materiais, os projetos, as ideias, os sonhos e as decepções de docentes, discentes e
técnicos, constituindo uma parte da história da universidade e do conhecimento científico
preservado para não ser esquecido, e, desta forma, gerar mais conhecimento. Como lugares
memória por excelência, são também lugares de pesquisa, lazer e fruição, encontros, debates,
resistências, discordâncias e aprendizagens.

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na Universidade de São Paulo? Tese de Doutorado apresentada à Escola de Comunicação e
Artes da USP, 2001. Disponível em: http://www.teses.usp.br. Acesso em 27/06/2011.

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http://revistas.ulusofona.pt/index.php/cadernosociomuseologia/. Acesso em 27/06/2011.

1150
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CHAGAS, Mário de Souza (org.) Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. n.
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. Há uma gota de sangue em cada museu: a ótica museológica de Mario de


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museologia. In: http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/7644.pdf. Acesso em março 2015.

HERNÁNDEZ, Hernández Francisca. Manual de la Museologia. Madrid, Editorial Síntesis,


1994.

RAMOS, Francisco Régis Lopes. A danação do objeto: o museu no ensino de história.


Chapecó: Argos, 2004.

RIBEIRO, Emanuela Souza. Museus em Universidades Públicas: entre o campo cientifico, o


ensino, a pesquisa e a extensão. In: Revista Eletrônica.
MUSEOLOGIA&INTERDISCIPLINARIDADE. Vol. II, n. 4, maio junho de 2013.
Acesso em 09 outubro de 2015.

RIBEIRO, Maria das Graças. Universidades, museus e o desafio da educação, valorização e


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Sepúlveda. Rio de Janeiro, Garamond, MINC – IPHAN-DEMU.2007.

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2013. Disponível em: http://www.seer.ufu.br/index.php/emrevista/issue/view/1016

SANTOS, Maria Célia T. Moura. Museus Universitários Brasileiros: novas perspectivas.


Texto apresentado no IV Encontro do Fórum Permanente de Museus Universitários e II
Simpósio de Museologia na UFM “Museus Universitários – Ciência, Cultura e
Promoção Social”, realizado em Belo Horizonte – MG, no período de 24 a 28 de agosto de
2006. Disponível em http://www.icom.org.br acessado em 01/10/2010.

1151
MUSEUS E COLEÇÕES EM REDE: A REMAM/UFRGS

Cidara Loguercio Souza*


Claudia Porcellis Aristimunha*
Eliane Muratore*
Lígia Ketzer Fagundes*
*Museu da UFRGS

Resumo: A Universidade Federal do Rio Grande do Sul institucionalizou a Rede de Museus e


Acervos Museológicos da UFRGS - REMAM, em 07 de dezembro de 2011. Definida como uma
“reunião articulada entre os espaços coletivos de memória, que abriguem bens culturais tangíveis e
intangíveis, numa relação de cooperação e de solidariedade”, esta Rede, coordenada pelo Museu da
UFRGS, tem por finalidade a consolidação de uma política de gestão de acervos científico-culturais e
a integração dos espaços de memória da UFRGS como forma de potencializar a valorização desse
patrimônio. A REMAM é resultado de diversas iniciativas de articulação dos espaços de memória da
UFRGS ao longo do tempo. Nasce, portanto, de forma consistente e num momento propício para a
área, com o compromisso de enfrentar desafios de construção e consolidação de uma política de
acervos museológicos na universidade. A adesão dos espaços de memória da UFRGS à Rede de
Museus e Acervos Museológicos é voluntária. Até o presente momento, a REMAM conta com 29
membros. São espaços muito diferentes entre si, tanto pelas áreas de conhecimento que abrangem
quanto por sua origem, configuração atual e necessidades. Este trabalho apresenta o processo de
construção dessa relação entre os diferentes e as implicações deste fazer coletivo, permitindo
constantes trocas entre colegas servidores, sejam docentes ou técnicos, e um campo de atuação
complementar na formação de estudantes em diferentes áreas do conhecimento. Os resultados, mesmo
parciais, já indicam que estamos no caminho certo: a articulação em rede congrega contribuições
complementares e traz benefícios a todos.

Palavras-chave: Museus Universitários; Redes; Patrimônio; Coleções.

1152
Abstract: The Federal University of Rio Grande do Sul institutionalized the Network of Museums and
Museological Collections of UFRGS - REMAM, on December 7, 2011. Defined as an "articulated
meeting between collective spaces of memory, housing tangible and intangible cultural assets, in a
relationship of cooperation and solidarity, "this Network, coordinated by the Museum of UFRGS,
aims to consolidate a policy of management of scientific and cultural collections and the integration of
memory spaces of UFRGS as a way to enhance the value of this patrimony. REMAM is the result of
several initiatives for articulating UFRGS memory spaces over time. It is born, therefore, in a
consistent way and at a propitious moment for the area, with the commitment to face challenges of
construction and consolidation of a policy of museum collections in UFRGS. The adhesion of the
spaces of memory of the UFRGS to the Network of Museums and Museological Collections is
voluntary. To date, REMAM has 29 members. They are very different spaces between them, both by
the areas of knowledge they cover as well as by their origin, current configuration and needs. This
work presents the process of building this relationship between the different and the implications of
this collective doing, allowing constant exchanges between colleagues, whether teachers or
technicians, and a complementary field of action in the training of students in different areas of
knowledge. The results, even partial ones, already indicate that we are on the right track: the network
articulation brings complementary contributions and brings benefits to all.

Key-words: University Museums; Networks; Patrimony; Collections.

1153
INTRODUÇÃO

É um sistema de nós interligados. E os nós são, em linguagem formal,


os pontos onde a curva se intersecta a si própria. As redes são
estruturas abertas que evoluem acrescentando ou removendo nós de
acordo com as mudanças necessárias dos programas que conseguem
atingir os objetivos de performance para a rede. (Manuel Castells,
2006).

A epígrafe acima, de certa forma, nos inspira para a realização deste artigo, bem como
para reforçar a ideia de que a Rede de Museus e Acervos Museológicos da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (REMAM/UFRGS) é uma instância de trocas, de
estabelecimentos de parcerias, de mudanças, de novas inserções. Inspira, também, para
continuarmos nos dedicando para o êxito destes projetos em rede de nós, cuja interconexão
está relacionada à horizontalidade, propiciando a dinamicidade das ações desenvolvidas.
Manuel Castells (2006) propõe um modelo cultural de relações sociais embasados em
redes, cuja estrutura básica é constituída por nós conectores, incentivando desta maneira, o
fluxo de mensagens e imagens. Estas relações sociais acabam por interferir na profunda
modificação da sociedade a partir do início do século XX. Percebe-se uma mudança para
além da parte operacional, ou seja, ocorrem transformações, também, nos processos de
produção, poder e cultura.
Os Museus e espaços de acervos e memórias não poderiam ficar alheios a estas
mudanças. Além disso, a articulação em rede acaba beneficiando as diferentes instituições
e/ou setores envolvidos quer seja na captação de recursos, como na divulgação e, também,
para o fortalecimento do poder de barganhar por causas inerentes a estas organizações
museais.
Não podemos deixar de mencionar que nos últimos anos passou-se a desenhar um
novo cenário para o setor museal em nosso país, e, consequentemente, para o patrimônio e a
memória. As principais iniciativas nesse sentido foram: a Lei nº 11.904/200941, que institui o

41
BRASIL. Lei n. 11.904, de 14 de janeiro de 2009a. Institui o Estatuto de Museus e dá outras providências.
Disponível em: <http://www.museus.gov.br/IBRAM>. Acesso em: 04 de novembro de 2011

1154
Estatuto de Museus; a Lei 11.906/2009b42, que cria o Instituto Brasileiro de Museus –
IBRAM; e o Decreto n° 5.264/200443, que institui o Sistema Brasileiro de Museus – SBM.
Todas estas iniciativas são decorrentes da Política Nacional de Museus44 lançada pelo
Ministério da Cultura em maio de 2003, que estabelece as bases políticas do governo federal
para o setor. Esse processo culmina com o Plano Nacional Setorial de Museus (PNSM) 45, que
organiza, estrutura e viabiliza tais políticas para a década de 2010-2020.
Uma das principais consequências dessa política pode ser sentida pela adoção de
novas formas de fomento voltadas para as práticas museais através de editais lançados por
órgãos públicos e de fomento. Outro resultado fundamental foi o surgimento de novos cursos
de graduação em Museologia nas universidades públicas federais, inclusive na UFRGS.
A ideia de “rede” foi gestada pelo Museu da UFRGS em diferentes momentos com
vistas ao enfrentamento dos problemas relativos à memória e patrimônio na UFRGS e, com a
criação do Curso de Museologia em 2008, ganhou mais um forte aliado. A REMAM, com a
atual configuração, nasce em 2011 de forma consistente e em meio a esse contexto, com o
compromisso de enfrentar enormes desafios de articulação e consolidação de uma política de
acervos museológicos na UFRGS. O Curso de Museologia integra a REMAM junto com os
demais representantes dos espaços membros.
Outras experiências de articulação em rede, inclusive em universidades, já haviam
sido implementadas com características diversas. Por outro lado, inspiradas nas iniciativas
anteriores, diferentes propostas de atuação coletiva vêm sendo adotadas.
Nossa intenção com este artigo é compartilhar as experiências vivenciadas na UFRGS
com a criação da REMAM.

42
BRASIL. Lei n. 11.906, de 20 de janeiro de 2009b. Cria o Instituto Brasileiro de Museus – IBRAM.
Disponível em: <http://www.museus.gov.br/legislacao/lei-n-11-906-de-20-de-janeiro-de-2009-2/>. Acesso em:
04 de novembro de 2011.
43
BRASIL. Decreto n. 5.264, de 5 de novembro de 2004. Institui o Sistema Brasileiro de Museus e dá outras
providências. Disponível em: <http://www.museus.gov.br/sbm/sbm_decreto.htm>. Acesso em: 04 de novembro
de 2011.
44
MINISTÉRIO DA CULTURA. Política Nacional de Museus: Memória e cidadania. Brasília: 2003.
Disponível em: <http://www.museus.gov.br/publicacoes-e-documentos/politica-nacional-dos-museus/> Acesso
em: 04 de novembro de 2011.
45
MINISTÉRIO DA CULTURA. Instituto Brasileiro de Museus. Plano Nacional Setorial de Museus (PNSM).
Brasília: 2010. Disponível em: <http://www.museus.gov.br/wp-content/uploads/2011/05/pnsm2.pdf>. Acesso
em: 04 de novembro de 2011.

1155
CRIAÇÃO, TRAJETÓRIAS, CONSTITUIÇÃO E OBJETIVOS DA REMAM-UFRGS
A elaboração do Programa “Rede de Museus da UFRGS”, proposto pelo Museu da
UFRGS, fomentando a criação da REMAM, é resultado de diversas iniciativas de articulação
dos espaços de memória da UFRGS ao longo do tempo. Assim, após ampla discussão, a
REMAM nasce com o compromisso de enfrentar os desafios de construção e consolidação de
uma política de acervos museológicos nesta universidade.
Conforme a Portaria de sua criação, a REMAM é coordenada pelo Museu da UFRGS,
chamado anteriormente de “Museu Universitário”. Entretanto, de acordo com as
características de uma rede, o que se tem almejado é a atuação integrada dos membros, sem
hierarquização. Dessa forma, as decisões da REMAM são tomadas de forma democrática em
encontros periódicos, a que todos os membros são convidados a participar. A metodologia de
atuação por meio de grupos de trabalho busca potencializar a agilidade das ações e favorecer
o caráter cooperativo, próprio do sistema de organização em rede. Dessa forma, todo o
processo de elaboração, criação e efetivação da Rede de Museus e Acervos Museológicos da
UFRGS tem propiciado ricas experiências a todos os envolvidos.

Figura 1: Fachada Museu da UFRGS.

Fonte: Acervo Museu da UFRGS.

1156
Em 2017, a REMAM já se encontra estruturada com 29 espaços cadastrados.
Observamos que, passada a fase inicial de cadastramento, organização e articulação dos
espaços já existentes, outras demandas vêm aparecendo. Ao longo de 2016 tivemos o
cadastramento e organização de três novos espaços, envolvendo o reconhecimento de seus
acervos, a participação nas reuniões e a demanda por organização dos acervos.
Entre 2011 e 2016 a REMAM foi organizada em três grupos de trabalho (GTs) – GT
Projetos; GT Educação e Comunicação e GT Convênios – que, em funcionamento, foram
responsáveis por propor e realizar diferentes ações no sentido de estruturação e fortalecimento
da ideia de trabalho em rede.
O GT Projetos discutiu, elaborou e submeteu um projeto ao Prêmio Modernização de
Museus – Microprojetos 2012, do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), com execução em
2013-2014, onde foi aprovado e contemplado com financiamento, obtendo pontuação
máxima. Esse projeto privilegiava a divulgação dos espaços membros da REMAM através de
placas de sinalização para colocação nos campi com a localização dos espaços possuidores de
acervos, placas para indicação do próprio espaço pertencente à Rede e impressão do “Guia
REMAM 2012-2014” disponível até então somente no formato virtual.
As contribuições do GT Educação e Comunicação, conforme prioridades estabelecidas
pela Rede, foram direcionadas para as questões de visibilidade da REMAM. Nesse sentido, o
GT propôs e coordenou a criação do logotipo da rede, que foi elaborado pelo estagiário do
Museu da UFRGS, Carlos Eduardo Galón, arquiteto e estudante de artes visuais. A proposta
foi apresentada em 30 de novembro de 2012 aos membros da Rede, explicitando os conceitos
que originaram a figura da mandala. Muito elogiada, a proposta foi aprovada por todos os
participantes, passando a ser adotada no início de 2013. Além disto, o GT coordenou a
elaboração e disponibilização virtual de um informativo da REMAM, reunindo dados e ações
dos diferentes espaços membros. Esse material, com projeto gráfico de Frederico Lisboa,
aluno do curso de Publicidade e Propaganda e estagiário de Comunicação do Museu da
UFRGS, está disponível na internet através do link
http://issuu.com/ufrgsmuseu/docs/remamcatalogo.

1157
Figura 2: Logotipo da REMAM.

Uma das principais ações do GT Convênios foi propor discutir e elaborar, junto com a
Coordenação, a ampliação e adequação para renovação do termo de cooperação entre
REMAM e Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST), anteriormente restrito, no
âmbito da UFRGS, ao Observatório Astronômico.
Não obstante, a busca pela institucionalização e formalização, o caráter pretendido
para esta forma de organização articulada é o da democratização, cooperação e
horizontalidade, não visando à fiscalização e nem a normatização engessada. Nesse sentido, a
adesão dos espaços de memória da UFRGS à Rede é voluntária. A solicitação deve ser feita
mediante envio de formulário específico à Coordenação da Rede, responsável por analisar sua
pertinência. Até o presente momento, integram a REMAM vinte e nove membros. São
espaços muito diferentes entre si, tanto pelas áreas de conhecimento que abrangem quanto por
sua origem, configuração atual e necessidades. São museus, inclusive virtuais; memoriais;
planetário; observatório astronômico; herbário; arquivo histórico; centro de memória; acervo
constituído por núcleo de pesquisa; acervo constituído pelas experiências de ensino; acervo
constituído a partir dos fluxos organizacionais de setores da administração central da
Universidade; entre outros.
Alguns membros contam com o reconhecimento e o apoio das direções e comunidades
acadêmicas de suas unidades. No entanto, a maioria se mantém pela dedicação abnegada de
alguns docentes ou técnicos, mesmo que de forma voluntária. Outros acervos, em que pese
sua importância histórica ou científica, ainda correm o risco de desaparecimento. O quadro
abaixo é um demonstrativo dos espaços que aderiram a REMAM. Mostra, ainda, a Unidade a
qual pertence cada um dos espaços:

1158
Museu da UFRGS Pró-Reitoria de Extensão
Planetário Professor José Batista Pereira Pró-Reitoria de Extensão
Museu da Informática Instituto de Informática
Museu de Topografia Prof. Laureano Ibrahim Instituto de Geociências
Chaffe
Museu de Mineralogia e Petrologia Luiz Englert Instituto de Geociências
Museu de Paleontologia Instituto de Geociências
Observatório Astronômico da UFRGS Instituto de Física
Acervo Museológico dos Laboratórios de Instituto de Física
Ensino de Física
Arquivo Histórico do Instituto de Artes Instituto de Artes
Setor de Acervo Artístico da Pinacoteca Barão Instituto de Artes
de Santo Angelo
Pinacoteca Barão de Santo Angelo Instituto de Artes
Museu Virtual do Sintetizador Instituto de Artes
Museu Moda & Têxtil Instituto de Artes
Centro de Memória do Esporte Escola de Educação Física
Herbário ICN Instituto de Biociências
Museu de Ciências Naturais do CECLIMAR Instituto de Biociências
Museu da Genética Instituto de Biociências
Memorial da Imigração e Cultura Japonesa da Instituto de Letras
UFRGS
Museu Claudio Job Faculdade de Odontologia
Acervo Histórico da SUINFRA SUINFRA
Setor de Patrimônio Histórico SUINFRA
Museu do Motor Escola de Engenharia
Arquivo Setorial da Faculdade de Farmácia Faculdade de Farmácia
Museu Universitário de Arqueologia e Etnologia Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Núcleo de Pesquisa em História Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

1159
Memorial da Faculdade de Agronomia Faculdade de Agronomia
Coleção Ornitológica de Rudolf Gliesch Faculdade de Veterinária
Memorial Medicina Faculdade de Medicina
Museu do Instituto de Química Instituto de Química

FÓRUM DA REMAM
O principal mecanismo de funcionamento da Rede é o Fórum. Esse Fórum realiza
reuniões ordinárias periódicas, às quais são convidados todos os espaços membros e, em
algumas ocasiões, convidados ou parceiros externos que tenham relação com a pauta
discutida naquele dia. Essa estrutura de organização e deliberação garante à Rede seu caráter
democrático e colaborativo. A proposta de pauta de cada encontro é elaborada pela
coordenação, considerando necessidades comuns e sugestões enviadas pelos diferentes
membros. A coordenação também se responsabiliza pelo envio do convite e pela articulação
da estrutura necessária à reunião.
Com o intuito de conhecer efetivamente todos os espaços que se disponibilizaram a
atuar conjuntamente, a coordenação da Rede organizava visitas técnicas nomeadas de
“Museus visitam Museus”. Nessas ocasiões, membros dos espaços da REMAM visitavam um
dos espaços, onde eram recebidos pelos seus responsáveis e/ou equipe, que apresentava o
acervo, os objetivos e o cotidiano de trabalho. As visitas permitiram o conhecimento e
reconhecimento dos espaços de memória da UFRGS e uma integração entre as equipes de
trabalho dos mesmos.
O Fórum reunia-se mensalmente em um lugar central. No entanto, devido às muitas
tarefas a serem desempenhadas pelos agentes dos diferentes espaços, não estava sendo
possível agendar as visitas técnicas aos espaços, tão elogiadas e imprescindíveis. Na busca de
uma solução, foi elaborada uma proposta que levasse em conta:
a) o conhecimento das realidades específicas de cada espaço membro, como forma de
fortalecer vínculos e potencializar ações de interação e colaboração;
b) a necessidade de divulgação da Rede e dos espaços de memória que a compõem, inclusive
em suas próprias unidades gestoras e comunidade acadêmica;

1160
c) a criação de estratégias que fomentassem a valorização da REMAM, dos espaços membros,
suas ações e acervos, com o reconhecimento de seu papel para a preservação, pesquisa e
disponibilização do patrimônio científico-cultural da Universidade e sua memória;
d) a otimização do tempo dispensado pelos agentes dos espaços às atividades da Rede.
Propusemos, então, que as reuniões mensais do Fórum fossem realizadas nos próprios
espaços membros em sistema de rodízio, articulando a reunião com a visita técnica. Um ponto
fixo da pauta de cada encontro seria a apresentação do espaço anfitrião aos demais
participantes. Além disso, sugerimos que a coordenação enviasse a cada reunião um convite
aos gestores das unidades em que se localizava o espaço anfitrião. A proposta foi aceita e
implementada, já tendo realizado encontros em diferentes espaços. Todas as visitas foram
com a participação dos diretores e equipe dos espaços membros.

ALGUMAS AÇÕES REALIZADAS

Encontros com museólogos convidados:


A REMAM convidou conhecidos museólogos para participarem de encontros com os
integrantes da Rede. O primeiro encontro foi com o museólogo e professor da Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) Mario Chagas e aconteceu como uma Roda de
Conversa, ao ar livre, integrando a programação do XIII Salão de Extensão da UFRGS. A
atividade aconteceu no dia 04 de outubro de 2012 e contou com a presença de muitos
integrantes da REMAM, sendo o debate acerca das redes de museus e organizações
museológicas.

1161
Figura 3: Roda de Conversa com museólogo Mário Chagas

Foto: Rafael do Canto

O segundo encontro aconteceu em setembro de 2013, com a presença da museóloga e


professora da Universidade de São Paulo (USP) Maria Cristina Bruno. A atividade integrou a
programação da 7° Primavera de Museus e estava intitulada “Museu, memória e patrimônio:
trajetórias da USP”.

Figura 4: Encontro Cristina Bruno com membros REMAM.

Fonte: Acervo Museu da UFRGS.

O terceiro encontro aconteceu com o Prof. Marcio Rangel, do MAST, em junho de


2015, por ocasião da exposição Coleções de Saberes: trajetórias de conhecimento na UFRGS

1162
quando foi celebrado o acordo entre a REMAM e o MAST, que abordaremos a seguir. Na
ocasião, para além do encontro com os membros da REMAM e da visita técnica ao
Observatório, ele ministrou a palestra “As Coleções de Ciência e Tecnologia no Mundo
Contemporâneo”.

Figura 5: Palestra Prof. Marcio Rangel em junho 2015.

Fonte: Acervo Museu da UFRGS.

Acordo de Cooperação com o Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST/MCT)


Em outubro de 2013 foi firmado um acordo de cooperação entre a UFRGS e o
MAST/RJ, dando continuidade e ampliando a abrangência ao acordo anterior que envolvia
apenas o Observatório Astronômico e a entidade carioca. Este acordo propicia a assessoria
técnica e teórica para a preservação dos acervos tridimensionais, especificamente
equipamentos científicos, sob a guarda dos espaços vinculados a REMAM e a formação
continuada de profissionais que atuam ou por ventura venham a atuar nestes espaços.
Em 2016 foi concluído o inventário do acervo do Observatório Astronômico,
considerado o Projeto Piloto de Inventários de Acervos no acordo com o MAST. Contou com
a participação de alunos estagiários do curso de Museologia, técnicos do Observatório e
museólogos da REMAM. Ainda restam etapas a serem concluídas, sendo uma delas a

1163
publicação do inventário realizado. O inventário e sua metodologia foram brevemente
apresentados aos demais espaços membros na última reunião da REMAM no ano de 2016.

Execução do Projeto contemplado pelo Prêmio Modernização de Museus -


Microprojetos 2012 (IBRAM/MinC).
A REMAM foi contemplada no edital com o prêmio Modernização de Museus -
Microprojetos 2012 IBRAM – com um projeto cujos objetivos eram os de dar visibilidade e
acessibilidade, bem como de divulgação dos espaços da REMAM para os públicos internos e
externos. A proposta previa a publicação de material gráfico de difusão e projeto de
sinalização no âmbito dos campi da UFRGS, dos espaços pertencentes à Rede. Obedecendo
ao Plano de Trabalho submetido ao edital, foi elaborado o “Guia REMAM 2012-2014” e
confeccionadas as placas de identificação e sinalização, ambos produtos lançados no Gabinete
do Reitor com a presença dos diretores das unidades e Administração Central, integrando a
programação da Semana Nacional de Museus.

Figura 6: Guia Remam 2012-2014.

Foto: Ramon Moser

1164
Figura 7: Cerimônia de lançamento dos produtos do Edital no gabinete do Reitor da UFRGS.

Foto: Frederico Lisboa.

A sinalização interna dos espaços, indicando que naquele local existe um setor ligado
à REMAM e, portanto, um espaço de preservação e guarda de patrimônio cultural, científico e
tecnológico, foi imediatamente implementada, ou seja, afixada em local visível na entrada ou
nas dependências de cada setor em questão. Posteriormente, em acordo com a Prefeitura
Universitária, foram colocadas as placas de sinalização nos campi, facilitando o acesso e a
informação ao público.

Figura 8: Exemplo de sinalização.

O Guia REMAM 2012-2014, teve seu lançamento e distribuição inicial integrando a


programação do UFRGS Portas Abertas, realizado no dia 19 de maio de 2014, sábado,

1165
quando a universidade recebe a comunidade tendo como prioridade os alunos, professores e
demais integrantes de escolas de ensino médio do estado. Foi igualmente distribuído entre
todos os espaços membros da REMAM, para o corpo docente e discente do curso de
Museologia, para as bibliotecas setoriais da UFRGS, bem como para outras instituições,
públicas ou privadas, que atuam na área do patrimônio. Parte da tiragem foi também enviada
às Coordenadorias Regionais de Educação do Rio Grande do Sul. Os exemplares restantes
ficaram no museu para serem distribuídos entre os visitantes e em eventos.

Ações diversas
Considerando os resultados positivos da atuação da REMAM, a coordenação da
mesma tem sido convidada a relatar a experiência de constituição desta forma de organização
por disciplinas e instituições universitárias ou não que desejam dar coesão e estabelecer
conexões cooperativas e colaborativas entre espaços de preservação e reafirmação das
memórias.
A Coordenação da Rede também centraliza as demandas por estagiários ou bolsistas
em cada um dos espaços membros, direcionando as vagas em consonância com a
programação do semestre dos cursos de Museologia, Pedagogia e História da UFRGS.
Portanto, a REMAM e cada um dos espaços que a constitui são também espaços de
aprendizagem teórica e técnica, objeto de pesquisa e de estudos de caso para diversas áreas do
conhecimento.

Exposição Coleções de saberes: trajetórias de conhecimento na UFRGS.

A UFRGS em 2014 comemorou seus 80 anos. Com este intuito, de apresentar, dar a
conhecer, refletir, discutir sobre as coleções existentes na UFRGS e destacar sua importância
ao longo da trajetória 80 anos, o Museu da UFRGS elaborou a exposição Coleções de
saberes: trajetórias de conhecimentos na UFRGS com os acervos dos membros da REMAM.

A exposição abordou, de forma articulada, as coleções existentes nos museus,


arquivos, bibliotecas, núcleos de pesquisa e demais espaços de memória que compõe a
REMAM, compreendidos como história da universidade e do conhecimento científico.

1166
Teve como objetivo refletir sobre essas coleções e o quanto, em sua diversidade,
formam um conjunto de artefatos, documentos e histórias que nos contam a origem, a
consolidação e a atualidade da Universidade tanto quanto como as ciências foram percorrendo
os “recantos” dessa instituição, por meio de seus artefatos científicos tecnológicos e/ou por
meio de sua produção teórica e institucional.

Apesar do Museu da UFRGS, ao longo de sua trajetória, ter concebido, sob a forma de
curadorias compartilhadas, exposições sobre os mais variados temas de todas as áreas do
conhecimento, foi a primeira vez que conseguiu envolver quase todos os setores que guardam
acervos da história da universidade em suas diversas Unidades Acadêmicas ou Setores da
Administração - de uma só vez - em uma única exposição.

Desta forma, para além de atuarmos cooperativamente, a exposição explicitou as


tramas que envolvem cada saber e que estão entrelaçadas “como uma rede”, ultrapassando os
limites disciplinares das ciências e aproximando-as da realidade cotidiana da sociedade como
um todo.

Figura 9: Exposição Coleção de Saberes – Vista Geral.

1167
Figura 10: Exposição Coleção de Saberes – Entrada.

Seminário Grandes Mestres dos Mestres da UFRGS


Como decorrência da articulação em rede para o reconhecimento, preservação e
divulgação do patrimônio científico e cultural da UFRGS e, mais precisamente como legado
da exposição Coleções de saberes: trajetórias de conhecimentos na UFRGS, surgiu o
Seminário Grandes Mestres dos Mestres da UFRGS: Lições de pioneirismo científico e
história das Ciências, Artes e Técnicas na UFRGS. O projeto, que está organizado em ciclos
com base nas áreas de conhecimento e contempla memórias vividas na e pela instituição.
O seminário tem como objetivo apresentar, homenagear e difundir as trajetórias de
grandes mestres que forjaram os alicerces de novas áreas, disciplinas ou até mesmo cursos na
universidade e vem sendo realizado desde 2015 em parceria com a Rede Episteme, Instituto
Latino-americano de Estudos Avançados - ILEA e a UFRGSTV.
No intuito de promover a interação entre os diferentes campos de saber, acervos e
metodologias de trabalho, o desenvolvimento deste programa também contribuiu para o
estreitamento de relações entre a Rede e a comunidade universitária e, em algumas ocasiões,
extrapolando os muros da universidade.
A realização deste projeto tem gerado um novo acervo que servirá tanto como registro
de memória da instituição quanto como fonte para futuras pesquisas, além de fomentar o

1168
sentido de pertencimento a uma comunidade e a uma história comum que ultrapassa a guarda
e preservação de objetos e prédios.

Considerações finais
Procuramos até aqui expor as atividades desenvolvidas e as implicações deste fazer
coletivo, permitindo constantes trocas entre colegas servidores, sejam docentes ou técnicos,
bem como a atuação qualificada dos estudantes da UFRGS, em diferentes áreas do
conhecimento.
Além destas ações internas, os membros da REMAM têm elaborado produções e
reflexões escritas sobre a atuação em rede que resultam em publicações e apresentações de
trabalhos em fóruns acadêmicos ou profissionais. As discussões internas no Fórum REMAM,
tem sido espaço de aprofundamento de temas como a preservação e a comunicação dos
acervos sob a guarda de tais espaços. Os resultados, mesmo parciais, já indicam que estamos
no caminho certo: a articulação em rede congrega contribuições complementares e traz
benefícios a todos.

Referências bibliográficas:

BONAFONT, Laura C. Redes de Políticas Públicas. Madrid: Centro de Investigaciones


Sociológicas, 2004.

BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Departamento de Assuntos Culturais. Instituto


Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais. Subsídios para implantação de uma política
museológica brasileira. Recife: MEC/DAC/IJNPS. 1976.

BRASIL. Ministério da Cultura. Política Nacional de Museus: relatório de gestão 2003-


2004. Brasília: MinC/Iphan/Demu. 2005.

BRASIL. Bases para a Política Nacional de Museus: Memória e Cidadania. Ministério da


Cultura, Brasília. 2003. Disponível em:
http://www.museus.gov.br/sbm/downloads/Pol%C3%ADtica_Nacional_de_%20Museus.pdf>
Acesso em: 15 abr. 2013.

CARVALHO, Ana Cristina Barreto. Gestão de Patrimônio Museológico: as redes de


museus. ECA/USP, São Paulo, 2008. (Tese de Doutorado)

1169
CASTELLS, Manuel. A era da informação: economia, sociedade e cultura. A sociedade em
rede. São Paulo: Paz e Terra. 1999.

GUIA REMAM 2012/2014: conhecendo os acervos e museus da UFRGS. Org:


LOGUÉRCIO, Cidara Souza; FAGUNDES, Lígia Ketzer; LEITZKE, Maria Cristina. Porto
Alegre, Museu da UFRGS, 2014.

TOLENTINO, Átila Bezerra. Governança em rede: o caso do sistema brasileiro de museus.


Revista CPC, São Paulo, n.16, p. 001-208, maio/out. 2013.

1170
O HERBÁRIO PROFª DRª MARLENE FREITAS DA SILVA (MFS) DA
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO PARÁ: DIÁLOGOS ENTRE CIÊNCIA,
UNIVERSIDADE E MUSEU

Thomaz Xavier Carneiro*


Flávia Cristina Araújo Lucas*
Manoel Ribeiro de Moraes Júnior*
Barbara Xavier Carvalho*

Resumo: É intrínseca a relação entre as origens dos museus e das coleções botânicas, que vieram a se
tornar os herbários contemporâneos. As origens da história natural e das suas disciplinas derivadas,
compondo a própria história da ciência, tem relação direta com a história dos museus e dos herbários.
Os museus universitários, mesmo contendo coleções memoráveis, algumas das mais antigas do Brasil
e do Mundo, padecem pela falta de valorização, visibilização e suporte das universidades às quais
estão vinculados. Herbários são espaços de preservação de espécimes vegetais reconhecidos no meio
científico por salvaguardar, pesquisar e comunicar o patrimônio natural botânico. O Herbário MFS
Profª Drª Marlene Freitas da Silva, da Universidade do Estado do Pará é constituído pela coleção de
exsicatas (e as coleções associadas de flores, frutos e sementes, e plântulas), fungos, briófitas e
biocultural. Relatam-se as atividades de conservação, documentação, pesquisa e comunicação do
acervo. O Herbário MFS é comprometido com ações de ensino, pesquisa e extensão. Herbários
abrigam o patrimônio científico brasileiro e devem se enxergar como espaços museológicos e lócus da
atuação teórica e prática dos profissionais de museu.

Palavras-chave: Coleções botânicas; museus e coleções universitários; museologia; cultura;


patrimônio.

Abstract: The origins of museums and herbaria are intertwined. Similarly, the evolution of natural
history and its derivatives, and thus of history of science itself, is also connected with the history of
museums and herbaria. University museums, which include some of the oldest museums in Brazil and
in the world, are institutions that in general lack valorization, visibility and support from their parent
universities. Herbaria are scientific institutions that safeguard, research and communicate the botanic
heritage. The Profª Drª Marlene Freitas da Silva (MFS) Herbarium of the State University of Pará is a
university herbaria formed by its dried plants collection (and the ancillary collections of flowers,
plants and seeds and seedlings) and the Fungi, Bryophytes and Biocultural collections. The curatorial,
research and communication activities of the collections are described. The MFS Herbarium is
committed to its educational, research and outreach missions. Herbaria are important agents of the
scientific heritage and must expand its self-identification as museum and culture spaces, and as such
locations of theory and practice of the field of museums and its workers.

Key-words: Botanical collections; museum; university museum; museum studies; culture; heritage.

1171
Coleções botânicas, herbários, jardins botânicos e museus: conceitos, origens,
aproximações e distanciamentos

A prática de coletar plantas remonta à antiguidade, fruto da associação da curiosidade


natural do homem quanto das necessidades de conhecer e fazer uso delas para sua
sobrevivência. Teofrasto, sucessor de Aristóteles em sua escola, escreveu “História das
Plantas”, escrito que posteriormente adentrou a Europa durante a Idade Média.
Posteriormente, com o advento das navegações e suas descobertas os “gabinetes de
curiosidades” de história natural se tornaram cada vez mais comuns (ARBER, 1912;
COWAN, 1973; NUALART, 2017). Com a renascença e as atividades universitárias na Itália,
Luca Ghini, professor de medicina e botânica da Universidade de Bologna, iniciou um grupo
de herbalistas catalogando plantas, principalmente seus aspectos medicinais e agronômicos,
fundou o primeiro jardim botânico do mundo moderno (o Orto botanico di Pisa, em 1544) e
iniciou a técnica da hortus siccus “jardim seco”, possibilitando o estudo e troca de exemplares
(ARBER, 1912; STACEY; HAY, 2004). Discípulos de Ghini, como Gherado Cibo,
expandiram e popularizaram as hortus siccus pela Europa, que se tornaram desejáveis objetos
nos gabinetes de curiosidades (ARBER, 1912; STACEY; HAY, 2004).

Carolus Linnaeus (1707–1778), naturalista sueco, conhecido como o pai da


“taxonomia moderna” (a forma como a ciência dá nome às espécies e as organiza), publicou
em 1751 o livro Philosophia Botanica, que usava em suas aulas na Universidade de Uppsala,
e que contém instruções cuidadosas de como plantas devem ser coletadas, secas, prensadas e
coladas em folhas de papel, e especificando: apenas um exemplar por página e sem costurar
as folhas (LINNÉ, 1751). A preparação de exsicatas (material botânico seco e montado em
papel) é realizada até hoje de maneira surpreendentemente similar (PEIXOTO & MAIA,
2013). Com essa descrição Lineu propunha um procedimento distinto ao em voga na época,
em que vários espécimes eram dispostos numa única folha e as folhas eram então costuradas e
armazenadas como livros (MÜLLER-WILLE, 2006). A modificação de Lineu foi decisiva: o
costume anterior fazia com que a ordem em que eram colocados os exemplares não podia ser
trocada sem destruí-los. Agora os exemplares podiam ser reorganizados à medida que o
conhecimento sobre a relação entre as espécies mudava. Passados 266 anos, os cerca de 3000

1172
herbários distribuídos ao redor do globo preservam mais de 380 milhões de espécimes
botânicos (THIERS, 2017).

Pode-se observar uma intrínseca relação entre as origens dos museus e das coleções
botânicas, que vieram a se tornar os herbários contemporâneos. Da mesma maneira, as
origens da história natural e das suas disciplinas derivadas, compondo a própria história da
ciência, tem relação direta com a história dos museus e dos herbários.

No Brasil, a história se repete: a origem dos herbários nacionais está intrinsecamente


ligada à história dos museus nacionais, tendo sido o Herbário do Museu Nacional (primeiro
museu do país, fundado em 1818) o primeiro a ter sido fundado, em 1831, pelo alemão
Ludwig Riedel; seguido pelo Herbário do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, iniciado em
1890 pelo seu então diretor, o naturalista brasileiro João Barbosa Rodrigues; e em seguida o
Herbário do Museu Paraense Emílio Goeldi (à época chamado de Museu Paraense), o terceiro
mais antigo herbário do Brasil e primeiro da região Norte (e primeiro jardim zoológico do
país e primeiro museu do Norte), fundado em 1895 pelo botânico suíço Jacques Huber
(ALVES et al., 2015; FORZZA et al., 2015; PEIXOTO et al, 2009; VIANA; ILKIU-
BORGES; SOTAO, 2015). A implantação do Herbário do Jardim Botânico do Rio de Janeiro
surgiu de demanda após relatório produzido por Rodrigues, que dizia:

O local conhecido pelo nome de Jardim Botânico não é actualmente mais


que um méro parque de recreio, não se encontrando ahi a menor base para
estudo, quando justamente esses estabelecimentos não são creados senão
para escolas praticas de historia natural, no ramo a que se destinam.
Necessidades palpitantes se offerecem, pois, a quem, como eu, foi
distinguido pelo governo com a honra de dirigir este estabelecimento.
(RODRIGUES, 1893a apud VALENTE et al., 2001).

1173
Museus e coleções universitárias

As universidades devem assumir o cuidado de seu patrimônio e promover a


proteção de seus bens culturais e de suas comunidades e territórios. Neste
contexto, os museus e coleções universitárias devem ser reconhecidos,
valorizados e apoiados, desde uma dimensão institucional, e particularmente,
pelas autoridades universitárias e seus órgãos de governo. Os museus
universitários devem gerar as condições para a construção do conhecimento,
para o estabelecimento de processos comunicativos e de gestão. Favorecer
redes de colaboração permanente em uma ampla diversidade de temáticas,
disciplinas e territórios. Carta de Intenção do VII Encuentro de Museos
Universitarios del Mercosur, realizado em Valdivia, 2016.

A princípio os museus e coleções universitários assemelham-se muito pouco. Alguns


preservam o conjunto artístico colecionado pela universidade ao longo dos anos; outros
objetivam acumular material para aulas; podem também apenas divulgar ciência, sem possuir
um acervo. Algumas universidades são antiquíssimas e seus museus e coleções surgiram de
forma natural com o passar do tempo, do acúmulo de reserva técnica e da relevância
arquitetônica de suas edificações, enquanto que para as universidades muito novas é
extremamente difícil incorporar exemplares de valor. Apesar de origens, coleções e propósitos
extremamente variados, os museus e coleções universitários possuem características comuns:
sua administração e gestão são providas pela universidade mãe; suas coleções e edifícios são
propriedade universitária; sua equipe é empregada pela universidade; e desta maneira eles
contribuem para o propósito da universidade (1993).

Essas características únicas, que trazem amplas possibilidades, como a própria missão
e razão de ser do museu, a integração com uma comunidade produtora de conhecimento, o
compartilhamento de infraestrutura e equipe, também trazem apreensões e desafios. Como
menciona Michelon (2014), é como se houvesse um “manto silencioso” que oculta esses
museus, resultado da majoritária inexistência de uma política das universidades para com os
seus patrimônios. Procurando uma resposta, a autora se pergunta: “Carecem os acadêmicos da
compreensão dos valores deste equipamento cultural? Carece a universidade, como

1174
instituição, de visão suficiente para ver as largas portas para o conhecimento que podem ter os
museus?”

A retomada de um grupo para debater as questões dos museus universitários, iniciada


durante o 7º Fórum Nacional de Museus em Porto Alegre, que mantenha a memória e
conquistas do Fórum Permanente de Museus Universitários Brasileiros, chega em boa hora e
já com muitas demandas.

Os Herbários no Brasil

O herbário contemporâneo é a coleção de plantas e fungos, ou partes desses,


armazenados, preservados e organizados cientificamente, e podem incluir além das já
mencionadas exsicatas, coleções associadas (como de frutos e sementes, plântulas e flores).
Os herbários realizam ações de salvaguarda, documentação, pesquisa e comunicação das suas
coleções, e exercem um papel fundamental como depositórios físicos e fontes de
conhecimento acerca da biodiversidade das plantas e do ambiente em que vivem, entre vários
outros papeis (PEIXOTO, Ariana Luna; MAIA, Leonor Costa, 2013; PEIXOTO et al.
VIEIRA, 2015).

Os herbários de todo o mundo, assim que superam o número de 5.000 espécimes,


podem fazer parte do Index Herbariorum, recebem um acrônimo único e passam a fazer parte
do diretório de herbários, acervos e curadores no mundo. No relatório de 2016, 2.962
herbários encontravam-se ativos, contendo 381.308.064 espécimes (THIERS, 2016). No
Brasil, o catálogo da Rede Brasileira de Herbários (RBH) registrou 200 herbários ativos e
mais de 8 milhões de registros para o conjunto dos acervos (GASPER; VIEIRA, 2015).
Apesar disso os dados revelam o menor número de herbários no norte do país (19) e a baixa
capacidade de fixação de botânicos na região, a mais biodiversa do mundo (VIEIRA, 2015).
Destes 19 herbários, 9 estão no estado do Pará, e destes 6 são herbários universitários.

Apesar da metodologia de coletar, prensar, secar e colar espécimes em folhas de papel


não ter se alterado muito com o tempo o seu uso mudou consideravelmente (NUALART,
2017), é necessário deixar de pensar os herbários como meras bibliotecas e sim considera-los

1175
como espaços científicos completos. Funk (2003) lista 72 possíveis usos para herbários,
adicionado aos usos básicos: história, saúde, usos educacionais e informativos, genética,
biogeografia, pesquisas a partir de dados de ocorrência, alterações de uso/cobertura vegetal,
descoberta de novas espécies (BEBBER, 2010), padrões de expansão de espécies invasivas,
conservação e áreas prioritárias e etnobiologia. CULLEY (2013) enfatiza a necessidade de
citar os vouchers nos artigos científicos sempre que possível, de forma a confirmar o valor
prático das coleções.

Também é fundamental advogar pela importância das coleções biológicas e dos


herbários, tanto no campo científico quanto na opinião pública, as pessoas necessitam
conhecer e proteger seus herbários e coleções. Universidades também precisam reconhecer,
valorizar e proteger os seus herbários. Estratégias como o INCT Herbário Virtual da Flora e
dos Fungos, do qual o Herbário MFS é integrante, que tem como missão prover à sociedade
em geral, ao poder público e à comunidade científica acesso público e aberto, integrando as
informações dos acervos dos herbários do país, se tornam fundamentais como políticas de
proteção aos herbários (MAIA et al, 2016). A integração dos dados dos herbários brasileiros
através de uma rede possibilitou ao Brasil possuir um herbário on-line com números
significativos, comparáveis aos grandes herbários do mundo.

Apesar das estreitas relações entre herbários e coleções biológicas e científicas e o


mundo dos museus, desde suas origens, observa-se hoje um profundo distanciamento entre
eles. Os cientistas, envolvidos em seus meios científicos e universitários e práticas
tradicionais, reconhecem os herbários e as coleções botânicas como lócus museológico e
espaços de patrimônio e cultura? E os estudantes e profissionais das áreas de museus, cultura
e patrimônio, entendem os herbários e coleções botânicas como lócus de pesquisa e trabalho?
Esta situação traz grandes prejuízos em sinergias, colaborações e possibilidades de pesquisa.

Na plataforma MuseusBR, diretório de informações sobre os museus brasileiros do


Instituto Brasileiro de Museus, 10 herbários (incluindo o próprio Herbário MFS) estão
cadastrados, evidenciando a possibilidade de auto-identificação dessas instituições como
museus.

1176
O Herbário Profª Drª Marlene Freitas da Silva da Universidade do Estado do
Pará: entre a salvaguarda, a pesquisa e a comunicação e o ensino, a pesquisa e a
extensão
O Herbário Profª Drª Marlene Freitas da Silva (MFS) foi criado no ano de 2011 na
Universidade do Estado do Pará (UEPA) a partir dos resultados obtidos com o projeto de
pesquisa “Coleção de frutos, sementes e plântulas amazônicas: conhecimento e valorização do
patrimônio genético natural”. A equipe de trabalho é formada pela sua criadora e curadora,
Profa. Dra. Flávia Araújo Lucas, Profa. Adjunto IV e vinculada ao Departamento de Ciências
Naturais do Centro de Ciências Sociais e Educação da universidade, um biólogo, discentes de
graduação e pós-graduação e diversos colaboradores.

No ano de 2014, o herbário recebeu aprovação do Conselho Universitário (CONSUN)


para sua institucionalização junto à Universidade através da resolução N° 887/2012
CONCEN/CCSE e tem como missão e visa ser um espaço didático-científico de pesquisa,
ensino e extensão, como um repositório do patrimônio natural e do conhecimento científico e
tradicional da biodiversidade amazônica.

O Herbário Profª Drª Marlene Freitas da Silva é indexado no Index Herbariorum com
o acrônimo MFS, homenagem à Drª. Marlene Freitas da Silva (1937-2005), importante
taxonomista da Amazônia especializada na família botânica Leguminosae (Fabaceae Lindl) e
fundadora do Departamento de Botânica do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia
(INPA), em Manaus.

As ações de salvaguarda são realizadas através da preservação e da documentação da


biodiversidade e dos usos tradicionais da interação sociedade-planta, especialmente na região
Amazônica. A gestão das coleções inclui a coleta de material, secagem, prensagem,
montagem, informatização e etiquetamento, além de tramitar os diferentes empréstimos e
intercâmbios com outros herbários e pesquisadores.

O acervo atualmente contabiliza cerca de 6.700 amostras de plantas desidratadas. A


base de dados do MFS já está informatizada e foi criada com o auxilio do sistema BRAHMS
(Botanical Research and Herbarium Management System) que gerencia a coleção principal
(exsicatas) e associadas (flores, frutos e sementes, plântulas). Um banco de imagens com

1177
cerca de 11.500 imagens também foi organizado. Nos parágrafos seguintes apresentamos as
coleções do Herbário MFS e suas práticas curatoriais. COSTA et al. (2014) destacam aspectos
das coleções associadas do Herbário MFS.

A coleção de exsicatas, tal qual como na quase totalidade dos herbários do mundo,
constitui o cerne do acervo. No herbário MFS as exsicatas são desidratadas em estufa e
coladas em papel cartonado (30 cm x 45 cm), possuindo uma etiqueta com todos os dados de
identificação do espécime e do ambiente em que foi realizada a coleta (Figs. 1A e 1B). O
armazenamento é realizado em armários compactadores especiais e controle ambiental
realizado através de controle da temperatura por refrigeração permanente e da umidade
através do uso de desumidificadores (Fig. 1C).

As exsicatas possibilitam a preservação das principais características do exemplar para


a posterioridade, e as poucas características que se perdem (coloração, odores, altura da
árvore, tipo de vegetação) devem ser anotadas em fichas e campo e então adicionadas às
etiquetas da exsicata. As exsicatas do Herbário MFS podem receber informações adicionais
relacionadas ao seu estado de conservação e informações bioculturais, como usos medicinais
e etnofarmacológicos pela comunidade em que foi coletada, contribuindo para a coleção
etnobotânica (NESBITT, 2014). O herbário MFS possui um espaço onde estão guardadas e
disponíveis para consulta, observação e visitação, as exsicatas de espécies que encontram-se
na Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas de Extinção, da União Internacional para a
Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais (IUCN).

1178
Figura 1: Coleção de exsicatas. 1A. Exsicata de Brugmansia suaveolens. 2B. Detalhe da etiqueta de
identificação, repare que a informação "Extinta na natureza", está anexada. 2C. Condicionamento das exsicatas
em pastas de gênero, separação de família em papel pardo e armazenamento em compactador.

A Espermateca e a Carpoteca são coleções científicas de sementes e frutos,


respectivamente (Figs. 2A e 2B). Trata-se de uma coleção associada/auxiliar à coleção de
exsicatas e formada por exemplares desidratados em estufa ou preservados em meio líquido
(álcool a 70% e glicerina). Com essa coleção é possível realizar diversas pesquisas em
diferentes áreas, para além da classificação das espécies, como conhecer a estrutura das
comunidades vegetais, pesquisas sobre frugivoria e dispersão e conservação e manejo.

As flores, como órgãos reprodutivos vegetais, são fundamentais para identificação das
espécies e fornecem maiores informações sobre os seus aspectos reprodutivos.
Frequentemente, por suas características e delicadeza, devem ser mantidas em meio líquido,
formando uma coleção associada/auxiliar à coleção de exsicatas, como ocorre no Herbário
MFS (Fig. 2C).

1179
A coleção associada/auxiliar de plântulas (Fig. 2D) é constituída de plantas colocadas
para crescer em diferentes estados de germinação, que é então interrompido e preservado,
com os exemplares mantidos em meio líquido (álcool 70% e glicerina). O seu estudo é
importante por combinar características da semente e do indivíduo adulto, fornecendo
numerosos indícios para a identificação das espécies no campo. O estudo morfológico de
plântulas também contribui em pesquisas morfoanatômicas e ecofisiológicas, com intuito de
ampliar o conhecimento sobre determinada espécie ou grupo taxonômico.

Figura 2. Coleções associadas ou auxiliares. 2A e 2B, coleções de frutos e sementes. 2C, coleção de flores. 2D,
coleção de plântulas.

O Herbário MFS possui ainda outras coleções temáticas ou seccionais. A micoteca


constitui um acervo de fungos e fungos liquenizados; abrange os macroscópicos
(principalmente Basidiomycetes) e liquenizados, desidratados em estufa, armazenados em
sacos pláticos tipo zip e envelopados em papel madeira (Fig. 3A e 3B). As amostras são

1180
acompanhadas de etiquetas com as informações taxonômicas, micológicas e os respectivos
dados ecológicos.

A coleção seccional de briófitas (brioteca) do Herbário MFS abrange exemplares e


parte do substrato que após a coleta, são desidratados sob o sol e armazenados em envelopes
feitos de papel madeira com área de 62 cm2 com as respectivas informações morfológicas,
taxonômicas e ambientais (Figs. 3C e 3D). As briófitas, conhecidas como musgos, são plantas
criptógamas avasculares, relativamente pequenas, comuns em ambientes úmidos, sombreados
e quentes e são importantes bioindicadores e fundamentais na sucessão ecológica.

Figura 3: Coleções temáticas/seccionais de Fungos e briófitas.

Coleções de Etnobotânica e Botânica Econômica são tradicionais entre herbários ao


longo do mundo, trabalhando com diversas definições específicas, mas centradas em objetos e
informações associadas que representem a relação entre os seres humanos e seu ambiente
vegetal, incluindo o seu valor histórico e cultural, manejos e usos econômico-sociais (tais
como usos industriais e medicinais). Hoje chamada de Coleção Biocultural, a Coleção
Etnobotânica do Herbário MFS é uma coleção temática/seccional que incorpora o conceito de
coleção biocultural, assim definida:

1181
Exemplares etnobiológicos, artefatos, documentos e informações associadas
(vegetais, animais e culturais) que representam as relações dinâmicas entre
comunidades, biota e os ambientes. Nesse campo dinâmico, as
transformações e associações são centrais. Falando de outra maneira,
coleções bioculturais são repositórios de plantas e animais usados pelo ser
humano, os produtos resultantes e/ou as informações e objetos culturais
relacionados. Incluem qualquer objeto feito de material biológico,
especialmente aqueles com conotações culturais específicas; objetos não
biológicos, mas usados no processamento desses materiais (por exemplo,
ferramentas); objetos usados em rituais espirituais ou religiosos associados à
processos biológicos; suas representações artísticas e artesanais; dados de
informações ou arquivos relacionados à cultura, linguagem, criação,
processamento e uso de um objeto biocultural (SALICK; KONCHAR;
NESBITT, 2014, p. 1).

As coleções bioculturais, portanto, salvaguardam os conhecimentos das inter-relações


entre o homem e a natureza, entre a diversidade biológica e cultural, que gradualmente vem
sendo perdidos (HART; WAYNE; WYSE, 2014). As exsicatas e outras coleções biológicas
podem dialogar com as coleções bioculturais de forma a contribuir na conservação cultural e
coleções bioculturais podem contribuir para a conservação biológica através da documentação
de tradições, práticas, conhecimentos e das diversas valorizações dos organismos biológicos
(BESBITT, 2014). Pode acrescentar que muitos destes objetos/produtos/plantas fazem parte
dos resultados dos projetos em etnobotânica desenvolvidos prioritariamente na região
amazônica. A Coleção Biocultural do Herbário MFS utiliza diversas práticas curatoriais,
relacionadas com a diversidade de objetos e informações salvaguardadas, abrangendo cinco
categorias baseadas no uso do objeto: artesanal, alimentício, medicinal, cultural, ritualístico
(Figura 4). O desenvolvimento desta coleção é fruto de projetos e investigações em
bioculturalidade e etnobotânica do herbário, que incluem expedições em campo desenvolvidas
prioritariamente em comunidades tradicionais amazônicas.

1182
Figura 4: Coleção biocultural do Herbário MFS da UEPA. 4C. Infraestrutura da coleção. 4B. Exemplares de
farinhas e exemplares medicinais. 4C. Exemplares de cuias com grafismos.

O acervo e sua documentação estão disponíveis e integrados a diferentes bases de


dados virtuais: sistema BRAHMS OnLine; SpeciesLink, do Centro de Referência em
Informação Ambiental (CRIA), vinculado ao INCT Herbário Virtual da Flora e dos Fungos;
Sistema de Informação sobre a Biodiversidade Brasileira (SiBBr) e Sistema Global de
Informação sobre a Biodiversidade (GBIF). Estas integrações, associadas a um site moderno,
atualizado e com versões em outros idiomas (disponível em https://paginas.uepa.br/herbario/),
que disponibiliza acesso ao acervo, suas documentações, fotografias, exposições e
publicações, formam um verdadeiro herbário universitário virtual, aproximando então o
Herbário MFS dos museus e coleções virtuais, promovendo a visibilidade institucional do
patrimônio natural universitário, socialização das informações à sociedade e à colaboração
científica e profissional (COSTA, 2016).

1183
Integrada com sua concepção e seio universitários, suas atividades de ensino são
realizadas através da interação permanente com os cursos de graduação da universidade, da
capital e do interior e de outras instituições de ensino superior, atuando como um espaço
formativo durante as disciplinas e de atuação via estágio. Alunos de pós-graduação são
orientados através dos Programas de Pós-Graduação em Ciências Ambientais do Centro de
Ciências Naturais e Tecnologia (CCNT) da UEPA, do Programa de Pós-Graduação em
Ciências da Religião do CCSE da universidade e do Doutorado em Biodiversidade e
Biotecnologia do Programa BIONORTE.

Indissociada do Ensino e da Extensão, e da Salvaguarda e Comunicação, as coleções


do herbário e suas atividades científicas são fontes contínuas de pesquisas realizadas pela sua
equipe e colaboradores, gerando artigos e outras publicações. Além de sediar um Grupo de
Pesquisa reconhecido pela universidade e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq), chamado de “Estudos Interdisciplinares em Botânica”,
liderado pela sua curadora, colabora com o grupo “Ciência, Tecnologia, Meio Ambiente e
Educação Não-Formal”, do Centro de Ciências e Planetário do Pará da universidade.

Os estudos na linha de etnobotânica e bioculturalidade do Herbário MFS têm sido


frutíferos e envolvem abordagens como o uso de espécies de interesse etnobotânico por
comunidades em reservas extrativistas (ROCHA; TAVARES-MARTINS; LUCAS, 2017) e
usos medicinais, ornamentais, ritualísticos e religiosos de plantas em quintais urbanos e
periurbanos (LOBATO; LUCAS; DE MORAES JUNIOR, 2017; PALHETA et al., 2017).
LUCAS; GURGEL & LOBATO (2017) traçam um panorama das pesquisas recentes em
etnobotânica da Amazônia.

As ações de comunicação do acervo dialogam com as atividades de extensão


universitária do Herbário MFS (processo educativo, cultural e científico que articula, amplia,
desenvolve e realimenta o ensino e a pesquisa e viabiliza a relação transformadora entre
Universidade e sociedade), responsabilidade de um herbário universitário, em que exposições,
ações educativas, eventos e projetos de extensão atraem públicos, aproximam a comunidade,
oferecem serviços e socializam pesquisas. LUCAS et al. (2017), em volume especial do

1184
periódico com o tema “Botânica e Sociedade – a Herbários e a divulgação científica”,
detalham e divulgam as diversas atividades de extensão exercidas pelo Herbário MFS.

O Herbário MFS da UEPA entende como fundamental oportunizar o acesso de suas


coleções à população interessada. Desta maneira, é possível agendar visitas para conhecer o
acervo ou então visitar as exposições temporárias ou permanentes realizadas fora de sede
(Fig. 5B). Dia 15 de maio de 2017, em comemoração à Semana Nacional de Museus, o
Herbário MFS da Universidade do Estado do Pará inaugurou a exposição permanente
“Bioculturalidade” no Centro de Ciências e Planetário do Pará (CCPP), Fig. 5A. A exposição
conjunta, possível através da parceria entre os dois espaços científico-educativos, permite
maior visibilidade e acesso público da população paraense à coleção biocultural do herbário
MFS. A partir deste contato o Herbário MFS passa a participar dos eventos do calendário do
Instituto Brasileiro de Museus.

As ações educativas, para além das práticas de mediação durante as visitas ao acervo
ou à exposição permanente no CCPP, compreendem eventos, oficinas ou minicursos que
oportunizam um maior contato entre a universidade e sociedade, disponibilizando materiais
biológicos do acervo para conhecimento e valorização de patrimônios naturais. A oficina
“Coleções Botânicas: Conhecimento e Valorização da Biodiversidade Amazônica” (Fig. 5C),
além de formação teórica, inclui a prática curatorial (incluindo a preparação de exsicatas e
documentação), gerenciamento e prática de campo. Além disso, são elaborados recursos
didáticos e informativos sobre a biodiversidade, que auxiliam as aulas de botânica na
educação básica e na graduação (programa Herbário Itinerante). Estes momentos promovem
intercâmbios com diversos públicos em diferentes idades: professores e alunos de escolas,
comunitários, acadêmicos da graduação e pós-graduação, técnicos, agricultores e
comunitários.

Os projetos desenvolvidos em comunidades localizadas na capital e no interior do


estado do Pará dialogam com a pesquisa, tendo como foco os modos de vida tradicionais
amazônicos formados a partir de construções históricas e repertórios valiosíssimos acerca dos
recursos vegetais, numa estreita relação entre cultura e natureza. Seguindo princípios éticos da
relação com o ser humano e com a natureza e suas devidas autorizações, os frutos dessas

1185
expedições podem ser observados através das coleções do acervo do herbário, seus bancos de
dados e produções técnico-científicas. Estes dados são coletados durante excursões de campo
a comunidades, ambientes naturais, feiras livres, mercados, quintais e parques públicos.
Abaetetuba (Ilhas e Quintais), Ilha do Combu em Belém, Capanema, Salvaterra, Soure,
Ourém, Altamira, Paragominas, Bujaru, Marituba, dentre outras regiões, são núcleos dessas
ações (Fig. 5D).

Figura 5: Comunicação e extensão. 5A. Exposição “Bioculturalidade” no Centro de Ciências e Planetário do


Pará. 5B. Visita didática à coleção. 5C. Oficina. 5D. Visitas à comunidades tradicionais.

O Herbário MFS da Universidade do Estado do Pará, um herbário novo em uma


universidade jovem (fundada em 1993) se vê à frente de diversos desafios: baixo
reconhecimento e valorização institucional pela universidade mãe, necessidade da criação do
cargo de curador para fins de carga horária, falta de investimento, recursos humanos, infra-

1186
estrutura e equipamentos, escassez de editais, necessidade de profissionais especializados em
sistemática e taxonomia, e ausência de recursos para as expedições de campo. Esses desafios,
compartilhados por outros herbários, museus e coleções ao redor do mundo em nada
diminuem a vontade da equipe em atravessá-los.

Conclusão

Através do diálogo e aproximações entre o mundo científico, suas coleções biológicas


e o universo museal, a valorização do patrimônio científico e o seu reconhecimento como
manifestação cultural, e os entendimentos das particularidades, demandas e desafios dos
museus e das coleções universitárias e dos herbários, procura-se socializar as práticas
curatoriais, atividades de ensino, pesquisa e extensão, e contribuir para a auto-identificação e
percepção por toda a sociedade que herbários pertencem ao universo dos museus e coleções,
estando com acesso livre à profissionais de áreas diversificadas do conhecimento.

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1190
ANÁLISE DE CONSERVAÇÃO PREVENTIVA EM ACERVO DIDÁTICO: UM
ESTUDO DE CASO NA SALA DO ACERVO DE FIGURINO DA ESCOLA DE
TEATRO E DANÇA DA UFPA

Stephanie Lins Campos Lobato*


Ezia do Socorro Neves da Silva**

Resumo: O presente trabalho é resultado da análise da sala onde está atualmente armazenado o acervo
de figurino da Escola de Teatro e Dança da Universidade Federal do Pará, atualmente coordenado pela
profª drª Ezia Neves. Utilizando métodos à luz da conservação preventiva, buscaremos apontar
soluções que viabilizem a prolongação da vida útil deste acervo.

Palavras-chave: Acervo didático; acervo têxtil; figurino; conservação preventiva.

Abstract: The present work is the result of the analysis of the room where the collection of costumes
of the School of Theater and Dance of the Federal University of Pará is currently stored, currently
coordinated by Prof. Ézia Neves. Using methods in the light of preventive conservation, we will seek
to point out solutions that allow the prolongation of the useful life of this collection.

Key-words: Didactic collection; textile collection; costume; preventive conservation.

1191
Um breve histórico

A Escola de Teatro e Dança da UFPA46, fundada em 6 de Maio de 1963, tem por


objetivo promover o ensino, pesquisa e extensão das artes cênicas, dança e cenografia no
Estado do Pará por meio dos cursos que se situam no âmbito da Educação,
respectivamente: Nível Básico – Ballet Clássico, Teatro Infanto juvenil e sapateado; Nível
Técnico e Tecnológico – Técnico em Ator, Técnico em Dança, Técnico em Cenografia e
Técnico em Figurino; Nível Superior – Licenciatura em Dança, licenciatura; Pós-graduação
– Cursos de Especialização; Programas de Formação – PARFOR e PRONATEC.

Anualmente, as disciplinas práticas de teatro e dança bem como os cursos básicos,


que demandavam a confecção de figurinos para apresentação de seus resultados, somou um
quantitativo considerável de peças que inicialmente ficavam postas em uma cabideiro,
dentro da sala 21, onde são ministradas aulas de cenografia. Após um período de reforma
na ETDUFPA houve a disponibilização de uma sala para ser o espaço de marcenaria47.
Entretanto, esta não apresentava condições espaciais e de segurança necessárias para
desenvolvimento dessas atividades, logo foi negociada para outra atividade. Com a criação,
em 2010, do Curso Técnico Experimental em Figurino (A partir de 2015 passa a ser o
Curso Técnico em Figurino Cênico) e tantos outros resultados de atividade em projetos de
pesquisa e extensão, o número de peças aumentaria a cada ano. A sala receberia o cabideiro
e todas as outras peças. Coordenado pela Prof.ª. Dr.ª Ezia Neves teríamos constituído, em
poucos anos, um valioso acervo; O Acervo de Figurino da Escola de Teatro e Dança da
Ufpa.

Traje de cena dá uma perspectiva muito maior ao traje usado nas artes
cênicas em geral, que podem envolver teatro, mímica, pantomima, circo,
cinema, teatro pós-moderno ou pós dramático, balé, performance, enfim,
todo e qualquer evento que contenha cena ou suas variantes. No Brasil tem-
se usado o termo figurino. (VIANA, 2015, p. 17.)

46
Sub-unidade do ICA- Instituto de Ciências da Arte da Universidade Federal do Pará, sediada atualmente na
Av. Jerônimo Pimentel, esquina com Tv. Dom Romualdo de Seixas – bairro Umarizal.
47
Trabalho de transformar madeira em um objeto útil ou decorativo. Atividade desenvolvida em algumas
disciplinas do curso técnico em cenografia.

1192
O acervo

- Portas de acesso.

Tratando-se de questões físico-espaciais, a sala possui uma localização preocupante.


Uma reserva técnica deve estar a uma distância segura de redes de esgoto, encanamentos,
entre outros. Neste caso, a sala que guarda o acervo está posta entre um banheiro, a sala 21,
que possui pias e tanques para lavagem de materiais, e a sala de lavagem, onde estão postas
três máquinas de lavar roupas, para as lavagens das peças do acervo. Isso provoca altos
índices de umidade bem como altos índices de alteração dessa umidade. Outra questão
também é que a sala comporta uma quantidade de peças muito maior do que a sua capacidade,
impossibilitando uma armazenagem mais adequada. A maioria das peças está posta em

1193
cabides por toda a extensão das paredes, ou em prateleiras de aço inox que ocupam o centro
da sala. Algumas peças estão protegidas por sacos plásticos ou guardadas em caixas de
papelão.
O espaço conta com uma central de ar condicionado. Este só é ligado no período em
que a professora responsável se encontra na instituição (manhãs de segunda a sexta), ou
quando alguém entra no acervo para pegar alguma peça, desligando-o logo em seguida. A
decisão de manter a central desligada ocorreu em decorrência de um curto circuito, e do risco
deste curto ocorrer novamente. Portanto, os altos índices, bem como as variações de
temperatura também são significativas. A iluminação da sala se dá por lâmpadas fluorescentes
sem filtro, que incidem diretamente sobre as peças. O acesso ao espaço se dá sob coordenação
da prof.ª Ézia, e por vezes, de algum outro professor, que necessite de alguma peça do acervo,
na ausência da professora.
Ao falar de um possível diagnóstico deste acerto, esses fatores não devem ser
ignorados e é necessário ressaltar que: 1. A sala, no qual este acervo se encontra, não foi
construída pra ser uma reserva técnica. Porém isso não impede que adaptações sejam feitas
para que este se torne um espaço mais apropriado para a armazenagem do acervo. Esta possui
poucas entradas de acesso (apenas uma porta é utilizada no momento), o que facilita no
controle das condições térmicas e dificulta o acesso de pragas provenientes do ambiente
externo, como roedores, insetos, etc. e 2. O acervo foi idealizado pra ser como uma coleção
didática. Este atende demandas distintas dos alunos. O circuito de empréstimos funciona
diariamente.
Para verificar as condições do espaço, foram feitas tiragens de temperatura e umidade
relativa, com um termo higrômetro48 no acervo e nas salas ao redor deste. No acervo foram
feitas tiragens de incidência de raios infravermelhos, sendo as fontes, as lâmpadas
fluorescentes. Para esta tiragem, foi utilizado um termômetro infravermelho.

48
O termo-higrômetro digital é um instrumento de medição das temperaturas interna, externa e da umidade
relativa do ar no ambiente onde trabalha. Possui também a capacidade de armazenar os respectivos valores de
máximos e mínimos alcançados ao longo de um período de tempo das temperaturas.

1194
AMBIENTE TEMPERATUR UMIDAD INSCIDÊNCIA DE
A INFRAVERMELH
E
RELATIV O

Acervo – Próximo à porta 28°c 63 % 16.7 %


Acervo – Centro da sala 23°c 65 % 16.7 %
Acervo – Fundo da sala 22ºc 66 % 16.7 %
Sala de lavagem – Med. I 30°c 72 % -
-
-
Sala de lavagem – Med. II 28°c 92 % -
-
-
Sala 21 28°c 82 % -
-
-
Banheiro do camarim 29°c 78 % -
-
-
Camarim 30°c 70 % -
-
-

As medições foram feitas nos seguintes horários: Acervo – Próximo à porta, centro da
sala e fundo da sala: às 16 horas; Sala de lavagem: A primeira medição foi feita às 13 horas, a
segunda, às 16h30min; Sala 21: às 13h40min; Camarim e banheiro do camarim: às 12horas.
A Umidade Relativa do ar indica a porcentagem da quantidade máxima de vapor de
água que o ar pode reter nesse momento. Por exemplo, se o ar retém apenas metade da sua
capacidade máxima, então a umidade relativa do ar é de 50%. A quantidade máxima de vapor
de água que o ar pode reter depende da temperatura e da pressão atmosférica do mesmo.
Desta forma, considerando a pressão atmosférica do ar constante, quanto mais quente o ar
estiver, mais água este será capaz de reter. Se a Umidade Relativa do ar for de 100% significa
que o ar está completamente saturado, não conseguindo reter mais água.

1195
A umidade absoluta do ar é quantidade de vapor existente no ar em massa de água por
massa de ar seco e contrariamente à humidade relativa não varia com a temperatura e pressão
atmosférica do ar. Os problemas causados pela umidade excessiva são vários. A umidade
pode causar o apodrecimento de materiais orgânicos (madeiras, papel, tecidos, couros, etc.), a
proliferação de microrganismos, curto-circuitos nos sistemas elétricos, ferrugem nas tubagens
e outros componentes metálicos, aglomeração de poeira, etc.
O bolor (mofo) e respetiva decomposição (putrefação) ocorrem em ambientes
húmidos, e podem resultar em danos significativos para os edifícios e materiais orgânicos
(papel, tecidos, quadros, madeiras, couros, etc.). Existe também o risco para a saúde das
pessoas que frequentam ambientes afetados pelo bolor. Se a humidade relativa exceder os
70%, o risco de aparecimento e crescimento de fungos torna-se elevado.
Os problemas de umidade surgem frequentemente quando o ar quente é arrefecido
bruscamente – como, por exemplo, no contato do ar quente com uma superfície fria
(envidraçado exterior ou ponte térmica). A diferença térmica existente entre o ar e essa
superfície pode originar condensações, que por sua vez, cria condições ideais para a formação
de fungos. A alta temperatura, as constantes variações de temperatura e umidade, e a
incidência direta de raios infravermelhos são fatores prejudiciais e proporcionam riscos à
acervos têxteis, como deterioração das fibras. Deve se dar atenção também ao método de
armazenagem. Plásticos costumam ser quimicamente instáveis e o papelão, por ser orgânico,
atrai pragas. Ambos são agentes de deterioração, seja física ou química, das fibras têxteis.

Algumas considerações
A partir de uma análise dos dados, o espaço não demanda de recursos viáveis para a
durabilidade do acervo. Porém, a quase 10 anos o acervo vem cumprindo a sua função,
servindo de suporte pra atividades práticas dos alunos e da comunidade da Etdufpa, seja para
atividades acadêmicas ou criações artísticas particulares dos alunos e professores.
Como possibilidades para melhorar as condições do espaço, sugere-se a criação de um
plano gestor (Indicações de medidas para prolongar a vida útil do acervo) que vise a
adaptação do espaço e dos procedimentos para empréstimos das peças do acervo. Estas

1196
indicações podem/ devem ser atendidas de acordo com a disponibilidade de recursos da
instituição:

- Reverter as paredes para evitar o contato direto das peças dispostas nos cabides com a
parede.
- Trocar as lâmpadas fluorescentes por lâmpadas de LED. A luz emitida pelos LEDs é fria
devido a não presença de infravermelho no feixe luminoso. Também não libera
radiação ultravioleta. Não utiliza mercúrio ou qualquer outro elemento que cause dano
à natureza. Se não for possível trocar as lâmpadas, criar filtros para evitar a incidência
direta dos feixes luminosos nas peças.
-Quanto à temperatura, deve se buscar estabilidade. Regular o horário de
funcionamento do aparelho de ar condicionado.
- Reduzir os índices de umidade fazendo a utilização de materiais como sílica gel em
todo o espaço do acervo. A sílica pode ser encontrada em várias versões, inclusive
reutilizáveis, e são matérias de baixo custo. Havendo a possibilidade da compra de
equipamento, a prioridade deve ser dada para um desumidificador.
- Trocar embalagens plásticas por embalagens de TNT branco. O TNT é um material
de ph neutro e na cor branca, possui menos adição de corantes.

- Trocar embalagens de papelão por embalagens de papel neutro ou de materiais


quimicamente estáveis, como polietileno. Esse material pode ser facilmente
encontrado desde em lojas especializadas à supermercados.

- Realizar inventariação de todas as peças, criar uma numeração especifica pra cada
peça. O número de cada peça deve ser gravado de forma permanente na mesma,
para viabilizar o reconhecimento das peças, quando estiverem fora do acervo.

- Criar uma ficha de empréstimo para cada peça, contendo no mínimo os campos:
Número (Numero de inventário da peça), Condições da peça (Um breve laudo sobre
as condições físicas da peça, se há rasgos, perda da cor, algum dano na peça. Caso
não haja, deve estar descrito na ficha); Solicitante (Nome de quem está emprestando
a peça); Data do empréstimo/ data de devolução (No formato dd/mm/aaaa);

1197
Observações (Descrever as condições que a peça está no momento do retorno). É
importante que as informações sejam mantidas, para poder haver um controle de
entradas e saídas das peças.

Nota
A dois anos, por iniciativa da profª Ezia, iniciou-se um processo de documentação
deste acervo. O objetivo principal é a seleção de peças para compor a coleção histórica do
acervo. As peças selecionadas (prioritariamente, as mais antigas e com maior relevância para
a história dos espetáculos criados pela escola) irão ser redirecionadas para outra sala e sairão
do circuito de empréstimos. Esta medida possibilitará que o acervo cumpra sua função
primária, bem como garanta maior segurança às suas peças históricas.

Referências bibliográficas
VIANA, Fausto; NEIRA, Luz García. Princípios gerais de conservação têxtil. Revista CPC,
São Paulo, n. 10, p. 206-233, maio/out 2010. Disponível em:
<http://www.usp.br/cpc/v1/imagem/conteudo_revista_conservacao_arquivo_pdf/09_10r18.pd
f>. Acesso em: abr. 2015.

VIANA, Fausto. O traje de cena como documento. São Paulo: Estação das letras e cores,
2015. 284 p.

Museu de Astronomia e Ciências Afins – MAST M986. Conservação de Acervos /Museu de


Astronomia e Ciencias Afins. Organização: Marcus Granato, Claudia Penha dos Santos e
Cláudia Regina Alves da Rocha. Rio de Janeiro: MAST, 2007. 205p. (MAST Colloquia; vol.
9)

ICA/UFPA/ETDUFPA. <http://www.ica.ufpa.br/>. Acessado em 7/abr/2017.


Laboratório de Iluminação. O que são LED’s. http://www.iar.unicamp.br/lab/luz. Acessado
em 2/abr/2017.

1198
COLEÇÃO QUADROS DE FORMATURA DO MUSEU DA UNIVERSIDADE
FEDERAL DO PARÁ (MUFPA): UM ESTUDO PELO PROCESSO DA
DOCUMENTAÇÃO PARA ACERVOS MUSEOLÓGICOS

Sandra Regina Coelho da Rosa*


*Universidade Federal do Pará (UFPA)
Rosangela Marques de Britto**
**Universidade Federal do Pará (UFPA)

Resumo: O trabalho de pesquisa da coleção dos quadros de formatura (períodos de 1906 a 1958), os
quais pertencem ao acervo do Museu da Universidade Federal do Pará (MUFPA) e do Instituto
Histórico Geográfico do Pará (IHGP), trata-se de uma coleção de construção artística que compõem a
cultura material da instituição. Sua materialidade transcende a presença física, pois fizeram e fazem
parte da história da Faculdade de Medicina e Cirurgia do Pará e da Faculdade de Direito do Pará.
Entretanto, o museu denomina estas peças de “placas” e esta atribuição de “Quadros de Formatura”,
assim como o seu tratamento com a Coleção, é uma atribuição do estudo. Este acervo composto de 17
(dezessete) quadros configura-se como objeto de sondagem desta pesquisa, visto que as obras ainda
não foram estudadas no contexto acadêmico paraense. Como instrumento metodológico da pesquisa
qualitativa, os procedimentos adotados a partir das teorias da documentação museológica gerou uma
Ficha de Arrolamento contendo número de ordem, termo/título, a classe e a subclasse de cada objeto.
Na sequência, a construção da Ficha Catalográfica, que dentre outras ações realizamos uma ampla
pesquisa sobre o acervo, a partir de uma abordagem individual de cada objeto. Essas informações
foram organizadas em: identificação do objeto; análise do objeto; conservação do objeto; notas;
reprodução fotográfica; e dados de preenchimento. O resultado da análise dos quadros de formatura
produzidos pelos desenhistas Manuel de Oliveira Pastana, Antonieta Santos Feio, Ernesto Lohse,
fotografias produzidas pelos ateliers Photographia Fidanza, Oliveira Pará e outros, proporcionaram
uma constatação de elos harmoniosos: de um lado, a fotográfica e a arte pictórica; do outro, a
ostentação por meio de elaborados quadros de formatura da renomada faculdade em relação à
sociedade paraense no cenário educacional.

Palavras-chave: documentação museológica; quadro de formatura; museu da UFPA.

1199
Abstract: The research work of the collection of graduation cadres (periods from 1906 to 1958),
which belong to the collection of the Museum of the Federal University of Pará - MUFPA and the
Historical Geographic Institute of Pará - IHGP. It is a collection of artistic construction that make up
the material culture of the institution. Their materiality transcends the physical presence, as they have
been and are part of the history of the Faculty of Medicine and Surgery of Pará and the Faculty of Law
of Pará. However, the museum calls these pieces of "plaques", this attribution of "Graduation
Pictures", As well as, its treatment with the Collection is an assignment of the study. This collection of
17 (seventeen) paintings is the object of this research, since the works have not yet been studied in the
academic context of Pará. As a methodological instrument of qualitative research, the procedures
adopted from the theories of museological documentation generated a Record of Record containing
number of order, term / title, class and subclass of each object. In the sequence, the construction of the
Catalog, which among other actions we carry out an extensive research on the collection, from an
individual approach of each object. This information was organized in: identification of the object;
analysis of the object; conservation of the object; grades; photographic reproduction; and registration
data. The result of the analysis of the graduation frames produced by the designers Manuel de Oliveira
Pastana, Antonieta Santos Feio, Ernesto Lohse, photographs produced by the Photographia Fidanza,
Oliveira Pará, and others ateliers provided a finding of harmonious links: side, photographic and
pictorial art; On the other, the ostentation by means of elaborate cadres of graduation of the renowned
faculty in relation to the Parana society in the educational scene.

Key-words: museological documentation; graduation board; museum of UFPA.

1200
Museu da Universidade Federal do Pará (MUFPA) e o estudo da documentação
museológica à coleção de quadros de formatura
O Museu da Universidade Federal do Pará (MUFPA) foi fundado no ano de 1982, na
administração do reitor Daniel Coelho de Souza, mas a implantação se constituiu em 1984,
sediado nas dependências do “Palacete Augusto Montenegro49”, em um bairro nobre da
capital paraense. No âmbito da museologia, em relação às tipologias de museus, o MUFPA é
classificado como um museu tradicional, em decorrência da ligação com os três elementos: o
Edifício (casa-palacete), que é o ambiente arquitetônico que se representa como um panorama
museológico; a Coleção, que está vinculada aos artefatos pesquisados e adquiridos,
salvaguardados pela instituição; e o Público, os usuários do museu. A instituição reúne
coleções de artistas entre os séculos XIX ao XXI: Joseph Leon Righini (Turim, Itália, 1820-
Belém, 1884), Theodoro José da Silva Braga, Antonieta Santos Feio, Ruy Meira, Antar Rohit,
entre outros, as quais estão listadas no último inventário do acervo do museu, realizado em
2011 pela pesquisadora Sra. Magalene Gaspar com registro em cartório da capital, o que é
constituído em 831 peças, sendo divididas em: 246 pinturas, 303 desenhos, 178 gravuras, 79
esculturas, 25 fotografias e 11 objetos criados por artistas visuais paraenses, nacionais e
internacionais (BRITTO, 2014).
Para esse estudo, o recorte foi realizado a partir de 17 (dezessete) peças da Coleção de
Quadros de Formatura da Faculdade de Medicina e Cirurgia do Pará e da Faculdade de
Direito do Pará (1906 a 1958), constituídos plasticamente com a linguagem fotográfica,
gráfica e pictórica. Foram produzidos por diversos artistas plásticos, bem como os desenhistas
Manoel Pastana, Antonieta Santos Feio, Ernesto Lohse e ateliers fotográficos Photographia
Fidanza, Oliveira Pará e Photo Stúdio. É válido mencionar que o setor técnico do MUFPA
denomina estas peças de “placas”, a atribuição de “Quadros de Formatura”, assim como, o seu
tratamento como “Coleção” é uma valorização desta pesquisa. Os objetos estão

49
O prédio é uma construção do início do século XX, mais precisamente de 1903, conhecido como palacete
Augusto Montenegro, foi projetado pelo arquiteto italiano Filinto Santoro para ser a residência particular do
então Governador do Estado do Pará, Augusto Montenegro. Este arquiteto que viveu no início do século XX em
Belém era formado pela Academia de Nápoles. Para o projeto, Santoro buscou informações no estilo
arquitetônico renascentista italiano, bem como parte dos materiais utilizados na construção do prédio e sua mão
de obra era oriunda da Itália. Lugui Bisi foi o mestre de obras e construtor do prédio. Fonte: Museu da UFPA.
Disponível em:<https://mufpa.wordpress.com/historico/>. Acesso em: 18 abr. 2016.

1201
acondicionados na Reserva Técnica do MUFPA e no Instituto Histórico e Geográfico do Pará
(IHGP)50 (BRITTO, 2014).
O método da pesquisa foi realizado com base na reflexão das Teorias da Museologia
quanto à estruturação do esquema classificatório baseado no Thesaurus para Acervos
Museológicos51 e as ações e os procedimentos para construção da classificação do acervo, do
arrolamento para esses quadros, objetivando organizar uma planilha com número de registro
(provisório), nome do termo/objeto, entre outros campos de registro, dessa maneira sugerir
uma ferramenta de controle/consulta do acervo dessa coleção. E, também, a elaboração da
ficha de catalogação para o acervo visando à padronização da documentação da mesma.
A documentação de acervos museológicos segundo Helena Dodd Ferrez (1994) é o:

[...] conjunto de informações sobre cada um dos seus itens e, por


conseguinte, a representação desses por meio da palavra e da imagem
(fotografia). Ao mesmo tempo, é um sistema de recuperação de informação
capaz de transformar as coleções dos museus de fontes de informações em
fontes de pesquisa científica ou em instrumentos de transmissão de
conhecimento (FERREZ, 1994, p. 66, grifo nosso).

Neste contexto, a pesquisa se apoiou no filtro teórico-prático da documentação


museológica, em busca do conjunto de informações da Coleção Quadros de Formatura, a ser
observada como fonte de pesquisa científica por meio da análise dos processos vivenciados
por esse acervo ao entrar no MUFPA – seleção, aquisição, pesquisa, conservação,
documentação e comunicação – (CURY, 2005), ou seja, esses procedimentos ora
mencionados em que os objetos passam deixando um registro informacional em cada um

50
Portaria nº 1702/77, assinada pelo reitor Aracy Amazonas Barreto, foi nomeada a funcionária técnica em
assuntos culturais, Sra. Raimunda de Paula Vilhena Portela, para “tornar-se responsável pelos acervos
históricos e artísticos”, assim como “desempenhar o papel de assessoramento na instalação e funcionamento
dos museus dessa universidade”, “enquanto não forem criados os museus de história e de Arte”, as peças
seriam acondicionadas temporariamente no edifício do Instituto Histórico e Geográfico do Pará (IHGP) por
conta de um convênio (não formalizado) entre as duas instituições acordados pelo reitor da UFPA e o
presidente do IHGP, naquela época era o Sr. José Rodrigues da Silveira Netto.
51
É um conjunto de conceitos ordenados, de modo claro e livre de ambiguidade, a partir do estabelecimento de
relações entre os mesmos e que pode ser definido segundo sua função ou estrutura”. Com o propósito de
minimizar as dificuldades que os museus apresentam para se organizar como sistemas de informação, a obra
busca atender aos acervos museológicos, seja sua documentação manual ou informatizada, ao apresentar um
sistema consistente para classificação e denominação de artefatos que compõem as coleções brasileiras
(FERREZ; BIANCHINI (1987, p. XV).

1202
deles, quando organizados tanto em uma planilha de arrolamento quanto na ficha de
catalogação, dessa maneira promovendo novas informações e produção de conhecimento.

Os resultados do estudo pelo processo da documentação para acervos museológicos

A primeira etapa consistiu em realizar uma pesquisa nos arquivos documentais do


MUFPA e IHGP em que os objetos estavam sob a guarda e a localização destes nos acervos,
quantidade e a procedência, conforme quadro a seguir:

Quadro 1: Levantamento documental no acervo MUFPA.


Nº OBJETO/TITULO QNT. PROCEDÊNCIA ANO/TURMA
Quadro de Formatura/ Faculdade de Medicina e Turma 1960/ Turma 1961
01 06
Doutorandos Cirurgia do Pará 1926; 1927; 1928; 1933
Quadro de Formatura/
Faculdade de Medicina e
02 Diplomado do Curso de 01 1923/1924
Cirurgia do Pará
Obstetrícia
Quadro de Formatura/ Faculdade de Medicina e
03 02 1932; 1933
Farmacêutico Cirurgia do Pará
Graduandas em Enfermagem Faculdade de Medicina e
04 02 1937; 1940
Obstétrica Cirurgia do Pará
1925; 1930; 1932; 1934;
Faculdade de Medicina e 1935; 1938; 1939; 1943;
05 Quadro de Formatura/ Médicos 15
Cirurgia do Pará 1945; 1946; 1947; 1949;
1952; 1953; 1955.
Faculdade de Medicina e
06 Quadro de Formatura/ Obstetras 01 1946
Cirurgia do Pará
TOTAL 27
Fonte: Acervo Documental do MUFPA/Por Raimunda de Paula Vilhena Portela, 1981.

1203
Quadro 2: Levantamento documental no acervo do IHGP.
Nº OBJETO/TITULO QNT. PROCEDÊNCIA ANO/TURMA
Quadro de Formatura/ Faculdade de Medicina e
01 33 Vários anos
Doutorandos Cirurgia do Pará
Faculdade de Medicina e Turma de 1960
02 Placas de Doutorandos 02
Cirurgia do Pará Turma de 1961
1906; 1912; 1925; 1948;
03 Quadros de Bacharéis 09 Faculdade de Direito 1950; 1951; 1954; 1955;
1958
Faculdade Sócio –
04 Quadro de Formatura 10 Vários anos
Econômico Centro
TOTAL 54
Fonte: Acervo Documental do IHGPA/Por Carmélio de Souza Ferreira, em 1999.

Com base nos resultados apresentados nos Quadros 1 e 2 foi possível identificar por
meio do cruzamento das informações obtidas nas pesquisas documentais um montante de 17
(dezessete) quadros, sendo 08 (oito) da Faculdade de Medicina e Cirurgia do Pará, localizados
na Reserva Técnica do MUFPA, e 09 (nove) da Faculdade de Direito do Pará, localizados na
Reserva Técnica do IHGP, conforme o Quadro 3 a seguir:

Quadro 3: Levantamento geral do acervo.


N°. TERMO/TITULO LOCALIZAÇÃO
Quadro de Formatura das Diplomadas do Curso de Obstetrícia - ano
01
1923/1924
02 Quadro de Formatura dos Médicos - ano 1925
03 Quadro de Formatura dos Doutorandos - ano 1927
04 Quadro de Formatura dos Doutorandos - ano 1928 MUFPA
05 Quadro de Formatura dos Médicos - ano 1930
06 Quadro de Formatura dos Doutorandos - ano 1933
07 Quadro de Formatura dos Farmacêuticos - ano 1933
08 Quadro de Formatura dos Médicos - ano 1934
09 Quadro de Formatura dos Bacharéis - ano 1906
10 Quadro de Formatura da Faculdade Livre - Direito - Pará - ano 1912
11 Quadro de Formatura dos Bacharéis - ano 1925
12 Quadro de Formatura dos Bacharéis - ano 1948 IHGP
13 Quadro de Formatura dos Bacharéis - ano 1950
14 Quadro de Formatura dos Bacharéis - ano 1951
15 Quadro de Formatura dos Bacharéis - ano 1954

1204
16 Quadro de Formatura dos Bacharelados - ano 1955
17 Quadro de Formatura dos Bacharéis - ano 1958
Fonte: MUFPA e IHGP (2016).

Os demais quadros identificados nos Quadros 1 e 2 não houve informações suficientes


para a localização, em função da ausência de registro dessas obras no banco de dados das
Instituições, sendo assim em outro momento será realizada uma pesquisa mais aprofundada
para localização destes.
Entretanto, os quadros sob a guarda do IHGP pertencem ao acervo do MUFPA, pois
existe uma parceria de salvaguarda de diversos objetos em detrimento da história da criação
do museu e seus respectivos acervos.
Prosseguindo os estudos, foi desenvolvido para a coleção a partir do esquema
classificatório Thesaurus, elaborado por Ferrez e Bianchini (1987), com uma estrutura de
camadas hierárquicas, as quais se dividem em três níveis básicos de terminologia, bem como
a classificação (gênero) que são as estruturas de referência que considera o universo dos
objetos coletados; a subclassificação (espécie), que são as subdivisões das classificações
principais, pois os objetos estão reunidos por conjuntos funcionais concisos; e os termos
(nomes de objetos) que caracterizam as expressões usadas para identificar os objetos
específicos, isto é, subdivisões da subclassificação, como mostra o Quadro 4 na sequência:

1205
Quadro 4: Modelo de Esquema Classificatório para Acervos Museológicos.
CLASSE SUBCLASSE TERMO (OBJETOS)
Construção pictórica, colagem,
ARTES VISUAIS Construção Artística
construção escultórica, etc.
Fonte: FERREZ; BIANCHINI, 1987 e CÂNDIDO, 2008.

Nos estudos do Thesaurus para Acervos Museológicos sobre a Coleção de Quadro de


Formatura foram classificados como acervos de Artes Visuais e subclassificados como
Construção Artística, conceituado por Helena Ferrez e Maria Helena Bianchini (1987):

A classe de Artes Visuais corresponde aos objetos criados, geralmente com


finalidade estética ou demonstração de criatividade e que integram as artes
gráficas, plásticas e cinematográficas, enquanto a subclasse (espécie)
refere-se aos objetos artísticos não definidos como uma subclasse de pintura,
desenho, gravura ou escultura, por utilizar mais de uma técnica (FERREZ;
BIANCHINI, 1987, p.3).

Neste caso, o Quadro 5 sintetiza o arranjo proposto para classificação de acervos


museológicos à Coleção de Quadro de Formatura de acordo com especificações citadas
anteriormente como exemplificado a seguir:

Quadro 5: Proposta de Esquema Classificatório à Coleção de Quadro de Formatura.


N°.
ORDEM TERMO/TITULO CLASSE SUBCLASSE
Quadro de Formatura das Diplomadas do Curso de Construção
001 Artes Visuais
Obstetrícia - ano 1923/1924 Artística
Construção
002 Quadro de Formatura dos Médicos - ano 1925 Artes Visuais
Artística
Construção
003 Quadro de Formatura dos Doutorandos - ano 1927 Artes Visuais
Artística
Construção
004 Quadro de Formatura dos Doutorandos - ano 1928 Artes Visuais
Artística
Construção
005 Quadro de Formatura dos Médicos - ano 1930 Artes Visuais
Artística
Construção
006 Quadro de Formatura dos Doutorandos - ano 1933 Artes Visuais
Artística
Construção
007 Quadro de Formatura dos Farmacêuticos - ano 1933 Artes Visuais
Artística
Construção
008 Quadro de Formatura dos Médicos - ano 1934 Artes Visuais
Artística
Construção
009 Quadro de Formatura dos Bacharéis - ano 1906 Artes Visuais
Artística

1206
Quadro de Formatura da Faculdade Livre - Direito - Construção
010 Artes Visuais
Pará - ano 1912 Artística
Construção
011 Quadro de Formatura dos Bacharéis - ano 1925 Artes Visuais
Artística
Construção
012 Quadro de Formatura dos Bacharéis - ano 1948 Artes Visuais
Artística
Construção
013 Quadro de Formatura dos Bacharéis - ano 1950 Artes Visuais
Artística
Construção
014 Quadro de Formatura dos Bacharéis - ano 1951 Artes Visuais
Artística
Construção
015 Quadro de Formatura dos Bacharéis - ano 1954 Artes Visuais
Artística
Construção
016 Quadro de Formatura dos Bacharelados - ano 1955 Artes Visuais
Artística
Construção
017 Quadro de Formatura dos Bacharéis - ano 1958 Artes Visuais
Artística

A partir do desdobramento do Quadro 5 que pospôs definir os termos/títulos à coleção


assim como a classificação dos acervos museológicos, o que contribuiu para o
desenvolvimento de uma proposta de ficha de arrolamento para o acervo.
Para o melhor entendimento desse processo, Renata Padilha (2014) explica que o
arrolamento:

É o ato por meio do qual se realiza a contagem de todos os objetos que


fazem parte do museu, sendo criada uma lista numerada para controle e
identificação geral do acervo museológico. Refere-se a um primeiro
reconhecimento detalhado. Dessa forma, recomenda-se que o profissional
numere provisoriamente a peça com o número de inventário e que faça isso a
lápis ou com etiquetas em material neutro amarradas por um barbante ou
cordão de algodão cru que envolva o objeto. Além disso, é imprescindível o
registro em um livro ou caderno, especificamente para essa função, do que
foi arrolado. Para essa atividade, o registro do número e do nome do objeto é
suficiente para uma identificação inicial (PADILHA, 2014, p. 41).

Neste contexto, a construção da proposta de planilha de arrolamento que faz parte deste
instrumento de pesquisa da proposta de documentação à referida coleção, permitiu estabelecer
um quadro geral, compreendidos nos campos de ordem crescente, imagem, termo/título,
autoria, data, dimensão, material técnico, estado de conservação e localização, conforme
explicitado no Quadro 6 a seguir:

1207
Quadro 6: Proposta de Planilha de Arrolamento à Coleção de Quadros de Formatura.

Fonte: PADILHA, 2014, p. 41.

Finalizando os estudos com a elaboração da Ficha Catalográfica, de acordo com Heloisa


Barbuy (2008), essa ferramenta permite que o museu tenha reunido o máximo de informações
individuais de cada objeto. Neste sentido, a autora explica que vai muito além da descrição da
peça, isto é, as informações são tratadas de forma consistente a partir da documentação textual
e icnográfica, as quais permitem o domínio preciso do objeto como cada parte que o compõe
desde sua ornamentação até a sua função.
Dessa forma, de modo especial, promovem uma narrativa que possibilita apontar a
relação de continuidade e interdependência entre as partes, quando não uma hierarquia
simbólica que o objeto possa conter. Nesse caso, a elaboração das Fichas Catalográficas para
atender a demanda de 17 (dezessete) quadros referentes a etapa de processamento da
documentação museológica.
Esta ação tem o objetivo de desenvolver uma pesquisa sobre o acervo, a partir de uma
abordagem individual de cada objeto. As informações coletadas são sintetizadas, escritas e
organizadas em cinco campos que compõem as etapas do arrolamento do acervo em cinco
partes baseados nos estudos de Maria Inez Cândido (2006):
1ª parte – identificação do objeto: Os dados sistematizados nos campos desta parte da
planilha contêm informações objetivas sobre a peça, permitindo sua leitura imediata,
situando-a, de forma específica, dentro do universo do Acervo.

1208
2ª parte – análise do objeto: O conteúdo desta parte da planilha, sistematizado em 03
(três) campos, contém informações históricas sobre a peça, obtidas a partir de pesquisas
arquivísticas/bibliográficas e de sua análise formal.
3ª parte – conservação do objeto: Esta parte da planilha deve ser preenchida por um
profissional especializado em conservação e restauração de bens culturais. Seus campos
detalham informações sobre aspectos estruturais e formais da peça, relacionados à sua
integridade e conservação: condições físicas, riscos potenciais, intervenções anteriores,
recomendações técnicas, etc.
4ª parte – reprodução fotográfica: Registrar o número de arquivamento interno da
imagem digitalizada, seguido do nome do autor e data da reprodução fotográfica do objeto.
5ª parte – dados de preenchimento: Registrar o nome do técnico responsável pela
digitação da planilha, seguindo os mesmos procedimentos indicados no campo.

Conforme Cândido (2006) é relevante distinguir os modelos ou peculiaridades para


obter os dados referentes às codificações acerca de cada objeto, especificando-se em
informações intrínsecas (propriedades físicas do objeto) e as informações extrínsecas (dados
de natureza documental e contextual). (MENSCH, 1987 apud FERREZ, 1994).

Sendo assim, o recorte do objeto de estudo para amostragem da aplicação dos


processos de análise à ficha catalográfica foi utilizado o quadro exemplificado na Figura 1,
conforme a seguir:

Figura 1: Quadro de Formatura das Diplomadas do Curso de Obstetrícia, 1923/1924

1209
Fonte: Acervo do MUFPA/ Foto: Patrick Pardini (2010).

Essas informações ora pesquisadas a partir da análise da Figura 1 estão organizadas no


Quadro 7, conforme a seguir:

1210
Quadro 7: Proposta de Ficha Catalográfica à Coleção Quadro de Formatura.

Fonte: Baseado no Modelo de Cândido (2006).


Maria Inez Cândido (2006), enfatiza que a diferença entre as informações intrínsecas
está relacionada à descrição e análise das propriedades físicas das peças (discurso dos
objetos/documentos) enquanto as informações extrínsecas estão associadas a natureza

1211
documental e contextual (discurso sobre os objetos/documentos), expandindo o entendimento
sobre esses campos de preenchimento a partir das definições atribuídas a cada dado a ser
registrado.

Considerações Finais
A análise dos quadros de formatura da Faculdade de Medicina e Cirurgia do Pará de
Direito, produzidos pelos desenhistas Manoel Pastana, Antonieta Santos Feio, Ernesto Lohse,
L. Prazeres, A. Souza, Germano Souza, Lotzes e L. X. Falcão e fotografias dos ateliers
Photographia Fidanza, Oliveira Pará, Phot Allema Pará e Photo Stúdio proporcionaram uma
constatação de elos harmoniosos: de um lado, a fotográfica e a arte pictórica; do outro, a
ostentação por meio de elaborados quadros de formatura da renomada faculdade em relação à
sociedade paraense no cenário educacional nacional.
Trata-se de uma coleção de construção artística que pertencem à coleção de objetos do
acervo do Museu da Universidade Federal do Pará (MUFPA) que compõem a cultura material
da instituição. Sua materialidade transcende a presença física, pois fizeram e fazem parte da
história da Faculdade de Medicina e Direito e as relações com seus professores e alunos que,
em contato com eles, de alguma maneira deram sentido mútuo às suas existências no universo
acadêmico.
Registro e testemunhos de um momento de celebração, reconhecimento e consolidação,
os quadros de formatura guardam em suas molduras, recortes de uma instituição pulsante de
saberes e práticas vividas, sentidas e reproduzidas na sociedade acadêmica (COELHO
JUNIOR, 2015).

1212
Referências Bibliográficas
ANTEPROJETO para Criação do Museu Histórico e Artístico. Belém: UFPA, 1981. 59p.

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governador Augusto Montenegro. Belém: UFPA, 1981. 7p.

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cultural musealizado na “esquina” da “Jose Malcher” com a “Generalíssimo”:
itinerários de uma antropóloga com uma rede de interlocutores no Bairro de Nazaré
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Rio de Janeiro: MAST, 2008. (MAST Colloquia; 10).

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Disponível em: <http://www.revistas.udesc.br/index.php/linhas/article/view/19847238163020
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CADERNOS de ensaios, nº 2. Estudos de museologia. Rio de Janeiro, Minc/ Iphan, p. 64- 67,
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INVENTÁRIO do Acervo de Artes Plásticas do Museu da UFPA. Levantamento do acervo


de pinturas desenhos, gravuras, esculturas, fotografias e objetos, num total de 831 peças,
julho de 2011. Belém: MUFPA, 1984. [assinado pela direção e três técnicos, documento
registrado em cartório].

PADILHA, Renata Cardozo. Documentação Museológica e Gestão de Acervo. Coleção de


Estudos Museológicos. Vol. 2, FCC Edições, Florianópolis, p. 14-24, 2014.

1213
MUSEALIZAÇÃO E PALEONTOLOGIA: UMA REFLEXÃO SOBRE A
FORMAÇÃO DA COLEÇÃO PALEONTOLÓGICA DO CURSO DE
MUSEOLOGIA DA UFPA

Rayana Alexandra Sousa da Silva*


Aymêe Larisa Lisboa Marçal*
Sue Anne Regina Ferreira da Costa*
*Universidade Federal Pará

Resumo: Este trabalho apresenta uma reflexão sobre a as etapas inicias do processo de Musealização
da coleção de fósseis da Reserva Técnica do Curso de Bacharelado em Museologia da UFPA.
Traçamos uma abordagem destes enquanto objeto\documento e discutimos como a musealização pode
ser uma forma de preservação e comunicação deste material que de outra forma estaria inacessível.

Palavras-chave: Documentação; Formação Pirabas; Mineração. Preservação

Abstract: This work presents a reflection on the initial stages of the Musealization process of the
fossils collection of the Technical Reserve of the Bachelor’s Course in Museology at UFPA. We draw
an approach to these as an object \ document and we discuss how musealization can be a way of
preserving and communicating this material that would otherwise be inaccessible.

Key-words: Musealization; Paleontology; Documentation; Pirabas Formation; Mining.

1214
A coleção sobre a qual nos debruçamos nesta pesquisa provém de uma lavra a céu
aberto localizada no município de Primavera no nordeste Paraense, na qual se explora calcário
para produção de cimento. A empresa, que preferimos não divulgar, possui os direitos de
lavra e pesquisa na área e por lei precisa salvaguardar o material fóssil presente na área. Esta
está situada em uma zona pertencente à Formação Pirabas, uma unidade geológica do
Eomioceno que data entre 23 – 25 m.a e ocorre descontinuamente entre os estados do Piauí,
Maranhão e mais expressivamente no Pará, visto que das 27 localidades fossilíferas da
Formação, 21 estão situadas no mesmo. Representando um momento transgressivo em que o
mar avançou o continente e recobria grande parte do litoral paraense (TÁVORA ET AL,
2010, P. 01).
Os fósseis foram doados pela empresa para serem armazenados e tratados na reserva
técnica do curso, e servirem como acervo científico/didático. A proposta inicial da empresa
era de que o material ficasse no município, e juntamente com o acervo arqueológico, seria
exposto no museu mantido pela empresa, mas por impossibilidades estruturais foram trazidos
à Universidade como parte do programa de salvamento exigido pela legislação e órgãos
competentes, tais como o Conselho Nacional Do Meio Ambiente (CONAMA) e o
Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM).
A resolução 001/86 do CONAMA para licenciamento ambiental estabelece que o
licenciamento de quaisquer atividades modificadoras do meio ambiente depende da
elaboração de um estudo de impacto e respectivo relatório de impacto ambiental – RIMA.
Neste documento se apresentam os possíveis danos e as contrapartidas sociais das quais a
empresa responsável pela atividade deve se comprometer a realizar para mitigar os danos
causados a comunidade. O estudo de impacto realizado em Primavera previa a alteração ou
destruição do patrimônio arqueológico e paleontológico. Com atenção ao material
paleontológico, nosso objeto de estudo, este se encontra amparado legalmente por várias
normativas que garantem sua preservação como, por exemplo, o Decreto-Lei 4.146 de
04/03/1942 que dispõe sobre a proteção de depósitos fossilíferos, bem como os artigos 20, 23
e 24 da Constituição do Brasil de 1988 que os define como bens da União e que, portanto, há
a responsabilidade dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios na sua defesa. Dessa
forma estes passam a constituir legalmente parte do patrimônio natural e cultural nacional,

1215
tendo sua preservação justificada pela sua importância científica, educativa e cultural,
relevante ao conhecimento científico ou a memória paleontológica. Devendo ser preservado
para futuras gerações.

Segundo Chagas (1994, p.54) a Musealização é uma forma efetiva de preservação de


bens culturais, sendo produto de um ato voluntário para o qual se fazem recortes de
determinados aspectos da realidade. Stransky (1947, p,12) ao apresentar a abordagem
específica da Museologia trata sobre essa realidade. Ele diz que o homem seleciona alguns
objetos originais da realidade e os insere em uma nova para que sejam preservados do seu
caráter mutável e decadente, ambos inerentes á ele. Assim, entende-se que a Musealização é
uma construção de caráter seletivo e político que está inserido em um projeto de atribuição de
valores culturais, ideológicos religiosos e econômicos.

Cury (2005, p, 26) sintetiza o processo de musealização em uma série de ações sobre o
objeto, são elas a aquisição, pesquisa, conservação, documentação e comunicação. Quanto à
Documentação, especificamente a museológica, esta é uma prática essencial ás necessidades
de um espaço que contém objetos a serem salvaguardados. Paul Otlet e Suzanne Briet
contribuíram, pioneiramente, de forma significativa para a formulação do conceito de
Documentação. E este possibilita, por fim, a comunicação entre o público e o objeto/acervo,
assim sendo a documentação pode ser entendida como:

O conjunto de informações sobre cada um dos seus itens e, por conseguinte,


a representação destes por meio da palavra e da imagem (fotografia). Ao
mesmo tempo, é um sistema de recuperação de informação capaz de
transformar, como anteriormente visto, as coleções dos museus de fontes de
informações em fontes de pesquisa científica ou em instrumentos de
transmissão de conhecimento. (FERREZ, 1991 p. 1).

Considerando a documentação uma das ações mais importantes no processo de


salvaguarda na incorporação de objetos as coleções institucionais, a primeira ação a ser
realizada com o material foi um levantamento, ou arrolamento das peças, que consistiu na
contagem e averiguação da quantidade e qualidade do material, onde foram registrados 110
amostras que incluem: amostras para processamento e retirada de microfósseis, coquinas que

1216
são aglomerados de fósseis fragmentados de origem carbonática, fragmentos de vertebrados,
tais como sirênios, quelônios e peixes, assim como invertebrados, com destaques para
bivalves, gastrópodes e equinodermos. Todos os grupos considerados comuns entre o material
fossilífero da unidade geológica, segundo as bibliografias especializadas.

Estes Objetos que foram retirados do local onde estavam inicialmente e foram levados
a um novo contexto, um contexto museológico, um lugar de fala, de criação de discurso, que
traz consigo várias implicações importantes para a salvaguarda, e após a breve documentação,
as primeiras medidas de conservação foram tomadas para garantir a durabilidade do objeto
(MENSCH, 1994). Entre as ações possíveis neste estágio do processo, foi a troca das
embalagens para sacos de polietileno, material estável que garantirá que o carbonato de
cálcio, presente nas amostras não sofrerá com ação de poluentes externos, comuns no
ambiente urbano, tais como o dióxido de enxofre.

Entendendo os debates que sustentam a importância deste material como um bem


museológico apto a ser preservado e comunicado, é relevante discorrer pelas etapas de
musealização dos fósseis dentro de um espaço universitário que atendam as demandas que
esse acervo deve suprir. Assim, após essas primeiras ações supracitadas temos como objetivo
a realização da sistematização e incorporação destes ao acervo do Curso de Museologia como
uma nova Coleção. Em nível de sistematização das informações e controle de acervo, estão
sendo elaboradas as fichas catalográficas, bem como a adequação de uma sala na reserva
técnica e a manutenção do mobiliário para recebê-lo. Busca-se que este se torne uma fonte
valiosa de informação sobre a reconstituição de parte da história pretérita da região, e sirva,
também, como instrumento para que as próximas turmas do curso de Museologia aprendam
sobre o tratamento de outras tipologias de materiais.

Referências bibliográficas

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1. Brasília: Ministério da Cultura /Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional/Departamento de Museus e Centros Culturais, Belo Horizonte: Secretaria de Estado
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1217
CHAGAS, Mário De Souza. NO MUSEU COM A TURMA DO CHARLIE BROWN.
Cadernos de Sociomuseologia, [S.l.], v. 2, n. 2, maio 2009. ISSN 1646-3714. Disponível
em: <http://revistas.ulusofona.pt/index.php/cadernosociomuseologia/article/view/535>.
Acesso em: 23 ago. 2017.

CONSELHO NACIONAL DO MEIO AMBIENTE. Dispõe sobre critérios básicos e


diretrizes gerais para a avaliação de impacto ambiental. Resolução, nº 1, de 23 de janeiro de
1986. Publicada no DOU, de 17 de fevereiro de 1986, Seção 1, páginas 2548-2549.

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CURY, Marília Xavier. Museu, filho de Orfeu, e musealização. In: ENCUENTRO


REGIONAL DO ICOFOM-LAM, 8. 1999, Coro, Venezuela.

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MENSCH, Peter Van. O Objeto de Estudo da Museologia. Pretextos Museológicos 1.


Universidade do Rio de Janeiro (UNIRIO). 1994.

OTLET, Paul. Documentos e documentação: introdução aos trabalhos do Congresso Mundial


da Documentação Universal. Paris, 1937. Disponível em:<http://www.conexaorio.com/biti/>.
PADILHA, Renata Cardozo. Documentação Museológica e Gestão de Acervo. Coleção
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SMIT, Johanna. O Que é Documentação? Coleção Primeiros Passos. São Paulo. 1986.

YASSUDA, Sílvia Nathaly. Documentação Museológica: Uma reflexão sobre o tratamento


descritivo do objeto no Museu Paulista. 2009. 124 f. Dissertação (Mestrado em Ciência da
Informação). Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista. Marília,
2009.

1218
Museologia, museus e
gênero

1219
DESRECALQUES DE GÊNERO? O HEROISMO POÉTICO NAS EXPOSIÇÕES
SOBRE CORA CORALINA E MARIA BONITA

Clovis Carvalho Britto*

Resumo: Este artigo analisa aspectos do heroísmo poético nas trajetórias de mulheres que tiveram sua
atuação (ou parte dela) esquecida na “política da história” e cujas memórias em falsete são
problematizadas nas exposições dos Museus-Casas de Cora Coralina, em Goiás-GO, e de Maria
Bonita, em Paulo Afonso-BA. Para tanto, evidencia o modo como as exposições potencializam
desrecalques de gênero ao conceber centralidade na fabricação de narrativas épicas de e sobre
“heroínas populares”, personagens historicamente destinadas aos silêncios da história dos museus.

Palavras-chave: Musseologia; Gênero; Heroísmo; Cora Coralina; Maria Bonita.

Abstract: This paper analyzes aspects of poetic heroism in the trajectories of women who have had
their works (or part of it) forgotten in "politics of history" and whose falsetto memories are
problematized in the exhibitions of the Museu-Casa de Cora Coralina in Goiás-GO, and of the Museu-
Casa de Maria Bonita, in Paulo Afonso-BA. In order to do so, it highlights the way in which the
exhibitions potentiate gender inequalities by conceiving centrality in the production of epic narratives
of and about "popular heroines," characters historically destined for the silences of museum history.

Key-words: Museology; Gender; Heroism; Cora Coralina; Maria Bonita.

1220
A tessitura poética empreendida pelas exposições dos museus-casas pode ser
compreendida como um texto “biográfico”, resultado de um empreendimento coletivo, que,
diferente de outras construções memorialísticas, substitui “a linearidade sequencial pela
justaposição dos traços do vivido, a univocidade pelo coro não-hierarquizado de múltiplas
subjetividades encenadas, o pacto da autenticidade típico das autobiografias pelas
ambivalências do discurso ficcional” (CUNHA, 2003, p. 123). Torna-se, assim, uma
construção simbólica que não prescinde dos “atos de fingir”, “das operações que selecionam
ou recalcam, combinam, condensam ou deslocam as inscrições fragmentárias do vivido, para
reencená-las em um outro lugar” (p. 126).
Ao apresentar uma determinada vertente de leitura da vida e do legado do anfitrião do
espaço, os museus-casas reforçam as narrativas autobiográficas promovidas pelos
protagonistas e herdeiros desses mesmos espaços, se transformando em instâncias onde as
escritas de si – combinadas com outras escritas sobre o personagem – ganham visibilidade. Os
museus-casas, por meio da “narrativa poética das coisas”, materializam narrativas que, muitas
vezes, o homenageado ajudou a construir na trama de “arquivamento” da própria vida
(ARTIÈRES, 1998).
De acordo com Philippe Artières (1998), passamos nossa trajetória elaborando imagens
sobre nossas vidas (para nós mesmos e para os outros), por meio de minúsculas triagens
(arrumações, desarrumações, reclassificações). Nesse sentido, podemos conceber as
exposições museológicas como um dos artifícios responsáveis pelo “arquivamento de vidas”
na utilização de repertórios sobre determinados fatos ou personagens, a partir de objetos
biográficos. As exposições museológicas escrevem e reescrevem essas narrativas sobre os
agentes tendo o público como observador e espécie de confidente e, no caso de enredos sobre
“arquivos de vida”, realizam uma reorganização interna dos acontecimentos, fabricando um
destino para o homenageado no intuito de “mostrar a perfeita coerência da própria existência
em vista dos episódios que a compõem” (p. 28). Essas orientações são fundamentais para
problematizarmos os destinatários e as condições de produção do “arquivamento”, isso
porque é composta de um atravessamento entre o íntimo e a função pública, forma de publicar

1221
determinados aspectos de trajetórias para que essas versões sobrevivam ao tempo e à morte.
Situação que não escapa as injunções de gênero.
As narrativas construídas pelos museus-casas (e em especial os de personalidades)
podem ser visualizadas como uma tessitura poética e política. Talvez porque, conforme dispôs
Begoña Torres González (2013a), nos museus-casas a história da intimidade se mescle com as
configurações de uma história política do cotidiano. É por isso que Mario Chagas (2007)
reconhece que os museus são devoradores e, do ponto de vista museológico, preservar
também pode implicar uma ação contra a vida. Sublinha a incômoda observação de Theodor
Adorno “para quem museal, ‘[...] museu e mausoléu são palavras conectadas por algo mais
que a associação fonética’”. Desse modo, não bastaria preservar contra a ação do tempo “é
preciso também garantir a prerrogativa do interesse público sobre o privado, mesmo
reconhecendo que sob essa designação (interesse público) ocultam-se diversos grupos de
interesse, interesses diferentes e até mesmo conflitantes” (p. 213).
Essas orientações contribuem para que visualizemos as narrativas formuladas pelos
museus-casas de personalidades como resultantes de um conjunto de tensões em torno de
interesses que extrapolam as intenções e projetos dos próprios patronos. Constantemente
reelaboradas, essas narrativas evidenciam uma multiplicidade de “eus” presentes em cada
trajetória, discursos fabricados de acordo com as necessidades de ressaltar ou silenciar
determinadas experiências desses personagens. As exposições museológicas, em certa
medida, evidenciam esse “eu multiplicado” ao produzirem narrativas ficcionais sobre
diferentes facetas da trajetória do indivíduo homenageado e, ao mesmo tempo, contribuem
para que analisemos as transformações no campo dos museus, da Museologia e das relações
de gênero.
Isso porque, ao empreenderem uma ação ficcional, os museus fingem. O verbo fingir,
assim aplicado, remete ao sentido etimológico de criação: “Fingo/fingere (fingir), donde teria
vindo a palavra latina fictionem, inicialmente tinha o significado de tocar com a mão, modelar
na argila. Na Bíblia em latim, o verbo usado para dizer que Deus criou o homem é o verbo
Fingo/fingere” (YOKOZAWA, 2009, p. 196). Sob essa interpretação, a “biografia” ou os

1222
discursos “(auto) biográficos” empreendidos pelos museus-casas de personalidades são
exemplares desse fingimento.
Reforça esse entendimento a própria nomenclatura museus-casas de “personalidades”,
visto que etimologicamente “personagem” e “personalidade” se originaram das palavras
personare, persona (ressoar, máscara). Tidos como pessoas ilustres por simbolizarem
determinados atributos, tornaram-se referências no campo de produção simbólico. Por isso
mesmo, suas casas e objetos foram musealizados e, sob essa condição, contribuem para
produzir crenças que atestam e reforçam esses atributos ao ponto de reverberar um tom
heróico ou épico. Nesse sentido, os museus-casas contribuem para a fabricação de heróis
tendo como estratégia a construção de uma poética do olhar, olhar através do privado (ou na
abertura pública do privado) aquilo que os tornam próximos e aquilo que os singularizam:

Quando a gente abre uma casa, começa a observar e a olhar – ou através de museus
ou de outras coisas como as biografias – que estava ali um homem em tudo
semelhante a nós e que, no entanto, era absolutamente diferente. (...) Com a ideia de
mostrar como ele é tão próximo, como ele come, como ele dorme, como ele tem
todas as atividades, como ele fez tal coisa com tal caneta, com tal objeto, com tal
comida, foi aqui que estudou, tal livro manuseou, qual presente recebeu – isso
reativa ou ritualmente faz com que os propósitos, os valores de igualdade sejam
automaticamente reativados. (...) Por outro lado, quando você mostra a diferença
dele para nós outros, nós vemos então, a partir do mesmo privado, não
necessariamente o que ele fez publicamente. Nós buscamos ver aquilo que pode,
num dado momento diferenciar alguém, aquilo que pode torná-lo peculiar, singular e
que fez com que a trajetória dele fosse uma trajetória que através de feitos,
discursos, ações ou palavras o tornasse distinto, fez com que ele excelenciasse, fosse
considerado alguém à parte, digno de ser homenageado (COSTA, 1997, p. 78).

Os museus-casas imprimem essa poética através de uma linguagem que evidencia a


dimensão épica da vida de seus patronos, revestindo-os de uma qualidade heróica: “el héroe
es aquel digno de ser imitado o bien por sus virtudes o por haber llevado a cabo algún hecho
destacado en favor de la comunidad” e, nesse sentido, é possível considerá-lo “como un
elegido que, habiendo llevado a cabo una empresa puramente individual, ha conseguido que

1223
esta llegue a alcanzar valores universales y válidos para todos”1 (GONZÁLEZ, 2013b, p.
220).
Realizam, assim, o “arquivamento” de trajetórias e a seleção de determinadas memórias.
Como operações de poder, consistem em lugares de se imaginar a nação e de construção de
identidades nacionais. Por isso, Reinaldo Marques (2008) destaca que essa operação de
“arquivamento” também pode se expressar como resistência ao discurso homogêneo da
nação: “os elementos descartados, as memórias dos grupos subalternos, das minorias, que
foram alijados do processo de enunciação do relato legitimador da nação, costumam se
insinuar pelo vazio e pelo fragmento, como resíduo inclassificável, no arquivo das memórias
oficiais da comunidade nacional” (p. 107). A criação de museus-casas em homenagem a
personagens que tradicionalmente não compunham o cânone dos “heróis nacionais” se torna,
nesse sentido, estratégia para exercitar uma nova imaginação museal (CHAGAS, 2013).
Seguindo esse raciocínio, os museus-casas de “heróis populares” (CHAGAS, 2013)
podem ser vislumbrados como um esboço, uma tentativa da apresentação dessas vozes em
falsete, de valorização de memórias até então silenciadas e, historicamente, esquecidas, a
exemplo da Casa da Flor, em São Pedro da Aldeia-RJ, da Casa de Mestre Vitalino, em
Caruaru-PE, e da Casa de Chico Mendes, em Xapuri-AC. A partir desse entendimento,
podemos concluir - em analogia com a tradição poética moderna e modernista - que os
museus, ao conferirem dignidade lírica a esses personagens, auxiliam na construção de um
heroísmo poético que reabilita o que até então estava clandestino, oculto, periférico,
reorganizando não apenas a História oficial, mas o heroísmo do canto épico (YOKOZAWA,
2009).
No caso dos museus-casas de mulheres, empreendem um duplo desrecalque. Eles
colocam em xeque o discurso de homogeneidade da nação ao apresentarem outras
perspectivas discursivas que problematizam limites e possibilidades a partir das intersecções

1
“O herói é aquele digno de imitação por suas virtudes ou por ter realizado algum fato marcante em favor da
comunidade. (...) Como um escolhido, tendo realizado um empreendimento individual, conseguiu que ele
alcançasse valores universais e válidos para todos” (GONZÁLEZ, 2013b, p. 220) (Tradução nossa).

1224
entre o constructo histórico-social de gênero e o constructo da região e da nação. Para tanto,
concordamos com Kátia da Costa Bezerra (2007) quando destacou as estratégias de algumas
mulheres para romper com práticas discursivas opressivas e alcançar um lugar de fala no
século XX. Tais ações visaram distanciar de leituras hegemônicas do passado, apresentando
outras vozes que reafirmam diferenças, instituidoras de uma memória em falsete. Nesse
aspecto, também contribuem para a problematização das fronteiras e das fissuras nas relações
entre homens e mulheres, público e privado, centro e margem. Inserem, nos debates do campo
de produção simbólico, personagens que até então permaneciam na esfera do “inenarrável”.
Situações mais evidentes no caso das trajetórias de mulheres que tiveram sua atuação (ou
parte dela) esquecida na “política da história”, compreendida como jogos de poder nos
exercícios de registro/escrita da História (Cf. SCOTT, 2002).

Cora Coralina e o heroísmo das “vidas obscuras”


Exemplar nesse sentido é o Museu-Casa de Cora Coralina, reconhecido por Mario
Chagas (2013a) como uma casa-museu de heroína popular. O museu-casa auxilia na
consolidação do discurso autobiográfico empreendido nas “meias confissões” poéticas da
autora, fato reforçado pela musealização de trechos de poemas e crônicas em que a escritora
se “arquiva”.
Cora Coralina vivenciou um embate desigual de forças e ousou obter um
reconhecimento público a partir da manipulação das chances restritas entreabertas em seu
favor. Dificuldades marcadas pela inserção subalterna no espaço familiar e, posteriormente,
no âmbito literário (Cf. BRITTO; SEDA, 2009). Talvez seu diferencial, se compararmos as
escritoras que publicaram em fins do século XIX e início do XX, esteja no fato de, apesar de
escrever desde essa conjuntura, somente ter publicado seu primeiro livro em um período em
que as mulheres já possuíam uma maior autonomia para definir seus projetos e inseri-los,
mesmo que a duras penas, no campo literário brasileiro. Conforme destacamos, se localizava
na margem desse espaço por ser mulher, idosa e não pertencer aos círculos mais ou menos

1225
privilegiados da elite brasileira. Inserção marginal alimentada pelo fato de residir no interior
brasileiro e não ter concluído a educação formal, tornando-se autodidata.
No caso de Cora Coralina, a conquista de independência financeira e de visibilidade
profissional na velhice superando dificuldades de variadas ordens contribuiu para
potencializar a construção de um canto épico relacionado à sua trajetória de vida. Nesse
aspecto e com as devidas proporções, podemos nos aproximar da análise sobre o
envelhecimento feminino em narrativas brasileiras empreendida por Susana Moreira de Lima
(2008). A pesquisadora identificou o lugar da mulher velha, a partir das intersecções entre
visibilidade, espaço físico e espaço enunciativo (na intimidade e na vida social), além dos
preconceitos relacionados ao corpo degradado. Considerada como uma figura marginal
observa seu silenciamento na literatura e, quando comparece literariamente, reconhece que
tem sido narrada por um outro. Identifica, ainda, uma escassa presença de personagens velhas
nas obras, especialmente como protagonistas. Constata que muitas vezes a velhice está
associada à perda de prestígio e ao afastamento do convívio social e que sua imagem é
geralmente permeada pelas representações de inutilidade (personificada nos aspectos
corporais) e de sabedoria (relacionada à experiência). A pesquisadora conclui que a velhice
feminina é sub-representada nas obras contemporâneas do campo literário.
Quando visualizamos que uma das personagens centrais na obra de Cora Coralina é uma
narradora-escritora de cabelos brancos, essas considerações sobre a velhice feminina
assumem centralidade. Além disso, outra personagem reincidente é Aninha, sua máscara lírica
da infância. Dar vez e voz a essas duas personagens marca “a retórica de sua poesia, são um
modo de licença poética que aponta para a consciência reflexiva da autora, subjacente aos
seus poemas” (CAMARGO, 2002, p. 79). São duas instâncias de criação que constituem
espaço de permissibilidade poética e, portanto, a escolha desse artifício não foi aleatória:
“pois sendo elas ocupantes de posições sociais periféricas, as suas vozes, apenas consideradas
nos limites da tolerância, representam, ainda no nosso contexto histórico-cultural, papéis
pouco ou nada relevantes” (p. 79).

1226
A escritora enfrentou preconceitos em decorrência de sua idade, quando publicou
Poemas dos becos de Goiás e estórias mais, seu primeiro livro, aos 76 anos. Talvez por sentir
na própria pele, Cora Coralina optou por construir um projeto criador cuja narradora fosse
uma mulher idosa que privilegiou recontar a vida e a intimidade de outras mulheres ou, como
afirma em seus versos, “a vida mera das obscuras”, construindo o que denominamos de
protagonismo poético das margens. Sua poética é povoada de diferentes mulheres, da cidade e
do campo, escravas e sinhás, analfabetas e professoras, mães e filhas, donas-de-casa,
prostitutas, lavadeiras, crianças e idosas, enfim, um inventário da vida e do espaço ocupado
pelas mulheres no interior brasileiro.
Segundo analisa Goiandira Camargo (2006), a mulher é apresentada na perspectiva do
“canto solidário” na poética de Cora Coralina, o sujeito poético se irmana com as obscuras
mulheres pelos vínculos da condição feminina. Entretanto, destaca que, apesar de figurar
diversas mulheres em sua poética, optou por iluminar a experiência daquelas imersas no
prosaico, no ordinário da existência. Nesse aspecto, Solange Yokozawa (2009) sublinha que
esse heroísmo poético dialoga com a tradição lírica moderna e modernista. Portanto, ao
privilegiar uma poesia que reabilita a marginalidade, reconhece que Cora Coralina se
conectou com autores que desentranharam o heroísmo poético da periferia, da
clandestinidade, das memórias ocultas.
Nesse aspecto, a exposição do Museu-Casa de Cora Coralina reverbera esse heroísmo
empreendido pelo projeto estético da autora marcado pela poetização do considerado
apoético, especialmente pela valorização das “vidas obscuras”. Exemplar, nesse sentido, é a
musealização de Maria Grampinho e Seu Vicente. Esses personagens reais foram
ficcionalizados na poesia e na prosa da autora. Seus objetos biográficos, fotografias,
documentação pessoal e os respectivos excertos literários, por sua vez, foram ficcionalizados
na narrativa museológica.
Maria da Purificação (1904-1985), apelidada de Maria Grampinho, era uma andarilha,
negra, pobre e que possuía problemas mentais. Quando Cora Coralina regressou para Goiás,
em 1956, encontrou Maria no quintal da Casa Velha da Ponte. Durante o dia, caminhava pelas

1227
ruas e becos da cidade e, às 18 horas, regressava para a Casa da Ponte onde dormia nas
proximidades do porão da casa. Pouco se sabe sobre seu passado e os motivos causadores de
suas excentricidades. Maria carregava uma trouxa com roupas, onde costurava retalhos e
botões. Além disso, o costume de vestir várias saias e inserir muitos grampos no cabelo
contribuiu para as alcunhas de Maria Sete Saias e Maria Grampinho, conforme registrado por
Coralina no poema “Coisas de Goiás: Maria”, de Vintém de cobre:

Maria das muitas que rolam pelo mundo.


Maria pobre. Não tem casa nem morada.
Vive como quer.
Tem seu mundo e suas vaidades. Suas trouxas e seus botões.
Seus haveres. Trouxa de pano na cabeça.
Pedaços, sobras, retalhada.
Centenas de botões, desusados, coloridos, madre-pérola, louça,
vidro, plástico, variados, pregados em tiras pendentes.
Enfeitando. Mostruário.
Tem mais, uns caídos, bambinelas, enfeites, argolas, coisas dela.
Seus figurinos, decorações, arte decorativa,
criação, inventos de Maria.
Maria Grampinho, diz a gente da cidade.
Maria. Companheira certa e compulsada.
Inquilina da Casa Velha da Ponte.
Digo mal. Usucapião tem ela, só de meu tempo, vinte e seis anos.
Tão grande a Casa Velha da Ponte...
Tão vazia de gente, tão cheia de sonhos, fantasmas e papelada. (...)
Cabem todas as Marias desvalidas do mundo e da minha cidade. (...)
Entre, Maria, a casa é sua.
Nem precisa mandar. Seus direitos sem deveres, suas saias, seus botões, seus
grampinhos...
Maria é feliz. Não sabe dessas coisas sutis e tem quem a ame. (...)
Todos gostam de Maria, e eu também.
Estas coisas dos Reinos da Cidade de Goiás (CORALINA, 2007, p. 39-41).

O trecho do poema, também musealizado ao lado de fotografias, documentos pessoais e


da trouxa2 de Maria apresenta a personagem como metáfora das mulheres obscuras. Nele,
Cora Coralina efetua uma leitura diferenciada da empreendida pela “gente impiedosa da
2
A trouxa de roupas pertence à classe “objetos pessoais” e a subclasse “artigo de viagem/campanha”. É
registrada com o número 12-4-1, localizada na “cozinha antiga”. A trouxa de uso pessoal de Maria da
Purificação contém peças de vestuário, além de trapos, botões, forros e lenços. É feita de algodão e tecidos
diversos. Possui estado de conservação regular e medida circular 1,24 m. Todas as peças da trouxa estão
catalogadas. Fonte: Ficha de identificação do Museu-Casa de Cora Coralina.

1228
cidade”. Seu heroísmo poético evidencia as qualidades de Maria e sua trouxa, vista por muitos
como um conjunto de inutilidades, é classificada como arte, ficção, inventividade.
Os bordados de Maria são uma criação, ficcionalizados pela literatura de Coralina e,
objetos e literatura, são transformados em ficção pelo discurso museológico. São os
“inutensílios”, fragmentos e escombros que, no dizer do poeta Manoel de Barros, servem para
a poesia. Até 2001, a trouxa e outros pertences da personagem eram expostos na entrada do
porão do museu-casa. As exposições de 2002 e 2009 destinaram uma sala na Casa Velha da
Ponte, musealizando sua trajetória juntamente com a de Seu Vicente, outro personagem que
habitou a casa-memória.
Em 1941, Cora Coralina adquiriu um sítio em Andradina-SP. Costumava contratar
bóias-frias nordestinos para o plantio e a colheita de algodão. Em 1944, um desses bóias-frias
decidiu permanecer no sítio para auxiliá-la nos serviços diários. Seu Vicente, apelido de Tomé
Pereira da Silva (1895-1989), era pernambucano de Correntes. Teve uma vida marcada por
deslocamentos até se fixar definitivamente na Casa Velha da Ponte, acompanhando Cora
Coralina. Seu Vicente trabalhava como jardineiro, responsável por manter com esmero a horta
e, principalmente, o pomar cujos frutos eram transformados nos famosos doces glacerados por
Cora Coralina (Cf. BRITTO; SEDA, 2009). Vicente se transformou em metáfora do jardim e,
por extensão, da casa e da vida da poeta. Imortalizado pelo discurso poético, tornou-se
personagem de diversas peças literárias, a exemplo do poema “A flor”, de Meu livro de
cordel, e do livro Os meninos verdes. Os trechos desses textos foram musealizados
juntamente com fotografias do jardineiro, com cópias de seus documentos pessoais e a sua
bengala.
A criação de um espaço no Museu-Casa de Cora Coralina destinado a esses dois
personagens consistiu em ideia materializada nas exposições de 2002 e 2009. A musealização
dialogou, em certa medida, com a estratégia poética da autora que inseriu uma multiplicidade
de eus em sua obra: “todas as vidas dentro de mim: na minha vida - a vida mera das obscuras”
(CORALINA, 2001, p. 33). Conforme destacou Célia Corsino, coordenadora da equipe

1229
responsável pelas exposições, a presença desses dois personagens consistiu em uma forma de
romper preconceitos e de compreender melhor o ideário da anfitriã do espaço:

Como mostrar quem era Cora sem falar de Maria Grampinho e seu Vicente?
Trazê-los para a exposição foi demonstrar como a poeta relacionava-se com
personagens da cidade. Não podemos nos esquecer de que a volta de Cora
para Goiás não foi tão tranquila. O preconceito ainda reinava3.

Esse gesto consiste, também, em uma forma de acionar outras possibilidades


expressivas no campo dos museus e da Museologia. Ao valorizar as potencialidades de uma
idosa, negra, com problemas mentais, e de um idoso, analfabeto e pobre, a musealização
realiza uma ação profundamente poética e política, exercitando um heroísmo que reabilita a
margem. Maria Grampinho, como na obra de Coralina, representa “as Marias desvalidas do
mundo” e, Seu Vicente, “afilhado do Padim Cícero”, valorizado por sua experiência de vida,
por sua “botânica sapiente” construída ao longo de “oitenta e alguns avos de enxada e terra”
(CORALINA, 1976, p. 50), representa os “anônimos menestréis nordestinos” (p. 14).
A relação de Cora Coralina com o Nordeste é justificada em virtude do pai, Francisco
de Paula Lins dos Guimarães Peixoto, ter nascido em Areia, na Paraíba. Órfã com um mês e
vinte e cinco dias de nascida, erigiu ao longo da vida “uma ligação profunda e obstinada” com
os “irmãos do Nordeste rude” (p. 14). Isso fez com que se interessasse por tudo o que dissesse
respeito a essa região brasileira. Em diversos poemas, contos e crônicas, ficcionalizou o
Nordeste e sua população. Sua segunda obra, Meu livro de cordel, recebeu esse título como
homenagem a essa literatura que, aliás, integra grande parte de sua biblioteca pessoal, também
musealizada. Todavia, a imagem de Padre Cícero e, principalmente, as de Lampião, Maria
Bonita e dos demais cangaceiros, constituem síntese dessa identificação ao ponto da poeta ter
dedicado um espaço em sua casa para homenageá-los.
Os retratos integrantes da “parede nordestina” permanecem na “varanda” da Casa Velha
da Ponte desde a década de 1970 e integraram as três exposições do museu-casa. Na verdade,

3
Entrevista realizada com Célia Maria Corsino, em 18 mar. 2015.

1230
essa organização das fotos de seu pai, de Padre Cícero4 e de Lampião, Maria Bonita e seu
bando5 foi planejada em vida por Cora Coralina e recorrentemente citada em seus poemas e
entrevistas:

Tenho na parede de minha sala um pôster de Lampião, Maria Bonita


e cangaceiros. Sempre desejei um retrato de Lampião.
Pedi a muitos, inclusive a Jorge Amado, quando esteve em nossa casa.
Foi uma cearense que tinha uma boutique em Brasília, Boutique Lampião,
que me mandou do Ceará.
Também o medalhão do padrinho Cícero.
Por quê?
Não os conheci pessoalmente. Não conheço o Nordeste.
O carisma... tão-somente.
Acontece que sou filha de pai nascido na Paraíba do Norte
e de mãe goiana.
Assim, fui repartida.
Da parte materna, sou mulher goiana, descendente de portugueses.
Do lado paterno, minha metade nordestina, eu um pouco cangaceira.
Daí, Lampião, Maria Bonita, seus cabras e o padrinho Cícero
na parede de minha casa, com muito agrado (CORALINA, 2007, p. 78).

Conforme destacou Andrea Delgado (2003), uma informação relevante que é suprimida
na exposição museológica é o fato da própria Cora ter emoldurado esses objetos, arranjando-
os cuidadosamente e colocando-os ao olhar público: “a combinação da fotografia do pai, com
a imagem de Padre Cícero, a fotografia de Lampião e seu bando e o arranjo de flores
artificiais confere, ao mesmo tempo, ‘valor de culto’ e ‘valor de exposição’ ao conjunto

4
A gravura de Padre Cícero Romão Batista pertence à classe “interiores” e a subclasse “acessório de interiores”.
É registrada com o número 05-1-8, localizada na “varanda”. A gravura colocada em um medalhão oval em
madeira e vidro possui estado de conservação regular com pequenas lascas, trincados, e medidas 30 cm X 35 cm.
Fonte: Ficha de identificação do Museu-Casa de Cora Coralina.
5
A reprodução da fotografia de Lampião, Maria Bonita e cangaceiros pertence à classe “interiores” e a subclasse
“acessório de interiores”. É registrada com o número 05-1-9, localizada na “varanda”. O pôster consiste em
fotografia colocada em madeira e possui estado de conservação regular e medidas 29,7 cm X 40 cm. A ficha
ainda informa que a foto foi tirada por Adhemar Albuquerque e cedida por seu filho Luis Albuquerque morador
de Brasília para a cearense Ivany que a doou para Cora Coralina em 23 out. 1977. Fonte: Ficha de identificação
do Museu-Casa de Cora Coralina. Entretanto, trabalhos sobre a fotografia do Cangaço atribuem a fotografia a
Benjamin Abrahão (sócio de Ademar Albuquerque, proprietário da ABA-FILM), datando-a de 1936 (Cf.
FERREIRA; ARAÚJO, 2011).

1231
iconográfico” (p. 97), tornando-se, nesse aspecto, espécie de altar doméstico6, evocativo de
uma memória ancestral nordestina.
Na tessitura poética empreendida por Cora Coralina (Fig. 1) e mantida nas exposições
museológicas, as figuras de Lampião, Maria Bonita e cangaceiros7, aliadas a imagem de Padre
Cícero, se tornam suportes para recuperar uma memória paterna. Na narrativa da escritora, o
bando de Lampião representaria todos os nordestinos entendidos como “gente forte, corajosa,
(...) convivendo com a seca, asselvajada” (CORALINA, 2007, p. 8).

6
Andrea Delgado (2003) é quem desenvolve essa idéia transcrevendo um depoimento de Cora Coralina gravado
na sessão da Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás, em 10 de junho de 1980: “Na minha casa eu tenho
um pôster de Lampião e a turma de Lampião, inclusive Maria Bonita, e tenho Padre Cícero. E digo: ‘porque eu
tenho Lampião, por quê?’ Muita gente pergunta: ‘a senhora conheceu?’ Eu digo: ‘não. Ele nunca veio a Goiás e
eu nunca fui ao Nordeste’. Mas digo a vocês, faço as minhas orações pela alma de Lampião e dos seus
companheiros. Faço por honra de Maria Bonita e já não rezo pelo Padrinho Cícero. Representa-me dentro de
mim que ele não carece de orações, já é santificado” (p. 97).
7
A correspondência de Ivany para Cora Coralina relata a doação do quadro: “Brasília, 23 de outubro de 77. D.
Cora, Aí estão eles: Lampião, Maria Bonita e mais o bando, vindo do tempo e da distância para escolhê-la como
nova coiteira no Centro Oeste. Retrato antigo, negativo guardado com cuidado, em Fortaleza, pelos filhos de
quem fotografou, o Adhemar Albuquerque, naquelas máquinas de fole e chapa de vidro. O Luís Albuquerque,
filho dele que mora em Brasília, quando soube que era D. Cora quem gostaria de ter a fotografia, fez tudo para
trazê-la e assinou pelo pai. Pena que na hora de fazer o painel, a tinta manchou. (...) Ivany”. Acervo do Museu-
Casa de Cora Coralina.

1232
FIGURA 1: QUADROS ORGANIZADOS POR CORA CORALINA.

Foto: Clovis Britto, 2009.

Tanto o poema, quanto a exposição do quadro na sala principal de sua casa, consistem
em estratégias que evidenciam o heroísmo poético empreendido por Cora Coralina. Ao invés
de sublinhar a violência comumente associada ao cangaço, preferiu destacar sua faceta
revolucionária, reforçando uma atuação ambígua. Talvez, por isso, Cora Coralina, quando
discorreu em entrevista sobre os mecanismos da inspiração e da loucura, afirmou: “Dizem que
há uma linha muito estreita entre a loucura e o gênio. Eu tenho na minha parede, com muito
agrado, um pôster do Lampião, Maria Bonita e os cangaceiros. Espiritualmente, eu estou no
meio daqueles cangaceiros. Eu também sou uma cangaceira” (In: BRITTO; SEDA, 2009, p.
181).

1233
Nas entrevistas em que citou o cangaço e no título do poema de Vintém de cobre, Cora
Coralina inseriu o nome de Maria Bonita, em uma clara intenção de sublinhar sua
importância, negando, assim, a ideia de que era apenas uma coadjuvante, sombra de Lampião.
Prova disso, é que no acervo pessoal da escritora, na reserva-técnica do museu-casa, existem
fotografias de Lampião sozinho.
A poeta poderia ter escolhido uma dessas fotos, presenteadas por admiradores. Todavia,
fazia questão de se identificar como uma cangaceira, no feminino, fato possível graças à
atuação pioneira de Maria Bonita, vista como exemplo de mulher forte e corajosa
(CORALINA, 2007). Desse modo, ao eleger uma fotografia dos cangaceiros em que Maria
Bonita ocupa centralidade e estampá-la na sala de visitas (Fig. 2), ao lado da foto paterna,
Cora Coralina instituiu um “arquivamento” que reescreve o lugar da mulher ao produzir
crenças a respeito de Maria Bonita e, consequentemente, sobre si mesma.

FIGURA 2: DETALHE DO PÔSTER DE LAMPIÃO, MARIA BONITA E CANGACEIROS. MUSEU-CASA DE CORA


CORALINA.

Foto: Rita Elisa Seda, 2009.

1234
Maria Bonita: uma heroína povoada
Situação que ganha força no Museu-Casa de Maria Bonita. A própria criação do museu
em sua homenagem contribui para estabelecer o protagonismo da cangaceira, visto que o
equipara a outros museus-casas de personalidades, a exemplo do Museu-Casa de Lampião,
em Serra Talhada-PE. Diferentemente de outras mulheres que foram transformadas em
presença silenciosa ou secundária nas casas-museus de seus maridos, a cangaceira conquistou
no campo museológico “um teto todo seu” (WOOLF, 2004).
Nesse sentido, podemos conceber Maria Bonita como uma “heroína popular” ou,
conforme sublinha a narrativa fundadora do museu-casa, como “uma guerreira e rainha do
cangaço”. Na verdade, Maria Bonita consiste em uma personagem múltipla. Segundo a
expressão de Maria Lúcia Dal Farra (2011), é uma mulher povoada, envolvida por um
conjunto de narrativas marcado pela contradição e pela complexidade: “Desgarrada das
amarras sociais, mulher bandoleira, forte e livre, valente, desafiadora. Subalterna, sombra do
amante. Mulher corajosa, comandante forte e segura de si. Figura autônoma e bem informada.
Vaidosa e dengosa. Brava e voluptuosa. Formosa vivandeira” (p. 17-18). Seguindo essa
interpretação, Jailma Moreira (2011) sublinha que encontrou diversas Marias Bonitas:

Percebi várias Marias Bonitas ali se esboçando, ainda que como um traço
apagado em folhas não descritas sobre ela ou no traço destacado, como
adjetivo ativo ou reativo, construindo seu perfil coletivo. Nessa
historiografia, encontrei o retrato de uma Maria Bonita vista como uma
mulher ‘vulgar’ do sertão, como tantas outras. (...) Um foco, sobre mulheres,
comum a tantos outros olhares patriarcais que a visualizam somente como
objetos sexuais. Nessa historiografia também encontrei, e foi o que mais vi,
ou o que mais se ressaltou, a mitificação da figura de Maria Bonita. Assim
como Lampião, era também desenhada, ainda que em bem menos páginas,
como a ‘Rainha do Cangaço’. Um mito que, por vezes, ocultava o seu
caráter humano (p. 109-110).

De acordo com essas análises, Maria Bonita se constitui em um personagem do entre-


lugar que, ao adentrar no cangaço, escapou do lugar comum ocupado pelas outras mulheres de

1235
seu tempo e, consequentemente, das demandas daquele ambiente: “se desfez de uma lei da
escritura feminina que, nos moldes de um aprisionamento, destinava a mulher somente para
uma tríplice função: ser mãe, esposa e dona de casa. (...) Mas também não se encaixou na
escritura masculina fora da lei que regia o cangaço” (MOREIRA, 2011, p. 113).
Algumas narrativas sobre Maria Bonita seguem essa perspectiva de fronteira,
reconhecendo a personagem como síntese da força das mulheres sertanejas: “a possibilidade
de resistir, de construir seu destino, de questionar os termos, de abrir janelas nos cotidianos,
de fazer revoluções moleculares” (p. 117). Conforme destacou João de Sousa Lima, um dos
idealizadores do Museu-Casa de Maria Bonita, tornou-se necessário eleger qual dessas
narrativas orientariam a exposição museológica:

Quando pensamos o museu nós decidimos que das muitas histórias sobre
Maria Bonita ele passaria a história da entrada da mulher no cangaço, a
participação da mulher no cangaço. Maria Bonita como a primeira mulher e
que é de Paulo Afonso, então nada mais justo do que Paulo Afonso abraçar
essa causa e poder divulgar para que se conheça a história. (...) Os critérios
de seleção de quais as fotos comporiam a exposição foram as fotos em que
Maria Bonita estava presente. O museu é sobre Maria Bonita, então temos
que colocar imagens dela. Mas tem fotos de Maria Bonita com Lampião,
com Juriti, essa relação com outros cangaceiros. Mas dando o foco principal
para ela8.

Esse depoimento é relevante na medida em que informa alguns dos critérios para a
construção da narrativa museológica. Além do pioneirismo da personagem e da saga de sua
trajetória, sublinha que a partir de Maria Bonita é possível recuperar a trajetória de outros
cangaceiros e cangaceiras. Do mesmo modo, também possibilita imaginar a vida de homens e
mulheres no sertão brasileiro, no início do século XX. Por fim, o depoimento toca
indiretamente em um ponto crucial da exposição: a prevalência de quadros com fotografias da
cangaceira espalhados pelo museu-casa, constituindo na maioria dos objetos que naquele
espaço representa a vida de Maria Bonita.

8
Entrevista realizada com João de Sousa Lima em 27 jan. 2015.

1236
Sob essa perspectiva, devemos reconhecer que enquanto Cora Coralina utilizou seus
poemas e crônicas na promoção do “arquivamento de si”, Maria Bonita construiu narrativas
autobiográficas através da fotografia. Nesse aspecto, concordamos com as reflexões de
Germana Araújo (2011) quando analisou as imagens do cangaço construídas a partir das fotos
do libanês Benjamim Abrahão, em 1936. De acordo com suas interpretações, o fotógrafo teria
construído uma cena e, portanto, capturando poses de cangaceiros: “o tema, a perspectiva e a
estética constituintes da fotografia são frutos da relação de interesses entre o retratista
(fotógrafo) e o retratado (fotografado)”, concluindo que a motivação para o referido ensaio
“pode ser encontrada em, pelo menos, dois lados: o de Benjamim e o da cangaceira, cada qual
com a sua própria perspectiva de desdobramento” (p. 141-142). Para a autora, as fotos
representam uma mulher segura ao lado do companheiro, ocultando a sua relação com o
território e reconhecendo que Maria Bonita pareceu preferir sua imagem idealizada em função
de um padrão de beleza: “a imagem de Maria passa do imaginário de dilacerada [no
imaginário popular como vítima ou bandoleira perversa] a uma foto de mulher bem vestida e
preocupada com a sua presença [afável, sorridente e bem informada, segurando revistas e
jornais]” (p. 148).
A narrativa museológica ao se sustentar nessas fotografias realiza uma operação
metalingüística que reforça o “arquivamento” empreendido pela cangaceira. Do mesmo
modo, empreende uma seleção desse conjunto discursivo ao priorizar fotos em que Maria
Bonita aparece sem armas e em atividades cotidianas, sorrindo, portanto jóias, brincando com
cachorros, distanciando dos discursos sobre a violência associados comumente ao cangaço.
Na verdade, nenhuma das fotografias expostas remete ao período em que Maria Bonita residiu
na casa em Malhada da Caiçara, Paulo Afonso-BA. As diversas imagens contribuem para
reforçar a presença da anfitriã naquele espaço, visto que devido à especificidade do cangaço,
viviam como andarilhos, tendo a caatinga como morada. Além disso, ao apresentar fotografias
povoadas por outros cangaceiros e cangaceiras, o museu também realiza um heroísmo poético
que reabilita personagens até então destinados ao esquecimento poético e social.

1237
Essas questões evidenciam as múltiplas possibilidades entreabertas pela poética do
espaço nas casas-museus, associadas à fabricação de um heroísmo que reabilita memórias
silenciadas e promove desrecalques de gênero. A partir de um alinhavo de objetos, tempos e
espaços, as exposições produzem crenças e, como uma costura, moldam, tecem, marcam
pontos, estão sujeitas a cortes, acréscimos e refazimentos. Entre a herança lírica e a expressão
épica surgem tessituras empreendidas por meio da “linguagem poética das coisas” que
proporcionam, muitas vezes, o exercício de novas dramaturgias da memória, redimensionando
o lugar ocupado pelas mulheres a partir de um heroísmo poético.

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MULHERES INDÍGENAS NAS MISSÕES: PROBLEMAS ETNO- HISTÓRICOS,
ARQUEOLÓGICOS E MUSEOLÓGICOS NA HISTÓRIA, SÍTIOS
ARQUEOLÓGICOS E MUSEUS DEDICADOS ÀS MISSÕES MERIDIONAIS

Jean Baptista*
Camila Moraes Wichers*
Tony Boita*

Resumo: Ao problematizar a história das Missões na América Meridional a partir de uma abordagem
de gênero e etno-histórica, o presente artigo pretende discutir: a) as representações femininas presente
na documentação histórica gerada pelos jesuítas; b) a ressignificação dos espaços femininos em sítios
arqueológicos atualmente abertos à visitação para o público; c) as questões que a abordagem de gênero
aliada à etno-história podem sugerir ao se analisar os acervos dos museus dedicados às Missões.

Palavras-Chave: Mulheres, Indígenas, Museus, Missões.

Abstract: When question the history of Missions in Southern America from an approach of gender
and ethno historical, the present article intends to discuss: a) the feminine representations present in
the historical documentation generated by the Jesuits; b) the re-signification of the feminine spaces in
archaeological sites currently open for public visitation; c) the questions that the approach of gender
allied to the ethno history can suggest when analyzing the collections of the museums dedicated to the
Missions.

Keywords: Women, Indigenous, Museums, Missions

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Embora tema fundamental da documentação produzida na América Meridional
durante a experiência das Missões, as mulheres indígenas daquele contexto carecem de
estudos que contemplem sua história de forma específica. Tal fenômeno afeta diretamente a
aplicação da Lei 11.645/2008, que versa sobre a obrigatoriedade do ensino de história e
cultura indígena na rede de ensino, geralmente amparada por subsídios historiográficos
relacionados apenas à história das lideranças indígenas masculinas. Conhecemos Tibiriçá ou
Sepé Tiarajú, mas pouco se sabe sobre as mulheres que compartilhavam e construíam o novo
mundo que se configurava. Tal ausência também afeta diretamente as visitações aos
remanescentes arquitetônicos dos povoados missionais, onde os territórios femininos são
desconsiderados ou tratados como espaços de submissão feminina. Já as exposições dos
museus dedicados à história das Missões, tal qual o Museu Júlio de Castilhos, Museu de
Santiago e o Museu das Missões, onde não apenas as representações femininas repousam em
estado coadjuvante, como também são tratadas a partir da hagiografia ocidental, colaboram na
redução da história das mulheres à submissão ou domínio do patriarcado9 e da cultura
ocidental. Com isto, uma importante página da história e memória indígena nas Américas
mergulha em um silêncio historiográfico e museológico secular, perdendo-se a oportunidade
pedagógica que o protagonismo feminino tem a oferecer.
Esforços para superar esta lacuna têm sido realizados. A V Primavera dos Museus
(2011), promovido pelo Instituto Brasileiro de Museus, contou com o tema Mulheres, Museus
e Memórias, oportunidade em que o Museu das Missões propôs um debate onde a memória
das mulheres indígenas pudesse ser contemplada. Pesquisadoras como Maria Cristina dos
Santos (1993), Eliane Fleck (1999) e Cristina Bohn Martins (1999), as primeiras mulheres
historiadoras a se dedicarem à história das Missões no Brasil, injetaram novos conteúdos que
9
Sobre o conceito de patriarcado podemos destacar duas visões antagônicas acerca de sua existência: para um
grupo onde se insere a antropóloga Rita Segato (2012), nas sociedades indígenas existia, antes da colonização,
um patriarcado de baixa intensidade, marcado por uma dualidade hierárquica, que apesar de desigual, tinha
plenitude ontológica e política, a qual teria sido substituída com a colonização por uma estrutura binária; para
outro grupo, onde se insere Maria Lugones (2008), assim como a colonialidade trouxe a invenção do conceito de
raça, também teria significado a criação do conceito de gênero para essas sociedades, pois não existiria nesses
contextos um princípio organizador parecido com o de gênero do ocidente antes do “contato” e da colonização,
postura com a qual também concorda Breny Mendoza (2010/2017).

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trouxeram aspectos relevantes e transformadores. As próprias mulheres indígenas estão em
um novo contexto, surgindo, por exemplo, na aldeia Tekoa Koenju, localizada no mesmo
município onde está o Museu das Missões, a professora Patrícia Ferreira, mulher Guarani que
se torna a primeira cineasta indígena a abordar o tema de suas antepassadas e
contemporâneas. Embora tais aspectos configurem-se como passos importantes, nota-se que
há, ainda, um imenso caminho a se percorrer.
O presente artigo pretende reunir as informações obtidas até o momento sobre a
presença feminina nas Missões empreendidas na América Meridional, especificamente
aquelas elaboradas entre a Companhia de Jesus e distintas sociedades indígenas durante os
anos de 1609-1750, no que ficou conhecido como os 30 Povos das Missões distribuídos entre
o atual território do Brasil (Mato Grosso, Paraná e Rio Grande do Sul), do Paraguai e do norte
da Argentina. Tais informações documentais que aqui serão apresentadas procuram indicar
possibilidades sobre a história daquelas mulheres, bem como fornecer subsídios para o ensino
de história indígena na rede escolar e abordagens possíveis para a visitação em sítios
arqueológicos e exposições em museus dedicados ao tema. Em conjunto, procura-se superar o
não-lugar destinado às mulheres quando o tema é Missões, bem como propor uma análise
onde a museologia e a etno-história possam dialogar e propor reflexões sobre demandas
contemporâneas.

Representações femininas na documentação histórica das Missões


O contexto de instalação das missões na América Meridional está próximo aquele
europeu onde mulheres eram tratadas pela Igreja como objeto de culpabilidade (Delumeau,
1992, p. 310-314). Aqui não houve fogueiras, mas as mulheres missionais conheceram o
esforço constante dos padres em tentar controlá-las, mantendo-as o mais distante possível do
projeto de construção dos povoados. Por maior que tenha sido o esforço dos inacianos, a
exclusão das mulheres jamais se alcançou. Por desempenharem papéis fundamentais nas
sociedades indígenas, elas longe estão de serem tomadas como inferiores, pecaminosas ou
causas de sedições pelos povos indígenas.

1243
As diversas atividades femininas e suas restrições foram tema recorrente no século XX
em estudos sobre os Guarani. Responsáveis pelos alimentos cultiváveis ou coletados em
cestos, cuidado e educação das crianças, produtoras de cerâmica, manifestações de
fecundidade, representadas por deusas múltiplas no mundo espiritual e embaixatrizes por se
casarem mediante acordos entre famílias, entre outras funções, as mulheres indígenas são
representadas como peças fundamentais na organização social de seus grupos. Nesses estudos,
averiguou-se que as mulheres indígenas não estão submetidas à sociedade masculina. Em
função disso, não foram poucos os pesquisadores a retratarem “um Guarani feminista”,
conforme Santos (1997, p. 25), por ventura valendo-se das mulheres indígenas para elaborar
críticas à sociedade ocidental (Chaves: 1941, p. 106-107; Schaden: 1974, p. 76). Podemos
mencionar ainda o trabalho de Beatriz Landa “A mulher Guarani: atividades e cultura
material” (Landa, 1995) que buscou compreender as atividades realizadas pelas mulheres
indígenas na sociedade Guarani, abordando o gênero feminino e a mulher como sujeito de
estudo. Sabe-se que a produção cerâmica, por exemplo, era marcadamente feminina.
Entretanto, a colonização, ao mudar radicalmente a organização social dos povos indígenas,
teria feito com que a produção cerâmica passasse a ser dedicada também ao comércio,
afastando as mulheres dessa esfera produtiva. Silvana Suze (2009), por exemplo, ao estudar a
confecção da cerâmica guarani nas reduções jesuíticas aponta que a presença do torno teria
sido um elemento definidor para que a produção passasse a ser masculina. Se a inserção do
torno no âmbito do processo colonizador significou isso mesmo - questão que requer mais
estudos10, temos aí um efeito da colonização na perda de um espaço de expressão das
mulheres indígenas. Por outro lado, como se verá, a documentação histórica indica que muitas
mulheres cobraram dos inacianos um mapeamento de suas singularidades, ao mesmo tempo
em que propuseram novas etapas para o mundo que se abria mediante o fenômeno colonial,
criando novos espaços, novas práticas e crenças, produzindo-se em pleno contexto colonial.

10
Em contextos recentes, Daniela Magri Amaral (2012) aponta o uso do torno em contextos onde os
homens controlariam mais a produção, isso para o contexto da cerâmica histórica pernambucana,
enquanto Luiz Antônio Pacheco de Queiroz (2015) registrou, por sua vez, para o Cariri Cearense que
algumas mulheres utilizam o torno, embora predomine a técnica modelada.

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De partida, os padres são alertados pelos nativos sobre as variantes étnicas que
caracterizam as mulheres indígenas de povos diferentes. O padre Antônio Ruiz de Montoya,
emblemático jesuíta ativo na instalação do projeto missional, distinguiu costumes femininos
dos grupos Guarani e Jê da região do Guairá (atual Paraná brasileiro): os Gualacho (Jê)
“possuem todos uma só língua e uma só mulher, embora seja emprestada, porque não são
fixos os matrimônios como entre os Guarani, além de serem esses menos estáveis. Pois
enquanto o Guarani tem a mulher em sujeição para repreendê-la ou despedi-la, o gualacho
não, e sim a mulher, a qual por coisas mui leves se afasta do marido e se vai a outro. Assim as
deixam andar a seus quereres”. No esforço comparativo, Ruiz de Montoya ainda aponta que
as mulheres Gualacho “cuidam mui pouco de seus maridos, ao contrário dos Guarani, não
lhes preparando comida nem outra coisa além de criar seus filhos e fabricar um pouco de
chicha” (MCA, 1951, p. 296). Considerada “indócil” por Montoya, a mulher Gualacho é
incompatível com o ideal feminino ocidental e, apesar dos elogios, a mulher Guarani não é
necessariamente um exemplo de conduta aos demais jesuítas. Para esses, são um exemplo de
lascívia.
Nas primeiras décadas do processo missional, os grupos indígenas que se conectam
com os jesuítas apresentam-lhes jovens mulheres para que se casassem. Esse convite ao
pecado é, ao que parece, o resultado de uma pressão tanto feminina quanto de suas famílias
voltada ao bem do estabelecimento de uma aliança segura com jesuítas. Ao passo que os
colonos espanhóis utilizaram amplamente essa instituição (Melià, 1997, p. 20; Santos, 1993,
p. 230; Felippe, 2007, p. 2), os padres procuraram combatê-la. Para Montoya, por exemplo, “o
demônio” o tentava se valendo das ofertas de mulheres por parte dos caciques “sob alegação
de que eles consideravam como coisa contrária à natureza a circunstância de homens se
ocuparem em trabalhos domésticos, quais os de cozinhar, varrer e outros deste tipo”
(Montoya, 1985, p. 56). “Certo missionário”, conforme conta Montoya sem revelar o nome do
colega, teria sido despertado pelo seu Anjo da Guarda para precavê-lo de duas mulheres,
escondidas no interior do claustro, prontas para “dar o bote” no “corpo santo” —
impulsionado pelo afã de quem guarda o sagrado, o anônimo padre as expulsa do aposento,

1245
enobrecendo seus votos de castidade ([1639]1997, p. 153). O próprio Montoya cerca seu
claustro “com paus para impedir a entrada de mulheres em nossa casa” ([1639] 1997, p. 56).
A preocupação é tanta que os superiores recomendam que as casas dos padres e seus demais
aposentos devam ser mantidos guarnecidos tanto por homens quanto por “altas paredes em
torno da casa” (MCA-CPH. Cx. 14. Doc. 14). Uma recomendação — em verdade, uma
compilação de ordens anteriores — do Provincial Lupércio Zurbano aos demais padres, ainda
em 1643, insiste que o trato com criaturas femininas jamais se dê sem companhia: “Se alguma
Índia vier sozinha à Igreja, tanto para se confessar quanto para conversar, caso não haja
ninguém na Igreja, chame-se algum fiscal ou muchacho grandinho da casa que esteja
presente” (MCA: 1952, p. 66). Ao final da presença jesuítica em solo missional, o padre
Cardiel confirma as recomendações: “Guarda-se clausura nas casas [dos padres] como nos
Colégios, de maneira que jamais entrou mulher alguma, nem mesmo ao princípio dos pátios”
([1771]1989, p. 108).
Mediante este cenário, muitos são os esforços jesuíticos que procuram explicar aos
nativos conceitos sobre castidade sacerdotal e pureza espiritual, incluindo em suas
denominações o substantivo Abaré (castidade para os jesuítas). Com o desenrolar da
experiência, não poucos indígenas parecem apreciar a postura casta e a denominam de
distintas maneiras: “geralmente o que os índios mais se espantam”, diz o padre Diogo Ferrer
no Itatim (atual Mato Grosso, Brasil), em 1633, “é que os padres não deixam entrar mulher
nem muchacha em sua casa, [...] pelo qual não chamam os padres senão pelo nome de
Tupamboyaeté, que quer dizer verdadeiros servos de Deus” (MCA, 1952, p. 38). No caso de
algum colono espanhol, se “não o veem envolvidos com impurezas ou luxúrias com as
índias”, analisa Cardiel no século XVIII, “vendo-o devoto e casto, logo dizem: caray
marangatu, o espanhol virtuoso” ([1758]1900, p. 303).11

11
Durante a década de 1940, o antropólogo León Cadogan construiu um conjunto de análises onde os
Guarani paraguaios são representados como verdadeiros monges da floresta. Nesse sentido, chamava-lhe
bastante atenção o esforço para o desprendimento do corpo engendrado por alguns líderes espirituais,
então dispostos a abandonar o consumo da carne vermelha e, especialmente, as práticas sexuais, situações

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A mesma exclusão se nota nas festividades, danças e demais cultos de exposição
física: “Nunca entra em dança mulher alguma nem muchacha, nem há nela coisa que não seja
honesta e mui cristã” (Cardiel, [1771]1989, p. 118). Mediante esse dia a dia excludente,
somado à crescente clausura dos jesuítas no interior de seu complexo, pode-se sugerir que o
distanciamento entre eles e as mulheres dos povoados missionais acabou por se transformar
em um profundo abismo.
Enquanto os missionários poderiam se distanciar das mulheres no interior de seu
complexo, o mesmo não se dá com freqüentadores do claustro, sobretudo os jovens. Desse
perigo padeceu um exemplar indígena membro do coral missional: “uma mulherzinha
pretendia roubar-lhe a honestidade e pureza enviando-lhe outra terceira pessoa, [...] mas o
bom muchacho resistiu de forma viril e não deu ouvidos aos silvos de semelhante serpente
[...]. Assim vive com tal recato que quando sai da Igreja com os demais cantores sempre vai
com os olhos vazios e cravados no chão para não ver mulher alguma” (MCA-CPH. Cx. 28.
Doc. 28). Para outros, os convites femininos são tormentos difíceis de esquecer, provocando
não raros desejos penitentes. Esse é o caso de Alonso Tari: com aproximadamente vinte anos,
assíduo frequentador da casa dos padres, deseja ardentemente se castrar para evitar o pecado
— o pedido é negado, mas enche os inacianos de admiração (MCA, 1970, p. 152). Outro
jovem, por sua vez, não perde tempo: fere os próprios olhos. Repreendido pelo padre, o jovem
responde: “Oxalá perdesse eu ambos os olhos antes que ofenda a Deus!” (Montoya,
[1639]1985, p. 205). De uma maneira ou outra, este gênero de caso edificante retrata o
tratamento dado pelos jesuítas à temática sexual, assim como a difusão e geração de uma crise
a partir da inserção de representações femininas ocidentais entre alguns nativos congregados.
Foi o demônio ocidental, contudo, o melhor pilar narrativo jesuítico para demonstrar
aos nativos o preço da feminilidade desprovida de cuidados cristãos. Alvos por excelência das
investidas dos demônios, as mulheres dos povoados, especialmente as castas ou em princípios

que melhor qualificariam sua liderança espiritual e o seu próprio desenlace da vida terrena (Cadogan,
2003, p. 96).

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da puberdade, possuem seu próprio verdugo ao longo da história missional.12 Uma vez que o
padre Diego Altamirano possui particular interesse sobre o tema da virgem mártir indígena —
representação, portanto, condizente à imagem do bom-selvagem —, lega a sua
correspondência uma série de casos que comprovariam a possibilidade de conversão
feminina. Diz ele que em 1635, Francisca, uma “doncellita” de doze anos, “delicados
membros” e convicta seguidora da palavra congregada, foi “enlaçada na garganta” até a morte
por um homem que a cobiçava sem sucesso (MCA: 1952, p. 252). Altamirano também conta
que uma jovem moradora de Nossa Senhora da Encarnação, já na década de 1650, conhece
esse tipo de criatura: alguns dias antes de comungar na festa de Maria, ela se vê atacada por
um demônio ansioso para violar sua castidade, a quem a garota responde com firmeza: “Pois
havendo de comungar em breve havia de entregar a outro meu corpo, manchando minha alma,
que somente a Deus reservo? Em vão te cansas, se presume vencer-me, pois antes perderei a
vida” (MCA: 1952, p. 243). No mesmo povoado, outra índia de idêntica convicção é
violentamente atacada: mesmo com “força de golpes, paus e açoites”, a mulher persevera
“esmaltada com seu próprio sangue” (MCA: 1952, p. 243). Em São Ignácio de 1661, uma
mulher casada põe-se a correr de sua chácara ao ser perseguida por um misterioso “moço
lascivo”; repudiado e “tomado pela luxúria”, o demônio apedreja-a até a morte (MCA: 1970,
p. 191). Por volta de 1687, uma virgem indígena é feita em “pequenos pedaços” ao resistir a
uma tentativa de estupro, recebendo o “despedaçado cadáver” uma “sepultura especial dentro
da igreja para que sirva de exemplo a todos os próximos” (Jarque; Altamirano: [1687]2008, p.
105). Na Santos Mártires de 1690, uma dessas valorosas mulheres defende sua castidade de
um “moço que a solicitava”: “sacou esse tal certo pó, esfregando-o nela, dizendo que aquele

12
Schaden destaca entre as situações de crise enfrentadas pelos Guarani o estado de akú ou adjékóaku, quando o
indivíduo, mediante uma situação específica da vida (nascimento de um filho, períodos de maturação biológica,
irrupções de doenças, entre outras), torna-se alvo das potências da natureza. Nesse estado, recomenda-se evitar
saídas à mata mediante o “perigo de encantamento sexual, a que se denomina adjépotá”; os mbuiá falam também
em Karaguá. O conjunto das medidas que a pessoa deve tomar chama-se “resguardo” em português; em Guarani
se diz simplesmente que fulano está akú”. As mulheres, em especial as menstruadas, são alvo fácil das investidas
desse estado. “Quem dá o adjepotá à mocinha”, disse um informante Guarani a Schaden, “é o Karugua” que
“aparece como gente para desatendê-la; depois ela vai ficando amarelinha, amarelinha, até morrer” (Schaden:
1974, p. 79, 83 e 87).

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pó lhe daria uma morte prolongada, o qual sucedeu assim” (MCA-CPH. Cx. 30. Doc. 5). Ao
que parece, as mulheres missionais presenciam uma conjuntura de violência. O melhor,
conforme admirado relato jesuítico de 1730, é seguir o exemplo de boas congregantes: “no
povoado de Nossa Senhora da Fé duas mulheres se deixaram açoitar, uma duas vezes, outra
uma, para não consentir ao Verdugo que as ameaçava” (MCA-CPH. Cx. 30. Doc. 44).13
De “mancebas auxiliares do demônio” a “devotas congregantes”, conforme aponta
Fleck (2006), as mulheres nas missões encontraram caminhos para ressignificar seus próprios
papéis, construindo, com isto, uma alternativa viável ao violento mundo colonial que se
constituíra.

Cotiguaçu
Em boa parte dos remanescentes arquitetônicos dos povoados missionais encontra-se
uma estrutura estranha ao modelo monasterial inicialmente sonhados pelos jesuítas: trata-se
de uma edificação ampla, geralmente ao lado do cemitério ou da igreja central, historicamente
reconhecida como uma casa destinada às mulheres. Novidade colonial, resultante das
acomodações que as mulheres construíram naquele contexto, esta espacialidade é o espaço
com maior vocação daquelas ruínas para se tratar da história das mulheres nas missões em
uma visitação, por exemplo, ao mesmo tempo que os dramas que ali se desenrolaram revelam
profundos aspectos da vivência e lutas femininas missionais.
No Sítio Arqueológico São Miguel Arcanjo, no Rio Grande do Sul, esta espacialidade
é tratada, por meio de uma placa, como uma espécie de presídio feminino interessado em
punir e guardar a castidade das mulheres. Em poucas palavras, a visitação ao sítio já
transforma as mulheres indígenas em indivíduos submetidos a ordem missional, reduzindo
importantes sentidos que ao longo da história construíram-se naquele espaço.
Não restam dúvidas de que tal espacialidade nasce conectada ao período de
remodelação de sensibilidades proposto pelos missionais, onde a instituição da poligamia ou a

13
Segundo Fleck (2006), “O controle do corpo e de suas sensações foi tomado pelos missionários como
indicativo de uma vivência virtuosa e da derrota da ação nociva do demônio”.

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“instabilidade das uniões patrimoniais”, nos termos dos padres, foi alvo objetivo da catequese
missional. Muitas mulheres tornam-se impossibilitadas de ingressar em novas famílias
durante a repressão à poligamia, prática usualmente responsável pela solução de viúvas, órfãs
e desamparadas nas tradições indígenas. Da mesma forma, jovens “amancebadas” são
apartadas de seus homens. Soma-se a isso o fato da população feminina ser teoricamente mais
poupada mediante circunstâncias históricas, como as guerras e trabalhos prestados aos
coloniais, ambas atividades exercidas com peso pelos homens. Justificam-se, com isso, os
períodos em que elas configuraram a maioria da população dos povoados missionais. Não se
pode esquecer, ainda, da chamada inconstância das uniões matrimoniais — prática nunca
regulada — responsável pela geração de uma série de mulheres sem homens, ainda que por
um curto espaço de tempo. E, por fim, sempre há aquelas que, por livre decisão, escolhem
viver ao lado dos jesuítas aparentemente em troca de proteção, bem como muitas são
resgatadas pelos próprios missionários em incursões pelas matas quando buscam indígenas
sequestradas por colonos. Em outras palavras, as urgências femininas pressionaram os jesuítas
a seguir contra os seus desejos: tiveram de incluí-las, à força da situação colonial, em sua
própria área.
Como se percebe, o recorrente vínculo assistencial das lideranças indígenas para com
as mulheres (Santos, 1993, p. 283; Souza, 2002, p. 229) é duramente cobrado dos jesuítas.
Acolher velhos e órfãos, por exemplo, foi uma das primeiras medidas implantadas pelo padre
Cristóvão de Mendonza em todos povoados inaugurados: “Fundava em cada redução uma
espécie de asilo para crianças e velhos inutilizados, aos quais alimentava e vestia” (DHA:
1929, p. 572). É esta, em verdade, uma medida prática: parece preferível tê-los aos olhos do
que soltos pela povoação. Contudo, um espaço originalmente criado para abrigar homens,
mulheres e crianças desamparados, ganha no desenrolar da experiência uma função específica
de gênero, indício claro da mobilidade funcional recorrente a boa parte dos prédios
missionais.
As primeiras notícias do feito estão registradas na documentação jesuítica do final do
século XVII. Em 1699, no povoado de São Cosme e Damião e de sua vizinha Candelária,

1250
“puseram-se as muchachas órfãs em casa separada vivendo em comunidade. E [ali] estão as
mulheres cujos maridos fugiram, tendo-se especial cuidado delas, para evitar ocasiões de
ofensas ao Nosso Senhor” (MCA-CPH. Cx. 30. Doc. 12). Em 1700, o povoamento de São
Carlos comemora: “o recolhimento das órfãs está em seu vigor” (MCA. Cx. 30. Doc. 13). Daí
por diante, este importante espaço se torna elemento fixo das plantas baixas dos povoados.
Assim, ao menos, deixa bem claro o padre Cardiel: “Existe em cada povoado a Casa das
Recolhidas, cujos maridos estão por muito tempo ausentes ou que se fugiram e não se sabe
deles. E com elas estão as viúvas, especialmente se são moças e não possuem pai, mãe ou
algum parente de confiança que possa delas cuidar” ([1771]1989, p.58).
Os dados populacionais de mulheres em situação de risco, ou seja, aptas a ingressar o
cotiguaçu, são absolutamente variáveis nas duas primeiras décadas de instalação da Casa das
Recolhidas.14 Alguns povoados apresentam decréscimos: São Carlos conta com 140 mulheres
em 1695, após cinco anos contabiliza 135 — sendo “onze as que têm seus maridos fugidos”—
e alcança 118 em 1716. A maioria dos processos de formação do cotiguaçu, entretanto,
apresenta dados crescentes. Em 1695, Nossa Senhora da Fé concentra 30 viúvas de uma
população de mais de cinco mil pessoas, chegando a 1715 com 80 inscritas. São Inácio Mini
recolhe 61 mulheres de uma população de mais de 2.300 pessoas em 1695, passando para 130
em 1715 e 145 um ano depois. Loreto, um dos maiores povoados, soma 33 mulheres em
1695, 83 em 1711, 113 em 1715 e 175 alguns anos depois. Os povoados futuramente
conhecidos como “Sete Povos”, no atual estado brasileiro do Rio Grande do Sul, também
alcançam o ano de 1716 com números consideráveis: São Nicolau e São João contabilizam
algo próximo de 150 mulheres desamparadas para cada, São Lorenzo apresenta 191 e São
Miguel soma 247. Já a São Luis cabe a maior cifra registrada, 506 mulheres vivendo sem
homens alojadas no cotiguaçu, num total próximo a 12% da população de 4.283 indivíduos.

14
Os registros analisados a seguir correspondem às cartas annuas dos anos de 1695 (MCA-CPH. Cx. 30. Doc. 9),
1700 (MCA-CPH. Cx. 30. Doc. 13), 1702 (MCA-CPH. Cx. 30. Doc. 16 e 17), 1711 (MCA-CPH. Cx. 30. Doc.
28), 1713 (MCA-CPH. Cx. 30. Doc. 30), 1715 (MCA-CPH. Cx. 30. Doc. 36) e 1716 (MCA-CPH. Cx. 30. Doc.
37).

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Tamanhos números levam a crer que as mulheres sem homens podiam viver em outros setores
dos povoados que não a Casa das Recolhidas.
A Casa das Recolhidas é usualmente chamada nos povoados de cotiguaçu. A saber, o
vocábulo em questão (koty, casa/quarto, guaçu, grande) lembra a ideia de “grande habitação”,
num claro neologismo jesuítico possivelmente familiar aos missionais por remeter às casas
comunais encabeçadas por um cacique (Souza, 2002, p. 224). Essas mulheres, de fato, estão
oficialmente sob a tutela dos missionários, percebendo-se indícios de ressignificação do
conteúdo poligâmico afetando a relação entre os missionários e as mulheres missionais.
Da mesma forma que os homens das oficinas e os meninos das escolas, para citar dois
importantes setores sociais surgidos nas Missões, as mulheres do cotiguaçu também exercem
práticas e regulamentos diferenciados dos demais moradores dos povoados. Para assegurar o
cumprimento das normativas, a uma das mulheres é confiado o cargo de diretora do
cotiguaçu, responsável pelo acompanhamento de suas tuteladas em qualquer saída pelo
povoado, além da garantir sua frequência obrigatória em todos ritos missionais (missas,
confissões, congregações, etc.). Elas ocupam um lugar especial na missa, entram na igreja
pela lateral, via cemitério, portando-se exemplarmente na avaliação dos missionários (Cardiel,
[1771]1989, p. 98). Não por poucos motivos, são elas que engrossam as congregações
marianas, ano a ano mais volumosas (MCA, 1969, p.43). Também são elas, ao lado dos
cabildantes e de determinadas crianças, os pilares das estratégias de controle do restante da
população e do envio de discursos da área jesuítica para o povoado. A elas pertencia a
produção de tecidos para vestir os desnudos, colaborando, com isso, na construção das
moralidades missionais. Vinculado ao sistema de punições implantado nos povoados, no
cotiguaçu também são recolhidas as “delinqüentes”, sem que sejam mantidas encarceradas,
embora quando vão ao povoado estejam com as mãos atadas, e não raro as desviadas são
açoitadas nas costas “pelas mãos da diretora ou de outra mulher” no sigilo do próprio local
(Cardiel: [1771]1991, p. 155). Dessa forma, as mulheres, importante elemento de uma
sociedade indígena e peça fundamental do exercício de lideranças e produção agrícola,

1252
passam a integrar de forma sólida a área encabeçada pelos jesuítas e, junto a eles, fazem parte
da produção de novas moralidades.
Ainda que o cotiguaçu permaneça controlado a chaves e que os missionários e a
diretora permaneçam atentos aos passos de suas tuteladas, nada garante disciplina e controle
absoluto nesse universo. Volta e meia surgem notícias sobre “visões de índias velhas que não
se faz caso” (MCA-CPH. Cx. 30. Doc. 9-921), “inimizades que as índias comumente têm
umas com as outras” em virtude dos “desmandes da língua” (MCA-CPH. Cx. 30. Doc. 5) e os
obscuros “contatos impudicos entre si” (Montoya: [1637] 1876, p. 298). Ainda, nada assegura
que aquela que escolheu o cotiguaçu como morada não possa vir a mudar de idéia: “Uma
Índia de Candelária saiu sem licença do Padre da Casa das Recolhidas e se foi para Santa
Ana”, relata uma carta de 1730, “de volta ao caminho, correndo com outra, sem que vissem
uma tormenta se formando, caiu um raio e somente a ela deixou morta” (MCA-CPH. Cx. 30.
Doc. 44).

Representações Marianas nos Museus


Há de se duvidar que a Santa Maria apresentada pelos jesuítas aos missionais
corresponda à hagiografia ocidental, como, de fato, demonstram as polêmicas entre os
religiosos daqueles tempos (Melià: 2003, p. 241-248; Gruzinski: 2001, p. 290). Sua tradução
primeira, Tupãn Sy, conforme o Tesouro de la lengua Guarani (1639, p. 540) e o Catecismo
de Montoya ([1637] 1876, p.181), já remete a uma verdadeira heresia: todas as classes de Sy
ou Chy são as consortes do deus que lhe atribui o primeiro nome. Outra associação de Maria
deu-se mediante Ñande Sy, Nossa Mãe, companheira de Ñande Ru, Nosso Pai, o casal
progenitor dos Guarani nas etnografias do século XX (Chamorro, 1998, p. 103-106; Cadogan,
1992, p. 119-136). “Chamam-na de ‘Nossa Mãe’”, garante Montoya, “não somente os
adultos, mas até mesmo os meninos e meninas” ([1639]1997, p. 167). Assim, ao menos, um
grupo de índias parece deixar claro quando explicam o motivo das oferendas postas aos pés da
imagem da santa: “Agradecidas, padre, a Nossa Mãe, trazemos as primícias de nossas
chácaras”. O padre, intrigado com tamanho ardor, pede maiores explicações: “Como não

1253
servir a uma Senhora que com tanta liberalidade se deu e rogou seu filho Santíssimo?”, teriam
explicado as índias (MCA, 1969, p. 73). 15
A associação da Maria bíblica a esposas de deuses, de imediato, parece evidente, uma
vez que ela também fora progenitora de um filho divino. Todavia, tratou-se de uma gravidez
resultante de um único encontro intermediado por um anjo, sem envolver contatos físicos,
conforme a narrativa bíblica. Atribuir o sufixo Sy ou Chy a Maria ampliava as possibilidades
desses encontros e dos filhos oriundos deles, fatos óbvios o suficiente para não causar a
mínima preocupação aos nativos, inicialmente tomados pelos clérigos coloniais como
heréticos. Futuros estudos indicarão o quanto essas percepções podem ter afetado as
representações e percepções sobre Jesus.
Na prática diária, os missionários se admiram mediante a versatilidade nominal da
santa entre os ameríndios de Concepción — “onde há diversas parcialidades” —, então
chamada de “Mi Madre, Santíssima, Mi Señora, Mi Reyna, etc.” (MCA-CPH. Cx 28. Doc
28). Considerando a tradução operada pelo missionário ao gerar o registro histórico referido,
vale especular quantas variantes de conteúdo poderiam ocorrer a cada uma dessas
denominações quando originalmente empregadas nos idiomas nativos. Com isso, percebe-se a
inviabilidade de atribuir apenas uma representação à Maria missional. Certamente, tal
situação é tolerada pelos jesuítas mediante o fato de pregarem diversas facetas da mesma
(Concepção, Guadalupe, Carmo, etc.). Contudo, como se percebe mediante as variações de
suas denominações e funções, as caracterizações da Maria missional são, por si só, capazes de
liquidar toda e qualquer orientação da hagiografia ocidental naquela experiência.

15
Ao adotar Tupã Sy como um dos nomes de Maria, os missionários paraguaios recorriam às estratégias de
colegas ativos em outros espaços e contextos, manifestando uma característica dos esforços de tradução jesuítica.
Sobre isso, diz Vainfas: “as manifestações prodigiosas da Virgem na América espanhola se multiplicaram à
farta, sedimentando uma tradição inaugurada no primeiro século da Conquista continental”, quando “a Virgem
marcava sua presença no cotidiano colonial” por meio da criação de “uma terceira esfera simbólica”, nem cristã,
nem indígena. “Nessa ‘mitologia paralela’, Nossa Senhora virou Tupansy, personagem de seu teatro para a
conversão dos índios” (Vainfas: 1999, p. 209). Para Gruzinski, objetos, divindades, práticas e crenças sofrem
com uma descontextualização: no México, também a Virgem foi um problema de tradução e denominada como
uma deusa asteca, fenômeno diretamente vinculado à formação das mestiçagens (2001, p. 89, 291-292).

1254
Se na análise lingüística os dados apontam para o fato que a Maria ocidental encontrou
outros significados quando entre os indígenas missionais, a análise estética indica alterações
de conteúdo e de forma significativos. Duas peças sobreviventes do processo, atualmente
integrantes de acervos de dois museus distintos, ofertam subsídios para o entendimento deste
fenômeno, ainda que suas atuais legendas as reduzam apenas a imagens marianas.
A primeira peça que aqui se analisa é a Virgem Maria (FIG. 1) existente no Museu
Júlio de Castilhos, em Porto Alegre. Trata-se de uma escultura em madeira policromada,
possivelmente nascida no século XVII. Embora a história da arte a tenha tratado como uma
representação mariana, aspecto que levou o Museu Júlio de Castilhos a assim apresentá-la ao
público, a escultura fala um tanto mais em seus traços. De olhos amendoados e longos cabelos
enegrecidos, a representação assemelha-se facialmente muito mais a uma mulher indígena do
que a Maria comumente representada na arte ocidental. Ao que parece, trata-se de um
fenômeno recorrente na história da Igreja, quando a versatilidade de Maria adéqua-se
formalmente às culturas onde se relaciona, propondo novas estéticas para a entidade
ocidental.
No Museu de Santiago, Paraguai, esconde-se amontado em uma sala os restos do
último altar dos povoados missionais. Nele se encontra um conjunto de pinturas que revelam
uma concepção do artista sobre as entidades maiores divinizadas nos povoados. Para fins
deste estudo, concentra-se a análise na representação mariana ali existente (FIG.2). O
primeiro aspecto que chama atenção nessa representação é a plumaria dos anjos e querubins.
Ao contrário da tradição ocidental, as plumas enchem-se de um vermelho encarnado, bastante
próximo daquele utilizado pelas lideranças espirituais indígenas. Os chamados mantos
xamânicos, confeccionados com plumas da ave guará, desfrutavam de tamanho prestígio entre
os indígenas que a Igreja procurou eliminar todos que encontrava, sobrevivendo apenas um
exemplar em perfeito estado aos dias atuais, hoje parte do acervo do Museu Etnográfico de
Viena. Do ponto de vista lingüístico, a ave guará, as lideranças espirituais Guarani e até
mesmo anjos e santos, são tratados no mundo missional como marangatu, palavra traduzida
pelos padres por “os bem-aventurados”. A Glória ocidental, com isto, passa a ser afetada, ao

1255
menos nesta pintura, pelo vermelho xamânico dos marangatu indígenas. Uma análise anterior
e mais detalhada sobre a questão dos Marangatu no mundo missional pode ser encontrada em
estudos anteriores dos autores (BAPTISTA, 2010, p. 117-151; BAPTISTA; BOITA, 2011, p.
264-279).
Os motivos florais da pintura também chamam atenção. Rodeada de lírios do campo, a
pintura parece propor um cruzamento com narrativas indígenas que no século XX as
etnografias relacionaram com Ñande Sy. Em determinado momento de sua trajetória, a
deidade conversa com seu filho, Kuaray, ainda no ventre, tendo os lírios como testemunha.
Não há como se saber se as narrativas coletadas no século XX relacionam-se com aquelas do
século XVII, mas a inserção do lírio na imagem deixa margens para se entender que temos ali
um cruzamento entre crenças indígenas que remetem para Ñande Sy.
Ao se cruzar os dados linguísticos com aspectos estéticos, pode-se inferir que as
representações marianas produzidas nas Missões da América Meridional representavam
entidades resultantes do processo colonial. Nessas Marias, não se vê entidades indígenas
anteriores ao contato, nem mesmo aquelas trazidas pelos inacianos. O que se vê são entidades
geradas no processo missional, representantes de uma moralidade e espiritualidade ali surgida.
Dito de outro modo, classificá-las como imagens marianas, conforme as legendas dos
museus costumam fazer, é um ato reducionista, capaz de sobrepujar a história das mulheres
que participaram daquela construção.

Considerações finais
Ao cruzar olhares acerca da documentação histórica dos espaços construídos no
âmbito das Missões – bem como acerca da sua musealização no contexto contemporâneo, e
das representações nos museus, buscamos traçar algumas abordagens possíveis dos processos
de silenciamento e de estereotipagem das mulheres indígenas Guarani. Ampliando nosso
campo de visão, constatamos que estudos históricos, arqueológicos e museológicos voltados à
questão da mulher Guarani, têm sido raros.

1256
Como apontam os estudos decoloniais, a invenção do conceito de raça, como
instrumento de dominação, insere uma diferença radical entre os povos, afetando também as
relações sexuais (SEGATO, 2012), onde as mulheres, sobretudo, as não-brancas (indígenas e
negras), são inseridas em espaços marcados por uma violência física, simbólica e epistêmica.
Quando pesquisas e instituições museológicas constroem narrativas impregnadas de
silenciamentos e de estereótipos das mulheres e outras minorias, acabam sujeitando-as a uma
violência epistêmica. Essa violência é uma forma de invisibilizar o outro, expropriando-o de
uma forma de representação.

“La violencia se relaciona con la enmienda, la edición, el borrón y hasta el


anulamiento tanto de los sistemas de simbolización, subjetivación y
representación que el otro tiene de sí mismo, como de las formas concretas
de representación y registro, memoria de su experiencia”.
(BELASTEGUIGOITIA, Marisa. Descarados y deslenguadas: el cuerpo y la
lengua india en los umbrales de la nación. Debate Feminista, año 12, vol. 24,
2001, págs. 237 y 238).

Nesse sentido, a partir de nosso lugar de fala – no caso como pessoas não indígenas –
pensamos que esse debate deverá necessariamente ser protagonizado pelas mulheres
indígenas Guarani, no sentido de rastrear os processos de ocultamento e exclusão de suas
memórias. Dessa feita, esse esforço no âmbito das Missões poderá trazer novas análises e
propostas de musealização, seja das fontes textuais, dos vestígios arqueológicos, de locais
como o Cotiguaçu e das representações imagéticas. Para muitas autoras feministas, como a
historiadora Joan Scott (1988), mais que a inclusão das mulheres e da categoria gênero na
análise histórica, as abordagens feministas impõem um reexame crítico das premissas e dos
critérios de trabalho existentes. Esses estudos podem desvelar múltiplas construções daquilo
que denominados como sexo, gênero e sexualidade, no tempo e no espaço, evidenciando o
quanto a nossa categorização de gênero é moldada por um olhar moderno e europeu,
possibilitando “revisiter le mythe de la condition universelle des femmes”, como nos aponta
Azadeh Kian (2010, p.1).

1257
Embora ausente das narrativas expográficas dos museus que se dedicam à memória e
história da experiência missional, as mulheres indígenas envolvidas no processo constam em
distintos documentos históricos, indicando-se, com isto, que sua presença longe esteve de ser
insignificante naquele processo. O mesmo se dá com as divindades indígenas femininas,
comumente reduzidas à hagiografia ocidental. Mulheres e deusas, de fato, reconstruíram-se
mediante o contexto se apresentava, cruzando tradições e se recriando no mundo colonial.
Figura 1 Figura 2

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1261
MUSEALIZAÇÃO DA ARQUEOLOGIA: PROVOCAÇÕES E PROPOSIÇÕES
FEMINISTAS

Camila A. de Moraes Wichers*

Resumo: Historicamente, os museus e o patrimônio arqueológico nasceram associados à construção


de identidades nacionais, nas quais despontava uma forma de cidadão pleno: homem, branco,
heterossexual e proprietário. Na modernidade ocidental, as coleções e patrimônios eleitos como dignos
de figurar em uma memória nacional, podem ser compreendidos como mais um eixo de opressão e
subordinação das mulheres e outras ‘minorias’. Como esses agenciamentos se deram nos sujeitos
externos da opressão, como na América Latina, e, mais especificamente, no Brasil? Como a
colonialidade do poder operou nesses contextos? Essa pesquisa visa construir estratégias para a análise
das representações de gênero em processos de Musealização da Arqueologia. Dessa forma, integra os
campos da Arqueologia e da Museologia, visando construir pontes entre esses campos, cartografando
novas formas de representação. Coloca-se como especialmente relevante uma análise crítica dessas
construções como parte de um amplo espectro de agenciamentos e normatizações, tendo como
objetivo a coesão social e a uniformidade, no passado e no presente.

Palavras-chave: Museus; Musealização da Arqueologia; Gênero; Representação; Colonialidade

Abstract: Historically, museums and archaeological heritage were born associated with the
construction of national identities, in which a form of full citizen emerged: man, white, heterosexual
and proprietary. In Western modernity, the collections and estates elected as worthy of being in a
national memory can be understood as another axis of oppression and subordination of women and
other 'minorities'. How have these assemblages occurred in the external subjects of oppression, as in
Latin America, and more specifically in Brazil? How did the coloniality of power operate in these
contexts? This research aims to construct strategies for the analysis of the representations of gender in
processes of Musealization of Archeology. In this way, it integrates the fields of Archeology and
Museology, aiming to build bridges between these fields, mapping new forms of representation.
Particularly relevant is a critical analysis of these constructions as part of a broad spectrum of
assemblages and standardizations, aiming at social cohesion and uniformity in the past and present.

Key-words: Museums; Musealization of Archeology; Gender; Representation; Coloniality.

1262
“a sua prática é feminista se as questões de pesquisa nas quais você se engaja
são animadas por compromissos ativistas. As questões que você escolhe para
trabalhar devem ser relevantes para a vida das mulheres e das minorias. São
questões sobre sistemas de desigualdade social que, se respondidas,
fornecerão as fontes necessárias para efetivamente lidar com a injustiça
social”.
Alison Wylie, 2014

Essa comunicação tem como intuito aproximar reflexões já tecidas em trabalhos


anteriores na linha de pesquisa “Musealização da Arqueologia” (MORAES WICHERS, 2010,
2011, 2013/2014) - voltada a deflagrar procedimentos de salvaguarda e comunicação do
denominado patrimônio arqueológico - com críticas feministas acerca das representações de
gênero. A partir de tais estudos, foi possível evidenciar que os processos de musealização têm
a potencialidade de abordar não apenas as coleções e sítios arqueológicos, mas também as
narrativas arqueológicas – construídas pelas/os especialistas do campo, e as narrativas nativas
– construídas pelas comunidades, coletivos e segmentos sociais diversos. Essa mesma
operação gera novos discursos, aqui denominados como narrativas museológicas.

Coloca-se como especialmente relevante uma análise crítica das narrativas


arqueológicas e museológicas como parte de um amplo espectro de normatizações, assim
como sua permeabilidade ou não às narrativas nativas ou comunitárias. O que vemos na
arena museológica e patrimonial é o produto de práticas sociais, nas quais operam seleções
desde a coleta, entendida como extração física ou conceitual (MAIRESSE, 2011), até a
comunicação dos vestígios arqueológicos. Nesse jogo de tensões, o poder é semeador e
promotor de memórias e esquecimentos; não existe uma verdade a ser descoberta pelo
conhecimento científico, uma vez que todo saber é resultado de lutas (FOUCAULT, 1979,
1985).

Convém pontuar que a configuração dos museus e da Arqueologia como disciplina


científica se deu no século XIX, no bojo da construção das identidades nacionais europeias,
fortemente imbricada com os colonialismos e imperialismos. Em uma perspectiva histórica,

1263
os vestígios materiais inseridos nos museus compõem um processo bem mais longo, estando
associados ao colecionismo, aos gabinetes de curiosidades e à própria gênese das instituições
museológicas.

Na modernidade ocidental, as identidades nacionais foram marcadamente machistas e


sexistas, contribuindo com a opressão e subordinação das mulheres e outras minorias. Dessa
feita, coloca-se como especialmente relevante uma análise crítica da prática arqueológica e
museológica como parte de um amplo espectro de agenciamentos e normatizações, tendo
como objetivo a coesão social e a uniformidade, no presente e no passado. Como esses
agenciamentos se deram nos sujeitos externos da opressão, como na América Latina, e, mais
especificamente, no Brasil?

A relação entre museus, patrimônio arqueológico e a construção da memória social


coloca-se como caminho a ser desvelado. As representações são produtoras de memórias e
esquecimentos, marcadas de fluidez e de dinamismo. Ou seja, tratam-se de processos em
curso, os quais podem e devem ser interpelados por uma crítica feminista da ciência (WYLIE,
2014).

Em um primeiro momento, apresentarei algumas características das denominadas


“ondas” do feminismo, inserindo observações sobre como esses movimentos foram sentidos
ou não pelos museus, Museologia, patrimônios e Arqueologia. Em um segundo momento,
apresentarei o conceito de memórias exiladas, oferecido por Cristina Bruno (2005),
aproximando-o dos conceitos de representação e de violência epistêmica. Por fim, trarei
elementos da engrenagem da Musealização da Arqueologia, destacando o papel das narrativas
nesse quadro, abordadas a contrapelo, como proposta de Walter Benjamim, assim como a
potencialidade de construção de narrativas museológicas marcadas pela fluidez e pelos
deslocamentos. Dessa feita, esse texto pretende fornecer alguns conceitos e estratégias para a
análise das construções de gênero na Musealização da Arqueologia.

1264
Sobre feminismos

Ainda que conte com antecedentes que chegam a cinco séculos, a chamada primeira
onda do movimento feminista pode ser situada no século XVIII, caracterizada por demandas
de igualdade, emancipação e luta pelo direito ao voto. Essa onda feminista não teve
repercussão direta na produção arqueológica e museológica, mas algumas de suas premissas
e, inclusive, posturas colonialistas fazem eco na produção arqueológica contemporânea.
Segundo Azadeh Kian (2010), obras como a de Mary Wollstonecraft, “Reivindicação dos
direitos da mulher” revelam olhares colonialistas que não deixam de marcar também as
mentalidades no presente. Devemos lembrar que a Arqueologia e os museus estiveram
estreitamente vinculados ao colonialismo e que o fato dos museus europeus estarem repletos
de objetos arqueológicos vindos do roubo e da pilhagem, por exemplo, não é neutro. No
Brasil, o século XIX, por exemplo, foi marcado por pesquisas arqueológicas associadas
diretamente ao controle dos territórios e dos povos indígenas, a esses eram dadas duas
alternativas: o controle do Estado Imperial ou o extermínio.

No que concerne aos museus, essa ‘primeira onda’ esteve associada a diversas ações
de protesto de mulheres sufragistas nos museus, como nos informa a obra de Carla
Zaccagnini. “Elementos de beleza” é uma obra e livro da artista, lançados em 2012, sobre as
sufragistas de Londres e Manchester, nos anos 1910. A publicação reúne material de arquivo,
fotografias, recortes de jornal e registros criminais a respeito da seção considerada mais
radical do movimento, que defendia o direito de voto para as mulheres nas eleições políticas.
A Women’s Social and Political Union (WSPU), organização de militância pelo voto
feminino, era adepta de táticas de ação não convencionais, que incluíam ataques a vitrines de
lojas, museus e pinturas, em especial aquelas que representavam nus femininos e retratos de
homens. Dessa forma, já na primeira onda do feminismo, os museus foram interpelados.

1265
Em 1935, Margareth Mead publica o livro “Sexo e temperamento em três sociedades
primitivas” (MEAD 1935/ 1979), um estudo comparativo entre sociedades a partir da seguinte
questão: seriam as diferenças entre o homem e a mulher meramente biológicas? Depois de ter
analisado três sociedades culturalmente diferentes, a resposta foi negativa. Décadas mais
tarde, a partir de 1970, os estudos antropológicos devotados à temática do gênero em diversas
sociedades se expandiram ao redor do mundo. No Brasil, o afastamento da prática
arqueológica do campo da Antropologia, apontado por Cristiana Barreto (1999/2000), pode
ser compreendido como uma das causas do tardio desenvolvimento de pesquisas
arqueológicas que envolvem explicitamente as questões de gênero. Insiro ainda nesse quadro,
o fato de que a Museologia também se aproximou tardiamente de perspectivas antropológicas
pautadas pela reflexividade, o que afetou também a produção museológica.

Em 1949, Simone de Beauvoir publica “O segundo sexo” (BEAUVOIR, 1949/ 2016).


A partir de então, a assertiva de que “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher” passaria a
inspirar diversos estudos e ativismos, afirmando que a mulher é uma construção social e que a
feminilidade é uma pretensão masculina para moldar as mulheres aos seus anseios.

Esses trabalhos ainda que não utilizassem o termo gênero, partiam da ideia de um
“sexo social” que influenciaria o feminismo de "segunda onda" — aquela que se inicia no
final da década de 1960. Além das preocupações sociais e políticas, o feminismo irá se voltar
para as construções propriamente teóricas. No âmbito do debate que a partir de então se trava,
entre estudiosas e militantes de um lado e seus críticos de outro, será engendrado e
problematizado o conceito de gênero. Destaca-se o texto de Gayle Rubin “Tráfico de
mulheres: notas sobre a ‘economia política’ do sexo” (RUBIN, 1975/ 1993), texto seminal
onde a autora propõe que a divisão entre os sexos e a subordinação das mulheres são
resultantes do sistema de sexo/ gênero.

Destarte, conforme aponta Adriana Piscitelli, o conceito de gênero foi

1266
“elaborado por pensadoras feministas precisamente para desmontar esse
duplo procedimento de naturalização mediante o qual as diferenças que se
atribuem a homens e mulheres são consideradas inatas, derivadas de
distinções naturais, e as desigualdades entre uns e outros são percebidas
como resultado dessas diferenças” (PISCITELLI, 2009, p.119).

O texto de Margareth Conkey e Janet Spector (1984) iniciou na Arqueologia um


debate conceitual, teórico e político acerca do gênero, a partir de uma abordagem feminista.
Essa observação é aqui colocada pois a Arqueologia Feminista e a Arqueologia de Gênero
divergem entre si, ainda que a segunda tenha se originado da primeira. Para María Cruz
Berrocal, a Arqueologia de Gênero se volta para o estudo dos indivíduos – homens e mulheres
– como sujeitos ativos, enfatizando suas relações, distanciando-se do feminismo, visto como
demasiadamente politizado. Por sua vez, “el feminismo es una práctica comprometida con la
definición y los límites de lo que es la ciencia, su objetividad, y las implicaciones de adoptar
un punto de partida teórico explícito” (BERROCAL, 2009, pp.25-26).

No concerne ao cenário museológico, temos nesse período o nascimento e a ampliação


dos denominados ‘museus de mulheres’ ao redor do mundo (VAQUINHAS, 2014). Dessa
forma, temos em um primeiro momento a inserção da categoria mulher. Em 1991, o periódico
Museum International trouxe um número dedicado às mulheres, em 2007, outro número seria
dedicado ao tema, mas agora pelo viés da categoria gênero.

Críticas a uma visão homogeneizadora do feminino e do masculino marcariam a


terceira onda do feminismo, surgida nas décadas de 1980 e 1990, com o questionamento da
categoria mulher e pela desconstrução do sujeito feminino. Podemos ressaltar o feminismo
negro – nascido na segunda onda, mas expandido e fortalecido nas últimas décadas, o
feminismo lesbiano, o feminismo pós-colonial e os diálogos com a Teoria Queer, onde
desponta a obra de Judith Butler (1990/ 2003).

1267
Algumas autoras compreendem que os feminismos desconstrutivistas seriam nas
realidade “pós-feminismos”, dando lugar a uma quarta onda. Na Arqueologia e na
Museologia Brasileira essas abordagens ainda são pontuais, sobretudo, porque esbarram no
desafio de uma prática feminista que nega a integridade ontológica do sujeito mulher, ao
mesmo tempo em que percorre um caminho de luta contra a invisibilidade e subordinação das
mulheres nas interpretações e práticas da Arqueologia e nas narrativas museológicas.

Sobre memórias exiladas


Cristina Bruno (2005) tem utilizado o conceito de Memórias Exiladas para
compreender a inserção dos vestígios arqueológicos na história social brasileira. Ao examinar
o que a autora denomina como “estratigrafia do abandono”, observei que quando
considerados na construção de uma identidade nacional, os vestígios arqueológicos são
associados à discursos que promovem a ‘antiguidade do Homem nas Américas’ – com a
ênfase em um masculino neutro, à existência de ‘sociedades complexas’ na Amazônia ou à
‘criação artística’ das sociedades ameríndias (MORAES WICHERS, 2010). A busca por
evidências que comprovem a existência de sociedades mais próximas a um ideal moderno de
civilização – masculino, branco e europeu - é marcadamente androcêntrica. Dessa feita, se as
narrativas arqueológicas ocupam um espaço marginal em nossa história social, as
representações das mulheres e das minorias têm sido ainda mais exiladas e silenciadas.

A relação entre vestígios arqueológicos, narrativas androcêntricas e memória social


coloca-se como caminho a ser desvelado. Para Myrian Sepúlveda dos Santos (2003/2012), as
representações coletivas podem ser responsáveis por processos de inclusão ou exclusão social,
assim, “a memória também é responsável pela imposição de coerções, exclusões e toda a sorte
de controle social”. Algumas autoras passaram a fazer uma distinção entre a memória que é
transmitida oralmente entre gerações, denominada memória comunicativa, e a memória que é
transmitida ao longo de séculos através de símbolos ou pontos fixos, a memória cultural. Essa

1268
última tem como especificidade o fazer lembrar a partir de pontos fixos, que representem um
gatilho para nossas memórias, como paisagens, objetos, livros, emblemas e monumentos
(SANTOS, 2013). Ora, as narrativas construídas a partir dos vestígios arqueológicos são
compreendidas aqui como parte da memória cultural e, desse ponto de vista, participam
ativamente nos processos de normatização de corpos e mentes.

A substância da memória é tanto individual quanto social, como adverte Marilena


Chauí: “o grupo retém e reforça as lembranças, mas o recordador, ao trabalhá-las, vai
paulatinamente individualizando a memória comunitária” (CHAUÍ, 1987: XXX). É nesse
jogo entre memória cultural e memória individual que devemos buscar também as redes de
resistência (BUTLER, 2015).

Marilena Chauí, dialogando ainda com a obra seminal de Ecléa Bosi (1987), fala da
opressão da memória, cuja ação mais sinistra seria a da “história oficial celebrativa cujo
triunfalismo é a vitória do vencedor a pisotear a tradição dos vencidos” (CHAUÍ, 1987: XIX).
Diversos estudos têm denunciado a ausência das experiências e conquistas das mulheres nos
discursos arqueológicos, como um mecanismo por meio do qual uma ideologia patriarcal se
replica, privilegiando a experiência masculina, como salienta Barbara Voss (2000).

Importante destacar que a Arqueologia ao abordar as mudanças e continuidades nas


sociedades humanas pode trazer contribuições para uma história de longa duração. Nesse
sentido, aspectos as sociedades indígenas multimilenares que ocupavam o território que
chamamos de Brasil colocam-se como campo de análise. Nesse sentido, o emprego do
conceito de patriarcado para análise dessas sociedades é largamente debatido na literatura
antropológica. Sobre o conceito de patriarcado podemos destacar duas visões antagônicas
acerca de sua existência: para um grupo onde se insere a antropóloga Rita Segato (2012), nas
sociedades indígenas existia, antes da colonização, um patriarcado de baixa intensidade,
marcado por uma dualidade hierárquica, que apesar de desigual, tinha plenitude ontológica e
política, a qual teria sido substituída com a colonização por uma estrutura binária; para outro
grupo, onde se insere Maria Lugones (2008), assim como a colonialidade trouxe a invenção

1269
do conceito de raça, também teria significado a criação do conceito de gênero para essas
sociedades, pois não existiria nesses contextos um princípio organizador parecido com o de
gênero do ocidente antes do “contato” e da colonização, postura com a qual também concorda
Breny Mendoza (2010/2017). Não pretendo aqui optar por uma ou outra interpretação, mas
salientar que esse é um debate extremamente profícuo para as questões aqui colocadas.

Para Stuart Hall (2016), as representações são atos criativos que atuam na construção
social da realidade, cujos significados não podem ser fixados. As representações estão
relacionadas ao que as pessoas pensam sobre o mundo e sobre o que ‘são’ nesse mundo,
guardando uma dimensão política. Assim, “não ter voz ou não se ver representado pode
significar nada menos que opressão existencial” (ITUASSU, 2016, p.13). Quando pesquisas
arqueológicas e instituições museológicas constroem narrativas impregnadas de
silenciamentos e de estereótipos das mulheres e outras minorias, acabam sujeitando-as a uma
violência epistêmica, conforme conceito elaborado por Gayatri Spivak. Essa violência é uma
forma de invisibilizar o outro, expropriando-o de uma forma de representação

“La violencia se relaciona con la enmienda, la edición, el borrón y hasta el


anulamiento tanto de los sistemas de simbolización, subjetivación y
representación que el otro tiene de sí mismo, como de las formas concretas
de representación y registro, memoria de su experiencia”.
(BELASTEGUIGOITIA, 2001, pp.237-238).

Sobre narrativas

A Arqueologia busca compreender as sociedades humanas a partir da materialidade


que conforma o registro arqueológico. Esse registro consiste na assinatura material das ações
resultantes da atividade humana que resistiram no tempo e no espaço. Dessa feita, a prática
arqueológica se orienta para os objetos e estruturas materiais produzidos, descartados e
continuamente modificados pela ação humana, envolvendo processos econômicos,
socioculturais e simbólicos. Não obstante, a prática arqueológica é aqui compreendida

1270
enquanto prática de colecionamento, como práxis que constrói coleções, espaços e narrativas,
sem amarras cronológicas.

A prática arqueológica é construtora de uma determinada realidade arqueológica -


conceito apresentado por Bruno (2005) e operacionalizado em trabalhos anteriores (MORAES
WICHERS, 2011, 2014). Essa realidade é composta por:

● Sítios arqueológicos - locais onde as evidências materiais são reconhecidas e alçadas a


patrimônio arqueológico;

● Coleções herdadas do passado - objetos advindos de pesquisas arqueológicas


efetuadas no passado, de estudos desenvolvidos pelos denominados arqueólogos
‘amadores’ ou de coletas realizadas pelos membros da comunidade;

● Coleções e acervos gerados na contemporaneidade - objetos advindos de trabalhos


arqueológicos efetuados no presente, os quais crescem exponencialmente, conforme
apresentado;

● Narrativas arqueológicas (orais, textuais, visuais e audiovisuais) - discursos


construídos pelas arqueólogas e arqueólogos;

● Narrativas nativas (orais, textuais, visuais e audiovisuais) – discursos construídos pela


sociedade, envolvendo tanto àqueles formulados por atores diretamente relacionados
aos vestígios materiais pesquisados, quanto os discursos produzidos por atores que não
se identificam diretamente com tais vestígios, mas que também os ressignificam;

● Narrativas museológicas (orais, textuais, visuais e audiovisuais) – discursos


construídos pelas instituições museológicas ou por processos de socialização da
Arqueologia, em um amplo senso, voltados a divulgar as narrativas arqueológicas. As
narrativas museológicas podem considerar as narrativas nativas, colocando-as em
perspectivas com os discursos do campo disciplinar da Arqueologia, ou ainda, serem

1271
os espaços de contestação das narrativas arqueológicas e de construção de narrativas
nativas e alternativas, inspiradas em outras epistemologias.

Chamo a atenção para o fato de que as narrativas a respeito dos vestígios


arqueológicos, como constituintes das identidades e construtoras da memória social, também
compõem a realidade arqueológica. Nesse sentido, as narrativas construídas pelas
comunidades, ressignificações e reapropriações desses vestígios no presente, são componentes
fundamentais do presente projeto.

A Museologia, como campo voltado a identificar e preservar nossos bens patrimoniais


e referências culturais, tem passado por mudanças teórico-metodológicas significativas, num
esforço constante de democratização não apenas do acesso, mas também da seleção e
produção do patrimônio cultural. Essas mudanças resultaram em novas designações como
Nova Museologia, Museologia Social, Sociomuseologia, Museologia Popular, Museologia
Comunitária, entre outras, expressões estas que correspondem a diferentes enfoques sobre o
objeto de estudo, mas que obedecem aos mesmos princípios essenciais que constituem a
Museologia (RECHENA, 2011). Nesse sentido, a Sociomuseologia ou Museologia Social
procura sintetizar o esforço de adequação das instituições museológicas à sociedade
contemporânea (MOUTINHO, 2007), enfatizando o alargamento das funções tradicionais dos
museus e o papel que essas instituições devem assumir na sociedade.

Considerações finais
De acordo com Rita Laura Segato (2012), as relações de gênero são uma cena ubíqua
e onipresente de toda a vida social. De uma forma ou de outra, as interpretações arqueológicas
e respetivas narrativas de musealização emitem discursos sobre gênero. Como memórias
exiladas e silenciadas, narrativas críticas acerca das normatizações e opressões de sexo,
gênero e sexualidade têm sido raras. A memória cultural construída a partir dos objetos
arqueológicos tem reforçado os estereótipos de gênero e a Arqueologia enquanto violência
epistêmica.

1272
Para muitas autoras, como a historiadora Joan Scott (1988), mais que a inclusão das
mulheres e da categoria gênero na análise histórica, as abordagens feministas impõem um
reexame crítico das premissas e dos critérios de trabalho existentes. Na Arqueologia, o papel
do feminismo evidencia que o registro arqueológico se forma através de um discurso de
gênero próprio da sociedade estudada e, a interpretação arqueológica, se forma através da
nossa própria, interiorizada e normalmente inconsciente, categorização de gênero
(BERROCAL, 2009). Dessa feita, as categorizações de gênero são diversas, no passado e no
presente, sendo necessário recusar interpretações homogeneizadoras.
Aqui vejo uma potencialidade dos estudos feministas de gênero na Arqueologia e na
Museologia, a partir de uma mirada pós-colonial, uma vez que tais estudos podem desvelar
múltiplas construções daquilo que denominados como sexo, gênero e sexualidade, no tempo e
no espaço, evidenciando o quanto a nossa categorização de gênero é moldada por um olhar
moderno e europeu, possibilitando “revisiter le mythe de la condition universelle des
femmes”, como nos aponta Azadeh Kian (2010, p.1).
Mais uma vez, como nos aponta Joan Scott (1988/ 1995), quando falamos sobre
gênero, estamos falando sobre relações de poder. Dessa forma, representações que em um
primeiro olhar aparecem como secundárias ou ingênuas, são situadas no que concerne à
marcação de diferenças e à construção de desigualdades.

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1277
PESQUISA PARA EXPOSIÇÕES EM MUSEUS: UMA ANÁLISE DA
EXPOSIÇÃO GÊNERO E JUDICIÁRIO: UM OLHAR SOBRE A
REPRESENTAÇÃO DA MULHER NO SÉCULO XX.

Bárbara Xavier Carvalho*


Camila Moraes Wichers**

Resumo: Esta pesquisa tem por objetivo apresentar a exposição “Gênero e Judiciário: um olhar sobre
a representação da mulher do século XX”, que aconteceu no Memorial “Arthur Francisco Seixas dos
Anjos” fazendo um estudo de caso e analisando os pontos em que a exposição poderia ter sido
explorada, estabelecendo com isso uma relação com a importância da pesquisa em museus. São
abordadas as ações de musealização, apresentando o conceito e mostrando porque estas ações são
importantes em uma instituição museológica, bem como as ações de musealização feitas no Memorial
“Arthur Francisco Seixas dos Anjos”, apresentamos a Museologia como campo interdisciplinar, uma
vez que a História contribuiu na pesquisa sobre as mulheres e as reclamações trabalhistas feitas por
estas sujeitas junto ao TRT8, e por fim, trato do Museu como instituição de pesquisa, uma vez que o
presente trabalho tem como objetivo fazer uma análise da exposição do Memorial ressaltando a
importância da pesquisa em museus e por fim, uma síntese da análise da exposição.

Palavras-chave: museu; memorial; gênero; trabalho; mulheres.

Abstract: That research aims to present the exhibition "Gender and Judiciary: a look at the
representation of women of the twentieth century", which happened in the "Arthur Francisco Seixas
dos Anjos" Memorial, making a case study and analyzing the points in which the exhibition could
have been explored, thereby establishing a relationship with the importance of museum research. The
actions of musealization are presented, presenting the concept and showing why these actions are
important in a museological institution, as well as the musealization actions done in the "Arthur
Francisco Seixas dos Anjos" Memorial, we present Museology as an interdisciplinary field, since the
history contributed to the research on women and the labor claims made by these subjects at TRT16
(Labor Court), and finally, I treat the Museum as a research institution, since the present work aims to
make an analysis of the exhibition of the Memorial emphasizing the importance Of museum research
and, finally, a synthesis of the analysis of the exhibition.

Keywords: museum; memorial; gender; work; women.

16
TRT – Tribunal Regional do Trabalho, Portuguese.

1278
A presente pesquisa tem por objetivo apresentar a exposição “Gênero e Judiciário: um
olhar sobre a representação da mulher do século XX”, que aconteceu no Memorial “Arthur
Francisco Seixas dos Anjos” fazendo um estudo de caso e analisando os pontos em que a
exposição poderia ter sido explorada, estabelecendo com isso uma relação com a importância
da pesquisa em museus.
Através de análises bibliográficas nacionais e internacionais sobre Museus e
Museologia foi percebido que o conceito de Musealização é bem recente. No entanto é
entendido que o termo Musealização é a valorização dos objetos e a valorização é feita através
da transferência do objeto para dentro do Museu sendo que quando ocorre essa transferência o
objeto entra em outro contexto, que é o do Museu. (CURY, 2005. p,23).

A Musealização é um processo que se inicia com a seleção realizada pelo


“olhar museológico” sobre as coisas materiais, ou seja, “(...) uma atitude
crítica, questionadora, capaz de um distanciamento reflexivo diante do
conjunto de bens culturais e naturais (...)” (CHAGAS, 1996:99). (CURY,
2005. p,23).

Levando em consideração a citação acima se pode dizer que Musealização é quando


damos significado a um objeto a partir de um olhar crítico e reflexivo sobre o mesmo que
retira esse objeto do cotidiano e o observa como fonte de informação. O Memorial da Justiça
do Trabalho da 8ª Região “Arthur Francisco Seixas dos Anjos” desenvolve suas ações de
musealização a partir do momento em que ele seleciona o que será colocado dentro do seu
espaço expositivo por aquisição ou empréstimo, registrando em seu inventário e procedendo à
sua conservação. Essa seleção se dá quando o objeto sai do seu contexto original para um
contexto artificial (o museu). O que vai determinar se o objeto é digno de ser adquirido e
exposto é o seu valor histórico ou simbólico que possa representar para o tribunal.

1279
A exposição Gênero e Judiciário

Este evento foi realizado juntamente a 12ª Semana Nacional de Museus promovida
pelo Instituto Brasileiro de Museus-IBRAM em maio de 2014 com a exposição “Gênero e
Judiciário: Um olhar sobre a representação da mulher do século XX” realizada no Tribunal
Regional do Trabalho da 8ª região. A exposição partiu de uma pesquisa no arquivo do TRT8
com reclamações de mulheres do século XX contando a partir do ano de 1940 até 1990. Com
essa exposição buscou se mostrar a trajetória da mulher no trabalho e como ela foi adquirindo
seu espaço e conquistando seus direitos no trabalho.

Portanto dialogar com outras áreas para essa exposição foi importante utilizamos a área de
conhecimento da História e do Direito, haja visto, que trabalhamos com as memórias das
mulheres, falando de um tempo da história que foi o período de lutas delas no mercado de
trabalho, e o uso do conhecimento jurídico, pois, a documentação usada são reclamações
trabalhistas das mulheres, além de que a instituição onde o estudo de caso foi feito é um
ambiente da área do direito, pois se trata de memorial da justiça do trabalho, vinculado ao
Tribunal regional do trabalho TRT8.

Pesquisa em museus
Partindo da ideia de que o museu é lugar de reflexão e busca de conhecimento,
onde damos valores e significados, valores que vão de histórico, estético das coisas,
podemos afirmar que o museu é lugar de pesquisas, já que, podemos dizer que pesquisa
resulta em conhecimento e a prática da pesquisa se transforma em conhecimento,
conhecimento esse que não necessariamente seria original.

A pesquisa é uma função básica do Museu, ela faz parte da identidade do Museu.
Então um museu que não desenvolve pesquisa é um museu que está
perdendo a sua identidade. Ele poderá ser um mostruário, poderá ser uma
coleção poderá ser uma outra coisa qualquer, mas não será um Museu
(CHAGAS, 2005, p, 61).

1280
Para Mário Chagas as pesquisas são de extrema importância para o museu. Este
autor faz observações bastante relevantes, ao falar que os museus operam em dimensões
que vão além do espaço tridimensional das coisas, citando assim Stocking Jr., onde o este
fala a respeito de pelo menos quatro dimensões que é a dimensão do tempo, da história ou
da memória, dimensão do poder, dimensão da riqueza e a dimensão da estética. Já Mario
chagas acrescenta mais duas, que é a dimensão do conhecimento ou do saber e a dimensão
lúdico- educativa. Para ele os museus têm o desejo de ensinar e de funcionar como suporte
de conhecimento. Ele acredita que quando o museu reúne coisas de valor e “adjetivadas” a
intenção é que essas coisas não sejam esquecidas e que sejam representadas com um
valor.
Para Mário Chagas os museus operam com três funções que para ele são básicas
para o museu, são: a preservação, a comunicação e a investigação. No caso os museus são
“casas de preservação” como ele mesmo chama, ele quer dizer que o que os museus
preservam vai além das coisas, pois além de preservarem as coisas, eles usam essas coisas
preservadas para comunicar algo e no caso ele diz que os museus também são “casas de
comunicação” e de investigação para ele o museu só é completo quando ele consegue
preservar, comunicar e investigar e ai ele deixa claro a importância da pesquisa na função
do museu e de que museus são também “casas de pesquisa”.
O ato de colecionar abarca em sistematizar valores para a circulação dos objetos, pois
os objetos para serem reconhecidos como objetos de valor é preciso que haja um
reconhecimento por parte de referenciais, com isso o objeto será incluído em uma coleção e o
valor será agregado ou diminuído dependendo das transformações que ocorreram no uso do
objeto. Sendo assim esses objetos poderão servir como fonte de pesquisa. Para Köptcke
(2005) o acervo, que no caso ela chama de coleção funciona da seguinte forma, primeiro o
objeto saí do seu ambiente de origem e entra em outro universo que é do museu. Logo o
objeto passa por uma recontextualização, para fins de pesquisa, conservação passando a
comunicar através das exposições.

1281
[...] A coleção funciona como um jogo de recontextulizar dentro de um
mundo autônomo e hermético. A manipulação de tempos e espaços
diferentes são aspectos sinalizados por vários autores que analisam esta
prática. Eles evidenciam a arbitrariedade, em outras palavras, a construção
dessa lógica pra se considerar o arranjo de um conjunto de objetos como
uma recriação do mundo o ato de colecionar se refere, assim, ao desejo de se
apropriar o mundo, de classificar, que é um gesto de domínio, de poder sobre
a natureza e sobre a cultura, uma maneira de construir conhecimento.
(KÖPTCKE, 2005, p, 70).

No caso ela diz que a o acervo se recontextualiza a partir do momento em que ele
entra no museu e induzido pelo homem que o manipula, dessa forma o objeto do acervo passa
a ser um meio de conhecimento, principalmente de construção de saberes.
No entanto observamos que tudo funciona da seguinte forma, o museu é um campo de
pesquisa, pois ele é composto de conhecimentos diversos, o museu e tudo que ocorre dentro
do museu é através das pesquisas, abrindo uma série de práticas de pesquisas possíveis dentro
do museu, como a pesquisa documental, de acervos, de público, a pesquisa para exposições
etc. Para Mario Chagas não importa qual seja o entendimento que se tem por Museologia,
para ele é possível que se desenvolva um trabalho de pesquisa sério e criterioso, mesmo
compreendendo a Museologia no seu sentido mais tradicional, que é o estudo dos museus.

Não se pode avançar num determinado campo e conhecimento voltando-se


sempre, por insegurança, ao ponto zero ou, em melhor hipótese,
caminhando-se em círculo. É preciso correr o risco de ir em frente e perder-
se no caminho, sabendo que só se faz caminho ao caminhar (CHAGAS,
2005, p, 62).

Assim os Museus são campos de conhecimento, onde as exposições são capazes de


ensinar e serem fontes de pesquisa. Além de que, o museu reúne informações, pesquisa,
conserva e expõe, e assim cumpre seu papel de disseminador de conhecimento. Para que
o museu cumpra seu papel de fonte de informação é necessário que sejam realizadas
pesquisas com finalidades específicas, mas sempre visando o potencial informativo e
comunicacional característico da instituição.

1282
Estudo de caso sobre a exposição “Gênero e Judiciário: Um olhar sobre a representação
da mulher do século XX”
A iniciativa de desenvolver este trabalho veio por conta da exposição que compõe o
título deste tópico, a qual participamos trabalhando em todo o processo, tanto de musealização
quanto de pesquisa, montagem, documentação e na própria mediação deste evento. Com base
nas discussões apresentadas anteriormente, sobre o conceito de museu e Museologia e,
principalmente sobre o papel das pesquisas nos museus, pretendo neste capítulo realizar uma
reflexão acerca do impacto da prática de exposição do acervo do Memorial da Justiça do
Trabalho da 8ª Região.
A exposição com o nome de “Gênero e Judiciário: Um olhar sobre a representação da
mulher do século XX” foi realizada no Memorial “Arthur Francisco Seixas dos Anjos” do
TRT8ª com parceria de mais dois Tribunais do estado, o Tribunal de Justiça do Pará TJ/PA e
o Tribunal Regional do Trabalho TRE, exposição exibiu as reclamações de mulheres
trabalhadoras paraenses. O evento que ocorreu entre os dias 19 a 23 de maio de 2014. Contou
com a participação dos servidores e estagiários dos referidos Tribunais envolvidos que
ficaram encarregados de receber e dialogar com os visitantes acerca do tema da exposição.
A pesquisa para a exposição começou quando enviamos para o arquivo do TRT8 uma
solicitação para que fossem disponibilizados para nós do Memorial os livros com reclamações
trabalhistas a partir do ano de 1940, visto que foi quando as leis trabalhistas foram
consolidadas de acordo com o decreto-lei n.º 5.452, de 1º de maio de 194317, sendo assim
criamos um instrumento de coleta de dados na forma de uma ficha para anotações dos pontos
mais relevantes pra que a exposição ocorresse. A ficha que produzimos seguia o padrão
exemplificado abaixo, devendo ser preenchido com as informações indicadas em itálico:

17
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm acessado no dia 23/02/2015.

1283
TABELA 1
LIVRO: número do livro que tiramos a informação.
PESQUISADOR: nome da pessoa responsável pela coleta dos dados.
Nº DO PROCESSO: número do processo do qual a reclamação está
vinculada.
Nº DO ARQUIVAMENTO: o número em que o processo está arquivado.
DATA: data que a reclamação foi feita.
FOLHA: folha do livro de reclamação em que a informação foi coletada.
RECLAMANTE: nome que se dá a pessoa que reclama pelo seu direito
podendo ser pessoa física ou jurídica, no caso para essa exposição foi
utilizado somente reclamações de pessoas físicas.
RECLAMADO: nome que se dá a pessoa que sofre a reclamação, podendo
ser pessoa física ou jurídica.
OBJETO: o objeto é a reclamação, o motivo do qual a pessoa reclama, por
exemplo: auxilio a maternidade ou demissão injusta.

O critério de seleção do material de pesquisa foi considerar as reclamações feitas


somente por mulheres. Através dessa seleção foram obtidos vários dados como, os tipos de
reclamações, o ramo de atividade e as empresas. Também foram encontradas reclamações
contra pessoas físicas, muitas vezes isso significava serviços domésticos. No entanto é
possível dizer, que do ponto de vista informativo, a exposição apresentada pelo memorial não
foi muito explorada. Foram expostos apenas os processos mais atípicos, como reclamações de
coisas que hoje em dia são de direito da mulher, como: licença-maternidade, décimo terceiro e
férias. Esses direitos básicos que as mulheres de 1945 não possuíam, por isso foi preciso que
elas lutassem por eles até que as leis trabalhistas que lhes favorecessem fossem consolidadas.
Sendo assim foi feita uma pesquisa um pouco mais minuciosa destacando pontos em
que a pesquisa poderia ter sido mais explorada. Sendo assim foi feita uma análise utilizando
as mesmas reclamações que foram trabalhadas na exposição, com apenas um diferencial: foi
feito um recorte com três décadas. Começando com a década de 40, foi utilizada essa década
por considerar que nela ocorreram vários acontecimentos, que impulsionaram as mulheres a
reclamarem, por exemplo, em 1940 foram observados os resultados preconceituosos da
legislação protecionista, quando a lei permitiu que fosse diminuído 10% do salário-mínimo
das mulheres, sendo que isso durou até 1946, quando ela desapareceu com a consolidação das

1284
leis trabalho CLT (FARINHA. p, 35. 2005). Sendo assim as mulheres começaram a reclamar,
pois, a proteção de trabalho que era dada a elas eram somente por estar relacionada a sua
fragilidade física, contudo podemos ver o quanto as próprias leis que “beneficiavam” as
mulheres eram de cunho machista e preconceituoso.
O segundo período selecionado foi a década de 50. Levando em consideração que em
meados de 1950, várias organizações feministas surgiram então elas lutavam muito pela
igualdade de salário e seria interessante observar como era essa dinâmica fazendo comparação
com a década de 40, provavelmente as mulheres da década de 50 eram mais exigentes em
relação aos seus direitos.
A terceira década trabalhada foi 60, pois ante as pesquisas feitas para a exposição do
Memorial, houveram muitas reclamações, acreditamos que o motivo tenha sido a revolução
sexual que ocorreu em 1960 e as mulheres estavam se sentindo mais independentes, pois, no
final dos anos 60 tivemos no Brasil a chegada das pílulas anticoncepcionais, marcando o
início da “liberação sexual”. Está observação corrobora o que diz Del Prori (2011, p.194): “O
surgimento da pílula tornou a mulher livre para escolher sua vida: adquirir estudos superiores
ou participar do mercado de trabalho, sem ser interrompida por uma gravidez”. Portanto pode-
se dizer que as mulheres começaram a sair de seus lares para o mercado de trabalho e a lutar
com ainda mais força pelos seus direitos. Mais especificamente 1967, quando ocorreu uma
reestruturação política instaurada sequencialmente ao golpe militar de 1964 e uma nova
Constituição foi promulgada, acredito que o grande número de reclamações observadas neste
período foi influencia destes fatos. Daí vê-se a importância de preservar essa memória das
lutas femininas na Região Norte.
Em seguida, depois de delimitar as décadas a trabalhar, foi feita uma conferência do
número de reclamações disponíveis por década, levando em consideração apenas o material
utilizado na exposição. Depois, foram criadas planilhas em formato .xls, onde cada uma
corresponde a uma década. O levantamento partiu dos tipos de trabalho, se era doméstico ou
externo, já que não foi encontrado o trabalho rural dentre as reclamações analisadas, e

1285
também procedi ao levantamento do que era mais reclamado em cada década, conforme o
quadro abaixo:

TABELA 2
DÉCADA DE 40
RECLAMANTE RECLAMADO EXTERNO DOMÉSTICO OBJETO
Nome das Pessoa que sofre Trabalhos em Empregadas Tipo do
Mulheres acusação, empresas, domésticas. documento, no
trabalhadoras que podendo ser indústrias ou caso,
abriam a jurídica ou física. usinas. Reclamações.
reclamação junto
ao TRT 8.

Ademais, tudo que foi inserido na planilha serviu como dados a serem inseridos nas
tabelas. Primeiro foi realizada a conferência todas as reclamações da década de 40, depois
conferidos todos os trabalhos externos e domésticos, em seguida separadas as reclamações por
categoria, e tudo foi contabilizado para que fosse obtido o resultado do que era mais
pertinente, de modo a obter os resultados nas tabelas a baixo, seguidas de suas análises.
TABELA 3
VALORES REFERÊNCIAIS
DÉCADA RECLAMAÇOE EXTERNO DOMÉSTICO RECLAMAÇOES
S S MAIS
PERTINENTES
40 74 61 13 1. Aviso prévio;
2. Dispensa
injusta;
3. Férias.
50 31 28 03 1. Aviso prévio e
diferença
salarial;
2. Férias;
3. suspensão.
60 80 80 - 1. Aviso prévio;
2. Férias;
3. Gratificação
de natal.

1286
Analisando a tabela de nº 01, podemos verificar que a década de 60 foi a que mais
obteve reclamações, no entanto é percebida a ausência do trabalho doméstico, haja vista que
esses valores foram coletados somente do material cedido para a exposição. Assim, sabe-se
que foram muito mais reclamações, a supor pelo material que permaneceu no Arquivo.
É observada uma queda no trabalho doméstico entre as décadas de 40 e 60, todavia as
mulheres reclamavam quase sempre das mesmas coisas no período analisado, estando o aviso
prévio no topo das reclamações ao longo dos 30 anos.
Na década de 50 o aviso prévio empatou com a diferença de salário, uma vez que era
praxe as mulheres receberem um salário bem menor que o salário mínimo vigente a época.
Provavelmente as empresas não seguiam as leis estipuladas pela CLT (1946) que extinguia a
lei que se aplicava em 1940 que permitia que as mulheres recebessem 10% a menos do valor
do salário mínimo estabelecido para os homens, com isso podemos concluir que essas leis
começaram a vigorar tardiamente, já a categoria que fica em segundo lugar na década de 40 é
a dispensa injusta. Acredito que o motivo deva ser por conta do gênero, pois, a legislação
trabalhista estabelecia condições especiais para o trabalho feminino, principalmente a
gestantes, portanto muitas mulheres eram demitidas por estarem gestantes.
Continuando a análise, podemos ver que em segundo lugar ficaram as férias, tanto na
década de 50 quanto em 60, isso nos leva a refletir sob como as mulheres eram discriminadas,
onde nem o direito a férias elas tinham, em que muitas vezes trabalhavam horas a mais, já na
década de 40 era menor o número de mulheres que reclamavam por férias, o que foi
intensificando nas décadas de 50 e 60, no entanto o que fica em terceiro lugar na década de
50 foi a suspensão, que reflete também na questão da maternidade, muitas mulheres ficavam
suspensas de seus trabalhos por apresentarem sintomas de gravidez, ninguém queria as
grávidas em suas empresas, e muitas vezes essa suspensão gerava em demissão injusta. Já na
década de 60 começam a reclamar sobre a gratificação de Natal.
A gratificação de Natal era um salário a mais que as empresas davam aos funcionários
que prestaram um bom serviço durante o ano, e isso acabou tornando-se o décimo terceiro

1287
salário, que começou a ser obrigatório em 1962 quando foi instituída a lei de nº 4.090/196218
que garantia o dobro do salário no final do ano a todos os empregados amparados pela CLT.
Na tabela nº 02 podemos verificar quais eram as empresas que existiam nessas determinadas
décadas e quais foram as que mais receberam reclamações.

TABELA 4
DÉCADA 40 DÉCADA 50 DÉCADA 60
EMPRESA QUANT. EMPRESA QUANT. DE EMPRESA QUANT.
S DE VEZES S VEZES QUE S DE VEZES
QUE FORAM QUE
FORAM CITADAS. FORAM
CITADAS CITADAS.
Renda a priori 07 Clinica São 05 Indústria 15
e cia Vicente. Matias

Luiz 10 Usina São 10 Rodobrás 04


Machado e Vicente
cia
Brasil 08 Usina Santo 14
extrativista Amaro
Cia indústria 05
Brasil
Confeitaria 05
americana

Conforme a tabela da década de 40, a empresa mais reclamada foi a “Luiz Machado e
CIA”, na década de 50 a campeã de reclamações de acordo com os livros de reclamações
analisados, foi a “Usina Santo Amaro”, as reclamantes eram operárias, ademais na década de
60 a reclamações predominaram na “Indústria Matias”, também do setor secundário. Logo
concluímos que as reclamantes exerciam o trabalho como operárias em indústrias, devido ao
grande avanço das indústrias, muitas dessas as mulheres se submetiam a esses trabalhos para
garantirem sua independência ou para contribuir com a renda familiar, essa oferta de trabalho
nas indústrias se dava por conta da mão de obra das mulheres ser mais barata. Vale lembrar
que à época a mão de obra infantil também era explorada, durante as pesquisas foi possível
observar que existem algumas reclamações de menores, a exemplo da reclamação feita na
18
Lei disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4090.htm acessada no dia 23/02/2014.

1288
década de 40, uma mulher e mais sete pessoas (todas operárias) da empresa Brasil
Extrativista, incluindo menores, foram reclamar por aviso prévio. Isso é apenas um exemplo
do quanto a mão de obra feminina e infantil era explorada.
TABELA 5
TIPOS DE RECLAMAÇÕES
DÉCADA DE 40: QUANTIDADE:
Auxílio enfermidade; 01
Folga; 01
Horas extras; 03
Auxilio maternidade; 03
Desconto indevido; 03
Indenização; 05
Diferença salarial; 13
Pagamento de salário; 16
Férias; 23
Dispensa injusta; 25
Aviso prévio; 43

DÉCADA DE 50: QUANTIDADE:


Auxílio enfermidade; 02
Folga; --
Horas extras; 03
Auxilio maternidade; 02
Desconto indevido; 01
Indenização; 02
Diferença salarial; 07
Pagamento de salário; 03
Férias; 06
Dispensa injusta; 02
Aviso prévio; 07
Suspensão; 05
Homologação de dispensa; 03

DÉCADA DE 60: QUANTIDADE:


Auxílio enfermidade; 02
Folga; --
Horas extras; 18
Auxilio maternidade; 03
Desconto indevido; 03
Indenização; 30
Diferença salarial; 19
Pagamento de salário; 12
Férias; 39
Dispensa injusta; --
Aviso prévio; 49

1289
Suspensão; 03
Repouso remunerado; 03
Homologação de dispensa; 01
Gratificação de natal; 36
Correção monetária; 01
Fundo de garantia FGTS; 09
Falta de assinatura na carteira profissional; 02
Salário família; 02

A tabela de nº 03 trata dos tipos de reclamações mais comuns das trabalhadoras


belenenses.
Na década de 40, como podemos ver as mulheres quase não reclamavam sobre direitos
como: auxilio enfermidade, direito a folga, horas extras, auxilio maternidade. O aumento de
reclamações ao longo da década de 40 ocorre justamente porque foi nessa década que as
mulheres começaram a lutar de fato pelos seus direitos em função primariamente da
consolidação das leis do trabalho em 1946 e da maior independência feminina influenciada
pela segunda guerra mundial.
Nas décadas de 50 e 60 não foi registrada nenhuma reclamação de direito a folga,
porém surgem dois tipos novos de reclamação que não foram registrados na década de 40: A
suspensão e homologação de dispensa. A suspensão se tratava de suspensão de contrato, pois
muita das vezes as empresas contratavam a mão de obra feminina e depois suspendiam sem
justa causa, sem pagar aviso prévio e outras coisas mais.
A homologação de dispensa é o mesmo que rescisão de contrato, ou seja, a
empresa não queria pagar a homologação de dispensa do empregado, geralmente isso
acontecia por conta de a empregada estar grávida.
Na década de 60 entram novas categorias também, como o repouso remunerado, a
gratificação de natal (décimo terceiro), correção monetária, fundo de garantia (FGTS), falta de
assinatura na carteira de trabalho e salário família.
O repouso remunerado era o não desconto pelos feriados e finais de semana, a
gratificação de natal, era correspondente ao décimo terceiro salário, a correção monetária era
os reajustes no salário de acordo com o mercado, também podemos observar a entrada do

1290
fundo de garantia o FGTS, que foi instituído em 1967, para proteger os empregados demitidos
sem justa causa, é por isso que na década de 60 não se fala mais em dispensa injusta, e sim em
direito ao FGTS, esse direito era uma forma de acabar com a estabilidade do trabalhador, pois
a estabilidade era quando um trabalhador fazia dez anos na empresa, e se tornava estável não
poderia ser demitido, exceto por justa causa (Agencia Brasil, 2013), o FGTS foi instituído sob
a lei 4090/62 a mesma do décimo terceiro.
Outra categoria é falta da carteira assinada, muitas empresas nessa época não queriam
assinar as carteiras para não pagarem os devidos direitos às mulheres trabalhadoras. Também
temos a vinda do salário família que em 1963, por meio da lei nº 4.26619 que institui o salário
família no Brasil.
Haja vista, que essa exposição que conta a trajetórias das mulheres no mercado de
trabalho, é tão importante que no presente trabalho tornou-se objeto de pesquisa, e se tivesse
sido melhor trabalhada poderia ter tido maior alcance para a sociedade em geral, já que o
memorial é aberto ao público e não se limita apenas a comunidade jurídica.

A relevância de pesquisar as reclamações trabalhistas das mulheres que foram


documentadas pelo memorial “Arthur Francisco Seixas dos Anjos”

Trabalhar as reclamações trabalhistas das mulheres é importante por uma série de


fatores, primeiro por serem reclamações trabalhistas de mulheres, grupo social que ainda hoje
vem passando por diferenciação em alguns setores empregadores, sendo assim possibilitaria
uma preservação da memória da mulher como forma de valorização da árdua conquista das
mulheres no mercado de trabalho e mais especificamente das mulheres da Região Norte com
isso mostramos a relevância das lutas das mulheres em busca de seus direitos. Logo é de
grande importância uma pesquisa como essa, pois como podemos ver as mulheres até hoje
sofrem algum tipo de preconceito apenas por conta de seu gênero e isso em pleno século XXI,
pois ainda temos reflexo de uma sociedade machista, conservadora e autoritária, onde as

19
Lei disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4266.htm acessado no dia 23/02/2014.

1291
mulheres são vistas como submissas, um exemplo disso é a grande quantidade de casos de
violência contra a mulher. A mulher tem seus direitos trabalhistas assegurados, mas muitas
vezes é negligenciado. Por isso trabalhar essa documentação é importante, não só para
mostrar essa trajetória de lutas, mas principalmente reconhecer que a luta foi árdua e o quanto
a mulher sofreu e sofre pra conseguir ser vista como um ser humano competente tanto quanto
o homem.

[...] [as] diferenças de gênero são elementos centrais na estrutura de


oportunidades no mercado de trabalho, tanto nacional, quanto estrangeiro. A
busca de igualdade de oportunidades e de tratamento entre homens e
mulheres é presença constante nos ordenamentos jurídicos aos direitos
humanos (NOVAIS, [s.d.] apud FONTES, [s.d], [n.p]).

É muito importante para nós mulheres vermos essa conquista, mesmo que ainda haja
preconceitos e desigualdades, tivemos um grande avanço, só pra temos uma ideia durante a
história a mulher sempre foi vista como um ser submisso, pois no século XVII, o homem
judeu fazia as suas preces da manhã, agradecendo por não ter nascido mulher (FARINHA, p.
19, 2005) a oração era a seguinte “Bendito seja Deus nosso Senhor e Senhor de todos os
mundos por não ter me feito mulher” e as mulheres rezavam assim “Bendito seja o Senhor,
que me criou segundo a sua vontade”. (BOSSA, apud. FARINHA, 2005). Além de submissa
a mulher era resignada. O próprio Platão agradecia aos deuses, por ter sido criado livre não
escravo e por ter nascido homem e não mulher (BEAUVOIR, apud. FARINHA, 2005). Dessa
forma, concluímos que as mulheres o quanto essa luta foi importante, e poder ter a acesso a
essa informação é gratificante para nós mulheres, só assim conseguimos ver o quanto a
mulher sofreu para alcançar a posição dos dias atuais, sendo que a cada dia as mulheres vão
conquistando mais espaço e assumindo postos que antes só os homens podiam.

Considerações finais
Considerando-se que as coleções são as bases de sustentação dos museus, e estes
“locais de memória”, que têm como uma de suas principais características a diversidade e a

1292
heterogeneidade do acervo que os compõe, torna-se necessária a garantia de sua integridade,
para que possam cumprir seu papel de fonte de pesquisa, informação, produção e
disseminação de conhecimento (KÖPTCKE, 2005).
Mediante ao que foi dito acima, podemos dizer que um acervo bem organizado e
documentado, facilita muito na hora de organizar uma exposição. Isso é comprovado na
pressente pesquisa, pois é importante que se leve em consideração a importância da
conservação de acervos nestes espaços de salvaguarda da memória, já que ele possui caráter
de fonte de pesquisa.
O estudo aqui desenvolvido foi sedimentado na importância da prática da pesquisa em
museus, trazendo à tona, o quanto uma boa pesquisa, facilita na hora de pôr em prática
qualquer outro tipo de ação, seja de documentação ou conservação do acervo, de exposição e
de público. Vimos também de quantas formas poderia ter sido trabalhada essa documentação
de acervo expositivo, pois a exposição poderia contribuir mais e melhor para a disseminação
de conhecimento já que a função de uma exposição é comunicar, através da exibição tornando
as informações públicas.
O conteúdo da exposição é de grande relevância para a sociedade, uma vez que a
exposição estudada visava à preservação da memória de lutas pelas quais a mulher passou,
sendo que a exposição é um ato de seleção que busca salvaguardar com fins de estudo e
transmissão de conhecimento e dessa forma, difundir as informações de relevância para
sociedade, garantindo uma boa fonte de pesquisas e disseminação de conhecimento, através
da comunicação.
Dessa forma podemos concluir que ter uma organização e um mecanismo que facilite
essas buscas é fundamental para o trabalho de pesquisa. Não há como desenvolver nenhum
trabalho nos museus se a documentação do acervo e sua pesquisa não estiverem atualizadas e
consolidadas. Deste modo podemos buscar auxilio da ciência da informação também, com a
informatização, no caso a conversão digital da documentação dos acervos museológicos, seria
uma importante ferramenta para melhor gerenciamento das coleções.

1293
A preocupação com a documentação museológica é um grande aliado para que se faça
uma boa exposição, pois, a documentação organizada facilita o acesso aos registros,
possibilita intercâmbios entre culturas, além da própria expansão do debate da apresente
pesquisa sobre os percursos de uma construção da história do trabalho da mulher no norte do
Brasil.
Sendo assim, podemos dizer que fazer um bom trabalho de pesquisa nos museus
necessita de uma equipe multidisciplinar, pois uma exposição bem trabalhada é resultado de
uma pesquisa bem aprofundada e alcance um bom grau de aprofundamento é importante que
a documentação esteja bem organizada, porém isso quase nunca ocorre. Para que a exposição
tenha sucesso, é necessário ter sensibilidade e um olhar museológico.
Levando em consideração que através das exposições é possível ensinar e produzir
conhecimento, chego à conclusão de que a exposição é o meio pelo qual o museu alcança esse
objetivo, e o acervo é a fonte de conhecimento, porque o conteúdo da exposição é produzido
tendo como ponto de partida o acervo, que mediante a pesquisa, que precisa ser consciente e
responsável, alcançamos os resultados junto ao público. Deste modo, posso dizer que toda a
pesquisa desenvolvida no e pelo museu reflete no caráter da exposição.
Como podemos ver a presente pesquisa parte da análise dos Livros de Reclamação os
quais oferecem uma visão parcial de três décadas. Este material embora tenha grande
potencial informativo, na exposição analisada, observamos que não foi desenvolvida pesquisa
do conteúdo, implicando assim em uma exposição superficial, que apesar de possuir um
riquíssimo potencial, não alcançou o objetivo de comunicar ao público de forma eficiente, a
qual seria a promoção da reflexão sobre o itinerário percorrido pelas mulheres trabalhadoras
na luta por seus direitos, pois a função das exposições e gerar indagações e conhecimentos. As
exposições museológicas visam o potencial informativo e comunicacional, se elas não
atendem a esse requisito, provavelmente se trata de uma exposição superficial.
Sendo assim, é de extrema necessidade que a pesquisa, bem como o planejamento das
exposições, seja realizada com antecedência, pois uma exposição por mais simples que seja,
necessita de tempo e de uma pesquisa bem detalhada tanto para subsidiar os textos

1294
expositivos quanto para todo o material de divulgação e difusão. Isso não quer dizer que uma
exposição precise ser rica ou luxuosa, pois como diz Thereza Scheiner (2006), “isso é mito”,
uma exposição bem elaborada não precisa de tanta riqueza e sim de qualidade, que é
proporcionada pela pesquisa bem aprofundada. Além de ter auxílio de uma equipe de
profissionais com um conjunto de saberes para poder transformar um conteúdo em exposição.
No entanto a exposição é um conjunto de conteúdos com objetivo de comunicar, informar e
produzir conhecimento, logo a pesquisa é a principal responsável por essa organização de
conteúdo, para que a comunicação ocorra da melhor forma possível. Entretanto, a exposição
tratada no presente trabalho, pode ser aprofundada em trabalhos futuros, haja vista o material
que se tem, a disposição; o tema, que trata da memória das mulheres trabalhadoras, e compõe
a narrativa da sua trajetória de lutas e direitos, e a relevância do assunto, que traz a discussão
sobre questões trabalhistas vinculadas ao gênero e
minorias sociais.

Referências Bibliográficas

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Cadernos de Estudos de Sociomuseologia, Lisboa: Universidade Lusófona de Humanidades
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Janeiro. v. 7. p. 51-64.

DESVALLÉES, André e MAIRESSE, François. Conceitos-chave de Museologia. Editores:


Bruno Brulon Soares e Marilia Xavier Cury. Tradução e comentários- São Paulo Comitê
Brasileiro do Conselho Internacional de Museus, Conselho Internacional de Museus,
Pinacoteca do Estado de São Paulo e Secretaria de Estado da Cultura 2013.

CURY, Marília Xavier. Exposição: Concepção e Montagem e Avaliação. / Marília Xavier


Cunha. - São Paulo: Annablume, 2005.

DEL PRIORE, Mary. Histórias Íntimas/ Mary del Priore: sexualidade e erotismo na história
do Brasil/ Mary del Priore – São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2011.

1295
FARINHA, Emília de Fátima da Silva. A Mulher e a legislação trabalhista/ Emília de
Fátima da Silva Farinha – Belém: UNAMA, 2005.

GUARNIERI, Waldisa Rússio. Museu, Museologia, Museólogos e Formação. Revista de


Museologia, São Paulo, v. 1, ano 1, n. 1, p. 7-11, 1989.

KÖPTCKE, L. S.. Coleções que foram museus. Museus sem coleções, afinal que relações
possíveis?. In: MAST Colloquia, 2005, Rio de Janeiro. v. 7. p. 65-79.

SCHEINER, Tereza C. Criando realidades através de exposições. In: Museu de Astronomia


e Ciências Afins – MAST M986 Discutindo Exposições: conceito, construção e avaliação /
Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST)- Organização de: Marcus Granato e Claudia
Penha dos Santos. Rio de Janeiro: MAST, 2006.

SCHEINER, Tereza C. Museologia e pesquisa: perspectivas na atualidade. In: MAST


Colloquia, 2005, Rio de Janeiro. v. 7. p. 85-100.

SITE do Tribunal Regional do Trabalho – TRT8 http://www.trt8.gov.br/ acessado várias


vezes.

1296
QUANDO A MEMÓRIA LGBT SAI DA RESERVA TÉCNICA: MAPEAMENTO
PRELIMINAR DOS MUSEUS, PATRIMÔNIOS E INICIATIVAS
COMUNITÁRIAS EM MEMÓRIA E MUSEOLOGIA SOCIAL

Tony Boita*
Camila Moraes Wichers*

Resumo: O presente trabalho objetiva-se em investigar museus, espaços de vocação museológica,


patrimônios e iniciativas em memória que promovam ações de preservação, ressignificação e
promoção de memórias de pessoas travestis, transgêneros, transexuais, lésbicas, bissexuais e gays.
Esta pesquisa desenvolveu-se em duas etapas. Na primeira, foram mapeados museus, patrimônios e
espaços de memória de referência, com ênfase aos que apresentam elementos de articulações com os
movimentos sociais do seu país, uma missão pró-memória LGBT ou a promoção de no mínimo duas
exposições nos últimos dez anos. Seguindo estes aspectos, o projeto identificou até o momento 80
museus e/ou espaços de vocação museológica e/ou iniciativas em memória em todos os continentes. Já
na segunda etapa do projeto, os museus mapeados passam a ser contatados por meio de
correspondência, em uma tentativa de coletar dados quantitativos e qualitativos, bem como, gerar um
acervo. Pretende-se, com isso, verificar as informações mapeadas e estreitar a comunicação com
profissionais de museus interessados na memória da comunidade LGBT.

Palavras – Chave: Memória; Sexualidades; LGBT; Museus; Patrimônio

Abstract: The present work aims to investigate museums, spaces of museological vocation, patrimony
and initiatives in memory that promote preservation, resignification and promotion of memories of
transvestites, transgenders, transsexuals, lesbians, bisexuals and gays. This research was developed in
two stages. In the first one, museums, heritage sites and reference memory spaces were mapped out,
with emphasis on those presenting elements of articulation with the social movements of their country,
an LGBT pro-memory mission or the promotion of at least two exhibitions in the last ten years.
Following these aspects, the project has so far identified 80 museums and / or spaces of museological
vocation and / or initiatives in memory on all continents. Already in the second stage of the project,
the mapped museums are contacted through correspondence, in an attempt to collect quantitative and
qualitative data, as well as generate a collection. The aim is to verify the mapped information and to
strengthen the communication with interested professionals in the memory of the LGBT community.

Keywords: Memory; Sexualities; LGBT; Patrimony; Museums

1297
Introdução

O presente trabalho objetiva-se em investigar museus, espaços de vocação


museológica, patrimônios e iniciativas comunitárias que promovam as memórias e histórias
LGBT através de ações de preservação, ressignificação e promoção de memórias das pessoas
travestis, transgêneros, transexuais, lésbicas, bissexuais e gays. Sua metodologia é divida em
etapas distintas que buscaram investigar e contatar através de cartas, estes espaços e
iniciativas que promovam ações de positivação da memória LGBT.

Na primeira etapa do estudo, iniciadas em 2011 foram mapeados museus, patrimônios


e espaços de memória de referência, com ênfase aos que apresentam elementos de
articulações com os movimentos sociais do seu país, uma missão pró-memória LGBT ou a
promoção de no mínimo duas exposições nos últimos dez anos. Seguindo estes aspectos, o
projeto identificou até o momento 80 museus e espaços de vocação museológica ou
iniciativas comunitárias em memória e história LGBT em todos os continentes.

Já na segunda etapa da pesquisa, os museus encontrados passam a ser contatados por


meio de correspondência, em uma tentativa de “(…) registrar o que os outros apagam quando
falo, para reescrever as histórias mal escritas sobre mim, sobre você” (AZALDÚA, 2000, P.
232). Esta etapa iniciou em julho de 2017, quando se iniciou a remessa de uma pequena carta
escrita à mão, um postal e um breve questionário. A carta é um convite para as instituições
integrarem-se ao projeto, servindo também para apresentá-lo, visando buscar, uma maior
experiência e diálogo com os espaços contatados (AZALDÚA, 2000, P. 233). O postal refere-
se à ação desenvolvida em 2015 pelo Museu de Favela Pavão, Pavãozinho e Cantagalo - MUF
e a Revista Memória LGBT – RMLGBT no Rio de Janeiro. O questionário é composto por 15
perguntas relacionadas a dados gerais, acervo e/ou coleção, redes e políticas. Todo o material
foi traduzido para o inglês, espanhol, alemão e francês. Pretende-se, com isso, formar um

1298
pequeno acervo, verificar as informações mapeadas e estreitar a comunicação com
profissionais de museus interessados na memória da comunidade LGBT.

Para o desenvolvimento deste estudo, convencionou-se o termo LGBT para designar,


lésbicas, gays, bissexuais, transexuais/travestis/transgêneros. Tal escolha justifica-se por
tratar de uma sigla utilizada desde 2009 pelo Estado Brasileiro para o desenvolvimento de
políticas públicas (BOITA, 2014). Destaca-se que enquanto norma, para a consolidação de
políticas públicas, iniciativas mercadológicas, além dá, necessidade de classificar as
identidades, criam-se siglas políticas, tal qual, a LGBT FACCHINI (2005, p.21) e BRAZ
(2010). Por outro lado, emergem dos movimentos sociais siglas representativas, que dão
ênfase aos grupos mais marginalizados e excluídos, como a TLGB20. Ressalta-se que optou-
se em respeitar as siglas utilizadas pelos museus e iniciativas comunitárias em memória e
história LGBT pesquisados, influenciado pelas políticas sociais de um período. No entanto,
sabemos que nenhuma das siglas conseguira abranger as múltiplas sexualidades.

Neste artigo, pretende-se apresentar os resultados preliminares da primeira etapa,


abordando 35 instituições do conjunto mapeado, sobretudo aquelas que apresentam relevância
para conhecer os principais aspectos dos esforços museológicos em prol da memória das
comunidades LGBT no globo. Para fins didáticos, dividiram-se as iniciativas em três campos,
o primeiro referente ao século XX (em especial de 1960 a 1990), o segundo concentrado nas
movimentações ocorridas no século XXI e, por fim, as realizações em território brasileiro.
Ressalta-se que esta pesquisa vem sendo aprofundada no Mestrado em Antropologia Social da
Universidade Federal de Goiás, sob orientação de Camila Azevedo de Moraes Wichers

Em conjunto, as iniciativas aqui consideradas compõem uma trama de desejos globais


de uma minoria que não quer esquecer seu passado e anseia por um futuro onde direitos civis
lhes sejam plenamente assegurados, em especial, o direito à memória.

20
Termo utilizado na Bolívia e impulsionado pelo Colectivo TLGB Bolivia.

1299
Memória, Poder, Identidade, Cultura, Museus Comunitários e Sexualidades não
normativas: Uma Aproximação

Neste estudo, entendemos que a memória é categoria viva, dinâmica, seletiva,


documental, manipulável e constante em conflito (RICOEUR, 2012). Para Mário Chagas
(2009, p.47) a memória passa a ser a ferramenta “utilizada para recordar, para comemorar,
para garantir a ordem inaugurada (no passado)” (CHAGAS, 2009, p. 47). Com isso, criam-se
espaços que rememoração ao passado, entre eles os museus, que se tornam ordenadores da
memória, dos saberes e das artes (CHAGAS, 2009, p.53). Michael Pollack (1989, p.10)
chama a atenção para as memórias ausentes, aquelas silenciadas, entre elas “os criminosos, as
prostitutas, os ‘associais’, os vagabundos, os ciganos e os homossexuais”. Contudo, por ser
seletiva, à memória sempre será disputada, surgindo assim as relações de poder, em especial
nos museus, espaços de memória e patrimônios (Chagas, 2009). Desta forma, A memória
através de uma seleção excludente, poderá resultar um efeito catastrófico aos os grupos
subalternos (SPIVAK, 2010), tais como, a comunidade LGBT.

As memórias oficiais são permeadas pelo poder (Foucault, 1977) (Chagas, 2006). Por
exemplo, podemos citar as casas de memórias, ou museus, espaços criados na modernidade
pelo ocidente para preservar a memória materializada, bem como, promover discursos e
narrativas oficiais. Neste exemplo é comum vermos as representações de um discurso que
visa a manutenção de um passado com sua tradição e conservadorismo, ou seja, o
protagonismo hegemônico do homem branco, ocidental e conquistador, uma representação
fiel na maioria dos museus e dos patrimônios culturais da humanidade, características do
poder masculino (RICH, 2010), afinal, manipular a memória é um “(…) dos métodos pelos
quais o poder masculino é manifestado e mantido.” (RICH, 2010, p.25). Curioso notar, que as
sexualidades e identidades humanas estão distante deste padrão museal. Como resposta, esses
espaços estimuladores da heterossexualidade compulsória (RICH, 2010) promovem uma

1300
única memória, negando todas as outras, ou então, estimulando o “(…) fechamento de
arquivos e da destruição de documentos relacionados com a existência lésbica” (RICH, 2010,
p.24), bem como, estimular propositalmente, o “apagamento da existência lésbica (...) na arte,
na literatura (...)”(RICH, 2010, p.26). Ressalta-se que estas ausências estimularam e
estimulam a perseguição e discriminação destes e outros grupos, em especial a memória das
pessoas que tinham relações entre o mesmo gênero. Por fim, a ausência da memória resulta a
longo e curto prazo em um profundo silenciamento social que perpassa pela memória e o
patrimônio cultural.

Segundo Mário Chagas o poder está em toda a parte, ele não é uma instituição, mas
está presente na sociedade (CHAGAS, 2009, p.63). Como exemplo desta tensa relação, temos
a formação dos acervos museológicos que tenta expressar à universalidade a partir da
memória de uma elite, tornando os museus espaços de uma memória forjada e que não
representa uma grande parcela da população, em especial a comunidade LGBT, de mulheres
ou de favela. Nota-se que estes espaços de memória podem ainda reverter essa situação
adotando um caminho capaz de “ampliar o acesso aos bens culturais acumulados, mas,
sobretudo, em socializar a própria produção de bens, serviços e informações culturais”
(CHAGAS, 2009, p.65). Portanto, a memória e o poder estão em constante tensão, cabem os
espaços de vocação museológica selecionarem a forma que irão se relacionar com o poder,
podendo ir além do óbvio e “estimular novas produções e abrir-se para a convivência com as
diversidades culturais” (CHAGAS, 2009, p.65) e sexuais.

A memória está presente no campo da cultura, ambas são dinâmicas e estão


entrelaçadas por códigos, signos e significados. Para, FERREIRA, (1994/95, p.117),
“somente aquilo que foi traduzido num sistema de signos pode vir a ser o patrimônio da
memória”, afinal, “é que de um modo ou de outro a cultura se dirige contra o esquecimento”
(IBID, 118). Desta forma, a cultura está diretamente ligada às pessoas, assim como as

1301
memórias, que são formadas e pré-estabelecidas através de normas e padrões (BUTLER,
2003) (BENTO, 2006).

Para Waldisa Russio Guarnieri21, em seu artigo “Museologia e Identidade” publicada


pela primeira vez em 1989 a Museologia é compreendida pela autora como a ciência do fato
museal, ou seja, a relação do homem/sociedade/comunidade, com um
objeto/coleção/patrimônio em um cenário institucionalizado ou não (museu
convencional/museu de território/museu de comunidade);

Ciência do fato museal ou museológico. O fato museológico é a relação


profunda entre o homem, sujeito que conhece, e o objeto, parte de uma
realidade da qual o homem também participa, e sobre a qual tem o poder de
agir. O fato museológico realiza-se no cenário institucionalizado do museu.
(Guarnieri, 1989, p.180)

Guarnieri tenta ainda em seus escritos, buscar outras definições, tais como o de
identidade cultural, memória e bens culturais, que serão respectivamente apresentados. Ao
definir a identidade cultural, ela afirma que ela não é exclusiva da memória coletiva, mas sim
de uma consciência coletiva dinâmica e que será exercida ao longo da vida do indivíduo,
afinal e segundo ela, “se o homem e a cultura são dinâmicos, móveis, cambiantes, por que
supor uma identidade estática, inerte, imutável?” (IBID, 177). No entanto, mesmo com uma
identidade cultural dinâmica, produzimos ou alteramos os bens culturais atribuindo novos
significados, no reconhecimento e alteração das paisagens naturais, rurais e urbanas, na
criação material dos bens móveis e imóveis, tudo isso a partir dos elementos afetivos, “A meu
ver, esses elementos – afetivos – são os maiores caracterizadores das culturas” (IBID, 178),
21
Waldisa Russio Camargo Guarnieri, em seu trabalho deteve-se em buscar teoricamente as bases científicas
para a Museologia, bem como, sua definição, objeto de estudo e metodologia. A partir da década de oitenta,
produz uma série de artigos, que em 2010 foram organizados por Maria Cristina de Oliveira Bruno e publicado
no livro “Waldisa Rússio Camargo Guarnieri: Textos e Contextos de uma Trajetória Profissional” em dois
volumes (2010).

1302
afinal, somos capazes de “criar significados e símbolos, de estabelecer valores, e que se
comunica por meio de diversas linguagens (oral, escrita, icônica, gestual), não poderemos
jamais esquecer a extensa e profunda gama de elementos afetivos (IBID, 178). Segundo ela,

A cultura é o fazer e o viver cotidiano; Cultura é o trabalho do homem em


todas as suas manifestações e aspectos, Cultura é a relação do homem com o
seu meio, com os outros seres, incluindo os outros homens. Cultura é a
projeção em que o homem se realiza; ou melhor a atividade em que ele se
realiza. Cultura é percepção, experiência, expressão; cultura é vida vivida.
(IBID, 208)

Nos museus e na prática museal, são propostas no México, a partir da década de 70 as


bases para uma Museologia Comunitária. Objetivando-se em protagonizar grupos e
comunidades invisibilizadas pela memória oficial. Com isso, são abertos novos caminhos para
a consolidação de espaços, entre eles, os museus que ultrapassam as paredes e o edifício. Essa
nova tipologia é construída com a comunidade, muitas vezes sem acervo, sem luxo e com
poucos recursos, e acima de tudo, feito por/para/com pessoas. Os museus comunitários, de
território, de favela, de percurso entre outros, são exemplos da subversão e apropriação dos
museus convencionais, talvez, seja a vocação da América Latina, museus distantes do
nacionalismo e do universalismo Europeu. Como aponta Wichers (2015, p.6).

Nesse contexto o ‘ator comunitário – pesquisador’ aparece como elemento


chave de uma Museologia que não constrói espaços onde a animação da
apresentação oculte a voz dos que falam, mas sim, espaços que destacam o
direito que têm os povos para falar de si mesmos, por si mesmos.

Em uma tentativa de definição do que vem a ser um Museu Comunitário, Teresa


Morales e Cuauhtémoc Camarena, apontam que (2009, p. 5), “Um museo comunitário es

1303
creado por la misma comunidad: es um museu “de” la comunidad, no elaborado
externamente “para” la comunidad.”, além de ser “una herramienta para que la comunidad
afirme la posesion física y simbólica de su patrimônio”, bem como, um espaço de
autoconhecimento, gerando “múltiples proyectos para mejorar la calidad de vida, ofreciendo
capacitación para engrentar diversas necesidades”, além de ser “um puente para el
intercambio cultural”. Desta forma, fica evidente que as memórias e bens culturais
representantes das sexualidades acompanharam estes novos formatos, uma vez, que os
espaços oficiais, produz um discurso conservador, hegemônico, autoritário e heteronormativo.

Nesta perspectiva, surgem novos anseios, angustias e inovações nos museus que
passam a perceber a heteronormatividade (RICH, 2010) como um problema tornando o
gênero e as sexualidades desnecessárias na prática museal. Segundo PINTO (2014, p.44),
“(…) há poucas mostras em museus que tratam especificamente de sexualidade humana, e
que dêem muita atenção aos temas ligados aos indivíduos ou grupos LGBT (…)”. Por outro
lado, alguns museus veem criando “políticas estas variaciones con respecto a la norma para
evitar sesgos androcéntricos y heterocentrados, y convertirse en un museo más inclusivo y
plural. (REVISTA DEL COMITÉ NACIONAL ESPAÑOL, 2013, p.5). Contudo, estes
espaços, devam rever sua cadeia operatória (Documentação; Conservação; Ação Educativa;
Expografia), afastando-se da heteronormatividade e aproximando-se de novas metodologias,
além da apropriação dos debates de gênero (SCOTT, 1995), (MOORE, 1991), (HARAWAY,
2004) e sexualidades (RUBIN, 1989) E (WEEKS, 2007) . No entanto, será possível encontrar
novas formas de preservação para as memórias marginalizadas e subalternizadas (SPIVAK,
2010). Desta forma, verifica-se que a invisibilização da memória, por vezes é proposital,
tornando-se necessário ocupar os espaços oficiais da memória que possuam uma narrativa
heteronormativa, além de, estimular a criação e/ou consolidação de novos equipamentos
culturais, capazes de possibilitar a ressignificação e positivação da memória de gays, lésbicas,
bissexuais, travestis e transexuais e de outras sexualidades.

1304
Por fim, chama a atenção o distanciamento dos museus ao tratar das memórias de
sexualidades não normativas, o que contribui para a promoção de normas culturais
hegemônicas e resulta nas fobias a diversidade sexual. Mesmo com os indícios, representados
nos acervos e coleções destes espaços, é raro ver ações que evidenciam as memórias da
comunidade LGBT. Ao que parece, os museus, patrimônios e iniciativas comunitárias em
memória e Museologia social, priorizam a heteronormatividade em detrimento de atos que
preservem e comuniquem o gênero e as sexualidades nos espaços de memória.

Museus, Patrimônios e Espaços de Memória para a Comunidade LGBT no Século XX

A partir da década de 60, diversas crises político-sociais produzem um contexto


intenso e carregado de rupturas. Na contracultura, grupos homossexuais, lésbicas e travestis
passam a se organizar, criando espaços de sociabilidade e a reivindicando seus direitos até
então negados, fenômeno acentuado com a chegada da pandemia provocada pelo HIV no
início dos anos 80 (WEEKS, 2007, p.37). Neste contexto, ativistas nos Estados Unidos,
Canadá, Austrália, Alemanha, Holanda, Portugal e Brasil passaram a concentrar esforços para
não se perder o conjunto das memórias de suas comunidades.

Neste mapeamento, a data mais recuada de uma iniciativa interessada na memória da


comunidade LGBT encontra-se em Tucson, quando em 1967 inaugurou-se o Tucson Gay
Museum — dedicado à missão de preservar a memória gay, seu acervo é composto por
fotografias e documentos hoje digitalizados e disponibilizados em seu site.

Quando se inicia a década de 1970, diversas iniciativas duradouras acompanham as


revoluções culturais que se difundiam pelo primeiro mundo. Na Flórida, encontra-se o
Stonewall National Museum & Archives, criado em 1972 e dividido entre museu e biblioteca
dedicados ao maior marco do movimento LGBT, a Rebelião de Stonewall. Em Toronto no

1305
Canadá, é criado em 1973 o The Canadian Lesbian and Gay Archives (CLGA), atualmente
um dos maiores arquivos que salvaguardam a memória LGBT, dotado de uma biblioteca,
arquivo e a promoção de diversas exposições museológicas. Em Melbourne, na Austrália, foi
criado em 1978 o Australian Lesbian and Gay Arquives durante a IV Conferência Nacional de
Homossexuais ( Fourth National Homosexual Conference), constituindo a primeira
instituição de memória comunitária na Austrália preocupada em preservar a memória de gays
e lésbicas e tendo em seu acervo objetos, documentos e fotografias disponível ao público para
consulta ou em exposições.

O que se percebe é que a década de 1970 foi fundamental para a organização dos
movimentos sociais e conseqüentemente o registro de suas memórias através da criação de
espaços dedicados a memória de grupos subalternizados. No entanto, ao final desta década
surgem diversas perseguições a homossexuais que vinham deste a década de quarenta,
segundo Rubin, (1986, p.170),

Por volta de 1977-78, houve uma repressão, para usar o termo da moda, em
Michigan, contra o sexo público de homossexuais masculinos. De repente,
os homens passaram a ser presos de forma muito agressiva por fazer sexo
em parques ou em salões de chá.

De maior impacto para os esforços pró-memória LGBT ocorre durante a década de 80,
sobretudo mediante a chegada de um novo elemento: o HIV, “una calamidad para la
comunidad gay” (RUBIN, 1989, p.169). Nos Estados Unidos, sob a presidência de Reagan, a
AIDS espalhou rapidamente. O vírus foi descoberto do início daquela década, mas o
presidente americano só se manifestou publicamente em 1987. Neste contexto foi criado em
1984, na cidade de Los Angeles, a instituição Tom of Finland Foundation, responsável por
preservar o acervo produzido pelo artista Tom Finland, além de abrigar obras homoeróticas de
outros artistas gay. Essa fundação disponibiliza seu acervo para diversas exposições no

1306
mundo e, sem dúvida, é um dos acervos mais difundidos no mundo. Em São Francisco, em
1985, o GLBT History Museum é criado com o objetivo de ser um museu histórico que
investiga, preserva e promove a memória GLBT. Em seu acervo possui documentos, áudio,
filmes e fotografias que retratam a história da AIDS, do movimento GLBT, bem como, o
ativista Harvey Milk que foi assassinado em 1978. Já no final da década, é criado em 1987 na
cidade de Nova York, o Leslie-Lohman Museum of Gay and Lesbian Art – guarda um acervo
com mais de 30 mil peças e desenvolve ações de preservação, bem como concentra pesquisas,
publicações e exposições museológicas. Possui ainda, uma importante base de dados
disponível na internet. Por fim, a década de 80, apesar da expansão de uma pandemia, viu o
nascimento de museus e uma fundação que preserva e expõe a arte homoerótica nos Estados
Unidos.

A Europa também não ficou indiferente a esta expansão da memória. Em 1984, é


aberta em Berlin a exposição Eldorado – the History, Everyday Life and Culture of
Homosexual Women and Men 1850-1950 no Museu de Berlin, fruto dos esforços
de estudantes e um grupo de lésbicas. A exposição foi vista por mais de 40 mil pessoas e com
isso, percebeu-se a necessidade de criar um museu para a comunidade LGBT. A partir desta
demanda comunitária, iniciou-se a criação do Schwules Museum. Nesta instituição criaram
uma associação em dezembro de 1985 e em 1986 inaugurou sua sede provisória para abrigar a
primeira exposição, trocando de endereço por duas vezes e ocupando seu atual endereço
desde 2013.

Em outro território, na Holanda, o primeiro país do mundo a aprovar o casamento


homoafetivo, existe em sua capital, Amsterdam, o Homomonument construído em 1987, a
poucos metros do Anne Frank Monument. Este monumento é dedicado às mortes e vítimas de
discriminação e perseguição a sexualidades não normativas da segunda guerra mundial. O
principal signo do monumento refere-se ao triângulo rosa, ícone utilizado por homossexuais

1307
nos campos de concentração do regime nazista. Inicialmente dedicado aos homossexuais e
lésbicas, posteriormente passou a incluir as pessoas travestis, transexuais, bissexuais.

A década de 90 é marcada por três fatos e iniciativas em memórias importantes. O


primeiro é a criação em 1993 na Austrália de uma lei que estabelece que os museus
australianos devam pautar em seu discurso a memória de LGBTQI e outros grupos
formadores da sociedade australiana, mas excluídos da memória oficial. Além do discurso, os
museus devem possuir acervos e políticas de ações educativas e culturais para este público.
Aparentemente, todos os museus vinculados ao Estado possuem acervos de temática LGBT,
conforme aponta o catálogo The Gay Museum. Outro fato importante é a criação Centro de
Documentação Gonçalo Diniz, em 1998, na cidade de Lisboa. Neste mesmo centro funciona o
único projeto formal encontrado em Portugal voltado à salvaguarda da memória LGBT, onde
se disponibiliza um vasto acervo de livros, revistas, trabalhos de investigação, vídeos, recortes
de jornais, entre outros materiais, sobre a temática. O terceiro fato importante é a criação do
Museu da Sexualidade pelo Grupo Gay da Bahia, na cidade de Salvador, Brasil, em 1998. Seu
acervo é composto por documentos históricos, biográficos, arquivos e objetos referentes a
sexualidade humana. Parte de seu acervo está disponível em sua base de dados. Após quase
quarenta anos, vemos surgir tanto no Brasil como em Portugal, iniciativas preocupadas na
preservação das memórias LGBT, bem como, a criação de uma lei que incentiva os museus da
Austrália a possuir acervos ou coleções voltadas à comunidade LGBTQI.

Desta forma, percebemos que museus voltados para a comunidade LGBT são criados
nos anos de 60 a 90. No contexto pandêmico e de profusão do debate sobre os direitos civis
da população LGBT, nasceram a partir de iniciativa dos movimentos sociais, museus,
monumentos e espaços de memória que preservam e promovam a memória de sexualidades
não normativas em sete países. Ressalta-se, que os museus criados neste período, ainda ativos,
seguiram os passos políticos e burocráticos para o seu registro.

1308
Museus, Espaços de Memória LGBT e Patrimônios no Século XXI

Ao final do século XX, vê-se o surgimento de museus dedicados à comunidade


homossexual, sobretudo a masculina, nos EUA, Europa e até mesmo no Brasil. Com o
ingresso ao novo século, com o avanço da medicina em relação ao controle dos sintomas do
HIV, a conquista dos direitos civis e a pós-modernidade fragmentando antigas identidades,
novos museus passam a se configurar, dessa vez abrindo o leque para uma compreensão mais
ampla das múltiplas sexualidades existentes.

Em 2003, na capital peruana é criado O Museu Travesti. Foi idealizado por Giusepe
Campuzano. Seu acervo é composto por fotografias, jornais e objetos. Um dos mais
importantes e pioneiros ao tratar da transexualidade e do travestismo no Peru, “possuía no
corpo do próprio diretor, pilares de seu acervo e na história do Peru os fundamentos da
vertente trans nos museus” (Baptista; Boita, 2014, p. 176). Após sua morte, seu acervo
circulou em diversas mostras, inclusive na Bienal de São Paulo. Este é o primeiro museu que
aborda memórias de sexualidades não normativas do século XXI e tem como fundador uma
pessoa travesti que faleceu em 2013, mas que contribuiu muito com o campo museológico.

Na África do Sul, desde 2006 na cidade de Braamfontein, a Gayand Lesbian Memory


in Action – GALA produz exposições em torno das identidades sexuais e de gênero. Ao longo
de sua história produziu mais de quatro exposições temporárias, além de ter produzido os
módulos expositivos no Museum Africa e no Apartheid Museum. Suas principais exposições
foram "Journeys of Faith", de 2016, a “Home Affairs: About Love, Family and
Relationships”, “Joburg Tracks: Sexuality in the City”, de 2008 e a “Balancing Act: South
African Gay and Lesbian Youth Speak Out”, em 2006. Segundo informações preliminares, a
GALA vem desenvolvendo diversas parcerias com os museus deste país, bem como,
desenvolvendo consultorias e cursos para os profissionais dos museus voltados aos debates de
gênero, sexualidade e raça.

1309
Em Londres, na Inglaterra o British Museum passou a desenvolver ações de
visibilidade sobre a memória LGBT a partir de 2006 com a exposição e catálogos. Neste ano
foi exposto por menos de quarenta dias a exposição The Warren Cup, que acompanhou um
catálogo do mesmo nome de autoria de Dyfri Willian, nela é apresentado um copo de prata
romana com cenas homoeróticas, inclusive um par de amantes homens. Essa peça ficou por
anos escondido em uma reserva técnica. Em 2013, é publicado A Little Gay History – Desire
and Diversity across the Word, que retrata peças da história e memória da comunidade LGBT
presentes no acervo da instituição. Estas são importantes contribuições de museus
convencionais que impulsionam e inspiram outros grandes museus.

Em 2007 na cidade de Nova York, nos Estados Unidos, inicia-se a criação do National
LGBT Museum que é mantido pela fundação Valvet. Tem como missão promover a história,
cultura da comunidade LGBT através de exposições, pesquisas, publicações e outros
programas voltados para diversos públicos. É vinculada a Associação Americana de Museus
que colaborou na consolidação das ações da instituição, tais como, a política de acervo e
descarte, missão e visão, bem como, a preservação e acondicionamento dos acervos que são
doados. Até o momento ainda não possui uma sede fixa, mas conforme a Fundação Valvet o
Museu Nacional LGBT de Nova York, será inaugurado em junho de 2019, em comemoração
ao 50º ano do aniversário de Stonewal.

Na capital Alemã, é criado Monumento aos homossexuais perseguidos e mortos pelo


Nazismo. Foi concebido pelos artistas Michael Elmgreen e Ingar Dragset e inaugurado em
2008. Tal qual, o Homonomonument este marco da memória homossexual está localizada
próxima a memória dos judeus22. Em sua concepção foi apoiado pelo Museu Shuwels. Este é
o segundo monumento registrado a homossexuais perseguidos e mortos durante o regime
nazista.

22
Memorial dos Judeus da Europa Assassinados pelos Nazistas.

1310
Em Taiwan na China no ano de 2009, é inaugurado a Taiwan Tongzhi Hotline
Association e a Galería Gingins em Taipei, juntos, realizaram a exposição La mirada sobre
los otros sobra la historia de lésbicas e gays. Este é um dos poucos registros que encontramos
neste país. No entanto, a China foi um dos principais países a possuir museus voltados à
sexualidade humana, porém, hoje abandonados.

Em 2010, O Museum Africa, localizado na capital da África do Sul inaugurou a


exposição Johannesburg Tracks: Mapping sexuality in the city , produzida em 2008, narra a
história Johannesburg's a partir da memória de oito LGBT. Esta exposição só foi possível a
partir da articulação do grupo Gay and Lesbian Memory in Action- GALA. Atualmente o
Museum Africa desenvolve ações esporádicas de formação, sensibilização e positivação da
memória lgbt com apoio do movimento social.

Com o advento da internet e as novas tecnologias é criado na Suécia, em 2011, o


Unstraight Museum, um museu virtual colaborativo e participante do Conselho Internacional
de Museus - Icom. Sua primeira exposição foi a Article One, que foi homenageada em 2013
pelo Icom. O site disponibiliza e convida os visitantes a deixarem suas memórias e registros.
Além disso, auxilia os museus a desenvolverem ações para o público LGBTQI, bem como,
propõe diversas exposições itinerantes que circulam o mundo. O Unstraight Museum é uma
importante iniciativa de preservação da memória LGBTQI, além de, desenvolver diversos
cursos e formações para as instituições de memória suecas.

Por fim, os museus criados neste período, surgem na esperança do direito e da garantia
dos direitos civis. Enquanto, no fim do século passado, vimos uma pandemia matar os
homens homossexuais que favoreceu a criação de museus, utilizados estrategicamente a
visibilização, prevenção e promoção da saúde. A partir dos anos 2000, vemos surgir
iniciativas museológicas criadas para defender e garantir os direitos da comunidade LGBT
denunciando através de exposições a homolesbotransfobia. Ressalta-se que neste momento,

1311
museus convencionais passam a auxiliar, debater e ressignificar seu acervo, incluindo as
comunidades até então, invisibilizadas.

O Contexto Brasileiro: Museus, Patrimônios e Espaços de Memória LGBT brasileira

No Brasil, assim como grande parte do mundo, os movimentos sociais passam a se


organizar na década de 70. Na década posterior o HIV é o maior causador de mortes aos
homossexuais no país, fato que se estendeu até a década de 90. Neste contexto o Grupo Gay
da Bahia, lotado em Salvador, cria um museu voltado para a sexualidade, em especial, a
prevenção. O Museu da Sexualidade, criado em 1998, foi marco fundamental para a criação e
consolidação de novas iniciativas. Mesmo não sendo um museu voltado para a comunidade
LGBT, atua em prol do grupo com eventos, exposições e ações. Talvez, seja a primeira
iniciativa museológica brasileira a abordar sexualidades não normativas em seu espaço.
Atualmente, a instituição está fechada, mas é possível realizar agendamento para visitas.

Outro contexto favorável para a criação de museus, patrimônios e espaços de


memória, foram os reconhecimentos dos direitos civis da comunidade LGBT. Em 2004, o
Estado do Rio Grande do Sul, é o primeiro a autorizar os cartórios a registrar a união cível
entre pessoas do mesmo sexo. Até 2017 o Brasil possuí, ao todo 12 estados leis que dispõem
sobre a liberdade de orientação sexual (BA, RJ, RS, MG, SP, MS, PI, PA, PB, AL, MA e
PE)23 além de 79 municípios. Em 2011 a decisão do STF ao reconheceu a união homo afetiva,
um dos maiores avanços no Brasil pró-LGBT. (Boita, 2014). Alguns outros diretos
conquistados foram a regulação do nome social, através do decreto 8727/2016. Apesar das
conquistas, os avanços são incertos.

23
Em 26 de junho de 2017, a Câmara Legislativa do Distrito Federal, revogou a Lei 2615/2000 que determinava
sanções às práticas discriminatórias em razão da orientação sexual das pessoas.

1312
Nesta realidade, a partir de 2008, na cidade de Goiânia, o Museu Antropológico da
UFG passa a desenvolver ações que visibilizam a memória e a história de grupos excluídos,
inclusive a comunidade LGBT. A partir de 2013, o MA impulsionou ações, exposições,
eventos, palestras e mostras de cinema com a temática de gênero, sexualidade e identidade de
gênero. Possui sob sua guarda o a coleção da ONG Transas do Corpo e entre 2016 e 2017
apoiou as exposições Mulheres no Sertão Goiano, que narrava os ofícios e violências sofridas
pelas mulheres que viviam e vivem em Goiás, e a Transas no Ser-tão que homenageia os
grupos Transas do Corpo e o Grupo de Pesquisa em Gênero e Sexualidade Ser-Tão. Os
trabalhos foram concebidos e criados por estudantes do Curso de Museologia da UFG da
disciplina de Comunicação Patrimonial IV – Concepção e Montagem de Exposição, que
ministrei enquanto professor substituto da instituição.

Em Maceió, em 2010 é criado o Ponto de Memória LGBT, iniciativa da ONG Pró-


Vida. Desde então promovem exposições e ações comunitárias, voltadas para a memória
LGBT, como a Exposição Diversos, ocorrida em 2012, durante a primavera de museus. Trata-
se de uma exposição significativa, de baixíssimo custo e que homenageia pessoas travestis,
transexuais, lésbicas, gays e bissexuais da capital alagoana. Mesmo com o fim do Programa
Pontos de Memória, a iniciativa em memória e Museologia social continua desenvolvendo
ações de positivação da memória LGBT.

Em 2012 é criada a Rede LGBT de Memória e Museologia Social na cidade de


Petrópolis. Tem abrangência nacional e articula ações de memória e Museologia social nos
museus brasileiros. Conforme sua carta de fundação, “busca de reconhecimento e da
salvaguarda da memória LGBT” e tem como objetivos “a geração de políticas públicas,
programas, espaços no fórum nacional de museus e inclusão da temática e práticas LGBT nos
museus brasileiros”, além de, solicitar que ao menos uma semana ao ano, divulguem e
fomentem a memória LGBT e as questões de gênero nos pontos de memória, pontos de
cultura, instituições culturais, museus comunitários. De fato, muitas articulações foram feitas

1313
e objetivos alcançados, mas o que tange a articulações com o Instituto Brasileiro de Museus,
pouco se avançou, até o momento, nenhuma política pública ou ação explicita do órgão foi
desenvolvida. No entanto, após cinco anos de formação, a Rede LGBT, promoveu, estimulou
e apoiou muitas ações que transformaram a realidade museológica brasileira.

O Museu da Diversidade Sexual – Centro de Cultura, Memória e Estudos da


Diversidade Sexual do Estado de São Paulo foi criado através do decreto 58.075 em 2012.
Está localizado na capital paulista e é gerido pela Secretária de Cultura do Estado de São
Paulo. Tem como principais atribuições, preservar, pesquisar, valorizar e publicar o
“patrimônio cultural da comunidade LGBT brasileira, através da coleta, organização e
disponibilização pública de referenciais materiais e imateriais” (…) em especial, paulista”24 e
é a única instituição no Brasil, vinculado a um ao poder executivo. Ressalta-se que desde
2014, o museu ganhou uma nova sede, que ainda está longe de ser entregue. Desta forma, o
Museu da Diversidade Sexual, é um importante museu que preserva a memória LGBT no
Brasil através de exposições, oficinas, cursos entre outros.

Em 2013 é criada a Revista Memória LGBT. Um periódico virtual e colaborativo que


preserva e difunde a memória LGBT. Atualmente possui dez edições que registram através de
exposições em revista, histórias, patrimônios e pessoas da comunidade LGBT brasileira. Em
2015 em parceria com o Museu de Favela, promoveu o Projeto Memórias LGBT no Museu de
Favela. Atualmente desenvolve e disponibiliza os resultados do mapeamento das Memórias
LGBT.

Na capital paulista o Museu da Pessoa foi um museu virtual criado em 1991. A partir
de 2014 passou a promover ações e projetos para a formação de acervos digitais sobre as
diversas sexualidades. Através das iniciativas, “Conte a Sua História” e “TransHistórias”
formaram uma coleção sobre a comunidade transexual, homossexual e lésbica no Brasil. Os

24
Decreto-Lei disponível em: http://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/decreto/2012/decreto-58075-
25.05.2012.html

1314
depoimentos estão disponíveis em sua plataforma virtual, podendo ser consultado em
qualquer lugar do mundo.

No Rio de Janeiro, O Museu de Favela promoveu em 2015 em parceria com a Revista


Memória LGBT o projeto Memória LGBT no MUF. Durante seis meses foram desenvolvidas
ações que promoveu a memória LGBT na favela acompanhado de sete lideranças
comunitárias25. Entre as ações desenvolvidas, foram realizadas exposições experimentais,
publicações da Revista Memória LGBT, a saber, ‘Ser lésbica na Favela’, ‘Ser Gay na Favela’
e ‘Ser Trans na Favela’, o Seminário Museus, Memória e Museologia LGBT, além de oficinas
e cursos. Essa é uma das primeiras iniciativas que desenvolveu ações para travestis,
transexuais, lésbicas, gays e bissexuais abordando as categorias de gênero, sexualidade, raça e
classe no Brasil. Todas as ações foram concebidas coletivamente, e em diálogo com a missão
do Museu de Favela.

Em 2017, no Brasil, algumas ações merecem destaque: na cidade de Brasília foi criado
o Instituto Cultura, Arte e Memória LGBT. Ainda sem sede, objetiva ser um espaço para a
preservação e promoção da memória LGBT. Em Petrópolis, durante a Semana de Museus de
2017, o Museu de Artesanato do Estado do Rio de Janeiro, promoveu a exposição Isabelita
dos Patins – História de Transformação, Arte e Beleza.

Por fim, a realidade dos museus, patrimônios e espaços de memória voltados para a
comunidade LGBT no Brasil é promissora. Desde a década de 90, nove instituições foram
criadas, objetivando-se preservar e promover a memória, história e cultura da Comunidade
LGBT. No entanto, diferente de outras partes do mundo, poucas ações de Estado foram
empreendidas neste contexto, cabendo aos movimentos sociais a responsabilidade pela
maioria dos feitos.

25
Ana Muza Cipriano, Tainara Santos, João Victor Teodoro, Jonathan Martins, Jaqueline Alves, Sidney Silva e
Yonne Karr

1315
Considerações finais

Conclui-se que os museus, iniciativas comunitárias em memória e espaços de vocação


museológica, em sua maioria, são locais que reforçam a heteronormatividade compulsória,
invisibilizando outros gêneros e sexualidades. Trata-se de ações que excluem e invisibilizam
uma parcela da população brasileira, além de, reforçar as fobias a comunidade LGBT.
Contudo, a presente pesquisa, verificou horizontes e ações possíveis em espaços de memória
no globo ao positivar a memória das pessoas Travestis, Transexuais, Transgêneros, Lésbicas e
Gays. Cabe ressaltar que mesmo com os avanços ultraconservadores, o número de iniciativas
que positivam a memória LGBT vem crescendo, afinal, promover estas memórias subalternas
é um ato de resistência.

Chama à atenção a reprodução dos padrões heterossexuais nos museus e iniciativas


comunitárias que promovam as memórias e histórias LGBT, uma vez que a maiorias destes
espaços apresentam os registros e memórias do homem branco e gay, refletindo quase que
exclusivamente sobre memória da homossexualidade (BENTO, 2006, p.81) e (BUTLER,
2003, p.56). Contudo, são poucas as experiências que visibilizam as mulheres lésbicas,
travestis e transexuais. Como exemplos, dos 80 museus pesquisados, somente quatro abordam
explicitamente a memória de lésbicas. Isto sugere que a invisibilidade lésbica se dá a partir da
proposta de Adrienne Rich (2010, p.36),

E a existência lésbica tem sido vivida (diferentemente, digamos, da


existência judaica e católica) sem acesso a qualquer conhecimento de
tradição, continuidade e esteio social. A destruição de registros, memória e
cartas documentando as realidades da existência lésbica deve ser tomada
seriamente como um meio de manter a heterossexualidade compulsória para
as mulheres, afinal o que tem sido colocado à parte de nosso conhecimento é
a alegria, a sensualidade, a coragem.

1316
Ressalta-se que ações voltadas para a positivação da memória podem contribuir no
enfrentamento de demandas sociais apesar das invisibilizações forjadas pelo poder. De fato,
as primeiras instituições museológicas que promovem a memória de sexualidades não
normativas surgem com o advento da AIDS, em uma tentativa de se garantir o futuro de uma
comunidade que estava perdendo para uma epidemia. No entanto, estes casos são isolados e
presentes em países de primeiro mundo, privilegiados economicamente.

Destaca-se que a ausência das interseccionalidades na maioria dos museus, patrimônio


e espaços de memória pesquisados. Estas instituições de memória em sua maioria ignoram em
suas ações de preservação e disseminação da memória LGBT a questão de classe, raça e
gênero. Majoritariamente, abordando muitas vezes, a memória da homossexualidade
masculina dominante e branca.

Existe ainda um despreparo ou desprezo dos trabalhadores, pesquisadores, técnicos e


estudantes de Museologia, museus e do patrimônio. Ao que parece, a heteronormatividade
domina a cultura material, imaterial e a memória. Além do despreparo das instituições de
ensino e formação, em aulas, cursos e oficinas ignoram as abordagens de gênero e
sexualidades tornando estes bens culturais objetos sem memória, história, gênero e
sexualidades, ou quando possuem, foram fabricados por um homem.

Por fim, o presente artigo, buscou apresentar as diversas instituições e iniciativas


comunitárias que promovam as memórias e histórias da comunidade LGBT no globo.
Ressalta-se que estes são resultados preliminares e serão reforçados com a conclusão da
segunda etapa da pesquisa. No entanto, é crucial que os museus, espaços de memória e
iniciativas comunitárias em memória e Museologia social, passem a visibilizar as pessoas
travestis, transexuais, transgêneros, lésbicas, bissexuais e gays em uma tentativa de garantir o
direito à memória, além de, superar a homolesbotransfobia.

1317
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1320
TESSITURAS SOBRE A INDUMENTÁRIA DE CANDOMBLÉ A PARTIR DA
COLEÇÃO DONA NÓLA

Marijara Souza Queiroz*

Resumo: Trama sobre a indumentária de candomblé na coleção do Museu do Traje e do Têxtil


(Salvador, Ba) tendo como ponto de partida um conjunto de peças que pertenceram a Georgeta Pereira
de Araújo (1911-2004), conhecida como Dona Nóla, Yá Dagã do Terreiro da Casa Branca. Tece
possibilidades de articulação de discursos curatoriais conciliados aos saberes e fazeres conexos à
coleção, bem como a experiência social e estética desse traje para além da instituição museológica.
Parte da hipótese central de que os museus manipulam a tipologia de suas coleções e as hierarquizam a
partir de um sistema de atribuição de valores e de acordo com seus discursos moldados pelo interesse
institucional. De modo a invisibilizar acervos ou limitar suas possibilidades de interpretação. O aporte
teórico se delineia a partir do método crítico integrador de Gilda de Mello e Sousa que consiste no
aprofundamento da investigação com base em um objeto empírico para compreender sua origem, uso,
circulação e ressonâncias nas instituições e na sociedade.

Palavras-chave: Indumentária; Candomblé; Museu do Traje; Gênero; Raça.

Abstract: Weaving about candomblé clothing in the collection of the Costume and Textile Museum
(Salvador, Ba), starting from the collection that belonged to Georgeta Pereira de Araújo (1911-2004),
known as Dona Nóla, Yá Dagã do Terreiro Of the White House. It has the possibility of articulating
curatorial discourses reconciled with the knowledge and practices related to the collection, as well as
the social and aesthetic experience of this costume in addition to the museological institution. Part of
the central hypothesis that museums manipulate the typology of their collections and hierarchize them
from a system of value attribution and according to their discourses shaped by institutional interest. In
order to make collections invisible or limit their possibilities of interpretation. The theoretical
contribution is drawn from the critical integrating method in Gilda de Mello and Sousa, which consists
of deepening the research based on an empirical object to understand its origin, use, circulation and
resonance in institutions and society.

Keywords: Clothing; Candomblé; Costume Museum; Genre; Race.

1321
Esta pesquisa de doutoramento desenvolve-se na área de concentração da Teoria,
Crítica e História da Arte, do Programa de Pós Graduação em Artes do Instituto de Artes da
Universidade de Brasília – IDA/UNB e tem como objetivo geral analisar a indumentária
tradicional de candomblé presente na coleção do Museu do Traje e do Textil com foco nas
possibilidades de articulação de discursos curatoriais às narrativas, saberes e fazeres que
compõem a experiência social, estética e simbólica destes trajes. No percurso, interessa-nos
compreender o processo de musealização da coleção no âmbito do Museu do Traje e do Têxtil
de modo a problematizar a prática colecionista e a relação do sujeito colecionador conexo às
questões de gênero, raça e representação social. Os Estudos iconológicos partirão do universo
simbólico do orixá a que se refere a coleção: Oyá Igbalê, experiência social e estética do traje
com foco no sujeito e na alteridade.

Estrutura-se no método crítico integrador que consiste no aprofundamento detalhado


da investigação com base em um objeto empírico para compreender sua origem, circulação e
ressonâncias nas instituições, no sistema de arte e na sociedade. Parte da metodologia de
Gilda de Mello e Souza o que nos conduz a suas bases estruturais como os estudos em
iconografia e iconologia (Warburg, A; Panofsky, E; Belting, H.) associados à fenomenologia
da percepção (Merleau-Ponty, M; Arnheim, R.) e à sociologia da arte (Bourdieu, P; Adorno,
T; Bastide, R.). De acordo com Heloisa Pontes (2004: 37) que analisou O Espirito das
Roupas, Ensaio de sociologia estética sobre a moda no Século XIX, de Mello e Sousa,

diferentemente das outras artes, a vestimenta, como mostra Gilda, só se


completa no movimento. Arte por excelência de compromisso, o traje não
existe independente do movimento, pois está sujeito ao gesto, e a cada volta
do corpo ou ondular dos membros é a figura total que se recompõe, afetando
novas formas e tentando novos equilíbrios.

Em O Espírito das Roupas, Mello e Sousa (1987: 29) define a moda como “expressão
artística de uma linguagem social ou psicológica” pois exprime idéias e sentimentos ao tempo

1322
que atende à estrutura social, na medida em que “reconcilia o conflito entre o impulso
individualizador de cada um de nós e o socializador”. De acordo com Pontes, Mello e Sousa
perpassa pela “ligação da moda com a divisão de classes”, mas “detém-se na ligação da moda
com a divisão entre os sexos, revira pelo avesso a cultura feminina”. (PONTE, 2004: 39-40)

Para a construção do discurso teórico e histórico-artístico serão utilizados os métodos


de abordagem analítico-sintético, analítico-comparativo e indutivo-dedutivo, além de métodos
de procedimentos como: pesquisa bibliográfica, que consiste no levantamento e revisão
bibliográfica nas fontes secundárias; pesquisa iconográfica (fotos, desenhos, pinturas,
gravuras); coleta de dados objetivos (documentos originais, papeis de circunstância, etc);
levantamento de fontes primárias a partir de entrevistas; e, visitas técnicas a museus correlatos
como Museu do Traje e do Têxtil, Museu Henriqueta Catharino e Museu de Arte Popular
(FIFB); Museu Afro Brasileiro (UFBA); Memorial Lajoumin, do Pilão de Prata e Museu Ilê
Ohun Lai Lai, do Ilê Axé Opô Afonjá.

A pesquisa iconográfica terá atenção neste trabalho, pois é a partir dela que
estabeleceremos padrões comparativos sobre o uso, apropriação, trânsito e agregações da
indumentária desde o final do século XIX. Este levantamento possibilitará a problematização
do objeto de arte transformado em registro documental (ou vice-versa) e fonte de pesquisa
como as aquarelas de artista Carybé, sobre a Iconografia dos deuses africanos do candomblé
da Bahia; e, as fotografias artistas de caráter etnográfico de Pierre Fatumbi Verger.

Oyá Ygbalé, Yá Dagã e Dona Nóla – relações entre sujeito e alteridade

Georgeta Pereira de Araújo (1911 – 2004), mais conhecida como Dona Nóla, nasceu
em família tradicional do recôncavo baiano. Foi considerada a primeira filha de santo branca
de família abastada quando iniciada na religião dos orixás no tradicional Ylê Axé Yá Nassô

1323
Oká, Terreiro da Casa Branca26, Salvador, Bahia, aos 36 anos de idade. Dedicada ao
sacerdócio, foi intitulada Yá Dagã, cargo que corresponde à terceira mulher da hierarquia
sacerdotal do culto aos orixás da Casa. Além de “filha de santo”27, Nóla foi empresária bem-
sucedida, fundou e administrou um ateliê de costura a fim de garantir o sustento de seus
quatro filhos após o rompimento de uma união promissora arranjada pela família, bem ao
modo da época. Se destacou como escritora publicando livros, poesias crônicas e artigos em
revistas e jornais da época. Assumiu o candomblé como sua religião num momento em que
este sofreu fortes perseguições políticas e sociais por ser considerado fetichismo e culto de
negros primitivos.

Essa mulher em questão, não apenas utilizou a coleção de trajes de candomblé que ora
apresentamos, ela ofereceu forma, movimento e sentidos aos trajes ao vesti-los e fazê-los
atuar em cena/rito. A Coleção Dona Nóla foi doada em 2010 ao Museu do Traje e do Têxtil
que está integrado à Fundação Instituto Feminino da Bahia - FIFB28, pelo primeiro neto de
Nóla, Francisco Soares de Senna. É formada por: 7 conjuntos compostos por saia, bandê,
pano da costa, camizú e ojá (trajes do orixá Oyá Igbalê); 9 anáguas, 3 saias, 5 Batas, 8
Camizús, 11 Ojás, 5 panos da costa, 1 Bandê, 8 panos de obrigação ou panos de axé, (partes
avulsas do traje do orixá); 1 combinação e 2 toucas (partes da roupa de ração); 15 bonecas de
pano (para assentamento); 1 cinta com bonecos de pano (peça ritualística). Com isso, as 89
peças que formam a coleção podem se reagrupar internamente evidenciando três sub
26
“O Ilê Axé Iyá Nassô Oká, Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho, é tradicionalmente considerado, nos
meios populares, o mais antigo templo afro-brasileiro ainda em funcionamento. Os etnógrafos que se ocuparam
dele reconhecem que é impossível precisar a data de sua fundação (na Barroquinha), mas os cálculos baseados
na etnohistória e nos documentos disponíveis fazem-na remontar, no mínimo, à década de 1830 (COSTA LIMA,
1977; VERGER, 1992. BASTIDE, 1986), ou mesmo a inícios do século XIX, senão um pouco antes
(SILVEIRA, 2006)”. (SERRA: 2008) In: https://ordepserra.files.wordpress.com/2008/09/laudo-casa-branca.pdf .
27
Designação dada às iniciadas no culto ao orixá. SANTOS, Maria Stella de Azevedo. Meu Tempo é Agora. 1ª
Edição: Ed. Oduduwa: São Paulo, 1993.
28
A Fundação Instituto Feminino da Bahia (FIFB) é uma instituição privada declarada de utilidade pública,
deixada em testamento sob a salva guarda da Arquidiocese de Salvador, Ba. Inaugurada em 1923 para atender à
Escola Comercial Feminina para profissionalização de mulheres, transformou-se em Museu Henriqueta
Catharino em homenagem à sua fundadora após sua morte em 1969. O acervo FIFB é dividido em 3 coleções
distintas: Museu Henriqueta Catharino, de artes decorativas; Museu do Traje e do Têxtil, de indumentária
feminina; e, Museu de arte popular, coleção particular de Henriqueta. (QUEIROZ: 2016).

1324
coleções: indumentária do orixá, Oyá Igbalê; trajes (de ração) da filha de santo, Nóla; e,
objetos ritualísticos da sacerdotisa, Yá Dagã.

Surgem daí evidencias de que o traje de candomblé e seus paramentos litúrgicos


tomam parte e acompanham a vida social adquirindo novos significados a partir de suas
experiências, em especial quando analisados do ponto de vista museológico, tanto da
documentação e classificação da coleção quanto de sua exposição.

Durante exposição temporária, em 2013, outras peças pertencentes à família de Nóla


foram incorporadas provisoriamente ao conjunto inicial, quais sejam: cadeira sacerdotal usada
pela Yá Dagã durante as cerimônias; gamela onde eram servidos os acarás durante a
cerimônia para Oyá Igbalé; fotografias de família da 1ª metade do século XX; Egun do orixá
(boneca de pano) com o enxoval; Ifá completo; utensílios pessoais (porta jóia, castiçais e
salva de prata; imagens sacras cristãs de Sta Bárbara, St. Antônio e N. S. da Ajuda; traje civil
de baile; máquina de datilografar usada por Nóla, também escritora e poeta; publicações de
livros e periódicos; e, 3 aquarelas do artista plástico Carybé29 com representação de Oyá.

A partir das agregações temporárias de outros objetos à coleção, a exposição intitulada


Mulher, fé e poesia assumiu um caráter biográfico e o discurso curatorial cercou a poética
feminina baseada na fé e na religiosidade. Questões relacionadas à experiência social – o que
inclui discussão sobre gênero e raça – ou à experiência estética – compreendendo as técnicas e
materiais, os modos de fazer e conceber a indumentária sagrada, a poética mítica dos padrões
estilísticos ou performáticos do traje, bem como suas agregações/transformações – não
fizeram parte da representação de Nóla. É o que se observa a partir dos registros fotográficos

29
Carybé ou Hector Julio Páride Bernabó (Lanús, Argentina 1911 - Salvador, Bahia, 1997) é pintor, gravador,
desenhista, ilustrador, mosaicista, ceramista, entalhador e muralista. Em 1943 realiza sua primeira individual na
Galeria Nordiska Kompainiet, em Buenos Aires. Em 1944, vai a Salvador, e se interessa pela religiosidade e
cultura locais mudando-se pra esta cidade em 1950. Na Bahia, participa ativamente do movimento de renovação
das artes plásticas, ao lado de Mario Cravo Júnior (1923), Genaro (1926 – 1971) e Jenner Augusto (1924 -
2003). Em 1957, naturaliza-se brasileiro. Em 1981 publica Iconografia dos Deuses Africanos no Candomblé da
Bahia, com suas aquarelas produzidas a partir de sua vivencia e observação nos terreiros de candomblé de nação
Ketu. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa1199/carybe

1325
e documentais da exposição como, por exemplo, o convite que anunciava as comemorações
do “centenário da escritora cachoeirana Nóla Araújo”30 com uma Missa em Ação de Graças
antes da abertura da exposição.

Renuncia-se assim ao universo simbólico do candomblé em detrimento à construção


(ou consolidação?) de um universo feminino representado pela mulher cristã católica, branca,
letrada e abastada.

Desde suas primeiras manifestações, no século XIX31, até o final da década de 1930 a
prática do candomblé foi violentamente combatida pelo Estado que promoveu invasões a
terreiros, invariavelmente seguidas da apreensão e destruição de seus objetos sagrados:
instrumentos musicais, ferramentas de orixás, assentamentos, cadeiras de autoridades do
culto, contas e vestimentas. Parte destes objetos, porém, foi levada a instituições de memória
para servir como evidência de crime (charlatanismo ou feitiçaria), de patologia mental ou do
estado cultural “primitivo” do negro no Brasil. Nesta abordagem, importa ressaltar que Nóla
fez suas confirmações iniciáticas no candomblé da Casa Branca em 1947, quando a prática do
Candomblé já não era oficialmente criminalizada. Entretanto, permaneceria o combate velado
na estrutura da sociedade nas décadas seguintes. Porque então uma mulher branca, de família
cristã e abastada se coligaria a uma religião marcadamente discriminada?

Somente a partir da década de 1980 o Estado vem reconhecendo oficialmente os sítios


religiosos afro-brasileiros como patrimônio cultural, tanto na esfera federal como estadual. O
primeiro caso de patrimonialização desta natureza trata-se do terreiro da Casa Branca do
Engenho Velho que foi efetivamente tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (IPHAN)32, através do Processo número 1.067-T-82, Inscrição número 93,

30
Convite de abertura da exposição Mulher, fé e poesia. Disponível em:
http://vapordecachoeira.blogspot.com.br/2011/01/o-centenario-da-escritora-cachoeirana.html
31
PRANDI, Reginaldo. O candomblé e o tempo: concepções de tempo, saber e autoridade da África para as
religiões afro-brasileiras. Revista Brasileira de Ciências Sociais, Vol. 16, nº 47, outubro/2001.
32
O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) é um órgão integrado ao Ministério da
Cultura que trata preservação dos patrimônios de natureza material e imaterial (incluindo o natural) brasileiro.

1326
Livro Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico”. O tombamento foi decidido em 31 de maio
de 1984 e homologado somente em 27 de junho de 1986 que identificou o “bem patrimonial”
em questão como “sítio de valor histórico e etnográfico do Ilê Axé Iyá Nassô Oká, Terreiro da
Casa Branca do Engenho Velho”, de acordo com Ordep Serra (2008: 1-2).

Na mesma década foi criado o Museu Afro-Brasileiro da Universidade Federal da


Bahia (UFBA), no intuito de apresentar os objetos de candomblé como evidências das
práticas culturais afro-brasileiras, de modo a romper com estereótipos e valorizar esta cultura
material. No ínterim, surgiram museus e memoriais mantidos por sociedades civis de
terreiros33, constituindo uma iniciativa de apropriação da instituição museu para tais
comunidades narrarem sua própria história. Cabe aqui questionar porque a FIFB,
reiteradamente cristã católica desde sua origem, foi selecionada para receber uma coleção de
trajes de candomblé?

Nesse sentido, cabe problematizar a representação da mulher negra a partir dos


silenciamentos invisibilizadores das instituições museológicas que em geral reafirmam a
dominação de uma museologia colonizadora mantida por padrões hegemônicos legados pela
sua matriz burguesa pós revolução francesa. Em que medida, outras coleções similares são
tratadas do ponto de vista curatorial?

A discussão sobre gênero cerca esta pesquisa pelas condicionantes: a origem


sacerdotal das peças que participaram da vida social no terreiro da Casa Branca, onde há
indícios de ter funcionado a sociedade secreta de mulheres denominada Gueledés34; pela
procedência da coleção da FIFB, associada à promoção da mulher baiana através da educação

33
Referimos em especial: ao Museu Ohum Lai Lai, do Ilê Axé Opô Afonjá; ao Memorial Mãe Menininha, do
Terreiro do Gantois; e, do Memorial Lajoumim do Terreiro Pilão de Prata.
34
Gueledés é matricialmente uma forma de organização social feminina secreta dos povos Yorubás. Há indícios
de que esta sociedade tenha funcionado na Casa Branca até aproximadamente 1940, marco registrado pelo
falecimento de Tia Massi, considerada a última Yalorixá Gueledé da Casa Branca. Dispomos de poucas
pesquisas sistemáticas sobre as Gueledé da Casa Branca, de modo que esses rumores podem ser relevantes à
nossa pesquisa. (SILVEIRA, 2006).

1327
formal e formação profissional e espiritual, na perspectiva de emancipação feminina; pela
especificidade do olhar feminino sobre a sociedade que elegeu os itens a serem preservados.
Fica evidente a necessidade de traçar um paralelo entre mulher e mulher negra.

Em termos de memória social compreende-se que a indumentária de candomblé na


coleção Dona Nóla amplia as possibilidades de representação da mulher e as formas de
interpretação da sociedade, uma vez que adquirem sentido através de seus elementos
constitutivos – materiais e imateriais, intrínsecos e extrínsecos – incluindo o seu processo de
produção, uso e circulação.

Dessa forma, partimos da premissa de que as relações de gênero são condicionantes da


vida social, tanto quanto os condicionantes de raça. Portanto, como entender o colecionismo
enquanto prática social imposto pelo gênero (no caso do Museu) e pelo gênero-raça (no caso
dos trajes de candomblé)? Supõe-se que a preservação e o acesso à coleção exercem uma
força de retorno sobre a sociedade, na medida em que os museus atuam como instâncias
legitimadoras nas dimensões artísticas, históricas e sociais.

Numa definição mais genérica, o candomblé que aqui tratamos pode der entendido
como “a religião dos orixás formada na Bahia, no século XIX, a partir de tradições de povos
Iorubás, ou nagôs, com influências de costumes trazidos por grupos Fons, aqui denominados
Jejes, e residualmente por grupos africanos minoritários”, se tomarmos de empréstimo a
demarcação de Reginaldo Prandi (2001: 44). Em reconhecimento às particularidades de cada
terreiro, afunilaremos nossos estudos ao candomblé da Casa Branca35, pois, ainda que este
ocupe a posição de matriz do candomblé da Bahia (e do Brasil), nenhuma prática se reproduz
por igual. Os fundamentos religiosos de cada casa de candomblé, em especial desta, são

35
De acordo com o Laudo Antropológico da Casa Branca emitido por Serra, a comunidade de culto – o Egbé Iyá
Nassô – segue o rito nagô e se auto-identifica como um “candomblé Ketu”, ou “de nação Ketu”. “No contexto, o
designativo ‘nação Ketu’ remete, por contraste paradigmático, a denominações como [nação] ‘ijexá’, ‘angola’,
‘jeje’ etc. No caso do egbé em questão, existe clara consciência de que a “nação” corresponde a um indicador
étnico, refere-se a um lugar de origem dos (principais) fundadores do culto”. (SERRA, apud, COSTA LIMA,
2008)

1328
exclusivos, pois dependem de um conjunto de sistemas simbólicos associados às fundadoras e
a seus Eledás, como também ao lugar que estes ocupam no panteão dos deuses africanos.

Referências bibliográficas
ARANTES, Otília Beatriz Fiori. Notas sobre o método crítico de Gilda de Mello e Sousa.
São Paulo: USP: Discurso, N. 35, 2005: 11-27.

ARRUDA, Angela. Teoria das Representações Sociais e Teorias de Gênero. Cadernos de


Pesquisa, n.º 117, 2002. In. www.scielo.br/pdf/cp/n117/15555.pdf

CANCLINI, Nestor Garcia. A produção simbólica: teoria em sociologia da arte. Trad. Gloria
Rodrigues. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. 118 p.

CORRÊA, Mariza. O mistério dos orixás e das bonecas: raça e gênero na antropologia
brasileira. Revista Etnográfica, Vol. 4 (2), 2000.

DAVIS, Angela. Mulher, Raça e Classe. 1ª Edição: The Women’s Press, Ltda: Grã Bretanha,
1982. (Tradução livre Plataforma Gueto, 2003).

LODY, Raul. O Negro no museu brasileiro: construindo identidades. [ilustrações do autor].


Bertrand Brasil: Rio de Janeiro, 2005. 336 pag. Il.

. Moda e História: a indumentária das mulheres de fé. [Fotografias de Pierre Fatumbi


Verger]. Editora SENAC, São Paulo, 2015.

MELLO E SOUZA, Gilda de. O espírito das roupas: a moda no século XIX. São Paulo,
Companhia das Letras, 1987.

PONTES, Heloisa. Moda e modos: uma leitura enviesada de O espírito das roupas.
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PRANDI, Reginaldo. O candomblé e o tempo: concepções de tempo, saber e autoridade da


África para as religiões afro-brasileiras. Revista Brasileira de Ciências Sociais, Vol. 16, nº 47,
outubro/2001.

SANTOS, Maria Stella de Azevedo. Meu Tempo é Agora. 1ª Edição: Ed. Oduduwa: São
Paulo, 1993.

1329
SERRA, Ordep. Ilê Axé Yá Nassô Oká, Terreiro da Casa Branca: Laudo antropológico.
IPHAN: Salvador 2008. In: https://ordepserra.files.wordpress.com/2008/09/laudo-casa-
branca.pdf .

1330
MUSEU DE CIÊNCIAS DA TERRA COMO MEIO DE COMUNICAÇÃO DO
CONHECIMENTO: GÊNERO NA PAISAGEM GEOLÓGICA BRASILEIRA

Fatima Maria do Nascimento*

Resumo: Apresentação de um espaço de divulgação cientifica, que vem sendo desenvolvido nos
últimos anos no Museu de Ciências da Terra - MCTer, com reconhecimento da discussão do gênero
em Geociências, a partir do histórico, da titulação e da pesquisa cientifica, realizada por pesquisadoras
em Geociências, da Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais - CPRM, empresa pública, com as
atribuições de Serviço Geológico do Brasil, onde o MCTer está atualmente localizado. Através do
relato de suas vidas e dos problemas por que passaram, estas desbravadoras mulheres em suas
carreiras, problemas estes vencidos, ao longo dos anos como geocientistas, vimos construindo a
história do gênero na área de Geociências.

Palavras chave: Museologia; Geociências; Museu de Ciências da Terra; pesquisadoras; gênero;

Abstract: Presentation of a space for scientific dissemination, which has been developed in recent
years in the Museum of Earth Sciences - MCTer, with recognition of the discussion of the genre in
Geosciences, from the history, degree and scientific research, carried out by women´s researchers in
Geosciences from the Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais - CPRM, a state-owned company
with attributions of Brazilian Geological Survey, where MCTer is currently located. Through the
account of their lives and the problems they have endured, these pioneering women in their careers,
problems that have been overcome, over the years as geoscientists, have been building the history of
the genre in the area of Geoscience.

Key-word: Museology; Geosciences; Museum of Earth Sciences; women´s researcher; gender;

1331
Museus, arquivos e bibliotecas são instituições muito antigas e com histórias diversas,
embora na linha do tempo, muitas vezes tenham convivido em relações de proximidade,
seja enquanto templos das musas, arkheion ou mesmo bibliothêkê, respectivamente. Na
Antiguidade essas instituições não ocupavam espaços claramente delimitados, tendo por
exemplo a Biblioteca de Alexandria, que inicialmente era apenas uma sala de leitura e foi
sofrendo ampliações, sendo dividida em duas partes, sendo que a primeira ficava num
museu e a segunda no templo de Serapis (ou Serapeum), em honra a Serapis, deus grego
introduzido no Egito no tempo dos Ptolomeus. (BAEZ, 2006, p.63). Desde as suas origens,
portanto, já poderíamos identificar traços de semelhança entre museus e bibliotecas - e as
suas funções de acumulação, de conservação e de memória do conhecimento e que, por
terem surgido a partir de iniciativas de soberanos, tiveram suas histórias marcadas pelo jogo
de poder, pela disputa do saber e do conhecimento.

A museologia vem há décadas, deslocando o seu objeto de estudo que são os museus e as
coleções para o universo das relações, como: a relação do homem e a realidade; do homem
e o objeto no museu; do homem e o patrimônio musealizado; do homem com o homem,
relação mediada pelo objeto. Esse universo de relações deve ser enfrentado na perspectiva
transdisciplinar dada a sua complexidade.

A função museológica é, fundamentalmente, um processo de comunicação


que explica e orienta as atividades específicas do Museu, tais como a
coleção, conservação e exibição do património cultural e natural. Isto
significa que os museus não são somente fontes de informação ou
instrumentos de educação, mas espaços e meios de comunicação que servem
ao estabelecimento da interação da comunidade com o processo e com os
produtos culturais (ICOM, 1992, p. 3).

1332
Neste sentido, (RIBEIRO e CAL, 2016, p.98) mostram o desafio dos museus em adequar às
linguagens e aos métodos disponíveis as demandas sociais, haja vista que a atenção, antes
voltada para o objeto em exposição no processo informacional de comunicação dos museus,
volta-se aos atores envolvidos sob a ótica do paradigma relacional da comunicação. “O
modelo de museu da atualidade pauta-se nas múltiplas e complexas relações que cada
pessoa estabelece com o mundo real, sendo assim, [...] de modo a equacionar aos seus
objetivos e a valorização das experiências permitidas em seu espaço, enquanto ponto de
encontro e produtor de noções identitárias”.

Para introduzir a temática do gênero temos uma pesquisa da líder do assunto no mundo, a
Elsevier, que tem a responsabilidade de promover a igualdade de gênero no STEM (Ciência,
Tecnologia, Engenharia e Matemática) e avançar a compreensão do impacto do gênero, do
sexo e da diversidade na pesquisa. São aqui apresentadas algumas conclusões sobre o
desempenho da pesquisa através de uma lente de gênero, realizado pela Elsevier
(ELSEVIER, 2017), abrangendo os períodos de 1996-2000 e 2011-2015, 12 países
(incluindo a UE e Japão) e 27 disciplinas, quais sejam:

▪ A proporção de mulheres entre pesquisadores e inventores está aumentando em todos os


doze países e regiões em comparação ao longo do tempo (o Japão marcou muito pouco
em 15%).

▪ As mulheres são menos propensas do que os homens a colaborar internacionalmente em


trabalhos de pesquisa.

▪ Entre os pesquisadores, as mulheres geralmente são menos internacionais do que os


homens.

▪ Os homens publicam mais documentos em média do que as mulheres em todos os países


pesquisados, exceto no Japão, onde as mulheres publicam aproximadamente 40% mais.
Em geral, a produção escolar das mulheres inclui uma proporção um pouco maior de

1333
pesquisa altamente interdisciplinar do que a dos homens.

▪ A pesquisa de gênero está crescendo em termos de tamanho e complexidade, com novos


tópicos emergentes ao longo do tempo. O antigo domínio dos Estados Unidos na
pesquisa de gênero diminuiu à medida que a atividade de pesquisa na União Européia
aumentou.

Fazendo um recorte, para a discussão do gênero nas Geociências, foi selecionado o Curso
de Geologia, do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo - IGc/USP, que foi
criado em 1957, na antiga Faculdade de Filosofia Ciências e Letras (FFCL), com o nome de
Curso de Geologia da FFCL e sua primeira turma formou-se em 1959. A Tabela 1,
apresenta os dados obtidos (AGUSP), entre os alunos e alunas formados em Geologia, no
período de 1959 a 2003, num total de 1.408 formandos, numa tentativa de mostrar a
evolução da formação de pesquisadoras, ao longo de quase 50 anos, respectivamente 45
anos. O gráfico mostra o crescimento do número de mulheres formadas, divididos em 4
períodos, onde vimos o quadro de 12 mulheres formadas no período de 11 anos, passar a 38
no período seguinte, triplicando o total inicial (mais de 300%), um pouco mais que o dobro
no 3o. período com 80 mulheres e no 4o. periodo com 130 mulheres, acréscimo de 60% no
valor anterior.

Como empresa que emprega 31% de geólogos em seu quadro funcional, a Companhia de
Pesquisa de Recursos Minerais - CPRM, uma empresa pública, vinculada ao Ministério de
Minas e Energia, tem as atribuições de Serviço Geológico do Brasil. Tem como missão
gerar e difundir o conhecimento geológico e hidrológico básico necessário para o
desenvolvimento sustentável do Brasil. O quadro de pessoal dela é constituído por 1.731
funcionários celetistas, com hidrogeólogos, engenheiros hidrólogos, engenheiros de minas,
e 537 geólogos, - sendo 69,64% homens e 30,35% mulheres-, um valoroso patrimônio
técnico, com doutores, mestrandos e pessoal especializado, com excelência e conhecimento

1334
ímpar da geologia e da hidrologia brasileiras. As geólogas, pesquisadoras desta empresa são
os atores que iremos descortinar neste cenário do gênero, numa tentativa de divulgação do
gênero nas Geociências.

O Museu de Ciências da Terra – MCTer, na atualidade integralizado na CPRM, tem uma


importante função cultural e educativa junto à sociedade. Seu acervo, um dos mais ricos da
América latina, é constituído por coleções de minerais, meteoritos, rochas, fósseis e
documentos, relacionados à memória geológica, estando parte deste acervo em exposição.
Levando em conta que a museologia, na atualidade, aborda diferentes interfaces, seja com
áreas do conhecimento, seja na cadeia operatório museológica (salvaguarda e
comunicação), seja para avaliação de áreas que usam o museu como meio de comunicação
do conhecimento que produzem. O tema e o objeto do museu são sempre o homem, sua
história, seu ambiente, suas idéias, voltando-se, na atualidade, como falado anteriormente,
para a interdisciplinariedade das relações e da comunicação.

Numa tentativa de divulgação, do gênero em Geociências, o MCTer vem promover


divulgação desta temática, tendo como material básico as geólogas, pesquisadoras que
compõem o quadro da CPRM sob forma de publicações versando sobre a temática, murais
expositivos, construção de históricos das carreiras das pesquisadoras, entre outras.

1335
Gráfico e Tabela de Geólogas Formadas no IGC/USP de 1959 a 2003 (AGUSP).

Total Mulheres

400

300

200

100

1970-1980 1981-1991 1992-2003

1336
Total Total Total de
Ano Mulheres Ano Mulheres Ano Mulheres
diplomados diplomados diplomados
no ano no ano no ano
1959 2 9 1981 15 76 2003 22 50
1960 2 24 1982 6 30
1961 0 25 1983 4 36
1962 0 46 1984 5 35
1963 0 29 1985 7 38
1964 1 30 1986 4 27
1965 1 32 1987 6 27
1966 1 29 1988 4 23
1967 2 31 1989 9 24
1968 2 22 1990 11 31
1969 1 40 1991 9 16
1970 3 27 1992 5 18
1971 4 35 1993 7 14
1972 1 47 1994 7 22
1973 4 52 1995 6 18
1974 2 33 1996 11 31
1975 0 55 1997 7 22
1976 5 42 1998 17 33
1977 2 43 1999 11 26
1978 8 38 2000 11 26
1979 1 16 2001 14 38
1980 1 6 2002 12 36

1337
Referências

AGUSP- Associação dos Ex-Alunos de Geologia da Universidade de São Paulo.


Disponível em: <http://ww2.igc.usp.br/agusp/turma.htm> Acesso em 25 ago. 2017

BAÉZ, Fernando. História universal da destruição de livros: das tábuas sumérias à


guerra do Iraque. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.

ELSEVIER. Gender in the Global Research Landscape. mar. 2017. Disponível


em
<www.elsevier.com/_data/assets/pdf_file/0008/265661/ElsevierGenderReport_final_for-
web.pdf. Acesso em 22 ago.2017.

ICOM - Comitê venezuelano do Conselho Internacional de Museus. Declaração de Caracas,


1992. Disponível em:
http://www.revistamuseu.com.br/legislacao/museologia/decl_caracas.asp

RIBEIRO, Lucimery; CAL, Danila. Museu como medium: reflexões sobre as interfaces entre
comunicação e museologia. Revista Dispositiva, v.5, n.2, p. 85-102, mar. 2016. Disponível
em:<http://periodocos.pucminas.br/index.php/dispositiva/article/view/12692> Acesso em: 26
ago.2017.

1338
Patrimônio, educação e
museus

1339
AUDIOVISUAL COMO FERRAMENTA PARA A EDUCAÇÃO PATRIMONIAL
Fábio Estefanio Lustosa de Brito Lopes*
Rita de Cássia Moura Carvalho*
* Universidade Federal do Piauí

Resumo: Neste artigo, apresentamos experiências de interpretação do patrimônio, em andamento no


Programa de Pós-Graduação em Artes, Patrimônio e Museologia, Mestrado Profissional – PPGAPM,
da Universidade Federal do Piauí - UFPI, Campus Ministro Reis Veloso – CMRV, da Universidade
Federal do Piauí - UFPI, na cidade de Parnaíba, Meio Norte do Brasil. Discorremos sobre práticas de
educação e interpretação do patrimônio cultural, com substrato na transversalidade, a considerar as
relações entre arte e mídias audiovisuais ordinárias, usadas como ferramentas educativas para
despertar um olhar sensível sobre o território, as pessoas e o patrimônio cultural. A considerar a
complexidade do atual momento histórico, atravessado por subjetividades, diversidade cultural,
globalização, modernidade, pontuamos, mesmo que de forma panorâmica, os sentidos e significados
do Conjunto Histórico e Paisagístico da Cidade de Parnaíba, tombado em nível federal em 2008, pelo
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN. Usamos o Método de Pesquisa
Participante e A/r/tográfica, para promover e comunicar experiências e vivências nesse território.
Destacamos duas intervenções que nos permitiram aproximação com a comunidade: a primeira,
envolvendo diretamente professores de arte da rede pública, alunos de graduação de Artes Visuais da
UFPI, nomeadamente no Plano Nacional de Formação de Professores – PARFOR; a segunda, com
artistas que vivem na cidade de Parnaíba. Buscamos realizar uma aproximação sensível e colaborativa
entre arte e comunidade, com o fito de provocar uma mudança na percepção sobre a cidade tombada;
atividades realizadas que pretendemos transformadora, autônoma e continuada.
Palavras chave: Arte, Comunidade, Interpretação do Patrimônio Cultural, Audiovisual.

Abstract: In this article, we present experiences of heritage interpretation, in progress in the


Postgraduate Programme in Arts, Heritage and Museology, Professional Master's Degree - PPGAPM,
at the Federal University of Piauí - UFPI, Minister Reis Veloso Campus - CMRV, Federal University
of Piauí - UFPI, in the city of Parnaíba, Mid-North Brazil. We discuss practices in education and
interpretation of cultural heritage, with a substratum in transversality, to consider the relations between
art and ordinary audiovisual media, used as educational tools to awaken a sensitive perspective on the
land, the people and the cultural heritage. Considering the complexity of the current historical
moment, crossed by subjectivities, cultural diversity, globalisation, modernity, etc., we underscore,
albeit in a panoramic way, the meanings and definitions of the Historic and Landscape Set of the City
of Parnaíba, registered at federal level in 2008, by the National Institute of Historic and Artistic
Heritage (IPHAN). We use the Participant Research Method and A/r/tography to promote and
communicate experiences in that territory. We highlight two interventions that allowed us to get closer
to the community: the first, directly involving art teachers in the public network and UFPI Visual Arts
undergraduate students, namely in the National Teacher Training Programme - PARFOR; the second,
involving artists living in the city of Parnaíba. We seek to achieve a sensitive and collaborative
approach between art and community, with the aim of provoking a change in perception about the
listed city; activities that we intend to be transforming, autonomous and continuous.
Keywords: Art, Community, Interpretation of Cultural Heritage, Audiovisual.

1340
Introdução
No primeiro semestre de 2017, como parte de um grupo de alunos do Mestrado
Profissional em Artes, Patrimônio e Museologia da Universidade Federal do Piauí, realizamos
um diagnóstico social, econômico e cultural com residentes do Centro Histórico da cidade de
Parnaíba, tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN
desde 2008.
Esse trabalho é parte das atividades do Projeto-Matriz “Parnaíba – Patrimônio vivo,
cidade viva”, projeto-ação concebido e coordenado pelo Mestrado Profissional para o Centro
Histórico de Parnaíba. O diagnóstico nos revelou que a comunidade residente não estabelece
laços afetivos com o patrimônio cultural protegido, não atribuem sentidos e significados ao
rico e complexo patrimônio cultural do lugar onde vivem, há um desconhecimento do que seja
patrimônio cultural e tombamento, o que dificulta a atribuição de sentidos e aproximações
com os órgãos públicos de proteção do patrimônio cultural, com agentes públicos e privados,
que devem ser sensibilizados para se tornarem agentes de proteção, preservação e salvaguarda
do patrimônio cultural do território, não só do conjunto tombado, mas do paisagem cultural na
qual se insere a arquitetura da cidade, o patrimônio cultural, ambiental, material, imaterial,
não só da urbe mas de seu entorno; cidade e entorno imersos em uma Área de Proteção
Ambiental – APA Delta do Rio Parnaíba.
Com essa percepção e a considerar a nossa função social como educador e
profissional, que atua no campo das artes visuais, propomos estudos e intervenções com o
objetivo de colaborar com a educação do olhar sobre o patrimônio cultural da cidade, de
forma a contribuir para reverter a situação atual, marcada pela falta de conhecimento e
reconhecimento da importância social, histórica, cultural e econômica desse rico e complexo
patrimônio cultural.
A salvaguarda patrimonial só ocorre quando há comunicação, nesse aspecto a
educação do olhar cria uma relação afetiva de cuidado e pertencimento. A pretensão desta
pesquisa-ação é realizar vivências e experiências mediadas com o uso do audiovisual,

1341
incluindo como públicos artistas, residentes do centro histórico da cidade de Parnaíba e
professores de arte da rede pública de ensino pública e privada, na busca por exercitar o olhar,
visitar, revisitar os espaços da cidade, produzindo singularidades e sentidos.
Usaremos os recursos audiovisuais ordinários, um simples aparelho celular, para
permitir que os participantes e colaboradores da pesquisa-ação possam compreender e
vivenciar um processo de captação de imagens em áudio e vídeo, entendendo esses recursos
como ferramentas de inclusão visual, construção de narrativas atravessadas pela percepção do
lugar, valorização das memórias e do patrimônio cultural ancestral, de forma comunitária,
marcada pela diversidade de percepções, de olhares.
A interpretação do patrimônio aliada aos recursos audiovisuais permite que as
populações residentes possam realizar um exercício de cidadania, de vivência, apropriação e
valorização da cultura local.

[…] interpretación es un proceso creativo de comunicación, entendido como


el `arte´ de conectar intelectual y emocionalmente al visitante con los valores
del recurso patrimonial o lugar visitado, para que genere sus propios
significados.

Es una disciplina que posee una amplia gama de pautas y directrices


metodológicas para la comunicación con el público, para la presentación del
patrimonio in situ a ese público, y para transmitir un mensaje impactante
que, en lo posible, trascienda al mero hecho de la visita.

Es un eficaz instrumento de gestión que merece ser bien planificado, para


reducir los impactos negativos e infundir unas actitudes de aprecio y
custodia para con el patrimonio (incluido el entorno social). (Disponível em:
http://www.interpretaciondelpatrimonio.com/es/ique-es-la-interpretacion-
del-patrimonio. Acesso em 22 dez. 2017)

A Interpretação do Patrimônio pode ser entendida como um processo e instrumento


de comunicação estratégica usada de forma a permitir o conhecimento, reconhecimento de
áreas protegidas, no caso deste projeto-ação no Conjunto Histórico e Paisagístico de Parnaíba.

1342
O audiovisual é um desses instrumentos de comunicação, uma forma estratégica de
educar o olhar, de permitir que os residentes, professores e artistas descubram e atribuam
sentidos e significados aos lugares, às pessoas, às celebrações, modos de saber-fazer, formas
de expressão etc., construindo assim conexões, afetos, sentimento, pertencimento.
Buscamos exercitar com as pessoas a ampliação da noção de patrimônio cultural, em
consonância com uma literatura mais recente no campo das Artes, Patrimônio Cultural e
Museologia Social. O audiovisual, o mundo do som e da imagem, da comunicação digital é
uma realidade no tempo presente, cada vez mais fazem parte do mundo de jovens e adultos,
que têm acesso à esses recursos.

Centro histórico de Parnaíba - Olhar e afeto


Parnaíba está localizada a aproximadamente 360 km de distância da capital do
Estado do Piauí, Teresina. O rio Igaraçu, um dos baços do rio Parnaíba, corta a cidade; com
outros braços do Rio, desagua no oceano Atlântico e forma o Delta do Parnaíba, o único em
mar aberto das Américas e o terceiro maior do mundo. O território é habitado por populações
com ancestralidades indígena, negra africana e branca europeia.
Hoje, as pessoas têm uma relação tímida de afeto com o rio Parnaíba, contrastando
com o período áureo (séculos XIX e XX – até a década de 1970), quando a cidade era um
importante entreposto comercial, ponto de integração entre o Piauí, Brasil e outros países. A
história da cidade tem raízes no ciclo do gado, usado para abate e produção do charque, e de
produtos do sertão nordestino, como os derivados do babaçu e da carnaúba. Produtora de
carne de charque e cera de carnaúba, a cidade e o rio Parnaíba tinham função social, política e
econômica relevante, o que favoreceu o desenvolvimento cultural cidade.

1343
Figura 1- Rio Igaraçu e comunidade ribeirinha. Foto: Chico Rasta

Estabelecendo ligação com várias cidades do Brasil e do mundo, Parnaíba tornou-se


uma cidade cosmopolita, com diferentes traços culturais encontrados nas edificações do
centro histórico, por exemplo. Ao longo da Avenida Getúlio Vargas, antiga Rua Grande,
corredor central de expansão da cidade, existem exemplares de três séculos de arquitetura.

Nas proximidades do Porto das Barcas, por exemplo, destaca-se a arquitetura


luso-brasileira, configurada por casas térreas e sobrados implantados no
alinhamento da rua, com pequenos beirais [algumas receberam elementos
ecléticos como platibandas e pináculos, porém ainda são visíveis sua
estrutura e configuração coloniais] e sem afastamentos laterais […] Mais à
frente, já́ surgem edificações predominantemente ecléticas em todos os seus
elementos. Mudam as dimensões do lote, a edificação se solta dos limites do
terreno, os acessos passam a ser feitos pela lateral ou por escadarias na
fachada principal, aparecem esquadrias emolduradas por arcos e outros
ornamentos artísticos e revelam-se os elementos art déco, que caracteriza a
arquitetura de meados do século XX […] O último trecho da Avenida se
encerra diante do conjunto da estação ferroviária, construída entre as décadas
de 1920 e 1950. O edifício da estação propriamente dito ainda segue padrões
ecléticos, mas outros edifícios do complexo, a exemplo do almoxarifado, já
possuem uma configuração completamente art déco. (PINHEIRO e outros,
2010, p.24)

A cidade, a arquitetura eclética, o rio, as pessoas, as celebrações, as formas de


expressão, os lugares, os modos de saber-fazer não são percebidos, há uma fragilidade nas

1344
relações afetivas entre residentes e centro histórico; indiferença, desconhecimento do
significado do patrimônio cultural tombado, de sua relevância histórica, social, econômica, o
que provoca indiferença, abandono, medo, estranhamento para um lugar poético, repleto de
memórias e histórias. O que justificaria esse estranhamento e indiferença?
É esse contexto que orienta as ações que planejamos com professores e estudantes,
artistas, residentes de Parnaíba, com o objetivo de compreender e reverter o cenário descrito.
Interpretar o patrimônio cultural de forma sensível e lúdica, nos valendo do interesse pelas
formas diversas de comunicação, nomeadamente, o audiovisual.
Trabalharemos igualmente com artistas locais, com diversas linguagens,
principalmente, os videomakers, criando diálogos artísticos, usando novas tecnologias, mídias
digitais, intervenções em projeções mapeadas na área protegida.

Mundo Visual e Educação


A sociedade contemporânea vivencia cada vez mais as inovações tecnológicas,
principalmente, aquelas associadas aos meios de informação e comunicação. A imagem
costura nosso mundo com força e, hoje, mais que nunca, as tecnologias e seu carácter sedutor
fazem da mediação de processos de comunicação e educação uma realidade. Cabe ao
educador, como mediador, permitir que educandos, sujeitos sociais, percebam o potencial
dessas tecnologias, tornando-as experiências significativas.
A arte potencializa o ensino-aprendizagem, contribui na construção de sujeitos
inquietos, questionadores, que percebem e podem transformar a realidade do lugar onde
vivem, é um instrumento para uma formação crítica, criativa. O audiovisual tem sua força
como um meio de comunicação privilegiado, como ferramenta pedagógica.

Naturalmente, a sociedade de consumo não é favorável, em si, à promoção


da criatividade. Mas ela pode ser utilizada para esse fim, uma vez que traz
provocações, experiências, materiais que alimentam a criatividade, com a
condição de que esta se apoie sobre a confiança em si e sobre a consciência
de sua riqueza patrimonial herdada e cultivada. (VARINE, 2013, p. 40)

1345
Na busca de aproximações entre arte e patrimônio cultural, o nosso interesse está
centrado nos professores, estudantes, artistas, residentes, a nossa experiência com a cultura
visual, com os repertórios imagéticos nos estimula a olhar a cidade e seu patrimônio cultural.
Conhecer outras formas de olhar, registrar e comunicar.
Segundo Morin (1981) citado por Brandão e Streck (2006, p. 98):

Não há nem haverá jamais um observador puro (está sempre unido a uma
práxis transformadora); nem conhecimento absoluto[…]. Mas com a perda
do absoluto, ganhamos em comunicação e complexidade[…], pois todo
conhecimento, para um observador, é por sua vez subjetivo (autoreferente),
ao remetê-lo a sua própria organização interior (cerebral, intelectual,
cultural), e objetivo (autorreferente), ao remetê-lo ao mundo exterior.

Podemos estabelecer uma relação com o ensino-aprendizagem de forma consciente,


responsável e principalmente funcional, com retorno positivo para a comunidade. “Todo
território determinado sem o respeito por seus componentes patrimoniais não poderá servir de
base para um desenvolvimento local equilibrado e sustentável (VARINE, 2013, p. 19).” A
partir dessas observações, percebemos a importância de formar um público que inclua os
professores-alunos em formação continuada, que podem olhar e intervir por meio da arte, de
sua relação com a comunidade residente no Centro Histórico de Parnaíba.

Método
A pesquisa-ação orienta este trabalho. Trata-se de método de pesquisa social
aplicada, qualitativa e participativa, que nos permite mediar experiências no cotidiano da
cidade com a sala de aula, usando os recursos audiovisuais, na busca por exercitar o olhar e
praticar os espaços, produzir singularidades, afetividades e sentidos associados aos lugares
esquecidos ou mesmo desconhecidos.
Estudar e intervir no espaço com a colaboração de professores, alunos e artistas é
agir em uma perspectiva multidisciplinar, comunitária, participativa e colaborativa, em uma
relação dialógica de construção de conhecimento. Segundo Brandão e Streck (2006, p. 10),

1346
"[...] reinventando-se através de novas ideias, de novas metodologias, de novas experiências e
de antigos e novos esforços de colocar o conhecimento social, obtido através de
procedimentos científicos, a serviço de alguma forma de ação social transformadora."
A Pesquisa Participante “[...] deve ser compreendida como um repertório múltiplo e
diferenciado de experiências de criação coletiva de conhecimentos, destinados a superar a
oposição sujeito/objeto no interior de processos que geram saberes (BRANDÃO E STRECK,
2006, p. 12) “. É essa natureza de pesquisa que orienta o nosso caminho de estudos e
intervenções na cidade tombada – Parnaíba.
Para as ações com um grupo de professores de arte, notamos a possibilidade de um
diálogo com a metodologia de Pesquisa Educacional Baseada em Arte (PEBA), mais
especificamente com a prática A/r/tográfica, que em linhas gerais busca uma investigação
através de uma prática viva, onde todos os envolvidos são levados a criação artística, o que
traz uma percepção expandida sensível sobre a pesquisa. O A/r/tógrafo busca novos
entendimentos sobre o que pode levar a melhorias nas políticas educacionais ou práticas
educativas; neste trabalho, práticas de interpretação do patrimônio cultural.

Planejamento e desenvolvimento das ações


Pretendemos trabalhar com o olhar desse público (professores, alunos e artistas)
sobre a cidade protegida, patrimonializada, mas não sentida como parte da vida afetiva dessas
pessoas; um espaço praticado apenas como lugar de serviços diversos, o que inclui comércio,
saúde; uma cidade insegura, vazia e marginaliza de sua vida noturna. A cidade comporta
vivências e poéticas, o que justifica propomos uma zona de convergência, de diálogos por
meio de práticas sensíveis, que envolva a linguagem audiovisual como mediadora. Nesse
primeiro momento, fizemos a aproximação com esses públicos, considerados no projeto como
participantes, colaboradores, interventores nos espaços.
Partimos da ideia de construção de processos colaborativos, da necessidade de um
primeiro contato para percepção, provocação. Iniciamos um diálogo com a Coordenação do

1347
Figura 2 - Reunião com professores de arte - Foto - Cris Brandão

Curso de Licenciatura em Artes Visuais do Plano Nacional de Formação de


Professores da Educação Básica / PARFOR. Houve receptividade e disponibilidade em
participar do projeto nos horários letivos da turma de Estágio Supervisionado II, momento no
qual há aproximações, início de algumas leituras e práticas voltadas para a interpretação do
patrimônio.

No primeiro dia de atividades, discorremos sobre as estratégias continuadas de


formação para a interpretação do patrimônio com os professores de arte. Iniciamos diálogos
sobre os processos de imersão sensível, críticos no Centro Histórico de Parnaíba. Acreditamos
que esses professores são potentes multiplicadores, e que este projeto possa reverberar em
sala de aula.
Como primeira atividade prática, tivemos uma incursão afetiva no território da
cidade protegida, fazendo registros com as câmeras dos aparelhos celulares, na tentativa de
instigar a observação, exploração, registro, apropriação e ressignificação da história, do
patrimônio cultural, das memórias, das histórias. Com o uso do celular, percebemos que a
simplicidade técnica e as possibilidades de intervenção criativa ao longo de todo o processo
de produção das imagens permitem, de um modo que nenhuma outra metodologia permitiria,

1348
Figura 3 - Reunião com artistas locais - Foto : Rosa Prado

desmistificar, analisar, compreender e vivenciar o processo de produção de imagens e vídeos,


entendendo-os como ferramenta de inclusão visual e construção de narrativas tendo como
tema a percepção do território, do patrimônio cultural.
Dando continuidade, tivemos um momento de encontro com artistas locais no
contexto do Projeto Confluências do Serviço Social do Comércio - SESC. O Projeto
Confluências se desenvolve em nível nacional e está voltado para a discussão, mapeamento e
difusão das produções artísticas que acontecem em circuitos não-legitimados. Realizaremos
três encontros com esse grupo de artistas, que, nesse primeiro momento, discutiram sobre a
produção artística nacional em rede, buscando compreender a produção nacional e sua
diversidade, para potencializá-la. Iniciamos uma provocação sobre pensar intervenções
artísticas que contribuíssem no amadurecimento afetivo da relação entre a população da
cidade de Parnaíba e seu Centro Histórico. Pensar práticas sensíveis de chamamento da
comunidade para vivenciar o território, que de forma naturalizada é representado como espaço
de passagem e trânsito, de forma fria, banalizada e marginalizada.
Propomos trabalhos com o uso de novas tecnologias como o mapeamento de vídeo e
modelagem tridimensional em ambientes virtuais para intervenções em sítios históricos, para
tanto, discutimos sobre como faríamos os diálogos com a comunidade nesse ambiente híbrido

1349
(territórios concretos, conceituais e virtuais misturados) com o objetivo de dar suporte a
processos relacionados à construção da memória afetiva social local.
O amadurecimento dessas discussões dará corpo a uma série de atividades
colaborativas a serem desenvolvidas por esse grupo de artistas e pesquisadores do Mestrado
Profissional na área tombada.

Considerações Finais
Pretendemos que a avaliação desse trabalho ocorra ao longo processo e sirva de
alimento para os novos encaminhamentos. Partindo de uma análise quantitativa, avaliamos
que esses primeiros encontros permitiram uma aproximação sensível com um número
bastante expressivo de colaboradores, com 27 professores e 20 artistas, com poder
multiplicador; um grupo engajado, participante ativo das reuniões e discussões conceituais,
além de intervenções no microcosmo a que pertencem - escolas e coletivos de arte.
Conseguirmos motivar, incluir os diálogos sobre produção de imagens e seu papel
legitimador e formador de memórias e identidades com a formação de agentes
transformadores capazes de produzirem uma representação artística de si mesmos, de sua
comunidade, da relação com o outro e o mundo através do desenvolvimento de artifícios
educacionais, que promovam outra relação com o espaço, além de trazer outras perspectivas
do exercício do olhar mais atento na renovação da percepção sobre o próprio cotidiano, seu
entorno e a cidade, até porque:

[...] o patrimônio de que quero falar [...] é antes de tudo de natureza


comunitária, isto é, emana de um grupo humano diverso e complexo,
vivendo em um território e compartilhando uma história, um presente, um
futuro, modos de vida, crises e esperança. (VARINE, 2013, p.44)

Os modos como nos apropriamos das linguagens, das tecnologias e formas de


comunicação, potencializam seu uso para além da dimensão instrumental, utilitária; são
suportes para experimentações artísticas, formas de expressão de sentimentos e saberes. Esse

1350
amadurecimento do olhar, possibilita com mais concisão o entendimento dos valores culturais
e patrimoniais.
Engajamento social criativo e sensibilidade coletiva parecem ser as chaves de um
percurso que envolve a arte e a comunidade; as experiências realizadas, permitem
gradativamente o empoderamento social, a construção de sentidos, significados, afetos.

Referências bibliográficas
BRANDÃO, Carlos R; STRECK, Danilo R. (Org.). Pesquisa participante: O saber da
partilha. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2006.

VARINE, Hugues de. As Raízes do Futuro: O Patrimônio a Serviço do Desenvolvimento


Local. Porto Alegre: Medianiz, 2013.

DIAS, B. e IRWIN, R. L. (Orgs.) Pesquisa Educacional Baseada em Arte: A/r/tografia. Santa


Maria: Ed. da UFSM, 2013.

MOURA, Cassia; PINHEIRO, Áurea. (Orgs.). Cadernos do Patrimônio Cultural do Piauí:


Conjunto histórico e paisagístico de Parnaíba. Teresina: Superintendência do Iphan no Piauí,
2010.

1351
CULTURA ORGANIZACIONAL E POLÍTICAS PÚBLICAS: PROCESSOS
SOCIAIS QUE ENVOLVEM AS FIGURAÇÕES MUSEAIS

Jamerson Kemps Gusmão Moura*

Resumo: Neste trabalho levantamos reflexões sobre a relação que se estabelece entre cultura
organizacional e a apropriação de políticas públicas. Concentramos nossa análise sobre as principais
mudanças pelas quais passaram o campo museal do Brasil e Portugal. Esses dois campos apresentam
pontos convergentes: ambos se situam em países que implementaram políticas de gestão democrática
após vivenciarem regimes autoritários. Diante disto, questionamos: a cultura organizacional
sedimentada nas organizações museais desses dois campos poderia constituir um fator de resistência
ao processo de implementação de políticas públicas? Entendemos que a implementação de políticas
públicas tem a sua viabilização diretamente ligada às formas como elas são apropriadas e dinamizadas
em cada cultura organizacional e que, dessa maneira, em Estados forjados por práticas autoritárias, o
recente processo de redemocratização pode não ter reverberado o suficiente na sociedade, fazendo a
maioria dos atores que reproduzem as determinações estatais não serem capazes de implementar
políticas de gestão democrática.
Palavras-chave: Cultura Organizacional; Políticas Públicas; Gestão de Museus; Teoria Sociológica
dos Processos.

Abstract: In this work we raise reflections on the relationship between organizational culture and the
appropriation of public policies. We concentrated our analysis on the main changes that have
undergone the field of museums in Brazil and Portugal. These two fields have convergent points: both
are located in countries that have implemented policies of democratic management after experiencing
authoritarian regimes. In view of this, we asked: could the organizational culture sedimented in the
museum organizations of these two fields constitute a factor of resistance to the process of
implementation of public policies? We understand that the implementation of public policies has its
viability directly linked to the ways in which they are appropriated and invigorated in each
organizational culture and that, in States that are forged by authoritarian practices, the recent process
of redemocratization may not have reverberated the enough in society, making most of the actors who
reproduce the state determinations not be able to implement democratic management policies.
Key-words: Organizational Culture; Public Policy; Management of Museums; Sociological Theory of
Processes.

1352
Introdução

Desenvolvemos este trabalho sob a luz da Teoria Sociológica dos Processos de


Norbert Elias (1994) concebendo o museu como uma figuração, um elemento intermediário
que recebe a influência de contextos de interação macro e microssociais, já que ele é uma
organização que representa a força da estrutura social, mas que também é influenciado pela
ação dos indivíduos.

Concentramos nossa análise sobre os processos sociais pelos quais passaram o Brasil e
Portugal, países que implementaram políticas de gestão democrática após vivenciarem
regimes autoritários. Nesse sentido, questionamos: a cultura organizacional sedimentada nos
museus desses dois países poderia constituir um fator de resistência ao processo de
implementação de políticas públicas?

Destacamos que a implementação de políticas públicas tem a sua viabilização


diretamente ligada às formas como elas são apropriadas e dinamizadas por cada cultura
organizacional, assim, entendemos que em Estados forjados por práticas autoritárias, o
recente processo de redemocratização pode não ter reverberado o suficiente na sociedade,
fazendo a maioria dos atores que reproduzem as determinações estatais não serem capazes de
implementar políticas que primam por uma gestão democrática.

Como este trabalho se propõe a levantar reflexões sobre a relação que se estabelece
entre a cultura organizacional dos museus e a apropriação de políticas públicas, paritremos
das observações e constatações obtidas em nossa tese de doutorado como uma alavanca que
impulsione reflexões e questionamentos: quais foram os processos sociais que levaram à
constituição dos espaços museais? Qual a visão de mundo dos atores responsáveis pelos
museus? O que eles entendem por certo ou errado? Como esses entendimentos se refletem na
constituição dos museus por eles organizados?

1353
Processos sociais que envolvem as políticas públicas e figurações escolares

Em nossa pesquisa de doutorado concentramos nossa análise nas principais mudanças


pelas quais passaram os campos educacionais do Brasil e Portugal. Analisamos, então, como
se deu a apropriação e viabilização da política de Gestão Democrática da Educação em
escolas que compartilham culturas organizacionais advindas de práticas socioprofissionais
ainda ligadas ao autoritarismo (consequência de sociedades que foram governadas por
regimes autoritários) associadas a práticas socioprofissionais e novas demandas sociais
oriundas de processos de redemocratização política.

Os campos educacionais por nós investigados apresentam pontos convergentes, pois


implementaram políticas de gestão democrática após vivenciarem regimes autoritários (o
Brasil na década de 1980 e Portugal na década de 1970). Entretanto, posteriormente, esses
campos educacionais cederam espaço a outras políticas de gestão escolar.

No Brasil, o processo de democratização foi incorporado ao debate educacional, mas


passou por diferentes entendimentos no transcorrer do último século. Inicialmente,
democratização significava ampliação do acesso à escola pública; posteriormente,
permanência na escola. Contudo, a partir da década de 1980, progressivamente, foram sendo
incluídos elementos relacionados à descentralização da gestão de políticas educacionais,
municipalização, qualidade do ensino, formação, valorização dos salários e condições de
trabalho dos profissionais da educação (WEBER, 2004).

O desenvolvimento desse processo promoveu a criação de instâncias diversas - como


conselhos municipais, colegiados e grupos gestores - visando a uma maior participação
popular e a um maior controle e fiscalização das ações realizadas por secretarias de educação,
antecipando políticas que viriam a ser legitimadas pela Constituição Federal de 1998 e a Lei
de Diretrizes e Bases da Educação de 1996.

1354
A Secretaria de Educação de Pernambuco foi uma das primeiras a se envolver nesse
processo. Seguindo diretrizes que primavam pela universalização da educação básica com
qualidade, a dignificação do trabalho do educador e a democratização da gestão educacional,
essa Secretaria submeteu a debate, já em 1987, a implantação desses procedimentos por meio
dos Fóruns Itinerantes de Educação: “canais de interlocução que permitiam apreender as
aspirações e interesses da comunidade escolar e dos setores organizados da população”
(AGUIAR, 2014, p. 214).

Tais fóruns contaram com a participação de professores, pais, alunos, sindicatos,


associações e outras entidades, mas também enfrentarem resistência de agentes beneficiados
por indicações político-partidárias influenciadas por fisiologismo e clientelismo. Como
desdobramento do processo, a Secretaria de Educação (gestões de 1987-1990 e 1995-1998)
propôs a convivência com várias maneiras de escolha de diretores, inclusive, incentivando a
eleição direta pela própria comunidade escolar, forma que se tornou comum a todas as escolas
a partir do ano de 2001.

A atual Secretaria de Educação determina, entretanto, que a escolha do diretor escolar


só pode ser realizada após a elaboração de uma Lista Tríplice de candidatos que tenham sido
aprovados em cursos de formação conduzidos exclusivamente pela Secretaria (Lei nº.
13.103/2012). Assim, somente após aprovação no curso de formação (com carga horária de
180 horas) é que o candidato poderá concorrer com outros dois nomes pela preferência da
comunidade escolar. Todavia, ser o candidato mais votado não garante a nomeação, pois a
decisão final sobre quem será nomeado diretor caberá ao governador do Estado (grifo nosso).

No que diz respeito a Portugal, destacamos que a política de Gestão Democrática da


Educação também foi implementada após o fim do regime autoritário que governou o país por
cinco décadas e que, assim como ocorreu no Brasil, a implementação dessa política passou
por processos sociais, enfrentando a resistência de atores sociais forjados ou beneficiados

1355
pelas práticas anteriores. Os processos sociais que inicialmente se sucederam à
implementação da política de gestão democrática até que incentivavam o desenvolvimento
desse tipo de gestão. Focados em desenvolver uma maior autonomia escolar, esses primeiros
processos propunham mais descentralização das estruturas, maior participação de diferentes
atores sociais, elegibilidade e colegialidade.

Todavia, outros processos sociais sucederam essa política e o sistema educacional


português passou a pautar-se em uma regulação burocrática, baseada no cumprimento de
normas e avaliação de resultados, dando margem à formulação e implementação da política
de Agrupamento de Escolas (BARROSO, 2006). Dentre outros objetivos, essa política de
agrupamentos procura reunir várias unidades de ensino em torno da administração de uma
única escola-sede, desenvolvendo um espírito de concorrência e ranqueamento entre os
agrupamentos e não mais estimulando a colaboração e participação entre as escolas e
comunidades (LIMA, 2004).

Breve relato das observações que nos levaram a construção deste trabalho

Uma das principais constatações de nossa pesquisa foi perceber como sociedades que
foram governadas por regimes autoritários ainda tinham muitas das características desses
regimes presentes na cultura das organizações do campo educacional. Notamos que Brasil e
Portugal iniciaram seus processos de redemocratização recentemente (décadas de 1980 e
1970, respectivamente) e que os princípios propagados por esses processos passaram a ser
incorporados também pela área da educação.

Diante das realidades já sedimentadas nas organizações dos dois campos educacionais,
a política de gestão democrática da educação foi sendo gradativamente influenciada por
processos que deram margem à implementação da política de Lista Tríplice no sistema

1356
educacional do Brasil (Pernambuco) e à política de Agrupamento de Escolas no sistema
educacional português.

Com a política de lista tríplice temos a ruptura de um processo que vinha sendo
desenvolvido desde a redemocratização no Brasil. A política de gestão democrática, na
década de 2000, havia se fortalecido com a política de escolha do diretor escolar via eleição
direta, porém perdeu fôlego porque essa escolha agora está condicionada à aprovação do
candidato a diretor em cursos oferecidos exclusivamente pela Secretaria de Educação do
Estado e à escolha final por parte do governador.

Quanto à política de agrupamento de escolas, percebemos que, na medida em que ela


procura agregar distintas escolas em torno da administração centralizada de uma única escola-
sede, tal política termina por tomar as distintas realidades de cada escola do agrupamento
como se elas fossem padronizadas e homogêneas, ou seja, não leva em conta as
particularidades da cultura organizacional de cada uma delas.

A respeito das organizações escolares pesquisadas, verificamos que elas ainda


compartilham culturas organizacionais que mesclam tardias práticas socioprofissionais
herdadas dos regimes autoritários com novas demandas sociais influenciadas pela
redemocratização. Nesse sentido, a viabilização da política de gestão democrática da
educação, da forma como foi apropriada pelas interpretações e práticas de muitos dos atores
sociais, ficou condicionada à prática de gestão individual dos diretores escolares.

As evidências encontradas por nossa pesquisa empírica nos remeteram à sociologia de


Norbert Elias (1994), segundo o qual apenas após a passagem de acontecimentos que
envolvam duas ou três gerações é que podemos perceber processos efetivos de mudança
social. Ao recorrermos à sociologia processual eliasiana, percebemos que ainda há um ranço
comportamental não democrático nas culturas das organizações escolares dos dois campos
educacionais, o qual influencia o processo de apropriação e viabilização de políticas públicas.

1357
Como os dois campos educacionais ainda se encontram no início da segunda geração
influenciada pela implementação da política de gestão democrática da educação, percebemos
que a mudança social esperada a partir da sua implementação ainda não se manifesta nas
práticas socioprofissionais da maioria dos atores.

Constatamos que os documentos estatais não representam os avanços ansiados pela


política de gestão democrática da educação, tampouco revelam preocupação em identificar e
valorizar a cultura organizacional de cada escola. Consideramos essa constatação relevante
por entendermos que, diferentemente de organizações empresariais, a administração
padronizada de organizações escolares é incongruente com as suas particularidades.

A partir da etnografia, percebemos que questões ligadas à comunicação entre os


órgãos estatais e as organizações escolares se mostraram difusas e passíveis de interpretações
não congruentes. Notamos, ainda, que os atores sociais das escolas não comungavam de um
mesmo entendimento sobre o que define as políticas públicas, seja quanto ao conhecimento
dos seus objetivos, seja em relação às melhorias que elas podem trazer às atividades da escola.

A análise das atividades cotidianas evidenciou as diferentes (re)interpretações de uma


mesma política por parte dos atores das escolas. Maior exemplo dessa diversidade de
interpretações é o pouco conhecimento sobre o conteúdo dos projetos pedagógicos por parte
dos atores bem como a pequena participação deles na elaboração desses documentos.

Isso também se reflete na percepção que os atores têm da própria participação na


gestão escolar. As percepções dos atores sobre participação na gestão e autonomia
profissional são influenciadas pela compreensão de que suas atividades se restringem a um
trabalho burocrático e voltado ao alcance de resultados em sistemas de avaliação
externos. Essas características também se refletem na dinâmica dos processos que envolvem a
relação entre escola e comunidade. Importante preceito para o desenvolvimento de uma
gestão democrática, essa relação está longe de efetivar-se de maneira mais participativa.

1358
Aporte teórico para o entendimento sobre as relações entre políticas públicas, cultura
organizacional e campo museológico

Desenvolvemos esse trabalho à luz da Teoria Social concebendo o museu como um


elemento intermediário que recebe a influência de contextos de interação macro e
microssociais, já que ele é uma organização que representa a força da estrutura social, mas
que também é influenciado pela ação dos indivíduos. Nesse sentido, nossa análise sociológica
passou a conceber o museu como uma figuração, em termos eliasianos.

Para Norbert Elias (1994), figuração significa um conjunto de relações complexas de


interdependência, cobrindo o hiato entre ação e estrutura, uma vez que os indivíduos
constituem figurações históricas e são historicamente constituídos por elas. Em virtude da
interdependência que se estabelece entre os indivíduos, cada vez mais, eles tendem a se
agrupar em contextos socioculturais particulares ou, em termos eliasianos, em figurações
específicas.

Segundo Elias, os seres humanos formam figurações uns com os outros, entre grupos
sociais pequenos ou grandes. Assim, a sociologia eliasiana nos orienta a considerar as
organizações escolares como figurações que possuem características socioculturais e
dinâmicas de funcionamento específicas, também resultantes dos processos sociais que ao
longo do tempo, influenciaram a constituição de seus indivíduos.

Em oposição à hegemônica concepção estruturalista do início da Sociologia, Elias não


concebe a sociedade tal qual um organismo que rege os indivíduos por atributos coercitivos
como forma de orientação do comportamento, pois entende que há relações de
interdependência entre os indivíduos. Ele defende a perspectiva de que a ligação entre
diversos indivíduos e organizações dá origem a figurações diversas que, relacionadas entre si,
se entrelaçam e formam uma teia de interdependências.

1359
No que denomina de Teoria Sociológica dos Processos, Elias destaca que os processos
sociais devem ser o viés de análise daquilo que classifica como abordagem sociológico-
processual, cabendo ao sociólogo captar a história e formação de cada contexto social e suas
particularidades. Assim, a análise sociológica deve identificar as conexões de relacionamentos
que se desenvolvem em rede pelos indivíduos, pois se elas se caracterizam pela influência de
regras pré-determinadas e rígidas, também são influenciadas por necessidades e escolhas
individuais.

Essa abordagem socioantropológica fez nossa atenção se voltar aos processos sociais
que envolvem as políticas de gestão democrática e demais políticas públicas que as
sucederam. Entendemos que uma política de gestão democrática procura provê o indivíduo de
poder quanto à tomada de decisões que envolvem as dimensões da gestão de museus. A partir
desse princípio, os processos de descentralização do sistema administrativo, democratização
do acesso aos museus e construção da autonomia são etapas a se desenvolverem por uma
gestão que se pretende democrática.

Na medida em que essas etapas vão sendo alcançadas, a gestão democrática tende a
proporcionar o desenvolvimento de um sistema de gestão, no qual todos os seus membros -
não só coordenadores, mas também instrutores, funcionários e todos os representantes da
comunidade - tenham a possibilidade de participar e contribuir com o empoderamento pessoal
e o da instituição.

Todavia, ressaltamos que muitas das políticas públicas implementadas no campo


museal não conseguem alcançar seus objetivos não por conta de erros ou lacunas deixadas
quando do seu processo de formulação, mas devido à forma como elas são transmitidas e
como são dinamizadas pelas organizações e atores sociais do campo.

Devemos considerar, então, os processos subsequentes que envolvem a


implementação das políticas públicas, considerando que embora a política “tenha impactos no

1360
curto prazo, (ela) é uma política de longo prazo; envolve processos subsequentes após sua
decisão e proposição, ou seja, implica também a implementação, execução e avaliação”
(SOUZA, 2006, p. 37).

Como as organizações museais tendem a se apropriar das políticas públicas de


maneiras distintas, elas não devem ser analisadas a partir de uma ótica de padronização das
atividades. Uma vez que precisamos tratar de realidades, atores e interpretações distintas,
entendemos que a dinâmica de funcionamento dessas organizações está sujeita aos interesses
e influência de diversos agentes políticos e atores sociais.

É, pois, relevante compreender como as políticas públicas partem do Estado e são


dinamizadas pelas organizações museais. Nesse sentido, a atuação do diretor do museu é
significativa, por ele ser um elemento intermediário entre a estrutura estatal e os indivíduos
ligados à organização que dirige. Suas práticas de gestão irão interferir diretamente na
implementação das políticas. Ele é o único indivíduo que tem acesso constante e
representativo entre dois distintos espaços de poder: o órgão administrativo estatal e a
organização que dirige.

Ressaltamos que no campo da museologia trabalhos como os de Manuelina Duarte


(2010) se voltam para essa análise em termos de diagnóstico, levantando questões sobre como
o diagnóstico museológico contribui efetivamente para o desenvolvimento da instituição; qual
a relação entre o diagnóstico e o plano museológico; que parâmetros podem ser comuns em
diagnósticos museológicos tão distintos como a diversidade museal e como a realização de
diagnósticos museológicos contribui ou tem contribuído para a qualificação profissional, para
a reflexão sobre a prática e para a formação em serviço dos trabalhadores de museus
envolvidos no processo.

Em vista disso, procuramos contribuir com o desenvolvimento do campo museológico


destacando a premissa de que os processos sociais que envolvem as políticas públicas indicam

1361
que a sua implementação também deve levar em consideração as formas de apropriação e
viabilização dessas políticas por parte da cultura organizacional de cada museu onde elas são
implementadas. Questionamos, então, se as práticas de gestão dos museus se preocuparam em
reconhecer as características de cada cultura organizacional e se elas foram geridas em prol da
implementação de políticas públicas. Nas palavras de Moore (1998, p. 10) “la visión actual
que se tiene de la gestión permite cada vez más a los museos saber con mayor seguridad cual
és su razón de ser, cuáles son sus metas y cómo se pueden cumplir”

Cultura Organizacional e Museus

Edgar Schein (2004) entende que a cultura é um fator decisivo para o funcionamento
da organização e que ela se constitui a partir de características específicas. Para esse autor, a
cultura organizacional se define a partir de pressupostos básicos, padronizados, inventados,
descobertos ou desenvolvidos por um grupo, considerando o que o grupo aprendeu para lidar
com os seus problemas de adaptação externa e de integração interna, e o que funcionou de
forma que fosse considerado válido.

Esses pressupostos são definidos de acordo com os níveis de profundidade e


visibilidade de cada um deles na organização e são associados à metáfora de um iceberg para
que melhor se possa compreendê-los. Essa metáfora indica que nem sempre a parte visível e
tangível de uma organização representará a essência do seu funcionamento, pois muitas das
partes invisíveis ou intangíveis podem se apresentar como as principais variáveis de
influência sobre a constituição e funcionamento das culturas organizacionais.

Assim, o primeiro nível (topo do iceberg) manifesta-se em artefatos e produtos que


podem ser percebidos, por exemplo, por meio de uniformes, estrutura física e comemorações.
Já o segundo nível (submerso) explicita-se em normas e valores, enquanto códigos de conduta
dos membros que venham a representar a filosofia da organização. Por sua vez, o terceiro

1362
nível (mais profundo e denso) seria o de assunções básicas, expressas em comportamentos
enraizados na cultura. Este último nível, muitas vezes, fica no inconsciente dos indivíduos e
por isso é mais difícil detectá-lo, o que não o impede, porém, de exercer bastante influência.

Muito do que caracteriza a dinâmica de funcionamento de uma organização como um


museu nem sempre se apresenta de forma tão visível como sua estrutura física ou artefatos
(primeiro nível). Em outras palavras, entendemos que, mesmo influenciada por normas e
valores (segundo nível) que estimulam o desenvolvimento de uma gestão democrática e
encontram-se expressos em projetos museológicos (BRUNO, 2006), a cultura de uma
organização museal também poderá ser composta por assunções básicas (terceiro nível)
forjadas em sociedades que passaram por regimes autoritários e praticadas pelos indivíduos
que fazem parte dos museus, inviabilizando, assim, políticas públicas de gestão democrática.

As assunções básicas são construídas por aquilo que os indivíduos entendem como o
que é certo e errado, ou como o que deve ser feito e evitado em suas visões de mundo. Assim,
é importante a identificação dessas assunções para a nossa análise. Quanto mais essas
assunções se mostram com caráter autoritário e estão enraizadas no comportamento dos
indivíduos que compõem as organizações museais (reflexo dos contextos sócio-históricos que
as forjaram e imperceptíveis em uma análise menos minuciosa), mais difícil a viabilidade de
políticas públicas como a de gestão democrática.

Em nossa tese pudemos compreender o quanto o desenvolvimento de uma política de


gestão democrática pode ser inviabilizada pela existência de valores forjados no autoritarismo
e que se apresentam nas organizações através dos seus membros. A partir destas constatações
passamos a pensar em uma sociologia e antropologia das organizações museais que levem em
consideração o quanto as assunções básicas da cultura organizacional dos museus também
está permeada de valores voltados à lógica capitalista, colonial e/ou patriarcal (SANTOS,
2010), por exemplo.

1363
Em sendo plenamente possível a existência desses valores, nos preocupamos em
analisar se a cultura organizacional dos museus estaria mais propensa à práticas que refletem
o colonialismo e práticas autoritárias ou ao desenvolvimento de uma ecologia dos saberes e
práticas democráticas (idem, ibid.). Até que ponto os indivíduos que forjam a cultura
organizacional dos museus refletem uma visão colonizada de mundo e, por isso, primam pela
cultura erudito-hegemônica ao invés da popular-subalterna?

Possibilidades metodológicas para compreender a Cultura Organizacional de Museus

Ciente das particularidades de cada museu devemos ter a preocupação de evitar uma
análise associada a um método comparativo pautado em oposição estrutural ou generalização
para fugirmos a uma comparação entre tipos hierárquicos que indiquem ser uma sociedade
mais avançada do que a outra em termos de políticas para gestão de museus. A pesquisa deve,
sobretudo, desenvolver uma interpretação compreensiva que faça emergirem semelhanças e
diferenças. Por interpretação compreensiva, Roberto Cardoso Oliveira (2006, p. 220) entende
ser essa uma concepção metodológica que privilegia “a compreensão do sentido (verstehen)
[...] e a experiência vivida (erlebnis) pelo pesquisador nos contextos socioculturais”.

Oliveira destaca que a interpretação compreensiva não se esgota apenas na experiência


vivida pelo pesquisador junto aos atores e organizações do fieldwork. Para ele, essa forma de
interpretação deve levar em consideração o trabalho de pesquisadores que analisaram outras
culturas e sociedades com seus respectivos e diferentes horizontes semânticos para fins de
elucidá-los reciprocamente.

Percebemos que, de forma semelhante, Brasil e Portugal representam sociedades que


passaram por regimes autoritários e implementaram políticas de gestão democrática. Também
de maneira semelhante, essa política passou por processos sociais, porém, os processos do
caso brasileiro são diferentes dos processos que se sucederam no caso português, como
também diferentes são as interpretações dos atores e práticas de gestão desenvolvidas em cada

1364
museu. Por isso, investigar organizações do campo museológico de sociedades e países
distintos se apresenta como uma forma de consolidar a nossa argumentação científica.

Compreendemos que a cultura organizacional de museus pode constituir um tipo


híbrido, capaz de sofrer influência externa do sistema político-administrativo, agentes e
sociedade. Assim, devido ao intricado sistema de relações que se estabelece entre os diversos
atores ligados aos museus, é preciso considerar o caráter de dinamicidade e sentido movente
desenvolvido em cada cultura organizacional.

Por conta disso, privilegiamos a análise qualitativa dos dados, reconhecendo na


etnografia um necessário método de investigação, pois, a abordagem etnográfica consiste em
um “método que guia a observação e lembra a articulação necessária entre os contextos de
interação social, as práticas dos atores e as significações das ações para a compreensão dos
comportamentos humanos e organizacionais” (DUPUIS, 2010, p. 247).

A abordagem qualitativa também deve realizar entrevistas com os atores sociais que
trabalham nos museus (diretores, instrutores, funcionários da administração e de serviços
gerais). Devemos observar como esses atores, imprescindíveis à formação da cultura
organizacional, dinamizam suas relações socioprofissionais dentro dos museus e com a
comunidade por eles atendida.

O roteiro de assuntos a serem conversados durante as entrevistas, não pode prescindir


das narrativas dos atores que não tenham sido previstas no roteiro inicial. Essa estratégia de
produção dos dados se coaduna com a importância de reconhecer-se a sociogênese das
organizaçõs e a psicogênese dos indivíduos (ELIAS, 1997) em meio aos processos sociais que
os envolvem, já que, por meio da história dos atores, pudemos ter acesso a informações que
não encontramos nas fontes oficiais. Além disso, ela também possibilita a identificação dos
pressupostos presentes nas culturas organizacionais, em específico, aqueles que se encontram
no nível das assunções básicas (SCHEIN, 2004).

1365
A pesquisa empírica também foi importante para percebermos quanto a dinâmica de
funcionamento das organizações está orientada pelos documentos estatais e projetos de
gestão1 dos museus. Interessa-nos perceber se esses documentos refletem a implementação
das políticas públicas nos campos museais em observância às características de cada cultura
organizacional. Submeteremos esses documentos a uma análise de conteúdo, com a qual se
poderá perceber se há congruência entre o que está contido nos documentos dos órgãos
responsáveis pela gestão dos museus e as formas de (re)interpretação dos atores.

Embora privilegiemos a análise qualitativa, também nos valeremos das informações


que os dados quantitativos podem apresentar a fim de fortalecer nossa análise e
argumentação. No intuito de identificar as variáveis sociais que caracterizam os indivíduos de
cada museu e como elas influenciam a dinâmica de funcionamento das organizações,
recorreremos à aplicação de questionários para elaborar um mapeamento das características
que compõem cada cultura organizacional dos museus.

Referências bibliográficas

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fóruns itinerantes de educação em Pernambuco. Revista Educação (Porto Alegre, impresso),
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patrimônio. Santa Maria: Pallotti, 2006, p. 119–140.

1
Ou Plano Museológico, tal qual sugere o Estatuto dos Museus, lei brasileira que rege a instituições
museológicas desde janeiro de 2009 (Lei 11.904/09).

1366
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1367
ECOMUSEU DELTA DO PARNAÍBA (MUDE): ARQUITETURA DE MUSEUS E
RESTAURO A SERVIÇO DA VALORIZAÇÃO DE UMA RICA E COMPLEXA
PAISAGEM CULTURAL

Pamela Krishna Ribeiro Franco Freire*


Alcilia Afonso de Albuquerque e Melo**

Resumo: Neste trabalho se propõe a valorização da relação entre as pessoas e essa paisagem do delta,
por meio da transformação de um antigo galpão portuário de Parnaíba (PI) em um Ecomuseu dedicado
ao Delta do Parnaíba. A proposta é que as comunidades deltaicas e os moradores de Parnaíba se
reconheçam nesse equipamento cultural, apropriando-se do lugar, para que haja uma estreita relação
de afeto, e assim, serem igualmente gestores de seu patrimônio. O trabalho é produto da pesquisa
desenvolvida no mestrado em Artes, Patrimônio e Museologia, quando defendeu-se o projeto
arquitetônico da sede e centro de gestão deste Ecomuseu que deverá ter por princípio a valorização do
patrimônio edificado sob uma abordagem fenomenológica, adequando a ruína deste antigo galpão ao
novo uso e facilitando a fruição do público por meio de uma proposta arquitetônica na qual a
população possa se reconhecer.
Palavras-chave: Ecomuseu; Paisagem; Arquitetura; Patrimônio.

Abstract: This work proposes the valuation of the relationship between people and this
landscape of the Delta, through the transformation of a former port warehouse in Parnaíba
(PI) into an Ecomuseum dedicated to the Parnaíba Delta. The proposal is that deltaic
communities and residents of Parnaíba recognize themselves in this cultural equipment,
taking ownership of the place, so that there is a close relationship of affection, and thus, be
equally managers of their patrimony. The work is a product of the research developed in the
Masters in Arts, Heritage and Museology, when it defended the architectural design of the
headquarters and management center of this Ecomuseum that should have as principle the
valuation of the built heritage under a phenomenological approach, adjusting the ruin of this
Old shed to the new use and facilitating the enjoyment of the public through an architectural
proposal in which the population can recognize itself.
Key-words: Ecomuseum; Landscape; Architecture; Patrimony.

1368
Introdução

O município de Parnaíba se situa no extremo Norte do Piauí, há 339 Km da


capital do Estado, Teresina. A cidade, fundada por uma Carta Régia em 1761, é a segunda
maior cidade do Piauí, com aproximadamente 150 mil habitantes (IBGE, 2013) e o segundo
maior PIB do Estado, perdendo apenas para a capital. A geração de renda do território está
vinculada às características do meio ambiente, uma das principais atividades é a pesca
artesanal, que envolve e agrega parte da população de Parnaíba e municípios da Área de
Proteção Ambiental Delta do Parnaíba - APA (IPHAN, 2008).

A cidade, que recebe o nome do mais importante rio do Piauí, possui íntima
relação com a água; a urbe é banhada pelo rio Igaraçu, 1º braço do delta do Parnaíba, o único
a desaguar em mar aberto das Américas - Oceano Atlântico. O delta do rio Parnaíba está
integrado à APA, o que se justifica por sua paisagem ser formada por dunas que chegam a
medir 40 metros de altura, florestas, manguezais, igarapés, ilhas e praias desertas; um rico e
complexo patrimônio.

A paisagem natural do delta do rio Parnaíba faz parte do cotidiano de "populações


ribeirinhas e praieiras, populações tradicionais, com destaque para pescadores, catadores de
caranguejo, rendeiras, artesãos em palha, argila e madeira, lavadeiras, barqueiros" (MOURA;
PINHEIRO, 2010, p 05). Há uma relação simbiótica de identidade e subsistência entre o ser
humano e a natureza. O modo de vida dessas comunidades está atravessado de memórias e
vivências ancestrais materializadas em festas, celebrações, rituais, artesanatos, artes de pesca,
navegação, etc., que encontram na paisagem do delta seu cenário e matéria-prima para
realização dessas práticas tradicionais. É nesse contexto que o Programa de Pós-graduação em
Artes, Patrimônio e Museologia, Mestrado Profissional, Universidade Federal do Piauí,
propõe a criação do Ecomuseu Delta do Parnaíba (MUDE), um equipamento cultural capaz
sensibilizar as comunidades para conhecerem e valorizarem seu rico e complexo patrimônio

1369
cultural e natural do território, reconhecerem a importância de manter relações sustentáveis
com o rio, mar e delta; com saberes e fazeres ancestrais. Assim, ganha sentido o conceito de
Ecomuseu, Para Rivière:

[...] o ecomuseu, [...] sobre um território, exprime as relações entre o homem


e a natureza através do tempo e através do espaço desse território; ele se
compõe de bens, de interesses científicos e culturais reconhecidos,
representativos do patrimônio da comunidade que serve: bens imóveis não
construídos, espaços naturais selvagens, espaços naturais humanizados; bens
imóveis construídos; bens móveis; e bens integrados. Ele compreende um
centro de gestão, onde estão localizadas as suas estruturas principais:
recepção, centros de pesquisa, conservação, exposição, ação cultural,
administração, abrangendo ainda os seus laboratórios de campo, outros
órgãos de conservação, salas de reunião, um ateliê sociocultural, moradias,
etc., percursos e estações para a observação do território que ele
compreende, diferentes elementos arquitetônicos, arqueológicos, geológicos,
etc., assinalados e explicados (Rivière, 1978 apud DESVALLÉES;
MAIRESSE, 2013. p. 66)

Esta pesquisa associa-se à pesquisa-ação nomeada “Paisagens da Ilha: patrimônio,


museus e sustentabilidade”, em andamento desde 2009, vinculada diretamente ao grupo de
pesquisa CNPq VOX MUSEI arte e patrimônio e mais recentemente ao Mestrado Profissional
em Artes, Patrimônio e Museologia. O trabalho que hora se apresenta tem como produto um
Projeto Arquitetônico para a sede do Ecomuseu Delta Parnaíba, que abrigará o Centro de
Planejamento e Gestão do Ecomuseu.

Museu e Território

O século XIX é considerado como o século dos museus, uma vez que vivenciou o
aumento quantitativo de museus pelo mundo, além da diversificação de tipologias e da
institucionalização desses, que passaram a ser símbolo e meio de construção da legitimação
de nacionalidades. A análise do percurso histórico de construção dos museus mundiais e
brasileiros evidencia a mudança de perspectiva em relação às propostas dessas instituições. O
colecionismo que marcava a proposta dos museus colocava em primeiro plano os objetos em
detrimento às pessoas. Deveriam ser selecionados e exibidos peças que fossem exemplares da

1370
cultura e da história de um grupo, povo ou nação. Em 1946, o Conselho Internacional de
Museus (International Council of Museums - ICOM) propôs a seguinte definição: “a palavra
museu inclui todas as coleções abertas ao público, de valor artístico, material, técnico,
científico, histórico ou arqueológico, incluindo zoológicos e jardins botânicos, mas excluindo
bibliotecas, exceto a medida que mantiverem salas de exposição permanentes.” (ICOM,
1946).

Essa mesma instituição, dez anos depois, modificou a definição de museu,


excluindo o termo “coleções”, e definindo museu como qualquer estabelecimento de caráter
permanente, administrado para interesse geral. Em 1961, acrescentou o termo “educação do
público”. Para além de uma simples modificação de conceito, o que se observa é uma
mudança na própria estruturação e organização dos museus, que foram gradativamente se
tornando instituições voltadas para o público e sua relação com a narrativa ali contada. Pela
Carta de Santiago, os museus deveriam desempenhar um papel decisivo na educação da
comunidade, ou seja, os museus deveriam desempenhar a preservação através da ação
educativa e cultural. Essa convenção abriu espaço para pensar os museus como forma de
representação de grupos, até então, pouco tematizados nesses espaços. Essas discussões
ensejaram a ressignificação do conceito de museu e seus desdobramentos, a se destacar o
conceito de ecomuseu.

Inicialmente, esse termo se referia essencialmente ao meio ambiente, como


afirmou Varine (1992):

Ecomuseu em sua origem histórica era um museu de ecologia [...] Na


França, onde essa palavra foi pronunciada pela primeira vez, era um museu
para os parques, era a mesma coisa que os norte americanos chamavam de
centro de interpretação. (VARINE, 1992. p. 284).

Essa ideia de ecomuseu atrelada apenas à natureza foi ressiginificada e


acrescentou-se a pretensão de desenvolvimento local, acrescentando referenciais da sociologia
e da antropologia, que embasaram a compreensão dos fenômenos sociais que se inserem no

1371
espaço. A partir de então, compreende-se que mesmo que o ecomuseu tenha foco na
preservação da natureza, essa não deve ser compreendida de forma isolada, mas na relação
com o ser humano. Georges Henri Rivière propôs que:

Um ecomuseu é um instrumento que um poder e uma população fabricam e


exploram juntos. [...] Um espelho onde essa população se olha para se
reconhecer, onde procura explicação sobre o território onde vive, onde
viveram as populações precedentes, na descontinuidade ou continuidade das
gerações. Um espelho que essa população mostra aos visitantes, para ser
melhor compreendida, no respeito ao seu trabalho, de seus comportamentos
e de suas continuidades. (RIVIÈRE, 1980, p. 443).

Como afirmou Heloísa Barbuy, no caso dos ecomuseus, as raízes representam a


ruptura com certos padrões de museus e de museologia. A autora acrescenta que:

O desenvolvimento e a maturação de movimentos voltados para uma


chamada cultural popular, engendrados desde o final do século XIX,
ganharam vulto e espaço na área dos museus no século XX e, em termos de
Museologia, no início dos anos 1970, romperam (ou apresentaram
alternativas) com as tradições vindas do século XIX, dos museus de belas
artes fixados nas obras primas e únicas, dos museus enciclopédicos de
história natural e dos museus de história, calcados na história factual e
oficial. Por isso mesmo vale apenas nos remetermos aos seus primeiros
tempos e aos movimentos que os antecederam (BARBUY,1995. p.212)

Varine ainda aponta que os ecomuseus se desenvolveram inicialmente em dois


tipos: Ecomuseu do meio ambiente e Ecomuseu de desenvolvimento comunitário. O primeiro
caso trata-se de um museu aberto que foca no meio ambiente e sua relação com o ser humano.
Já o segundo caso se destaca pela possibilidade de protagonismo social dos grupos que
ocupam o território. Um museu comunitário seria:

Uma ferramenta para a construção de sujeitos coletivos, enquanto a


comunidade se apropria dele para enriquecer as relações em seu interior,
desenvolver a consciência de sua própria história e organizar-se para a ação
coletiva transformadora. (LERSCH; OCAMPO, 2004, P.02).

A Nova Museologia já propõe uma ideia de ecomuseu bastante ampliada. Barbuy


defende que "as novas experiências de museus mais preocupadas com seu papel social

1372
representaram e representam uma corrente de ar fresco dentro de um ambiente cujo ar
chegava a ser viciado pelas antigas práticas, guiadas por um patrimonialismo como fim em si"
(BARBUY, 1995, p.210). Outra especificidade do museu de comunidade apontado por Lersch
e Ocampo é que esse tem uma genealogia diferenciada, pois:

[...] suas coleções não advém de despojos,mas de atos de vontade.O museu


comunitário nasce da iniciativa de um coletivo não para exibir a realidade do
outro, mas para defender a própria. É uma instância onde os membros da
comunidade livremente doam objetos patrimoniais e criam espaços de
memória. (LERSCH e OCAMPO, 2004, p,03).

O interesse puramente nos objetos é ampliado para as relações dos indivíduos e


grupos com esses objetos. Ecomuseu é uma instituição que "se interessa tanto pelas pessoas
quanto pelas coisas, sem, entretanto colocar as coisas em vitrines, nem as pessoas em
representação, (...) e que faz um discurso sobre patrimônio em vez de protegê-lo"
(DESVALÉES, 2015. p. 23). Ele se preocupa tanto com o presente ou com o futuro, quanto
com o passado. Ainda segundo Desvalées:

Se o ecomuseu deseja se manter fiel à missão que ele se deu na origem, ele
não deve se contentar em se abalar nostalgicamente pela perda de um
patrimônio natural, material e humano em vias de desaparecimento, ou já
desaparecido - e que necessita, sem dúvida, ser lembrado, como constitutivo
das raízes sem as quais nada se poderia construir. Imerso em todos os meios
ele deve, ainda, estar atento a escutar e compreender os feitos de cada dia;
ele deve, por seu conhecimento do passado, ao explicar as lições que tiramos
do mesmo, ajudar a construir o futuro; ele deve ser um dos instrumentos (ao
mesmo tempo, agente e lugar) de mudanças tanto tecnológicas quanto
sociais. Ele deve ser capaz de explicar o espirito de adaptação e de
engenhosidade dos ancestrais para que sirvam de exemplo àqueles que se
encontram atualmente confrontados com difíceis mudanças [...]"
(DESVALÉES, 2015. p. 25)

1373
Intervenção no patrimônio edificado sob uma abordagem fenomenológica

Paralela às revisões conceituais e práticas as quais os museus se submeteram,


houve uma revisão do conceito de monumentalidade ao qual se associava a arquitetura de
museus. As discussões acerca desta temática convergem para dois posicionamentos: o que
entende a reutilização de edifícios históricos como uma forma de salvaguarda, passando por
reformas de adequação para abrigar funcionalmente museus, e o que defende que raramente
se alcança uma restauração que realmente seja capaz de dar ao prédio a funcionalidade que o
museu contemporâneo exige.

Em 1974 o ICOM e o Conselho Internacional dos Monumentos e Sítios


(International Council on Monuments and Sites - ICOMOS) diante da questão do reuso de
edifícios históricos, projetados para outro fim, discutiram critérios de seleção e uso desses
edifícios, são eles: valor documental, valor da representatividade social e/ou histórico e valor
estético do edifício histórico. Assim, a utilização de edifícios históricos para abrigar museus
passou a ser aceita na medida em que atendesse esses critérios delimitados e se associasse à
factível adaptação do prédio quanto à funcionalidade exigida de um museu.

É importante entender que a arquitetura, como Bruno Zevi (1978) defendia, uma
experiência espacial e que ela se relaciona com as pessoas cotidianamente uma vez que a
existência é espacial. E mais, associada à experiência espacial, ela, a arquitetura, provoca uma
série de percepções, sensações, afetos, memórias, que extrapolam os limites da coisa concreta.
Afinal, "a experiência é constituída de sentimento e pensamento" (TUAN,1983). E é nesse
entendimento que se baseiam as interpretações das leituras feitas a respeito da arquitetura
enquanto patrimônio. Corroborando com essa análise, destaca-se que:

A arquitetura […], mais plenamente que as outras artes, envolve a imediatez


de nossas percepções sensoriais. [...] Enquanto o poder emotivo das outras
artes, como a pintura, cinema e música, é indisputável, apenas a arquitetura

1374
pode despertar simultaneamente todos os sentidos, todas as complexidades
da percepção (ZAERA, 2003, p. 23).

Nesse contexto, ao discutir intervenções em patrimônio de natureza arquitetônica,


foi fundamental entrar em contato com a abordagem fenomenológica:

[...] a abordagem fenomenológica é de particular relevância quando estamos


lidando com questão de significância para a preservação... Se um lugar
histórico é um fenômeno, então o termo “significativo” deve ser usado na
preservação para descrever lugares cuja característica física e associação das
matrizes histórica, mítica e social possam e, de fato, evoquem experiências
de assombro, maravilhamento, beleza e identidade, entre outros (ELLIOTT,
2002, p. 54).

A Teoria do restauro sempre esteve atenta à arquitetura, entretanto por muito


tempo foi regida sobre princípios relacionados com "a imagem - nessa vertente, mais afeta às
artes plásticas - e com a conservação da matéria - nessa vertente mais afeta à arqueologia e a
história" (CARSALADE, 2014. p. 429), e assim, deixando-as incompletas quanto a princípios
mais adequados à natureza da arquitetura. Cesare Brandi, por exemplo, mesmo tendo uma
ideia universal de arte, considerava a arquitetura não como uma arte autônoma, mas como um
caso particular inserido no campo das artes visuais. Segundo ele:

Para a restauração dos monumentos arquitetônicos são válidos os mesmos


princípios que se estabeleceram para a restauração das obras de arte, isto é,
as pinturas sejam móveis ou imóveis, os objetos de arte e históricos etc.,
segundo a definição empírica que distingue a obra de arte da arquitetura
propriamente dita. Na realidade, dado que a arquitetura assim o é, é também
obra de arte, e como tal goza da dupla e indivisível natureza de monumento
histórico e de obra de arte, e a restauração na arquitetura é igualmente regida
pelas instâncias histórica e estética. (BRANDI, 2004. p 77)

Com o método fenomenológico entende-se que em qualquer intervenção no


patrimônio já se está modificando-o, recriando-o. É importante entender a "coexistência do
passado e do presente como algo aberto que deve ser fruído no agora, pois a aspiração
máxima do patrimônio é se constituir presente" (CARSALADE, 2007. p. 50).

1375
Gadamer (2003) afirmou que a arquitetura existe com uma função associada a
uma necessidade humana e, portanto, se ela não cumpre sua função destitui-se de significado,
significado este que só pode ser atribuído pelo Homem. E complementa que para sobreviver
as mudanças de gerações deve haver uma mediação entre passado e presente, onde o presente
não seja submisso ao passado. Assim, se arquitetura é uma arte que só alcança sua plenitude
com a presença/experiência humana, as intervenções feitas no patrimônio edificado, buscam
trazê-lo para o presente, tornando-o ativo, adaptado para fruição das pessoas e sua cultura em
determinado tempo e lugar. A pessoa toma lugar no espaço e o espaço toma lugar na pessoa, é
esta a ‘aura’ da obra artística ressaltada por Walter Benjamin (PALLASMAA apud WELLS,
2016). Elliott (2002) completa esse raciocínio afirmando que:

Por causa de sua ênfase na experiência vivida, emoção e significado


précognitivo, a fenomenologia é um método particularmente poderoso para
compreender o que é significativo sobre o ambiente histórico a partir de uma
perspectiva pessoal (ELLIOTT, 2002, p. 54)

Arquitetura "é um todo que só se completa na plenitude expressiva de todas as


suas dimensões. Não faz sentido restaurar um prédio e deixá-lo vazio. Entre essas dimensões,
se inclui, portanto, o uso que se faz do espaço" (CARSALADE, 2007. p. 103). Então, a
permanência de uma edificação no correr do tempo está intimamente ligada à sua capacidade
de atender à função solicitada por um dado público. O objetivo do restauro seria, portanto,
garantir à arquitetura préexistente o cumprimento de uma função, função essa já defendida na
tríade vitruviana há mais de dois mil anos atrás e aceita até hoje.

As intervenções de preservação e restauro de bens patrimoniais edificados, devem


ser reavaliadas, ponderando sua característica peculiar, que os diferencia das artes visuais, a
função. Considerar a mutabilidade da obra arquitetônica não a faz menos digna do
reconhecimento como patrimônio; “[...] se por um lado é clara a função identitária da cultura
e a importância da preservação de seus valores para a coesão dos povos, por outro lado, isso

1376
não significa que a cultura seja imutável e que a identidade seja fixa” (CARSALADE, 2011.
p.01).

Diferente da prática de restauro de uma obra de arte visual, como uma escultura,
por exemplo, que busca trazer fidelidade aos materiais e técnicas usados, ponderando sempre
a autenticidade da obra; a restauração de uma obra arquitetônica não deve considerar apenas
uma conservação estilística, mas sua adequação à vida moderna, caso contrário pode causar
efeito reverso, provocando sua deterioração por perda de uso e, consequentemente, de
significado, já que a identidade de um bem arquitetônico está diretamente ligada à sua função.

De acordo com Carsalade (2014), não se deve entender o bem patrimonial tal
como era e qual seu uso no contexto em que surgiu, mas sim como ele se apresenta hoje; ou
seja, se seu uso e seus significados foram reinventados ao longo do tempo, devem ser
respeitados. Não há como desassociar o bem material do seu valor imaterial; reconhecer estas
transformações não lhe provoca perda do significado, mas o reforçam. Como afirma o autor:

Preservar é permitir a relação, não se atendo, portanto, apenas à matéria,


estrutura ou aparência, mas à manifestação do sentido. Preservar atine ao
material mas também ao imaterial, entendendo que a matéria e a forma são
veículos para a manifestação do imaterial. (CARSALADE, 2007. p. 101)

A memória, por exemplo, compete um aspecto imaterial do patrimônio. Segundo


Wells (2016. p. 14) "os lugares históricos, em particular tendem a evocar nostalgia – um ato
criativo, imaginativo – que é frequentemente construído sobre um passado que nunca
realmente existiu". Os lugares históricos podem provocar falsas memórias ou ilusões
(MALPAS, 1999. apud WELLS, 2016. p.14), o que MerleauPonty (1962, p. 242) chama de
formação de um “passado original, um passado que nunca foi presente". Wells (2007) ainda
afirma que:

Fundamentalmente, as pessoas experienciam o lugar de um modo altamente


subjetivo e saber ou revelar a história objetiva ou “real” não necessariamente
corresponde a um aumento da experiência afetiva como um todo, nem

1377
necessariamente se relaciona com o quão importante o lugar é para
indivíduos ou grupo de pessoas. (WELLS, 2016. p. 12)

A revisão de literatura ora apresentada é base para pensar a prática desse trabalho,
materializado no projeto arquitetônico do Ecomuseu Delta do Parnaíba. Dessa forma, ao
pensar o projeto de intervenção apresentado adiante, leva-se em consideração sobretudo a
relação que se tem e que se poderá ter entre as pessoas e essa edificação que receberá um
novo uso. Françoise Choay afirma que “arquiteturas e espaços não devem ser fixados por uma
ideia de conservação intransigente, mas manter sua dinâmica” (2008). Sendo a cidade um
espaço múltiplo de transformações constantes, ganham sentido as referências exploradas aqui.

Sede do Ecomuseu Delta do Parnaíba (MUDE)

A área de intervenção conta com uma edificação de um antigo galpão portuário


em estado de ruína associado a um terreno que configura uma área de expansão para
construção de um bloco novo em anexo, que proporcionará uma melhor funcionalidade,
facilitando o atendimento ao programa de necessidades da sede de um ecomuseu. No entorno
do local da intervenção, dois pontos são contemplados como parte do partido arquitetônico do
projeto: a relação que a edificação tem com o rio Igaraçu e potenciais usuários do museu, os
moradores do tradicional Bairro São José.

O rio, na paisagem de Parnaíba, é um elemento que marca a identidade,


protagonista nos movimentos de importação e exportação de produtos, atividades
responsáveis pela ascensão econômica, social, política e cultural da cidade no primeiros
séculos de sua constituição como urbe. Atualmente, no rio Igaraçu, as atividades navegação,
construção de embarcações e artes de pesca, a presença de pescadores e lavadeiras ainda são
presentes; mas têm se tornado menos comum, permanecendo mais intensas em zonas rurais
do município, tornando-se cada vez menos frequentes no perímetro urbano da cidade. Ao
passo que a cidade se desenvolveu economicamente por meio de outras atividades que não

1378
relacionadas à navegabilidade do rio, diminuiu o reconhecimento do mesmo como elemento
de identidade.

Neste projeto, a definição de conceitos e partidos levou em consideração as


oportunidades encontradas no local de intervenção (Figura 01). O principal conceito
estabelecido é o fortalecimento da relação dos usuários da edificação e o rio, considerando a
locação da edificação, próxima do rio Igaraçu. Esse primeiro conceito reflete uma das
problemáticas deste trabalho, o distanciamento atual entre os residentes da cidade de Parnaíba
do rio Igaraçu, que abriga uma rica e complexa paisagem cultural a explorar e tomar partido.

Figura 01: Diagrama de identificação de oportunidades e ameaças.

Fonte: Pamela Franco, 2016

Um segundo conceito também faz referência aos problemas levantados, dentre


eles o abandono e descuido com o patrimônio edificado de Parnaíba. Assim, busca-se com o
projeto, igualmente, a valorização desse patrimônio cultural, significativo para a história
social e política da cidade. E, o último conceito definido, é o de atrair e aproximar de forma
afetiva e identitária o público alvo deste museu: populações ribeirinhas e deltaica, moradores
dos bairros do entorno e residentes da cidade, bem como turistas, sobretudo os que buscam
um turismo cultural e de experiência.

1379
Para se pensar este restauro leva-se em consideração o estudo da teoria do restauro
e aspectos ligados a fenomenologia, sobretudo no que tangem a intervenções em edificações
em estado de ruínas. A clássica teoria de Ruskin, mesmo que muito criticada pelos
extremismos cometidos, é uma base para se pensar a intervenção em uma edificação em
estado de ruína. Para ele, o elevado estado de degradação em prédios antigos provocava um
"sentimento de melancolia mista", "uma profunda sensação de expressividade, de uma
vigilância original, de misteriosa simpatia" (RUSKIN, 1877 apud WELLS, 2016. p.06). São
falas que instigam a uma investigação fenomenológica, mesmo não sendo considerado um
autor que trabalhe com essa abordagem.

Alois Riegl (1996) ao criar o conceito de "valor de antiguidade" se referia às


emoções, que ia de encontro ao conceito de "valor histórico", de bases científicas, objetivo,
positivista. O valor de antiguidade dialoga com o que foi ressaltado aqui dos escritos de
Ruskin, uma vez que é, segundo o autor, “imperfeição, falta de completude, uma tendência a
dissolver forma e cor” e é experiencial, marcado pela emoção e subjetividade. Riegl foi um
dos autores que contribuiu para alertar para o valor da deterioração e pátina na teoria do
restauro.

A pátina é fundamental para a percepção do valor de antiguidade porque ela


remete à noção da percepção da passagem do tempo e à ideia de
envelhecimento e decaimento. [...] [A] pátina passa a expressar duas noções:
uma que se refere à ação do tempo sobre determinado objeto e outra que diz
respeito ao resultado dessa ação no objeto, isto é, a pátina aparece tanto
como a causa, quanto como o efeito (ZANCHETI; SILVA; LIRA; BRAGA;
GAMEIRO, 2008, p. 1).

Segundo Wells (2016) a pátina em ambientes históricos é capaz de provocar uma


"fantasia espontânea" na mente das pessoas quando experienciam o espaço. Para Ginsberg
(2004 apud WELLS, 2016. p. 11), as ruínas são poéticas, “o gosto por ruínas incita o
maravilhamento. Encantados, nós somos cativados por sentimentos rudimentares que vêm à

1380
luz como raios de luar e então afundam atrás das sombras de muros primitivos. Estremecer
com deleite”.

A pátina é adquirida pelos materiais de uma construção histórica por meio


do envelhecimento, pelo tempo ou oxidação e pelo uso. É algo que não pode
ser produzido artificialmente, uma vez que o envelhecimento artificial que
falsários e restauradores comerciais aplicam sempre parecerá falso passado
algum tempo. [...] A pátina é preciosa porque só pode ser adquirida com o
tempo (FEILDEN, 1994. p. 247-248)

Neste ponto, é fundamental entender que o conhecimento sobre restauro é


transdisciplinar:

que incorpora as ciências exatas, as ciências humanas, as ciências sociais


aplicadas, as tecnologias, indo desde a história e as belas artes (de onde
reivindica seu berço) até a política (que decisões se toma sobre o patrimônio
e quem as toma) e sociologia (como a sociedade “legitima” algo como
patrimônio, decisão fundamental para sua preservação), passando pelas
tecnologias construtivas (CARSALADE, 2007. p. 88)

Com base nas referências teóricas estudadas foram-se definidas diretrizes capazes
de nortear todas as intervenções feitas, criando uma linha de ações que se repetem e se tornam
facilmente reconhecíveis, tornando este projeto didático, visto que os padrões que se seguirão
para intervenção remetem à discussões a cerca do tema restauração, sobretudo de prédios em
ruínas.

Utilizam-se também princípios defendidos por Brandi (2004) que atendem os


seguintes aspectos fundamentais de Legibilidade - “[...] a integração deverá ser sempre e
facilmente reconhecível; mas sem que por isto se venha a infringir a própria unidade que se
visa a reconstruir [...]” (2004, p.47) - e de Reversibilidade - “[...] que qualquer intervenção de
restauro não torne impossível, mas, antes, facilite as eventuais intervenções futuras” (2004,
p.48). E ainda o entendimento de Camillo Boito quando defendia que "seria sempre melhor
consolidar que reparar e depois reparar que restaurar, a não ser que seu novo uso, enfim,
demandasse a restauração" (BOITO apud CARSALADE, 2014. p. 337)

1381
Diretrizes adotadas no projeto arquitetônico

Piso:
 Os pisos novos são suspensos a 50 centímetros do piso existente (que por sua vez,
estão a 30 cm do nível externo) e soltos das alvenarias internas em média 20
centímetros e 150 centímetros das fachadas Noroeste e Nordeste (Figura 02). Esta
diretriz se justifica pela possibilidade de enchente do Rio Igaraçu e para que se deixe
visível o máximo possível do piso atual da ruína, podendo ser trabalhadas pesquisas
sobre arqueologia industrial nessa área;
 Esse piso terá estruturação metálica completamente independente e será, em quase
totalidade do bloco antigo, em concreto pré-moldado. A opção pelos pré-moldados
proporciona uma construção seca, com menor chance de prejudicar a manutenção do
piso original;
 Ainda no bloco antigo, parte da recepção e todo piso da loja e suas passarelas de
acesso terão piso em vidro laminado (de três camadas) antiderrapante e antirriscos,
permitindo transparência de forma a valorizar o piso da ruína consolidada (Figura 02);
 O pátio de alimentação e o bloco novo em anexo também estarão suspensos, desta vez
a 80 cm do piso externo, para que a circulação entre essas três áreas (bloco antigo,
pátio de alimentação e bloco novo) seja acessível e mais confortável (Figura 03).

Figuras 02 e 03: Perspectiva interna da recepção e perspectiva externa do pátio de alimentação.

Fonte: Pamela Franco, 2017

1382
Estrutura:

 Toda e qualquer estruturação nova, para ambos os blocos, deverá ser do tipo metálica,
pintada na cor branca, para que, além de ser reconhecível, seja reversível;

 No bloco antigo essa estruturação metálica tem função também de consolidar a ruína
existente, não apoiando sobre ela qualquer força normal ou horizontal. Para isso, uma
nova modulação foi pensada para esse bloco, estruturando a nova cobertura de forma
independente das alvenarias existentes.

Alvenarias:

 Nas alvenarias do bloco antigo, completar a remoção de todo o reboco (Figura 05),
que já se perdeu em partes, deixando visível a técnica construtiva em tijolo maciço,
com as deformações que o tempo lhe provocou, porém higienizando esta fachada e
dando-lhe unidade. Esta unidade foi buscada pensando sim na estética e imagem da
ruína, mas isso tendo base na relação entre os moradores da cidade, sobretudo do
bairro, que criam na degradação provocada pela ação humana que a edificação sofreu
(pichações, sujeira, mistura de materiais de forma aleatória, etc), uma forma de repulsa
devido a marginalização do uso feito nesse espaço atualmente. Assim, justificada pela
expectativa de experiência do espaço de forma mais afetiva, repete-se: completar a
remoção de todo o reboco nas alvenarias do bloco antigo;

 O trecho da alvenaria da fachada que ruiu (fachada noroeste - Figura 04) terá vedação
interna, independente, com mesmo material da cobertura: Policarbonato alveolar.
Assim, deixa-se perceptível a edificação enquanto ruína.

1383
Figuras 04 e 05: Perspectiva externa da fachada noroeste e perspectiva externa do túnel de acesso.

Fonte: Pamela Franco, 2017

Cobertura:

 A estruturação original da cobertura, encontra-se em risco de desmoronar pelo elevado


nível de infiltração que provocou apodrecimento das madeiras, portanto a diretriz para
essa intervenção é de substituição por estrutura metálica, seguindo a mesma unidade
dos pilares;

 As telhas do bloco antigo também serão substituídas, como forma de marcar na


intervenção uma identidade contemporânea; a solução dada para a cobertura levou em
consideração o desenho da cobertura de galpões - não só esse que receberá a
intervenção, mas os outros próximos a ele (também ruínas) - formada por módulos em
duas águas que se repetem paralelamente (Figura 06);

 O material usado na cobertura desse bloco antigo será o policarbonato alveolar


translúcido, com proteção anti-UV, que tem melhor inércia térmica e tem uma
estruturação mais resistente, sua transmissão de luz também é filtrada e não há
incidência solar direta, apenas difusa.

1384
Figura 06: Perspectiva externa da edificação em ruína restaurada.

Fonte: Pamela Franco, 2017

Esquadrias

 Todas as novas esquadrias deverão ser confeccionadas em aço corten ou vidro, para
que seja de fácil identificação como material novo.

Considerações finais

O projeto de restauro dessa ruína no centro histórico de Parnaíba é a


materialização de uma pesquisa que perpassa pelo conceito de ecomuseu aplicado à rica e
complexa paisagem do Delta do Rio Parnaíba, cruzando com uma discussão teórica de
intervenção no patrimônio edificado que valoriza a relação pessoa e lugar, com suas infidas
possibilidades de percepção e fruição.

1385
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1387
REVITALIZAÇÃO DO CENTRO HISTÓRICO DE PARNAÍBA: A ESTRATÉGIA
DA IMPLANTAÇÃO DE CURSOS UNIVERSITÁRIOS

Rosa Karina Carvalho Cavalcante*


* Universidade Federal do Delta do Parnaíba (UFDPar)

Resumo: Neste artigo apresentamos a proposta a ser desenvolvida no Programa de Pós-graduação em


Artes, Patrimônio e Museologia, Mestrado Profissional, da Universidade Federal do Piauí, Meio Norte
do Brasil. A proposta apresentada trata-se da reabilitação do Edifício Miranda Osório, cujo objetivo
vai além da restauração do bem, mas de um processo de sensibilização da comunidade local e dos
agentes públicos e privados, através de ações como educação patrimonial. Ao propormos sua
requalificação para abrigar a Faculdade de Ciências da Arte e do Patrimônio, da Universidade Federal
do Delta do Parnaíba (UFDPar). Propomos também uma série de ações continuadas, promovendo
condições para a sua sustentabilidade, visando a manutenção do edifício e de sua conservação. A
metodologia utilizada será baseada principalmente na Pesquisa-ação, além de pesquisas históricas,
arquitetônicas e urbanísticas. Como resultado pretende-se conseguir a revitalização da área do centro
histórico onde o edifício está implantado, afastando o máximo possível os riscos inerentes ao processo
de implantação de um núcleo universitário.

Palavras-chave: requalificação; patrimônio cultural; Parnaíba-PI.

Abstract: In this article we present the proposal to be developed in the Postgraduate Program in Arts,
Patrimony and Museology, Professional Master's, of the Federal University of Piauí, Meio Norte do
Brasil. The proposal is about the rehabilitation of the Miranda Osório Building, whose objective goes
beyond the restoration of the property, but a process of sensitization of the local community and of the
public and private agents, through actions such as patrimony education. When we propose its
requalification to house the Faculty of Sciences of Art and Patrimony, Federal University of the Delta
of Parnaíba (UFDPar). We also propose a series of continuous actions, promoting conditions for its
sustainability, aiming at the maintenance of the building and its conservation. The methodology used
will be based mainly on action research, as well as historical, architectural and urban studies. As a
result, it is intended to revitalize the area of the historic center where the building is located, removing
as much as possible the risks inherent in the process of establishing a university nucleus.

Key-words: Requalification; cultural patrimony; Parnaíba-PI.

1388
Introdução
Este trabalho faz parte das pesquisas desenvolvidas para o projeto de Pesquisa-ação
que está sendo desenvolvido no Programa de Pós-graduação em Artes, Patrimônio e
Museologia, Mestrado Profissional, da Universidade Federal do Piauí, Meio Norte do Brasil.
Pretende-se, através de várias estratégias como a educação patrimonial e a reabilitação de
vários edifícios de grande valor histórico para a cidade de Parnaíba, revitalizar o seu Centro
Histórico.

Nossa proposta trata-se da reabilitação do Edifício Miranda Osório, importante


edificação do Conjunto da Avenida Getúlio Vargas, fundado em 1927, para abrigar o famoso
Ginásio Parnaibano. Depois, já sob o domínio da Universidade Estadual do Piauí, passa a
abrigar o Curso de Direito desta instituição. Caracterizado em seu interior por belos assoalhos
em tábuas bicolores e pé-direito alto, com vários trabalhos no teto, hoje encontra-se
interditado por causa do seu avançado estado de deterioração, mas ainda reversível, caso seja
restaurado a tempo.

Pretende-se dar um novo uso com a implantação da Faculdade de Ciências da Arte e


do Patrimônio, da Universidade Federal do Delta do Parnaíba (UFDPar), onde funcionariam
cursos como Arquitetura e Urbanismo, Artes Plásticas; que além de proporcionar a
restauração do edifício, lhe daria um novo uso, sustentabilidade e promoveria o
desenvolvimento econômico da área, e também incrementaria o uso residencial.

A primeira metodologia a ser utilizada no projeto proposto é a da pesquisa-ação, pois


esta faz parte do Projeto Pesquisa Matriz 01 “Parnaíba - Patrimônio Nacional” do Programa
de Pós-graduação em Artes, Patrimônio e Museologia (PPGAPM), Mestrado Profissional, da
UFPI, Parnaíba, Piauí, no qual um grupo de alunos procura criar, junto à comunidade,
instrumentos para lidarem com proteção e a revitalização do Conjunto Histórico e Paisagístico
da cidade.

Thiollent (1947) define a pesquisa-ação da seguinte forma:

1389
[...] tipo de pesquisa social com base empírica que é concebida e realizada
em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema
coletivo e no qual os pesquisadores e os participantes representativos da
situação ou do problema estão envolvidos de modo cooperativo ou
participativo. (THIOLLENT, 1947, p. 14)

A seguir um diagnóstico do Centro Histórico, de forma especial do Conjunto da


Avenida Getúlio Vargas, onde encontra-se o edifício, será essencial, pois servirá de orientação
para as ações a serem implementadas em conjunto com o projeto de requalificação do bem,
como as ações de educação patrimonial, estudos e propostas de mobilidade urbana.

Para a reabilitação arquitetônica é imprescindível também outras duas metodologias:


uma pesquisa histórica e uma pesquisa arquitetônica e urbanística do edifício como objeto de
estudo e intervenção.

Benévolo (1984) explica que a cidade comunica a forma física de uma sociedade, mais
durável que esta, e contém numerosas informações sobre as características da sociedade,
muitas das quais só podem ser conhecidas desta maneira e as únicas que podem ser
experimentadas. ”

Partindo desse princípio, acreditamos também que a forma construída do edifício


comunica também a sua arquitetura, e compreendê-la é essencial para nela intervir. Logo, a
pesquisa sobre a história e análise da arquitetura do edifício e do lugar onde ele está inserido é
uma premissa para o projeto.

A pesquisa histórica nos ajuda a entender a importância do edifício, os processos pelos


quais passou e como chegou à atual situação, com o objetivo de, pelo menos, tentar criar
mecanismos alternativos ou, preferencialmente, corrigir esses processos para que, após
intervenção, não retorne ao estado atual: “A pesquisa histórica há de desempenhar uma
função essencial também de natureza operativa: o esclarecimento do processo que levou à
situação atual constitui na verdade uma premissa indispensável para abordar esta situação de
maneira realista. “ (BENÉVOLO, 1984, p. 27)

1390
A pesquisa arquitetônica e urbanística nos ajuda a conhecer o edifício e o sitio onde
está inserido. A análise está focada na arquitetura, no edifício como documento, nas questões
projetuais e construtivas, como a estrutura, materiais, modulações, qualidade dos espaços
interiores, volumes e as relações entre eles, os critérios arquitetônicos.

São utilizadas nessa pesquisa todas as informações físicas e gráficas do edifício, desde
levantamentos físicos e métricos, pranchas do projeto arquitetônico, diagnóstico da edificação
feito pelo IPHAN, fotografias, etc.

Acreditamos que todos esses passos nos ajudarão a conseguir o objetivo pretendido de
forma satisfatória, afastando o máximo possível os riscos inerentes ao processo de
implantação de um núcleo universitário num centro histórico.

Uma Proposta de Revitalização para o Centro Histórico de Parnaíba


A cidade de Parnaíba, Piauí, localizada no Meio Norte do Brasil, fundada em 1762 por
João Pereira Caldas, governador da então Capitania de São José do Piauí, teve seu Conjunto
Histórico e Paisagístico tombado, a nível federal, em 2008 pelo IPHAN. Esse tombamento
integra a cidade ao patrimônio cultural brasileiro, e faz parte de um projeto de implantação de
uma rede de patrimônio cultural no estado do Piauí, como registrado no dossiê de
tombamento do IPHAN (2008):

Para o IPHAN, além da significância cultural, o tombamento do Conjunto


Histórico e Paisagístico de Parnaíba representa o arranque na implantação da
rede de patrimônio cultural no estado do Piauí. [...] ressaltamos os aspectos
principais do processo de tombamento de Parnaíba: a seleção de mais um
componente para o seleto grupo das cidades históricas do Brasil; a base da
constituição de uma rede de bens protegidos em cada estado da federação -
iniciando pelo Piauí - configurando uma nova estratégia de proteção e
valorização do patrimônio cultural no Brasil; as oportunidades abertas a
partir do tombamento de um centro histórico, unindo passado e futuro,
proporcionando mais qualidade de vida e novas alternativas de
desenvolvimento sustentável para o Piauí e para a sua gente.

1391
Integrando esse Conjunto Histórico e Paisagístico encontra-se um vasto conjunto
arquitetônico de estilo eclético do século XIX e início do século XX, ao longo da Avenida
Getúlio Vargas, e no entorno da Praça Santo Antônio, marcado pelos palacetes, chalés, alguns
exemplos do art déco e do modernismo.

Esse conjunto arquitetônico encontra-se hoje bastante ameaçado, incluindo-se nessa


situação os edifícios residenciais e muitos edifícios institucionais, principalmente porque o
tombamento, ainda que importante para a história e cultura da cidade, foi “imposto” sem uma
ação participativa e educativa junto à comunidade local, que não adquiriu o pertencimento
necessário para seu envolvimento como agente ativo nesse processo. “Há o Tombamento, mas
não há uma nova postura diante do conceito de Cidade Patrimônio Nacional. Não há ações
que criem laços de cooperação técnica entre agentes públicos, privados e a comunidade
residente [...]. ” (PROJETO PESQUISA MATRIZ 01, p. 2)

Em consequência disso, ocorre hoje um acelerado esvaziamento econômico, de


marginalização social e cultural, desvalorização imobiliária, gerando o abandono desse
importante Conjunto Histórico, onde muitas edificações já se encontram em estado de ruína,
particulares ou institucionais; e as que estão relativamente conservadas, terminam por sofrer
descaracterizações, transformadas em clínicas ou comércio.

A consequência maior desse fenômeno para o lugar é que ocorre “um desequilíbrio
entre a dinâmica diurna da superconcentração de pessoas e atividades e o esvaziamento
noturno, comprometendo ainda a utilização e manutenção dos espaços de lazer e cultura”
(PAIVA, 2003 APUD CUNHA, 2004, p. 29) Esse fator também gera problemas de segurança
pública, afastando ainda mais as pessoas do lugar, além do aumento de depredações aos
edifícios.

Um dos projetos pesquisa do mestrado acima citado, o “Projeto Pesquisa Matriz 01:
Parnaíba – Patrimônio Nacional”, tem como objetivo a revitalização desse Conjunto Histórico
e Paisagístico da Cidade, tombado a nível federal em 2011 após a apresentação do Dossiê

1392
“Cidades do Piauí, Testemunhas da ocupação do interior do país nos séculos XVIII e XIX”
pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

De forma concreta, o mestrado está desenvolvendo vários projetos técnicos e sensíveis


ao território, às pessoas, aos patrimônios cultural e natural, com o objetivo de criar ações
sistemáticas de natureza socioculturais, permitindo aos residentes da cidade o conhecimento e
reconhecimento do seu rico e complexo patrimônio cultural e natural, permitindo, assim, que
atribuam sentido e significado ao tombamento. Essas ações também visam criar elementos de
fixação das populações, elementos de educação, cultura, geradores de emprego e renda:

Pretendemos indicar possibilidades de uso dos espaços, a exemplo de outras


boas práticas em cidades brasileiras e estrangeiras; introduzir o conceito de
centro como lugar de moradia, educação, cultura, geração de emprego e
renda; mudar a atual situação de marginalidade das populações que habitam
o Centro Histórico de Parnaíba, abandonadas a própria sorte pelos poderes
públicos, patrimônios (o que inclui diretamente a pessoas) não conhecidos e,
portanto, não reconhecidos e valorizados pelos habitantes de Parnaíba e
entorno. (PROJETO PESQUISA MATRIZ 01, p. 4)
Atualmente há vários programas de revitalização de áreas centrais em vários países, e
os programas de moradia são considerados um dos principais meios para a recuperação dessas
áreas, segundo autores como Maricato (1998). As vantagens, segundo este autor, é que a
habitação urbana deve estar conectada a redes de infraestrutura, incluindo água, esgoto,
energia elétrica, drenagem pluvial e pavimentação; além dos serviços urbanos, como
transporte coletivo, coleta de lixo, educação, saúde e abastecimento, e normalmente o centro
da cidade é uma das regiões menores dotadas com essas benfeitorias. “Entretanto, muitas
vezes essas características são ignoradas pelas autoridades governamentais envolvidas nas
políticas de habitação, que focam em número de déficits habitacionais e unidades isoladas”
(MARICATO, 1998, p. 42). Soma-se a essas vantagens o fato de que com o uso residencial a
infraestrutura disponível poderá ser usufruída pelos moradores em todas as horas do dia,
ajudando a resolver o problema do abandono e da ociosidade, além de incentivar o uso dos
edifícios com importância histórica que se encontram abandonados.
Bonduki (2010), porém, afirma que a implantação de cursos universitários, pelas
universidades públicas, em núcleos históricos também pode ser uma excelente estratégia para
preservação sustentável. Ainda que seus estudos estejam focados nas pequenas cidades,
podemos tirar boas lições para as cidades de porte médio, como é o caso de Parnaíba.
Esse programa pode ser bastante eficiente ao nosso caso pois soma vários benefícios,
como a restauração de edifícios históricos tombados (em ruínas ou não), o estímulo a novos
usos e, termina por fomentar o uso residencial na medida que aumenta a demanda por pensões

1393
ou habitações estudantis, hotéis, restaurantes, bares e serviços pessoais, destinados aos
estudantes, professores e funcionários, “o charme das cidades históricas as torna atraentes
como local de moradia, contribuindo para fixar professores e alunos junto aos campi.”
(BONDUKI, 2010, p. 238)
Além de estimular a habitação dos imóveis de interesse histórico com baixa ocupação,
e potencializar, assim, os ganhos econômicos da comunidade local, a presença da
universidade dinamiza também a vida cultural e intelectual do município:
Abre-se um leque de oportunidades, como projetos de pesquisa e de
extensão universitária, palestras, debates e seminários, onde antes nada
ocorria. Os equipamentos universitários, como auditórios, biblioteca,
laboratórios e centros de convenção, tornam-se espaços que podem ser
utilizados pelas entidades da cidade, ampliando as possibilidades de vida
pública e de realização de eventos culturais e acadêmicos. Esses eventos,
além de movimentar a vida local, podem oferecer novas perspectivas de
estudo e investigação sobre o próprio patrimônio material e imaterial dos
núcleos históricos, sobretudo quando os cursos instalados têm relação com
essa temática. (BONDUKI, 2010, p. 268).
A escolha da Requalificação do Edifício Miranda Osório para abrigar a Faculdade de
Ciências da Arte e do Patrimônio, da Universidade Federal do Delta do Parnaíba (UFDPar),
onde funcionariam cursos como Arquitetura e Urbanismo, Artes Plásticas, entre outros cujo
DNA seria a educação patrimonial e a salvaguarda do Patrimônio Histórico, como uma das
estratégias para a revitalização do Conjunto Histórico localizado no Conjunto da Avenida
Getúlio Vargas, centro da cidade de Parnaíba, se justifica por todos os fatores acima descritos
somados às questões de uma aceitação do empreendimento por parte da comunidade local,
que por diversas formas já manifestou o desejo de que seja restaurado (como na Figura 01
abaixo), e também por propormos uma requalificação que mantém o uso original da
edificação, ainda que com uma nova proposta de curso.
Outros benefícios importantes que pode trazer a implantação de cursos universitários
nos Centros Históricos é que as universidades, ainda que sejam instituições locais, estão
extremamente conectadas com outros centros a nível internacional, pois circulam
pesquisadores e estudantes vindos de diferentes partes do país e do mundo; além de funcionar
como um importante elemento de divulgação das cidades e de seus bens culturais,
potencializando o turismo.
É preciso, porém, estar atentos aos riscos incluídos nesse tipo de programa de
revitalização, principalmente os riscos de descaracterização dos imóveis protegidos devido ao
aumento da demanda imobiliária, através de reformas mal executadas e improvisadas, por
exemplo. Tal fato mostra, portanto, que o trabalho dos órgãos de preservação precisa ser
muito eficiente, ampliando a fiscalização e o controle, com o intuito de compatibilizar um
possível ciclo de expansão econômica e a proteção do patrimônio.

1394
Figura 01: Fachada do Ed. Miranda Osório, com faixa pedindo “Restauração Já”

Fonte: http://www.jornaldaparnaiba.com/2012_11_18_archive.html

Outro problema a ser observado e não negligenciado, “é a possibilidade de que os


novos usos e a dinâmica imobiliária a ser criada resultem na expulsão dos antigos moradores
do núcleo histórico, reforçando a segregação socioespacial” (BONDUKI, 2010, p. 269). Não
há sentido em restaurar/recuperar o patrimônio em ruínas para transformá-lo num cenário.
Um plano de mobilidade urbana também precisa ser estudado, pois a malha viária
pode não estar adequada para receber esses novos usos, podendo transformar praças ou
casarios em estacionamentos, com carros e ônibus disputando os espaços, e terminando por
prejudicar o conjunto patrimonial da região.
Por fim, Bonduki (2010) termina chamando a atenção para um trabalho de integração
entre o pessoal das universidades e os moradores locais, para que por preconceitos, ou
diferentes visões de mundo, terminem totalmente afastados ou segregados, fazendo com que
as universidades se tornem ilhas no meio das cidades, fato que costuma acontecer nas
pequenas ou médias cidades, como é nosso caso.
Esse problema pode ser minimizado pela implantação da instituição em meio do
núcleo histórico, mas é preciso um trabalho de educação patrimonial no intuito de suavizar
esse problema, que, de qualquer forma, tende a acontecer. “A universidade e a cidade – no que

1395
têm de mais profundo nas suas identidades e tradições – precisam construir uma relação
produtiva, sem imposições e preconceitos, para que a cidade ingresse num novo momento,
sem negar seu passado, incorporando a sua história cultural” (BONDUKI, 2010, p. 269).

O Edifício Miranda Osório


O edifício Miranda Osório, localizado na Avenida Getúlio Vargas esquina com a
Avenida Chagas Rodrigues, faz parte do Conjunto da Avenida Getúlio Vargas.
Conhecida por Rua Grande, esta avenida, de um quilômetro de extensão, começa às
margens do rio Igaraçu, no Conjunto do Porto das Barcas e Galpões Portuários e se estende a
Avenida Chagas Rodrigues. O nome oficial lhe foi dado em homenagem a um dos presidentes
do Brasil, que em visita à cidade, em 1950, ficou hospedado em um dos casarões ali situados.

Figura 02: Mapa de Satélite com a localização do Ed. Miranda Osório

Fonte: Google Maps

Durante muitos anos foi o endereço da burguesia refinada, que construiu ali suas
moradias e comércios, e que “estruturou o crescimento urbano de Parnaíba desde o início até
por volta do século XX, quando o crescimento urbano ultrapassou os limites definidos pelo
rio e a ferrovia, localizados um em cada ponta da avenida. ” (PINHEIRO, Áurea et al., 2010,
p. 48).
Ao longo de sua extensão podemos encontrar edificações de várias épocas e estilos,
como o colonial, encontrado principalmente entre o trecho mais próximo ao rio até
aproximadamente a altura final da Praça da Graça, como o conjunto do Porto das Barcas,

1396
onde predomina uma arquitetura mais simples e de menor porte e, adiante, destacam-se as
edificações residenciais.
As edificações de estilo eclético também estão em grande número e por toda a
extensão da avenida, e muitas se destacam por seu grande porte, completamente soltas no
terreno e com dimensões maiores que as coloniais. Junto a essas edificações encontramos
também o estilo art déco, também muito comum na cidade. Por fim, encontramos também
exemplares do estilo moderno, surgidos a partir da metade do século XX, mas em estão em
pequeno número, pois após a década de 1950 a avenida já estava praticamente toda ocupada.

Figura 03: Esquina do Ed. Miranda Osório

Fonte: http://divulgacaoparlamentar.blogspot.com.br/2009/08/

A história do edifício Miranda Osório, objeto de nossa intervenção, está intimamente


relacionada com à formação de toda uma geração Parnaibana:
Foi construído em 1926 pelo Município de Parnaíba, quando governante o
intendente José Narciso da Rocha Filho, para abrigar o primeiro
estabelecimento de ensino primário oficial da cidade, o “Grupo Escolar
Miranda Osório”. Este foi fundado em 1922 e teve sede própria no ano de
1927, quando passou a funcionar no referido prédio situado a Av. Getúlio
Vargas. O Projeto é de autoria do engenheiro Samuel dos Santos. No ano de
1928, segundo Airton Vasconcelos Ponte, vice-presidente do Instituto
Histórico, Geográfico e Genealógico de Parnaíba, na administração do citado
intendente municipal, o prédio passou a abrigar o Ginásio Paraibano e a
Escola Normal, que funcionaram até o ano de 1969. No ano de 1969, retorna
o Grupo Escolar Miranda Osório ao referido prédio, permanecendo até ser

1397
extinto no ano de 1999, para dar lugar ao curso de Direito da UESPI. (SILVA
F, 2014, p. 12)
Atualmente este edifício, que está sob o domínio da UESPI (Universidade Estadual do
Piauí), encontra-se bastante deteriorado, tendo seu acesso interditado pelo Corpo de
Bombeiros. Segundo o diagnóstico feito por Silva F (2014), as partes afetadas são reversíveis,
mas exigirão um estudo mais preciso, já que muitos espaços estavam inacessíveis durante os
trabalhos de diagnóstico. O que fica evidente neste trabalho, porém, é a urgente necessidade
da restauração do edifício, para que a degradação causada pela falta de manutenção termine
por ocasionar danos irreversíveis ao edifício.
Propomos que nele seja implantada a Faculdade de Ciências da Arte e do Patrimônio,
da Universidade Federal do Delta do Parnaíba (UFDPar), onde funcionariam cursos como
Arquitetura e Urbanismo, Artes Plásticas. A concessão de uso para uma faculdade federal se
justifica pela transferência permanente de recursos federais, maiores que os recursos
estaduais, e pela facilidade de implantação em áreas que visam interesses públicos, já que sua
gratuidade não exige a implantação onde já existe grande densidade econômica, onde é mais
fácil atrair estudantes, podendo ser instrumento de desenvolvimento local.
Figura 04: Imagens do Projeto de Restauração do IPHAN mostrando o estado atual de degradação do
Ed. Miranda Osório

Fonte: http://divulgacaoparlamentar.blogspot.com.br/2009/08/

1398
A restauração, contudo, ainda que restabeleça a edificação, não é capaz sozinha de
promover futuras manutenções, se a este bem não for atribuído um uso sustentável. Para isso,
portanto, seria necessário requalificar o Edifício Miranda Osório, ou seja, “aumentar os níveis
de qualidade de um edifício, para atender a exigências funcionais mais severas do que aquelas
para as quais foi concebido, que deve ser adotado para adaptar o edifício a uma utilização
diferente daquela para a qual foi concebido ou apenas torná-lo utilizável de acordo com
padrões atuais. ” (CONFEA - DECISÃO NORMATIVA Nº 83, DE 26 DE SETEMBRO DE
2008, p. 03).
É preciso, portanto, deixarmos clara a definição do que pretendemos, e para isso
usamos Carta da Reabilitação Urbana Integrada - Carta de Lisboa, de 1995, fruto do 1º
Encontro Luso-Brasileiro de Reabilitação Urbana, define uma linguagem comum, cuja
definição e objeto de análise é aceito em ambos países, assim, a reabilitação de um edifício é
assim descrita:
Obras que têm por fim a recuperação e beneficiação de uma construção,
resolvendo as anomalias construtivas, funcionais, higiénicas e de segurança
acumuladas ao longo dos anos, procedendo a uma modernização que
melhore o seu desempenho até próximo dos actuais níveis de exigência.
(CARTA DE LISBOA, 1995, p. 2)
Esse conceito é essencial para entender nosso objetivo de não somente recuperar o
edifício em sua forma física, mas de modernizá-lo e atribuir-lhe um uso, assegurando assim
sua sustentabilidade e conservação. Portanto, não se trata apenas de um restauro, assim
entendido:
Obras especializadas, que têm por fi m a conservação e consolidação de uma
construção, assim como a preservação ou reposição da totalidade ou de parte
da sua concepção original ou correspondente aos momentos mais
significativos da sua história. (CARTA DE LISBOA, 1995, p. 2)
Esta prática, conforme Braga (2003) recebe ainda terminologias de adaptação a novo
uso, retrofit ou reciclagem. Baseia-se no resgate de espaços pré-existentes com o intuito de
abrigar vocações distintas as quais eles foram destinados anteriormente. Hoje, é bastante
utilizada devido à garantia de permanência das edificações, evitando o risco de tornarem-se
obsoletas e permanecendo preservadas na paisagem da cidade. É importante esclarecer que
este novo uso deve encontra-se em harmonia com o meio a qual foi integrado, o que suscita
uma maior preocupação quanto à vocação e limites que tais espaços possam oferecer, caso
contrário, a ausência desta relação harmônica pode fadar a edificação a um processo de
degradação acelerado.
Varine (2013) ao colocar o patrimônio como um recurso para o desenvolvimento
justifica ainda mais a requalificação pretendida, pois vemos o patrimônio como um bem para
a comunidade, na medida em que é um meio para transformá-la e desenvolvê-la e um fator de
consciência coletiva:

1399
Toda empresa deve se apoiar em um capital inicial, o mais importante e o
mais sólido possível, o mais independente também de influências externas e
das flutuações da conjuntura. O patrimônio é esse capital, presente, ao
menos implicitamente, em toda iniciativa e em todo programa de
desenvolvimento digno deste nome. Um espaço rural ou urbano, uma
paisagem agrícola ou industrial, uma fl ora ou fauna específica, tradições e
saberes, monumentos e arquivos, lembranças carregadas de significado,
modos de vida, tudo isso pertence ao capital da comunidade em
desenvolvimento. ” (VARINE, 2013, p. 37)
A reabilitação do edifício em si mesma, porém, ainda que tenha importância relevante
para preservação e manutenção desse patrimônio, não alcançará o objetivo primordial de
pertencimento se não vier acompanhada de outras ações, como, por exemplo, a educação
patrimonial sistemática, com o objetivo de promover conhecimento e reconhecimento da
comunidade local do rico patrimônio que lhes pertence, atribuindo, assim, sentido e
significado ao tombamento.

Considerações Finais
O projeto proposto prova sua importância ao contemplar objetivos múltiplos e
essenciais para a revitalização do Centro Histórico de Parnaíba, em especial, o Conjunto da
Avenida Getúlio Vargas, como a reabilitação de um de seus edifícios tombados, marco
importante para muitos parnaibanos que já demonstraram interesse em sua restauração, além
de propiciar a sustentabilidade do edifício com a implantação de novos cursos voltados para a
área do patrimônio.
A cessão de uso para uma universidade federal também se justifica pelo aporte de
recursos federais, maiores que os estaduais, e, portanto, facilitando a manutenção e
sustentabilidade do bem.
Porém, pela dimensão e complexidade da obra, a sua concretização exigirá um grande
aporte financeiro, que acreditamos só ser possível através dos programas a nível federal, como
O Programa de Preservação do Patrimônio Histórico Urbano – Monumenta, que renovou a
forma de reabilitar os núcleos históricos no país, enfatizando intervenções em espaços
públicos e imóveis privados, com importantes desdobramentos na formulação de uma política
nacional de preservação articulada com o desenvolvimento urbano, econômico e social. Além
do apoio de políticos locais, como senadores, governador, deputados, podem ajudar ao abrir
caminho para verbas federais.
Será necessário também, para a sensibilização e o envolvimento da comunidade,
estratégias para captação de recursos humanos, através de contatos com suas associações,
reuniões, feiras, palestras, etc. Por isso, nossa proposta é trabalhar com o maior número
possível de públicos, desde a comunidade parnaibana, principalmente aqueles que habitam o
Centro Histórico e os jovens estudantes, associações comunitárias e profissionais, assim como
os agentes públicos e provados.

1400
Referências bibliográficas
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VARINE, Hugues de. As Raízes do Futuro: O patrimônio a serviço do desenvolvimento


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1402
‘MUSEU DE PORTAS ABERTAS’: AÇÃO EDUCATIVA DO MUSEU
PARAENSE EMÍLIO GOELDI PARA POPULARIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO
CIENTÍFICO

Emilly Cristine Barbosa Santos*


*Universidade Federal do Pará
Ana Claudia dos Santos da Silva**
**Museu Paraense Emílio Goeldi

Resumo: O presente artigo é resultado de uma pesquisa realizada entre o período de 2015-2016 no
âmbito do curso de especialização em Planejamento e Gestão do Patrimônio Cultural, com o objetivo
de analisar o programa de ação educativa "Museu de Portas Abertas" do Museu Paraense Emílio
Goeldi, localizado em Belém. O programa, sob coordenação do Serviço de Educação e Extensão
Cultural, envolve diferentes setores da instituição, desde a Coordenação de Comunicação e Extensão
até a Coordenação de Pesquisa e Pós-graduação, tornando-se um dos principais eventos do Museu, que
ocorre em 4 dias durante a comemoração do aniversário da instituição. A ação consiste em promover o
acesso da comunidade às produções científicas e ao acervo museológico do Museu Goeldi, de modo a
engendrar a aproximação do público, principalmente das instituições escolares, com o patrimônio
amazônico. Em vista disto o texto busca abordar o desenvolvimento desta ação que tornou-se ao longo
do tempo um programa-chave deste Museu para o processo de popularização da ciência. Nesse
sentido, o texto discute a participação do público, de modo a refletir sobre as dinâmicas das atividades
desenvolvidas durante o evento, tendo como mote a relação entre museu de ciência e patrimônio.
Palavras-chave: Ciência; Patrimônio; Educação.

Abstract: This article is the result of a research carried out from 2015 to 2016 in the scope of the
specialization course in Planning and Management of Cultural Heritage, with the aim of analyzing the
educational action program "Museu de Portas Abertas" of the Paraense Museum Emílio Goeldi,
located in Belém. The program, coordinated by the Education and Cultural Extension Service,
involves different sectors of the institution, from Communication and Extension Coordination to
Research and Postgraduate Coordination, becoming one of the main events, which takes place in 4
days during the commemoration of the institution's anniversary. The action consists in promoting the
community's access to the scientific productions and museum collection of the Goeldi Museum, in
order to engender the approximation of the public, mainly of the school institutions, with the
Amazonian heritage. On the strength of it, the text seeks to address the development of this action that
has become over time a key program of this Museum for the process of popularization of science. In
this sense, the text discusses the participation of the public, in order to reflect on the dynamics of the
activities developed during the event, having as motto the relation between science museum and
heritage.
Keywords: Science; Heritage; Education.

1403
Ação educativa do Museu Paraense Emílio Goeldi: O desenvolvimento do Museu de
Portas Abertas
Os museus de ciência, assim como os espaços museológicos de forma geral, são
lugares de intercâmbios, encontros e socialização de identidades no contexto da
interculturalidade. Torna-se essencial refletir, como aponta Varine-Bohan (2008), sobre qual o
lugar que a sociedade ocupa nos museus. Atualmente, as instituições museológicas estão
buscando desmitificar a visão anacrônica que foi atribuída a elas ao longo da história, cuja
imagem corresponde basicamente a um templo de guarda e de exposição de objetos intocáveis
e preciosos, cujos sentidos e significados são intrínsecos a eles. A partir do século XX foram
suscitadas várias mudanças nos discursos e práticas das instituições museológicas.
O foco dos museus não está mais centrado nos objetos e nas coleções, mas, sim nas
relações entre os grupos sociais e o patrimônio, tornando-se um fórum de interpretações,
debates e negociações. Tal fato implica uma mudança na relação entre museu e coleção, bem
como museu e público. Varine-Bohan (2008) lembra que as três maiores categorias de museus
– arte, história e ciência – estão buscando nos últimos 20 anos desenvolver dinâmicas de
mediação em consonância com as culturas locais, com intuito de servir aos grupos sociais que
não compõem habitualmente o público visitante dessas instituições.
Os museus de ciência têm importante papel como espaços não-formais de debate sobre
a ciência, voltados para a valorização da importância da função desta área do conhecimento
para a sociedade. Essas instituições devem proporcionar experiências a partir da qual o
público compreenda o processo de construção do conhecimento científico, de modo a
perceber a implicação da ciência no cotidiano.
Marandino (2000) ao discutir o papel educacional dos museus de ciência na relação
museu-escola, cita o trabalho de Cazelli para evidenciar a relevância desta tipologia de museu
para a inovação na área museológica no século XX, marcada pelo caráter público. Os museus
de ciência e tecnologia e os de história natural foram fundamentais para a transformação da
relação entre museu e público, a partir dos quais foi promovida uma participação mais direta
dos visitantes por meio de ações educativas.

1404
A maioria das tipologias de museu está buscando formas de mediação que propicie aos
públicos a criação de novos significados, interpretações e compartilhamento do patrimônio.
Nessa linha está o programa institucional do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG),
denominado Museu de Portas Abertas (MPA). Esta ação, promovida pelo Serviço de
Educação e Extensão Cultural (SEC) do referido Museu, é realizada anualmente no mês de
outubro, fazendo parte de uma extensa programação de celebração do aniversário desta
instituição. As atividades deste programa ocorrem em dois espaços físicos em períodos
diferentes – são realizados dois dias de evento no Parque Zoobotânico, e posteriormente são
realizado mais dois dias no Campus de Pesquisa.
A Coordenação de Museologia (CMU) desta instituição tem como principal função a
socialização e difusão do conhecimento científico por meio de realização de ações educativas,
expositivas e programas de capacitação, abrangendo o Núcleo de Museografia e o Serviço de
Educação e extensão Cultural. Este último foi institucionalizado na década de 1980, tendo
como função desenvolver várias ações educativas conjuntamente com os projetos
interdisciplinares do Museu que contemplam estudos sobre biodiversidade e sociodiversidade
amazônica a partir das ciências naturais e humanas. As ações educativas se desdobram em
vários formatos de comunicação pública do conhecimento científico para atender diversos
públicos – escolar, comunitário, idoso, turista, pesquisador, visitante local, entre outros.
A partir dessas diferentes demandas o SEC desenvolve atividades como – cursos para
melhor idade, visitas orientadas para escolas, programa de encontros em família, disponibiliza
coleção didática da fauna, da flora e de objetos da cultura amazônica, dentre outros ações e
projetos. As metodologias de ações educativas deste setor incluem teatro, vivências, visitas
monitoradas, encontros, festivais, gincanas e rodas de conversas, cujo intuito é estimular a
memória, socialização e valorização do patrimônio.
Dentro deste contexto o Museu de Portas Abertas iniciou em 1985 como parte do
projeto “Museu Leva Educação e Ciência à Comunidade”, quando foi instalado o Campus de
Pesquisa do Museu Goeldi no bairro da Terra Firme. O então diretor, Guilherme de La Penha,
percebeu a necessidade de realizar ações para aproximar o Museu da comunidade do entorno.

1405
Dentre essas ações era realizada a visitação de grupos de crianças do bairro da Terra Firme ao
Campus de Pesquisa e posteriormente ao Parque Zoobotânico. A proposta da visita às
instalações do Museu Goeldi como ação educativa foi uma iniciativa da própria comunidade
que queria conhecer a realidade intramuros da instituição.
As primeiras coordenações a participar da ação foram a de Zoologia e Botânica,
seguida pela coordenação de Ciências da Terra e Ecologia, abrangendo, assim, o Parque
Zoobotânico, então local de instalação desta última. Em 1986 a Biblioteca do Campus de
Pesquisa também integrou o percurso de visitação da comunidade da Terra Firme ao MPEG.
Esta atividade educativa possibilitou o acesso da comunidade no espaço museológico
exclusivo de curadores e pesquisadores – os laboratórios e salas de pesquisa, bem como
reservas técnicas.
Ao longo da trajetória percebem-se as diversas transformações do formato deste
programa, principalmente em relação ao público, posto que as atividades realizadas durante o
MPA estão voltadas para o público jovem do ensino médio e graduação. Ressalta-se que o
Museu de Portas Abertas não está mais vinculado ao projeto “Museu Leva Educação e
Ciência à Comunidade”. Ele se institucionalizou como um programa do Museu Goeldi que
abrange as duas principais coordenações da instituição – a de Comunicação e Extensão e a de
Pesquisa e Pós-graduação – fortalecendo a integração entre elas. Desse modo, o MPA envolve
todos os departamentos da instituição – coordenações de pesquisa (Ciências Humanas,
Ciências da Terra e Ecologia, Zoologia e Botânica), bem como as coordenações de
Museologia, Comunicação e de Gestão. Além disso, o Museu de Portas Abertas tem apoio de
parceiros do bairro da Terra Firme, como moradores vinculados ao Ponto de Memória da
Terra Firme, instituições escolares e centros comunitários.
A partir de 2009 o programa passou a integrar a Semana Nacional de Ciência e
Tecnologia, coordenada pelo MCTI por meio do Departamento de Difusão e Popularização da
Ciência e Tecnologia, o qual tem apoio de várias instituições de pesquisas e ensino. Esta
Semana Nacional de C&T, que ocorre todo mês de outubro, fomenta eventos em várias partes
do Brasil com o objetivo de aproximar a Ciência e Tecnologia da sociedade, realizando

1406
atividades de divulgação científica com base em metodologias que possibilitem tornar a
linguagem científica acessível à população. O projeto do atual MCTI visa motivar discussões
sobre as implicações sociais da ciência, bem como o interesse do público sobre a ciência. O
MPA, fazendo parte da agenda deste evento nacional, busca promover uma relação entre
ciência, tecnologia e sociedade em consonância com a política nacional, cujo mote está no
caráter educacional do campo científico.
A ação educativa do Museu de Portas Abertas busca aproximar a comunidade às
pesquisas realizadas na instituição, de modo a motivar a população para temas do meio
científico. A programação está voltada para promover o contato direto entre visitantes e
pesquisadores. A partir desse processo, o MPA leva a cabo a principal missão da
Coordenação de Museologia – disseminação das pesquisas produzidas no Museu Goeldi.
Os diferentes formatos das atividades desenvolvidas pelos pesquisadores e bolsista de
cada coordenação são percebidos devido, principalmente, à estrutura dos dois espaços físicos:
no PZB as coordenações apresentam-se em stands que ficam distribuídos pelo Espaço
Raízes2; no Campus de Pesquisa as visitas são realizadas nas instalações de cada coordenação,
abrangendo laboratórios, reservas técnicas e salas de pesquisa.

2
O Espaço Raízes é uma área localizada no centro do Parque Zoobotânico, na qual são realizados a maioria dos
eventos que atingem o grande público que visita este Museu. Durante o MPA são expostos objetos das coleções
didáticas de cada coordenação de pesquisa, com os quais os pesquisadores, técnicos e bolsistas apresentam seus
trabalhos.

1407
Imagem 1: Laboratório no Campus de Pesquisa do Museu Paraense Emílio Goeldi.

Fonte: 1: Emilly Santos.

Enfatiza-se que o planejamento e realização das atividades ficam a cargo dos


pesquisadores e seus bolsistas que são denominados pelo SEC como
pesquisadores/educadores. Pode-se perceber que estes agentes assumem na ação educativa do
MPA o papel de mediadores culturais. Isso tem contribuído para fomentar o papel social do
MPEG, promovendo o encontro de diversos olhares e vozes. Esses mediadores compõem uma
comunidade em aprendizagem, que compartilha experiências profissionais a partir de um
processo comunicacional.

1408
Imagem 2: Espaço Raízes do Parque Zoobotânico do Museu Paraense
Emílio Goeldi.

Fonte 2: Fonte: Acervo pessoal Helena Quadros, 2014.

Os pesquisadores e bolsistas são educadores, pois sua função não se restringe somente
a transmitir informação, mas sim, busca comunicar o público sobre o conhecimento científico
desenvolvido pela instituição, de modo a possibilitar a construção de novos conhecimentos e
significados sobre o patrimônio. Percebe-se que os entrevistados buscam valorizar as relações
sociais, as quais propiciam trocas de conhecimentos. Por meio de um processo dialógico o
pesquisador/educador tem a possibilidade de conhecer novas abordagens, rompendo fronteiras
do próprio campo científico.
Para a realização do evento há uma mobilização que inicia com uma reunião da
coordenação do evento para apresentar a proposta à Coordenação de Museologia e à
Coordenação de Comunicação e Extensão. Posteriormente, a CCE convoca a Coordenação de
Pesquisa e Pós-graduação, esta, por sua vez, fica incumbida de transmitir a convocatória às
coordenações de pesquisa. Posto isso, é agendada uma reunião entre as coordenadoras do
MPA e os pesquisadores responsáveis para discutir a metodologia e as propostas do que será
apresentado no evento. Entretanto, percebe-se, a partir desta descrição do planejamento do
programa, que não há um momento para dialogar com as comunidades envolvidas na ação, de
modo a discutir em conjunto com elas os procedimentos metodológicos e as propostas de
apresentação.
O artigo apresenta a pesquisa realizada durante o edição de 2015 do programa do
Museu de Portas Abertas e foi embasada na importância da comunidade compreender a
produção científica como um processo de valorização do patrimônio sob o contexto histórico,

1409
social e econômico. E portanto compreende-se a missão dos espaços de educação não-
formais, como o caso dos museus, voltada para provocar o debate sobre a ciência, abordando
temas como conceito de ciência, processo de produção científica e implicações da ciência no
cotidiano (JACOBUCCI, 2008). Para tanto, o presente texto busca discutir uma parte da
pesquisa referente à popularização da ciência no âmbito do MPA e a relação entre museu e
público, a partir do contexto sobre museus de ciência e patrimônio.

Museus de Ciência e Patrimônio


O museu, tradicionalmente, foi visto como espaço destinado à guarda de patrimônios
materiais movíeis. Canclini (2013) relata que o tratamento do patrimônio enquanto uma
categoria fixa estava ligada à concepção da necessidade de um lugar que lhe servisse como
depósito para proteção e como vitrine para exibição, tais funções cabiam ao museu. Nele os
objetos eram guardados e celebrados a partir de uma perspectiva hegemônica. Percebe-se que
esta instituição ainda carrega até hoje esta visão, no qual a cultura se conserva de forma
imóvel, marcada por uma museografia voltada para a espetacularização do bem cultural.
Segundo Abreu (2007) entre os séculos XVIII e XIX surgiram os museus de ciência,
também denominados de museus enciclopedistas, assumindo a função de centros de pesquisa,
cujo intuito era contribuir para o progresso da ciência. Nesse cenário, o museu de ciência se
constituiu também como espaço destinado ao público amplo, tornando-se um templo de
memória e saber. Essa instituição incumbia-se de ser um lugar de promoção da educação do
público em geral, de modo a despertar o espírito nacionalista e o caráter civilizatório da
sociedade.
O surgimento dos museus de ciência estava diretamente relacionado à guarda de bens
culturais de diferentes povos, nos quais a função dos pesquisadores era de selecionar, coletar,
classificar, estudar, guardar e exibir. Abreu (2007, p. 141) descreve este tipo de museu como
“[...] instituição com pesquisadores que produzem conhecimento, praticam o colecionamento,
divulgam o que é produzido e exibem suas coleções para um público amplo”.

1410
Em consequência, o olhar do pesquisador sobre os bens culturais dos diversos povos
representados na instituição era o olhar dominante, hegemônico. Os grupos culturais eram
tratados como objeto de pesquisa, a partir dos quais extraíam informações com intuito de
produzir conhecimento sobre diferentes povos. Santos (2002) afirma que o tratamento do
outro como objeto e não como sujeito é uma marca do conhecimento-regulação, pensamento
assentado na concepção do colonialismo, que não reconhece o outro como sujeito.
Nota-se nessa abordagem que o museu de ciência, assim como as demais tipologias de
museus, favorece o caráter de patrimônio institucionalizado descrito por Fonseca (2009) como
“pesado e mudo”, ao passo que ele é tomado apenas como símbolo abstrato e distante da
sociedade da qual deveria servir como signo de identidade. De acordo com a autora a forma
de proteção do patrimônio, que consiste no restrito acesso do grande público, contribui para
que a preservação deste bem seja entendida pela grande parte da população como atividade
destinada a pessoas ditas intelectuais3. Esse fato é consequência da noção de patrimônio
cultural construída historicamente no ocidente, desde o século XVIII, a qual está atrelada à
ideia de nação, fundamentada na homogeneização dos valores nacionais; como percebe
Saladino (2011, p. 97) “a ideia de nação moderna foi seguida da ideia de um conjunto de bens
culturais que a representam e que, por isso, deve ser preservado”.
A criação de museus no século XIX faz parte das mudanças sociais e políticas da
época, cujo objetivo estava centrado na consolidação do nacionalismo pela reapropriação e
ressemantização dos bens culturais, de modo a fazer emergir um sentimento de
pertencimento. A tônica da política do patrimônio está norteada pela ideia de posse coletiva,
cuja preservação tem fins pedagógicos e científicos (SALADINO, 2011). Desde a Revolução
Francesa foi destinado ao museu a função de depósito dos bens móveis, tendo objetivo de
difundi-los ao público, com o intuito de instruir a nação, a partir do espírito enciclopedista
(CHOAY, 2006).

3
Grifo nosso.

1411
A política de proteção do bem material reduzia-se às atividades realizadas pelos
técnicos (FONSECA, 2009). Não era considerado neste processo as interpretações dos
sujeitos sociais que vivenciavam o patrimônio cotidianamente. A formulação de política
pública de preservação do patrimônio precisa ir além da discussão sobre representatividade do
bem cultural em termos de diversidade de expressões culturais, assim como da participação da
sociedade na produção e gestão do patrimônio. É imprescindível que esta política considere as
diversas formas de apropriação por parte da sociedade do universo simbólico que permeia a
linguagem do patrimônio (ibid).
Saladino (2011) atenta para o fato de que mesmo com uma intenção inclusiva, a
preservação do patrimônio segue uma lógica hierárquica e excludente, evidenciando a
arbitrariedade da prática patrimonial. Isso fica evidente na política do patrimônio do Brasil,
cuja atuação tem o objetivo de “reforçar uma identidade coletiva”, atribuindo aos bens
culturais valor simbólico nacional (Fonseca, 2009, p. 21). Tal fato implica no engessamento
do patrimônio, em vista a forjar uma autenticidade.
O acervo museológico era constituído de forma autoritária, tendo como função
representar a “comunidade imaginada” para a “construção da memória social” (SALADINO,
2011, p. 102). Obras de artes; animais empalhados; instrumentos científicos e demais artefatos
representavam o poder da sociedade ocidental e, conseguintemente, garantia o
reconhecimento, o pertencimento e a continuidade social.
No século XX emergiu um novo discurso sobre a noção de bem cultural, impulsionado
pelo advento da industrialização. O patrimônio, enquanto categoria de pensamento começou a
refletir a diversidade sociocultural, possibilitando, como afirma Hartog (2006), a ampliação
das tipologias, incluindo a criação de novos bens patrimoniais nas últimas décadas. Nesse
contexto, a memória nacional hegemônica está sendo contestada pelos grupos sociais
marginalizados, com intuito alcançar o reconhecimento e valorização de memórias plurais,
construídas a partir da perspectiva dos próprios sujeitos silenciados.
O museu enquanto lugar de representação e legitimação da memória nacional forjada
pelos grupos hegemônicos também é contestado. Esta instituição começa a descentralizar-se e

1412
voltar-se para a sociedade de modo mais abrangente, buscando representar as diversas
culturas, do passado e do presente.
Isso implica em uma gestão do bem cultural musealizado que engendre a valorização e
a discussão a partir da sua representação e socialização. Nesse sentido, torna-se
imprescindível mudar o discurso científico dos museus que por muito tempo foi
homogeneizador e ancorado na visão colonialista de compreender o outro como objeto.

Popularização da ciência no contexto museológico


A função do museu não está ancorada somente em salvaguardar o bem material e
imaterial, ele deve evidenciar os sentidos e significados desse bem para a sociedade, por meio
de ações que propiciem o processo de apropriação, visto que “a própria noção de preservação
de coleção está associada à necessidade de manter os acervos disponíveis para renovar os
conhecimentos que ele permite produzir” (MENESES, 2002, p. 8).
Segundo Navas (2008) conceito de popularização da ciência, como um fenômeno
social e político, transforma-se de acordo com o contexto das relações entre ciência e
sociedade, ao passo que cada cultura e cada época têm articulações e necessidades próprias de
comunicação científica. Essa popularização é um desafio contínuo, voltada para a prática da
cidadania e engendrada a partir do processo de reflexão crítica e transformacional.
Isso implica em compreender a ciência como um processo cultural. Jacobucci (2008),
baseada em Vogt, afirma que compreender a ciência enquanto cultura possibilita abarcar
todos os termos discutidos sobre a relação entre ciência e sociedade, abrangendo expressões
como: alfabetização científica, letramento científico, divulgação científica e popularização da
ciência. Esse viés cultural envolve desde a produção científica, perpassando pela difusão de
conhecimento, pela dinâmica educacional e pela divulgação na sociedade, a qual está voltada
para o estabelecimento da relação ciência e sociedade, sob uma ótica crítica e criativa,
essencial à produção cultural e ao desenvolvimento social.
Para Varine-Bohan (2008) é necessário romper com certas visões contrárias e
hegemônicas dos profissionais de museu, cujo pensamento está centrado na coleta e na

1413
pesquisa, assim como é fundamental superar a concepção dos agentes sociais de que a
instituição museológica é um espaço reservado ao deleite cultural da elite. O principal
objetivo do museu deve ser o de explorar o potencial dos bens culturais, estimulando os
visitantes a desenvolver reflexões e sentidos, de modo a (re)contextualizar e (re)valorizar o
patrimônio. Isto implica em um processo de construção de conhecimento que toma como
princípio as rupturas e descontinuidades da ação interpretativa (MENESES, 2002). É desse
modo que a interpretação do patrimônio proporciona a mudança no aspecto cognitivo, afetivo
e comportamental do cidadão. Para tanto, Meneses (2002) ressalta que o museu não pode se
tornar um espaço de respostas, ele é antes um espaço transformacional, permeado de
questionamentos e reflexões.
Cabe notar nesta discussão sobre popularização que o visitante é um agente
colaborador no processo de preservação do patrimônio. O público como participante ativo no
espaço museológico exerce uma prática de cidadania, estabelecida, inclusive, como uma das
principais premissas das políticas patrimoniais no âmbito do desenvolvimento social.

O Público do Museu de Portas Abertas


É importante ter em consideração que o visitante não é visto como “uma massa
homogênea, com comportamento constante e, tampouco, com características universalizantes.
Constitui-se, sim, em grupos com inúmeras distinções, que manifestam suas diferenças na
recepção” (CURY, 2004, p. 91). Ainda segundo Cury (2004), o sujeito que está inserido no
processo comunicacional é um agente ativo, cujas relações estabelecidas nesse processo de
visitação podem transformar os significados dos objetos museológicos.
O programa do MPA não tem uma avaliação contínua da quantificação do público
participante. A quantificação de público é uma discussão que vem crescendo no âmbito do
Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), o qual instituiu a regulamentação nº 3, de 19 de
novembro de 2014, sobre a obrigatoriedade dos museus públicos e privados de enviar ao
instituto o quantitativo anual de visitação. A contagem de público é importante para indicar de
que forma é possível potencializar os serviços oferecidos ao visitante, bem como para o

1414
processo de democratização do acesso aos bens e serviços culturais e para analisar a
frequência do público visitante.
No processo de pesquisa da monografia foi consultado o livro de registro de visitas
escolares do Núcleo de Visitas Orientadas ao Parque Zoobotânico (NUVOP), vinculado ao
SEC, para ter uma base do número de participantes da edição de 2015 do MPA no PZB,
sendo verificados os grupos que visitaram o Museu Goeldi nos dias do evento – 07 e 08 de
outubro. De acordo com a contagem desses grupos a ação recebeu cerca de 07 instituições de
ensino, perfazendo aproximadamente 660 visitantes na edição correspondente ao Parque. A
tabela a seguir demonstra esta contagem de grupos visitantes.
TABELA 1 - PÚBLICOS PARTICIPANTES DO MPA.
LOCAL: Parque Zoobotânico
Dia 07/10

Instituição Local de
Visitantes
Cesupa Belém 11
Centro Infantil “O Sorriso da
Belém 12
Criança
Centro Educacional Fada
Belém 65
Madrinha
EEM de Educação Infantil
Belém 33
Honorato Figueiras
Centro de Estudos Atitude Belém 67
Unidade de Edu. Infantil Catalina
Belém 72
I
Ananin
EE Rosa Mística 109
deua
TOTAL PARCIAL 369
Dia 08/10
Unidade Pedagógica João Paulo Belém 49

1415
II
Ananin
EMEF Clodomir de Lima Begot 110
deua
Ananin
Centro Educacional Belo Saber 33
deua
Santo
EMEF Tenente Manoel Cassiano
Antônio do 36
de Limor
Tauá
Santo
Centro Educacional Aquarela da
Antônio do 63
Criança
Tauá
TOTAL PARCIAL 291
TOTAL 660
Fonte - Livro de registro do Núcleo de Visitas Orientadas ao Parque Zoobotânico (NUVOP), 2015.

Para a edição no Campus de Pesquisa é necessário um agendamento prévio, devido ao


fato deste não ser uma base da instituição voltada para visitação pública. De acordo com
dados do Núcleo de Visitas Orientadas, foram agendadas 08 instituições de ensino, no entanto
destas, apenas 05 efetuaram a visita, totalizando cerca de 170 visitantes.

1416
TABELA 2 - PÚBLICOS PARTICIPANTES DO MPA.

LOCAL: Campus de Pesquisa

Dia 28/10
Nº de
Instituição Local
Visitantes
Instituto Federal do
São
Maranhão 70
Luiz/MA
IFPA/MA
UNAMA Belém 20

Escola Parque Amazônia Belém 30

TOTAL PARCIAL 120


Dia 29/10
UNAMA Belém 20

Escola Parque Amazônia Belém 30

TOTAL PARCIAL 50

TOTAL 170
Fonte: Agendamento do Núcleo de Visitas Orientadas ao Parque Zoobotânico (NUVOP), 2015.

Cabe enfatizar que a expressiva diferença entre o número de visitantes nas duas
instalações do Museu Goeldi está relacionada ao fato de a primeira – PZB – ser uma base
aberta à visitação pública, enquanto a segunda – Campus de Pesquisa – é destinada à guarda
de acervo.
Ademais, ressalta-se que o mês de outubro o Parque Zoobotânico apresenta o maior
índice de visitação de famílias e turistas, pois é comemorado o Círio de Nossa Senhora de
Nazaré e o dia da criança. No entanto, o registro do NUVOP leva em consideração apenas o
público escolar e comunidades, não sendo possível ter o registro quantitativo do público em
geral que participa das edições realizadas no Parque. Nota-se a importância, a partir da

1417
identificação da tipologia de público participante do Museu de Portas Abertas, de analisar as
dinâmicas realizadas no processo de mediação do patrimônio.
Durante cada edição do evento o Serviço de Educação e Extensão Cultural aplica
questionários para os principais públicos envolvidos nesta ação educativa –
pesquisadores/educadores, professores e alunos. A formulação das perguntas são diferentes
para cada tipo de público, de modo a identificar as diferentes percepções sobre o programa.
Entretanto, não foi identificada durante o tempo desta pesquisa uma análise sistemática desse
questionário. Tal fato é evidente na maioria das instituições museológicas brasileiras que
embora tenham estabelecido um campo próprio, permeado de práticas e discursos específicos,
ainda tem uma necessidade de sistematizar a avaliação dos programas e ações desenvolvidos
pelos profissionais de museus (SANTOS, 2004, p. 68). Para Marandino (2008) a avaliação
permanente é fundamental para a potencialização dos processos de comunicação e educação,
ao passo que estes levantamento e sistematização das informações possibilitam a tomada de
decisão, a adequação ao objetivo da instituição e a recepção do público.
Portanto, torna-se fundamental que a equipe responsável pela avaliação do MPA
realize análise e registro sistemáticos, embasando-se em uma discussão teórico-metodológica,
cujo mote seja o processo comunicacional da construção do conhecimento, no qual a relação
entre público e museu seja fundamentada no compartilhamento dialógico.
A análise e o registro do questionário são essenciais para comparação entre as edições
deste programa. Desse modo, pode-se identificar as transformações ocorridas ao longo da
trajetória da ação, bem como engendrar a articulação da relação entre o museu como uma
instituição cultural e o museu como um espaço de aprendizado. Esse processo é essencial para
que os profissionais do Museu Goeldi compreendam a importância do programa para o
processo de educação para patrimônio e, em conseguinte, debaterem a ampliação desta ação,
tomando como perspectiva a produção científica inserida no contexto cultural.
Percebe-se, ainda em relação ao público do MPA a necessidade de realizar uma
avaliação, cujo foco de investigação seja identificar os motivos da falta de escolas que

1418
agendaram a visita, mas não a concretizaram. Na edição de 2015 foi registrada a ausência de 3
escolas que marcaram previamente a visita ao Campus de Pesquisa.
Considerando que “aprender sobre ciência é diferente de aprender ciência” (SANTOS,
(2005, p. 145), a ação educativa não pode estar voltada para formação de cientistas, posto que
ela tem como objetivo contribuir para compreensão do sujeito sobre a realidade. Faz-se
necessário deixar de tratar a ciência sob uma ótica do presentismo, na qual a percepção
interfere na compreensão do conhecimento científico como um processo complexo ligado ao
contexto histórico-social (CHASSOT, 2003).
A interpretação patrimonial no contexto científico é compreendida, nesse prisma,
como um processo comunicacional, a partir do qual a experiência do sujeito é engendrada.
Portanto, a ação interpretativa está relacionada à produção de significados, envolvendo o
visitante na dimensão afetiva. O processo de interpretação do patrimônio no espaço
museológico não se encerra ao ato de visitação, visto que ele abarca não somente os objetos
do acervo do MPEG, mas também os saberes e fazeres dos sujeitos participantes.
Esse viés educacional deve estar ancorado na compreensão de bem patrimonial em
uma perspectiva ampla, que integra o patrimônio à vida cotidiana, por meio da experiência
sociocultural dos sujeitos. O processo de educação no âmbito patrimonial está voltado para a
sensibilização da comunidade, de modo que ela se reconheça como a principal responsável
pela preservação dos bens culturais, a partir da construção do conhecimento e da apropriação
destes bens.
O planejamento de atividades educativas no museu deve reconhecer o público como
ativo na experiência de interpretação patrimonial. Essas atividades precisam motivar e
provocar os sujeitos à construção de conhecimento, a partir da participação e inter-relações de
significados.
Nesse prisma, torna-se essencial tomar o processo de construção do conhecimento, em
uma perspectiva na qual o sujeito é protagonista da própria produção de sentido ao processo
de experiência de aprendizado. Cabe considerar a produção da ciência como uma forma de
compartilhamento, tendo como base o conhecimento solidário, cuja estrutura envolve

1419
observações empíricas e trocas de saberes e fazeres na vivência cotidiana. Compreendendo
que “todo conhecimento emancipatório é autoconhecimento. Ele não descobre, cria”
(SANTOS, 2002, p. 83), a educação do patrimônio relacionada à ciência precisa resistir à
colonização da racionalidade cognitivo-instrumental, tendo, para isso, o desenvolvimento de
uma crítica ao conhecimento.

Considerações Finais
O museu não pode estar somente interessado em democratizar o acesso aos bens
culturais, mas deve estar, sobretudo, voltado para a democratização da própria produção
cultural, que engendra experiências socioculturais e laços coletivos. As ações museológicas
devem suscitar a participação ativa da comunidade, possibilitando a expressão dos diferentes
grupos sociais e a reflexão crítica. Essas ações, voltadas para a prática da preservação do
patrimônio, precisam ser desenvolvidas a partir de um processo de planejamento e
compartilhamento de experiências entre o museu e o público. Por isso, é essencial considerar
o contexto social, político e econômico da região, de modo a inclinar-se para as discussões
sobre as necessidades básicas humanas e o direito de exercício da cultura. No cerne da relação
entre patrimônio, conhecimento, ciência e tecnologia é preciso que a sociedade questione o
uso político e social do conhecimento científico, bem como o sistema econômico da
tecnologia, de modo a garantir maior autonomia social.
Nesse prisma, a instituição museológica é essencial para o desenvolvimento de ações
transdisciplinares, cujo mote seja trabalhar a ciência de forma relacional com a sociedade.
Nota-se que o processo museológico não pode dissociar exposição e reserva técnica e
tampouco programa educativo e pesquisa de campo, uma vez que a produção de
conhecimento precisa de uma constante inter-relação e discussão.
Para tanto, essa instituição necessita romper com o discurso e a prática de um centro
único de irradiação de cultura, que forja uma narrativa heroica de única guardiã da herança
cultural da sociedade. Na realidade, ela deve se constituir enquanto fórum, voltada para
problemas atuais dos grupos sociais, tendo caráter social e inclinação para a negociação e

1420
promoção do reconhecimento das diferenças socioculturais. Torna-se essencial que o museu
acompanhe os processos dinâmicos e transformacionais da cidade, constituindo-se em um
espaço permanentemente em metamorfose, atual e vivo, na medida em que busca se adequar
às demandas da sociedade.
O MPA é uma ação democrática que possibilita trocas de conhecimento sobre o
patrimônio amazônico e, em conseguinte, a produção de novos significados, a partir da
relação do saber científico com outros saberes. Ressalta-se que há uma necessidade de
sistematização e ampliação das ações desenvolvidas para uma potencialização deste
programa, a qual não pode limitar-se a uma planejamento pré-estabelecido. Ela deve romper
os próprios paradigmas e ir além dos muros do Parque Zoobotânico e do Campus de Pesquisa,
com finalidade de integrar o Museu à cidade. A pesquisa propõe pensar um Museu de Portas
Abertas que interligue os diferentes patrimônios da cidade, perpassando pelas demais
instituições museológicas em um movimento intra e extra muro.

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1423
O MUSEU CONTEMPORÂNEO

Isadora dos Santos Paiva*


Karina Maria Ferraz dos Santos Cadena**

Resumo: Este trabalho pretende abordar o contexto do surgimento e desenvolvimento do museu


contemporâneo, seus desafios e perspectivas, diante das novas relações sociais e culturais existentes
no século XXI, que alteraram radicalmente a forma de comunicação e transmissão do conhecimento,
trazendo alguns casos concretos de sucesso. Ademais, aborda-se a necessidade premente de mudanças
nas instituições educacionais e suas metodologias, dentre elas o museu, por seu relevante
compromisso social e papel educacional.
Palavras-chave: museu; participação; comunicação; educação; construtivismo.

Abstract: This work intends to address the context of the emergence and development of the
contemporary museum, its challenges and perspectives, in view of the new social and cultural relations
existing in the 21st century, that radically altered the form of communication and transmission of
knowledge, bringing some concrete cases of success. In addition, it addresses the urgent need for
changes in educational institutions and their methodologies, among them the museum, for its relevant
social commitment and educational role.
Key-words: museum; participation; communication; education; constructivism.

1424
Introdução
Este trabalho pretende abordar os novos desafios e perspectivas do museu
contemporâneo, que tem a criatividade e colaboração como elementos basilares de sua
formação.

O Conselho Internacional de Museus — ICOM — vem tratando desse tema com


bastante frequência em suas discussões e estudos, ressaltando a importância de uma
museologia e museografia voltadas para o público do museu, que não pode mais ser visto
como um conjunto de expectadores, mas como parceiros e colaboradores.

O século XXI trouxe a conectividade como mote primordial de suas interações e,


portanto, a comunicação é tema central e relevante nas relações humanas e,
consequentemente, nas relações do público com o museu. É preciso, então, pensar e construir
um museu conectado, interativo, aberto ao diálogo e à participação.

A partir dos anos 90, como um reflexo da sociedade, passou a existir a necessidade de
se aplicar um modelo de transmissão cultural nos museus, através de uma perspectiva
etnográfica, a partir de dois elementos, o museu como meio e território e os emissores e
receptores como participantes ativos. Surgiu, portanto, o que chamamos de museu
participativo.

Nesse sentido, para Maria Roussou:

Os museus evoluíram da mera exibição e apresentação de coleções para a


criação de experiências que respondam às necessidades e expectativas em
evolução dos visitantes. (ROUSSOU et al., 2015).

Dessa forma, e diante dessa mudança radical de paradigma quanto à relação do museu
com seus visitantes, pelo viés do construtivismo, as características e o contexto desse museu
participativo serão analisadas neste trabalho, além das novas perspectivas e desafios do museu
contemporâneo, frente às recentes metodologias educacionais a serem introduzidas, perante
um processo intenso de democratização da informação, em uma era digital do conhecimento.

1425
Este estudo foi elaborado através de uma revisão bibliográfica, em uma análise
qualitativa, de reflexões de estudiosos da temática do museu contemporâneo e os seus novos
desafios e paradigmas em diversos aspectos, como a gestão, o papel do público, a
comunicação, a educação, o espaço, a tecnologia, a multidisciplinaridade, entre outros. Entre
os estudiosos, apresentam-se Alderoqui (2008), Gardner (2007), Hein (1998), Roussou et al.
(2015), Rubiales (2014) e Simon (2010).

O trabalho também aborda casos de museus e centros culturais que, através da


aplicação e abordagem desse novo olhar contemporâneo, têm obtido resultados bastante
positivos, abrindo caminhos para as demais instituições.

A Comunicação, a Educação e o Museu Contemporâneo


Em meados dos anos 70, a visão tradicionalista dos museus elencava três elementos
fundamentais, o transmissor da informação, que era o curador, a mensagem, nesse caso o
objeto ou a exposição e o receptor, que representava o visitante. Tratava-se de uma visão
rígida, impositiva e hierárquica. Mas, com o passar do tempo, a chegada do mundo
contemporâneo, as novas tecnologias e a crescente relevância dada à comunicação a partir dos
anos 90, o modelo clássico e tradicional deu lugar a um modelo de museu voltado à
transmissão cultural, utilizando uma perspectiva etnográfica. Nessa perspectiva, o museu é
composto por dois elementos, o território, que é o espaço do museu; e o meio de comunicação
e os participantes ativos, que englobam, de uma só vez, os emissores e receptores. É a partir
desse momento, que se introduz a ideia de museu de comunidade e museu de território.

O museu participativo exprime uma postura de intercâmbio entre os emissores e


transmissores do conhecimento e, através de ações educativas e culturais, torna-se um espaço
colaborativo, possibilitando um empoderamento do seu público. Essa nova postura possibilita
uma série de inovações, tais como a inclusão, diversidade, diálogo, práticas colaborativas,
democratização, socialização do patrimônio e uma difusão significativa de conhecimento e
informação.

1426
Ao contrário de museus concebidos como templos, os museus como espaços
de comunicação ou fóruns são concebidos como lugares de encontro, onde
as pessoas podem sentar-se para desfrutar, compartilhar ideias e discutir.
(ALDEROQUI, 2008).

Assim, os museus participam de um processo de inclusão da perspectiva dos visitantes


em sua prerrogativa tradicional de interpretar o patrimônio cultural. Eles se movem para um
novo papel de facilitador, a fim de motivar os visitantes (prospectivos) a articular e refletir
suas próprias expectativas, experiências e relacionamentos sobre os objetos do
museu. (SIMON, 2010).

Trata-se de um verdadeiro construtivismo, onde os visitantes são coautores do


conhecimento e o museu é um facilitador desse conhecimento e não mais impositor. Agrega-
se um forte compromisso social aos museus, o que antes não era um elemento fundamental,
transformando o museu em um espaço transdisciplinar e um reflexo da própria sociedade. Ao
considerar o processo de leitura e interpretação pelos participantes de um museu um elemento
fundamental do fazer museístico, estimula-se a construção do espaço museal como um
catalisador social, como um ambiente múltiplo de convivência, diálogo e, inclusive, auto
compreensão da própria comunidade.

Com o advento de novas tecnologias, o rápido fluxo de informação facilitado pela


internet e o enorme trânsito de pessoas entre as fronteiras, temos o estabelecimento de uma
relação global-local, gerando um intercâmbio cultural entre várias comunidades humanas, o
que enriquece e diversifica a sociedade, constituindo o que chamamos atualmente de
sociedade de conhecimento. Ou seja, com uma diversidade étnica, cultural e filosófica cada
vez mais ampla, as sociedades de informação, baseadas em um modelo rígido de
comunicação, dão lugar a sociedades do conhecimento e do saber. Essas sociedades trazem
novas formas de produzir, armazenar e distribuir informação, modificando substancialmente
as relações interpessoais, principalmente entre as gerações mais jovens. Assim, a sociedade de

1427
conhecimento enfatiza a dimensão social e coletiva do saber no espaço museal, ampliando os
diálogos e conversações com o intuito de incluir, democratizar e aprofundar as relações com
os visitantes. O intercâmbio, portanto, é a chave para compreender o fazer museístico no
século XXI.

Estamos diante de uma terceira revolução industrial, uma era digital de conhecimento
sem precedentes. E, à vista disso, a sociedade de conhecimento é também uma sociedade de
aprendizagem, devido ao importante reflexo das transformações sociais no plano educativo e
pedagógico. Nesse sentido, é imprescindível que a educação transponha as metodologias
clássicas, através de uma reflexão teórica e filosófica, considerando os dois pilares da
sociedade de conhecimento que são o acesso universal à informação e a liberdade de
expressão. Assim, o elemento primordial deixa de ser o conteúdo e passa a ser as pessoas.

Do mesmo modo, Hein (1998) propõe que o desenvolvimento da ação pedagógica nos
museus possua uma estreita relação com a visão epistemológica e o processo curatorial. Dessa
maneira, a educação pode intervir nos processos afetivos, emocionais, sociais e morais de
forma ampla e extensa, ao mesmo tempo, transmitindo grandes quantidades de informação,
mas aprofundando o essencial através de múltiplas perspectivas.

Sabe-se que, nos últimos 25 anos, as instituições educacionais têm enfrentado desafios
para se adaptar a essa nova realidade. As universidades aos poucos passam a adequar-se o
conceito de universidade aberta, remodelando significativamente a sua maneira de produzir,
difundir e aplicar o conhecimento. Mas, são os museus, as instituições que apresentam a
maior resistência, muitos permanecendo inalterados mesmo diante das transformações
drásticas pelas quais passaram as empresas e organizações governamentais e sociais.

No entanto, e apesar da educação formal na América-Latina ainda manter uma


estrutura bastante conservadora, a partir dos 1990, a maioria dos ministérios de educação de
diversos países apostam em propostas vanguardistas, produzindo mudanças na formação dos
educadores e na qualidade dos projetos educacionais.

1428
É evidente, que essas mudanças também refletiram radicalmente no desenvolvimento
do pensamento científico. Na última década do século passado, havia ainda uma visão
fragmentada da ciência, separando-a em disciplinas apartadas e avulsas. Mas, com o
incremento acelerado das novas tecnologias, esse caminho tomou rumos distintos, não mais
lineares e paralelos. Assim, para Gardner (2007), a educação do pensamento científico deve
ser integral e transdisciplinar, considerando as perspectivas e os enfoques que integram o
contexto geral da experiência humana. Ainda, para ele, o âmago deste processo reside
essencialmente na diferença entre matéria e disciplina, onde o conhecimento de alguma
matéria permanece inerte até que se possa incluí-lo em um contexto que permita abordar a
informação desde uma ou várias perspectivas em relação a outros conceitos, criando uma
estrutura transdisciplinar. Assim, a capacidade mais valorizada no século XXI seria a de
sintetização, ou seja, dominar várias perspectivas, selecionando conhecimentos de diversas
disciplinas e reuni-los em narrações, taxonomia, metáforas e teorias.

É importante reconhecer, então, que a experiência do público não começa


com objetos no museu, mas considera encontros anteriores que moldam a
experiência do museu. A cultura material em que estamos imersos,
certamente, fornece um contexto para a construção dos significados que nos
referimos. (RUBIALES, 2014).

Por outro lado, a criatividade é elemento manifesto da nossa sociedade, pois,


possibilita a resolução de problemas a partir de novas perspectivas, fomentando a curiosidade,
a exploração e a investigação de novas ideias e relações, de forma aberta e livre. Ademais, a
criatividade permite um ambiente de ampla diversidade cultural e étnica, favorecendo um
ecossistema de tolerância e respeito, principalmente entre os jovens, reduzindo
significativamente a violência, nos lugares onde esta é acentuada.

Portanto, a partir dessa nova onda de pensamento, tornou-se possível a difusão de


sociedades de conhecimento baseadas na integração e participação de todos, em uma ideia de
socialização, modificando permanentemente a relação entre investigação, indústria e público.

1429
Destarte, os museus possuem o desafio de abordar os temas por diferentes concepções
e interpretações, identificando, dentro dos temas apresentados, sua importância no contexto da
vida cotidiana dos visitantes e nos problemas próprios de cada comunidade. É fundamental,
também, que os museus fortaleçam as ferramentas que facilitem a aprendizagem autodidata,
que fomentem as relações hipertextuais, promovendo um espaço de imaginação, investigação
e experimentação.

Museu Nacional de Arte do México


Em uma exposição temporária intitulada "José Guadalupe Posada:
transmisor", realizada pelo Museu Nacional de Arte do México, pelo centenário da morte do
grande artista mexicano José Guadalupe Posada, o museu desenvolveu um espaço de
participação dentro da sala de exposição, para incluir a colaboração e registrar a
presença do público.

Primeiro, realizou-se uma convocatória aberta através da internet, para convidar as


pessoas a enviar textos, trabalhos e imagens que respondessem à pergunta "¿Para ti quién es
José Guadalupe Posada?". Então, essas participações foram reunidas e projetadas em uma
parede, dentro da sala de exposição, fazendo um diálogo com as obras e objetos. (MUSEU
NACIONAL DE ARTE, 2013).

Ao final, verificou-se que a convocatória foi um sucesso, obtendo uma grande


participação e que os trabalhos recebidos foram de altíssima qualidade.

Museu do Brooklyn
O Museu do Brooklyn é referência quanto a utilizar a internet como ferramenta de
comunicação e interação com o público. O museu possui perfis online na maioria das redes
sociais como Facebook, Instagram, Youtube, Tumblr e Twitter.

Ademais, o museu desenvolve regularmente podcasts, que são áudios


disponibilizados na internet, e vídeos contendo painéis de discussão, divulgação de eventos e
novos artistas, comunicados de imprensa e exposições atuais. Além disso, o museu possui um

1430
blogue, o BKM Tech "http://www.brooklynmuseum.org/community/blogosphere", que mostra
os esforços do museu na área de tecnologia. (BROOKLYN MUSEUM, 2017).

O museu possui, ainda, um aplicativo desenvolvido para celulares, "ASK Brooklyn


Museum", onde os visitantes podem fazer perguntas e comentários e interagir com um grupo
de profissionais especialistas, entre arqueologistas, antropologistas, historiadores de arte e
educadores.

Blogue “No Mundo dos Museus”


O blogue "No Mundo dos Museus" foi uma iniciativa de Ana Carvalho e trata-se de
uma plataforma de partilha e de debate que tem por finalidade apresentar e discutir o cenário
museológico e museal português. Ganhou o prêmio da Associação Portuguesa de Museologia
— APOM — em 2008, na categoria Melhor Comunicação On-Line e o prêmio da Associação
Portuguesa para o Desenvolvimento da Animação Sociocultural — APDASC — em 2010, na
categoria Melhor blogue individual de animação sociocultural.

Sobre o papel dos blogues, de acordo com a própria autora:

Assistimos hoje a uma constante e rápida assimilação das novas tecnologias


em muitos aspectos do nosso quotidiano, seja a nível profissional seja a nível
pessoal. Referindo-me concretamente aos blogues, podemos dizer que estes
representam actualmente uma ferramenta importante de comunicação. Os
blogues permitem a criação de espaços virtuais onde pode ser colocado
qualquer tipo de informação, de autogestão e acessível a qualquer pessoa.
Face às potencialidades que esta ferramenta encerra, os museus e
profissionais de museus podem encontrar aqui um instrumento de trabalho
que pode, de certo modo, ajudar a melhorar a comunicação dos museus e a
sua relação com o público, abrindo caminho para novas formas de estar do
museu.
Os blogues são cada vez mais utilizados nas mais diversas áreas do
conhecimento e com os mais diversos fins: disseminação de informação,
difusão de actividades, investigação, divulgação de eventos, troca de
experiências, locais de opinião, locais para comentários e debate, etc. (…)
No caso dos museus, a sua utilização pode representar variadas
potencialidades, tornando-se instrumentos viáveis para a implementação de
políticas de comunicação de proximidade. Uma das vantagens é a
gratuitidade do software. Num contexto economicamente agressivo para a

1431
sustentabilidade dos museus, que é o panorama nacional actual, e onde a
maioria dos museus não dispõem de páginas na internet, a criação de
espaços gratuitos parece-nos uma oportunidade que os museus não podem de
modo algum menosprezar. Esta ferramenta possibilita, com toda a liberdade
e rapidez, a disponibilização na internet de informação sobre os museus e
respectivas actividades, recorrendo a poucos recursos, tanto humanos como
financeiros e sem processos administrativos de maior. Por outro lado,
permitem uma maior proximidade com os seus públicos, humanizando, de
certo modo, a relação com o utilizador. Isto é, através da permissão de
comentários, que possibilitam que o utilizador interaja deixando as suas
opiniões e que por sua vez o museu responda, elimina-se de algum modo a
distância formal de um e-mail. A facilidade de concepção, flexibilidade na
sua construção, a autogestão e a rapidez de actualização dos conteúdos
constituem mais algumas valências para a sua implementação pelos museus.
(CARVALHO, 2008).

Internet Cat Video Festival


O “Internet Cat Video Festival”, foi uma iniciativa realizada pelo Walker Art Center,
cujo tema era uma exposição sobre vídeos de felinos, que possuem um enorme sucesso de
acessos na internet. Este evento é um perfeito exemplo da nova forma de pensar e
“dessacralizar” as instituições.

Para a “exposição”, o público foi convidado a enviar seus vídeos preferidos e cerca de
dez mil pessoas contribuíram com a “curadoria”. A instituição verificou que houve a presença
de visitantes de outras cidades, muitas famílias, pessoas vestidas com fantasias de gato e
milhares de pessoas que simplesmente estavam curiosas para observar a experiência.
(WALKER ART CENTER, 2013).

O evento foi realizado no Open Field, que é o jardim vizinho ao centro, que, há três
anos, é usado para projetos colaborativos entre artistas e a comunidade. Lá, há desde aulas de
ioga a um clube de desenho, com oficinas semanais em parceria com um artista. O programa,
que tem estrutura muito simples, custa pouco ao museu, mas, ao mesmo tempo, é capaz de
engajar e reunir um grande número de visitante.

1432
O “Internet Cat Video Festival” chamou a atenção do público local, nacional e
internacional e da mídia, incluindo o jornal New York Times. O Walker Art Center recebeu,
inclusive, parceiros das comunidades e sociedades de resgate e proteção aos animais, como a
Feline Rescue, Animal Humane Society e The Wildcat Sanctuary.

Após o evento inaugural, o festival saiu em turnê pelos Estados Unidos, com paradas
no Museu de Artes Fotográficas em San Diego e o Museu Brooks em Memphis. O festival foi,
também, incluído em festivais de cinema, como o Festival de Curtas Independentes em Viena,
Áustria e o Festival de Cinema de Jerusalém.

Museu de Arte Moderna — MoMa


Valendo-se de seu próprio prestígio, o museu criou exposições como a “I went to
MoMA and...”, que significa “Eu fui ao MoMA e...”, em que o público era convidado a relatar
suas experiências no museu.

O Museu de Arte Moderna da cidade de Nova York queria uma maneira interativa de
capturar a experiência de arte com os três milhões de visitantes anuais do museu.
Desenvolveu-se uma espécie de livro aberto de visitantes e o material foi usado não só para
cobrir as paredes internas da instituição, mas também como cartaz publicitário nas ruas da
cidade. (MUSEUM OF MODERN ART, 2012).

A coleta das experiências individuais também forneceu ao museu dados importantes


e informações sobre seus visitantes. Os dados obtidos eram organizados por humor, exibição e
sentimento e, em seguida, comparados com base na data e horário, clima local,
acontecimentos e eventos da época, dentre outros, para obter uma visão sem precedentes,
sobre o impacto do museu em seus visitantes.

Museu do Futebol
No Brasil, são raros os exemplos de sucesso. Entre eles, está o Museu do Futebol, em
São Paulo, que acolhe regularmente reuniões dos colecionadores de camisetas dos clubes.

1433
Dessa forma, o museu, ao invés de simplesmente ignorar tais encontros, realiza e dá suporte
às reuniões, ganhando, cada vez mais, adesão do público.

Os propósitos dos encontros são reunir desde os colecionadores mais


fanáticos até aqueles que simplesmente apreciam a história das camisas,
incentivar a troca entre colecionadores, estreitar contatos e estimular
amizades. Mais 3 mil camisas são expostas e circulam em média 500 pessoas
por evento, que apreciam e fazem troca de camisetas de clubes nacionais e
internacionais. (MUSEU DO FUTEBOL, 2017).

Conclusão
Assim, como resultado do processo de democratização da informação, é
essencial desenvolver a capacidade de examinar, discernir e selecionar aquilo que é útil dentro
de grandes blocos de informação. Logo, é crucial que os museus estimulem a reflexão sobre o
futuro da diversidade linguística e cultural, diante da ameaça da padronização e uniformidade
que são intrínsecas à revolução da informação. Isto posto, através da realização de uma gestão
flexível e móvel nas instituições atuais, o conhecimento deixará de ser um fator de exclusão,
como era no passado, para favorecer a plena participação de todos.

Ao transformar o museu em um ente primordialmente social, onde estão presentes a


diversidade cultural, o pensamento ético, a investigação, a exploração e a criatividade, cria-se
a verdadeira experiência museal. Onde o enfoque da comunicação não está apenas em exibir e
transmitir a informação, mas em proporcionar encontros e diálogos entre os participantes,
propiciando um espaço de colaboração e construtivismo.

Referências bibliográficas
ALDEROQUI, S. Iluminaciones, Caminos y Laberintos. In: Actas I Encontro
Iberoamericano de Museos Pedagóxicos e museólogos da educación. [S.l.: s.n.], 2008. Pp.
387-390.

BROOKLYN MUSEUM. Brooklyn Museum. Nova Iorque, 2017. Disponível em:


<https://www.brooklynmuseum.org>. Acesso em: 10/07/2017.

1434
CARVALHO, A. Os blogues como instrumentos de trabalho para a museologia.
Informação ICOM, Lisboa, n. 1, p. 3 – 7, 2008.

GARDNER, H. Cinco mentes para o futuro. Porto Alegre: Artmed, 2007. 160 p.

HEIN, G. E. Learning in the Museum. Londres: Routledge, 1998.

MUSEU DO FUTEBOL. (São Paulo). 22º Encontro de Colecionadores de Camisas.


Disponível em: <http://museudofutebol.org.br/evento/22-encontro-de-colecionadores-de-
camisas>. Acesso em: 10 jul. 2017.

MUSEU NACIONAL DE ARTE. Posada Transmisor. Cidade do México, 2013. Disponível


em: <http://www.munal.gob.mx/ micrositios/posada/>. Acesso em: 10/07/2017.

MUSEUM OF MODERN ART. (Nova Iorque). I Went to MoMA and. Disponível em:
<https://www.moma.org/explore/inside_out/category/i-went-to-moma/>. Acesso em: 10 jul.
2017.

ROUSSOU, M. et al. The museum as digital storyteller: Collaborative participatory


creation of interactive digital experiences. In: MW2015: MUSEUMS AND THE WEB
2015, 2015. 2015. Disponível em: <http://mw2015.museumsandtheweb.com>. Acesso em: 20
de junho de 2017.

RUBIALES, R. Gramática Museológica. In: Change of Perspective: (new) ideas for


presenting museum objects. Roma: Edizioni Nuova Cultura, 2014.

SIMON, N. The Participatory Museum. 2010. Disponível em:


<http://www.participatorymuseum.org/>. Acesso em: 20 de junho de 2017.

WALKER ART CENTER. (Mineápolis). Internet Cat Festival. Disponível em:


<https://walkerart.org/calendar/2013/internet-cat-video-festival>. Acesso em: 10 jul. 2017.

1435
PARNAÍBA: PATRIMÔNIO VIVO, CIDADE VIVA

Áurea da Paz Pinheiro*


Anik de Assunção de Oliveira Souza**
Ellaine Martins Oliveira da Rocha***
Victor Veríssimo Guimarães****

Resumo: Apresentamos nesta comunicação trabalho associado ao Programa de Pós-graduação em


Artes, Patrimônio e Museologia (PPGAPM), Mestrado Profissional, da Universidade Federal do Piauí,
Campus Ministro Reis Veloso (CMRV), Cidade de Parnaíba, Meio Norte do Brasil. Trata-se de Projeto
Matriz sob o título “Parnaíba: Patrimônio Vivo, Cidade Viva”, cujo substrato firma-se em um
conjunto de subprojetos e ações, embasados em investigações técnico-científicas, para intervenções de
natureza social, educativa e cultural no Conjunto Histórico e Paisagístico da Cidade de Parnaíba, que
possui um rico e complexo patrimônio cultural o que inclui um conjunto arquitetônico com variados
estilos de construção, que remetem a diferentes momentos de sua constituição urbana e evidencia a
marca de períodos de desenvolvimento econômico e fluxo de riqueza do território ao longo do período
final da colonização portuguesa e para além. O Tombamento do Conjunto Histórico e Paisagístico de
Parnaíba data de 2008, realizado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan),
após análise do Dossiê “Cidades do Piauí, testemunhas da ocupação do interior do país nos séculos
XVIII e XIX”, pelo Conselho Consultivo, em reunião extraordinária para esse fim. Seguiu-se o
previsto no Regimento da Instituição, após documentação enviada pelo presidente do Iphan. Hoje, o
tombamento é uma realidade, mas não há ainda uma nova postura diante do conceito de cidade
patrimônio nacional, com bens protegidos; agentes públicos e privados não percebem a urgência da
proteção desse patrimônio cultural. Na condição de agentes públicos precisamos criar instrumentos
efetivos para lidar com proteção e revitalização do Centro Histórico de Parnaíba; há um estranhamento
da população residente e uma ingerência dos órgãos de proteção. O sítio histórico de Parnaíba tem
característica peculiar, mesmo com inúmeras modificações na arquitetura e urbanismo da cidade,
mantém-se como centro administrativo, comercial e residencial do município, há edificações
abandonadas, relacionadas com a área portuária, hoje, desativada. O Tombamento identifica sete áreas
de características arquitetônicas distintas: (1) Conjunto do Porto das Barcas e Galpões Portuários; (2)
Conjunto da Praça da Santo Antônio; (3) Conjunto da Avenida Getúlio Vargas; (4) Conjunto da
Estação Ferroviária; (5) Conjunto da Praça da Graça; (6) Arquitetura tradicional popular e (7) Área de
Entorno; áreas definidas em função de características arquitetônicas e urbanísticas.

Palavras-chave4: Patrimônio Cultural; Educação; Sociedade; Interpretação do Patrimônio; Piauí.

4
De três a cinco palavras-chave, separadas por ponto e vírgula, em fonte Times New Roman, tamanho 11,
espaçamento entre linhas simples.

1436
Abstract: We present in this communication work associated with the Postgraduate Program in Arts,
Heritage and Museology (PPGAPM), Professional Master's Degree, Federal University of Piauí,
Campus Ministro Reis Veloso (CMRV), City of Parnaíba, Mid-North Brazil. It is a Matrix Project
under the title "Parnaíba: Living Heritage, Living City ", whose substrate is based on a set of
subprojects and actions, based on technical-scientific research, for social, educational and cultural
interventions in the Set Historic and Landscaped of the City of Parnaíba, which has a rich and complex
cultural heritage which includes an architectural set with varied styles of construction, which refer to
different moments of its urban constitution and evidence the mark of periods of economic
development and wealth flow Of the territory during the final period of Portuguese colonization and
beyond. The Tomb of the Historic and Landscape Set of Parnaíba dates from 2008, conducted by the
Institute of National Historical and Artistic Heritage (Iphan), after analyzing the "Cidades do Piauí
Dossier, witnesses of the occupation of the interior of the country in the XVIII and XIX centuries", by
the Advisory Council, in an extraordinary meeting for this purpose. This was followed by the
provisions of the Rules of Procedure of the Institution, after documentation sent by the President of
Iphan. Today, the tipping is a reality, but there is still a new posture before the concept of a national
heritage city, with protected assets; Public and private agents do not realize the urgency of protecting
this cultural heritage. As public agents we need to create effective instruments to deal with the
protection and revitalization of the Historic Center of Parnaíba; There is a strangeness of the resident
population and an interference of the protection organs. The historical site of Parnaíba has a peculiar
characteristic, although with many modifications in the architecture and urbanism of the city, it
remains as administrative center, commercial and residential of the municipality, there are abandoned
buildings, related to the port area, now, deactivated. The Tombamento identifies seven areas of distinct
architectural features: (1) Set of Port of Barges and Port Warehouses; (2) Set of Santo Antônio Square;
(3) Set of Getúlio Vargas Avenue; (4) Train station assembly; (5) Set of Graça Square; (6) Traditional
folk architecture and (7) Surrounding Area; Areas defined according to architectural and urban
characteristics

Key-words5: Cultural heritage; Education; Society; Interpretation of the Patrimony; Piauí

5 Traduçãodas palavras-chave, em inglês acadêmico, separadas por ponto e vírgula, em fonte Times New
Roman, tamanho 11, espaçamento entre linhas simples.

1437
Considerando que os conjuntos históricos ou tradicionais fazem parte do
ambiente cotidiano dos seres humanos em todos os países, constituem a
presença viva do passado que lhes deu forma, asseguram ao quadro da vida a
variedade necessária para responder à diversidade da sociedade e, por isso,
adquirem um valor e uma dimensão humana suplementares,
Considerando que os conjuntos históricos ou tradicionais constituem através
das idades os testemunhos mais tangíveis da riqueza e da diversidade das
criações culturais, religiosas e sociais da humanidade e que sua salvaguarda
e integração na vida contemporânea são elementos fundamentais na
planificação das áreas urbanas e do planejamento físico-territorial,
Considerando que, diante dos perigos da uniformização e da
despersonalização que se manifestam constantemente em nossa época, esses
testemunhos vivos de épocas anteriores adquirem uma importância vital para
cada ser humano e para as nações que neles encontram a expressão de sua
cultura e, ao mesmo tempo, um dos fundamentos de sua identidade,
Considerando que, no mundo inteiro, sob pretexto de expansão ou de
modernização, destruições que ignoram o que destroem e reconstruções
irracionais e inadequadas ocasionam grave prejuízo a esse patrimônio
histórico,
Considerando que os conjuntos históricos ou tradicionais constituem um
patrimônio imobiliário cuja destruição provoca muitas vezes perturbações
sociais, mesmo quando não resulte em perdas econômicas,
Considerando que essa situação implica a responsabilidade de cada cidadão
e impõe aos poderes públicos obrigações que só eles podem assumir,
Considerando que, diante de tais perigos de deterioração e até de
desaparecimento total, todos os Estados devem agir para salvar esses valores
insubstituíveis, adoptando urgentemente uma política global e ativa de
proteção e de revitalização dos conjuntos históricos ou tradicionais e de sua
ambiência, como parte do planejamento nacional, regional ou local.
(Disponível em:
http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Recomendacao%20de%
20Nairobi%201976.pdf. Acesso em 27 ago. 2017)

1438
1. O Território
A cidade de Parnaíba está inserida na Área de Proteção Ambiental (APA) Delta do
Parnaíba, criada por Decreto Presidencial em 28 de agosto de 1996, com uma área de 313.809
hectares, distribuída nos municípios de: Barroquinha e Chaval (Ceará); Água Doce, Araióses,
Paulino Neves e Tutóia (Maranhão); Cajueiro da Praia, Ilha Grande, Luís Correta e Parnaíba
(Piauí). Não há ainda um Plano de Manejo para a APA, um dos fatores que haja transgressões
de toda ordem, que sejam desenvolvidas atividades potencialmente poluidoras, tais como, o
crescimento desordenado das cidades, os lixões, a carcinicultura, a salineira, os
desmatamentos e queimadas, o comprometimento dos recursos hídricos, a utilização
indiscriminada de agrotóxicos e o turismo não planejado; que devem ser sustados, controlados
e monitorados. Na APA há ambientes marinho-costeiros como manguezais, praias, restingas,
dunas fixas e móveis, planícies flúvio-marinhas e lacustres, caatinga e áreas de carnaubal. Há
comunidades que vivem da pesca artesanal e cata de caranguejo.

Figura 1. Pescadores artesanais, Praia do Coqueiro, Luís Correia, Piauí,


Área de Proteção Ambiental. 2016.

1439
O Instituto Tartarugas do Delta – ITD6, o IBAMA e a UFPI em ação conjunta
conseguiram que o Governador do Estado do Piauí assinasse o Decreto Lei nº 6.884 de 29 de
agosto de 2016, que criou o Dia Estadual da Conservação da Biodiversidade Marinha e
Costeira e declarou Patrimônio Natural do Estado do Piauí o Peixe-Boi Marinho, as
Tartarugas Marinhas e o Cavalo-Marinho, com o compromisso de promover “[...] ações e
atividades que divulguem o potencial socioeconômico e ambiental resultantes da proteção do
ambiente natural, da cultura e da história das comunidades e suas relações com a
biodiversidade marinha, que devem representar um dos pilares da sustentabilidade do turismo
na região.” (Disponível em:
http://servleg.al.pi.gov.br:9080/ALEPI/sapl_documentos/norma_juridica/3986_texto_integral.
Acesso em 27 ago. 2017).

Figura 2. Oficina de grafite como instrumento de sensibilização para o


patrimônio cultural e ambiental. Ação conjunta IDT e PPGAPM da
UFPI. Ilha Grande, Parnaíba. 2016.

6
O Instituto Tartarugas do Delta - ITD é uma ONG sem fins lucrativos, que atua no trabalho de manejo e
conservação de pequenos cetáceos e quelônios marinhos, comportamento reprodutivo de tartarugas marinhas e
educação ambiental na região da APA Delta do Parnaíba.

1440
Portanto, a cidade de Parnaíba, localizada no Meio Norte do Brasil, nomeadamente,
entre o rio Igaraçu e a Serra da Ibiapaba, além das características acima, abriga ainda um
Conjunto Histórico e Paisagístico Tombado em 2008 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional - Iphan. São cinco áreas protegidas: Porto das Barcas, Praça da Graça,
Praça Santo Antônio, Estação Ferroviária e Avenida Getúlio Vargas. A catedral Nossa
Senhora Mãe da Divina Graça é um dos monumentos mais importantes da cidade onde o altar
é decorado com cerâmicas portuguesas e as imagens datam da década de 1930. É nesta igreja
que está o túmulo Simplício Dias da Silva e de outros nomes da elite de Parnaíba da época.

Figura 01: Mapa de localização do Piauí no Brasil, seguida a localização do município de Parnaíba no Estado
do Piauí. Fonte: Pamela Franco, 2016.

Nesse território, antes da chegada do colonizador branco europeu, viviam os índios


Tremembé. O processo de colonização trouxe consigo uma política agressiva de exploração e
dizimação dessas populações; negros foram arrancados de África, trazidos para o Brasil e para
Parnaíba, e usados como mão-de-obra escrava no contexto da Política Mercantilista,
nomeadamente do Pacto Colonial, cuja marca foi de uma colonização de exploração.
A cidade de Parnaíba tem localização geográfica estratégica, às margens do rio
Igaraçu, afluente do rio Parnaíba, que desemboca no oceano Atlântico e forma o único delta a

1441
desaguar em mar aberto das Américas. O urbanismo português, marca a natureza histórica da
cidade portuária com saída costeira, o que permitiu a adoção de modelos arquitetônicos de
litoral. Para alguns estudiosos a denominação Parnaíba é uma homenagem ao distrito Paulista
de Parnaíba, para outros é uma referência à palavra tupi que significa “grande rio não
navegável”.
A segunda metade do século XVIII marcou o início do desenvolvimento econômico
nos moldes do capitalismo colonial europeu, associado diretamente à economia do charque
trazida pelo comerciante português Domingos Dias da Silva, fundador do Porto das Barcas,
antigo Porto Salgado, ancoradouro de embarcações que levavam e traziam produtos internos,
nacionais e estrangeiros.
Os Dias da Silva foram exploradores pioneiros da região às margens do rio Igaraçu,
sobretudo nos ramos comercial e agrícola. Simplício Dias da Silva, seu filho, tornou-se rico
fazendeiro que dominou a cena política e econômica da Vila de São João da Parnaíba, chegou
a Presidente da Província do Piauí, destacou-se como maçon. Poderoso proprietário de terras e
de escravos, construiu um complexo patrimônio, dentre eles um casarão em estilo português
onde residiu com sua família. Hoje, a edificação, do século XVIII, o Casarão Simplício Dias,
é um dos imóveis tombados e restaurados com recursos federais (2010-2012) e entregue à
Prefeitura de Parnaíba (2013).
A obra foi possível em virtude de convênio entre o Iphan, Ministério da Cultura
(MinC), Prefeitura de Parnaíba, com recursos do Plano de Aceleração do Crescimento –
Cidades Históricas (PACH). A cidade de Parnaíba fora contemplada com ações do PACH,
mas não há uma política conjunta entre Município e Governo do Estado do Piauí; em 2015,
este último, anulou investimentos referentes à preservação do patrimônio histórico e cultural
da cidade; esses diálogos deveriam ser coordenados pelo Iphan, que tem inclusive um
Escritório Técnico na Cidade, nomeadamente no Casarão, e a considerar que Parnaíba é
Patrimônio Nacional; logo há responsabilidade do Iphan, vez que o Centro Histórico, abriga
mais de quinhentas edificações tombadas e praticamente todos esses imóveis estão sem uso,
abandonados, a espera de restauração, requalificação e revitalização.

1442
Em diagnóstico preliminar, percebemos que somente ações sistemáticas de natureza
educativas e socioculturais permitirão o conhecimento e reconhecimento dos residentes da
cidade do rico e complexo patrimônio cultural e natural que lhes pertencem; lhes permitirão
atribuir sentidos e significados ao tombamento.
O Projeto do Mestrado tem por objetivo permitir a formação profissional associada à
construção de projetos técnicos e sensíveis associados ao território, às pessoas, aos
patrimônios cultural e natural, elementos de fixação das populações, elementos de educação,
cultura, gerador de emprego e renda. Nesse sentido, os espaços de intervenção ligam-se
diretamente ao Conjunto Histórico e Paisagístico de Parnaíba.
O que propomos é dar a conhecer o patrimônio cultural e sensibilizar os residentes
para formas de uso e apropriação da rica e complexa paisagem cultural da cidade, do rio e
entorno, por meio de ações que possam modificar o olhar que têm sobre a cidade e a sua
lógica de crescimento. O trabalho se materializa em subprojetos e ações de intervenção direta
na cidade histórica de forma a permitir melhores condições de vida às populações residentes
por meio da valorização da cidade como Patrimônio Nacional.
O que se pretendemos é indicar possibilidades de uso dos espaços, a exemplo de boas
práticas em cidades brasileiras e estrangeiras; introduzir o conceito de centro como lugar de
moradia, educação, cultura, geração de emprego e renda; mudar a atual situação de
marginalidade das populações que habitam o Centro Histórico de Parnaíba, abandonadas a
própria sorte pelos poderes públicos, pessoas não conhecidas, invisíveis e, portanto, não
reconhecidas e não valorizadas.
Logo, indicar mudanças no que refere à preservação do patrimônio cultural é propor
qualidade de vida para as pessoas que residem e trabalham e podem vir a se divertir no Centro
da Cidade de Parnaíba, hoje, um espaço marcado pela presença do lixo (resíduos sólidos), da
insegurança e da marginalização. Devem ser implementadas ações concretas e sistemáticas,
de forma a indicar caminhos de requalificação, de revitalização da cidade tombada,
transformando-a em Cidade Viva, agradável para se viver e visitar.

1443
Esse é o conceito do Projeto do Mestrado Profissional da UFPI; revitalizar os espaços
públicos da cidade, preservar o patrimônio cultural, investir em sensibilização e formação de
gestores do patrimônio e museus, formar públicos, para que conheçam, reconheçam,
valorizem, apoiem e divulguem formas de intervenção urbana; citemos boas práticas em
cidades como Lisboa, nomeadamente no bairro Alfama, que tem atraído públicos e recursos,
agentes públicos e privados, jovens, estudantes, turistas, empreendedores, públicos que
procuram cultura, entretenimento, educação, turismo, hospedagem, habitação, comércio etc.

Figura 3. Oficina de conservação e restauro. Programa de Pós-graduação, Mestrado


Profissional, em Artes, Patrimônio e Museologia – PPGAPM da UFPI, Parnaíba. 2016.

O que se pretendemos é integrar as pessoas, minimizar conflitos socioeconômicos,


comuns em projetos e ações dessa natureza, nesse particular estamos atentos à minimização
dos processos de gentrificação, vez que almejamos integrar públicos diversos, por se tratar de
um Projeto inclusivo e atravessado pelo paradigma da sustentabilidade para o Centro
Histórico da Cidade de Parnaíba: Patrimônio Vivo, Cidade Viva.
A Carta Internacional para a Salvaguarda das Cidades Históricas (ICOMOS /1987)
defende que:

1444
Em resultado de um desenvolvimento mais ou menos espontâneo ou de um
projeto deliberado, todas as cidades do mundo são a expressão material da
diversidade das sociedades através da história, sendo, por esse fato,
históricas. A presente carta diz respeito, mais precisamente, às cidades
grandes ou pequenas e aos centros ou bairros históricos, com o seu ambiente
natural ou edificado, que, para além da sua qualidade como documento
histórico, expressam os valores próprios das civilizações urbanas
tradicionais. Ora, estas estão ameaçadas pela degradação, desestruturação ou
destruição, consequência de um tipo de urbanismo nascido na
industrialização e que atinge hoje universalmente todas as sociedades.
(Disponível em
<https://www.revistamuseu.com.br/site/br/legislacao/patrimonio/228-carta-
de-washington.html.> Acesso em 26 ago. 2017.)

Portanto, nossos esforços, no caminho de serem conjuntos, o que inclui agentes


públicos e privados, têm sido no sentido de impedir que a cidade fique à margem dos
processos históricos mais modernos de civilidade. Compreendemos que a cidade deve se
modernizar, mas de forma a respeitar o patrimônio cultural e natural, de forma a racionalizar
processos de verticalização como os que têm ocorrido em áreas centrais e bairros em cidade
como Teresina, capital do Piauí, apenas para citar uma urbe bem próxima ao território que
elegemos para estudos e intervenções.
Neste Projeto, pretendemos congregar agentes diversos de forma a sensibilizá-los para
os riscos da perda dos patrimônios, que podem ruir por processos de construção desordenada,
demolições e reconstruções que descaracterizam a cidade patrimônio nacional. O Centro
Histórico de Parnaíba passa nos dias que correm por processo acelerado de esvaziamento
econômico, de marginalização social e cultural, desvalorização imobiliária, que segrega e
segmenta espacialmente a vida urbana, as relações de sociabilidade.
A Cidade Histórica de Parnaíba perdeu seu dinamismo e ganhou enormes vazios
urbanos, decrépitos e marginalizados, áreas públicas de domínio da União, outrora instalações
industriais e comerciais, hoje, abandonadas, ociosas e submetidas à marginalização, espaços
de consumo e comércio de drogas e prostituição.

Face a esta situação muitas vezes dramática, que provoca perdas


irreversíveis de caráter cultural, social e mesmo econômico, o Conselho

1445
Internacional dos Monumentos e dos Sítios (ICOMOS) considerou
necessário redigir uma `Carta Internacional para a Salvaguarda das Cidades
Históricas`.
Completando a `Carta Internacional sobre a Conservação e o Restauro dos
Monumentos e Sítios` (Veneza 1964), este novo texto define os princípios e
os objetivos, os métodos e os instrumentos de ação adequados à salvaguarda
da qualidade das cidades históricas, no sentido de favorecer a harmonia da
vida individual e social, e perpetuar o conjunto de bens, mesmo modestos,
que constituem a memória da humanidade.
Como no texto da Recomendação da UNESCO `relativa à salvaguarda dos
conjuntos históricos ou tradicionais e ao seu papel na vida contemporânea´
(Varsóvia – Nairobi 1976), assim como noutros diferentes instrumentos
internacionais, entende-se por `salvaguarda das cidades históricas´ as
medidas necessárias à sua proteção, conservação e restauro, assim como ao
seu desenvolvimento coerente e à sua adaptação harmoniosa à vida
contemporânea. (Disponível em
<https://www.revistamuseu.com.br/site/br/legislacao/patrimonio/228-carta-
de-washington.html.> Acesso em 26 ago. 2017.)

Na Cidade Tombada, cidade histórica, vivemos um estado de calamidade pública, em


oposição ao que deveria ser um planejamento urbano que valorizasse as pessoas, suas
histórias e memórias, que valorizasse o patrimônio cultural e ambiental. Urgente, portanto,
políticas de intervenção urbana, que motive a sociabilidade e não adense a gentrificação, ou
seja, que não expulsem segmentos de populações residentes e minorias étnicas do Centro
Histórico de Parnaíba, mas que valorizem outras formas de ocupação do espaço.
Este Projeto ao propor formas de sensibilização adota de forma obrigatória a
participação dos residentes da Cidade de Parnaíba, nomeadamente aqueles que habitam, que
ali trabalham; logo se impõe uma prática de consulta pública à população na construção de
uma proposta de revitalização urbana. Necessário sensibilizar associações comunitárias e
profissionais, agentes públicos e privados, população de Parnaíba e entorno.
Sabemos das tensões e conflitos que se impõem a esta natureza de projeto-ação; jogos
de poder, interesses divergentes para o uso dos espaços tombados. De um lado, o interesse
pela defesa do patrimônio cultural e natural, pela cidade patrimônio nacional; de outro a
especulação imobiliária e a inércia dos poderes públicos. O que pretendemos é um Projeto

1446
inclusivo, com a participação do maior número de pessoas residentes e não residentes, agentes
públicos e privados.
Evidente na Carta Internacional para a Salvaguarda das Cidades Históricas (ICOMOS
/1987), que:
A participação e o envolvimento dos habitantes da cidade são
imprescindíveis ao sucesso da salvaguarda. Devem ser procuradas e
favorecidas em todas as circunstâncias através da necessária conscientização
de todas as gerações. Não deve ser esquecido que a salvaguarda das cidades
e dos bairros históricos diz respeito, em primeiro lugar, aos seus habitantes.
As intervenções num bairro ou numa cidade histórica devem realizar-se com
prudência, método e rigor, evitando dogmatismos, mas tendo sempre em
conta os problemas específicos de cada caso particular. (Disponível em
<https://www.revistamuseu.com.br/site/br/legislacao/patrimonio/228-carta-
de-washington.html.> Acesso em 26 ago. 2017.)

Nesse sentido, este Projeto revela a nossa preocupação profunda com os destinos da
Cidade Histórica de Parnaíba, que precisa de mudanças radicais de atitude e concepção dos
residentes e demais atores sociais; daí a necessidade da organização de uma série de encontros
com representantes de diversos segmentos governamentais, entidades profissionais,
acadêmicos etc., com o apoio direto da Universidade Federal do Piauí por meio do Mestrado
Profissional.
Para assegurar a participação e a responsabilização dos habitantes, deve ser
implementado um programa de informação geral começando a sua
divulgação desde a idade escolar. A ação das associações de defesa do
patrimônio deve ser favorecida, e devem ser adotadas as medidas financeiras
apropriadas para assegurar a conservação e o restauro do parque edificado.
A salvaguarda exige que seja ministrada uma formação especializada a todos
os profissionais que nela participem. (Disponível em
<https://www.revistamuseu.com.br/site/br/legislacao/patrimonio/228-carta-
de-washington.html.> Acesso em 27 ago. 2017.)

Urgente a constituição de um trabalho comunitário e interinstitucional de salvaguarda


do Conjunto Histórico e Paisagístico de Parnaíba. Juntos estamos a encontrar soluções, que
mesmo que de forma panorâmica, estamos a apresentar. Não podemos permitir, e a UFPI não
pode ser omissa nesse processo, que muitos terrenos vazios e prédios com valor histórico e

1447
subutilizados sejam alvos de demolição, saída mais fácil para interesseiros e desavisados, mas
que coloca em risco as histórias locais, os valores, as tradições, os modos de vida.
Não desconsideramos as dinâmicas territoriais assentadas sobre o principio de que
todas as atividades econômicas um dia percam sua função de outrora; mas é preciso
ressignificar a vida urbana, a Paisagem Cultural de Parnaíba, oferecer usos aos espaços, hoje,
atravessados pelo medo, rejeição, marginalidade, uma paisagem urbana hostil a vida em
sociedade.
A UFPI por meio do Mestrado Profissional tem um papel da maior relevância, a
considerar o estranhamento e desconhecimento da comunidade no que se refere aos sentidos e
significados do tombamento; há defasagem dos técnicos do Iphan que lidam diretamente com
preservação e salvaguarda do patrimônio tombado, é preciso sair do gabinete, esclarecer e
justificar para a população a importância e natureza da salvaguarda do Conjunto Histórico e
Paisagístico de Parnaíba. Uma das ações que se pretende imediata é solicitar a aplicação da
Lei Municipal nº 1.908, de 11 de março de 2003, legislação vigente que institui o tombamento
municipal e cria o Conselho Consultivo Municipal do Patrimônio Cultural e Natural de
Parnaíba (CONSPAC); a avaliação do ponto da situação do Plano Diretor, aprovado em 05 de
janeiro de 2007, que prevê a recuperação e valorização dos patrimônios arquitetônicos,
urbanísticos e ambientais, particularmente aqueles do Centro Histórico da Cidade de Parnaíba.
O Plano Diretor delega ao Iphan a responsabilidade de elaborar normas para o Centro
Histórico da Cidade, especialmente para a área tombada, logo a municipalidade delegou ao
Iphan o papel de implantar ações necessárias à salvaguarda do patrimônio cultural.
O que propomos e estamos a realizar são subprojetos e ações que congreguem
população, poderes federais, estaduais, municipais e demais agentes públicos e privados na
gestão do patrimônio cultural tombado em benefício do interesse coletivo, acordos de
cooperação técnica entre as diversas esferas e agentes públicos e privados, pois juntos
podemos compatibilizar e distribuir os ônus e benefícios dos processos de revitalização do
Conjunto Histórico e Paisagístico de Parnaíba.

1448
Um dos subprojetos, que consideremos como uma boa prática de educação para o
patrimônio cultural, é a Feira do Patrimônio, finalista da 30ª Edição do Prêmio Rodrigo Melo
Franco de Andrade, 2017, na Categoria III – Iniciativas de excelência em promoção do
Patrimônio Cultural, promovido pelo Ministério da Cultura – MinC, por meio do Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan.

Figura 4. Feira do Patrimônio. Programa de Pós-graduação, Mestrado Profissional,


em Artes, Patrimônio e Museologia – PPGAPM da UFPI, SESC Regional do Piauí e
ITD, Parnaíba. 2017.

Figura 5. Equipe Organização Feira do Patrimônio. Programa de Pós-graduação, Mestrado Profissional,


em Artes, Patrimônio e Museologia – PPGAPM da UFPI, Parnaíba. 2016.

1449
A Feira do Patrimônio é uma ação de promoção do Patrimônio Cultural e destina-se a
diversos públicos, a agentes públicos e privadas que se interessam pelas matérias relacionadas
aos patrimônios, museus, turismo, empreendedorismos e outros negócios. Ocorre anualmente
desde 2016 no Centro Histórico de Parnaíba, Cidade Patrimônio Nacional desde 2008.
Revela-se como um espaço de sociabilidade para sensibilizar públicos variados no que refere
à responsabilidade para a preservação e proteção da paisagem cultural da cidade de Parnaíba e
das comunidades ribeirinhas e deltaicas que formam a APA Delta do Parnaíba, o único a
desaguar em mar aberto das Américas entre os Estados do Piauí e do Maranhão.
Em 2016, a 1ª edição da Feira do Patrimônio, contou com um público de mais de
3.000 (três mil) pessoas, o que permite afirmar com segurança que a Feira é capaz de
estabelecer conexões entre a Universidade, as Comunidades e Agentes Públicos e Privados,
de forma a permitir o conhecimento e reconhecimento da paisagem cultural, formar públicos
capazes de sensibilizarem-se para conhecer, reconhecer, divulgar e salvaguardar a diversidade
cultural e paisagística do Meio Norte do Brasil, sem desconsiderar o Estado do Piauí́.
Ao longo da Feira do Patrimônio ocorrem atividades de educação patrimonial e
ambiental, exposições, comércio de produtos artesanais, apresentação de projetos de
intervenção urbana, palestras, intervenções artísticas, conferências, rodas de conversa etc.
A Feira do Patrimônio tem o objetivo de realizar ações educativas, culturais, sociais
para formar uma comunidade de interesse que inclua agentes públicos e privados, residentes e
produtores culturais em defesa e salvaguarda da rica e complexa paisagem cultural do delta do
Parnaíba, Meio Norte do Brasil, nomeadamente da cidade de Parnaíba e entorno.
Temos realizado ações educativas e socioeconômicas de promoção do patrimônio
cultural; construído gradativamente uma economia da cultura, de sensibilização para a
preservação, salvaguarda e promoção da rica e complexa paisagem cultural do Delta do
Parnaíba, território vocacionado para um turismo cultural, que gere receitas e fomente
emprego e renda, de forma a fixar as populações no território ancestral.

1450
Desde a 1ª Edição da Feira em 2016, foi possível congregar agentes públicos e
privados; o que nos motiva a avançar com a integração de outros agentes, o que inclui
empresas, escritórios de arquitetura/design, operadores turísticos, projetos de base territorial,
empresas de conservação e restauro e de reabilitação urbana, universidades e centros de
formação especializada, artistas, artesãos, dentre outros.
A UFPI, o SESC, o ITD e o SEBRAE apoiam a Feira, oferecendo infraestrutura para
acolher residentes da cidade e de outros territórios que desenvolvam atividades diversas
associadas à gastronomia, música, dança, artes em palha de carnaúba, argila, linha madeira
etc.; portanto, comerciantes e consumidores, que oferecem o colorido do murmurinho e da
celebração do encontro característicos das feiras livres desde os tempos medievais. Por entre
“comes e bebes”, músicas, exposições, oficinas vivas das artes associadas à paisagem cultural
do Meio Norte, exercitamos a cidadania, a intervenção democrática na cidade de forma
educativa, encantadora e lúdica. A viabilidade da Feira do Patrimônio a cada ano requer
parcerias com agentes públicos e privados, o que inclui ONGs, Secretarias de Educação,
Cultura, Administração, Ação Social do Estado e municípios do entorno, dentre outros. Esses
parceiros têm as suas marcas associadas à Feira de Patrimônio, o que lhes confere uma
imagem de reconhecimento da sociedade pela valorização e preservação do rico e complexo
patrimônio cultural do Meio Norte do Brasil, contribuindo sobremaneira para o incremento de
produtos e serviços que disponibilizam e prestam à sociedade.
Nos dias que correm, o turismo cultural se afirma como elemento de sustentabilidade,
gerador de emprego e renda, sensibilização de turistas e comunidades residentes para o
conhecimento de produtos culturais singulares, a exemplo, aqueles associados ao Delta do
Parnaíba.
A construção sistemática de um trabalho de educação para o patrimônio, envolvendo a
sociedade em sentido amplo na preservação e salvaguarda do patrimônio cultural, material e
imaterial, é uma forma crítica, constituindo, assim, uma rede de relações diretas com as
comunidades residentes.

1451
Referências bibliográficas
PINHEIRO, Áurea da Paz. Patrimônio cultural e museus: por uma educação dos sentidos.
Educ. rev. [online]. 2015, n.58, pp.55-67. ISSN 0104-4060. http://dx.doi.org/10.1590/0104-
4060.44084.

PINHEIRO, Áurea (Org.) Paisagens Educativas: saberes, experiências e práticas. Teresina:


Diocesano, 2008.

PINHEIRO Áurea; PELEGRINI, Sandra (Org.). Tempo, Memória e Patrimônio Cultural.


Teresina: EDUFPI, 2010.

PELEGRINI, Sandra C.A., NAGABE, Fabiane e PINHEIRO, Áurea da Paz. (Org.). Turismo
e Patrimônio em tempos de globalização. Campo Mourão: FECILCAM, 2010.

PINHEIRO, Áurea; GONÇALVES, Luís Jorge; CALADO, Manuel. Patrimônio


Arqueológico e Cultura Indígena. Teresina: EDUFPI; Lisboa: Faculdade de Belas-Artes,
Universidade de Lisboa, 2011.

PINHEIRO, Áurea; MOURA, Cássia. Senhores de seu ofício: a arte santeira do Piauí́.
Teresina: Iphan, 2009.

. Piauí́: história, memória, patrimônio cultural. Teresina: Iphan, 2008. [Documentário,


13 min]

1452
A FUNÇÃO EDUCATIVA DO MUSEU E SUA RELAÇÃO COM A ESCOLA

Carlos André Lopes Cunha*

Resumo: Este trabalho trata a respeito da função educativa do museu e da importância do mesmo
estabelecer uma parceria com a escola para proporcionar uma educação integral, principalmente no
aspecto cultural. Tem-se como objetivo, discutir, de maneira geral, a função educativa dos museus e
apontar possíveis contribuições dos mesmos, em parceria com a escola, no processo de educação
patrimonial dos indivíduos através de seus acervos e de suas ações educativas. Para realização deste
estudo foi realizada uma vasta pesquisa bibliográfica em diversas fontes acerca do tema. Ao longo dos
séculos, depois de passarem por muitas transformações, os museus se tornaram importantes espaços de
educação da sociedade, principalmente com relação ao aspecto cultural e patrimonial. Estes,
desempenham importante papel no sentido de fazer com que a sociedade reconheça, apreenda, valorize
e preserve o patrimônio cultural herdado ao longo de sua história. Para que ocorra esse processo de
educação cultural, é necessário que museus e escolas estabeleçam uma parceria educacional,
respeitando suas particularidades institucionais, para proporcionar a toda sociedade meios efetivos de
acesso à cultura. A educação deve proporcionar o pleno desenvolvimento de todos os aspectos do ser
humano e garantir a oportunidade destes poderem usufruir do patrimônio cultural historicamente
herdado e reconhecê-los como sendo seus por direito.
Palavras-chave: Educação; Museu; Escola; Patrimônio; Cultura.

Abstract: This work deals with the educational function of the museum and the importance of
establishing a partnership with the school to provide a comprehensive education, especially in the
cultural aspect. The objective is to discuss, in a general way, the educational function of the museums
and to point out their possible contributions, in partnership with the school, in the process of heritage
education of the individuals through their collections and their educational actions. For the
accomplishment of this study a vast bibliographical research was carried out in diverse sources on the
subject. Over the centuries, after undergoing many transformations, museums have become important
spaces for the education of society, especially in relation to cultural and heritage aspects. They play an
important role in ensuring that society recognizes, seizes, values and preserves the inherited cultural
heritage throughout its history. In order for this process of cultural education to occur, it is necessary
for museums and schools to establish an educational partnership, respecting their institutional
characteristics, to provide effective access to culture to all society. Education must provide for the full
development of all aspects of the human being and ensure the opportunity for them to enjoy
historically inherited cultural heritage and recognize them as theirs by right.
Keywords: Education; Museum; School; Patrimony; Culture.

1453
Introdução
A educação sempre foi tema de muitos debates ao longo de sua história, sua
evolução foi marcada por muitas incertezas, e talvez a questão mais difícil de solucionar
girasse em torno de se definir claramente qual a função social da educação.
Especificamente no Brasil, após um longo processo de debates educacionais na
busca da solução destas questões, a Constituição Federal de 1988 veio para definir em seu
Art. 6º a educação como um “direito social” do cidadão e especificar ainda em seu Art. 205
que:
A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida
e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno
desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho. (BRASIL, 2012, p. 121).

Focando-se na parte do documento que trata sobre o objetivo da educação de


proporcionar o “pleno desenvolvimento da pessoa” e “seu preparo para o exercício da
cidadania” presume-se que a educação deva entender o ser humano como um ser “integral” e
proporcionar seu desenvolvimento em todos os aspectos da vida em sociedade. Com base
nessa nova perspectiva, a educação contemporânea não deve adotar uma postura de trabalho
parcial ou restritiva, mas deve oferecer oportunidades de aprendizado nos aspectos social,
afetivo/emocional, cognitivo e cultural. Motivado pela busca de uma melhor compreensão de
sua relação com a educação, o aspecto cultural será o tema abordado na discussão deste
trabalho.
A Constituição Federal dá destaque para o aspecto cultural, denotando sua
importância para o desenvolvimento humano, ao abordar de maneira geral em seu Art. 215:
O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso
às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a
difusão das manifestações culturais. [...] (BRASIL, 2012, p. 124).

O Art. fala na “garantia do direito cultural e no acesso às fontes de cultura”,


embora não estabeleça, na prática, como se garantirá tal direito e nem como ocorrerá esse
acesso ao patrimônio cultural. Contudo, apesar de não estar bem definido como e onde esse

1454
processo de educação cultural deva ocorrer, pode-se pressupor que a escola deva apresentar-se
como primeira instituição social a assumir essa responsabilidade. Porém, atualmente, sabe-se
que a educação se processa através de uma vasta rede de instituições sociais e culturais e pode
ocorrer nos mais variados espaços. A educação, nesse sentido, não se restringe mais
unicamente ao espaço da escola, embora esta, ocupe ainda, lugar de destaque dentro desse
processo.
Dessa maneira, tratando-se dos lugares fora do ambiente escolar onde o aspecto
cultural da educação possa ocorrer, os museus, por serem instituições com privilegiada
relação com o patrimônio cultural, podem se apresentar como ótima alternativa para se
trabalhar com qualidade a educação voltada para a apreensão do patrimônio cultural. O
museu, entre tantos outros conceitos, pode ser definido como:
Uma instituição sem fins lucrativos, permanente, a serviço da sociedade e
de seu desenvolvimento, e aberta ao público, que adquire, conserva, estuda,
expõe e transmite o patrimônio material e imaterial da humanidade e do
seu meio, com fins de estudo, educação e deleite. (ICOM, 2007 apud
SOARES; CURY, 2013, p. 64).

Os museus são considerados locais de educação não formal, pois mesmo não
apresentando as características da educação formal, o seu trabalho educativo apresenta um
planejamento definido, além de possuir objetivos claros de aprendizagem. Os museus podem
realizar parcerias com instituições formais de ensino e se tornarem locais permanentemente
integrantes do processo de educação. Essa parceria é de extrema importância para o
cumprimento dos seus objetivos educacionais enquanto instituição cultural de destaque. A
educação é um processo contínuo e integrado, então quanto maior aproximação existir entre
educação formal e não formal, melhores serão os resultados na busca de uma educação
integral.
Nesta discussão, o debate gira em torno da função educativa do museu e sobre
como este, em parceria com a escola, pode apresentar-se como um espaço privilegiado de
educação e cultura da sociedade por meio da promoção da educação patrimonial. Desse modo,
em um primeiro momento, a partir de conceitos de cultura e educação, será discutida a relação

1455
entre patrimônio cultural, educação patrimonial e museus. Posteriormente será abordada de
modo resumido sobre a função educativa e social dos museus. Para finalizar, será discutida a
necessidade de uma estreita relação entre museu e escola para a concretização da educação
patrimonial e acesso dos indivíduos aos bens culturais. O objetivo maior é discutir, de
maneira geral, a função educativa dos museus e apontar possíveis contribuições dos mesmos,
em parceria com a escola, no processo de educação patrimonial dos indivíduos através de seus
acervos e de suas ações educativas.
Este trabalho se caracteriza como uma pesquisa bibliográfica e documental. Para
embasar a discussão foi realizada uma vasta busca em diversas fontes acerca do tema, foram
consultados artigos, periódicos, livros, dissertações, teses de doutorado, documentos legais e
sites na internet. A relevância do estudo se apresenta no sentido de tentar contribuir no debate
e investigação a respeito da função educativa dos museus, e ainda, no esforço de suscitar
futuras discussões sobre as possíveis responsabilidades que estas instituições podem assumir
no sentido de contribuir para a democratização da cultura e permitir a toda sociedade o acesso
aos bens culturais.
Patrimônio cultural, educação patrimonial e museus
A cultura pode ser entendida como todas as ações por meio das quais os povos
expressam suas maneiras específicas de ser e de viver, e que ao longo do tempo podem
adquirir representações diferentes. A cultura é um processo eminentemente dinâmico,
transmitido através das gerações que se aprende com os ancestrais e se recria no presente.
(HORTA; GRUBERG; MONTEIRO, 1999).
Pressupõe-se que todo processo de transmissão de conhecimento entre as gerações
ocorra por meio da educação, nesse aspecto, a cultura, seria também passada de geração para
geração através do processo de educacional. Nesse sentido, “educar é construir, é libertar o
homem do determinismo, passando a reconhecer o papel da História e a questão da identidade
cultural, tanto em sua dimensão individual, como na prática pedagógica...” (VIANA 2006, p.
133 apud FREIRE, 2001). Assim, a questão cultural é considerada como um importante
aspecto no processo de educação do indivíduo, destacando-se a construção de sua identidade

1456
cultural. Sobre isto, acrescenta-se ainda que este processo dinâmico de sociabilização da
cultura, através da educação, em que se aprende a fazer parte de um grupo social, possibilita
ao indivíduo a construção de sua própria identidade (HORTA; GRUBERG; MONTEIRO,
1999).
Como visto, a cultura é transmitida de geração para geração através do processo
educacional, onde uma geração educa a seguinte e passa adiante os conhecimentos adquiridos
ao longo do tempo. Nesse caso, ocorre a transmissão de um legado que passa a se constituir
em patrimônio das gerações futuras. O termo Patrimônio vem do latim e deriva de pater, que
significa pai. Neste sentido, adquire o significado de legado, herança transmitida de pai para
filhos. (OLIVEIRA; OLIVEIRA, 2011).
Nessa perspectiva, pode-se pressupor a existência de um patrimônio cultural
passado de geração em geração, responsável pela construção da identidade cultural de um
povo. Nesse sentido, o conceito de patrimônio se amplia passando a se referir a:
Um conjunto de bens produzidos por outras gerações resultantes das
experiências coletivas ou individuais que se tornam significativas para a
história da humanidade e/ou se configuram de tamanha importância para um
grupo de habitantes de uma localidade no que diz respeito a história do lugar
e de seus sujeitos. (OLIVEIRA; OLIVEIRA, 2011, p. 40).

Dessa maneira, todo bem que for produzido por uma geração e que for
considerado de grande relevância cultural para sua identidade e para sua memória será
transmitido à geração seguinte para que esta também tenha referências culturais para a
construção e o reconhecimento de sua identidade.
Nesse sentido, todos os bens produzidos por uma geração considerados
importantes para a sua história e identidade cultural se constituirão no patrimônio cultural
deste povo e serão passados às gerações futuras. Nessa perspectiva, entende-se que
patrimônio cultural refere-se a:
Toda produção humana, de ordem emocional, intelectual, material e
imaterial, independentemente de sua origem, época, natureza ou aspecto
formal, que propicie o conhecimento e a consciência do homem sobre si
mesmo e sobre o mundo que o rodeia. (RODRIGUES, 1999 apud MELO,
2010, p.7).

1457
No Brasil, a Constituição Federal de 1988 trata a respeito do patrimônio cultural
brasileiro em seu artigo 216:
Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e
imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência
à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da
sociedade brasileira, nos quais se incluem: I –as formas de expressão; II–os
modos de criar, fazer e viver; III – as criações científicas, artísticas e
tecnológicas; IV– as obras, objetos, documentos, edificações e demais
espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V– os conjuntos
urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico,
paleontológico, ecológico e científico. (BRASIL, 2012, p. 124).

O Art.216 trata sobre os bens culturais que constituem Patrimônio Cultural


brasileiro, contudo, o documento não deixa claro como se trabalhar o patrimônio cultural
dentro da educação nem como deve ocorrer o acesso da população a esses bens culturais. Os
bens culturais que herdamos do passado e vivenciamos no presente contribuem para a
formação da identidade, de grupos, nas categorias sociais, na preservação da memória,
permitindo estabelecer elos entre o pertencimento, a história e as raízes de um povo
(OLIVEIRA; OLIVEIRA, 2011). Desse modo, faz-se importante que haja uma forma de
educação que permita, através de uma metodologia específica, o contato intencional e
planejado entre o patrimônio cultural e os indivíduos para que essa interação resulte em
valorização e apreensão dos bens culturais como instrumentos importantes para a construção e
reconhecimento de sua identidade cultural.
Diante desse contexto, a Educação Patrimonial surge para servir de mediadora
entre o bem cultural e o indivíduo e, além disso, apresentar-se como uma forma para atender à
necessidade de se educar a sociedade para a apreensão, valorização e preservação do seu
patrimônio cultural. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), define
a educação patrimonial como:
Processos educativos formais e não formais que têm como foco o patrimônio
cultural apropriado socialmente como recurso para a compreensão sócia
histórica das referências culturais em todas as suas manifestações, com o
objetivo de colaborar para o seu reconhecimento, valorização e preservação.
(BRASIL, 2012, p. 5).

1458
A Educação Patrimonial pode ser entendida como um processo permanente e
sistemático de trabalho educacional focado no Patrimônio Cultural, tendo-o como fonte
primária de conhecimento e enriquecimento individual e coletivo. (HORTA; GRUNBERG;
MONTEIRO, 1999). Outro entendimento acrescenta que nessa educação encontra-se a fonte
primária de atuação que visa enriquecer e fortalecer o conhecimento individual e coletivo de
uma nação sobre a sua cultura, memória e identidade (MELO, 2010). A Educação
Patrimonial, por meio de ações voltadas à preservação e compreensão do Patrimônio Cultural,
transforma-se em um meio de aprendizagem, interatividade, e identidade de todos os
indivíduos pertencentes a uma mesma comunidade. Fazendo com que esses se reconheçam,
valorizem e se apropriem de toda herança cultural pertencentes a eles mesmos. (MELO,
2010).
A Educação Patrimonial pode ocorrer tanto pela educação formal quanto pela não
formal, abrangendo não só a escola, mas também diversos lugares detentores de bens culturais
que possuam objetivos educacionais baseados no patrimônio cultural. O IPHAN aponta que a
educação patrimonial esta presente em diversos lugares e atividades: em nossas casas, em
nossas danças e músicas, nas artes, nos museus, escolas e igrejas. (BRASIL, 2012)
Nesse contexto, para se trabalhar com questões patrimoniais, podem-se
desenvolver atividades de visitas a diversos locais, e entre estes, um local de destaque é o
museu, pelo fato da educação que acorre nesse local consistir em um processo de formação
integral com o patrimônio (AZEVEDO, 2010). Acrescenta-se que o museu, como uma
instituição de memória, desenvolve várias ações como coletar, registrar, catalogar, classificar,
registrar e salvaguardar objetos que apresentam testemunhos históricos que contextualizam
uma época, fatos, vidas e cotidianos, refletindo, assim, a sociedade do período
(RODRIGUES, 2010).

Nessa perspectiva, os museus são colocados como locais privilegiados para se


trabalhar a educação baseada nas questões culturais. A sociedade pode encontrar nessa
instituição um ambiente propício para compreender sua herança cultural e construir a sua

1459
própria identidade por meio da apreensão de representações de grande relevância histórica
para o seu povo, as quais foram herdadas através do tempo.

A função educativa do museu


Ao longo da história, os Museus foram apresentados de várias formas até chegar à
maneira como o conhecemos hoje. O vocábulo tem origem na palavra grega mouseione
remonta ao tempo das musas, filhas de Zeus com Mnemosine, a memória. (RODRIGUES,
2010). Mesmo estando ainda a noção de museu associada à arte, ciência e memória, como na
antiguidade, ao longo da história este foi adquirindo novos significados. (SUANO, 1986).
Durante a Idade Média, o termo museu foi pouco utilizado, ressurgindo apenas em
meados do século XV quando o ato de colecionar objetos se tornou moda na Europa. Em
suma, são essas grandes coleções, principalmente mantidas por príncipes e por outros
membros da realeza no período do renascimento, que vão dar origem à instituição “museu” tal
qual a conhecemos hoje. (SUANO, 1986). Contudo, estas coleções não estavam abertas ao
público em geral, pois se destinavam apenas aos familiares e amigos do colecionador. Apenas
no final do século XVIII foi aberto, de fato, o acesso do público às coleções, marcando o
surgimento dos grandes museus nacionais. (SUANO, 1986). É a partir de então que os
museus começam a ganhar cada vez mais importância na vida das sociedades e a se tornarem
espaços de educação para a população.
A partir desse momento, o desenvolvimento da função educativa dos museus pode
ser dividido em três etapas sucessivas (ALLARD; BOUCHER, 1991 apud MARANDINO,
2008). A primeira delas é caracterizada pela criação e inserção de museus em instituições de
ensino formais, nesse caso as grandes universidades existentes no período. Contudo, “Seu
acesso era restrito a estudiosos possuidores dos conhecimentos de referência necessários para
a compreensão das exposições”. (ALLARD; BOUCHER, 1991 apud MARANDINO, 2008,
p. 8).

Já a segunda etapa foi marcada:

1460
[...] pela progressiva entrada de um público mais amplo, e de classes sociais
diferenciadas, nos recintos museológicos. Foi como parte de um projeto de
nação, em um esforço de modernização da sociedade, que em fins do século
XVIII o museu passou a ser considerado como um lugar do saber e da
invenção artística, de progresso do conhecimento e das artes, onde o público
poderia formar seu gosto por meio da admiração das exposições. (ALLARD;
BOUCHER, 1991 apud MARANDINO, 2008, p. 8).
É nesta fase que a preocupação com a função educativa dos museus adquire maior
relevância e provoca debates acerca da qualidade do serviço voltado para o atendimento desse
novo público que começa, a partir de então, a ter o direito de acesso aos museus. “Tais
preocupações desembocaram, na Europa, em projetos governamentais nos quais a instrução
formal obrigatória tinha como complemento “natural” as visitas a museus.” (MARANDINO,
2008, p. 9). A partir desse contexto de exaltação e reconhecimento das vantagens pedagógicas
atribuídas às visitas de escolares a museus é que surgem, dentro dessas instituições, os
chamados serviços educativos (MARANDINO, 2008). Porém, é importante ressaltar que:

[...] esses primeiros serviços educativos contavam com profissionais pouco


especializados na função pedagógica [...]. Já os professores das escolas, por
desconhecerem as especificidades desses locais, não detinham as
ferramentas pedagógicas necessárias para utilizar as coleções dos museus.
(MARANDINO, 2008, p. 9).
A terceira e última etapa da consolidação da função educativa dos museus ocorreu
ao longo do século XX.

Levados pelo aumento e diversificação do público, os museus não poderiam


mais se contentar em apenas expor suas obras. Era necessário encontrar os
meios para assegurar que os visitantes as entendessem e apreciassem. A
preocupação com a utilização educacional dos acervos expostos levou cada
vez mais os museus a introduzirem estratégias que facilitassem a
comunicação com o público dentro de suas exposições. (ALLARD;
BOUCHER, 1991 apud MARANDINO, 2008, p. 9).
Com base nessa nova perspectiva, durante a primeira metade do século XX,
surgiu a necessidade de se montar exposições a partir de seleções do acervo específicas que
respeitassem as características e os interesses de cada tipo de público. (MARANDINO, 2008).
Assim, as antigas exposições nas quais todo o acervo ficava à mostra foram progressivamente

1461
sendo substituídas por seleções representativas de cada temática abordada. (MARANDINO,
2008). “Apesar dessas várias modificações na forma de expor os objetos e de estabelecer um
relacionamento com o público, foi só a partir da segunda metade do século XX que os museus
passaram a ser reconhecidos formalmente como instituições intrinsecamente educativas”.
(MARANDINO, 2008, p. 10). “Essa faceta dos museus surgiu quando os serviços educativos
iniciaram o atendimento específico para os diversos públicos a partir da definição de objetivos
pedagógicos precisos” (KOPTKE, 2003 apud MARANDINO, 2008, p. 10).

No final da primeira metade do século XX, surge um novo movimento no que diz
respeito à atuação dos museus chamado de Nova Museologia. A partir desse novo
movimento, “[...] as ações educativo-culturais ganharam uma dimensão ampliada, na busca
por novos métodos e estratégias de engajar os diversos grupos sociais de forma a torná-los
corresponsáveis pela preservação de seu próprio patrimônio”. (MARANDINO, 2008, p. 10).
Com essa nova ideologia em mente, os museus deveriam se tornar locais onde o público e a
sociedade são sensibilizados e capacitados para atuar em conjunto na preservação e
valorização do seu próprio patrimônio cultural, tornando-se, assim, também, responsáveis
pela salvaguarda do legado patrimonial e cultural historicamente herdado.

Na evolução dos museus, observa-se que “o foco de atuação dos museus passou
por intensas transformações, nas quais os olhares e as práticas dos profissionais dessas
instituições foram se transferindo, paulatinamente, do cuidado exclusivo com as coleções para
a atenção com o público.” (RIVIÉRE, 1989 apud MARTINS, 2006, p.17). Nesse sentido, o
trabalho educacional dos museus deve se concentrar no esforço de conseguir tornar a
exposição acessível ao público, de maneira que este a compreenda, tornando-a significativa. É
preciso que o visitante seja ativo e engajado intelectualmente nas ações que realiza no museu
e que as visitas promovam situações de diálogo entre o público e a exposição apresentada.
(MARANDINO, 2008). Nessa perspectiva, é no momento da visita a um museu, através da
organização da exposição e da cultura material apresentada, que a instituição comunica ao seu
público que história está sendo apresentada, e essa história deve possuir “o objetivo de

1462
reconstruir e explicar a organização, funcionamento e transformação das sociedades”
(MENEZES, 1992 apud RODRIGUES 2010, p. 216).

Em sua longa trajetória histórica, “desde que o museu tornou-se público no século
XVIII é a sua função social que tem sido motivo para justificar sua existência” (BARBOSA;
OLIVEIRA; TICLE, 2010, p. 7). Nesse sentido, é importante ressaltar que:

[...] atualmente sob a égide da Nova Museologia, o compromisso sócio-


político dos museus é, antes de tudo, educacional e sua nova definição
aponta para instituições de serviço público e educação, um termo que inclui
exploração, estudo, observação, pensamento crítico, contemplação e diálogo.
(GRINSPUM, 2001, p. 2).
Indo ao encontro desse pensamento e ampliando essa discussão cabe acrescentar
que:
Para o museu exercer realmente sua função social e educativa, ele não pode
limitar-se apenas a ser um mero espaço de contemplação. Os objetos devem
ser apresentados de forma a serem interpretados, e para isso, é necessário
que ações pedagógicas se desenvolvam dentro da área das instituições
museológicas [...]. (RODRIGUES, 2010, p. 219).

Denota-se assim, que atualmente a função educativa deve ser parte integrante da
atuação do museu e ação indispensável a ele no cumprimento de sua função social. Nessa
perspectiva, pode-se afirmar que “O museu que não tem compromisso educativo transforma-
se em depósito de objetos, ou vitrines de um shopping center cultural” (RAMOS, 2004, p.
134) . O museu não deve se apresentar como uma instituição neutra, pois o visitante deve ser
despertado para consciência de que toda exposição possui um objetivo específico e é dotada
de sentido próprio, pois “o museu não apresenta apenas os objetos, mas o trabalho das inter-
relações dos homens com seu meio e com o fato cultural, num espaço-tempo histórico
determinado, sendo assim um agente de ação cultural e educativa” (RODRIGUES, 2010, p.
216).
Nesse sentido, a função educativa do museu deve ocorrer por meio de ações
conscientes e planejadas do seu trabalho educacional para mediar satisfatoriamente o contato
do público com a exposição apresentada, nesse contexto, o acervo do museu é o meio pelo

1463
qual essa instituição mantém uma relação com a sociedade e expressa qual é a sua missão. Em
geral, essas ações que visam proporcionar ao público a apreensão e assimilação de conceitos e
ideias presentes na exposição gerando assim um processo de educação no museu são
chamadas de ações educativas. Nessa perspectiva, as ações educativas podem ser entendidas
como:
Elementos fundamentais no processo de comunicação que, juntamente com a
preservação e a investigação, formam o pilar de sustentação de todo museu,
qualquer que seja sua tipologia. Entendidas como formas de mediação entre
o sujeito e o bem cultural, as ações educativas facilitam sua apreensão pelo
público, gerando respeito e valorização pelo patrimônio cultural.
(SUPERINTENDÊNCIA DE MUSEUS E ARTES VISUAIS DE MINAS
GERAIS apud BARBOSA; OLIVEIRA; TICLE, 2010, p. 8).

Atualmente “as definições apontam para o museu como espaço de educação e de


comunicação, sendo as AÇÕES EDUCATIVAS mediadoras entre o bem cultural e os
visitantes, que visam valorização do patrimônio e apreensão da memória cultural”
(BARBOSA; OLIVEIRA; TICLE, 2010, p. 9). Assim, percebe-se que a ação educativa deverá
sempre estar presente no trabalho dos museus, independentemente de sua tipologia, pois é o
meio pelo qual o museu expressa e materializa sua relação com o público e a sociedade,
demonstrando sua intenção e concretizando seus objetivos.
A função educativa do museu e sua relação com a escola
Diversas instituições sociais, formais e não formais, podem apresentar-se como
espaços privilegiados de educação, atuando como meio de ligação entre a sociedade e o
patrimônio cultural historicamente adquirido. Nessa perspectiva, entende-se que “A educação
é uma das funções centrais do museu. Este se caracteriza por ser um espaço de educação não
formal que tem como objeto de trabalho o bem cultural”. (STUDART, 2004, p. 37). Nesse
sentido, acredita-se que:

[...] um fator que pode favorecer a ampliação e o aperfeiçoamento da cultura


é o estreitamento das conexões entre a educação formal e a não formal. Tal
constatação não reduz o papel fundamental da escola, mas amplia a
responsabilidade do Estado em fornecer meios que aprofundem o
conhecimento, pois o desenvolvimento dos indivíduos está relacionado às

1464
suas possibilidades e/ou oportunidades de atualizar o acervo cultural.
(CAZELLI; FRANCO, 2006, p. 69)

Desse modo, se faz importante que a promoção da educação patrimonial/cultural


seja desenvolvida por uma rede de instituições sociais, e vale ressaltar que “[...] os museus,
como ambientes que possibilitam intensa interação social e afetiva, culturais e cognitivas,
vem ocupando lugar de destaque nessa rede” (CAZELLI; FRANCO, 2006, p. 69). Indo ao
encontro desta ideia, as “reflexões atuais acerca do processo de ensino-aprendizagem
deslocaram a escola do local prioritário onde se educa e é educado. Juntamente com outros
espaços, os museus ganharam lugar de destaque em virtude de seu potencial educativo e de
suas especificidades” (HERMETO; OLIVEIRA, 2009 apud BARBOSA; OLIVEIRA; TICLE,
2010, p. 9). Assim, atualmente o paradigma de atuação dos museus e seus “conceitos-chave
giram em torno da importância assumida pelo público e das ações de comunicação/educação
dentro dessas instituições” (MARTINS, 2006, p.19), e estes devem sempre procurar estruturar
da forma mais satisfatória possível as suas Ações Educativas. (BARBOSA; OLIVEIRA;
TICLE, 2010).
Para fortalecer o processo de educação patrimonial/cultural, há a necessidade que
ocorra uma estreita relação entre os museus e a escola, porém os museus não devem se tornar
apêndice da escola, pois a instituição museológica se processa de maneira particular, em
relação ao conhecimento que é desenvolvido na escola (RODRIGUES, 2010). Desse modo,
“Não se trata de promover ou reafirmar uma “escolarização” do museu, e sim de estudar a
multiplicidade de papéis educativos que pode ser assumida pelo espaço museológico”
(LOPES, 1991 apud RODRIGUES, 2010, p. 221).

[...] os museus vêm sendo caracterizados como locais que possuem uma
forma própria de desenvolver sua dimensão educativa. Identificados como
espaços de educação não formal, essa caracterização busca diferenciá-los das
experiências formais de educação, como aquelas desenvolvidas na escola, e
das experiências informais, geralmente associadas ao âmbito da família.
(MARANDINO, 2008, p. 12).

1465
Nesse contexto, “é importante ter a noção de que as educações não formal e
informal, em conjunto com a educação formal, devem ser vistas como um continuum e não
como categorias estanques”. (ROGERS, 2004 apud MARANDINO, 2008, p. 14). Nessa
perspectiva, é necessário que o processo educacional aconteça de maneira cíclica, englobando
os mais variados espaços e instituições a fim de proporcionar oportunidades variadas de
conhecimento ao indivíduo, para que este tenha chances de se desenvolver integralmente.

Assim como a escola, os museus possuem como objetivos “educar, facilitar o


acesso à cultura, socializar, favorecer a prática da cidadania, formar indivíduos críticos,
criativos e autônomos”. (BERTELLI 2010 apud BARBOSA; OLIVEIRA; TICLE, 2010, p.
9).
O objetivo da educação em museus, assim como o da educação em um
sentido amplo, é oferecer possibilidades para a comunicação, a informação,
o aprendizado, a relação dialética e dialógica educando/educador, a
construção da cidadania e o entendimento do que seja cidadania.
(STUDART, 2004, p. 37).

Assim, museus e escolas possuem objetivos educacionais semelhantes, porém,


pelas especificidades características do seu trabalho, adotam metodologias distintas para
alcançar esses objetivos.
Constituem-se especificidades das AÇÕES EDUCATIVAS dos museus:
público variado, de frequência não obrigatória, com o tempo resultante da
negociação entre o tempo do visitante e o espaço do museu e
desenvolvimento de atividades baseadas prioritariamente no objeto.
(ALLARD; BOUCHER, 1991 apud MARTINS, 2006, p. 42).

Para se planejar uma ação educativa nos museus é preciso refletir sobre o tempo
de duração da visita, o espaço disponível no museu a ser utilizado durante a mediação e os
objetos que serão apresentados durante a visita no sentido de criar possibilidades para que os
visitantes consigam analisá-los em seus aspectos materiais, históricos e simbólicos.
(BARBOSA; OLIVEIRA; TICLE, 2010).
Ainda que o museu e escola sejam formados por pessoas com culturas
institucionais e profissionais distintas, como os educadores dos museus e os professores das

1466
escolas, é necessário que se construa uma parceria educativa entre estas instituições. Para se
construir uma sólida parceria educativa entre o museu e a escola “é necessário que além dos
objetivos comuns, as identidades das instituições sejam conhecidas e preservadas pelos atores
envolvidos nessa parceria” (BARBOSA; OLIVEIRA; TICLE, 2010, p. 13).
Nesse contexto, o professor precisa ser visto como parceiro, agente
multiplicador, e não como mero receptor de produtos culturais. Por isso,
canais de comunicação e de troca de programas educativos necessitam ser
abertos. Um exemplo importante é a criação de encontros onde o museu
pode apresentar as particularidades de suas AÇÕES EDUCATIVAS, a
temática das exposições em cartaz e a rotina de seu funcionamento e os
professores falem de suas expectativas para a visita, objetivos, temas que
pretendem abordar, perfil de seus alunos, etc. Assim, em diálogo, uma real
parceria entre o museu e a escola pode ser construída. (BARBOSA;
OLIVEIRA; TICLE, 2010, p. 14).

Estima-se que no Brasil as visitas escolares representam de 50% a 90% das visitas
aos museus (KÖPTCHE, 2002), esses números demonstram o quanto esse público é
expressivo e importante para essas instituições em seus trabalhos educativos.
[...] para atingir o objetivo das atividades dos museus, isto é, adquirir,
preservar, documentar, pesquisar e comunicar para fins de educação e lazer,
interessa que o museu e a escola estabeleçam uma parceria educativa,
partilhando do poder e da responsabilidade de formar e educar. (BARBOSA;
OLIVEIRA; TICLE, 2010, p. 13).

Ainda sobre a relação museu e escola, acrescenta-se:


Os serviços educativos das instituições culturais brasileiras e estrangeiras
têm como um de seus principais públicos habituais as escolas. Essa
instituição, por suas características estruturais, tem nas atividades culturais
extra-classe uma demanda constante. As ações delineadas para essa tipologia
de público pressupõem o trabalho em parceria, respeitando as
especificidades educacionais de ambas as instituições – o museu e as
escolas. (MARANDINO, 2008, p. 24)

Entendendo-se que “A necessidade cultural é produto da educação, da ação da


escola” (BOURDIEU, 2003, p. 9), esta deve criar em seus alunos uma necessidade de busca e
valorização dos conhecimentos históricos e culturais transmitidos ao longo do
desenvolvimento da sociedade. Nessa perspectiva, os museus devem ser vistos pela escola
como locais privilegiados nesse aspecto, pois são espaços detentores desses conhecimentos.

1467
Um estudante preparado e dotado de uma “necessidade cultural” instigada pela escola terá a
possibilidade de realizar uma leitura crítica e questionadora sobre a exposição da instituição
visitada. “Os objetos presentes nos museus estão carregados de historicidade, e isto deve ser
colocado ao estudante que irá participar da visita guiada, fazendo com que ele tenha
consciência que esta atividade tem um propósito na construção de um saber histórico”.
(RODRIGUES, 2010, p. 217-218).
Espera-se, que da parceria entre museus e escolas, surja a possibilidade dos alunos
criarem uma prática autônoma de visita a museus (MARANDINO, 2008). Para isso, os
professores, por serem profundos conhecedores dos seus alunos, devem participar
efetivamente na estruturação do processo pedagógico da visita por meio da explicitação e
concordância a partir de objetivos comuns. Para que a execução da visita ocorra de maneira
satisfatória e consiga atingir os seus objetivos, ela deve se dividir em três fases: antes, durante
e depois da visita ao museu. (MARANDINO, 2008).

Antes da visita são feitas as atividades de preparação. Elas servirão para


motivar o aluno à visita, favorecendo o domínio dos conhecimentos
escolares sobre o tema que será abordado, e para desenvolver as ferramentas
necessárias à interpretação e compreensão do museu. [...] A partir de
questionamentos dirigidos, eles deverão coletar o maior número de dados
possível sobre o assunto escolhido. O objetivo da proposta é despertar sua
curiosidade e interesse sobre o assunto da visita, motivando-os a se
engajarem em uma investigação cuja resposta só se completará no próprio
museu. (MARANDINO, 2008, p. 25).
Durante a preparação da visita também é importante que se trabalhe os aspectos
técnicos, como a definição de museu, qual é a sua função, quais os seus objetivos e quais as
características da instituição que será visitada, isto deve ocorrer para que se possa responder a
eventuais questionamentos e dúvidas dos alunos.

Depois dessa fase de preparação, realiza-se o momento da visita propriamente


dito. O grupo deve ser acolhido pelo educador do museu da melhor maneira possível, todas as
informações a respeito da visita devem ser passadas de maneira clara para que não haja
dúvidas que possam vir a atrapalhar o decorrer desta fase.

1468
Dando continuidade à atividade de investigação proposta em sala de aula,
deve-se entender a visita como um momento de coleta de informações. [...] é
necessário selecionar o que deve ser visto, tendo em vista o programa escolar
estabelecido, por um lado, e as coleções do museu, por outro.
(MARANDINO, 2008, p. 26).
É de grande importância ressaltar que:

Um aspecto crucial da visita é que todas as atividades previstas devem ser


específicas de museus. A observação de objetos, o estímulo à curiosidade
sob ângulos diversos e o toque nos objetos, quando possível, devem ser
estratégias recorrentes dentro de uma prática pedagógica no museu . [...]
Nas visitas aos museus podem ser visados objetivos pedagógicos
diversificados, com o estímulo aos aspectos afetivos e psicomotores,
relacionados ao aprendizado de atitudes, conceitos ou habilidades. Mais do
que a memorização de fatos, a visita ao museu deve ser um momento de
aprendizagens diferenciadas. (MARANDINO, 2008, p. 26).
E encerrando-se a fase da visita ao museu:
[...] os alunos deverão proceder à análise e à síntese dos dados coletados. Na
análise, eles deverão organizar os dados, comparando os anteriormente
obtidos com aqueles adquiridos durante a visita, no intuito de responder aos
questionamentos propostos. Na síntese, os dados serão integrados em um
todo coerente que apresentará as respostas aos questionamentos prévios.
Inserindo os dados coletados no museu dentro do processo de formação dos
alunos, a visita perde seu caráter isolado e episódico, passando a integrar as
atividades escolares em um todo contínuo e permanente de aprendizagem.
(MARANDINO, 2008, p. 26)
Uma visita será proveitosa e interessante para o desenvolvimento dos alunos se
essas fases ocorrerem de maneira sucessiva e se as duas instituições as realizarem, na fase que
lhe couber a responsabilidade, da melhor maneira possível. A constante busca por um
denominador comum entre museus e escolas deve ser o objetivo da parceria entre essas
instituições (MARTINS, 2006).

No Brasil, onde pesquisas têm apontado que, na grande maioria das vezes, é
somente por meio da escola que crianças e jovens das classes econômicas menos favorecidas
têm a possibilidade de visitarem as instituições culturais (CAZELLI, 2005), essa parceria se
torna indispensável. Isto demonstra, no caso da escola, o quanto o seu papel se torna
importante na tarefa de permitir o acesso dos alunos ao patrimônio cultural e, no caso dos

1469
museus, essa informação aponta para a necessidade de proporcionar de forma qualitativa o
acesso aos bens culturais para uma maior parcela da população que não tem ou não teve
oportunidade durante sua educação formal.

Considerações Finais

Ao longo de sua história, os museus passaram por várias transformações


influenciadas pelas mudanças de paradigmas no pensamento científico e pelo contexto social
no qual estavam inseridos. No curso de todas estas etapas, a sua função educativa foi
evoluindo e atualmente estas instituições são reconhecidamente percebidas como importante
espaço de educação da sociedade, podendo contribuir de maneira rica no processo de
aculturação dos indivíduos, principalmente no que diz respeito à promoção da valorização,
reconhecimento e proteção ao patrimônio cultural. Isto ocorre pelo fato do museu poder
proporcionar uma interação planejada e sistemática, através de suas ações educativas, entre o
indivíduo e o bem cultural presente em seus acervos. Entretanto, para que este processo
ocorra de maneira satisfatória, uma parceria com a escola se faz necessária e até indispensável
para a consolidação da função educativa do museu para que este participe ativamente do
processo de educação no sentido de proporcionar o desenvolvimento integral do indivíduo.
Desse modo, museu e escola, dentro de suas especificidades, através de uma integração de
suas atividades educacionais podem e devem contribuir no processo de educação da sociedade
a fim de garantir o pleno desenvolvimento de todos os aspectos do ser humano e garantir a
oportunidade destes poderem usufruir do patrimônio cultural historicamente herdado e
reconhecê-los como sendo seus por direito.

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de Museus e Museologia/IPHAN. v. 1, n. 1,. Rio de Janeiro, 2004, p. 34-40.

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VIANNA, C. E. S. Evolução histórica do conceito de educação e os objetivos


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Disponível em: <http://publicacoes.fatea.br/index.php/janus/article/viewFile/41/44> Acesso
em 22/06/2016.

1472
REDE DE MUSEUS DELTA DO PARNAÍBA

Cassia Moura*
Ana Rita Antunes**
Werlanne Magalhães***

Resumo: Apresentamos nesta comunicação Projeto Matriz, de natureza Pesquisa-Ação, idealizado e


coordenado pelo Programa de Pós-graduação em Artes, Patrimônio e Museologia (PPGAPM),
Mestrado Profissional, da Universidade Federal do Piauí (UFPI), Campus Ministro Reis Veloso com
sede na cidade de Parnaíba, em parceria com o Instituto Tartarugas do Delta (ITD) e o com o Serviço
Social do Comércio (SESC) Regional do Piauí, que, assim como a UFPI, atuam há muitos anos no
território do Delta do Parnaíba, a prestarem serviços às comunidades locais no que refere à educação
para conhecimento, reconhecimento e promoção da paisagem cultural da Área de Proteção Ambiental
Delta do Parnaíba.
Palavras-chave: Educação, Museu, Ecomuseu

Abstract: We present in this communication a Matrix Project, of a Research-Action nature, idealized


and coordinated by the Postgraduate Program in Arts, Heritage and Museology (PPGAPM),
Professional Master's Degree, Federal University of Piauí (UFPI), Campus Ministro Reis Veloso in the
city of Parnaíba, in partnership with the Delta Tartarugas Institute (ITD) and the Social Service of
Commerce (SESC) of Piauí, which, like the UFPI, have been active in the territory of the Parnaíba
Delta for many years. services to local communities with regard to education for knowledge,
recognition and promotion of the cultural landscape of the Parnaíba Delta Environmental Protection
Area.
Key-words: Education, Museum, Eco-museum

1473
A assinatura de um Termo de Cooperação Técnica entre esses agentes públicos e
privados permite a realização de projetos e ações sistemáticos por docentes e discentes do
Mestrado Profissional da UFPI e comunidades locais, o que inclui diretamente a Associação
de Moradores do Bairro Coqueiro da Praia, no município de Luís Correia.

Para o Projeto, adotamos o conceito de Rede de Museus, que se firma na existência de


equipamentos culturais autônomos, mas que somam esforços e otimizam recursos humanos e
materiais de forma a permitir organicidade e colaboração no planejamento e execução de
programas, projetos e ações. As redes favorecem a existência sistemática e qualificada dos
equipamentos culturais – neste caso os museus de território, cuja natureza é a participação das
comunidades locais e agentes públicos e privados, que formarão, no caso específico deste
Projeto Matriz “A REDE DE MUSEUS DELTA DO PARNAÍBA | MUDE”
O MUDE é concebido como um instrumento integral e integrador de comunidades
ribeirinhas, praieiras e deltaicas, que habitam a Área de Proteção Ambiental Delta do Parnaíba
(APA), bioma marinho costeiro, com 307.590,51 hectares, criada por decreto federal de
28.08.1996, coordenada pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
(ICMBio), CR5, cidade de Parnaíba, Piauí. Na APA Delta do Parnaíba estão inseridos os
municípios de Barroquinha e Chaval, no Estado do Ceará; Araioses, Água Doce, Tutóia e
Paulino Neves, no Maranhão; Cajueiro da Praia, Luís Correia, Parnaíba e Ilha Grande, no
Estado do Piauí.
Pela natureza do território de aplicação do Projeto, optamos pelo conceito de REDE e
de ECOMUSEU, por suas naturezas nos permitirem aplicar os sentidos e significados de
integração, colaboração, descentralização e aspecto polinuclear em uma Área de Proteção
Ambiental. Conceitos e tipologias que nos servem como alicerce de ações conjuntas e
sistemáticas entre agentes públicos e privados a serviço do desenvolvimento local, em
diversos setores: educacional, socioeconômico, cultural, ambiental; adotarmos os conceitos de
museologia e inovação social.

1474
A missão e vocação de um museu, nesse caso de um Ecomuseu, é desenvolver
programas, ações e projetos de preservação, salvaguarda, documentação, pesquisas, educação,
comunicação etc., da paisagem cultural, o que inclui os patrimônios cultural e natural de um
dado território, neste caso da APA Delta do Parnaíba, para conhecimento, reconhecimento e
valorização, promovendo a atribuição de sentidos e significados das histórias e memórias
pelas comunidades ribeirinhas, praieiras e deltaicas, com estímulo às reflexões sobre formas
de se garantir a sustentabilidade social, ambiental e econômica, com o envolvimento das
populações residentes na constituição de uma Rede de Museu, nomeadamente, Ecomuseu,
uma natureza de museu que necessariamente deve servir como instrumento de educação às
populações, para que possam vir a participar ativamente da gestão de seus patrimônios,
entenderem e valorizarem o espaço modificado cotidianamente pelas relações que
estabelecem com o meio ambiente.
Concordamos com Varine (2013) para quem a gestão dos patrimônios deve ser feita o
mais próxima dos criadores e detentores dos patrimônios, o que justifica a nossa opção pela
Museologia e Inovação Social, que valorizam as ações socioeducativas nos museus,
entendidos como espaços de educação não-formal, de ações culturais e de comunicação,
geradores de conhecimento, reconhecimento individual e coletivo, de valorização de culturas
e identidades, de estímulo à consciência crítica, afirmando olhares e reflexões que permitem
desconstruir os discursos oficiais, que negam as memórias de grupos minoritários e/ou
marginalizados.
O Conselho Internacional de Museus (ICOM) define museu como “[...] uma
instituição permanente sem fins lucrativos, ao serviço da sociedade e do seu desenvolvimento,
aberta ao público, que adquire, conserva, investiga, comunica e expõe o património material e
imaterial da humanidade e do seu meio envolvente com fins de educação, estudo e deleite”. O
conceito de Ecomuseu remonta aos anos 1960 e associa-se ao interesse de se refletir sobre
novos tipos de museus, concebidos em oposição ao modelo clássico e à posição central que
ocupavam as coleções naqueles museus; portanto os conceitos de Ecomuseus, museus de
sociedade, Centros de Cultura Científica e Técnica, de maneira geral, presentes na maior parte

1475
das novas proposições de museus visam colocar os patrimônios sob a gestão de agentes
públicos e privados locais, de forma a garantir o desenvolvimento sustentável.
Esse conceito de museu está atravessado pela relação entre o ser humano e sua
realidade, pela apreensão direta e sensível dos patrimônios, portanto, os objetos museais
devem permanecer em seus locais de origem, logo, os museus locais, de território, de
comunidades, ecomuseus e museus integral ou integrado, que tenham sob sua gestão coleções
do patrimônio cultural local devem representar uma tendência atual, qual seja: de participação
das comunidades nos processos de gestão.
Nesse sentido, é possível afirmar que o termo ´museu´ pode designar tanto uma
instituição localizada em uma edificação ou mesmo abrangendo um imenso território, lugares
que devem ter em suas concepções o interesse por realizar seleção, estudo e apresentação de
testemunhos materiais e imateriais do ser humano e seu ambiente de vida. A forma e as
funções de um museu variaram ao longo do tempo, desde a década de 1970, presenciamos
uma virada paradigmática nas funções dos museus, sobretudo no que refere às suas funções
sociais e relacionamentos com os públicos.
Os primeiros núcleos museológicos da Rede de Museus de Território são o Museu
Delta do Parnaíba (MUDE) e o Museu Tartarugas do Delta, que iniciarão os processos de
desenvolvimento e sustentabilidade ambiental e cultural, com a colaboração ativa das
comunidades e de agentes públicos e privados locais e regionais; com vocação e missão de
ampliar os trabalhos já desenvolvidos no território para a conservação e preservação da
biodiversidade e diversidade cultural encontrada na APA Delta do Parnaíba.
Uma Rede de Museus precisa de recursos humanos, um corpo técnico-científico
especializado para que cumpra a sua missão e vocação; um conjunto de profissionais a formar
outros profissionais para realização de pesquisas e boas práticas nas áreas de: ação educativa e
cultural; comunicação e públicos; gestão da informação: documentação e acervos etc.
Uma Rede dessa natureza define-se por um trabalho colaborativo e participativo dos
Núcleos Museológicos (Museus) para as funções básicas de equipamentos dessa natureza,
com funções de coleta, conservação, formação de coleções, pesquisa-científica, culturais-

1476
educacionais etc., nas quais a preservação e salvaguarda dos patrimônios se efetivem e
garantam a integridade física e informacional dos patrimônios integrados, frutos de uma
interação ser humano-território.
O Museu-sede – MUDE e o Ecomuseu Tartarugas do Delta (um dos Núcleos)
desenvolverão atividades associadas à um desenvolvimento sustentável, que garanta a
harmonia da paisagem cultural do Delta do Parnaíba, no contexto da Área de Proteção
Ambiental, com a colaboração ativa e sistemática das comunidades e de agentes públicos e
privados locais e regionais. Esses equipamentos têm como vocação ampliar os trabalhos já
desenvolvidos no território pelo SESC, ITD, Universidade Federal do Piauí (por meio do
PPGAPM) e a Associação de Moradores do Bairro Coqueiro da Praia (Município de Luís
Correia), na conservação, preservação, salvaguarda da biodiversidade e diversidade cultural.
A Rede de Museus de Território envolverá as comunidades residentes nos processos museais,
sobretudo, aquelas comunidades inseridas nos municípios que integram encontrada na APA
Delta do Parnaíba.
Como parte dos serviços de Educação a Ação Cultural, a Rede fará uso, dentre outras
ferramentas, de campanhas de educação ambiental e patrimônio cultural, de forma a envolver
públicos diversos, dentre eles o escolar e não escolar, associações de moradores, pescadores
etc. Portanto, a missão e vocação da Rede é desenvolver ações de registro, salvaguarda e
comunicação de acervos do patrimônio natural e cultural do território, para o conhecimento,
salvaguarda e valorização, de forma a registrar o trabalho de histórias e memórias de
comunidade ribeirinhas, praieiras e deltaicas, com estímulo às reflexões sobre a importância
dos patrimônios cultural e natural, de ações a serviço da sustentabilidade social, ambiental e
econômica, com o envolvimento das populações residentes nas ações museais e de
preservação e salvaguarda dos patrimônios.
A Rede deverá ser formada por equipamentos que visam instruir e incentivar as
populações a participarem da gestão dos seus próprios patrimônios, a entenderem e
valorizarem os espaços modificados cotidianamente por suas vivências que determinam
relações como o meio ambiente.

1477
O MUDE, na condição de Rede, adota o conceito de polinuclear, no qual cada Núcleo
(Museu) estará vocacionado para um trabalho colaborativo de reunir, conservar, investigar e
divulgar a rica e complexa paisagem cultural do Delta do Rio Parnaíba, o único a desaguar em
mar aberto das Américas, região de fronteira entre os Estados do Piauí e Maranhão.

Referências

PINHEIRO, Áurea da Paz. Patrimônio cultural e museus: por uma educação dos sentidos.
Educ. rev. [on-line]. 2015, n.58, p.55-67. ISSN 0104-4060. http://dx.doi.org/10.1590/0104-
4060.44084. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S0104-
40602015000400055&lng=pt&nrm=isso. Acesso em 30 ago. 2017.

1478
PRODUÇÃO CIENTÍFICA NA MUSEOLOGIA DA UFPA: MAPEAMENTO DOS
TEMAS DOS TCC’S DE 2013 A 2016

Carla Vitctória Lobo*


Hugo Menezes Neto*
*Universidade Federal do Pará

Resumo: O presente trabalho, baseado na relação interdisciplinar entre museologia e cienciometria,


tem por papel trazer dados e reflexões sobre o mapeamento realizado na produção científica da
museologia na UFPA (Universidade Federal do Pará) através da analise dos TCC’s dentre os anos de
2013 a 2016. O ponto de partida para a realização deste surgiu da ideia inicial de divulgar o que estava
sendo produzido no estado paraense de conhecimento científico em relação à Museologia para o resto
do país, para estudiosos e para interessados. Além da possibilidade de trazer conhecimento para a
formação e para as áreas de atuação disponíveis para os museólogos no Pará e consequentemente no
Brasil. Estipulando discussões e diálogos sobre a importância deste conhecimento.
Palavras-chave: Museologia; Ensino; Pesquisa; Cienciometria

Abstract: The present work, based on the interdisciplinary relationship between museology
and scientometry, has the role of bringing data and reflections about the mapping carried out
in the scientific production of museology at UFPA (Federal University of Pará) through the
analysis of the TCCs from the years 2013 to 2016. The starting point for the realization of this
came from the initial idea of disseminating what was being produced in the Paraense state of
scientific knowledge in relation to Museology to the rest of the country, to scholars and
interested. Besides the possibility of bringing knowledge to the formation and to the areas of
performance available to the museologists in Pará and consequently in Brazil. Stipulating
discussions and dialogues on the importance of this knowledge.
Key-words : Museology; Teaching; Search; Scientometry.

1479
Introdução

Os primeiros debates sobre museus no Brasil teve início com a criação do Museu
Histórico Nacional (MHN) pelo decreto nº 15.596, instituição que promoveu o primeiro curso
de museus em 1932 (TANUS, 2013). A partir desse momento, cursos que visavam o ensino
da museologia ampliaram-se, alcançando e estabelecendo-se em universidades de todo País.
Dentre os cursos de graduação em museologia existentes, o da UFPA, no estado do Pará,
destaca-se por ser o único na região Norte7, tendo por base as especificidades locais como
matéria-prima e ponto de partida para a produção de conhecimento museológico diverso a
estabelecer, assim, grande importância para a produção de conhecimento científico em
museologia na universidade.

Objetivos

A proposta tem por objetivo realizar o levantamento dos principais macrotemas


presentes nos Trabalhos de Conclusão de Curso dos alunos de Museologia da Universidade
Federal do Pará (UFPA) dentre os anos de 2013 a 2016(respectivamente as turmas formadas
nos anos de 2009, 2010, 2011 e 2012) com o intuito de analisar (e como desdobramento
divulgar) a produção discente dessa Instituição (tendo em vista sua importância). E, por
consequente, discuti o significado e importância de cada macrotema propondo pensamentos e
diálogos sobre a valorização e exploração dessas temáticas na formação dos museólogos e em
discussões referentes à museologia em todo o país

Metodologia

Para alcançar o propósito deste trabalho ampara-se na metodologia da


8
cienciometria para o mapeamento da produção, levantamento bibliográfico sobre as principais

7
Lista dos estados e universidades que possuem o curso de museologia disponível em
http://cofem.org.br/?page_id=14.
8
Segundo Macias-chapula (1998: p.134) a cienciometria é um segmento da sociologia da ciência responsável por
estudar a ciência por métodos quantitativos aplicados as próprias atividades científicas incluindo a publicação,

1480
referências utilizadas em cada macrotema e conexão com estudos semelhantes em outras
regiões, além da produção de tabelas e gráficos feitas no Microsoft Office Excel para a
melhor dinamização e visualização do trabalho. Todos os TCC’s da Museologia da UFPA
estão disponibilizados na Sala de Pesquisa para os Alunos de Museologia (SPAM), local da
realização desse trabalho.

Resultados

Feito o mapeamento obteve-se 13 macrotemas definidos por: Conservação; Curadoria;


Documentação; Estudo de público; Museologia; Museologia e memória; Museologia e
arqueologia; Museologia e políticas; Mediação; Museologia e educação; Marketing em
museus; Patrimônio e Segurança museal (Gráfico 1).Assim também como o desenvolvimento
de cada um, respectivamente, no decorrer dos anos de 2013 a 2016 observado na tabela
abaixo.

Macrotemas Q.t. (A.2013) Q.t. (A.2014) Q.t. (A.2015) Q.t. (A.2016)


Conservação 2 6 1 1
Curadoria - 2 - -
Documentação - 2 1 4
Estudo de público 2 2 - 1
Museologia - 3 3 3
Museologia e memória 2 2 - -
Museologia e
arqueologia 2 1 - -
Museologia e políticas - - - 2

ou seja, é um estudo feito em cima da produção científica. Sua metodologia se baseia em analises de conjunto e
de correspondência (a técnica de análise exploratória de dados).

1481
Museologia e educação - 2 1 1
Mediação 1 1 - -
Marketing em museus - - 1 -
Patrimônio 1 4 - 3
Segurança museal - 1 - -

Tabela. Macrotemas e a sua presença nos trabalhos entre os anos de 2013 a 2016-Fonte:
Arquivo Pessoal.

Marketing em
museus; 2%; 2% museal; 2%; 2%

Série1; Série1; Conservação


Museologia e Série1;
Curadoria
Educação; 6%; 9%; 9% Conservação;
6% 0
Série1; Estudo de público
Museologia Série1;
; 4%; 4% Curadoria

Museologia e arqueologia

Série1;
Museologi Documentação;
Mediação
ae 13%; 13%
políticas; Museologia e Educação
4%; 4% Série1; Marketing em museus
Série1;
Estudo dePatrimônio
Museologia e
Série1; público;
arqueologia; 6%;
Museologia; 9%; 9% Segurança museal
6%
13%; 13%
Série1;
Museologia e
memória; 8%;

Gráfico 1.Macrotemas encontrados nos TCC’s de Museologia de 2013 a 2016-Fonte: Arquivo Pessoal.

1482
Feita análise em cima deste mapeamento, assim também como a análise de gráficos e
tabelas (decorrentes neste trabalho) foi possível perceber que alguns macrotemas são menos
explorados em relação aos outros. Não que estes outros que são mais frequentes não sejam
necessários, eles são fundamentais para o conhecimento museológico, principalmente se
levarmos para o contexto da região (haja vista que esses trabalhos abordam várias áreas), mas
estes que não são tão explorados, não são tão abordados quanto deveriam mediante,também, a
sua importância.Contudo,percebe-se que estes macrotemas tem ganhado espaço no decorrer
do curso,viabilizando uma valorização dos alunos em relação a estes.
Tendo em vista este panorama a importância destes macrotemas, a valorização deles
para a formação do museólogo (em que área estudar e seguir) e para diálogos museológicos
no país se faz extremamente interessante e inovador em vista dos conhecimentos e abordagens
que podem ser obtidos.

Considerações Finais

O curso de bacharelado em Museologia da UFPA, mediante a verificação do que está


sendo produzido através dos TCC’s de Museologia, e sua produção de conhecimento
científico voltada a museologia tem abordado diversas áreas aos quais os alunos,no
desenvolvimento do curso, tem cada vez mais buscado novos campos não tão abordados e até
aqueles que são mais frequentes voltados para a região.

E diante a essa diversificação, a divulgação desse conhecimento se faz essencial tanto


para o conhecimento como para discussões relacionadas ao que está sendo produzido e que
deve ser mostrados para alunos, pesquisadores e interessados aqui na região, quanto para o
resto do Brasil. Ainda há a necessidade de explorar os macrotemas menos acessados,
investigando-os e ampliando mais os seus campos. Contudo o curso tem se mostrado bastante
promissor e tem explorado mais esses campos.

1483
Referências bibliográficas

BITTENCOURT, Larissa Arianne Fantin; PAULA, Alessandro de. Análise cienciométrica


de produção científica em unidades de conservação federais do Brasil.
Goiânia:ENCICLOPÉDIA BIOSFERA, Centro Científico Conhecer, 2012; v.8, N.14; pg.
2045 e 2046.

MORAES, Julia Nolasco Leitão de. Ciência da Informação e Museologia – diálogos e


interfaces possíveis. São Paulo:IX ENANCIB- Diversidade cultural e políticas de
informação,2008.
MACIA-CHAPULA, Cezar A..O papel da informetria e da cienciometria e sua
perspectiva nacional e internacional.Brasília: maio/ago,1998 ; Ci. Inf., v. 27, n. 2, p. 134-
140.

NETO, HugoMenezes. A pesquisa acadêmica na Museologia do Pará: Notas sobre as


primeiras experiências de pesquisa dos discentes da UFPA. In:Anais do Sebramus.
BeloHorizonte, 2014.

TANUS, Gabrielle Francinne de S.C. A trajetória do ensino da Museologia no Brasil.


Brasília: Revista do programa em pós-graduação em ciência da informação da Universidade
de Brasília,MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE, 2013; v.2, nº3, maio/junho.

INTERNET

http://www.ica.ufpa.br/index. php?option=com_content&view=article&id=453
http://www.fav.ufpa.br/index.php/graduacao/museologia.
http://cofem.org.br/?page_id=14.

1484
ESPAÇO PASÁRGADA: UM MUSEU-CASA SEM “BANDEIRA”?

Maria de Lourdes Fernandes Campos de Oliveira*

Resumo: O Museu Casa Histórica ou Museu-Casa, entendido como um tipo de museu que pressupõe
a existência de uma tríade: edificação, coleção e um patrono; remete-nos a uma definição tradicional
desta tipologia museológica. A reflexão sobre os caminhos desejáveis na contemporaneidade para a
implementação de ações museológicas em Museus-Casas, alimenta a discussão proposta neste
trabalho. Para o desenvolvimento do tema, propõe-se a análise do Museu-casa Espaço Pasárgada,
localizado na cidade do Recife-PE. Os questionamentos levantados tendo esta instituição como
referencial, devem-se ao fato de que este Museu-casa possui um frágil e escasso acervo institucional.
Diante desta constatação, entende-se como necessária a viabilização da produção de conhecimento e o
desenvolvimento de um acervo operacional, que juntos poderiam fechar lacunas percebidas na
instituição e potencializariam as ações museológicas neste Museu-casa dedicado à memória do poeta
Manuel Bandeira. Assim, o Espaço Pasárgada enquanto um Museu-casa histórica deve se questionar
sobre como, institucionalmente, vem trabalhando o patrimônio cultural seja na obra e biografia de
Manuel Bandeira, enquanto espaço de memória, seja como um lugar simbólico na cidade e para o
imaginário coletivo objetificado na poesia produzida por seu patrono. Onde está Manuel Bandeira no
Espaço Pasárgada? E onde estamos nós, sujeitos do tempo presente, nesta instituição?

Palavras-chave: Museu-casa histórica; patrimônio; memória; ação museológica.

Abstract: The Historic House Museum, or Memory Museum, is understood as a type of museum
which entails the existence of a triad of building, collection and patron, and brings us a traditional
definition of this museological typology. The reflection on contemporaneous desirable pathways to
implement museological actions in memory museums fuels the discussion proposed in this study. To
develop the topic, this research suggests the analysis of the Memory Museum Espaço Pasárgada,
located in the city of Recife, Brazil. The issues brought up while using this institution as reference
concern the fact that this memory museum has a fragile and scarce institutional collection. Due to this
fact, the need for a viable knowledge production and the development of an operational collection is
made clear, as these elements could, together, fulfil gaps on the institution’s role and would strengthen
museological actions in this memory museum dedicated to the life of the poet Manuel Bandeira. Thus,
as a Historical House Museum, Espaço Pasárgada must examine, institutionally, how it has been
working with the cultural heritage of the work and biography of Manuel Bandeira, being it as a space
of memory or as a symbolic place in the city and in the collective imagination reflected on the poetry
created by its patron. Where is Manuel Bandeira at Espaço Pasárgada? And where are we, subjects of
present times, in this institution?

Key-words: Historic house museum; Heritage; Memory; Museological action.

1485
Introdução

O Museu Casa Histórica ou Museu-Casa é entendido tradicionalmente como um tipo


de museu onde se pressupõe a existência de uma tríade: edificação, coleção e um patrono. No
entanto, é necessária a reflexão sobre os caminhos desejáveis na contemporaneidade para a
implementação de ações museológicas em Museus-Casas; de forma que essas instituições não
se tornem reféns do seu espaço (casa histórica), de suas coleções (objetos) e de seu
proprietário (patrono). Tal premissa alimenta o debate proposto neste trabalho,
compreendendo que estes museus podem e devem contribuir para o fortalecimento das
discussões sobre bens culturais e patrimônio em seus contextos socioculturais atuais.
Para o desenvolvimento do tema, propõe-se a análise do Museu-casa Espaço
Pasárgada, localizado no sobrado de número 263, na Rua da União, no bairro da Boa Vista,
Recife-PE; onde o poeta Manuel Bandeira viveu por um curto período de sua infância (dos 06
aos 10 anos de idade). O edifício em estilo neoclássico, datado de 1825, foi tombado em 1983
pela Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (FUNDARPE) e, na
ocasião da comemoração do centenário de nascimento de Manuel Bandeira, em 19 de abril de
1986, criou-se no mesmo local o Espaço Pasárgada.
O Espaço Pasárgada é um dos equipamentos culturais vinculados à referida
FUNDARPE e, apesar de não se auto apresentar como museu, está cadastrado nacionalmente
pelo Instituto Brasileiro de Museus - IBRAM como uma instituição museológica, de natureza
administrativa pública-estadual.
Os questionamentos apresentados tendo esta instituição como referencial, devem-se ao
fato de que este Museu-casa possui um frágil e escasso acervo institucional que tange à sua
autenticidade e seleção. Sobre o que se está chamando de acervo institucional, conforme
sublinhado por Maria Célia Santos (1998, p.24), ele “está lá no espaço da exposição e em sua
reserva técnica”. No entanto, é em relação às ausências percebidas nesse acervo que são
identificadas as dificuldades vivenciadas pelos agentes envolvidos nas atividades do museu,

1486
que aqui se supõe que poderiam ser vencidas com o foco em uma tipologia de acervo, que a
autora identifica como acervo operacional. “Como acervo operacional, podemos trabalhar
com o jardim que está ao redor, o bairro no qual o Museu está inserido, a vida que está
palpitando ao redor do Museu...” (SANTOS, 1998, p.24). Essa tipologia de acervo ainda
enfrenta algumas resistências em ser incorporada e transformada em objeto de trabalho pelas
instituições denominadas tradicionais, principalmente por museus-casas históricas, porém, a
autora complementa ainda “que essa não é uma caracterização de acervo, específica a um
museu comunitário; qualquer museu pode trabalhar com um acervo institucional e com um
acervo operacional.” (SANTOS, 1998, p.24).
Diante desta constatação, tem-se a percepção de que seria fundamental para o Espaço
Pasárgada transformar a sua realidade, por meio de uma atuação conjunta desses dois tipos de
acervos; de modo a favorecer a supressão das lacunas identificadas na forma com que
instituição vem lidando com as suas ativividades-fins de museu-casa e ainda potencializando
as ações museológicas que hoje deixam de ser realizadas na instituição que é dedicada à
memória do poeta Manuel Bandeira.

Metodologia

O caminho escolhido para a abordagem do tema proposto considerou a necessidade de


se trabalhar o conceito de patrimônio (diante da patrimonialização de edificações para abrigar
instituições que se dediquem a memória de personagens históricos) e musealia;
compreendendo ser a ausência do objeto de museu, no caso do Espaço Pasárgada, o problema
de pesquisa a ser trabalhado neste estudo.
Como tentativa de contribuir e responder questões referentes ao problema levantado
no desenvolvimento desse trabalho, mais especificamente em relação ao acervo institucional
do museu-casa analisado, utilizou-se o conceito de acervo operacional, na tentativa de testar a
sua aplicabilidade nesta tipologia de instituição, visando transformar a realidade da mesma.

1487
Resultados e Discussões

O Espaço Pasárgada está distribuído em dois pavimentos, interligados por meio de


uma antiga escadaria em madeira. No interior da casa, no pavimento térreo, estão dispostos o
Salão de acolhimento de estudantes e uma área de circulação onde estão expostos painéis
contendo trechos de poemas de Manuel Bandeira. Na parte posterior do sobrado, estão
localizados uma pequena gráfica, uma copa e o jardim. No primeiro pavimento, tem-se os
seguintes espaços: Sala com exposição de acervo da instituição (títulos, cartas escritas pelo
poeta e documentos diversos); Biblioteca Waldemar Lopes de literatura pernambucana (1,5
mil exemplares de escritores como João Cabral de Melo Neto, Mauro Mota, Waldemar Lopes
e do próprio Manuel Bandeira); Salão utilizado para a realização de reuniões e eventos; Área
administrativa e serviços de apoio.
O acervo institucional do Espaço Pasárgada corresponde aos itens em exposição no
espaço dedicado a Manuel Bandeira, que estão localizados na supracitada Sala com exposição
de acervo da instituição, conforme a imagem abaixo.

Foto01: Sala com exposição do acervo institucional. Fonte: Autora.

1488
Não estão incluídos na coleção do Espaço Pasárgada, objetos originais pertencentes ao
poeta ou aos seus avós maternos, tais como: mobiliário, quadros, livros ou outros objetos e
vestígios materiais, que geralmente são percebidos nos Museus-Casa. Tal fato contribui para
que a gestão do museu passe a enaltecer o viés institucional que se predispõe à linguagem da
literatura, abraçando pautas diversas desse segmento. Assim, a atividade museológica no
Espaço Pasárgada tem dado lugar às atividades que se dedicam à literatura, como saraus e
lançamento de publicações.
Comprova-se, assim, a permanência de um fetiche pelas musealia, ou seja, da
necessidade da posse de objetos de museu como propulsores de ações museológicas, pois
ainda se entende que:
o museu dá testemunho dos vestígios deixados por outras coleções –
precedentes ou recorrentes - , por outras encenações ou por outras
apropriações, privadas ou públicas, nas quais os objetos ressoavam de uma
forma diferente: é a partir dessa distância que se constrói ideologias do
objeto. (POULOT, 2013, p.131).

Dessa forma, tanto a gestão do museu quanto o seu público deixam de experimentar e
reformular suas memórias em torno do patrimônio cultural em sua materialidade e
imaterialidade, bem como não são persuadidos a revisitar Manuel Bandeira na história, à
refletir sobre como o patrono pensava o patrimônio em seu tempo ou ainda sobre quais
relações podemos estabelecer entre a sua obra e a contemporaneidade.
A partir da identificação de um acervo institucional que tem inviabilizado a realização
da preservação, documentação e comunicação do patrimônio (casa e patrono); e considerando
a prerrogativa do desenvolvimento de um acervo operacional que venha a permitir a criação e
o desenvolvimento de processos museológicos, que resultem em uma atitude questionadora
diante das ausências percebidas no Espaço Pasárgada, entende-se que:

Um “objeto de museu” é uma coisa musealizada, sendo “coisa” definida


como qualquer tipo de realidade em geral. A expressão “objeto de museu”
quase poderia passar por pleonasmo, na medida em que o museu é não

1489
apenas um local destinado a abrigar objetos, mas também um local cuja
função principal é a de transformar as coisas em objetos. (DESVALLÉES,
2013, p.68)

A demanda por uma inclusão de acervo operacional evidencia que o Espaço Pasárgada
existiu antes que o Processo Museológico pudesse ocorrer, ou seja, antes que fossem
elaborados signos para além das suas obras literárias, que sejam reconhecíveis como bens
culturais associados à memória do poeta (que memórias e que bens culturais estabelecem
relação entre sujeitos e Manuel Bandeira?).
Uma outra lacuna identificada na instituição é referente à ausência de uma narrativa
sobre o edifício histórico, que na verdade se configura como o próprio bem patrimonializado e
incorporado oficialmente à memória do escritor. Essa articulação entre edifício e a biografia
de seu patrono poderia estar demarcada, por exemplo, através da inserção de fotografias
antigas, desenhos e plantas baixas do sobrado (com o mapeamento dos seus espaços de uso e
os seus correlatos simbólicos), projeção de vídeos com representações do Recife e do
contexto urbano situados na obra do poeta que, mesmo de longe da cidade, mantinha-o vivo
em suas memórias.
Como resultados da análise apresentada, mais que certezas, surgem questionamentos
que só poderiam ser elucidados após uma experimentação dos conceitos trazidos para essa
discussão. Assim, o Espaço Pasárgada enquanto um Museu-casa histórica deve se questionar
sobre como vem trabalhando o patrimônio cultural seja na obra e biografia de Manuel
Bandeira, enquanto espaço de memória, seja como um lugar simbólico na cidade e para o
imaginário coletivo objetificado na poesia produzida por Bandeira. Onde está Manuel
Bandeira no Espaço Pasárgada? E onde estamos nós, sujeitos do tempo presente, nesta
instituição?

1490
Considerações finais

O Espaço Pasárgada tem se configurado como um centro de vivência e produção


literária, realizando ações de fomento à literatura, distanciando-se das ações museológicas
características de um Museu-casa, bem como percorrendo um caminho inverso do que
apontam as ações museológicas contemporâneas, mais voltadas à produção de conhecimento.
Assim, percebe-se que o Espaço Pasárgada não possuindo um acervo mais
representativo da vida e obra do poeta Manuel Bandeira (acervo institucional), encontra
dificuldades em transformar a realidade imposta por condicionantes políticas (aquisição e
salvaguarda de acervo); perdendo a oportunidade de produzir suas próprias narrativas por
meio de um acervo operacional, como o resultado de ações museológicas (pesquisa,
documentação, exposições, produção de vídeos, etc) capazes de questionar a própria ausência
de Bandeira na instituição.

Referências bibliográficas
DESVALLÉES, André; MAIRESSE, François. Conceitos-chave de Museologia. Tradução:
Bruno Brulon Soares, Marília Xavier Cury. ICOM: São Paulo, 2013. Disponível em:
<http://icom.museum/fileadmin/user_upload/pdf/Key_Concepts_of_Museology/Conceitos-
ChavedeMuseologia_pt.pdf>. Acesso em: abr. 2015.

POULOT, Dominique. Museu e Museologia. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

SANTOS, Maria Célia Teixeira Moura. Museu-Casa: Comunicação e Educação. In: Anais
do II Seminário sobre Museus-Casas: Comunicação e educação. Rio de Janeiro: Fundação
Casa de Rui Barbosa, 1998, p.15-40.

1491
MUSEU PARQUE SERINGAL E A SALVAGUARDA DO PATRIMÔNIO
IMATERIAL
Mailane Maíra Messias Sampaio*
Débora Cristiane Blois Nascimento**

Resumo: Este artigo apresenta um estudo de caso sobre o Museu Parque Seringal, analisando a
legislação deste e a importância da preservação do patrimônio cultural imaterial na sociedade
contemporânea assim como dos saberes que contribuem para a formação das gerações futuras. Nossa
investigação embasa-se na contribuição de autores que discorrem sobre esses assuntos como Antônio
Augusto Arantes (2001), quando trata da dinâmica cultural e política que abrange o patrimônio
imaterial; Maria Cecília Londres Fonseca (2003) ao refletir sobre a diversidade que tange a produção
cultural brasileira, sobretudo a do passado; Ulpiano T. Bezerra de Meneses (1993), ao fomentar a
problemática da identidade cultural nos museus; dentre outros. Apoiada em sua interdisciplinaridade a
Museologia discute sobre essas questões de forma reflexiva contribuindo para a criação de novas
concepções acerca do patrimônio imaterial e de sua salvaguarda.
Palavras-chave: Museu Seringal; Patrimônio Ambiental; Patrimônio Cultural Imaterial.

Abstract: This article presents a case study about the Seringal Park Museum, analyzing his legislation
and the importance of the preservation of intangible cultural heritage in contemporary society as well
the knowledge that contribute to the formation of future generations. Our research is based on the
contribution of authors who discuss such subjects as Antônio Augusto Arantes (2001), when it
addresses the cultural and political dynamics that encompasses intangible heritage; Maria Cecilia
Londres Fonseca (2003) when reflecting on the diversity that affects the Brazilian cultural production,
especially that of the past; Ulpiano T. Bezerra de Meneses (1993), by fostering the issue of cultural
identity in museums; among others. Based on its interdisciplinarity, Museology discusses these issues
in a reflexive way, contributing to the creation of new conceptions about intangible heritage and its
safeguard.
Key-words: Seringal Museum; Environmental Patrimony; Intangible Cultural Heritage.

1492
Introdução
Ao analisar o Museu Seringal, o primeiro museu de Ananindeua, e sua contribuição
para a salvaguarda do patrimônio imaterial em território amazônico descobrimos sua
importância em ações centradas para a comunidade. O museu tem por objetivo preservar o
patrimônio histórico e cultural do ciclo da borracha na Amazônia através da divulgação dos
saberes e de visitas monitoradas para escolas e usuários em geral. Desde sua inauguração em
04 de abril de 2012 o parque, no qual está inserido o museu, abriga espaços de lazer para os
visitantes com trilhas para caminhada por entre as seringueiras, equipamentos para a prática
de atividades físicas ao ar livre, praça de alimentação, anfiteatro, viveiro, dentre outros. Sua
investigação acerca da cultura do seringueiro e seus modos de extrair o látex para a fabricação
da borracha são ensinados no Museu do Seringueiro, na Casa do Seringueiro, na Casa do
aviamento e na Casa do Senhor da Borracha, essas exposições são abertas ao público e
voltadas para a comunidade contribuindo assim para a preservação da memória na maneira de
contar e de manter a identidade cultural do município o que faz desse museu um cumpridor do
seu papel social. Para Ulpiano Meneses (1993) a construção dessa identidade cultural deve
estar vinculada obrigatoriamente a uma postura crítica dos museus:

“Cabe aos museus criar condições para conhecimento e entendimento do que


seja identidade, de como, por que e para que ela se compartimenta e suas
compartimentações se articulam e confrontam, quais os mecanismos e
direções das mudanças e de que maneira todos esses fenômenos se
expressam por intermédio das coisas materiais” (MENESES, 1993, Pg. 214)

1493
Figura 1: Entrada do Museu Parque Seringal Figura 2: Interior do Memorial do Seringal
Fonte: Adrielson Furtado Fonte: Gabriele Martins

Objetivos

O objetivo desse artigo é investigar como os saberes do patrimônio imaterial são


difundidos dentro da comunidade, a importância do Museu Parque Seringal na construção da
identidade cultural no município de Ananindeua/PA e como a participação dos visitantes
fomenta a salvaguarda desse patrimônio.

Metodologia

Os métodos de pesquisa estão centrados na coleta de dados de ambientes em rede e na


legislação acerca do Museu Parque Seringal. A metodologia é aplicada no que tange a análise
entre a relação da execução das leis que regem as questões de patrimônio imaterial em
conjunto com a opinião dos visitantes que se tornam ao mesmo tempo produtores e receptores
na construção dos saberes imateriais. Essa interação de sujeitos de caráter individual e
coletivo contribuem para a interdisciplinaridade que abrange a Museologia, as ciências
sociais, a psicologia social e a antropologia na forma de se pensar o museu na
contemporaneidade.

1494
Resultados

Diante dos novos desafios em salvaguardar o patrimônio intangível, difundindo os


saberes para a comunidade e assim construindo coletivamente a sua identidade cultural, foi
criado através da Lei de nº 2.560, de 29 de março de 2012, sendo gerido pela Secretaria de
Meio Ambiente de Ananindeua, a Área de Interesse Ecológico (ARIE) denominada “Museu
Parque Seringal” que constitui um instrumento de fomento para além da pedra e cal, sua
abrangência suscita o testemunho da construção social paraense do início do século XIX. O
ciclo da borracha, como ficou conhecido o período de prosperidade econômica e social do
Pará daquele momento, ultrapassa as ricas construções aos moldes europeus e é representado
pelos elementos que o desenvolveu: a floresta e o seringueiro. Sendo ele um dentre os
diversos sujeitos sociais que ajudaram na construção dessa memória coletiva, homem
ribeirinho, que através de sua mão de obra e do conhecimento sobre a mata pode contribuir
para o desenvolvimento social do estado. No Museu Seringal a vida do seringalista, e seu
modo de fazer que abrange desde a extração do látex da seringueira até o modo de produção
da borracha é repassado para a comunidade por meio de visitas guiadas no Memorial do
Seringal e no Tapiri. Levando em conta que o patrimônio ambiental “adquire dimensões
sociais, cujo significado aponta a materialização dos sentidos atribuídos no decorrer do
processo histórico” (PELEGRINI, 2006, p.119), vê-se a relevância que o “espaço florestal”
tem ali, contribuindo com a narrativa do museu no seu complexo expositivo e na
contextualização, que, por sua vez, promove um lugar para a integração da comunidade
visando a salvaguarda através da educação informal e patrimonial, trazendo uma outra face
para a Belle Époque; entretanto, o museu e o espaço a céu aberto são tratados de forma
distinta administrativamente, como relata a pesquisadora Daniela Nogueira (2017). Por
exemplo, há mediação apenas nas dependências do museu e não no resto do parque, podendo
este vir a ser um espaço mais bem explorado.

1495
A diversidade cultural brasileira para Maria Cecília Londres Fonseca (2003) “sofre
limitações, pois há mais de sessenta anos a noção de “preservação” só reforça a preferência
por políticas de patrimônio conservadoras e elitistas”, politicas essas que estariam longe de
abarcar os grupos de tradição não europeia, como é o caso do seringueiro, no entanto ainda
segundo a autora, essa problemática já é assunto de discussão na UNESCO sendo o próprio
Parque Museu Seringal um reflexo disso com o reconhecimento de formas mais variadas de
manifestações representativas. Diversos estados, cada um com suas particularidades, visam
reconhecimento do seu patrimônio intangível como elemento constitutivo de patrimônio da
humanidade. Não apenas esse reconhecimento como também investimento para a divulgação
e a salvaguarda dessa memória, através das normas de uso público da ARIE9, é afirmado o
compromisso com o fomento e a prioridade do espaço à atividades ligadas a preservação e uso
cultural. Antônio Augusto Arantes (2001) concorda em parte com essa política
preservacionista, para ele:

“A ação preservacionista no Brasil, enquanto política social, possui


um elemento de heroísmo que nunca é demais louvar. Em mais de 60
anos de história, o que ela produziu de mais relevante formou-se e tem
se desenvolvido na contramão da especulação imobiliária” [...]
(ARANTES, 2001, pag. 1)

No entanto para Arantes essas práticas devem ser ampliadas, ou nas palavras do autor,
“alargadas” para que assim pudesse ser abarcada a pluralidade étnica. Essa dinâmica cultural
que abrange: as danças, as festas, a música, os saberes tradicionais, dentre outros; para o autor
“revalorizam os sentidos de identidade”. Com relação à identidade traçamos um estudo de
público que mostra como a comunidade se relaciona com o Museu Seringal. No gráfico
abaixo (Fig. 3) temos as opiniões coletadas do Portal TripAdvisor no período de outubro de

9
BRASIL. PORTARIA Nº 017, DE 23 DE ABRIL DE 2012. Diário Oficial do Município de Ananindeua.
Ananindeua, 24 abr, 2012. P. 8.

1496
2013 a fevereiro de 2017, nesse recorte pudemos analisar as opiniões de 48 visitantes que
buscaram seu local de fala no ciberespaço.

Fig. 3: Gráfico sobre estudo de público do Museu Parque Seringal

Podemos perceber no gráfico que as opiniões positivas acerca do Museu Parque Seringal são
a grande maioria, os usuários relatam suas experiências durante a visitação e em especial
destacam o espaço do parquinho para as crianças, o restaurante e a tranquilidade encontrada
no Museu, além das exposições e concertos musicais; dentre as opiniões negativas estão a
questão da segurança e do abandono que para alguns usuários deve ser revista; o público que
se manifestou de forma híbrida aprova e desaprova algumas questões já citadas; e o público
neutro apenas contribui com informações sobre a localização do Parque, sem manifestar sua
opinião com relação a suas experiências.

1497
Para Andrade (2010) “Estes atores sociais ao praticarem o compartilhamento de uma
‘epistemologia comum’, contribuem para a pesquisa quotidiana e para uma rede de
conhecimentos em forma de ‘teia’ ”. Essa disseminação do conhecimento fomenta discussões
acerca do Museu Seringal e salvaguarda sua memória na rede mundial de computadores. Essa
investigação se faz necessária a partir da importância da preservação do patrimônio cultural
imaterial na contemporaneidade.

Conclusões

O Museu Parque Seringal abarca em seu perímetro um patrimônio multifacetado, mas que
consegue se conectar a partir do patrimônio imaterial (modo de fazer dos seringueiros); o
potencial do museu é explorado integralmente quando há o diálogo entre esses bens públicos.
Sendo um exemplar fruto das novas políticas patrimoniais, não volta seu olhar unicamente
para a excepcionalidade do objeto e para coleção, a ênfase do museu é a identidade e
educação voltadas à comunidade, sendo uma “boa prática” das teorias museológicas. A
maioria dos visitantes corrobora, como se pode constatar através da pesquisa de público
apresentada neste trabalho.

Referências bibliográficas
ANANINDEUA. LEI Nº 2.560, DE 29 DE MARÇO DE 2012. Acesso em:
<http://www.ananindeua.pa.gov.br/public/arquivos/legislacao/LEI_No._2.560_DE_29_DE_
MARCO_DE_2012..pdf>

ANANINDEUA. PORTARIA Nº 017, DE 23 DE ABRIL DE 2012. Acesso em:


<http://www.ananindeua.pa.gov.br/diario/public/diariopdf/2012_DIARIO_DE_ABRIL,_24.p
df>

ANDRADE, Pedro de (coordenador). Museus Públicos e Literacia Científico-tecnológica.


Redes de Comunicação de Significados no espaço interdimensional do museu. Lisboa: Extra-
Colecção, 2010.

ARANTES, Antônio Augusto. Patrimônio imaterial e referências culturais. In: Revista


Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, n. 147. p. 129-140, out./dez. 2001.

1498
FONSECA, Maria Cecília Londres. Para além da pedra e cal: por uma concepção ampla de
patrimônio cultural. In: ABREU, R; CHAGAS, M. (Orgs.). Memória e patrimônio. Ensaios
contemporâneos. Rio de Janeiro: Lamparina, 2009.

MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. A problemática da identidade cultural nos museus: de


objetivo (de ação) a objeto (de conhecimento). An. mus. paul., São Paulo, v. 1, n. 1, p. 207-
222, 1993.

NOGUEIRA, Daniela. Entrevista concedida a Mailane Sampaio. Pesquisa documental para


realização de monografia para conclusão do curso de Bacharelado em Museologia da
Universidade Federal do Pará a ser defendida em março de 2018. Belém, 2 ago. 2017.

PELEGRINI, Sandra. Cultura e natureza: os desafios das práticas preservacionistas na


esfera do patrimônio cultural e ambiental. In: Revista Brasileira de História. São Paulo, v.
26, nº 51, p. 115-140. 2006.

TRIPADVISOR. Museu Seringal. Disponível em:


https://www.tripadvisor.com.br/Attraction_Review-g1872547-d4375821-Reviews-
Seringal_Park_Museum-Ananindeua_State_of_Para.html Acesso em: Diversos, 2017.

1499
Museologia e
patrimônio em espaços
expandidos - Entre
cenas e narrativas: o
uso de novas
tecnologias na
comunicação museal

1500
A CONCEPÇÃO DE MUSEUS EM ESPAÇOS DIGITAIS: SOBRE AS
POSSIBILIDADES DE MUSEALIZAÇÃO ONLINE
Rita de Cassia Maia da Silva*
* Universidade Federal da Bahia

Resumo: Nosso trabalho apresenta algumas reflexões sobre o campo e as modificações da


museologia contemporânea no contexto da criação de um museu digital para a Associação
Cultural Bloco Carnavalesco Ilê Aiyê. Investigamos as possibilidades oferecidas pelas
tecnologias da informação e comunicação (TIC) para a democratização dos processos
museológicos através de alguns caminhos metodológicos encontrados para pensarmos a
concepção deste museu digital, considerando como ponto de partida a definição da instituição
museu como um sistema e o nosso fazer no trato com o objeto de estudo da museologia,
salientando a importância de levarmos em consideração estes aspectos no planejamento de
museus digitais. Por fim, elencamos alguns princípios que congregam a aplicação das TIC aos
processos de musealização, preocupações relativas ao desenvolvimento de ferramentas,
buscando soluções e orientações para as ações de documentação, conservação, exposição digital
e educação museal aplicadas aos processos de digitalização. Concluímos, identificando questões
que implicam no andamento deste trabalho e nas formas como as TIC são utilizadas em museus
como um reflexo das relações de poder na sociedade e apontamos a necessidade do
desenvolvimento de práticas neste campo que sejam efetivamente alimentadas pelas reflexões
teóricas da Museologia.
Palavras-chave: Cibermuseu, carnaval, museu comunitário, musealização
Abstract: Our work presents some reflections on the field and the modifications of the
contemporary museology in the context of the creation of a digital museum for the Cultural
Association Block Carnavalesco Ilê Aiyê. We investigate the possibilities offered by information
and communication technologies (ICT) for the democratization of the museological processes
through some methodological paths found to think about the design of this digital museum,
considering as a starting point the definition of the museum institution as a system and our
doing in dealing with the object of study of museology, stressing the importance of taking these
aspects into account in the planning of digital museums. Finally, we highlight some principles
that bring together the application of ICT to the processes of musealization, concerns regarding
the development of tools, searching for solutions and guidelines for the actions of
documentation, conservation, digital exhibition and museum education applied to the
digitization processes. We conclude by identifying issues that imply the progress of this work
and the ways in which ICT is used in museums as a reflection of power relations in society, and
we point out the need for the development of practices in this field that are effectively nurtured
by Museology 's theoretical reflections.

Key-words: cibermuseum; carnival; communitary museum; muzealization.

1501
As TIC para musealização: um mesmo objeto em novos suportes
As investigações da Museologia no âmbito da criação de museus digitais está se
consolidando como um campo em franco florescimento de saberes. Os avanços das Tecnologias
da Informação e Comunicação (TIC) e da cultura digital oferecem inúmeros recursos e impõem
um desafio que impulsiona instituições e comunidades de diversos tipos a projetarem suas ações
através de dispositivos e ferramentas digitais como forma de ocupação do ciberespaço.

No âmbito dos museus, pode-se facilmente observar os vários tipos de ações que
utilizam estas tecnologias: São páginas web de museus, mobiliário expositivos integrados com
tecnologia digital e inteligência artificial, realidade aumentada, bancos de dados via internet,
visitas virtuais 3D. No campo mais específico do nosso trabalho temos: exposições online,
cibermuseus, museus digitais, museus virtuais, museus on-line, etc. Por conta da explosão e
pouca definição de nomenclaturas optamos pela simplicidade e amplitude da denominação
museu digital, reconhecendo que o aspecto central do nosso trabalho serão os processos de
digitalização e comunicação online para a criação de um espaço interativo de museu que serão
acessíveis online. Para isso, assumimos o desafio de investigar e explorar as ferramentas digitais
para os processos de aquisição-recuperação, exposição, documentação, conservação da memória
da Associação Cultural Bloco Carnavalesco Ilê Aiyê, sediada na cidade de Salvador, no bairro
da Liberdade, na ladeira do Curuzú.

Nesta investigação somos estimulados pelas premissas de que o objeto de estudo


da museologia, assim como qualquer outro objeto de ciência se manifesta de forma
perene e também mutável, de acordo com o contexto de representação e o seu caráter
imanente (de coisa em si). A realidade (ou verdade) que é objeto da investigação
científica, não muda em sua natureza, mas apenas o seu contexto e a forma em que se dá
aos sentidos, enquanto uma representação que é veiculada através dos mais diversos
tipos de materialidade.

Incrivelmente, tanto as formas de pensar museu quanto o pensamento comum


sobre o fazer científico, permanecem ainda atrelados a mentalidade de uma
modernidade nascente, de significados e conceitos controlados e que incorrem no erro

1502
de pensar objetos de conhecimento que devem ser encaixados, forçosamente, em
métodos pré-constituídos em narrativas bem delineadas, ou melhor, redutoras das
possibilidades de manifestação e existência como também das camadas interpretativas
de realidade.

Acreditamos que os avanços das TIC contribuíram para que os museus e a


própria Museologia se desprendessem da materialidade e focalizassem suas ações nos
processos de representação. Desde a década de 60, no século XX, ocorre uma
insurreição contra as formas simbólicas hegemônicas socialmente, neste bojo inclui-se a
crise de identidade dos museus tradicionais. Este desenvolvimento das sensibilidades
pode também ser visto como um resultado da emersão do pensamento e atitudes jovens
da primeira geração pós - 2ª. Grande Guerra, incitando a percepção e respeito pelas
diferenças culturais, fragilizando as fronteiras de poder, fatores que foram gradualmente
acelerados pelos impactos dos avanços tecnológicos dos meios de comunicação de
massa. As principais consequências destes avanços seriam a quebra definitiva da
hegemonia do Estado, da família, da escola e de seus aparatos culturais de reprodução
cultural.

Passamos de uma época em que o mundo conhecido presencialmente restringia-


se ao contato imediato com os nossos pares, onde as informações de outros espaços e
territórios chegavam com uma certa defasagem de tempo, para um momento onde
ocorre um deslocamento daquilo que concebemos como “a nossa realidade” ou a nossa
presença no mundo iniciado de modo sutil com as emissões de rádio e telefone, ao
impacto das primeiras transmissões ao vivo via satélite e definitivamente rompida com
a autonomia de comunicação decorrente dos avanços da cultura digital. Esta nova forma
de realidade presencial amplia-se como uma onda que impacta definitivamente a forma
de pensar e fazer as coisas no mundo e configurou-se em uma força criativa na
atualização de sentido para todas as instituições.

1503
A fala social não é mais percebida como substância independente da instância
autorizada de origem, ou como uma verdade evidente, ela é multifacetada nos discursos
compostos através de diversas mídias, como uma realidade que abarca diversos
desdobramentos.

No entanto, é fato que o acesso a estas tecnologias também implica em questões


sobre as condições de possibilidade, controle e habilidade de acesso que agravam as
situações de precariedade que algumas populações ainda enfrentam e amplificam as
desigualdades advindas da falta de infraestrutura urbana, saneamento e educação
tornando mais extremas as situações de exclusão. A velocidade com que pessoas,
grupos e sociedades ampliam o acesso aos meios digitais ou adquirem a habilidade para
dominar estas tecnologias redefine os lugares na estrutura de poder e autoridade na
produção de conhecimento, envolvendo questões determinam o nosso destino e o
destino das sociedades.

Diante deste contexto, a estratégia utilizada para a concepção deste museu


digital toma como principal referencial teórico as ideias difundidas no bojo do Nova
Museologia1 pela sua preocupação com o potencial de transformação social dos museus.
Com a difusão das ideias empreendidas através da Carta da Mesa Redonda de Santiago
do Chile - ICOM (1972), pela articulação e criação do MINOM - ICOM2 - foram
afirmadas política e epistemologicamente as diretrizes de um fazer científico frente a
atores, grupos e instâncias mais conservadores da Museologia à época, - articulando a
produção de diversos autores com experiências inovadoras no campo da museologia.

1
Optamos por não estabelecer uma arqueologia do conhecimento museológico em relação aos
termos ou tendências da museologia. A saber: museologia social, nova museologia, sociomuseologia,
museologia contemporâneas, museologia pós-moderna, visto que implicaria em discussões
complexas que não cabem neste texto. Tomamos, de uma forma genérica estes termos como
determinando uma mesma tendência.
2
Movimento Internacional pela Nova Museologia.

1504
As consequências destas mudanças acarretaram o aperfeiçoamento de
parâmetros científicos para perceber os processos de musealização enquanto atividades
de intervenção na sociedade, readequando e atualizando as atividades específicas da
cadeia operatória do museu como aquisição, documentação conservação, exposição,
pesquisa e educação à realidade contemporânea.

O trato com as sensibilidades, com as formas de perceber e categorizar as coisas


do mundo é uma tarefa implícita nos processos de musealização. As formas de
preservação e construção de referenciais de memória e demarcação de territórios
metamorfoseiam-se continuamente em busca de eficácia comunicativa. Alinhadas com
este desdobramento as formas de museu assumem diversos estilos. As redes sociais, as
mídias locativas e as novas sociabilidades permeadas pelas TIC oferecem novos
desafios para pensarmos a intervenção social destas instituições.

Para pensar um museu digital: um olhar metodológico


O primeiro elemento a ser considerado para criação do Museu digital do Ilê Aiyê
foi o estabelecimento de um processo para a criação do seu plano museológico que,
segundo o estatuto de museus é:

[...] indispensável para a identificação da vocação da instituição


museológica para a definição, o ordenamento e a priorização
dos objetivos e das ações de cada uma de suas áreas de
funcionamento, [...] definirá sua missão básica e sua função
específica na sociedade e poderá contemplar os seguintes itens,
dentre outros: I – o diagnóstico participativo da instituição,
podendo ser realizado com o concurso de colaboradores
externos. (ESTATUTO DOS MUSEUS, 2009).

Partindo desta premissa consideramos o aspecto que a compreensão da


mentalidade e aspirações dos públicos interno e externo do museu torna-se um elemento
essencial. Em se tratando do delineamento de um público para museu digitais e
considerando a superação da ideia de público como um conjunto de receptores passivos

1505
e contemplativos, tendo em vista quer emerge a figura do público enquanto prosumer, o
usuário-protagonista. Para isso consideramos uma arquitetura informacional que
concentrasse seus esforços na produção de módulos digitais (espaços) “interativos”
como “setores do museu” seguindo uma forma de design: “Que permitiria que os
consumidores participassem do processo de produção e design para alinhar os produtos
às suas necessidades em um mercado extremamente saturado...”3(FOIS, 2015, p. 291) o
que seria característica prevista como uma decorrência dos avanços das TIC por

A concepção de espaços museológicos conflui cada vez mais para uma demanda
que não se alinha com ditames exclusivamente formalistas, tecnicistas e de imbuídos de
esteticismo autoritário ou movidos por uma lógica instrumental e controladora. Emerge
a supremacia do recurso às de políticas públicas e ferramentas de planejamento
organizacional amalgamadas com estratégias de design emocional e marketing afetivo,
associando a função material do objeto aos seus significados imateriais, nutrindo um
saber cultural de convergência que associa tecnologia, consumo e humanização.

Esta cultura de convergência ressalta a importância do aspecto colaborativo no


planejamento dos museus e no processo de constituição das categorias de representação
nele utilizadas. É fato que

Nenhum de nós pode saber tudo; cada um de nós sabe alguma coisa; e
podemos juntar as peças, se associarmos nossos recursos e unirmos
nossas habilidades. A inteligência coletiva pode ser vista como uma
fonte alternativa de poder midiático. Estamos aprendendo a usar esse
poder em nossas interações diárias dentro da cultura da convergência.
Neste momento, estamos usando esse poder coletivo principalmente
para fins recreativos, mas em breve estaremos aplicando essas
habilidades a propósitos mais “sérios” (JENKINS, 2015)
Na busca de um método qualitativo que ofereça recursos para a definição de
categorias, conceitos e teorias de caráter substantivo, ou seja, “representativa da

3 “thatwould allow the consumers to participate in the production and design process in order to
fine-tune products to their needs in an extremely saturated marketplace...”

1506
realidade dos sujeitos e situações estudadas” (MARTINS; THEOPHILO, 2009, p. 76) a
Grounded Theory (GT), oferece a base para que seja assumido um papel interpretativo
do museólogo diante dos atores e outros elementos implicados no fenômeno estudado.
Sendo “uma perspectiva teórica que possibilita a compreensão do modo como os
indivíduos interpretam os objetos e as outras pessoas com as quais interagem e como tal
processo de interpretação conduz o comportamento individual em situações específicas”
(CARVALHO; BORGES; REGO, 2010, p. 148). Assim, o nosso trabalho parte desde
observação e a interpretação das relações entre os envolvidos, à aplicação de métodos
quantitativos característicos das pesquisas de público aplicados presencialmente quanto
através de meio digital.

Os resultados obtidos estão sendo organizados em sintonia com pensamento que


Mario Chagas denominada como “imaginação museal”, colocando o museólogo como
elemento criador de uma narrativa organizadora, ou melhor, uma poética que projeta
laços de afetividade e sensibilidade entre os diversos públicos e o seu patrimônio.

A imaginação museal configura-se como a capacidade singular e


efetiva de determinados sujeitos articularem no espaço [...] a narrativa
poética das coisas. Essa capacidade imaginativa não implica a
eliminação da dimensão política dos museus, mas, ao contrário, pode
servir para iluminá-la. Essa capacidade imaginativa, - é importante
frisar – também não é privilégio de alguns, mas, para acionar o
dispositivo que a põe em movimento, é necessária uma aliança com as
musas, é preciso ter interesse na mediação entre mundos e tempos
diferentes, [...] esta imaginação não é prerrogativa sequer de um grupo
profissional, como o dos museólogos, ainda que sejam treinados para
o seu desenvolvimento. (CHAGAS, 2009, p. 58)
Ao estabelecer estas categorias de pensamento para o processo de musealização,
este autor direciona olhar do cientista para algumas preocupações que são centrais na
concepção de espaços museológicos, a saber: a dimensão do tempo, história ou
memória, a dimensão do poder, a dimensão da riqueza, a dimensão da estética, a
dimensão do saber ou conhecimento, e a dimensão lúdico educativa (CHAGAS, 2009)

1507
para que estas instituições ganhem uma forma que se alinhe com o mundo das trocas e
das experiências humanas.

Acreditamos que esta forma de pensar, fundamenta-se na poética como método


de conhecimento atrelado aos processos criativos. A imaginação museal advinda de
informações obtidas em uma dada realidade, coloca em foco o objeto de estudo da
Museologia, traduzido como:

[...] uma abordagem específica do homem frente à realidade cuja


expressão é o fato de que ele seleciona alguns objetos originais da
realidade, insere-o numa nova realidade para que sejam preservados, a
despeito do caráter mutável inerente a todo objeto e da sua inevitável
decadência, e faz uso deles de uma nova maneira, de acordo com suas
próprias necessidades (STRANSKY apud MENSCH, 1994, p.12).
Da observação deste fenômeno das possibilidades geradas pelo impulso humano
de preservar, exploramos as permeabilidades de saberes e fazeres entre a museologia e o
seu público. Neste campo de atuação integram-se elementos humanos e não-humanos
(tecnológicos), principalmente no que se refere aos processos de adaptação homem-
meio, homem-materialidade, onde a observação identifica as condutas e formas de
simbólicas relevantes para interação entre os componentes envolvidos no processo.

Do ponto de vista técnico, a análise dos processos de significação também


contribui para o melhor desenvolvimento do produto, pois obedecem aos princípios
adotados do ergodesign que:

Pode ser definido como um tipo de projeto baseado em pesquisas com


os usuários. Assim como a arquitetura de informação, o ergodesign é
um campo interdisciplinar intimamente ligado às interfaces de
sistemas tecnológicos. O que visam é tornar as interfaces fáceis e as
informações acessíveis. O objetivo é entender por que as pessoas
utilizam (ou não utilizam) os computadores, qual o grau de
dificuldade que possuem ou sua facilidade - desenhando produtos com
base na linguagem e no modelo mental do usuário. (AGNER, 2009)
A adoção do ergodesign responde constatação de que muitas propostas
interativas em dispositivos e websites de museus produzem uma impermeabilidade na

1508
troca de informações, com resultados semelhantes àqueles que são criados pelos museus
tradicionais. Segundo AGNER, (2009) a aplicação de recursos midiáticos e
tecnológicos sem considerar à lógica e o interesse dos usuários pode concorrer para
aquilo que ele denomina “arquitetura de desinformação”.

Desde o século passado já se chamava atenção para este perigo:

Se os museus não têm uma compreensão clara de seus


relacionamentos com as informações, a comunicação e seus públicos
eles não apenas perdem a oportunidade de efetivamente utilizar o
poder da tecnologia para ajudar a transformar essas relações, mas
correm o maior risco de perder a visão e o controle daquilo que eles se
acabam se tornando. (WORTS, MORRISSEY, 1998, p. 11)4
É para melhor compreender este aspecto, tornou-se fundamental a observação e
a vivência das condutas e dos valores que serão expressos público – usuário através dos
meios digitais nas redes sociais e na vida cotidiana na sede do bloco. Este trabalho de
aproximação leva em consideração a relação museu-patrimônio-território como tríade
que é também necessária para que sejam pensados os processos de musealização digital.

Assim, para o plano museológico em desenvolvimento, além dos diagnósticos


quantitativos, observamos e analisamos como os diversos sujeitos envolvidos interagem
entre si através de plataformas e dispositivos digitais: criamos a página do facebook
para o este museu digital e observamos outras páginas e mídias sociais tais como o
Whatsapp, Instagram. Com isso obtivemos dados que atestam não só as demandas
socioeconômicas do entorno, mas também as aspirações de sociabilidade e temas de
interesse destes prosumers a ser contemplada neste museu.

Mais do que levar em consideração que o museu é um sistema de atividades,


concentraremos esforços para o planejamento de ações que integre o público como
protagonista dos processos musealização pela via digital. Tudo se concentra em um
4
If museums don’t have a clear understanding of their relationships with information, communication, and their
public, they not only miss the opportunity to effectively utilize technology’s power to help transform these
relationships, but run the greater risk of losing sight and control of what they become. (WORTS,;MORRISSEY,1998, p. 11 )

1509
esforço para solucionar as demandas da museologia contemporânea com formato
inovador de museu digital. O desafio crucial deste trabalho é a construção de uma forma
poética de pensar que entrelace o conjunto de programas museológicos à natureza dos
espaços expandidos através das TIC.

Os processos de musealização em um museu digital


A cultura digital oferece-nos um novo vocabulário, novas formas de pensar e
conceber as relações entre as pessoas. Este tem sido um dos maiores desafios no
desenvolvimento deste projeto.

A tríade Museologia – TIC – patrimônio, implica em um esforço contínuo de


tradução entre aspectos museológicos, culturais e tecnológicos, demandando a aquisição
de conhecimento em três eixos temáticos, cada um com uma lógica diversa. Este
esforço constitui o exercício para pensar soluções para os três resultados mais
distintivos na concepção deste museu: a manutenção dos processos museológicos
caracterizando a instituição em meio digital; o público como compartícipe destes
processos e, por último e mais difícil, o desenvolvimento de interfaces que sejam
atraentes e amigáveis e favoreçam a interação em todos os níveis.

Acreditamos que ainda falta um considerável caminho a trilhar, mas já podemos


elencar algumas formas e soluções que já direcionam para o alcance dos objetivos
traçados.

Os processos de aquisição e documentação que estamos projetando para a


salvaguarda, tratamento e comunicação de acervo digitalizado, implica na produção e
gestão das informações ampliando a antiga concepção de documentação museológica do
simples registro dos objetos e acervos em coleções ao planejamento de um sistema
permeável a participação dos usuários, o que na verdade não difere em muito o
posicionamento do CIDOC-ICOM quando afirma que

1510
O museu deve avaliar as necessidades de seus usuários e [...] prestar
serviços adaptados a diferentes categorias de usuários, como
pesquisadores, professores e estudantes, aprendizes e público em
geral. Esses serviços devem incluir uma área de pesquisa onde os
visitantes podem consultar registros [...] que dão acesso a registros de
catálogo, imagens, informações contextuais e outros recursos.
(CIDOC-ICOM, 2012)5

Adotamos este princípio e vamos mais além, buscando soluções para que o
usuário contribua com novas aquisições de acervo para museu e com a interpretação do
mesmo. Assim, a aquisição será desenvolvida através de canais/ferramentas para
doação e/ou empréstimo por parte dos usuários, com protocolos e condutas
padronizando esta atividade. Sabemos que estas atividades implicam questões relativas
aos direitos autorais e de imagem permeiam que foram inspiradas nas preocupações
sobre garantia de procedência do acervo em museus presenciais. Do mesmo modo, as
condutas para o uso de dados e imagens do museu exigem uma nova forma de projetar o
nível de pertencimento e categorias (perfis) do público–usuário de modo a pensar,
conscientizar e permitir concessão e difusão de seus interesses e dos interesses
institucionais. Ainda neste aspecto, os levantamentos realizados identificaram o
potencial enriquecedor da folksonomia nos processos de registro de acervo, adequando
os elementos de indexação do acervo para a identificação do linguajar da comunidade
envolvida. As ações colaborativas nas práticas de registro podem transformar a
documentação museológica em uma experiência de autorepresentação ao fazer aparecer
através da linguagem as categorias de valoração vigentes no ambiente da comunidade.
Além disso, o uso das categorias utilizadas pelos usuários mostrou-se um recurso que
contribui para o enriquecimento do ambiente em que o acervo é gerado ou

5
The museum should evaluate the needs of its users and where appropriate provide services
tailored to different categories of user, such as researchers, teachers and students, learners and the
general public. These services should include a research area where visitors can consult paper
records and files, together with manual or online search facilities giving access to catalogue records,
images, contextual information and other resources. (CIDOC-ICOM, 2012)

1511
compartilhado. O tagging social tornou-se um modo lúdico e inovador para promover
curadoria compartilhada e demostrou este potencial (ver caso do Brooklin Museum6).

Em acréscimo, as ações curatoriais participativas na documentação museológica


favorecem a eficiência nos processos de comunicação museológica e um maior sucesso
nas ações de busca e investigação do público na base de dados do museu.

Percebemos, também, que no meio digital existe uma correlação muito mais
estreita entre os procedimentos de documentação, conservação e segurança. Pensar a
conservação em um museu digital, implica tanto na proteção à integridade das
informações, quanto na prevenção ataques ao sistema ou servidor. Sabemos que é
necessário estabelecer, tal como em um museu presencial, rotinas de manutenção da
qualidade dos equipamentos e sistemas, prevenindo a obsolescência tecnológica e nos
aprofundando sobre os processos de avaliação de segurança dos servidores e outros
recursos de salvaguarda de acervo demandam formação contínua.

Acreditamos que uma das ações fundamentais na criação deste museu será a
recuperação digital do acervo do Ilê Aiyê disperso e degradado. Para isso, é um
procedimento comum a opção por um formato de arquivo que seja adequado às
necessidades e realidade institucional, como também serão necessárias condutas para
digitalização e guarda de originais. Apesar da facilidade em ser produzido e
comunicado, os acervos digitais demandam cuidados específicos. Atualmente existe um
comitê do CIDOC – ICOM que estuda soluções para a preservação nos processos de
documentação e acervos digitais.7

6
Este projeto foi suspenso parcialmente pelo baixo número de acesso e participação do público, mas
se tornou uma interessante experiencia e ainda pode ser acessado. Ver
https://www.brooklynmuseum.org/community/blogosphere/2014/07/22/clear-choices-in-
tagging/
7
http://network.icom.museum/cidoc/arbetsgrupper/digitalt-bevarande/L/11/

1512
É interessante ressaltar que o bloco afro Ilê Aiyê, além do desfile carnavalesco,
possui uma escola fundamental em suas instalações e desenvolve atividades variadas
como festivais, festas, seminários e cursos, em um trabalho consolidado de
ressignificação e valorização da imagem do negro e da sua herança africana, atuando no
combate ao racismo de um modo que corresponderia aos processos de musealização (ou
folkmusealização8), na medida em que adquire, conserva, comunica e educa através do
seu patrimônio, transfigurando a história em memória cuja estratégia primordial é a
criação de “sistema estético” de significação (SHANKS;TILEY, 1992, p. 68 ) podendo
ser interpretada como uma forma de imaginação museal em todos os aspectos aqui
elencados.

Apesar de não ser ou ter um museu em sua sede, o Ilê Aiyê já desenvolve visitas
guiadas, cursos, exposições, palestras e festas. Levando em consideração este aspecto,
selecionamos buscamos projetar ações que correspondam a atuação do bloco e a
demanda do público transpondo-as para o meio digital, tais como visitações virtuais à
sede do bloco, transmissão online de eventos festivos e educativos. Explorando mais
ainda as possibilidades relativas ao design interativo/colaborativo serão oferecidos
modelos (templates) para que o público construa de exposições digitais a partir dos seus
perfis, utilizando e acrescentando imagens, sons e vídeos em experiências de curadoria
compartilhada.

Estas exposições associadas a ferramentas de conversação e registro de


comentários podem dinamizar as relações entre os usuários e estreitar laços, como
também, abrir possibilidades para criar espaços para jogos, fórum de notícias, concursos
educativos e cursos online. Estes recursos para a interrelação entre o público
mostraram-se fundamentais e funcionam tanto para trocas informacionais, quanto
comerciais e afetivas.
8
Aqui fazemos uma referência aos estudos de folkcomunicação. Um campo de estudos que analisa
as estratégias populares para uso e apropriação dos meios de comunicação de massa.

1513
O aspecto educativo que o público demanda também se mostrou prioritário, é
fundamental uma ferramenta para acesso à bibliografia já produzida pelo bloco
oferecendo fontes de informação e pesquisa sobre os temas de interesse dos usuários,
agregando aspectos relativos à documentação e educação. Além disso, foi detectada a
necessidade de ações educativas presenciais para o museu digital, com oficinas de
capacitação e inclusão digital para usuários e reuniões periódicas entre os gestores,
principalmente para os associados e diretores mais antigos, aqueles que mais tem a
compartilhar e em sua maioria possuem pouca familiaridade e pouco interesse em
relação a cultura digital.

Sabemos que o primeiro passo após o design e teste do aplicativo-museu (que já


obteve a sua primeira versão) será a criação de um regimento previsto no plano
museológico ainda em andamento. É fato que será necessária uma adequação da
imaginação criativa às limitações tecnológicas com o estabelecimento de normas de
conduta para a criação de acesso e perfis, parâmetros de moderação, que em última
instância refletem as relações internas de poder na comunidade. Sabemos da
necessidade premente para estabelecer parâmetros e ações de sustentabilidade fazendo
com que o marketing do museu digital seja um reflexo economia afetiva9 (JENKINS,
2015) superando os invasivos e já ultrapassados mailing lists, criando um sistema de
comunicação sutil e proativa considerando os princípios do ergodesign, para os quais a
informação deverá ser sempre acessada de modo voluntário e de acordo com o interesse
do usuário. Além disso, está previsto um processo contínuo de avaliação museológica
será suprido pelos indicadores da plataforma e na comunicação direta do público com os
administradores.

9
“Segundo a lógica da economia afetiva, o consumidor ideal é ativo, comprometido emocionalmente
e parte de uma rede social. Ver o anúncio ou comprar o produto já não basta; a empresa convida o
público para entrar na comunidade da marca. No entanto, se tais afiliações incentivam um consumo
mais ativo, essas mesmas comunidades podem também tornar-se protetoras da integridade das
marcas e, portanto, críticas das empresas que solicitam sua fidelidade”.

1514
Limites e horizontes
Acreditamos que os processos de musealização digitais tem, em última instância,
o objetivo de favorecer o desenvolvimento social. No entanto, vivenciamos o fato de
que a ampliação do território simbólico e dos valores relativos à um grupo humano, uma
comunidade pela via digital demanda um alto grau de especialização e
interdisciplinaridade

A atual expansão do acesso à internet através de múltiplos dispositivos também


contribui para a ubiquidade do museu, dos símbolos do bloco e de seus valores, como
também para tempo maior de permanência do usuário logado no museu, sendo este
fenômeno um dos capitais mais importantes nas redes sociais.

Do nosso diagnóstico inicial, observamos um forte interesse pela manutenção e


salvaguarda do acervo material e abertura da biblioteca física do bloco e uma resposta
imediata aos downloads da produção bibliográfica na versão beta.

Neste momento, a preocupação com a sustentabilidade relacionada as ações


museológicas a serem desenvolvidas é o que demanda nossa maior atenção que afetam
tanto o interesse público quanto a capacidade deste museu para a salvaguarda da
memória institucional.

A precariedade do estado de conservação e classificação do acervo físico e a


falta de condições para a sua gestão denunciam a necessidade de que se estabeleçam
estratégias para ações continuas de musealização, o que é necessário para que qualquer
tipo de museu, tanto presencial quanto digital.

Esta situação atesta que ainda existem muitas questões que este trabalho tem por
solucionar. A acessibilidade e a tecnologia inclusiva, em franco desenvolvimento ainda
demandam um investimento considerável, tanto intelectual quanto material.

1515
O fato é que este trabalho e a maioria das experiências autônomas no campo da
musealização arcam com as consequências de uma estrutura de poder engessada não só
no plano da posse e controle das narrativas, mas também na posse dos instrumentos e
aparatos materiais da tecnologia que denotam poder travestido de competência
administrativa e qualidade de produção; tanto socioeconômico, quanto político; em suas
várias esferas de reprodução de realidade.

Seguimos, apesar das dificuldades, acreditando que uma lógica descolonizadora


para os museus implica diretamente na difusão do conhecimento e no domínio dos
aparatos tecnológicos em suas formas de concepção e suportes para mediação.

Se as formas correspondem à conteúdos históricos sedimentados, pode-se inferir


que não há possibilidade de liberdade onde há precariedade nas condições de materiais
de existência. Apesar disso, seguimos ousando um salto acadêmico que ultrapasse a
“museologia do deve” para “a museologia do é..”.

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1518
A CRIAÇÃO DE MUSEUS ATRAVÉS DAS TIC ENQUANTO OBJETO DE
ESTUDO DA MUSEOLOGIA

Melissa Santos dos Santos*


*Programa de Pós Graduação de Museologia (PPGMUSEO - UFBA)

Rita de Cassia Maia da Silva**


**Universidade Federal da Bahia

Resumo: Este trabalho versa sobre a função dos museus no mundo contemporâneo tendo em
vista dois elementos fundamentais: os avanços das tecnologias da informação e comunicação e
o objeto de estudo da museologia. Apresentamos um panorama que demanda o cumprimento do
papel dos museus como agentes de transformação social e a necessidade de atrair e agregar o
público nas ações museológicas fazendo com que ele se identifique com a instituição e os seus
acervos. Nesta perspectiva e utilizando o exemplo da arte urbana, desenvolvemos uma breve
análise que ponta os processos de musealização e a sua relevância no bom aproveitamento dos
potenciais para a criações de museus no ciberespaço.

Palavras-chave: musealização; cibermuseu, internet; arte urbana.

Abstract: This work deals with the role of museums in the contemporary world in view of two
fundamental elements: the advances of information and communication technologies and the
object of study of museology. We present a panorama that demands the fulfillment of the role of
museums as agents of social transformation and the need to attract and aggregate the public in
museological actions, making it identify with the institution and its collections. In this
perspective and using the example of urban art, we have developed a brief analysis that
highlights musealization processes and their relevance to the good use of potential for museum
creations in cyberspace.

Key-words: musealization; cybermuseum, internet; urban art.

1519
O objetivo dos museus contemporâneos

Os museus como instituições que colaboram no processo educacional a partir


das suas concepções museológicas e de suas fontes de pesquisa, conquistam novos
espaços. Assim como a arte, que caminha junto ao seu tempo, buscando responder
questões pautadas no processo de construção da sociedade, o museu, como espaço
auxiliador no processo educacional, acompanha este desenvolvimento a partir dos
avanços tecnológicos, do pensamento humano e suas necessidades. Ainda que fechado
em quatro paredes, o museu tem a possibilidade de colaborar para a preservação da
memória coletiva.

Segundo a Lei nº 11.904, de 14 de janeiro de 2009 os museus são definidos


como,
[...] instituições sem fins lucrativos que conservam, investigam,
comunicam, interpretam e expõem, para fins de preservação, estudo,
pesquisa, educação, contemplação e turismo, conjuntos e coleções de
valor histórico, artístico, científico, técnico ou de qualquer outra
natureza cultural, abertas ao público, a serviço da sociedade e de seu
desenvolvimento (LEI nº 11.904).
A partir desta definição, é necessário que se compreenda as possibilidades que
este espaço possui, com a utilização de suportes tecnológicos. Ainda nos dias atuais, as
ações museológicas deixam a desejar em relação ao aproveitamento do uso das
tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) na execução dos seus processos.
Podemos perceber a pratica museológica, ainda se restringe à museologia presencial,
restringindo as suas ações de comunicação com o público apenas à exposição dos
objetos tridimensionais de suas coleções ladeados por textos e etiquetas pouco atraentes.

Acreditamos que seria uma responsabilidade dos profissionais traçarem metas


para atingir seu público através dos diversos meios oferecidos por estas tecnologias de
modo a favorecer interesse e aproximação com os valores por ele veiculados através da
sua coleção.

1520
Neste aspecto enfatizamos o objeto de estudo da museologia como um fazer que
integra o planejamento dos museus, os cuidados com as coleções, mais acima de tudo a
criação de condições para que ocorra e seja potencializado em intensidade, o fenômeno
humano do desejo de preservação das memórias ancoradas em objetos (materiais ou
imateriais) que se tornam referenciais de sua identidade (pessoal ou coletiva), valores e
projetos.

Este fato é apontado por Stransky quando define o objeto de estudo da


museologia como

[...] uma abordagem específica do homem frente à realidade cuja


expressão é o fato de que ele seleciona alguns objetos originais da
realidade, insere-o numa nova realidade para que sejam preservados, a
despeito do caráter mutável inerente a todo objeto e da sua inevitável
decadência, e faz uso deles de uma nova maneira, de acordo com suas
próprias necessidades (STRANSKY apud MENSCH, 1994, p.12).
Tendo isto em vista, a grande falha nas ações museais se dá justamente quando o
público não se vê representado nas coleções expostas. Sobre isso é necessária a
compreensão de que as necessidades deste público e do seu contexto sócio-econômico-
cultural são elementos fundamentais nas concepções dos processos museológicos e que
este mesmo público deve ser participante na construção das ações museais, tornando o
museu um espaço para o fluxo de ideias que se originam do contato com o patrimônio
musealizado e que terminam por atender as suas expectativas e necessidades.

Com o desenvolvimento tecnológico, a gestão de museus que por muito tempo


se concentrava às quatro paredes do seu espaço físico compreende a necessidade de ir
além destes limites assimilando e atualizando seus processos de acordo com a realidade
social contemporânea.

Um bom ponto de partida para esta perspectiva ocorre em 1972, na Mesa de


Santiago do Chile quando foram levantadas questões referentes ao caminhar
museológico e sua atuação como elemento de transformação social foram colocadas em

1521
pauta, ou seja, percebemos que o museu é espaço para utopia. Uma das considerações
da Mesa Redonda de Santiago do Chile (1972) é o fato de que o museu é uma
instituição a serviço da sociedade, da qual é parte integrante e que possui em si os
elementos que lhe permitem participar na formação da consciência das comunidades as
quais deve servir, contribuindo para o engajamento destas comunidades em
intervenções na realidade, situando-as em um quadro histórico que permita esclarecer os
problemas atuais, ligando o passado ao presente, contribuindo para as mudanças de
estrutura e de suas respectivas realidades. (MESA REDONDA DE SANTIAGO DO
CHILE, 1972, p.106)

O ponto fulcral da nossa argumentação se assenta na fala de que “[...]as técnicas


museográficas tradicionais devem ser modernizadas para estabelecer uma melhor
comunicação entre o objeto e o visitante” (MESA-REDONDA DE SANTIAGO DO
CHILE, 1972, p. 108), disto reconhecemos que trazer o novo, não significa excluir o
antigo, mas sim caminhar junto, construindo relações entre passado, presente e futuro,
como reforça o museólogo Mario Chagas (2008).

O surgimento de novos paradigmas não inviabiliza por inteiro o paradigma


anterior, apenas abre novas possibilidades e torna disponíveis novas (ou velhas)
ferramentas para o enfrentamento de novos (ou velhos) problemas. [...]. No caso dos
museus, essa compreensão é de grande importância, uma vez que eles e seus acervos,
mesmo quando organizados no paradigma clássico da museologia, podem ser sementes
capazes de, num determinando agora, explodir com o vigor próprio a uma narrativa que
esboroa a pretensão de construir muros separadores de tempos e espaço. (CHAGAS,
2008, p.114)

No entanto, a imagem mental mais difundida sobre o que vem a ser museu ainda
está estigmatizados, rotulando esta instituição como um “espaço para coisas antigas” ,
isto por que ainda são muitas são as instituições que se encontram em um fazer

1522
museológico conservador, cujas ações são feitas de modo unilateral e hierarquizado em
relação ao público e as comunidades. Existe obviamente uma demanda pela mudança
desta imagem. Maria Célia T. Moura Santos (1996) afirma que “[...] é importante
considerar que, na ânsia de buscar uma pratica mais participativa, comprometida com o
desenvolvimento social e com a transformação, é preciso evitar o perigo de usar a
comunidade como cobaia para simples coleta de informação e para a pesquisa que se
esgota em si mesma. ” (SANTOS, 1996, p.18).

Nesta formação encontram-se aspectos que englobam não só os processos de


aquisição de coleções, mas também a exclusão cognitiva total destes espaços. Isto quer
dizer que a construção de espaços institucionalizados, como museus, que dialoguem e
criem um sentimento de pertencimento das comunidades exige a compreensão de que,
na contemporaneidade, os relacionamentos são fluidos, porém, permeáveis, ou seja, é
necessária a interação e o reconhecimento de si nos processos de informação.

Mario Chagas aponta um caminho de conduta para os profissionais de museus


quando afirma que

Trabalhar em museus passou a significar também o interesse na vida


social e política das pessoas, das coleções, dos espaços e dos
patrimônios culturais e naturais – e, por essa vereda, um exercício
explicito de operar com relações de memória e poder por meio da
mediação de coisas concretas. ”(CHAGAS, 2008, p.121).
Neste sentido, se estas ideias já eram postuladas em um passado que hoje nos
auxilia a construção do presente, será necessário buscar estabelecer os processos de
estruturação de museus de modo a se adequar as TIC pelo modo como elas interferem
atualmente nos processos de socialização e também pela abertura para a inclusão que
elas oferecem nos espaços patrimonializados, tornando-se uma ferramenta auxiliadora
no processo de visibilidade dos sujeitos e suas necessidades.

Ainda hoje, compreendemos que, grupos periféricos ou marginalizados na


sociedade toraram-se objetos preferenciais para estudos na academia. Suas produções

1523
são utilizadas em um meio acadêmico, cuja maioria é composta por homens brancos. O
mesmo acontece em muitos espaços institucionalizados de valoração e reprodução
social, porém o conhecimento acumulado nos últimos anos sobre a teoria museológica
permite-nos vislumbrar o potencial dos museus para a mudança social

É através desta perspectiva que buscamos observar os modos como a internet


pode se tornar aliada no desenvolvimento destas práticas museológicas.
Compreendemos o ciberespaço dialoga com todo tipo de arte contemporânea,
principalmente àquelas que são tradicionalmente excluídas dos centros de difusão e
celebração das “Belas Artes” como os museus conservadores. Assim, a arte urbana e as
suas mais diversas vertentes artísticas pertencem a um grupo de produção cultural que
interfere e permeia o tecido social urbano no qual está inserido, ocorrendo muitas vezes
em tempo real, como no caso das performances, e para as quais a internet tornou-se um
recurso para as trocas de informações e sociabilidades no seu entorno.

O Ciber-espaço para a musealização


Novamente evocamos a fala de Mario Chagas (2008) quando afirma que “[...] os
museus são plurais [...] e podem ser tomados como ferramentas de trabalho e, portanto,
servir a interesses variados; [...] mesmo dentro de um único museu, há múltiplas linhas
de força em ação. ” (CHAGAS, 2008, p. 123) e advogamos, aqui as possibilidades de
uma união entre a arte urbana e os espaços museológicos, tendo a internet (Web) como
um canal para a difusão desta forma de arte e seus valores e construir, a partir do
processo de aquisição e difusão do seu acervo e suas atividades, mais um espaço para as
relações potenciais capazes de transformar as estruturas da realidade do tecido urbano.

Inicialmente, buscamos avaliar conceitos e modelos de musealização na internet


e identificamos alguns formatos já consolidados e constatamos que dentre os vários
tipos de classificação existiriam três categorias básicas de museus digitais

1524
O primeiro é o "folheto eletrônico", essencialmente um formato de
folha de publicidade como um folheto ou apostila utilizada pelos sites
para ou para explicar aos visitantes como chegar aos locais. O
segundo foi "O Museu no Mundo Virtual", pela qual o museu real foi
projetado na web por meio de mapas, plantas baixas, imagens,
coleções on-line ou exposições, reais e virtuais. [...] Maria Piacente
identifica um terço da abordagem de páginas web museu, ‘os
verdadeiros interativos’, aqui, as páginas podem ter alguma relação
com verdadeiro museu, mas eles também podem adicionar ou
reinventar o museu e até mesmo convidar o público a fazê-lo. Muitas
vezes, esses sites se diferenciam na web a partir de museu pelo seu
nome, especialmente os dos centros de ciência. (PIACENTE apud
Teather, 1996. Tradução nossa10)
Ao analisarmos a utilização do ciberespaço pelos museus, podemos citar alguns
que se adequam a estas definições, como o Museu da Escrita (figura 1), localizado em
Fortaleza, que possui página na rede social Facebook (figura 2), e posta fotos das suas
visitas guiadas, sejam elas feitas para grupos ou para visitantes avulsos, enquanto ocorre
ou ao seu término. Na visita feita ao espaço fomos questionados sobre a postagem das
imagens na rede social, com resposta positiva, o registro foi publicado.

Ainda sobre as categorias dos museus podemos observar outros modelos


museológicos que se adequam a estas configurações. Observamos o Museu Geológico
que utiliza do ciberespaço, criando um tour virtual pelas suas salas expositivas,
possibilitando a visita virtual deste espaço.

Propomos a criação de um Museu para a Arte Urbana feita por Mulheres. Neste
espaço, assim como em outros que utilizam da internet para difusão de informação, será
possível a previsão e planejamento colaborativo de atividades por sujeitos os mais
variados que vivem, produzem e possuem interesses em torno do tema.
10
"The first was the "Electronic Brochure", essentially an advertising sheet format like the brochure or
handout used at sites or to get visitors to come to sites. The second was "The Museum in the Virtual
World" whereby the actual museum was projected onto the web by means of maps, floorplans, images,
online collections or exhibits, both real and virtual. […]Maria Piacente identifies a third of approach to
museum web pages, ‘The True Interactives’. Here, the pages may have some relation to real museum but
they also add or reinvent the museum and even invite the audience to do so. Often these sites differentiate
the web from museum by its name, especially those of the science centres.

1525
Figura 1 - Página do Facebook do Museu da Escrita
Link: www.facebook.com/museuda.escrita.9

Figura 2 - Site do museu da Escrita.


Link: www.museudaescrita.com.br

1526
Figura 3 - Site do Museu Geológico. Link: http://www.mgb.ba.gov.br/

Neste quesito, a página online do Google Art Project (figura 4) possui um


grande sistema informacional, que utiliza das suas ferramentas para criar um tour virtual
em diversas galerias, instituições museais e sítios históricos para dinamização e
expansão do conhecimento sobre o seu acervo.

Figura 4 - Projeto Google Art Project.


Link: https://www.google.com/intl/pt-BR/culturalinstitute/about/artproject/

1527
A terceira categoria, pode ser exemplificada, com o Museu da Pessoa (figura 5),
neste sentido, o museu não existe no mundo físico, porém seu acervo existe, são as
pessoas e suas memórias, como afirma Oliveira (2010) sobre o contexto do Museu da
Pessoa que, “A história é uma construção de narrativas, feita de vários pontos de vista.
Quanto mais pessoas tiverem suas experiências preservadas, mais se garante a
preservação da memória histórica. ” (OLIVEIRA, 2010, p.3) Através de vídeos,
imagens e textos, o visitante tem a possibilidade de dialogar com este museu, criando
um vínculo seu com esta instituição.

Figura 5 - Museu da Pessoa < http://www.museudapessoa.net/pt/home>

Observamos que na sua maioria, os museus apenas utilizam a internet como um


canal para divulgação das informações básicas das suas instituições. As ferramentas
possíveis deste espaço vão além do que é utilizado pela maioria dos museus, pois
sabemos que as experiências museológicas podem nos proporcionar uma interação
maior entre público e acervo, como pesquisas e discussões, a partir dos hiperlinks.

É fato também que muitos artistas contemporâneos recorrem ao ciberespaço para


divulgar suas produções através de postagens de imagens feitas em redes sociais e de

1528
vídeos com performances, eventos culturais, produções de graffiti, entre outras. Sobre
isto, Lemos, (2003), comenta que

[...] efetivamente as novas tecnologias, como os computadores e as


redes de telecomunicação (TV e satélites), criando uma arte aberta,
rizomática e interativa. Aqui, ampliando as vanguardas do século
passado, autor e público se misturam. [...] A arte na cibercultura vai
abusar da interatividade, das possibilidades hipertextuais, das colagens
(sampling) de informações (bits), dos processos fractais e complexos,
da não linearidade do discurso... [...]. (LEMOS, 2003, p.6).
Este suporte se alia a estas produções por conter em sua essência o necessário
para atender as necessidades destes artistas, a Internet vincula-se ao mundo real, criando
um fluxo de informações constantes que interagem em diversos suportes midiáticos.

A arte efêmera, que muitas vezes é uma arte pública, se potencializa ao ser
veiculada pela internet, visto que através do ciberespaço ela atinge públicos cada vez
mais amplos e diversos. Neste sentido ela deixa de ser a arte em si, e passa a ser a
reprodução através de imagens, sons ou vídeos, passa a ser a representação da arte,
mudando a sua natureza, o que é muito comum quando um objeto de museu é retirado
do seu contexto e colocado no espaço do museu, mudando, por isso, o seu estatuto,
sendo-lhe agregados valores de sentido,

No entanto, Gumbrecht chama atenção para o fato de que

[...] o sentido não ignorará, não fará desaparecer os efeitos de


presença, e a presença física – não ignorada – das coisas (de um texto,
uma voz, uma tela com cores, um drama interpretado por um grupo de
teatro), em última análise, não reprimirá a dimensão de sentido. A
relação entre efeitos de presença e efeitos de sentido também não é
uma relação de complementaridade, na qual uma função atribuída a
cada uma das partes em relação à outra daria à co-presença das duas a
estabilidade de um padrão estrutural. (GUMBRECHT, 2010, p.137)
Sendo assim, ao perder sua materialidade e serem ressignificados, estas obras ou
processos artísticos não deixarão de possuir um valor inerente, ao contrário, poderão ter
o seu impacto estético e comunicativo potencializados.

1529
O ciberespaço contribui com a dinamização das informações auxiliando na
busca pelo conhecimento, onde afirma Pierre Levy, (1996) que, “O ciberespaço oferece
objetos que rolam entre os grupos, memórias compartilhadas, hipertextos comunitários
para a constituição de coletivos inteligentes.”(LEVY, 1996, p.89). Neste processo de
interação, o indivíduo que utiliza o ciberespaço tem a possibilidade de expandir o seu
universo de busca, possibilitando outros indivíduos obterem conhecimentos
diversificados, construindo uma rede de comunicação.

Possuindo diversas ferramentas, antes inexistentes devido as limitações dos


espaços físicos, que com seus “muros”, impediam que estivéssemos em diversos locais,
interagindo com pessoas de várias localidades e executando inúmeras atividades, como
afirma Castells, (2011) que, “[...] a internet nos permite criar um hipertexto customizado
e internalizado, sejamos nós um indivíduo, um grupo ou uma cultura. ”(CASTELLS,
2011, p.11).

A partir disto, temos a compreensão das possibilidades de criações de espaços


individuais ou coletivos que a Internet proporciona, a partir de suas ferramentas e da
interação criada, a utilização dos museus por estes espaços permite com que as
experiências ocorridas neste espaço seja tanto colaborativa como enriquecedora, como
pontua Castells, (2011) que, “[...]os museus poderiam tornar-se protocolos de
comunicação entre diferentes identidades, comunicando a arte, a ciência e a experiência
humana; e eles podem estabelecer-se como conectores de diferentes temporalidades,
traduzindo-as a uma sincronia comum, mantendo, ao mesmo tempo, uma perspectiva
histórica”(CASTELLS, 2011, p.20).

Estamos, neste momento entre outros projetos, trabalhando para a construção do


museu (virtual) de arte urbana por mulheres (MAUM), assumindo o pressuposto de que
para que esta ação se torne um museu, será necessário considerar todas as fases dos
processos de musealização que pode ser definida como, “[...] a operação de extração,

1530
física e conceitual, de uma coisa de seu meio natural ou cultural de origem, conferindo a
ela um estatuto museal – isto é, transformando-a em musealium ou musealia, em um
‘objeto de museu’ que se integre no campo museal.” (DESVALLÉES; MAIRESSE,
p.57, 2013) compreendemos, portanto, que o processo de musealização é aquele que
seleciona, preserva e comunica determinados objetos no museu, a partir de princípios
que levem em consideração o olhar específico do museólogo sobre o fenômeno da
preservação da memória e do tratamento de uma cadeia operatória que busca otimizar a
sua comunicação, ou melhor dizendo, sua transmissão enquanto herança, de modo à
atender as necessidades do público, e também considerando que esta ação só será
verdadeira enquanto levar em consideração as categorias de valor dos grupos
representados, os verdadeiros donos desta memória.

Seguimos trabalhando para avaliar o quanto o ciberespaço pode contribuir para


que a comunicação museal seja mais dinâmica, dialogando entre culturas distintas em
prol de algo comum, a busca pelo conhecimento. Sendo um meio atemporal, que,
situações que já ocorreram dialogam com situações atuais, transmitindo e exercitando o
processo de crítica daqueles que possuem acesso a estas informações. Podemos
compreender as informações neste espaço em um sistema circular, o que já ocorreu
pode dialogar com o presente, buscando na memória dos seus usuários formas de lidar,
resolver, interagir a partir de um dado passado, questões atuais.

Referências bibliográficas

BRASIL. Lei nº 11.904. Art.1º, de 14 de janeiro de 2009. Institui o Estatuto de Museus


e dá outras providências. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Lei/L11904.htm >

CASTELLS, Manuel. Museus na era da informação: conectores culturais de tempo e


espaço. Revista Musas, Brasília, ano. VII, n.5, 2011b, p. 8-21.;

1531
CHAGAS, Mário. A radiosa aventura dos museus. In E o patrimônio. Vera Dodebei e
Regina Abreu (orgs). Rio de Janeiro: Contra Capa/Programa de Pós-Graduação em
Memória Social da Universidade Federal do Estado do Riio de Janeiro, 2008;

DESVALLÉES; MAIRESSE. Conceitos-chave de Museologia. São Paulo: Comitê


Brasileiro do Conselho Internacional de Museus: Pinacoteca do Estado de São Paulo :
Secretaria de Estado da Cultura, 2013. 100 p.;

GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de Presença. O que o sentido não conse-gue


transmitir. Ana Isabel Soares (trad.) Rio de Janeiro. Contraponto, Ed. PUC – Rio, 2010.
106 p.;

LEMOS, André; Cunha, Paulo (orgs). Cibercultura. Alguns pontos para compre-ender a
nossa época. In Olhares sobre a Cibercultura. Sulina, Porto Alegre, 2003; pp. 11-23;

LEVY, Pierre. O que é virtual. São Paulo: Ed. 34, 110 p., 1996;

MENSCH, Peter Van. O objeto de estudo da museologia. Tradução de Débora


Bolsanello e Vânia Dolores Estevam de Oliveira. Rio de Janeiro: UNIRIO/UGF, 1994.
(Pretextos museológicos, 1).

MESA-REDONDA DE SANTIAGO DO CHILE, ICOM, 1972. Museologia e


Património: Documentos Fundamentais. In: Cadernos de Sociomuseologia: Centro de
Estudos de Sociomuseologia. Org e apres. Judite Primo. Universidade Lusófona de
Humanidades e Tecnologias, nº15, 1999;

OLIVEIRA, José Claúdio. A memória social na era das novas tecnologias. XI


Encontro Nacional de Pesquisa em Ciências da Informação (XI ENANCIB).
Universidade Federal da Bahia. 2010, 18p.;

SANTOS, Maria Célia Teixeira Moura. Processo Museologico e educação: construindo


um museu didático-comunitário. In: Cadernos de Sociomuseologia, nº7, 1996;

TEATHER, Lynne. Surfs Up_: Museums and the World Wide Web, MA Research
Paper, Museum Studies Program, University of Toronto, 1996. Disponível em:
http://www.archimuse.com/mw98/papers/teather/teather_paper.html> Acessado em:
01/11/2016

1532
TECNOLOGIA E EXPOGRAFIA NA CONTEMPORANEIDADE. OS MUSEUM
MAKERS E A SEDUÇÃO DO OLHAR

Janaina Cardoso de Mello


*Universidade Federal de Sergipe

Resumo: No Brasil o sucesso de vários museus no uso de recursos tecnológicos ocasionou a


consolidação do “museum maker” (fazedor de museus) que não necessariamente tem formação
em Museologia, mas possui um excelente conhecimento sobre curadoria de exposições e
projetos tecnológicos aplicados à expografia. Mais especificamente o termo foi utilizado para
designar o curador Marcello Dantas, responsável pelos projetos do Museu da Língua
Portuguesa, em São Paulo (SP), e o Museu da Gente Sergipana, em Aracaju (SE). Na Itália, o
MUMA – Museu Missionário Índios em Assis – que remonta ao ano de 1973, como herança do
Museu dos Índios da Amazônia concebido pelo padre Luciano Matarazzi, após sua
reformulação digital foi reinaugurado em 4 de fevereiro de 2011. Riccardo Mazza, o museum
maker do MUMA contemporâneo, fundou o Estúdio Interativo de Som em Turim, um
laboratório de pesquisa visual e sonora especializada em design artístico para exposições.
Consagrou-se como curador e consultor de uso criativo da tecnologia, multimídia e objetos reais
em museus. Assim, esse artigo apresenta uma breve reflexão sobre o papel dos museum makers
e seu modo de erigir expografias digitais.
Palavras-chave: tecnologia; expografia; museum maker; Museologia.

Abstract: In Brazil the success of several museums on the use of technological resources
brought about the consolidation of the "museum maker" (pie-museums) that do not necessarily
have training in Museology, but has an excellent knowledge of the curatorship of exhibitions
and technological projects applied to expographic. More specifically, the term was used to
designate the curator Marcello Dantas, responsible for projects of the Museum of the
Portuguese Language in São Paulo (SP), and the Museum of the People of Sergipe, Aracaju
(SE). In Italy, the MUMA-Indian Missionary Museum in Assisi – which dates back to 1973, as
the Museum's heritage of the Indians of the Amazon designed by Fr. Luciano Matarazzi, after
recasting your digital was reopened on February 4 2011. Riccardo Mazza, the museum's
contemporary MUMA maker founded the Interactive Sound Studio in Turin, a visual and sound
research laboratory specializing in artistic design for exhibitions. Consecrated as curator and
consultant for creative use of technology, multimedia and real objects in museums. So, this
article presents a brief reflection on the role of the museum makers and your way to erect digital
expografias.
Key-words: technology; expographic; Museum maker; Museology.


Doutora em História Social (UFRJ); Professora Adjunta da Universidade Federal de Sergipe (UFS), ganhadora do
Prêmio Samuel Benchimol e Banco da Amazônia de Empreendedorismo Consciente na categoria Economia Criativa,
em 2016, com projeto de Museu de Território.

1533
Introdução
A atração dos olhos na contemporaneidade move-se do smartphone para os
grandes painéis tecnológicos nas grandes cidades do mundo. Cada vez mais, instituições
culturais aprendem o valor do uso das Novas Tecnologias da Informação e
Comunicação (NTICs) no processo de concepção, montagem e divulgação de suas
exposições.

O uso dinâmico de ideias que seduzem seus usuários, trazendo uma linguagem
cada vez mais familiar e necessária no cotidiano, ressignifica o museu da tradicional
apreensão do senso comum de “lugar de coisas velhas” para um “espaço de
experimentação digital e sensorial”. São projeções de filmes, jogos de luzes e sombras,
sensores que fazem funcionar determinado elemento da exposição conforme a
aproximação do visitante, hologramas, música ambiente e mesas digitais interativas que
aprofundam o conhecimento comunicado na exposição.

No Brasil o sucesso de vários museus no uso de recursos tecnológicos ocasionou


a consolidação do “museum maker” (fazedor de museus) que não necessariamente tem
formação em Museologia, mas possui um excelente conhecimento sobre curadoria de
exposições e projetos tecnológicos aplicados à expografia. Mais especificamente o
termo foi utilizado para designar o curador Marcello Dantas, responsável pelos projetos
do Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo (SP), e o Museu da Gente Sergipana,
em Aracaju (SE).

Na Itália, o MUMA – Museu Missionário Índios em Assis – que remonta ao ano


de 1973, como herança do Museu dos Índios da Amazônia concebido pelo padre
Luciano Matarazzi, após sua reformulação digital foi reinaugurado em 4 de fevereiro de
2011. Riccardo Mazza, o museum maker do MUMA contemporâneo, fundou o Estúdio
Interativo de Som em Turim, um laboratório de pesquisa visual e sonora especializada

1534
em design artístico para exposições. Consagrou-se como curador e consultor de uso
criativo da tecnologia, multimídia e objetos reais em museus.

Assim, esse artigo apresenta uma breve reflexão sobre o papel dos museums
makers e seu modo de erigir expografias digitais.

Em terra de cego, quem tem um olho só é rei

A formação dos museólogos brasileiros, só muito recentemente (a partir dos


anos 2005) passou por uma expansão no número de cursos de bacharelados ofertados
por universidades públicas. Das duas clássicas escolas de Museologia da Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e Universidade Federal da Bahia
(UFBA) passou-se à abertura de graduações no Recôncavo Baiano (BA), em Recife
(PE), em Laranjeiras (SE), Ouro Preto (MG), Brasília (UnB), Belém (PA), Florianópolis
(SC), Porto Alegre (RS) e Pelotas (RS). Ainda cursos privados como Barriga Verde
(SC) e a recente graduação noturna em Museologia da PUC-Campinas, com formação
em três anos. Também surgiram as pós-graduações strictu sensu na área: Mestrado e
Doutorado em Museologia (UNIRIO), Mestrado e Doutorado em Antropologia e
Museologia (UFPE), Mestrado em Museologia (USP), Mestrado em Museologia
(UFBA) e Mestrado em Museologia (UFRS).

Na Europa, onde não há graduação em Museologia, a formação específica


centra-se nas pós-graduações, à exemplo dos Mestrados e Doutorados em Museologia
ofertados em Portugal pela Universidade do Porto e pela Universidade Lusófona, dentre
outros na França, Inglaterra e Espanha, atraindo, portanto, graduados de várias áreas.

No Brasil a profissão de museólogo é regulamentada pela lei 7.287, de 18 de


dezembro de 1984 e os cursos de graduação em Museologia têm se esforçado para
manter uma limitação de atuação com base na formação obtida pelo bacharelado em
Museologia, embora a regulamentação conceda o registro no Conselho da área também
aos pós-graduados strictu sensu que provêm de outras graduações. Apesar do

1535
corporativismo da área, observa-se que nas capitais do país – com exceção do Rio de
Janeiro e Salvador – ainda são os “não museólogos de formação de base” que atuam nas
instituições museais e na maioria dos estados, mesmo com o crescimento dos cursos de
Museologia na modalidade graduação, não houve concursos locais para o cargo,
excetuando-se aqueles realizados pelo governo federal para suas universidades.

Sofrendo com ausência de verbas para equipar seus laboratórios, com cursos
onde muitas vezes há uma predominância de “não-museólogos” ministrando disciplinas
formadoras dos futuros museólogos, além dos altos índices de evasão de alunos e de um
mercado de trabalho muito incipiente a aguardar seus egressos, os museums makers
encontraram um nicho de trabalho em plena expansão para seus serviços.

Integrando a área das Ciências Sociais Aplicadas, a grande maioria dos


museólogos formados no país não está familiarizada com o domínio pleno das NTICs,
ao contrário, possuem às vezes algumas noções básicas que mal lhes confere
conhecimento para dialogar com programadores e projetistas digitais. São escassos os
museólogos que saem da teoria e aplicam na prática conhecimentos tecnológicos na
expografia como produto ofertado ao mercado.

Tanto na Europa, quanto na Ásia e na América do Norte, a proposição de


projetos em torno da informatização dos museus provém de engenheiros de
computação. Por isso está cada vez mais presente o uso de terminologias como Smart
Museum, Internet of Things (IoT), Smart City to Cultural Heritage, Digital System of
Museum, Maker spaces. Nesse aspecto são realizados anualmente diversos eventos com
publicação de Anais eletrônicos com artigos que trazem resultados práticos de
tecnologias desenvolvidas e implementadas em distintas geografias.

Sob esse aspecto os museums makers, ao manusear tais tecnologias, também se


diferenciam dos tradicionais curadores de exposições, normalmente oriundos das
formações das Artes (Plásticas ou Visuais), Letras e Filosofia, História ou Antropologia.

1536
Mais uma vez, a excelência no planejamento e criação de tecnologias aplicadas
diferencia os primeiros dos demais na maioria das vezes.

Marcello Dantas, por exemplo, cursou Direito em Brasília e História da Arte em


Florença, obtendo também graduação em Filme e Televisão pela New York University
e pós-graduação em telecomunicação interativa na mesma instituição. Em seu currículo
como museum maker estão: o Museu da Língua Portuguesa, o Museu do Homem
Americano, os Museus das Telecomunicações, o Museu das Minas e Metal, o Museu da
Gente Sergipana e exposições de artistas estrangeiros consagrados como Antony
Gormley, Christian Boltanski, Anish Kapoor, Bill Viola e Laurie Anderson, além de
projetos internacionais como o Museu do Caribe, em Barranquilla (Colômbia) e a “Pelé
Station”, em Berlim, para a Copa do Mundo da Alemanha (FORUM PERMANENTE,
2017).

Figura 1: Museu da Língua Portuguesa (São Paulo)

Fonte: Fundação Roberto Marinho, 2017.

1537
A ideia do Museu da Língua Portuguesa nasceu dos sonhos de Ralph
Appelbaum, responsável pelos projetos do Museu do Holocausto em Washington e da
sala de fósseis do Museu de História Natural em New York. O projeto arquitetônico
teve a autoria dos brasileiros Paulo e Pedro Mendes da Rocha (pai e filho). A direção do
museu coube a socióloga Isa Grispun Ferraz, também responsável pela coordenação de
uma equipe composta por trinta especialistas no idioma. Marcello Dantas, um museum
maker, articulou o discurso e a linguagem da instituição, considerando o espaço físico, a
disposição das obras e a aplicação da tecnologia em cada peça de cada módulo
(CALSAVARA, 2007).

Antes do incêndio do Museu da Língua Portuguesa, em 2015, era:

[...] possível percorrer uma geografia linguística através do “mapa dos


falares” montado sobre uma tela interativa onde é possível acessar
áudios com amostras dos modos de falar dos brasileiros dos vários
estados, articulando seus sotaques e expressões mais peculiares
(MELLO, 2010, p.133)

Entrevistado pela Revista Clarín (2012), por ocasião de sua participação nas
Jornadas sobre “Museos y Cultura participativa”, Marcello Dantas afirmou “Hay que
crear nuevos museos para una sociedad atravesada por la revolución digital, convertir
la inmaterialidad de la cultura en nuevos lenguajes expressivos”.

Riccardo Mazza fundador do estúdio Interactive Sound, em 2001, desenvolve


pesquisa visual e de som especializado no design artístico de vias expositivas e
multimídia de alto impacto através da criação de ambientes de vídeo interativos
imersivos. Multifacetado, Riccardo Mazza atua como artista, músico e designer visual
com Know How e a característica distintiva da linguagem tecnológica usada para fazer
roupas como instrumentos modernos de comunicação cultural. O conteúdo dos projetos
artísticos feitos para museus e empresas é valorizado através do uso criativo da
tecnologia, instalações multimídia conviventes e objetos reais, paisagens e realidade

1538
virtual, dentro de um projeto orgânico e coerente. A consultoria curatorial, atenta à
definição e ao desenvolvimento do projeto, também faz a atividade do estudo autônomo
e propositivo no plano da ideia, enquanto o conjunto de tecnologias especialmente
realizadas e os serviços oferecidos permitem gerenciar projetos complexos (MAZZA,
2017).

Figura 2: MUMA – Museu Missionário Índios em Assis

Fonte: MAZZA, 2017

Além do projeto de renovação digital do MUMA, de 2011, Mazza possui ainda a


realização do projeto de design e multimídia da exposição inaugurada no Memorial
Day, celebrada em 27 de janeiro de 2016, em comemoração das vítimas do Holocausto,
promovida pela Fondazione Palazzo Mazzetti e pela Cidade de Asti, com o apoio da
Fondazione Cassa di Risparmio di Asti e com a colaboração com o Banca CRAsti. O
coletivo é gerenciado por Ermanno Tedeschi e usa a colaboração do ISRAT (Instituto
de História da Resistência e Sociedade Contemporânea na província de Asti) (MAZZA,
2017).

Sob sua condução, em novembro de 2014, entregou o projeto multimídia da


exposição LUCE - A imagem italiana no Complexo vitoriano de Roma, contando os
primeiros 90 anos do Instituto da Luz, desde a fundação em 1924 até hoje: uma das

1539
maiores empresas culturais do país, um lugar de escolha para o seu conhecimento
histórico e o armazenamento de memórias, segredos, sonhos da Itália no século XX e
além. A exposição concebida e realizada pelo Instituto Luce-Cinecittà, recebeu o Alto
Patrocínio do Presidente da República, com o patrocínio do Ministério do Patrimônio
Cultural e Turismo e da Região do Lácio, e em colaboração com a capital de Roma.
Imiscuindo tradição e tecnologia, o caminho se move em duas faixas ideais: como a
Itália foi representada ao longo das décadas através das imagens da Luz, e como a Itália
revelou, confessou, revelou e apesar das imagens de suas representações oficiais
(MAZZA, 2017).

Figura 3: LUCE - A imagem italiana no Complexo vitoriano de Roma

Fonte: MAZZA, 2017

Na narrativa deste autorretrato da nação, a exposição multimídia é concebida


com uma abordagem de exposição não estática, mas como um fluxo contínuo de
imagens. A rota começa com o conceito e a forma de "tira": painéis grandes
organizados de acordo com uma ordem cronológica temática, em que em mais de 20
telas são instaladas instalações especiais de vídeo projetado, montagens ad hoc de
centenas de imagens do Arquivo Histórico de Luce. Juntamente com imagens em
movimento, mais de 500 belas fotografias de arquivo param detalhes e momentos
importantes, enquanto os painéis de texto aprofundam a análise histórica e linguística

1540
dos vídeos. Um caminho visual e auditivo de impacto considerável, que faz com que
cada visitante se confronte com uma imagem diferente, e cada vídeo diálogos com
aqueles próximos a ele por analogia e diferenças. Uma série de palavras-chave liga o
itinerário (MAZZA, 2017). As pesquisas sobre smart museum têm demonstrado a
importância da interatividade e autonomia provida pela tecnologia, onde a narrativa
expográfica privilegia as escolhas do próprio visitante, assim

A self-guide interactive system is designed to provide relevant


information for each antique according to visitor profile and
selections. This makes tourists have fun and enjoy the stories behind
each antique and let them imagine and like to live that era of time
(ALI, 2014, p.3).11

Alguns “quartos” especiais apresentam características específicas e evocativas.


O Wonders Room é uma homenagem às viagens mundiais por Light Operators; A “Sala
do Duce” desenha uma antologia imperfeita da retórica e silêncio de Mussolini, e se
opõe à sala real, uma viagem em movimento aos rostos dos italianos na década de 1930.
Finalmente, o último espaço do show é inteiramente dedicado ao Cinema: com centenas
de fotos de diretores, atores, set e uma seleção preciosa de trailers de filmes e bastidores
(MAZZA, 2017).

Em dezembro de 2015 concluiu o percurso multimídia de Susa, no Castelo da


Marquesa Adelaide, vinculado ao museu e a pesquisa relacionada ao sítio arqueológico.
Sob sua direção artística articulou um paralelo comunicacional cronológico,
enriquecendo cada seção histórica (desde a pré-história até a era moderna, passando
pela Romana e a Idade Média) com instalações multimídia que aprofundam as questões
historicamente sociais tratadas de forma subjetiva, mexendo com as emoções,
demonstrando vanguarda, incluindo técnicas holográficas, multiprojeções sincronizadas,

11
“Um sistema autoguia interativo é projetado para fornecer informações relevantes para cada
antiguidade de acordo com o perfil e seleções do visitante. Isto faz os turistas se divertirem e
aproveitarem as histórias por trás de cada antiguidade, deixando-os imaginar e gostar de viver essa era do
tempo” (Tradução Livre).

1541
mapeamento grande em superfícies irregulares e reconstruções de objetos por
fotogrametria (MAZZA, 2017).

The behaviour of a person/visitor, when immersed inside a space and


consequently among several objects, has to be analyzed in order to
design the most appropriate architecture and to estabilish the
relationship between people and technological tools that have to be
non-invasive. For this reason and to better appraise and promote the
Cultural Heritage, it should be preferable to provide cultural objects
with the capability to interact with people, environments, other objects
and transmitting the related knowledge to users through multimedia
facilities (CHIANESE; PICCIALLI, 2014, p.300).12

A perspectiva da Internet das Coisas (IoT) contida no desenho dos smart


museums cria espaços de diálogo sensível entre a máquina e o ser humano, mas sem
deixar de envolver toda uma complexa arquitetura de serviços integrados fornecidos por
um amplo ecossistema digital capaz de tornar dinâmicos os antigos espaços culturais
estáticos. Assim, objetos inteligentes comunicam-se entre si e com os usuários
alinhando-se em rede (sensores, aplicativos, smartphones, tablets, projeções 360°, telas
e mesas touch screen, etc.).

Um projeto multimídia para um museu, apesar de envolver várias dimensões do


conhecimento, tem sua atenção focada principalmente no desenvolvimento de três
elementos essenciais que ditam a narrativa expográfica em sua relação com a tecnologia
na comunicação de qualquer temática. Assim, conforme pode-se observar na tabela 1,
essa concepção tripartite apresenta-se no projeto sonoro, no projeto interativo e no
projeto informacional.

12
O comportamento de uma pessoa/visitante, quando imerso dentro de um espaço e consequentemente
entre vários objetos, deve ser analisado para projetar o mais apropriado a arquitetura e estabelecer a
relação entre pessoas e ferramentas tecnológicas que não precisam ser invasivas. Por esta razão e para
melhor avaliar e promover a Cultura Patrimônio, deve ser preferível fornecer objetos culturais com a
capacidade de interagir com pessoas, ambientes, outros objetos e transmissão dos conhecimentos
relacionados aos usuários através de instalações multimídia (Tradução Livre).

1542
Tabela 1: Particularização de um Plano Museológico Multimídia
Níveis de som ambiente, distintos em cada sala, locução mixada que
acompanha o visitante conferindo à cada objeto do acervo sua
ambientação correta. Pode incluir sons de florestas, mangues, minas,
Projeto Sonoro escavações ou músicas gravadas em shows, acústicos ou em
estúdios.

Cada sala do museu permite ao visitante o contato direto com a


realidade ambiental e humana através de personagens
virtuais, mapas animados, projeções que se revezam, intercalados
com vitrines tradicionais.
Projeto Interativo

Os dados podem ser apresentados em colunas de aprofundamento


temático, com fotos e filmes. Computadores, tablets e/ou mesas
Projeto Informacional digitais oferecem acesso ao acervo integral do museu.

Fonte: Elaboração própria.

A transposição do museu tradicional focado nos objetos para o museu


multimídia, onde a tecnologia e a experiência do visitante direcionam olhares, sensações
e apreensões do conhecimento comunicado apresentam novos desafios aos
profissionais: 1. Perceber o poder de atratividade junto ao público mais jovem; 2.
Propiciar um exercício interativo de evocação de memórias; 3. Ressignificar o
tradicional em uma nova linguagem capaz de tornar viva a interdisciplinaridade dos
conteúdos expositivos; 4. Orientar os idosos para que não se sintam excluídos dessas
novas linguagens digitais.
Os museums makers têm elaborado espaços não somente de comunicação
audiovisual, mas principalmente espaços de aprendizado, onde múltiplas faixas etárias –
de crianças à idosos – buscam experimentar, se divertir e aprender.
Ressalta-se o ano de 2005 como o marco impulsionador para o Maker
Movement, em Washington (EUA), enquanto uma ação envolvendo grupos da
subcultura que com o uso da tecnologia exerceram sua liberdade de criação e
estimularam a criatividade de outras pessoas em galerias, ateliês de arte, museus,

1543
livrarias, espaços de patrimônio cultural onde o digital e o eletrônico, de forma
interdisciplinar, evocando a “cultura criadora” (GONZALEZ, 2015).
Mas essa preocupação nos EUA advém de um tempo mais tardio se considerar-
se o papel desempenhado pela Museums Computer Network (MCN), uma rede fundada
em 1967, dedicada a “apoiar os profissionais dos museus para que eles possam capacitar
suas instituições para abraçar o mundo digital” (MURPHY, 2015).
Nos últimos anos a ideia dos Maker spaces em livrarias e museus tem sido
difundida como uma nova possibilidade de ação educativa onde as pessoas se reúnem
para criar, inventar e aprender, capacitando-se para se tornarem criadores. Os museus
deixam de ser meros reprodutores de objetos alvos de contemplação e instigam seu
próprio público a tornar-se proativo.
O Be A Maker Space (BAM) é o espaço de produção da Betty Brinn Children’s
Museu de Milwaukee, Wisconsin (EUA). Como um Museu infantil, Betty Brinn
procura para fornecer experiências interativas e recursos educacionais principalmente
dos recém-nascidos às crianças de até 10 anos de idade. Iniciado em 2014, o BAM
articula o antigo e o novo, a tecnologia e antigos elementos da cultura material do bairro
que o abriga (IMLS, 2014). A promoção de uma vivência comunitária, valorizando a
solidariedade entre os visitantes, a troca de conhecimento e a sensibilidade estimulada
por sistemas digitais que se ambientam à proposta apresenta um novo horizonte de
significação tanto para a instituição quanto para quem a visita. Relações de afeto e
memória são constituídas de modo quase natural.

Considerações Finais

Percorrer o trajeto de exposições e/ou museus tecnológicos requer compreender


quem está por trás daquela concepção, montagem e difusão do conhecimento ali
comunicado. Isto posto que cada vez mais, as redes sociais, os aparelhos digitais nos

1544
tragam de forma irreversível para a sociedade da informação sustentada pelas
tecnologias em profunda aceleração de suportes e designs.

Grande parte dos museólogos não está preparada para lidar com o
desenvolvimento das linguagens tecnológicas dos novos ou renovados museus em sua
expografia. E entende-se “desenvolvimento” pela criação dos projetos com recursos
necessários. A maioria sequer está apta para dialogar com um desenvolvedor de App e
isso termina por limitar ainda mais seu mercado de trabalho e conferir a outros
profissionais um espaço privilegiado na produção da cultura contemporânea e gerador
de um alto valor de renda por serviços prestados.

Não adianta mais usar a desculpa de que são os outros que devem se ocupar
dessas funções, mas sim buscar a apropriação dessas ferramentas digitais para que seu
ofício não se torne superado e rapidamente substituído por aqueles que demonstrem
maior domínio nas habilidades tecnológicas cada vez mais requisitadas.

Enquanto as novas gerações de museólogos lutam para aprender a usar o


AutoCad no planejamento de suas expografias em universidades sem laboratórios com
tecnologia avançada, os museums makers avançam dentro e fora do Brasil, firmando-se
como profissionais interessantes e necessários no mundo dos museus.

Referências bibliográficas

ALI, Ahmed Salah EL-Din. The Narrator: A Smart Data Offloading System for
Interactive Navigation in Museums. 2014 10th International Computer Engineering
Conference (ICENCO). 2014.

CALSAVARA, Katia. O fazedor de museus. TAM Magazine, ano 4, nº27, março de


2007.

CHIANESE, Angelo; PICCIALLI, Francesco. Designing a smart museum: when


Cultural Heritage joins IoT. 2014 Eighth International Conference on Next
Generation Mobile Applications, Services and Technologie. 2014.

1545
FORUM PERMANENTE. Verbete Marcello Dantas. Disponível em:
<http://www.forumpermanente.org/convidados/marcello-dantas>. Acesso em ago. 2017.

GONZALEZ, Desi. Museum making: Creating with emerging technologies in Art


Museums. MW2015: Museums and the Web 2015. Disponível em:
<http://mw2015.museumsandtheweb.com/paper/museum-making-creating-with-
emerging-technologies-in-art-museums/>. Acesso em nov. 2017.

IMLS. Making+Learning in Museum and Library Makerspaces. A practitioner’s


guide and framework. Carolina do Norte: Institute of Museum and Library
Services/Children’s Museum Pittsburgh, 2014.

MAZZA, Riccardo. Installazioni multimídiali interative. Disponível em:


<http://www.interactivesound.it/>. Acesso em ago. 2017.

MELLO, Janaina Cardoso de. O Museu da Língua Portuguesa como espaço de ensino-
aprendizagem. Interdisciplinar, Ano 5, v. 12, jul-dez de 2010, p. 127-138. Disponível
em: <https://seer.ufs.br/index.php/interdisciplinar/article/viewFile/1212/1050>. Acesso
em ago. 2017.

MURPHY, Adrian. Technology in Museums: making the latest advances work for our
cultural institutions. Disponível em:
<http://advisor.museumsandheritage.com/features/technology-in-museums-making-the-
latest-advances-work-for-our-cultural-institutions/>. Acesso em nov. 2017.

REINOSO, Suzana. Entrevista com Marcello Dantas. Revista Clarín, 2012. Disponível
em: <https://www.clarin.com/arte/marcello-dantas-museos-revolucion-
digital_0_HkdlgiFnvme.html>. Acesso em ago. 2017.

1546
AS INTERAÇÕES TECNOLÓGICAS E AS VIVÊNCIAS NO MUSEU CASA DE
CORA CORALINA: A EXPERIÊNCIA DE EDUCAÇÃO NÃO FORMAL PARA
ALÉM DA EXPOSIÇÃO EXPOGRÁFICA.

Rúbio Dorneles De Bessa*


Ivanilda Aparecida Andrade Junqueira**

Resumo: Esta pesquisa visa ir além do ato de contemplação nos museus, investigando as
múltiplas possibilidades de fruição da arte e das aprendizagens, em especial o Museu Casa de
Cora Coralina; promovendo a geração de conhecimento científico, tecnológico e cultural
relevante para o Estado de Goiás. Procura identificar o impacto dos recursos tecnológicos e das
vivências incorporadas às práticas pedagógicas para além da exposição expográfica permanente
no Museu Casa de Cora Coralina, na Cidade de Goiás – GO, além de examinar e discutir as
conseqüências econômicas e políticas deste objeto de estudo em função da capilaridade cultural,
pois está inserido na Cidade de Goiás, Patrimônio Histórico da Humanidade cujo tombamento
do centro histórico ocorreu em 1978 pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional) culminando no reconhecimento da Cidade de Goiás como Patrimônio da Humanidade
em 2001 pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura). O principal mote dessa investigação está relacionado à nossa experiência enquanto
pesquisador e participante voluntário do grupo de trabalho que está realizando a segunda etapa
das aplicações do projeto de mídias interativas expográficas no ano de 2017, no Museu Casa de
Cora Coralina, na Cidade de Goiás – GO. As intervenções desenvolvidas pelo Media Lab BR
(Laboratório de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação em Mídias Interativas da Universidade
Federal de Goiás) tem por objetivo propiciar novas formas de interação com as poesias e com a
Casa de Cora, de modo que os visitantes vivenciem uma nova experiência, complementar
àquela que Cora já propõe através de suas obras e da sua história de vida.
Palavras-chave: Tecnologia. Memória. Ação Educativa.

Abstract: This research aims to go beyond the act of contemplation in museums, investigating
the multiple possibilities of enjoyment of art and learning, especially the Casa de Cora Coralina
Museum; promoting the generation of scientific, technological and cultural knowledge relevant
to the State of Goiás. It seeks to identify the impact of technological resources and experiences
incorporated into pedagogical practices in addition to the permanent exposition exhibition at the
Casa de Cora Coralina Museum, in the city of Goiás - GO, besides examining and discussing
the economic and political consequences of this object of study in function cultural capillarity,
since it is inserted in the City of Goiás. Historical Heritage of Humanity, whose historical center
was discovered in 1978 by the IPHAN (Institute of National Historical and Artistic Heritage),
culminating in the recognition of the City of Goiás as a World Heritage Site in 2001 by
UNESCO (United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization). the culture). The

1547
main motto of this investigation is related to our experience as a researcher and volunteer
participant of the work group that is carrying out the second stage of the applications of the
interactive expiative media project in the year 2017 at the Casa de Cora Coralina Museum in the
City of Goiás - GO. The interventions developed by Media Lab BR (Laboratory of Research,
Development and Innovation in Interactive Media of the Federal University of Goiás) aim to
provide new forms of interaction with poetry and Casa de Cora, so that visitors experience a
new experience, complementary to the one that Cora already proposes through his works and
his life history.
Key Words: Technology. Memory. Educational Action.

1548
A proposta desta pesquisa consiste em analisar as discussões a respeito das
concepções tradicionais nos ambientes museológicos e o diálogo com as inovações
interativas contemporâneas. É uma investigação compatível com os estudos realizados
na Linha de Pesquisa “Práticas Educacionais na Sociedade Contemporânea”, pois se
encaixa nos estudos de experiências em educação não formal cotejada e analisada pelos
professores pertencentes ao quadro do Programa de Pós-Graduação, nível Mestrado em
Sociologia da Universidade Federal de Goiás (PPGS/UFG).
O principal mote dessa investigação está relacionado à nossa experiência
enquanto pesquisadores e participantes voluntários do grupo de trabalho que está
realizando a segunda etapa das aplicações do projeto de mídias interativas expográficas
no ano de 2017, no Museu Casa de Cora Coralina, na Cidade de Goiás – GO.
As intervenções desenvolvidas pelo Media Lab BR (Laboratório de Pesquisa,
Desenvolvimento e Inovação em Mídias Interativas da Universidade Federal de Goiás)
tem por objetivo propiciar novas formas de interação com as poesias e com a Casa de
Cora, de modo que os visitantes vivenciem uma nova experiência, complementar àquela
que Cora já propõe através de suas obras e da sua história de vida.
O modelo de educação formal no Brasil estabelecido nas Escolas, enquanto
instituições regulamentares de ensino, obedecendo à hierarquização dos órgãos
reguladores desde as instâncias federal, estadual e municipal, centralizado na figura do
professor, que se posiciona como o detentor do conhecimento, a quem cabe a
transmissão para o educando através da comunicação oral e escrita, combinando às
vezes com imagens e reproduções para demonstrar os conteúdos expositivos, sem muito
aprofundamento, conforme SOUZA observa:
O ensino no Brasil tem sido pautado, quase que exclusivamente, na
linguagem oral, quando sabemos que o ensino verbalístico é
caracterizado pelo fato de que apenas o professor, ou nem mesmo ele,
teve contato prévio com o objeto de ensino, o qual, por ocasião da
aula, ele descreve verbalmente (SANTOS, 1987, p. 85).

1549
A distinção entre educação formal e a educação informal está assim expressa
em LIBEDINSK:
A educação formal é sinônimo de sistema escolar ou sistema
educacional, e abrange desde o maternal jardim e até o quarto nível ou
pós-graduação universitária. A educação não formal inclui as
atividades que se organizam fora do sistema educacional, e é dirigida
a um público determinado com fins específicos de aprendizagem.
Aqui incluímos desde um curso de sapateado americano até um de
computação. Podem ou não se dar diplomas e seu valor é
extremamente variável. A educação informal é o processo pelo qual
todos os indivíduos ao longo da vida adquirem atitudes, valores,
aptidões e conhecimentos a partir da experiência cotidiana e das
influências que procedem do meio social: a família, o trabalho, os
museus, as bibliotecas, os meios de comunicação ( LIBEDINSK,
1997, p.173)

Os problemas inerentes à educação formal, constitutivos da formação do


professor e o cenário caleidoscópico das inovações e refuncionalizações, expostos por
Lúcia Santaella (2003), incentivadas pelo uso crescente das diversas mídias incidiram
sobre a forma de pensar, de se relacionar, no tempo, espaço, e conseqüentemente
contribuíram para a problematização de como se ensinar e aprender nessa nova era.
Existe na atualidade um fluxo de informações que podem ser acessados pelos
alunos por meio dos avanços tecnológicos, reconfigurando as múltiplas possibilidades
de comunicação que, por sua vez, reengendram diversas formas de agir, pensar e sentir
este fenômeno. Torna-se evidente a urgência da alteração, no contexto atual, do papel
do professor e de suas práticas, devendo este ser um mediador entre o conhecimento e o
aluno para estabelecer uma conexão entre os conteúdos imersos nessa comunicação.
A respeito da interação e da percepção John Dewey assim as define:

Uma experiência tem padrão e estrutura porque não apenas é uma


alternância do fazer e do ficar sujeito a algo, mas também porque
consiste nas duas coisas relacionadas. Pôr a mão no fogo não é,
necessariamente, ter uma experiência. A ação e sua conseqüência

1550
devem estar unidas na percepção. Essa relação é o que confere
significado; apreendê-lo é o objeto de toda compreensão. O âmbito e o
conteúdo das relações medem o conteúdo significativo de uma
experiência (DEWEY, 2010, p. 122).

Apreende-se, portanto, que Dewey, traduz a noção de experiência e de


aprendizagem que não prescinde da percepção dotada de sentido. Caso contrário não
pode ser considerada uma experiência que foi absorvida.
Pensar na recriação dos espaços de aprendizagem para além das paredes e do
confinamento escolar, estabelecendo redes de comunicação e de aprendizagem em
espaços não formais, nos inspira a pensar como os museus, enquanto espaços de
preservação do patrimônio e da arte, conforme Afrânio Mendes Catani na apresentação
da obra “O amor pela arte” de Bourdieu pondera:

Os museus abrigam tesouros artísticos que se encontram, ao mesmo


tempo (e paradoxalmente), abertos a todos e interditados à maioria das
pessoas. Indivíduos pertencentes a qualquer classe social e com
distintos graus de escolarização freqüentam museus, certo? Bem, em
termos: para viver a plenitude desse amor, livre de condicionamentos
e limitações, é necessário que os amantes possuam algumas
disposições, adquiridas lentamente, envolvendo dedicação, afinco e o
cumprimento de obrigações. Não existe nem pecado nem perdão, esse
amor é uma graça ou um mimo que surge "naturalmente", após a
assimilação do princípio do prazer (culto), produto artificial da arte e
do artifício - "a verdade oculta do gosto culto". Bourdieu pergunta se
"a prática obrigatória pode conduzir ao verdadeiro deleite ou se o
prazer cultivado é irremediavelmente marcado pela impureza de suas
origens" (BOURDIEU, 2007, pg. 9)

A respeito da sobrevivência dos museus diante dos desafios da


contemporaneidade, os pesquisadores RODRIGUES e ROCHA, assim avaliam:

Um desafio dos museus na contemporaneidade é a noção estática estar


sendo substituída pela ideia de movimento nas práticas institucionais
museológicas. O museu está incorporando as características de um

1551
ambiente de constante produção e agenciamento. Um espaço dinâmico
e apropriado para a arte e para os elementos de uma cultura que se faz
viva a cada arfar, inspirando, diante das leituras possíveis, os
propósitos desses ambientes culturais no presente. No exercício típico
da respiração contínua, os museus mantêm sua faceta de reinvenção,
adaptando-se ao contexto exposto e alinhando-se aos conceitos
hodiernos de redes, de distribuição e da sociedade contemporânea,
pulmão do seu fazer. Como expressa Frieling (2014), “o museu
tornou-se de facto um local produtivo de re-visão das condições e dos
contextos mutáveis de cada trabalho que envolva variáveis” (p. 164).
Uma atualização constante com práticas discursivas, colaborativas,
cooperativas, críticas em comutação com práticas contemplativas,
históricas e de análises. (RODRIGUES e ROCHA, 2016, pg. 137-146)

Evidencia-se, portanto, que esta pesquisa visa ir além do ato de contemplação


nos museus, investigando as múltiplas possibilidades de fruição da arte e das
aprendizagens, em especial o Museu Casa de Cora Coralina, eleito por nós enquanto
objeto de estudo em função da capilaridade cultural, pois está inserido na Cidade de
Goiás, Patrimônio Histórico da Humanidade cujo tombamento do centro histórico
ocorreu em 1978 pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional)
culminando no reconhecimento da Cidade de Goiás como Patrimônio da Humanidade
em 2001 pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e
a Cultura)13.
Para, além disso, nossa proposta tem como objetivo investigar qual a relação
entre um museu e a educação?

Essa é uma questão que tem despertado o interesse de pesquisadores e


museólogos ao longo das últimas décadas e dentre as possíveis respostas destaca-se
aquela que nos mostra a importância da ação educativa como meio de comunicação com
13
A cidade de Goiás é testemunha da ocupação e da colonização do Brasil Central nos séculos XVIII e
XIX. As origens da cidade estão intimamente ligadas à história das bandeiras que partiram principalmente
de São Paulo para explorar o interior do território brasileiro. O conjunto arquitetônico, paisagístico e
urbanístico do centro histórico de Goiás foi tombado pelo Iphan em 1978 e o reconhecimento como
Patrimônio Mundial veio em 16 de dezembro de 2001. Disponível em:
http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/36

1552
o público. Os museus têm se caracterizando cada vez mais como espaços de educação
não-formal e considerados como lugares de memória, os quais despertam o interesse das
comunidades nas quais estão inseridos pelo potencial que possuem de estabelecer um
permanente diálogo entre educação e cultura. A cadeia museológica que se desenvolve
nas instituições museológicas e consistem na coleta, organização e preservação de seus
acervos, tem como principal função contribuir para o ensino, pesquisa e extensão
oferecendo suporte à pesquisa para os diversos setores, das ciências humanas ou não,
voltadas para uma perspectiva histórica e sociológica dos fatos, no contexto brasileiro,
regional e local.

Cabe lembrar, que os museus entendidos como “lugares de memória” são


espaços em que os processos históricos são retomados e reconstruídos, frutos de uma
multiplicidade de documentos produzidos em distintas épocas. Longe de serem simples
depositários de objetos, eles oferecem o passado trazendo a história em narrativas que
reencontram o indivíduo nos ambientes intersubjetivos nos quais experimentou - não
sem contradições, a si mesmo e ao mundo. "Independente do papel elementar que a
narrativa desempenha no patrimônio da humanidade, são múltiplos os conceitos através
dos quais seus frutos podem ser colhidos" ( BENJAMIN, 1994, p. 214). Ao
observarmos a realidade dos museus atuais comparando-a à abordagem de Benjamin14,
compreendemos a importância dos museus - e daqueles que são os responsáveis pelas
atividades ali realizadas - para que seus usuários possam interpretar a história narrada
por meio dos acervos que se encontram sob sua guarda.

14
É importante destacar que o ensaio “O Narrador – considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, foi
publicado em 1936, sob influência da guerra de trincheiras e com a possibilidade de ascensão do
totalitarismo na Europa. Entretanto, consideramos a atualidade dos escritos de Benjamin, principalmente
quando aborda o "empobrecimento" da narrativa, cujo declínio foi influenciado pela difusão da
informação que nos possibilita a recepção de notícias do mundo todo em um brevíssimo espaço de tempo
(BENJAMIN, 1994, p. 203).

1553
Preservar a memória é, sem dúvida alguma, uma das formas de garantir o direito
à história dos vencedores e dos vencidos. “A memória regula posições existenciais e
políticas, fazendo buscar no passado seiva e inspiração para as apostas ativas de futuro”.
Acreditamos que a escrita da história não necessita apenas de documentos oficiais, mas
sim, pode contar também com qualquer fonte não escrita que a habilidade do historiador
permita, ou seja, tudo aquilo “que pertencendo ao homem, depende do homem, serve o
homem, exprime o homem, demonstra a actividade, os gostos e as maneiras de ser do
homem”15. Contudo, Le Goff salienta que, por trás de todo documento existe a
intencionalidade das pessoas, portanto, ele trás a lógica de quem o produz, pois é fruto
dos sujeitos sociais que vivenciam um determinado período histórico e querem
preservá-lo. Nenhum documento abarca a totalidade da verdade, ou a realidade, e os
significados que ela tem para os sujeitos vivenciados. Desse modo, o campo da
memória está passivo de ser compreendido, não como história, mas sim como o que se
pensa a respeito de história.

A diversidade existente na compreensão da noção de documento por parte dos


historiadores me reporta à concepção de documento/monumento exposta por Le Goff.
Este autor afirma que “o documento não é qualquer coisa que fica por conta do
passado, é um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que
detinham o poder. Só a análise do documento enquanto documento permite à memória
coletiva recuperá-lo e ao historiador usá-lo cientificamente, isto é, com pleno
conhecimento de causa”.16

Tendo como base as premissas aludidas acima, o objetivo desse estudo consistiu,
principalmente, em compreender as formas de interação entre museus, comunidade, e
fontes diversificadas de aprendizagens. Pretendeu-se, por meio da pesquisa documental,
desvelar saberes e fazeres peculiares de uma determinada cultura, um período histórico
15
LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In: Enciclopédia Einaldi, São Paulo: V. l, p. 98.
16
Ibdem, p. 102

1554
específico, e, além disso, refletir sobre a representatividade dos acervos, objetos,
coleções que “falam” e por meio dos quais se pode “decifrar” muitos fatos e versões de
uma mesma história. Buscou-se compreender ainda, o processo de consolidação do
Museu Antropológico da UFG, a concepção dos seus espaços educativos, refletir sobre
o que vem sendo chamado de educação museal e até que ponto, uma educação que
extrapola os muros da escola e interage com a cidade em suas múltiplas dimensões,
beneficia a comunidade à qual pertence.

Por meio das ações educativas, a democratização do acesso aos bens e espaços
culturais se amplia e o exercício da cidadania se efetiva. E, para que o público possa ter
uma experiência completa e transformadora no momento da sua experiência museal,
professores, pesquisadores da área, equipes educativas e pessoas que atuam como
mediadores em espaços culturais são, cada vez mais importantes e cada vez mais
precisam realizar o processo museológico de forma a promover o diálogo e a interação
constante entre os membros da comunidade.

Por fim, cabe-nos destacar que todo museu tem algo histórico. Não somente a
natureza de suas coleções se relaciona com a história, entendida no sentido mais
habitual/acadêmico do termo; mas, seus modos de atuação e, sobretudo, suas maneira de
se fazer conhecer seguem os parâmetros e mantém uma união estreita com metodologias
próprias da história (BALERDI, 2008,p. 99-105).

Conforme nos diz Balerdi17, todos os objetos que se exibem em um museu são
parte da historia, testemunhos múltiplos de um devir a partir dos quais cabe resgatar a
memória de um determinado momento. Inclusive no momento de exibir um
experimento científico ou uma taxonomia biológica ocorre esse processo: o que se vê, o
que se guarda, o que se expõe começou a existir para o homem no momento em que foi

17
Para saber mais: BALERDI, Inácio Díaz. Paradojas del sujeito. In: La Memória Fragmentada: el museo
e SUS paradojas. Gijón, Asturias: Ediciones Trea, 2008.

1555
descoberto; até então pertencia ao campo do ignorado, das sombras, do mistério: era
algo à margem da história. Quando o objeto vem a luz, quando se lhe atribui um
significado, ele recebe um valor e é inserido em coordenadas históricas. Por isso
também, o museu, além de ser uma metáfora da história, é um paradigma das conquistas
humanas. Paradigma que se desdobra em duas vias principais: a da sensibilidade e do
conhecimento.

Armazenamento de memória, o museu se desdobra diante de nós como um


resumo do que a humanidade tem sido capaz de criar, conhecer ou dominar. Funciona
como espelho onde se reflete a vida. Seletivo, sim, porém, em última análise, espelho.
Reflete a vida, porém sendo, como é, um âmbito territorial limitado, não pode dar conta
de todos e cada um dos matizes que ela produz. Refinar portanto, o que exibe, gerando
um testemunho do caráter, dimensão e peculiaridades de grupos humanos bem definidos
(BALERDI, 2008,p. 99-105).

Em relação ao Dossiê – Proposição da Cidade de Goiás na Lista do Patrimônio


da Humanidade, Andrea Ferreira Delgado (2005, pp. 133) ressalta que o mesmo
demonstrou a historicidade das séries discursivas que se cruzam no campo do
patrimônio, o que reforça a instituição de Goiás como cidade histórica sem
desconsiderar os processos de disputa entre os diferentes atores sociais, as categorias
discursivas e a construção de narrativas "que produzem os conteúdos simbólicos da
memória coletiva". Segundo Delgado, nesse documento elaborado para reconstruir a
imagem de Goiás como cidade histórica e turística, uma outra narrativa deve ser
considerada: "a monumentalização de Cora Coralina como símbolo da cidade,
entrelaçando o ofício da doceira que institui a comida-signo com o ofício da literata que
inscreve determinado passado na materialidade urbana e elabora um mapa da memória3
pessoal e coletiva" (DELGADO, 2005, pp. 133).

1556
É importante destacar a importância da "personagem" Cora Coralina no que diz
respeito ao ato de transformar o “valioso patrimônio histórico cultural e as nobres
tradições de Goiás”. Nossa proposta caminha na direção de analisar a importância do
Museu Cora Coralina para a narrativa histórica da cidade e de que forma o projeto de
Mídias Interativas Expográficas, cuja implementação se encontra em andamento no
Museu Casa de Cora Coralina, na Cidade de Goiás – GO, contribui para o desempenho
satisfatório das ações educativas que ali ocorrem.
Sabemos que na atualidade, as Tecnologias da Informação podem contribuir de
modo sistemático para ampliar o processo de ensino aprendizagem, especialmente no
museus. Museus e instituições culturais têm investido nas novas tecnologias da
informação como meio seguro, fácil, econômico e de grande impacto, para a difusão das
suas coleções e das várias atividades comunicativas que desenvolvem. Nesse processo
complexo, as tecnologias da informação e comunicação (TIC) podem desempenhar um
importante papel quanto ao desempenho das funções de documentar, valorizar,
interpretar e divulgar o bem cultural e os seus diversos significados.
Deve-se considerar ainda que as oportunidades de aprendizagem oferecidas
pelos museus “podem ser mediadas ou não pelas tecnologias digitais”, entretanto, é
preciso ressaltar que a utilização de recursos interativos voltados para as práticas
educativas pode estimular uma maior autonomia de aprendizagem desde que
estabeleçam vinculações entre os objetos e o conhecimento, oferecendo ao visitante
oportunidades de aprendizagem por meio do estabelecimento de um diálogo interativo
entre o observador e a coleção observada.
Acreditamos que a função educativa dos museus pode contribuir para facilitar
o desenvolvimento de atividades interativas a partir dos objetos expostos possibilitando
uma ação física do visitante sobre a exibição do acervo e, desse modo, amplia os
caminhos para a aprendizagem uma vez que as tecnologias digitais, como por exemplo,
internet, multimídia, comunicação por computador, simulações, games, dentre outras,

1557
permitem que o acesso às informações sobre os museus cheguem até os usuários. E que
as TIs podem se apresentar como um instrumento de grande eficácia quando se trata de
ampliar a interatividade entre a comunicação desenvolvida pelo museu Cora Coralina e
o público que para lá se dirige em busca de conhecimento.

Metodologias

O enquadramento das pesquisas em educação nos museus envolve


metodologias quantitativas e qualitativas: as metodologias quantitativas visam mensurar
a avaliação das estatísticas dos resultados obtidos pelas visitações nos museus (número
de visitantes, o uso e a ocupação dos espaços, avaliações da compreensão de temas
pelos visitantes após as visitas, entre outros), a pesquisa qualitativa permite a
compreensão dos processos envolvidos na experiência museal.
Bourdieu ao analisar a correlação existente entre o turismo e o nível de
instrução por intermédio da renda que assume característica de norma difusa, como
prática obrigatória “invocada por aqueles que têm ambições culturais mais
consistentes, ou seja, aqueles que pertencem ou aspiram a fazer parte do mundo culto”
(BOURDIEU, 2007, pg. 52).
A percepção do paradoxo entre o acesso aos museus e a constatação de que
uma minoria detém essa possibilidade, nos faz pensar, conforme Bourdieu propugna
que há uma tendência explícita por ele de relacionar o fenômeno com o nível de
instrução: quanto mais reduzida é sua freqüência mais baixo será o nível de instrução. A
falta da prática de consumo desse tipo de bem cultural é acompanhada pela ausência do
sentimento de privação:

A obra de arte considerada enquanto bem simbólico não existe como


tal a não ser para quem detenha os meios de apropriar-se dela, ou seja,
de decifrá-la. O grau de competência artística de um agente é avaliado

1558
pelo grau de seu controle relativo ao conjunto dos instrumentos da
apropriação da obra de arte, disponíveis em determinado momento do
tempo, ou seja, os esquemas de interpretação que são a condição da
apropriação do capital artístico, ou, em outros termos, a condição da
decifração das obras de arte oferecidas a determinada sociedade, em
determinado momento do tempo.

Assim, os procedimentos metodológicos adotados nessa investigação


consistirão na aplicação de questionários estruturados, na observação, na entrevista e na
análise documental, previamente submetidos ao Comitê de Ética da UFG, e na
observação qualitativa das sensações dos visitantes, dado a especificidade do Museu
Casa de Cora Coralina possuir mecanismos interativos e não apenas contemplativos,
que ensejam uma análise multidisciplinar envolvendo as artes, a sociologia, a educação
e a ciência da informação no campo das interações tecnológicas.
A experiência de nossa participação, enquanto membro voluntário do grupo de
trabalho responsável pela elaboração dos subprojetos desenvolvidos pelo MEDIALAB
BR e das aplicações de mídias interativas expográficas no ano de 2017, serão
detalhadamente descritas no escopo dessa investigação.
Assim poderemos mapear essas percepções para além do aspecto expográfico:
as informações, os desafios implícitos nas dinâmicas imprevisíveis ao olhar comum,
pulsando e interagindo com o público.

O que esperamos?

O objetivo principal dessa investigação é contribuir com os estudos


museológicos promovendo uma interface interdisciplinar entre os estudos sociológicos e
das práticas educacionais contemporâneas.
O produto final dessa investigação e os resultados da pesquisa vinculados ao
Museu Casa de Cora Coralina representam um investimento importante para a produção

1559
acadêmica goiana, dada a relevância científica, cultural, política e econômica do projeto
expográfico permanente e de suas intersecções que promoverão impacto social de
abrangência regional com reverberações nacionais e internacionais, levando o nome do
Estado de Goiás e de nossa cultura para além de nossas fronteiras.

Referências bibliográficas

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1562
ENTRE REALIDADES: USO DE NOVAS MÍDIAS NA COMUNICAÇÃO
MUSEAL

Priscila Maria de Jesus*


*Universidade Federal de Sergipe
Cristina de Almeida Valença Cunha Barroso**
Resumo: O presente artigo consiste nas primeiras reflexões do projeto de pesquisa em
desenvolvimento sobre o uso das novas mídias dentro dos espaços expositivos e seu caráter
comunicacional e educativo. Busca-se, por meio do levantamento das possibilidades de novas
mídias que são utilizadas dentro dos espaços expositivos, destacar suas potencialidades e
características, bem como apresentar um projeto em desenvolvimento de uma das autoras, que
consiste na criação de um game 2D e os recursos disponíveis para uso dessa tecnologia dentro
dos ambientes museais.
Palavras-chave: Comunicação; Game; Mediação; Museu; Novas Mídias.

Abstract: The present article consists of the first reflections of the research project in
development on the use of the new media within the exhibition spaces and their
communicational and educational character. It is aimed, through the survey of the possibilities
of new media that are used within the exhibition spaces, to highlight its potentialities and
characteristics, as well as to present a project under development by one of the authors, which
consists in the creation of a game 2D and the resources available for use of this technology
within museum environments.
Key-words: Communication; Game; Mediation; Museum; New Media.

1563
A concepção de exposições consiste em um processo longo, complexo e criativo,
no qual curador ou equipe expositiva criará um ambiente instigante, informativo e capaz
de transmitir em seu circuito, uma mensagem pré-determinada, a narrativa expositiva. A
construção da narrativa expositiva parte de um processo de seleção do objeto e daquilo
que se deseja transmitir, no qual se criará uma mensagem e um circuito por meio de
objetos pré-determinados que juntos, transmitem ao público a informação desejada.
Nesse processo o museu age como um mediador entre as obras e o público visitante. É
importante ressaltar que o teor da mensagem e como será construída essa relação objeto-
visitante, serão determinadas pela missão e objetivos do museu presentes no
planejamento museológico, em caso de exposições de longa duração, e também a
proposta da equipe de curadoria ou editais, caso se aplique, no caso de exposições
temporárias.

Nesse processo criativo o uso de recursos cada vez mais tecnológicos, ou novas
mídias, são implementados nos espaços expositivos, como o uso de realidade virtual,
games e mecanismos interativos que aproximem, entretenham e informem o visitante do
museu. O uso de recursos com o próprio smartphone do visitante como uma extensão da
visita, colocando o museu nessa nova realidade cultural e social, na qual o uso de
aparelhos como celulares cada vez mais completos e cheios de recursos adquire um
espaço significativo no dia a dia de todos, sejam jovens ou adultos.

Hoje um aparelho de celular realiza funções que um computador não realizava à


10 ou 15 anos atrás. Na atualidade é possível utilizar um smartphone como se fosse um
computador, pois o mesmo oferece cada vez mais recursos e que não são distintos de
seu irmão de mesa. Segundo Santacana (2014) esse uso dos aparelhos celulares e a
crescente necessidade da sociedade do uso de redes sociais como o instagran, facebook
e twitter encontram um paralelo com o museu:

1564
[...] nos permiten compartir las experiencias, las ideas y los deseos
más íntimos. Sin embargo, esta realidade se traduce en el mundo del
patrimonio y de los museos com infinidade de imágenes que surcan el
ciberespacio procedente de museos u de entornos patrimoniales; las
grandes reservas reservas naturales del mundo son colonizadas por
turistasarmados con estos microaparatos, y com ellos son divulgadas y
sus más secretos rincones llegan a cualquer parte del mundo. (p. 15-
16)

Assim, os museus e instituições patrimoniais, tem percebido as potencialidades


do uso de recursos tecnológicos para a promoção e comunicação de suas atividades e
implementar atividades de educação patrimonial para seus visitantes dentro das novas
perspectivas das experiências culturais. O Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM) ao
lançar a campanha #EuAmoMuseus, no qual solicitava que os visitantes postassem fotos
de visitas nos museus nacionais com a hashtag do título do projeto, visava valorizar e
fortalecer as ações dessas instituições, bem como era uma forma prática e de efeito para
a divulgação dessas instituições nas redes sociais, uma forma eficaz de marketing de
boca, no qual um visitante espalha para a sua rede de seguidores uma instituição
visitada e que gostou, gerando assim, novos potenciais visitantes.

A implementação do uso do smartphone como uma extensão do visitante e da


visita parte-se do pressuposto de que o uso desse equipamento e sua tecnologia cada vez
mais avançada, permite possibilidades comunicacionais e educacionais que vão além da
selfie no museu, mas como uma extensão da proposta expositiva. Assim, Desvallées e
Mairesse (2010) ao afirmarem que é possível conceber e identificar o tipo e a história da
exposição a partir do recursos utilizados, pode-se também diagnosticar o tipo de museu e seu
público em potencial.

1565
El vasto campo constituido por las respuestas formuladas a la cuestión
de “mostrar” y de “comunicar” permite el esbozo de una historia y una
tipología de exposiciones que podemos concebir a partir de los medios
utilizados (objetos, textos, imágenes en movimiento, entorno,
elementos electrónicos; exposiciones “monomediáticas” y
“multimediáticas”); a partir del carácter lucrativo o no de la
exposición (investigación, blockbuster, exposición espectáculo,
exposición comercial); de la concepción general del museógrafo
(expografía del objeto, de la idea o del punto de vista),
etc. (p. 38).

Dessa forma, é possível pensar em um sistema de avaliação-classificação das


exposições a partir da interatividade presente nas exposições dos museus de Sergipe seja
um projeto viável e que necessário nesse momento de avanços tecnológicos e recursos
expositivos ao utilizar as novas mídias. Nesse momento, não estaremos trazendo uma
possível classificação por meio da utilização do uso de novas mídias no ambiente
expositivo, mas sim, quais seriam essas novas mídias e uma possibilidade de uso por
meio da criação de um jogo em 2D.

Espera-se que com as discussões levantadas a partir do presente projeto se


possa desenvolver atividades relacionadas à tecnologia em museus, voltadas para a
comunicação museal, como, a longo prazo, o desenvolvimento de softwares, jogos e
tecnologias próprias, tornando os discentes cada vez mais capacitados para trabalharem
e dialogarem com os novos recursos que a contemporaneidade oferece.

As novas mídias nos museus

A utilização das novas mídias nos espaços expositivos tem crescido de forma
exponencial dentro dos museus, sobretudo por sua relação cada vez mais íntima e
dissociável do dia a dia das pessoas. É importante que as instituições dialoguem e façam
uso dessas ferramentas, tanto no setor cultural e no educativo, levando em consideração

1566
o tipo da narrativa que se pretende construir e as possibilidades orçamentárias da
instituição para implementação e posterior manutenção. Faz-se necessário frisar essa
questão, uma vez que com o crescimento das novas mídias tecnológicas os museus
passaram a desejar estes suportes nos seus espaços, mas um estudo de viabilidade
econômica de manutenção a longo prazo desses recursos, muitas vezes não são feitos.
Assim, no presente texto traremos algumas possibilidades, sobretudo de baixo custo,
mas que trazem informação e interatividade com o público visitante.

Assim, desde a década de 1970, quando a museologia começou a reescrever seus


conceitos, tornando-os atuais e de acordo com o seu tempo, faz-se necessário que seus
espaços expositivos acompanhem essa evolução. Desde a utilização de recursos
audiovisuais como televisores e computadores, até recursos multimídias como projeções
e hologramas 3D, realidade virtual e realidade aumentada e, como inserir os
smartphones também nessas propostas. Essas novas mídias vão além do mostrar, mas
procuram interagir e informar o visitante.

As projeções talvez sejam as mais conhecidas e utilizadas dentro do espaço


museal, podem proporcionar efeito e destacar obras, informações ou um determinado
espaço do museu. Seu relativo baixo custo, uma vez que é necessário apenas o
computador e o projetor de imagens, segundo Locker (2011), na sua utilização deve-se
considerar questões práticas como a iluminação do ambiente, atentar para a visibilidade,
por parte do visitante, daquilo que esteja sendo projetado, bem como a disponibilização
de locais de repouso para que se possa apreciar o que está sendo mostrado.

No rol das tecnologias que fazem uso de aparelhos celulares para sua interação
destaca-se os QR Codes, que consiste em um código de barras em duas dimensões que
possibilita o visitante acessar mais informações sobre o acervo. Pode ser considerada
uma tecnologia de baixo custo, uma vez que não precisa de profissionais específicos

1567
para a sua geração e manutenção, como no caso da realidade aumentada e da realidade
virtual, que é necessário um rol de profissionais que vão de programadores,
modeladores, direção de arte, entre outros.

Através dos códigos é possível redirecionar os visitantes para suportes


informacionais dos mais variados, como textos curtos de até 300 caracteres, sms, textos
em pdf, vídeos, aplicativos e até mesmo é possível criar questionários de avaliação de
exposições para os quais os visitantes seriam redirecionados, desde que no momento do
uso tenham em seus telefones instalado um aplicativo leitor de QR Code e acesso à
internet. Sua confecção também não demanda custos maiores, uma vez que a web
disponibiliza sites que convertam a mídia deseja em código QR.

Assim, seus usos e possibilidades podem ser dos mais simples, disponibilizar
informações adicionais sobre o que está sendo exposto como uma forma de diminuir os
textos da exposição, bem como a possibilidade de possibilitar uma imersão na
exposição com uma linguagem e layout diferenciado, ou seja, apresentar uma exposição
em forma de quadrinhos ou jogos para o público infanto-juvenil.

Seguindo o conceito de tecnologias midiáticas que tem como por foco o uso de
smartphones, existe também a Realidade aumentada (RA), surgida na década de 1960 e
sua criação atribuída a Ivan Sutherland, como o primeiro a criar um sistema que se
pensava uma realidade aumentada, embora muito distante do que se utiliza nos tempos
atuais. É possível definir a realidade aumentada em:

[...] una variación de los entornos virtuales o de realidad virtual como


se conoce comúnmente. En la tecnología de realidad virtual el usuario
se encuentra inmerso en entorno sintéticos, y queda aislado del mundo
real que le rodea. Por el contrario, la realidade aumentada permite al
usuario ver en todo momento el mundo real al que se le superponen
objetos virtuales coexistiendo ambos en el mismo espacio. (AZUMA
apud TORRES, 2013, p. 18-9)

1568
A realidade aumentada, assim, produz imagens e efeitos em três dimensões a
partir de superfícies ou locais. Nesse universo, seria como uma sobreposição de um
objeto ou imagem virtual tridimensional, que foram geradas por um computador a partir
da modelagem da mesma, no plano real, por meio de smarthponhes, tablets, e outros.
Comparado ao QR Code, a realidade aumentada se diferencia pois projeta na tela uma
imagem que não é real, mas dialoga com o que está no seu entorno. Pode trazer
possibilidades educativas e comunicacionais variadas, sobretudo no campo museal, ao
recriar ambientes e objetos que não estejam na sua totalidade, dando ao visitante de
poder ver como ele era anteriormente.

E a Realidade aumentada se aproxima dos QR Codes no momento que traz


informação diferenciada e mais possibilidades de informações para seu público
visitante, como destaca Torres (2013).

Una de las aplicaciones que la realidad aumentada tiene dentro de


entornos museísticos há sido el desarollo de guías o assistentes
personales que permiten a los visitantes realizar un recorrido por las
diferentes salas accediendo a información adicional sobre las piezas
que contienen. (TORRES, 2013, p. 70)

Um outro recurso tecnológico e que tem grande aceitação, sobretudo entre o


público mais jovem, são os jogos e games. Podem ser desenvolvidos com o intuito de
recriar um espaço expositivo, trazer informações diferenciadas, bem como criar
entretenimento com o acervo existente no espaço museal. Para o desenvolvimento de
games de computadores ou para celulares, o investimento pode ser alto pois é necessário
uma equipe de profissionais específicos para a sua confecção. No entanto, a internet
dispõe de aplicativos específicos e fáceis de utilizar para a criação de jogos, sendo
necessário para isso que o seu desenvolvedor conheça um pouco de programação.

1569
Desenvolvendo Games

Na atualidade existem alguns aplicativos para o desenvolvimento de jogos


gratuitos na internet como o Construct e o Game Maker. A experiência aqui mostrada
teve como base a utilização do game maker para a elaboração de um jogo que
explorasse o espaço do museu de forma ficcional e lúdica para um público infanto-
juvenil.

O enredo: O Museu Histórico de Salvatore era um espaço museal que reunia


uma grande coleção de livros raros, múmias, esculturas e exemplares de várias épocas e
sociedades do mundo. No entanto, certo dia, o palácio dos Salvatore, construção
centenária e com várias histórias de assombrações, torna real suas lendas e expulsa
todos seus funcionários e visitantes. Os fantasmas dos ancestrais Salvatore, sofreram
uma maldição, que por causa da sua avareza e maldade seus espíritos nunca teriam paz e
uma vez que o castelo completasse quinhentos anos eles voltariam à vida. No entanto,
foi uma semivida que lhes coube e, assim, tomam para si o palácio mais uma vez e cabe
ao Museólogo Lúcio dos Santos reunir mais uma vez o acervo para tirar do poder dos
fantasmas dos ancestrais Salvatore. O jogador, assim, tem que reunir o maior número
possível de relíquias para tirar do poder dos fantasmas dos Salvatore.

O jogo é composto de duas fases nas quais o jogador deve coletar o maior
número possível de relíquias, que ao serem coletadas, geram pontos. No caso, fez-se um
story-board do que se queria com o game. O story-board foi usado para coreografar
ações espaciais e temporais, ordenando por meio de desenhos momentos chaves da
narração do jogo.

1570
Foram utilizados os sprites disponibilizados pelo jogo, além de alguns baixados
na internet, embora seja possível criar seus próprios sprites (itens) que apareçam ao
longo do jogo por meio de corel draw.

Os Backgrounds utilizados estavam disponibilizados na biblioteca do jogo


(madeira do piso), bem como baixados (jardim e score). Para a tela inicial (com o nome
do jogo), final (parabéns por ter completado o jogo) e game over foram criadas imagens
por meio do programa corel draw, seguindo a estética utilizada no jogo, que após foram
transformados em backgrounds. Os backgrounds feitos tiveram como layout a textura
de pergaminho ou papel antigo, para que sua linguagem visual pudesse ser remetida ao
tema do jogo que foi o museu tradicional.

Na ambientação por meio de sons utilizou-se, também, os disponibilizados pelo


próprio programa para criar um movimento e interação ao obter os itens, vidas ou
morrer, o que deu dinamismo ao jogo.
Os Rooms ou fases do jogo tem até o momento duas fases principais, mais duas
fases secretas que são alcançadas por meio de itens especiais. No entanto para o
desenvolvimento do jogo utilizou-se sete rooms a saber: Room 1 – Menu, tela inicial do
jogo que dá as opções Play, Quit e Info (que apresenta o nome e e-mail do
desenvolvedor).
O room 2 consiste no Primeiro nível do jogo (v. Figura 01), assim, seu grau de
dificuldade também é mais fácil, nessa fase cabe ao jogador recolher o maior número
possível de itens que gerem score (livros, pergaminhos e baús), existem algumas vidas
espalhadas no jogo (maçãs) alcançar a porta que leva ao segundo nível. Cabe destacar
que ao final do jogo é possível ranquear os nomes dos jogadores, obtendo, assim, quem
fez mais pontos.

1571
Espada que leva para a
primeira fase secreta

Figura 01 – Primeira fase

O terceiro room corresponde ao segundo nível do jogo, apresenta um maior grau


de dificuldade representado pelo aumento de inimigos, para completar o jogo o player
deve coletar o maior número de itens e a insígnia de ouro.

Chave que leva para


a segunda fase
secreta

Figura 02 – Segunda Fase

1572
O room 4 é a Fase secreta 1 (v. Figura 03), para acessar essa fase o jogador deve
coletar a espada disponível na fase 1 que o levará ao jardim do palácio, onde deve
recolher moedas, gemas e diamantes, mas deve se desviar dos fogos explosivos que
retiram moedas. Como se trata de uma sala secreta o inimigo não retira a vida do
jogador, apenas diminui o seu score.

Figura 03 – Fase Secreta 1

A Fase secreta 2 corresponde ao room 5 (v. Figura 04), para acessar essa fase o
jogador deve coletar a chave disponível na fase dois que o levará ao porão do palácio,
onde deve recolher moedas, gemas e diamantes, mas deve se desviar dos fogos
explosivos que retiram moedas, como se trata de uma sala secreta o inimigo não retira a
vida do jogador, apenas diminui o seu score, como na fase secreta 1.

1573
Figura 04 – Fase Secreta 2

O sexto room é a tela final do jogo, onde se parabeniza o jogador por ter
completado o jogo e oferece as opções play (jogar novamente) e quit (sair do jogo). E o
room 7 é o Game over (Figura 05), tela que aparece quando os jogadores perdem todas
as vidas e não completam o jogo, nessa tela há o botão back (reiniciar) no qual o
jogador retorna ao primeiro nível do jogo e quit (sair do jogo).

Figura 05 – Room Game over

1574
Cabe ressaltar, mais uma vez, que o projeto do jogo foi construído e elaborado
por apenas uma pessoa, a museóloga Priscila de Jesus, com o intuito de a partir do jogo
sejam trabalhadas questões do curso de Museologia como o profissional museólogo, os
tipos de museus, o acervo de museu entre outros, uma vez que o jogo trabalha com
noções tradicionais do que é um museu e a partir de então abrir para discussões com o
público jovem.

Considerações Finais

As exposições têm um propósito, uma finalidade que lhe é inscrito desde o


momento da concepção da ideia até a execução de fato do evento. A seleção temática, a
seleção da equipe, dos objetos que serão expostos, a escolha da forma como serão
expostos, os textos que acompanham a exposição... todos são elementos que fazem
parte do programa expositivo mas que cumprem uma carga subjetiva de escolhas. Dessa
forma, as intencionalidades e as subjetividades estão arraigadas ao “cenário museal”.
Nessa direção, as novas tecnologias colaboram não só para promover o melhor uso dos
espaços, mas também para colaborar com o processo de comunicação à medida em que
facilita a apropriação do conhecimento ali exposto.

Os museus e os espaços de patrimônios devem acompanhar as novas tecnologias


e fazer uso das mesmas para potencializar suas ações educativas, comunicacionais e de
entretenimento. As novas mídias devem ser vistas como mais uma ferramenta de
trabalho, eficaz e aplicável, uma vez que não dá para dissociar e se fechar em si mesma,
os museus devem ver como uma aliada, que instiga o público de diferentes faixas
etárias.

1575
As novas mídias não irão resolver todos os problemas dos museus, nem existem
para isso, mas sim perceber a partir de suas potencialidades e limitações que são
encontradas nos usos de mídias tecnológicas, possibilitar um discurso interpretativo das
narrativas expositivas diferenciado, bem como lançar um novo olhar sobre e para os
patrimônios, nos trazendo novas reflexões, novos conhecimentos e uma diversidade de
interpretações que são possíveis com os seus diferentes usos.

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1576
CARTOGRAFIAS NA INTERNET: MUSEUS, PÚBLICO E PATRIMÔNIO NA
REDE

Débora Cristiane Blois Nascimento*


Carmen Lucia Souza Da Silva*
*Universidade Federal do Pará

Resumo: Este artigo apresenta os resultados das atividades desenvolvidas no âmbito do plano
de trabalho atrelado ao projeto de pesquisa Cartografias na Internet: Entre Memórias e
Patrimônio que analisa a interlocução entre memória, patrimônio, virtualização e configuração
de ambiências na internet. Por meio da coleta de dados e do mapeamento do ciberespaço, estão
sendo realizadas atividades de investigação voltadas à identificação dos ambientes de fala na
rede em que os museus são discutidos, assim como a análise do conteúdo destas discussões.
Nesta fase, são apresentados os resultados das análises feitas sobre as falas do público do Museu
de Arte Sacra de Belém do Pará (MAS) no portal TripAdvisor, selecionado por apresentar
grande número de manifestações de visitantes de instituições museológicas. Falas estas que
revelam o protagonismo do “ciber-público” de museus, o que colabora para redefinição de
espaços de opinião. A pesquisa objetiva estudar, por um lado, como o público recorre a este
espaço como local de troca de experiências, diálogos, e novas vivências sobre museus, e, por
outro, como a internet se configura como um ambiente de salvaguarda da memória e do
patrimônio, acessível planetariamente. Para refletir sobre estas ações investigativas, recorremos
às contribuições de autores como Francisco Rüdiger (2011), que dialoga com esse trabalho
quando trata da questão das transformações tecnológicas que a sociedade sofreu a partir do final
do século XX. Pedro de Andrade (2010), ao tratar da comunicação e de seus significados no
espaço interdimensional do museu. Além de Marília Xavier Cury (2005), sobre estudos de
público em espaços museológicos, dentre outros. A Museologia e a Comunicação, ao refletir
sobre essa nova sociedade, são vias para pensar a expansão sócioespacial da memória e do
patrimônio, o que exige uma abertura reflexiva e interdisciplinar diante da complexidade desses
estudos.
Palavras-chave: museologia e comunicação; memória; patrimônio; estudo de público; internet.

Abstract: This article presents the results of the activities developed in the work plan linked to
the Internet Cartographies research project: Between Memories and Heritage which analyze the
interlocution between memory, patrimony, virtualization and configuration of ambiences on the
internet. Through data collection and mapping of cyberspace, research activities are being
conducted to identify the speech environments in the network in which museums are discussed,
as well as to analyze the content of these discussions. In this phase, the results of the analyzes of
the public speeches of the Museum of Sacred Art of Belém do Pará (MAS) on the TripAdvisor
portal, selected for presenting a large number of visitors' manifestations of museological
institutions. These speeches reveal the protagonism of the "cyber-public" of museums, which

1577
contributes to the redefinition of spaces of opinion. The research aims to study, on the one hand,
how the public uses this space as a place to exchange experiences, dialogues, and new
experiences about museums, and, on the other hand, how the internet is configured as an
environment to safeguard memory and Patrimony, accessible globally. To reflect on these
investigative actions, we use the contributions of authors such as Francisco Rüdiger (2011), who
dialogues with this work when dealing with the question of the technological transformations
that society suffered from the end of the twentieth century. Pedro de Andrade (2010) in dealing
with communication and its meanings in the interdimensional space of the museum. And
Marília Xavier Cury (2005), on studies of the public in museological spaces, among others.
Museology and Communication, when reflecting on this new society, are ways to think about
the spatial expansion of memory and heritage, which requires a reflexive and interdisciplinary
openness in view of the complexity of these studies.
Key-words: museology and communication; memory; heritage; public study; internet.

1578
Com o advento de novas tecnologias, se consolidam novas formas de se
relacionar com as artes, o patrimônio e os museus. Identificam-se novos conceitos e
novas interações nos espaços de compartilhamento na internet. O tema e seu debate são
de relevante caráter para a comunicação, as artes e a museologia. O uso da socialização
do conhecimento e de seus ambientes de fala perpassa por caminhos complexos,
sobretudo na contemporaneidade, diante dos avanços da tecnologia digital e de conexão
em rede. Identificar esses ambientes, no que diz respeito à interação sobre Museus e
Patrimônio e a forma com que se constituem é o objeto de estudo desse artigo. Para
isso, considera-se que a linguagem, a comunicação, a informação e a interação em rede
são aspectos importantes no processo de construção do conhecimento científico no
campo da museologia, diante de um novo paradigma afetado por estas transformações.
Vale ressaltar que a museologia é uma ciência que se consolida aceleradamente nos
séculos XX e XXI; e que a avaliação museológica, considerada segundo Cury (2005, p.
162) essencial para a vida dos museus, é pouco praticada no Brasil. A este aspecto,
soma-se o protagonismo crescente do público, que amplia sua voz e participação,
também sobre museus e patrimônio, em ambientes colaborativos na internet.
A falta de processos avaliativos nos museus do país reflete a ausência de
metodologias apropriadas ligadas a um quadro teórico referencial. Ainda segundo Cury
(2005, p. 162), a consciência da importância existe, porém não está sendo implantada de
forma eficiente. Talvez por falta de recursos humanos ou materiais, talvez por outros
motivos. Mas é sempre importante destacar que o processo avaliativo jamais termina,
pois há sempre necessidade de ajuste e de acompanhar as transformações na sociedade,
para quem se volta o papel social dos museus. É preciso ouvir o público para que as
atividades museológicas ocorram de forma produtiva. Essa prática sistemática requer
pessoal qualificado e disponível para esse fim.
A Internet criou um novo espaço para essa avaliação, para o pensamento, para
o conhecimento e para a comunicação. No ciberespaço, os ambientes de fala se

1579
constituem através de cada usuário conectado nessa imensa rede. Na
contemporaneidade pode-se considerar que:

[...] O ciberespaço (que também chamarei de ‘rede’) é o novo meio de


comunicação que surge da interconexão mundial dos computadores. O
termo especifica não apenas a infra-estrutura material da comunicação
digital, mas também o universo oceânico de informações que ela
abriga, assim como os seres humanos que navegam e alimentam esse
universo. [...]. (LÉVY, 1999, pag. 17)

Portanto, o ciberespaço aglutina todos nós, tomou conta do planeta. Nesse


contexto os ambientes de fala se tornam repositórios de conhecimento e refletem a alma
de um novo mundo em formação, que se revigora nos apelos por uma democracia cada
vez mais interativa, participativa e colaborativa.

Os dispositivos participativos estão na moda. Eles remetem à ideia de


consulta, de fórum, de painel, de convergência de consenso, de júri
cidadão, de debates deliberativos, isto é, a um leque de noções, de
situações e de formalismos cujas distinções se apagam em prol de uma
tendência que eles encarnam em conjunto: o questionamento crítico
sobre as formas tradicionais da democracia representativa a favor da
qual se desenvolvem as formas de uma democracia chamada
‘participativa’. A recente experimentação de comitês de visitantes nos
grandes museus, o envolvimento de centros de cultura científica e
técnica na concretização de debates e workshops participativos
poderiam levar a pensar que se trata de uma ampliação das
experiências de democracia participativa do campo político para o
campo cultural. (EIDELMAN, 2014, pag. 289)

A comunicação e a informação nos ambientes de fala sobre os Museus pautam-


se na relação entre: o visitante e sua experiência museológica aliada a uma linguagem
peculiar aplicada ao ciberespaço. Sobre essa nova forma de interação social e seus
locais de fala, buscamos nessa investigação fontes de pesquisa que evidenciassem esse
novo modo de interação e seus ambientes de fala. Procuramos repositórios de

1580
informação e por meio da análise de seu conteúdo nos pautamos numa investigação
ampla sobre como a discussão desses conteúdos é feito no ciberespaço. Para que os
museus cumpram o seu papel social, é de suma relevância que se ouça o seu público,
sua comunidade, seus visitantes. Enfim, que os estudos de público se tornem um hábito,
para que assim possamos captar com maior clareza suas percepções e, a partir dessas
percepções, possamos fomentar a discussão e o debate produtivos na melhoria dos
museus, das exposições, dos espaços de patrimônio e de toda sua concepção.
Na pesquisa utilizamos métodos de percepção do público no ciberespaço,
adequando-nos a métodos pautados na bibliografia existente sobre o assunto: avaliação
museológica. Utilizamos o método de categorias que ajudam a compreender melhor o
desenvolvimento dessa prática em museus. Uma dessas categorias refere-se ao “estudo
de visitantes” (visitor studies) ou “pesquisa de visitante de museus” (museum visitor
research). Esses estudos apontam as percepções do público, suas experiências,
vivências, aprendizados, atitudes e interações sociais. A partir dessa leitura associamos
ao espaço cibernético sobre o qual esse visitante tem acesso. O mapeamento dessas
avaliações será apresentado mais adiante nesse artigo.
Objetiva-se compreender por meio da investigação científica esses dados
mapeados que versam sobre a avaliação de museus e de como essa avaliação se expande
para a internet, através das conversações travadas pelo público dos museus, ativo ou em
potencial, em seus diversos locais de fala. O estudo de público visa também a
compreensão de como a Museologia e a Comunicação, em diálogos interdisciplinares
com outras áreas, como a Tecnologia da Informação, abarcam cientificamente essa nova
maneira de salvaguarda e vivência do patrimônio, de memórias e da cultura.

Nossos métodos de pesquisa estão centrados no ambiente de rede, focados


numa abordagem cartográfica, documental e de análise dos dados dos ambientes de fala.
A metodologia aplicada nesta pesquisa também baseia-se em contribuições
interdisciplinares entre a Museologia, as Artes, a Comunicação e a Tecnologia, e de que

1581
maneira essas áreas diversas dialogam e colaboram para se pensar e se discutir a
expansão dos museus e patrimônios para a rede de computadores. Para Castells (2005,
p. 41), “nossas sociedades estão cada vez mais estruturadas em uma oposição bipolar
entre a Rede e o Ser”. Os meios de comunicação passam por processos de
horizontalização ao adquirirem ao mesmo tempo um caráter individual e global. Os
usuários estão se tornando produtores do conteúdo e influenciando essa mídia por meio
da recepção e do intercâmbio.
Nosso método avaliativo partiu da coleta de dados no ciberespaço em
ambientes de fala produzidos em portais de turismo como o portal TripAdvisor,. Na
busca pela comunicação e interatividade, os usuários encontram um meio de relatar suas
experiências, suas vivências e relações com os museus. Observamos que essa troca não
ocorre com o mesmo vigor nos portais dos próprios museus estudados – do Centro
Histórico de Belém (CHB) -, pois em muitos casos nem há esse espaço para o diálogo
com os visitantes e quando há é pouco produtivo, pois a resposta por parte da instituição
é escassa ou atemporal.
Após a análise desses dados, construímos tabelas e gráficos especificando cada
opinião sobre o Museu de Arte Sacra de Belém do Pará (MAS), o primeiro a ser
analisado nesta etapa, através de categorias como: acervo, exposição, arquitetura,
mediação, dentre outras. Obtivemos uma ampla visualização sobre o que o público quer
e o que o MAS tem a oferecer. Esse estudo de público abarca usuários/visitantes de todo
país e do exterior, com faixas etárias, educação formal e conhecimento de mundo
diferenciados, por isso sua relevância no campo museológico e nos estudos avaliativos.
Na aplicação dos conteúdos teóricos antes e durante a análise dos dados fomos
em busca de resultados relevantes na construção de um estudo de público sobre o MAS.
Através do portal TripAdvisor (figura 1), fizemos primeiramente um recorte na
busca dos ambientes de fala, realizando um mapeamento sobre a avaliação do MAS,
assim como da maioria dos museus do CHB: o museu do Espaço Cultural Casa das

1582
Onze Janelas, Museu do Estado do Pará (MEP), Museu de Arte de Belém (MABE), e o
Museu do Encontro, do Forte do Presépio. No entanto esse artigo tratará apenas do
Museu de Arte Sacra. À posteriori, em trabalhos futuros, os estudos sobre os outros
museus também serão abordados. Essa nova forma de interação em redes telemáticas
promove a socialização do conhecimento por meio do empirismo dos usuários, que
classificam a visitação ao museu e ao acervo físicos, em locais de fala no ciberespaço.
Essa expansão de informação espaço-temporal busca revitalizar o espaço público, a
interação, e a disseminação cultural dos museus. Segundo Cury (2005, p. 162), a
reflexão sobre a realidade gera o confronto entre a relação vivida – os dados de fato –
com a relação desejada – o ideal. A produção de juízo de valor na internet é realizada
através de uma referência e de um referido, ou seja, o quanto se aproximam e o quanto
se distanciam do objeto mencionado.

Figura 1: Ambiente de fala sobre o Museu de Arte Sacra do Pará no Portal TripAdvisor

1583
De acordo com essas relações verificamos semelhanças e discrepâncias entre o
que se quer e o que se tem. Esse distanciamento entre referente e referido que é em parte
minimizado pela internet é um elemento provocador de discussão e de análise.
Abaixo temos a imagem em print screen (figura 2) de duas opiniões e de como
esse ambiente de fala se organiza através do portal TripAdvisor.

Figura 2: recorte do ambiente de fala no portal TripAdvisor sobre o MAS de Belém

A partir desses ambientes investigados, pensamos a internet como um espaço


em que a sociedade se expressa e compartilha, rompendo paradigmas que antes
circunscrevia a amplitude destas ações a grupos restritos, políticos e sociais, inclusive
institucionais. O que vai ao encontro de pensar a rede como:

[...] uma expressão da celebração consciente do valor da sociedade


interconectada no lazer e no trabalho. A versatilidade da mesma em
fornecer informações e entretenimento funciona como um tecido
cultural conectivo que sustenta o valor ideológico da sociedade em
rede. [...] (BURNETT; MARSHALL, 2003, p. 42-43).

1584
No ciberespaço essas relações comunicativas se dão por meio de portais não
necessariamente dos próprios museus, mas em especial através de portais que
incentivam a participação colaborativa entre os usuários, como os relacionados a
organizações voltadas para viagens e turismo. Nesse processo de busca pelos ambientes
de fala, encontramos uma sociedade cada vez mais ativa no compartilhamento de
vivências e também de suas memórias, expandindo ainda olhares sobre o patrimônio
cultural. Este compartilhamento resulta na colaboração direta entre os usuários, entre o
público visitante e o público em potencial, não sendo, portanto, mediada pelas
instituições museais, o que pode resultar na valorização do papel do público a partir da
própria valoração deste na rede.
Os arquivos socializados e também os ambientes de fala sobre museus e
patrimônio, os quais, hoje temos acesso e que outrora não tínhamos, foram analisados e
seus resultados serão apresentados de forma gráfica a seguir, assim como a forma com
que essas informações são socializadas nesses espaços. Diante dessa pesquisa traçam-se
estudos sobre como esses repositórios ampliam a discussão sobre os Museus, a
Memória e o Patrimônio.
Após a coleta de dados e a seleção dos museus partimos para um recorte
espaço-temporal dessas avaliações feitas pelos visitantes dos museus. Essa amostra
pode ser conferida nas imagens de planilha (figura 3) e dos gráficos (figuras 4-7):

1585
Figura 3: planilha criada para análise das falas manifestadas no portal TripAdvisor sobre o MAS de
Belém

As planilhas que foram criadas para análise das falas de usuários no portal
TripAdvisor estão divididas em opiniões positivas e negativas sobre o MAS, agrupadas
em subcategorias como: acervo, exposição, arquitetura, mediação, desejo, cidade,
divulgação, dicas e outros usos. Mapeando dessa maneira conseguimos conhecer
minuciosamente as falas dos usuários e sobre o que falam com relação a este museu.
As subcategorias foram pensadas da seguinte forma, sempre a partir do olhar
do público que se manifesta no portal:
1. Representação – Como esse espaço é visto pelos usuários, se mais como igreja ou
como museu? Na contemporaneidade, essa igreja é vista como feita para uma elite
ou para o público de forma geral? Se como museu, como esse museu é visto pelos
usuários?
2. Acervo – Como os usuários veem o acervo, qual a relação que têm com o mesmo?
Em questões de religiosidade, como veem os objetos sacros?

1586
3. Exposição – Como os usuários observam a exposição, o espaço em que é
ambientado, pensado para a mostra desses objetos?
4. Arquitetura – Qual a relação dos usuários no ambiente como um todo; prédio
histórico, igreja ou museu? Como essa arquitetura foi sendo preservada ao longo
dos séculos, segundo eles?
5. Mediação – Como os usuários veem a mediação, quais atividades lúdicas estão
inseridas no ambiente museal?
6. Desejo – O que mais deve estar inserido dentro do museu? Quais os desejos dos
visitantes para tornar o espaço mais completo e agradável?
7. Cidade – Qual a relação do museu com a cidade juntamente com seus usuários?
8. Divulgação – Quais as informações que são repassadas em outros ambientes?
Como as informações sobre exposição, horários, dias de funcionamento, dentre
outros, são divulgados aos visitantes?
9. Dicas – De acordo com suas experiências, como os usuários dão dicas sobre a
visitação ao museu?
10. Outros usos – Quais os outros usos que são dados aos espaços do museu e do
prédio onde este está, como: casamentos, concertos, encenações teatrais, dentre
outros?

Diante dessa análise pudemos criar gráficos para mostrar com maior clareza
quais as porcentagens dessas opiniões e como elas podem persuadir à visitação ao
MAS.

1587
Figura 4: gráfico de análise geral feito em colunas contendo as opiniões sobre o MAS de Belém

Para a construção desses gráficos foram coletadas 396 opiniões manifestadas


através do portal TripAdvisor no período de abril de 2012 a maio 2017, e agrupadas em
opiniões positivas, negativas, neutras e híbridas. Usuários expõem suas visões empíricas
sobre o MAS e essas opiniões são o objeto de estudo dentro dessa pesquisa. Essa
amostra é composta por gêneros sexuais, diferentes faixas etárias e de representações
geográficas distintas.
Dividimos as planilhas em subcategorias como já foi dito e a seguir
apresentaremos as de maior relevância: acervo, exposição e arquitetura. Os gráficos a
seguir (figuras 5-7) representam as subcategorias em que as opiniões estão mais

1588
centradas. Seu volume e conteúdo estão representados em gráficos de coluna, assim
como o geral para que a compreensão de sua porcentagem seja mais bem visualizada.

Figura 5: gráfico das opiniões sobre a subcategoria acervo do MAS de Belém

Nessa subcategoria analisamos os repositórios de fala acerca do acervo do


MAS, apresentadas durante a interação na internet. No portal, os usuários expuseram de
forma empírica como foi visto o acervo durante as visitas ao museu, quais as mudanças
que puderam observar ao longo dos anos quando se tratava das obras e de suas trocas de
lugar dentro do ambiente. Eles observaram, por exemplo, que a Igreja de Santo
Alexandre ficou “desfalcada” de suas imagens após a criação do MAS, e que a
movimentação das peças para o museu deixou o altar da igreja “empobrecido”. As
observações dos visitantes apontam para a relação entre os objetos, a memória, e o
lugar, o que pode remeter a um paralelo entre a igreja, o museu e a fé, ativados pelo

1589
deslocamento das peças, e por consequência também de vivências nestes ambientes,
agora expandidos ao se manifestarem em falas socializadas com outros usuários na
internet.
Com relação às obras de arte barroca datadas do século XIII e XIX que
compõem o acervo, os visitantes falaram sobre a riqueza, a variedade, a mão de obra
indígena, a raridade de algumas imagens, com destaque para Nossa Senhora do Leite.
Essas imagens foram quase totalmente destruídas durante a Santa Inquisição, pois o
julgamento por parte dos inquisidores era de que, no caso de Nossa Senhora do Leite, a
imagem era “indecente” ao representar Maria amamentando o Menino Jesus. No entanto
essa raridade ainda pode ser vista no acervo do MAS. Dentre as diversas opiniões sobre
essa imagem em questão há uma constante, a de que muitas mulheres que estão grávidas
ou que querem engravidar recorrem a ela para fazer promessas e pedidos de ajuda para
terem um bom parto ou para conseguirem conceber.
Outros visitantes deram bastante ênfase à questão da beleza das obras e de sua
conservação, comparando a arte barroca do acervo com a arte barroca exposta em
museus de arte sacra pelo mundo, concluindo que não perde em nada para esses
acervos. E ainda ressaltaram que foi o mais rico acervo em arte sacra que já viram.

1590
Figura 6: gráfico das opiniões sobre a subcategoria exposição no MAS de Belém

As opiniões referentes à subcategoria exposição levaram em consideração


durante a análise dos dados como o visitante observa a exposição, qual o seu olhar
quando se refere à forma como são expostas as obras, o ambiente no qual estão
inseridas, dentre outras classificações. Para a grande maioria dos usuários, a exposição é
bem pensada e está de acordo com o período histórico ao qual pertence. Contudo,
alguns visitantes reclamaram, por exemplo, da dificuldade que a falta de iluminação
gera quando se trata de apreciar as obras expostas. Uma avaliação do público que pode
entrar em conflito com questões técnicas, já que, vale ressaltar, as obras do acervo em
questão são bastante antigas e que por esse motivo não podem ficar expostas à alta
iluminação, pois seus pigmentos, além de outros componentes podem ser
comprometidos. A conservação preventiva se faz necessária diante de tamanha
exposição.

1591
Outro ponto relevante no que diz respeito à exposição pauta-se na questão do
percurso. Os visitantes através do portal TripAdvisor enfatizam a importância de se
começar o passeio pela Igreja de Santo Alexandre. Ressaltam o altar em estilo rococó
inúmeras vezes, destacando a riqueza e a beleza das imagens expostas. Para eles o
visitante precisa ir sem pressa para que possa assim desfrutar de toda a exposição no
museu e também na igreja.
É de suma relevância ainda deixar claro que o MAS, além de sua exposição
permanente, também possui as exposições temporárias. No ambiente da igreja, são
ainda realizados concertos de música clássica, casamentos, espetáculos teatrais,
palestras, dentre outros eventos. Muitos usuários ainda mencionaram a questão de seu
valor histórico para a cidade de Belém, afinal o MAS faz parte do centro cultural e
histórico da cidade. O prédio e muitas das obras que compõem o acervo datam dos
primeiros séculos após a fundação da própria cidade, em 1616.

Figura 7: gráfico das opiniões sobre a subcategoria arquitetura do MAS de Belém

1592
Quando se trata de arquitetura, a opinião do público é quase unânime.
Ressaltam a importância do MAS por seu valor histórico e cultural e como salvaguarda
da memória e da fundação da cidade de Belém. Algumas opiniões divergem quanto ao
espaço, com relação a sua preservação e ao restauro que impôs mudanças radicais no
ambiente como a retirada dos bancos de madeira, característicos nas igrejas de um modo
geral, e a fixação em seu lugar de poltronas acolchoadas, além da climatização ambiente
ser feita por meio de ar condicionado. Percebe-se nessas falas a relação que alguns
usuários têm com a igreja em oposição ao museu. Vale ressaltar que a Igreja de Santo
Alexandre não realiza mais missas, esse espaço abriga parte da exposição permanente e
outros eventos já mencionados. Porém para alguns visitantes essas mudanças
descaracterizaram a igreja.
A arquitetura externa e interna da igreja que abriga o MAS foi reformadas, e
ainda hoje revelam um deslumbre aos visitantes. Para alguns usuários as obras parecem
que saltam das paredes em pleno voo. A pouca iluminação foi pensada para realçar
apenas os objetos, o que talvez possa ser o motivo dessa sensação. Construída em pedra
no século XVII pelos primeiros padres jesuítas com mão de obra indígena, sua
arquitetura hipnotizante e rica em detalhes rococó revelam todo o estilo do período
barroco.
Para a maioria do público que avaliou através do portal TripAdvisor, esse
museu é um lugar para ser apreciado, revisitado, contemplado. Por fazer parte do centro
histórico de Belém e ficar próximo à baía do Guajará, sua visita torna-se aprazível
principalmente à tarde. Segundo o público, a visitação ao MAS se constitui em uma das
melhores opções para quem visita a cidade.
No estudo de público são apresentadas diante do pesquisador as diversas
identidades modeladas na internet. Sob esse prisma, no caso do ciber-público, podemos
ver hoje a redefinição desses espaços de opinião e de construção da memória e do
patrimônio. Esse fato social é discutido por Andrade (2010) “como a multiplicidade de

1593
personalidades de natureza prismática ou multifacetada na forma de ciberpersonagens”,
que o usuário de Internet pode construir e desconstruir. Apropriando-se desse
ciberespaço, o usuário da rede de computadores cria uma identidade que segundo
Andrade (2010) podemos chamar de aracnídea, ou seja, o usuário tece uma teia de
personalidades “logadas” entre si e também com outros usuários. Disseminando nos
diversos ambientes suas opiniões sobre os mais diferentes assuntos. No que diz respeito
ao que discutimos neste trabalho, suas opiniões sobre os museus. Cada um assume um
duplo papel, de produtor e receptor desse conhecimento, apropriando-se dessas
informações e compartilhando suas experiências.
Dessa maneira o cidadão comum exerce sua liberdade de expressão e assume o
protagonismo de opinar, orientar e compartilhar conhecimento, frequentemente
assumindo empiricamente o papel do especialista, muitas vezes ausente no processo de
comunicação que poderia ser favorecido pelas instituições. Torna-se o que Andrade
(2010, p. 48) chama de ‘lay-scientist’, ou seja:

[...] Se o cidadão, na sua vida quotidiana, desenvolve ‘etno-métodos’,


ou seja, soluções práticas para resolver os seus problemas diários, será
que de certo modo, num museu, seja ele físico ou digital, o agente
social ordinário assume-se como uma espécie de ‘lay-scientist’, ou
cientista comum? [...] (ANDRADE, 2010, p. 48).

Mesmo sem ser um especialista, o público de museu no ciberespaço usufrui do


seu papel cidadão que age e pensa a sociedade na qual está inserido, compartilhando
saberes com seus pares, criando outros modos de conhecimento, produzindo conceitos e
relações sociais, interagindo no espaço intercultural numa via de mão dupla. Esse
diálogo entre o “cientista comum” e o especialista poderia abranger diversas
possibilidades, ao reforçar o diálogo com a sociedade. Ainda segundo Andrade (2010, p.
48):

1594
com a literacia18 quotidiana e a literacia científica. Estes atores sociais
ao praticarem o compartilhamento de uma ‘epistemologia comum’,
contribuem para a pesquisa quotidiana e para uma rede de
conhecimentos em forma de ‘teia’, que gera o comportamento
aracnídeo, refletindo as relações que se estabelecem entre o sujeito
indagativo e o objeto inerte.

Levando em consideração a opinião do público sobre os museus, devemos


pensar a sociedade que se manifesta, a sociedade que a compartilha e socializa; e em
qual contexto essa sociedade está inserida. A opinião do público local, o qual visita o
museu físico a trabalho, pesquisa ou lazer, difere inúmeras vezes da opinião do público
nacional ou internacional (global), o qual possui outros olhares e visita o museu
esporadicamente cumprindo por vezes o roteiro turístico programado pela empresa
contratada.
A opinião do público local analisa o museu sob a ótica quotidiana numa
problemática de dimensões locais; o público nacional ou internacional (global) reflete a
problemática do museu sob óticas mais extensas no nível de Estado-nação. No entanto
esses diferentes tipos de opinião convergem para a construção social da memória e do
patrimônio. No ciberespaço se estabelece um novo local de salvaguarda, ampliando o
conhecimento sobre o Museu de Arte Sacra, assim como de outros museus do Centro
Histórico de Belém e fora dele. O diálogo promovido pela tecnologia da rede mundial
de computadores, outrora impensado, se torna realidade e interfere no mundo, apesar do
uso da internet pelos museus ainda ser recente.
O Conselho Internacional de Museus (ICOM) ainda não possui uma comissão
específica para se discutir a internet e a interatividade em museus. Essas sugestões são

18
Literacia: substantivo feminino, qualidade ou condição de quem é letrado. Ped. P m q.
LETRAMENTO.
Comunicação, em diálogo com a Tecnologia da Informação, abarcam cientificamente essa nova maneira
de salvaguarda e vivência da memória, do patrimônio e da cultura.

1595
tratadas pelo International Committee for Documentation (CIDOC), por meio de um
grupo específico para esse trabalho.
As questões que são levantadas aqui visam debater como a internet é utilizada
em um processo expandido de interação entre museus e o público. Mais do que um
meio de comunicação, a internet aproxima a opinião do “lay-scientist” e do especialista,
utiliza a visibilização de saberes e estabelece conexões com o promotor e instituições
afins, e, sobretudo, entre o próprio público, interessado na temática e em colaborar com
ela, compartilhando diretamente vivências sobre museus e patrimônio, em uma
sociedade cada vez mais conectada mundialmente. Estabelece interação e troca de
experiências mais rápida e eficiente com os envolvidos na trama, inclusive os
profissionais do museu, que dispõem de outras formas de ouvir o público, que se
manifesta espontaneamente na rede, em colaborações múltiplas de dimensões
planetárias.
A comunicação em museus se faz por meio da troca de informações, de
experiências, da interação com o público e principalmente com discussões num âmbito
museológico acerca dessa interatividade. Interação em rede e diálogo interdisciplinar
entre Museologia, a Comunicação e a Tecnologia da Informação, entre outras áreas, que
abarcam cientificamente essa nova maneira de salvaguarda e vivência da memória, do
patrimônio e da cultura.
A internet se torna esse espaço de “comunicação em rede” e de produção do
conhecimento coletivo. Essas mensagens (opiniões) refletem por meio dessa nova
acessibilidade o empirismo museológico do visitante que expõe e veicula a realidade do
museu contemporâneo através desse ambiente de novas vivências. Esse protagonismo
do participante (visitante) modifica a interação com o museu, estabelecendo uma
relação de troca com o outro e construindo uma apropriação cultural estabelecida em
rede. Ao visitar uma exposição deixa seu relato para assim permitir que o outro forme
juízo de valor acerca daquele determinado museu. Da mesma forma esse protagonismo

1596
está inserido no outro, formando “teias” de sentido e de memória coletiva. O patrimônio
cultural passa por mudanças, também tecnológicas, e é função do museu acompanhar
essa nova realidade, interagindo com seu público. Ignorar sua opinião, seu
protagonismo, não fará com que essas mudanças não ocorram nem no espaço físico,
nem no espaço cibernético.

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tecnológica. Redes de Comunicação de Significados no espaço interdimensional do
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1597
VIRTUAL MUSEUM. In: ENCYCLOPAEDIA Britannica. 2008. Encyclopaedia
Britannica Online. Disponível em:
<http://www.britannica.com/EBchecked/topic/630177/virtual-museum>. Acesso em:
jan. 2017.

1598
MUSEUS E PATRIMÔNIOS VIRTUALIZADOS: A MUSEOLOGIA E AS
TECNOLOGIAS DIGITAIS PARA ALÉM DA CONEXÃO

Carmen Lucia Souza Da Silva*


Ana Claudia Da Cruz Melo*
*Universidade Federal do Pará

Resumo: Este trabalho apresenta experiências de cartografias e práticas de virtualização do


patrimônio, em 3D, de espaços de Arte Pública, disponibilizadas na Web. São experiências
realizadas no âmbito de dois estudos transdisciplinares entre as áreas da Museologia,
Comunicação, Realidade Virtual e Artes Visuais, que têm entre suas metas colaborar com a
reflexão sobre a comunicação e a cultura digital e a memória socializada em rede. Fundamenta-
se em compreensões de patrimônio cultural e as tecnologias, segundo os conceitos
de virtual (FOUCAULT, AUGÉ), agenciamento (MACHADO) e em aplicações da teoria
social do patrimônio (CANCLINI). Objetiva-se com este trabalho não apenas demonstrar como
as tecnologias de comunicação expandem e conectam espaços, mas principalmente, como podem
oferecer à sociedade outras formas de vivenciar o patrimônio cultural e os museus.
Palavras-chave: Patrimônio; Arte Pública; Virtual; Tecnologia; Agenciamento.

Abstract: This paper presents experiences of cartography and virtualisation practices of the 3D
heritage of public art spaces made available on the Web. These experiments are carried out
within two transdisciplinary studies between the areas of Museology, Communication, Virtual
Reality and Visual Arts, which have among their goals collaborate with reflection on
communication and digital culture and socialized network memory. It is based on
understandings of cultural heritage and technologies, according to the concepts of the virtual
(FOUCAULT, AUGÉ), agency (MACHADO) and applications of social heritage theory
(CANCLINI). The objective of this work is not only to demonstrate how communication
technologies expand and connect spaces, but mainly, how they can offer to the society other
ways of experiencing cultural heritage and museums.
Key-words: Heritage; Public Art; Virtual; Technology; Agency.

1599
Das conexões
As tecnologias digitais de comunicação abriram muitas e novas janelas à
humanidade. Permitiram a integração entre mídias, tornaram a circulação de
informações muito mais rápida, desafiaram os limites do tempo e do espaço e,
principalmente, expandiram o ato comunicativo e interativo. Todavia, entre tantas e
infinitas possibilidades, uma delas nos instiga. Trata-se da capacidade imanente que
estas tecnologias possuem de permitir a produção e, ao mesmo tempo, a
disponibilização de memórias, dando, inclusive, acesso a informações esquecidas ou
desconhecidas por estarem circunscritas às barreiras físicas tradicionais. Fenômeno que
motiva a investigação realizada pelo projeto de pesquisa Cartografias na Internet –
Entre Memórias e Patrimônio, desenvolvido no âmbito Universidade Federal do Pará
(UFPA). Através deste projeto mapeamos e construímos cartografias de espaços na
Web, com o intuito de inferir como a internet vem possibilitando (re)construir ou
(re)descobrir o patrimônio cultural e as instituições museológicas. Buscamos
compreender esse processo em fluxo e, principalmente, responder como se
(re)configuram diante de novas possibilidades de pensar o virtual. Questionamento que
também se alimenta do debate entre o “fabricar esquecimento” do tempo em tela e a
“febre de memória”, na qual se inscreve o crescimento dos museus desde a segunda
metade do século XX, o que demanda pela necessidade de “investigar nossa
contraditória percepção das transformações da temporalidade, de modo que nos permita
‘pensar juntos a amnésia e o boom da memória” (MARTÍN-BARBERO, 2006, p. 71).
Investigação, por outro lado, norteada, pelo que foi visionado por Michel
Foucault que, mesmo ainda não se referindo à era da internet, já afirmava no final dos
anos 60 do século passado que estamos diante da “época do simultâneo, [...] da
justaposição, do próximo e do longínquo, do lado a lado, do disperso” (FOUCAULT,
2009, p. 411). Esta época, segundo Foucault (2009, p. 411), caracterizada por
experiências de mundo que se assemelham mais a uma rede que religa pontos e que

1600
entrecruza sua trama. Uma rede complexa que para estudá-la é preciso, como prescreve
Latour (2012), rastrear relações mais sólidas e descobrir padrões mais reveladores por
meio de vínculos entre quadros de referência instáveis e mutáveis.
Por meio do projeto Cartografias na Internet, buscamos, assim, juntar a “trama”
com os “pontos”, por acreditarmos que a rede tecida reúne nós, em reverso à
lineariedade em extremos, e deve ser considerada em sua complexidade. Almejamos a
compreensão integrada, ao invés da polarização dos estudos; a ação dos sujeitos, sem
desconsiderar os elementos de conexão. Para isso, utilizamos uma metodologia híbrida,
que envolve diversos softwares como de Web crawler e de construção dos grafos, para
obtenção de materiais que permitam observar e descrever espaços. Um trabalho
investigativo que, entre outros aspectos, mostra que vivenciar o patrimônio cultural ou
espaços museológicos, na contemporaneidade, representa uma experiência em processo
de expansão e de fortalecimento da conexão, entre espaços e tempos múltiplos, portanto
não excludentes. Como um deslocar-se do passado ao presente, diante do futuro,
através de ambientes e representações, sincréticos, que, como portais, convidam à
passagem pendular entre o esquecimento e a memória, entre a significação e a
ressignificação, entre o (des)conhecimento e o (re)conhecimento. Um movimento
processual e dinâmico, mas não-linear, que deixa exposta a complexidade desta era da
comunicação digital em rede quando se trata da expansão dos usos do patrimônio,
especialmente, na Web.
Constatação que, primeiro, exige considerar a união entre duas posições
antagônicas no campo dos estudos sobre o patrimônio, frequentemente postas em
choque. De um lado, a tradição que parte do ponto de vista de que o patrimônio,
material ou imaterial, é representação da herança cultural de um povo (LIMA, 2013, p.
49). Do outro, a aquela que clama pelo uso social do patrimônio (CANCLINI, 2006, p.
193-204), que só teria a ganhar com as novas tecnologias comunicacionais. Para nós, o

1601
ideal é que os estudos integrem e não polarizem estes pontos de vista, os enriquecendo
com a inserção de debates sobre a cultura digital e em rede.
Isso fica claro por meio dos dados da cartografia das tecnologias usadas pela
rede digital brasileira de museus, um dos estudos desenvolvidos pelo projeto
Cartografias na Internet. Ao observar a socialização do patrimônio e da memória na
internet, visualizamos que esta rede digital é formada predominantemente por websites
com finalidade institucional de divulgação de serviços. Há também a compreensão de
outros usos da tecnologia, como a indicada pelo conceito do Instituto Brasileiro de
Museus (IBRAM) de Museu Virtual:

Entendemos como museu virtual a instituição sem fins lucrativos que


conserva, investiga, comunica e interpreta bens culturais que não são
de natureza física. Isto significa dizer que todo o acervo do museu
virtual é composto por bytes, ou seja, potencializado pela tecnologia.
Por conseguinte, sua comunicação com o público é realizada somente
em espaços de interação cibernéticos. O processo de cadastramento de
ambas as categorias de museus citadas segue a mesma lógica dos
museus presenciais, ou seja, é autodeclaratório. (BRASIL, 2011a, p.
20-21)

Ao lado dessa forma de considerar o virtual há ainda experiências de


disponibilização de visitas pela internet com visualização 360° dos museus, patrimônio
cultural, cidades, espaços de arte e acervos museológicos. O chamado Tour Virtual
360°. O site Era Virtual é um dos pioneiros na comercialização dessa técnica no Brasil e
disponibilização de aplicativos. E o faz afirmando:

Transpor museus, exposições e monumentos do patrimônio cultural


brasileiro do mundo real para o virtual é o exercício de nossa equipe
na busca da valorização do que somos. Promover a plural identidade
brasileira tem sido nosso ideal. As parcerias estabelecidas pelo ERA
VIRTUAL visam tornar o projeto uma referência de material didático
não-formal dentro das escolas. Graças ao apoio da Fundação VALE,
está sendo possível o lançamento de novas etapas do ERA VIRTUAL,

1602
como o CIDADES PATRIMÔNIO. Com esta ação promovemos ainda
mais democratização, ainda mais acesso. [...] Não perca tempo, baixe
o aplicativo em seu smartphone, prepare sua viagem e aprenda mais
sobre esse Patrimônio da Humanidade. (ERA, 2016)

Criado em 2008, o Era Virtual permite as "visitas virtuais" a museus como Cora
Coralina, Imperial, da República, a exposições Biomas do Brasil, Cadê a Química,
Energia Nuclear, Carlos Chagas, Olhar Viajante, o Corpo na África e ao Teatro
Municipal do Rio de Janeiro e a Igreja da Pampulha.
Além do Era Virtual, observa-se crescente número de empresas na internet que
oferecem os serviços de 360°, especialmente, às igrejas e prefeituras. Como é o caso do
Museu Virtual de Brasília, que o site Portal Brasil do Governo Federal o exalta como
diferente dos demais por “empregar conceitos da museologia e do turismo para
contribuir com a educação patrimonial ao mesmo tempo em que promove a cidade,
estimulando entre os que não conhecem a capital federal o desejo de visitá-la”
(BRASIL, 2011b).
O próprio Google, em 2011, por meio da tecnologia Street View e de um veículo
exclusivamente desenvolvido para o projeto, o inicialmente denominado Google Art
Project, fotografou em 360 graus o interior de lugares como o MoMA, de Nova York, o
Museu Van Gogh, em Amsterdã, a Tate Britain e a National Gallery, de Londres, e
começou a disponibilizar, na internet, primeiramente, a visitação virtual de 17 museus e
a visualização das principais obras. Em agosto de 2017, no agora denominado Google
Arts & Culture, contabilizava-se 3.002 Museum Views19. Destas, 87 estão no Brasil.
Entretanto, com exceção do Era Virtual que agrega breves áudios apresentando
os espaços, alguns vídeos, e outras tecnologias, inclusive para utilização através de
aplicativos para smartphones e tablets, e o Google Arts & Culture, com a tecnologia
19
Esta quantidade foi retirada do próprio Google Arts & Culture, contudo nem todos os Museum Views
são referentes a museus, como indica o nome, apesar destes serem maioria. Nas novas inserções feitas em
2017, por exemplo, constam inclusive espaços de projetos de biodiversidade e conservação, como o
projeto Tamar.

1603
Street View, readequada aos Museum Views, as demais experiências, no Brasil, são
quase que exclusivamente visuais, grande parte estáticas.
O que de certa forma demostra o potencial ainda embrionário das redes digitais
de comunicação em relação aos Museus e o patrimônio cultural. Especialmente, no caso
dos museus brasileiros na internet, onde a ideia de museu virtual é recente e direcionada
a compreensão de inexistência de referentes físicos, como sinaliza o conceito do
IBRAM, ou de divulgação. Porque ao mesmo tempo que a Web abriga cada vez mais
acervos digitalizados para que possam ser visitados de forma desterritorializada e
atemporal, de modo a promover a universalização do acesso à cultura e arte,
grande parte das instituições museológicas utiliza a web para a divulgação de serviços e
acervos, ainda passando distante da capacidade de agenciamento.
Foi o que demonstrou outra cartografia concluída em fevereiro de 2017, que teve
como objeto de estudo a rede de instituições museológicas brasileiras representadas no
Google Arts & Culture, plataforma online do Google Cultural Institute pela qual o
público pode explorar virtualmente espaços expositivos, conhecer informações
técnicas sobre obras de arte e acessar imagens de alta resolução de trabalhos artísticos
abrigados pelos parceiros da iniciativa. O estudo dessa rede teve como objetivo,
especialmente, investigar como a museologia, a arte e a comunicação, em diálogos
com as tecnologias, têm expandido memórias e identidades, utilizando-se da
comunicação digital e em rede. Por conseguinte, suscitar um questionamento sobre a
percepção do patrimônio cultural Web e como a arte e cultura vêm se universalizando,
cada vez mais, por intermédio dela.
Nossa cartografia, realizada sobretudo no segundo semestre de 2016, mapeou 31
parceiros brasileiros do Google cadastrados. Porém, o escopo foi reduzido às
instituições que atendiam aos seguintes critérios: a) possuir espaço expositivo
(preferencialmente físico) e permanente; b) possuir site oficial; c) não deve ser parte de
outro domínio. Desse modo, a rede social resultante é composta por 15 atores, incluindo

1604
o site da iniciativa do Google. Assim, a rede social resultante é composta pelas
seguintes instituições (quadro 1): Casa Guilherme de Almeida, Fundação Iberê
Camargo, Instituto Inhotim, Instituto Moreira Salles, Instituto Vladimir Herzog,
Museu Afro Brasil, Museu da Imagem e do Som de São Paulo, Museu da
Língua Portuguesa, Museu de Arte Moderna de São Paulo, Museu do Café, Museu do
Futebol, Pinacoteca do Estado de São Paulo, Museu do Amanhã e Museu de
Arte Moderna do Rio de Janeiro.
Certos softwares foram necessários para a elaboração dos sociogramas. O
crawling Visual Web Spider foi usado para identificação de conexões e o UCINET 6, de
análise de redes, para a obtenção de métricas referentes a centralidade, densidade, e
identificação de hubs e autoridades. A interpretação dessas métricas é fundamentada
em conceitos da Teoria dos Grafos, área da Ciência da Computação e Matemática,
e oferece um retrato mais preciso e qualitativo do objeto de estudo. Para a
visualização do sociograma da rede foi usada a plataforma Gephi, um software que cria
grafos a partir de matrizes organizadas com as informações coletadas do processo
anterior. Entre outros softwares utilizados, podemos citar ainda o de criação de
diagramas Edraw Mind Map para elaboração do mapa mental apresentando os
principais recursos encontrados nos sites analisados.
A partir do domínio Google Cultural Institute, a observação deste segmento da
rede permitiu outras perspectivas acerca da ambiência e de como a memória e o
patrimônio difundem-se na Web através de fluxos informacionais. Isto é, como a
sociedade vem vivenciando e compartilhando a memória e o patrimônio em conexões
no ciberespaço. De forma mais ampla, verifica-se que isto ainda se dá visando informar
sobre serviços, missão institucional e apresentar acervos. Ocorre basicamente por meio:
1) da venda de ingressos online, 2) de informações sobre rotas de acessos (quase sempre
o Google Maps), 3) de divulgação de exposições e programações vinculada as redes
sociais - Facebook. Google+, Twitter, Instagram -, sites avaliativos e de viagens e

1605
turismo; 4) da exploração de acervos online basicamente através do street view e fotos
panorâmicas em 360º, além de alguns caso de realidade aumentada. Há ainda alguns
que disponibilizam recursos midiáticos, como o vídeo, galeria de fotos, podcast e game,
além do multilinguismo.
Outra característica desta rede brasileira diz respeito à falta de acessibilidade e
de inclusão digital. A conexão na web é usada mais como um meio de informação sobre
localização de rampas para cadeirantes no espaço físico dos museus. Menos da metade
dos sites oferecem a possibilidade de alternar o tamanho da fonte. A opção de alto-
contraste, assim como a disponibilização de plug-ins de tradução em Libras (Língua
Brasileira de Sinais) foram encontradas em apenas 13% dos sites. Nenhum dos sites
analisados dispõe da opção de visualização de páginas em versões monocromáticas,
recurso necessário para pessoas com daltonismo. A possibilidade de navegação via
teclado é de extrema importância para pessoas com dificuldades motoras. Proporciona-
se melhor qualidade de acesso se a navegação não for dependente do mouse, podendo
ser realizada com alguns comandos do teclado ou com periféricos especiais. Contudo
46.67% dos sites não oferecem esse recurso. Por isso, para além da conexão, as redes
precisam e devem pensar na acessibilidade digital, o que é, sem dúvida, um desafio para
universalização da cultura.

Ao agenciamento
Para além dessas formas que vêm sendo utilizadas para expansão do patrimônio e
da memória, é que apresentamos outra via, a partir de experiências realizadas no âmbito
do projeto Transcodificações Urbanas, desenvolvido também na UFPA. Visamos
experienciar a socialização do patrimônio, na Web, tendo em vista princípios
integradores que norteiam os estudos e atividades. Isto quer dizer que partimos da
premissa de que é necessário não se circunscrever somente na busca de “objetos
‘autênticos” de uma sociedade, mas também rumar para o desafio de considerar o

1606
processo de reconstrução de sua “representatividade sociocultural” (CANCLINI, 2006,
p. 202). Uma representatividade que se expande para o ciberespaço. Nossos estudos
levam em conta ainda como se mobilizam estas reapropriações, na atualidade, afetadas
pelo paradigma sociotécnico (CASTELLS, 2003, p. 287). Em uma perspectiva que
considera que a existência de vários tempos e espaços, já identificada por Foucault
(2009, p. 411-422)20, se expande por ambientes cada vez mais conectados, os
entrelaçando, fazendo com que não se possa mais fragmentá-los, mas pensa-los juntos,
em conexão. Dito de outra forma, já não é mais possível pensar em preservação do
patrimônio sem a urgência de se refletir sobre a transformação que o atravessa, sob os
usos sociais das tecnologias emergentes e, ao mesmo tempo, se apropriar dessas
tecnologias.
O Transcodificações Urbanas, iniciado em 2011, faz esses dois movimentos.
Na prática trabalha com a coleta de informações sobre monumentos históricos e de Arte
Pública de Belém do Pará, e, sobretudo, as disponibiliza através do uso de novas
tecnologias. O faz por meio do site www.monumentosdebelem.ufpa.br em pelo menos
duas frentes.
A primeira desvelando no que se vê o que não se percebe, ou fazendo enxergar o
que antes era “invisível” em relação à história dos monumentos e da Arte Pública. Faz
isso por meio de pesquisas de materiais e documentos restritos a Bibliotecas e Arquivos

20
Para refletir sobre espaços e tempos múltiplos, Foucault (2009, p. 411-422) traz os conceitos de
heterotopias e heterocronias. O primeiro princípio fundamental da heterotopia, apontado por Foucault, é
que todas as culturas criam algum tipo de heterotopia e que elas são uma constante em todos os grupos
humanos. À época, apontou a existência de reminiscências desses lugares: colégios internos, o serviço
militar para jovens. O segundo princípio trata dos diferentes usos que a sociedade pode fazer de
determinada heterotopia, à medida que se desenvolve, tornando-a inclusive diferente da função original.
Outro princípio trata do funcionamento das heterotopias. Elas só ocorreriam plenamente quando os
homens se encontram em um tipo de ruptura absoluta com a tradição temporal. Neste caso, o cemitério
seria um lugar altamente heterotópico. Uma heterotopia que para o indivíduo tem início na heterocronia,
que pode ser percebida através da morte, da dissolução até o desaparecimento. O conceito de heterocronia
trata da acumulação de vários tempos em um único espaço, cujo recorte temporal a liga à heterotopia.
Como heterotopias do tempo, cita os museus e as bibliotecas, “nas quais o tempo não cessa de se
acumular e de se encarapitar no cume de si mesmo” (FOUCAULT, 2009, p. 419).

1607
Públicos, que, portanto, requerem a visita presencial e compreensão técnica. Uma
atividade que nem sempre é acessível à maioria da população. São analisados
documentos públicos, de gestão, leis, termos de lançamento, estudos para restauração e
conservação, entre outros, além de textos de jornais de época e livros que integram o
acervo de órgãos públicos do Pará, como a Biblioteca Pública Arthur Vianna, Arquivo
Público, o Departamento de Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural (DPHAC),
Museu do Estado do Pará (MEP), Biblioteca do Museu de Arte de Belém (MABE) e
Fundação Cultural de Belém (FUMBEL), e ainda da representação do Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), entre outros. No site é possível
encontrar atualmente informações sobre 13 monumentos, que dizem respeito à origem
destes (quem solicitou, quando e por que), o orçamento (quanto custou aos cofres
públicos), datas do início e entrega da obra, material utilizado, dimensões, motivo da
escolha do local para erguê-los, informações sobre o artista (nome, local e data de
nascimento e biografia).
A segunda frente vai em direção de disponibilizar esses mesmos dados de maneira
interativa, permitindo a navegação no ambiente virtual, a partir de cenários, que
representem os monumentos, de acordo com o espaço público em que foram erguidos.
Para isso, desenvolve ações interdisciplinares integradas entre as áreas de Comunicação
e Museologia com os campos da Arte e da Tecnologia, por meio da parceria com o
Laboratório de Realidade Virtual (LARV) do Curso de Engenharia da Computação da
UFPA. Inicia com a seleção do monumento a ser virtualizado em 3D a partir da
pesquisa documental e bibliográfica. Em seguida, após a escolha, é recolhido no espaço
urbano onde se encontram estes monumentos material imagético, fotografias e vídeos,
que ajudarão na modelagem dos ambientes, sobretudo na definição dos objetos a serem
recriados e nas dimensões dos mesmos e do espaço. Também é coletado o áudio do
local, que é inserido nas virtualizações para favorecer a imersão, já que traz o som do

1608
ambiente urbano, apresentando, por exemplo, ruídos de trafego, canto de pássaros, entre
outros.
De posse desses materiais, inicia-se o processo de criação de ambientes virtuais
para simulação da visitação dos monumentos existentes na capital paraense. É feita,
portanto, a reprodução dos cenários e a construção das réplicas tridimensionais das
obras de Arte Pública, geralmente esculturas ou conjuntos escultóricos, através de
softwares, também utilizados na criação do sistema de interações com o visitante, que
inclusive possibilita o deslocamento deste pelo ambiente, em ação em primeira pessoa,
como em um game. Depois destas etapas, é inserido o áudio do local, após serem
editados e reduzidos os ruídos, e as informações sobre os monumentos, divididas em
blocos espalhados em diversas partes do ambiente, que podem ser acionados para leitura
através de um clique no mouse. Com redação simples e direta, já que podem ser
consultados por diferentes tipos de público, os textos trazem informações históricas e
artísticas sobre os monumentos, obtidas na pesquisa, em muitos casos inéditas. A última
etapa do processo é a disponibilização da visita no site do projeto, o que permite que o
conhecimento sobre as obras possa ser socializado não só para a população do Estado,
mas também em todo o mundo.
Nessas visitas virtuais de espaços de patrimônio, são utilizados diversos
softwares, para construção dos objetos tridimensionais usados no ambiente, para
manipulação de imagens, texturização de todos os cenários e objetos, entre outras ações.
Para atribuir uma aparência mais realista aos elementos do cenário são comumente
usadas fotos reais do lugar. A superfície de alguns objetos pode ser diretamente pintada
com ferramentas dos programas. A figura a seguir (figura 1) mostra um fragmento de
uma das visitações criadas em ambiente com modelagem 3D, e disponibilizadas no site
do projeto.

1609
Figura 1 – Fragmento da visitação 3D ao Monumento Gama Malcher
Fonte: UFPA/Monumentos de Belém/Transcodificações Urbanas

Essas duas frentes do projeto Transcodificações Urbanas são norteadas por dois
conceitos: o de virtual e o de agenciamento. O primeiro inscreve-se no próprio nome do
projeto, que traz a “virtualização” como proposta, procurando tornar acessíveis na Web
novas formas das pessoas vivenciarem o patrimônio cultural de uma maneira mais
dinâmica, mais viva, do que a proposta pelas tecnologias de visualização em 360°.
Augé (2006, p. 112) nos coloca diante da necessidade de precisar a compreensão
de virtual quando afirma que o termo “virtual” é utilizado hoje de maneira pouco clara.
Afirma que as imagens chamadas virtuais não o são em qualidade de imagens. Por esse
motivo, pondera que estas imagens:

são eminentementes atuais, e algumas realidades que representam são


também, ademais, atuais. Todas as ficções às quais dão forma, todos
os ‘mundos’ que representam (como nos videogames) não são
forçosamente ‘virtuais’ se não têm nenhuma oportunidade, nenhuma

1610
possibilidade de se fazerem ‘atuais’ ou de se realizarem, enquanto não
forem realidades ‘em potencial’ [...]. (AUGÉ 2006, p. 112)

Mesmo afirmando que não tem nenhuma intenção de dissertar contra a imagem e
as tecnologias da comunicação, já que ‘isso não teria sentido’, Augé (2006, p. 113) diz
que precisa sublinhar os perigos que “comportam a alienação progressiva a uma
tecnologia” e lembra que a imagem, por mais sofisticada que possa ser, só é uma
imagem, ou seja, um meio de ilustração, algumas vezes de exploração, frequentemente
de comunicação e distração (AUGÉ, 2006, p. 112-113).
Com base nisso, Augé (2006, p. 113) também enumera o que chama de algumas
ambiguidades de nossa relação com a imagem, antes de propor em que condições pode
não ser a imagem um obstáculo à livre construção de nossas identidades coletivas e
individuais. Cita por exemplo as imagens percebidas ou recebidas pelos televisores que
têm como características: igualar acontecimentos e pessoas e tornar incerta a distinção
entre o real e a ficção. Para Augé (2006, p. 114), o grande problema hoje é que com
frequência “a imagem já não representa um papel de mediação com o outro, mas sim de
identificação com ele”. O incômodo, na observação do autor, se instala “quando a ficção
faz às vezes de real, quando tudo acontece como se não houvesse outra realidade além
da imagem” (AUGÉ, 2006, p. 114).
Ao propor a palavra virtualização no título do projeto Transcodificações
Urbanas nos inclinamos a pensar o virtual, inicialmente, como Levy (1999) propõe ao
afirmar que “é virtual toda entidade ‘desterritorializada’, capaz de gerar diversas
manifestações concretas em diferentes momentos e locais determinados, sem contudo
estar ela mesma presa a um lugar ou tempo em particular” (LEVY, 1999, p. 47). Em
outras palavras se apropriar do virtual de acordo com a origem da palavra. Aquela que
vem do latim medieval, virtualis, derivado por sua vez de virtus, força, potência.

1611
Na filosofia escolástica, é virtual o que existe em potência, e não
em ato. O virtual tende a atualizar-se, sem ter passado, no entanto, à
concretização efetiva ou formal. A árvore, por exemplo, está
virtualmente presente na semente. Em termos rigorosamente
filosóficos, o virtual não se opõe ao real, mas, sim, ao atual:
virtualidade e atualidade são apenas duas maneiras de ser, diferentes
(LEVY, 1996, p. 15).

A compreensão de virtual nessa perspectiva segue e pode ser visualizada ainda


quando Foucault (2009, p. 415) traz o exemplo do espelho:

O espelho, afinal, é uma utopia, pois é um lugar sem lugar. No


espelho, eu me vejo lá onde não estou, em um espaço irreal que se
abre virtualmente atrás da superfície, eu estou lá longe, lá onde não
estou, uma espécie de sombra que me dá a mim mesmo minha própria
visibilidade, que me permite me olhar lá onde estou ausente: utopia do
espelho. Mas é igualmente uma heterotopia, na medida em que o
espelho existe realmente, e que tem, no lugar que ocupo, uma espécie
de efeito retroativo; é a partir do espelho que me descubro ausente no
lugar em que estou porque eu me vejo lá longe. A partir desse olhar
que [...] se dirige para mim, do fundo desse espaço virtual que está do
outro lado do espelho, eu retorno a mim e começo a dirigir meus olhos
para mim mesmo e a me constituir ali onde estou; o espelho funciona
como uma heterotopia no sentido em que ele torna esse lugar que
ocupo, no momento em que me olho no espelho, ao mesmo tempo
absolutamente real, em relação com todo o espaço que o envolve, e
absolutamente irreal, já que ela é obrigada, para ser percebida, a
passar por aquele ponto virtual que está lá longe. (FOUCAULT, 2009,
p. 415; destaque nosso).

Por meio do Transcodificações Urbanas, também acreditamos que o virtual se


apresenta em processo dinâmico. Está além das simples imagens, de unicamente
digitalizar o patrimônio, de focar na compreensão de acervos compostos por bytes, da
mera presença na internet ou em oposição aquilo que é físico ou presencial ou está no
espaço tradicional. A virtualização é dinâmica, pressupõe desterritorialização,

1612
deslocamento, passagem pelo “ponto virtual”, ser potência pela possibilidade de
tornarem atuais. Os ambientes imersivos do projeto objetivam, desta forma, propiciar ao
visitante a possibilidade de passar pelo “ponto virtual”, de vivenciar um ambiente que
existe em potencia justamente por ser possível “realizá-lo”. Mas esta passagem, em
pêndulo, requer dois movimentos. O primeiro que o ambiente modelado e socializado
em rede, como potência, seja lugar de usos outros, emergentes. O segundo, atrelado ao
primeiro, é que exige interação, participação do visitante, permitindo novas vivências.
Sem esses dois movimentos não seria possível exercitar a virtualização,
inclusive de museus e patrimônio. Portanto, a simples reprodução de imagens e dados
em Websites, tenham ou não referentes físicos em acervos organizados em instituições,
se aproxima mais da linearidade da difusão, que os torna conteúdo para ser recebido ou
percebido, portanto “atuais”. Da mesma forma, se estabelecem em igual patamar as
tentativas de “substituição da realidade pela imagem” (AUGÉ, 2006, p. 115), onde a
interação é limitada, ou inexistente, criando uma ilusória sensação de participação,
centrada em eixos perceptivos. É preciso, portanto, lançar-se ao desafio da
contemporaneidade, já que:

não estamos mais na época do totemismo e dos símbolos elementares,


a época em que a natureza proporcionava facilmente uma linguagem
para a organização dos homens. Mas há de se viver, [...] e para isso
afrontar a necessidade do social, pensar o cotidiano a uma escala
humana [...] (AUGÉ, 2006, p. 116).

Acreditamos que uma forma de se fazer isso está na compreensão do conceito de


“regime de imersão”, que vem sendo articulado, desde o início dos anos 2000,
especialmente pelo campo da Comunicação, para trazer novos cenários de interação que
se abrem a partir dos meios digitais. Machado (2007) trata desta realidade, situando-a
conforme o conceito de “agenciamento”:

1613
Os povos de língua inglesa chamam de agenciamento (agency) a
sensação experimentada por um interator de que uma ação significante
é resultado de sua decisão ou escolha (Murray, 1997: 126).
Normalmente, quando lemos um romance ou assistimos a um filme,
não esperamos que qualquer de nossas ações possam interferir na
evolução da história, ou seja, não experimentamos nenhum sentimento
de agenciamento. Por mais grave ou perigosa que seja a situação
apresentada em um filme, sabemos que nada podemos fazer, enquanto
espectadores, para ajudar as personagens. Já nos meios digitais, nós
nos defrontamos o tempo todo com um mundo que é dinamicamente
alterado pela nossa participação (MACHADO, 2007, p. 212).

No ambiente virtual, ao contrário de quando estamos lendo um livro ou vendo


um filme, conforme explica Machado (2007), o “mundo” apresentado pode ser
explorado da forma como o interator optar. Isso se dá principalmente por meio de
escolhas ao se deslocar em um ambiente digital, seja em relação à direção (direita,
esquerda, para frente ou para trás, se mover em círculos) ou simplesmente ficar imóvel.
Assim, agenciar neste novo cenário seria, de acordo com o autor, experimentar como
seu agente, como aquele que age dentro do evento e como elemento em função do qual
o próprio evento acontece. Desta forma, o efeito do agenciamento seria necessariamente
interativo, passaria por desenvolver sistemas capazes de reagir ou de responder às ações
dos usuários. Este cenário apresentado por Machado (2007) está voltado especialmente
para pensar o videogame, onde a intervenção do jogador é necessária e sem ela não
haveria literalmente o jogo. Por outro lado, a intervenção do interator, no jogo, está
condicionada à própria existência do sistema.
Contudo, quando se trata de virtualizar espaços de monumentos históricos e de
Arte Pública, recorremos ao conceito de agenciamento como um convite às experiências
de imersão como possibilidades de reconstruir vivências através desses espaços, vistos
como expandidos e inscritos em uma sociedade que os interliga em rede. Inclusive,
abrindo portas à ressignificação e reapropriações desses espaços na contemporaneidade,
propondo, portanto, novos usos sociais.

1614
O patrimônio nas cidades está envolto a dinâmicas e transformações típicos da
contemporaneidade. Mais especificamente, Canclini (2006, p. 300-301) trata dos
monumentos em ambiente urbanos, e defende que na atualidade a observação destes
deve considerar que estão envoltos em tensões entre a memória histórica e a trama
visual das cidades modernas. Uma mudança de enfoque que os desloca do prisma de
que eram inscritos, junto com as escolas e os museus, como um “cenário legitimador do
culto tradicional”, onde eram considerados quase sempre como obras com que o poder
político consagrara pessoas e acontecimentos fundadores do Estado. Na
contemporaneidade e na urbanidade, ocorrem transgressões destes cenários a partir de
novos usos. Por estarem em local de circulação pública, os monumentos – mais que os
museus e as escolas - “estão abertos à dinâmica urbana, facilitam que a memória
interaja com a mudança, que os heróis nacionais se revitalizem graças à propaganda ou
ao trânsito [...]” ou que sejam atualizados pelas “irreverências’ dos cidadãos”
(CANCLINI, 2006, p. 301).
Expostos à vida contemporânea, sem as barreiras físicas que circundam as
instituições culturais, os monumentos mobilizam diferentes formas de apropriação,
articuladas por cidadãos de origens ou grupos sociais diversos. Remetem ao passado,
mas são vivenciados no presente, estabelecendo ligações entre tempos múltiplos,
ativadas pela relação que se dinamiza entre o indivíduo e o objeto, em cenário público.
Dinamismo que permite o surgimento de interferências variadas: da pichação à
publicidade, do nexo arquitetônico com o entorno a locais contemporâneos de lazer, de
expressão artística ou de se fazer política. Firmam-se como portais simbólicos, que
aludem ao passado, mas são ressignificados no presente.
Apesar de ser profícua, como pontua Canclini (2006), nos estudos e debates
sobre a modernidade latino-americana, a questão dos usos sociais do patrimônio
continua ausente e, diante da magnificência de certos bens, “não ocorre a quase
ninguém pensar nas contradições que expressam” (CANCLINI, 2006, p. 160).

1615
Por isso, questiona com que recursos teóricos "podemos repensar os usos sociais
contraditórios do patrimônio, dissimulado sob o idealismo que o vê como expressão do
gênio criador coletivo" (CANCLINI, 2006, p. 193). Propõe estudar o patrimônio como
espaço de luta material e simbólica entre classes, as etnias e os grupos. Afirma que esse
princípio metodológico corresponde ao caráter complexo da sociedade contemporânea.
A partir dessa linha de raciocínio traz os estudos de Raymond Williams para propor as
bases de uma política cultural e de pesquisa capaz de superar a oposição entre o
"tradicional" e o "moderno". Para isso, deve considerar a diferença entre o arcaico, o
residual e o emergente, proposta por Raymond Williams.

O arcaico é o que pertence ao passado e é reconhecido como tal por


aqueles que hoje o revivem, quase sempre ‘de um modo
deliberadamente especializado’. Ao contrário, o residual formou-se no
passado, mas ainda se encontra em atividade dentro dos processos
culturais. O emergente designa os novos significados e valores, novas
práticas e relações sociais. (WILLIAMS apud CANCLINI, 2006, p.
198)

Não observar essa construção proposta por Raymond Williams é apontada por
Canclini (2006, p. 198) como uma causa das políticas culturais menos eficazes porque
ao se agarrarem ao arcaico ignoram o emergente, uma vez que não conseguem articular
a recuperação da densidade histórica com os significadores recentes gerados pelas
práticas inovadoras na produção e no reconhecimento. Canclini (2006, p. 202) é
enfático em afirmar que uma política de pesquisa relacionada ao patrimônio não deve se
reduzir à tarefa da busca por objetos “autênticos” de uma sociedade. Defende que
devemos nos importar mais com os processos que com os objetos, e não na sua
capacidade de permanecer “puros”, iguais a si mesmos, mas por sua representatividade
social.
Quando se trata dos usos sociais do patrimônio através das tecnologias
comunicacionais também se torna indispensável considerar o arcaico, o residual e o

1616
emergente para se opor ao dualismo entre o presente e o passado. Mais do que
apresentar o patrimônio como um objeto “autêntico” da sociedade (o arcaico), as
tecnologias comunicacionais podem nos permitir enxergar novos horizontes daquilo que
permanece (o residual) para trazer outras formas de apropriação, novos significados (o
emergente).
Um exemplo é o caso do Chafariz das Sereias, um dos monumentos mais
instigadores da Amazônia, do início do século XX (o arcaico). A pesquisa desenvolvida
pelo projeto Transcodificações Urbanas a partir do residual, o monumento que localiza-
se na Praça da República, na área central de Belém do Pará, o revelou envolto na
história da política de abastecimento de água da cidade, precária no final do século XIX
e começo do século XX, o que teria justificado a construção de vários chafarizes na
capital, entre os quais o das Sereias, para atender à demanda da população na época.
Por outro lado, ao apresentarmos a virtualização do Chafariz, que podemos observar em
um fragmento na figura 2, a propomos como opção rumo ao emergente, o que inclui
desvelar uma história que até então existia sem estar presente.

Figura 2: Fragmento da virtualização do Chafariz das Sereias


Fonte: UFPA/Monumentos de Belém/Transcodificações Urbanas

1617
A partir de um relato de um professor de Matemática, durante uma das
apresentações da experiência em escolas públicas da capital paraense, destinadas a
docentes e discentes, foi possível ainda observar que disponibilizar as modelagens do
monumento, em ambiente de rede, abre novas possibilidades para o ensino. Pode ser,
inclusive, uma forma de revisitar a história da cidade ou até mesmo de ser usado como
um exercício de cálculo acerca das dimensões de um monumento. Inferências que
fortalecem o emergente, a partir de novas práticas, sem deixar de estabelecer ligações
com o arcaico e o residual.
Nessa perspectiva, o recurso à tecnologia pode de fato apresentar novos usos
sociais do patrimônio. Devem, como propõe Canclini (2006, p. 202), as áreas
investigação, de estudos do patrimônio, romper com a finalidade centralizada em
almejar a autenticidade ou restabelecê-la, mas sim reconstruir a verossimilhança
histórica e estabelecer bases comuns para uma reelaboração de acordo com a
necessidade do presente. Abertura epistemológica na qual se baseiam as experiências e
a pesquisa em torno da virtualização de monumentos, propondo-se a expandir o
patrimônio em ambiente imersivo que facilite a interação, como forma de levar em
conta seus usos sociais, inclusive em ambiente sociotécnico, como nova estratégia que
considera também o emergente, inserido no processo de preservação, valorização e
vivência dos espaços de patrimônio pelo público.

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1620
AS NOVAS TECNOLOGIAS A SERVIÇO DA COMUNICAÇÃO MUSEAL

Joana Angélica Rocha Prado*


Priscila Maria de Jesus**
**Universidade Federal de Sergipe

Resumo: O presente trabalho consiste no plano de trabalho intitulado “As Novas tecnologias à
serviço da comunicação Museal”, que faz parte do projeto de Iniciação científica ano 2017-8
coordenado pela professora Priscila Maria de Jesus, com o título de “Gamificação nos
museus: o uso de novas tecnologias na comunicação museal”. Abordarei o que consiste
minhas atividades de voluntária na pesquisa, bem como as leituras em andamento.
Palavras-chave: Novas tecnologias; comunicação museal; Gamificação.

Abstract: The present work consists of the work plan titled "The New Technologies at the
service of the Museal communication", that is part of the project of Scientific initiation year
2017-8 coordinated by the teacher Priscila Maria de Jesus, with the title “Gamification in the
museums: the use of new technologies in museum communication ". I will discuss what my
volunteer research activities consist of, as well as the readings in progress.
Key-words: New technologies; museum communication; Gamification.

1621
O percurso dentro da Academia parte da busca pelo alinhamento de pesquisas e
teorias com os anseios pessoais. Assim, a participação em projetos de Iniciação
Científica, Tecnológica e/ou de Extensão são motivados e almejados pelos discentes ao
longo de sua formação acadêmica.

O presente texto é parte das leituras iniciadas com o projeto de pesquisa


“Gamificação nos museus: o uso de novas tecnologias na comunicação museal”, sob a
coordenação da professora Me. Priscila Maria de Jesus, no qual desenvolvo o plano de
trabalho “As Novas tecnologias à serviço da comunicação Museal”, projeto aprovado no
edital PIBIC-VOL 2017-8 da Universidade Federal de Sergipe.

O trabalho consiste no levantamento bibliográfico e revisão de literatura sobre o


uso de tecnologias nas exposições museais a exemplo de realidade aumentada, games,
softwares livres, QR codes e etc. A partir desse levantamento bibliográfico após, busca-
se o mapeamento das tecnologias utilizadas nos museus de Sergipe como
potencializador da comunicação museal, criando, assim, um mapa dessas novas mídias
utilizadas, bem como uma tipologia de exposições por seu grau e tipo de uso de
recursos tecnológicos.

Como objetivo da pesquisa em questão destaca-se analisar e revisar literatura


sobre exposições e novas tecnologias e mapear os Museus de Sergipe e as tecnologias
empregadas em suas exposições museais.

A metodologia inicialmente empregada será a histórica, por meio da leitura e


fichamento das literaturas levantadas e preenchimento de uma ficha de avaliação das
tecnologias da comunicação das exposições dos museus de Sergipe, que será elaborada
em conjunto com a professora orientadora.

1622
O plano de trabalho conta com seis etapas para serem desenvolvidas ao longo de
um ano de pesquisa, que vão desde do levantamento bibliográfico, mapeamento dos
museus, apresentações de relatórios, cruzamento dos dados, entre outros.

Revisando literatura

O trabalho encontra-se na fase inicial, com apenas um mês de execução, assim,


as leituras realizadas até o momento ainda são poucas. Entre os conceitos que serão
revisitados encontram-se o de gamificação, que não é um termo abordado na literatura
museal; novas mídias, e suas variantes e como podem ser utilizadas no espaço museal.
Musealização, patrimonialização, comunicação e narrativa expositiva, termos que
permeiam o universo da Museologia, sobretudo no que tange à Expologia e Expografia.
Entre os autores serão visitados Desvallées e Mairesse em Conceitos Chaves de
Museologia; no que tange ao tema narrativa expositiva serão vistos os textos de Elisa
Guimarães Ennes com sua dissertação de mestrado “Espaço Construído: o museu e suas
exposições”; sobre novas mídias nos museus serão vistos os textos de Joan Santacana e
Laia Coma (2014) intitulado El m-learning y la educación patrimonial, Luis
Fernández, José Ramón Alcalá e Juan Carlo Rico (2009) em ¿Cómo se cuelga um
cuadro virtual? E sobre gamificação e realidade aumentada David Ruiz Torres (2014)
La realidad aumentada y su aplicación en el patrimoniocultural, e os textos que serão
aqui desenvolvidos: Paula Carolei e Romero (2014) Tori Gamificação Aumentada.
Explorando a realidade aumentada em atividades lúdicas de aprendizagem e Amanda
Cristina Santos Costa e Patrícia Zeni Marchiori Gamificação, elementos de jogos e
estratégia: uma matriz de referência.

1623
O que é Gamificação?

O conceito de gamificação é longo e vem sendo estudado e ampliado ao longo


dos tempos. Segundo Paula Carolei e Romero (2014) a gamificação pode acontecer em
dois momentos quando estão presentes: o primeiro com os componentes, as mecânicas e
as dinâmicas nos diferentes seguimentos contribuindo para a aprendizagem do
indivíduo e, no segundo momento, a partir da estratégia da organização ou instituição a
qual desenvolve. Toda essa estrutura tem que ser pré-definida para alcançar os
objetivos que definirá a matriz para haver futuras adesões dos seguimentos.

Para Deterding, “a gamification é um fenômeno da Tecnologia da Informação


(TI) cujo conceito é considerado por alguns apenas um modismo, uma simples
buzzword e, por outros, uma solução real para diversos problemas organizacionais”
(apud CAROLEI; TORI, 2014, p. 45). A gamificação vem sendo utilizada de forma
esporádica em diversas áreas como a Educação e a Saúde e surge, também, como
alternativas para os espaços culturais, seja nos ambientes expositivos ou como suporte
para a educação patrimonial.

A gamificação, assim como qualquer ferramenta de trabalho e ensino requer


uma preparação feita com antecedência para alcançar os objetivos listados para
potencializar a aprendizagem. No entanto, é importante destacar que nossa sociedade na
atualidade, devido à grande velocidade e acúmulo de informações, sobretudo com o uso
dos smartphones e a possibilidade de acessar informação à qualquer hora e em todo
lugar, procuramos disseminar essas informações de modo codificado, tornando-as mais
complexas, assim a gamificação traz com sua linguagem lúdica e atraente a tentativa de
acompanhar o crescimento dos serviços de forma prazerosa e ao mesmo tempo inserir
os benefícios de sua metodologia aos visitantes.

1624
Realidade Aumentada

Para Carolei e Tori (2014) a utilização da Realidade Aumentada, uma linguagem


comumente usada nos games a favor da educação, pode se tornar um agente provocador
e também facilitador da aprendizagem pela experimentação, pela vivência, pela
imaginação, pelo desejo de conhecer novos espaços, sejam expositivos ou educacionais.
Assim, estudos tem trabalhado os conceitos tanto de gamificação como de realidade
aumentada para serem utilizadas nos estudos e estratégias de educação, no nosso caso,
voltado para o uso como potencializado na comunicação museal.

Pode-se salientar que as novas mídias servirão como estímulo para ampliar e
potencializar a dinâmica do processo ensino/aprendizagem dentro e fora dos espaços
dos museus. Essa estratégia estimula e motiva o indivíduo para construir o seu próprio
conhecimento, a partir da sua interação e decodificação da informação passada. No
entanto, como em qualquer ação de comunicação o resultado pode ser positivo ou
negativo, sendo necessário a realização de estudos de impacto para precisar essas
informações.

A linguagem de games torna-se interessante, ao possibilitar que o indivíduo seja


tanto agente quanto receptor das informações que os ambientes educacionais e de
cultura querem transmitir. No caso dos museus e suas exposições, podendo ser de forma
lúdica e diferenciada dos tradicionais mecanismos e elementos expositivos utilizados,
tentando inserir as vivências do dia a dia, como o uso das tecnologias e o uso de
smartphones, como uma extensão do próprio indivíduo.

O telefone celular e sua cadeia cada vez mais intricada de recursos e


possibilidades na palma da mão torna viável a experimentação de procedimento e
técnicas, uma uma verdadeira imersão em um mundo e uma vida paralela à real, que

1625
sem o uso das novas tecnologias não poderíamos executá-las ou serem apreendidas.
Mas, a partir das experimentações, seja com realidade aumentada ou virtual passamos a
aceitar de forma mais positiva o que nos é informado. No entanto os games solicitam do
usuário um retorno para saber se aconteceu a aprendizagem e a compreensão das
informações passadas, sendo necessário e importante nesse momento os questionários
de sondagem e avaliação de público para saber até onde as estratégias utilizadas
realmente alcançaram seus objetivos.

Embora todo esse processo crie muitas possibilidades de resoluções de interação


com o público não quer dizer que o uso da gamificação, da realidade aumentada e das
novas mídias como um todo atinjam todos os públicos existentes de forma igual, deve-
se assim, respeitar características geográficas, culturais, sociais, educacionais bem como
faixa etária, além da avaliação própria mídia utilizada no ambiente expositivo e se a
mesma tem potencial para cumprir com os objetivos almejados pela equipe do museu,
sejam de caráter informativo, comunicacional e/ou educacional.

Considerações Finais

Por ser um projeto ainda em caráter inicial, como considerações deixamos


alguns questionamentos que ficaram e devem e podem ser respondidos ao longo da
pesquisa:

 Os detentores do conhecimento da gamificação estão preparados para dialogar


com o público no que se refere ao ensino-aprendizagem?

 A gamificação pode provocar um distanciamento do público, sobretudo na área


educativa?

1626
 Existe possibilidades de encontrar a prática da gamificação nos espaços
museológicos sergipanos?

 As novas mídias e a linguagem virtual atinge o índice de compreensão cogitado


pelas instituições museais?

 Como desmistificar a ideia de jogos como algo voltado apenas para o


entretenimento e não para a educação e a cultura?

Referências bibliográficas

CAROLEI, Paula; TORI, Romero. Gamificação Aumentada. Explorando a


realidade aumentada em atividades lúdicas de aprendizagem. Unifesp, USP/ Senac.
n. 9, p. 102, jan/jun 2014.

COSTA, Amanda Cristina Santos; MARCHIORI, Patrícia Zeni. Gamificação,


elementos de jogos e estratégia: uma matriz de referência. In: Revista Ciência,
Informação e Documentação, Ribeirão Preto, v. 6, n. 2, p. 44-65, set. 2015/fev. 2016.

1627
CULTURA MATERIAL AMAZÔNICA NO AMAZONIAN MUSEUM NETWORK
EXPOSIÇÃO DIGITAL SOB OLHAR PROCESSUALISTA

Edith Adriana Oliveira do Nascimento*


Jackeline Cordeiro de Lima*
*Universidade Federal do Pará

Resumo: Este trabalho resulta de uma análise expográfica, a partir do cibermuseu Amazonian
Museum Network. Realizamos uma breve análise da exposição a partir das linhas teóricas da
arqueologia, empregadas como formas de compreender a cultura material em relação com seu
contexto. À luz dessas linhas de pensamento, identificamos uma maior aproximação dessa
narrativa expográfica às proposições da arqueologia processualista. A partir das implicações
disto, apresentamos por fim algumas considerações sobre a exposição digital como forma de
acesso ao patrimônio cultural etnográfico.
Palavras-chave: análise expográfica; processualismo; Amazônia guianense.

Abstract: This work results from an expographic analysis of the virtual museum Amazonian
Museum Network. We present a brief analysis about the exposition based on archaeological
theoretical lines, used as understanding tools of the material culture in relation to its context. On
this base, we identified proximity of the expographic narrative with the processual archaeology
propositions. From this implications, we finish with some considerations about the virtual
exhibition as way of access to the ethnographic cultural heritage.
Key-words: expographic analysis; processual archaeology; Amazonian Guyana.

1628
O Amazonian Museum Network – Coleções do Planalto das Guianas é um museu
digital, ou cibermuseu, que agrega diversas coleções, de cunho principalmente
etnográfico. Tais coleções são oriundas de lugares e tempos diferentes, mas atreladas
por uma lógica que dá norte à exposição “Patrimônio Conjunto”, referente aos acervos
de cultura material de povos dessa região. Com base nas informações oferecidas pelo
site, e percebidas pela consulta ao mesmo, apresentamos no primeiro tópico uma
descrição do projeto e sua proposta. O segundo tópico consiste de uma breve análise da
exposição buscando correlações possíveis com as linhas teóricas do pensamento
arqueológico, histórico-culturalismo, processualismo e pós-processualismo.
Considerando essas linhas teóricas da arqueologia de forma ampla, como ferramentas de
interpretação dos vestígios da cultura material em relação com seu contexto,
experimentamos aqui situar uma proposta expositiva de acervo etnográfico e sua
narrativa a partir destas bases teóricas. Apresentamos assim algumas considerações
sobre a exposição digital do Amazonian Museum Network à luz dessas linhas de
pensamento, onde identificamos a preponderância de uma ótica mais próxima ao
processualismo, mas evitando delimitações estanques.

Museus da Amazônia em Rede: museus e território


O Amazonian Museum Network (AMN), ou Museus da Amazônia em Rede, é um
projeto com a finalidade de desenvolver e disponibilizar um acervo digitalizado
integrando inicialmente coleções de três museus: o Museu Paraense Emilio Goeldi de
Belém (MPEG), no Brasil, o Musée Des Cultures Guyanaises (MCG) de Caiena, na
Guiana Francesa e o Stichting Surinaams Museum (SSM) de Paramaribo no
Suriname. Posteriormente houve adesão de um segundo museu da Guiana Francesa, o
Musée Alexandre-Franconie (MAF). Agrega instituições que trabalham com a
preservação, a divulgação e a valorização das culturas do Planalto das Guianas. Trata-se
da região rodeada pelos rios Orenoco e Amazonas, situada entre os territórios de cinco

1629
países: uma parte da Venezuela, a Guiana, o Suriname, a Guiana Francesa e uma parte
do Brasil, principalmente os estados do Amapá e do Pará.
O catálogo agrupa coleções etnográficas de povos ameríndios e marrons (termo
mais utilizado pelo AMN para se referir a comunidades quilombolas) instalados nos
dois lados das fronteiras guianense, brasileira e surinamense: Wayãpi, Wayana,
Parikwene, Kali'na, Lokono, Teko, Tiriyó, Aparai, Ndjuka, Saamaka, Paamaka,
Matawai. Existem planos futuros para a sua ampliação através da integração gradativa
de outras peças, registradas no inventário dos museus da região, objetos provenientes de
outros grupos culturais, mas também de coleções que abrangem outros domínios como a
arqueologia, que já se faz presente nas coleções dos museus. Cada ficha de objeto
contém as habituais informações de um inventário museal, apresenta fotografias e
permite acrescentar comentários.
A criação do catálogo das coleções ameríndias e marrons dos museus, acessível
online, e a implementação de ações para a formação de pessoas e a organização de
encontros transfronteiriços estava entre os primeiros objetivos do programa. O catálogo
e exposições apresentadas pelo site intentam, entre outros objetivos, uma forma de dar
acesso às populações da região às coleções que confeccionaram e que ofertaram,
trocaram ou venderam, e assim estão na origem da constituição dos acervos desses
museus, por vezes depositados em reservas técnicas e com dificuldade de serem
expostos. A iniciativa visa também uma “melhor consideração da natureza
transfronteiriça das populações e do seu patrimônio, e para acompanhar a origem de
produções culturais comuns” (AMN), bem como a cooperação entre as instituições
patrimoniais do Planalto das Guianas. Busca oferecer aos pesquisadores a oportunidade
de usá-lo como ferramenta de referência, como subsídio em seus trabalhos. Para todos
os internautas, ele constitui igualmente uma primeira abordagem das culturas existentes
no Planalto das Guianas.

1630
Museus da Amazônia em Rede na ótica processualista
O projeto Amazonian Museum Network é, portanto, constituído pela agregação
digital de itens dos acervos físicos de diferentes museus da região amazônica. Desse
modo, constitui-se um acervo digital diverso, transfronteiriço, onde é possível ao
visitante do site visualizar na mesma exposição objetos depositados em museus de
países diferentes. Em alguns casos, objetos provenientes de uma mesma etnia
encontram-se em dois ou três museus diferentes, mas através do site podem ser
consultados e vistos em conjunto, por meio do catálogo online que possibilita a consulta
por grupo de origem.
Muito embora haja raros exemplares arqueológicos, e a maior parte do acervo
digitalizado seja fruto de pesquisa etnográfica e populações históricas, como já foi dito,
o projeto se propõe a ser tanto etnográfico quanto arqueológico no futuro, possibilitando
então pensar no vínculo analítico e expográfico entre passado e presente. Pela proposta
ser organizada em torno da cultura material, e de sua relação com um determinado
território, questões pertinentes à arqueologia, buscamos aqui compreender o projeto
Museus da Amazônia em Rede (AMN) sob uma ótica processualista a partir da
correlação com alguns aspectos pertinentes de suas exposições virtuais e organização de
seu acervo.
A arqueologia processual, ou nova arqueologia, não veio romper totalmente com
os preceitos já realizados pela arqueologia histórico-cultural, porém, propôs um novo
modelo de pesquisa no qual tentava entender a cultura de povos primitivos e como se
dava esse funcionamento. O histórico culturalismo é um trabalho extremamente
importante, estabelecendo uma orientação geográfica de onde esses objetos encontrados
vieram, buscando entender a origem da cultura dos povos. O processualismo buscou
através de novas ideias uma compreensão mais ampla. Como cita Lewis Binford,
teórico da nova arqueologia, “cultura deveria ser analisada de forma sistêmica e

1631
processual na qual o processo se refere às relações dinâmicas de causas e efeitos que
operam entre os componentes do sistema e o meio ambiente” (BINFORD, 1968, p. 269,
apud Di BACCO, 2009). Busca-se aplicar um rigor científico na análise e interpretação
dos vestígios da cultura material, com ênfase em modelos que possam ser aplicados a
diferentes contextos e culturas, mas sem pressupor linearidades, aculturação ou difusão
cultural, valorizando questões propostas a partir dos próprios vestígios.
Sobre o processualismo a fala de Flanery tenta iluminar de maneira simples e
clara:

[...] busca entender e explicar o sistema que está por trás de ambos os
indivíduos e materiais de uma cultura. Esse sistema é constituído por
partes que se interagem e que estão em constante relação com o meio
ambiente natural. A estratégia é isolar cada sistema e estudar cada
uma de suas variáveis separadamente. O objetivo final é a
reconstituição completa do padrão de articulação, ao longo de todos os
sistemas relatados (FLANERY, 1973, p 105, apud Di BACCO, 2009).

Assim busca entender mecanismos que regulem esses processos. O processo que
visa a relação do homem com o meio ambiente, algo bastante abordado pelo
processualismo, tem grande importância no acervo digitalizado no AMN, que remonta a
sua importância, expondo como o próprio site cita uma coleção de “Braceletes, colares,
cintas de contas, e também peças de cerâmica, bancos, pentes... As representações de
animais dos povos do Planalto das Guianas podem ser vistas em inúmeros e diversos
objetos.” (AMN, 2017). Enfatizando o vínculo cultural desses povos com seu meio.
Elementos comuns entre os povos ameríndios e maroons aparecem, por exemplo,
em diferentes aspectos de sua cultura material, como desenhos de seus utensílios
fazendo alusão a animais que eram presentes em ambos os territórios, até por conta de
sua proximidade. Segundo Schaan: “A prática pré-colombiana de esculpir e pintar
símbolos da cobra grande na cerâmica, que indicou a grande importância desse animal
na mitologia indígena marajoara, aparece na cosmologia dos quilombolas do Rio
Gurupá, na mesma região” (2014, 29). A autora ressalta, porém, que devido

1632
principalmente os grandes impactos da colonização não é possível traçar uma
continuidade histórica linear entre as populações do passado e do presente.
Correlacionando com o AMN, há uma grande área geográfica de referência, o
planalto amazônico guianense. Engloba etnias diversas, mas que têm em comum esse
meio ambiente e território amazônico. Segundo o site, o museus da rede conservam e
valorizam ricas coleções de bens culturais que são muito próximas devido a sua origem
cultural, pelos seus materiais e também seus usos.
Como dito acima, não se rompe de todo com o histórico-cultural, pois a ênfase
sobre as culturas, como funcionam, suas particularidades, não é abandonada. O acervo é
organizado a partir de grupos culturais: a cultura material como meio de representar a
diversidade de povos que ocupam ou ocuparam a região. Mas as exposições, temáticas,
enfatizam as características compartilhadas entre eles.
As diversas etnias são então como delimitação das coleções, mas aparecem
associadas nas exposições, de modo que não são compreendidas de forma isolada, mas a
partir de características em comum. Dentre essas características se destaca, como já
apontado, o vínculo com o meio em que vivem, identificado pelas representações da
natureza, sobretudo de animais, inscritas em diversos suportes, na exposição
“Representações de Animais”.
Uma segunda exposição é titulada “As Representações Humanas”. Enfatiza que
essas diversas culturas valorizam várias formas de representação do corpo humano, ou
mesmo representações destinadas a se inscrever sobre o corpo de alguma forma, embora
cada povo o faça a sua maneira. Engloba maneiras como o corpo humano era retratado,
seus marcadores sociais de identidade, e suas atribuições masculinas e femininas.
Remete a ideia de estilos pan-amazônicos, presente já desde Lathrap:

Na Amazônia, a repetida representação mais ou menos estilizada de


determinados animais como, por exemplo, a cobra ou a onça,
juntamente com personagens humanos que povoam as narrativas
mitológicas é uma constante na decoração dos objetos, passado e

1633
presente. Pode-se falar assim de uma arte indígena amazônica geral,
com variações regionais, ou estilos regionais. (BARRETO, 2005, p. 6)

Barreto atesta também a permanência desses temas nas representações amazônicas


do passado e do presente, embora com uma tendência maior ao figurativismo no
registro arqueológico em comparação com o etnográfico, mais estilizado e geométrico.

Com os estudos recentes da iconografia encontrada na cerâmica


arqueológica aprendemos que representações figurativas, sobretudos
de figuras humanas e animais, parecem ser bem mais frequentes no
passado pré-colonial, como demonstram as estatuetas, as urnas
funerárias antropomorfas e os apliques e apêndices decorativos em
forma de seres humanos e animais que povoam a cerâmica de várias
culturas arqueológicas da Amazônia. Esse figurativismo contrasta
marcadamente com as representações mais abstratas de elementos da
natureza, notadamente mais estilizadas e geometrizantes, encontradas
nos materiais etnográficos históricos e contemporâneos, em uma larga
gama de suportes que incluem instrumentos variados, trançados,
máscaras, bancos, corpos humanos, além também da cerâmica
(BARRETO, 2005, p. 7)

Temos então exposições que enfatizam o trânsito entre as culturas e sua relação
simbólica e material com o meio em que vivem, sem incorrer, no entanto em uma lógica
difusionista uniformizante, ou de um evolucionismo linear, mais ligada a uma fase
ultrapassada do histórico-culturalismo (embora este não seja ultrapassado no geral).
Sanches aponta a força desse tipo de pensamento nos museus do mundo, incluindo os
brasileiros:

“Tal recorte classificatório de natureza ao mesmo tempo cultural,


geográfica e racista é herdeiro direto do evolucionismo linear de
inspiração darwiniana compartilhado por antropólogos oitocentistas
como Lewis Morgan, e fez da tipologia de artefatos um método
extremamente influente em praticamente todo o mundo”. (2009, p. 5)

Shaan resume bem a influência que essa escola teve e tem para arqueologia
amazônica, desde o trabalho de Betty Meggers, que ainda se valeu, sobretudo de seus
métodos, embora já fosse pertinente em sua análise a relação ecológica entre cultura e

1634
meio, ainda que de modo determinista. Essa relação ecológica entre a cultura material e
o meio continua sendo marcante na arqueologia amazônica, adotando novas formas, e
reconhecendo uma maior agência dos grupos humanos, tal como já se deu nas pesquisas
posteriores de Anna Roosevelt, já decididamente processualista (2014, 20).

A arqueologia da Amazônia hoje engloba diferentes visões e


perspectivas sobre o passado amazônico (Heckenberger & Neves,
2009), mais ou menos ligados ao uso de modelos etnográficos ou à
etnoarqueologia. Uma espécie de novo paradigma — a ecologia
histórica (Balée, 2006, 2010; Crumley, 1994a) — tem ganhado
adeptos, assim como o reconhecimento de que, à época do contato
europeu, a Amazônia era habitada por povos indígenas cujos modos
de vida e formas de organização social eram diversos (Gomes, 2007;
Heckenberger & Neves, 2009; Schaan, 2013). (SCHAAN, 2014, 21)

Então, além da correlação entre cultura material e meio, lógica pela qual se
organizam as coleções digitais do AMN, a arqueologia processualista incorpora também
métodos e modelos provenientes da etnologia. Nesse sentido também é que
compreendemos a possibilidade de uma ótica processualista mesmo em uma exposição
majoritariamente etnográfica, por se tratar de um olhar possível sobre uma exposição de
cultura material.

Binford é o porta-voz de um movimento que critica o histórico-


culturalismo, que dominou a disciplina por pelo menos três décadas e
que, na arqueologia, se traduz pela pressuposição de que um conjunto
de artefatos com características comuns corresponde a um mesmo
grupo étnico e linguístico. Trata-se do conceito de cultura
arqueológica. (SCHAAN, 2014, p. 17)

Por fim, a exposição geral, chamada “Patrimônio Conjunto”, pela qual é possível
navegar todo o acervo. Refletimos aqui que a ênfase nestas características
compartilhadas tem implicações quanto à questão da guarda dos objetos. A lógica do
patrimônio comum implica as instituições na ampliação do acesso. Ao mesmo tempo,
não necessariamente fortalece demandas particulares de grupos, muitos ainda existentes,

1635
no sentido de reaver suas próprias peças, já que tem acesso online a elas, tanto quanto
pesquisadores ou outros “visitantes”. Fica a questão de que em medida o formato de
cibermuseu pode ser solução ou obstáculo nessas disputas. Menezes reflete criticamente
sobre os museus virtuais no contexto de uma tendência cada vez maior da nossa
sociedade à desmaterialização, em certa medida indesejável, pois capaz de produzir no
ciberespaço um simulacro de mundo configurável (2007, p. 57-58). Em que medida
então poderia satisfazer a essas comunidades o acesso ao patrimônio material
desmaterializado? Por outro lado a disponibilização online da informação parece ser um
grande passo na democratização do acesso. Pode até permitir a aproximação das
comunidades de origem a seus bens, se os acervos físicos forem mantidos próximos, ou
houver esforço das instituições. Segundo as redes sociais do AMN, identificamos a
realização de ao menos um evento onde uma delegação indígena teve contato direto
com objetos de sua etnia.
Sobre a acessibilidade do acervo em geral cumpre mencionar, por exemplo, que a
característica multilíngue (português, francês, inglês e holandês) do projeto impõe
alguma dificuldade, já que nem todas as seções são traduzidas automaticamente com
sucesso, e eventualmente encontramos a ficha de um objeto nas línguas maternas dos
museus, sem tradução disponível. O que pode não ser um problema para pesquisadores,
mas dificultar o acesso do público em geral e talvez ainda mais das comunidades ligadas
aos itens dos acervos. O site apresenta a possibilidade de interação por meio de
comentários, para tirar dúvidas ou partilhar informações. No entanto a resposta aos
comentários parece não ser muito expressiva, dependendo é claro da disponibilidade de
equipe e da continuidade do projeto.

Considerações finais
Enfatizamos aqui a correlação possível entre a exposição da cultura material
amazônica do Amazonian Museum Network e a análise da cultura material em uma ótica

1636
da arqueologia processualista. Isso não exclui a possibilidade de observarmos outras
correlações, como a histórico-culturalista. Sobretudo pela condição se tratar de coleções
etnográficas, nos remetem à importante aproximação entre arqueologia e etnologia. Não
se excluem também as correlações as correntes pós-processualistas. Vimos que as
exposições do AMN exploram bastante o simbolismo expresso na cultura material. As
culturas podem ser vistas também de forma particular, mas consideramos que a proposta
principal do museu é a dos temas transculturais, delineados através de características
comuns.
Por fim, ressaltamos a proposta do projeto em si, que visa romper a elitização,
por assim dizer, do acesso aos bens culturais, por meio da acessibilidade do próprio
acervo digital, e da promoção de projetos, debates e capacitação conjunta entre os
museus participantes e as comunidades relacionadas aos itens do acervo. Trata-se de
uma organização que não se assenta sobre a tipologia de artefatos exóticos e raridades.
E embora haja uma narrativa de questões compartilhadas, também é possível, através da
busca pelo catálogo online, acessar o conjunto de objetos de cada grupo em particular.

Referências bibliográficas
BARRETO, C. Arte e Arqueologia na Amazônia Antiga. Centre for Brazilian Studies,
University of Oxford, Working Paper 66. 2005. Disponível em:
http://www.lac.ox.ac.uk/sites/sias/files/documents/Cristiana%2520Barreto%252066.pdf

DI BACO, Hiuri M., FACCIO, Neide B. & LUZ, Juliana R. Das raízes da pesquisa
arqueológica a Arqueologia Processual: um esboço geral. Tópos. v. 3, n. 1, p. 206-233,
2009.

MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Os museus na era do virtual. In: Bittencourt, José
Neves; Granato, Marcus & Benchetrit, Sarah Fassa. (Org.). Museus, ciência e
tecnologia. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2007, p. 48-70.

SANCHES, Pedro Luis Machado. A Relação Necessária Entre a Museologia e a


Arqueologia no Âmbito da Implantação do Museu de Antropologia e Arqueologia de
Pelotas (Rio Grande Do Sul, Brasil), Conferência 2009.

1637
SCHAAN, Denise Pahl. Arqueologia para Etnólogos: Colaborações entre Arqueologia e
Antropologia na Amazônia. Anuário Antropológico, Dossiê: "Aprofundando a
Amazônia: Contribuições da Arqueologia à Etnologia", 2014.

TRIGGER, Bruce. História do Pensamento Arqueológico. Tradução Ordep Trindade


Serra. São Paulo: Odysseus Editora Ltda, 2004. 419 p.

Internet:
AMN. Amazonian Museum Network. (http://amazonian-museum-network.org/pt-br).

1638
O JOGO 3D COMO RECURSO PEDAGÓGICO PARA A APRENDIZAGEM
SOBRE ARTE PÚBLICA
Mônica de Nazaré da Costa Pereira*
Dávison Cirilo Queiroz Miranda**
Rian Araújo Moraes***
Ubiraélcio da Silva Malheiros****

Resumo: O presente trabalho aborda a relação entre arte e cidade, especificamente o estudo da
arte pública ̶ monumentos, espaços culturais e intervenções instalados nos espaços urbanos –
fomentando a leitura do lugar ao qual pertencemos, criando-se assim um recurso pedagógico
para ser usado em sala de aula de forma didática e lúdica. A partir disso, o Grupo de Estudos
sobre Arte Pública - Belém, por meio do projeto “Arte pública como recurso pedagógico: a
cidade conta sua história”, projetou um aplicativo de jogo eletrônico para ser utilizado por
professores e alunos, aliando o lúdico à tecnologia, ampliando as possibilidades de
aprendizagem sobre o ensino de Artes e a história da cidade. Busca-se que o jogo possa levar ao
aluno a conhecer um pouco da cultura e patrimônios do espaço em que vive, utilizando-se como
roteiro inicial a Praça da República, Belém. Este projeto tem reunido discussões acerca do tema
fundamentados por SILVA (2005), FERRARA (1988), KISHIMOTO(2011), LIBANÊO (1994),
COSME e MALHEIROS (2015). Quanto aos procedimentos metodológicos trata-se de uma
pesquisa bibliográfica e de campo. A primeira deve possibilitar estreitar as relações entre o
estudo da arte, cultura e sociedade, com a educação, buscando teóricos que norteiem a discussão
sobre os principais temas, afirmando a importância do lúdico no processo de ensino e
aprendizagem na disciplina de artes, assim como ampliar as possibilidades de
interdisciplinaridade, haja vista que esse estudo da cidade e seus patrimônios também fazem
parte de conteúdos em outras disciplinas como história e geografia. A pesquisa de campo dentro
dos próprios espaços urbanos deve mapear onde estão instalados os objetos artísticos. Sendo
assim, propõe-se pensar sobre a importância do teor dessa pesquisa, incorporada a criação de
um recurso pedagógico, que alie educação à tecnologia, propondo um novo olhar e atitudes do
transeunte ao seu próprio lugar de convivência.
Palavras-chave: arte pública; lúdico; educação.

Abstract: The present work deals with the relationship between art and city, specifically the
study of public art ̶ monuments, cultural spaces and interventions installed in urban spaces -
encouraging the reading of the place to which we belong, thus creating a pedagogical resource
to be used in the room classroom in a didactic and playful way. From this, the Study Group on
Public Art - Belém, through the project "Public Art as a pedagogical resource: the city tells its
story", designed an electronic game application to be used by teachers and students, combining
the playfulness with technology, expanding the possibilities of learning about the teaching of
Arts and the history of the city. It is intended that the game can lead the student to know a little
about the culture and patrimony of the space in which they live, using as an initial script the

1639
Praça da República, Belém. This project has gathered discussions about the theme based on
SILVA (2005 ), FERRARA (1988), KISHIMOTO (2011), LIBANÊO (1994), COSME and
MALHEIROS (2015). As for the methodological procedures, it is a bibliographical and field
research. The first should make it possible to strengthen the relations between the study of art,
culture and society, and education, seeking theorists to guide the discussion of the main themes,
affirming the importance of the playful in the teaching and learning process in the arts
discipline, as well as expand the possibilities of interdisciplinarity, since this study of the city
and its patrimony are also part of contents in other disciplines such as history and geography.
Field research within the urban spaces themselves should map where the artistic objects are
installed. Thus, it is proposed to think about the importance of the content of this research,
incorporating the creation of a pedagogical resource, which alies education to technology,
proposing a new look and attitudes of the passer-by to their own place of coexistence.
Keywords: Public Art; Playful; Education.

1640
Desvendando a cidade por meio da arte pública e do lúdico

Toda cidade carrega consigo sua memória e parte dessa memória é apresentada
visualmente por meio de suas características na infraestrutura, organização ambiental,
transformações urbanas, políticas e também, por meio da arte e intervenções artísticas
presentes nela.
Para Ferrara (1988) os elementos perceptíveis dentro de um espaço urbano são
os subsídios que compõe, como prática e compreensão, um conceito sobre cidade,
entretanto, por se tratar de um espaço já homogêneo e comum, muitas vezes, aos olhos
do transeunte, ela acaba deixando-se passar despercebida. Logo, é preciso reeducar a
percepção, aprimorando o conhecimento a partir de novas informações sobre a leitura
dos signos presentes na cidade, desvendando sua história.
A Arte Pública, objeto principal neste artigo, não é um termo novo, ela vem
sendo discutida desde os anos 60 e na década de 70 ficou conhecida como site specific,

um tipo de arte que valoriza mais a experiência do que a informação


[...] A arte pública deixa de atender prioritariamente ao
embelezamento urbano e surge como a possibilidade de redefinir a
experiência do lugar, por meio da inferência em um sítio expandido.
(SILVA, 2005, p. 22.).

Sendo assim, um termo que sempre se readapta as mudanças no espaço urbano e


com o desenvolvimento de novas modalidades artísticas, é importante que ele seja
sempre debatido, já que a arte pública em toda sua atual amplitude de acepções está
presente nas cidades significando e ressignificando os espaços urbanos.
No projeto de extensão “A arte pública como recurso pedagógico: a cidade conta
sua história”, busca-se, sob a orientação do Prof. Dr. Ubiraélcio Malheiros, discutir a
importância da Arte Pública, por meio de leituras e visitas técnicas, tendo como foco a
cidade de Belém-Pa. Além desse ponto extremamente importante e que serve de base

1641
para a pesquisa final a que se pretende, tem-se, como objetivo, neste grupo de estudos, o
desenvolvimento de um jogo em 3D, que será utilizado, também, como recurso
pedagógico para ampliar e tornar mais presente nas aulas de artes a questão da arte
pública e o patrimônio histórico existentes na cidade.
O jogo terá como espaço principal a Praça da República, de Belém-Pa, local
muito frequentando, principalmente por jovens de todas as esferas sociais. Nele se
apresentarão as esculturas existentes nesse ambiente, as intervenções, os contextos
sociais e culturais presentes nela, entre outras práticas artísticas que acontecem durante
a semana e principalmente aos finais de semana, momento em que a praça é muito
frequentada. Todos esses aspectos serão demonstrados no desenvolvimento do jogo, o
qual será melhor descrito no decorrer deste artigo.
O jogo, ainda em fase de desenvolvimento, estará disponível gratuitamente para
smartphones, facilitando sua distribuição. Logo, o fácil acesso possibilitará fortalecer os
debates sobre o assunto, assim como ampliar a percepção do indivíduo, fazendo-o
observar sua cidade e as esculturas presentes nela.
Infelizmente, a dinâmica acelerada dos tempos atuais faz com que muitas
intervenções e obras artísticas públicas – algumas já tão comuns aos olhos dos
moradores locais – não sejam notadas, ou então tidas como abandonadas, por conta do
descuido dos governantes e, algumas vezes, por conta dos próprios moradores da
cidade. O jogo, portanto, seria uma proposta que auxiliaria na criação desse alerta para a
valorização dos patrimônios históricos da cidade e resgatar a história do lugar já
esquecida por muitos.
É possível observar que o cenário urbano ao qual pertencemos se desenvolve,
mas mantém, de uma forma ou outra, suas esculturas históricas e junto a elas novas
intervenções feitas por artistas anônimos ou não, questionando suas condições na
sociedade ou até mesmo, significando e ressignificando o local, ou obra no espaço
público.

1642
É interessante observar que dentro desse novo contexto a arte pública
compreenderá a cidade sob novas perspectivas, ou seja, a ela discutirá

não só o visível, o construído arquitetonicamente, mas também o


cotidiano dos habitantes, a memória do lugar, as tradições culturais, as
manifestações tradicionais, em diálogo com as comunidades que
vivem no lugar, compreendendo suas afinidades e também suas
diferenças, mas sempre considerando seus valores culturais e
históricos. (SILVA, 2005, p. 22.).

Portanto, é imprescindível ampliar essa discussão, e é necessário que ela não


ocorra apenas entre estudiosos da área. É preciso que se inicie uma visibilidade sobre o
assunto, desde a escola, entre jovens alunos, mas claro, adaptadas a cada nível de
ensino, utilizando-se do lúdico para facilitar mais ainda o aprendizado sobre um tema
tão complexo.

O jogo em 3d como aliado para a aprendizagem em artes


Como descrito anteriormente, o projeto tem como um de seus objetivos a criação
de um jogo que seja utilizado como recurso pedagógico, para auxiliar professores de
Artes a debaterem de forma lúdica assuntos relacionados, principalmente, a Arte
Pública.
Essa proposta está sendo a continuidade para o que se pretende tornar uma série
de jogos, isto porque o projeto já possui o primeiro volume do jogo virtual, mas em 2D,
nele tem-se um puzzle sobre o espaço Feliz Lusitânia em Belém, no qual o jogador deve
posicionar, no mapa do espaço, as esculturas pertencentes ao local.
A nova proposta deixará de ser em 2D e passará para a tecnologia em 3D, que
permite uma maior imersão do jogador ao contexto que se apresentará. Nesse novo
roteiro o jogo terá como espaço principal um fragmento central da Praça da República,

1643
em Belém-Pa, onde está presente o monumento à República, que tem como objeto
principal em sua composição a figura de uma mulher.
A metodologia a ser utilizada para melhor integrar a importância do tema arte
pública e os patrimônios históricos, dentro de um jogo eletrônico, será a de,
primeiramente, fundamenta-lo por meio de uma pesquisa bibliográfica consistente, na
qual serão levantadas referências dos autores que teorizam conceitos sobre leitura da
cidade, cultura e arte pública, além de autores que dissertam sobre a cidade de Belém,
principalmente, a Praça da República, local onde o jogo se passará.
Além disso, para que melhor possa haver a inserção da perspectiva do jogador
dentro da plataforma, todos os envolvidos na realização do projeto realizaram visitas
técnicas em grupo para mapeamento e registros das obras que se enquadram como arte
pública dentro da Praça da República, assim como realizar registros fotográficos que
serviram de base para a modelagem dos personagens dentro do jogo 3D.
As modelagens para o jogo foram criadas em low poly, que é um tipo de
modelagem feita com baixo número de polígonos, por meio de um programa chamado
3dsmax, ganhando assim um aspecto mais lúdico para se trabalhar com crianças. A
programação do jogo ficou a cargo do programa Unity, até a versão Beta, que após
aprovada pelo coordenador do projeto, será complementada e finalizada.
O roteiro do jogo se inicia a partir de um pequeno incidente envolvendo a
escultura central na praça, o monumento À República, que tem como figura destacada
em sua composição Marianne. Após o acontecimento ela solicita a personagem
principal do jogo, uma garotinha que passeava pelo local, ajuda para resolver a questão.
Para tanto, a jovem personagem deverá desvendar os mistérios e enigmas presentes no
território e assim ir descobrindo a história da cidade, os costumes do local, os
patrimônios ali existentes, além de contemplar o objetivo final do jogo, que é ajudar a
escultura a manter a história local viva, para que ninguém nunca esqueça as memórias
da cidade.

1644
Para Campagne (1989 apud KISHIMOTO, 2011) o jogo como recurso na
educação possui atualmente uma relação entre dois fatores, que seriam como função
lúdica, a qual se tem diversão e prazer, ou até mesmo desprazer pelo que se está
fazendo, e a função educativa, na qual o jogo repassa um novo conhecimento ou instiga
novas questões sobre o mundo.
As duas funções juntas, formam, portanto, um jogo educativo, pois como
apresenta Kishimoto (2011) quando elas são apresentadas independentes entre si, ou
seja, o lúdico pelo lúdico, ou o educativo pelo educativo, o jogo perderia seu valor
como recurso pedagógico, logo não seria significativo para uma metodologia
consistente. Seria utilizado apenas pelo prazer, ou valeria apenas como disciplina, um
conteúdo apenas ministrado e obrigatório.
Acredita-se que esta proposta aliada ao lúdico e mediada por um professor de
Artes pode contribuir para ampliar a discussão sobre arte pública, cultura, assim como
também explorar mais sobre a importância da preservação do patrimônio público, além
disso, acredita-se que esse método contribui para potencializar as competências de
percepção dos alunos, despertando-os para a realização da leitura da sua cidade.
Esse novo recurso em construção contemplaria ludicamente questionamentos
ligadas ao tipo de arte de interesse nesse projeto, reconhecendo que “um dos principais
objetivos da arte pública é estabelecer o diálogo com a diversidade” (SILVA, 2005, p.
25.).
Isso será possível no jogo por meio de puzzles, que são quebra-cabeças e
enigmas, que envolveriam tanto curiosidades sobre as esculturas, quanto aos grupos
sociais que frequentam a praça, tribos urbanas, questões de meio ambiente, intervenções
recorrentes no espaço, trabalhadores do lugar, entre outros muitos aspectos presentes no
local, que é um dos mais frequentados de Belém.
Acredita-se que esse tipo de direcionamento na educação é interessante, pois

1645
trabalhar o lúdico e a mídia digital no projeto em tela é justamente
obter a participação ativa do aluno no caso a troca de conhecimento,
facilitando a aprendizagem e a sensibilidade artística e estética perante
as obras de arte e monumentos. (COSME; MALHEIROS, 2015, p.
7139.).

Para tanto os professores devem estar preparados para interagir com o recurso,
pois são eles que farão o papel de apresentar esse mundo ao aluno e juntos intervir nesse
espaço virtual. Esse recurso pedagógico se caracteriza em um modelo de educação
definido por Libâneo (1994, p. 17.) como “educação intencional” a qual acontece por
objetivos, finalidades, intenções e a partir dessa experiência ampliar discussões e ideias,
o que podem causar posteriormente atividades externas com os alunos e até mesmo
intervenções fora do mundo virtual.
A maneira não tão convencional de se trabalhar o conteúdo de artes por meio de
um jogo virtual demonstra o quanto a arte é ampla e se renova diante das novas
necessidades pós-modernas. É preciso compreender e acompanhar o mundo o qual o
aluno está inserido e junto a isso criar métodos e práticas que melhor possam beneficiar
a todos, de forma dinâmica e atualizada.
O processo para criação de um jogo 3D e toda a pesquisa que se necessita para
isso requer tempo e cautela para que os conteúdos e propostas sejam melhores
apresentados, para enfim ter-se um teste. Após esse processo, o aplicativo ficará
disponível na internet de forma gratuita para que se tenha fácil acesso de download, não
só para alunos, mas também professores e demais interessados.
Além disso, compreende-se que é imprescindível para se alcançar o objetivo
pedagógico do jogo, a realização de palestras e treinamentos nas escolas para seu devido
uso, contribuindo também para fomentar possíveis metodologias que poderão vir a ser
aplicadas pelos professores em sala de aula, para tanto, essas capacitações serão
realizadas por pessoas selecionadas pelo coordenador do projeto, que estejam aptas a
discorrer sobre o assunto, e que melhor apresentem essa nova ferramenta tecnológica,

1646
aliando a ela os conhecimentos sobre arte pública, cultura e patrimônio público da
cidade.

Referências bibliográficas

COSME, Priscilla Brito. MALHEIROS, Ubiraélcio da Silva. Arte pública: um diálogo


lúdico e educativo. In: Congresso Nacional de Educação, 12., 2015, Paraná. Anais
eletrônicos... Paraná: Pontifícia Universidade Católica do Paraná, 2015. Disponível em:
<http://educere.bruc.com.br/arquivo/pdf2015/19491_9504.pdf>. Acesso em: 13 jul.
2017.

FERRARA, Lucrécia d’Aléssio. Ver a cidade: cidade, imagem, leitura. São Paulo:
Nobel, 1988.

KISHIMOTO, TizukoMorchida. O jogo e a educação infantil. São Paulo: Cengage


Learning, 2011.

LIBÂNEO, José Carlos. Didática. São Paulo: Cortez, 1994.

SILVA, Fernando Pedro da.Arte pública: diálogo com as comunidades. Belo


Horizonte: C/ Arte, 2005.

1647
ESTUDO DA ACESSIBILIDADE NOS MUSEUS DE ARACAJU E
LARANJEIRAS-SE: EDUCAÇÃO E USO DAS TECNOLOGIAS ASSISTIVAS

Cristina Valença*

Resumo: O estudo de acessibilidade nos museus de Aracaju e Laranjeiras tem como foco
principal identificar os principais problemas e barreiras para a promoção da inclusão social nos
museus. A proposta centra-se em identificar as possíveis barreiras físicas e comunicacionais
dessas instituições e propor alternativas viáveis sugeridas pelas tecnologias assistivas. Essa
pesquisa está sendo desenvolvida em três etapas: primeira definindo-se pelo levantamento e
análise de fontes bibliográficas, na segunda está sendo aplicado um formulário criado
especificamente para esta pesquisa com a finalidade de construir um diagnóstico de
acessibilidade das instituições culturais de Aracaju e de Laranjeiras. Este formulário tem como
base o modelo utilizado por AmandaTojal(2007) em sua tese de doutoramento intitulada
"Políticas Públicas Culturais Inclusão de Público Especiais em Museus". Num terceiro
momento, serão realizadas entrevistas com funcionários, estagiários, fundadores da instituição e
o público visitantes, em especial, visitantes com deficiência ou mobilidade reduzida. Ao
discutirmos sobre o processo de inclusão social nos museus pensamos na possibilidade de usos
que devem ser realizados dentro dessa instituição cultural, pensamos no acolhimento e nas
melhores formas de proporcionar a comunicação do patrimônio extrovertido nas exposições.
Palavras-chave: Museus; Inclusão social; Acessibilidade; Tecnologias Assistivas; Educação.

Abstract: The study of accessibility in the museums of Aracaju and Laranjeiras has as main
focus to identify the main problems and barriers for the promotion of social inclusion in
museums. The proposal focuses on identifying the possible physical and communication
barriers of these institutions and proposing viable alternatives suggested by assistive
technologies. This research will be developed in three stages: first, by means of the survey and
analysis of bibliographic sources, the second will be applied a form created specifically for this
research with the purpose of constructing a diagnosis of accessibility of the cultural institutions
of Aracaju and Laranjeiras. This form will be based on the model used by AmandaTojal (2007)
in his PhD thesis entitled "Cultural Public Policies Inclusion of Special Audiences in Museums".
In a third moment, interviews with officials, trainees, founders of the institution and the public
will be carried out, in particular, visitors with disabilities or reduced mobility. When discussing
the process of social inclusion in museums we think about the possibility of uses that must be
made within this cultural institution, we think about the reception and the best ways to provide
the communication of the extroverted heritage in the exhibitions.
Key-words: Museums; Social inclusion; Accessibility; Assistive Technologies; Education.

1648
O estudo de acessibilidade nos museus de Laranjeiras tem como foco principal
identificar os principais problemas e barreiras para a promoção da inclusão social nos
museus21. Trata-se de um estudo inicial, aprovado em agosto de 2017 pelo Edital n.
02/2017 PROSGRAP/COPES/UFS que se propõe a investigar a acessibilidade nos
museus de Aracaju e Laranjeiras22. Esse estudo aqui apresentado centra-se em
identificar as possíveis barreiras físicas e comunicacionais das instituições de
Laranjeiras e propor alternativas viáveis sugeridas pelas tecnologias assistivas. O estudo
da acessibilidade dos museus tem como objetivo principal compreender o processo de
inclusão social das instituições culturais de Laranjeiras. Para o presente artigo
discutiremos especificamente os primeiros passos relacionados aos museus de
Laranjeiras. Assim é possível averiguar:

1. Quais instituições culturais de Laranjeiras promovem acessibilidade?

2. Dentre as instituições que se preocupam com a inclusão social e cultural, quais os


mecanismos de acesso que são desenvolvidos por essas instituições?

3. Quais as principais barreiras encontradas nessas instituições ?

4. Como são acolhidas as pessoas com deficiência nessas instituições?

21
Edital nº 02/2017 POSGRAP/COPES/UFS - PIBIC/PICVOL 2017. O projeto tem como bolsistas
Lorena Santos e Dayane Andrade.
22
Errata em relação ao texto: Memorial Histórico Acioli Sobral em Japaratuba/SE: uma análise publicado
nos anais do Sebramus 2014. Na pagina do referindo texto, onde se lê:"O prédio onde comporta o museu
é uma antiga residência que pertenceu a Caio Tavares que deixou a casa para os filhos. Estes a
venderam para o prefeito Helio Sobral que fez a cessão para o funcionamento do Memorial como forma
de promover o incentivo a democratização da cultura e consolidação da identidade do povo da região”.
Leia-se: “ O prédio onde comporta o museu é uma antiga residência que pertenceu a Caio Tavares,
posteriormente passou por outros proprietários que fizeram a cessão para o funcionamento do memorial
como forma de promover o incentivo a democratização da cultura e consolidação da identidade do povo
da região."

1649
5. Qual a relação entre a frequência de visitas do público especial nos museus e o
desenvolvimento de propostas, programas, projetos de atendimento às pessoas com
deficiência ou mobilidade reduzida?

6. Como as tecnologias assistivas podem contribuir para melhorar as propostas


expográficas, de educação e de comunicação desses museus?

Dessa forma, a ideia é fazer uma averiguação das propostas de inclusão social
desses museus para que seja possível entender a realidade e as particularidades de cada
um e, posteriormente, criar mecanismos de orientação para a recepção, acolhimento e
inclusão do público especial nos museus de Laranjeiras. Nessa direção, os museus que
estão sendo estudados são: O Museu de Arte Sacra de Laranjeiras, o Museu Afro
brasileiro de Laranjeiras, a Casa de Folclore Zé Candunga e a Casa de Cultura João
Ribeiro.

Essa pesquisa está programada para ser desenvolvida em três etapas: primeira
definindo-se pelo levantamento e análise de fontes bibliográficas, na segunda será
aplicado um formulário criado especificamente para esta pesquisa com a finalidade de
construir um diagnóstico de acessibilidade das instituições culturais de Laranjeiras. Este
formulário tem como base o modelo utilizado por AmandaTojal(2007) em sua tese de
doutoramento intitulada "Políticas Públicas Culturais Inclusão de Público Especiais em
Museus". Num terceiro momento, serão realizadas entrevistas com funcionários,
estagiários, gestores das instituições e o público visitantes, em especial, visitantes com
deficiência ou mobilidade reduzida.

Para o levantamento serão pesquisadas as bases online do Instituto Brasileiro de


Museus- IBRAM e o Conselho Internacional de Museus- ICOM. O levantamento de
livros, artigos, teses será realizado no portal CAPES e nos sites da Biblioteca Central da
Universidade Federal de Sergipe-UFS e nas bibliotecas setoriais como a BICAL e no

1650
setor de Documentação Sergipana. Além dessas leituras, a legislação também será uma
maneira importante para compreender o processo de acessibilidade e inclusão social nos
museus de Laranjeiras. Assim, dentre as legislações que serão estudadas estão a
Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, a Constituição Federal de 1988, o
Programa Nacional dos Direitos Humanos de 1996 e a Lei de Acessibilidade, a NBR
9050 e outros.

Como subsidio teórico para a construção dessa análise buscou-se o texto de


Amanda Tojal(2007) "Políticas Públicas Culturais Inclusão de Público Especiais em
Museus" que discute a relação das políticas públicas desenvolvidas para os museus e as
barreiras físicas, comunicacionais e atitudinais nos museus. A tese de Viviane Sarraf
cujo título “Reabilitação do museu: políticas de inclusão cultural por meio da
acessibilidade” através da qual discute as possibilidades de construção de políticas
públicas e as diversas formas acesso às informações presentes nas exposições dos
museus.

Para assessorar a compreensão sobre a inclusão social nos museus, buscou-se as


definições traçadas por Romeu Sassaki(2006) sobre o processo de inclusão social, este
sendo definido como “o processo pelo qual os sistemas sociais comuns são tornados
adequados para toda a diversidade humana – composta por etnia, raça, língua,
nacionalidade, gênero, orientação sexual, deficiência e outros atributos – com a
participação das próprias pessoas na formulação e execução dessas
propostas.”(SASSAKI, 2009, p. 10).

Ao discutirmos sobre o processo de inclusão social nos museus pensamos na


possibilidade de usos que devem ser realizados dentro dessa instituição cultural,
pensamos no acolhimento e nas melhores formas de proporcionar a comunicação do
patrimônio extrovertido nas exposições. Nakayama(2007) em um texto que discute a
Educação inclusiva, reflete sobre as “rupturas no sistema”, sobre as necessárias “

1651
transformações profundas” para efetivar o processo de inclusão. Assegura que: “no
processo de inclusão, as limitações as diferenças são vistas como reais e as pessoas
merecem que sejam feitas adequações ambientais e curriculares para que possam
aprender” (NAKAYAMA, 2007, p.25).

Dessa forma, é necessário pensar reformas e até mesmo propostas didáticas e


acessíveis a todos os tipos de público. Continua a autora afirmando que:

Para reformar a instituição, é necessário reformar a cultura que nela


prevalece, na mentalidade das pessoas que a compõe e que nela
convivem cotidianamente, levando em consideração os documentos
legais que ora indicam a presença da desigualdade, ora proporcionam
condições de sua superação. (NAKAYAMA,2007,p.25).

Seguindo essa orientação pergunta-se: então como os museus de Laranjeiras


poderiam suplantar as barreiras e ascender ao discurso da inclusão?

O município de Laranjeiras está localizado a aproximadamente a 20 km da


capital Aracaju23 e fica situado na região do Cotinugiba, marcada pela produção
açucareira, teve no século XIX seu auge econômico. Por conta dessa produção
econômica Laranjeiras tornou-se um importante núcleo urbano e mantém até os dias
atuais parte da história e da cultura que dá identidade ao povo sergipano. É possível
visualizá-la através dos casarios, da arquitetura das igrejas, das praças, das ruínas e dos
museus.

O museus existentes na cidade de Laranjeiras são mantidos pelo poder público e


o principal público que estas instituições recebem são formados por turistas e
estudantes. Numa vista a cidade é possível localizar quatro museus, a Casa de Cultura
João Ribeiro, o Museu Afro brasileiro de Sergipe, o Museu de Arte Sacra e a Casa de

23
http://www.geografos.com.br/distancia-entre-cidades/distancia-entre-aracaju-e-
laranjeiras.php

1652
Folclore Zé Candunga. Todos localizados no centro da cidade de Laranjeiras. Dentro de
uma avaliação inicial, foi possível verificar que todas essas instituições foram alocadas
em casas do centro histórico e como tal não foram projetadas para serem museus. Dessa
forma, muitos problemas de acessibilidade e mobilidade urbana podem ser
identificados. Então pergunta-se: como pensar acessibilidade em centros históricos?
Como tornar os museus de Laranjeiras o mais acessível possível? Como promover o
acesso às informações presentes no museu? Como facilitar a comunicação e a
aprendizagem?

Certos cuidados são razoáveis e dar um passo de cada vez talvez seja a medida
mais plausível. Muito tem sido realizado, as discussões acadêmicas, as publicações, a
utilização das tecnologias assistivas, as oficinas, as políticas públicas, as
normatizações... todos são exemplos de caminhos viáveis que formalizam as estratégias
de inclusão social.

A autora Amanda Tojal (2007) responde essa questão afirmando que ao se levar
em conta o papel social dos museus e as possibilidades de inclusão dentro dos espaços
museológicos, a inclusão só será realmente efetivada se houver “uma política cultural de
caráter interdisciplinar...” (TOJAL,2007, p.31-32). Ou seja, acredita a autora que ao
tentar garantir a acessibilidade à cultura, os museus devem refletir sobre suas práticas
museológicas e, principalmente, perceber a importância da área da ação educativa nesse
processo, afirma:

É certo que cabe à área da ação educativa, como parte da área de


comunicação museológica, a incumbência de fornecer a todas as
outras áreas dessa instituição, os princípios fundamentais para a
concepção de políticas públicas de inclusão, pois é ela que, sem
dúvida alguma, possui as melhores condições de compreensão tanto
do público geral como do público especial e também aquela que
possui o acesso mais direto às instituições a que eles pertencem.
(TOJAL,2007, p.84).

1653
Nessa direção, é possível então perceber que para garantir “as melhores
condições de compreensão” é necessário diminuir as distancias, as barreiras físicas,
comunicacionais e atitudinais dentro das instituições culturais. Elaborar propostas de
atendimento, projetos, programas culturais e educativos que possam colaborar com o
acesso e o uso que o público possa fazer dos museus. Identificar os problemas e
reconhece-los talvez seja o primeiro passo, depois criar propostas simples e que possam
ser executadas pelos museus também é um passo importante a ser realizado para a
promoção da inclusão social e cultural dos museus de Laranjeiras.

Referências bibliográficas

NAKAYAMA, Antonia Maria. Educação Inclusiva: princípios e representação. São


Paulo: USP/Universidade de São Paulo, 2007. Tese (Doutorado em Educação)
Faculdade de Educação.

SARRAF, Viviane Panelli. Reabilitação do museu: políticas de inclusão cultural por


meio da acessibilidade. São Paulo: USP, 2008. Tese (Mestrado em Ciência da
Informação/Escola de Comunicação e Artes/USP).

SASSAKI, Romeu. Inclusão: acessibilidade no lazer, trabalho e educação. Revista


Nacional de Reabilitaçcão(Reação). São Paulo, Ano XII, mar/abr. 2009, p.10-16.
Disponível em: https://acessibilidade.ufg.br/up/211/o/SASSAKI_-
_Acessibilidade.pdf?1473203319. Acesso em 16 de março de 2017.

TOJAL, Amanda Pinto da Fonseca. Políticas Públicas Culturais de Públicos


Especiais em Museus. São Paulo: USP/ Universidade de São Paulo, 2007. Tese
(Doutorado – Ciência da Informação) Escola de Comunicação e Artes da USP.
s/a. Distância entre Aracaju e Laranjeiras. Disponível em:
http://www.geografos.com.br/distancia-entre-cidades/distancia-entre-aracaju-e-
laranjeiras.php. Acesso em ago/2017.

1654
MUSEU INTERATIVO E A LÍNGUA PORTUGUESA: ATIVIDADE
PEDAGÓGICA NO MUSEU DA LÍNGUA PORTUGUESA

Mariana Cunha Bhering*

Resumo: O museu interativo, com uso de diversas mídias digitais tem sido atrativo tendo em
vista o contexto da era das informações. Nesse neste é apresentado alguns elementos sobre
atividades pedagógicas no museu interativo, a partir de um relato de experiência sobre visita em
museus com estudantes, sobre a importância de preservar e conhecer os patrimônios históricos e
o conteúdo oferecido pelos museus, mais especificamente o Museu da Língua Portuguesa. A
ida ao museu proporcionou aos jovens estudantes a oportunidade se deslocarem na cidade a fim
de localizarem o patrimônio e ter contato com um conteúdo interativo, no qual se torna atrativo
para os jovens.
Palavras-chaves: museu, patrimônio, estudantes.

Abstract: The interactive museum, using various digital media has been attractive in view of
the context of the information. In this, some elements about pedagogical activities are presented
in the interactive museum, based on an experience report about visiting museums with students,
about the importance of preserving and knowing the historical heritage and the content offered
by museums, specifically the Museum of the Portuguese Language. The visit to the museum
gave the students the opportunity to visit the city in order to locate the heritage and to have
contact with an interactive content, in which it becomes attractive for the young people.
Key-words: museum, heritage, students.

1655
Apresentação

A equipe pedagógica do Projeto Aprendiz Comgás, realizaram atividades


culturais no ano de 2007 como duas turmas composta por 35 estudantes, em sua maioria
advindos de escolas públicas.

O Programa Aprendiz Comgás (PAC) surgiu no ano 2000 da parceria a Comgás


(Companhia de Gás de São Paulo) com a Associação Cidade Aprendiz com o objetivo
de proporcionar aos jovens estudantes tanto de escolas públicas como privadas o
desenvolvimento e estimular iniciativas sociais para solucionar preocupações das
comunidades em relação as áreas de cultura, meio ambiente, saúde e comunicação.

Os museus interativos são mais conhecidos como atividades pedagógicas mais


especificamente nas áreas das ciências (COLINVAUX; 2015, BORGES; 2004,
CAZELLI et all 1999 e GRUZMAN; SIQUEIRA, 2007). Os museus interativos de
ciência, por vezes visto:

...como um espaço educativo adicional, onde as pessoas possam


aprender conceitos científicos ou sobre a natureza da ciência como uma
atividade intelectual e onde seja possível a ampliação e a melhoria da
alfabetização científica, uma vez que estes museus dispõem de meios
peculiares para ampliar o conhecimento nos assuntos relativos à Ciência
e Tecnologia. (CHAVES CONSTANTIN, 2001, p. 196).

Essa aproximação com a ciência por meio de uma “alfabetização científica”


evidência o uso da tecnologia para o aprendizado, assim como nessa área, as interações
com conteúdo de outras áreas também despertam aprendizados, como no caso do Museu
da Língua Portuguesa com aprendizado da língua.

1656
Sobre a organização e estrutura do Museu da Língua Portuguesa

O Museu da Língua Portuguesa (MLP) foi inaugurado dia 20 de março de 2006


e começou atendimento ao público no dia 21 de março desse ano. Fica localizado no
edifício histórico da Estação da Luz no bairro do Bom Retiro, na cidade de São Paulo.
A Estação da Luz, é uma importante estação ferroviária da cidade, foi construída em 16
de fevereiro de 1887.

O contexto de sua construção incluía o momento de urbanização de muitos


locais no Brasil, entre eles a expansão da cidade de São Paulo e urbanização e das
cidades do interior paulista em função da economia voltada para a produção do café.

Atualmente, a Estação da Luz integra a rede de transportes sobre trilhos da


Companhia Paulista de Trens Metropolitanos e Estação da Luz do Metrô de São Paulo.

O prédio da Estação da Luz reservado ao museu foi pensado e implementado


pela Fundação Roberto Marinho, instituição conveniada ao Governo do Estado de São
Paulo, no qual foi responsável por orientar a equipe para criação e organização do
museu, composta por diversos profissionais, como sociólogos, museólogos,
especialistas em língua portuguesa e artistas.

Dedicado à valorização e difusão do nosso idioma (patrimônio


imaterial), o Museu da Língua Portuguesa apresenta um formato
expositivo diferenciado das demais instituições museológicas do país e
do mundo, usando tecnologia e recursos interativos para a apresentação
de seus conteúdos. (MLP, 2017)

O museu consiste em aproximar o cidadão usuário de seu idioma, valorização


da língua Portuguesa como elemento fundamental e fundador da nossa cultura; da
diversidade da Cultura Brasileira; por meio de cursos, palestras e seminários e realizar
exposições temporárias sobre temas relacionadas à Língua Portuguesa e suas diversas
áreas de influência.

1657
A primeira exposição no museu foi no ano de 2006 sobre João Guimarães Rosa.
Em 2007 o tema da exposição foi sobre a vida e obras de Clarice Lispector, pelos 30
anos da morte da escritora. Clarice nasceu em Tchetchelnik, na Ucrânia, no dia 10 de
dezembro de 1920, posteriormente naturalizando-se brasileira em 1943. Viveu em
Maceió e Recife, e Rio de Janeiro. No Rio de Janeiros formou-se em direito, iniciou a
carreira como jornalista, tradutora e escritora. A exposição ficou em cartaz do dia 24 de
abril de 2007 e até o dia 02/09/07.

A exposição foi composta por documentos pessoais como Carteiras de


identidade, cartas, manuscritos e cadernos de notas. Os destaques da exposição foram as
mais de 2000 gavetas com 65 contendo frases de suas obras e no fundo do salão a
reprodução da sua última entrevista dada ao jornalista Junio Lerner para o programa
Panorama em 1977. Parte dos documentos são do Acervo Clarice Lispector, sob a
guarda do Arquivo–Museu da Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa.
Algumas imagens e fotos fazem parte dos acervos do Arquivo Nacional e do Instituto
Moreira Salles .

Organização e preparação para a ida ao museu

Essa atividade de visita ao museu foi feita dentro de uma atividade pedagógica
maior, de uma visita cultural da cidade, em que havia outros espaços para visita, este era
um no qual o estudante deveria se locomover e se informar sobre as informações
trabalhadas no museu.

Essa atividade tinha como objetivo estimular autonomia em relação ao


deslocamento na cidade e estimular a frequência e valorização de espaços culturais e
patrimônios históricos. A turma foi dividida em grupos de cerca de 5 pessoas, no qual

1658
foram responsáveis por planejar o trajeto até o local e a busca de informações sobre o
conteúdo oferecido no museu.

Percepções e avaliações sobre a ida ao museu

Durante a visita os estudantes interagiram com a exposição, prestaram atenção e


questionaram os guias do museu, recolheram panfletos da exposição e fizeram
anotações.

Após a visita ao museu, foi realizado um encontro para avaliar e trocar as


experiências do trajeto realizado e das opiniões sobre a visita.

As percepções dos estudantes sobre o museu se destacam em dois aspectos: 1. O


interesse nas obras e sobre a autora despertado a partir do conteúdo por meio de
interações digitais. 2. Uma percepção mais ampliada sobre a história e desenvolvimento
da língua portuguesa.

O interesse pelo conteúdo do museu, na época a exposição de Clarice Lispector


se deu por falas como: “ Eu li esse livro”, “Esse livro parece legal”, “Coisas tão
modernas em um prédio antigo”, entre outras demostraram a identificação e curiosidade
sobre o tema abordado no museu. Muitas falas remetiam ao interesse de reler as obras
ou ler outras ainda não lidas pelo fato de verem de forma diferente trechos desatados
das obras.

Os estudantes tinham uma imagem diferente de museu, não esperavam um


museu interativo, o som da voz da Clarice ouvido na sala chamou atenção, esperavam
um lugar silencioso.

1659
Como avaliação da atividade realizada, o deslocamento foi realizado de maneira
satisfatória, porém, alguns estudantes não fizeram a pesquisa sobre o conteúdo do texto,
por isso, deveria haver um momento de troca das informações recolhidas sobre a
exposição.

A parte da exposição sobre Clarice Lispector, os estudantes também tiveram


atividade direcionada para o andar que trata especificamente da língua portuguesa, sua
história, transformações e curiosidades. Muitos dos estudantes não tinham atentado que
um país, o Timor Leste, localizado na Ásia, se fala português.

A visualização do o mapa do desenvolvimento da língua portuguesa, a influência


de línguas africanas e indígenas no Brasil e a quantidade de oito países (Angola, Brasil,
Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor-
Leste,), de quatro continentes falantes do português, possibilitou sintetizar muitas
informações que já haviam aprendido.

Ao visitarmos o museu e desenvolver todo o processo da atividade, observamos


que essa dinâmica de interação também inclui não somente os recursos tecnológicos
envolvidos para aproximar os visitantes estudantes, mas o próprio deslocamento e
atividade em um ambiente específico sobre a área da língua portuguesa para além da
sala de aula sentados e organizados em fileiras, diferente da disposição que exige a
visita ao museu interativo, que além de ir até a informação, participam de ambiente que
exigem sua presença.

Conclusão

Não se trata aqui defender a simples interação com o conteúdo em contraponto


aos museus mais “tradicionais”, e sim destacar como um tipo de museu que tem a sua
importância e um papel diferente.

1660
Uma atividade pedagógica significativa necessita de direcionamentos em todo
seu processo, assim como em qualquer espaço, não somente em museus. O museu da
Língua Portuguesa por seu caráter interativo faz despertar nos estudantes que já fazem
parte de uma geração que é cada vez mais imersa nas diversas mídias digitais.

Anos depois da atividade realiza o museu sofreu um incêndio, no ano de 2015 a


equipe do museu sofreu uma perda, um bombeiro faleceu no local, parte do prédio ficou
prejudicada, além de equipamentos.

Por isso, atualmente o museu encontra-se em restauro, apesar de parte do museu


ser interativa e por isso tem-se salvo por ser digitalizado, o espaço do museu era muito
bem alocado, a instituição está fechada para o público, mas promove atividade
educativas e exposições itinerantes.

Nesse sentido, o museu também deveria ter um espaço específico para falar do
prédio enquanto patrimônio público, que deve ser valorizado e um espaço para falar do
falecimento de um bombeiro, na tentativa de conter o incêndio, não há como reparar
uma vida, mas há como preservar sua memória. Portanto, deveria ter espaço fixo para
contar sua história, que inclui desde a criação do prédio da Estação da Luz até a
instalação do Museu da Língua Portuguesa, já que o museu já comporta instalações
fixas, além das exposições temporária.

Como dito a atividade centrou-se posteriormente em expor a importância de


valorizar e frequentar espaços culturais e patrimônios históricos na cidade. Assim, foi
possível observar a dinâmica de interação com conteúdo por multimídias aproxima os
jovens estudantes ao conteúdo exposto no museu desse tipo.

1661
Referências bibliográficas

BORGES, Regina Maria Rabello et all. Contribuições de um museu interativo à


construção do conhecimento científico. Revista Brasileira de Pesquisa em Educação em
Ciências (RBPEC), v.4, n. 3, 2004.

CAZELLI, S. et all Tendências Pedagógicas das Exposições de um Museu de Ciência.


In: Atas do II Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências. Valinhos, São
Paulo, Setembro, 1999.

CHAVES CONSTANTIN, Ana Cristina. Museus interativos de ciências: espaços


complementares de educação? Interciência 2001, n. 26, maio: Disponível em:
<http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=33905604> Acesso em: jul. 2017

COLINVAUX, Dominique. Museus de ciências e psicologia: interatividade,


experimentação e contexto. História, Ciências, Saúde, Manguinhos 2005, 12 (jan.).
Disponível em: <http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=386137988005> Acesso em: 10
ago. 2017.

GRUZMAN, Carla, SIQUEIRA; Vera Helena F.. O papel educacional do Museu de


Ciências: desafios e transformações conceituais. Revista Electrónica de Enseñanza de
las Ciencias Vol. 6, Nº 2, 402-423, 2007.

MUSEU DA LÍNGUA PORTUGUESA (São Paulo- SP). Disponível em:


<http://www.museudalinguaportuguesa.org.br/> Acesso em: fev. 2017.

PROGRAMA APRENDIZ COMGÁS. (São Paulo- SP). Disponível em: <


http://aprendizcomgas.org.br/> Acesso em: jan. 2017.

1662
História e memória dos
museus e da
museologia no Brasil -
Museologia e trabalho
em museus:
trajetórias, tendências,
modelos, formação e
papel social

1663
A DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA NO MUSEU DE CIÊNCIAS DA TERRA -
MCTer: ASPECTOS HISTÓRICOS E DIMENSÕES EDUCATIVAS

Nathalia Roitberg*
Ildeu de Castro Moreira**

*Fundação Osvaldo Cruz – FIOCRUZ


**Museu de Ciências da Terra - MCTer

Resumo: O trabalho apresenta um breve panorama histórico do surgimento do Museu de Ciências da Terra –
MCTer no Rio de Janeiro e reflexões voltadas à cientifização das práticas museológicas, sua institucionalização
e a popularização da geologia. Realizaremos uma análise institucional sob a perspectiva das trajetórias
individuais. Os museus constituem espaços de conhecimento ou lazer, onde a educação não-formal emerge do
diálogo com o visitante. Observa-se uma crescente exigência social em prol de políticas públicas pela
acessibilidade nesses espaços. De certo, é necessário o aumento de estratégias de integração com o público
visitante, por consequência da sua função educativa. As reflexões sobre a divulgação geocientífica no MCTer
apontam para a importância da RECENTE IMPLEMENTAÇÃO DO PROGRAMA DE mediação. A mediação possibilitou a
melhoria da inclusão nas visitas de pessoas com deficiências através de uma linguagem multissensorial e
criativa, sob a perspectiva da propriocepção, como por exemplo, contação de mitos geopaleontológicos nas
visitas de pessoas com transtorno cognitivo e/ou psíquico, ou explorando as propriedades organolépticas dos
minerais e fósseis, através do convite ao toque àqueles que tem deficiência visual. Esse Museu, sob a gestão da
COMPANHIA DE PESQUISA DE RECURSOS MINERAIS (CPRM), RESPONSÁVEL PELO SERVIÇO GEOLÓGICO DO BRASIL
POSSUI GRANDE IMPORTÂNCIA NA EDUCAÇÃO E DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA DAS GEOCIÊNCIAS DESDE 1908. As
Exposições Nacionais no Brasil se constituíram em verdadeiros movimentos de divulgação científica nos quais
os estados afirmavam seu potencial exibindo o seu desenvolvimento tecnológico, econômico, industrial e
arquitetônico. A criação do MCTer ocorreu na Exposição Nacional de 1908 em comemoração ao centenário da
abertura dos portos. Conquanto o Museu afastasse o visitante devido a sua grandiosidade, ao longo do tempo,
constituiu-se verdadeiramente em um espaço público, um lugar de inclusão social através da educação
geocientífica.

Palavras chaves: MCTer; geociências; popularização; Exposições Nacionais.

1664
Abstract: This work presents a brief historical of the emergence of Museum of Earth Sciences - MCTer in Rio
de Janeiro and reflections on the scientification of museological practices and their institutionalization, and the
popularization of geology. We will take an institutional analysis approach from the perspective of individual
trajectories. Museums are spaces of knowledge or leisure, where non-formal education emerges from dialogue
with the visitor. There is a growing social demand for public policies for accessibility in these spaces. Of course,
it is necessary to increase integration strategies with the visiting public, because of their educational function.
The reflections on geoscientific disclosure in MCTer point to the importance of the recent implementation of the
mediation program. Mediation made it possible to improve inclusion in the visits of people with disabilities
through a multisensory and creative language, from the perspective of proprioception, such as the counting of
geopaleontological myths in the visits of people with cognitive and / or psychic disorders, or exploring the
Organoleptic properties of minerals and fossils, through the invitation to the touch to those who have visual
deficiency. This Museum, under the management of the Research Company of Mineral Resources (CPRM),
responsible for the Brazilian Geological Survey, has been of great importance in the Education and Scientific
Divulgation of Geosciences since 1908. The National Exhibitions in Brazil have been constituted in real
movements of scientific dissemination in the states affirmed their potential by exhibiting their technological,
economic, industrial, and architectural development. The creation of the MCTer took place in the National
Exhibition of 1908 in commemoration of the centenary of the opening of the ports although the Museum took
away the visitor due to its grandeur, over time, it has truly constituted itself in a public space, a place of social
inclusion through geoscientific education.

Key-words: MCTer; geosciences; popularization; National Exhibitions.

1665
O estudo da História das instituições e sua interdisciplinaridade com a museologia
merecem um enfoque nas relações individuais. São os indivíduos que mobilizam a Política
Científica, a Educação e a divulgação científica evidenciando níveis de aceitação, resistência,
silenciamento e mensagens nas entrelinhas. A interpretação dessas ações nos desloca para
além do condicionamento do texto de documentos oficiais e nos apresentam intencionalidades
estabelecidas dentro das instituições.

Os museus constituem locais de aprendizado assim como lugares de convivência e


lazer. Preocupam-se com o processo criativo e como espaços de educação não-formal, devem
estimular a curiosidade do visitante, tornando-o sujeito de seu aprendizado.

O edifício estilo neoclássico tardio do MCTer “fala por si”, traduz uma vontade de
memória da recente República à época de sua construção, na qual o acesso às instituições de
saber era um privilégio de poucos. Interpretando Paul Ricoeur (2007), o edifício traduz uma
moral pactuada, uma intenção de memória e transparece uma memória impedida. As
exposições abrigam o que deve ser lembrado; o conhecimento não musealizado, isto é, a
produção cultural dos múltiplos personagens que ali produziram significados culturais muitas
vezes é silenciada e negligenciada como patrimônio. Daí a importância da
interdisciplinaridade no estudo da História das Instituições.

As etapas iniciais da institucionalização da ciência no país remetem à fuga de D. João


e sua comitiva para a colônia lusitana, momento em que foram criadas diversas instituições
que representava um interesse do governo Real no desenvolvimento das Ciências na nova
sede do império português: a escola médico-cirúrgica da Bahia, a Imprensa Régia e o Museu
Real a Biblioteca Real (Biblioteca Nacional), a Real Academia de Belas Artes (Museu
Nacional de Belas Artes), o Jardim Botânico (1808), a Real Junta de Arsenais do Exército e a
Real Academia Militar (1810).

Quando a repentina migração da Corte portuguesa gerou um “choque cultural” na


população, houve um esforço no sentido de dotar a cidade de “civilidades” através da
implementação de instituições e templos de saberes, multiplicando novos signos no convívio
social (Elias, 2000). As mudanças atingiram seu ápice na primeira metade do século XX, sob

1666
forte influência dos ideais republicanos, quando a rotina dos habitantes foi marcada por novas
formas de conduta embasadas nos costumes europeus (FREYRE, 2003, p. 27).

Algumas evidências sobre a “brisa moderna” (FREYRE, 2003) estão explicitadas no


próprio cenário em que emergiram as iniciativas de divulgação das Ciências no país para além
dos seus pares, através das Exposições Nacionais. As Exposições Nacionais no Brasil, no Rio
de Janeiro, desde 1862 foram planejadas à luz das Exposições Universais estrangeiras, como a
de Nova York em 1853, Londres em 1851 e Paris 1855 - movimentos de divulgação
científica, onde as nações exibiam o seu desenvolvimento tecnológico, econômico, industrial,
arquitetônico e demonstravam o seu poder (HOBSBAWM, 2003, p. 15). O cenário que gerou
a criação do MCTer ocorreu exatamente na Exposição Nacional de 1908, na capital da
República, que festejou o centenário da abertura dos portos.

Sandra Jatahy Pesavento percebe as exposições universais como vitrines da produção


agrícola e industrial, além de instrumentos de saber para o progresso da humanidade,
assumindo importante papel na difusão da arte e ciência.

Em 1908, data do primeiro centenário da chegada da Corte Portuguesa ao Brasil, as


elites republicanas compartilhavam a proposta de exibir para o mundo toda a “modernidade”
da nova República através da Exposição Nacional (PESAVENTO, 1997, p. 45).

A capital da recente República brasileira festejou a abertura dos portos em um


momento de transformação da sua estrutura e formas de conduta (ELIAS; SCOTSON, 2000 p.
13). Bailes, novas lojas, tabernas, implementação de instituições de ciência e arte, entre outros
atrativos, fizeram despontar diferentes orientações sociais ligadas às novas formas de
consumo e status, estimulando o consumo e a divulgação das Ciências.

Nas primeiras décadas do século XX os indivíduos distinguiam-se por signos de


etiqueta dentro de uma realidade de maior mobilidade social, mais trabalho, carência de
alimentos, ordens de despejo, campanhas médicas de vacina obrigatória e uma política de
saneamento higiênico e moral da pobreza (CHALHOUB, 2006), executada por diversos
agentes em um plano compartilhado, dentre outros personagens, pelo prefeito Pereira Passos e
o médico Oswaldo Cruz.

1667
Voltados para a vista exuberante do Pão de Açúcar, o portal de entrada da Exposição
de 1908, inspirado na última Exposição Universal de Paris, ambientava os visitantes na cidade
da Era das Luzes “A iluminação é profusa e inteligentemente distribuída por 8.000 lâmpadas
incandescentes” (Jornal da Exposição, 11/09/1908 p.02).

A construção do “Palácio da Geologia Brasileira” (TOSSATO, 1994), porém, remete-


nos a um período anterior, em 1881, quando foi lançada a pedra fundamental para sediar a
Faculdade de Medicina (TOSSATO, 1994, n.p.) à época.

O lançamento do projeto contou com a presença do Imperador D. Pedro II, que


também nomearia a futura instituição. No entanto, a sua construção foi paralisada por falta de
verbas.

Entende-se que o estudo dos marcos na história das instituições auxilia o pesquisador
da História da ciência a situar as transformações vivenciadas pela compreensão pública da
ciência (WYNNE, 2005). Destacamos a criação, em 1916, da Sociedade Brasileira de
Ciências, intitulada posteriormente de Academia Brasileira de Ciências.

Neste cenário ganha importância nas primeiras décadas do século XX, o aumento do
número de universidades no Brasil tais como: a Universidade Federal do Paraná em 1912, a
Universidade do Rio de Janeiro (criada em 1920) que passou a se chamar Universidade do
Brasil, em 1937, e a criação da Universidade de São Paulo. Constatadas as necessidades de
saneamento urbano (CHALHOUB, 2006), houve a consolidação da pesquisa na área
biomédica e a criação do Instituto Soroterápico Federal, mais tarde conhecido como Instituto
Oswaldo Cruz e em São Paulo o Instituto Biológico e o Instituto Butantã.

No período pós-Segunda Guerra, o fomento à ciência se justificava pela sua percepção como
um instrumento de poder (HOBSBAWM, 2003). Nesse contexto em 1948 foi constituída a
Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) que viria a se tornar, principalmente
a partir dos anos 1970, a principal entidade a promover eventos relacionados à divulgação
científica. Em 1951 foi criado um dos primeiros fundos universitários de pesquisa, o Conselho
Nacional de Pesquisa - CNPq, hoje denominado Conselho Nacional do Desenvolvimento

1668
Científico e Tecnológico e no mesmo ano a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior - CAPES.

O movimento inicial para a consolidação do atual regime mineral presente na


Constituição Federal foi a promulgação do Decreto 2.933, em 1915, onde no art. 7.º
estabelecia a mina como propriedade distinta do solo, sendo alienável isoladamente (art. 2º)
pelo historiador e geólogo Pandiá Calógeras (1870-1934). O Decreto objetivava estimular a
Produção Mineral e a consolidação de instituições Mineralógicas. Nesse contexto, em 1934,
foi criado o Departamento Nacional da Produção Mineral (DNPM). Os técnicos, sua
excelente biblioteca, “todas as salas, laboratórios, corredores, eram salas de aula, vivas.”
(RAMOS, 1987). O DNPM possuía uma estimulante atmosfera de tradição do conhecimento
geológico (CARVALHO, 1976 p. 126).

Em 1960 foi criado o Ministério das Minas e Energia. Fundada em 1969, a CPRM
passou a se intitular Serviço Geológico do Brasil – SGB e em 1974 o DNPM foi transferido
para Brasília.

À CPRM cabe, pela legislação vigente, ser depositário oficial dos dados e
informações sobre geologia, recursos minerais e hídricos. Desde 2012 a CPRM assumiu a
gestão do MCTer e seu acervo foi cedido à responsabilidade deste órgão através de acordo de
cooperação com o DNPM.

No dia 23 de maio de 1973, ocorreu um grande incêndio no edifício do Museu que foi
amplamente divulgado, gerando grande comoção pública e mobilizando a comunidade
científica e do entorno. O estrago fora tamanho que o incêndio consumiu mais de cento e
sessenta mil livros, comprometendo grande parte da memória e da estrutura física do prédio e,
consequentemente, todo o espaço para exposição e acervo. O projeto de restauração é orçado
hoje na ordem de grandeza de sessenta milhões de reais. Por meio do Decreto Nº 13.275, de
11 de outubro de 1994, foi efetivado o processo de tombamento (nº 12/002286/92) do
edifício.

A análise do Patrimônio Histórico do Museu dialoga com as recentes interpretações da


História Cultural: dimensões de silenciamento e lugares de memória. Esse imponente edifício

1669
tombado de estilo neoclássico, inaugurado em 1908 é um lugar de memória. Guardamos nos
museus aquilo que merece ser preservado. Guardamos as memórias, a história guardamos os
afetos. As exposições de um museu abrigam o que deve ser lembrado; o conhecimento não
musealizado é silenciado e desconsiderado como patrimônio, isto é, produção cultural dos
múltiplos grupos identitários.

O museu, assim como a escola são instituições educativas anacrônicas quando


oferecidas às classes populares, uma vez que muitas das características modernas
desenvolvidas à serviço de uma sociedade industrial que tinha como necessidade primordial o
controle dos corpos o objetivo de melhor adestrá-los para a subordinação e produtividade,
ainda são parte de suas rotinas. Segundo Varela e Álvarez-Uria, a criança pobre é, desta
forma, arrancada de seu meio/ cultura para ser transformada em mercadoria da escola: “a
maquinaria escolar irá produzindo seus efeitos, transformando esta força incipiente, tábula
rasa, num bom trabalhador” (VARELA; URIA, 1992, p.12).

O museu não deve ver o visitante desta forma, ou seja, como uma tábula rasa, mas
sim, considerar e valorizar os conhecimentos prévios trazidos pelo mesmo para que a
aprendizagem neste espaço educativo seja significativa.

O destaque que as Ciências da Terra obtêm na mídia aproxima o assunto das pessoas,
através do enfoque, por exemplo, em fenômenos naturais catastróficos, fósseis de dinossauros,
mudanças climáticas. Tudo isso precisa ter uma explicação lógica, e próxima a realidade do
aluno dos alunos. A insuficiente aplicação do tema nas escolas, a carência de formação de
professores na área - como os programas não exigem licenciados em Ciências da Terra a
disciplina é lecionada por professores de outras áreas do conhecimento como: Geografia,
Ciências Físicas ou Naturais (CAMPOS, 1997 p.45), e a grande quantidade de termos
complexos e não usuais, são obstáculos que dificultam a popularização das geociências.

A educação não-formal (MARANDINO, 2008), para além da mídia, contribuiu para a


educação científica das pessoas, a popularização das Ciências, e inclusive das Ciências da
Terra deslocando o tema para meios não acadêmicos. O movimento de aproximação da
Ciência com o cotidiano das pessoas está ligado a concepções museológicas de enfoques

1670
interdisciplinares entre Filosofia, História, Sociologia e Antropologia. Nesse sentido a
História da Ciência, e no caso estudado, a divulgação museal das geociências a partir do
estudo de caso do MCTer assume um caráter de disciplina problematizadora da sua
institucionalização, sob uma perspectiva sociocultural.

Há que destacar, além do grandioso acervo e das diversas exposições temporárias, as


exposições permanentes do Museu: “No Tempo dos Dinossauros” – Acervo de vertebrados
fósseis que viveram no Brasil durante a Era Mesozoica; “Lewellyn Ivor Price + 100, um
Paleontólogo” – Mostra sobre o legado científico e cultural de um dos maiores paleontólogos
do DNPM; “Dinossauros do Triângulo” – Acervo de vertebrados fósseis encontrados no
Triângulo Mineiro; a impressionante coleção Mineralógica e Petrográfica, que inclui cerca de
sessenta meteoritos; “A mão negra na mineração” e a Exposição "O que é Geofísica?”. O
Museu possui ainda uma biblioteca com mais de cem mil volumes. Entre suas atividades estão
eventos, exposições temporárias e mostras itinerantes.

A análise das iniciativas de divulgação científica do acervo do MCTer constitui um


importante desafio. Atualmente, mediadores recebem o público visitante. Desde 2015, foi
implementado, através de um planejamento educacional, a capacitação da equipe em
mediação em Museu de Ciências. Até então os visitantes eram recebidos por recepcionistas
treinadas sob a supervisão de um pesquisador.

Podemos observar rastros de que a divulgação geocientífica proporcionada pelo


Museu estimulou a sociedade a participar e se apropriar do patrimônio das Ciências da Terra
no berço de sua institucionalização.

Desde a década de 1980 até 2015 a equipe do museu desenvolveu ações para
divulgação do museu, criação da biblioteca geocientífica e atividades inerentes a um setor
educativo. Em 2006 foi iniciado um sólido projeto de divulgação científica, que podemos
relacionar a um modelo contextual, ultrapassando o chamado “modelo déficit”1, ao apresentar
algumas dimensões de engajamento público. Podemos destacar ainda a participação do museu

1
Modelo de divulgação científica no qual os cientistas são considerados como os detentores do conhecimento
que deve ser transmitido ao público visando preencher uma lacuna. LEWENSTEIN, B.; BROSSARD, In:
KAHLOR, L.; STOUT, 2003.

1671
no projeto “ABC na educação científica – mão na massa RJ” coordenado por Diógenes, com
capacitação para professores brasileiros e estrangeiros, e jogos e experimentos geocientíficos.

A recente implementação do programa de mediação possibilitou diversas atividades


de divulgação científica e interação pedagógica, a realização de exposições itinerantes e
oficinas proporcionando a inclusão, especialmente, para deficientes visuais e pessoas com
transtornos cognitivos e/ou psíquicos, através de uma linguagem multissensorial e criativa,
sob a perspectiva da propriocepção. Através da mediação, surge a oportunidade para a troca
de conhecimentos, estimulando o pensamento crítico dos sujeitos para lidarem com o mundo
e sua realidade, promovendo a criatividade e incentivando a atitude investigativa, sob uma
perspectiva inclusiva de acessibilidade atitudinal (KASTRUP, 2010)

Diante das situações transformadoras da função educativa do museu, as atividades


socioeducativas desenvolvidas são, por exemplo, contação de mitos geopaleontológicos nas
visitas de pessoas com transtorno cognitivo e/ou psíquico, ou explorando as propriedades
organolépticas dos minerais e fósseis, através do convite ao toque àqueles que tem deficiência
visual, em diálogo com a representatividade estética (KASTRUP, 2010). Como resultado,
percebemos ser possível promover o processo de inclusão social, através da acessibilidade
pedagógica e atitudinal nas exposições do MCTer. Pretende-se futuramente aperfeiçoar essa
proposta, diante do campo fértil a ser explorado, visto que o museu é vizinho de instituições
voltadas a pessoas com deficiência como o Instituto Benjamim Constant (educação para
cegos), e o Instituto psiquiátrico da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ.

O trabalho do mediador torna-se imprescindível, na medida em que pode proporcionar


o diálogo e a interação do sujeito com o conhecimento, ressignificando barreiras de
preconceitos e estimulando a busca por maior autonomia.

1672
Recentemente o museu aumentou sua preocupação com a identidade visual elaborando
desde o ano passado uma logo, materiais de divulgação, criando páginas eletrônicas e perfis
nas mídias sociais, e aumentando a divulgação na imprensa2.

O Museu de Ciências da Terra possui uma equipe restrita, composta sumariamente por
estagiários e terceirizados em número insuficiente para a sua extensa área de
aproximadamente três mil e quinhentos metros quadrados. As suas exposições são
relacionadas a uma comunicação unidirecional baseadas no chamado “modelo déficit”
(STILGOE, J.; LOCK, S. J., 2014 p. 9-14) de divulgação de conhecimento. Tais exposições
podem ser relacionadas àquelas abrigadas pelos museus de primeira geração que procuram
valorizar o produto da Ciência, enquanto o papel dos educadores é funcionar como um guia,
explicando e orientando os visitantes sobre as localizações e informação técnica das
exposições (VALENTE, CAZELLI & Alves 2005, p. 189)

A linguagem utilizada nos instrumentos explicativos (cartazes, painéis, etiquetas etc.)


é voltada aos meios acadêmicos, portanto, não é acessível ao público em geral. Algumas
etiquetas possuem letra bastante reduzida, dificultando a leitura, ou estão demasiadamente
degradadas e apagadas pelo tempo. Na maioria das exposições além da altura das vitrines e
objetos que cria barreiras para a acessibilidade à cadeirantes e crianças, não há uso de
recursos tecnológicos que permitam uma maior interatividade (projeção de imagens, recursos
sonoros, etc.). Além disso, é necessário considerar, ainda os problemas de iluminação (muitas
vitrines apagadas ou com luzes intermitentes), anomalias estruturais e necessidade de
higienização de seus acervos. Esses problemas geram dificuldades de visualização, circulação
e interação desestimulando o visitante a se tornar um ator ativo no processo científico, através
de uma experiência mais democrática. As atividades de divulgação científica interativas,
inclusivas, em um viés de engajamento, ainda são raras e ligadas exclusivamente as ações do
mediador: a maioria das exposições evidenciam um caráter meramente informativo.

2
O museu vive hoje um momento de intensa divulgação, especialmente após o grande sucesso obtido na coletiva
de imprensa em outubro de 2016 sobre a descoberta do “Maior Dinossauro do Brasil : Austroposeidon
Magnificus”, tendo a matéria repercutido no mesmo dia em 12 jornais brasileiros de mídia impressa, 7 emissoras
da TV aberta, 5 emissoras de TV internacionais e dezenas de matérias veiculadas nos canais da internet. Fonte:
ASSCOM/CPRM.

1673
É necessário compreender as individualidades e a profundidade dos participantes (nas
relações do museu com o espaço urbano e a sociedade), observando as políticas
governamentais na popularização das ciências, motivadas por instituições públicas e as
dimensões do acesso institucional, focados no impacto social que elas provocam3.

Educadores, administradores e até mesmo os vigilantes, assumiram um papel relevante


na interação com o público ampliando o diálogo através de uma linguagem representativa,
dando o sentimento de pertencimento ao conhecimento em geociências e a preservação de
bens culturais naturais, como os sítios geológicos e paleontológicos. O trabalho do mediador
tornou-se a chave que abre as portas para inclusão. As iniciativas de divulgação científica que
proporcionaram um maior engajamento partiram muitas vezes de não cientistas.

Pesquisas sobre as dimensões culturais entre os indivíduos que experimentam a


divulgação científica do MCTer, police makers e as relações de poder entre ciência e público,
poderão auxiliar o museu a consolidar seu papel como veículo de divulgação científica das
geociências, além do que já vem promovendo: romper barreiras entre os modelos de
divulgação científica, buscando entendimento entre os contextos, potencialidades e interesses
diversos no acesso a informação: do déficit ao diálogo (LEWENSTEIN, B.; BROSSARD, In:
KAHLOR, L.; STOUT, 2003)

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CAMPOS, D. A. Ensino das Ciências da Terra In: Educação e Ciência. Rio de Janeiro,
Academia Brasileira de Ciências, 1997

3
A administração pública no país historicamente pouco se preocupava com a transparência, para além da
legislação obrigatória, o verdadeiro acesso a cidadania. Ao longo dos últimos anos, o MCTer se consolidou
como uma importante vitrine de divulgação da CPRM. No contexto atual, é consenso que o museu é o espaço
para abrir o canal com a sociedade e que diante das riquezas naturais do país deve-se buscar soluções efetivas
para a mineração sustentável

1674
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1677
MUSEU EM REVISTA: A SEÇÃO ‘RELÍQUIAS BRASILEIRAS’ DA REVISTA
SELECTA (1930)

Aline Monteiro Magalhães*

Resumo: O artigo pretende identificar a imagem do Museu Histórico Nacional que foi construída na
década de 1930, quando o mesmo ocupou a seção "Relíquias Brasileiras" da Revista Selecta. Está em
jogo conhecer a importância do periódico na época, bem como a da seção na qual foram publicadas
reportagens do o MHN e seu acervo. Interessa-nos saber quais aspectos da instituição foram
salientados de modo a atrair o interesse do público leitor. O trabalho integra um projeto de pesquisa
dedicado à presença do MHN na imprensa a partir do acervo da Hemeroteca Gustavo Barroso,
constituída pelo próprio intelectual cearense que dirigiu o Museu por 35 anos e pela museóloga Nair
de Moraes Carvalho. O principal propósito do projeto é compreender a contribuição da imprensa na
construção de memórias sobre a instituição. Ou seja, de que maneira, notícias, citações reportagens
sobre o MHN tiveram responsabilidade sobre um imaginário a respeito do Museu.

Palavras-chave: Museu Histórico Nacional; Imprensa; Revista Selecta; Gustavo Barroso; Memórias.

Abstract: This article aims to identify the press' role in the building of the image of National
Historical Museum, during the 1930s. We analyse the "Reliquias Brasileiras" section of Selecta
Magazine, where was publiched news about the Museum. We are interested to know the importance of
the Magazine at the time and what aspects of the institution have been highlighted in order to attract
the interest of the readership. The work is part of a research project dedicated to the presence of the
MHN in the press based in the collection of the Gustavo Barroso, made up by own Barroso who have
directed the Museum for 35 years and by the museologist Nair de Moraes Carvalho. The main purpose
of the project is to understand the contribution of the press in building of memories about the Museum
That is, in what way, news, reports about the MHN took responsibility for an imaginary about the
Museum.

Key-words: Museu Histórico Nacional; Press, Selecta Magazine, Gustavo Barroso, Memories.

1678
Hemeroteca Gustavo Barroso

Na biblioteca do Museu Histórico Nacional há uma coleção de recortes de jornais


organizada em cadernos e em maços de folhas soltas, somando um total de 100 volumes. Essa
coleção pode ser divida em três grupos diferenciados pelo tipo de origem do colecionamento.

O primeiro grupo é caracterizado por um "arquivamento da própria vida" (ARTIÉS,


2013) que Gustavo Barroso realizou pessoalmente. É formado por 26 álbuns abarcando o
período de 1907, quando iniciou sua carreira jornalística, ainda em Fortaleza, até 1942. São
cadernos, livros-caixa e agendas reutilizados pelo colecionador, que colou, sobre as páginas
usadas, os recortes de artigos e reportagens de sua autoria juntamente com notícias e matérias
publicadas sobre si e suas obras. O álbum correspondente ao período de 1909 a 1911, por
exemplo, foi o livro de atas da república de estudantes "Consulado da China". Os manuscritos
da "Ata nº 2 da Sessão extraordinária realizada em 07 de agosto de 1909" foram ocultados
para sempre com a cola e os papéis impressos dos recortes pacientemente selecionados e
organizados nas páginas da encadernação por Barroso. Entretanto, seu conteúdo foi
reproduzido e difundido no terceiro volume de memórias do escritor, Consulado da China.

Os álbuns são organizados em ordem cronológica e, em muitos deles, há numeração


das páginas, num esforço de construir uma narrativa dos acontecimentos a partir do
estabelecimento de uma sequência das notícias selecionadas. Acima de cada recorte, Barroso
escreveu à mão o nome do jornal que o publicou, a cidade e a data da publicação. Há indícios
de que Barroso teria iniciado a organização de seu arquivo em finais da década de cinquenta,
pois, entre as páginas dos cadernos, foram encontrados fragmentos de uma agenda de 1957,
onde o autor escreveu o que deveria buscar para compor sua hemeroteca: “Copiar ‘As festas
do Diário do Estado’ em homenagem ao dr. G. Barroso”. Provavelmente, tratava-se de uma
reportagem a ser colhida para sua coleção. Entretanto, d. Nair de Morais Carvalho, museóloga
do Museu Histórico Nacional e colaboradora do colecionador, que deu prosseguimento à
coleção, afirma que Barroso já fazia esse trabalho muito antes da década de 1950 e que foi
ele próprio quem a ensinou a fazer os álbuns de recortes. É possível que ele sempre tenha se
preocupado em colher as notícias e crônicas publicadas e que posteriormente tenha se

1679
dedicado a organizá-las de forma sistemática e sequencial. Trabalho que parece ter realizado
nas décadas de 1940 e 1950.

O segundo grupo da coleção conta 33 maços de recortes soltos, ganhou novo formato
e não foi mais realizado pelas mãos do colecionador. O trabalho de recolher recortes de
periódicos relacionados a Barroso passou a ser feito por empresas especializadas em clipping,
que apenas enviava notícias e artigos colados em folhas avulsas, tamanho padrão A5, com a
sua logo no cabeçalho e o nome de Barroso sublinhado com lápis vermelho na matéria
selecionada. Essa metodologia de seleção das matérias de jornais e revistas, focada apenas no
nome da pessoa, fez com que se acumulasse na coleção de Barroso reportagens onde seu
nome saíra de forma equivocada. Foi o que aconteceu, por exemplo, com uma notícia sobre a
peça de teatro Dominó, publicada na Gazeta de Notícias atribuiu a autoria da obra a Gustavo
Barroso e a Paulo Magalhães. O recorte foi recolhido pela empresa Lux Jornal, vindo o nome
de Barroso sublinhado com lápis vermelho. Com o mesmo instrumento de escrita alguém
escreveu ao lado um ponto de interrogação e uma observação: "Deve ser Ari Barroso!" Na
folha seguinte há um recorte da Tribuna da Imprensa, colado no papel da mesma empresa,
onde a dúvida foi esclarecida à lápis: a parceria de Paulo Magalhães na escrita da peça teatral
"É de Gastão Barroso".

Da mesma maneira que recortes de periódicos foram agregados a esta parte da coleção
pela combinação de equívocos da imprensa com a terceirização dos serviços de recolhimento,
outros podem ter ficado de fora por terem sido assinadas com pseudônimos ou terem o seu
nome ocultado de alguma forma. Este grupo contém maços relativos ao período de 1940 a
1966, extrapolando o tempo de vida de Barroso.

O arquivo se estende até 1973, graças ao trabalho de Nair de Morais Carvalho, que
continuou recolhendo e guardando tudo de e sobre Barroso que saía na imprensa. Seu trabalho
deu origem ao terceiro grupo da coleção de recortes. Seus álbuns abarcam o período de 1942 a
1937 e somam 40. São mais organizados do que os do próprio Barroso. Todos são numerados,
contendo um recorte por página. Alguns possuem índice.

Colecionar recortes parecia ser uma prática comum entre os homens letrados. O
ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema, em seu "arquivamento de si", guardava

1680
álbuns de recortes junto às correspondências e outros documentos que serviriam ao seu
projeto autobiográfico (FRAIZ. 2007) Já Pedro Nava relatou em seu Baú de ossos:

Tudo isto intimidade que está comprovada na curiosa coleção de recortes e de


retratos de meu Pai – uma daquelas miscelâneas bem do seu tempo e das quais
possuo a sua, a de minha mãe, as de meu tio Antonio Salles. Curiosos repositórios
para estudo de uma personalidade, onde ainda surpreendo, por parte de meu Pai...
(NAVA, 1972: 99).

Ao organizar fragmentos de periódicos, Barroso parecia recolher-se ao passado de


forma solitária, uma vez que seus cadernos não eram compartilhados com leitores, como suas
memórias de infância. Pode-se dizer que se trata de um arquivo privado sobre a vida pública,
onde buscou reunir tudo que a imprensa publicou de sua autoria e sobre sua vida nas letras e
na política. Barroso não reuniu apenas notícias que enalteciam suas iniciativas e seus
posicionamentos. Elogios à sua produção literária e a seus projetos políticos compartilham o
espaço dos cadernos com críticas e ataques que sofreu, conforme é possível perceber nos
comentários que seguem sobre o projeto barroseano de impedir a entrada de vítimas da
Grande Guerra em território nacional, quando fora Deputado Federal:

O Sr. Antonio Carlos manifestou-se favoravelmente ao projeto de lei que estatui


providência no sentido de obstar que afluam às nossas plagas, terminada a
conflagração europeia, os mutilados e os miseráveis, que hão de pulular no Velho
Mundo. [...] A simpatia com que o líder da Câmara recebeu o projeto do Sr. Gustavo
Barroso, solicitando à comissão de justiça o seu rápido andamento, e as
manifestações feitas por S. Ex. ao externar essa simpatia, foram traduzidas não só
como a solidariedade do governo às providências sugeridas, mas ainda foram
recebidas com a significação de que o governo tomava a si a responsabilidade do
projeto [...].(O PAÍS, 1916)

O talentoso Deputado pelo Ceará, Sr. Gustavo Barroso [...] apresentou um projeto de
lei, que não sabemos como coadunar-se possa com a nossa Constituição. [...] Ora o
número dez do artigo em que, na nossa Constituição, se faz a declaração dos direitos
diz, insofismavelmente, que ‘em tempo de paz, qualquer pode entrar no território
nacional ou dele sair [...]’ Bastaria esse parágrafo do artigo 72 do nosso pacto
fundamental para que arrefecido ficasse o entusiasmo que o projeto provocou [...] O
próprio autor do projeto reconhece a sua impraticabilidade, quando, no artigo
seguinte, estabelece uma série de exceções que valem por outras tantas portas
abertas à livre entrada e que servem para demonstrar que difícil será uma execução
equitativa da lei em projeto. (JORNAL DO BRASIL, 1916)

1681
Por essas citações é possível perceber que Barroso não se preocupava apenas em
construir uma imagem positiva, como se não houvesse oposições às suas ideias e ações.
Talvez fosse propósito do escritor fazer um balanço geral entre elogios e críticas que saíram
na imprensa, de modo a identificar onde estaria sendo incompreendido ou injustiçado.
Olhando por outro prisma, seu arquivamento de si poderia estar mais preocupado com a
quantidade de notícias e produções publicadas do que propriamente com o conteúdo do que
foi publicado. Também é possível que houvesse o interesse em identificar o espaço que
ocupou na mídia impressa ao longo de sua vida. Quanto maior o espaço maior seria medida a
sua importância, a sua distinção... Caso consideremos este olhar para a coleção, veremos que
Barroso deveria se orgulhar por ter produzido um arquivamento de si tão volumoso, de ter
ocupado espaço significativo nas diferentes mídias impressas de várias partes do país e do
exterior, pois sua produção e seu prestígio aparecem na imprensa de países como México,
Venezuela, Portugal e Alemanha.

Não há comentários escritos sobre o que estava sendo guardado. Era como se os
recortes pudessem falar por si sobre uma trajetória individual. Teria ele a intenção de deixar
um arquivo completo de si para ser consultado após a sua morte, talvez com vistas à escrita de
uma biografia? Ou estaria passando o tempo organizando e revivendo um pretérito em
manchetes? Acreditamos que entre seus objetivos estavam as duas possibilidades, que
merecem ser mais aprofundadas em outra oportunidade. Um projeto autobiográfico
justificaria cabalmente a ânsia colecionista barroseana. Sabe-se que algumas das crônicas
reunidas nessa coleção foram atualizadas no período de escrita de suas memórias e publicadas
na sua trilogia. É o caso de “Os buscapés”, uma nova versão da crônica “Aos doze anos” e
“Aprendiz de Cenógrafo”, ambas do livro Liceu do Ceará, mas publicadas no Jornal do Brasil,
em 1910.

Vale destacar aqui a importância dessa hemeroteca como fonte de informação. Seja
para análise da escrita de si ou arquivamento do eu produzidos por Barroso, seja para
conhecimento e compreensão da sua trajetória pública. Afinal, a imprensa constitui uma
importante fonte de informações para a produção historiográfica. Entretanto, devemos ter

1682
cuidado com a metodologia de pesquisa dessas fontes, cuja autoridade de “verdade” deve ser
relativizada, conforme alerta a jornalista e historiadora Francine Grazziotin:

Envolto nessa aura de suposta imparcialidade o historiador incauto que pesquisar


nestes jornais sem levar em consideração alguns fatores como: a história do
periódico, a linha editorial, o posicionamento político dos dirigentes, donos, ou
chefes de redação; pode cair em uma grande armadilha ao levar para sua pesquisa
dados recheados de ideologia e posicionamento político. (GRAZZIOTIN, 2007)

Seguindo essas orientações metodológicas, é possível identificar os jornais da


situação, como o “Estado do Ceará”, que veiculava notícias e reportagens de enaltecimento
aos governos do Partido Republicano Conservador, principalmente do primo e padrinho
político de Gustavo Barroso, o Coronel Benjamin Liberato Barroso, que governou o Ceará
entre 1914 e 1916. Na ala dos jornais e periódicos da oposição, nesse mesmo período
destacam-se o jornal “A manhã” e “ABC”, onde eram publicadas as críticas – muitas vezes
em forma de charges – aos projetos conservadores.

A despeito dessas considerações, procuramos olhar para a coleção de recortes de


jornais de Barroso não apenas como uma fonte do que efetivamente teria acontecido ao longo
de sua vida, mas como um indício do que o seu autor desejou legar para a posteridade.
Enfatizamos não apenas o que foi selecionado na vastidão de papéis reunidos, mas a forma
com que serviram a um projeto autobiográfico, à construção de uma identidade de homem
público e honrado que sofreu injustiças e decepções ao longo de sua cruzada pelo passado e
pela nação, nas letras e na política.

Harold Weinrich (2011), em seu estudo sobre o esquecimento, analisa como essa parte
constitutiva da memória se apresenta nas obras de diversos autores da literatura mundial. Ao
interpretar a Divina Comédia de Dante Alighieri, Weinrich identifica a escuridão do inferno
dantesco com o esquecimento. Nessa perspectiva, o esquecimento é visto como castigo dado
aos mortos que, em vida, tinham se esquecido de Deus. Assim, os mortos pecadores suplicam
aos vivos que se lembrem deles e as lembranças cheguem a Deus em forma de oração, e que,

1683
assim, Deus se compadeça diminuindo o sofrimento daqueles que se encontram nas sombras
do esquecimento.

Para Gustavo Barroso, o esquecimento também parecia um castigo e, certamente, foi


contra o esquecimento que produziu uma escrita de si em diferentes suportes, sem falar na
coleção de objetos familiares que passaram a integrar o acervo do Museu Histórico Nacional.
Através da carta citada abaixo é possível compreender como Barroso se relacionava com o
esquecimento e a falta de reconhecimento pelas suas obras:

O Ceará não se lembra mais de mim. O oficialismo honra-me com o seu desdém,
com a sua antipatia. Somente Matos Peixoto, quando Presidente do Estado, me
penhorou com as suas homenagens [...] À Pátria tudo se deve dar. À Pátria nada se
deve pedir, nem mesmo a compreensão [...] Tenho absoluta certeza que um dia,
quando se apagarem com o tempo as paixões de caráter pessoal e político, ser-me-á
feita a devida justiça. (GIRÃO, 1987/8:34)

A hemeroteca barroseana para além de uma vida

A hemeroteca barroseana e a instituição na qual está depositada contrariam a tendência


ao equecimento à qual Barroso teria sido relegado. Se por um lado foram registradas
homenagens em nomes de rua e escola no Rio de Janeiro e em uma praça no Ceará, esta mais
conhecida como Praça do Liceu do que pela sua própria denominação. Por outro, percebe-se o
quase desconhecimento de sua obra pelas novas gerações pela dificuldade de reedições e a
raridade de referências a datas comemorativas ligadas à sua biografia, como o centenário de
seu nascimento em 1988 e o cinquentenário de sua morte.

Entretanto, no Museu Histórico Nacional Barroso é uma presença marcante. É nome


de um pátio interno inaugurado em 2005 e de um prêmio concedido aos melhores alunos de
história militar do colégio naval. As datas relativas à sua biografia e às suas ações pioneiras
realizadas na instituição são lembradas com homenagens e eventos voltados para avaliações
críticas. Entre as efemérides estão a própria criação do Museu Histórico Nacional (1922), a
condução do Curso de Museus a partir de finais de 1932 e a iniciativa pioneira de inspeção
dos monumentos nacionais.

1684
Quanto à hemeroteca, chama atenção o fato de ter se estendido por um período de 14
anos após a morte do autor/biografado. São notícias sobre homenagens póstumas, comentários
sobre obras do escritor e referências a iniciativas suas, como o Museu Histórico Nacional e o
Curso de Museu, por ele dirigidos até o final de sua vida.

Essa característica da coleção nos leva a refletir sobre sua potencialidade como fonte
para outros estudos além da produção autorreferencial de Gustavo Barroso. Uma
possibilidade de exploração da hemeroteca é para a reflexão e análise da presença do Museu
Histórico Nacional na imprensa. É muito presente a referência a essa instituição nos recortes
ao longo de todo o período de 66 anos. Integra a coleção toda a cobertura sobre a criação, em
1922, com críticas, comentários e notícias a respeito; reportagens sobre as atividades
realizadas ao longo do tempo, bem como informes sobre a política institucional durante o
período barroseano e após ele.

O Museu em revista

Ao lançarmos esse olhar para a hemeroteca, propusemos, em 2014, um projeto de


pesquisa sobre a escrita da história produzida por Gustavo Barroso na imprensa, procurando
enfatizar o papel do Museu Histórico Nacional nesse investimento barroseano. Que imagem a
coleção de recortes permite construir sobre o Museu Histórico Nacional na imprensa. Que
tipo de perfil institucional é produzido a partir da seleção e preservação de matérias
publicadas em periódicos ao longo de mais de meio século de atividades contínuas (1922-
1973).

Para se ter uma ideia, nos primeiros 38 volumes da coleção, sendo os 26 produzidos
pelo próprio Barroso e os 10 formados por recortes de empresas de clippings, foram
encontrados 157 recortes diretamente relacionados com o Museu Histórico Nacional. Nos
cadernos confeccionados por d. Nair de Moraes Carvalho a presença do MHN na imprensa
permanece.

A realização dessa pesquisa tem contribuído para análises historiográficas sobre a


instituição, bem como os diferentes processos de construção de memória. Temos como

1685
exemplo um trabalho sobre a escrita da história barroseana publicada na seção "Segredos e
Revelações da História do Brasil" da Revista O Cruzeiro entre 1948 e 1960, segundo o qual
identificou-se a divulgação do Museu Histórico Nacional nos artigos, tanto a partir da
divulgação de acervos para ilustrar ou comprovar o argumento do autor quanto como objeto
de análise. (MAGALHÃES; BOJUNGA, 2014)

Ainda como parte do projeto, estamos analisando os escritos sobre história de Gustavo
Barroso na revista Fon-Fon da qual foi diretor de redação entre 1916 e 1947. Há indícios de
que na Seção Segredos e Revelações da História do Brasil, Barroso republicasse textos
lançados anteriormente, o que nos leva à hipótese de que as revistas que circulavam entre
1920 e 1930, nas quais Barroso atuava de alguma forma, seja como diretor, redator ou
colaborador, serviram como uma espécie de ensaio do projeto historiográfico que se lançará
na Revista O Cruzeiro entre 1948 e 1960. Um dos indícios é o artigo "Amor e Política: D.
Pedro I e a Marquesa de Santos" (BARROSO, 11 abr. 1925), publicado em Fon-Fon, na
década de 1920, voltando a público anos depois nas páginas de "Segredos e Revelações da
História do Brasil" sob o título "Amor e Política: as três fases da vida amorosa do imperador
d. Pedro I documentadas em três preciosas relíquias" (BARROSO, 13 nov. 1948). Um detalhe
interessante é que as fotografias publicadas são as mesmas do artigo de 1925, mas se percebe
o trabalho de restauração que foi feito no quadro da Marquesa de Santos, acervo do Museu
Histórico Nacional.

Aqui nos dedicaremos aos escritos de Barroso publicados na Selecta, que ao lado de
Fon-Fon e Para Todos foi criada no Rio de Janeiro — então Capital Federal — em princípio
do século XX. Segundo as autoras Cláudia de Oliveira, Mônica Pimenta Velloso e Vera Lins,
essas revistas "ocuparam lugar marcante na história editorial brasileira, ajudando a moldar as
percepções cotidianas e a nossa própria cultura política" (2010: 12). Barroso colaborou para
todas elas que, "desempenharam o papel de mediadoras de saberes, de práticas sociais e de
linguagens. Nem tão imediata quanto a matéria trazida pelos jornais, nem tão reflexiva quanto
a sugerida pelos livros" (Idem).

Segundo Ana Maria Mauad, as revistas ilustradas caracterizam-se por ser:

1686
Um veículo que, por meio de uma composição editorial adaptada ao seu próprio
tempo e às tendências internacionais, criavam modas e impunham comportamentos,
assumindo a estética burguesa como a forma fiel do mundo que representavam.

Janelas que se abriam para o mundo retratado na foto, tais revistas contribuíram, em
grande medida, para a generalização do mito da verdade fotográfica, na medida em
que, por meio de suas crônicas e notas sociais, impunham valores, normas e criavam
realidades, num processo que transformaria a cidade em cenário e as frações da
classe dominante, associadas às agências do Estado e às atividades urbanas, tais
como setor de serviços, comércio de exportação e capital financeiro, em seus atores
principais. Assim, foram importantes instrumentos, desse grupo social, no empenho
de naturalizar suas representações pela imposição de uma determinada forma de ver
e reproduzir o mundo, sobre todas as outras possíveis.

Consumidas por quem era o seu conteúdo principal, tais revistas auxiliaram também
a coesão interna do grupo em ascensão social. Com efeito, veiculavam
comportamentos tidos como necessários para se tornar um bom cidadão, atuando
como modelos a serem copiados e exemplos a serem seguidos. (MAUAD, 2005)

Nessa perspectiva, devemos compreender as referências ao Museu Histórico Nacional,


lugar de contato e conhecimento sobre o passado em uma revista afinada com os valores da
modernidade. Poderiam estar, como as fotografias das "palmeiras do Mangue" publicadas na
Fon-Fon, "representando outra face da modernidade [...] a memória metafórica de um passado
da cidade [...] memorabília - 'pequens relíquias da memória pátria'" (Velloso, 2010: 231).
Também poderiam também assumir o papel de divulgar uma prática, não apenas de visitar
museus, mas fazer doações para um lugar que buscava preservar vestígios desse passado que
estava sendo perdido e que a coleção de fotografias publicadas na Fon-Fon atestava gerando
"melancolias e recordações, 'provocando saudades e animando ruínas'" (Idem: 232). Na
edição do dia 25 de fevereiro de 1930 Gustavo Barroso, que assinava a Seção "Relíquias
Brasileiras" apresenta artigo sobre as "Lembranças da Maçonaria" com foto do gladio
maçônico de d. Pedro I. O artigo comenta sobre a importância da maçonaria no momento da
Independência do Brasil e apresenta objetos maçônicos da coleção do Museu Histórico
Nacional que pertenceram a d. Pedro I, como a faixa bordada a seda e ouro, o avental de grão-
mestre, o malhete de sinais e o espadim. "Este uma peça finíssima. Lâmina de Toledo. Punho
de metal dourado e filigranado. Todas essas relíquias foram oferecidas [...] pela benemérita
Viscondessa de Cavalcanti" (BARROSO, 25 fev. 1930)

1687
Nesse escrito, além de procurar utilizar os objetos citados como prova de que a
atividade maçônica no Brasil do primeiro Reinado não foi pequena, informa sobre a ação
benemérita da Viscodessa de Cavalcanti como doadora, contribuindo para que o Museu possa
preservar objetos que "contam" sobre a história nacional.

Analisamos seis artigos publicados em 1930. Dos seis apenas um não cita o Museu
Histórico Nacional, porque dedicado a divulgar a ação do Governo do Ceará na preservação
do patrimônio ao adquirir e conservar "Casas Notáveis" para a história do estado. Entre as
casas citadas, há aquela onde nasceu José de Alencar, em Mecejana. (BARROSO, 19 mar
1930)

O artigo publicado no dia 26 de março, sobre "Os paramentos do Padre Feijó", cita o
Museu como instituição que procurou adquirir o acervo abordado, preservado na cidade de
Campanha, em Minas Gerais. Entretanto, a coluna publica foto da "casula, da estola e
manípulos com que o Padre Feijoó celebrou a missa na cidade, onde passou a funcionar a
Escola Normal Oficial" (Idem). Foto esta doada por Gastão Penalva ao Museu, o mesmo que
escreve sobre sua experiência ao contato com os objetos transcritas por Barroso no artigo.

Um artigo se dedica ao Tacape de Tibiriçá, que ganhará versão ampliada e atualizada


na seção "Segredos e Revelações da História do Brasil" da Revista O Cruzeiro. Fala Barroso
sobre o indígena: "Testemunha e personagem dessas épocas de grandeza moral, o morabixaba
foi o laço que uniu no mesmo desejo de progresso moral e material o índio bravo e o
aventureiro lusitano sob os braços luminosos da Cruz". (BARROSO, 05 mar 1930). Por essas
palavras Barroso expressa sua ideia de nação iniciada com a "civilização" dos índios via
Evangelização católica". Em seguida, conta o trajeto do objeto até sua chegada ao Museu
Histórico Nacional.

Os últimos artigos aos quais nos dedicamos enaltecem os militares. O primeiro, "Da
nossa Marinha", divulga as salas dedicada às glórias militares no Museu Histórico Nacional,
especialmente a que guarda as "relíquias" da Guerra do Paraguai. Segundo Barroso, "As
tradições navais do Brasil são as mais gloriosas da América do Sul. Nenhum outro país do
continente escreveu páginas de heroísmo e triunfo sobre as águas, iguais às nossas"
(BARROSO, 14 mai 1930). Essas palavras não apenas demonstram o olhar de supremacia do

1688
Brasil na América Latina, que deveria ser motivo de orgulho dos brasileiros, como também
justifica o espaço que o tema ocupava no Museu.

No segundo artigo "El Cristiano", Barroso fala sobre a presença do canhão com este
nome no pátio do Museu Histórico Nacional: "Essa relíquia ensina aos brasileiros que seus
maiores venceram uma grande organização fanático-guerreira, vencendo o Paraguai. Ella
relembra as glórias do nosso passado militar. E impõe respeito à memória dos que
derramaram seu sangue para conquistá-la" (BARROSO, 02 de jul. 1930). Mais uma vez a
ênfase numa superioridade militar brasileira frente aos países latinoamericanos. Olhando a
história por esse ângulo, os leitores deveriam se orgulhar do passado militar nacional. Mais do
que isso, visitar o museu para conhecer as "relíquias" que contam essa história.

É preciso continuar as pesquisas sobre a presença do Museu Histórico Nacional na


imprensa, especialmente nas matérias selecionadas e organizadas por Barroso em uma
Hemeroteca. Entretanto, o pouco que pudemos analisar nos escritos publicados na Selecta é
que Barroso falava de história divulgando o Museu Histórico Nacional e seu acervo, de modo
que os leitores se sentissem atraídos para a instituição, seja como visitante ou como doadores
de objetos históricos. Dessa maneira, percebe-se o quanto Barroso acabou por atrelar a
instituição ao seu perfil pessoal, articulando sua trajetória à do Museu.

Em relação à imagem divulgada é a de um lugar que preserva os "tesouros" da história


nacional a serem visitados e cultuados como relíquias de um passado glorioso. Esse passado
deveria provocar orgulho nos leitores e servirem de exemplo para a construção de tempos
modernos, tempos esses no qual o refúgio no passado era uma forma de viver em tempos
sombrios de uma República em crise.

Referências bibliográficas

ARTIERES, Philippe. Arquivar a própria vida. In: TRAVANCAS, I. ROUCHOU, J e


HEYMANN, L. (Org.). Arquivos pessoais: reflexões multidisciplinares e experiência de
pesquisa. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013.

1689
FRAIZ, Priscila. A dimensão autobiográfica dos arquivos pessoais: o arquivo de Gustavo
Capanema. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, 1998. Disponível em:
<http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/237.pdf>. Acesso em 22 out. 2007.

GIRÃO, Rimundo. “Minha saudade de Gustavo Barroso”. In: Revista da Academia


Cearense de Letras. N. 47, 1987/1988. p. 34.

GRAZZIOTIN, Francine. Imprensa: considerações para seu uso como fonte histórica.
Disponível em <www.semina.clio.pro.br/4-1-2006/Francine%20Grazziotin.pdf>. Último
acesso em 15 ago. 2007.

MAGALHÃES, Aline Montengro. Gustavo Barroso e o colecionamento de si. In: Livro do


Seminário Internacional Coleções e Colecionadores. Rio de Janeiro, p.60-68, 2012.
MAUAD, Ana Maria. Na mira do olhar: um exercício de análise da fotografia nas revistas
ilustradas cariocas, na primeira metade do século XX. An. mus. paul. São Paulo, v. 13, n. 1,
p. 133-174, June 2005.

NAVA, Pedro. Baú de ossos. Memórias. Rio de Janeiro: Sabiá, 1972.

OLIVEIRA, C. VELLOSO, M. P. LINS, V. O moderno em revistas. Representações do


Rio de Janeiro de 1890 a 1930. Rio de Janeiro: Garamond, 2010.

WEINRICH, Harald. Lete. Arte e crítica do esquecimento. Rio de Janeiro: Civilização


Brasileira, 2001.

1690
CONSIDERAÇÕES SOBRE A CARREIRA DE OFICIAL DO MUSEU
HISTÓRICO NACIONAL NOS ANOS 1920

Henrique de Vasconcelos Cruz*

Resumo: O artigo pretende tratar da carreira de Oficial no Museu Histórico Nacional. Conforme o regulamento
do Museu, as principais atribuições dos Oficiais seriam: “fazer assinalar a propriedade do Museu nos objetos de
suas coleções e numera-los do modo que melhor se adaptar à natureza daqueles e nos casos em que nenhum dano
lhes possa daí resultar”; “ter em boas condições de segurança, ordem e conservação os objetos que constituírem
as coleções, assim como o mobiliário existente nas seções”; “catalogar e fazer catalogar tais objetos, procurando
trazer os catálogos em dia e enriquecê-los de notas elucidativas”; “proporcionar aos visitantes os esclarecimentos
que o Museu houver colhido a respeito dos objetos em exposição e lhes forem solicitados”; “encarregar-se, salvo
escusa justificada, do ensino das matérias do curso técnico que devem ser lecionadas no Museu, organizar os
programas e fazer parte das comissões julgadoras, não só dos exames, mas também dos concursos”; “ocupar-se
[...] com a boa disposição e instalação dos objetos e com a respectiva inventariação e classificação, esforçando-
se por obter informações que tornem mais interessantes os catálogos”. Na segunda parte, tratamos do concurso
para preenchimento de vaga na carreira de Oficial, realizado em 1927.

Palavras-chave: Museus; Museologia; Profissionalização; Museu Histórico Nacional.

1691
Partindo da experiência do Museu Histórico Nacional (MHN), Luiz Marques Poliano,
Conservador e secretário do Museu, em artigo de outubro de 1939 no Jornal do Commercio,
identifica as transformações no perfil dos profissionais de museus.4 Quando da criação do
MHN em 1922, seus primeiros funcionários foram transferidos de outras repartições, entre
elas da Biblioteca Nacional, que “pela sua notória competência e tirocínio, garantiram o bom
funcionamento da repartição”. Posteriormente foram realizados concursos que trouxeram para
o quadro funcional do MHN “nomes de projeção nas letras históricas do país”. Todavia
iniciaram as dificuldades para o preenchimento de novas vagas que surgiam devido ao caráter
técnico específico da instituição. A solução encontrada foi a preparação, pelo próprio MHN,
“de uma reserva de pessoas dotadas de conhecimentos especiais, que lhes permitissem, desde
o ingresso, o consciente desempenho de suas funções”. Por isso a criação do Curso de Museus
em 1932, devido a esta demanda ser preenchida.

Aproveitados os diplomados pela ordem de classificação, estaria o Museu a salvo da


inclusão, nos seus quadros de pessoas que, embora revelando conhecimentos, títulos
e aptidões apreciáveis em outros assuntos, não estivessem ao menos orientadas na
especialização e, o que é mais, não dispusessem da necessária vocação. O
funcionário de museu tem de ser um pesquisador, um estudioso, um espírito de
colecionador. Uma grande cultura não o supriria. E, a juízo dos seus idealizadores, o
Curso teria, ao menos, a virtude de selecionar essas vocações. 5

Carreira de Oficial do Museu Histórico Nacional

O uso da categoria eruditos está baseado no estudo de Jean Glénisson6, onde os define
como profissionais que se debruçaram sobre as ditas ciências auxiliares da história no século
XIX e às consolidaram através do ensino e publicação de tratados sobre as mesmas nos países
europeus.7 Entende-se por ciências auxiliares da história, conhecimentos e técnicas utilizadas
para identificação, classificação e catalogação de documentos (manuscritos e impressos) e
4
POLIANO, Luiz Marques. O Museu Histórico Nacional: seu 17º. aniversário. Jornal do Commercio, Rio de
Janeiro, 22 out. 1939, p. 6.
5
Idem, Ibdem.
6
GLÉNISSON, Jean. Iniciação aos estudos históricos. 2. ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 1977, p. 79-122. Capítulo
“A erudição e as ‘ciências auxiliares’ da História”.
7
Em alguns estudos, esses conhecimentos são denominados de “antiquariado”.

1692
objetos para a realização de sua crítica. Em diferentes contextos históricos saberes foram
categorizados como ciências auxiliares da história: numismática, sigilografia, diplomática,
epigrafia, são exemplos desses saberes. O que determinava esta categoria era sempre o objeto
de estudo. Com o tempo alguns saberes tomaram corpo de disciplina científica e ficaram
independente, como a arqueologia, por exemplo.

Glénisson descreve o erudito como um “homem de gabinete”, que necessitava de


silêncio e paciência, exigidos pelas pesquisas nas bibliotecas ou nos arquivos. O historiador
Charles-Victor Langlois comparava o erudito a um colecionador:

Colecionar é um prazer sensível, não somente para as crianças, mas também para os
adultos, sejam quais forem os objetos colecionados. Decifrar enigmas, resolver
pequenos problemas exatamente circunscritos, é uma ocupação atraente para muitos
bons espíritos. Todo achado proporciona um divertimento; ora, no domínio da
erudição, há inúmeros achados a se fazerem, seja à flor da terra, seja através de
quádruplos obstáculos, para os que gostem ou não gostem de brincar com
dificuldades.8

A virada do século XIX para o XX foi considerada por Glénisson como a “glória da
erudição”, quando são publicados os mais importantes trabalhos sobre os saberes dos eruditos
desde o século XVIII:

Trata-se de uma atividade de formigueiro. Na maioria dos países europeus, com


fortunas diferentes, mas com igual minúcia, movimentavam-se inúmeros
pesquisadores. A cronologia, a numismática, a papirologia, a paleografia, a
diplomática etc., progridem à força de artigos e de “comunicações” às associações
científicas. Destas mil descobertas de detalhe, registradas e classificadas por
eminentes especialistas [...] nascem os grandes tratados consagrados às ciências
auxiliares, glória da erudição dos anos 1870-1914: enfim, podiam ser substituídas as
obras dos beneditinos dos séculos XVII e XVIII.9

No século XIX inicia-se a formação sistematizada de eruditos. A École des Chartes,


fundada em Paris em 1821, destinava-se ao ensino das ciências auxiliares ligado ao estudo do

8
Cf. GLÉNISSON, Jean. Ibdem, p. 82.
9
Idem, Ibdem, p. 99-100.

1693
período medieval na Europa. O governo imperial austríaco criou, em 1854, o Institut für
Oesterreichische Geschichtsforschung, aos moldes da escola parisiense.10

No Brasil esses conhecimentos de erudição histórica começaram através dos diversos


Institutos Históricos criados a partir dos anos 1830 por iniciativa de particulares e também de
instituições do Estado responsáveis pela preservação de documentos, como a Biblioteca
Nacional.

Um erudito exemplar do contexto brasileiro do século XIX foi Francisco Manoel


Raposo d’Almeida (1817-1886)11. Jornalista e escritor, ao longo de sua vida integrou o quadro
de diversos Institutos Históricos no Brasil participando da coleta de objetos para a formação
de museus dessas instituições. Em célebre conferência realizada em julho de 1866 na cidade
do Recife, Pernambuco, na sede do Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano12,
intitulada “Breve memoria sobre o processo mais fácil de investigar, colecionar e organizar os
materiais da história”, Raposo d’Almeida apresentou o que considerava as três “fontes
primordiais da história”: os escritos, os monumentos e as tradições.13 Para o jornalista os
escritos seriam os tombos e registros dos arquivos, os boletins, as memórias e quaisquer
publicações filosóficas e literárias, que revelassem a índole, o sentir e crer do povo, ou do
indivíduo, que se pretendia estudar; monumentos eram os edifícios civis ou religiosos, obras
de arte e medalhas e inscrições que tinham relação como os fatos estudados; e as tradições
considerava as narrações orais feitas de geração a geração, os mitos, as lendas, os hinos, as
festas, os usos, as etimologias.14 As categorias de fontes históricas defendidas por Raposo
d’Almeida definem o que os eruditos deviam utilizar para fundamentar suas narrativas
históricas e reflete um modo de fazer e entender história da época.

No início do século XX nos museus brasileiros de história e arte esses conhecimentos


de erudição histórica serão utilizados pelos profissionais eruditos que iram formar e

10
Idem, Ibdem,, p. 102.
11
Cf. PIAZZA, Walter. Revisitando Raposo d’Almeida. Arquipélago: História, Açores, n. 2, p. 245-279, 1997.
12
Atual Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano.
13
D’ALMEIDA, Francisco Manoel Raposo. Breve memoria sobre o processo mais facil de investigar,
colleccionar e organizar os materiaes da historia. Revista do Instituto Archeologico e Geographico
Pernambucano, Recife, n. 11, p. 449-456, abr. 1866.
14
Idem, Ibdem, p. 450-451.

1694
classificar suas primeiras coleções. Como mencionado anteriormente, como exemplo o Museu
Histórico Nacional, seus primeiros profissionais foram selecionados, nos anos 1920, devido
suas aptidões em saberes da erudição histórica. Um exemplo desses profissionais foi Edgar de
Araújo Romero. Iniciou sua carreira na década de 1910 na Biblioteca Nacional, nas coleções
de moedas e medalhas da instituição. Com a criação do MHN em 1922 e a transferência das
coleções de numismática da Biblioteca para o Museu, Romero assumiu a chefia da seção do
MHN responsável por tais coleções e, desde a fundação em 1932, foi professor do Curso de
Museus, formando gerações de técnicos-eruditos que se especializaram no saber.

Recebeu-me, é claro, como a um intruso, que chegasse inoportunamente ao seu doce


retiro.
Apertei-lhe respeitosamente a mão, passei-lhe o olhar guloso pela galeria, vi no
chão, apoiados à parede, quatro retratos a óleo, subi correndo à livraria, achei um
volume de medalhas heráldicas, e desci, apressado. Informava ao diretor que os
quadros eram evidentemente do espólio da imperatriz Leopoldina. Nada menos do
que Metternich, o imperador Franz I, os reis de Espanha e de Inglaterra, Fernando
VII, goiesco, Jorge IV, primoroso! Barroso iluminou-se com a descoberta; ordenou
que fossem suspensos na sala do primeiro Reinado; e travou comigo (graça que devi
àqueles ilustres personagens) a amizade que nos uniu até o fim.15

O surgimento do Curso de Museus

Em 3 de novembro de 1930, Getúlio Vargas tomou posse como chefe do Governo


Provisório184, perante a Junta Governativa que assumira o poder no Rio de Janeiro, após o
triunfo da Revolução a 24 de outubro do mesmo ano. No seu discurso de posse como novo
chefe da Nação, Vargas apresenta sua plataforma de governo, e entre as promessas prevê a
criação do Ministério de Instrução e Saúde Pública.

Em 14 de novembro era criado o Ministério dos Negócios da Educação e Saúde


Pública – MESP, e no mês seguinte, em 1 de dezembro, foi organizado o novo ministério
tendo sido transferido o Museu Histórico Nacional e desligado do Ministério da Justiça e
Negócios Interiores.

15
CALMON, Pedro. Memórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995, p. 144.

1695
Para o novo ministério foi nomeado ministro Francisco Campos, político mineiro, que
teve como chefe de gabinete, inicialmente, Rodrigo Mello Franco de Andrade. Entre as
mudanças, Gustavo Barroso foi exonerado do cargo de diretor do MHN, devido a desavenças
políticas187. Em 10 de dezembro foi nomeado Rodolfo Garcia.

Rodolfo Augusto de Amorim Garcia (1873-1949) era um historiador respeitado à


época197. Entre as suas credenciais, era sócio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
Contudo sua experiência maior era com bibliotecas e não museus. Foi bibliotecário do IHGB
(antes de se tornar sócio) e do Instituto dos Advogados e publicou o trabalho Sistemas de
Classificação Bibliográfica: da classificação decimal e suas vantagens (1914)198. A
experiência profissional mais próxima de museu foi a organização de exposição sobre o
centenário da independência com objetos da coleção do IHGB (1922).

Mesmo não tendo experiência com museus, Garcia realizou diversas ações
reformadoras durante sua gestão, que durou até novembro de 1932. Entre as novidades
incluíram, uma exposição temporária comemorando o centenário da abdicação de D. Pedro I,
a aquisição de algumas centenas de peças de arte e objetos históricos do extinto Museu Naval,
a transferência de uma coleção de pintura histórica da Escola Nacional de Belas Artes e a
criação do Curso de Museus.

No plano do Ministério da Educação e Saúde Pública, durante a gestão de Garcia no


MHN, o ministro Francisco Campos elabora e implementa reformas no ensino – secundário,
superior e comercial – com acentuada tônica centralizadora.

Tais reformas tratavam de adaptar a educação a certas diretrizes, que foram sendo
definidas, tanto no campo político quanto no educacional, visando criar e desenvolver um
ensino mais adequado à “modernização” do país, com ênfase na formação de elites e na
capacitação para o trabalho. Um ensino que contribuísse para completar a obra revolucionária,
orientando e organizando a nacionalidade.

Foi nesse contexto que o Governo elaborou seu projeto universitário, articulando
medidas que se estendem desde a promulgação do Estatuto das Universidades Brasileiras até à
reorganização da Universidade do Rio de Janeiro, ocorridos em 1931.

1696
Também neste contexto ocorreu a estruturação da formação de profissionais de
bibliotecas. O Curso de Biblioteconomia da Biblioteca Nacional foi restabelecido pelo decreto
n. 20.673, de 17 de novembro de 1931. Possivelmente o gestor da BN aproveitou o momento
das reformas educacionais e a transferência da instituição ao Ministério da Educação e Saúde
Pública para propor a reestruturação do curso, tão desejado por Mario Behring, diretor da
instituição nos anos 1920, como demostrado no capítulo anterior.

A partir do exemplo da BN, a direção do MHN solicitou a criação do Curso de


Museus. Em 24 de novembro de 1931, Rodolfo Garcia solicita ao Ministério autorização para
elaborar projeto de decreto sobre o “restabelecimento do Curso de Museus”. No dia 30 do
mesmo mês recebeu resposta positiva à sua proposta205.

Meses depois no relatório de atividades do ano de 1931, Garcia insiste na proposta de


criação do Curso de Museus:

Duas sugestões, Sr. Ministro, cabem aqui, como propostas que tenho a honra de
fazer, tanto para a maior eficiência administrativa, como para a consecução dos fins
culturais da nossa instituição, eminentemente educacional. Uma é referente ao
‘Curso de Museus’. Já apresentei a V. Ex.ª um projeto de decreto, que espero venha
a merecer a indispensável aprovação. Fundamentei-o nos objetivos de ordem
técnica, que justificaram a criação recente do “Curso de Biblioteconomia”, da
Biblioteca Nacional. O “Curso de Museus” habilitará esta Repartição com um
pessoal especializado, que futuramente fornecerá à administração os funcionários de
que necessitar, para os serviços deste Museu Histórico, ou dos congêneres institutos
estaduais. A outra proposta é a de uma Inspetoria de Monumentos.

Fica evidente que a proposta de criação do Curso de Museus não se destinava apenas a
formar profissionais para o MHN, mas também para outros museus existentes no Brasil e que
foi estimulada pela apresentação da proposta a reestruturação do Curso de Biblioteconomia da
BN.

O Curso de Museus foi criado pelo decreto n. 21.129, de 7 de março de 1932,


destinado ao ensino das matérias que interessavam ao Museu Histórico, conforme
determinava o primeiro artigo do decreto.

1697
Segundo o artigo quarto do decreto, os professores do Curso de Museus seriam
designados por portaria do diretor do Museu, entre os funcionários da repartição. No artigo
décimo primeiro, ficou assegurado aos possuidores de certificado do Curso o direito de
preferência absoluta para o preenchimento do lugar de 3º Oficial do Museu Histórico, bem
como para promoção nos cargos do Museu.

A finalidade do Curso de Museus compartilhava da mesma proposta do Curso Técnico


de 1922: o aproveitamento de seus egressos na carreira de Oficial. As disciplinas escolhidas
para o currículo também estavam presentes no Curso Técnico, com exceção de “Técnica de
Museus”.

O Curso de Museus pode ser considerado uma consequência das reformas


educacionais implantadas no período de Francisco Campos no Ministério da Educação e
Saúde Pública com o intuito de desenvolver um ensino para a modernização do país, para a
capacitação ao mercado de trabalho. Essa intenção encontra-se no discurso de Rodolfo
Garcia, ao declarar aberto do Curso de Museu em seu primeiro dia de aula, em 4 de maio de
1932:

Ao declarar aberto o Curso de Museus, antes de outras considerações, devo


encarecer o ato do governo, que o instituiu. Esse ato, se por um lado consulta aos
altos propósitos da administração, de desenvolver a cultura nacional, ampliando a
obra de educação que compete à Universidade do Rio de Janeiro, nos termos da
recente lei que a organizou, por outro atende à necessidade de dotar o país de um
corpo de técnicos e especialistas nos ramos de conhecimentos professados neste
instituto e em seus congêneres nos Estados da Federação.
Nos tempos modernos, quer nas profissões ditas liberais, quer no campo científico, a
especialização se torna cada vez mais necessária, cada vez mais exigida pelas
condições da sociedade, sobretudo se atender ao formidável acúmulo dos
conhecimentos em todos os setores da atividade humana.
O decreto que criou em 1922 o Museu Histórico Nacional, instituiu o curso técnico,
comum à Biblioteca, ao Arquivo e ao Museu; mas essa criação, por motivos
independentes da vontade dos dirigentes desses estabelecimentos, não teve
realização prática. Assim, restaurado o Curso de Biblioteconomia para a Biblioteca
Nacional, a diretoria do Museu achou-se na obrigação de pleitear para ele o curso
que hoje vamos inaugurar.
Contando com a boa vontade e a dedicação de meus companheiros, ilustrados e
competentes especialistas nas matérias que vão lecionar, espero que havemos de
fazer trabalho digno dos intuitos que presidiram à criação deste curso207.
Não se pode negar que o Brasil está atravessando uma era de vibração cultural
auspiciosa, refletida flagrantemente num surto literário tanto mais promissor quanto

1698
se orienta para o estudo dos problemas políticos e sociais, objeto de uma bibliografia
já abundante e que se incrementa de dia para dia.
A história, a etnologia e a arqueologia brasileiras preocupam um escol de
pesquisadores e pensadores que honrariam qualquer país estrangeiro. Graças ao
concurso desses eruditos, estamos em condições de colaborar com a ciência
internacional quando ela recorre ao nosso contingente para integrar o Brasil nos seus
quadros. A Museografia na Europa avança, por outro lado, a passos de gigante. O
Instituto Internacional de Museus dirige o movimento no sentido de coordenar as
atividades que asseguram, em cada nação, a preservação das relíquias que pertencem
fundamentalmente ao patrimônio da humanidade, considerada à revelia das
fronteiras.16

A carreira de Conservador

Outro termo que fez parte dos debates nas publicações do OIM era conservateur,
traduzido no Brasil por Conservador e adotado para designar os profissionais de museus a
partir dos anos 1930. A figura do conservateur, no contexto francês, consolidou-se no século
XIX como a primeira profissão museológica específica. Por muito tempo o conservateur era
aquele responsável por todas as funções diretamente relacionadas com os objetos de uma
coleção e sua formação foi primeiramente associada ao estudo de coleções (de história da arte,
ciências naturais, etnologia, etc.).17

O uso do termo Conservador para designar o profissional dos museus pertencentes


Estado foi através da reforma das carreiras do serviço público federal, promulgada pela Lei n.
284, de 28 de outubro de 1936, que ficou conhecida como Lei do Reajustamento.18 A carreira
de Conservador no Ministério da Educação e Saúde foi criada, inicialmente em substituição as
de Chefe de Seção e Oficial do Museu Histórico Nacional, estabelecidas desde 1922.19 Apesar

16
Formação de technicos para os museus brasileiros (Communicado da Directoria Geral de Informações,
Estatistica e Divulgação do Ministério da Educação e Saude Publica). Diário da Manhã, Rio de Janeiro, 12 abr.
1935, p. 2.
17
DESVALLÉES, André; MAIRESSE, François (ed.). Conceitos-chave de Museologia. Tradução Bruno
Brulon Soares e Marília Xavier Cury. São Paulo: Comitê Brasileiro do ICOM, 2013, p. 82.
18
WAHRLICH, Beatriz M. de Souza. Reforma administrativa na era de Vargas. Rio de Janeiro: Fundação
Getúlio Vargas, 1983, p. 100.
19
Lei n. 284, de 28 de outubro de 1936. Coleção de Leis da República dos Estados Unidos do Brasil de 1936:
Atos do Poder Legislativo (2ª. Parte). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1938, p. 284-285.

1699
do uso de outras denominações para designar os profissionais de museus à época como
“técnicos para museus” e “museologistas”20, prevaleceu o termo Conservador.

Mas porque alterar o nome da carreira para “Conservador”? Possivelmente por


sugestão do diretor do MHN, Gustavo Barroso. Leitor das publicações do Office International
des Musées21, anos mais tarde, em memorial enviado para a Comissão do Plano de Cargos
para a revisão dos níveis de vencimentos do Funcionalismo Civil da União22, sobre o que
considerou “humilhação e injustiça”, a diferença de remuneração entre as carreiras de
Conservador e Naturalista, ambas do mesmo ministério e com atribuições idênticas, Barroso
justifica o uso do termo Conservador a partir de dois argumentos. Primeiro o escritor recorre
aos termos compreendidos por profissionais de museus de outros países, que utilizavam as
denominações conservateur e curator, pois não compreenderiam outras denominações
propostas no Brasil, como Técnicos de Museus, Museólogo ou Museologista:

Tais termos nada diriam aos especialistas da Europa e das Américas, enquanto que o
de Conservador abre a quem o usa todas as portas. Em Portugal, na França, na
Inglaterra e nos Estados Unidos, não se usa sequer o título de Diretor de Museu, mas
o Conservador, verbi gratia: Conservador do Museu dos Coches, Conservador do
Museu das Janelas Verdes, em Lisboa, e até Conservador da Biblioteca da Ajuda;
Conservateur du Musée du Louvre, Conservateur du Musée de Cluny, Curator of the
British Museum, Curator of the South Kensington Museum, em Londres; Curator of
the Metropolitam Museum em Nova Yorque.23

Outro argumento do diretor do MHN, baseava-se na origem etimológica da palavra


“Conservador”:

20
Cf. Formação de technicos para os museus brasileiros. Diário da Manhã, Rio de Janeiro, 12 abr. 1935, p. 2;
Novos museologistas brasileiros. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 21 jan. 1940, p. 11.
21
Como demonstram as diversas referências existentes em seu livro Introdução à Técnica de Museus (1946-
1947). Cf. SÁ, Ivan Coelho de. Subsídios para a história da preservação no Brasil: a formação em conservação-
restauração no Curso de Museologia da UNIRIO. Anais do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro, v. 42,
2012, p. 14.
22
BARROSO, Gustavo. A carreira de conservador. Anais do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro, v. 8,
1947 [1957], p. 229-234.
23
Idem, Ibidem, p. 231. Grifo do original.

1700
Qualquer léxico latino ensina que, na língua de Roma, o verbo transitivo – Conservo
– Conservas – Conservare, quer dizer: conservar, salvar, defender, observar,
guardar, respeitar e cumprir; o adjetivo Conservatus – Conservata – Conservatum,
filho do particípio passado, significa: conservado, mantido, salvo, defendido,
observado e guardado; e o substantivo Conservator – Conservatoris indica o que
conserva, salva, defende e mantem. Daí, a epigrafia latina, segundo se verifica do
Corpus Insciptionum Latinorum, ser Júpiter, o Deus Supremo, cognominado
Conservator, isto é, o Salvador. Com a mesma acepção Cícero emprega a palavra.
Como se vê, nenhuma mais nobre para todos quantos, com sua técnica, suas
pesquisas, seus estudos, sua experiência e seu saber, se dedicam a guardar,
conservar, defender, proteger, comentar e salvar, assim, da destruição, do descaso e
do esquecimento as obras de arte e as relíquias do passado. 24

Todavia, no serviço público federal era utilizado o termo Conservador para cargo de
profissional ligado a museus e coleções de arte desde meados do século 19. Na Academia
Imperial de Belas Artes existia uma coleção de obras de arte formada desde o período da
proposta de sua criação, no início do século 19, através de projeto do artista francês Joachin
LeBreton, que trouxe as primeiras obras para formar uma coleção de estudos e Pinacoteca no
Brasil.25 Para cuidar desta coleção que aumentava a cada ano devido a incorporação de obras
de arte de autoria dos alunos e professores, através de decreto autorizando a reforma na
Academia, foi criado o “lugar de Conservador e restaurador de Quadros”, em 1854. No ano
seguinte, em reforma promovida pelo novo diretor da Academia, Manuel de Araújo Porto
Alegre, foi criado o cargo de “Restaurador de quadros e Conservador da Pinacoteca”. No
período republicano a Academia passa a denominar-se Escola Nacional de Belas Artes, e nos
estatutos de 1890 cria o cargo de “Conservador”. Apenas em 1911 o cargo muda para
“Conservador-restaurador”26.

Outra instituição que utilizou a denominação de Conservador para o responsável pelo


seu museu foi o Instituto Oswaldo Cruz27. Quando de sua vinculação ao Departamento
Nacional de Medicina Experimental do Ministério da Educação e Saúde Pública, nos estatutos

24
Idem, Ibidem, p. 231-232. Grifo do original.
25
Para um histórico da Pinacoteca da Academia, ver SQUEFF, Letícia. Uma galeria para o Império: a coleção
Escola Brasileira e as origens do Museu Nacional de Belas Artes. São Paulo: EDUSP, 2012.
26
CASTRO, Aloisio Arnaldo Nunes de. Do restaurador de quadros ao conservador-restaurador de bens culturais:
o corpus operandi na administração pública brasileira de 1855 a 1980. Tese (Doutorado em Artes) – Universidade
Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2013, p. 34; 40; 75.
27
Atual Fundação Oswaldo Cruz – FIOCRUZ.

1701
aprovados em maio de 1931, o Instituto possuía um museu28, sob os cuidados de um
“Conservador do museu”, que tinha como atribuições a guarda e a conservação do museu;
organização do catálogo das peças expostas; e escrituração do movimento de entrada e saída
de todo o material.29

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28
O museu do Instituto Oswaldo Cruz era destinado à guarda e à exposição das coleções científicas relativas à
botânica, à zoologia médica e à anatomia patológica e de outras que interessem aos trabalhos do Instituto. Cf.
Artigo 41 do Decreto n. 20.043, de 24 de maio de 1931. Diário Oficial, Rio de Janeiro, 20 jun. 1931, p. 10076.
29
Artigo 69 do Decreto n. 20.043, de 24 de maio de 1931. Diário Oficial, Rio de Janeiro, 20 jun. 1931, p.
10078.

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1707
TRAJETÓRIAS CRUZADAS DOS NATURALISTAS DOMINGOS VANDELLI E
VIEIRA COUTO: PENSANDO UM ESTUDO DE PROTO-HISTÓRIA DAS
INSTITUIÇÕES DE SALVAGUARDA NA VIRADA DO SÉCULO XVIII PARA O
XIX.

Letícia Julião*
Marta Eloisa Melgaço Neves*
Aline Damasceno Santana*
Verona Campos Segantini*
*Universidade Federal de Minas Gerais

Resumo: O presente artigo é decorrente de uma pesquisa que busca compreender a proto-história das
instituições encarregadas da salvaguarda de documentos e coleções originárias no século XVIII e XIX
no contexto luso-brasileiro. Nesse movimento encontramos uma significativa produção de memórias e
instruções de naturalistas com repercussão no ambiente da administração portuguesa que possui como
centro de articulação a Universidade de Coimbra e sobretudo, a atuação do naturalista paduano
Domingos Vandelli. Este se envolveu tanto com a realização de viagens filosóficas quanto com uma
administração ilustrada, abarcando atividades de observações e escritas de memórias científico-
administrativas. Pretende-se aqui também, identificar a influência de Vandelli sobre um de seus alunos
da Universidade de Coimbra, José Vieira Couto, através da intercessão entre os seus escritos.
Palavras-chave: História natural; Colecionismo; Minas Gerais; Mineralogia; Memórias.

Abstract: This article is the result of a research that tries to understand the protohistory of the
institutions in charge of the safeguarding of documents and collections originating in the XVIII and
XIX century in the Portuguese - Brazilian context. In this movement we find a significant production
of memories and instructions of naturalists with repercussions in the environment of the Portuguese
administration that has as a center of articulation the University of Coimbra and above all, the
performance of the naturalist Padua Domingos Vandelli. This involved both the carrying out of
philosophical journeys and an enlightened administration, embracing activities of observations and
writings of scientific-administrative memories. It is also intended here to identify the influence of
Vandelli on one of his students of the University of Coimbra, José Vieira Couto, through the
intercession between his writings.
Key-words: Natural History; Collecting; Minas Gerais; Mineralogy, Memoirs.

1708
Introdução

O presente texto é desdobramento de um projeto de pesquisa30 que busca compreender


a proto-história das instituições de salvaguarda no território brasileiro, como arquivos,
museus, bibliotecas e jardins botânicos. Para isso, pretende compreender o momento anterior
à constituição das primeiras instituições no Brasil, buscando contudo, reconhecer os interesses
colecionistas delineados a partir das políticas adotadas pela Coroa Portuguesa nas últimas
décadas do século XVIII e primeiras do século XIX.

Neste propósito buscamos reconhecer como o projeto político científico e ilustrado


adotado por Portugal naquele momento conjuga o interesse em revigorar suas atividades de
cunho econômico à produção do conhecimento científico e acadêmico. Tal projeto político
configurado no reinado de D. José I (1750-1777), já amplamente abordado pela historiografia,
elegeu a educação - sob o controle do estado e secularizada - como estratégia de conformação
da modernidade portuguesa no século XVIII. É nesse momento de aderência ao pensamento
iluminista que serão gestadas pelo Ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, Marquês de
Pombal31, diferentes etapas de uma reforma na educação, iniciada pela Reforma dos Estudos
Menores, em 1759. Posteriormente a Reforma dos Estudos Maiores e a conformação dos
novos Estatutos da Universidade de Coimbra em 1772, incidiria sobre conteúdos e métodos
de ensino mas, sobretudo, marcando a transformação na concepção de ciência. Expressão
disso foi a criação dos “Cursos das Ciências Naturais ou Filosóficas”, que incluía as
Faculdades de Medicina, Matemática e Filosofia Natural (BRIGOLA, 2003; BOTO, 2011;
VILLALTA, 2011). Previa-se nos Estatutos a criação de espaços como o Hospital Escolar,
Teatro Anatômico, Gabinete de Física Experimental e o Laboratório Químico (BOTO, 2011).

30
Este texto se inscreve como fruto de discussões desenvolvidas em um grupo de pesquisa de caráter
interdisciplinar, envolvendo professores e estudantes da Escola de Belas Artes e da Escola de Ciência da
Informação.
31
O período pombalino vigorou de 1750 a 1777. Tornando-se Pombal, ministro de Negócios Estrangeiros em
1750 e Primeiro Ministro em 1755, sendo afastado do cargo em 1777. Foi um dos principais propulsores das
reformas políticas, administrativas e científicas levado a cabo em Portugal no século XVIII (RAMINELLI,
2008).

1709
A Reforma dos Estudos Maiores também repercutiria na conformação de espaços
privilegiados para o estudo sistemático da natureza, tal como os jardins botânicos, museus e
gabinetes de história natural criados em Coimbra e Lisboa. Além disso, organiza-se neste
contexto atividades e estratégias que repercutiram na realização de viagens filosóficas às
colônias, na escrita e circulação de instruções aos viajantes e curiosos e no trânsito de
amostras e na formação de coleções.

Vale destacar que a adoção de uma ciência pragmática se fazia necessário em um


quadro de agravamento da crise econômica sofrida por Portugal no século XVIII, causada
principalmente pelo declínio da atividade mineradora na Capitania de Minas Gerais. Tal fato
impactou diretamente na arrecadação de imposto pela Coroa Portuguesa. Nessa direção, pode-
se compreender como diferentes naturalistas e agentes burocratas se debruçaram sobre as
possíveis causas dessa decadência.

Buscando compreender de forma mais complexa tais questões recorremos a um


conjunto documental ainda pouco explorado sob as perspectivas que interessam à história das
coleções e das instituições de salvaguarda. Tratam-se de memórias e instruções escritas por
naturalistas envolvidos com a administração portuguesa que evidenciam a adesão desta ao
projeto ilustrado de conhecimento do território e das riquezas naturais a partir do
fortalecimento da filosofia naturalista.

Destaca-se que embora este tema tenha sido explorado pela história da ciência32, ele é
pouco abordado por aqueles que buscam compreender os desdobramentos da atividade
naturalista na política administrativa portuguesa. Desse modo, é também objeto de pesquisa a
circulação e incorporação de amostras e espécimes, bem como escritos de naturalistas na
esfera da administração dos domínios ultramarinos. Ou seja, a pesquisa pretende analisar
criticamente documentos, na perspectiva dos contextos de produção e incorporação de objetos
à diferentes instituições.

32
Pataca (2011); Raminelli (2008); Figueirôa, Silva, Pataca (2004); Silva e Figueirôa (2004).

1710
Naturalistas e burocratas: escrita de memórias

As práticas naturalistas luso-brasileiras adotadas nesse período, que perpassam a


observação, o registro, a recolha e o colecionamento de amostras de produtos naturais, bem
como a sistematização desse conhecimento em textos e memórias, tinham como propósito,
subsidiar a sua economia, as suas artes e a sua indústria diversificando assim, o seu comércio.
Pode-se evidenciar este aspecto nas diferentes memórias e instruções produzidas pelos
naturalistas e agentes burocratas. Como exemplo aquelas publicadas pela Academia Real das
Ciências de Lisboa nos tomos encadernados e intitulados de “Memórias Econômicas da
Academia Real das Sciencias de Lisboa, para o adiantamento da agricultura, das artes, e das
indústrias de Portugal, e suas conquistas”, compilados que apresentam diferentes abordagens
temáticas sobre o reino e seus domínios.33

A presente proposta circunscreve-se a analisar de forma comparativa instruções para a


realização de viagens filosóficas de autoria de Domingos Vandelli e a memória de José Vieira
Couto sobre a capitania de Minas Gerais. Parte-se da análise do manuscrito “Viagens
filosóficas ou dissertação sobre as importantes regras que o filósofo naturalista, nas suas
peregrinações, deve principalmente observar”,34 escrita em 1779 por Domingos Vandelli.
Também problematiza-se os aspectos abordados por Vandelli na “Memória sobre as minas de
ouro do Brasil” (2002) e a “Memória sobre os diamantes do Brasil” (2002)35, buscando

33
Criada em 1779, a Academia Real de Ciências de Lisboa dedicava-se à investigação científica, linguística e
histórica e geográfica, promovendo a circulação do conhecimento científico e técnico que poderia ser de
utilidade cultural e econômico a Portugal. Dentre as atividades promovidas pela Academia ao longo dos anos,
evidencia-se a seleção e a publicação de memórias e pareceres. A academia publica em 1797 o Tomo I -
Memórias da Academia Real das Sciencias de Lisboa. Posteriormente a publicação em tomos da Academia é
desmembrada, dividindo-se em "Memórias de Mathematica e Phisica" "Memorias de Litteratura Portugueza" e
"Memorias Economicas". Nessas ultimas destacam-se ensaios e memórias de alguns naturalistas que
discorreram a cerca do Brasil, como Joaquim de Amorim e Castro, Manuel Arruda da Câmara e Domingos
Vandelli.
34
Acessou-se o manuscrito copiado por Frei Vicente Salgado em 1796 (BACL – Série Vermelha – Cota:
Vermelho 405) e a publicação "O gabinete de curiosidades de Domenico Vandelli" (2008).
35
As memórias foram publicadas aproximadamente em 1790, e se acessou aquelas que foram transcritas no livro
“Memórias de História Natural” (2002), a partir dos manuscritos pertencentes à Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro.

1711
conexões com a memória de Vieira Couto e outros naturalistas que também se envolveram
com essas questões.

No que tange à memória de José Vieira Couto optou-se por utilizar a “Memória sobre
a Capitania das Minas Gerais: seu território, clima e produções metálicas”.36 Ressalta-se que
essa memória é fruto da viagem filosófica realizada pelo naturalista na Comarca do Serro do
Frio em 1799, sendo escrita no mesmo ano e submetida à Rainha Dona Maria I.

O interesse em debruçar sobre tais documentos nos exige refletir sobre a trajetória
profissional, acadêmica e política de Domingos Vandelli, bem como pensar nas possíveis
articulações com José Vieira Couto, aluno no curso de Filosofia Natural na Universidade de
Coimbra. Busca-se destacar também como tais personagens nos ajudam compreender a proto-
história das instituições de salvaguarda no Brasil.

O naturalista italiano Domenico Vandelli (1735-1816) chegou a Lisboa em 1764.


Aparentemente, sua vinda à Lisboa seria a docência no Colégio dos Nobres, mas permanece
por quatro anos sem exercícios de funções oficiais. Nas correspondências de Pombal
evidencia-se a relação estabelecida com Jacopo Facciolati, professor de lógica e reitor da
Universidade de Pádua pedindo-lhe sugestões para a reforma da Universidade. O nome de
Vandelli apareceria entre os nomes indicados pelo reitor para a docência no Colégio dos
Nobres. Em 1768 Vandelli é nomeado como diretor do Jardim Botânico da Ajuda e com isso
organiza-se uma “rede internacional de contatos científicos” (BRIGOLA, 2003) com museus
públicos, naturalistas e colecionadores privados. No ano de 1772, Vandelli foi nomeado lente
da cadeira de história natural e química na Universidade de Coimbra. Participante ativo na
reforma universitária, Vandelli também articulou a organização do Gabinete de História
Natural da Universidade de Coimbra, partindo de alguns objetos e armários por ele
colecionados ainda na Itália. Envolveu-se também a partir de 1779 com a criação da
36
Adotou-se para análise no artigo a memória publicada pela Fundação João Pinheiro (1994). Tendo em vista as
diferentes cópias do mesmo documento presentes na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
(1874) e na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, o conselho editorial da Fundação optou por trabalhar com a
cópia manuscrita que se encontra na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro arquivada sob o número 11.933 do
catálogo, microfilme 1,15 (FURTADO, 1994).

1712
Academia Real de Ciências de Lisboa, sendo um dos principais propulsores de sua vertente
econômica (BRIGOLA, 2003).

Sublinha-se nas proposições deste artigo, como Vandelli envolveu-se com a escrita de
Instruções, Memórias, Dissertações e Métodos. A análise de tais documentos, hoje dispersos
em diferentes instituições, precisa ser balizada por um conjunto de aspectos. Esses
documentos possuem como pano de fundo um projeto vinculado à aspectos pragmáticos de
sistematizar informações, que para além de um desejo de inventário, perspectivavam um uso
econômico dos recursos naturais ou ainda como sugere Boto, “o desenvolvimento da ciência
adquire nítida coloração política” (1996, p.170).

Esses textos também refletem o projeto das viagens philosóficas aos territórios
ultramarinos, uma vez que foram produzidos em um momento de preparação, subsequente à
formação dos primeiros naturalistas no curso de Filosofia Natural, nomeadamente Joaquim
Veloso Miranda, Alexandre Rodrigues Ferreira e João da Silva Feijó e José Viera Couto
(BRIGOLA, 2003). Usando de sua influência dentro do Estado Português, Vandelli estimulou
o envio de seus alunos recémformados em viagens em todo o território português,
principalmente aos seus domínios ultramarinos.

A reflexão sobre a trajetória de Domingos Vandelli dentro do movimento de


Ilustração Portuguesa tem recebido, nos últimos anos, a atenção por parte da historiografia,
mais particularmente pelo ramo da história da ciência. Contudo, percebe-se que essa corrente
historiográfica ainda deixa à margem a potencialidade de se refletir sobre o projeto
vandelliano e os seus desdobramentos proporcionados pela ação de seus alunos como agentes
que atuaram através da esfera administrativa nas colônias portuguesas, bem como o seu papel
político como um dos conselheiros do reino.37

As memórias escritas por José Vieira Couto tem sido fontes recorrentes para a escrita
da História de Minas Gerais e também para o estudo da história da geologia, enquanto

37
Ressalta-se que posteriormente, foram criados jardins e hortos botânicos em várias localidades das capitanias
dos domínios brasileiros, sendo considerados espaços férteis para a realização do cultivo de diferentes mudas e
sementes provenientes de outras localidades, a fim de fomentar as práticas agronômicas portuguesas.

1713
disciplina científica. Os estudos sobre mineralogia e geologia desenvolvidos na Capitania de
Minas Gerais por Couto podem fornecer indícios de como a história da formação geológica e
da terra eram investigadas no século XVIII e XIX (SILVA, 1999)38. A importância dessa
memória se faz evidente pelo número de vezes em que esses trabalhos foram transcritos e
publicados.39

No entanto, pode-se constatar a ausência de um estudo que trouxesse à baila a sua


trajetória como aluno de Domingos Vandelli no curso de Filosofia Natural da Universidade de
Coimbra, em 1778. Durante o período em que foi um dos seus tutelados, Couto recebeu
orientações diretamente vinculada ao paradigma da história natural conformada ao longo do
século XVIII, dentro das perspectivas iluminista. Parte-se, portanto, da hipótese que os
ensinamentos obtidos em Coimbra através de sua relação com Domingos Vandelli se fazem
evidente na memória escrita pelo naturalista mineiro, principalmente no que tange à sua
organização e estruturação.

Ressalta-se assim que o contexto de produção que informa os seus vínculos com o
naturalismo vandelliano praticamente ainda não foram explorados pela historiografia. Tais
trabalhos evidenciam a sua atuação como agente burocrata e dão pouco relevo à sua formação
de naturalista, questão essa que poderia fundamentar sua trajetória em perspectiva mais
complexa.

Faz-se necessário discorrer brevemente sobre sua trajetória, ainda que apresentam
algumas lacunas devido a ausência de fontes documentais. José Vieira Couto nasceu no ano
de 1752 no Arraial do Tijuco, atual Diamantina, onde permaneceu por boa parte de sua vida.

38
SILVA (1999) ao analisar quatro memórias escritas por José Vieira Couto sob a perspectiva da geologia e
mineralogia, conclui que tais publicações podem fornecer indícios de como no final do século XVIII e início do
XIX tal ciência era investigada. Seus escritos evidenciam a influência dos estudos buffarianos sobre a
regularidade permanente da Terra, bem como dos estudos alemães do campo da mineralogia. O naturalista
também discute aspectos sobre a formação das montanhas, o tempo geológico do terreno e a conformação da
crosta terrestre.
39
Como apresentado por Furtado (1994): Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro de 1874, 2º
Edição, tomo XI, p. 189-334; Cópia da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, número 608 do Catálogo de
Exposição de História do Brasil, microfilme nº5,1,42; Cópia pertencente a Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro, coleção Benedicto Ottoni, microfilme 3,15,6 realizada pelo copista A. Pereira; e Cópia da Biblioteca
Nacional do Rio de Janeiro, número 11.933 do catálogo, microfilme 1,15.

1714
Filhos de pais portugueses que residiam no Brasil e que ocupavam cargos de prestígio na elite
tijucana, sua trajetória foi marcada por esforços pela manutenção dos privilégios sociais de
sua classe, que gozavam de altos cargos administrativos no governo da Capitania de Minas
Gerais (FURTADO, 1994).

José Vieira Couto estudou matemática e filosofia natural na Universidade de Coimbra,


graduando-se no ano de 1778, período este que entrou em contato com os ensinamentos e
reflexões do paduano Domingos Vandelli. Através da análise de algumas fontes documentais,
SILVA (1999) supõe que Couto poderia ter cursado também na Universidade de Coimbra o
curso de medicina, praticando-a no distrito Diamantino.40

Tendo ocupado diferentes cargos burocráticos dentro do governo da capitania de


Minas Gerais e gozado de grande prestígio dentro da elite diamantina, foi designado em 1799,
por iniciativa da Secretaria dos Negócios Coloniais, em nome da Rainha Maria I, a realizar
um exame mineralógico na Comarca do Serro do Frio. Tal designação tinha como intuito dar
a relação exata das produções metálicas que se podem obter naquela comarca, bem como
enviar as amostras de tais produtos que poderiam ser úteis ao Estado.

Ressalta-se também as publicações posteriores de autoria de Vieira Couto, decorrentes


de outras viagens realizadas na Capitania de Minas Gerais: “Viagem ao Indaiá acompanhada
de uma memória sobre as minas de Abaeté” (Aprox. 1800); “Memória sobre as minas de
cobalto da capitania de Minas Geraes (1805)”; “Memória sobre as salitreiras naturaes de
Monte Rorigo, maneiras de as auxiliar por meio das artificiais; refinaria do nitrato de potassa,
ou salitre (1803)”; e "Memória sobre as minas da capitania de Minas Geraes, suas
descripções, ensaios e domicílio próprio à maneira de itinerário: com appendice sobre a nova
Lorena Diamantina, suas descripção, suas produções mineralógicas e utilidades que deste paiz

40
Pode-se entrever nos estudos realizados com base na análise do inventário de sua biblioteca, que Vieira Couto
possuía exemplares que discorriam acerca da prática da medicina. De formação humanista e naturalista, não se
pode afirmar com concretude a sua participação no movimento da Inconfidência Mineira. Contudo Silva (1999)
pontua que o seu irmão, o Cadete Joaquim José Vieira Couto, personalidade que realizou diversas viagens
filosóficas como auxiliar de José Vieira Couto, sofreu perseguição por sua participação no intento mineiro.

1715
podem resultar”(1801). Tais publicações evidenciam a potencialidade de verticalização de
pesquisas que cotejem a prática naturalista de um agente burocrático atuando neste período.

Intercessões nas obras de Vandelli e Vieira Couto

Realizada a abordagem contextual do período e biográfica dos naturalistas que são


objetos do presente artigo, parte-se para a análise comparativa das memórias e instruções
escritas pelos dois filósofos naturais em períodos distintos, mas que apresentam confluências
em seus pontos de vista, organização e estrutura. Para tal comparação, se faz essencial
discorrer acerca da organização estrutural de tais publicações.

A instrução "Viagens filosóficas" escrita por Vandelli em 1779 se organiza através da


separação por tópicos temáticos, na qual cada um apresenta uma subdivisão das ações a serem
realizadas pelos naturalistas em viagem. A divisão utilizada pelo paduano ordena o passo a
passo para a realização das observações, exames e coletas dos produtos naturais e artificiais
presentes na localidade onde o filósofo realiza sua observação. Para tanto, ele dispõe a sua
instrução da seguinte maneira: Da necessidade dos diários e métodos de os fazer; Do
conhecimento físico e moral dos povos; Do ar; Do que deve observar principalmente o
naturalista, nos lugares beira-mar; Da mineralogia; Dos rios, fontes minerais e lagoas; Do
reino das plantas; Do reino animal; Dos insetos e Preparação dos animais.

Ressalta-se que a separação dos tópicos e subtópicos apresentadas na instrução


vandelliana demonstra a preocupação do naturalista em traçar diretrizes metodológicas e
técnicas aos filósofos naturalistas, instruindo-os a observar, registrar, examinar e coletar
produtos e informações que possam ser de alguma utilidade à Coroa Portuguesa.

Já o tijucano José Vieira Couto estrutura sua memória em três partes e um apêndice
sobre os diamantes e o nitro, adotando subtópicos e texto corrido com parágrafos longos. Na
primeira parte, Couto aborda questões gerais sobre o território, clima e as produções
metálicas, descrevendo-os minuciosamente. Na segunda parte, o tijucano adentra no estado
atual e decadente que se encontra a mineração no Brasil, principalmente na Capitania de

1716
Minas Gerais, apontando para as possíveis causas desse declínio e suas soluções. Na terceira e
última parte da memória é abordada a questão do comércio e escoamento dos minérios
encontrados no interior das Capitanias. Pontua também a necessidade da Coroa em diminuir
os impostos cobrados aos mineiros, sugerindo ainda o fornecimento de subsídios e incentivos
à prática mineradora.

Apesar da diferença apresentada na estrutura dos dois escritos, pode-se perceber uma
conformação dos escritos coutianos com as instruções vandelliana no que tange ao seu
conteúdo. Pode-se pontuar que a escrita da Memória estava informada por aquelas
prescrições, orientações e interesses delineados por Vandelli.

Couto inicia sua memória apresentando uma dedicatória à D. Maria I, em sinal de


devoção. Principia em descrever as características físicas e gerais da Comarca, buscando dar
um panorama geral daquele território.

A análise por ele realizada foca inicialmente, sobre o estado geral em que se encontra
o território mineiro, para posteriormente se debruçar sobre as especificidades do campo
mineralógico, conforme a sistematização sugerida pelo botânico paduano. José Vieira Couto
descreve a longitude e a latitude em que se situa a Capitania de Minas Gerais, suas fronteiras
com outras capitanias e sua divisão territorial e administrativa em quatro Comarcas: Rio das
Mortes, Vila Rica, Sabará e do Serro do Frio. Assinala também as diferentes características do
relevo e da vegetação que reveste este território. Diferencia-os pela qualidade da terra, na qual
segundo ele os habitantes que compunham a Comarca do Serro do Frio se consistiriam em sua
maioria de mineiros, devido à qualidade “agra, fragosa e estéril do terreno”, não sendo um
local fértil para agricultura, em distinção às outras comarcas da capitania mineira.

O registro das características físicas e geográficas do local examinado pelo naturalista


em seu diário de viagem, que deveria ser analisado posteriormente, é colocado por Domingos
Vandelli como de suma importância, pois essas informações poderiam ser de utilidade à
Coroa, principalmente para fomentar práticas de cunhos econômicos. Para isso:

1717
(...) não basta que o naturalista conheça os produtos da natureza, é também
necessário que ele assine os diversos lugares do seu nascimento, os
caminhos e jornadas que fez nas suas peregrinações, e outras muitas
circunstâncias que bem mostram essa necessidade. (VANDELLI, 2010, p.
93)

José Vieira Couto em seus escritos preocupa-se também, em descrever


minuciosamente o clima daquela região, as estações do ano e suas divisões, os ventos
constantes que atingem o território e as moléstias que podem ser causadas pelo clima. Uma
das suas maiores preocupações se encontra em descrever os rios e "regatos" que perpassavam
o território Diamantino, pois estes apresentavam abundância de ouro e diamantes em suas
águas, sendo considerada a principal fonte de exploração e extração de minérios na Capitania
de Minas Gerais no século XVIII.

Vandelli após salientar aos naturalistas a necessidade da observação e do registro em


diário dos aspectos relacionados ao clima, ar, lugares à beira mar, e conhecimento físico e
moral dos povos, dá continuidade à sua instrução partindo da ótica naturalista à época,
dividindo sua memória a partir dos três reinos da natureza. No entanto, observa-se que ao
elaborar suas instruções ele se ocupa de maneira mais detalhada à mineralogia, justamente por
ser esta um dos principais pilares e interesses da economia do reino português e que se
apresentava em crise naquele momento.

Além da correspondência entre as prescrições de Vandelli e a escrita da memória de


Couto relacionadas às observações iniciais necessárias, pode-se observar a partilha de uma
terminologia comum necessárias às descrições. A instrução vandelliana pontua que existem
dois tipos de classe de montanhas: as "primitivas" e "secundárias". As montanhas primitivas
seriam aquelas que se formaram ao mesmo tempo que a Terra e as secundárias seriam aquelas
que são frutos de inundações, erupções e outras intempéries sofridas. Vandelli ressalta que as
montanhas primitivas apresentam uma “sustância” de minerais se comparada com as
secundárias.

1718
Já Vieira Couto, em sua memória, apresenta suas observações sobre a formação do
terreno da Comarca do Serro do Frio, dando indícios sobre a sua composição. Ao abordar as
características das montanhas e serras encontradas na Comarca, assinala:

Nós habitamos em uma montanha ou serra que os mineralógicos chamam da


primeira ordem e, segundo a observação destes e o que eu mesmo tenho
visto, todo os veeiros desta mesma montanha pela maior parte são
perpendiculares, que descem a prumo ao centro da terra; ou oblíquos, que
são aqueles que se precipitam, formando um ângulo entre 60 e 80 graus:
raras vezes (ao menos ainda não vi) se acham veeiros horizontais. (COUTO,
1994, p. 65)

Apesar de Couto empregar a terminologia primeira ordem ao invés de primitiva como


utilizada por Vandelli em sua instrução, pressupõe-se que Couto descreveu em sua memória
montanhas e serras que apresentam características similares às montanhas primitivas
conceituadas por Vandelli. Corrobora esta ideia o fato de que no decorrer da memória o
naturalista aborda a riqueza encontrada nos montes e minas do Distrito Diamantino.

Adentrando aos resultados obtidos nos exames mineralógicos realizados, José Vieira
Couto lista as produções metálicas encontradas nas minas, montanhas, rios e veios da
Comarca do Serro do Frio, descrevendo as suas matrizes, pureza, espécies e as quantidades
que se podem obter da sua extração. Esta abrange dez tipologias: ouro, prata, ferro, cobre,
chumbo, estanho, enxofre, caparrosa, nitro e diamantes.41 Tal descrição entra em consonância
com as instruções vandellianas de que o naturalista deveria observar e indagar se há minas e
montanhas com outras “produções metálicas” valiosas e úteis à Portugal, bem como calcular
a quantidade e indicar as possibilidades econômicas que delas se poderiam obter, passos
seguidos por Couto. Como justificativa de tal interseção de pensamento e prática dos exames
coutianos com as instruções vandellianas, pode-se citar a seguinte passagem sobre as minas

41
No que tange ao diamante e o nitro natural encontrado na Capitania de Minas Gerais, Vieira Couto tece um
comentário aprofundado em apêndice à sua memória. Ressalta-se que ao abordar outras produções metálicas
encontradas na Comarca do Serro do Frio, este descreve somente as espécies e o seu peso em libras e quintais.

1719
de prata encontradas na comarca, na qual se faz evidente a necessidade de se diversificar a
exploração da produção metálica nos domínios ultramarinos portugueses:

É crível que aí também existam as próprias minas de prata, visto que estas
sempre acompanham as de chumbo e as deste, muitas vezes, se convertem
nas de prata. O lugar é totalmente ermo e deserto e podendo-se fazer nele
maiores exames e indagações, talvez virá a ser um novo manancial de
riquezas para o Estado. (COUTO, 1994, p. 58)

Debruçando-se sobre as causas do estado decadente em que se encontra a mineração


na Capitania de Minas Gerais, pode-se observar algumas convergências das observações e
soluções apontadas por Couto e aquelas assinaladas por Vandelli. Percebe-se que os
naturalistas salientam que as principais causas para o declínio da arrecadação da quinta parte
do ouro pela Coroa é a falta de instrução dos mineiros, o uso de técnicas e maquinários
inadequados à sua extração além dos feriados santos existentes. Os aspectos citados,
confrontam a argumentação vigente no período de que a principal causa do declínio são os
extravios realizados em todo o processo de obtenção dos minérios, em diferentes cadeias.

Observa-se que os filósofos naturalistas descrevem em suas memórias e instruções


métodos, técnicas e maquinários para melhor se tirar proveito dos recursos minerais presentes
na Capitania de Minas Gerais. Avaliam que somente o conhecimento de técnicas e a instrução
dos mineiros seriam capazes de revigorar a prática mineradora nos seus domínios. Propõe-se
então, o desenvolvimento de uma arte metalúrgica nacional que tenha como principal
fomentador o Estado. Seria de responsabilidade da Coroa o estabelecimento de fábricas de
fundição no território brasileiro. Sua implementação dependeria de grande montante de
recursos financeiros que não estavam ao alcance dos mineradores locais, além de não gerar
lucros imediatos.

Couto também sugere que é dever do Estado Português instruir os mineiros na arte da
mineração através da construção de um corpo de conhecimentos e doutrinas. Tal corpo
deveria ser fundado em experiências realizadas no próprio território apoiada por estudos já
desenvolvidos no exterior. Esse empreendimento deveria ser levado a cabo por um

1720
especialista que deveria observar com seus próprios olhos o funcionamento das minas da
Saxônia, Hungria, Transilvânia e Áustria (COUTO, 1994, p. 72).

Ainda que não seja possível precisar as datas de algumas das memórias que tratam
desse tema, chama atenção o fato de Vieira Couto e Domingos Vandelli escreverem as suas
memórias pontuando a necessidade de uma arte metalúrgica nacional. Vandelli também
escreve a “Memória sobre as minas de ouro do Brasil” e a “Memória sobre os diamantes do
Brasil”, inclusive com base nos trabalhos de Joaquim Veloso de Miranda e na análise das
amostras provenientes do território brasileiro das quais ele teve oportunidade de analisar.

Tais publicações buscavam instruir os mineiros sobre o modo de realizar a exploração


e extração das minas encontradas no território brasileiro, apontando para a localidade em que
se encontram, quais técnicas deveriam ser utilizadas para sua extração, os ensaios e fundições
necessários e as suas qualidades. Percebe-se que tais escritos convergem suas reflexões
destacando a necessidade da construção de um arcabouço de conhecimentos sobre a arte
mineralógica no Brasil, que pudessem fomentar essa prática em declínio.

As consequências para a mineração da queima e do corte irregular de árvores também


é apresentada pelos naturalistas, sendo considerado um problema que repercutia no
estabelecimento de fundições de ferro. Segundo eles, tais práticas poderiam ocasionar
enormes prejuízos ao Estado, pois acarretaria na falta de madeira para a construção de
edifícios, lenha para se utilizar nas casas e nas fábricas de fundição, além de que a falta destes
recursos poderia se fazer sensível quando o Estado quisesse aproveitá-los (COUTO, 1994,
p.78). Portanto, os naturalistas propunham que se adotasse uma lei mais severa quanto à
queima e extração irregular das árvores, proibindo a derrubada de matas virgens e apontando
para a necessidade de plantio.

Outra convergência de pensamento e soluções que se pode observar na análise das


instruções escritas por Domingos Vandelli e na memória de José Vieira Couto remete à
questão do escoamento de produtos. Pontuam a necessidade da utilização de partes
navegáveis dos rios e regatos, e a abertura de estradas que possam servir como meio de
escoamento das produções metálicas e naturais provenientes do interior das capitanias para

1721
Portugal. A instrução dada por Vandelli sobre a necessidade do naturalista registrar
detalhadamente as redes hidrográficas que cortam o território, bem como dos percursos a pé
realizados no decurso da viagem filosófica indicavam a importância dessa questão. Couto em
sua memória, também reafirma a grande utilidade dessas informações ao Estado na execução
de aberturas de estradas e criação de rotas navegáveis dentro das diferentes capitanias.
Descreve de forma minuciosa de como se apresentava a situação dos rios e canais, além de
sugerir outras formas de transporte42 para o escoamento da produção mineradora.

Amostras, remessas e coleções nas obras de Vandelli e Vieira Couto

Vandelli pontua que um naturalista instruído deveria observar, indagar e coletar


amostras de sais, terras e outras substâncias que poderiam ser de grande utilidade e valor ao
Estado. Partindo-se dessa prescrição, Couto em anexo à sua memória, descreve a observação
que realizada na Comarca do Serro do Frio, se debruça brevemente sobre o nitro natural,
indagando sobre as possibilidades de extração. Apesar do naturalista mineiro pontuar que a
sua exploração não cobriria os custos necessários à sua extração, ele registra a possibilidade
de se estabelecer nitreiras artificiais na capitania.

Uma última confrontação entre as memórias de Vandelli e Viera Couto remete aos
procedimentos que se deveria ter em relação à recolha e envio de amostras coletadas na
viagem filosófica. Sobre esse aspecto Vandelli prescreve sobre a necessidade de amostras
para a realização de exames à campo e análises posteriores:

As fontes, e principalmente as minerais, deveriam ser analisadas com maior


cuidado; mas como supomos que quem vai de viagem não pode demorar-se
tanto quanto requer um exame mais particular das ditas águas, basta neste
caso levar consigo vidros das dissoluções e ácidos necessários para
semelhantes análises e que sejam analisadas de caminho o melhor que puder
ser; ou levar as ditas águas minerais em frascos para se analisarem depois
42
Ao se debruçar sobre os meios de transportes utilizados na Capitania de Minas Gerais, Vieira Couto sugere o
camelo como meio alternativo aos cavalos, pois este animal consegue percorrer grandes distâncias sem consumir
água em abundância. Tal proposição tem como base os trabalhos de Buffon e Reynal.

1722
quando houver comodidade, não se esquecendo de lhe notar o lugar, o seu
calor e frio no termômetro, o seu peso específico e o seu gosto, cheiro, ar
fixo, incrustações, sedimentos, etc. (VANDELLI, 2008, p. 122).

Há indícios nas memórias de Couto que este se preocupa também com a remessa de
amostras mineralógicas, como se revela na dedicatória à D. Maria I:

Pus vontade e diligência nesta empresa: suspendi no mesmo instante de


prosseguir no costumado trilho da minha vida: voei aos picos das serras,
desci as profundezas das cavernas e recolhi-me das minhas peregrinações
com as mostras de quase todos os metais, que neste cofre exponho aos pés
do trono. (COUTO, 1994, p.52).

Ainda a ser melhor investigado é o fluxo de remessas realizado por Couto. Alguns
levantamentos preliminares indicam a existência de envios periódicos acompanhados de notas
e observações, tal como recomendado por Vandelli em suas instruções. Ainda que incipiente,
a pesquisa identifica documentos datados, sobretudo, de 1799, 1806 e 1810 que assinalam o
envolvimento de Couto no envio de remessas, predominantemente de amostras de
mineralogia. Além da documentação referente a Vieira Couto, o mesmo levantamento
preliminar indica que, entre fins do século XVIII e início do século XIX, correspondências
circularam no âmbito da administração, tratando das atividades de coleta e remessa de
amostras naturais da Capitania de Minas Gerais para Portugal. Algumas, inclusive,
endereçadas ao Museu Real.

Conclusão

O que orienta a buscar uma proto-história das instituições de salvaguarda no final do


século XVIII e início do século XIX é o relevo dado no discurso iluminista para a história
natural. Aspecto este refletido no verbete “História Natural” escrito por Daubenton (1765)
para a Encyclopedie. Neste delineia-se a interdependência que se estabelece na conformação

1723
da história natural entre a necessidade de observar, reconhecer, inventariar, reunir, classificar
e dispor as produções da natureza. A reunião dessas produções justificava a formação dos
gabinetes para que nesses pudessem se estabelecer e verificar as relações complexas e
necessárias para o conhecimento da natureza. A formação de gabinetes e a prática colecionista
almejavam legar às gerações futuras o conhecimento cumulativo do espectro do que é a
natureza. Este projeto delineado pela Encyclopedie reforça a utilidade da história natural não
só para a interpretação da natureza, mas sobretudo para subsidiar aspectos que perpassam a
economia e a administração.

Neste momento da pesquisa foi importante reunir e contrastar instruções e memórias


produzidas por Domingos Vandelli e seus discípulos que realizaram expedições no território
português e seus domínios, bem como se envolveram na administração da colônia brasileira.
Cita-se como exemplo na Capitania de Minas Gerais José Vieira Couto e Joaquim Veloso de
Miranda naturalistas que se ocuparam tanto com o envio de remessas à metrópole, quanto na
sistematização de informações sobre as riquezas a serem exploradas. Foi possível perceber
que as memórias escritas por tais agentes se inscrevem em um projeto maior da ilustração
portuguesa, organizando, inclusive, políticas administrativas.

As fontes coletadas até o momento nos ajudam a desenvolver uma reflexão de que o
fazer naturalista, aliado à política econômica e administrativa, repercutiu no incentivo de
ações de cunho colecionista e para isso, tornou-se fundamental a criação de espaços para tal
fim. Pretende-se encontrar outras conexões que possibilitem dar continuidade às pesquisas
sobre a proto-história das instituições de salvaguarda. Nesta direção importa perceber como a
conformação dessas no século XVIII e XIX esteve imbricada às ações de cariz científico e
administrativo. Continua a busca por fontes que evidenciem as práticas de recolhimento e
envio de amostras fundamentais na constituição dos espaços de colecionamento.

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1727
UMA MIRADA PARA O PASSADO: PROJETOS EDUCATIVOS NO MUSEU
HISTÓRICO NACIONAL (1922-1960)

Carina Martins Costa*

Resumo: O trabalho pretende historicizar experiências pedagógicas desenvolvidas por


conservadores/as, historiadores/as e museólogos/as no Museu Histórico Nacional no período de 1922-
1960. Procurar-se-á explorar questões cruciais para a educação em museus, como os conceitos de
História, tempo, objeto e sujeito; as relações entre projetos de memória, educação e cidadania e, por
fim, as concepções de ensino-aprendizagem. O trabalho apresentará as especificidades da educação em
museus históricos a partir de diferentes pesquisas e prática. Assim, pretende contribuir para a
construção de um panorama histórico sobre a história da educação em museus brasileiros. A pesquisa
foi desenvolvida nos arquivos institucionais do Museu Histórico Nacional, bem como no Núcleo de
Memória de Museologia no Brasil (UNIRIO).

Palavras-chave: história da educação em museus; Museu Histórico Nacional; memória da museologia.

Abstract: The article intends to historicize pedagogical experiences developed by conservatives, historians and
museologists in the National Historical Museum in the period of 1922-1960. It will seek to explore issues crucial
to museum education, such as the concepts of History, time, object and subject; the relations between memory
projects, education and citizenship and, finally, the conceptions of teaching-learning. The article will present the
specificities of education in historical museums from different research and practice. Thus, it intends to
contribute to the construction of a historical panorama on the history of education in Brazilian museums. The
research was developed in the institutional archives of the National Historical Museum and in the Nucleus of
Memory of Museology in Brazil (UNIRIO).

Keywords: history of museum education; National Historical Museum; memory of museology

1728
Uma Mirada Para O Passado: Projetos Educativos No Museu Histórico Nacional (1922-
1960)

Em grego, politéia, origem de política, significa a ‘cidade-estado’ ou a ‘sociedade’.


Uma palavra que evoca a relação entre poder e espaço, poder e sociedade. Poiésis, traduzida
por ‘poesia’, é interpretada usualmente como uma manifestação artística. Mas o vocábulo
denota ação: ‘criar’, ‘fazer’ e ‘produzir’. E toda ação é política. Portanto, ao olhar a poesia
construída nos e pelos atores dos museus, não há desconsideração de que este fazer é
vinculado ao poder de quem fala e por que(m) fala. A poiésis traz a preocupação com a forma,
o estilo, a linguagem. Ulpiano Meneses (2007: 33) ressalta que “é no questionamento poético
que o museu teria uma de suas principais plataformas de conhecimento”. Parece um bom
caminho para tentar descortinar as ações museais, que manejam objetos, textos, espaços,
poderes, mas também memórias, silêncios, auras e encantamentos.

Dessa forma, o olhar sobre a potência recriadora da memória, em suas múltiplas


camadas ou dimensões, pode captar os movimentos de dinâmica e permanência inseridos em
uma história institucional. Os museus, como casas do presente, reinventam, conforme salienta
Chagas (2011), o passado, o que não envolve, por suposto, um resgate. Atuam como
conectores de tempos e espaços, como uma plataforma de visualização de um passado
selecionado, interpretado, exposto, difundido e apropriado. Justamente pelo papel de conector,
podem também ser acionados como âncoras para um presente em transformação, em busca de
uma suposta estabilização de sentidos. Myrian Santos aponta que “os museus têm a função de
legitimar um imaginário junto ao público e quando cumprem sua função não conseguem
modificar este imaginário com facilidade” (Santos, 2006: 56).

Os museus, enquanto espaços de litígio de memórias, foram cenários privilegiados


para a elaboração de narrativas tridimensionais sobre a História do Brasil e, ainda mais, para
sua difusão, em um momento no qual era necessário pensar novas formas de educar o “povo”.
A sua função educativa se potencializou, principalmente a partir de 1930, como o principal
recurso para obtenção de financiamento, publicidade e legitimação, em um contexto marcado
por crises e desconfianças em relação às instituições museais. Houve, nesse momento, um

1729
esforço de síntese e de disciplinarização do campo museal, que repercutiu na trajetória dessas
instituições.

A história dos museus históricos brasileiros é indelevelmente marcada pelo centenário


da independência em 1922, um momento decisivo para a construção da memória nacional
republicana. O Museu Paulista (SP), sob a direção de Affonso de Taunay, aprofundou para
uns (ou estabeleceu, para outros) sua orientação histórica; o Museu Histórico Nacional (RJ)
foi inaugurado, sob a direção de Gustavo Barroso, perpetuando a Exposição Comemorativa
do Centenário da Independência e, à margem dessas iniciativas oficiais, o Museu Mariano
Procópio (MG) inaugurou sua Galeria de Artes.

No Rio de Janeiro, capital da nação, a principal iniciativa foi a criação do Museu


Histórico Nacional, instrumento para lembrar o passado militar e imperial e educar as novas
gerações a amar a pátria. Após a transferência dos restos mortais do Imperador em 1921, a
memória da monarquia e da família imperial dialogavam com o regime republicano,
integrando uma só história de um só povo. Gustavo Barroso, seu diretor, tomava para si a
responsabilidade de pregar o “culto da saudade”, que reforçava as tradições brasileiras em um
tempo de modernizações e, em sua perspectiva, de perdas irreparáveis (Magalhães, 2006).

Procuraremos perceber políticas, práticas e poesias no Museu Histórico Nacional, no


período de 1922 até a década de 1960, anterior ao Golpe de 1964, quando novas pautas
invadiram o campo político e a disputa pela memória teve ingredientes muito específicos, que
não será abordada neste esforço.

ENSINAR HISTÓRIA EM MUSEUS? OU MUSEUS QUE ENSINAM HISTÓRIA?

A escrita da História no e pelo regime republicano foi considerada fundamental pelos


próprios atores envolvidos em sua formação, fossem políticos ou intelectuais. O desafio de
construir e consolidar um repertório simbólico relacionado à República foi enfrentado
rapidamente (e em diferentes frentes) por meio de iniciativas públicas ou privadas. O tema da
identidade nacional assumiu, assim, um papel central nas pautas políticas, culturais e
educativas republicanas diante da necessidade premente de (re)definir a nação, o povo
brasileiro e o seu passado comum.

1730
“Destronar” o Império envolvia bem mais do que proclamar a República. Implicava
um projeto político do novo regime, no campo cultural e educacional. Contudo, as complexas
relações entre memória, história e identidade não indicam a possibilidade de rupturas
profundas e rápidas. São relações delicadas, que exigem rearranjos, negociações e
mobilização dos atores. Isso porque os processos de construção de identidade são contínuos,
lentos e envolvem esforços de divulgação, imposição e adesão de um grupo, não importando,
nesse caso, seu tamanho. Sem dúvida, esse foi um momento crucial na conformação do
campo de estudos de História do Brasil, que, durante o Segundo Reinado, esteve atrelado
principalmente ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), sob os auspícios do
imperador D. Pedro II. Portanto, muitos historiadores têm investigado a construção de novos
heróis e narrativas nesse contexto de ressignificação do passado nacional (Gomes, 1996;
Carvalho, 1990). Angela de Castro Gomes, ao investigar o campo historiográfico no período
que se estende da Primeira República às décadas de 30-40, salienta que a República
demandou alterações nos cânones do “fazer história”, “não só porque (...) evidenciava uma
politização da disputa pelo que devia ser narrado (...), como, principalmente, pela forma
como a narrativa dessa “nova” história do Brasil e do mundo seria feita (...)” (Gomes, 2008: 3,
grifos da autora).

A procura por variadas formas de contar a ‘nova história do Brasil’ mobilizou os


intelectuais e seus projetos de pesquisa e de escrita. É nesse período que proliferam discursos
direcionados a uma pedagogia da nacionalidade ou, ainda, a uma ‘Escola Nova’, que
possibilitasse a essa instituição ser um espaço de construção de um povo educado, sem o qual
não haveria a modernização profunda do país. Os debates convergiam para a percepção do
papel estratégico da escola como vetor de união e promoção do povo brasileiro, ganhando
também os museus uma série de análise e reflexões vindas não casualmente por parte dos
educadores. Um bom exemplo são as palavras de José Veríssimo (1906),

O iletrado brasileiro ainda há pouco 84 por cento da população, nada encontrou que
impressionando seus sentidos lhe falasse da pátria e a seu modo fosse também um
fator da sua educação. Não há museus, não há monumentos, não há festas nacionais.

1731
O que freqüentou a escola onde lha não fizeram conhecer e amar, desadorando a
leitura e o estudo, não procurou fazer-se a si próprio uma educação patriótica. (sic) 43

O diagnóstico de Veríssimo, bem no início do século XX, apontava para a necessidade


de construção de instituições que enfrentassem os enormes desafios do analfabetismo, da
baixa escolaridade, de uma regionalização excessiva e da ausência de meios efetivos para uma
educação nacional e patriótica. Sua proposta, portanto, intentava promover a união das
diferentes “raças”, credos e costumes sob a bandeira de uma única nação. Essa educação,
conforme apontava, não se faria apenas na escola, ainda que ela fosse considerada um
instrumento indispensável e prioritário para enfrentar o analfabetismo e promover a educação
cívica. Além da escola, eram necessários monumentos, museus e festas cívicas capazes de
impressionar os sentidos de uma ampla e diversificada população, inclusive e com destaque,
os que ainda não sabiam ler, a maioria no país. O Estado republicano deveria ser o promotor
dessas mudanças educativas em prol da defesa dos valores cívico-nacionais que eram, para o
autor, os valores da própria República.

A retórica da decadência, nos termos de Joaquim Pintassilgo (1998), não foi exclusiva
ao cenário nacional, posto que, em Portugal, a República enfrentou igualmente os chamados
males sociais, que, no caso, eram o analfabetismo e as más condições sanitárias e higiênicas.
O remédio, em ambos os casos, era a educação, que deveria ser aplicada em doses cavalares
no intuito de possibilitar a consolidação da política republicana no início do século XX.

Uma preocupação que acompanha a trajetória dos intelectuais da educação, pois, já


nos anos 1950, outro educador eminente, Anísio Teixeira44, em entrevista sobre a Semana de
Museus em 1956, expõe sua visão sobre o lugar do museu na estrutura educativa de uma
nação. De acordo com ele, reverberando o diagnóstico de Veríssimo,

a realidade é que uma nação moderna sem Museus é uma nação sem os recursos
básicos da educação. Neles é que se encontram as matrizes da cultura. Por eles é que
o homem se emancipa do seu provincianismo e se faz, no espaço e no tempo, o

43
Disponível em: <http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=203>. Acesso em: 15 jul.
2009.
44
Entrevista de Anísio Teixeira para o jornal Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 2 out. 1956. CPDOC/ FGV.

1732
companheiro e o contemporâneo de todos os que o antecederam e que o irão
suceder... (Teixeira, 1956)

Contudo, mesmo que as insuficiências das políticas desenvolvidas ao longo de toda a


primeira metade do século XX sejam assinaladas, importa registrar que os anos 1930
marcaram indelevelmente as políticas culturais no Brasil, com forte intervenção do Estado
sobre os campos patrimonial e educacional. A criação do Ministério da Educação e Saúde
(MES) rearticulou os esforços governamentais pela ‘civilização’ e ‘nacionalização’ do povo
brasileiro, o que se faria com a incorporação de importantes intelectuais no aparato público.
As reformas Campos (1931) e Capanema (1942) aprofundaram a atuação e o controle do
Estado na educação, reforçando os valores pátrios e o civismo. Contudo, as transformações no
campo educativo stricto sensu devem ser analisadas concomitantemente à busca de novas
formas de difundir as narrativas históricas nacionais.

Proferida no regime republicano, em 1922, a indignação de Gustavo Barroso - “nada


se conserva, nada se guarda!” - revela uma consciência histórica, ou seja, uma forma de se
relacionar com as experiências no tempo. Sua preocupação com a destruição do passado e
dessa memória, em função das rápidas transformações encetadas pelas reformas urbanas e
pelos novos meios comunicativos, leva-o à procura de uma ancoragem material e simbólica
em um tipo de instituição: o museu histórico.

Barroso explicita, assim, uma relação com o tempo – passado/presente45 – orientado


por projetos de futuro em um cenário de reforço do valor da história por políticas públicas que
envolvem a preservação de tradições que, através do museu, seria o meio de acessar o
passado. Para ele, a “perda” dos vínculos com o passado – pela perda dos objetos e práticas

45
O conceito de cultura histórica, segundo o historiador francês Le Goff (1996), está diretamente atrelado à
concepção de tempo compartilhada por uma determinada sociedade. No sentido atribuído pelo autor, a cultura
histórica pode ser entendida como a maneira de valorizar o passado nessa sociedade, como “lugar” que esse
passado ocupa e, inclusive, como ele é definido e divulgado em operações político-culturais. É nesse sentido que
o conceito de cultura histórica contribui para analisar a educação histórica em um circuito mais amplo que o
escolar, e não só restrito a ele. O historiador alemão Jörn Rüsen (2001) aprofunda essa reflexão ao pensar a
noção de consciência histórica como fenômeno relacionado à vida prática dos homens, que envolve experiências
e interpretações do tempo. Para ele, a constituição do sentido da experiência do tempo envolve um processo no
qual “(...) as experiências do tempo são interpretadas com relação às intenções do agir e, enquanto interpretadas,
inserem-se na determinação do sentido do mundo e na auto-interpretação do homem, parâmetros de sua
orientação no agir e no sofrer” (Rüsen, 2001: 59).

1733
que o materializam - envolvia uma ruptura na consciência histórica do país, fortemente
referenciada ao Império, período considerado de glória nacional.

“Reavivar” esse passado e “cultuar a saudade” desse tempo foram ações


desencadeadas a partir de múltiplas estratégias e por variados atores nesses anos 1920. Para
Barroso, por exemplo, o Império fornecia os melhores elementos para uma inserção do Brasil
no cenário civilizatório mundial. Nesse sentido, o Império, destronado politicamente, deveria
ser incorporado de modo simbólico na tessitura política e cultural de uma nova nação
republicana que tencionava valorizar seu passado histórico, combatendo suas maiores
mazelas, identificadas na falta de educação, saúde e comunicações. Os discursos históricos e
museal eram, portanto, alguns dos fios condutores de um amplo projeto republicano na
medida em que se inseriam em uma ação educativa que tornava visível, sobretudo
nacionalmente, as grandezas do Brasil republicano.

Projetos de identidade nacional, entendida como uma “construção que se relata”


(Barbero, 1999: 48), foram traduzidos e apropriados nessa montagem de museus públicos ou
privados, concebidos como lugares estratégicos para exibição e persuasão de interpretações
em disputa. As instituições museais eram, portanto, palco de uma pedagogia da nacionalidade,
que tanto pretendia glorificar as relíquias de uma nação como, muitas vezes, demonstrar seu
poderio científico e/ou político a outros territórios ou grupos sociais. Justamente por se
constituírem em momento de expansão imperialista de muitas nações europeias, os museus
nacionais46 projetaram, de acordo com Bartra (apud Barbero, 1999: 54), uma continuidade
cultural que possibilitou converter conflituosos passados históricos em um presente artístico
harmonioso, sem fissuras políticas.

46
Letícia Julião (2008) aponta a dificuldade em conceitualizar o que é um museu histórico nacional pela própria
dinâmica de atribuição de sentidos ao que é ‘nacional’. Ainda assim, é possível assinalar a transformação
processada no âmbito do colecionismo ocidental que, a partir do século XVIII, busca apreender as
especificidades de uma nação, afastando-se da perspectiva universalista que predominava, até então, nos
gabinetes de curiosidade. Mas esse é um processo lento e a coexistência de ambas vertentes, a dos ‘teatros do
mundo’ e a dos ‘teatros da nação’, propiciou a construção de museus que, preocupados em apresentar uma
leitura da história nacional, ainda se utilizavam de categorias e estratégias universais.

1734
Os conservadores da memória e suas práticas

Compreender-se-á sem dificuldade que, dentre os fatores de sucesso ou fracasso de


um museu, é a personalidade do conservador que conta em primeiro lugar. Dirigido
por um bom conservador, um museu, quaisquer que sejam seus defeitos, não será
mau; mas se o conservador for mau, todas as vantagens possíveis não farão um bom
museu.
Sir. Henry Miers, 192847

Os museus enfrentaram o desafio de construir projetos de educação para o público, ora


concebido em sentido amplo e diversificado como o “povo”, ora compreendido com o critério
restrito da distinção, como “os apreciadores”, “os especialistas”, enfim, uma elite ilustrada.
Ao seu lado, jornais, revistas, exposições, teatros, livros e o rádio constituíram importantes
vetores culturais em um contexto em que a alfabetização crescia, assim como a urbanização,
em um regime político nacionalista e desde o Estado Novo, autoritário.

Em 1932, após tentativas anteriormente frustradas, o historiador Rodolfo Garcia, então


no comando do MHN, lança o Curso de Museus, destinado à formação dos chamados
“conservadores” em nível superior, o que é um marco no processo de constituição dessas
instituições. Desde então, houve a profissionalização do campo e a consolidação de uma
intensa rede de intelectuais que participaria do cenário museológico brasileiro. A confluência
com a História foi incentivada, pois o objetivo primeiro do curso era formar funcionários para
o próprio MHN48.

Um aspecto bastante destacado nas entrevistas com as museólogas, bem como nos
textos da época, é o caráter heróico da ação do conservador. Eram considerados profissionais

47
Sir. Henry Miers, report on the Public Museums of the British Isles, 1928, citação transcrita de manuscrito de
Maria Elisa Carrazzoni. CARRAZZONI, Maria Elisa. Que é um conservador de museu (p.32-33). Fundo MEC,
caixa 10. NUMMUS da Escola de Museologia/UNIRIO.
48
Um olhar sobre os intelectuais envolvidos na criação do Curso de Museus fornece um panorama do perfil do
conservador, com nomes como Gustavo Barroso, Pedro Calmon, Guy de Holanda, dentre outros. Importante
destacar que os dois primeiros eram sócios do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), importante
reduto legitimador da escrita da História brasileira, uma vez que os cursos de História e Geografia, das
Faculdades de Filosofia, então, apenas começavam.

1735
dedicados à tarefa de salvar os tesouros da perda, da ignorância e da destruição do tempo.
Mais do que uma profissão, era uma vocação assentada, inclusive, na não-remuneração para
algumas tarefas. O sentido nobre de missão é evocado e, a esse respeito, a fala de Barroso é
indiciária:

As reparações que exigem trabalhos de carpintaria e outros semelhantes, nós mesmo


as executamos (...), pois aqui é dominante o espírito de cooperação de todos os
servidores do Museu, que nele trabalham com o mesmo carinho como se estivessem
trabalhando em coisa sua, de seu interesse pessoal. (Barroso, apud Ribeiro, 1945:
97)

Em vários relatórios do MHN, tal dedicação zelosa é sublinhada, assim como o


“espírito de cooperação”. A despeito dessa postura proposta pelo Curso, outras diretrizes eram
importantes na formação profissional. Os conservadores se formavam após três anos de
estudos. Uma reportagem da época da criação do curso ajuda a perceber a sua estruturação e
demanda social:

O Curso de Museus diplomou, até agora, uma única turma de alunos, que é a
primeira que sai dos seus bancos universitários. É uma turma de “doutores” em
museus! (…) Foi uma das poucas realizações apreciáveis do Ministério da
Educação. É um curso universitário, de extensão cultural especializada. Prepara
funcionários com a capacidade de servir em museus, garantindo-lhes a preferência
de nomeações para o quadro do funcionalismo daquela casa e dá aos seus alunos, ao
lado desta, outra vantagem maior: a de adquirirem uma série de conhecimentos que,
em nosso país, presentemente, somente ali são professadas49.

Assim, o MHN formava, a princípio, técnicos para a própria instituição, o que


aumenta a demanda curricular pelo conhecimento histórico e pelas chamadas “disciplinas
auxiliares”, como sigilografia e numismática, por exemplo. A Museologia era considerada
uma ciência50 e havia uma disciplina estrutural no curso, intitulada “Técnica de Museus”,

49
COMO se formam técnicos de museus no Brasil. O Jornal, Rio de Janeiro, ano 16, 13 abr. 1934, p. 5.
50
Gustavo Barroso (1945: 6) foi contundente: “Chama-se Museologia o estudo científico de tudo o que se refere
aos Museus (…)”.

1736
ministrada pelo próprio Barroso, que conduzia todo o restante do currículo51. De acordo com
Gustavo Barroso (1945), a parte mais difícil da Museologia seria a classificação dos objetos e,
por isso, ele prestigiou e enfatizou as chamadas ciências auxiliares da História. A história
parece ser apenas fonte de conhecimento para atestar a veracidade dos objetos, que “estão
frequentemente sujeitos a falsificações e imitações” (Barroso, 1945: 18). Ainda, segundo ele,

para um perfeito trabalho de classificação de objetos históricos não se pode


dispensar nada deste conjunto de matérias complexas e importantíssimas, o qual
exige grande soma de erudição, de paciência, de tirocínio e de agudeza espiritual.
(Barroso, 1945: 18)

Há, em toda sua obra técnica, a valorização da erudição que, dosada com o amor à
pátria, constituiria a especificidade do conservador de museus. Um apelo que atende à
denominada sensibilidade antiquária, resistente a novas configurações da escrita da História
construídas a partir do século XIX (Ramos, 2010: 55). A influência desse pensamento
perpassou várias instituições identificadas como históricas e é fundamental para a
compreensão dos projetos educativos ensejados por elas. Percebe-se a noção de História na
tradição de um projeto escriturário, baseado na ideia da escrita como mimeses dos
acontecimentos transcorridos. Assim, o Curso de Museus enfatiza as disciplinas relacionadas
ao universo do antiquariato em detrimento daquelas relacionadas à construção do
conhecimento histórico. Em relação à educação, nenhuma disciplina é apresentada na grade
curricular, isso porque a noção de simples transposição de conteúdos e atitudes era
preponderante. Se o campo teórico da Museologia contribuiu para a consolidação de um
projeto de ensino de História calcado na transmissão de valores e informações e nas noções de
verdade e autenticidade, importa investigar, pois, como os profissionais dos museus
consolidaram suas práticas e reflexões sobre educação.

51
O currículo original era formado pelas disciplinas História Administrativa do Brasil, Numismática e
Sigilografia, História da Arte Brasileira, Técnica de Museus, Epigrafia e Cronologia e Arqueologia Brasileira.
Em 1966, o regimento do curso criou duas habilitações, a saber: Museus Históricos e Museus Artísticos (Cruz,
2007: 55).

1737
Assim, foi realizado um esforço de investigação para perceber diferentes e litigiosos
projetos de educação nos museus, particularmente os históricos. A primeira sondagem na
documentação institucional indicou a inexistência de atividades educativas. Os relatórios
oficiais apontavam para preocupações relacionadas ao funcionamento e infraestrutura, como
orçamento, instalações físicas, obras e funcionários, principalmente na primeira década (1922-
1932). Dessa forma, ao projetar o olhar somente para os relatórios, não foi possível consecutar
o objetivo da pesquisa. Foi necessário recorrer a outras fontes, ler nas entrelinhas, buscar a
dimensão da memória presente nas falas dos pioneiros museólogos e educadores. Foi
realizada uma ampla pesquisa no Núcleo de Memória da Museologia no Brasil sediado na
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (NUMMUS- UNIRIO)52, responsável pela custódia
de fundos documentais do Curso de Museus e de alguns de seus professores.

Tornou-se possível identificar a presença de projetos educativos nessas instituições a


partir da década de 192053. Os resultados da pesquisa demonstraram que o primeiro Setor
Educativo, denominado Seção de Assistência ao Ensino de História Natural (SAEHN), foi
criado no Museu Nacional, no Rio de Janeiro, em 192754. Sem nenhuma dotação especial, a
Seção foi implementada pela portaria de 8/10/1927, pelo Ministro da Agricultura, Indústria e
Comércio, Dr. Germiniano Lyra Castro. O então diretor da instituição era Edgar Roquette
Pinto, reconhecido pelo esforço na difusão científica no Brasil, cujo pioneirismo já era
valorizado à época. De acordo com os relatórios do Museu Nacional, a administração do Prof.
Edgar Roquette Pinto (1926 a 1935) foi marcada pela crescente preocupação com a função
educativa do museu. A atenção com o desenvolvimento do papel educativo de uma das
maiores instituições científicas do Brasil demonstrava o desejo de associar pesquisa científica
com educação, em sentido amplo, tendo em vista o desenvolvimento da nação. A partir de

52
Fruto de um dedicado trabalho desenvolvido pelo Prof. Ivan Coelho de Sá, o NUMMUS foi criado em 2001.
53
A alocação dessas novas instituições no aparato público aponta para algumas movimentações no campo
museal, assim como para o crescimento de sua vinculação explícita a projetos educativos. Em sua constituição, o
Museu Histórico Nacional era subordinado ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Somente em 1930,
começou a ser gerido pelo Ministério da Educação e Saúde, momento em que seu prestígio e orçamento foram
reforçados. A partir daí, com o crescimento da importância política dos museus, tornou-se necessário, dentre
outras providências, formar seus funcionários.
54
Vale registrar que há no Arquivo Histórico do Museu Nacional um orçamento, datado em 1913, sobre a
instalação de vitrines de ferro para o Museu Escolar. Contudo, não foi possível encontrar mais informações sobre
essa iniciativa, que demonstra um esforço pedagógico da instituição bem anterior à gestão Roquette Pinto.

1738
então, o Museu Nacional era concebido como “(...) órgão do ensino público, em todos os
graus, sem prejuízo das suas funções de centro superior de pesquisas”55. Em relatório de
1929, o setor educativo é compreendido como mediador entre o Museu Nacional e a escola
“no desempenho destas funções procurou-se, como aliás deverá ser sempre, pôr a ciência ao
proveito da vida”56. Uma de suas principais atividades era a organização de atendimentos
escolares e havia uma forte preocupação com a apresentação de resultados e métodos,
ilustrada por um anexo com fotografias dos materiais pedagógicos produzidos, como slides e
maquetes. Enquanto o ensino nos museus de ciência natural no Brasil fortalecia a perspectiva
de diálogo com o professor e alunos, fundado na experimentação, os museus históricos
seguiam uma trilha própria. Mas, em ambos, a preocupação em “civilizar o povo” é
perceptível, embora particularmente destacada nos museus históricos que, além de oferecerem
conhecimentos, deveriam defender valores cívicos, orientando-se, sobretudo, pela emoção.

O movimento educativo, que parece ter se iniciado em museus de ciência, ganhou


apoio governamental e projeção em outros tipos de museus. Um olhar detido no MHN
permite compreender os investimentos na construção de um projeto educativo que seria
consolidado e difundido no Curso de Museus.

Antes de 1930, os relatórios anuais do Museu Histórico Nacional evidenciam apenas


marginalmente a existência de uma forma de se pensar a educação em museus históricos e
suas relações com os visitantes. A função social defendida para o museu era a de educar a
nação, embora a prática cotidiana fosse restrita ao estudo e à catalogação das coleções. O
dever cívico, muito presente nos discursos, aparecia, ao menos no caso do MHN, limitado
pelas características atribuídas ao público do museu, que demonstrava desconhecimento,
ignorância, desinteresse ou, pior, interrompia o serviço técnico dos funcionários.

A relação com o público proposta pelo MHN também pode ser apreendida por uma
literatura, ainda pequena, que possibilita compreender algumas características do projeto
educativo. Inês Gouveia (2004) apresenta uma importante contribuição ao analisar a relação

55
Relatório da Seção de Assistência ao Ensino da História Natural, 1940. D56.MN. Diretoria. Classe 146.5.
Arquivo Histórico/Museu Nacional.
56
Relatório da Seção de Assistência ao Ensino da História Natural, 1929, p.5. D56.MN. Diretoria. Classe 146.5.
Arquivo Histórico/Museu Nacional.

1739
entre o Museu Histórico Nacional e o público no período de 1940 a 1975, por meio da leitura
dos Anais publicados pela instituição. A autora frisa que a importância concedida ao público é
uma construção da museologia atual, que não pode ser transposta para o passado.

Nos relatórios institucionais57, os sujeitos parecem ser pouco importantes. É o


conjunto de relíquias capaz de “(…) atrair o público. E cada visita que se faça ao Museu é
uma lição de história do Brasil que se aprende” (Gustavo Barroso, relatório de 1923, s/p). O
Museu fechou por mais de um ano, em 1923, para a organização da coleção. No ano seguinte,
o próprio diretor admite que o Museu não estava preparado para visitas, pois eram necessárias
obras e ampliação do espaço físico. Em 1924, o Catálogo Geral do MHN é publicado, com
forte caráter informativo. O relatório de 1925 reitera as queixas e explicita o diagnóstico das
dificuldades, que seriam de duas ordens: a primeira, falta de verbas e a segunda, de pessoal
subalterno para serviços de limpeza, conservação e fiscalização. Não há menção, em nenhum
momento, a funcionários qualificados para a educação, nem sobre materiais pedagógicos ou
atendimento ao público. A preocupação era zelar pelos objetos, que proporcionariam, como
em um passe de mágica, o conhecimento da História nacional.

A questão da pouca visitação ao MHN, em sua primeira década de funcionamento, é


atribuída à localização geográfica - “um lugar pouco frequentado e fora de mão” - e ao
desinteresse pelos valores pátrios58. A estatística de 1925 aponta para 7.826 visitantes, o que
demonstra uma pequena frequência de visitantes e o vínculo quase dependente do turismo e
da escola.

Nas especificações sobre as escolas, quando existentes nos relatórios, ressalta-se a


visita de colégios consagrados, como D. Pedro II, Ginásio de Educação Moral e Cívica e
escolas americanas, como British School. Não há menção sobre a forma em que era
organizada tal visita, nem quem seria responsável por orientá-la. A maior preocupação dos

57
Os relatórios anuais eram assinados pelo diretor Gustavo Barroso e possuíam, normalmente, a seguinte
estrutura: introdução, regulamento, estatística de visitantes, seções do museu, arrolamento de salas, biblioteca,
aquisição de acervo, conservação, funcionários e empregados, observações e conclusão. Seguiam-se a este
relatório geral os específicos de cada seção que eram, inicialmente, duas: a de História e a de Numismática,
Filatelia e Sigilografia. Os primeiros relatórios, remetidos ao então Ministério da Justiça e Negócios Interiores,
são eivados de críticas aos parcos recursos do MHN, buscando convencer os superiores de sua importância,
baseada nas funções de reunir e conservar objetos do passado nacional.
58
BARROSO, Gustavo. Relatório Administrativo. AI/MHN, 1925.

1740
relatórios, até a década de 30, é legitimar o projeto barrosiano, demonstrando os apoios
recebidos, sejam eles públicos ou particulares, expressos, neste último caso, pelas doações.
Era essa a forma de se medir o grau de atração do museu, ou seja, por meio dos
“oferecimentos de relíquias valiosas”, possíveis de serem feitas apenas por uma elite.

O período compreendido entre 1929 e 1932 marca o afastamento de Gustavo Barroso


da direção do MHN, com sua substituição por Rodolfo Garcia, membro do IHGB. Os
relatórios desse período não foram encontrados no Arquivo Institucional, mas importantes
ações foram realizadas nesta gestão, como a Exposição Nacional sobre D. Pedro I, a primeira
exposição temporária do MHN e, principalmente, a implantação do Curso de Museus.

Será a partir do retorno de Barroso, em 1932, já sob a gerência do Ministério da


Educação e Saúde, que a questão pedagógica assume lugar importante nos objetivos do MHN.
Ainda que as reclamações sobre orçamento persistam, observa-se uma preocupação com a
organização do atendimento ao público expresso, em especial pelo projeto de publicar um
guia de visitante. Em 1932, a expectativa de publicar o Guia da Seção Histórica é explicitada,
pois, de acordo com o diretor,

trata-se de um trabalho de classificação e estudo de cada peça pacientemente


organizado, e de relevância, não só para os fins imediatos a que se destina (guia de
visitantes), como para o conhecimento da nossa história. É obra que exigiu tempo e
uma considerável soma de boa vontade (…)59.

A publicação do guia, concretizada apenas em 1955, aponta para a tentativa de


difundir e cristalizar sentidos sobre a coleção de objetos do MHN, “pacientemente”
classificados pelos conservadores. Há, assim, uma valorização bastante significativa da
palavra escrita, ainda que em diálogo com os objetos tridimensionais.

É interessante observar, por exemplo, que a partir do relatório de 1942, há um


parágrafo introdutório do texto da Seção de História, repetido ips literis nos posteriores, a
saber:

59
BARRROSO, Gustavo. Relatório Administrativo. AI/MHN, 1932.

1741
Além dos serviços já mencionados, sem levar em consideração a tarefa de
acompanhar visitantes e colégios através de nossas salas de exposição, trabalho
fastidioso e cansativo, que foi feita, indistintamente, por todos os conservadores da
Seção, devo registrar a contribuição individual de cada um60.

Em seguida, o chefe listava detalhadamente a produção técnica de cada conservador de


sua seção. A mesma percepção do trabalho educativo como interrupção da rotina dos
conservadores aparece em um trecho do relatório da Seção de História, em 1952. Após listar,
nominalmente, o quadro de funcionários, o texto aponta que os trabalhos de pesquisa e
fichário foram “(…) grandemente prejudicados pelo excesso de consultas, avaliações, visitas,
etc (…)”61. Ou seja, a atividade educativa era entendida como interrupção do real trabalho do
conservador, eminentemente técnico: catalogar, pesquisar e escrever etiquetas. A preocupação
com a redação das etiquetas, que pode parecer à primeira vista exagerada, é reforçada na
entrevista realizada com a Professora Nair de Moraes Carvalho62, na qual ela afirma que o
conservador era formado no Curso de Museus para sintetizar as informações históricas em
uma boa legenda. Os visitantes deveriam ser apenas acompanhados, um “trabalho fastidioso e
cansativo”63. Importa observar, ainda, que não há nenhuma demanda por um setor educativo,
em um momento no qual a produção museológica já indicava a necessidade de aproximação
entre museus e educação.

Todavia, em 1945, outra narrativa sobre a educação em museus no MHN é difundida,


em que se destaca o prazer do ensino-aprendizado. A publicação da revista nomeada
Instituições Brasileiras de Cultura64, escrita por Adalberto Mário Ribeiro, promove órgãos
subordinados ao MES, a saber, o Instituto Nacional do Livro, a Casa de Ruy Barbosa, o
Museu Histórico Nacional e o Instituto Nacional de Cinema Educativo. Na verdade, o título
integra a Revista do Serviço Público, o que é compreendido apenas na leitura do artigo.

60
OLIVA, Menezes de. Relatório anual da Seção Histórica. AI/ MHN, 1942.
61
OLIVA, Menezes de. Relatório da Seção História. MHN/ AI, 1952.
62
Depoimento de Nair de Moraes Carvalho, concedido à pesquisadora no dia 15 de outubro de 2008.
63
OLIVA, Menezes de. Relatório da Seção História. MHN/ AI, 1952.
64
A revista pertence à Coleção Nair de Carvalho (NMC 2116). NUMMUS/ UNIRIO.

1742
Importa aqui analisar o longo artigo sobre o MHN, reconhecido como “a Casa do Brasil”, que
narra uma visita à instituição em primeira pessoa, entremeado de fotografias e descrições
minuciosas de objetos, etiquetas e salas. A linguagem do artigo é interessante, pois incorpora
os diálogos do autor com os funcionários do MHN, em uma estratégia de persuasão que
aproxima o museu do leitor. Em uma abordagem etnográfica, Adalberto Ribeiro guia o leitor
e o orienta sobre a importância da instituição e dos serviços educativos que ela
desempenhava.

Apesar de o artigo possuir 46 páginas e 20 imagens, dentre fotografias e fac-símiles, o


autor aponta, logo no início, o esforço de síntese realizado com um alerta: “Não espere,
portanto, o leitor que, nas poucas páginas que lhe oferecemos em seguida sobre aquele mundo
de relíquias históricas, possamos ressaltar-lhe toda a grandeza e opulência” (Ribeiro, 1945:
93). É por meio desta chave interpretativa que toda narrativa se constrói, ou seja, na promoção
da relevância do museu, através de suas relíquias. O texto é polifônico, pois o narrador
envolve várias outras falas e opiniões, como explicações de Gustavo Barroso, anedotas de
Menezes de Oliva, expressões de admiração de uma visitante, questionamento de outro, além
dos diálogos surgidos ao longo das visitas. Da mesma forma, o leitor é incorporado à redação,
seja para imaginar alguma situação do passado, seja para acompanhar o relato ou mesmo para
aceitar os pedidos do autor por paciência, o que ocorre em diferentes ocasiões.

Naquele momento, o MHN possuía o catálogo de 1924, que envolvia um esforço de


arrolamento do acervo, com algumas fotografias de salas expositivas. Essa reportagem é,
portanto, relevante para acompanhar os esforços do MES na difusão e promoção da
instituição para um grande público, sendo um importante acesso para compreender que tipo
de visita se fazia na instituição. Por meio de minuciosa descrição, é possível perceber algumas
características do projeto educativo do MHN. A narração da visita é realizada sala por sala.
De acordo com o repórter, “(...) para não perdermos tempo, começamos a tomar as primeiras
notas, coisa ligeira, que não precisava de qualquer informante, pois era só copiar” (Ribeiro,
1945: 94)65.

65
A reportagem informa que a entrada era franca e o horário da visitação era de 12h às 16h durante toda a
semana, à exceção de segunda-feira. Assim, quatro horas diárias do expediente de seis eram destinadas à

1743
O jornalista aponta para a necessidade de realização de várias visitas para a elaboração
do artigo, para “fixá-las [as raridades] com mais vagar e melhor disposição de espírito”
(Ribeiro, 1945: 95). Assim, a visita ao museu é compreendida como exercício de fixação de
informações sobre raridades e relíquias, exercício cansativo, como reconhece o narrador em
diversos momentos. A importância das anotações é realçada em várias ocasiões, com o
repórter, “de caderno em punho, sempre a tomar notas”, reproduzindo informações,
adicionando comentários sobre sua ignorância, admiração ou mesmo rejeição a determinado
objeto. Ao final da reportagem, seu lápis já estava um “toquinho”, conforme sua própria
expressão.

Em uma dessas visitas, provavelmente a primeira, quando a comissão de funcionários


da Divisão de Aperfeiçoamento do Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP)
foi guiada pelo próprio Gustavo Barroso66, Ribeiro relata:

(...) ouvindo-se a palavra erudita do Sr. Gustavo Barroso, ao lhes definir as partes
componentes, com minúcia e carinho todo especiais, o visitante mais indiferente às
velharias bélicas do passado chega a interessar-se pelos pesados canhões (...).
(Ribeiro, 1945: 95)

A orientação de Barroso na visita era, provavelmente, excepcional pelos visitantes


especiais. Um “requinte de gentileza”, nas palavras do autor. Mesmo assim, é claro o caráter
monológico da visita, uma palestra sobre minúcias dos objetos, na perspectiva de uma
erudição histórica, que legitima tanto o diretor como o saber promovido pela instituição e seus

recepção do público. Por se tratar de entrada franca, seria possível esperar um afluxo significativo, mas tal não
ocorria, conforme pode ser percebido nos relatórios anuais.
66
A visita foi estruturada a partir da Portaria, com a explanação sobre a instalação do Museu no edifício e,
sobretudo, sobre as dificuldades de gestão. Segue-se o Pátio dos Canhões e as Salas Vice-Reis, Carlos Guinle,
Almirante Barroso, Otávio Guinle, Marquês de Tamandaré, Conde de Boradela, Conde de Porto Alegre,
Saldanha da Gama, Pátio Epitácio Pessoa (momento no qual Barroso se retira e incumbe Jenny Dreyfus e
Fortunée Levy para o prosseguimento da visita), Salas Smith de Vasconcelos, Arnaldo Guinle, Mendes Campos,
Getúlio Vargas, Guilhermina Guinle, Carlos Gomes, Otônis, General Osório, D. Pedro II, D. Pedro I, D. João VI,
Tiradentes, Duque de Caxias e, por fim, Salas da República e Deodoro (nesta ordem). A Seção de Numismática,
Sigilografia e Filatelia possuía uma exposição própria, organizada em três salas, “Zeferino de Oliveira”,
“Guilherme Guinle” e “Sotto Mayor”. Após a visita à seção de Numismática, a reportagem inclui a Sala Miguel
Calmon. O prof. Menezes de Oliva guia em algumas salas, mas a narrativa não demarca se a visita é a inicial ou
aquelas que foram realizadas posteriormente.

1744
conservadores. A função assumida pelo repórter/visitante é copiar, registrar e fixar todo este
conhecimento.

O estímulo à visitação é realizado tanto pela valorização das peças do acervo como
pela necessidade de conhecer a história do Brasil, sobre a qual o próprio autor, talvez, para
angariar apoio do leitor, reconhece desconhecimento: “(...) pudemos verificar a nossa santa
ignorância da história do Brasil”, afirmação decorrente do fato de não saber os nomes dos
vice-reis, que fez questão de copiar (Ribeiro, 1945: 98). A visita nos museus seria, então, uma
oportunidade para os visitantes sanarem esta ignorância, pois ele é “um grande livro aberto da
história do nosso passado”. A ação do museu seria guardar estes dados, não deixá-los cair no
esquecimento. Do mesmo modo, a forma de exposição das peças seria outro estímulo
importante pelos aspectos da sedução, da harmonia e da informação, “arranjos hábeis e
inteligentes da direção” (Ribeiro, 1945: 101).

O museu é um catálogo vivo e a sua exposição é “(...) oferecida à leitura e à


interpretação através de numerosos objetos, que são como páginas de um grande livro, que se
lê com agrado e sem canseira” (Ribeiro, 1945: 117). Ainda que tal afirmativa seja
contraditória em relação às próprias impressões do narrador, registradas ao longo das dezenas
de páginas, denota a importância do prazer da educação em museus, que proveria os visitantes
de informações não disponíveis em outros lugares, nem mesmo na literatura, pelo contato
visual com as relíquias. O museu, esse livro vivo, deveria ser lido não apenas com os olhos
mas, sobretudo, com o coração.

A questão da educação pelo sentimento é interpretada pelo autor como uma resposta
àqueles tempos de pressa e à necessidade de sentir os objetos com “imaginação e doçura”
(Ribeiro, 1945: 99)67. Imaginar, por meio dos objetos, provocava a sensação de saudade do
passado, tema central no pensamento barrosiano. Decorre daí o sentido atribuído ao museu
como reconstrutor de tempos passados68. Os objetos, portanto, parecem ter maior apelo para a

67
Em outra passagem, Ribeiro retoma novamente a questão da imaginação, ao abordar as alabardas dos
arqueiros do Paço: “Agora, imaginem vê-los brandidos por homens altos, possantes e barbados, de caras de
poucos amigos, quem não fica assim meio esquisito (...) e não sente aquele calafrio torturante dos grandes
momentos?” (Ribeiro, 1945: 102).
68
Curiosamente, o papel das pinturas históricas na construção da visualidade do passado nacional não é
explorado pelo narrador. Ele aponta brevemente que, na Sala Almirante Barroso, “dois grandes quadros

1745
interpelação aos visitantes. Na observação de um conjunto de imagens de Jesus Cristo, o
repórter afirma que “o Cristo mongol e o italiano (...) denunciam esta influência [do meio],
mesmo às pessoas desprovidas de senso crítico ou pouco observadoras” (Ribeiro, 1945: 107).
Assim, nas entrelinhas, os objetos seriam o mais importante meio de educação de um povo
inculto ou desatento, no caso, o brasileiro.

Assim, esta reportagem é uma fonte importante para compreender as transformações


no campo ocorridas no pós-Vargas, que indicaram o fortalecimento do papel educativo dos
museus, a maior participação do Estado na gestão e na formação de coleções, a construção de
um projeto político-pedagógico no interior do campo museal, em diálogo, mas não
condicionado, à política patrimonial do SPHAN. Indica, ainda, um esforço por parte do MES
em divulgar a função educativa do MHN, o que não é facilmente perceptível nos relatórios da
própria instituição, que indicam uma subvalorização do trabalho pedagógico e de
atendimento.

Um relatório geral do MHN, organizado no período de 1930 a 1944, sem assinatura,


reforça este realinhamento da instituição a partir do governo Vargas, com maior ênfase no
potencial pedagógico e cívico. O trecho é longo, mas permite acompanhar o diagnóstico sobre
os novos rumos propostos:

Um dos aspectos bem expressivos da cultura brasileira nos nossos dias é a ação cada
vez mais ampla dos museus na simpatia e na curiosidade popular. O Brasileiro, o
simples homem da rua, é hoje uma creatura que visita museus, sentindo-se atraído e
dominado pelos ensinamentos ou pelas sugestões que se encerram nessas casas
veneráveis e silenciosas. Esse gosto do nosso público em visitar museus acentua-se e
propaga-se a todas as classes. Não é mais apenas o estudioso, o erudito ou o
pesquisador apaixonado que percorre as nossas galerias de arte ou de história. São
também os estudantes, o menino da escola, o jovem da academia, ou ainda o
operário, nas suas férias dominicais, que se demoram na contemplação das peças e

despertam logo a atenção do visitante”, referindo-se aos quadros “Batalha Naval do Riachuelo” e “Passagem do
Humaitá”, ambos de Victor Meirelles. Logo a seguir, descreve minuciosamente um típico objeto-relíquia - o
modelo da fragata Amazonas - feito com pedaços de madeira supostamente originais. Nas demais descrições, as
pinturas europeias são valorizadas como indício de civilidade dos colecionadores brasileiros, com foco em seu
valor artístico, e não tanto histórico. A única fotografia do artigo que valoriza as pinturas é a referente à Sala
Almirante Barroso, onde é possível visualizar as telas referidas acima, dispostas uma ao lado da outra, com um
separador para o visitante não ultrapassar determinado ponto de observação.

1746
relíquias, que enriquecem as coleções oficiais. (...). É um museu ainda jovem,
considerado no entanto um dos mais importantes do continente, por sua organização
e pela riqueza de suas secções. É o Museu histórico, justamente considerado a Casa
do Brasil” (sic) (...)69.

Desse modo, o trecho torna patente a nova situação política do MHN frente à
expansão do projeto político-pedagógico do MES, em particular àquele levado a cabo pelo
SPHAN por meio da criação de novos museus. Era um momento estratégico para demarcar o
papel do MHN como “o museu histórico”, “a Casa do Brasil”, em um contexto de
concorrência por público, prestígio, doações e, claro, orçamento estatal. Chamava-se atenção,
assim, para uma democratização do MHN, pois até mesmo o simples homem de rua, seria, à
época, “uma criatura que visita museus”. Entretanto, a justificativa da legitimidade
institucional reside ainda no saber técnico e na coleção.

No cenário mais geral, a década de 1950 foi marcada pelo reforço da tendência
educativa dos museus. Indícios de tal movimento foram a edição de livros, a realização de
estágios para professoras no MHN, a maior aproximação com as escolas e a promoção de
eventos. Importa perceber quais propostas pedagógicas essa literatura trazia para o campo.

Os livros publicados por F. Trigueiros (1955; 1958) revelam a tentativa de organizar


as premissas de uma proposta pedagógica, embora a maior parte deles seja dedicada à
listagem dos museus existentes no país, com informações básicas sobre o seu funcionamento.
A preocupação com a educação popular, ainda que não conceitualizada, demonstra um
deslocamento significativo no campo. Era preciso capacitar os museus a lidar com diversos
públicos, não apenas com os eruditos e com os pesquisadores, habittués dos museus. Para o
autor, o museu teria duas finalidades básicas, a primeira relacionada ao objeto e ao documento
(recolher, classificar, colecionar, conservar e expor) e a segunda, aqui há algum avanço,
promover estudos, pesquisas, cursos, conferências e divulgação. A novidade é a necessidade
de divulgação, que parece atrelada ao convite para o grande público.

Nessa obra, o museu é percebido como complemento da escola e com o potencial de


ilustrar o real. Assim, o professor de História, por exemplo, levaria seus alunos para ver como

69
Relatórios administrativos sem autoria. Tomo 1930-1944. AI/MHN.

1747
foi o processo de Independência, após as aulas teóricas em classe. Esta concepção seria
reforçada em todo o período, conforme exposto a seguir. Importa aqui, no entanto,
acompanhar a categorização dos públicos realizada pelo autor. Na chave interpretativa de que
cultura é conhecimento, Trigueiros confia no potencial do museu em receber diversos
públicos, “(…) indo do analfabeto cioso de conhecer alguma coisa, e daí, numa gradação de
conhecimento, até os indivíduos da mais elevada cultura” (Trigueiros, 1955: 8). Assim, a
instituição deveria oferecer, em migalhas ou grandes bocados, informação.

Afora publicações, surgiram seminários e eventos para o debate museológico. O


evento de maior alcance político, o Seminário Regional sobre a função educativa dos museus,
ocorreu em 1958, no Rio de Janeiro, com a promoção do ICOM. O encontro promoveu
intensos debates sobre o sentido pedagógico dos museus, ainda que, pelas fontes disponíveis,
tenha reunido praticamente museólogos, sem o diálogo com educadores e outros profissionais.
O que interessa ressaltar é que, principalmente no pós-guerra, a função social dos museus é
assunto reiteradamente discutido, com certo consenso em relação ao papel educativo, embora
isso obscureça a enorme variedade de concepções de educação que estavam em disputa. Na
América Latina, discutir o papel educativo envolvia, logicamente, outras pautas da agenda
pública, como desenvolvimento, modernização, lutas por devolução de bens culturais,
crescimento dos movimentos sociais, crescente urbanização, dentre outros.

De acordo com Judite Primo (1999), o Seminário enfatizou alguns pontos, como a
ideia do museu como extensão da escola e o fortalecimento, portanto, da educação formal. O
Seminário, que durou ao menos uma semana e envolveu diferentes instituições museológicas,
embora sediado no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM- RJ), criou um
programa que incluía conferências, debates e visitas aos museus da capital. O relatório final
do Seminário, coordenado por George Henri-Rivière, então diretor do ICOM, aponta que:

O museu pode trazer muitos benefícios à educação. Esta importância não deixa de
crescer. Trata-se de dar à função educativa toda a importância que merece, sem
diminuir o nível da instituição, nem colocar em perigo o cumprimento das outras
finalidades, não menos essenciais: conservação física, investigação científica,
deleite, etc. (Ata do Seminário de 1958, apud Primo, 1999: 8)

1748
Percebe-se, aqui, uma sutil interlocução com o receio do campo da museologia de
perder sua especificidade enquanto conhecimento científico, nos moldes da época, qual seja, a
relação com o objeto museológico. Era preciso conciliar, “sem colocar em perigo”, as
atividades rotineiras dos conservadores com a educação.

O Museu Histórico Nacional, representado por D. Nair Moraes de Carvalho, teve


papel significativo nesse evento e reforça, a partir daí, sua vocação pedagógica, sobretudo no
Curso dos Museus. Os congressistas criticaram a museografia da época, marcada pelo excesso
de etiquetas e a falta de atratividade diante das novas tecnologias. O diagnóstico, portanto, era
incorporá-las, além de ressaltar a importância da formação profissional e da aproximação com
os currículos escolares.

Em artigo referenciado, cuja data de publicação é incerta (1947), Nair Carvalho


resumiu os principais pontos da revista Musées et jeunesse, publicada pelo ICOM em 1952, o
que demonstra que, antes mesmo do Seminário, já se discutia teoricamente a educação nos
museus. Como apontado por outros autores, a narrativa construída no artigo “Papel educativo
do Museu Histórico Nacional”, publicado nos Anais da mesma instituição, contribui para
fortalecer o argumento de que não apenas o MHN fazia tudo que era proposto àquela ocasião,
como há muito mais tempo e em contexto de maior de dificuldades e restrições orçamentárias.
De acordo com a autora, “desde os primeiros passos, o MHN revelou seu caráter educativo
(…) Tudo já foi feito, é trabalho de rotina” (Carvalho: 1947: 26). E, para destacar ainda mais
o MHN, aponta que a visitação ainda era gratuita, ao contrário dos museus comentados na
revista do ICOM.

Apesar do caráter auto-elogioso, cumpre apontar as premissas por meio das quais a
autora manifesta assentimento, certamente com repercussão no Curso de Museus, da qual era
coordenadora. O diagnóstico de Henri Fould era, segundo ela, o mais acertado, pois propunha
a criação de departamentos juvenis nos museus já existentes em contraposição à criação de
museus da criança. Criticava também o excessivo foco em exposições temporárias, que
seriam apenas aprovadas em museus de arte, além do emprego abusivo de material
explicativo. Por fim, o autor recomendava turmas pequenas para a visitação.

1749
No mesmo ano de realização do seminário, o Museu Histórico Nacional,
pioneiramente, cria cursos de formação para as professoras do Instituto Nacional de Ensino
Pedagógico (INEP). O convênio envolvia a realização de estágios com duração de seis meses,
com o objetivo de orientar nas visitas escolares aos museus e de auxiliar na organização de
museus escolares nos Estados de procedência, o que indica a preocupação com o efeito
multiplicador da formação. O MHN assume, a partir daí, não somente a formação técnica dos
conservadores, como também a pedagógica de uma boa parte do professorado. Entretanto, a
descrição das atividades realizadas, bem como a exigência de apresentação de uma
monografia ao final do estágio, aponta para uma formação técnica e erudita, pouco ou nada
referenciada na discussão de métodos de ensino-aprendizagem. Interessante observar que, não
coincidentemente, somente em 1959, já na gestão de Josué Montello, há explicitação da
existência do Serviço Educativo, alocado na Seção de História.

Um dado interessante a respeito das tensões entre as atividades técnicas e educativas


no MHN pode ser observado não no relatório anual, mas no cotejamento dos relatórios
setoriais. A respeito da formação de professoras, por exemplo, há forte resistência da Profa.
Octávia de Castro Côrrea de Oliveira, que revela sua incompreensão sobre o sentido do curso,
textualmente: “(…) a organização do programa foi difícil porque não se sabia ao certo qual a
finalidade do estágio [para as professoras primárias]”70. Aqui, também, é possível inferir uma
resistência dupla, no momento em que o MHN passava por transição de gestão, com a posse
de Josué Campello, que não pertencia ao grupo de Barroso. Contudo, há também uma
depreciação das professoras, que não estariam aptas, de acordo com a opinião da técnica, em
compreender as discussões. Em seu relatório, observa que

(…) as bolsistas primárias, de nenhum modo afeitas ao nosso curso, tiveram certa
dificuldade de apreensão apesar do mesmo ter sido elaborado de uma maneira
especial, em que procuramos tirar um pouco da sua parte técnica mais árida,
adequada às pesquisas do conservador de museus71.

70
OLIVEIRA, Octávia de Castro Côrrea. Relatório setorial da I Seção – História. AI/MHN, 1958.
71
Id. ibidem.

1750
Há, claramente, uma hierarquização dos saberes e das áreas de formação. As
professoras teriam dificuldade e pouco interesse nos museus, mesmo com o esforço em
facilitar o curso ao se retirar conteúdos mais áridos, dominados apenas pelos conservadores.
Na fala de Octávia, legitima-se, seguindo as pegadas de Barroso, o saber técnico e científico
do conservador. Portanto, a realização de eventos e a inclinação dos museus para a educação
devem ser percebidas como intencionalidades e indícios de um movimento maior, em grande
parte, externo ao campo dos museus, que demandava maior função social dos mesmos.

Uma clivagem fundamental no seio do MHN, ainda a ser aprofundada, diz respeito aos
impactos da criação da Divisão de História da República, em 196072. Nesse mesmo ano, o
MHN conquista autonomia no organograma federal, ao ser desvinculado do MEC, e
subordina-se diretamente ao Presidente da República. A criação do departamento foi realizada
para gerir o novo Museu da República, criado no governo de Juscelino Kubistchek e
gerenciado por duas conservadoras, Jenny Dreyfus e Terezinha Maria de Moraes Sarmento,
ambas formadas no Curso de Museus.

O interesse do público foi impactante desde o início, embora seja possível questionar
os dados estatísticos da visitação devido à ausência de fontes que sustentem o controle da
mesma. Ainda assim, o relatório do mesmo ano aponta que, em 20 dias, acorreram mais de
15.000 visitantes, número um pouco inferior à média anual do MHN. Tal fato, sucedido nos
demais relatórios, sem dúvida, traria incômodo e deslocamentos na relação com o público,
embora aqui não seja possível acompanhar estes desdobramentos.

Importa destacar, apenas, que, a partir de então, os relatórios do MHN apontam para a
criação de maior infraestrutura de recepção do público, a preocupação com o controle
estatístico, a incorporação de plano de atividades de cada seção (a partir de 1962), dentre
outros. O sucesso do Museu da República traria desafios para os conservadores repensarem a
atuação do próprio MHN, ainda que seja no relatório do primeiro que as inovações sejam
implementadas, como a realização de várias exposições temporárias, concursos escolares com

72
Ver a valiosa e pioneira contribuição de FREICHEIRAS, Kátia. Do Palácio ao Museu: a trajetória pedagógica
do Museu da República, do governo bossa nova à ditadura civil-militar (1960-1977). IBRAM: 2015.

1751
prêmios, instalação de música de época nas salas, publicação de catálogos–guias por sala,
dentre outras iniciativas.

Neste breve mapeamento, é possível perceber, assim, importantes deslocamentos no


projeto pedagógico do Museu Histórico Nacional, que vão impactar o cenário museológico de
diferentes formas.

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1753
TRILHANDO CAMINHOS: ITINERÁRIOS DA REDE DE EDUCADORES EM
MUSEUS DO RIO GRANDE DO SUL – REM-RS (2010 A 2015)

Marcia Isabel Teixeira de Vargas*


Camila Alves Quadros**
**Universidade Federal do Pará

RESUMO: O presente artigo relata a trajetória de constituição da Rede de Educadores em Museus do Rio
Grande do Sul - REM-RS (2010-2015). Trata-se de um estudo de caso de abordagem quali-quantitativa,
descritiva e com aplicação de instrumentos de pesquisa como método de coleta de dados, aplicado aos parceiros
da REM-RS que assumiram coordenações durante o período delimitado nesta pesquisa e aos coordenadores das
REMs que atuam em outros estados. Este estudo apresenta referenciais teóricos que fortalecem os aspectos do
funcionamento em rede e denotam a criação de diversas Redes de Educadores em Museus a nível nacional. Esta
investigação também realizou um levantamento das formas de organização das Redes de Educadores em Museus
em outros estados, a fim de perceber as diferenças e semelhanças com a trajetória da REM-RS. Conclui com a
análise e a avaliação de como se dá a articulação da REM-RS, uma rede voltada para os educadores em museus,
com os trabalhadores dessas instituições do estado, abordando os problemas e potencialidades de se trabalhar em
rede.

PALAVRAS-CHAVE: Museologia; Educação em Museus; Rede de Educadores em Museus; Rede de


Educadores em Museus do Rio Grande do Sul.

ABSTRACT: The actual article is to evaluate the constitution trajectory of Rede de Educadores em Museus do
Rio Grande do Sul – REM-RS (2010-2015). This case study used methods of data collection as qualitative and
descriptive approach and questionnaires applied to REM-RS partners that who took over coordination positions
during the delimited period in this research and also to REMs’ coordinators that work in another states. This
study presents theoretical frameworks that strengthen research, that underlie aspects of networking and denote
the creation of several Educator’s Network in Museums nationally. This research also conducted a survey on the
forms of organization of Redes de Educadores em Museus in other states, in order to understand the differences
and similarities with the trajectory of REM-RS. Concludes with the analysis and evaluation of how is the
relationship of REM-RS, a network geared for educators in museums, with workers of state institutions,
addressing the problems and potential of working in network.

Keywords: Museology; Education in Museums; Educator’s Network in Museums; Rede de Educadores em


Museus do Rio Grande do Sul.

1754
INTRODUÇÃO

A Educação em Museus é a temática que conduz esta investigação, e tem como


estímulo a organização em Rede. O Foco é a trajetória da Rede de Educadores em Museus do
Rio Grande do Sul (REMRS).

Para compor o histórico desta Rede, ainda em fase de projeto de pesquisa, do qual
iniciamos com a revisão das publicações que versam sobre a história das Redes de
Educadores em Museus, constituídas nas diversas regiões e estados que compõe o nosso país.
Nesta fase foram identificadas quinze Redes73, com informações em Blogs, páginas de
Facebook, artigos, monografias e teses, escritas e organizadas por profissionais que atuam no
campo da Educação em Museus, ou que vinculam as suas pesquisas à Museologia.

A temática, fio condutor da pesquisa, tomou o aporte da Educação em Museus, e


tem como foco o itinerário das Redes, mais especificamente, trilhando o caminho da Rede de
Educadores em Museus do Rio Grande do Sul (REM-RS), a partir da sua criação em 2010 até
o ano de 2015. Este trabalho é o resultado de uma pesquisa realizada no período de março de
2015 a maio de 2016. Trata-se de um estudo de caso, uma pesquisa de caráter bibliográfico e
documental, com abordagem quali-quantitativa, descritiva, com aplicação de questionários
para coleta de informações.

A realização desta pesquisa se justifica por se tratar de um enfoque inédito sobre este
tema no RS, e que poderá estimular novas abordagens e pesquisas no campo da Educação em
Museus em relação à REM-RS, poderá contribuir para os projetos e as formas de atuação da
REM-RS, auxiliando na ampliação do repertório com reformulações ou na criação de novas
ações e formas de comunicação em rede.

A pesquisa tem como objetivo geral avaliar a trajetória de constituição da Rede de


Educadores em Museus no Rio Grande do Sul (REM-RS). Os objetivos específicos foram: 1)
Mapear as Redes de Educadores em Museus no Brasil, para identificar em quais regiões do
país estão constituídas, qual a estrutura e a metodologia de trabalho utilizada; 2) Investigar os

73
O termo Redes, com o uso da letra maiúscula refere-se à rede que funciona como espaço de troca e interação
entre educadores de museus do RS e rede escrita com letras minúsculas, refere-se à ferramenta utilizada para
agrupar pessoas em prol de algum objetivo, causa ou propósito.

1755
conceitos de rede, elencando os pressupostos teóricos para refletirmos as formas de
comunicação e as influências destas modalidades na criação e no funcionamento da REM-RS.

Diante do exposto acima, seguimos no próximo item com os pressupostos teóricos,


os quais permitiram organizar e estruturar os argumentos da pesquisa.

Pressupostos teóricos - educação em museus, redes e redes sociais

Na elaboração dos fundamentos teóricos e para compreensão do Campo da Educação


em Museus, recorremos a duas premissas da autora Waldisa Rússio Camargo Guarnieri, sobre
o papel do museólogo enquanto um “trabalhador social” e da importância emancipadora
alcançada aos indivíduos, na “inserção do museu como local de transformação social”
(GUARNIERI, [1981], 2010, p. 24-25).

As práticas museais, diante de inquietudes sociais e culturais, inserem-se nas


transformações dando “lugar a uma entidade aberta sobre o meio, consciente da sua relação
orgânica com o seu próprio contexto social” (MOUTINHO, 1993, p. 5).

Na Mesa-Redonda de Santiago do Chile74 (1972), considerou-se a necessidade em


acolher estas transformações pela preservação dos bens culturais, em participar ativamente na
emancipação cidadã pela conscientização dos problemas sociais.

Na Declaração de Caracas75 (1992), constata-se a retomada dos pressupostos


discutidos há vinte anos em Santiago do Chile de forma a refletir, em seus postulados, a
função pedagógica e dialógica dos museus com a comunidade em que estão inseridos.

74
ICOM, 1972, I. MESA-REDONDA DE SANTIAGO DO CHILE - ICOM, 1972. Cadernos de
Sociomuseologia, América do Norte, 15, Jun. 2009. Disponível em:

<http://revistas.ulusofona.pt/index.php/cadernosociomuseologia/article/view/335/244>. Acesso em: Junho/2016.


75
Em 1992, nova e profunda revolução nas bases da disciplina museológica ocorre em Caracas, onde são
reafirmados a prioridade à função sócio-educativa do museu, o estímulo à reflexão e ao pensamento crítico e a
afirmação do museu como canal de comunicaçã (DESVALLÉE, 1992, apud CÂNDIDO, p. 250-251).

1756
Assim encontramos, no texto Os objetivos do conhecimento museológico, o que
manifesta Waldisa Rússio (1983), em relação ao “tratamento interdisciplinar, sistemático e
interativo entre os diferentes campos do conhecimento museológico” (BRUNO, 2010, p. 133-
134), e a própria “ação museológica” (Ibidem, p. 134).

Desse modo, é necessário enfatizar que “a multiprofissionalidade nos museus não é


feita por exclusão, ao contrário” (GUARNIERI, 1983 apud BRUNO, p. 134), destaca a
exigência profissional e a qualificação “específica no domínio da ciência museológica”
(Ibidem, p. 134). Em cada setor atribui-se uma função que poderá vincular-se à pesquisa, à
conservação, à comunicação e a educação, a fim de cumprir com as demandas ligadas à
missão e tipologia da instituição.

Destacam-se, neste sentido, as contribuições de Waldisa Rússio (1981) em relação ao


Fato Museal, objeto de estudo da Museologia que pode ser definido como a relação profunda
entre o homem e a realidade, configurando-se no “fato museológico” (GUARNIERI, 1981
apud BRUNO, p. 123), relação esta que se processa “num cenário institucionalizado, o
museu” (GUARNIERI, 1990 BRUNO, p. 203).

Cristina Bruno (1996) propõe pensar a Museologia, a partir do pensamento de


Waldisa Rússio, como a disciplina que se ocupa da análise e registro do comportamento
humano do uso e reconhecimento do seu patrimônio. Compartilham desta tendência e
pensamento museológico seus interlocutores “Stránský, Gregorová, Gluzinski, Mensch e
Sola” (BRUNO, 1996, p. 15).

No artigo Teoria museológica: Waldisa Rússio e as correntes internacionais,


(CÂNDIDO, 2010, p. 146), observa a aproximação do pensamento entre Guarnieri e Varine
(CÃNDIDO, 2010) em que a existência dos museus está para os homens e não estão limitados
à guarda e conservação dos objetos, pois “muito mais do que existirem para os objetos, os
museus devem existir para as pessoas” (GUARNIERI, 1977 apud CÂNDIDO, p. 146).
Este fazer museológico corrobora com o artigo de Hugues de Varine (2005), O museu comunitário é
herético? Na medida em que este traça um paralelo entre o tratamento destinado ao objeto da Museologia nas

1757
relações entre o homem, o patrimônio e o território. Sobretudo, a partir do movimento da Nova Museologia 76
(CÂNDIDO, 2003; SOARES, 2008), com o surgimento dos museus comunitários e tipologias afins.

Em Denise C. Studart Studart inscreve-se o objetivo da Educação e da Educação em


Museus em “um sentido amplo, é oferecer possibilidades para a comunicação a informação, o
aprendizado, a relação dialética e dialógica educando/educador, a construção da cidadania, e o
entendimento do que seja identidade” (STUDART, 2004, p. 37).

Assim, torna-se necessário esclarecer o conceito de rede e compreender como


funcionam as redes sociais uma vez que este trabalho tem como foco a análise de uma
determinada Rede que funciona como espaço de troca e interação entre educadores em
Museus do RS. Os autores André Lemos e Pierre Lévy (2010), por um viés filosófico, tratam
da Ciberdemocracia e as redes sociais, o Ciberespaço.

É necessário entender ao que nos adverte Félix Guattari (2009), na obra As três
ecologias, em relação à deterioração do mundo, e das relações sociais, alerta-nos que “As
formações políticas e as instâncias executivas parecem totalmente incapazes de apreender essa
problemática no conjunto de suas implicações” (GUATTARI, 2009, p. 8).

Para tanto, constata-se que na contemporaneidade, os grupos utilizam-se dos meios


de comunicação no sentido de efetivarem as suas ações sociais, no que o autor denomina de
“grupos-sujeito autorreferentes que se abrem amplamente ao socius e ao cosmos” (LEMOS;
LÉVY, 2010, p. 117).

Observa-se, conforme André Lemos (2007), que existem várias nomenclaturas em


para o espaço virtual: a cibercultura, o ciberespaço e a cibersocialidade. Todas convergentes
pelo uso das tecnologias em redes sociais e determinam maneiras de relacionamentos sociais.
Concorda de igual forma, com a definição do termo que representa o agrupamento no

76
Nova Museologia: testemunhos materiais e imateriais serviriam a explicações e experimentações, mais que à
formação de coleções; destaque para a investigação social enquanto identificação de problemas e de soluções
possíveis; objetivo de desenvolvimento comunitário; o museu para além dos edifícios – inserção na sociedade;
interdisciplinaridade; a noção de público dando lugar à de colaborador; a exposição como espaço de formação
permanente ao invés de lugar de contemplação.
Movimento de cunho ideológico que surge na década de 1980, a Nova Museologia, incorpora em suas ideias
centrais a noção de um museu aberto, voltado para a vida humana e plenamente comprometido com os
problemas sociais das comunidades. (CÂNDIDO, 2003, p. 26).

1758
espaço virtual: “comunidade virtual é simplesmente um grupo de pessoas que estão em
relação por intermédio do ciberespaço.” (LEMOS; LÉVY, 2010, p. 101).

Diante de tantas possibilidades, destacando as questões e problemas voltados aos


profissionais que se dedicam à Educação em Museus, no que sinaliza Manuelina Duarte
Cândido:
Uma ajuda importante para vencer águas revoltas é a constituição de redes e
sistemas de museus, sendo estes considerados como redes verticalizadas. As redes,
horizontais ou verticais, promovem vantagens para os seus componentes em termos
de ajuda mútua e troca de informações (CÂNDIDO, 2014, p. 52).

Consideramos importante pensar, em recursos relevantes para fortalecer e


amparar a Educação em Museus, como utilizar-se das tecnologias para nutrir de informações
na formação de uma inteligência coletiva77 (LEMOS; LÉVY, 2010, p. 87), que fortaleça o
campo da Museologia.

As redes de educadores em museus no brasil

No Brasil contamos atualmente com quinze Redes de Educadores em Museus.


Os grupos, que se adensam a cada Fórum Nacional de Museus78, articulam-se a partir de seus
interesses, por vislumbrarem distintas e significativas possibilidades de articulação, troca de
informações e engajamento profissional.

Quadro 1: Levantamento Cronológico de Criação das REMs

77
A Inteligência coletiva é uma inteligência distribuída por toda parte, incessantemente valorizada, coordenada
em tempo real, que resulta em uma mobilização efetiva das competências (LEMOS; LEVY, 2010, p. 87).
78
Em sua 6ª edição (Belém/PA), O Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), autarquia federal vinculada ao
Ministério da Cultura, responsável pelas políticas públicas para o setor museal no Brasil, realiza a cada dois anos
o Fórum Nacional de Museus (FNM). Evento de abrangência nacional, o fórum tem por objetivo refletir, avaliar
e delinear diretrizes para a Política Nacional de Museus (PNM), consolidando as bases para a implantação de um
modelo de gestão integrado dos museus brasileiros, por meio do Sistema Brasileiro de Museus (SBM).
Disponível em: ˂http://fnm.museus.gov.br/sobre-o-6o-fnm/˃. Acesso em maio/2016.

1759
Ano/Rede 2003 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015

REM-RJ x

REMIC-DF x

REM-CE x

REM- x
PARAÍBA

REM-SE x

REM-SC x

REM-RS x

REM-BA x

REM-MA x

REM-PA x

REMIC-MS x

REMIC-PE x

REM-GOIÁS x

REM-SP x

RIMC x x

Fonte: elaborado por (2016)

Quadro 2: Características da Organização Institucional

Nome/ Nomenclatura Carta de Regimento Estatuto Outros

1760
Rede Princípios Interno

REM-BA Rede de Educadores em Sim


Museus do Estado da Bahia

REM-CE Rede de Educadores em


Museus do Ceará

REM- Rede de Educadores em Sim Ficha de


GOIÁS Museus de Goiás Cadastral

e Vídeo
Institucional

REMIC- Rede de Educadores em Sim Sim


DF Museus e Instituições
Culturais do DF

REMIC- Rede de Educadores em


MS Museus e Instituições
Culturais de Mato Grosso do
Sul

REMIC- REDE DE EDUCADORES DE Sim


PE MUSEUS E INSTITUIÇÕES
CULTURAIS EM PERNAMBUCO Minuta

REM-MA Rede de Educadores em Sim Ficha de


Museus do Maranhão Inscrição

REM-RJ Rede de Educadores em Roteiro de


Museus e Centros Culturais observação
visita técnica

REM-RS Rede de Educadores em Sim Sim Sim


Museus do Rio Grande do Sul
Minuta Minuta

REM-SE A Rede de Educadores em


Museus de Sergipe

REM-SC Rede de Educadores em Sim Pesquisa


Museus de Santa Catarina Levantamento

1761
de Perfil

REM- Rede de Educadores em


PARAÍ- Museus da Paraíba

BA

REM-PA Rede de Educadores em


Museus do Pará

REM-SP Rede de Educadores em Pesquisa de


Museus de São Paulo Avaliação

RIMC Rede Informal de Museus e Sim


Centros Culturais de Belo
Horizonte e Região
Metropolitana

Fonte: elaborado por xxxx (2016)

No Grupo da REM Nacional foi possível buscar as informações e meios de


comunicação das Redes e dos administradores das redes sociais: Blog e Facebook. No sub
itens, pretende-se discorrer sobre as formas de atuação das REMs; como e quais ferramentais
da internet são considerados como meios de comunicação entre os profissionais e inscreve-se
nesta parte do trabalho um breve histórico das Redes existentes no Brasil.

Para compreender as formas de trabalho e estruturas das Redes, foram realizadas


pesquisas nas páginas virtuais e pelos meios de comunicação acima descritos, sistematizados,
de forma descritiva e qualitativa as informações nos subitens a seguir.

Rede de Educadores em Museus do Rio de Janeiro

A primeira Rede criada no Brasil, conforme informações dass coordenadoras Marcelle


Pereira (2004-2008), Bárbara Harduim (2008 a 2009), Aparecida Rangel e Iloni Seibel (2011
– 2013 pelo grupo gestor – Aparecida Rangel; Bárbara Harduim; Maria Iloni Seibel), das
quais gentilmente forneceram os dados necessários e imprescindíveis para esclarecer os fatos

1762
de como tudo começou e como foi nos anos dos quais estiveram à frente da gestão da REM-
RJ (doc. eletr., 2016). Estas contataram via messenger79 no Facebook e por e-mail para
relatar um pouco desta história.

Faz-se relevante mencionar que a ideia de rede, surgiu a partir dos contatos entre
Marcelle Pereira e Magaly Cabral, uma referência nacional em Educação em Museus, que
apresentou para um grupo de Educadores em Museus do Rio de Janeiro uma organização
americana chamada Group for Education in Museums (GEM)80. Conforme Marcelle Pereira,
uma das fundadoras da REM-RJ, para não se utilizar a designação “Grupo”, optou-se pela
palavra “Rede”. (FACEBOOK REM-RJ, 2016)81.

Na averiguação das publicações sobre a Rede de Educadores em Museus do Rio de


Janeiro, consta a apresentação de Fernanda Santana Rabello de Castro (2015), entitulada A
experiência da Rede de Educadores em Museus e Centros Culturais do Rio de Janeiro 2003-
201582. Neste trabalho a autora descreve que a REM-RJ surgiu em 2003, com o objetivo em
promover encontros para compartilhar ideias, refletir sobre as práticas dos profissionais e
formar um grupo para estudos na área da Educação em Museus.

No texto, da referida apresentação, constam identificados os representantes e os


períodos assumidos em distintos modelos de coordenações no período de 2011 a 2016: a)
Aparecida Rangel, Bárbara Harduim e Maria Iloni Seibel (2011 – 2013), e atualmente
composto por: b) Andrea Costa, Diogo Tubbs, Fernanda Castro e Kátia Frecheiras (2014 a
2016).

As formas de estruturação dos grupos de coordenadores foram assim identificadas: de


2003 a 2008 – com um coordenador geral e colaboradores; e entre 2009 a 2016 em forma de

79
Programa de mensagens instantâneas, conhecido como "MSN Messenger" ou, simplesmente, "Messenger".
80
GEM é uma organização de caridade adesão voluntária mais de 65 anos de idade, com 2.000 membros em
todo o mundo, 90% dos quais são educadores património profissionais que trabalham no Reino Unido. GEM
atua como "a voz para a aprendizagem do património", defendendo a excelência em património e aprendizagem
cultural para melhorar a educação, a saúde eo bem-estar do público - de todas as idades, habilidades e
experiências. DISPONÍVEL EM: HTTP://WWW.GEM.ORG.UK/INDEX.PHP. Acesso em abril de 2016.
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Disponível em: ˂https://issuu.com/sisem-sp/docs/fernanda_castro˃. Acesso em: março/2016 e Disponível em:
˂https://www.youtube.com/watch?v=g0puUukkDjE˃. Acesso em março/2016.

1763
um comitê gestor, com representantes de três âmbitos: Museu Público Estadual; Museu
Público Municipal; e Museu Privado.

Em outra fonte foi possível confrontar e complementar as informações, no artigo de


Aparecida Rangel; Bárbara Harduim; e Maria Iloni Seibel (2009), com o título A Rede de
Educadores em Museus do estado do Rio de Janeiro: uma contribuição ao campo da
Educação não-formal, nele é possível constatar a promoção de um “espaço de informação,
formação e construção conjunta do conhecimento” (RANGEL; HARDUIM; SEIBEL, 2009,
s.n.).

E em relação a tipologia dos encontros, esclarecem que foi estipulado, desde de 2009,
modelos distintos, quais sejam: Encontros temáticos; Visitas técnicas; Conversa filosófica; e
Seminário.(RANGEL; HARDUIM; SEIBEL, 2009, p. 2)83.

A Rede de Educadores do Rio de Janeiro, tem um Blog84 e outro espaço virtual


utilizado é uma Fanpage85 do Facebook86. Em ambas estão expostos a estrutura de
divulgação de várias modalidades e tipologias de eventos.

Rede de Educadores em Museus do Ceará

A Rede de Educadores em Museus do Ceará (REM – CE) teve a sua primeira reunião
em abril de 2008 e conforme consta no Blog da REM – CE87, postado em 16 de novembro de
2008.

Em janeiro de 2013 foi anunciado, no Blog, o local e data para outra eleição de
coordenação:

83
(RANGEL; HARDUIM; SEIBEL, 2009, p. 2, grifos das autoras).
84
Disponível em: ˂http://remrj.blogspot.com.br/˃ Acesso em: agosto/2015.
85
fanpage ou página de fãs é uma página específica dentro do Facebook direcionada para empresas ou marcas.
Disponível em: ˂http://www.aldabra.com.br/artigo/o-que-e-uma-fanpage˃. Acesso em: agosto/2015.
86
Disponível em: ˂https://www.Facebook.com/REM-RJ-125006930912175/˃. Acesso em: agosto/2015.
87
Disponível em: <http://rem-ce.blogspot.com.br/search?updated-min=2013-01-01T00:00:00-08:00&updated-
max=2014-01-01T00:00:00-08:00&max-results=5˃. Acesso em janeiro/2016.

1764
A Rede de Educadores em Museus do Ceará - REM CE informa que o local da
Eleição para Coordenação da REM CE será no Miniauditório do Memorial da
Cultura Cearense, no Centro Cultural Dragão do Mar de Arte e Cultura, às 17h, dia
14 de janeiro, conforme data divulgada no Edital lançado na reunião do dia 03 de
dezembro de 2012 e divulgado por e-mail. (BLOG REM-CE, 2013)

As postagens da coordenação da REM-CE, eram realizadas no Blog, mas em


03/maio/2013 passou a ser utilizada uma Fanpage· do Facebook88:

Rede de Educadores em Museus da Bahia

A criação da Rede de Educadores em Museus da Bahia foi aprovada numa plenária


por setenta e um participantes, por ocasião do 2º Encontro Baiano de Museus, em novembro
de 2010. A Professora Drª. Maria Célia Teixeira Moura Santos foi quem estimulou este
processo com a palestra “Fomento e Implantação da Rede de Educadores em Museus” no
referido encontro (BLOG REM-BA, 2012).

Conforme os coordenadores da REM-BA, Jorge Ramos e Cristina Melo (2011), no


texto intitulado A formação Rede de Educadores em Museus (REM) na Bahia,

Cristina destaca que, para a rem, instituições educativas não são somente colégios:
“toda e qualquer instituição com projetos educativos são prioridade nos nossos
planejamentos. ONG’s e projetos como AXÉ e OI KABUM, por exemplo, também
são educativas”, afirma. (Melo; Ramos, 2011, s.n.)

A Rede de Educadores em Museus do Estado da Bahia tem o seu Blog89. Existe uma
Fanpage no Facebook90.

88
Disponível em: ˂https://www.Facebook.com/rededeeducadores.remce?fref=ts˃. Acesso em março/2016.
89
Disponível em: ˂http://rem-bahia.blogspot.com.br/search?updated-min=2012-01-01T00:00:00-
02:00&updated-max=2013-01-01T00:00:00-03:00&max-results=4˃. Acesso em: janeiro/2016.
90
Disponível em: <https://www.Facebook.com/Rede-de-Educadores-em-Museus-da-Bahia-REM-BA-
440647269320954//>. Acesso em: janeiro/2016.

1765
Rede de Educadores em Museus e Instituições Culturais do Pernambuco

A Rede de Educadores em Museus e Instituições Culturais do Pernambuco REMIC-


PE, foi concebida em 2008. Consta no Blog91 da Rede que em 18 de julho de 2008 aconteceu
o primeiro encontro, no Museu da Abolição, com uma extensa pauta entre sugestões para o
planejamento do biênio 2008-2010 e indicação de um comitê consultivo, determinando
critérios para a escolha dos membros. A REMIC-PE utiliza logotipos em preto e branco que
estão expostos no Blog e na Fanpage do Facebook92:

Nas informações coletadas no Blog (2012-2015), constam encontros com oficinas e


temas específicos para reflexão, a participação da Rede em parcerias com outras instituições,
como por exemplo o ENCONTRAM (2012) e Ação da REMIC na 23ª. CONFAEB (2013).

Rede de Educadores em Museus do Distrito Federal

A Rede de Educadores em Museus e Instituições Culturais do Distrito Federal


(REMIC-DF) foi criada em 2008. Consta em seu Blog93 uma referência ao público alvo que
engloba guias turísticos, professores, estudantes, educadores, mediadores, técnicos em amplia
ao público que se interesse pela temática do trabalho em instituições culturais e museus.
(BLOG REMIC-DF, 2009). Consta no Blog da REMIC-DF que as postagens foram até o ano
2013. Conforme Rafaela Gueiros, umas das lideranças desde a data da sua criação que,

A REMIC do DF realmente não existe mais. Mantivemos, eu e Ana Lourdes, por um


tempo após o conselho gestor se esvaziar por compromissos dos seus integrantes.
(FACEBOOK GUEIROS, 2016)

Rede de Educadores em Museus da Paraíba

91
Disponível em: ˂http://remic-pe.blogspot.com.br/2008_08_01_archive.html˃. Acesso em: janeiro/2016.
92
Disponível em: ˂https://www.Facebook.com/remic.pernambuco>. Acesso em: janeiro/2016.
93
Disponível em: ˂http://remic-df.blogspot.com.br/search?updated-min=2009-01-01T00:00:00-02:00&updated-
max=2010-01-01T00:00:00-02:00&max-results=27˃. Acesso em janeiro/2016.

1766
A Rede de Educadores em Museus do estado da Paraíba (REM-Paraíba) teve início em
06 de outubro de 2009, que ocorreu no Museu de Arte Assis Chateaubriand de Campina
Grande e com o aporte da Fundação Universitária de Apoio ao Ensino, Pesquisa e Extensão.
As informações coletadas para a presente pesquisa têm origem no Blog94, na página do
Facebook95 e na Dissertação de Mestrado de Karlene Roberto Braga de Medeiros (2013),
intitulada Descortinando Bastidores: o olhar dos usuários internos dos museus paraibanos.

Nas postagens, do Blog da REM-Paraíba, percebe-se a preocupação em apresentar


uma agenda de reuniões, com uma prévia organização em cada encontro, informando a pauta
a ser discutidada. (BLOG REM-PB, 2011).

Rede de Educadores em Museus de Santa Catarina

A Rede de Educadores em Museus de Santa Catarina foi gerada, em 13 de abril de


2010, um mês antes da REM-RS, conforme convite e ata de descrição do 1º. Encontro96, que
contou com a presença de Magaly Cabral, Diretora do Museu da República –
RJ/IBRAM/MinC, integrante da REM/RJ. (BLOG REM-SC, 2011).

Consta no Blog97 desta Rede, que os profissionais envolvidos promovem encontros


mensais com educadores em museus e espaços culturais, ofertando também, essa
possibilidade ao público interessado98. (BLOG REM-SC, 2010).

A REM de Santa Catarina também dispõe de normas explicitas que determinam os


vínculos profissionais na formação do grupo de gestores que seja educador em museus,
atuante em espaços de memória e que esteja comprometido com as reflexões museológicas.
(BLOG REM-SC, 2015).

94
Disponível em: ˂http://remparaiba.blogspot.com.br/˃. Acesso em janeiro/2016.
95
Disponível em: ˂https://www.Facebook.com/rem.paraiba?fref=pb_friends˃. Acesso em:janeiro/2016.
96
Disponível em: ˂ http://remsc.blogspot.com.br/search?updated-min=2011-01-01T00:00:00-02:00&updated-
max=2012-01-01T00:00:00-02:00&max-results=27˃. Acesso em: janeiro/2016.
97
Disponível em: ˂http://remsc.blogspot.com.br/search?updated-min=2011-01-01T00:00:00-02:00&updated-
max=2012-01-01T00:00:00-02:00&max-results=27˃. Acesso em janeiro/2016.
98
Disponível em: ˂http://remsc.blogspot.com.br/p/avaliacao-remsc-gestao-20102011.html˃. Acesso em:
maio/2016.

1767
A Rede de Educadores em Museus de Santa Catarina tem uma página do Facebook e
observa-se que ambos os meios de comunicação mantêm-se atualizados.

Rede de Educadores em Museus e Instituições Culturais de Mato Grosso do Sul

Em 04 de agosto de 2010 nasceu a Rede de Educadores em Museus e Instituições


Culturais de Mato Grosso do Sul, em seu Blog99 menciona através do Conselho Provisório a
necessidade que os profissionais tenham como o principal objetivo “a aproximação entre os
profissionais, estudantes, pesquisadores e professores de ensino fundamental, médio e
superior estabelecendo um espaço para reflexões, debates trocas de experiências e fomento
cultural”. (BLOG REMIC-MS, 2010).

A Publicação digital: Reconfigurações do público: arte, pedagogia, participação100,


em 23/março/2012.

Rede de Educadores em Museus de Goiás

A Rede de Educadores em Museus de Goiás iniciou as suas atividades no ano de 2010.


No artigo A rede de educadores em museus de Goiás, de autoria de Manuelina Maria Duarte
Cândido e Tony Willian Boita (2010), consta os objetivos da REM-Goiás. (CÃNDIDO;
BOITA, 2010, 1-2).

Essa parceria do Museu Antropológico e da Universidade Federal de Goiás (UFG),


cadastrada como Projeto de Extensão junto à Pró-Reitoria de Educação e Cultura da UFG
desde 2010. O que foi possível a concepção de um vídeo institucional l sobre esta Rede101. No
Blog102 podem-se acessar os Anais103 de cada Seminário. Assim, fazem parte do relato de

99
Disponível em: ˂http://remic-ms.blogspot.com.br/2010/09/rede-de-educadores-de-museus-e.html˃. Acesso
em: maio/2016.
100
Disponível em: ˂http://remic-ms.blogspot.com.br/search?updated-min=2012-01-01T00:00:00-
08:00&updated-max=2013-01-01T00:00:00-08:00&max-results=2˃. Acesso em: maio/2016
101
Disponível em: ˂https://www.youtube.com/watch?v=a66oVazHrUE˃. Acesso em março/2016.
102
Disponível em: ˂http://remgoias.blogspot.com.br/˃. Acesso em março/2016.
103
Disponível em: ˂https://anaisdoseminariosremgoias.blogspot.com.br/˃. Acesso em março/2016.

1768
experiência de Josiane Kunzler e Vânia Dolores Estevam de Oliveira, com título A atuação da
Rede de Educadores em Museus de Goiás (Rem-Goiás) em prol da Educação não formal.

Nos Anais resta o artigo Mapeamento das Ações Educativas em Museus de Goiânia
Ação da REM-Goiás 2013-2014104, das autoras Thalita Lorrany Veleda dos Santos, Josiane
Kunzler e Manuelina Maria Duarte Cândido (Vol. 4 - Museu, Sociedade e Meio Ambiente,
2014).

Consta a Assembleia Geral e a votação da nova Coordenação para o Biênio de


2016/2017, renovando-se o grupo com Nutyelly Cena Coordenadora Geral; Gilson de
Andrade Coordenador de Estudos e Articulação; Tony Boita Coordenador de Comunicação e
Roxanne Andrade da Silva na Secretaria Geral105. A Rede tem uma Fanpage do Facebook106.

Rede de Educadores em Museus de Sergipe

A Rede de Educadores em Museus de Sergipe surgiu no núcleo do curso de


Museologia da Universidade Federal de Sergipe, durante o evento da 7ª Primavera de Museus
entre os dias 25 a 27 de setembro de 2013. No Blog107 da REM-SE indicada o seu público
alvo visando congregar os profissionais “na criação de um espaço de reflexão e discussão
sobre o caráter educativo dos museus” (BLOG REM-SE, 2013).

Os autores Anne Caroline da Cunha Vieira, Romário Portugal e Priscila Maria de


Jesus (2015), junto à Pró-Reitoria de Extensão junto à Universidade Federal de Sergipe,
Tecendo Memórias, Criando Redes: Projeto de Estruturação da Rede de Educadores em
Museus no Estado de Sergipe (2014), com o texto explicativo: O Museu vai a Escola: Ações
de Educação Patrimonial108 demonstram a preocupação em congregar memórias, culturas e

104
Disponível em: ˂https://drive.google.com/open?id=0B0OBmRqV0eHCcWdubllDby1Ickk ˃. Acesso em
março/2016.
105
Disponível em: ˂http://remgoias.blogspot.com.br/˃. Acesso em: maio/2016.
106
Disponível em: ˂https://www.Facebook.com/remgoias/?fref=ts˃. Acesso em: maio/2016.
107
Disponível em: ˂http://rem-sergipe.blogspot.com.br/˃. Acesso em: maio/2016.
108
Disponível em: ˂ http://rem-sergipe.blogspot.com.br/˃. Acesso em: maio/2016.

1769
práticas sociais e educacionais. (VIEIRA; PORTUGAL; JESUS, 2015, s.n.). A REM-SE, tem
um Blog e Fanpage do Facebook109.

Rede de Educadores em Museus do Maranhão

A Rede de Educadores em Museus do estado do Maranhão tem estreita parceria com o


Ponto de Memória Maracrioula de São Luís do Maranhão. E no dia 09 de fevereiro de 2015
foi oficialmente instituída a REM-MA, numa reunião que contou com a presença de
representantes de pontos de memória, museus e universidades e ocorreu no auditório do
Palácio Cristo Rei na cidade de São Luís. (BLOG REM-MA, 2015).

A REM-MA não tem uma Fanpage como as outras REMs, ela utiliza um grupo
fechado no Facebook110 com um público mais restrito e que necessita solicitar o aceite dos
administradores para que possam inserir a quem solicitar.

Rede de Educadores em Museus de São Paulo

A Rede de educadores em Museus do estado de São Paulo, tem como a data da sua
instituição o dia 17 de novembro de 2014, conforme E-mail recebido de Adriana Mortara
Almeida; Ana Luiza Rocha do Vale; Isabela Ribeiro de Arruda; Luciana Conrado Martins;
Paola Maués e Joselaine Mendes Tojo. Ao solicitar informações da REM-SP para Marina
Toledo, coordenadora do Educativo do Museu da Língua Portuguesa (SP), esta gentilmente
organizou este grupo por E-mail, a fim de esclarecer as dúvidas sobre a estrutura e
funcionamento desta Rede.

Nas reuniões, no ano de 2015, foram definidas coordenações por Grupo de Trabalhos
tais como: Perfil do Educador, Políticas Públicas e de Comunicação. (doc. eletr., 2016).

Ressalva-se porém, que anterior a data acima, já havia a constituição de uma


Rede de Educadores em Museus na região do Vale do Paraíba, pertencente ao estado de São

109
Disponível em: ˂https://www.Facebook.com/rem.sergipe/?fref=ts˃. Acesso em: maio/2016.
110
Disponível em: ˂https://www.Facebook.com/groups/793739864050232/˃. Acesso em: maio/2016.

1770
Paulo, conforme esclareceu Bruno Marinho, que atualmente é o administrador da página do
Facebook111 da REM-SP. A Rede está organizada no Museu da Língua Portuguesa.
(FACEBOOK REM-SP, 2016).

Para elucidar melhor esta trajetória trago a referência da apresentação de Ana


Luiza Rocha do Vale (2015), sobre a REM-SP, no 7º Enconto Estadual de Museus112,
ocorrido em São Paulo. Naquele momento foi abordado, na mesa redonda com a temática das
REMs, sobre a criação da Rede do estado de São Paulo, enfatizando que esta Rede nasceu no
Rio de Janeiro, durante a Reunião Nacional, que aconteceu em 2007 na Fundação Casa de Rui
Barbosa. No Blog113 há indicação de postagens, que curiosamente, datam de agosto de 2011, o
que antecede em três anos da criação deste grupo, conforme o que acima se expõe.

Rede de Educadores em Museus do Pará

No 6º Fórum Nacional de Museus, que ocorreu em Belém/PA (2015), os


representantes das REMs de trocar experiências114. Neste mesmo espaço, alguns participantes
manifestaram que gostariam de tornar concreta a existência de uma Rede de Educadores em
Museus, conforme elucida Lucia Silva através da Página do Facebook115 da REM-BR
“Iniciamos a discussão da REM no Pará, a partir de 2014, quando se discutiu o Fórum
Nacional de Museu em Belém.” (FACEBOOK REM-BR, 2016).

A REM-PA, em sua página no Facebook, com a divulgação de atividades em


Instituições Culturais, sendo o Administrador Thomaz Xavier participante como articulador
no 6º Fórum Nacional de Museus.

111
Disponível em: ˂https://www.Facebook.com/redemuseussp/?ref=bookmarks˃. Acesso em: março/2016.
112
Disponível em: ˂https://www.youtube.com/watch?v=g0puUukkDjE˃. Acesso em março/2016.
113
Disponível em: ˂http://remsp.blogspot.com.br/search?updated-min=2015-01-01T00:00:00-02:00&updated-
max=2016-01-01T00:00:00-02:00&max-results=39˃. Acesso em março/2016
114
Ata da reunião de rede de educadores em museus ocorrida em durante. Disponível em>
˂https://www.Facebook.com/groups/1635943876632993/files/˃. Acesso em: maio/2016.
115
Idem, idem

1771
Rede Informal de Museus e Centros Culturais de Belo Horizonte e Região
Metropolitana

A Rede Informal de Museus e Centros Culturais de Belo Horizonte e Região


Metropolitana (RIMC – RMBH/MG), concebida no ano de 2007. As reuniões são ordinárias e
mensais, conforme e-mail enviado pela secretaria. (TAVARES, doc. eletr., 2016). Através do
Facebook constata-se a colaboração entre vinte instituições culturais e museus da cidade de
Belo Horizonte.

Conforme depoimento da Secretaria atual da RIMC, em resposta aos


questionamentos solicitados para a presente pesquisa, Pompea Tavares descreve as seguintes
informações:

Eu estou na Rede há apenas três anos e estamos tentando há algum tempo


levantar a documentação dos primeiros anos da rede (2007, 2008 e 2009)
com antigos membros, mas ainda sem sucesso. Os dois primeiros anos da
RIMC, 2007 e 2008, tiveram uma formação mais rígida, composta pelos
diretores dos museus. De 2009 a 2013, os coordenadores dos programas
educativos passaram a atuar na rede, mudando radicalmente seu caráter e
atuando principalmente na educação em museus. A partir de 2014,
ressaltando o caráter informal da RIMC, modificamos o regimento interno
abrindo à participação de qualquer pessoa interessada e/ou instituição não
museológica como visitante ou membro, antes restrita a museus e centros
culturais e seus representantes. (TAVARES, doc. eletr., 2016).

Diferente das demais Redes a REMIC o meio de comunicação utilizado é um Site116.

A Rede concretizou o I Simpósio Internacional de Educação em Museus: Processos


de Formação, ocorrido em 2009, em Belo Horizonte/MG, com 300 participantes com
certificação e publicação das comunicações em Anais.

Verifica-se que os encontros concentraram-se, nos anos de 2009 a 2013, em Belo


Horizonte. No mês de abril de 2016, na cidade de Belo Horizonte, em colaboração entre os

116
Disponível em: ˂http://www.ufmg.br/rededemuseus/crch/simposio-rimc-2014/˃. Acesso em: maio/2016.

1772
países Brasil e Argentina, ocorreu o Encontro Buenos Horizontes, com a temática: Museus
Comunitários e Ação em Redes.

Assim, no levantamento dos demonstrativos sobre as ações cotidianas das Redes é


possível comprovar-se que, mesmo com dificuldades, ou são realizadas reuniões mensais ou
eventos para troca de informações, ou até momentos mais densos como os Seminários e
Simpósios dos quais se tem como uma das formas de fortalecimento da Educação em Museus.

No próximo item descreve-se a Rede de Educadores em Museus do RS. Sendo


possível estabelecer parâmetros em relação às demais REMs.

A rede de educadores em museus do rio grande do sul (rem-rs)

Estão reunidos nesta pesquisa os aspectos da organização da REM-RS, ao longo dos


cinco anos da sua existência, que foram detectadas durante os exames nos suportes, estes
constantes em documentos e divulgações nas redes sociais.

Consta na Ata nº 1, como data de criação o dia 26 de junho de 2010, em Porto


Alegre, com a colaboração do Museu de História da Medicina do Rio Grande do Sul
(MUHM).

Na atual gestão a composição do grupo segue desde 2014 o modelo de uma


Coordenação de Gestão Compartilhada com profissionais da Educação, da Educação em
Museus, das áreas de Acessibilidade e Inclusão Social, nos setores público e privado.

Este grupo gestor elaborou e aprovou a Carta de Princípios, que traduz os anseios e
objetivos dos profissionais envolvidos neste processo e percebe-se a preocupação com a
formação acadêmica e continuada dos profissionais da Educação em Museus, o
fortalecimento do setor e o planejamento de ações para a inclusão dos mais variados públicos
e perfis pessoais e institucionais.

A REM-RS realizou o primeiro Seminário, no Centro Cultural CEEE nos dias 08, 09
e 10 de maio de 2014, ocorrendo 105 inscritos de profissionais do estado e fora dele. Com o
tema - Relações Possíveis: Museus, Educação para o Patrimônio e Comunidades.

1773
No Fórum Nacional de Petrópolis (2010) a coordenação da REM-RS fez parte do
grupo de articuladores do Plano Nacional de Educação em Museus. A Rede a realizou
encontros no Rio Grande do Sul de 2013 a 214: Reflexões sobre o Programa Nacional de
Educação Museal; Programa Nacional de Educação Museal (PNEM) – um debate
necessário, e foi possível articular sobre o PNEM, no encontro do Sistema Estadual de
Museus em Santo Angelo/RS, contando com a presença de Diego Vivian, representante do
IBRAM no Rio Grande do Sul.

No ano de 2013 a REM-RS esteve à frente do Colegiado Setorial de Museus


(2011/2013), como titular Andréia Becker assumindo a função de relatora, inclusive
renovando-se a nomeação da REM-RS, para os anos de (2016/2017), como titular Márcia
Vargas.

Considerações finais

Para compor este relatório as coordenações das REMs auxiliaram com suas
narrativas conduzindo e permitindo que os questionamentos fossem satisfeitos. Além disso, a
análise documental, fez com que os registros das ações da REM-RS, seus documentos e
histórico tivessem um lugar de referência junto à UFRGS.

Elencamos abaixo algumas sugestões: a) organizar um modelo de gestão


descentralizada; b) formalizar-se como uma associação; c) é importante qualificar melhor o
seu canal de comunicação Blog e Facebook; d) utilizar o canal do YouTube para divulgar
vídeos e entrevistas com ênfase na Educação em Museus; e) divulgar as metas definidas pelo
grupo gestor da REM-RS; g) realizar encontros presenciais com o objetivo de incentivar o
público acadêmico; f) desenvolver projetos de fomento a visitas em escolas, em parcerias com
as instituições museais; i) promover a articulação com os professores de escolas particulares e
públicas; j) propor parcerias da REM-RS com Universidades e as Secretarias da Educação e
Cultura dos municípios do RS; e k) promover o Intercâmbio entre as instituições, e as escolas,
profissionais ligados à cultura e a comunidade; l) destacamos o processo de eleição da sua

1774
coordenação com voto direto, e em propostas concretas e com representatividade do interior
do Estado.

Referências

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brasileiro: documentos selecionados. V.1. São Paulo: Pinacoteca do Estado de Cultura;
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Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias. ULHT, n. 20, 2003.

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contemporâneas e CONFAEB 20 anos. Goiânia: Goiás, 2010, p.1843-1848. Disponível em:
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. Teoria museológica: Waldisa Rússio e as correntes internacionais. (Org.). Waldisia


Rússio Camargo Guarnieri: textos e contextos de uma trajetória profissional. V.2. São
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. Gestão de Museus, um desafio contemporâneo: diagnóstico museológico e


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1779
REFLEXÕES SOBRE O ENSINO DA GESTÃO E DO PLANEJAMENTO NOS
CURSOS DE BACHARELADO EM MUSEOLOGIA NO BRASIL

Fiorela Bugatti Isolan*

*Programa de Pós-Graduação Interunidades em Museologia da USP

Resumo: A comunicação traz algumas reflexões apresentadas na pesquisa desenvolvida no âmbito do


Programa Interunidades em Museologia da Universidade de São Paulo (PPGmus USP), que teve como
objetivo mapear o perfil da oferta formativa que caracteriza os cursos de Bacharelado em Museologia
atualmente em funcionamento no Brasil e, mais especificamente, analisar como as ideias de gestão e
de planejamento aparecem nos currículos dos referidos cursos.
O protagonismo alcançado pela gestão junto ao universo museológico fez com que, na atualidade, sejamos
levados a tratá-la como uma função do museu, para além das tradicionais funções de salvaguarda, pesquisa e
comunicação (DESVALLÉES; MAIRESSE, 2013). Ao verificarmos o modo como os conteúdos relacionados à
gestão e ao planejamento são abordados nos respectivos currículos dos cursos, reforçamos a necessidade de se
pensar a gestão desde uma perspectiva museológica, que dialoga com as dimensões teóricas e práticas do campo,
contribuindo para o seu fortalecimento, bem como para a conformação daquilo que Cristina Bruno identifica
como olhar museológico. Ancorado na lucidez e na reflexidade (BRUNO, 2015a), tal olhar se fundamenta em
contraposição às visões fragmentadas e tecnicistas que tendem a compreender as experimentações no campo de
modo compartimentado, o que impossibilita seu encadeamento dentro de uma perspectiva processual. Para o
desenvolvimento do estudo, nos valemos dos programas pedagógicos dos 13 cursos de bacharelado atualmente
ativos no país, e dos respectivos ementários das disciplinas.

Palavras-chave: museologia; ensino e formação; gestão museológica.

1780
Abstract: This communication brings some reflections presented in the research developed as part of
the Programa Interunidades em Museologia da Universidade de São Paulo (PPGmus USP), that had
the purpose of mapping the profile of the training offer that characterizes the bachelor courses in
Museology currently in operation and, more specifically, to verify how the ideas of management and
planning appear in the curricula of the same courses.
The protagonism achieved by the management and planning in the museological universe has made us
nowadays treat it as a function of the museum, in addition to the traditional functions of preservation,
research and communication (DESVALLÉES; MAIRESSE, 2013).
When investigating how the content related to the management and planning are covered in the
respective course curricula, we point out the importance of thinking about management from a
museological perspective, which dialogues with the theoretical and practical dimensions of the field,
contributing to its consolidation and to the conformation of what Maria Cristina Oliveira Bruno
identifies as a museological view (olhar museológico). Based on lucidity and reflection (BRUNO,
2015a), this wiew is based in opposition to the fragmented and technicist visions that tend to
understand the experiments in the field in a compartmentalized way, which makes it impossible to
understand its totality in a processual perspective.For the development of the study, we use the
pedagogical programs of the 13 bachelor's degrees courses currently active in the country, and the
respective courses of the disciplines.

Key-words: museology; teaching and training; museological manegement.

1781
O campo da Museologia e dos museus foi marcado, ao longo dos últimos cinquenta
anos, pela crescente racionalização do gerenciamento dos museus (MENSCH, 1989). As
profundas transformações operadas conduziram à demanda de novas competências, dentre as
quais a habilidade em gestão. Podemos dizer que a relevância atribuída à gestão e ao
planejamento vincula-se à necessidade de assegurar a continuidade e sustentabilidade aos
distintos experimentos na área, e pode ser percebida por meio do incremento da produção
bibliográfica voltada a esta temática, e da própria formulação de diretrizes e recomendações
tanto em âmbito internacional quanto nacional.

Um importante propagador de posturas e procedimentos gerenciais advindos do setor


empresarial e adaptados à realidade museológica foi o ICOM, tanto por meio do Código de
Ética, quanto através de dois de seus comitês: o Comitê Internacional de Gestão em Museus
(INTERCOM), voltado propriamente para a gestão de museus, e o Comitê Internacional para
a Formação Profissional (ICTOP), dedicado a temas orientados para a formação profissional.

Na América Latina, a importância que a gestão adquiriu junto ao universo de museus


foi materializada na Declaração de Caracas. O texto que resultou do evento realizado na
Venezuela, em 1992, em comemoração aos vinte anos do documento de Santiago do Chile, e
que reuniu profissionais de diversos países latino-americanos, reafirmou os postulados da
Mesa Redonda de Santiago, atualizando e renovando conceitos e compromissos selados duas
décadas antes. Por outro lado, revelou a preocupação com a crise do Estado e os riscos que o
processo de privatização poderia representar para o campo do patrimônio e dos museus dentro
a realidade latino-americana (BRUNO, 2010).

Não por acaso, dentre os temas elencados como prioritários para serem discutidos ao
longo do evento estava aquele concernente à gestão. Após apresentar uma série de
considerações que versam sobre a conjuntura que então se delineava, o documento
recomenda:

1782
que os museus definam claramente a sua missão [...]; que o Museu defina a
estrutura organizativa de acordo com seus requerimentos funcionais,
delineada segundo as concepções gerenciais aplicáveis a casos particulares, e
que se estabeleçam mecanismos de avaliação permanente; que os planos e
programas elaborados com instrumentos de planejamento moderno estejam
baseados em um diagnóstico das necessidades do Museu e da sociedade a
qual está imerso, e que a realização de tais planos e programas leve em conta
as necessidades prioritárias do Museu e definam objetivos e metas a curto,
médio e longo prazos; que o Museu em sua necessidade de gerar recursos
determine políticas claras de autofinanciamento, e que também recorra a
organismos nacionais e internacionais, públicos e privados que lhe permitam
executar projetos; que se elaborem projetos atrativos para as empresas
privadas interessadas em investir no setor cultural, sem alterar a missão do
Museu; que se promovam políticas culturais coerentes e estáveis que
garantam a continuidade da gestão do Museu; que se consiga uma
comunicação com os setores do poder da sociedade, com a finalidade de
obter apoio para a gestão do Museu; que se utilizem estratégias tanto de
mercado – para conhecer o usuário – como de sensibilização da opinião
pública; que se implementem cursos internacionais de capacitação em gestão
de museus; que se tomem em conta os princípios éticos que devem guiar
sempre a gestão dos museu (BRUNO, 2010, p. 78-79).

Acerca da referida Declaração, Marcelo Araujo coloca que, ao reivindicar a


participação tanto da iniciativa privada quanto das comunidades no financiamento e
gerenciamento das atividades culturais, o texto evidencia os primórdios da irreversível
guinada do universo museal latino-americano à lógica comercial (ARAUJO apud BRUNO,
2010, p. 125). Processo este que deve ser entendido dentro de uma conjuntura mais ampla
marcada pela imposição do modelo neoliberal ancorado no livre mercado. Nesse cenário, as
“modernas estratégias de gestão, entendida como o aproveitamento otimizado dos recursos
humanos, técnicos e financeiros disponíveis” (BRUNO, 2010, p. 78), colocam-se como saída
estratégica para a situação crítica dos Estados latino-americanos.

As contribuições trazidas por Caracas acerca da relação entre “museus e gestão” vão
no sentido de alertar os museus para que, mesmo incorporando essa lógica de mercado,
trabalhem sempre a partir de suas respectivas missões institucionais. Outro ponto fundamental

1783
é o reconhecimento da necessidade do estabelecimento de mecanismos de avaliação
permanente117.

Dentro do contexto das políticas públicas na área museológica brasileira, um


importante marco da institucionalização dos princípios de gestão e planejamento estratégico
no campo foi a promulgação da Lei nº 11.904, de 14 de janeiro de 2009, que institui o
Estatuto de Museus, regulamentada pelo Decreto Presidencial nº 8.124, de 17 de outubro de
2013. De acordo com o Artigo 44 da referida Lei, “é dever dos museus elaborar e
implementar o Plano Museológico” (BRASIL, 2009)118. Um ponto fundamental colocado pela
legislação, segundo Manuelina Duarte Cândido, é o de que atualmente não é mais possível
“considerar museu uma instituição criada indiscriminadamente, sem planejamento e inserção
de diretrizes museológicas” (DUARTE CÂNDIDO, 2013, p. 120)119.

Em termos de capacitação profissional, a centralidade do tema da gestão também se


reflete nas diretrizes para formação propostas em âmbito nacional e internacional. O
documento “Referenciais Curriculares Nacionais dos Cursos de Bacharelado e Licenciatura”,
publicado pelo Ministério da Educação (MEC) menciona que dentre os temas abordados na
formação em Museologia está, justamente, a “gestão museológica” (MINISTÉRIO DA
EDUCAÇÃO, 2010, p. 83). Por sua vez, o Comitê Internacional para a Formação Profissional
(ICTOP), vinculado ao Conselho Internacional de Museus (ICOM), apresenta no documento
“ICOM Curricula Guidelines for Museum Professional Development” cinco grandes áreas de

117
Necessidade esta de avaliação que, segundo Marcelo Araujo, “deve estar introjetada em toda a visão sobre o
processo museológico como uma maneira possível de avançarmos na formulação teórica e na prática do
exercício museológico” (ARAUJO apud BRUNO, 2010, p. 126).
118
“O Plano Museológico é compreendido como ferramenta básica de planejamento estratégico, de sentido
global e integrador, indispensável para a identificação da vocação da instituição museológica para a definição, o
ordenamento e a priorização dos objetivos e das ações de cada uma de suas áreas de funcionamento, bem como
fundamenta a criação ou a fusão de museus, constituindo instrumento fundamental para a sistematização do
trabalho interno e para a atuação dos museus na sociedade” (BRASIL, 2009).
119
Não obstante, corroboramos com a autora quando esta contesta o aparente ineditismo desta exigência legal,
como se antes do Estatuto de Museus, não fizesse parte das preocupações das instituições museológicas aspectos
ligados à gestão e ao planejamento. A Portaria nº 1, de 2006, do IPHAN, que dispõe sobre a elaboração do Plano
Museológico para os museus ligados àquela autarquia, e sobre a qual o texto do Estatuto se ancora, além dos
distintos processos levados a cabo por diferentes profissionais em contextos variados do país antes da
formalização da lei, permitem demonstrar o contrário.

1784
competência da formação profissional no campo, estando dentre as elas a gestão
(Manegement competencies).

Como observa Peter Van Mensch (2004), de fato a gestão é, na atualidade, um dos
desafios mais importantes colocados para a Teoria Museológica, o que a transforma em um
objeto de estudo essencial.

Com o objetivo de perceber a presença de conteúdos sobre gestão e planejamento nos


cursos de Bacharelado ofertados no Brasil, Manuelina Duarte Cândido elaborou um estudo
preliminar dos currículos dos cursos de graduação em Museologia. Embora de caráter prévio,
a análise aponta para o fato de que a presença de disciplinas que tratam dessa temática é ainda
bastante irregular (DUARTE CÂNDIDO, 2012).

Para além da questão da presença ou não de disciplinas que versam sobre gestão e
planejamento, há que se atentar para quais entendimentos destes termos orientam as
disciplinas atualmente ofertadas nos diversos cursos em funcionamento no país. O
conhecimento construído fora do campo da Museologia colabora para o fortalecimento da
gestão de museus no sentido mais museológico? (DUARTE CÂNDIDO, 2013); de que
maneira o referencial teórico-metodológico da Museologia contribui para a organização
dessas disciplinas?

Tendo como ponto de partida esses questionamentos, nos propusemos a verificar como
esses temas vêm sendo abordados nos currículos dos referidos cursos. Em termos de
premissas conceituais, partimos do entendimento de que a gestão compreendida como
museológica é aquela que se volta à administração dos sistemas da memória por meio da
ativação da cadeia operatória museológica de modo equilibrado e em constante
retroalimentação, configurando-se, assim, como um processo intrínseco à Museologia. Sua
abrangência extrapola, portanto, as chamadas atividades-meio, o que a transforma, ao lado da
salvaguarda e da comunicação, em função inerente ao dizer e fazer museológicos.

No que se refere à formação profissional, somos adeptos da ideia de que o ensino da


gestão desde a ótica da Museologia (sistema de administração da memória) contribui para o

1785
processo de capacitação dos estudantes e para a conformação daquilo que Cristina Bruno
chama de olhar museológico (BRUNO, 2015a). Este olhar compreende as atividades ligadas à
cadeia operatória da Museologia (documentação, conservação, exposição e ação educativo-
cultural) – dentro de uma perspectiva integrada, evitando assim, a conformação de olhares
fragmentados e tecnicistas sobre o campo. A seguir, apresentaremos algumas considerações
sobre a análise.

Oferta formativa e ensino da gestão e do planejamento: alguns apontamentos

Serviram de fonte para o desenvolvimento do estudo os projetos pedagógicos e as


ementas das disciplinas que compõem as respectivas grades curriculares dos cursos de
bacharelado em Museologia em funcionamento no país. Sendo assim, o universo de estudo foi
conformado pelos treze cursos atualmente ativos: UNIRIO, UFBA, UFRB, UFPEL, UFPE,
UFG, UFSC, UFRGS, UnB, UFMG, UFS, UFPA e UFOP120.

Para fins da análise, levamos em consideração as disciplinas dos cursos que trazem em
seu bojo aspectos relacionados à gestão e ao planejamento, tendo como parâmetro as
premissas conceituais anteriormente esboçadas. Ao consultarmos os ementários, nos
atentamos, pois, à presença destes temas em outras disciplinas que não apenas aquelas que
trazem em seus títulos a menção a termos como gestão, planejamento, administração e
organização.

A partir do levantamento e posterior sistematização dos dados, constatamos que todos


os treze cursos analisados dispõem em suas matrizes curriculares de uma ou mais disciplinas
de caráter obrigatório – além de disciplinas optativas – com títulos que fazem menção aos
termos gestão, administração, organização e planejamento121. No caso específico dos cursos
da UFBA e UFSC – a inserção das disciplinas Gestão Museológica e Gestão de Museus
ocorreu em 2011 e 2015, respectivamente, quando da realização da última reforma curricular

120
Uma vez que ao longo do desenvolvimento da pesquisa não foi possível obter o ementário e o projeto
pedagógico que norteou o curso da UNBAVE até 2016, ano em que este foi desativado com o objetivo de passar
por um processo de reformulação, este curso não pôde ser considerado.
121
A única exceção nesse sentido é a disciplina do curso da UNIRIO que, embora apresente conteúdos relativos
a estes temas, é denominada Museologia IV.

1786
destes cursos122. O Quadro 1: apresentado a seguir, elenca alguns dados acerca dessas
disciplinas123:

Quadro 1: disciplinas obrigatórias e optativas com títulos que fazem menção aos termos gestão, administração,
organização e planejamento.
IES Natureza/ Título Ementa Pré-requisito
Período
UNIRIO Obrigatória Museologia IV Panorama da questão da ética na atividade Sem informação
museológica; análise dos códigos nacionais e
5º período
internacionais de ética profissional no campo
da atuação do museólogo, dentro e fora dos
museus. Conceitos e ações concernentes à
gestão de museus (Plano Museológico) e de
instituições afins, de natureza privada ou
pública, de constituição participativa e/ou
comunitária. Papel desempenhado pelas
associações de amigos; panorama das
agências de fomento brasileiras no campo da
museologia.
Optativa Administração I Apresentação dos movimentos e teorias de -
Administração. Análise e comparação dos
conceitos. Elaboração de novos conceitos
sobre o enfoque moderno da administração.
Aplicação dos conhecimentos administrativas
empresariais.
Optativa Administração A administração em perspectiva. O papel do -
II administrador. O comportamento humano nas
organizações. Mudanças na sociedade.
Administração contemporânea
UFBA Obrigatória Gestão Estudo e análise das diretrizes operacionais Exposição
Museológica para elaboração, organização e Museológica
6º semestre
gerenciamento do Plano Museológico.
Ação Cultural
Educativa com
Patrimônios
UFRB Obrigatória Gestão Domínio e análise dos códigos de ética de Introdução à
Museológica atuação do profissional a nível nacional e Museologia
7° semestre
internacional; política nacional de museus e
modelos de gestão; desenvolvimento do
plano museológico voltado para museus e
diversos processos de musealização.
UFPEL Obrigatória Gestão de Noções de gerenciamento de museus e de Documentação
Museus coleções museológicas; análise das Museológica I
6º semestre
legislações nacionais e internacionais que
regem as práticas museológicas de aquisição,

122
Na UFSC, até 2015, a disciplina era oferecida como optativa.
123
No caso específico do curso da UFOP, uma vez que não foi possível ter acesso ao ementário atualizado,
restringimo-nos a enunciar apenas aqueles componentes curriculares que contém esses termos em seus títulos, o
que, por certo, representou uma limitação na abordagem deste curso.

1787
salvaguarda e comunicação de acervos; os
códigos de conduta ética dos profissionais de
museus. Estudo e análise de “Planos e
Programas Museológicos” em instituições
com natureza de museu, públicas e privadas;
composição dos recursos humanos e
estruturação espacial das coleções, assim
como os procedimentos para efetuar os seus
deslocamentos internos e externos. Noções
básicas de adequação dos espaços para a
acessibilidade dos mais diversos públicos.
Princípios de segurança física e
informacional das coleções que compõem os
museus.
UFPE Obrigatória Gestão e Conceitos e ações concernentes à gestão de Sem informação
planejamento museus e de instituições afins, de natureza
6º período
em museus privada ou pública. Papel desempenhado
pelas associações de amigos; panorama das
agências de fomento brasileiras no campo da
museologia. Plano Museológico
UFG Obrigatória Gestão e Conceitos básicos de Administração. O Sem informação
Avaliação de comportamento humano nas organizações. A
5º período
Museus organização e a gestão em instituições
museológicas. A equipe administrativa e
técnica do museu e o seu treinamento.
Planejamento estratégico e gestão da
qualidade. Administração da imagem
institucional. O plano museológico em
diferentes modelos e processos de
musealização. A natureza pública ou privada
dos museus, as associações de amigos, as
agências de fomento, a gestão participativa.
A cultura da avaliação em museus. A
avaliação qualitativa.
UFSC Obrigatória Gestão de Noções de gerenciamento de museus e de Sem pré-requisito
Museus coleções museológicas; análise das
6ª fase
legislações nacionais e internacionais que
regem as práticas museológicas de aquisição,
salvaguarda e comunicação de acervos; os
códigos de conduta ética dos profissionais de
museus. Estudo e análise de “Planos e
Programas museológicos” em instituições
com natureza de museu, públicas e privadas;
composição dos recursos humanos e
estruturação espacial das coleções, assim
como os procedimentos para efetuar os seus
deslocamentos internos e externos. Noções
básicas de adequação dos espaços para a
acessibilidade dos mais diversos públicos.
Princípios de segurança física e
informacional das coleções que compõem os
museus.
Optativa Fomento e Ferramentas de gestão de instituições -
Projetos culturais. Natureza e particularidades de
Culturais projetos de fomento. A ética na gestão e
produção cultural. Leis de incentivo à cultura
e sua aplicação. Políticas públicas e impactos
no campo museológico.

1788
UFRGS Obrigatória Administração Conceitos básicos de Administração. Teoria Sem pré-requisito
aplicada às Geral da Administração (TGA). Movimentos
1ª etapa
ciências da da Administração.
informação

Obrigatória Gestão em Planejamento, criação e administração de Iniciação à


Museus museus e centros culturais. Planejamento Museolgia
4ª etapa
estratégico e sistemas de qualidades.
Conservação e
Administração da Imagem institucional. Ética
preservação de
profissional.
bens culturais
Sistemas de
informação e
documentação em
museus
Obrigatória Produção e Instrumentos, métodos e técnicas para uma Gestão em
Gestão Cultural gestão cultural estratégica e ética. museus
5ª etapa
Ferramentas de gestão de instituições, como a
de projetos culturais. Natureza e
particularidades dos projetos. A ética na
gestão e produção cultural. As leis de
incentivo à cultura e sua aplicação.
UnB Obrigatória Gestão de Conceitos e ações concernentes à gestão de Sem informação
Museus e museus e de instituições afins. Planejamento
7º semestre
Políticas de e administração de acervos museológicos em
Acervos instituições culturais públicas ou privadas.
Museológicos Análise dos códigos nacionais e
internacionais de ética profissional no campo
de atuação do museólogo.
Optativa Introdução à Sem informação -
Administração
UFMG Obrigatória Teorias da Origens da administração e das teorias Sem pré-requisito
Organização administrativas. A evolução do pensamento
1º período
administrativo. Teorias contemporâneas.
Instituições de informação: funções e
características definidoras.
Obrigatória Gestão de Unidades e sistemas de informação do ponto Sem pré-requisito
unidades de de vista organizacional. Processos de tomada
6º período
informação de decisão, motivação, criatividade, liderança
e comunicação aplicados a unidades de
informação. Organização e métodos,
administração financeira, administração de
recursos humanos, administração de
materiais, marketing. Questões na gestão de
sistemas de informação.

Obrigatória Planejamento Planejamento: conceito, evolução e etapas. Sem pré-requisito


em unidades e Noções de planejamento estratégico.
8º período
sistemas de Planejamento de unidades, produtos e
informação serviços de informação. Elaboração,
acompanhamento e análise de projetos

UFS Obrigatória Gestão Política nacional de museus e modelos de Objetos e


Museológica e gestão. Conceitos e ações concernentes à Coleções
6º semestre
Administração gestão de museus e de instituições afins, de

1789
de Coleções natureza privada ou pública, de constituição
Teorias da
participativa e/ou comunitária. Papel
Museologia
desempenhado pelas associações de amigos.
Panorama das agências de fomento
brasileiras no campo da museologia.
Desenvolvimento de plano museológico
voltado para museus e diversos processos de
musealização.
Optativa Teorias e Apresentação dos movimentos e teorias de -
Técnicas da Administração. Análise e comparação dos
Administração conceitos. Elaboração de novos conceitos
sobre o enfoque moderno da administração.
O papel do administrador. O comportamento
humano nas organizações. Mudanças na
sociedade. Administração contemporânea.

Fonte: a autora a partir de dados contidos nos projetos pedagógicos e sites institucionais.

Como podemos perceber a partir destes dados, os conteúdos das ementas abordam
tópicos relacionados à legislação, ética profissional, agências de fomento, associação de
amigos, natureza dos museus, gerenciamento de museus e de coleções/acervos museológicos,
planejamento estratégico, sistemas de qualidade, avaliação, administração de recursos
humanos, acessibilidade, segurança, Teoria da Administração, imagem institucional,
marketing, concepção de espaços museais, gestão e elaboração de projetos, gestão do
patrimônio, políticas públicas na área museológica e Plano Museológico.

O primeiro ponto a ser sinalizado sobre este panorama se refere à própria presença destes
conteúdos nas grades dos cursos, o que reforça o protagonismo alcançado pelo tema da gestão
junto ao universo museológico. O direcionamento dos componentes curriculares para questões
ligadas a este universo denota a preocupação que permeia o ensino superior em Museologia
hoje no país no sentido de buscar instrumentalizar os futuros profissionais com ferramentas
que os habilitem a lidar com o “[...] planejamento, gestão, execução e acompanhamento de
projetos e políticas culturais vinculados ao patrimônio natural e cultural, material e imaterial
[...]” (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2010a, p. 83).

Assim, com vistas a capacitar profissionais aptos a atuarem no campo profissional, a


formação aborda conhecimentos e procedimentos oriundos do campo da gestão, que possuem
maior ou menor interlocução com a práxis e os conhecimentos específicos da Museologia.

1790
Dentre os assuntos tratados por estas disciplinas, é notório o protagonismo atribuído às
políticas públicas nas áreas de museus, com especial ênfase no Plano Museológico, o que
demonstra um alinhamento da oferta formativa com a legislação que rege atualmente o campo
museológico brasileiro. Podemos inclusive afirmar, a partir dos dados levantados, que a
referida legislação vem influenciando diretamente no formato adotado por estas disciplinas.

Outros conteúdos trabalhados nestas disciplinas dizem respeito a instrumentos,


métodos e técnicas oriundos de áreas afins, notadamente da Administração, ligados a temas
como recursos humanos, planejamento estratégico, agências de fomento, associações de
amigos, marketing, estratégias para financiamento de projetos, que são compreendidos como
atividades-meio que viabilizam o desenvolvimento das atividades finalísticas das experiências
no campo – leia-se salvaguarda e comunicação.

A ênfase dada a esses conhecimentos ligados à gestão stricto sensu pode ser
compreendida como um reflexo do momento que os museus e processos de musealização vêm
enfrentando na contemporaneidade. Frente ao cenário de incertezas e instabilidades, no qual
os Estados paulatinamente perdem protagonismo, incorporar procedimentos e técnicas desta
natureza, sempre pensados a partir das especificidades da Museologia, torna-se estratégico
para a consolidação e projeção das experiências operadas no campo. A intenção em formar
futuros profissionais aptos a lidarem com este tipo de cenário evidencia, a um só tempo, o
caráter interdisciplinar da Museologia e o entendimento dos museus como fenômenos
socioculturais.

Outro aspecto a ser observado diz respeito ao momento em que estas disciplinas
aparecem nos respectivos currículos. Ao consultarmos as matrizes, constatamos que, na maior
parte dos casos, estes componentes curriculares são ofertados da metade para o final dos
cursos, com maior concentração nos 6º e 7º períodos. Este dado demonstra uma escolha
formativa que prioriza, num primeiro momento, uma formação mais voltada a temas
específicos da Museologia – como documentação, expografia, aspectos teóricos, conservação,
entre outros – para somente depois tratar da questão da gestão propriamente dita. Tal
organização teoricamente possibilitaria aos estudantes uma compreensão de todos os
processos inerentes ao campo museológico de modo articulado e integrado.

1791
Um possível desdobramento para este ponto seria justamente o de averiguar junto ao
alunado dos diferentes cursos se tal intenção de fato se efetiva. O caso da graduação da UFBA
traz uma experiência interessante neste sentido. A disciplina Gestão Museológica, implantada
na reforma de 2011, originalmente foi ofertada no 6º semestre. No entanto, a vivência prática
levou os docentes e os discentes a constatarem, por meio da realização dos Seminários de
Avaliação do curso, que seria mais proveitoso para o desenvolvimento dos componentes
curriculares ofertá-la nos primeiros semestres da formação. Assim, a proposta de readequação
curricular ora em tramitação propõe, dentre outros aspectos, este ajuste124.

A partir dos dados consultados, foi possível constatar que somente em três cursos –
UFRGS, UFMG e UFOP – são oferecidas disciplinas obrigatórias dessa natureza ainda no
primeiro semestre. Na UFRGS é ofertada a disciplina Administração aplicada às ciências da
informação, na UFMG, a disciplina Teoria da Organização e, na UFOP, Organização de
Museus, sendo que os temas tratados nas disciplinas da UFRGS e da UFMG dizem respeito a
conteúdos do campo da gestão stricto sensu, como Teoria Geral da Administração, sem
estabelecer interface direta com o campo museológico. As próprias referências bibliográficas
recomendadas para estas disciplinas evidenciam esta orientação que, no nosso entendimento,
pode ser compreendida tendo em conta a vinculação institucional de ambos os cursos,
alocados em escolas e faculdades de Ciência da informação125.

Quanto ao curso da UFOP, este apresenta ainda quatro disciplinas obrigatórias que
trazem menção aos termos gestão e administração em seus títulos126, sendo que a disciplina
Organização e Administração I, oferecida no 7º período, é ministrada pelo Departamento de

124
Conforme informações disponibilizadas informalmente por alguns docentes do curso.
125
Os demais cursos que disponibilizam disciplinas diretamente atreladas ao que estamos chamando de gestão
stricto sensu as oferecem, na maior parte das situações, como disciplinas optativas. Este é o caso dos cursos da
UNIRIO (Administração I e II), da UnB (Introdução à Administração), da UFS (Teorias e Técnicas da
Administração) e da UFOP (Gerência de Recursos Humanos). Nesse sentido, ver Quadro 1.
126
São elas: Preservação e Gestão do Patrimônio Cultural (6º período), Elaboração e gestão de projetos
culturais (7º período) e Gestão e administração de museus (8º período).

1792
Engenharia de Produção, Administração e Economia da Universidade, o que aponta para uma
abertura em direção a outros campos disciplinares127.

No caso da graduação da UFRGS, a interface da gestão com o campo museológico


ocorre na disciplina Gestão em Museus, ofertada na 4ª etapa do curso, sendo que a própria
bibliografia básica recomendada indica esta orientação. O curso dispõe ainda de outra
disciplina de caráter obrigatório relacionada ao universo da gestão. Trata-se da disciplina
Produção e Gestão Cultural, ofertada na 5ª etapa do curso. De fato, dentre o universo de
cursos analisados, o da UFRGS é, ao lado do curso da UFOP e da UFMG, o que traz o maior
número de componentes curriculares que, com maior ou menor interação com o campo da
Museologia, fazem referência em seus títulos a conteúdos circunscritos ao universo da gestão.

Quanto ao curso da UFMG, além da já mencionada disciplina Administração aplicada


às ciências da informação, são oferecidas, no 6º e 8º períodos, respectivamente, as disciplinas
Gestão de unidades de informação e Planejamento em unidades e sistemas de informação.
Não obstante, a consulta às ementas e referências bibliográficas de ambos os componentes
curriculares indica uma tímida aproximação com uma perspectiva mais museológica128.
Podemos dizer que a relação da Museologia com o campo da Ciência da Informação abriu
novos caminhos conceituais, mas também impôs certas limitações que devem ser ponderadas
se o que se busca é a consolidação da Museologia como campo disciplinar autônomo.

O levantamento realizado igualmente permitiu evidenciar uma série de disciplinas


obrigatórias circunscritas à dimensão da Museologia Aplicada e, com bem menos ênfase, à
Museologia Geral129, que trazem aspectos relacionados à gestão e ao planejamento130.

127
Como não tivemos acesso ao ementário atualizado deste curso, não foi possível tecer uma reflexão mais
elaborada acerca do perfil destas disciplinas. De todas as formas, a contar pelos títulos, dentre o atual cenário da
oferta formativa, voltada para essa questão da gestão, vemos que o curso da UFOP é o que mais dispõe de
disciplinas associadas a essa temática. Por certo, quantidade não pressupõe necessariamente qualidade em termos
museológicos.
128
A contar pelas ementas, as disciplinas adotam quase que exclusivamente publicações do campo da
administração e de outros campos do conhecimento vinculados a Ciência da Informação (Biblioteconomia e
Arquivologia). Por certo, a prática docente pode vir a contrariar essa informação. No entanto, como não foi
possível realizar esse levantamento mais detalhado, nos limitamos à análise aos conteúdos presentes no
ementário consultado.
129
Tomamos como referência o Quadro Referencial da disciplina, que propõe a organização da Museologia da
seguinte maneira: MUSEOLOGIA GERAL: corresponde aos princípios e procedimentos gerais da disciplina e

1793
Partindo da cadeia operatória museológica, encontramos atreladas ao eixo da
salvaguarda a presença de disciplinas que fazem referência a tópicos como desenvolvimento
de diagnósticos e gerenciamento de acervos, planejamento de reservas técnicas, planos de
segurança, sistemas de gestão da informação, documentação. Já no que se refere ao eixo da
comunicação museológica, identificamos disciplinas que tratam de temas como concepção e
planejamento de exposições, processos educacionais em museus, avaliação e estudos de
público, programas e projetos de arquitetura para museus e espaços museais, entre outros.

Com isto, verificamos que as questões relativas à gestão e ao planejamento,


compreendidas dentro de uma perspectiva ampla, perpassam distintas disciplinas de conteúdo
específico da Museologia, notadamente aquelas associadas à dimensão do fazer museológico
(Museologia Aplicada). Tal constatação sinaliza o aumento da importância dada à perspectiva
processual para o gerenciamento dos museus e processos de musealização (BRUNO, 2015b),
o que reforça que a gestão e o planejamento são inerentes à Museologia, configurando-se, ao
lado da salvaguarda e da comunicação, como função básica do campo.

Considerações Finais

Ao nos voltarmos para o modo como as ideias de gestão e planejamento vêm sendo
abordadas nos currículos dos cursos de graduação em Museologia ativos no país, a partir do
levantamento das ementas das disciplinas, evidenciamos a presença de duas dimensões que se
complementam e que contribuem para o fortalecimento da Museologia Aplicada.

De um lado, identificamos a dimensão a qual chamamos gestão stricto sensu, que


recorre a procedimentos e técnicas circunscritos a áreas afins, notadamente da Administração,
de caráter operacional e complementar, que se configuram como atividades-meio que

que servem para qualquer universo de aplicação; MUSEOLOGIA ESPECIAL: diz respeito aos textos e
contextos específicos onde esses princípios são experimentados; MUSEOLOGIA APLICADA (Museografia): se
refere ao conjunto de procedimentos técnico-científicos acionados por meio da ativação da cadeia operatória
museológica (BRUNO, 1996; DUARTE CÂNDIDO, 2013).
130
Dados foram sistematizados apresentados no Apêndice C da dissertação “A formação em Museologia nas
universidades brasileiras: reflexões sobre o ensino da gestão e do planejamento sob a ótica da Museologia”
(ISOLAN, 2017, p. 201-211).

1794
permitem a viabilização das atividades finalísticas inerentes ao ciclo museológico. Nesse
sentido, fazemos referência a temas como gestão de recursos humanos, estratégias de
financiamento e fomento, comuns a qualquer tipo de gestão, mas que, quando aplicados ao
universo museológico, devem adequar-se às suas especificidades.

Esta relação evidencia o caráter interdisciplinar que caracteriza o campo museológico.


Com efeito, se a Museologia se coloca como disciplina autônoma, dotada de especificidades,
esta especificidade não deve anular a utilização, justamente, de métodos, técnicas e conceitos
advindos de outros campos disciplinares, desde que acessados a partir das particularidades da
Museologia.

Como pontuamos, compreendemos que, dentro do contexto contemporâneo, adquirir


aptidões no sentido da gestão stricto sensu são importantes e contribuem para o
fortalecimento dos procedimentos museográficos. Não obstante, o que caracteriza essa
dimensão da gestão stricto sensu aplicada à Museologia é a sua flexibilidade e plasticidade: os
diferentes textos e contextos que conformam o campo de experimentação da Museologia
demandam soluções que não seguem padrões pré-estabelecidos131. Assim, pensando nas
habilidades dos futuros profissionais, estes devem ser capazes de olhar para cada experimento
no campo tendo em conta as necessidades e prioridades impostas por cada realidade
específica.

De outro lado, está a dimensão da gestão que colabora para o desenvolvimento dos
procedimentos técnico-científicos ligados à salvaguarda e comunicação, a qual identificamos
como gestão museológica. A partir das ementas, vimos que noções ligadas à gestão e ao
planejamento extrapolam as disciplinas que levam seu nome, e aparecem em componentes
curriculares que tratam de temas como diagnóstico de acervo, planejamento de exposição, etc.
De fato, esta presença nos faz compreender que a gestão hoje se configura, ao lado da

131
Por exemplo, as estratégias quanto a recursos humanos, de financiamento e fomento e estrutura
organizacional adotadas por um museu de grande porte localizado num determinado centro urbano certamente
serão bastante distintas daquelas empreendidas por um processo de musealização mobilizado por um grupo de
lideranças e atores que atuam frente a uma iniciativa de caráter comunitário. Com isto, buscamos evidenciar que
a gestão vinculada à dimensão aplicada da Museologia se molda às diferentes circunstâncias, não havendo
fórmulas (em outros termos, lojinha e café não é solução para todas as realidades).

1795
salvaguarda e da comunicação, como função intrínseca à Museologia e contribui para o
fortalecimento da dimensão aplicada deste campo.

Entretanto, ainda que estes conteúdos venham sendo trabalhados em menor ou maior
medida nos cursos, sua abordagem não garante, necessariamente, a dimensão processual que
lhes é inerente – ou, em outros termos, o olhar museológico ao qual Maria Cristina Bruno se
refere (BRUNO, 2015a).

É justamente nesse ponto de passagem da dimensão prática da gestão (Museologia


Aplicada) à Teoria Museológica que nos detemos. Somos adeptos da posição de que
compreende que o ensino da gestão museológica – colabora, para a além do fortalecimento da
Museologia Aplicada, para a consolidação da Museologia Geral, uma vez que propõe
princípios e pressupostos gerais de atuação pensados a partir da Museologia, favorecendo
assim para a consolidação deste campo disciplinar.

Tais princípios estão, pois, associados à sua especificidade – entendida como sistema
de administração da memória que viabiliza, por meio do encadeamento de ações de
salvaguarda e comunicação, em constante equilíbrio, a transformação e projeção do
patrimônio em herança (BRUNO, 2006, 2000).

Se partirmos da ideia de que a gestão museológica compõe o quadro geral da


disciplina Museologia, permitindo, tal como propõe Manuelina Duarte Cândido (2013), o
trânsito entre as dimensões aplicada e teórica do campo, acreditamos que a sua presença nos
currículos dos cursos deveria, pois, ser ampliada.

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Aprova o Projeto Pedagógico do Curso de Bacharelado em Museologia. [2012]. Disponível
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1800
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ. Instituto de Ciências da Arte. Faculdade de Artes
Visuais. Curso de Bacharelado e Museologia. Anexo III – Contabilidade Acadêmica _
Bacharelado em Museologia; Anexo VII – Ementas das Atividades Curriculares com
Bibliografia Básica e Complementar.

UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO. Matriz curricular 2015/1. Ouro Preto:


UFOP, 2015.

UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO. Projeto pedagógico do curso de


Graduação em Museologia. Ouro Preto: UFOP, 2008.

1801
CENTRO DE REFERÊNCIA DA ARTE DE PESCA: OS SABERES E FAZERES
DOS PESCADORES

Karina Maria Ferraz dos Santos Cadena*


Isadora Santos Paiva*
Áurea da Paz Pinheiro*
*UFPI – Universidade Federal do Piauí

Resumo: Este artigo faz parte do desenvolvimento e estudos associados ao projeto de pesquisa-ação
tem como proposta a intervenção arquitetônica no edifício da antiga Escola Estadual Deputado João
Pinto, localizada no bairro Coqueiro, no município de Luís Correia, Piauí, território integrante da Área
de Proteção Ambiental (APA) Delta do Parnaíba. A Escola está desativa, sem uso, suscetível a
depredações e degradações. O que se pretende é recuperar a edificação e oferecer uma opção de uso
social ao espaço, revitalizando-o para abrigar um dos núcleos do MUDE – Museu de Território do
Delta do Parnaíba, que se destinará a salvaguardar os saberes e fazeres da arte de pesca um território
que abriga uma rica e complexa paisagem cultural.

Palavras-chave: Patrimônio. Território. Arquitetura. Paisagem Cultural. Delta do Rio Parnaíba.

Abstract: This article is part of the development and studies associated with the action research
project has as a proposal architectural intervention in the building of the former State school Mr João
Pinto, located in the coconut tree, in the municipality of Luís Correia, Piauí, a member of the
Environmental protection area (APA) Delta do Parnaíba. The school is disables, the building without
use, susceptible to depredations and degradations. The intention is to retrieve the building and offer an
option of social use into space, revitalizing it to house one of the cores of the CHANGE – Museum of
territory of the Delta of Parnaíba, that will be dedicated to protecting the knowledge and practices of
the fishing gear a territory which is home to a rich and complex cultural landscape.

Key-words: Heritage. Territory. Architecture. Cultural Landscape. Delta of the Parnaíba River.

1802
Introdução
Trata-se neste texto de apresentar o projeto de pesquisa-ação Centro de Referência da
Arte de Pesca: Os saberes e fazeres dos Pescadores em fase de desenvolvimento e associado
ao Programa de Pós-graduação em Artes, Patrimônio e Museologia, Mestrado Profissional, da
Universidade Federal do Piauí, que iniciou suas atividades em abril de 2015 com ingresso da
primeira turma. Trata-se do único Mestrado Profissional do gênero no Brasil; tem como sede
Parnaíba, classificada como Patrimônio Nacional desde 2008.

Parnaíba é porta de entrada para o Delta do Parnaíba, único a desaguar em mar aberto
das Américas; abriga um rico e complexo patrimônio cultural e natural associado a uma das
mais significavas reservas de mangue do mundo, bem como comunidades ribeirinhas,
praieiras e deltaicas que mantém tradições seculares, uma cultura híbrida e remanescente de
populações autóctones, africanas e europeias.

O Mestrado revela-se inovador no campo da Museologia Social e forma profissionais


qualificados, para o exercício de prática profissional avançada e transformadora; atende às
demandas culturais, econômicas e sociais do território do Meio Norte do Brasil, colabora na
transferência de conhecimentos para a sociedade e gera novos projetos de natureza ação para
a concepção e implantação de equipamentos culturais geradores de emprego e renda.

O Mestrado Profissional mantém parcerias, protocolos e termos de cooperação técnica,


científica e cultural com as Universidades de Lisboa (CIEBA), Aberta de Portugal (CEF) e
Coimbra (CES). Adensa as parcerias com agentes públicos e privados, a exemplo a Prefeitura
de Parnaíba, o Instituto Tartarugas do Delta, o ICMBio, o IFPI, o Governo do Estado do
Piauí́, etc.

O corpo docente do Mestrado é formado por professores brasileiros e estrangeiros de


áreas diversas como a Museologia, História, Artes, Geografia, Antropologia, Sociologia,
Arquitetura e Urbanismo, Design, revelando, assim, a sua natureza aplicada e multidisciplinar
própria do campo de estudos - A Museologia.

Os mestrandos desenvolvem projetos de pesquisa de natureza ação de forma


colaborativa e sistemática. Há dois projetos matriz: Parnaíba, patrimônio vivo, cidade viva e

1803
Mude, Rede de Museus do Delta do Parnaíba, cuja natureza é a participação das comunidades
locais e agentes públicos e privados

Rede de museus Delta do Parnaíba - MUDE

[Museus de Território | cuja natureza é a participação das comunidades locais e


agentes públicos e privados]

Trata-se, neste documento de apresentar Projeto Matriz, de natureza Pesquisa-Ação,


idealizado e coordenado pelo Programa de Pós-graduação em Artes, Patrimônio e Museologia
(PPGAPM), Mestrado Profissional, da Universidade Federal do Piauí (UFPI), Campus
Ministro Reis Veloso da cidade de Parnaíba, em parceria com o Instituto Tartarugas do Delta
(ITD) e o com o Serviço Social do Comércio (SESC), ambos com sede no Município de Luís
Correia, PI, que, assim como a UFPI, já atuam há muitos anos no território do Delta do
Parnaíba, a prestarem serviços às comunidades locais no que refere à educação, ação social e
cultural, à educação para conhecimentos e reconhecimento da paisagem cultural, o que inclui
os patrimônios cultural e ambiental, museologia e sustentabilidade social e econômica.

A assinatura de um Termo de Cooperação Técnica entre esses agentes públicos e


privados permite a realização de projetos e ações sistemáticas por docentes e discentes do
Mestrado Profissional da UFPI.

Para este trabalho, adotamos o conceito de Rede de Museus, que se firma na existência de
equipamentos culturais autônomos, mas que somam esforços e otimizam recursos humanos e
materiais de forma a permitir organicidade no planejamento e execução de programas,
projetos e ações conjuntos. As redes favorecem a existência sistemática e qualificada dos
equipamentos culturais – neste caso os museus de território, cuja natureza é a participação das
comunidades locais e agentes públicos e privados, que formarão “A REDE DE MUSEUS
DELTA DO PARNAÍBA | MUDE”.

O MUDE é concebido como um instrumento integral e integrador de comunidades


ribeirinhas e deltaicas, que habitam a Área de Proteção Ambiental Delta do Parnaíba (APA),
bioma marinho costeiro, com 307.590,51 hectares, criada por decreto federal s\n de

1804
28.08.1996, coordenada pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
(ICMBio), CR5, cidade de Parnaíba, Piauí. Na APA Delta do Parnaíba estão inseridos os
municípios de Barroquinha e Chaval, no Estado do Ceará; Araioses, Água Doce, Tutóia e
Paulino Neves, no Maranhão; Cajueiro da Praia, Luís Correia, Parnaíba e Ilha Grande, no
Estdo do Piauí.

Pela natureza do território (APA), optamos pelo conceito de REDE e de ECOMUSEU,


uma natureza de museu polinuclear. Essa tipologia nos serve como base de integração entre
agentes públicos e privados a serviço do desenvolvimento educacional, sociocultural e
ambiental para a região, em uma perspectiva mais ampla no campo da museologia de cariz
social - uma museologia de território.

A missão e vocação de um museu, nesse caso de um Ecomuseu, é desenvolver


programas, ações e projetos de preservação, salvaguarda, documentação, pesquisas, educação,
comunicação etc., da paisagem cultural, o que inclui os patrimônios cultural e natural de um
dado território (APA), para conhecimento, reconhecimento e valorização, promovendo a
atribuição de sentidos e significados das histórias e memórias pelas comunidades ribeirinhas e
deltaicas, com estímulo às reflexões sobre formas de se garantir a sustentabilidade social,
ambiental e econômica, com o envolvimento das populações residentes na constituição do
Ecomuseu; uma natureza de museu que necessariamente deve servir como instrumento de
informação e educação às populações, para que possam vir a participar ativamente da gestão
de seus patrimônios; a entenderem e valorizarem o espaço modificado cotidianamente em
suas relações como o meio ambiente.

Concordando com Varine (2013) para quem a gestão dos patrimônios deve ser feita o
mais próxima dos criadores e detentores desses patrimônios, o que justifica a nossa opção pela
Museologia de cariz social, que valoriza as ações socioeducativa dos museus, entendidos
como espaços de educação não-formal, de ações culturais e de comunicação, gerador de
conhecimento, reconhecimento individual e coletivo, de valorização de culturas e identidades,
de estímulo à consciência crítica, afirmando olhares e reflexões que permitem desconstruir os
discursos oficiais, que negam as memórias de grupos minoritários e/ou marginalizados.

1805
O Conselho Internacional de Museus (ICOM) define museu como “uma instituição
permanente sem fins lucrativos, ao serviço da sociedade e do seu desenvolvimento, aberta ao
público, que adquire, conserva, investiga, comunica e expõe o património material e imaterial
da humanidade e do seu meio envolvente com fins de educação, estudo e deleite.” O conceito
de Ecomuseu remonta aos anos 1960 e associa-se ao interesse de se refletir sobre novos tipos
de museus, concebidos em oposição ao modelo clássico e à posição central que ocupavam as
coleções naqueles museus; portanto os conceitos de Ecomuseus, museus de sociedade,
Centros de Cultura Científica e Técnica, de maneira geral, presente na maior parte das novas
proposições de museus visam colocar os patrimônios sob a gestação de agentes públicos e
privados locais, de forma a garantir o desenvolvimento sustentável. Esse conceito de museu
está atravessado pela relação entre o ser humano e sua realidade, pela apreensão direta e
sensível dos patrimônios, portanto, os objetos museais devem permanecer em seus locais de
origem, logo, os museus locais, de território, de comunidades, ecomuseus e museus integral
ou integrado, que tenham sob sua gestão coleções do patrimônio cultural local devem
representar uma tendência atual, qual seja: de participação das comunidades nos processos de
gestão. Nesse sentido, segundo (citar conceitos chaves da museologia) o termo museu tanto
pode designar a instituição quanto o estabelecimento, ou o lugar geralmente concebido para
realizar a seleção, o estudo e a apresentação de testemunhos materiais e imateriais do Homem
e do seu meio. A forma e as funções do museu variaram sensível- mente ao longo dos séculos.
Seu conteúdo diversificou-se, tanto quanto a sua missão, seu modo de funcionamento ou sua
administração”.

Os primeiros núcleos museológicos da Rede de Museus de Território são o Museu


Delta do Parnaíba (MUDE) e o Museu Tartarugas do Delta, que iniciarão os processos de
desenvolvimento e sustentabilidade ambiental e cultural, com a colaboração ativa das
comunidades e de agentes públicos e privados locais e regionais; com vocação e missão de
ampliar os trabalhos já desenvolvidos no território para a conservação e preservação da
biodiversidade e diversidade cultural encontrada na APA Delta do Parnaíba.

A Rede de Museus deverá possuir recursos humanos, um corpo técnico-científico


especializado de forma que a rede possa cumpri a sua missão; um conjunto de profissionais a

1806
formar outros profissionais para realização de pesquisas e boas práticas nas áreas de: ação
educativa e cultural; comunicação e públicos; gestão da informação: documentação e acervos;
tratamento de acervos arquivísticos em suportes diversos, museológicos, bibliográficos etc.

O museu em Rede associar-se a trabalho colaborativo e participativo dos Núcleos


Museológicos (Museus) para as funções básicas dessa natureza de equipamento cultural,
funções de coleta, conservação, formação de coleções, pesquisa-científica, culturais-
educacionais, nas quais a preservação dos patrimônios se efetivam e garantam a integridade
física e informacional dos patrimônios integrados, frutos de uma interação ser humano-
território.

O MUDE e o Museu Tartarugas do Delta continuará a desenvolver atividades


associadas ao desenvolvimento e sustentabilidade ambiental e cultural, com as colaborações
ativas das comunidades e dos agentes públicos e privados locais e regionais. Esses
equipamentos têm como vocação ampliar os trabalhos já desenvolvidos no território pelo
SESC e ITD, agora com a colaboração da UFPI por meio do PPGAPM, na conservação e
preservação da biodiversidade e diversidade cultural encontrada na APA Delta do Parnaíba.

A Rede de Museus de Território envolverá as comunidades residentes nos processos


museais, sobretudo, aquelas comunidades inseridas nos municípios que integram a APA.

Como parte dos serviços de Educação a Ação Cultural, a Rede fará uso, dentre outras
ferramentas, de campanhas de educação ambiental e patrimônio cultural, de forma a envolver
públicos diversos, dentre eles o escolar e não escolar, associações de moradores, pescadores
etc. Portanto, a missão e vocação da Rede é desenvolver ações de registro, salvaguarda e
comunicação de acervos do patrimônio natural e cultural do território, para o conhecimento e
valorização, de forma a promover o trabalho de histórias e memórias de comunidade
ribeirinhas e deltaicas, com estímulo às reflexões sobre a importância dos patrimônios cultural
e natural, de ações a serviço da sustentabilidade social, ambiental e econômica, com o
envolvimento das populações residentes nas ações museais e de preservação e salvaguarda
dos patrimônios.

1807
Uma Rede formada por equipamentos que devem instruir as populações a participarem
da gestão dos seus próprios patrimônios, a entenderem e valorizarem o espaço modificado
cotidianamente pelas pessoas em suas relações como o meio ambiente.

O MUDE, na condição de Rede, adota o conceito de polinuclear, no qual cada Núcleo


(Museu) estar vocacionado para um trabalho colaborativo de reunir, conservar, investigar e
divulgar a rica e complexa paisagem cultural do Delta do Rio Parnaíba, o único a desaguar em
mar aberto das Américas, região de fronteira entre os Estados do Piauí e Maranhão.

Bairro Coqueiro e sua problemática

Em 2012, a Secretaria de Turismo do Município de Luís Correia foi autorizada a licitar


e iniciar um projeto de urbanização do Bairro Coqueiro da Praia. Hoje concluída (2017), a
urbanização é considerada pelos poderes públicos (estadual e municipal) uma das obras de
intervenção urbana mais significativa das já realizadas no Piauí nos últimos anos. A obra foi
orçada em cerca de R$ 12 milhões e melhorou o acesso de transportes dentro do município,
mas há problemas sérios de drenagem urbana, saneamento, coleta de lixo, equipamentos
turismos e culturais, educação para o patrimônio cultural e ambiental, além de infraestrutura e
mobiliário urbano.

O projeto executivo de urbanização que se estendeu do hotel Islamar até o Barra


Mares foi pensado para atrair investidores estrangeiros que desejassem construir
empreendimentos no litoral do Piauí. A urbanização privilegiou a pavimentação das ruas do
Bairro, o turismo, mas não há canteiros públicos e tão pouco acessibilidade e mobilidade
urbana, coleta de lixo, a condição de vida dos moradores, residentes não foi considerada.

Segundo a arquiteta da Secretaria de Turismo à época do projeto, Denise Almeida,


tratava-se de um projeto arrojado. “O projeto foi pensando na perspectiva de desafogar o
povoado Coqueiro, que hoje enfrenta problemas de trânsito, de mobiliário urbano, de
demarcação de linha de praia, o que é um problema para o desenvolvimento do turismo na
região. O bairro Coqueiro vai ganhar novos contornos, implantação de sarjetas e meios-fios,
pontilhões de acesso às praias, iluminação herméticas próprias para ambientes de alta

1808
umidade e salinidade, arborização, passarelas elevadas para pedestres, algumas ruas serão
asfaltadas e outras garanhão pavimentação poliédrica, o que faz do projeto uma intervenção
arrojada”, Outro ponto considerado importante no projeto é a implantação de estacionamentos
ao longo das praias e a criação de um calçadão que vai delimitar a linha de praia. Segundo
Carlos Antonio Moura Fé, Superintendente do Meio Ambiente da Semar, a proposta de
delimitação da linha de praia na região do Coqueiro representa uma inovação na gestão do
nosso turismo, uma vez que não havia uma preocupação em trabalhar essa dinâmica.

A Praia do Coqueiro é uma região turística bastante procurada por ser propício
desenvolver atividades voltadas ao segmento de sol e praia, localizada no município de Luiz
Correia. Segundo o Plano Diretor do Município de Luís Correia, Lei nº 695, a região do
Coqueiro da Praia está localizada, na porção leste do município, dentro da Macrozona Rural
de Interesse Ambiental e Turístico (MRIAT), abrangendo o trecho da Área de Proteção
Ambiental (APA), do Delta do Parnaíba que está em território municipal. Mas na medida em
que apresenta uma grande variedade de recursos naturais, a fragilidade da infraestrutura
urbana desqualifica a paisagem natural, colocando em risco a riqueza da fauna e da flora
local.

Sob esse rico substrato paisagístico, nasce essa vila de pescadores, comunidade sobre a
qual se constrói o presente trabalho, o bairro Coqueiro da Praia possui um fluxo de visitantes
que baixo, decorrente principalmente a pouca infraestrutura disponível para os visitantes.

Com problemas urbanos recorrentes as das grandes cidades costeiras, o bairro enfrenta
problemáticas urbanas relacionadas ao lixo, iluminação pública, acessibilidade, mobilidade,
pavimentação, dentre outras.

Diante da vulnerabilidade urbana citada, a população encontra-se sem perspectiva,


desmotivada e envolvida em problemas sociais sérios, como violência e drogas.

Este projeto de pesquisa-ação tem como proposta a intervenção arquitetônica no edifício da


antiga Escola Estadual Deputado João Pinto, localizada na esquina da rua Antonieta Reis
Veloso com Rua José Querino, no bairro Coqueiro em Luís Correia, Piauí, Brasil. Atualmente
a escola encontra-se desativa, estando o edifício sem uso, suscetível às depredações e
degradações.

1809
Vale ressaltar a dificuldade de se encontrar bibliografia e/ou trabalhos acadêmicos que
tragam informações sobre o território em que se pretende trabalhar, entretanto, o que por um
lado pode ser um “problema”, por outro, pode-se considerar um ponto positivo para o projeto
que se pleiteia desenvolver, justificando a importância do mesmo e a necessidade da sua
execução.

O Território do Coqueiro da Praia, surge inicialmente como uma comunidade de


pescadores que desempenhavam a atividade da pesca por meio de instrumentos e artefatos
desenvolvidos artesanalmente pelos próprios pescadores. Essa atividade tem sofrido sérias
ameaças nos últimos anos e está em risco iminente de desaparecer. Um dos principais fatores
desse processo de desaparecimento da pesca artesanal e do seu ofício, é a pesca predatória que
acontece em alto mar, comprometendo a fauna marinha e interferindo nas outras relações que
dependem desse ecossistema para sobreviver. Além disso, o turismo sol e mar, potencialidade
do local, vem crescendo de forma desordenada e sem planejamento, impactando e trazendo
sérias transformações no modo de vida dos nativos.

A pesca predatória é proibida pela Lei nº 5.197, de 3 de janeiro de 1967, que dispõe
sobre a proteção à fauna, e dá outras providências. Alheio a esse dispositivo, essa prática é
facilmente percebida nos domínios dos litorais brasileiros e, neste caso, do litoral piauiense. O
que, mais uma vez, evidencia a ausência de políticas públicas, sobretudo de fiscalização dos
órgãos competentes, voltadas para preservação do meio ambiente e do patrimônio cultural
local

Pretende-se como temática desta pesquisa, revitalizar e reforma o edifício em desuso


no Centro de Referência para a salvaguarda dos saberes e fazeres das artes de pesca, além de
se tornar um Núcleo do MUDE. Esta edificação terá os seus espaços adaptados ao novo
programa de necessidades.

O foco do Centro de Referência é o conhecimento, reconhecimento, divulgação,


promoção, preservação, dentre os trabalhos de conservação, restauro, documentação e outras
atividades vinculadas ao processo de comunicação, técnicas expositivas, abordagens
pedagógicas, trabalhos comunitários, de natureza multiprofissional, interdisciplinar para
melhor conhecer, compreender, sistematizar e divulgar os itens que compõem o perfil

1810
patrimonial de uma comunidade. Aprimorar qualidade de vida a partir de pontos apresentados
anteriormente, e levando em consideração a região para a qual esta proposta está voltada.

Tabela 1: Matriz SWOT

E OPORTUNIDADES AMEAÇAS
X
- Revitalização de edifício sem uso; - A possibilidade de atraso na cessão do edifício
T
por parte do Governo do Estado;
- Núcleo do Museu de Território – MUDE -
E
REDE DE MUSEUS DELTA DO - A comunidade não se aproximar do CR;
R
PARNAÍBA;
N - Falta dos recursos para a reforma e revitalização
A - Atração de parceiros público-privados; do edifício.
S - Leis de Incentivos;

- Patrocínio direto;

IN FORÇAS FRAQUEZAS
T
- Presença da UFPI dentro do território; - Edificação sem usos, necessitando de ajustes ao
E
novo programa de necessidades.
- Localização do edifício no bairro Coqueiro;
R
- Aquisição e instalação de novos equipamentos e
N - As atividades a serem desenvolvidas no CR
com a comunidade e/ou a serviço desta. mobiliários.
A
S

Referencial Teórico

Para entendimento da denominação que será dada a edificação – Centro de Referência,


se fez necessário o entendimento das terminologias que a compõe. Para Holanda, 2016, centro
é o ponto central de uma área. E referência, ainda conforme Holanda 2016, é aquilo que se
refere, conta e relata. Ao se juntar as duas palavras obtém-se um local central que se referirá,
contará e relatará. No caso específico será um espaço onde patrimônio desta comunidade será
referenciado, contado e relatado.

1811
Em se tratando de Patrimônio, Varine, 2013 relata que o patrimônio constitui as raízes
visíveis da comunidade em seu território. E essas raízes são variadas, correspondem a todas as
diversidades culturais dos componentes da população que vive no território ou dele se
beneficia.

Varine, 2013 ainda comenta que patrimônio é um recurso para o desenvolvimento. É


na verdade o único recurso, juntamente com a população, que se encontra em toda a parte e
que basta procurar para encontrá-lo. A afirmativa justifica a localização do Centro de
Referência no território do Coqueiro, principalmente no que diz respeito a investigação do
patrimônio desta comunidade.

No Centro de Referência o patrimônio será divulgado e comunicado ao território.


Raffestin, 1993 define que território como um espaço onde se projetou um trabalho, seja
energia e informação, e que, por consequência, revela relações marcadas pelo poder.
Definição necessária ao entendimento das relações que aí se estabelecerão.

Entendendo este território como reflexo de uma cultura o IPHAN,2012 que referências
culturais são edificações e são paisagens naturais. São também as artes, os ofícios, as formas
de expressão e os modos de fazer são as festas e os lugares a que a memória e a vida social
atribuem sentido diferenciado são as mais lembradas, as mais queridas. São fatos, atividades e
objetos que mobilizam a gente mais próxima e que reaproximam os que estão longe, para que
se reviva o sentido de participar e de pertencer a um grupo, de possuir um lugar. Em suma,
referências são objetos, práticas e lugares apropriados pela cultura na construção de sentidos
de identidade, são o que popularmente se chama de raiz de uma cultura.

O CR desenvolverá atividades/projetos onde o espaço físico, ou melhor, o edifício será


necessário, para tanto, a reforma e revitalização do edifício serão fundamentais. O edifício
será o Núcleo Museológico do MUDE - REDE DE MUSEUS DELTA DO PARNAÍBA e
desta maneira conceitos e definições sobre a Museologia quanto Ciências Sociais Aplicadas
estão sendo aplicadas para futura aplicação da proposta da pesquisa.

Conforme o IBRAM, 2016 a Museologia deve estar a serviço da memória social:


identificação, qualificação, realização de inventários participativos, difusão de memórias,
formação de redes. (...) promover, de acordo com os relatos das comunidades que

1812
protagonizaram esta experiência inicial, são mencionados na publicação o conhecimento e
valorização das memórias locais; fortalecimento de tradições, identidades e laços de
pertencimento; valorização dos potenciais locais, com impulso ao turismo e economia nas
regiões envolvidas; desenvolvimento sustentável das localidades; e melhoria da qualidade de
vida, com redução da pobreza e violência. O Plano Museológico está sendo desenvolvido para
balizar as reformas e consecutivamente o programa de necessidades possa atender com
eficiência as propostas delimitadas no Plano.

Dentre o Plano Museológico, conta a comunicação e divulgação no centro de


referência, a qual seguirá as delimitações propostas para Expografia. Desvallées e Mairesse,
2013, comenta que este termo aparece como característica fundamental do museu, na medida
em que este é desenvolvido como o lugar por excelência da apresentação dos objetos à visão
(visualização), “mostração” (o ato de demonstrar como prova), e ostentação (como uma forma
de sacralização de objetos de adoração).

MÉTODO

A Metodologia básica para o desenvolvimento do projeto é a Pesquisa-ação e tem


como desafio o (Inventário Participativo) é planejar práticas culturais capazes de despertar,
nesses agentes o interesse pela preservação do seu patrimônio, provocar o desejo pelo
reconhecimento e salvaguarda dos modos de vida, bem como das experiências ancestrais e
formas vernáculas dos saberes e fazeres, que representam a identidade cultural da comunidade
local. Acredita-se que o material resultante da pesquisa, pode servir como orientador no
processo musealização de território e para o desenvolvimento de políticas públicas locais.
Ainda contará com os métodos de mapeamento comunitário, etnografia e história oral, com
vistas a integrar a comunidade com as temáticas a serem desenvolvidas no Centro de
Referência, bem como a identificação juntamente com a comunidade os patrimônios daquele
território.

Em se tratando de reforma e revitalização de um edifício, metodologias relacionadas


ao desenvolvimento de um Projeto Arquitetônico também foram contempladas, dentre eles o
Estudos de Casos.

1813
PÚBLICOS

A intenção deste Centro é beneficiar diretamente pesquisadores e a comunidade local


na tentativa de estabelecer relações dialógicas. E indiretamente, a comunidade de interesse
que se beneficiará com as transformações promovidas no território.

PARCEIROS E COLABORADORES

Pretende-se que os parceiros do CR sejam o IBRAM, na figura do Governo Federal, o


Governo do Estado do Piauí, o Município de Luís Correia, dentre outras instituições de
ensino, nacionais e internacionais, empresas privadas, OCP’s, ONG’s, Fundações de Amparo
à Pesquisa e Associações.

CAPTAÇÃO DE RECURSOS

A captação de recursos poderá se dar través de parcerias público-privadas,


financiamentos, editais e prestação de serviços na elaboração e implementação projetos
práticos e acadêmicos, aluguel de salas, aluguel do espaço para eventos relacionados a função
do CR, exposições, eventos pagos promovidos pelo CR, arrendamento do café/lanchonete,
cursos e capacitações pagas, lojinha, dentre outros.

CONCLUSÃO

Diante das condições atuais da edificação e para que ela possa desempenhar seus
futuros usos, se faz necessário de forma premente, a Revitalização do prédio. A opção de
revitalizar, conforme conceito proposto pelo Dicionário do Patrimônio Cultural, 2016, se
refere comumente à estratégia de valorização de áreas dotadas de patrimônio cultural que
passam por processos degradativos. Por meio de uma refuncionalização dirigida e estratégica,
o emprego de funções vinculadas ao capitalismo global, como o turismo, cultura, negócios,
comércios e residências, é incentivado nessas ações de planejamento. Para intervir na
edificação é mais acertado revitalizar para habilitar a edificação aos novos desafios.

1814
Referências bibliográficas

DESVALLÉES, André; MAIRESSE, François (Ed.). Conceitos Chaves da Museologia. São


Paulo: Armand Colin, 2013. 100 p.

IBRAM (Brasil). Pontos de Memória. Disponível em: <https://www.museus.gov.br/wp-


content/uploads/2017/01/Pontos-de-Memória-Português.pdf>. Acesso em: 01 jun. 2017.

IPHAN (Brasil). Dicionário Patrimônio Cultural. 2016. Disponível em:


<http://portal.iphan.gov.br/dicionarioPatrimonioCultural/detalhes/58>. Acesso em: 01 jun.
2017.
<http://www.portalcostanorte.com/praia-do-coqueiro-deve-ganhar-nova-estrutura-para-o-
turismo/>

INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL (Brasil).


Inventário nacional de referências culturais: manual de aplicação. Brasília-DF, 2000.

INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL (Brasil).


Educação Patrimonial: inventários participativos: manual de aplicação. Sônia Regina
Rampim Florêncio et al. Brasília-DF, 2016.

LUÍS CORREIA. Prefeitura Municipal de Luis Correia. Plano Diretor do Município de


Luíz Correia. LEI Nº 695, de 30 de junho de 2010.

SUANO, M. O que é museu. São Paulo, brasiliense, 1986.

VARINE, Hugues de. As raízes do futuro: o patrimônio a serviço do desenvolvimento local.


Tradução: Maria de Lourdes Parreiras Horta. 1ª reimp. – Porto Alegre: Medianiz, 2013.

VARINE, Hugues de. O Ecomuseu. Ciências e Letras, n. 27, p. 61-90, 2000.

1815
ACERVO CULTURAL: CURADORIA DIGITAL E REUSO

Éricka Madeira de Souza*


Luis Fernando Sayão*
*Fundação Casa de Rui Barbosa

Resumo: O presente texto discorre sobre como os museus trabalham tecnicamente com o aumento
contínuo dos objetos digitais culturais presentes nas instituições museológicas e que se tornam
também parte do seu patrimônio cultural. O objetivo é demonstrar que os museus podem dinamizar a
oferta de serviços informacionais integrada com as demais instituições culturais através da curadoria
digital deste material, incentivando o compartilhamento e o reuso destes objetos digitais culturais.
Espera-se a confirmação da curadoria digital como recurso para controle e manutenção do tratamento
técnico dos objetos digitais culturais, proporcionando o reuso dos mesmos em prol da expansão do
conhecimento e difusão da informação.

Palavras-chave: acervo digital; curadoria digital; museus; objeto digital cultural; reuso.

Abstract: The present text discusses how museums work technically with the continuous increase of
the digital cultural objects present in the museological institutions and that also become part of its
cultural patrimony. The objective is to demonstrate that museums can stimulate the supply of
information services integrated with other cultural institutions through the digital curation of this
material, encouraging the sharing and reuse of these cultural digital objects. The digital curatorship is
expected to be confirmed as a resource for the control and maintenance of the technical treatment of
cultural digital objects, allowing them to be reused in order to expand knowledge and disseminate
information.

Key-words: digital collection; digital curation; museums; digital cultural object; reuse.

ACERVO CULTURAL: CURADORIA DIGITAL E REUSO

O tema desta pesquisa é desenvolvido no mestrado profissional do Programa de Pós-


Graduação em Memória e Acervos, da Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, a
partir dos trabalhos desenvolvidos pela Coordenação de Museologia da Superintendência de

1816
Museus (SMU), Secretaria de Estado de Cultura do Rio de Janeiro (SEC-RJ), equipe que
integro desde 2013.

O ambiente de pesquisa deste trabalho se insere no âmbito da Rede Web de Museus do


Estado do Rio de Janeiro, um projeto da SMU, cujo objetivo principal é instituir e fomentar
um ambiente colaborativo na web, a partir da disseminação e do gerenciamento dos acervos
museológicos do estado (BRASIL, 2014). Pretende ainda estimular a troca de experiências e a
cooperação técnica entre suas unidades participantes, promovendo a atualização e adoção de
padrões e normas de tratamento técnico, apoiada em fóruns de discussão de temas específicos,
e a possibilidade de desenvolvimento de aulas e ações educativas que possam se basear nos
seus acervos conjuntos e interligados.

A Rede também fornece aos seus membros uma ferramenta tecnológica de catalogação
de acervos, o Sistema de Gerenciamento de Acervos Museológicos (SISGAM), desenvolvida
em 2007, pela Fundação Anita Mantuano de Artes do Estado do Rio de Janeiro (FUNARJ)
em parceria com a SMU/SEC-RJ, que permite e promove a ampliação de acesso às coleções
nele catalogadas pelo acesso via internet, a oferta de serviços integrados e a presença online
das atuais vinte e cinco instituições participantes.

O SISGAM é uma plataforma tecnológica online de gestão, registro e documentação


de acervos, utilizando normas e padrões de descrição reconhecidos internacionalmente e que
viabiliza a pesquisa transversal nas suas coleções, e em 2014, por meio do Projeto Rede Web
de Museus, promovido novamente em parceria da FUNARJ com a SEC/SMU, esta
plataforma foi oferecida primeiramente para as instituições que receberam recursos de editais
abertos pela SEC/SMU, compondo a Rede a partir destas adesões.

Este trabalho se justifica por reconhecer e reforçar a importância da curadoria digital


no tratamento técnico dos objetos digitais culturais das instituições museológicas, e tentar
corroborar com o desenvolvimento de seus conceitos e a aplicação de suas técnicas nestes
acervos. Ou seja, um novo modelo de gestão para ser aplicado nestes novos objetos das
instituições culturais. A fim de garantir as possibilidades de uso e reuso destes objetos
digitais, é essencial não só para a expansão do alcance dos equipamentos culturais sobre a

1817
sociedade, seja tecnicamente tratado e gerenciado, potencializando a gama de serviços
informacionais gerados a partir destes bens culturais.

Os desdobramentos da sociedade moderna trouxeram novos questionamentos sociais e


culturais aos museus, como de que maneira estreitar os relacionamentos das coleções não só
com as comunidades sociais, mas também com as demais instituições culturais aproximando
suas coleções de modo que seus objetos estabeleçam relações de troca e acréscimo de
informações entre si mediante pesquisas e trabalhos desenvolvidos em parceria,
proporcionando a dinamização de serviços? Este trabalho aborda a curadoria digital como
solução para promoção desta interação e do reuso das informações em diferentes contextos.

Museus: transição para novas formulações

Conforme o desenvolvimento da sociedade e do domínio de seus conhecimentos,


também foi exigido das instituições que a cercam o acompanhamento destes processos que
reconfigura o comportamento social e gera uma demanda cada vez mais intensa de
informação e dos fluxos de comunicação.

A partir da década de 1990, os museus começaram a explorar novos níveis de relação


e interação entre suas obras e os públicos proporcionados pelo avanço da tecnologia com o
advento da internet. A ocupação deste território intangível e recente, mas de muitas
possibilidades, logo permitiu perceber o alcance da projeção de comunicação e da capacidade
de ampliação dos potenciais de difusão e acesso às suas coleções.

Jamie McKenzie (1995)132, definiu os museus virtuais sugerindo que seriam coleções
de artefatos eletrônicos e recursos informacionais que possam conduzir o usuário pesquisador
a outros sítios virtuais, estabelecendo relações com outros recursos que também sejam de
interesse dos museus, englobando basicamente tudo que possa ser convertido para o meio
digital.

Mais tarde, com a incorporação destes novos recursos tecnológicos às metodologias de


trabalho nos setores dos museus, a automação de seus acervos e disponibilização para acesso

132
Tradução nossa.

1818
na web foram fluxos de trabalho naturais a serem seguidos nestes locais, tendo em vista as
vantagens acrescidas a diversos segmentos do museu e maior segurança da informação
referente aos itens, contribuindo com a preservação do patrimônio cultural.

A consolidação dos museus com suas múltiplas facetas perante a responsabilidade


social de preservar e promover este patrimônio cultural, a heterogeneidade de suas coleções e
a busca pela constante integração transversal dessas coleções e seus conteúdos informacionais
envolve um engajamento articulado dentro da própria instituição, como vemos em “A garantia
da integridade passa pela realização de diferentes atividades de gestão de acervos que
permitem ao museu se estabelecerem de fato, como um espaço de pesquisa, produção e
disseminação de conhecimento.” (MACHADO; MONTEIRO, 2010, p. 134).

O Conselho Internacional de Museus (ICOM)133, em seu Código de Ética para Museus


(2011)134, estabelece as prioridades dos museus enquanto equipamentos culturais que devem
preservar, interpretar e promover o patrimônio da humanidade e, consequentemente, garantir
que estes objetos e suas informações sejam registradas, documentadas, pesquisadas,
preservadas e estejam disponíveis e difundidas na sociedade, baseado no princípio de que

Os museus são responsáveis pelo patrimônio natural e cultural, material e


imaterial. As autoridades de tutela e todos os responsáveis pela orientação
estratégica e a supervisão dos museus têm como primeira obrigação proteger
e promover este patrimônio, assim como prover os recursos humanos,
materiais e financeiros necessários para este fim (ICOM, 2011, p. 14).

Com uma formulação mais eloquente a respeito dos museus virtuais, podemos ver no
artigo “O que se pode designar como museu virtual segundo os museus que assim se
apresentam...”, com autoria da museóloga Diana Lima (2009), a partir de uma perspectiva da
consolidação das tecnologias da informação, os resultados de pesquisas acerca de termos e
conceitos técnicos do campo da museologia, dentre outros esclarecimentos e exposição de

133
International Council of Museums.
134
O documento original foi publicado em 1986, sua última revisão foi realizada em outubro de 2004, em Seul,
Coréia do Sul.

1819
termos associados ao âmbito dos museus virtuais, exemplifica três possíveis categorias
deduzidas deste tipo de museu.

A autora apresenta o Museu Virtual Original Digital, onde o museu e sua coleção não
possuem correspondentes no mundo físico e estão disponíveis para acesso e consulta somente
no ambiente digital da internet; o Museu Virtual Conversão Digital, onde o museu possui um
correspondente no mundo físico, com objetos físicos, mas também está disponível on-line por
meio de objetos digitais que foram convertidos dos objetos analógicos do museu; por fim,
expõe o tipo Museu Virtual Composição Mista, em que “O Museu é criado digitalmente e só
existe na web, mas a coleção que é exibida resulta de coleta e arranjo (imagens ou textos)
feitos por este Museu, procedendo de vários lugares, instituições, pessoas da vida real.”
(LIMA, 2009, p. 12).

Patrimônio digital: objetos digitais culturais

Os recursos digitais foram tão incorporados pela sociedade que, atualmente, os objetos
digitais já compõem grande parte do nosso patrimônio cultural e intelectual, por englobarem
também objetos já elaborados e nascidos nestes formatos, que apenas existem virtualmente
com o apoio de programas e códigos binários, em detrimento de outros materiais físicos,
como diários digitais em blogs ou vídeos digitais que substituíram os filmes de acetato
(YOUNG, 2012, p. 2).

Parte deste material produzido digitalmente já vem compondo patrimônio de suas


comunidades desde o final da década de 1960, quando a arte passou a se manifestar por meio
dos recursos digitais com o surgimento da videoarte. A UNESCO, United Nations
Educational, Scientific and Cultural Organization (2003), definiu que o patrimônio digital
“Abarca recursos culturais, educacionais, científicos e administrativos, assim como técnicos,
legais, médicos e outros tipos de informações criadas digitalmente, ou convertidas para o
formato digital a partir de formas analógicas.”.

Os objetos digitais culturais podem desempenhar inúmeras funções em paralelo aos


objetos físicos dos museus e demais instituições culturais, o que lhes confere um imenso valor
para o desenvolvimento informacional dos acervos físicos, e no que diz respeito aos processos

1820
de manutenção e preservação também estas coleções devem receber o tratamento necessário
e, por consequência, integram o patrimônio destas instituições.

Com relação às atividades de documentação e à segurança das obras do museu as


imagens digitais dos objetos compõem as suas fichas catalográficas. Muitas exposições
utilizam estas imagens digitais como recursos visuais na museografia projetando-as durante a
evolução da exposição. As imagens também são requisitadas por pesquisadores externos em
virtude de algum tema que perpasse pela obra pertencente ao museu ou que encontre nela
algum apoio aos seus argumentos.

No que diz respeito à conservação do bem e a evolução ou manutenção do seu estado


de conservação a coleção digital permite uma comparação entre o registro fotográfico do item
de uma data passada e o registro atual da obra, este controle propicia a organização de um
planejamento regular de conservação nas coleções do museu e de supervisão ou revisão
climática do ambiente de guarda das obras. Com relação às ações de restauro nas obras de um
museu, as imagens são essenciais para a documentação de todo o processo efetuado no bem,
registrando seu estado físico anterior ao restauro e posterior, demonstrando o resultado das
ações.

Os objetos digitais culturais devem significar dentro de suas instituições mais do que
apenas representações digitais dos acervos físicos, pois suas possibilidades de uso e reuso são
extremamente flexíveis, desde que recebam os tratamentos técnicos e gerenciamentos
adequados, permitindo essa alta usabilidade, como vemos em “o acervo digital que está
paralelo ao acervo físico original, pode ir além de uma representação funcional deste,
ampliando o seu potencial informacional, comunicacional e de reinterpretação e
apresentação.” (SAYÃO, 2016b, p. 3).

A qualidade de uma coleção digital está diretamente associada à capacidade da


coleção de atender às necessidades de ao menos duas comunidades de usuários desta coleção,
conforme o guia de construção de boas coleções digitais, “A Framework of Guidance for
Building Good Digital Collections”, publicado em 2007 pela National Information Standards
Organization (NISO), uma associação não lucrativa americana que, desde 1939, “[...]
identifica, desenvolve, mantém e publica padrões técnicos para o gerenciamento

1821
informacional no constantemente mutável ambiente digital”135 (NISO, 2009). A tecnologia e
suas possibilidades conduziram esta avaliação qualitativa a outros requisitos, e para tal, uma
boa coleção digital deve ser capaz de atender a demandas de diferentes tipos de comunidades
de usuários, incluindo diversos tipos de usabilidade, acessibilidade e readequação.

Documentação e preservação do patrimônio digital

A memória da web não é criada de maneira orgânica, como a disciplina da História se


encarrega de documentar, pesquisar e transmitir os fenômenos sociais, culturais e
econômicos, segundo Sayão (2016a) ela precisa ser planejada e projetada intencionalmente e
para o processo de interoperabilidade e promoção de maior interação com os usuários, é
importante que os objetos digitais culturais sigam um planejamento de concepção, onde os
metadados e os direitos associados são essenciais para garantir seu potencial de reuso.

Os metadados circunscrevem, descrevem e controlam uma informação ou um conjunto


de informações relevantes que estão associadas ao objeto em análise, vem expandindo sua
capacidade de abrangência para além de apenas descrever e controlar dados,“[...] descrevem
os atributos dos documentos [...] dando-lhes significado, contexto e organização, permitindo a
produção, gestão, utilização deles ao longo do tempo.” (SAYÃO, 2016a, slide 69).

Em 2010, Sayão expõe o desenvolvimento e a expansão das funcionalidades dos


metadados que auxiliam na garantia do acesso e da interpretação desses conteúdos e cita
algumas das principais funções dos metadados no ambiente virtual no que diz respeito à
gestão e preservação dos objetos digitais, “[...] controle dos direitos, intercâmbio, comércio
eletrônico, interoperabilidade técnica e semântica, reuso da informação e curadoria digital,
[...]” (p 3) e apresenta as seguintes categorias: metadados descritivos, estruturais,
administrativos e de preservação.

Os metadados de preservação são essenciais para o planejamento da preservação


digital. Eles são responsáveis por documentar a conjuntura tecnológica em que os objetos

135
“[...] identifies, develops, maintains, and publishes technical Standards to manage information in today’s
continually changing digital environment” [tradução nossa].

1822
digitais foram criados. Informam sobre os relacionamentos e ordenação dos hardwares e
softwares necessários para a reprodução e decodificação do objeto digital.

O ideal é que seja possível reconhecer as especificidades técnicas do ambiente digital


de concepção daquele objeto e, a partir destes dados, reconstruí-lo quando necessário ou
submeter o objeto em questão aos mesmos programas que eram utilizados para sua leitura e
interpretação. Lembrando que, além da decodificação do objeto, é fundamental que seja
possível reproduzi-lo com a mesma apresentação que o objeto foi criado, muitas vezes o
usuário depende desta forma de apresentação para a interpretação real da mensagem e do
conteúdo do objeto.

No caso das coleções digitais, a ideia de preservação está atrelada a outros tipos de
demandas de ações em torno destes objetos digitais. Para manter o acesso contínuo a estes
objetos da maneira em que foram projetados em alguns casos é preciso manter sua estrutura
lógica em constante atualização e alteração, como a mudança de formatos, renovação de
mídias, hardwares e softwares.

A preservação digital é um compilado de “[...] ações requeridas para manter o acesso a


materiais digitais além dos limites de falha da mídia ou da mudança tecnológica.”136 (DPC,
2008, p. 24), e é um campo recém explorado pelas equipes técnicas de instituições
museológicas. Tal qual a preservação de objetos físicos, exige recursos pouco comuns em
instituições culturais de pequeno porte. Esta ação está inserida na curadoria digital, que inclui
“os processos de arquivamento digital e preservação digital, os processos necessários para
criação de dados de qualidade e gestão, e a capacidade de acrescentar valor aos dados para
produção de novas fontes de conhecimento.” (SANTOS, 2014b, slide 21).

De acordo com o livro “Preservation management of digital materials: the


handbook”137 (2008) publicado pela Digital Preservation Coalition, uma instituição com
sedes administrativas no Reino Unido e na Irlanda, que tem a missão de tornar nossa memória
digital acessível para o futuro,

136
“[...] actions required to maintain access to digital materials beyond the limits of media failure or
technological change.” [tradução nossa].
137
Este livro foi compilado primeiro por Neil Beagrie e Maggie Jones, atualmente é mantido e atualizado pelo
DPC [tradução nossa].

1823
Materiais digitais são especialmente vulneráveis a perda e destruição porque
eles são armazenados em mídia frágil magnética e opticamente que deteriora
rapidamente e que pode falhar inesperadamente devido à exposição ao calor,
umidade, ar contaminado, ou por falhas de dispositivos de leitura e gravação
(HEDSTROM, MONTGOMERY apud DPC, 2008, p. 36).

A obsolescência tecnológica é o maior desafio enfrentado pelos profissionais da


informação para a preservação digital, posto que ela ameaça não só o acesso e a reutilização
das informações contidas nos objetos digitais, mas também o aspecto estrutural do objeto.
Como o conteúdo, a forma e a apresentação do objeto digital estão intimamente associados a
este ambiente tecnológico em que foi desenvolvido, ou seja, para ser acessado, compreendido
e interpretado por um indivíduo ele precisa ser intermediado por diversas camadas de
tecnologia, como softwares, hardwares e equipamentos especiais, é essencial que além dos
metadados descritivos, haja o conjunto de metadados que registrem as informações sobre este
meio de leitura e apresentação do objeto.

Deste modo, deduz-se que tão importante quanto a preservação do suporte da mídia, é
a preservação da tecnologia correspondente ao acesso daquela mídia e o gerenciamento passa
a ser norteada em função de algo invisível, “Preservação digital não é armazenamento
digital.” (SAYÃO, 2016a, slide 27).

Na dissertação “Curadoria digital: o conceito no período de 2000 a 2013”, de Thayse


Santos (2014a), para o programa de Mestrado em Ciência da Informação, da Universidade de
Brasília, a autora apresenta um levantamento e uma reflexão da trajetória da expressão
curadoria digital no período de 2000 a 2013, e enuncia que

A curadoria digital é o processo de estabelecimento e manutenção de um


corpo confiável de informação digital dentro de repositórios de preservação
a longo prazo para uso corrente e futuro por pesquisadores, cientistas,
historiadores e acadêmicos em geral. (SANTOS, 2014a, p. 106).

1824
Os repositórios digitais confiáveis são centros de armazenamento para o depósito legal
dos documentos e objetos digitais produzidos ou mantidos por uma instituição e onde a gestão
ativa destes dados se desenvolve, “No intuito de por em prática soluções para o problema,
observa-se, no âmbito de várias disciplinas, um esforço em torno do desenvolvimento de
repositórios digitais orientados especialmente para uma gestão ativa de dados de pesquisa.”
(Idem, p. 49).

No Brasil, uma importante iniciativa neste campo partiu da Rede Cariniana, criada em
2002, pelo Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT), que é
vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Em 2013, a Rede, em parceria
com mais cinco instituições de ensino superior no Brasil, aderiu ao programa LOCKSS 138 da
Universidade de Stanford, na Califórnia (EUA), o qual “[...] fornece softwares livres de
preservação digital premiados [...], com vistas à preservação de conteúdos digitais
permanentes e originais, assim como à garantia de acesso a esses acervos.” (REDE
CARINIANA, 2016).

Uma política de preservação digital em qualquer instituição tem início na intenção do


projeto, relacionada com a missão do local e precisa traçar seu planejamento em função de
etapas de acordo com a prioridade e a estrutura para a continuidade do trabalho. Neste
sentido, “A condição básica à preservação digital seria, então, a adoção desses métodos e
tecnologias que integrariam a preservação física, lógica e intelectual dos objetos digitais.”
(REDE CARINIANA, 2014).

Curadoria digital

O termo técnico curadoria tem sua origem no escopo da museologia, na conjuntura de


planejamento e concepção de exposições, onde o curador é o profissional reconhecido como
especialista no tema pela sua comunidade profissional e técnica. Dentro da contextualização
abordada no tema de uma exposição, o curador é responsável por selecionar as obras de arte
ou objetos documentais que integrarão o evento, e poderão ser publicados no catálogo da

138
Lots of Copies Keep Stuff Safe; Muitas Cópias Mantém Coisas a Salvo [tradução nossa].

1825
exposição, por meio de conhecimento profundo sobre o tema e pesquisa e supervisionar a
montagem das exposições.

A expressão curadoria digital compreende que atualmente os conteúdos digitais


produzidos não apenas nos museus, mas em todas as instituições que trabalham com a
informação digital, necessitam igualmente de seleção, armazenamento, classificação e análise,
colocando estas questões em cheque nas instituições que atuam no cenário informacional, seja
produzindo ou apenas transmitindo conteúdos.

A noção de curadoria digital surgiu pela primeira vez em 2001, a partir de


preocupações expressas em questões tal qual como garantir a autenticidade e a integridade de
valores culturais digitais (CONSTANTOPOULOS, DALLAS, 2010). Abbot (2010) afirma
que o conceito inclui não só as ações de preservação digital, mas todo o processo de gestão
destes dados, desde o planejamento de sua criação até as boas práticas de digitalização,
vertente também apoiada pelo DCC – Digital Curation Center - (2014a), que sintetiza a
curadoria digital na manutenção, preservação e agregação de valor aos documentos digitais e
propõe um modelo de ciclo de vida da curadoria digital (2014b).

Os objetivos específicos da curadoria digital são garantir algumas características


essenciais para a manutenção da relevância e da preservação dos objetos digitais. São elas: a
fácil acessibilidade ao objeto como um todo, tanto à sua composição quanto à sua
apresentação e conteúdo; a veracidade das informações que o objeto ou documento digital
pretende comunicar; a autenticidade; a confiabilidade, manter o grau de fidelidade da
informação contida daquele objeto ou documento em relação ao original; a usabilidade,
refere-se à capacidade do objeto digital ser usado em mais de um contexto, proporcionando
múltiplas facetas de pesquisa a seu respeito, por exemplo, e endossando a história do objeto
através do acréscimo de mais informações em sua documentação; por fim mas não menos
importante, a integridade, que prova a apresentação origina do objeto, por meio da
documentação de suas informações através dos metadados.

Reuso de coleções digitais

1826
O reuso dos objetos digitais é um dos maiores objetivos da curadoria digital. Através
de todo gerenciamento no processo da curadoria digital é possível obter serviços derivados
dos objetos tratados tecnicamente, promover a socialização e o compartilhamento destes
dados em outros contextos de modo que os objetos ou dados digitais não fiquem restritos às
análises de seu contexto original, alcançar novas audiências nestas instituições. O público
jovem é a comunidade de usuário mais ativo no ambiente virtual e as inovações que
promovem e difundem pelas redes da internet podem beneficiar os museus e seus acervos, e
principalmente, estes processos auxiliam na construção a análise da memória coletiva,
aproximando as coleções dos museus da sociedade sem riscos de danos ao patrimônio físico.

O reuso fomenta também, além da interdisciplinaridade entre museus, arquivos e


bibliotecas, principais centro de produção e disseminação de informação, a
interdisciplinaridade de pesquisas a partir do compartilhamento das informações obtidas e
geradas e do conhecimento adquirido, “[...] essas tecnologias têm o potencial não somente de
engajar novas audiências para as coleções dos museus, mas também de produzir concepções
inéditas de produtos e serviços culturais.” (SAYÃO, 2016b, p. 8).

Nos museus os objetos digitais podem ir além das funções de gerenciamento como
documentação, apresentação e conservação dos objetos físicos, conforme já visto
anteriormente. Uma base de dados de imagens, que organize e recupere as especificidades
técnicas pode ampliar o domínio de interação entre estes objetos e aumentar seu grau de
usabilidade.

As coleções digitais beneficiam e enriquecem as coleções físicas dos museus de tantas


formas quantas forem possíveis a criatividade da equipe e comunidade envolvida com os
museus, principalmente contribuindo para uma transversalidade e intercâmbio de
conhecimento entre as demais instituições que são referências da guarda e comunicação da
memória da sociedade e produtoras de informação, como as bibliotecas e os arquivos, por
exemplo.

Considerações finais

1827
No cenário do reuso de objetos digitais culturais já há algumas instituições e
organizações pioneiras que se consolidaram como referências no uso e promoção destes
recursos como o projeto Europeana Space, cujo objetivo é contribuir com o crescimento e o
fomento da indústria criativa na Europa a partir dos recursos culturais digitais das instituições
que integram o projeto, oriundas de diversos países.

Estes projetos servem como inspiração para o espelhamento das atividades


desenvolvidas em outros locais que ainda estão em processos de digitalização de seus acervos
ou de estruturação da curadoria digital. Espera-se que a conclusão deste projeto corrobore
com o desenvolvimento e consolidação da curadoria digital no ambiente da Rede Web de
Museus, onde as instituições participantes podem dinamizar seus acervos e seus serviços
informacionais oriundos da produção de conhecimento a partir da interação entre as coleções.

Conforme a ilustração abaixo, no caso da Rede Web de Museus, pode-se concluir que
a Rede vem estruturando um ambiente de objetos digitais culturais que em paralelo aos
objetos físicos também demandam um trabalho de gestão dinâmica destes arquivos com a
curadoria digital, de modo que eles possam ser tratados e preservados a fim de garantir o
acesso contínuo aos seus conteúdos e conservem seus potenciais para a geração de novos
serviços informacionais na área cultura, contribuindo com a indústria criativa e também
fomentando novas oportunidades de emprego.

1828
Figura 1: Ciclo da curadoria digital para o reuso de objetos e informações

As possibilidades de reuso destes arquivos e das informações por eles produzidas a


partir da reanálise ou da combinação de dados relacionados são inúmeras. Alguns exemplos
do que a Rede pode proporcionar para suas instituições são aulas virtuais que apoiem projetos
educacionais, material para aplicativos e jogos que envolvam o conteúdo das coleções,
exposições virtuais que reproduzam ou dialoguem com as exposições físicas, entre outros.

Para que estes propósitos sejam alcançados efetivamente é necessário que a curadoria
dos objetos digitais seja planejada e realizada por equipes técnicas cada vez mais
especializadas e apoiadas em tecnologias e infra-estruturas adequadas, as instituições
precisam investir também nestes recursos a fim de manter o acesso à memória institucional
digital das mesmas. Além dos benefícios do reuso das coleções digitais para os acervos físicos
dos museus, a partir da curadoria digital destes materiais planejada em função de boas práticas
de criação dos objetos digitais, seleção, preservação digital, armazenamento entre outras, evita

1829
a duplicação de esforços institucionais nestas iniciativas e, principalmente, o retrabalho do
manuseio dos objetos de museus que também representa para o acervo físico um desgaste e
exposição a diversos riscos para sua integridade física.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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1831
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YOUNG, Hilary. How can museums preserve out digital heritage? Wired. Reino Unido,
2012. Disponível em: <http://www.wired.co.uk/article/how-can-museums-preserve-our-
digital-heritage>. Acesso em: 20 ago. 2017.

1832
PRESENÇA KARAJÁ: IDENTIFICAÇÃO, PROTEÇÃO E PROMOÇÃO DE
COLEÇÕES E DO PATRIMÔNIO IMATERIAL

Manuelina Maria Duarte Cândido (UFG)*


Nei Clara de Lima (UFG)*

Resumo: Apresentaremos o projeto de pesquisa Presença karajá: cultura material, tramas e


trânsitos coloniais, que possui entre seus objetivos mapear, identificar e analisar coleções de bonecas
karajá (ritxoko) presentes em coleções de museus brasileiros e estrangeiros com vistas a reconstituir a
trajetória de formação das coleções, os contatos entre pesquisadores/instituições e grupos indígenas
karajá, bem como estudar adornos corporais e indumentárias das bonecas.
Em seu desenvolvimento realizará o cotejamento entre os objetos e sua documentação museológica,
contribuindo, sempre que possível, com as instituições museológicas no aprimoramento das
informações registradas.
Além disso, irá contribuir para a difusão das coleções de bonecas karajá presentes em museus no
Brasil e no exterior, estimulando o desenvolvimento de novas pesquisas e de projetos de comunicação
museológica (exposições e ação educativo-cultural) a partir delas.
Consideramos que este projeto contribui para o alcance de objetivos da Recomendação sobre a
Proteção e Promoção de Museus e Coleções, documento da UNESCO de 2015, pois realça coleções
por vezes secundarizadas em seus museus de origem e retoma algumas que não foram ainda
devidamente estudadas, produzindo conhecimento que poderá fundamentar exposições, ações
educativas e outras formas de extroversão das coleções, afora ajudar a perceber, para além da escala
local, o interesse patrimonializador sobre estas expressões materiais da identidade karajá.

Palavras-chave: Cultura material; Karajá; ritxoko; coleções

1833
Abstract: We will present the research project Presença karajá: cultura material, tramas e
trânsitos coloniais (karajá presence: material culture, plots and colonial transits), that has between it’s
goals mapping, identifying and analyzing karajá dolls (ritxoko) collections in Brazilian and foreign
museums with views to reconstitute the formation trajectory of the collections, the contacts between
researchers/ institutions and karajá indigenous groups, as well as studying body adornments and
clothing of the dolls.
In it development it will realize the collation between the objects and it’s museological documentation,
contributing, whenever possible, with the museological institution with the improvement of the
information recorded.
Besides that, it will contribute for the diffusion of the karajá doll’s collections presents in museums on
Brazil and abroad, stimulating the development of new researches and museological communication
projects (exhibitions and educational-cultural actions) from them.
We consider that this project contributes for the achievement of objectives of the Recommendation
about Protection and Promotion of Museums and Collections, document from UNESCO of 2015,
because highlights collections that are often seen as secondary in their source museums and takes over
some ones that have not been yet properly studied, producing knowledge that could substantiate
exhibitions, educational actions and other ways of extortions of the collections, apart from helping to
perceive for beyond the local scale, the patrimonialising interest about those material expressions of
the karajá identity.

Keywords: Material culture; Karajá; ritxoko; collections

1834
Introdução:
Apresentamos aqui resultados preliminares do projeto de pesquisa “Presença
karajá: cultura material, tramas e trânsitos coloniais”139, em especial relevando suas
potencialidades para a promoção de coleções e do patrimônio imaterial a elas relacionado.

O objeto da pesquisa interdisciplinar é o mapeamento, identificação e análise de


coleções de bonecas cerâmicas Karajá (ritxoko) presentes em acervos de museus brasileiros e
estrangeiros. Ela se baseia, em alguma medida, no trabalho de campo que fundamentou o
dossiê intitulado Bonecas Karajá: arte, memória e identidade indígena no Araguaia. Ao final
do trabalho, realizado entre 2008 a 2011140, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (IPHAN) aprovou a inscrição das bonecas de cerâmica em dois Livros de Registro
do Patrimônio Imaterial 1) Saberes e práticas associados aos modos de fazer bonecas Karajá
e 2) Ritxoko – expressão artística e cosmológica do povo Karajá. Ao mesmo tempo, o Museu
Antropológico da Universidade Federal de Goiás (MA-UFG), que já possui centenas de peças
identificadas como ritxoko, reuniu, no processo de pesquisa para elaboração do dossiê, mais
uma coleção, que será incorporada ao acervo, configurando uma rica relação entre coleção e
patrimônio imaterial.

Nossos objetivos são percorrer a biografia dos objetos a partir do estudo da


trajetória das bonecas desde a produção e uso nas aldeias à formação de coleções em museus,
mapeando em que instituições elas estão presentes, no Brasil e no exterior, os contatos entre
pesquisadores/instituições e grupos indígenas Karajá, além de estudar adornos corporais e
indumentárias das bonecas.

139
Este projeto está sediado na Universidade Federal de Goiás (UFG) e conta com o apoio do Museu
Antropológico, do Núcleo de Estudo de Antropologia, Patrimônio, Memória e Expressões Museais (NEAP) e do
Grupo de Estudo e Pesquisa em Museologia a Interdisciplinaridade (GEMINTER). Integram sua equipe
pesquisadoras e estudantes de diferentes cursos da UFG, da Escola de Ciência da Informação da UFMG e da
Universidade de Évora, Portugal.
140
A pesquisa foi realizada nas aldeias Buridina e Bdè-Burè, em Aruanã, Goiás e Santa Isabel do Morro e
aldeias adjacentes, na Ilha do Bananal, no estado de Tocantins, com as ceramistas Karajá. Atualmente, parte da
equipe está envolvida com as ações de salvaguarda do bem cultural registrado, como apresentaremos a seguir.

1835
Já temos conhecimento de sua presença em pelo menos uma dezena de museus
brasileiros141:

- Museu Antropológico da UFG, Goiânia – GO;

- Centro Cultural Jesco Puttkamer, Goiânia – GO;

- Museu Goiano Zoroastro Artiaga, Goiânia – GO;

- Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade Federal do Paraná, Curitiba


– PR;

- Museu de Arqueologia e Etnologia Professor Oswaldo Rodrigues


(MArquE/UFSC), Florianópolis – SC;

- Pavilhão das Culturas Brasileiras - Secretaria Municipal DE CULTURA – São


Paulo SP;

- Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo – São Paulo


SP;

- Museu Paraense Emílio Goeldi – Belém, PA;

- Centro de Arte Popular da CEMIG – Belo Horizonte, MG

- Centro Nacional do Folclore e Cultura Popular – Rio de Janeiro, RJ;

- Museu do Índio – Rio de Janeiro, RJ;

- Museu Nacional – Rio de Janeiro, RJ.

E nos seguintes museus estrangeiros:

- Museu Nacional de Etnologia – Lisboa, Portugal;

- Museu do Quai Branly – Paris, França;

- Museu de Etnologia de Viena – Viena, Áustria;

- Museu de Etnologia de Basel, Suíça;

141
Dados de quando o artigo foi submetido, em meados de 2017. No final do ano, ao revisar o artigo, optamos
por não enumerar uma a uma as novas descobertas, que elevam o número de museus no Brasil e no exterior a 48
instituições, em 12 países.

1836
- Museu Nacional Pigorini de Pré-História e Etnografia – Roma, Itália;

- Grassi Museum (Museu Etnográfico de Leipzig) – Alemanha;

- Museu de Etnologia de Berlim – Alemanha;

- Museu de História Natural, Nova Iorque, Estados Unidos;

- Smithsonian Institution, Washington, Estados Unidos.

Compreendemos que os produtos decorrentes de uma pesquisa desta natureza,


como artigos científicos, apresentações em eventos de diversas áreas e a publicação de pelo
menos um livro com os resultados, são estratégias de promoção das coleções, estimulando
novas pesquisas e a realização de exposições, dando visibilidade ao mesmo tempo às coleções
de artefatos já musealizados mas também ao saber-fazer dos grupos indígenas que ainda
produzem e comercializam as ritxoko. Em termos de proteção, o projeto, mesmo em fase
inicial, já tem colaborado com a revisão da documentação museológica das coleções e irá
realizar registro fotográfico de coleções ainda não fotografadas, além de redirecionar o olhar
de museus em que elas possam estar secundarizadas, chamando a atenção para sua relevância
e potenciais. Por outro lado, podemos em contatos com os grupos detentores deste patrimônio
imaterial, intermediar diálogos com as instituições e suas demandas em relação à gestão das
coleções nos referidos museus.

Confecção, uso e comercialização das ritxoko


Essas bonecas foram originalmente confeccionadas para serem brinquedos de
meninas, e por meio delas, as mulheres ensinam às novas gerações os modos de ser Karajá,
representados nas figurações do brinquedo: as diferenças de gênero, de classes de idade e o
cotidiano do trabalho, os rituais, as narrativas míticas e os seres sobrenaturais. Feitas
inicialmente de cera de abelha ou de argila crua142, seca apenas pela ação do tempo, as
bonecas karajá hoje são confeccionadas em argila cozida, o que transforma esta matéria-prima

142
Bonecas do tempo antigo, denominadas hakana ritxoko. As de hoje são chamadas wijina bedè ritxoko (LIMA
et al, 2011)

1837
em cerâmica. São ritxoko as bonecas de cerâmica antropomorfas e iroduxumo as zoomorfas,
havendo ainda as kawa kawa, de madeira.
Quando de fala ritxoko já está subentendido que se tratam de bonecas figurativas
antropomorfas em cerâmica. As ceramistas mulheres são as responsáveis por sua produção e
pela das iroduxumo. As peças kawa kawa são feitas preferencialmente, mas não
exclusivamente, por homens.
Pelo menos desde o final do século XIX, as ritxoko, juntamente com outros
artefatos karajá, passaram a ser coletadas e levadas para acervos de museus, como o processo
que foi realizado nos anos 1930 por Claude Lévi-Strauss, recolhendo para o Museu do
Homem de Paris o conjunto hoje pertencente ao Museu do Quai Branly. A partir de meados
do século XX, elas passaram a ser fonte de renda das famílias, pois entraram no circuito
comercial de lojistas de artesanato, colecionadores privados e de museus e outros
interessados. Um dos resultados do seu registro como patrimônio imaterial brasileiro é a
recente valorização monetária das bonecas como mercadoria.
A presença de exemplares dessas bonecas em vários museus pelo mundo significa
que, de alguma forma, eram também comercializadas ou trocadas por bens industrializados
com colecionadores e pesquisadores que visitavam as aldeias e passaram a inseri-las no
mercado de bens artesanais: colecionadores, lojistas, pesquisadores ligados ou não a museus,
por meio de atravessadores, ou diretamente nas aldeias, encomendavam e adquiriam as
bonecas, fazendo com que as ceramistas encontrassem na venda das ritxoko uma fonte de
renda para a aquisição de bens dos torí (como denominam os brancos, os não-índios): as
ceramistas também afirmam que o dinheiro adquirido com a venda das bonecas serve, entre
outras coisas, “para comprar comida de torí, que é a comida que as crianças gostam”. Ou seja,
a motivação de sua existência derivada das crianças é sempre reiterada.
Da relação dos Karajá com segmentos da sociedade nacional podemos entrever
muitas e complexas trocas, como as decorrentes da entrada de dinheiro nas aldeias, com a
aquisição de vários bens, vestimentas, aparelhos elétrico-eletrônicos e alimentos
industrializados. Podemos também perceber as mudanças que esses produtos provocam nas
aldeias. Estas questões foram observadas em muitas situações no campo, que mostravam o
quanto a produção das bonecas dava autonomia às ceramistas para o acesso aos bens da

1838
sociedade envolvente, muito mais do que a produção de outros objetos artesanais feitos por
elas.
Toda a complexa e longa produção da boneca – desde a coleta e preparo do barro,
a queima do antiplástico e a modelagem das peças, as duas queimas, a decoração – era
transformada em dinheiro e em bens consumidos por toda a família (alimentos, roupas,
remédios, brinquedos). Para se referir ao potencial econômico da produção de bonecas pelas
ceramistas Karajá, Mahuederu, da aldeia Santa Isabel do Morro, na ilha do Bananal, diz:
“Ritxoko não é brincadeira não, ritxoko é ouro!”
No que tange aos contatos da população Karajá com a sociedade nacional (ou
sociedade abrangente), precisamos nos aprofundar para conhecer a maneira como as coleções
foram formadas: por quais pessoas e instituições, quais os interesses que determinaram a
formação das coleções, qual a época da coleta, como as bonecas foram (e se foram)
documentadas ou expostas, entre outros temas. Com essas informações será possível levantar
pequenas biografias dos objetos colecionados, das instituições e das ideias que motivaram a
constituição das coleções, a fim de poder elaborar reflexões sobre os trânsitos coloniais
experimentados por esses objetos.
De acordo com Resende:

“Os primeiros registros de contato com o povo Karajá foram realizados no


tempo das frentes de expansão no séc. XVII e depois no período das
bandeiras paulistas, no século seguinte. A intensificação do contato ocorre a
partir das políticas de navegação do General Couto de Magalhães e da
fundação da cidade de Leopoldina em 1859 e em seguida, com a criação do
Serviço de Proteção ao Índio (SPI), criado em 1910, transformado
posteriormente, na Fundação Nacional do Índio (FUNAI), que tinha por
finalidade o implemento de políticas indigenistas e da criação de pólos de
atração e integração de povos indígenas à sociedade não-indígena. Algumas
das ações desenvolvidas nesse sentido, diziam respeito à introdução do
manejo do gado e do cultivo do arroz. Entre o período do governo dos
presidentes Getúlio Vargas e Juscelino Kubitsheck, respectivamente nas
décadas de 40 e 60, foi criada a política de “desenvolvimento” da região
centro-norte do país, que ficou conhecida como Marcha para o Oeste. Dentre
os povos nativos da região, os Karajá simbolizaram a tentativa de integração
do governo. Na época foi construído um hotel de turismo na Aldeia Santa
Isabel do Morro, na Ilha do Bananal, sendo tal ação designada pela
Fundação Brasil Central. A partir de então a visita de turistas foi
intensificada.” (RESENDE, 2014, 21-22)

1839
As referências às bonecas Karajá aparecem desde os primeiros contatos com
etnógrafos, conforme afirmação de Whan:

“O alemão Paul Erhenreich, que esteve na região do Araguaia no ano de


1888, foi responsável pelo primeiro estudo sistemático sobre o povo e a
cultura Karajá (1948), tendo coletado muitos exemplares de “likoko” (…) e
outros artigos de sua cultura material.
Também Fritz Krause esteve entre os Karajá em 1908, durante a Expedição
ao Araguaia de Leipzig, ocasião em que estudou aspectos de sua organização
social, seus costumes, e cultura material. Reuniu e registrou muitos
exemplares de “bonecas de argila e cera”, que foram levados ao Museu de
Etnologia de Leipzig, na Alemanha.” (WHAN, 2010, p. 02)

Percursos da pesquisa
Ao elaborar o projeto de pesquisa interdisciplinar “Presença Karajá: cultura
material, tramas e trânsitos coloniais”143, o interesse em investigar a função/utilidade das
peças nas aldeias, a formação das coleções, os contatos das instituições patrimoniais com os
grupos indígenas, os processos que levaram bonecas karajá, a se tornarem um bem simbólico
mundializado presente nos museus brasileiros e estrangeiros, juntou-se a outros, como a
investigação das indumentárias e dos adornos corporais das bonecas constituídos por incisões,

143
A equipe é formada hoje por 18 pesquisadores, dos quais registramos aqui os integrantes no momento da
escrita do artigo:
Profa. Dra. Nei Clara de Lima (Antropóloga, Professora aposentada da FCS/UFG e ex-Diretora do Museu
Antropológico da UFG)
Profa. Dra. Manuelina Maria Duarte Cândido (Curso de Museologia, FCS/UFG)
Profa. Dra. Ema Cláudia Ribeiro Pires (Profa. Auxiliar no Departamento de Sociologia, Universidade de Évora)
Profa. Dra. Rita Andrade (Curso de Design de Moda, FAV/UFG)
Dibexia Karajá – Ceramista e Discente do Curso de Licenciatura Intercultural Indígena da UFG
Milena de Souza (Discente de Museologia FCS/UFG)
Indyanelle Marçal Garcia di Calaça (Mestranda em Arte e Cultura Visual FAV/UFG)
Rejane de Lima Cordeiro (Discente de Museologia FCS/UFG)
Vinicius Santos da Silva (Discente de Museologia da UFMG em intercâmbio na Universidade de Évora)
Ana Cristina Santoro (Conservadora e Restauradora de Bens Culturais - Museu Antropológico/UFG)
Markus Garscha (Fotógrafo)

1840
pinturas, adição de fios, de entrecasca de árvores e de outros materiais. Pretendemos com ele
investigar as complexas “redes de agentes em contínua e dinâmica interação, formadas pelas
ceramistas, pelos compradores e, principalmente, pelos próprios objetos, na sua
materialidade” (WHAN, 2010, p. 03 e 04), incluindo aí os próprios pesquisadores e
instituições ligadas ao patrimônio que contribuem para ressignificação e difusão das bonecas
como patrimônio cultural.
Nossa metodologia envolve levantamento bibliográfico e em diversas fontes como
catálogos, sites e bancos de dados de museus; checagem da documentação museológica das
bonecas, contribuindo com o museu, quando possível, para cotejamento e complementação de
informações em interlocução com as próprias ceramistas; realização do registro fotográfico de
coleções que ainda não o possuem; descrição e análise das bonecas com vistas à identificação
de singularidades em sua indumentária (incluídos aí adornos e pinturas corporais); elaboração
de biografias dos conjuntos de artefatos que tracem seus percursos da aldeia aos museus,
buscando identificar os sujeitos e os processos envolvidos na circulação de saberes sobre as
bonecas karajá; elaboração de artigos e outras publicações para promover as coleções,
estimulando novas pesquisas e exposições.
O projeto ainda está sendo iniciado e não conta com recursos financeiros, por esta
razão, em virtude da facilidade logística, tem priorizado os acervos e instituições existentes
em Goiânia, além do Museu Nacional de Etnologia de Lisboa, e mesmo assim dentro das
possibilidades e limitações do trabalho voluntário. No último caso, conta com os integrantes
da equipe residentes em Portugal. Apesar da ausência de recursos financeiros próprios, já foi
possível um profícuo encontro com o setor de América do Museu do Quai Branly, onde foram
coletadas informações e fotografias (apenas frontais) das 114 peças em sua coleção com os
critérios indicados: bonecas karajá antropomorfas em cerâmica.
Em relação a esta instituição, a equipe do projeto, com auxílio de Rafael Andrade,
mestre em Antropologia, fez uma revisão do material de documentação museológica cedido
pela instituição, que está sendo preparado para devolução ao curador, sugerindo algumas
informações complementares e correções especialmente em atribuição de gênero às bonecas
(poupée femme ou poupée homme) e toponímia dos locais de coleta, mas também da

1841
reclassificação de um artefato tido como ritxoko que não o é (trata-se de um objeto ritual
utilizado para a realização de feitiço). Assim, o quantitativo dessa coleção cai para 113 peças.
O Museu Nacional de Etnologia (Lisboa, Portugal), possui uma reserva visitável
denominada “Galerias da Amazónia”, em que se encontram diversas ritxoko com
características das bonecas antigas: pequeno formato e cabelos elaborados em cera. Por meio
de consulta ao banco de dados MatrizNet144 soubemos da presença de 123 bonecas karajá no
acervo. Integrantes do projeto têm feito visitas sistemáticas desde março de 2017 para alcance
dos objetivos da pesquisa. No momento, a equipe se debruça sobre uma planilha em que
organiza os seguintes dados sobre cada peça: número de inventário, tipologia, representação,
origem, matéria-prima, autoria, forma de aquisição e link para o inventário daquela peça.
No Museu Antropológico da UFG obtivemos informação inicial de um total de 865
bonecas karajá no acervo, sendo 810 na Reserva Técnica Etnográfica e 55 na exposição de
Longa Duração Lavras e Louvores. Ao longo de algumas semanas, em virtude da ausência de
uma base de dados que permitisse buscas rápidas, trabalhamos com a documentação
museológica para distinguir as coleções formadas pelo professor Acary de Passos Oliveira
(fundador do museu e seu diretor até 1983) e pela profa. Edna Luísa de Melo Taveira
(museóloga e também ex-diretora), com o objetivo de priorizar a coleção desta pesquisadora,
visto a professora ter colaborado como informante da pesquisa. Em paralelo, conseguimos
agendar e realizar uma visita à professora em que obtivemos preciosas informações e mais
material para a pesquisa, que será detalhado mais adiante.

Presença Karajá no Museu Antropológico da UFG


O Museu Antropológico foi criado em junho de 1969 e inaugurado em 5 de setembro
de 1970. Em seu sítio na internet, apresenta-se como uma instituição sem fins lucrativos,
aberta ao público, e que se destina à coleta, inventário, documentação, preservação,
segurança, exposição e comunicação de seu acervo. É um órgão suplementar da UFG
vinculado à Pró-Reitoria de Pesquisa e Inovação (PRPI).
Sua criação está ligada ao então Departamento de Antropologia e Sociologia (DAS) da

144
O MatrizNet é o catálogo on-line dos Museus do Estado Português, pertencentes à Direção-Geral do
Patrimônio Cultural (http://www.matriznet.dgpc.pt/MatrizNet/Home.aspx).

1842
UFG, vinculado ao antigo Instituto de Ciências Humanas e Letras (ICHL), atual Faculdade de
Ciências Sociais (FCS), quando no âmbito de uma pesquisa no Parque Indígena do Xingu, por
iniciativa dos professores que participaram de uma viagem de estudos, é formado o acervo da
primeira coleção etnográfica. Integraram esta viagem os professores Acary de Passos, Vivaldo
Vieira da Silva, Antônio Theodoro da Silva Neiva e o Pe. José Pereira de Maria, todos já
falecidos. No relatório dessa viagem os professores sugeriram “um plano de pesquisa com o
objetivo de estudar as populações do Xingu e criar um museu antropológico na UFG”145.
Os Karajá habitam o vale do rio Araguaia nos estados de Goiás, Tocantins, Mato
Grosso e Pará, somando cerca de 3.000 indivíduos, a maior parte vivendo na aldeia Hawalò,
ou Santa Isabel do Morro, Ilha do Bananal (TO). Nesta localidade, segundo a FUNASA,
encontram-se em torno de 670 habitantes (RESENDE, 2014, p. 21).
A “presença Karajá” no Museu Antropológico da UFG não se resume às ritxoko. Há
inúmeros outros tipos de artefatos como iroduxumo, kawa kawa, adornos corporais, objetos de
cestaria e cerâmicas utilitárias. O Museu realiza pesquisa e trabalhos com a comunidade
karajá desde o começo de sua atuação. Em 2010, como parte das atividades comemorativas
dos seus 40 anos, foi organizado um evento denominado “MUSEU ANTROPOLÓGICO: 40 ANOS

DE INTERLOCUÇÃO E PESQUISA COM O POVO KARAJÁ.” Foi produzido um DVD narrando a


história do Museu com os Karajá, vários exemplares foram entregues solenemente às
lideranças e ceramistas das aldeias Santa Isabel do Morro (Ilha do Bananal - TO) e Buridina
(Aruanã - GO), convidadas para o evento.
A iniciativa de elaboração deste material surgiu das próprias solicitações feitas pelos
Karajá de acessarem imagens antigas de familiares, registros realizados por pesquisadores do
Museu, nas pesquisas etnográficas. O DVD reuniu então um conjunto de fotografias
selecionadas em sua maioria de trabalhos realizados por Edna Luisa Taveira de Melo (entre
1970 e 1990) e Rosani Moreira Leitão (1996 e 1997), além de imagens mais recentes ligadas a
oficinas, seminários, exposições e outras atividades no Museu Antropológico.
A aproximação da instituição com os indígenas Karajá também decorre de pesquisas
em áreas como a etnolinguística, chegando aos recentes trabalhos para o registro da boneca
como patrimônio imaterial brasileiro, e prossegue e com as ações de salvaguarda das bonecas

145
Fonte: https://www.museu.ufg.br/p/1333-historia

1843
de cerâmica karajá, que consistem em ações de valorização das pessoas, estímulo à produção
e reprodução do bem por meio da proteção, preservação e divulgação. Neste caso, as ações de
salvaguarda incluem oficinas, intercâmbio entre aldeias, e publicações bilíngues para
fortalecimento da língua karajá, o Inyribè146.
No decorrer de seus quase 50 anos de existência o Museu Antropológico recebeu
diversos conjuntos de bonecas karajá, desde os primeiros formados por pesquisadores como
Acary de Passos Oliveira, até a doação feita no âmbito do projeto Bonecas Karajá: arte,
memória e identidade indígena no Araguaia em 2011, atualmente em fase de processamento
para ingresso na Reserva Técnica Etnográfica.
Inicialmente tínhamos conhecimento destes dois conjuntos de ritxoko no acervo e de
um formado pela professora Edna Taveira nas décadas de 1980 e 1990, além de uma doação
sua recente ao Museu ainda em fase de incorporação. Decidimos priorizar a coleção formada
por ela por poder contar com a professora como informante da pesquisa e, em 13 de fevereiro
de 2017, realizamos uma visita em sua residência, juntamente com Milena de Souza,
assistente de pesquisa do projeto. Na ocasião, pudemos saber sobre as missões de pesquisa e
coleta de acervo, bem como de sua intenção de realizar uma nova doação ao Museu incluindo
fotografias da missão a Santa Isabel.
Nessa reunião, a professora rememorou aspectos de sua gestão no museu (1983-1993 e
1995-1997), fazendo referência ao trabalho massivo de catalogação do acervo realizado em
1983 para adaptar o sistema documental ao padrão de numeração trazido pelo museólogo
Aécio de Oliveira147, da Fundação Joaquim Nabuco. Este ano é uma data reconhecida pelas
equipes do museu como o de maior entrada de acervos, quando mesmo peças já depositadas
anteriormente na instituição tiveram o ingresso formalizado, justificando uma enorme
superioridade numérica em relação aos outros anos. Edna Taveira também fez um relato sobre
os trabalhos de campo em que as bonecas e outros artefatos indígenas eram trocados por

146
https://www.museu.ufg.br/up/121/o/Bonecas_Karaj%C3%A1_-_salvaguarda_-
_texto_de_divulga%C3%A7%C3%A3o_05-01.pdf?1453228414
147
Foi então introduzida a numeração tripartida, a mais comum na documentação museológica, em que o ano de
entrada é seguido por um número referente à coleção e por outro com a numeração da peça dentro da coleção,
separados por pontos. Esta numeração permite facilmente a identificação do ano de entrada da peça no acervo, o
que facilitou nossa pesquisa, mas como muitas peças ficam no museu anos sem que seja formalizado o ingresso
no acervo, o ano às vezes não corresponde ao da coleta, mas da documentação.

1844
miçangas, barraca de lona (os indígenas costumavam solicitar barracas para duas pessoas,
utilizadas para as atividades de pesca), mosquiteiro e leite em pó. Identificou como seus
principais interlocutores Terraluna e Karirama, e como datas das missões, o ano de 1974, em
que realizou pesquisa para seu mestrado, 1979/80 quando atuou como assistente de Heloísa
Fenelon, e 1990, já como diretora do Museu.
A visita resultou também da descoberta de uma informação, até então desconhecida
pela equipe, de que organizou pessoalmente um conjunto de peças para o Museu Pigorini de
Pré-História e Etnografia, de Roma, por intermédio de um padre de Bologna cujo nome não
lembrou, tendo inclusive elaborado e enviado junto um projeto expositivo para a coleção que,
entretanto, não chegou a ser realizado.
Para priorizar a coleção da professora Edna Taveira no acervo do Museu
Antropológico, em virtude da então ausência de uma base de dados informatizada, em que
pudéssemos fazer buscas rápidas, realizamos uma força-tarefa com quatro integrantes da
equipe durante algumas semanas, consultando as pastas com fichas de catalogação do acervo,
organizando uma planilha do projeto somente com bonecas de cerâmica karajá, por sua vez
identificadas pelo número de inventário, ano, coleção/doador e se, segundo a ficha, trata-se de
cerâmica zoomorfa ou antropomorfa. Decidimos listar todas, não somente as antropomorfas,
pensando em ajudar o museu com a entrega da lista, para futuras pesquisas, mas também
descobrimos ter sido muito útil porque as fichas usadas na instituição são muito sumárias e a
descrição às vezes não permitiria saber se eram zoomorfas ou antropomorfas, ficando as
dúvidas assinaladas para quando do contato direto com as peças. Assim, evitamos deixar de
lado, no momento de acesso à reserva técnica, algumas peças antropomorfas que poderiam
estar erroneamente associadas a figuras de animais. Todas as peças que incluem figuras
humanas nos interessam, e algumas delas possuem representação de pessoas juntamente com
animais.
Chegamos a uma listagem de 970 bonecas em cerâmica de origem karajá, número
superior ao inicialmente indicado pelo Museu. Por sua vez, esse número está em franco
crescimento, pois a equipe da instituição está realizando um imenso trabalho de checagem e
reorganização, que já localizou alguns conjuntos de artefatos não documentados e aos poucos,
após aprovação pela Comissão de Acervo, na medida das possibilidades e força de trabalho

1845
disponível, vai dando entrada, com a incorporação das peças ao sistema documental. A
presença de duas integrantes desta pesquisa na Comissão de Acervo do Museu148 permite uma
atualização constante. Na reunião de 31 de julho de 2017 a Comissão de Acervo aprovou a
incorporação de mais 19 diversos artefatos karajá (dos quais 10 são ritxoko) doados pela
professora Edna juntamente com 64 já incorporados em 2016.
Na elaboração da lista que permitiria quantificar nosso universo de pesquisa no Museu
Antropológico da UFG e chegar às bonecas, priorizando uma coleção específica (daí a
listagem incluir este dado, mesmo tendo informação de que só haveria duas coleções, Acary
de Passos e Edna Luísa de Melo Taveira), fomos surpreendidas pelo registro de diversas
outras coleções, associadas a nomes de indígenas como Kutaria Karajá, Marwel Tuilá Karajá,
Ijesebery Karajá, Daniel Coxini Karajá, Kueredji Karajá e Lenimar Silva da Cruz Werreria,
associados a dezenas de números de inventário. Estes nomes não são mencionados
comumente quando se fala dos responsáveis pelo ingresso de bonecas karajá no acervo do
Museu Antropológico e cabe investigar qual o seu papel e o que diferenciou no processo de
entrada, os conjuntos identificados como Acary Passos e Edna Taveira, e os registrados desta
forma, referentes a anos da gestão da professora Edna. Diante disso, uma nova entrevista com
a nossa informante seria necessária149.
Mas além desta primeira camada de invisibilidade dos indígenas nos discursos,
encontramos uma segunda. Em um primeiro momento identificamos a maior parte destes
nomes como sendo do gênero masculino, o que corroboraria o que se sabe sobre as relações
entre as populações karajá e a sociedade envolvente, sempre mediada pelos homens, que
assumem papel de liderança e em geral resistem menos ao uso do português. As marcadas
diferenças entre o gênero masculino e o feminino na cultura karajá já foram estudadas e
referenciadas por diversos autores (LIMA FILHO, 1994; RESENDE, 2014; ANDRADE,

148
Ana Santoro, como responsável pela Coordenação de Museologia do Museu, e Manuelina Duarte, como
Coordenadora de Integração entre o Curso de Museologia e o Museu Antropológico, funções que possuem
assentos na Comissão e também no Conselho do Museu.
149
Infelizmente esta continuidade do diálogo com a professora foi abruptamente interrompido entre o envio da 1 a
versão deste artigo e esta revisão, com o falecimento de Edna Taveira logo após a Primavera nos Museus,
quando era esperada no Museu Antropológico para atividade ligada a reconhecimento de acervos e de
documentos antigos da instituição e já não pode comparecer em razão de agravamento dos problemas de saúde.

1846
2016), sempre indicando a diferença nas funções150 e a própria expressão na língua Iny como
marcador da diferença de gênero, pois há um modo de falar das mulheres e um dos homens,
sendo o delas mais complexo e composto por mais elementos. Vários pesquisadores ressaltam
o papel das mulheres, sempre consultadas nas decisões do grupo familiar e do marido,
inclusive quando ele é uma liderança.
No caso específico do conjunto artefatual que nos interessa nesta pesquisa, todo o
protagonismo é feminino, pois são as ceramistas que produzem as ritxoko, da coleta do barro
à modelagem, queima e pintura (WHAN, 2010; FARIAS, 2014, entre outros) e que também
comercializam as bonecas151. Entretanto, aparentemente, na patrimonialização/musealização,
além do protagonismo ser dado a pesquisadores, quando os nomes indígenas aparecem, são
dos homens que possivelmente intermediaram a formação da coleção, e não das ceramistas,
autoras. Esta seria a segunda camada de invisibilização no museu: das mulheres indígenas
envolvidas na formação das coleções. Encontrar entre aqueles nomes na documentação
museológica o de Lenimar Silva da Cruz Werreria, abre um novo campo de possibilidades de
investigação.

Considerações finais
Esta pesquisa, com vigência prevista para até 2020, indica que cada museu
identificado vai abrir um grande leque de possibilidades e desdobramentos. De uma forma
ampla, pretendemos realizar um estudo exploratório e um mapeamento. Cada conjunto de
peças indica novas veredas e as biografias dos conjuntos de ritxoko nas diferentes instituições
são infinitas, especialmente porque não pensamos de uma maneira estanque até o momento da
entrada no museu, mas nos diferentes processos de apropriação, valorização, secundarização,

150
“(...) os homens cuidam da pesca, das roças, das construções das casas, assumindo também os papéis de
condutores das atividades rituais e festivas, de liderança, de representação política e de articulação com a
sociedade abrangente. As mulheres cuidam dos afazeres domésticos, dos filhos, da colheita, da pintura corporal.
Confeccionam enfeites rituais, artesanais. São responsáveis pelo preparo do alimento nos períodos festivos e pela
manutenção da memória afetiva de seu povo, expressa nos choros rituais.” (RESENDE, 2014, p. 23)
151
A estudante de Museologia da UFG Milena de Souza, assistente de pesquisa deste projeto, tem dedicado
especial atenção às questões de gênero no âmbito da pesquisa, ressaltando também o protagonismo feminino na
própria equipe, que conta majoritariamente com mulheres, o que se percebe ainda em outras pesquisas e na
equipe ligada ao registro das bonecas como bem cultural imaterial e às ações de salvaguarda que se desenvolvem
neste momento.

1847
esquecimento, retomada, ressignificação, uma dinâmica constante. Apresentamos aqui os
primeiros resultados com ênfase nas coleções de bonecas karajá do Museu Antropológico da
UFG, conjunto composto, até o momento, por 970 peças.
Com a elaboração da lista, distinguindo entre elas as zoomorfas e as antropomorfas, e
com o imprescindível apoio da equipe do Museu, partirmos para as fichas de localização para
separar as peças ritxoko, priorizando as coleções da professora Edna Taveira, para a
realização de algumas fotografias que servirão ao projeto, mas também ao Museu, que não as
possui e poderá recebê-las como doação152. Estão sendo realizadas fotos frontais e posteriores,
peça por peça, em um pequeno estúdio fotográfico montando dentro da própria reserva
técnica, com apoio de um fotógrafo profissional voluntário, Markus Garscha.
Cabe ressaltar que mesmo em museus estrangeiros, como é o caso do Museu do Quai
Branly, as fotos são somente frontais, não permitindo visualizar a peça tridimensional por
inteiro. As fotografias, feitas com fundo infinito e qualidade para ampliação e impressão, são
importantes para o museu e para etapas posteriores do nosso trabalho, visando à ampla
divulgação e à promoção das coleções153.
A Recomendação para a Proteção e Promoção de Museus e Coleções sua Diversidade
e seu Papel na Sociedade (UNESCO, 2015) parte do entendimento de que “A proteção e a
promoção da diversidade cultural e natural são desafios centrais do século XXI. Nesse
sentido, museus e coleções constituem meios primários pelos quais testemunhos tangíveis e
intangíveis da natureza e da cultura humanas são salvaguardados.” Consideramos que
contribuir para a proteção e promoção de coleções de bonecas karajá em museus no Brasil e

152
Como já registrado, o Museu Antropológico da UFG não contava, até o primeiro semestre de 2017, com um
banco de dados informatizado que permitisse uma busca simples por palavras-chave, e a busca das ritxoko em
seu acervo precisou ser feita ao longo de algumas semanas de trabalho consultando a documentação física do
museu e criando nossa própria lista por número de inventário. Ao longo do ano a Coordenação de Museologia da
instituição criou uma planilha digital que está sendo alimentada com o precioso auxílio de inúmeros estagiários
do Curso de Museologia, e em breve será possível realizar esta busca que nos tomou algumas semanas em
poucos minutos, por meio dos recursos da informática.
153
Na medida em que o projeto avança, descobrimos que vários museus brasileiros e estrangeiros possuem
inclusive toda coleção de ritxoko disponível em bases de dados online e as instituições que não têm online estão,
em geral, nos enviando a documentação museológica, inclusive fotografias, de uma maneira muito generosa e
aberta com o projeto. O Museu Antropológico da UFG, além de possuir uma das maiores coleções, é das poucas
instituições que ainda não havia passado por registro fotográfico sequer parcial. O trabalho de fotografias
permite que a divulgação do projeto ocorra concomitantemente à promoção deste Museu, pois, ao contrário, se
basearia somente da difusão de imagens provenientes de outros acervos.

1848
no mundo é uma forma de valorizar a diversidade cultural e especialmente as comunidades
detentoras deste rico patrimônio imaterial. Assim, traçaremos conexões entre processos
distintos de patrimonialização das bonecas karajá, seja a musealização dos objetos materiais
(e em que medida houve ou há interesse de vincular isto com aspectos intangíveis da cultura
karajá que elas representam), seja o que ocorreu para registro do bem como patrimônio
imaterial brasileiro. Podemos futuramente investigar como as coleções musealizadas no Brasil
e no exterior se prestam a uma potencialização das medidas de valorização da cultura viva e
das populações karajá, assim como supõem o registro e suas ações de salvaguarda.
Em relação aos objetivos do projeto “Presença Karajá: cultura material, tramas e
trânsitos coloniais” que dizem respeito à circulação das ritxoko da aldeia aos museus,
chegando a reflexões sobre os trânsitos coloniais experimentados por esses objetos, é
necessário pensar que

“A globalização permitiu a maior mobilidade de coleções, profissionais,


visitantes e ideias, com resultados que trouxeram impactos tanto positivos
quanto negativos para os museus, refletidos em maiores acessibilidade e
homogeneização. Os Estados‐membros devem promover a salvaguarda da
diversidade e da identidade que caracterizam os museus e as coleções, sem
reduzir o papel dos museus no mundo globalizado.” (UNESCO, 2015)

Finalmente, a Recomendação aborda o patrimônio cultural de povos indígenas


estimulando que

“Nos casos em que o patrimônio cultural de povos indígenas esteja


representado em coleções de museus, os Estados‐membros devem tomar as
medidas apropriadas para encorajar e facilitar o diálogo e o estabelecimento
de relações construtivas entre esses museus e os povos indígenas com
respeito à gestão dessas coleções e, onde for apropriado, ao retorno ou à
restituição de acordo com as leis e as políticas aplicáveis.” (idem)

Nosso projeto, com uma grande maioria de integrantes que nunca trabalharam antes
diretamente com povos indígenas, está sendo bastante cauteloso em partir de estudos da
bibliografia e das coleções e fazer esta aproximação paulatinamente, mediada pela professora

1849
Nei Clara de Lima, especialista em cultura material karajá e em contato com os grupos há
muitos anos, notadamente no âmbito do processo que levou ao registro das bonecas como
patrimônio imaterial brasileiro e nas ações de salvaguarda. Mas já recebemos o aceite de uma
jovem ceramista, Dibexia Karajá, em participar da equipe e nos auxiliar neste estabelecimento
de relações com seu grupo para perceber, entre outras coisas, suas demandas em relação ao
patrimônio karajá musealizado.

Referências bibliográficas:

ANDRADE, Rafael Santana Gonçalves de. Os Huumari, o Obi e o Hyri: a circulação dos
entes no cosmo Karajá. Goiânia: Faculdade de Ciências Sociais, UFG, 2016. (Dissertação de
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WHAN, Chang. Ritxoko. A voz visual das ceramistas Karajá. Universidade Federal do Rio
de Janeiro. Escola de Belas Artes, 2010. (Tese de Doutorado)
Documentos não publicados
LIMA, Nei Clara de; DUARTE CÂNDIDO, Manuelina Maria. Projeto de pesquisa
Presença Karajá: cultura material, tramas e trânsitos coloniais. Goiânia: Museu
Antropológico da UFG, 2016. 10 páginas. (Manuscrito não publicado)

LIMA FILHO, Manuel Ferreira. Relatório de atividades Pós-Doutorado. Goiânia, 2015.


(Manuscrito não publicado)

1852
ACESSIBILIDADE: UM DOS VIESES DA MUSEOLOGIA SOCIAL

Lucas Peng Chieh Long*

RESUMO: O tema de acessibilidade vem sendo discutida com mais força no meado do século XX
quando o número das pessoas com deficiência aumenta com advento das guerras. Os movimentos
sociais pró-inclusão dessa parte da população foram aos poucos conquistando espaços seja no mercado
de trabalho, esporte, educação ou cultura. Foram anos de luta para que os governantes percebam a
importância da inclusão e o potencial desse público para criar políticas públicas voltadas para eles.
Os espaços museais são meios importantes na formação intelectual, porém ainda são poucas as
instituições que prezam pela acessibilidade informacional e espacial. A museologia social nasce
visando a importância de tomar a sua responsabilidade social para dialogar com toda a sociedade. O
presente trabalho procura mostrar os conceitos da acessibilidade e os seus tipos e o importante papel
da museologia social na prática da inclusão.

Palavras-chave: Acessibilidade; Inclusão; Movimentos Sociais; Museologia Social.

ABSCTRACT: The issue of accessibility has been discussed more strongly in the mid-twentieth
century when the number of people with disabilities increases with the advent of wars. The pro-
inclusion social movements of this part of the population were gradually conquering spaces whether in
the labor market, sports, education or culture. It was years of struggle for government officials to
realize the importance of inclusion and the potential of this public to create public policies aimed at
them.
Museums are important means in intellectual formation, but there are still few institutions that value
informational and spatial accessibility. Social museology is born aiming at the importance of taking its
social responsibility to dialogue the whole society. The present work seeks to show the concepts of
accessibility and its types and the important role of social museology in the practice of inclusion.

Key-words: Accessibility; Inclusion; Social movements; Social Museology.

1853
Introdução

Criar infraestrutura acessível volta a ser discutida com o fim da II Guerra Mundial.
Nos Estados Unidos, começam a surgir Manifestações de Direito Civil (Civil Right
Movement) nos anos de 1960, as associações dos veteranos de guerra começam a se
mobilizar nacionalmente levantando a bandeira de “barrier-free” (livre das barreiras) para
que as pessoas com mobilidade reduzida consiga ter livre acesso em espaços públicos
(incluindo edifícios governamentais). Surge então a necessidade de criar espaços e
produtos que possam ser usufruídas polo máximo de pessoas possíveis, área de estudo
conhecida como Design for all/ Universal Design/ Design Universal. Desta forma através
dos movimentos sociais surge nos EUA “The Architectural Barriers Actof 1968” (Ato de
Barreiras da Arquitetura de 1968) como nova regulamentação exigindo infraestrutura
acessível nas novas construções e as existentes precisavam ser adaptadas154.

No Brasil o percurso de integração e acessibilidade tomou um rumo diferente dos


EUA e da Europa uma vez que, nesses dois locais, os centros de atendimento a pessoas
com deficiência consolidaram-se por medidas criadas pelo governo ou em parceria com a
organização civil enquanto no Brasil as maiores partes das ações viam por parte da
sociedade civil.

A deficiência, no começo, era vista como uma doença155 e era tratada como tal,
então não é de surpreender que as pessoas eram encaminhadas ou para hospitais ou para
hospícios. Porém havia dois tipos de deficiência que tiveram tratamento diferenciado no
Brasil: a cegueira e a surdes. As duas instituições que foram criados no Brasil Império,

154
A Brief History of Universal Design. Disponível em: <http://udinstitute.org/history.php>Acesso em 5 de
maio de 2017
155
A Cooperativa de Vida Independente de Estocolmo (Stil), que é o primeiro centro de vida independente da
Suécia, afirma que “uma das razões pelas quais as pessoas deficientes estão expostas à discriminação é que os
diferentes são frequentemente declarados doentes. Este modelo médico da deficiência nos designa o papel
desamparado e passivo de pacientes, no qual somos considerados dependentes do cuidado de outras pessoas,
incapazes de trabalhar, isentos dos deveres normais, levando vidas inúteis, como está evidenciado nas
palavras ainda comum inválido (“sem valor”, em latim).” (Stil, 1990, p.30). (SASAKI, 2010, p.28)

1854
ambos sediados em Rio de Janeiro, e que ainda existem nos dias atuais são: o Instituto
Benjamin Constant (antigo Imperial Instituto dos Meninos Cegos, modelo espelhado do
Instituto de Meninos Cegos de Paris) criado em 1854 e o Instituto Nacional de Educação de
Surdos (antigo Imperial Instituto dos Surdos-Mudos), criado em 1856. Ao longo da história
outras instituições de apoio e filantrópicas foram nascendo como Instituto Pestolazzi (Rio
Grande do Sul, 1926), Associação de Assistência à Criança Deficiente (São Paulo, 1950),
Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais – APAE (Rio de Janeiro 1954), Associação
Brasileira Beneficente de Reabilitação (1954) – este último inspirado nos centros de
reabilitação dos EUA e Europa que cuidam dos veteranos da guerra (LANNA JUNIOR,
2010).

As associações civis começaram a nascer por volta de 1950 voltadas para as mais
diversas deficiências. E o movimento tem o amadurecimento 30 anos depois com o 1º
Encontro Nacional de Entidades de Pessoas Deficientes realizado do dia 22 a 25 de outubro
de 1980 em Brasília com o intuito de dar visibilidade sobre o tema de acessibilidade e
pressionar o governo federal a criar políticas públicas mais assíduas para as pessoas com
deficiência (LANNA JUNIOR, 2010).

Diante de tantas reivindicações quem são, afinal, os cidadãos que precisam ser
reconhecidos e que necessitam de políticas públicas para alcançar os mesmos direitos de ir e
vir, da saúde, da educação, etc? Segundo o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei Nº
13.146) são classificadas as pessoas com deficiência:

Art. 2º Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de


longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em
interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e
efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.

1855
As barreiras e as soluções

A acessibilidade é um mecanismo de cidadania que possibilita que todos tenham a


mesma condição de acesso e que não deve ser confundido com um privilégio, ou seja, a
acessibilidade abordada aqui tem sinônimo de democratizar. Mas
mais especificamente vai ser tratada a acessibilidade comunicacional.

As barreiras existem porque os organizadores das informações não pensam na


universalização do acesso, o que resulta em formas inacessíveis de contato. No caso dos
museus talvez seja uma herança cultural onde o espaço é visto como um espaço diferenciado
socialmente no qual não se deve entrar qualquer um apesar dos repetidos discursos que o
museu deve ser um espaço democrático:

Ainda assim, o cotidiano dos museus frequentemente nega a hipótese de que


os museus e os bens culturais musealizados pertencem a todos e para todos
estão disponíveis. Sob essa perspectiva, pode-se retomar o que Néstor García
Canclini enfatiza em seu artigo “O patrimônio cultural e a construção
imaginária da nação”: “(...) os bens reunidos por cada sociedade na história
não pertencem realmente a todos, ainda que formalmente pareçam ser de
todos e estar disponíveis ao uso de todos [os grifos são dos autores].”
(CHAGAS e STORINO, IBRAM, 2012, p. VII)

Podemos observar, portanto, três tipos de barreiras. As barreiras físicas são mais fáceis
de lidar, pois um bom projeto arquitetônico e/ou de Design contemplaria a universalidade do
acesso por meio de rampas, elevadores, piso tátil, sinalização em contraste, entre outros, e um
num projeto expográfico contemplaria com informações em braile, áudio-descrição, fonte de
letras fáceis de ser lida, a altura das obras em que estão expostas, etc. Agora a barreira
atitudinal é mais complicada em trabalhar uma vez que depende do nível da educação e da
conscientização que os colaboradores do museu e dos demais espaços culturais têm em
relação às pessoas com deficiência. Segundo Lima, Guedes e Guedes:

1856
As barreiras atitudinais, portanto, partem de uma predisposição negativa, de
um julgamento depreciativo em relação às pessoas com deficiência, sendo
sua manifestação a grande responsável pela falta de acesso e à conseqüente
exclusão e marginalização social vivenciada por todos os grupos
vulneráveis, mais particularmente, por aquelas pessoas vulneráveis em
função da deficiência.

No entendimento de Guedes (2007, p.31): [...] a perpetuação das barreiras


que reforçam a situação de dependência e exclusão a que as pessoas com
deficiência vêm sendo freqüentemente submetidas é causada pela sociedade
quando esta não busca promover soluções alternativas de acessibilidade a
fim de remover as barreiras que limitam ou impedem a plena atuação dessas
pessoas. (LIMA; GUEDES; GUEDES, 2016, p. 3)

A terceira barreira é a comunicacional muitas vezes resultado da barreira atitudinal e


pode apresentar diferentes níveis variando de pessoa para pessoa o modo de se comportar
perante a(s) pessoa(s) com deficiência. Isso acontece porque cada um tem uma concepção
diferente em relação ao tema, o que pode resultar em ações atitudinais de diminuir o
deficiente ou infantilizar, mesmo que parta de uma boa intenção.

Segundo Werneck (2006, p.164), “Ainda não somos permeáveis a uma


efetiva comunicação de mão-dupla com pessoas em relação às quais nos
sentimos superiores”. Uma vez sentindo-se superior a essas pessoas, a
sociedade deixa de estabelecer uma comunicação eficiente, deixa de criar
espaços de diálogo para ouvir as demandas das pessoas com deficiência,
colocando-se numa atitude que não permite a aprendizagem mútua. Essa
atitude de superioridade social, portanto, também é manifestação da barreira
atitudinal, a barreira que diminui as pessoas com deficiência, inferiorizando-
as, a fim de parecer superior a elas. (LIMA; GUEDES; GUEDES, 2016, p.
4)

E essas concepções errôneas refletem nos trabalhos de áudio-descrição no modo como


áudio-descritor vai descrever o objeto ou evento de modo que escancara o quão é importante o
processo de capacitação e conscientização não somente em relação a questão de áudio-
descrição mas outras formas de tratamento com relação a outros tipos de deficiência. Embora

1857
há regulamentos de acessibilidade arquitetônica observa-se pelas cidades brasileiras a
dificuldade de mobilidade, como calçadas irregulares e a falta de manutenção dos ônibus para
transportar cadeirante por exemplo, acabam restringindo e minando a independência desse
grupo social o que demonstra a necessidade de reforçar o conceito do Design Universal e criar
políticas públicas que reforcem a importância de um espaço urbano acessível.

Vimos que a noção em torno do tema começa quando os grupos de veteranos de


guerra percebem as dificuldades em se locomover pelos espaços e como isso afetava
negativamente a vida social deles e posteriormente a necessidade de mudar a concepção das
pessoas ditas normais em relação às pessoas com deficiência. Depois de várias décadas de
discussões e de lutas temos hoje órgãos e legislação que regulamenta e pensa sobre o assunto.
Segundo a definição criada pela ABNT sobre acessibilidade e palavras relacionadas temos:

Acessibilidade possibilidade e condição de alcance, percepção e


entendimento para utilização, com segurança e autonomia, de espaços,
mobiliários, equipamentos urbanos, edificações, transportes, informação e
comunicação, inclusive seus sistemas e tecnologias, bem como outros
serviços e instalações abertos ao público, de uso público ou privado de uso
coletivo, tanto na zona urbana como na rural, por pessoa com deficiência ou
mobilidade reduzida.

Acessível espaços, mobiliários, equipamentos urbanos, edificações,


transportes, informação e comunicação, inclusive seus sistemas e tecnologias
ou elemento que possa ser alcançado, acionado, utilizado e vivenciado por
qualquer pessoa.

Adaptável espaço, edificação, mobiliário, equipamento urbano ou elemento


cujas características possam ser alteradas para que se torne acessível.

Adaptado espaço, edificação, mobiliário, equipamento urbano ou elemento


cujas características originais foram alteradas posteriormente para serem
acessíveis. (...)

Desenho universal concepção de produtos, ambientes, programas e serviços


a serem utilizados por todas as pessoas, sem necessidade de adaptação ou
projeto específico, incluindo os recursos de tecnologia assistiva NOTA O
conceito de desenho universal tem como pressupostos: equiparação das
possibilidades de uso, flexibilidade no uso, uso simples e intuitivo, captação
da informação, tolerância ao erro, mínimo esforço físico, dimensionamento
de espaços para acesso, uso e interação de todos os usuários. É composto por
sete princípios, descritos no Anexo A. (NBR 9050, 2015, p.2 e 4)

1858
Observa-se que a Norma Brasileira enfatiza a importância de acesso a informação e a
possibilidade de comunicação de forma segura e independente. Com o surgimento da internet
o acesso às informações se tornou mais fácil e rápido, mas não houve paralelamente o
desenvolvimento dos recursos de acessibilidade.

Em 1999 surge a versão 1.0 de acessibilidade na web organizada pelo consórcio


internacional W3C/WCAG (Web ContentAccessibilityGuidelines: Recomendações de
Acessibilidade para Conteúdo Web), que trabalha para desenvolver padrões web e
plataformas abertas156. No território nacional surge o programa eMAG (Modelo em
Acessibilidade em Governo Eletrônico)157, em parceria com WCAG, que baseou-se nos
modelos eletrônica de vários países como os Estados Unidos (Section 508), Canadá (CLT) e
entre outros que apresentam um sistema já amadurecido. O trabalho desenvolvido pelo
Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) e do Núcleo de Informação e Coordenação do
Ponto BR (NIC.br), resultado das consultas dos exemplos existentes e baseado nas diretrizes
do W3C, nasce a primeira versão 1.4 em 2005 servindo como exemplo para desenvolvimento
de outros sites no campo de acessibilidade. Diante da nova infraestrutura precisou criar uma
concepção de acessibilidade na web:

Acessibilidade na web é a possibilidade e a condição de alcance, percepção,


entendimento e interação para a utilização, a participação e a contribuição,
em igualdade de oportunidades, com segurança e autonomia, em sítios e
serviços disponíveis na web, por qualquer indivíduo, independentemente de
sua capacidade motora, visual, auditiva, intelectual, cultural ou social, a
qualquer momento, em qualquer local e em qualquer ambiente físico ou
computacional e a partir de qualquer dispositivo de acesso. (Cartilha
ACESSIBILIDADE NA WEB, p.24)

156
Informação extraída no <https://www.governoeletronico.gov.br/eixos-de-atuacao/governo>Acesso 23 de
maio de 2017.
157
Em 2007, a Portaria nº 3, de 7 de maio, institucionalizou o eMAG no âmbito do sistema de Administração
dos
Recursos de Informação e Informática – SISP, tornando sua observância obrigatória nos sítios e portais do
governo brasileiro. Disponível em: <http://emag.governoeletronico.gov.br/> Acesso 23 de maio de 2017.

1859
Na era da informação, provocada pela internet, o conteúdo virtual passou a ser de
grande importância no entretenimento e no desenvolvimento profissional e educacional
tornando a acessibilidade indispensável nesse ambiente virtual.

Por tanto estão expostos aqui os conceitos de acessibilidade que tende a continuar a
expandir conforme o surgimento das novas tecnologias. E com isso o conceito de deficiência
é também uma ideia em desenvolvimento segundo a Convenção da ONU em 2007,
promulgado com o Decreto Federal Nº 6949, que diz no Preâmbulo:

e) Reconhecendo que a deficiência é um conceito em evolução e que a


deficiência resulta da interação entre pessoas com deficiência e as barreiras
devidas às atitudes e ao ambiente que impedem a plena e efetiva participação
dessas pessoas na sociedade em igualdade de oportunidades com as demais
pessoas, (...)

O movimento da inclusão e acessibilidade é uma demanda reprimida nas quais as


organizações sociais lutam pelo mesmo direito e ganhar a visibilidade. E sob essa emergência,
dentro da museologia surge a necessidade de repensar a relação entre museu e a comunidade.

Como apresentado no início, os anos de 1950 a 1970, foram as décadas de


efervescências em que as sociedades civis reivindicavam direitos ou o protesto contra o
modus operandi da sociedade e que tinha como o pano de fundo as crises políticas e
econômicas. Na área de museologia também acompanhou essas mudanças. A concepção do
museu se dilata surgindo novas tipologias como ecomuseu, museu comunitário,
sociomuseologia que vão além das relações estabelecidas pelo museu tradicional.

O ano de 1972 é considerado um marco dentro da museologia, pois a Mesa-Redonda


de Santigo do Chile formaliza o movimento que já vinha sendo criado e debatido, segundo
Scheiner (2012). Dentro das discussões que ocorreram naquele encontro, voltado para a
realidade latino-americano, criou-se a ideia do Museu Integral. E em 1984 na Declaração de
Quebec firma os Princípios de Base de uma Nova Museologia, renovando e reforçando a

1860
importância de uma concepção global como um fenômeno de interação entre museu e a
sociedade. Para tal efeito importante, e necessário, segundo Moutinho (2007), ter uma equipe
multidisciplinar dentro do museu, ideia que foi reforçado nos encontros de Santiago e Quebec,
para que consiga estabelecer um bom nível de comunicação entre museu e a comunidade.
Segundo a resolução da Mesa Redonda de Santiago:

O museu é uma instituição a serviço da sociedade, da qual é parte integrante,


e que traz consigo os elementos que lhe permitem participar da formação da
consciência das comunidades que atende. Por meio dessa consciência, os
museus podem incentivá-las a agir, situando suas atividades em um contexto
histórico para ajudar a identificar problemas contemporâneos; ou seja,
ligando o passado ao presente, comprometendo-se com mudanças estruturais
em curso e provocando outras mudanças dentro de suas respectivas
realidades nacionais. (Mesa Redonda de Santiago de Chile, 2012, p. 116)

E na resolução em caráter geral:

3º. Que os museus tornem suas coleções amplamente acessíveis a


pesquisadores qualificados e, na medida do possível, a instituições públicas,
religiosas e privadas.

4º. Que as técnicas museográficas tradicionais sejam atualizadas para


melhorar a comunicação entre o objeto e o visitante. (Mesa Redonda de
Santiago de Chile, 2012, p. 116)

Apesar das questões que envolvam a acessibilidade não estejam explícitas podemos
partir do espírito da democratização do acesso e o empoderamento da comunidade na
formulação do museu, duas bandeiras importante da nova museologia, é imprescindível
convidar as pessoas com deficiência participe no planejamento de acessibilidade para que o
museu tenha a percepção dos pontos fortes e fracos e as melhorias que precisam ser
implementadas. Assim, como é importante que dentro da equipe multidisciplinar do museu

1861
tenham pessoas com deficiência como integrantes que pensem na acessibilidade e que
promovam pesquisa e que gere resultados sociais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O processo de inclusão das pessoas com deficiência é um movimento de


conscientização em evolução. Ainda há muito preconceito e ignorância sobre o tema no qual
levam as pessoas a agirem de forma desrespeitosa. E o que vemos através da história são lutas
para descontruir estigmas e criar novas possibilidades nas relações sociais baseadas na
igualdade de oportunidade e de acesso. Democratizar espaços virou uma ode do mundo
democrático e os museus não devem ficar de fora.

O movimento da museologia social é um desses passos dentro de uma sociedade


democrática. Permitir que a sociedade consiga se inserir dentro do espaço museológico e criar
uma linha de comunicação onde todos consigam fazer parte do processo de aprendizagem.

É por isso a importância de uma equipe multidisciplinar trabalhando dentro do museu.


Para que o espago consiga trabalhar em várias perspectivas e conseguir dialogar com os
visitantes e entender as necessidades do público visitante. No caso das pessoas com
deficiência é importante que sempre ocorra consulta para que os equipamentos funcionem da
melhor forma possível e tornar o museu o mais acolhedor possível.

BIBLIOGRAFIA

IBRAM. Acessibilidade a Museus. Caderno museológico, Volume 2. Brasília, 2012.


Disponível em:
<http://www.museus.gov.br/wp-
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1863
UMA LUZ SOB AS INSTITUIÇÕES HISTÓRICAS: O PROCESSO DE
SALVAGUARDA DO ACERVO DO MUSEU DO INSTITUTO HISTÓRICO E
GEOGRÁFICO DO PARÁ

Mateus da Silva Reis*

Resumo: O processo de salvaguarda é uma ferramenta para a potencialização de uma instituição


histórico-museológica, funcionando como uma etapa para preservação e promoção da memória e de
variados acervos. Este processo também contribui no desenvolvimento do papel da instituição como
agente transformador no meio social. Deste modo, este estudo visa apresentar o processo de
salvaguarda do Museu do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, retratando as principais etapas que
compõem este, como a formulação de técnicas baseadas na Documentação Museológica e
Conservação Preventiva. Este trabalho também visa propor uma reflexão referente ao potencial e
fragilidades de uma instituição histórica, e como um processo de salvaguarda de acervos pode valorar
os setores de educação, pesquisa, comunicação e salvaguarda.

Palavras-chave: Documentação; Conservação; Preservação; MIHGP.

Abstract: The safeguard process is a tool for the enhancement of a historical-museological institution,
functioning as a stage for the preservation and promotion of memory and various collections. This
process also contributes to the development of the role of the institution as a transforming agent in the
social environment. Thus, this study aims to present the process of safeguarding the Museum of the
Historical and Geographical Institute of Pará, portraying the main stages that make up this, such as the
formulation of techniques based on Museological Documentation and Preventive Conservation. This
study also aims to propose a reflection about the potential and fragilities of a historical institution, and
how a process of safeguarding collections can value the education, research, communication and
safeguard sectors

Key-words: Documentation; Conservation; Preservation; MIHGP.

1864
Introdução

Este trabalho busca apresentar as principais ações de salvaguarda realizadas nos acervos
museológicos do Museu do Instituto Histórico e Geográfico do Pará (MIHGP), ações estas
executadas a partir da perspectiva do projeto de documentação do Museu, onde são
executadas técnicas de documentação museológica e conservação preventiva nas diversas
coleções do MIHGP. A partir da problemática de que grande parte das instituições históricas
não possuem um projeto de salvaguarda de suas peças, esta pesquisa também busca abrir para
debate a importância de um museu, ou instituição histórica, conter técnicas que possam
resguardar a integridade física e patrimonial de seus acervos.

Primeiramente, é de notável relevância ressaltar que uma grande porcentagem das


instituições históricas e museológicas brasileiras possuem uma vasta gama de acervos
abandonados. Sendo assim, diversas propostas de ações e projetos que visam a salvaguarda,
tanto do edifício quanto do acervo, tornam-se desafios contemporâneos para as instituições.
No entanto, a elaboração de um processo de salvaguarda, pelo corpo administrativo de um
museu, transforma-se em uma luz sob esta instituição, um primeiro e importante momento
para os próximos passos desta, passos que possam contribuir para a ressalva da memória do
país, assim como possam reforçar o papel destas instituições em meio a sociedade. Para
Claudio Umpierre Carlan,

Historicamente, o museu é responsável pela produção do conhecimento e a


convergência dos saberes científicos. Não basta guardar o objeto. Sem uma
pesquisa permanente, a instituição fica subestimada a um centro de lazer e
turismo. Cabe aos pesquisadores inserir os objetos, reclusos em suas reservas
técnicas, como fontes históricas. (CARLAN, 2008, p. 82).

A partir das afirmativas acima, esta pesquisa também busca dissertar sobre como o
processo de salvaguarda do MIHGP, proposto pelo projeto de extensão universitária em vigor,
potencializa os demais setores do Museu, como a pesquisa, educação e comunicação, assim
como o papel social da instituição.

1865
O objetivo deste trabalho, em uma perspectiva geral, é abordar o processo de
salvaguarda de acervos e seu papel como ferramenta que potencializa as funções primárias do
MIHGP, sendo estas as funções de preservação, pesquisa, educação e comunicação 158.
Abordando também a importância das instituições históricas para o reforço da memória
coletiva, assim como a principal problemática que as rodeia, o abandono das diversas peças e
coleções.

A metodologia deste estudo embasa-se nas experiências práticas realizadas nos acervos
museológicos da instituição, a partir da vigência do projeto de extensão em vigor no local.
Foram estudadas as etapas do processo de salvaguarda dos objetos do Museu, a partir da
observação e análise da documentação, por meio das fichas de arrolamento e catalogação das
peças, assim como as técnicas de conservação dos acervos e o procedimento de exposição das
coleções. Por fim, este trabalho busca propor uma reflexão sobre a importância da
preservação e pesquisa dos diversos acervos do Museu do Instituto Histórico e Geográfico do
Pará, a partir do processo de salvaguarda. Este também busca apresentar e analisar, de forma
específica, as etapas deste processo.

As Instituições Históricas: Potencial e Problemáticas

No hodierno cenário brasileiro, as instituições históricas englobam diferentes agentes


que contribuem para o setor cultural, estes podem ser reconhecidos como museus, bibliotecas,
galerias e arquivos por todo o país. Por mais que o conteúdo interior destes seja divergente, o
papel de todos segue a unânime vertente, a salvaguarda e o reforço da memória histórico-
social e do patrimônio histórico.

A partir de uma reflexão sobre o potencial destas instituições, podemos tomar como
afirmativa que estas são uma grande fonte de dados e informações referentes a vários períodos
históricos, assim dotadas de um imenso valor patrimonial. Para Cristina Bruno (1997), os

158
Funções primárias estabelecidas na Recomendação referente à Proteção e Promoção dos Museus e Coleções,
sua Diversidade e seu Papel na Sociedade, aprovada em 17 de novembro de 2015, pela Conferência Geral da
UNESCO em sua 38ª sessão.

1866
museus, assim como outros modelos institucionais, como arquivos e bibliotecas, herdaram a
ideia de preservação junto ao exercício humano ao elaborar um artefato. Desta forma, a
necessidade da preservação dos suportes destas informações é de grande importância,
suportes estes reconhecidos desde os documentos até as peças de acervos.

Pode-se destacar o potencial destas instituições a partir da divisão de três tópicos: o


resguardo da memória, a pesquisa e o papel social.

O Resguardo da Memória

O destacamento do resguardo da memória se discorre a partir da ideia de que um museu,


ou outro corpo institucional histórico, abriga conteúdos essenciais que contribuem no
entendimento da história, resguardando a memória presente nos objetos e documentos de
diferentes personalidades.

A memória se apresenta muito além das características intrínsecas presentes no objeto,


está se delineia em seus atributos extrínsecos, seus discursos, suas funções e seu propósito, aí
habita a memória e é por isso que deve ser resguardada. A memória, a partir do conceito de
cultura material, somente existe se houver um suporte que a abrigue, com isso, as técnicas
utilizadas na criação desse suporte ajudam na compreensão e reconhecimento desta, assim
como evidência de seu contexto.

De acordo com Ulpiano de Meneses,

Naturalmente, os traços materialmente inscritos nos artefatos orientam


leituras que permitem inferências diretas e imediatas sobre um sem-número
de esferas de fenômenos. Assim, a matéria prima, seu processamento e
técnicas de fabricação, bem como a morfologia do artefato, os sinais de uso,
os indícios de diversas durações, e assim por diante, selam, no objeto,
informações materialmente observáveis sobre a natureza e propriedades dos
materiais, [...] que justifica a inferência de dados essenciais sobre a
organização econômica, social e simbólica da existência social e histórica do
objeto. (MENENES, 1998, p. 91).

1867
Deste modo, pode-se reconhecer o resguardo da memória como potencial de uma
instituição museológica e histórica, o ato de preservação de seus objetos está muito além do
intuito de salvaguardar apenas as características físicas do suporte, mas sim em manter o valor
da memória e das informações presentes no objeto, com o propósito de compreender as
diversas relações que constroem o meio social.

A Pesquisa

O ato da pesquisa presente nas instituições históricas é um agente contemporâneo em


potencial, o estudo das informações que estão no suporte contribui para o entendimento de um
contexto passado. Desta forma, a análise das peças por meio de pesquisadores age também
como uma etapa de salvaguarda, buscando compreender as necessidades do objeto e
formulando meios que possam preservar as informações presentes neste.

Com base nas orientações presentes na “Recomendação referente à Proteção e


Promoção dos Museus e Coleções, sua Diversidade e seu Papel na Sociedade” a pesquisa é de
grande importância para o museu, assim como para outras instituições históricas, “para que se
ofereçam oportunidades de reflexão sobre a história em um contexto contemporâneo, assim
como para a interpretação, a representação e a apresentação de coleções” (UNESCO, 2015).
Em suma, a pesquisa pode ser entendida como uma série de apontamentos e análises que
possam compreender a função do objeto em seu meio antigo e o seu reflexo na
contemporaneidade. A pesquisa também pode ser entendida como o primeiro passo para a
disponibilização das informações presentes no objeto. Com sua ausência, seria impossível
dispor dos importantes dados presentes no suporte, enfraquecendo assim os setores
educacionais e comunicacionais da instituição.

1868
O Papel Social

Tratamos agora a importância do papel social e o seu potencial para as instituições


históricas, assim como para os museus. Podemos reconhecer o papel social de uma instituição
como um impacto em seu cenário hodierno, é importante ressaltar que esta missão funciona
como uma ferramenta de transformação e reflexão para os indivíduos. Deste modo, uma
instituição histórica, como agente de transformação e portadora de um papel social ativo, deve
propor debates referentes a atualidade.

Nos apontamentos presentes na Carta de Salvador (2007), os museus são


compreendidos como “práticas sociais relevantes para o desenvolvimento compartilhado”,
transformando-se em locais de representação e celebração da diversidade cultural dos diversos
povos, e ajudando na construção de um futuro mais justo e harmonioso. A função social
potencializa as instituições históricas e museológicas e as transformam em “instâncias
políticas, sociais e culturais, de mediação, transformação e desenvolvimento social, tendo por
base o campo do patrimônio cultural e natural” (SALVADOR, 2007).

Após a apresentação dos tópicos acima, podemos afirmar que as instituições históricas
possuem valores que estimam o potencial destas, no entanto, como já fora introduzido, estas
instituições também possuem uma grande problemática que as cerca e as desestabiliza
veementemente, o abandono e o descaso com os seus acervos. Desta maneira, o processo de
salvaguarda é uma solução para estes possíveis fracassos, à vista disso, serão apresentados a
diante os métodos de salvaguarda em vigor no MIHGP, assim como os resultados obtidos na
aplicação destes.

O Museu do Instituto Histórico e Geográfico do Pará e a formação de seus acervos

Administrado pelo Instituto Histórico e Geográfico do Pará (IHGP), o MIHGP é uma


instituição histórica que abriga uma extensa gama de acervos, estes referentes a variados
cenários históricos brasileiros e paraenses. O Museu encontra-se ligado a sede do IHGP, onde
ambos estão localizados no prédio histórico denominado Solar do Barão de Guajará, deste

1869
modo, o MIHGP atribui-se de diversas peças de outrora doadas a sua instituição regente. Vale
ressaltar também que o MIHGP fora fundado juntamente com a reinstalação do IHGP, em 06
de março de 1916, onde anteriormente era denominado como Instituto Histórico, Geográfico e
Etnográfico do Pará.

O edifício em que o Museu reside possui uma arquitetura eclética, contendo em sua
estrutura diversas tipologias arquitetônicas. Deste modo, o solar fora tombado, sendo “inscrito
nos livros de Tombo Nacional, conforme a notificação nº 514, de 5 de outubro de 1943”
(TRINDADE, 1995), do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN). Ao
ser adquirido pelo Instituto Histórico e Geográfico do Pará, o edifício fora inscrito no Livro
do Tombo nº 2 e 3, destarte, o Solar do Barão de Guajará fora valorizado, sendo resguardado
como “um bem histórico do Patrimônio Nacional” (TRINDADE, 1995).

No momento presente, o MIHGP encontra-se indisponível para visitações de longa


duração, aberto apenas para visitas e pesquisas agendadas. No entanto, o Museu se dispõe de
projetos que propõem pesquisas nos acervos da instituição, projetos estes ligados, em maioria,
à Universidade Federal do Pará (UFPA).

O Processo de Salvaguarda do MIHGP

Podemos definir a salvaguarda como um conjunto de ações, métodos e técnicas que


possam resguardar, investigar e preservar um determinado acervo ou peça. Nesta pesquisa
serão especificados apenas os processos de Documentação Museológica e Conservação
Preventiva, buscando entender estes como etapas importantes de salvaguarda. À vista disso,
podemos compreender a importância de um projeto/ação de salvaguarda em instituições
histórico-museológicas para a proteção e promoção de coleções e acervos residentes nesta.

O processo de salvaguarda do Museu do Instituto Histórico e Geográfico do Pará fora


desenvolvido na esperança de preservar grande percentagem do acervo da instituição. Este
processo é um resultado da parceria entre o curso de Bacharelado em Museologia/UFPA e a

1870
direção do MIHGP. Por consequência, foram inicialmente formulados métodos de registro das
informações das peças e técnicas para a conservação básica destas.

As etapas de Documentação Museológica foram elaboradas na esperança de dotar as


necessidades de registro das peças, deste modo, foram desenvolvidas fichas de arrolamento,
fichas de catalogação e rascunhos para um futuro inventário. Fora desenvolvido também um
sistema de numeração e técnicas de marcações, com base nos estudos das diferentes tipologias
que formam o acervo do Museu. A necessidade desses procedimentos era alta, pois não havia
nenhum sistema de registro que auxiliasse na pesquisa das peças, portanto, a documentação
estava resumida apenas por um levantamento de objetos presente no relatório, de 2002-2003,
do ex-diretor do Museu. A elaboração de uma ficha de documentação padrão era de grande
necessidade, com isso, no iniciar das pesquisas nos acervos, fora proposto de início um
arrolamento e, logo após a idealização de uma ficha de documentação museológica que exigia
detalhes mais claros sobre as peças, potencializando assim o setor de pesquisa do MIHGP.

No quesito da conservação dos objetos, era de urgência que as peças entulhadas pelas
salas do Museu fossem imediatamente higienizadas e armazenadas em um local mais
apropriado. Sendo assim, uma reserva técnica foi concebida no intuito de abrigar grande parte
dos instrumentos que outrora estavam espalhados sem nenhuma proteção. Logo após esta
etapa inicial, buscavam-se estudos para um aprofundamento dos métodos de conservação dos
diversos materiais que formavam as peças, assim como no uso destas em pesquisas. Desta
maneira, fora adotado o uso de máscaras, luvas e aventais para o manuseio dos objetos,
impossibilitando o contato direto e proporcionando um alongamento da vida útil dos itens.

Destarte, podemos notar o quão eficiente são as etapas que compõem um processo de
salvaguarda, podendo preservar as memórias e características físicas presentes em um objeto.
O MIHGP, após a formulação de seu processo de salvaguarda, obteve como resultado um
aumento de pesquisas e parcerias em seu prédio e em seus acervos, além de obter
possibilidades para captação de recursos para o se desenvolvimento e atualização de seus
sistemas. Pode-se afirmar também que após a formulação destes procedimentos, fora notável
uma maior preocupação na conservação das coleções do Museu.

1871
Conclusão

As instituições histórico-museológicas são peças principais para a manutenção e


resguardo da memória de um povo, portanto, é de extrema necessidade uma instituição
possuir um programa de salvaguarda de seu acervo, buscando com isso potencializar setores
que auxiliem no papel desta instituição em meio a sociedade. O Museu do Instituto Histórico
e Geográfico do Pará, após um período de descuido com o seu acervo, resolveu desenvolver
um processo de salvaguarda deste, obtendo então um resultado favorável para os seus setores.

Por fim, o processo de salvaguarda funciona como uma luz para as instituições que
necessitam de apoio, agindo como primeira etapa para a promoção da memória e patrimônio
de uma sociedade. Atuando também na potencialização do papel social do Museu e de suas
funções primárias, valorando os setores de pesquisa, educação, preservação e comunicação.

Referências bibliográficas

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participação no curso de especialização em Preservação e Restauração do Patrimônio
Arquitetônico. Departamento de Arquitetura, Universidade Federal do Pará.

1873
APONTAMENTOS SOBRE AS AÇÕES DE MUSEALIZAÇÃO DOS CANHÕES
DO MIHGP

Melissa Walesk de Oliveira Dias Souza*


Maria do Socorro Brito Trindade*
Marcela Guedes Cabral*
*Universidade Federal do Pará

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo apresentar a situação atual dos canhões que fazem parte do
acervo do Museu Instituto Histórico e Geográfico do Pará, buscando iniciar uma pesquisa sobre estes
objetos. Foca em pesquisas em busca de compreensão do uso desse mecanismo de armaria na história,
para que não haja desarmonia na construção desse patrimônio pelas sociedades passadas. Procura-se
compreender as motivações do processo de musealização segundo Cury (2005). Busca identificar e
propor melhorias relacionadas, principalmente, a essas ações presentes nesses objetos. Citam-se os
principais pontos do estado atual desses canhões em termos de aquisição, pesquisa, conservação,
documentação e comunicação. O estudo foi motivado pela falta de publicações relacionadas à canhões
musealizados. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, onde os procedimentos utilizados foram a análise
dos objetos e pesquisas relacionadas ao histórico local e contextual dos mesmos.

Palavras-chave: Canhões; Musealização; Museu; Museologia.

Abstract: The present work aims to present the current situation of the cannons that are part of the collection
of the Museum Historical and Geographical Institute of Pará, seeking to start a research on these
objects. It focuses on researches in search of an understanding of the use of this armory mechanism in
history, so that there is no disharmony in the construction of this heritage by past societies. It seeks to
understand the motivations of the process of musealization according to Cury (2005). It seeks to
identify and propose improvements related mainly to these actions present in these objects. The main
points of the current state of these cannons are quoted in terms of acquisition, research, conservation,
documentation and communication. The study was motivated by the lack of publications related to
museum cannons. This is a qualitative research, where the procedures used were the analysis of
objects and research related to the local and contextual history of the objects.

Key-words: Cannons; Musealization; Museum; Museology.

1874
Os canhões

Com o início do uso da pólvora para fins bélicos no Ocidente do século XIV, de
acordo com Filgueiras e Piva (2008), são criados os primeiros canhões, dado o crescimento
das guerras que demandaram um desenvolvimento das artilharias159 e armas utilizadas para
que essas tivessem maiores alcances e precisão. Esse tipo de arma desenvolveu-se com a
metalurgia e a arte de fundir chumbo para sinos. Segundo Lopes (2013), os canhões feitos de
ferro fundido eram carregados manualmente por pólvora e bala e possuíam o objetivo de
intimidar o inimigo e manter as fronteiras territoriais em constante defesa.

Dentre os tipos de canhões, podem-se destacar os canhões de alma lisa, onde o seu
interior é liso; e os canhões de alma raiada, onde seu interior possui algumas estrias
helicoidais160. Com o investimento e evolução da metalurgia e da artilharia bélica surge o
canhão de Gauss. Este é movido à energia eletromagnética, a qual a força dos imãs
impulsiona o projétil. Surge também o canhão elétrico, movido por um deslocamento de
cargas elétricas.

Os canhões já eram utilizados para defesa de fronteiras por várias monarquias na


Europa e no Brasil, e se tornaram uma das principais armas planejadas para as guerras.
Tornando-se um símbolo de guerra, força e imponência, se um canhão não é de determinada
nação é porque essa nação conquistou o canhão do inimigo. Expostos, podem emitir o
sentimento de poder (não é à toa que estão expostos em diversos fortes do Brasil).

A partir da Segunda Guerra Mundial, torna-se fundamental o uso dessa arma,


principalmente em navios de guerra. Essa forma de utilização dos canhões manteve-se, sendo
utilizada até hoje em navios militares.

O término das grandes guerras trouxe um grande desenvolvimento em várias áreas,


inclusive a bélica. Desse modo, alguns canhões de modelos ultrapassados, devido o valor
histórico, foram adquiridos por museus no Brasil e no mundo, dentre estes, o Museu do
Instituto Histórico e Geográfico do Pará (MIHGP).

159
Conjunto de material para guerra.
160
Ondulações em espiral que conferem rotação, velocidade e precisão ao projétil.

1875
Os canhões do MIHGP

O Museu do Instituto Histórico e Geográfico do Pará (MIHGP) possui atualmente


em seu acervo cinco canhões. Dois estão localizados na entrada, um no pátio, um no jardim, e
um na reserva técnica. Todos são de bronze.

O canhão posicionado na entrada à direita possui uma inscrição com a sigla “DPII”,
indicando que seu uso foi no regime imperial de Dom. Pedro II. Possui 1,59 metros de
comprimento e 40 centímetros de largura. Está acompanhado de uma base original em
madeira, feita por um restaurador em 2010.

O canhão na entrada à esquerda não possui inscrições. Mede 1,56 metros de


comprimento e 39 centímetros de largura. Também está acompanhado de base em madeira
feita na mesma época em que a anterior. Esses dois canhões foram encontrados no antigo
Forte do Araguaia, e foram doados ao MIHGP em 11 de fevereiro de 1935, pelo Major
Joaquim de Magalhães Cardoso Barata. Estão em estado de conservação razoável.

O do pátio está acompanhado de cinco munições de diferentes tamanhos e de base


em madeira. Mede 1,26 metros de comprimento e 33 centímetros de largura. Não possui
informações de onde foi encontrado e nem de como foi recebido. Está em estado de
conservação razoável, mas necessita de cuidados.

O canhão exposto no jardim não possui acompanhamento de base ou munições.


Mede 2,67 metros e 49 centímetros de largura. Também não foram localizadas informações
sobre como foi encontrado, nem de como foi adquirido pelo museu. É o único do acervo
exposto ao ar livre. Segundo Assis (2014), em casos de objetos de metais expostos ao ar livre,
a conservação preventiva é nula. É o que possui pior estado de conservação, sendo necessária
sua restauração.

O canhão que não está exposto também não possui acompanhamento de base ou de
munições. Mede 39 centímetros de comprimento e 19 centímetros de largura. Foi encontrado

1876
no leito da Baía de Guajará, próximo do bairro Una. Foi doado ao MIHGP em 11 de fevereiro
de 1969 pelo Dr. Fernando José Leão Guilhon. Seu estado de conservação é bom.

Musealização dos Canhões: Análise e Propostas

Este estudo busca compreender o processo de musealização dos canhões e propor


melhorias para esse processo no acervo. Segundo Cury (2005), musealização é um processo
que envolve uma série de ações sobre os objetos, sendo elas: aquisição, pesquisa,
conservação, documentação e comunicação.

Compreendendo os canhões como um dos registros históricos mais fortes de guerra,


pode-se saber a motivação do processo de musealizá-los. A exposição de canhões é comum,
principalmente em museus localizados em fortes no litoral brasileiro. A grandiosidade de uma
arma como essa vem de seu poder de destruição. Quanto maior for, maior a sensação de
proteção da nação correspondente. Esses canhões são compreendidos como documentos
dentro do processo de musealização. De acordo com Hernández (2006), documentos são
suportes que contém informações e que podem servir de meio de transmissão desse
conhecimento. Dessa forma, os canhões tornam-se bens patrimoniais.

● Aquisição

A aquisição de um objeto de guerra em um museu se motiva a partir do entendimento


do mesmo como patrimônio cultural, que segundo a Mesa-Redonda convocada pela
UNESCO, em 1972, é

[Patrimônio cultural:] Os monumentos -Obras arquitectónicas, de escultura


ou de pintura monumentais, elementos de estruturas de carácter
arqueológico, inscrições,
grutas e grupos de elementos com valor universal excepcional do ponto de
vista da história, da arte ou da ciência; (UNESCO, 1972).

Não se têm a informação de como todos os canhões foram adquiridos pelo MIHGP.
Apenas que os dois da entrada foram doados pelo Major Joaquim de Magalhães Cardoso

1877
Barata em 1935 e que o canhão da reserva técnica foi doado pelo Dr. Fernando José Leão
Guilhon em 1969. Como proposta para o MIHGP, coloca-se a recomendação do Código de
Ética para Museus (2006), de que nenhum objeto adquirido pela instituição, por qualquer
meio, sem que seja feita uma pesquisa relacionada à validade do título de propriedade a ele
relativo.

● Pesquisa

A pesquisa dentro do museu é responsável pelo entendimento da museologia como


ciência. No momento em que o objeto está sendo pesquisado, ele torna-se vivo e dinâmico.
Esse é o campo mais interdisciplinar da museologia, uma vez que essa ação pede a atuação
não só de museólogos, como também de profissionais de outras áreas relacionadas ao objeto
em questão. A pesquisa interdisciplinar interfere em todas as demais ações de musealização,
tornando-as contínuas e dinâmicas. Talvez essa seja uma das principais razões para um objeto
ir para um museu, uma vez que, de acordo com Brulon (2009), a Nova Museologia enxerga o
Museu como um fenômeno social.

Objetos de guerra como canhões são uma importante fonte de pesquisa para a
preservação cultural da memória. Quanto mais se pesquisa, mais se tem informação para a
melhora das demais etapas da musealização. Não haviam pesquisas específicas em cima dos
canhões do MIHGP. O presente estudo é o primeiro trabalho escrito sobre esse acervo.
Propõe-se ao MIHGP que o seu corpo de pesquisadores seja composto por profissionais de
distintas áreas.

● Conservação
Sendo os canhões portadores de informação, necessita-se de um cuidado com a
preservação desses objetos, que se torna consequentemente, preservação de informação. Ao
musealizar uma peça desse porte, se está preservando um pouco da memória das relações
humanas. No caso dos canhões do MIHGP, estão contidos de uma memória arqueológica,
histórica (referente à época imperial), social e bélica que deve ser preservada, uma vez que o
patrimônio é compreendido não somente como sistema de produção de valores, mas também

1878
como instrumento de produção e transmissão de conhecimentos ligados à cultura de
determinado grupo sobre maneiras de se fazer ciência, a serviço da pesquisa.
Para que a conservação seja adequada, segundo Assis (2014), são necessárias ações
conjuntas entre profissionais de diversas áreas. A conservação do acervo do MIHGP não está
regularizada, uma vez que os canhões não estão condicionados de maneira correta, e estão
sem observação e sem pesquisa direcionada aos mesmos. Os canhões da entrada e do pátio
estão em bases de madeira, expostos corretamente. No entanto, o canhão do pátio já apresenta
alguns sinais de corrosão. O canhão pequeno da reserva técnica encontra-se em uma estante
também em metal, o que pode causar uma reação de óxido-redução de acordo com Assis
(2014). Propõe-se para este canhão a presença de algo que impeça esse contato direto com o
metal da estante (espuma de polietileno ou papéis com Ph neutro), ou mudar seu
armazenamento para armários de madeira ou bancadas de cimento. O canhão de pior estado é
o canhão que está no jardim, que apresenta fortes sinais de corrosão devida sua constante
exposição. Propõe-se mudar sua localização para um lugar menos exposto aos agentes de
deterioração como raios de sol e chuva, e seu armazenamento em base de madeira como os
canhões da entrada e do pátio.

● Documentação

A documentação é uma das principais etapas da musealização por se comunicar com


as demais etapas do processo. As informações intrínsecas e extrínsecas sobre o objeto serão
armazenadas na documentação possibilitando, de acordo com Ferrez (1991), a recuperação e a
ampliação da informação, mantendo assim a continuação dos estudos no objeto uma vez que o
tempo de trabalho de um profissional dentro do museu é menor do que o tempo de vida da
peça. No entanto, a documentação não deve ser tida como principal fonte de pesquisa, pois, de
acordo com Ceravolo e Tálamo (2007), o estudo e processamento de informação do objeto
dentro do museu geram documentação, mas a documentação sozinha não gera informação.

No caso do museu, a documentação é falha e encontra-se incompleta. Através de


voluntários, a documentação tem sido analisada e pensada. Propõe-se pesquisa no acervo,
para aprimoramento de informação que poderá ser utilizada na documentação.

1879
● Comunicação

Os canhões são expostos de forma política como nos diversos fortes do litoral do
país. O Museu Histórico Nacional (RJ), por exemplo, apresenta um pátio com diversos
canhões usados pelo Brasil em guerras ou capturados de outras nações durante guerras.
Quanto mais canhões em espaços como esses, mais se tem a sensação de força e proteção. O
canhão dentro de um espaço museal é uma ação nacionalista, talvez seja por isso que a
musealização desse tipo de artilharia seja tão comum no Brasil, que é um país com fortes
símbolos patriotas.

Propõe-se que este acervo seja divulgado para o público através da mídia, exposições
e palestras. Como resultado a sociedade passará a ser informada sobre as atividades realizadas
pelo MIHGP. Este interesse pela sociedade auxiliaria a instituição na obtenção de mais
verbas, que, com recursos, poderá melhorar a sua estrutura geral de funcionamento e o nível
de serviços prestados para a própria sociedade, além de obter uma melhor possibilidade de
financiamento para a pesquisa que envolve coletas de campo, aumentando o acervo do museu.
Este, por sua vez, poderá servir de base para novas pesquisas e assim sucessivamente
(KELLNER, 2005).

Esses canhões não estão acessíveis ao público uma vez que o próprio espaço não está
aberto à visitação. Se estivesse aberto, somente quatro dos cinco canhões estariam expostos.
O canhão menor não se encontra exposto.

Considerações

Partindo da premissa de atuar-se para o progresso da comunidade, não para que não
se guarde somente a memória oficial, este trabalho visa contribuir com a compreensão da
história subterrânea que as armarias contam. No espaço do MIHGP, uma vez os canhões
revestidos de novos significados museográficos, propõe-se instigar jovens, estudantes,
visitantes, funcionários da instituição, técnicos e trabalhadores do entorno, por meio de

1880
tentativas, de desenvolver relações com estas questões museográficas, tendo o entendimento
de que todo conhecimento sociológico tem, como fundamento, um compromisso com valores.

O trabalho busca também compreender o sentimento por trás da entrada de um objeto


desse porte em um museu, e que tipo de informações ele pode possuir, para que desperte o
interesse para a pesquisa. A pesquisa busca introduzir a discussão sobre canhões em espaços
museais, uma vez que não possuem trabalhos sobre o tema.

Referências Bibliográficas

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de procedimentos técnicos a partir da apresentação dos agentes de degradação. 2014.

BRULON, Bruno Soares. A experiência museológica: Conceitos para uma fenomenologia


do Museu. 2009.

CERÁVOLO, Suely Moraes; TÁLAMO, Maria de Fátima. Os museus e a representação do


conhecimento: uma retrospectiva sobre a Documentação em Museus e o Processamento da
Informação. 2007.

COMITÊ BRASILEIRO DO CONSELHO INTERNACIONAL DE MUSEUS. Código de


ética do ICOM para Museus. 2006.

CURY, Marília Xavier. Exposição: concepção, montagem e avaliação. São Paulo:


Annablume. 2005.

FERREZ, Helena Dodd. Documentação Museológica: Teoria para uma boa prática.1991.
FILGUEIRAS, Carlos A. L.; PIVA, Teresa C. C. O fabrico e uso da pólvora no Brasil
Colonial: O papel de alpoim na primeira metade do século XVIII. 2008.

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YEPES, José (Coord.). Manual de ciências de la documentación. 2 ed. Madrid: Pirámide,
2006. p. 159-178.

1881
LOPES, Henrique Corrêa Lopes. O troar dos canhões: Fragmentos da poderosa artilharia.
2013.

MASSARANI, L., Turney, J; MOREIRA, I de C, 2005 (eds) Terra incógnita - A interface


entre ciência e público. Viera e Lent. 256 p. – Museus e a Divulgação Científica. Kellner
Armin, Alexandre Wilhelm. UFRJ.

UNITED NATIONS EDUCATIONAL, SCIENTIFIC, AND CULTURAL ORGANIZATION


(UNESCO). Convenção para a proteção do patrimônio mundial, cultural e natural. 1972.

1882
MUSEOLOGIA, MUSEU E SALVAGUARDA DO PATRIMÔNIO IMATERIAL:
UM ESTUDO DE CASO SOBRE OS MUSEUS DE BELÉM E A
REPRESENTATIVIDADE DO BREGA PARAENSE

Jaiane Lima da Silva*


Vitor Nonato Xavier*
*Universidade Federal do Pará

Resumo: O presente trabalho visa apresentar reflexões que surgiram a partir de questionamentos
acerca da representatividade do ritmo Brega Paraense em instituições museológicas de Belém.
Compreendendo que o brega é um dos ritmos mais apreciados pelos paraenses, surgiram questões que
apontaram para a falta de representatividade deste ritmo dentro de ambientes museológicos em Belém.
A partir de análises feitas em dois importantes museus da cidade, constatou-se que não há espaços
reservados ao ritmo dentro deles e em nenhum espaço museal da capital paraense. Diante disso foi
desenvolvido um estudo de caso juntamente ao público para se ter uma noção básica sobre o
posicionamento dos moradores da cidade em relação a este gênero musical. A partir do
desenvolvimento de um questionário que foi aplicado através de ferramentas de comunicação social,
foi possível especular que a população sente a necessidade de ver esse ritmo representado e
apresentando dentro de instituições museológicas, e que se sentiria à vontade para visitar museus que
possuíssem o brega dentro de suas paredes. Assim, surgiram discussões sobre a necessidade de inserir
o brega nos museus de Belém e, futuramente, aprofundar a pesquisa com o intuito de promover a
divulgação e a preservação desse bem imaterial de Belém do Pará que se apresenta como um forte
símbolo da cultura paraense, e também como um forte patrimônio da população local, criadora do
ritmo.

Palavras-chave: Brega Paraense; Museus de Belém; Patrimônio; Representatividade.

1883
Abstract: The present work aims to present reflections that have arisen from questions about the
representativeness of the Brega Paraense rhythm in museological institutions of Belem. Understanding
that brega is one of the rhythms most appreciated by the Paraenses, questions arose that pointed to the
lack of representation of this rhythm within of museological environments in Belem. Based on
analyzes made in two important museums of the city, it was verified that there are no spaces reserved
to the rhythm inside them and in no museum space of the capital of Pará. In the light of this, a case
study was developed together with the public to have a basic notion about the position of the city's
residents in relation to this musical genre. From the development of a questionnaire that was applied
through social communication tools, it was possible to speculate that the population feels the need to
see this rhythm represented and presented within museological institutions, and that it would feel
comfortable to visit museums that had the tacky inside your walls. Thus, discussions arose about the
need to insert the brega in the museums of Belem and, in the future, to deepen the research in order to
promote the dissemination and preservation of this intangible asset of Belem do Pará, which presents
itself as a strong symbol of Pará culture, and also as a strong patrimony of the local population, creator
of the rhythm.

Keywords: Brega Paraense; Museums of Belem; Patrimony; Representativeness.

1884
Introdução
A cultura popular brasileira é uma grande vertente responsável pela estruturação dos
costumes e saberes populares de todas as regiões do Brasil. No entanto, apesar de haverem
manifestações que caracterizam o Brasil em geral, cada região e cada Estado brasileiro possui
sua peculiaridade com relação à cultura que o identifica. Para Azariel Silva (2010) a cultura
popular é um elemento de socialização que está em constante confronto com a cultura
tecnológica que ao longo dos anos tem influenciado diversas comunidades, transformando
seus hábitos de vida e de comunicação.

No Norte do Brasil, maior região em extensão territorial destaca-se a cultura do Estado


do Pará – segundo maior do país e o mais populoso da região – como uma grande contribuinte
para cultura brasileira, a partir de ações que se desdobram entre a culinária, as músicas, as
danças, o vocabulário, o saber fazer, as lendas e mitos, entre outros. Para Silva (2010), a
cultura paraense é descrita como elemento chave de um povo que busca o reconhecimento e
respeito frente à diversidade cultural brasileira.

A partir disso, enfatizamos neste trabalho o ritmo musical “Brega Paraense” como um
dos maiores símbolos de identidade cultural no Pará. Segundo Lopes (2017), apesar do gênero
ter tido evolução em diferentes e longínquas cidades do Estado como Santarém, Paragominas,
São Geraldo do Araguaia e Altamira, que ocasionalmente abriram espaço para shows do
estilo, foi na capital Belém que ele mais se destacou, com a presença de rádios, gravadoras,
televisão, camelôs, etc. No Pará, o brega está ligado às sociabilidades locais e à identidade
regional do paraense.

Considerando que o brega apresenta forte potencial para somar com os patrimônios
encontrados no Estado, este trabalho tem como objetivo apresentar questionamentos e
reflexões acerca da representatividade deste ritmo em museus da capital paraense. Para isso,
realizou-se uma breve análise sobre a possível relação deste bem intangível com dois museus:
Museu de Arte de Belém (MABE) e Museu Histórico do Estado do Pará (MHEP), ambos
localizados na cidade de Belém. Houve também uma pesquisa para tentar compreender um
pouco da ideia de museus e patrimônio na ótica da população de Belém, sendo desenvolvido
um questionário com 06 (seis) perguntas e o mesmo sendo aplicado através de mecanismos da

1885
Internet em moradores de diversos bairros belenenses e, a partir disso foi possível pensar na
possibilidade de inserção do Brega Paraense nos museus salvaguardando-o como patrimônio
cultural imaterial, levando em conta a Convenção da Unesco para a Salvaguarda do
Patrimônio Cultural Imaterial (2003) que considera a necessidade de conscientização,
especialmente entre as novas gerações, da importância do patrimônio cultural imaterial e de
sua salvaguarda.

Flash brega, brega marcante e tecnobrega/tecnomelody

O Brega Paraense consolidou a princípio três estilos musicais: a guitarrada, surgida no


baixo rio Tocantins e caracterizada pela fusão da cúmbia, merengue e carimbó, apresentando
também influências de choro, do maxixe e da Jovem Guarda, a lambada que seguiu por um
caminho sonoro parecido, porém se afastando gradativamente das guitarras e cedendo sua
sonoridade aos instrumentos de sopro, violões acústicos e ritmos caribenhos e, por último,
uma geração de músicos românticos ligados diretamente ao brega tradicional predominante
nas camadas populares do Norte e Nordeste, que despontaram entre o fim dos anos 70 e
meados dos anos 80 e que obtiveram grande sucesso comercial em terras paraenses com o
ritmo dançante ligado às letras românticas. Alguns destes estão até hoje em atividade, com
músicas ainda executadas em rádios e “bailes” de aparelhagens exclusivas deste subgênero,
no que hoje é considerado pelo público como “Brega Saudade” ou “Flash Brega”.

Diante de tantos outros gêneros musicais que exerceram/exercem papel


importante para a construção da identidade cultural paraense, o brega se
destaca desde a década de 50 quando há na capital, Belém, o surgimento de
casas de shows/bares que traziam no repertório de suas festas uma variedade
de ritmos como: bolero, gafieira, música caribenha, e tantos outros mais, no
entanto, somente a partir dos anos 70, com o surgimento de ritmos como o
axé, a lambada, o sertanejo e outros, é que se inicia no Pará, o surgimento do
ritmo/gênero musical brega (MARQUES, 2006).

A partir dos anos 1990, o Brega Saudade dá lugar a uma nova geração de “bregueiros”
que viriam a difundir o Brega para o país inteiro, defendendo as raízes paraenses e chamando

1886
a atenção do público para o que a capital do Estado tinha a oferecer. Nesta nova fase, surgem
o “brega pop” e “brega calypso” no cenário do ritmo. Contudo, artistas e sonoridades desses
tipos de brega se mesclaram e, atualmente, a música produzida a partir da década de noventa
foi unificada pelo público paraense no termo “Brega Marcante”. A fórmula mostrou-se um
sucesso, e seria utilizada por quase uma década e aproveitada pelas tendências bregas
posteriores.

As origens da inclusão de elementos eletrônicos (primeiramente a partir de teclados,


depois samplers e computadores) no Brega datam do início dos anos 1990, a partir de
iniciativas de compositores de brega marcantes e de DJs. Foi entre 2002-2003, contudo, que o
gênero “Tecnobrega/Tecnomelody” ganhou forma e consolidou sua entrada no mercado
paraense. DJs e bandas ajudaram no crescimento da vertente mais bem-sucedida do brega. O
principal símbolo de sucesso do tecnobrega/tecnomelody vem das aparelhagens. Com origens
nos anos 1950, sua consolidação profissional entre as bandas, mídia, público, produtores e
camelôs ocorre a partir de meados dos anos 1980, mas principalmente com a ascensão da
geração marcante (LOPES 2017). Hoje em dia as mesmas são consideradas o local onde o
tecnobrega mostra sua força, também atraindo atenção da mídia brasileira e internacional,
com uma infraestrutura que muitas vezes iguala às do funk carioca ou do forró eletrônico,
com festas de grande porte ocorridas muitas vezes na periferia de Belém e em outras cidades
do Pará.

O brega paraense e o patrimônio cultural

No decorrer dos anos, através de inúmeras reflexões feitas a partir de cartas e


recomendações da UNESCO, como por exemplo, a Recomendação de Paris (1989), que trata
sobre a salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular, e a Recomendação de Paris (2003), que
tratou sobre questões acerca da salvaguarda do Patrimônio, iniciou-se uma ampliação desse
conceito. Tamaso (2002) destaca que a “preocupação com a herança cultural passou a recair
sobre as ideias e imagens e não apenas sobre as coisas”. A partir disso, abrem-se os horizontes
para a valorização das expressões culturais de cunho popular como as danças, as músicas, a
culinária, o saber fazer, entre outras, que se firmaram a partir das populações das margens.

1887
Entende-se por “patrimônio cultural imaterial” as práticas, representações,
expressões, conhecimentos, e técnicas – junto com os instrumentos, objetos,
artefatos e lugares culturais que lhes são associados – que as comunidades,
os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte
integrante de seu patrimônio cultural. (UNESCO, 2003).

A partir, da ampliação desse conceito podemos destacar o Brega Paraense como um


bem cultural que apresenta características de forte potencialidade para ser reconhecido como
um símbolo imaterial da cultura popular paraense, sendo este um gênero musical que vem
sofrendo relevantes transformações desde o surgimento até os dias atuais e, apesar da falta de
incentivos por parte dos órgãos culturais de cunho governamental, o ritmo apresenta grande
importância de identidade cultural para os indivíduos de comunidades periféricas do interior e
da capital e ainda hoje vem sendo transmitido de geração em geração e que condizem com as
perspectivas conceituais do patrimônio imaterial.

Em 24 de maio de 2013 o então Governador do Estado Simão Jatene, sancionou a Lei


7.708, de nome Semear, aprovada por unanimidade na sessão do dia 10 de abril daquele ano
na Assembleia Legislativa do Pará (ALEPA), que reconheceu o tecnobrega/tecnomelody
como Patrimônio Imaterial Artístico e Cultural do Pará. No entanto, o ritmo não consta na
lista do Departamento de Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural (DPHAC) da Secretaria
de Estado de Cultura (SECULT). Além do ritmo popular, outros ritmos do Estado, como o
Carimbó – Patrimônio Imaterial Cultural do Brasil – também não foram listadas pelo
DPHAC. Na época, o setor de comunicação informou ainda que, neste caso, a sanção de uma
lei pelo governo do estado via projeto de lei da ALEPA, não tem ligação com o setor da
SECULT que cuida dos registros de patrimônio e de tombamento.

O Brega Paraense Nos Museus De Belém

Considerando as potencialidades do Brega Paraense como um forte aspecto da cultura,


foi realizada uma breve análise da presença desse ritmo na vida da sociedade paraense e sua
representatividade em dois museus da capital: o Museu de Arte de Belém (MABE) e o Museu
Histórico do Estado do Pará (MHEP). A partir desta análise constata-se que os dois museus
não apresentam (e nem pretendem apresentar) em suas exposições quaisquer referências ao

1888
gênero musical ignorando assim, a força que este exerce sobre toda a cultura do Estado. O
próprio carimbó enquanto PCI do Brasil, também não está presente em nenhum tipo de
exposição. Sobre esta análise, foi desenvolvido um questionário com 06 (seis) perguntas para
compreender a posição de uma parcela de entrevistados acerca da representatividade do Brega
Paraense em instituições museológicas de Belém e a partir dos resultados levantaram-se
questionamentos sobre a necessidade da representação deste gênero musical nos museus
acima citados.

Resultados e discussões

Para o estudo de caso foi aplicado um questionário acerca do tema proposto a 20


(vinte) entrevistados. Vale lembrar que cada entrevistado poderia marcar mais de uma
alternativa na mesma questão. (Figura 01)

1889
5.1. Quando questionados sobre o que se entendia por museu, 48% afirmaram que é um lugar
onde se guarda algo, 40% que é um lugar onde se guarda coisas antigas, 4% um lugar que tem
animais e 4% outras funções.

5.2. Quando questionados se já tinham visitado algum museu na cidade de Belém: 75%
respondeu que sim e 25% que não.

5.3. Quando perguntado o que se entende por patrimônio: 50% afirmou que é algo de valor
que a gente deixa para os outros, 34,4% que é alguma coisa que conta a história de uma
cidade ou povo, 11,53% algum prédio ou pintura que foi feita a muitos anos atrás e 3,84% que
entende por outras funções.
Gráfico SEQ Gráfico \* ARABIC 1

5.4. Quando perguntado se o entrevistado achava que o Brega é um patrimônio do Pará:


(Gráfico 01)

5.5. Quando perguntado se o Brega Paraense deveria estar sendo representado em algum
museu de Belém: 80% respondeu que sim e 20% respondeu que não.

5.6. Quando perguntado se caso Belém tivesse um local onde é contada a história do Brega
Paraense, os entrevistados gostariam de visitá-lo: 95% respondeu que sim, e 5% respondeu
que não.

1890
Considerações finais
Apesar dos diversos avanços da Museologia se tratando de questões patrimoniais,
ainda hoje, muitas instituições museológicas apresentam dificuldades de inserir o Patrimônio
Imaterial em suas medidas de preservação (CARVALHO, 2009). O Pará não fica de fora
quando se trata dessa dificuldade de inserção do PCI em seus museus. Atualmente, a capital
paraense ainda apresenta um déficit na salvaguarda e representação das expressões culturais
advindas das comunidades periféricas em seus museus. Compreendemos que o processo de
adaptação ao novo é algo que não acontece “da noite para o dia”, no entanto, devemos voltar
nossos olhares para o desenvolvimento de medidas de preservação que englobem também os
bens imateriais já que estes são grandes colaboradores da história e da identidade cultural
dessa sociedade.

REFERÊNCIAS
CARVALHO, Ana. Os museus e o Patrimônio Cultural Imaterial. Algumas considerações.
Disponível em: < http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/8935.pdf >. Acesso em, 08 de abril
de 2017.

LOPES, Roberto. Brega e Tecnobrega paraense: uma viagem “pai d'égua” em 40 músicas.
Disponível em: <https://papodehomem.com.br/brega-e-tecnobrega-paraense-uma-viagem-pai-
d-egua-em-40-musicas/>. Acesso em, 06 de abril de 2017.

SILVA, Azariel. Imaginário, a poética da construção cultural do Pará: identidade e


socialização. Disponível em: < http://www.recantodasletras.com.br/artigos/2499883 >.
Acesso em 05 de Abril de 2017.

TAMASO, Izabela. A expansão do patrimônio: novos olhares sobre velhos objetos, outros
desafios... In: Sociedade e Cultura, v. 8, n. 2, Jul./Dez., 2005.
Tecnomelody é reconhecido como Patrimônio Artístico e Cultural do Pará. Disponível em: <
https://mundobrega.wordpress.com/2013/06/13/tecnomelody-e-reconhecido-como-
patrimonio-artistico-e-cultural-do-pa/ >. Acesso em, 08 de abril de 2017.

UNESCO. Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial. Paris: UNESCO,


2003.

Sites
http://cultura-paraense.blogspot.com.br/ . Acesso em, 07 de abril de 2017.

1891
Museus e patrimônio
cultural universitários:
discutindo conceitos e
promovendo parcerias e
articulações

1892
ACERVO ARTÍSTICO DA UFMG: O PAPEL DA MUSEOLOGIA NA GESTÃO
DO PATRIMÔNIO UNIVERSITÁRIO

Ana Martins Panisset*


Letícia Julião**

Resumo: O artigo apresenta e discute alternativas de salvaguarda e gestão do Acervo Artístico


da UFMG (AAUFMG), considerando peculiaridades e desafios do contexto patrimonial
universitário. As 1500 obras que compõem o Acervo encontram-se dispersas em várias unidades
dos campi da UFMG, sob a tutela administrativa de distintos organismos universitários. São
descritas as principais ações desenvolvidas por um projeto de documentação museológica e de
gerenciamento do acervo, o qual dá início a um processo de valorização desse patrimônio no
âmbito universitário. São analisadas as implicações de ordem teórica na delimitação das
fronteiras do AAUFMG e apresentados os pressupostos, a metodologia e os recursos que
orientam e subsidiam a documentação. Finalmente, se discute um modelo de gestão, em bases
compatíveis com o caráter descentralizado do AAUFMG.
Palavras-chave: patrimônio universitário; gestão de acervos; documentação museológica;
acervo artístico.

Abstract: The article presents and discusses alternatives for safeguarding and managing
UFMG's Art Collection (AAUFMG), considering the peculiarities and challenges of the
university heritage context. The 1500 works that compose the Collection are dispersed in
several units of the UFMG campuses, under the administrative tutelage of different university
bodies. The main actions developed by a museum documentation and collection management
project are described, which begins a process of valuing this heritage in the university context.
The theoretical implications in the delimitation of the boundaries of the AAUFMG are analyzed
and the assumptions, methodology and resources that guide and subsidize the documentation are
presented. Finally, a management model is discussed, based on the decentralized nature of the
AAUFMG.
Key-words: university heritage; collections management; museum documentation; art
collection.

1893
Um breve histórico

Ao longo de 90 anos de existência, a UFMG reuniu, ao lado de suas coleções


científicas, importante acervo artístico, o qual somente há pouco tempo tem merecido a
atenção dos gestores universitários. Considerando o extenso intervalo de tempo de sua
formação, não é difícil de imaginar que sua constituição obedeceu a distintos
pressupostos e requisitos. Dos retratos de diretor de unidades e reitores, comuns a
qualquer instituição universitária, a coleções doadas por intelectuais de prestígio,
incluindo um conjunto de obras de artistas professores universitários, o acervo de arte
da UFMG, com aproximadamente 1.500 obras, resultou de um colecionamento
assistemático, caracterizado, muitas vezes, como desdobramento quase natural do lugar
de notoriedade ocupado pela universidade no Estado de Minas Gerais. É possível dizer
que, com raras exceções, o acervo se constituiu sem um propósito claro, tanto do ponto
de vista de seu recorte artístico, quanto de sua destinação.

As exceções a esse cenário de colecionamento assistemático são as doações de


duas coleções à UFMG - Brasiliana e Amigas da Cultura – que ocorreram nos anos de
1960 e 1970. Além de conjuntos reunidos a partir de propósitos mais delineados por
seus respectivos doadores, as duas iniciativas trouxeram consigo a conjectura de criação
de um museu ou similar. A Coleção Brasiliana foi doada pelos Diários Associados, por
intermédio de Assis Chateaubriand, em 1966. No ano seguinte, 1967, o reitor Prof.
Aluísio Pimenta, relata, em carta a Chateaubriand, que a coleção encontrava-se bem
cuidada, reunida em uma sala do 2º andar do prédio da Reitoria e, o mais interessante,
aberta à visitação pública (ARAÚJO, 2012). Três anos depois, em 1970, a coleção
Amigas da Cultura, constituída por obras de artistas que atuaram em 1960/1970, era
doada à Universidade pela Associação. A doação, articulada por Celma Alvim, à época
curadora da Galeria da Reitoria da UFMG e coordenadora das atividades de extensão,
vinha ao encontro do papel de liderança exercido pela Universidade que, naquele

1894
momento, despontava como o principal espaço de manifestação das vanguardas, tendo à
frente a Escola de Belas Artes. (RIBEIRO, 2011).

A despeito dessas de ações mais sistemáticas de gestão de coleções artísticas da


UFMG, entre os anos de 1960 e 1970, esse acervo seguiu uma espécie de trajetória
errática dentro da Universidade. O museu para o qual a doação das Amigas da Cultura
visava instalar nunca foi criado; o espaço da reitoria dedicado à exibição da coleção
Brasiliana também não se manteve. A constatação de Araújo (2012), referindo-se à
situação da Coleção Brasiliana, de lacunas de documentação que comprometem
compreender a história dessas obras na Universidade, além de dissociação de conjuntos,
pode ser estendida às demais coleções, senão a todo o acervo artístico da UFMG.

Vale destacar dois projetos mais recentes que buscaram, em particular, fazer a
gestão e/ou estudar o acervo artístico ou parte dele. Nos anos de 1990, o prof. Marco
Elízio de Paiva, então diretor da Escola de Belas Artes, realizou um inventário e estudo
da Coleção Brasiliana (PAIVA, 1997). Em 2000, uma restauração no prédio do
Conservatório da UFMG, destinou um espaço para parte do acervo artístico -
basicamente, as coleções Brasiliana, Amigas da Cultura e Rodrigo Melo Franco de
Andrade – onde foi montada uma reserva técnica e pretendia-se criar um Museu, projeto
que não chegou a ser realizado, embora o Conservatório tenha mantido uma sala de
exposição do acervo artístico. Pouco tempo depois, ainda nos anos 2000, a reserva
técnica foi desmontada e o acervo foi transferido do Conservatório para o 4º andar da
Biblioteca Universitária, edificação central que sedia coleções raras e artísticas.

Em 2009, o Projeto “Memória, Acervo e Arte”, idealizado pelos professores


João Antonio de Paula e Heloisa Starling, realiza um extenso levantamento do Acervo
Artístico da UFMG, sob a coordenação dos professores Marília Andrés Ribeiro e
Fabrício Fernandino, com participação da conservadora Moema Nascimento Queiroz

1895
(EBA). O trabalho resultou na publicação de um livro e na realização de exposições no
campus.

Atualmente, a Diretoria de Ação Cultural assumiu a gestão do Acervo Artístico


UFMG (AAUFMG), instituindo uma coordenação e comissão executiva que têm, desde
2015, desenvolvido ações de salvaguarda e comunicação do acervo e se empenhado em
implantar uma política para esse importante patrimônio de arte universitário.

Que obras considerar como integrante do AAUFMG? Delineamentos preliminares


O inventário realizado entre 2009 e 2011 teve o mérito de selar a ideia de um
acervo artístico da Universidade. Além das coleções doadas à UFMG, a exemplo das já
mencionadas, o projeto mapeou obras de arte que integram outras coleções e tipologias
de acervo, a exemplo do Curt Lange, Escritores Mineiros, coleção de cerâmica do Vale
do Jequitinhonha do Museu de História Natural e Jardim Botânico, esculturas ao ar
livre, painéis dos prédios, retratos de personalidades, obras que estão expostas em
gabinetes e salas das escolas, institutos e faculdades. Compõe o acervo arrolado
pinturas, gravuras, esculturas, obras integradas, fotografias, obras bibliográficas raras,
abrangendo do século XVI ao século XXI.

Desse extenso conjunto, muitas obras avulsas foram incorporadas ao patrimônio


da UFMG, por diversos meios como doações, premiações em salões e projetos. Além
das coleções atualmente reunidas na Biblioteca Universitária, as demais obras estão
distribuídas por 33 unidades da UFMG do Campus Pampulha, Campus Saúde, em
unidades localizadas na região central de Belo Horizonte - Escola de Arquitetura e
Faculdade de Direito -, como também no Campus Cultural localizado na cidade de
Tiradentes e no Instituto Casa da Glória, órgão complementar do IGC, localizado em
Diamantina.

1896
Como um desdobramento desse mapeamento inicial do acervo, a Coordenação
do AAUFMG estabeleceu como uma de suas ações prioritárias a realização do
inventário e posterior catalogação de todas as obras, simultâneo à implantação de um
sistema de informação capaz de instrumentalizar e potencializar a gestão e o
monitoramento desse extenso patrimônio que se encontra disperso nas diversas
unidades da UFMG. O projeto de documentação se impôs, portanto, como primeiro
passo para se conhecer o acervo. Seus resultados, ainda que parciais, vão respaldar, com
suas informações seguras, as demais ações de salvaguarda e comunicação, fornecendo
subsídios, inclusive, para a formulação de uma política de gestão do AAUFMG.

Alguns desafios de ordem conceitual se apresentaram nesse momento de


implantação do projeto de documentação. O primeiro deles era o que reconhecer afinal
como Acervo Artístico da UFMG? Subjacente a essa pergunta estava outra, que tem
ocupado o debate contemporâneo no campo da arte - como discernir uma obra de arte?
Ora, ambas questões, ainda que enfrentadas numa perspectiva pragmática para atender à
demanda de gestão do acervo, não resultaram e nem resultarão em respostas seguras e
definitivas, como sabemos. A impossibilidade de responder o que deve ser considerado
arte no âmbito do AAUFMG requer, sem dúvida, uma reflexão permanente.
Compreendeu-se, assim, que qualquer definição das fronteiras do acervo artístico da
UFMG deverá não apenas ser provisória, como objeto de debate regular, sujeitando-se a
reatualizações orientadas pelas reflexões desenvolvidas pelos campos da estética e da
arte.

O caráter contingente das fronteiras do AAUFMG não nos desobriga, entretanto,


do esforço para desenvolver algumas considerações de ordem teórica. É por meio dessa
operação – de conceituação do recorte patrimonial do AAUFMG - que se fundamenta a
vocação desse acervo, conferindo pertinência e coerência às diretrizes e ações levadas a
efeito em sua gestão.

1897
Não se pretende estabelecer uma definição de arte. Até porque é um conceito
ramificado, controverso e que tem merecido abordagens de distintos campos de
conhecimento, não havendo convergência quanto ao seus contornos. Apenas convém
lembrar que a ideia que se tem de arte hoje é, do ponto de vista da história, recente. Para
gregos e romanos a arte - thecné em grego e ars em latim – referia-se a ofício, a
qualquer atividade humana que implicasse uma habilidade, um saber fazer. A palavra
apresentava um sentido amplo, não se restringindo, portanto, ao que se compreende hoje
como atividade associada à estética. Na Idade Média persiste o paralelo entre os termos
arte e técnica, sendo a arte compreendida como um conjunto de regras ou a teoria de
uma técnica. A associação da arte à estética começa a se delinear no Renascimento, mas
somente no século XVIII se observa a distinção entre a arte e a técnica, quando também
o sentido estético confere um valor inédito à obra artística. A obra de arte sai de um
domínio indistinto para ganhar, portanto, autonomia. É nesse processo que atividades e
obras são reavaliadas e enquadradas nas chamadas “belas artes” – ou seja, concernentes
àquilo que “não produz nem um saber e nem um fazer, mas que, supõe-se, condiciona
ambos, tornando possível a experiência efetiva” (CUNIBERTO, 2007, p.44).

Embora não estejam no horizonte deste projeto enfrentar o debate a respeito das
fronteiras da arte, e nem justificaria estar, é preciso reconhecer que essa é uma questão
incisiva para a realização do inventário do AAUFMG. Ainda que o levantamento
realizado entre 2009-2011 tenha configurado um conjunto de objetos sob a chancela
Acervo Artístico da UFMG, o atual projeto de documentação pretende refazer esse
mapeamento, sob a orientação de conceitos e critérios explícitos e objetivos.

Ora, o que está posto como desafio é justamente arbitrar, com autoridade, o
domínio do acervo artístico para efeito da gestão institucional desse patrimônio, o que
implica produzir um discurso que irá operar inclusões/exclusões. Pode-se mesmo dizer,
acompanhando Cauquelin ao abordar a teoria da arte, que o AAUFMG se institui como

1898
um dos ‘sítios’ que concorrem para institucionalizar e legitimar esse acervo artístico,
uma vez que contribui para reatualizar os meios de desenvolvimento e permanência das
obras:

A obra ‘em si’ não existe realmente; ela se diz ‘obra’ por meio e com
a condição de ser posta em determinada forma, de ser posta ‘em sítio’.
Fora do sítio, que a teoria construiu e que as teorizações mantêm vivo,
ela não é nada. São necessárias essas mediações, todo esse trabalho
tecido incansavelmente pelo comentário, para que seja reconhecida
como obra. Pois nenhuma atividade – e a arte não escapa a essa
condição - pode ser exercida fora de um sítio que lhe dê seus limites,
determine os critérios de validade e regule os julgamentos que serão
tecidos a seu respeito. (CAUQUELIN, 2005, p.21)

Grande parte das obras pertencentes à UFMG, assim como muitos de seus
autores gozam de reconhecimento da crítica, não havendo, portanto, hesitação quanto ao
seu estatuto de arte. Mas mesmo nesses casos, em que o reconhecimento artístico está
selado, as operações levadas a cabo pela Coordenação do AAUFMG –
inventário/catalogação, conservação, manejo administrativo, curadoria de exposição,
etc. – ainda que não sejam da esfera estrita da crítica e da teorização, convergem para
(re) validar o estatuto artístico das obras, seja diante da própria comunidade
universitária ou fora dela.

Feitas essas considerações, delineia-se o Acervo Artístico UFMG no campo das


Artes Visuais. Ou seja, em um horizonte que contempla uma extensa gama de práticas
artísticas, englobando as formas tradicionais, então denominadas de Artes Plásticas –
pintura, escultura, desenho, gravura, arquitetura, cerâmica – assim como a produção
artística contemporânea que tem incorporado ao seu repertório o uso de novas
tecnologias e novos meios de comunicação: fotografia, artes gráficas, moda, cinema,
vídeo, computação, performance, holografia, desenho industrial, etc. (ASSUNÇÃO;
COSTA, 2009)

1899
Ao adotar as Artes Visuais para delinear o seu recorte patrimonial, o AAUFMG
se alinha à perspectiva contemporânea, que busca abranger, sob o abrigo dessa
terminologia, expressões artísticas que passaram a se projetar, particularmente no pós 2ª
Guerra, em contextos que extrapolam os limites dados pelo o que convencionalmente se
denomina de Artes Plásticas. Segundo o Relatório da Câmara Setorial de Artes Visuais,
este é um campo, como o nome indica, que abrange categorias artísticas que têm como
centro a visualidade, que produzem, não importa com quais instrumentos ou técnicas,
imagens, objetos e ações apreensíveis pelo sentido da visão, podendo ampliar-se para
outros sentidos:

Partindo desse centro, o círculo se expande, agregando suas diversas


manifestações, até que a circunferência das Artes Visuais alcance (e
interpenetre) outros círculos das artes, centrados por outros valores,
gerando zonas de intersecção que abrigam manifestações mistas, que
não deixam de ser “visuais”, mas obedecem, com igual ou maior
ênfase, a outras lógicas. Este círculo e suas intersecções compõem o
campo das Artes Visuais. (BRASIL, 2010, p.20).

O documento produzido no âmbito do MINC considera ainda que o campo das


Artes Visuais é de tal amplitude que se faz presente em todas as dimensões da
existência. Dos objetos às estruturas arquitetônicas, da arte rupestre à arte que se associa
à tecnologia, das atividades artísticas simbólicas às orientadas para a economia, as Artes
Visuais nos conectam com o ambiente que nos circunda (BRASIL, 2010).

Documentar o AAFMG – um início sem fim


Ao se estruturar o projeto de documentação do acervo - Protocolos para
documentação e gestão do Acervo Artístico da UFMG: implantação de um sistema de
informação, no segundo semestre de 2016, enfatizou-se a perspectiva de que a
documentação constitui expediente que se integra à gestão do acervo. Ou seja,
concebeu-se a documentação como uma ferramenta em permanente construção, em um

1900
processo continuo e vigoroso de produção de informação e conhecimento,
indispensáveis para a conservação, pesquisa, segurança, controle e extroversão do
patrimônio artístico. Se essa é uma ótica que deve prevalecer em qualquer procedimento
de inventário e/ou catalogação de acervos, no caso do AAUFMG parece imperativo
dispor desse instrumental eficiente e sempre atualizado, considerando o desafio que é
gerir um acervo tão extenso, heterogêneo e fisicamente disperso.

Concebido em várias etapas, o projeto teve início com o diagnóstico da


documentação existente do acervo, ao qual se seguiu a elaboração de protocolos de
estrutura de dados e valor e a formulação do inventário de campo, procedimentos que se
ampararam em normativas internacionais, nomeadamente Comitê Internacional de
Documentação1 (CIDOC, 2014); Categories for the Description of Works of Art (CDWA): list
of categories and definitions (BACA; HARPRING, 2010); Cataloguing Cultural Objects
(CCO): a guide to describing cultural works and their images (BACA et al., 2006); Spectrum
4.0: padrão para gestão de coleções de museus do Reino Unido2 (COLLECTIONS TRUST,
2014); e a Collections Management Software Criteria Checklist (CHIN, 2012).

O diagnóstico quantificou e qualificou as informações contidas no levantamento


anterior, permitindo identificar as tipológicas de objetos artísticos arrolados, as lacunas
e incongruências informacionais e as condições de acesso às obras nas unidades da
UFMG. Com essas informações sistematizadas e a partir de estudos do acervo, foi
possível desenvolver a normalização do trabalho de inventariação propriamente, assim
como planejá-lo em campo. Em linhas gerais, foi determinada a estrutura geral da base
de dados – os campos constituintes de cada registro e os standards que controlam o
preenchimento dos campos - conteúdo e terminologia.

1
Versão original em inglês: International Guidelines Object Information: the CIDOC Information
Categories (CIDOC, 1995).
2
Versão original em inglês: SPECTRUM – Standard Procedures for Collections Recording Used in
Museums: The UK Museum Collections Management Standard, 4.0 (COLLECTIONS TRUST, 2011).

1901
No processo de planejamento e execução do inventário, vale ressaltar algumas
decisões e procedimentos adotados, que têm conferido maior eficiência ao trabalho. A
primeira decisão, de cunho metodológico-operacional, foi restringir, nesta primeira fase
do projeto, o inventário às obras de arte visual convencionalmente identificadas como
de artes plásticas – pintura, escultura, desenho, gravura, cerâmica, objeto. As demais
tipologias de obras, também categorizadas como artes visuais – fotografia, artes
decorativas/aplicadas, vídeo-arte, performance, instalação, arte e tecnologia, grafite, etc.
– serão apenas mapeadas, por meio de uma ficha simplificada de arrolamento. A
decisão apoiou-se na avaliação de que a extensão do acervo de artes visuais da
Universidade, as possíveis imprecisões na categorização de objetos e a necessidade de
se avaliar, em casos específicos, a pertinência de apenas de documentar a obra, sem
necessariamente incorporá-la à gestão do AAUFMG, conduziriam a questões de ordem
teórico-metodológica que, certamente, serão mais bem encaminhadas em momento
posterior do projeto, uma vez que poderão se beneficiar, inclusive, do acúmulo da
experiência e do conhecimento gerados pelo próprio processo de documentação.
Considerou-se também o impacto negativo de inclusão desses novos conjuntos de
obras, que não dispõem de qualquer registro anterior, para o processo de implantação de
uma rotina do trabalho do inventário. Optou-se, dessa maneira, em consolidar e
legitimar o projeto de documentação no âmbito da UFMG, assegurando agilidade a
apuração de seus resultados parciais, de modo que se possa credenciar sua continuidade.
De outra parte, o mapeamento de um universo abrangente de obras fornecerá
informações indispensáveis para que a equipe se prepare para a segunda etapa da
documentação, tanto do ponto de vista conceitual quanto operacional.

Outra decisão importante foi restringir, nessa primeira fase do projeto, o


preenchimento de campos in loco aos dados intrínsecos a cada objeto, o que tem
garantido celeridade ao inventário e, ao mesmo tempo, qualidade da informação
recolhida. A complementação e revisão de informações ocorrerão em etapa posterior ao

1902
término do trabalho de campo e de migração das informações para a base de dados,
quando serão desenvolvidas pesquisas sobre as obras em arquivos administrativos da
UFMG, no levantamento realizado anteriormente e em fontes secundárias.

Em observância às recomendações do campo da documentação duas iniciativas


importantes, que antecederam o trabalho de campo, também têm assegurado rigor ao
inventário. Foi criado um vocabulário controlado específico para o AAUFMG, tendo
como base ferramentas como thesauri, listas de termos de diversas instituições e o
próprio levantamento anterior do acervo. As listas geradas a partir desse estudo foram
transpostas para as Tabelas Auxiliares específicas da base de dados utilizada.

Tendo também como pressuposto que todo acervo inventariado deve produzir
um documento que oriente o trabalho da documentação, tão logo foram estruturados os
dados e formulada a ficha de inventário, elaborou-se um Manual de Procedimentos de
Documentação, no qual são definidas e descritas as práticas e os procedimentos a serem
adotados, de forma a assegurar informações consistentes e sistemáticas. Composto por
uma série de instruções claras e objetivas, o Manual padroniza a captura, o registro, a
salvaguarda e uso de informações sobre o acervo.

Importante destacar que o projeto se desenvolve concomitante ao programa de


formação da equipe de bolsistas e funcionários, experiência que se alinha à diretriz de
conferir ao AAUFMG estrutura e dinâmica para funcionar como um laboratório de
ensino e pesquisa. Além de estudos supervisionados no campo da salvaguarda
museológica e história da arte, a equipe tem recebido treinamento sistemático, com o
objetivo de capacitá-la para atuar em todas as etapas do projeto: pesquisa, inventariação
em campo, análise artística, fotografia, sistema de informação, gerenciamento de
imagens, etc. Em uma parceria com professores da Escola de Ciência da Informação e
Escola de Belas Artes, foram oferecidos treinamentos em documentação de acervos
museológicos, procedimentos de higienização de acervos, registro fotográfico de obra

1903
de arte e marcação de objetos para fins de inventário.

Com o objetivo de ampliar o alcance do treinamento e dos debates em torno dos


desafios de se documentar e gerenciar acervos universitários, foram realizados dois
eventos abertos a bolsistas e profissionais de todas as unidades que compõem a Rede de
Museus e Espaços de Ciência e Cultura da UFMG (RMECC), em janeiro e fevereiro de
2017. O primeiro evento, a Mesa Redonda “Desafios na Implantação de Sistemas
Informatizados para Gestão de Acervos Culturais Universitários”3, teve o intuito de
debater e avaliar alternativas de softwares para a gestão do sistema de informação de
acervos universitários, em particular do AAUFMG. A segunda iniciativa foi a oferta do
curso “Documentação de Acervos Museológicos”4, com carga horária de 40 horas/aula,
que introduziu conceitos e práticas de documentação, assim como analisou projetos,
diretrizes e programas desenvolvidos em instituições gestoras de acervos museológicos.

Iniciado em agosto de 2017, o inventário usa uma planilha no formato Excel, in


loco, desenvolvida pela empresa detentora do software de base de dados . Ao fim do
trabalho em campo, a planilha será migrada para a base de dados estando disponível
para acesso e complementação das informações. A opção se deve ao fato de que
algumas unidades da UFMG não dispõem de condições ideais de acesso à internet, o
que poderia prejudicar o andamento do inventário, uma vez que o acesso à base de
dados é online.

Antes de se iniciar o inventário em campo, uma articulação da Coordenação do


AAUFMG com demais unidades universitárias detentoras de obras de arte buscou
facilitar o trânsito e as condições de trabalho da equipe nestes espaços. Embora possa

3
Participaram da Mesa Redonda Fernando Cabral, Diretor Geral da empresa Sistemas do Futuro, e
Gabriel Moore Forell Bevilacqua, vice-presidente do Comitê Internacional de Documentação do
Conselho Internacional de Museus (CIDOC/ICOM).
4
Ministraram aulas no curso os professores Ana Panisset (ECI/UFMG), Juliana Monteiro (ETEC Parque
da Juventude /SP), Alexandre Leão (EBA/UFMG) e Giulia Giovani (EBA/UFMG).

1904
parecer uma medida rotineira, esses contatos foram uma espécie de primeiro passo para
se construir uma gestão compartilhada do AAUFMG.

O desafio da gestão descentralizada: uma proposta


Um dos maiores desafios para a coordenação do AAUFMG consiste em
conceber um modelo de gestão que seja compatível com a descentralização tanto físico-
geográfica do acervo quanto de sua tutela acadêmico-administrativa. As várias unidades
da UFMG, aproximadamente 33, que dispõem de acervo têm a responsabilidade
patrimonial de suas respectivas obras. Algumas dessas produções artísticas foram
concebidas, inclusive, no contexto particular desses espaços. São exemplos as obras
integradas (oratório da Casa da Glória, em Diamantina e vários painéis), os conjuntos de
retratos de Reitores e Diretores, as esculturas e pinturas alusivas a determinados campos
de conhecimento encomendadas por unidades acadêmicas.

Ilustra também a segmentação do acervo um número significativo de obras


artísticas que integram outras coleções universitárias, as quais foram constituídas a
partir de pressupostos que não são necessariamente artísticos, agregando variadas
categorias de objetos. Cita-se, por exemplo, as obras de arte que integram arquivos
pessoais recolhidos pela UFMG (escritores mineiros, Curt Lange, arquivos de
professores e intelectuais) e coleções e objetos reunidos para atender demandas de
pesquisas específicas e que figuravam originalmente como utilitários e/ou artesanato e
que foram convertidos em objetos de arte (Coleção de cerâmica do Vale do
Jequitinhonha, Presépio do Pipiripau).

Neste cenário complexo, de localização e tutela pulverizada do acervo, algumas


estratégias se projetam como alternativas de gestão do AAUFMG. Tomando por
analogia a proposta formulada por Meneses para os museus de cidade (1985; 2003),

1905
foram estabelecidas duas categorias de acervo, correspondentes a níveis diferenciados
de monitoramento e administração. Em um plano, tem-se o acervo de tutela direta,
constituído, como o próprio nome diz, por obras e coleções que se encontram sob a
guarda imediata da DAC/Coordenação do AAUFMG. A princípio são as obras
armazenadas na Reserva Técnica ou aquelas que se encontram em outras unidades da
UFMG, sob o regime de empréstimo. A segunda categoria denomina-se acervo
operacional e compreende as demais obras de arte que estão sob a guarda de outras
unidades da UFMG, mas sobre as quais o AAUFMG opera, seja estendendo até esses
acervos as ações e diretrizes de salvaguarda e comunicação ou desenvolvendo projetos
e programas comuns.

O estabelecimento dessas categorias de acervo implica necessariamente


conceber uma gestão compartilhada do AAUFMG, assegurando convergência e
integração de protocolos, normas e conceitos entre as unidades acadêmicas e
administrativas. Pressupõe-se uma atuação em rede, que articule distintos atores e
espaços em uma ação contínua e cooperada de programas e recursos, com vistas a
“produzir a circulação capilar de conhecimentos, valores, significados, critérios, padrões
de sensibilidade, atitudes, hábitos, práticas [...]” (MENEZES, 2003, p. 258).

Em particular, essa premissa confere um alcance extramuros às ações do


AAUFMG, estendendo a gestão museológica a todas as obras de arte da UFMG, sem
que para isso seja necessário promover o recolhimento desse acervo em um espaço
central. À primeira vista a alternativa oferece mais riscos para a proteção do acervo,
uma vez que as obras estão sujeitas a condições de segurança, conservação e exibição
que variam de unidade para unidade. A tendência seria optar pela centralização do
acervo como medida mais adequada e consonante com os padrões de salvaguarda.

Mas seria oportuno privar as unidades dos campi de fruir as obras de arte? O
impacto dessa medida seria subtrair a experiência artística do cotidiano da vida

1906
acadêmica. A alternativa de se proceder um recolhido a partir de uma seleção, de outra
parte, seria no mínimo complexa e discutível. E o mais certo é que se instauraria um
círculo vicioso, no qual as unidades providenciariam se guarnecer de novas obras de
arte as quais, por sua vez, seriam recolhidas à Reserva Técnica como medida de
salvaguarda. Nessa perspectiva, parece interessante observar as diretrizes propostas pela
Association of Art Museum Directors University/College Museums, em se tratando de
obras de arte no campus:

The installation of works of art in public places throughout the


campus, according the goals of its university museum, may be an
integral part of this mission; works of art of high quality not only
enhance the beauty of a campus for students, faculty, staff, and
visitors, but they also convey the emotional power and spiritual values
of art itself to every student, no matter his or her course of study or
discipline and, thereby, for that student, enhance the notion of art with
its multiple definitions and characteristics. Public works of art on
campus, therefore, become a part of each student´s education and his
or her ability to formulate and articulate. (EILAND, 2009, p. 5-6)5.

Obviamente que a gestão compartilhada do AAUFMG exige estruturar uma


dinâmica de relações entre as unidades integrantes, assim como assegurar um fluxo
eficiente de informação. A ideia é que cada unidade designe um responsável pela gestão
local de suas obras de arte, o qual se integraria ao sistema de gestão descentralizado.
Importante para que o modelo seja bem sucedido que a coordenação do AAUFMG
ofereça de tempos em tempos workshops destinados a preparar e aperfeiçoar os
integrantes do sistema para atuarem no monitoramento e acompanhamento de
movimentação das obras.

5
A instalação de obras de arte em locais públicos em todo o campus, de acordo com os objetivos de seu
museu universitário, pode ser parte integrante desta missão; As obras de arte de alta qualidade não só
aumentam a beleza de um campus para seus estudantes, corpo docente, funcionários e visitantes, mas
também transmitem o poder emocional e os valores espirituais da arte para todos os alunos,
independentemente do seu curso ou disciplina e, portanto, para esse aluno, aprimoram a noção de arte
com suas múltiplas definições e características. As obras públicas de arte no campus, portanto, se tornam
parte da educação de cada aluno e da sua capacidade de formular e articular. (EILAND, 2009, pág. 5-6).

1907
Quanto ao fluxo de informação, a opção por um modelo de curadoria digital – ou
gestão digital – combinada à curadoria convencional apresentou-se como uma
alternativa mais pertinente ao contexto de dispersão das obras e de atores envolvidos na
sua gestão. Foi realizada a compra de um software – Sistema de Gestão de acervos,
precedida de discussões abertas à comunidade acadêmica6, além de consultas a usuários
que haviam também desenvolvido extensa pesquisa de fornecedores7 e da utilização da
ferramenta de modelo de requisitos Collections Management Software Criteria Checklist
(CMSCC)8, desenvolvida pela Canadian Heritage Information Network9 (CHIN). Orientou a
aquisição a proposição de que o sistema não poderia limitar-se apenas a uma base de
dados, mas oferecer ferramentas ágeis e eficazes, que possibilitassem o registro e
administração de todas as funções de gestão em uma única base de dados. Além da
gestão propriamente, avaliou-se, também, a importância de uma plataforma digital que
atendesse, em um segundo momento, aos propósitos de comunicação. Ou seja, que
servisse como uma espécie de catálogo e exposição digitais, dando acesso ao público
interno e externo à Universidade ao AAUFMG10, função que ganha especial relevo em
se tratando de obras que não estão expostas permanentemente em museus ou galerias
abertas à visitação pública.

Conclusão

6
Mesa Redonda Desafios na Implantação de Sistemas Informatizados para Gestão de Acervos Culturais
Universitários.
7
Seguiu-se a metodologia de pesquisa e aquisição empregada pela Secretaria de Estado da Cultura de São
Paulo para a escolha do software, cujas demandas e procedimentos eram convergentes aos da UFMG.
8
Lista de verificação de critérios de software para gerenciamento de coleções. Disponível em:
<http://canada.pch.gc.ca/eng/1443120174242>. Acesso em 15 jul. 2017.
9
Rede de Informação do Patrimônio Canadense. Disponível em:
<http://canada.pch.gc.ca/eng/1454520330387>. Acesso em 15 jul. 2017.
10
O software adquirido é o In Arte Online da empresa Sistemas do Futuro. Disponível em:
<http://inarteonline.net/> . Acesso em 15 jul. 2017.

1908
Designar as obras espalhadas pelas salas de diretores, pró-reitores e reitores,
gabinetes de professores, congregações, bibliotecas com Acervo Artístico UFMG
significa reconhecê-las como um patrimônio universitário. Neste gesto está implícito
um esforço permanente de categorização, de formulação de critérios, intrínsecos e
extrínsecos, diacrônicos e sincrônicos, que conformam sentidos que se sobrepõem, não
importa se convergentes ou não, ao conjunto aparentemente díspar. Reconhecer esse
patrimônio é, acima de tudo, retirá-lo da sombra e trazê-lo cada vez mais para o lugar do
visível. Todos os protocolos e medidas de salvaguarda só se justificam se ao sentido da
palavra preservar - guardar, vigiar, salvar de antemão - se associar a ação de comunicar
– repartir, dividir, distribuir e compartilhar algo com o público.

O trabalho de inventário e gestão do acervo, embora reconhecidamente situado


no campo da salvaguarda, no caso do AAUFMG pode ser concebido como o primeiro
passo de um processo de compartilhamento, uma vez que mobiliza muitos, além da
pequena equipe de inventariantes, na tarefa de identificar, conhecer e registrar as obras
de arte da Universidade para em seguida dividir responsabilidades. Ainda que não se
pretenda criar um museu, pelo menos no sentido clássico, esse projeto só será, de fato,
bem sucedido se o AAUFMG atuar à maneira de um museu em potência. Ou seja, se
tiver como horizonte o estabelecimento de conexões entre o público e a arte; se
promover o deslocamento de obras e olhares de seus ambientes corriqueiros, alguns
invisíveis, para se conquistar outros lugares físicos e simbólicos, nos quais os objetos
de arte poderão ensejar novas conexões cognitivas, sensoriais, sensitivas com a
comunidade da UFMG, da cidade, do país. É preciso gerir esse acervo reconhecendo
sua vocação para funcionar como laboratório de aprendizagem e experimentações, que
oportuniza diálogos interdisciplinares e ações associadas de pesquisa, ensino e
extensão.

1909
Há uma longa trajetória a ser percorrida até que se consolide esse papel do
AAUFMG, e se construa uma consciência de sua importância para a vida universitária.
Até lá, não basta executar ações, é preciso garantir a retaguarda de uma política cultural,
em particular, uma política patrimonial no âmbito da UFMG.

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1911
CONSTITUIÇÃO DO FÓRUM PERMANENTE DE MUSEUS
UNIVERSITÁRIOS: TRAJETÓRIA, DESAFIOS E MOBILIZAÇÕES.

Verona Campos Segantini*


Eliana Rodrigues**
Letícia Julião***
Gleydes Gambogi Parreira****

Resumo: Este trabalho tem por objetivo analisar aspectos que contribuiram a constituição do
Fórum Permanente de Museus Universitários. Para isso, recorre a um arquivo sob a guarda do
Museu de Ciências Morfológicas da UFMG que revela os processos de conformação do fórum,
bem como os debates e questões presentes dos Encontros Nacionais de Museus Universitários e
em reuniões que aconteceram nos interstícios do evento. A partir de uma perspectiva
cronológica, buscou-se destacar os atores que contribuíram com a criação do FPMU, bem como
as programações, debates e ações dos encontros ocorridos entre os anos de 1992 a 2006. Por
último, buscou-se analisar os debates referentes à necessidade de institucionalização e o
desdobramento deste intuito no estatuto que buscava regulamentar as ações e diretrizes do
FPMU.
Palavras-chave: Fórum; museus universitários, arquivo institucional.

Abstract: This work aims to analyze aspects that contributed to the constitution of the
Permanent Forum of University Museums. To do this, it uses a file located in the Museum of
Morphological Sciences of the UFMG that reveals the processes of conformation of the forum,
as well as the debates and issues present at the National Meetings of University Museums and
meetings that took place in the interstices of the event. From a chronological perspective, we
sought to highlight the actors who contributed to the creation of the FPMU, as well as the
schedules, debates and actions of the meetings that occurred between 1992 and 2006. Finally,
we sought to analyze the debates concerning the need for institutionalization and the
deployment of this intention in the statute that sought to regulate the actions and guidelines of
the FPMU.
Key-words: forum, university museums, institutional file.

1912
Introdução: arquivo institucional e a trajetória do FPMU
Este trabalho tem como proposta analisar as circunstâncias que permearam a
constituição e os processos de institucionalização do Fórum Permanente de Museus
Universitários. Para isso, busca refletir sobre a trajetória desse importante espaço de
discussão e mobilização que congrega, há aproximadamente vinte e cinco anos,
docentes, pesquisadores, profissionais e pesquisadores envolvidos com os museus
universitários no Brasil.
Esta reflexão parte de um levantamento sistemático do acervo institucional sob a
guarda do Museu de Ciências Morfológicas, instituição criada em 1997 por iniciativa da
Professora Maria das Graças Ribeiro. Tal arquivo reúne documentos de diferentes
tipologias, tais como projetos, atas de reuniões, estatutos, programações de eventos,
textos de estudos referentes a assuntos museológicos e políticas públicas, e abarca uma
temporalidade que perpassa o início da década de 1990 até o ano 2015. Este acervo
encontra-se organizado em diversas pastas com documentos referentes ao FPMU e ao
que tudo indica foi sendo organizado pelos presidentes e outros membros do fórum e
sobretudo, pela Professora Maria das Graças Ribeiro. Trata-se, portanto de um arquivo
acumulado que reflete aspectos da dinâmica de constituição do fórum e também
aspectos que permeiam a trajetória profissional da Professora Maria das Graças.
Sob este ângulo, encontrou-se documentos que tratam tanto de assuntos de
caráter institucional relativos à constituição e organização do FPMU e paralelamente,
indícios que apresentam uma rede de parcerias, trocas de conhecimento entre pessoas
representantes de órgãos institucionais. Desse modo, também se revela aspectos que
perpassam a sociabilidade e as redes que congregam aqueles envolvidos com o FPMU.
Nomeadamente as diversas correspondências e fotografias refletem esse aspecto.11
Consegue-se perceber que no arquivo estão presentes documentos que atestam a
realização dos Encontros organizados pelo FPMU que aconteceram no ano de 1992 em
11
Destacam-se as fotos de II Encontro Nacional de Museus.

1913
Goiânia,12 reuniões em São Paulo em 1995 e 1997, na cidade de Natal em 2001, e no
ano de 2006 em Belo Horizonte. Neste arquivo também podem ser analisados os
documentos referentes ao projeto para o V Fórum de Museus Universitários, previsto
para o ano de 2015, evento este que não foi realizado. Além desses, observa-se uma
documentação agregada que revela a organização de assembleias, reuniões
extraordinárias que aconteceram nos interstícios desses eventos.
No presente trabalho dedicou-se a uma análise, a partir de uma perspectiva
cronológica, diante dos documentos referentes à realização dos encontros e reuniões e
assembleias que aconteceram entre os anos de 1992 e 2015. Deste modo, não se esgota
todas as possibilidades de questões que possam vir a serem formuladas a partir deste
acervo. Destacando, portanto, a potencialidade em agregar a tais análises informações
complementares que sejam de conhecimento de outros atores envolvidos com a
constituição do FPMU. Neste sentido, organizou-se a narrativa deste texto a partir de
uma construção cronológica, enfatizando informações consideradas relevantes para esta
análise dedicada a perceber a constituição e trajetória do FPMU.

I Encontro Nacional e iniciativa de constituição do FPMU:


O estudo iniciou-se com a Ata do Seminário “Museu Universitário Hoje”- I
Encontro Nacional 1992 – Goiânia/GO.13 O evento foi realizado na Universidade
Federal de Goiás em parceria com a SENESU-MEC e com apoio do CNPq e PUC de
Campinas.14 A abertura do evento foi realizada pelo então Coordenador de Cultura da
Unesco para a América Latina e Caribe Dr. Hernan Crespo Tonal, propondo como
reflexão “A ação museológica no contexto do desenvolvimento global”.

12
Há documentos que tratam da organização do II Fórum a ser realizado em Salvador com possível data para 1998,
mas não foram encontrados documentos sobre a realização deste Evento.
13
Ata do Seminário “Museu Universitário hoje”- I Encontro Nacional 1992 – Goiânia-GO.

1914
A reunião contou com a representação de 19 Estados e 29 Universidades, sendo
13 Federais, 10 Estaduais e 6 Privadas. Nos painéis e grupos de trabalho houve a
participação de 30 diretores e/ou coordenadores de Museus Universitários, 20 de outros
museus, 26 professores, 30 museólogos e técnicos e ainda estudantes e profissionais e
pesquisadores de várias áreas e assessores especiais de áreas culturais, totalizando um
público de 154 pessoas. Este Fórum também contou com a participação da representante
de Pró-reitores de Extensão, Ismênia de Lima Martins da Universidade Federal
Fluminense, moderadora do painel “Administração e Museus.”
A programação estruturava-se a partir dos seguintes eixos: “O museu na
estrutura da Universidade: acertos e erros”, “Ação Museológica: Educação e
Comunicação”, “A pesquisa nos Museus” e “Administração e Museus”. Após a
realização do Evento decidiu-se pelo encaminhamento das conclusões do Seminário a
todas as reitorias das universidades brasileiras, bem como ao CNPq (documento
específico relativo à pesquisa e recursos), Capes, Finep, Fórum dos pró-reitores de
Extensão, à Secretaria Nacional de Cultura e à Secretaria Nacional do Ensino Superior –
SENESU. Também seria enviado ao ICOM-Brasil, COFEM, ao ICOM-Paris e demais
Organizações da América Latina, revelando uma dimensão política que perpassava o
desejo de constituição de um fórum.
No documento “Conclusões Gerais do I Encontro Nacional de Museus
Universitários – 1992”, ressaltou-se que o objetivo do evento foi a constituição de “um
fórum de debates e reflexões sobre a realidade institucional dos museus universitários
brasileiros”,15 bem como as possíveis articulações dos museus universitários com as
áreas do ensino, pesquisa e com os

15
Conclusões Gerais do I Encontro Nacional de Museus Universitários- Ciências em Museus (1992).

1915
diversos segmentos da sociedade.16 Neste sentido, destacou-se a importância dos
museus como “...um espaço educativo não formal, responsável pela investigação,
conservação e difusão do patrimônio cultural, potencialmente musealizável.”
A partir das discussões e reflexões geradas neste Encontro, foram delineadas
neste documento três linhas temáticas em destaque: “Museus e sua relação com a
Universidade”, “Museu e Cidadania” e a “Pesquisa em Museus”, além do item
“recomendações especiais”. Com relação ao tema “O Museu e sua relação com a
Universidade”, definiu-se os Museus Universitários como “órgãos necessários ao
ensino, à pesquisa e à extensão devendo ser levados em conta em qualquer política
cultural e acadêmica que a Universidade venha a adotar”.17 Destacava-se que “a função
primordial dos museus é educativa e, nesse sentido, os Museus Universitários devem
democratizar o conhecimento, contribuindo para a formação da consciência social.”
Outros aspectos elencados dedicavam-se a reafirmar a importância da autonomia
de dotação orçamentária e a necessidade da constituição de quadro de funcionários
técnicos administrativos. Enfatizava-se ainda, a necessidade de uma estrutura
administrativa normatizada por regimento que garantiriam a institucionalização dos
museus. Ressaltava-se a necessidade da presença de museólogos e especialistas de áreas
afins “para atender à interdisciplinaridade” que caracterizava os museus universitários.
Para isso, frisava a importância de “implementação e organização de cursos em
museologia nas diversas regiões para suprir as necessidades nessa área” e a ampliação
do quadro de pessoal dos museus.
No tema “Museus e Cidadania”, reafirma as diretrizes presentes nos documentos
aprovados na Mesa Redonda de Santiago do Chile (1972) e na Declaração de Caracas
(1992), sendo o museu “reconhecido como um dos meios mais eficazes para a

16
Conclusões Gerais do I Encontro Nacional de Museus Universitários- Ciências em Museus (1992).
17
Conclusões Gerais do I Encontro Nacional de Museus Universitários- Ciências em Museus (1992).

1916
socialização do conhecimento produzido na Universidade, através dos meios de
comunicação museológicos, tendo como suporte básico as suas exposições”.18
Sobre “A pesquisa em Museus” apresentou-se a importância da “pesquisa
interdisciplinar” como suporte para as ações a serem desenvolvidas. Caracterizava as
pesquisas como aquelas “vinculada à temática do museu, que é geradora de
conhecimentos e de cultura” e a “pesquisa museológica propriamente dita” que envolvia
o cumprimento das normas relativas à organização, preservação e documentação de
acervo e sua comunicação em exposições e ação educativa. A respeito das
“Recomendações Especiais” pontuou-se a necessidade de elaboração do perfil dos
museus universitários brasileiros abordando tópicos como “histórico, acervo, quadro de
pessoal, dotação orçamentária, ações desenvolvidas com as comunidades onde estão
inseridas”. Tal levantamento, com apoio dos órgãos de pesquisa, deveria ser divulgado a
todas as universidades do país e demais órgãos ligados à educação e cultura, buscando
fomentar ações conjuntas. Buscava abrir canais junto às agências de financiamento, para
o financiamento de pesquisas e demais atividades desenvolvidas nos museus
universitários. Evidenciou-se também a necessidade da realização de convênios com os
Cursos de Museologia, a potencialidade das exposições itinerantes entre os diversos
museus universitários, visando ampliar as possibilidades de público e a necessidade de
promoção de seminários e organização de publicações sobre museus universitários.
Ainda consta no documento seis moções das quais destacamos, particularmente aquelas
referentes a institucionalização do FPMU:
3) O Fórum Permanente de profissionais de Museus Universitários,
constituídos pela Assembleia Final do I Encontro Nacional de Museus
Universitários deve organizar o II Encontro e, nos interstícios do
mesmo, diagnosticar, discutir e sugerir formas de solução a problemas
comuns á área.
4) O Encontro Nacional de Museus Universitários deve realizar-se a
cada dois anos em regiões diferentes.
18
Conclusões Gerais do I Encontro Nacional de Museus Universitários- Ciências em Museus (1992).

1917
5) O Intercâmbio entre Museus Universitários da América Latina,
Central e Caribe devem ser incentivados e viabilizados através do
GULERP e OUI (Organização Universitária Interamericana).

Elencou-se também os membros que comporiam o FPMU, nomeadamente: Ana


Maria Gantois (Museu de Arqueologia e Etnologia MAE/UFBA); Edinéa Macarenhas
Dias (Museu Amazônico da Universidade do Amazonas); Edna Luisa de Melo Taveira
(Museu Antropológico da UFG); Idevar José Sardinha (Museu Rondon UFMT); Lídia
Maria Meirelles (Museu do Índio, UFU); Maria Cristina Oliveira Bruno (MAE/USP);
Petrolina Rosa Costa Diniz Neta (UFRJ); Regina Marcia Moura Tavares (Centro de
Cultura e Arte da PUCCAMP); Tarcísio Antônio Costa Taborda (Museu Dom Diogo de
Souza).

Organização do II Encontro do FPMU:

Na documentação presente no MCM foi localizada a Ata da reunião do FPMU 19,


realizada no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, em
novembro de 1995. Neste documento, constata-se que à época o Fórum era coordenado
temporariamente por Regina Marcia Tavares, devido ao falecimento do coordenador
Tarcísio Taborda. Alguns temas discutidos na reunião perpassavam a edição da revista
“Ciência e Museus”, que estava interrompida e que deveria ser retomada com
publicação em novembro de 1995. Ressaltou-se a importância de formação de pessoal
para atuação nos museus universitários, e foram apresentadas diferentes sugestões de
cursos.
Um aspecto a ser destacado foi o cadastramento dos museus e instituições
universitárias, realizado por Maria Christina Barbosa de Almeida da Comissão de

19
Ata do Fórum Permanente de Museus Universitários realizado no Museu de Arqueologia e Etnologia da
Universidade de São Paulo - reunião em 23 novembro de 1995.

1918
Patrimônio Cultural da USP. Neste levantamento, sessenta e seis museus responderam o
cadastro. Destes, nove se definiram como coleções, um como aquário e os outros como
museus. Cinco pertenciam a instituições privadas. Trinta e nove se definiam como
museus de ciência e técnica, vinte e três de ciências humanas, e oito de arte. Apenas seis
indicaram a presença de museólogos em seus quadros e grande parte dos museus
contava apenas com dois funcionários. Desses, quarenta e nove eram abertos ao público
em geral. Cristina Bruno ressaltava a necessidade e urgência em manter o cadastro e
atualização constante.
Questões sobre a estruturação e coordenação do Fórum também foram
abordadas. Cristina Bruno assumiu a coordenação do Fórum até a realização o próximo
encontro e Marília Xavier Cury a secretaria. Por sugestão de Maria Célia definiu-se que
o próximo encontro deveria ser sediado pela UFBA. É importante também ressaltar que
foi lida uma ata referente ao Encontro de 1994, contudo não encontramos documentos
referentes a este encontro.
Em maio de 1997 realizou-se uma reunião Extraordinária FPMU também no
Museu de Arqueologia e Etnologia – MAE/USP,20 com representação de participantes
de vários estados do país, com destaque para a presença de vários representantes dos
museus da região sul e nordeste. Foi feito um histórico do I Encontro e das Reuniões de
Trabalhos anteriores ocorridas. Nesta reunião foram apresentados os diferentes museus
universitários por seus respectivos representantes.
Após esta apresentação, a professora Regina Márcia apresentou conclusões
evidenciando que “foi possível constatar que os museus em geral se preocupam com seu
acervo e em como colocá-lo à serviço da comunidade universitária e externa,
proporcionando um espaço para reflexão acadêmica e que assim os museus

20
Ata da Reunião Extraordinária do Fórum Permanente de Museus Universitários – Reunião Extraordinário em 20-
05-97. Local: Museu de Arqueologia e Etnologia-Mae/USP.

1919
universitários estão oferecendo um espaço a ser utilizado em benefício da sociedade
contemporânea”.21
Também se discutiu amplamente na reunião sobre a programação da realização
do II Encontro que seria realizado na UFBA, apresentando-se propostas de temáticas e
os convidados a comporem o evento. Essa reunião extraordinária foi estruturada em
duas partes, sendo que a segunda parte foi coordenada pela professora Cristina Bruno.
A Professora Ana Maria apresentou o projeto para o II Encontro e novos temas foram
sugeridos para serem abordados tais como o turismo, o marketing cultural e a capitação
de recursos. Ao final definiu-se o título “Museus Universitários Rumo ao Século XXI”.
A coordenação do Fórum foi transferida para a professora Ana Maria Gantois da UFBA,
local da próxima edição do II Encontro.
Um elemento interessante registrado em ata foi a transferência, pela então
coordenadora Cristina Bruno, de uma nota de U$5022 bem como dos documentos do
FPMU, representando o fundo simbólico de caixa que já havia lhe sido passado.
Embora se tenha apresentado o projeto para a realização do II Encontro na
UFBA previsto para ocorrer no final de maio de 1998, localizou-se no acervo o
documento intitulado23 “Carta Circular aos Membros do Fórum Permanente de Museus
Universitários e Profissionais de Museus”, tendo como assunto “Considerações acerca
do adiamento do II Fórum.” Por meio desta Carta enviada aos membros do Fórum
Permanente de Museus e Profissionais de Museus, datada de 08 de maio de 1998 e

21
Ata da Reunião Extraordinária do Fórum Permanente de Museus Universitários – Reunião Extraordinário em 20-
05-97. Local: Museu de Arqueologia e Etnologia-Mae/USP.
22
Há um e-mail de Tarcísio A.C. Taborda para Regina Márcia Moura Tavares datado de 13 de janeiro de 1994
justificando não ter visto o comunicado dela para uma reunião a respeito da programação do II Encontro do FPMU, e
diz lamentar ter perdido a reunião, pois numa vez tendo se aposentado seria também o momento de ele se renunciar
oficialmente na então reunião já ocorrida. Então, ele informar de suas limitações quanto a decisões de sediar o II
Encontro em Bagé, e sugere que o pedido seja encaminhado a outro professor daquela instituição. Após se despedir,
deixa a observação estar uma “nota de cinquenta dólares que corresponde ao saldo da coleta” que lhe foi passada ao
final da reunião de Goiânia. Esta nota se encontra em uma das pastas deixadas pela professora Maria das Graças
Ribeiro e no momento da pesquisa estava no espaço físico da Rede de Museus UFMF.
23
Carta Circular aos membros do Fórum Permanente de Museus Universitários e Profissionais de Museus – Assunto:
Considerações acerca do adiamento do II Encontro de Museus Universitários. 08/maio/1998.

1920
assinada por Ana Maria Gantois24 e por Marcelo da Cunha da Comissão do CIMBA,25
são apresentados os argumentos que indicavam o cancelamento do II Encontro na
UFBA. Neste documento é abordado um breve histórico sobre a intenção da realização
do Encontro, que deveria ganhar uma amplitude internacional mas, de acordo com as
justificativas apresentadas, não houve robustez de recursos para abarcar tal projeto,
além de outros fatores.
A não realização de tal encontro, apesar do reconhecimento de sua
importância e pertinência, é sinal marcante da crise em que nos
encontramos. Faltam recursos, mas não podemos indicar esta carência
como fator principal. Falta principalmente uma política de cultura que
invista na qualidade a partir da reflexão e das ações coordenadas e
sistêmicas.26

Neste trecho a seguir também é possível perceber as justificativas e reflexões


sobre o contexto motivador para o cancelamento.
Neste momento, evidência prática do descompasso entre nossos
desejos e possibilidades de realizações objetivas, esperamos que
possamos juntos alcançar as condições necessárias para que o Fórum
Permanente de Museus Universitários, torne-se uma realidade,
aspirada por todos, como reflexo dos interesses de um grupo que
pretende tornar a cada vez mais a sua ação profissional uma prática
social dinâmica e harmonizada com os interesses coletivos.27

Ao final da carta, é demonstrado ainda o anseio de que o Evento seja realizado


em consonância com a realização da Conferência Internacional de Museus na Bahia que
seria realizada no ano de 1999.

24
Há um modelo de comunicado via e-mail assinado por Ana Maria Gantois datado de 7 de maio de 1998, em que
comunica o adiamento do II Encontro Nacional de Museus Universitários do Fórum Permanente de Museus
Universitários, e justifica que são por “vários motivos, inclusive o momento que as Universidades Federais estão
passando”. Deixa a observação que haverá em breve o envio de uma carta circular.
25
Previa-se que o encontro ocorreria em consonância com a Conferência Internacional de Museus na Bahia (CIMBA).
26
Conferência Internacional de Museus na Bahia (CIMBA). Sigla encontrada na programação do II Encontro “
Museus Rumo ao Terceiro Milênio para ser realizado em 1998.
27
Carta Circular aos membros do Fórum Permanente de Museus Universitários e Profissionais de Museus - Assunto:
Considerações acerca do adiamento do II Encontro de Museus Universitários. 08/maio/1998.

1921
Consolidação do II Encontro:

A Ata28 referente à realização do II Encontro Nacional de Museus Universitários


revela que este ocorreu entre 29 de novembro a 01 de dezembro de 2001 em Natal-RN
no Museu Câmara Cascudo, instituição pertencente à Universidade Federal do Rio
Grande do Norte. De acordo com este documento o Encontro foi organizado pela
parceria entre a Presidência do Fórum Ana Maria Gantois (UFBA) e o Museu Câmara
Cascudo, que tinha como diretor o Prof. Jerônimo Rafael Medeiros. O Encontro foi
coordenado pela Professora Wani Fernandes Pereira do Museu Câmara Cascudo.
Observou-se que a abertura do Evento contou com a presença do Reitor da
UFRN, Prof. Ótom Anselmo de Oliveira. Em seguida Ana Maria Gantois discorreu
sobre a importância do Fórum e da realização do Encontro em meio às dificuldades
encontradas para que este se consolidasse.
Observou-se também que a professora Marli Rodrigues (CONDEPHAAT- SP)
proferiu a Conferência de abertura, com o tema “As faces da memória: Patrimônio e
Sociedade”. A Primeira mesa redonda intitulada “O papel do museu no milênio” foi
Coordenada pela Profª Wani Pereira, e teve a participação dos Professores Ana Maria
Gantois, Edna Taveira (MAE/UFG) e Maria Cristina Oliveira Bruno (MAE/USP).
Outra mesa, coordenada por Maria Teresa Sheiner privilegiou como temática a
“Gestão e Organização de Museus na América Latina e Caribe.” reuniu os
conferencistas Maria Célia Corsino (IPHAN/Brasília-DF), Luiz Antônio Custódio
(ICOM/Brasil), Profª Maria das Graças Ribeiro (MCM/UFMG) e Regina Maria
Baptista. Outra Mesa Redonda intitulada “Museu e Memória” foi coordenada pelo
Prof. Welington Germano (PROEX/UFRN) juntamente com a participação de Jeanne

28
Ata do II Encontro Nacional de Museus Universitários: “Museus Desafios do Milênio”- 29 De Novembro a 01 de
Dezembro de 2001.

1922
Fonseca Nesi (IPHAN/RN) e os professores Luis Carlos Botas Dourado (UFBA),
Maria Michol (UFMA) e Raul Lody (FUNARTE/RJ).
Também consta nesta ata que aconteceu uma mesa redonda com o tema
“Concepções Pedagógicas: Abordagens e Perspectivas”, sob a Coordenação de Marta
Maria Castanho Pernambuco (UFRN). Os professores Maria Célia T. Moura Santos
(UFBA), Regina Márcia Moura Tavares (UNICAMP) e Mário Chagas (IPHAN/RJ)
também participaram desta sessão. A Mesa Redonda “Museu, Ecologia e Turismo
Cultural” foi Coordenada pelo Prof. Jerônimo Rafael Medeiros (MCC/UFRN) e teve
como conferencistas Hélio de Oliveira (FJA/RN), Henrique Spengler (MVT/MS),
Oldair Pena (Galinhos/RN) e Márcia Moura Tavares (UNICAMP).
Segundo este documento, ao final das atividades do II Encontro, conduzido pela
coordenadora, foram realizadas as reuniões do ICOM, ICOFOM e também a
Assembleia Geral do Fórum Permanente de Museus Universitários, presidida pela Profª
Ana Maira Gantois juntamente com Mário Chagas e Wani Fernandes. Nesta ocasião a
Professora Maria das Graças Ribeiro, diretora do Museu de Ciências
Morfológicas/UFMG, foi eleita como a nova presidente do FPMU.
De acordo com esta ata, a nova diretora se declarou disposta a assumir o trabalho
visando o crescimento do Fórum. Também destacou o importante desempenho de suas
antecessoras, e em especial a Profª Ana Maria Gantois. Na sequência, as Moções foram
encaminhadas e elaborado o Documento do II Encontro Nacional de Museus
Universitários, que por sua vez, iria ser anexado à Ata.29
Na análise da documentação começou-se a questionar sobre as datas, locais e
transcurso da realização dos Encontros Nacionais. Onde e quando teria sido o III
Fórum? Ao contrário da farta documentação referentes ao I, II e IV encontros, não
localizamos documentos referentes à realização do III Encontro. Levantou-se algumas
hipóteses, como a possibilidade de terem considerado o Encontro que deveria ter

29
Este documento não foi encontrado anexado junto ao presente documento em estudo.

1923
ocorrido em Salvador. É importante frisar que para as outras datas dos eventos
ocorridos, há geralmente, planejamento programação, relatórios e atas.
Após a leitura de vários documentos encontramos no “Texto sobre o Fórum
Permanente de Museus Universitários (para o site do FPMU)” alguns indícios que nos
ajudam esclarecer as informações sobre a realização da sequência dos encontros. Neste
documento expõe-se como objetivo do fórum “promover o debate e a análise
continuada de questões inerentes aos museus universitários, cujo papel é dar
cumprimento ás funções da Universidade de ensinar, pesquisar e comunicar”.30
Neste, é possível evidenciar um histórico mais preciso das fases consideradas
importantes na constituição do Fórum e de seus encontros. Neste documento
encontramos anexada uma folha manuscrita pela Professora Maria das Graças Ribeiro,
que esboça uma “Reconstituição Histórica do Fórum de Museus”31 elaborada a partir do
depoimento das museólogas Edna Taveira, Ana Maria Gantois, Cristina Bruno, Marília
Xavier Cury, Regina Marcia Tavares. Neste manuscrito observa-se que a professora
Maria das Graças considera como II Encontro a Reunião Extraordinária ocorrida no
MAE/USP em maio de 1997, documento já analisado neste texto. Ela também registra
que aconteceu uma reunião preparatória durante o I Seminário de Museologia na
UFMG, que aconteceu no Museu de Ciências Morfológicas, em março de 97. O III
encontro teria consequentemente, ocorrido em Natal no ano de 2001.

IV Fórum em 2006:

30
Documento Intitulado “Texto sobre o Fórum Permanente de Museus Universitários (para Site FPMU)”.
31
Folha manuscrita por Maria das Graças Ribeiro em jun/2005 com o título “Reconstituição do Fórum
de Museus Universitários - Pesquisa documentais e depoimentos das museólogas Edna Taveira, Ana
Maria Gantois, Cristina Bruno, Marília Xavier Cury, Regina Márcia Tavares- Acervo MCM”.

1924
A Ata32, datada de 28 de julho de 2006, nos traz detalhes sobre a realização do
IV Encontro do FPMU ocorrido na Universidade Federal de Minas Gerais. Este foi
presidido pela Profª Maria das Graças Ribeiro, tendo como Secretário o Prof. Cícero
Antônio Fonseca de Almeida. O texto registra que as atividades do evento foram
iniciadas com um relato sobre a história do Fórum.
A Assembleia que finaliza o evento traz a avaliação dos membros participantes.
A Presidente ressaltou que buscou acolher as considerações feitas no encontro anterior,
motivando a escolha pelos temas abordados. As avaliações ressaltaram a importância de
um novo formato de Encontro, privilegiando espaços de troca de experiências e debates
e a constituição de grupos de trabalho, além de ressaltarem a importância de análises
sobre a situação dos museus universitários e diagnósticos apresentados pelas diferentes
regiões do país.
A dimensão política do fórum foi ressaltada por vários dos presentes. Dentre
esses, o Prof. Ives Fontoura que o caracterizava como um importante “ato político” e
relatava “sentir falta de uma mobilização, uma prática política permanente, de que
facilitariam a realização de outros encontros e o fortalecimento do próprio Fórum.”
Também foi largamente debatido o aspecto da institucionalização do Fórum sob a forma
de uma sociedade ou associação. A professora Maria das Graças ressaltou que a
proposta da Associação já havia sido lançada desde o III Encontro e este aspecto ainda
foi corroborado pela convidada Marta Lourenço (Universidade de Lisboa), destacando o
fórum como instância representativa dos museus e coleções universitárias no Brasil.
Além do aspecto da institucionalização foram propostas várias ações que
visavam reafirmar uma dimensão política de atuação do Fórum. O envio do documento
final do IV Encontro aos Ministros da Educação, Cultura, Ciência e Tecnologia, tinha

32
Ata da Assembleia Geral do Fórum de Museus Universitários e de Seção de Encerramento do IV
encontro do Fórum Permanente de Museus Universitários, realizadas em Belo Horizonte (MG), 28 de
julho de 2006.

1925
em vista destacar o papel dos museus universitários e de ciências. Ainda se destacou a
necessidade do fórum ocupar outros espaços de visibilidade tais como a Reunião anual
da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e o ICOM Brasil.
Nesta ocasião foi apresentado o projeto do Estatuto da Associação do Fórum
Permanente de Museus Universitários, desenvolvido com a colaboração de diferentes
atores. A presidência do FPMU permaneceu com a Profª Maria das Graças Ribeiro.
Verificou-se que foram aprovadas quatro Moções, sendo que destas, três foram
direcionadas ao MEC, destacando-se a necessidade de maior atenção dos ministérios
aos museus universitários. Outro destaque foi dado à necessidade de criação de outros
cursos de museologia atendendo às demandas de profissionalização dos museus
universitários.
Uma moção simbólica para a cidade de Belo Horizonte, que passava naquele
momento por uma intensa transformação e que mobilizava discussões na área da
cultura, dizia respeito à remoção do Museu de Mineralogia da Praça da Liberdade.

Documentos e institucionalização:

Localizou-se no acervo referente ao FPMU o documento intitulado “Proposta


para a estruturação do Fórum Permanente dos Museus Universitários Brasileiros”.33
Este documento, não datado, apresenta uma estrutura do esboço do estatuto do Fórum
organizado em tópicos. No primeiro Capítulo “Da Constituição”; ”Dos Associados’ e
“Da Estrutura”, o FPMU é considerado “uma sociedade civil, sem fins lucrativos e
congregando profissionais ligados aos museus universitários e que tenham interesse em
conteste em assuntos museológicos”. Regulamentava-se também que a sede do fórum
seria a instituição pertencente ao seu presidente.

33
Proposta para a estruturação do Fórum Permanente dos Museus Universitários Brasileiros.

1926
Destacava-se também quatro atividades que orientavam o propósito do Fórum:
“a) “intercâmbio de informações e experiências; b) Congressos, Conferências,
Seminários, reuniões, cursos e oficinas; c) Participação ativa unto às universidades e
agências financiadoras de projetos e à sociedade, visando o bom desempenho dos órgão
associados; d) Intercâmbio com entidades científicas culturais , nacionais e
internacionais”.
Também foi localizado o Estatuto34, que por sua vez, contempla quatro
capítulos, quais sejam:

Capítulo I: Da Denominação, Natureza, Sede, Fins e Duração;


Capítulo II: Do Patrimônio, sua Constituição e utilização;
Capítulo III: Da Administração;
Capítulo IV: Das Disposições Gerais e Transitórias.

O Estatuto apresenta ainda a lista dos sócios fundadores do FPMU, sendo eles
Ana Maria Gontois, Ednéa Mascarenhas Dias, Edna Luísa de Melo Taveira, Idevar José
Sardinha, Lídia Maria Meirelles, Maria Cristina Bruno, Petronila Rosa Costa Diniz
Neta, Regina Márcia Moura Tavares e Tarcísio Antônio Costa Taborda.

Como finalidades destacava-se que o:


FPMU tem por finalidade: promover a integração dos órgãos e
pessoas pertencente aos Museus Universitários Brasileiros na busca de
constante aperfeiçoamento do intercâmbio e da cooperação, como
instrumentos para a melhoria de seus desempenhos dentro da estrutura
universitária e fora dela, com vistas à preservação do patrimônio
universitário.

Ainda anexado a este documento supracitado, consta uma listagem com as metas
previstas para o ano 2005 e 2006.35 Além da meta de promover o V Encontro, vários

34
Estatuto Fórum Permanente de Museus Universitários- FPMU- Documento anexado a um texto sem
Título narrando a história da constituição do Fórum, juntamente ao texto consta as metas 2005/2006. Sem
data.
35
Metas 2005/2005- Documento anexado ao histórico da FPMU juntamente como estatuto.

1927
aspectos que foram debatidos nas assembleias e registrados em ata foram retomados nas
doze metas apresentadas. Dentre essas, destaca-se a necessidade de se “concluir as
pesquisas documentais e através de depoimentos, elaborar documento com a
reconstituição histórica do fórum”, além de “registrar o Estatuto do Fórum Permanente
de Museus Universitários, para torna-lo uma entidade civil, sem fins lucrativos,
podendo assim, apresentar propostas em editais”. Dessa forma, tais metas buscavam
alavancar e operacionalizar os objetivos e enquadramento do FPMU que foram sendo
construídos ao longo dos encontros e reuniões.
Além das metas também há tópico intitulado “Outras Ações”. Neste, destacava-
se o papel do Fórum como articulador ou rede, buscando reconhecer e mapear as
especificidades dos museus universitários buscando traçar as potencialidades,
localização, eixos temáticos e possiblidades de intercâmbio.

V Fórum: projeto para um próximo encontro


No acervo sob a guarda do MCM/UFMG localizamos uma extensa
documentação que revela o esforço de organização do V Encontro do FPMU.
Localizou-se duas programações distintas. Uma intitulada “V Encontro do Fórum
Universitário “Perspectivas dos Museus Universitários”36 previsto para acontecer na
UFMG entre os dias 13 a 16 de abril de 2015, e também foi encontrada outra
programação “V Fórum Museus Universitários: pesquisa, educação e transformação
37
social” que aconteceria no Auditório Pedro Calmon, juntamente com a realização do
Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ entre os dias 09 a 11 de março de 2015. O
objetivo apresentado eram similares nas referidas programações:

36
V Encontro do Fórum Permanente de Museus Universitários & III Simpósio de Museologia da UFMG: Promoção
FPMU. Realização: Museus de Ciências Morfológicas, Rede de Museus e Espaço de Ciência e Cultura da UFMG.
Apoio FAPEMIG-CNPQ.
37
V Encontro Fórum Permanente de museus Universitários, março/20015.

1928
(…) promover o encontro, o debate amplo e a proposição de
estratégias políticas e operacionais para a atuação dos museus, no
cumprimento de sua missão mediadora do desenvolvimento e
transformação social.38

Os membros que constituiríam a comissão organizadora eram Ildeu de Castro


Moreira (UFRJ), Maria Cristina Bruno (USP), a Coordenadora da Casa de Ciência,39
Maria das Graças Ribeiro (UFMG/FPMU) Mário Souza Chagas (UNIRIO) e Rita de
Cássia Marques (Rede de Museus/UFMG).
Localizou-se diversas correspondências que discorriam sobre a necessidade de
busca de recursos junto às agências de fomento bem como convites a instituições
representativas e palestrantes revelando os processos de negociação e mobilização que
acontecia para viabilizar a realização do evento.
Na apresentação do projeto que estruturava a programação e diretrizes do
evento, abordava-se as transformações ocorridas nas universidades brasileiras
destacando-se o “momento especial de sua história em que a convergência de múltiplos
olhares reflete a confiança e a expectativa da comunidade em seus papeis de parcerias,
em substituição à sua tradicional postura hegemônica e reproduzir e repassar
conhecimento”.40 Neste encontro, haveriam conferências, simpósios, painéis de debates,
mesas redondas, rodas de conversa e diálogos de troca de experiências além de
exposições.
Nesta apresentação supracitada, constava também, nos resultados esperados
“a ampliação do Fórum Permanente de Museus Universitários como foro legítimo para
discussão, reflexão e proposição de políticas públicas e/ou estratégias sobre a atuação

38
V Encontro Fórum Permanente de museus Universitários, março/20015 e no documento: V Encontro do Fórum
Permanente de Museus Universitários & III Simpósio de Museologia da UFMG: Promoção FPMU. Realização:
Museus de Ciências Morfológicas, Rede de Museus e Espaço de Ciência e Cultura da UFMG. Apoio FAPEMIG-
CNPQ

39
Não estava identificado o nome da Coordenadora, mas, junto aos demais nomes, estava escrito “Coordenadora da
casa de Ciências”. V Encontro Fórum Permanente de museus Universitários, março/20015.
40
Esta apresentação é encontrada em ambas versões de programação já mencionadas.

1929
dos museus universitários”,41 além de outros tópicos relevantes relacionados à
integração interdisciplinar de profissionais “visando o intercâmbio de informações,
materiais, acervos e outros”.42
Não há registro exatos sobre as causas que impediram a consolidação deste
evento, mas novamente a falta de recursos financeiros parece ter sido preponderante
para a não realização.

Considerações sobre a trajetória do FPMU:


A partir da leitura e análise da documentação acumulada referente ao FPMU
consegue-se perceber que foram sinuosos os caminhos percorridos pelos membros na
tentativa de institucionalizar e consolidar as propostas delineadas. Foram recorrentes ao
longo desta trajetória desafios e problemas que impediam ou adiavam a realização dos
Encontros. O falecimento de dois presidentes e ainda como com muito peso, as questões
relacionadas aos recursos financeiros.
Contudo, em meio a estes infortúnios e dada a potencialidade do plano de metas
já delineadas, percebe-se o interesse de diferentes atores em consolidar as ações do
fórum, bem como somar esforços para que fossem sequenciados os objetivos que
delineiam a vocação deste espaço. Seu histórico, aqui delineado brevemente, revela seu
potencial como rede que permite mobilização, encontro e atuação política, sendo
também fomentadora de ações e discussões que perpassam a salvaguarda do patrimônio
cientifico e cultural das universidades. Este trabalho busca então contribuir com as
definições e estratégias a serem delineadas para a retomada e consolidação do Fórum
Permanente de Museus Universitários, reativando com isso, os objetivos definidos por
um grupo que almejava o reconhecimento dos museus universitários no Brasil.

41
Programação do V Encontro Fórum Permanente de museus Universitários, março/20015.Esta mesma citação
consta nos textos:” Texto Sobre o Fórum Permanente de Museus Universitários: para o site”, e no texto sobre o
histórico que contém anexadas as metas 2005/2006.
42
V Encontro Fórum Permanente de museus Universitários, março/20015.

1930
Referências bibliográficas:

MARQUES, R. C.; SEGANTINI, V. C. . Rede de Museus da Universidade Federal de


Minas Gerais. In: Nascimento, Adalson; Moreno, Andrea. (Org.). Universidade,
memória e patrimônio. 1ed. BELO HORIZONTE: Mazza Edições, 2015, v. 1, p. 31-
44.

RIBEIRO, Maria das Graças. Patrimônio biológico universitário – Relação ensino,


pesquisa, extensão e museus universitários. In: In: NASCIMENTO, Adalson;
MORENO, Andrea. (Org.). Universidade, memória e patrimônio. 1ed. BELO
HORIZONTE: Mazza Edições, 2015, v. 1, p. 31-44.

1931
PROGRAMA DE INVENTÁRIO DO PATRIMÔNIO CULTURAL DA
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO: CAMINHOS PARA
CONHECIMENTO E PRESERVAÇÃO

Bruno Melo de Araújo*

Emanuela Sousa Ribeiro**

Resumo: Este artigo analisa o papel dos inventários como ferramenta de proteção do
patrimônio cultural universitário, através do estudo de caso do programa de extensão
“Patrimônio Cultural universitário: conhecimento e divulgação do patrimônio cultural tangível
da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE”. O Programa está estruturado de modo a
articular uma rede de proteção institucional para o patrimônio cultural material da Universidade,
possibilitando seu conhecimento e socialização com a comunidade acadêmica e público em
geral. Acreditamos que a relação de pertencimento à comunidade da UFPE pode ser reforçada
através dos inventários, propiciando aos seus membros mecanismos de auto reconhecimento e
auto representação (MOTTA; SILVA, 1998; CHASTEL, 1990). Pensamos que os bens culturais
móveis possuem grande potencial para este tipo de ação, especialmente na medida em que
possibilitam que própria comunidade indique e faça salvaguarda dos seus bens culturais.
Palavras-chave: Inventários, Patrimônio Cultural, Patrimônio Universitário, Cultura Material

Abstract: This article analyzes the role of inventories as a tool for the protection of university
cultural heritage, through a case study of the outreach program "Cultural Heritage University:
knowledge and dissemination of the tangible cultural heritage of the Federal University of
Pernambuco – UFPE”. The Program is structured in order to articulate a network of institutional
protection for the tangible haritage of the University, enabling its knowledge and socialization
with the academic community and the public in general. We believe that the relationship of
belonging to the UFPE community can be strengthened through inventories, providing its
members with mechanisms of self-recognition and self-representation (MOTTA; SILVA, 1998;
CHASTEL, 1990). We think that movable cultural property have great potential for this type of
action, especially to the extent that allow the community enter and make preservation of its
cultural heritage.
Key-words: Inventory, Heritage, University Heritage, Material Culture

1932
O patrimônio Cultural nas universidades

O patrimônio universitário compreende todos aqueles bens, tangíveis e


intangíveis, que fazem referência ao sistema de valores, modos de vida e função social
das universidades. Trata-se dos bens culturais que fazem referência às práticas e
vivências do ensino, da pesquisa e da extensão, em todas as áreas do conhecimento
(UNIÃO EUROPEIA, 2005). Neste mesmo sentido, os museus universitários são
aqueles museus43 que

[...] agregam, às funções dos museus não universitários, as demandas


por legitimação e difusão dos saberes, experiências, sensibilidades e
representações do campo científico e da vida acadêmica, sendo também
responsáveis por apresentar a Universidade aos não universitários
(RIBEIRO, 2013, p. 92).

Os bens culturais presentes nas universidades e seus museus possuem uma


grande área de interseção com o patrimônio cultural da ciência e da tecnologia, que
pode ser caracterizado como o

Legado tangível e intangível relacionado ao conhecimento científico e


tecnológico produzido pela humanidade, em todas as áreas do
conhecimento, que faz referência às dinâmicas científicas, de
desenvolvimento tecnológico e de ensino, e à memória e ação dos
indivíduos em espaços de produção de conhecimento científico. Estes
bens, em sua historicidade, podem se transformar e, de forma seletiva
lhe são atribuídos valores, significados e sentidos, possibilitando sua
emergência como bens de valor cultural (CARTA DO RIO DE
JANEIRO, 2017).

Ainda que não sejam iguais, estas duas tipologias do patrimônio cultural
apresentam muitas similaridades e no ambiente universitário ambas podem ser

43
Definimos museu a partir do exposto na legislação específica sobre o tema no Brasil, o Estatuto dos Museus (Lei
11.904/2009): Art. 1º Consideram-se museus, para os efeitos desta Lei, as instituições sem fins lucrativos que
conservam, investigam, comunicam, interpretam e expõem, para fins de preservação, estudo, pesquisa, educação,
contemplação e turismo, conjuntos e coleções de valor histórico, artístico, científico, técnico ou de qualquer outra
natureza cultural, abertas ao público, a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento (BRASIL, 2009).

1933
encontradas em profusão. Tipicamente, os acervos dos museus de ciência e tecnologia
existentes nas universidades são constituídos por objetos que foram, originalmente, bens
móveis utilizados no dia-a-dia dos diversos setores da instituição.

Como a maioria dos bens do patrimônio de C&T, estes objetos seguem o ciclo
de vida identificado por Lourenço acerca das coleções universitárias europeias que
foram salvas do descarte indiscriminado:

Os instrumentos eram utilizados até à exaustão, tornando-se depois


obsoletos e postos de lado (tipicamente, iam para o lixo ou, na melhor
das hipóteses, para uma cave ou um sótão). Apenas no século XX foram
estas ‘proto-coleções’ organizadas em museus, geralmente na sequência
de centenários ou celebrações – foi assim com o Museu de Utrecht, com
o Museu de História da Ciência de Oxford, com o Museu/Gabinete do
Volta em Pavia e com o Museu de Ciência da Universidade de Lisboa
(LOURENÇO, 2009, p. 51).

Este é também o ciclo de vida padrão dos objetos científicos utilizados no século
XX, no Brasil, conforme já demonstrado nos estudos de Granato e colaboradores, os
quais também indicam que as universidades concentram a maior parte do patrimônio de
C&T já identificado:

Na avaliação final verifica-se que a maioria das instituições e objetos


pesquisados pelo projeto Valorização do Patrimônio Científico e
Tecnológico Brasileiro está no âmbito das universidades, que, como já
publicado em textos anteriores [...] abriga a maior parte do patrimônio
cultural de ciência e tecnologia. É, sem dúvida, um espaço de grande
importância para a preservação deste patrimônio, onde convivem
milhares de instrumentos produzidos em diversas épocas, independente
de funcionarem, ou terem sofrido algum processo de adaptação, ou
estarem totalmente obsoletos, alguns de inestimável valor histórico
(GRANATO e SANTOS, 2015, p. 23, grifo nosso).

Os levantamentos realizados por Granato foram realizados em Instituições de


Ensino Superior (IES), Institutos de Pesquisa Científica e/ou Tecnológica (ICT),
Instituições Museológicas (MUS) e Instituições de Ensino Médio (IEM), e no que diz

1934
respeito às IES a pesquisa circunscreveu-se às instituições públicas (GRANATO,
MAIA e SANTOS, 2014, p. 16). Segundo o autor, os bens que estão melhor
salvaguardados encontram-se em grandes museus, sendo notáveis as dificuldades de
preservação de bens culturais que se encontram nos pequenos museus existentes em
universidades, assim como dos bens que não foram musealizados e se encontram em
coleções, ou proto-coleções, dispersas nas instituições de ensino superior, de pesquisa e
de ensino médio (GRANATO e SANTOS, 2015).

Em síntese, o autor conclui pelo elevado risco de desaparecimento (GRANATO


e SANTOS, 2015, p. 36) desta tipologia de bens culturais, apontando a falta de
regulamentação e de políticas institucionais para a sua preservação como um dos
problemas a serem enfrentados. Segundo o autor:

A maior parte dos objetos de C&T produzidos antes da década de 1970


está abandonada pelos espaços das universidades, ou ainda estão sendo
utilizados no ensino, de forma original ou não, e na pesquisa, sem
nenhuma previsão de quando serão “aposentados” e o que acontecerá a
partir daí. São inúmeras as possibilidades e difíceis de serem
respondidas, pois não há nada que regularize a seleção e manutenção
desse tipo de patrimônio universitário. As regulamentações quando
existem são sempre locais, e giram em torno dos procedimentos para
realizar o descarte do material sem uso, nunca para realizar a análise
desse material, criando a possibilidade de guardar aqueles considerados
importantes para a história institucional, ou que sejam raros na área a
que pertencem (GRANATO e SANTOS, 2015, p. 31).

Granato e Santos (2015) também enfatizam a inexistência de regulamentação


destinada a preservar os bens culturais que não estão abrigados em museus, e
complementarmente, pode-se afirmar que a existência de regulamentação federal acerca
da obrigatoriedade de manutenção dos bens musealizados – a lei 11904/2009, Estatuto
dos Museus – não é suficiente para garantir a preservação dos bens culturais existentes
nos pequenos museus e coleções visitáveis existentes nas IES, conforme atestam
estudos realizados na Universidade de São Paulo (ALMEIDA, 2001), na Universidade

1935
Federal da Bahia (MARQUES e SILVA, 2011) e na Universidade Federal de
Pernambuco (SILVA FILHO, 2013 e OLIVEIRA, 2015).

Os resultados do projeto de pesquisa “Patrimônio Cultural de Ciência e


Tecnologia em instituições de ensino e pesquisa de Pernambuco: musealização,
preservação e descarte no século XX”44, que se encontra em fase de finalização,
também não escapam muito desta realidade, que pôde ser diagnosticada em institutos de
pesquisa (RIBEIRO, 2017) e instituições de ensino médio e fundamental (RIBEIRO,
2015; SILVA, 2017) existentes no estado de Pernambuco.

Do ponto de vista jurídico realizamos pesquisa sobre esta temática (RIBEIRO, 2016),
que consideramos ser um desdobramento da falta de responsabilidade institucional das
autarquias de ensino sobre o seu patrimônio de C&T e universitário. Concluímos que,
do ponto de vista estritamente legal,

[...] a Administração Pública já possui meios para a realização de, pelo


menos, algumas ações básicas de salvaguarda destes bens, destacando-
se, especialmente as ações de controle patrimonial contábil, que devem
acompanhar o ciclo de vida dos bens adquiridos pelas instituições de
direito público.

Assim, tanto pelo viés da responsabilidade para com os direitos


culturais, quanto pelo viés da responsabilidade de bem administrar os
bens público, não pode o Estado descurar da gestão destes bens, sob
pena de ferir os direitos fundamentais dos cidadãos a um meio ambiente
cultural equilibrado e os princípios básicos da Administração Pública
(RIBEIRO, 2016, p.68, grifo nosso).

Contudo, é preciso ponderar que a preservação de bens culturais, de qualquer


tipologia, está muito mais relacionada com a sua valoração social do que com os
instrumentos legais, os quais só existem a partir da demanda da própria sociedade. Ou

44
Financiado pelo CNPq – Edital Universal 2014, processo nº 461779/2014-5.

1936
seja, é razão patrimonial que atribui sentido, e propicia a preservação dos bens
culturais.

Ao nos referirmos à noção de razão patrimonial proposta por Poulot (2012)


estamos admitindo que as narrativas patrimoniais compreendem análises não apenas da
(i)materialidade do patrimônio cultural, mas principalmente acerca da produção e do
consumo da própria evidência patrimonial, a um só tempo imaginário e instituição
(POULOT, 2012, p. 29).

No caso dos bens do patrimônio cultural da ciência e da tecnologia e do


patrimônio universitário, as práticas, saberes e valores que dão legitimidade e sentido à
sua preservação, são bastante recentes no amplo campo das práticas patrimoniais e
museais no Brasil.

De acordo com Poulot, as práticas de preservação patrimonial no ocidente se


alicerçam em um conjunto de narrativas de patrimônio cultural e de musealização que
são universalmente reconhecidas e incentivadas, colaborando na estruturação de uma
moralidade patrimonial que legitima discursos favoráveis à preservação dos mais
variados bens culturais. Como apoio à efetividade da moralidade patrimonial encontra-
se a questão da empatia do homem comum, do observador individual, que, a partir da
segunda metade do século XX, substitui o connoisseur como elemento legitimador dos
bens passíveis de musealização e/ou patrimonialização. Segundo Poulot, esta
interpretação funda-se nas propostas de Alois Riegl (na obra O Culto Moderno aos
Monumentos, publicada em 1903), para quem o mais importante valor que sustenta a
razão patrimonial moderna seria o valor da ancianidade, ou seja, o valor adquirido pelo
bem cultural com a passagem do tempo e com sua exteriorização material, facilmente
perceptível pela sociedade (POULOT, 2009, p. 216-217):

1937
Em um monumento, Riegl distingue três formas possíveis de valor
memorial: a forma intencional inicial, comemorativa; em seguida o
valor histórico, que surgiu com o Renascimento, tendo estabilizado no
século XIX com um aparato de conservação-restauração destinado à
manutenção do estado de origem; por último o valor de ancianidade,
que, por ironia, pode ser designado também por valor do futuro, e cuja
relação com a restauração é eminentemente problemática (POULOT,
2009, p. 216).

Estas linhas de interpretação são facilmente identificáveis quando estamos


trabalhando com bens culturais produzidos, e exteriorizados, até o início do século XX,
pois a percepção, pelo homem comum, deste valor de ancianidade é tanto mais fácil
quanto mais antigo (no sentido cronológico apenas) for o bem cultural, facilitando o
estranhamento que advém de uma materialidade exteriormente diversa.

No caso dos bens culturais do patrimônio cultural da C&T e universitário, o


elemento da ancianidade não é tão facilmente perceptível pelo homem comum, pois, via
de regra esse não está sequer presente nas instituições de ensino superior e menos ainda
nos institutos de pesquisa e instituições de C&T.

Nesta mesma perspectiva, outra dificuldade em relação aos patrimônios da C&T


e das universidades diz respeito à percepção que a sociedade estabelece entre estes
saberes e o tempo. Novamente, recorrendo ao esquema explicativo da razão patrimonial
moderna e ao valor da ancianidade, percebe-se que os bens culturais vinculados à
produção da ciência e da tecnologia ainda são fortemente vinculados ao paradigma
iluminista que credita à ciência um desenvolvimento para o futuro e jamais um olhar
para o passado (FAVACHO e MILL, 2007, p.209), tipicamente relacionado com a
abordagem patrimonial e museal.

A Universidade Federal de Pernambuco

Criada em 20 de junho de 1946, por meio do Decreto-lei nº 9.388, a


Universidade do Recife foi fruto da reunião de diversas instituições – Faculdade de

1938
Direito do Recife, fundada por lei em 11 de agosto de 1827; Escola de Engenharia de
Pernambuco, fundada no ano 1895; Faculdade de Medicina do Recife, e anexas de
Odontologia e Farmácia, fundada no ano de 1914; Escola de Belas Artes de
Pernambuco, fundada no ano de 1932; Faculdade de Filosofia do Recife, fundada no
ano 1939.

Tais espaços estavam inseridos no contexto do Bairro da Boa Vista e


proximidades, proporcionando uma dinâmica própria, na qual “a vida estudantil se
mesclava à do centro da cidade e atraía equipamentos para o grupo de intelectuais que
frequentava o Bairro: cafés, bares, restaurantes estudantis, teatros, livrarias, pensões”
(BERNARDES, 2011, P.18).

Com relação a cidade universitária, a possibilidade de sua construção foi


amplamente discutida no ano de 1947 e no ano seguinte, a comissão designada para
escolha do local decidiu por uma área no bairro da Várzea, nas antigas terras do
Engenho do Meio – uma área com 197 hectares, de fácil acesso, firme e regular, não
demandando terraplanagem. O projeto da futura cidade universitária ficou a cargo do
arquiteto italiano, Mario Russo, integrante do corpo docente da Escola de Belas Artes,
onde então se formavam os arquitetos do estado (CABRAL, 2006).

As primeiras instalações do campus foram o Instituto de Nutrição (1950), o


Instituto de Antibióticos (1952) e o Instituto de Micologia (1954), instituições pioneiras
em sua área de atuação, com projeção nacional até os dias atuais. A inauguração do
campus universitário foi realizada no ano de 1958, quando o presidente da República,
Juscelino Kubistchek, entregou o prédio da Faculdade de Medicina, atual Centro de
Ciências da Saúde (Diário de Pernambuco, 11 de janeiro de 1958).

1939
No ano de 1965, a Universidade do Recife passou a integrar o Sistema Federal
de Educação do país, com a denominação de Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE), na condição de autarquia vinculada ao Ministério da Educação.

Poucos anos após a federalização da Universidade, sua estrutura administrativa


passou por outra mudança de grande porte: a Lei nº 5.540/1968, que reorganizou o
funcionamento da educação superior no Brasil, extinguiu o sistema de cátedras e
instituiu a estrutura departamental vigente até os dias atuais. Neste contexto, as
universidades deveriam articular ensino e pesquisa, de maneira que os institutos de
pesquisa foram progressivamente sendo incorporados aos departamentos.

No ano de 1970 já estavam estruturadas as unidades administrativas de ensino e


pesquisa básicos - Instituto de Matemática, Instituto de Física, Escola de Química,
Instituto de Biociências, Instituto de Geociências, Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas, Escola de Artes, Instituto de Letras (REIS, 1971, p. 11): – que congregavam
as unidades departamentais. O ensino e a pesquisa aplicada ainda se encontravam em
unidades isoladas: Escola de Administração, Faculdade de Arquitetura, Faculdade de
Ciências Econômicas, Faculdade de Direito, Faculdade de Educação, Faculdade de
Enfermagem, Escola de Engenharia, Faculdade de Farmácia, Faculdade de Odontologia
e Faculdade de Medicina (REIS, 1971, p. 12).

O atual sistema de Centros Acadêmicos foi instituído em 23 de abril de 1975,


quando foi publicado o Estatuto que reestruturou administrativamente a UFPE,
adotando-se o sistema administrativo que ainda está em funcionamento, composto por
Centros Acadêmicos que congregam Departamentos e Coordenações. Naquele
momento, foram instituídos os Centros de pesquisa básica – Artes e Comunicações,
Ciências Exatas e da Natureza, Ciências Biológicas, e Filosofia e Ciências Humanas – e
adotado o mesmo sistema para os Centros de ensino profissional e ciências aplicadas –

1940
Centro de Educação, Centro de Ciências Sociais Aplicadas, Centro de Ciências da
Saúde, Centro de Tecnologia, e Centro de Ciências Jurídicas.

Atualmente a UFPE possui oito Pró-reitoras e nove Órgãos Suplementares, além


de doze Centros Acadêmicos, sendo dez na capital, um em Vitória de Santo Antão e um
em Caruaru. De acordo com os dados recentes, a UFPE oferece 105 cursos de
graduação, 124 cursos de Pós-Graduação Stricto Sensu (Mestrado e Doutorado) e 53
cursos de Pós-Graduação Lato Sensu (UFPE, 2017).

Em 2016, a Universidade ofereceu 7.637 vagas para os seus cursos de graduação


na capital pernambucana e no Interior por meio do Sistema Sisu, do Ministério da
Educação. E mais 112 vagas por meio de um vestibular específico para os cursos de
Dança (30 vagas) e Música (60 vagas para Música/Licenciatura, 18 para
Música/Instrumento e quatro para Música/Canto).

Estamos falando de uma grande instituição, que a cada dia cresce, inova e se
renova. Seu crescimento é resultado das transformações da nossa sociedade. Nestes 70
anos, a UFPE buscou se reinventar com vistas a contribuir para o desenvolvimento
político, econômico e social da sociedade brasileira.

Inventariando a UFPE

O patrimônio cultural universitário da UFPE, assim como das demais


universidades brasileiras, encontra-se em risco de desaparecimento imediato.
Usualmente considerado apenas pelo seu valor de uso, trata-se de bens culturais
materiais que podem ser encontrados no dia-a-dia das instituições de ensino superior,
mas que geralmente são invisíveis para a sociedade e para a própria comunidade
universitária.

1941
Cumpre registrar que existem aspectos legais que obrigam as instituições
públicas de ensino superior à salvaguarda do seu patrimônio cultural. Primeiramente é
importante lembrar que cabe ao Estado, assim como à sociedade, a preservação do seu
patrimônio cultural, e, para além desta obrigação genérica, existe a obrigação específica
dos bens que são tombados em nível federal ou estadual.

No caso da UFPE destaca-se, especialmente, os bens móveis e integrados da


Faculdade de Direito do Recife, que é tombada em nível federal dede 1980
(tombamento nº 970-T-78). Apesar da Faculdade possuir bens móveis em seu acervo
(mobiliário, pinturas, esculturas, entre outros) e a UFPE não possui nenhum registro
destes bens.

Além deste caso há outra situação relevante na UFPE, que diz respeito ao
inventário, realizado em 2003, pela “Comissão para avaliação das obras de arte
pertencentes à UFPE”. Esta comissão inventariou 1.477 bens com valor artístico,
realizando também a atribuição de valor econômico de cada uma das peças. Urge
retomar este trabalho e salvaguardar estas peças.

Já naquela ocasião os responsáveis pelo trabalho identificaram a existência de


outros bens a serem salvaguardados, que não puderam ser inventariados pela exiguidade
do tempo e que precisam ser objeto de inventário neste momento.

Por fim, apontamos a meta, prevista no Plano de Implantação dos Procedimentos


Contábeis Patrimoniais (BRASIL, 2015, p. 18), prevê que a partir de 01 de janeiro 2021
a União deverá implementar o “Reconhecimento, mensuração e evidenciação dos bens
do patrimônio cultural; respectiva depreciação, amortização ou exaustão; reavaliação e
redução ao valor recuperável (quando passível de registro segundo IPSAS, NBC TSP e
MCASP)” (BRASIL, 2015, p.18). Trata-se de meta que aponta a necessidade de todos
os órgãos públicos federais não apenas possuírem controle patrimonial dos seus bens

1942
culturais – que a UFPE não possui atualmente – como também lhes fazerem o controle
contábil, ou seja, identificarem e acompanharem o seu valor econômico.

O cuidado e a guarda dos bens públicos, com ou sem valor cultural são uma das
atribuições da Administração Pública e é expressamente prevista no §3º do art. 50º da
Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101, de 04/05/2000): “A
Administração Pública manterá sistema de custos que permita a avaliação e o
acompanhamento da gestão orçamentária, financeira e patrimonial” (BRASIL, 2000).
Ou seja, há dano ao patrimônio público quando tal cuidado não acontece e, neste
contexto, os bens com valor cultural são também objeto de dano patrimonial, pois o
dever de cuidado com o patrimônio público é um só, independente de se tratar de bens
com ou sem valor cultural agregado.

A preservação destes bens, para além de cumprir aspectos legais, possui um enorme
potencial de agregação de valor emocional e de reforço identitário e da autoestima
institucional. A UFPE, como instituição de ensino superior de grande porte, não possui
nenhum mecanismo sistemático de apresentação dos bens culturais sob sua guarda. Não
há praticamente nenhum tipo de website, publicação, postais, enfim, nenhum tipo de
material audiovisual destinado a divulgar os bens culturais pertencentes à UFPE. Nem
mesmo a comunidade universitária, e muito menos a sociedade, sabe da existência da
maior parte dos bens móveis que estão sob guarda da instituição.

Este quadro de desconhecimento não apenas é prejudicial ao próprio cuidado


com os bens culturais, como também amesquinha a própria vida da comunidade
universitária, que se vê privada da fruição do seu patrimônio.

A sensação de pertencimento à comunidade da UFPE poderia ser reforçada caso


a instituição propiciasse aos seus membros mecanismos de auto reconhecimento e auto
representação e os bens culturais móveis possuem grande potencial para este tipo de

1943
ação, especialmente na medida em que possibilita que própria comunidade indique e
faça salvaguarda dos seus bens culturais materiais móveis.

Por fim, chamamos atenção para o movimento que vem ocorrendo, nas
principais universidades públicas do país e do mundo, para a preservação do seu
patrimônio cultural. Em âmbito nacional podemos citar USP, UnB, UFMG, entre outras
instituições de ensino superior, vêm realizando ações no sentido de conhecer e preservar
o seu patrimônio cultural. Como maior universidade do Estado de Pernambuco, e uma
das maiores do país, a UFPE possui um rico patrimônio cultural a ser salvaguardado e,
no momento em que são comemorados os seus 70 anos, nada mais apropriado do que
lançar um Programa para a sua preservação.

A UFPE tem condições de assumir a vanguarda no tratamento do patrimônio


cultural universitário, constituindo e divulgando metodologias de atuação para as
demais instituições de ensino superior interessadas na temática.

1944
DIAGNÓSTICO MUSEOLÓGICO EM MUSEUS E ESPAÇOS UNIVERSITÁRIOS
DE MEMÓRIA E CIÊNCIA

Letícia Julião*
Paulo Roberto Sabino**
Eliane Cristina de Freitas Rocha***

Resumo: Em 90 anos de existência, a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) reuniu


importante patrimônio científico e cultural, o qual é gerido, em grande parte, por 20 unidades
que integram a Rede de Museus e Espaços de Ciência e Cultura da UFMG. Em 2015 e 2016
realizou-se uma pesquisa de avaliação dessas unidades, com o objetivo de produzir
conhecimento sistemático a respeito da gestão desse acervo e do desempenho desses espaços do
ponto de vista museológico. O intuito é subsidiar a formulação de uma política da UFMG que
promova a qualificação dos processos de preservação, pesquisa e comunicação de seu
patrimônio. Com base no Cadastro Nacional de Museus (IBRAM/Ministério da Cultura),
desenvolveu-se a coleta de dados, em um questionário estruturado em 13 áreas de sondagem
(institucional, acervo, pesquisa, acessibilidade, público, exposição, educativo etc.). Ancoradas
em dados de mais de 400 variáveis, as análises identificam potencialidades e fragilidades,
assinalando as especificidades da realidade museológica universitária. Sobretudo, observa-se,
nesses espaços, dificuldades em se articular as funções museais - salvaguarda e comunicação -
com dinâmicas da vida universitária, regida pelo princípio da indissociabilidade entre ensino,
pesquisa e extensão. Tais questões são enfatizadas nas análises de três áreas específicas: acervo,
acessibilidade e público.
Palavras-chave: museologia; museu universitário; acervo; ciência; memória.

Abstract: In its 90 years of existence, the Federal University of Minas Gerais (UFMG) has
gathered important scientific and cultural heritage, which is mostly managed by 20 units that
integrate the Network of Museums of UFMG. In 2015 and 2016 an evaluation survey of these
units was carried out pursuing the objective of producing systematic knowledge about the
management of this collection and the performance of these spaces from a museological point of
view. The aim is to subsidize the formulation of a UFMG policy that could promote skill in
processes of preservation, research and communication of its patrimony. Based on the National
Museum Register (IBRAM / Ministry of Culture), a data collection was developed following a
questionnaire structured in 13 survey areas (institutional, collection, research, accessibility,
public, exhibition, educational etc.). Focused on more than 400 variables data, the analyzes
identify potentialities and fragilities, pointing out the specificities of the university museological
reality. Above all, in those spaces, it is difficult to articulate the museological functions -
safeguard and communication - with the dynamics of university life, governed by the principle
of indissociability between teaching, research and extension. All these issues are emphasized in
analyzes of three specific areas: collection, accessibility and public.
Keywords: museology; university museum; collection; science; memory.

1945
Introdução45
As transformações experimentadas pelos museus nas últimas décadas, dentre
outros aspectos, têm contribuído para a incorporação de processos de avaliação e
planejamento na agenda dessas instituições. A tomada de decisões e a adoção de
condutas fundamentadas em diretrizes conceituais e procedimentais consagrados pelo
campo museológico têm se tornado cada vez mais comuns, em detrimento das ações de
caráter assistemático e casual, muitas vezes orientadas pelo capricho de gestores.

No Brasil, a formulação de uma política de museus, nos anos 2000, foi decisiva
para legitimar a avaliação museológica como procedimento indispensável à qualificação
dessas instituições. Dentre outras iniciativas46, a criação, em 2007, do Cadastro
Nacional de Museus, estruturou, no âmbito federal, informações de mais de 3,4 mil
museus brasileiros, constituindo-se em ferramenta estratégica para a formulação e
aprimoramento de planos e de políticas públicas para o setor. Em 2011, o Instituto
Brasileiro de Museus - IBRAM lançava o Guia dos Museus Brasileiros (BRASIL,
2011a) e Museus em Números (BRASIL, 2011b), publicações que divulgam dados e
estudos estatísticos do setor nos âmbitos federal e estadual, desenvolvidos a partir das
informações cadastrais.

A base de dados extensa e capilar do Cadastro Nacional de Museus apresenta


potencialidades para o desenvolvimento de diagnósticos verticalizados, referenciados
em cenários específicos, tanto do ponto de vista territorial quanto institucional. É nessa
perspectiva que se desenvolveu, entre os anos de 2015 e 2016, o projeto Avaliação
Museológica: Coleções e Museus da UFMG, concebido em face à necessidade de se

45
Artigo apresentado no I Congreso Iberoamericano de Museos Universitarios, em La Plata, Argentina,
em maio de 2017 (não publicado).
46
A esse respeito vale mencionar a criação do Sistema Brasileiro de Museus, em 2004. o lançamento da
Política Nacional de Museus (BRASIL, 2007) na qual consta, como um dos eixos programáticos, a
Gestão e Configuração do Campo Museológico, em 2007 e o aperfeiçoamento da legislação para o setor,
especialmente com a criação do Estatutode Museus, em 2007.

1946
conhecer a realidade pouco visível dos museus e outros espaços que abrigam coleções
na Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG.

Além da extensão de suas informações, a opção de se amparar


metodologicamente na estrutura de dados do Cadastro Nacional de Museus considerou
também a pertinência de se proceder a análises que mantivessem parâmetros de
comparabilidade com os dados nacionais e regionais. Dessa maneira, a estruturação do
instrumento de coleta de dados da pesquisa, com poucas alterações, preservou a
estrutura do Cadastro. Na verdade, existem duas versões de questionário do Cadastro –
2009 e 2014 – que foram compatibilizadas. Algumas questões tratadas tangencialmente
no Cadastro foram ampliadas e outras inseridas, de modo a atender demandas
específicas da pesquisa.

O projeto circunscreveu-se a 18 unidades que integram a Rede de Museus e


Espaços de Ciências e Cultura da UFMG - RMECC, instância criada em 2000 com o
objetivo de otimizar, de maneira colaborativa, ações e recursos, sem prejuízo para a
autonomia de cada unidade membro. Vale destacar que, embora as unidades da Rede
não correspondam à totalidade dos espaços de guarda e/ou extroversão de acervos
museológicos existentes na UFMG, estão contemplados neste universo todos os museus
e grande parte dos centros de memória, cultura e ciência da universidade47.

47
Integram a RMECC: Museu Casa Padre Toledo – MCPT; Museu da Escola de Arquitetura; Museu de
Ciências Morfológicas – MCM; Museu de História Natural e Jardim Botânico – MHNJB; Espaço do
Conhecimento UFMG; Acervo Curt Lange; Centro de Estudos Literários e Culturais - CELC/Acervos
Escritores Mineiros; Centro de Memória da Educação Física, do Esporte e do Lazer – CEMEF; Centro de
Memória da Enfermagem – CEMENF; Centro de Memória da Engenharia, Centro de Memória da
Farmácia – CEMEFAR; Centro de Memória da Medicina – CEMEMOR; Centro de Memória da
Odontologia; Centro de Memória da Veterinária; Centro de Referência em Cartografia Histórica - CRCH;
Espaço Memória do Cinema; Estação Ecológica UFMG; Centro de Pesquisa, Documentação e Memória
da Faculdade de Educação - CEPDOC e Centro Cultural UFMG. estes dois últimos recentemente
desvinculados da Rede. O Centro de Referência da Música de Minas - Museu Clube da Esquina, em fase
de criação, assim como o Centro de Coleções Taxonômicas, Acervos Artísticos UFMG e Acervo Curt
Lange incorporados há pouco tempo na REMCC não integraram o universo da pesquisa.

1947
A coleta de dados observou os seguintes passos: envio e preenchimento on line
do formulário; pesquisa in loco, para verificação e ampliação de informações e
tratamento de dados estatísticos em base de dados modelada no programa SPSS.

O questionário dispõe de 12 campos temáticos, semelhantes aos do Cadastro


Nacional de Museus: Identificação da Instituição; Caracterização; Acessibilidade;
Gestão; Caracterização Física; Acervo Museológico; Exposições; Atividades
Educativas, Culturais e Científicas; Público; Arquivo Histórico; Gestão de Risco;
Gestão de Pessoas e Orçamento. O questionário totaliza 95 questões, das quais foram
geradas aproximadamente 400 variáveis.

Optou-se ainda pela adoção conjugada de técnicas quantitativa e qualitativa de


pesquisa. Somando-se ao questionário, propôs-se a realização de grupos focais - a serem
desenvolvidos em uma segunda fase do projeto - como alternativa para enriquecer as
informações, verticalizar a compreensão do objeto de estudo e, sobretudo, realinhar
abordagens e informações, evitando-se a imposição de problemáticas estranhas ao
contexto da pesquisa (SIMÕES; PEREIRA, 2007).

O presente artigo apresenta análises de alguns resultados da pesquisa


quantitativa. Especificamente faz algumas reflexões a respeito da caracterização das
instituições, acervo, acessibilidade/arquitetura/exposições, público e ação educativa.

Que espaços são esses da Universidade?


Embora a Universidade tenha sido criada em 1927, o surgimento de museus
universitários é tardio na UFMG, aparecendo somente na década de 1960, quando são
implantados o Museu da Arquitetura e o Museu de História Natural. Dois novos museus
e/ou espaços com interface museológica foram sendo criados a cada década que se

1948
seguiu até os anos 2000, quando surgiram 5 novos espaços, dos quais 4 eram centros de
memória ou de documentação de unidades acadêmicas.

Não por acaso ocorre esse salto quantitativo na criação desses espaços, nesse
momento. O surgimento da Rede de Museus justamente no ano de 2000 pode ter
funcionamento como fator gerador de tomada de consciência do valor do patrimônio
científico da Universidade, estimulando tais iniciativas. Mas também é preciso
considerar que nas décadas de 1990 e 2000 se observa um verdadeiro boom de abertura
de museus no país (BRASIL, 2011b), movimento que acompanha uma tendência
mundial de proliferação desses espaços, muitos dos quais dedicados à preservação de
memórias singulares, focalizando experiências históricas específicas, instituições,
indivíduos e, sobretudo, determinados grupos sociais, éticos ou culturais. Vale lembrar
que essa tendência à fragmentação ou individuação veio se delineando na contramão
dos museus com pretensões universalizantes, associados à memória/cultura nacional, e
em resposta o fenômeno de aceleração do processo de globalização (ABREU, 1996,
HUYSSEN, 2004).

Ora, essa tendência manifesta-se claramente no cenário da RMECC. Das 18


unidades pesquisadas, 5 ou 4 se identificam como museus, uma como unidade de
conservação ambiental e uma como centro cultural. As 11 demais unidades, se
enquadram na tipologia de centros de memória ou de documentação, sendo que 8 desses
espaços se identificam como de memória. A maioria desses 11 espaços foi criada entre
os anos 2000 e 2015, quando está em curso, no plano federal, uma política para o setor
de museus e se intensifica no país o debate e a emergência de novos patrimônios, novos
atores museais, novos anseios preservacionistas.

Há uma legitimidade indiscutível na proliferação desses espaços na


Universidade. Não apenas porque foram responsáveis por salvaguardar o patrimônio
científico que de outra forma poderia ter se perdido, mas também porque o gesto

1949
preservacionista é expressivo de uma disposição em se firmar identidades das unidades
acadêmicas, materializadas em indicadores da memória da docência e da pesquisa.

Mas de outra parte, como ocorre em diferentes esferas da sociedade, esse


movimento tematiza um fracionamento de acervos e de histórias/memórias em
múltiplos espaços os quais, em muitos casos, perdem suas conexões com a comunidade
de origem e destino na qual estão inseridos.

Quanto à temática de que tratam, 9 dos espaços pesquisados, portanto 50%, se


identificam com o campo das ciências - exatas, da terra, biológicas e da saúde.
Sobressai também o tema da História, identificado por 5 dos espaços pesquisados.
Seguem-se 3 espaços que se enquandram na temática das Artes, Arquitetura e
Linguística e apenas 1 no tema da Educação, Esporte e Lazer.

Patrimônio Universitário
A diversidade tipológica dos acervos sob a tutela dos espaços da Rede atesta a
própria natureza universitária dos processos que dão origem a essas coleções. Distintos
campos de conhecimento estão contemplados nos acervos, formando o que se pode
chamar de patrimônio científico e cultural da UFMG.

Como testemunhos das atividades acadêmicas, algumas coleções foram


constituídas para servirem ao ensino, facilitando a transmissão de ideias. Outras são
resultados de coletas desenvolvidas por pesquisas e estudos acadêmicos. Em ambos os
casos são acervos formados por coletas sistemáticas, epistemologicamente orientadas
pelas disciplinas acadêmicas. Diferentemente, as coleções de objetos de C&T, em geral
associadas às ciências exatas, tecnologias e engenharias, se formaram
circunstancialmente (LOURENÇO, 2009). Integram também este rol os acervos doados
à Universidade, constituídos, portanto, fora dos quadros da rotina da vida universitária,
a exemplo de acervos particulares de professores e pesquisadores e coleções de arte.

1950
De acordo com dados apurados no diagnóstico, 11 espaços pesquisados
dispõem de acervo bibliográfico/arquivístico, superando as demais tipologias de acervo.
Isso não significa necessariamente que seja este o acervo privilegiado nas ações das
unidades. Mais provável é que, talvez à exceção dos centros de documentação, sejam
acervos subsidiários da atividade fim na maioria desses espaços.

Há um número expressivo de espaços, metade dos 18 pesquisados, que comporta


acervos de C&T e de Artes Visuais, sendo também significativo o número de unidades
da Rede que reconhecem seus acervos como de História e de Imagem e Som, 8 e 7
respectivamente. São tipologias de acervos que se encontram disseminadas por mais
espaços, o que é compreensível, considerando, por exemplo, que grande parte dessas
instituições surgiram justamente para preservar objetos em desuso de C&T, os quais
constituem, em última instância, referências da história da produção e transmissão de
conhecimento na Universidade.

De outra parte, as categorias de coleções de Arqueologia e Antropologia e


Etnografia, Digital e de História Natural e Ciência Natural estão concentradas em um
dois ou quatro espaços respectivamente. O que não representa que sejam coleções
numericamente menores, muito menos pouco significativas do ponto de vista científico.

Sobre as conexões entre os acervos e as atividades de pesquisa, em 8 unidades


há coleções constituídas em razão de pesquisa, 5 não têm essa informação, o que indica
haver um número expressivo de espaços que desconhecem a trajetória de seus
respectivos acervos no âmbito universitário. Em 7 espaços estão sendo desenvolvidas
pesquisas atualmente por professores, enquanto em outros 7 isso não ocorre e em 3 não
se tem essa informação.

Esses dados indicam que a pesquisa não constitui um denominador comum a


esses espaços, como era de se esperar, considerando tratar-se de unidades universitárias.
Há mesmo um desconhecimento das conexões, tanto no passado, quanto no presente,

1951
entre os acervos e os processos de produção de conhecimento. Nesse cenário, no qual
33,3% dos espaços não estão engajados em pesquisas, há um comprometimento das
potencialidades de uso do patrimônio cultural e científico da UFMG, do ponto de vista
do ensino, pesquisa e extensão.

Público
Há grande heterogeneidade na característica do público dos museus da RMECC.
Há cinco instituições que declararam não realizar contagem de público, aspecto
sintomático quanto à sua extroversão, bem como é possível identificar quatro que abrem
somente com agendamento, devido a dificuldades relativas a recursos (seja humanos ou
financeiros) para manter abertura permanente ao público geral.

Conforme apontado por Merriman (2002), há grande heterogeneidade nos


museus e coleções universitárias, sendo possível identificar dois grandes extremos: há
museus com maior financiamento, mais vertidos para o público externo (como o
Ashmolean Museum), e outros formados por coleções de menor apelo ao público
externo e com propósitos de uso em atividades de ensino (como as coleções de
laboratórios de pesquisa).

Também na UFMG a caracterização de Merriman (2002) tem valor heurístico


para se pensar na relação do público com os espaços da RMECC. Neste caso, nota-se
que as instituições que dispõem de mais recursos para funcionamento, e que possuem
coleções/espaços com maior caráter de extroversão e menos especificamente voltados
para atividades de ensino e pesquisa, recebem mais público: Espaço do Conhecimento
UFMG, que outrora funcionou em parceria com uma importante empresa de
telecomunicações, localizado no Circuito Cultural da Praça de Liberdade e com
proposta expositiva interativa claramente voltada ao público geral; MHNJB, com um
espaço verde privilegiado na cidade propício a visitações e que abriga importante objeto
do patrimônio cultural mineiro, o Presépio do Pipiripau, atualmente em reforma; o

1952
MCM, com acervo sobre o corpo humano e com propostas de ações educativas voltadas
aos estudantes, especialmente os de ensino fundamental; Centro Cultural UFMG,
localizado no centro da cidade de Belo Horizonte, com atividades culturais abertas ao
público; MCPT, localizado na cidade de Tiradentes, instalado em um edifício de
importância histórica; e Estação Ecológica UFMG, uma área de preservação ambiental
que propõe atividades de educação ambiental especialmente voltadas para o público
escolar e de ensino fundamental. Outros espaços da rede, como os centros de memória e
documentação, não são tão vertidos ao público em geral, destacando-se alguns deles em
seu papel de pesquisa e recepção do público pesquisador (no momento em que a
pesquisa foi realizada, os espaços CEMEF, CEPDOC, CEMEFAR, CEMEMOR,
CRCH revelaram a existência de pesquisas científicas a partir de seus acervos).

Além das características das instituições museológicas quanto à sua vocação e


missão, que podem ser explicativas para a atração de público, também é possível dizer
que a infraestrutura pode ser empecilho para ampliação de público, conforme a literatura
(LOURENÇO et al., 2016). Nas visitas e entrevistas realizadas na rede da UFMG foi
possível observar, em algumas falas, a impossibilidade de ampliação do público e da
realização de mais atividades educativas e culturais por falta de recursos. A exemplo do
que acontece nos museus da Universidade de São Paulo - USP avaliados por Lourenço
et al. (2016), a gratuidade não é barreira de acesso à maioria dos espaços da RMECC:
onze dos dezoito espaços tem visitação gratuita, dois cobram a entrada apenas de
eventos específicos, e outros seis cobram do público geral (tarifas entre R$ 4,00 e
R$10,00), mas adotam redução de tarifa ou gratuidade para públicos específicos. Há
também atividades em alguns espaços (os mais visitados) aos fins de semana (seis
unidades informaram abrir aos sábados e cinco aos domingos), embora no período
noturno não sejam ofertadas atividades, resultado parcialmente convergente ao
encontrado na pesquisa de Lourenço et al. (2016), em que se destacava a ausência de
atividades noturnas e aos domingos nos espaços pesquisados na USP.

1953
A atração de público para estas instituições requer melhoria de sua inserção
junto à comunidade extramuros. Alguns indicadores relativos a esta abertura é a
existência de associação de amigos ou fundações de apoio, bem como a realização de
atividades culturais e educativas. Quanto ao primeiro aspecto, apenas uma das
instituições afirmou ter associação de amigos.

No que diz respeito às atividades culturais e educativas, seis espaços, também os


mais visitados (MCPT, Centro Cultural UFMG, Espaço do Conhecimento UFMG,
MCM, MHNJB e Estação Ecológica UFMG) informaram ter equipe exclusivamente
voltada a tais ações. Destacam-se as atividades realizadas como visitas guiadas,
realização de seminários e palestras, aulas, eventos culturais, oficinas. O público
informado de tais atividades é, prioritariamente, estudantes universitários e professores
(10 espaços); estudantes do ensino fundamental (7 espaços) e ensino médio (8 espaços);
terceira idade (5 espaços), comunidades tradicionais, como quilombolas ou indígenas (3
espaços).

Acessibilidade e inclusão
Pode-se considerar que a acessibilidade para pessoas com deficiência nos
espaços avaliados é muito precária, quando não, inexistente. Tal situação pode ser
motivada principalmente pela falta de conhecimento ou sensibilidade de gestores e
profissionais de instituições na área cultural sobre o tema, assim como o aspecto
financeiro. A universidade reflete a situação de grande parte dos museus brasileiros.
Segundo o IBRAM (BRASIL, 2011, p. 104), 49,3% dos museus indicaram não possuir
nenhum tipo de instalação para pessoas com deficiência. Dos que informaram possuir, a
grande maioria, 78,8% possuem rampas de acesso.

Outro fator importante a considerar é a legislação sobre o tema. Fica claro que
um dos principais problemas que atingem os museus universitários também é um

1954
reflexo da condição museológica nacional. A falta de uma política pública para fomento
e, consequentemente, fiscalização da aplicação de leis e normas.

Nesse sentido, ao observar as instituições analisadas, 44% foram criadas após os


anos 2000, onde já havia iniciado o processo de implementação de uma política pública
para museus orientada para as práticas sociais, a partir da Política Nacional de Museus,
em 2003 (TOJAL, 2007). A acessibilidade nos museus também está contemplada em
outras legislações como a lei 10.098/2000 e a lei 13.146/2015, que define parâmetros
para promoção da acessibilidade na sociedade, incluindo acesso à cultura e seus
espaços.

Para analisar as condições de acessibilidade nos espaços pesquisados serão


considerados três temas abordados no questionário que, ao serem relacionados, podem
auxiliar a criação de ambientes inclusivos nos espaços da RMECC. O primeiro tema é
sobre a condição de acessibilidade dos espaços, onde foram realizadas quatro perguntas
sobre os recursos oferecidos à pessoas com deficiência. O segundo tema aborda a
política de montagem de exposições e o terceiro tema apresenta a caracterização
arquitetônica dos locais.

Segundo a pesquisa, das 18 unidades, 10 afirmam possuir algum tipo de recurso


para pessoas com dificuldade de locomoção. Entretanto este número deve ser
relativizado quando observa-se as reais condições desses serviços. Quase sempre estão
relacionados ao simples cumprimento da norma técnica, sem preocupação com uma
atitude realmente inclusiva. São ações que visam o espaço físico, como instalação de
rampas ou piso tátil, e não se preocupam com o acesso ao conteúdo exposto, utilizando
novas possibilidades por meio de estímulos sensoriais e formas de leitura de
informações.

Sobre os recursos oferecidos para pessoas com deficiência visual e auditiva,


apenas três espaços dizem possuir serviços para este público específico. O que

1955
representa apenas 16% das instituições. Mesmo assim, dos seis serviços listados, as três
instituições alegam possuir somente metade. Apenas uma instituição possui tradutor em
Linguagem Brasileira de Sinais - LIBRAS, assim como apenas uma possui sinalização
em Braille.

Ao cruzar estas informações com outros dados pode-se perceber que o problema
da acessibilidade não é algo pontual. Diversos elementos irão corroborar para o
desenvolvimento do atual quadro de exclusão nos espaços.

O segundo tema aborda as exposições. Percebe-se uma ênfase nas exposições de


longa duração. 83% dos espaços realizam este tipo de atividade, sendo que deste total,
53% não têm qualquer previsão de renovação. 12 instituições indicaram que realizam
exposições temporárias embora, em 2015, tenha havido apenas 3 montagens deste tipo
de exposição.

Este quadro pode indicar a falta de investimentos na organização das exposições,


seja para atualizar as de longa duração ou desenvolver as temporárias. Assim as
exposições montadas sobretudo na época de criação dos centros, se mantém inalteradas
e com os mesmos problemas de acessibilidade. Sem possibilidade de renovação e de
criação de novos projetos, que incluam possibilidades de acesso para todos, estes
espaços ficam estagnados acentuando suas características de exclusão para pessoas com
deficiência.

O terceiro tema a ser analisado apresenta dados sobre a caracterização física dos
locais onde estão instalados as instituições. Um elemento importante é que a maioria
informou que ocupa imóvel próprio, 73%. O que significa que estes locais não estariam
a mercê de mudanças políticas ou financeiras, assim como possuem autonomia sobre
estes espaços, podendo executar obras e intervenções arquitetônicas visando adaptações
voltadas para a acessibilidade sem depender de aprovações de terceiros. Mas outro dado
pode explicar a dificuldade para que isso seja alcançado.

1956
Apenas 22% dos locais apontaram que foram criados para função museológica.
Os outros 78% estão em locais alternativos utilizados para outros fins. Este fator
apresenta-se como um complicador pois a adaptação desses locais para exercer uma
função museológica, entre elas, o atendimento ao público, pode ser um entrave
financeiro para estas instituições, dependendo da arquitetura desses ambientes e de suas
localizações.

De modo geral observa-se a necessidade de complementação e qualificação dos


dados, seja através de pesquisa de observação ou de grupo focal. O cruzamento com
outros estudos realizados sobre a acessibilidade destes espaços48 também pode
contribuir para a construção de um quadro mais aprofundado desta realidade.

Como resultado percebe-se que a falta de uma política inclusiva nos espaços
culturais da universidade em parte responde pelo quadro geral de inacessibilidade das
instituições. Com poucos recursos orçamentários e sem uma política que pudesse
oferecer alternativas de financiamento, os gestores pouco podem fazer para melhorar as
condições de acessibilidade nos espaços da RMECC. A implementação de uma política
de inclusão teria que estar alinhada com a própria universidade, pois questões como
rotas acessíveis e sinalização, por exemplo, extrapolam a autonomia dos centros de
memória localizados no interior do campus.

Considerações Finais
Os aspectos analisados do diagnóstico da Rede de Museus e Espaços de Ciência
e Cultura da UFMG indicam que os problemas e potencialidades apresentados
convergem com outros já discutidos na literatura sobre as especificidades e limitações
48
GUIMARÃES, Marcelo Pinto; SABINO, Paulo R. Análise de Condições Operacionais da
Acessibilidade e Design Universal nos Museus e Centros de Memória da UFMG: Estudos de Caso no
Campus da Pampulha. 2015. PAPIA/PROGRAD; Laboratório ADAPTSE, Escola de Arquitetura, UFMG.
(não publicada).

1957
dos museus e centros de memória universitários. Muitos impasses que esses espaços
experimentam decorrem de uma equação ainda não resolvida apropriadamente e que
exige equilibrar as funções museológicas de salvaguarda e comunicação ao princípio
que rege a vida universitária da indissociabilidade do ensino, pesquisa e extensão.

Alguns espaços parecem destinar-se a poucos, mantendo-se como extensão de


laboratórios ou centros de pesquisa. Outros, mais bem aquinhoados com recursos, são
espaços com maior público: dispõem de acervos mais atraentes e mais bem
apresentados, além de oferecerem variada programação cultural e educativa. Alguns
desafios enfrentados por esses espaços são comuns aos museus e outras instituições de
cultura no Brasil, a exemplo dos problemas relativos à acessibilidade.

A assimetria e heterogeneidade dos espaços, à semelhança dos estudos de


Merriman (2002), apontam para a necessidade de uma gestão do patrimônio
universitário, à qual deverá se associar uma agenda comum entre os diferentes espaços
museais e de memória da UFMG. Em particular, cabe à Rede, como fórum legítimo, o
papel de articular e contribuir na disseminação desse debate, assegurando conexões
interativas e produtivas entre os diferentes atores interessados e envolvidos na questão.
Impõe-se modelar um horizonte de valores, práticas e objetivos comuns, capazes de
consolidar uma identidade compartilhada pelos distintos espaços da Rede. O projeto
Avaliação Museológica: Coleções e Museus da UFMG pode ser compreendido como
um passo nessa direção. Mais que somar projetos e atividades, a gestão em rede desses
espaços alcançou um patamar, a partir do qual se torna indispensável produzir subsídios
informacionais e analíticos para a formulação de ações e programas estratégicos, assim
como para a construção de uma política objetiva de gestão do patrimônio cultural e
científico da Universidade.

1958
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1959
TOJAL, Amanda Fonseca. Políticas públicas culturais de inclusão de públicos especiais
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UFMG – UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS. Rede de museus e


espaços de ciências. A rede. 2015. Disponível em:
<https://www.ufmg.br/rededemuseus/index. php/a-rede>. Acesso em set. 2015.

1960
CENTRO DE ENSINO DE CIÊNCIAS DO NORDESTE E SUAS COLEÇÕES DE
ENSINO: ANÁLISE DA CULTURA MATERIAL DO COLÉGIO DE APLICAÇÃO
DO RECIFE (2017).

Nathaly Pereira*
Emanuela Sousa Ribeiro**

Resumo: O Centro de Ensino de Ciências do Nordeste, fundado no ano de 1965, atuou de


forma a fortalecer o ensino das ciências no Nordeste e no Brasil, já que este iniciou suas
atividades como experimento-piloto para os demais Centros que foram criados a posteriori. O
CECINE e os demais Centros do país surgem, então, a partir de uma preocupação do MEC com
o ensino das ciências. Nesse contexto, o Centro trabalhou na formação de professores e na
produção de material de didático, entre outras atividades que desempenhou. Pretendemos
analisar o período de 1965-1980, momento de grande atuação do Centro. O CECINE, visando
uma metodologia moderna, que previa o ensino através da experimentação por parte dos alunos,
produziu uma gama de materiais didáticos. Dessa forma, pretendemos compreender os
mecanismos de distribuição do seu material de didático para as Escolas em Pernambuco.
Através de pesquisas realizadas no Colégio de Aplicação do Recife vinculado à Universidade
Federal de Pernambuco, identificamos coleções de ensino doadas pelo CECINE e, nesse
sentindo, pretendemos analisar a cultura material deste colégio, comprovando a distribuição de
material de didático produzido pelo Centro.
Palavras-chave: Colégio de Aplicação; coleções de ensino; CECINE.

Abstract: The Center for the Teaching of Sciences of the Northeast, founded in 1965, has
worked to strengthen the teaching of science on Northeast and Brazil, since it began its activities
as a pilot experiment for the other Centers that were created later. CECINE and the other centers
of the country emerge, then, under the condition of a concern of the MEC with the teaching of
the sciences. In this context, the Center worked in the training of teachers and production of
didactic material, among other activities that they perform. The intention of this article is to
analyze the period of 1965-1980, moment of great performance of the Center. The CECINE,
aiming a modern methodology, which would provide teaching through experience by the
students, produced a range of didactic materials. Said so, we intend to understand the
distribution mechanisms of their didactic material for the Schools in Pernambuco. Through
research conducted at the School of Application of Recife linked to the Federal University of
Pernambuco, we identified collections of teaching donated by CECINE and, in this way, we
intend to analyze the material culture of this college, proving the distribution of didactic
material produced by the Center.
Key-words : School of Application; teaching collections; CECINE.

1961
A origem do CECINE remonta ao período da Guerra Fria. Após o lançamento
do Sputnik pela URSS, que lançou a primeira nave tripulada por um homem, Yuri
Gagarin. Diante deste fato, a comunidade acadêmica dos Estados Unidos da América
decidiu reformular a didática do ensino das ciências, a fim de não ficar para trás na
corrida espacial.

Nesse contexto o “Massassuchets Institute of Tecnology (MIT) e a Universidade


de Havard criaram livros cuja metodologia, no lugar de emitir os conceitos, provocava a
reflexão para chegar a eles” (SILVA, 2012, p.118). Produziram quatros volumes sobre
Ciências, Biologia, Matemática e Química, sendo eles: “Biological Sciences Curriculum
Study (BSCS), Chemical Bond Aproach (CBA), Pyhsical Science Study Committee
(PSSC) e School Mathematics Study Group (SMSG)” (SILVA, 2015, p. 118).

No Brasil neste período se iniciou uma preocupação por parte do MEC


(Ministério da Educação e Cultura) com o ensino das ciências no país, faltava no Estado
professores capacitados. Segundo Abrantes (2008, p. 177 apud SILVA, 2015, p. 119):
(60%) dos professores do ensino Médio, não detinham diploma universitário, (20%)
eram normalistas e os outros (20%) improvisavam, segundo dados de 1965 do Instituto
Brasileiro de Educação, Ciências e Cultura (IBECC) e a Fundação Brasileira de Ensino
de Ciências (FUNBEC).

Diante deste quadro, que o MEC percebia a deficiência no ensino das ciências
no Brasil, ele vai investir na criação de Centros de Ensino que tinham por objetivo
capacitação dos professores do ensino fundamental e médio tendo como foco principal
os professores da rede pública.

O CECINE é o primeiro dos seis centros de ensino, ele foi a “experiência-


piloto” (SILVA, 2015, p. 120) segundo matéria publicada no Diário de Pernambuco de
25 de Julho de 1965, a escolha de Pernambuco para sediar o primeiro Centro foi
influenciada devido aos problemas gerais e específicos da região, outros fatores que

1962
contribuíram para a instalação em Recife foram à existência da SUDENE
(Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste) e o papel fundamental do
professor Marcionílio de Barros Lins, então diretor do Instituto de Química da UFPE
(Diário de Pernambuco, 1965) .

A escolha de Pernambuco se deu pelo fato de abranger um território


maior que os outros centros, com carências agudas, havia também o
empenho do professor Marcionílio de Barros Lins, então diretor do
Instituto de Química da UFPE, que mandou professores recém-
graduados fazerem especialização no IBECC, em São Paulo, para
implantar os novos métodos americanos, adaptando-os à realidade
local (SILVA, 2012, p. 120).

Cabe salientar, as condições particulares que envolveram a criação do CECINE,


este contou com o apoio da Universidade Federal de Pernambuco que forneceu o
espaço, laboratórios e parte da equipe, o MEC forneceu fundos para bolsas e despesas, a
SUDENE deu suporte financeiro para a contratação de parte da equipe e bolsas para
professores e a Fundação Ford também forneceu os laboratórios. Atualmente, o
CECINE (Coordenadoria do Ensino de Ciências do Nordeste), é um órgão suplementar
da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), ligado à Pró-Reitoria de Extensão.

De acordo com Borges, Dias e Silva (2012, p. 31) o objetivo do CECINE era
“promover a melhoria da qualificação de professores do Ensino Básico, sobretudo da
rede pública”, nesse âmbito o Centro atou de forma a capacitar os professores de rede
pública e privada do Nordeste, ainda em 1965 foram fundados os núcleos do Centro nos
outros sete estados nordestinos.

O CECINE contava com cinco seções: Física, Química, Matemática, Biologia e


Ciências, seu corpo docente era formado de recém bacharéis da UFPE destas áreas. O

1963
Centro contava com seminários, capacitação, feiras de ciências (que eram regionais),
estágios, cursos de verão e de férias.

Nesse âmbito o CECINE vai investir em uma metodologia moderna, a fim de


superar as carências do ensino das ciências no Nordeste, assim inicialmente ele trabalha
com a versão americana, posteriormente o Centro vai adaptar o método a realidade
local, assim ele passa a produzir seu material didático.

Junto com a produção dos livros, o CECINE passou a produzir Kits que tinham
por objetivo a experimentação por parte dos alunos. Silva (2012, p. 126) “os kits eram
testados nos laboratórios, pois, como informaram Arnaldo Rabelo de Castro e Adalberto
Francisco, as aulas eram preparadas em função da reação e das expectativas dos
alunos/professores”.

Em matéria do Diário de Pernambuco de 1965 nos trás dados sobre a produção


dos kits produzidos pelo Centro, segundo a matéria que trata do processo de fabricação
e fornecimento de equipamentos, teriam sido produzidos 300 conjuntos, de Física do
Physical Sciense Study Commitee, além de unidades de Biologia, Ciências, Matemática
e Química. Após essa fase inicial, o material passou a ser produzido em regime de
empreitada, o que tornava sua produção mais barata. Ainda segundo este jornal, o
propósito do Centro era a fabricação de material científico a ser fornecido às escolas do
Nordeste pelo seu preço de custo, elem de suprir suas necessidades.

Os materiais eram produzidos em oficinas na Universidade de Recife, onde


foram produzidos 300 conjuntos completos para a realização da parte experimental do
curso de PSSC, para o ensino de Física básica além de materiais de vidro (tubos de
ensaio, lentes, modelos, etc). (Diário de Pernambuco, 1965).

Como demonstrado o CECINE atou de forma a capacitar os professores, e


capacitação passava pela experimentação, assim o Centro produzia e fornecia aos
professores participantes dos cursos oferecidos por ele, um material didático mínimo

1964
com livros e kits para a experimentação nas Escolas, outra forma de aquisição do
material do Centro, era através da participação nas Feiras de Ciências, as escolas
vencedoras ganhavam kits.

Centro de Ensino de Ciências do Nordeste e a Cultura Material do Colégio de


Aplicação.

Os Colégios de Aplicação que se instalaram no Brasil são baseados no projeto


do norte-americano John Dewey (educador) que criou uma nova concepção de escola,
que seria a Escola Experimental, vinculada a Universidade de Chicago. De acordo com
Silva (2014, p. 3)

A escola foi criada para ser um laboratório de ensino onde teorias


sobre educação poderiam ser postas em prática, testadas e
cientificamente avaliadas, objetivando encontrar meios eficazes de
aprender e ensinar, tendo o aluno como centro da educação e sujeito
ativo no processo de aprendizagem.

Os Colégios de Aplicação do país surgem dentro da perspectiva da Escola


Experimental proposta por Dewey. Conforme Silva (2014), os Colégios de Aplicação
vinculados as Universidades de Filosofia Federais vão ser instituídas após o Decreto-Lei
nº 9.053 de Março de 1946, onde estas “ficavam obrigadas a manter um ginásio de
Aplicação à prática docente dos alunos matriculados no curso de didática” (SILVA,
2014, p. 4). Neste contexto, o Colégio de Aplicação do Recife vai ser inaugurado em
Março de 1948 para funcionar como laboratório experimental da Faculdade de
Filosofia.

Em visita realizada neste colégio, identificamos um conjunto de coleções de


ensino que são provenientes do CECINE, são elas: Coleção Elementar de Minerais
Formadores de Rochas, e a Coleção Elementar de Rochas, organização de Claúdio de

1965
Castro, Adalberto F. S. Filho, Jurandy Soares Moraes e Elional P. de Castro. Da
primeira coleção identificamos dois exemplares e da segunda um exemplar.

Na confecção da primeira coleção, uma coautoria entre CECINE e a FUNBEC


para a produção desta coleção. A FUNBEC, fundada em 1967, de acordo com Nardi
(2014, p.18) “destinada a industrializar os materiais produzidos e realizar cursos para
professores primários”. Ainda de acordo com este autor foram desenvolvidos no Brasil
15 projetos para o ensino médio e fundamental, entre adaptações aos modelos
internacionais e os modelos nacionais foram produzidos cerca de 25.000 mil kits
experimentais (NARDI, 2014, p. 18).

E interessante notar a parceria entre estas duas entidades na confecção e


produção de kits destinados ao ensino prático. Instituições que paralelamente atuaram
de formar a produzir e confeccionar matérias de ensino. Segundo Nardi (2014, p. 18),

a produção científica no Brasil na década de 1950 a 1980 revela


dois momentos distintos no movimento de renovação curricular
do ensino das ciências: um primeiro momento, que
correspondeu à tradução e adaptação de materiais didáticos
produzidos nos Estados Unidos e Inglaterra na década de 50; e
um segundo momento, que se caracterizou pela produção de
materiais didáticos elaborados para atender às necessidades das
escolas brasileiras.

Como já mencionado anteriormente segundo dados do Diário de Pernambuco


existia mais de um meio de aquisição do material didático produzido pelo Centro: a
participação nos cursos de capacitação, nas feiras (como premiação aos vencedores) e
ainda a compra diretamente do Centro e a distribuição realizado por ele.

1966
A participação nas Feiras de Ciências do CECINE teve uma grande adesão por
parte dos colégios de Pernambuco. Na primeira feira realizada em 1965, 35 colégios
participaram, entre eles o Colégio de Aplicação.

Se o Colégio de Aplicação se caracteriza desde a sua criação como um espaço


destinado a experimentação e da adoção de novas metodologias, e era o espaço
experimental da UFPE, e no seu período de atuação o CECINE imprimiu no Estado
uma nova metodologia ao ensino das ciências, e ambos sempre estiveram vinculados a
UFPE, e plausível que estes estivessem em contato, e que o Colégio de Aplicação tenha
obtido o material didático do Centro. As coleções podem ser fruto desse contato entre as
instituições. Embora, houvem diversos meios para aquisição do material didático.

Referências Bibliográficas

SILVA, B. C. Breve história do CECINE: como a verdade científica virou dúvida e


experimentação. In: BORGES M. R. R.; IMHOFF A. L.; BARCELLOS G. B. (Orgs).
Educação e cultura científica e tecnológica: centros e museus de ciências no Brasil.
Porto Alegre: EDIPUCRS, 2015. p. 118-132.

BORGES, R. M. R.;DIAS. A. L. M; SILVA. A. F. D. Cultura e Educação Científica


Tecnológica em Centros de Ciências no Brasil. In. BORGES M. R. R.; IMHOFF A.
L.; BARCELLOS G. B. (Orgs). Educação e cultura científica e tecnológica: centros e
museus de ciências no Brasil. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2015. p. 23-40.

NARDI, R. Memórias do Ensino de Ciências no Brasil: a constituição da área


segundo pesquisadores brasileiros, origens e avanços da pós-graduação. v. 2, n. 2,
p. 13-46, 2014

SILVA, M. F. Ensino do Teatro: e seu espaço. No Colégio De Aplicação – UFPE. v.2,


n.2, p. 2-7, Palmas/TO, jan/jun. 2014.
Diário de Pernambuco, disponível em: <http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital>
último acesso em: 3 de Setembro de 2017.

1967
Interseções entre
museologia e arte
contemporânea

1968
A RELAÇÃO ENTRE O ARTISTA E O MUSEU: DOCUMENTAÇÃO
MUSEOLÓGICA DE PERFORMANCES NO MUSEU DE ARTE DO RIO
GRANDE DO SUL

Juliana Pereira Sales Caetano*1


Emerson Dionisio Gomes de Oliveira*2
*Universidade de Brasília (UnB)

Resumo: O presente estudo tem como objetivo discorrer sobre a relação do artista e do museu
na construção da documentação museológica de performances de arte contemporânea.
Analisando como esse vínculo tem impacto sobre os processos de aquisição, catalogação,
pesquisa e reexibição destas obras. Para tanto, buscou-se o acervo de performances do Museu de
Arte do Rio Grande do Sul (MARGS). A metodologia adotada inclui pesquisa documental, bem
como entrevistas com a instituição e os artistas destas obras.
Palavras-chave: Performance; Arte Contemporânea; Documentação Museológica; Preservação;
Museu de Arte do Rio Grande do Sul.

Abstract: The present study aims to discuss the relationship between the artist and the museum
in the elaboration of the museological documentation of contemporary art performances.
Analyzing how this bond has an impact on the processes of acquisition, cataloging, research and
reexhibition of these works. For that, the collection of performances of the Rio Grande do Sul
Museum of Art (MARGS) was chosen. The methodology adopted includes documental
research, as well as interviews with the institution and artists of these works.
Key-words: Performance; Contemporary Art; Museological Documentation; Preservation; Rio
Grande do Sul Museum of Art.

1
Museóloga e mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade de
Brasília. E-mail de contato: julianasalesmuseologia@gmail.com. Este texto é fruto de uma monografia do
curso de graduação em Museologia da Universidade de Brasília, intitulada “Documentação museológica
de performances de arte contemporânea: Museu de Arte do Rio Grande do Sul (1985-2016)” e pode ser
consultada no site: http://bdm.unb.br/.
2
Mestre em História da Arte e da Cultura pela Universidade Estadual de Campinas (1998) e doutor em
História Cultural pela Universidade de Brasília (2009). É professor de História da Arte no Departamento
de Artes Visuais e pesquisador nos Programas de Pós-Graduação em Arte (IdA/UnB) e de Ciência da
Informação (FCI/UnB), na Universidade de Brasília. E-mail para contato: dionisio@unb.br.

1969
Nas últimas décadas, a assimilação de performances em arte, como acervo
museológico de museus dedicados às artes visuais, se tornou cada vez mais frequente.
No ambiente brasileiro, destaca-se o Museu de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS),
pois, desde que a performance começou a surgir enquanto categoria artística no Brasil, a
instituição tem sido palco não só de diversas exibições, como também, acolheu uma
quantidade significativa de obras nos últimos anos.
Até o ano de 2016, o MARGS possuía em seu acervo oito performances e uma
videoperformance. Seis delas foram doadas pela artista Didonet Thomaz: “1982”
(1982), “Arte AE – aérea balões” (1983), “Abrolho” (1985), “Historieta de Truz”
(1987), “Ronco da Solidão” (1990), “Doninhas da Solidão” (2011). As outras duas
performances são de Hamilton Viana Galvão “Sem título”, (1985) e “Tacet” (2008-
2012) de Guilherme Dable. Além disso, em 2015, adquiriu também uma
videoperformance doada pela artista Élle de Bernadini “Lágrimas de Artista”.
A motivação inicial de nossa pesquisa era descobrir como o MARGS havia
catalogado essas performances, quais documentos o museu possuía sobre essas obras, e
se essa documentação permitia uma possível execução de reperformances. Para isso,
realizamos uma visita à instituição onde tivemos acesso à documentação museológica
dessa coleção, que se encontrava parte no Núcleo de Documentação e Pesquisa e parte
no Núcleo de Acervo. Contudo, após esse acesso, obtivemos o depoimento de todos os
artistas dessas obras, uma vez que as informações presentes na instituição se mostraram
insuficientes3.
Essa falta de maiores dados por parte da instituição nos alertou, ao mesmo
tempo, para a importância e a necessidade de uma maior aproximação entre o artista e o
museu na elaboração da documentação museológica de performances de arte
contemporânea. Fazendo com que nossa pesquisa avançasse para além dos objetivos

3
Com exceção de Hamilton Viana Galvão, pois não há muitas informações sobre este artista em bancos
digitais e nem mesmo o próprio Museu de Arte do Rio Grande do Sul possuía seu contato.

1970
iniciais citados, e buscasse mais informações sobre os próprios processos de aquisição,
documentação, pesquisa e reexibição deste acervo.
Inicialmente, percebemos que dois fatores foram predominantes para que
ocorressem essas aquisições: O primeiro, seria o fato de que essas performances (com
exceção de algumas obras de Didonet Thomaz) vieram a ser executadas dentro do
museu antes de sua aquisição. Sendo esse fator elencado por todos os artistas
entrevistados como crucial para houvesse a doação de suas obras à instituição. O
segundo seria o pedido pessoal feito pelo diretor à época, Gaudêncio Fidelis, de doação
dessas obras para a instituição.
Em 2011, este mesmo ex-diretor encabeçou durante sua gestão um projeto para
que o MARGS passasse a colecionar performances de arte contemporânea, bem como
objetos e peças relacionadas a essa modalidade artística. Como é possível compreender
pela própria instituição4, a ideia era seguir uma tendência internacional dos grandes
museus, como por exemplo, o Museu de Arte Moderna de Nova York (MOMA), que
possui hoje um acervo considerável de performances. Nesse sentido, em 2012, ano
seguinte a esse projeto, há a aquisição de seis performances da artista Didonet Thomaz
como acervo museológico.
Entretanto, nem todas as performances da instituição tiveram suas aquisições
restritas a esse enquadramento. É caso da obra “Sem título” do artista Hamilton Viana
Galvão. De acordo com o Núcleo de Acervo, apesar de constar tanto nos catálogos
como na documentação do museu, que o ano da aquisição dessa performance se deu em
1985, ela foi reconhecida como parte do acervo museológico pela instituição somente
recentemente. Essa complexidade pode ser explicada quando entendemos a história que
envolveu esta performance.

4
Disponível em:
<https://www.facebook.com/pg/margsmuseu/photos/?tab=album&album_id=604815902868411.>
Acessado em 20 de novembro de 2016.

1971
Em 1985 Hamilton Galvão apresentou uma performance, dentro dos âmbitos do
MARGS, onde ele nu, simulava beber tinta, a qual se derramava sobre seu corpo e se
acumulava no chão, onde havia sido estendido um retângulo de tela de pintura. Ao final
da performance, a tela de tinta acrílico acabou por ficar sob a guarda do museu (Figura
1).

Figura 1 - Hamilton Viana Galvão, “Sem título” (1985).


Fotografia cedida pelo Museu de Arte do Rio Grande do Sul. Arquivo Pessoal.

Até onde sabemos, não houve formalmente um acordo realizado com o artista de
que esta obra foi doada ao MARGS. De acordo com o Núcleo de Acervo, o museu
somente se deu conta de que esta tela dizia respeito a uma performance, quando o então
ex-diretor do museu Gaudêncio Fidelis, que estava presente no momento da ação,
reconheceu a tela anos depois e decidiu por fim que esta faria parte da coleção.
Durante a visita ao museu, encontramos no setor de Pesquisa e Documentação,
junto a outros registros históricos do artista, um pôster com a imagem que mais se
assemelharia a esta performance (Figura 2). No entanto, esta imagem não diz respeito à

1972
performance que ocorreu no próprio MARGS, mas de outras vezes em que o artista
apresentou a obra.

Figura 2 - Hamilton Viana Galvão.


Pôster presente Núcleo de Documentação e Pesquisa do MARGS. Arquivo pessoal.

É válido ressaltar que apesar da instituição possuir alguns registros de suas


performances bem como dados sobre seus artistas, grande parte dessas informações não
integrava o banco de dados nem a documentação dessas obras. No caso das
performances de Didonet Thomaz, por exemplo, muitas dos documentos presentes no
Núcleo de Pesquisa e Documentação como cartas, fotografias, artigos e entrevistas não
constavam na relação presente nas fichas catalográficas das obras.
Percebendo-se assim, a necessidade de uma proximidade maior entre o Núcleo
de Pesquisa e Documentação e o Núcleo de Acervo, uma vez que a falta de informações
pode prejudicar diretamente as atividades de preservação (coleta, aquisição,
acondicionamento, conservação), comunicação (exposições, publicações, projetos

1973
educativos e culturais) e pesquisa (todas as atividades do museu fundamentadas
cientificamente) (CÂNDIDO, 2006):

A falta de documentação do acervo acaba limitando e prejudicando


todo o trabalho do (e no) museu, pois inutiliza os objetos, uma vez que
não permite o acesso às informações contidas nele, e, por conseguinte,
reduz sua função social e cultural dentro de uma comunidade.
(PADILHA, 2014, p.39)

Para gerenciar a documentação museológica de seu acervo, o MARGS utiliza


atualmente como banco de dados o software Donato, sendo então suas fichas de
catalográficas geradas por esse programa. No entanto, tendo em vista pesquisa
realizada pela museóloga Anna Paula da Silva (2013), é possível percebermos que
apesar de o Donato cumprir com as demandas necessárias para uma catalogação de
acervos tangíveis, quando utilizado para atender às práticas de arte contemporânea, o
banco de dados apresenta ainda dificuldades em relação a algumas tipologias dessa
produção. Sendo, portanto primordial que as fichas catalográficas possam moldar-se
diante das necessidades informacionais dessas obras, acrescentando-se assim campos
que levem em consideração a efemeridade do acervo.
Ademais, nenhuma dessas obras veio a ser reconhecida como “performance”
nessas fichas, catálogos e outras documentações em que tivemos acesso no museu. A
obra de Hamilton Galvão, por exemplo, se encontrava como “Acrílica sobre tela de
algodão”. A esse respeito Cristina Freire (1999, p. 42) deixa claro que não é mais
possível nem correto utilizar categorias conceituais da arte moderna, e até mesmo, da
arte antiga, tais como pintura, escultura, desenho e gravura para se referir à arte
contemporânea. Uma vez que as obras atuais não dizem mais respeito, como outrora, ao
trabalho artesanal do artista, mas a elaboração material de uma ideia. Observando que
essa ampliação semântica sugere ainda a necessidade de uma evolução sobre novas
formas de se documentar, catalogar, preservar e expor.

1974
Essa tentativa de se aplicar métodos convencionais para acervos de arte
contemporânea também é refletida na forma como as performances vieram a ser
adquiridas. Essas obras foram reconhecidas e inseridas no acervo museológico
prioritariamente por seus objetos. E sua preservação mais preocupada, como é possível
notar pelas fichas catalográficas da instituição, com a obra enquanto suporte material do
que pela sua poética. Dessa maneira, pouquíssimos documentos sobre esse acervo
vieram a ser adquiridos e esses poucos não permitem mais detalhes de como essas obras
foram desenvolvidas.
Na verdade, em diálogo com os artistas percebemos que grande parte da
documentação dessas performances está em suas posses. No entanto, não são por eles
considerados como relevantes para compor uma documentação museológica. Caso, por
exemplo, da performance “Tacet” (2008-2012).

Figura 3 - Performance “Tacet” na abertura da exposição “Alien: Manifestações do Disforme”.


Fotografia retirada da dissertação de mestrado “Tempo como matéria, tarefa como possibilidade: Música
improvisada e imagens-despojo” (2012) de Guilherme Dable.

1975
Essa obra, exibida no MARGS em 2012 durante a exposição “Alien:
Manifestações do disforme” foi realizada pelo artista Guilherme Dable e um grupo
formado por três músicos. Durante a ação, esses artistas se utilizam de diversos objetos
como baldes, latões de lixo, garrafas PET, panelas, papéis, entre outros, tendo como fim
produzir músicas improvisadas com esse material. A performance, ao mesmo tempo,
gera um conjunto de desenhos considerados pelo artista como “imagem-despojo”. Essas
formas gráficas se originaram das “marcas” deixadas pelos instrumentos por um papel
sobreposto no carbono.
Esses “desenhos” e sons5 produzidos por esses artistas foram os únicos
elementos da obra que vieram a ser adquirido pelo MARGS. No entanto, questionamos
se os objetos utilizados durante a performance não deveriam também fazer parte dessa
documentação museológica, visto que são considerados como “instrumentos musicais”
e originam tanto o som quanto os desenhos, tido pelo artista como elementos essenciais
para a poética dessa performance (Figura 3). De acordo com Dable, apesar dos
instrumentos se alternarem a cada apresentação, seria possível montar uma relação do
que veio a ser utilizado em cada performance, e inserir esses dados como parte da
documentação.
Dessa maneira, tendo em mente que a documentação museológica pode ser
entendida como “registro de toda a informação referente ao acervo museológico”
(PADILHA, 2014, p. 35), e que, sobretudo no caso de obras de arte contemporânea
“todas as fontes primárias e secundárias sobre os artistas são fontes de documentação
importantes para sua preservação” (SEHN, 2016, p. 105), qualquer registro, documento,
fotografia, vídeo, objeto que tenha feito parte destas performances ou sobre seus artista
pode ser entendido fonte de informação para esses acervos.

5
Até o momento da nossa visita, realizada em setembro de 2016, o artista ainda não havia cedido à
instituição o áudio contendo o som realizado durante a performance.

1976
Nesse seguimento, Sehn aborda que produções acadêmicas dos artistas podem
ser extraordinárias fontes de informação, tendo em vista que são mais objetivas e podem
abordar determinados aspectos que por vezes passam despercebidos mesmo em
entrevistas. De acordo com a autora, dissertações, teses e memoriais podem, por
exemplo, mostrar quais os referenciais teóricos utilizados, significados e critérios de
seleção, mudanças durante a produção, além de projetos que permitem observar o
processo de construção de algumas obras por meio de desenhos e croquis. Ressaltando
ainda a importância desses escritos para os conservadores e restauradores uma vez que a
tese de um artista pode ainda melhor elucidar quanto à preservação das obras. Assim:

Consultas às dissertações, teses e memoriais são registros documentais


de alta relevância e devem ser uma das primeiras fontes a serem
consultadas por pesquisadores, conservadores-restauradores,
museólogos, entre outros, mesmo que já tenham sido publicadas, ou
seja, que já tenham resultado em livros. No caso do conservador-
restaurador, pode ser que a tese de um artista possa melhor elucidá-lo
quanto à preservação do que a mesma tese publicada posteriormente
em vista de omissões e alterações concernentes a uma publicação. O
contrário também pode acontecer, considerando que o artista pode
mudar seu posicionamento, acrescentando novos trabalhos e conceitos
mais explícitos. (SEHN, 2016, p. 115)

Nesse sentido, para a autora, tais publicações que às vezes “nem contam nos
arquivos de museus como fontes primárias” (2016, p. 116) são essenciais no processo
de preservação de obras efêmeras, não podendo assim ser vistas como as últimas fontes
de informação da obra.
No caso do acervo de performances do MARGS, pode-se dizer que a instituição
é de certa maneira afortunada. Dentre os artistas que conseguimos contato, todos são
também pesquisadores. Todos escreveram artigos e até mesmo dissertações sobre suas
próprias obras como fonte de pesquisa científica. Entretanto, apesar de sabermos que o
museu tem conhecimento de algumas delas, só tivemos ciência e acesso a esses estudos

1977
por parte dos próprios artistas, que nos cederam suas publicações por acreditarem que
podiam auxiliar na compreensão de suas obras.
Guilherme Dable, por exemplo, baseou sua dissertação de mestrado em sua
performance “Tacet”. Em seu estudo intitulado “Tempo como matéria, tarefa como
possibilidade: música improvisada e imagens-despojo” (2012), o artista discorre
primeiramente sobre como surgiu à ideia de sua obra, quais foram às adaptações
realizadas a cada apresentação, os referenciais teóricos utilizados para pensar a poética
da obra, detalhes sobre materiais, projetos, locais onde a obra foi apresentada e até
mesmo sobre a reação do público durante estas ações.
Não é difícil perceber o quanto esta pesquisa é importante para essa obra, uma
vez que até mesmo o próprio museu utilizou como referência o estudo em seu catálogo
Alien: Manifestações do Disforme para explicar mais detalhes sobre a performance.
Entretanto, é valido ressaltar que apesar de catálogos serem também primordiais fontes
de informação, é importante que a instituição nunca pense que uma documentação anula
a importância de outra, pois ambas podem conter seus próprios discursos e possibilitar
diversas leituras.

Figura 4 - Fotografia da performance ARTE AE – área balões (1983)


Fotografia presente no Núcleo de Documentação e Pesquisa. Arquivo Pessoal

1978
Outra publicação essencial é de Didonet Thomaz “Dizer e mostrar” = “designar
e significar”: intuições penetrantes em AE – área balões”. Esse artigo se dedica a
refletir e detalhar a performance “AE – área balões” realizada pela artista em 1983 nas
torres do próprio MARGS de onde soltou cerca de 5.000 balões (Figura 4). Durante o
texto, a autora explora como lhe surgiram algumas das ideias para o desenvolvimento de
sua performance, seus referenciais teóricos utilizados para pensar a obra, a reação do
público, bem como fotografias do acervo pessoal da artista sobre a ação. Expondo até
mesmo que as cores, tempo e local foram pensadas propositalmente e possuem
significados simbólicos:

A aproximação dos sentidos humanos e das chamadas cores primárias:


tato → azul, olfato → amarelo, audição → branco, paladar → verde,
visão → vermelho, apontou para o número chamado arábico, “5”, dos
continentes que correspondem a uma das divisões tradicionais da Terra.
A trajetória dos balões remeteu ao seu movimento de rotação ao redor
da linha imaginária dos pólos, de oeste para leste, originando o dia e a
noite. (THOMAZ, 2009, p. 3-4)

Na verdade, tão essencial quanto esses escritos, o depoimento oral de artistas por
meio de entrevistas é visto hoje por muitos conservadores e restauradores de arte
contemporânea como um elemento basal para a preservação de obras de arte efêmeras.
De acordo com Rita Macedo e Cristina Oliveira (2009), o artista é uma fonte primordial
de informação para a atividade de documentação de obras de arte contemporânea, na
medida em que é detentor central dos dados para a reapresentação de seus trabalhos.
Nesse tocante, Alessandra Barbuto (2015), historiadora da arte e conservadora
do National Museum of 21 Century Arts, aconselha que museus conduzam ainda uma
pré-entrevista com os artistas, especialmente no momento da aquisição da obra, por ser
comum que muitos ao longo dos anos mudem de opinião. Devendo as questões
presentes nesse diálogo ter como fim compreender e estabelecer qual é a perspectiva do

1979
artista sobre um conjunto de questões básicas que têm a ver com a natureza do trabalho,
seu status e sua articulação conceituais e materiais.
De acordo com Macedo (2007), essa aproximação entre artista e museu poderá
permitir a reexibição dessas obras no futuro sem que haja prejuízo semântico ou sem
que seja criado um novo discurso poético não pretendido e não autorizado pelo artista.
Nessa perspectiva, instituições museológicas internacionais como, por exemplo, Museu
de Arte Moderna de Nova York (MOMA), atualmente têm se valido desse diálogo com
o artista para aplicar novas formas de documentação museológica que possibilitem a
reexibição dessas performances enquanto ação. Criando, para isso até mesmo um
departamento especializado dentro da instituição.
De fato, desde o início dos anos 2000, muitos museus têm deixado de colecionar
somente os objetos das performances e passaram a adquirir também o projeto e os
direitos de reapresentação da obra. Se tornando comum nos últimos anos, o fato de
outros performers realizarem a obra, ou seja, a reexibição da performance enquanto
ação, no lugar do artista.
No Brasil, as performances da artista Laura Lima presentes no acervo do Museu
de Arte Moderna de São Paulo (MAM SP) são hoje referência quando se trata de
reperformances em museus. A obra “Quadris de homem=carne/mulher=carne” foi
primeira obra adquirida e reconhecida em um acervo museológico como “performance”
no Brasil. Posteriormente a artista também cedeu ao MAMSP ainda outras duas obras
“Bala de homem = carne / mulher = carne” (1997) e “Palhaço com buzina reta - monte
de irônicos” (2007). Sendo válido ressaltar que, apesar de toda a efemeridade presente
nessa categoria artística, essas obras continuam sendo reexibidas constantemente pela
instituição. Ainda no ano passado, essas obras fizeram parte da exposição “Útero do
Mundo” sob a curadoria de Veronica Stigger.

1980
Entretanto, no caso do MARGS, a grande maioria das performances presentes no
acervo não possui documentação suficiente para reexposição, como é o caso da obra de
Hamilton Galvão “Sem título” (1985). Uma vez que sua reexibição não poderá ocultar
que a obra se originou de uma performance, ao mesmo tempo em que não há muitos
documentos e pesquisas sobre a mesma, o que cria desafios ao setor expositivo. Já em
“Tacet” (2008-2012), caso o museu atualmente queira reexpor a obra, somente terá os
desenhos e o áudio produzido durante a performance, e não a sua ação. No caso, das
obras de Didonet, poucas de suas performances foram relatadas de modo a se
compreender seu desenvolvimento, sendo urgente, a realização de entrevista com a
artista. Na verdade, essa problemática já chegou a ser apontada pelo ex-diretor:

Outra situação exemplar é a produção artística de Didonet Thomaz


(Bento Gonçalves/ RS, 1950). O museu possui um objeto relacionado
à sua performance Arte AE – Aérea Balões, realizada em 1983 (...),
mas a instituição nunca se preocupou em reunir nenhuma
documentação a esse respeito, nem as roupas e os adereços
utilizados nela, ou ainda qualquer investigação da possibilidade de
refeitura da obra. Isso sem falar que, como diversas outras obras de
sua coleção, o museu nunca elaborou maiores considerações críticas
sobre uma performance tão significativa para sua história e para a
contribuição da performance no contexto local. Os adereços fazem
parte atualmente da coleção de performance do museu e várias outras
obras foram a ela adicionadas. O objeto e os adereços, assim como
as fotografias que documentam a performance, foram exibidos em
conjunto na exposição Cromomuseu: Pos-Pictorialismo no Contexto
Museológico em dezembro de 2012 (FIDELIS, 2014a, p. 148, grifo
nosso)

Esse relato se mostra essencial para se perceber a urgência e a importância de o


museu obter mais informações sobre seu acervo de performances. Uma vez que até
mesmo o ex-diretor admite que a instituição não possua pesquisas e documentação
suficiente para registro e muito menos para se realizar reperformances.
Desse modo, se torna necessário que instituições reflitam o que significa adquirir
uma performance no seu acervo, visto que não se trata mais de adquirir um objeto, os

1981
modos operantes não podem ser mais os mesmos. Para Sehn, é importante que o museu
estabeleça critérios diferenciados na própria decisão de aquisição de acervos de arte
contemporânea. Uma vez que diferente das obras tradicionais, em que se “gira em torno
do juízo de valor, considerando-se também a necessidade de suprir lacunas de
determinada coleção” (2012, p. 143-144), obras de arte efêmeras devem ser
questionadas sobre a sua real possibilidade de preservação e exposição.

Preservar a arte contemporânea não implica apenas em uma revisão de


metodologias e critérios de conservação/restauração, mas de uma
revisão das práticas museológicas estabelecidas quando determinadas
modalidades são adquiridas, como, por exemplo, possibilidades de
armazenamento e (re) exibição no futuro. Rever espaços físicos
museológicos, metodologias de análise e critérios implica uma revisão
do papel de todos os profissionais envolvidos com a preservação
inseridos no contexto institucional, incluindo aqueles que não fazem
parte do ecossistema museológico, como o artista e a comunidade
artística. (SEHN, 2012, p. 143)

Assim sendo, o exemplo do MARGS nos leva a compreender que o manejo da


performance assimilada pela coleção permanente do museu exige das instituições novas
estratégias de organização documental. Adaptações são necessárias à prática
museológica, pois qualquer instituição que se pretenda emancipadora desse tipo de
acervo deve planejar não só a conservação e a documentação dessas obras, mas sua
possibilidade de reexibição, não enquanto objeto, mas como reperformance.

1982
Referências bibliográficas

BARBUTO, Alessandra. Museums and their role in preserving, documenting, and


acquiring performance art. In: Performing Documentation In The Conservation Of
Contemporary Art. Lisboa, n. 4, p.7-17, 2015.

CÂNDIDO, Maria Inez. Documentação Museológica. In: Caderno de diretrizes


museológicas 1. Belo Horizonte: Secretaria de Estado de Cultura/ Superintendência de
Museus, 2006, p. 31-90.

DABLE, Guilherme. Tempo Como Matéria, Tarefa como Possibilidade: Música


Improvisada e Imagens-Despojo. 2012. Dissertação (Mestrado) - Instituto de Artes da
UFRGS, Porto Alegre, 2012.

FREIRE, Cristina. Poéticas do processo: arte conceitual no museu. São Paulo:


Iluminuras, 1999.

FIDELIS, Gaudêncio. A história da arte contada através de ausências: uma visão crítica
do colecionismo da obra de artistas mulheres no acervo do MARGS. In: O museu
sensível (Catálogo). Museu de Arte do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2014a.

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Alien Manifestações do Disforme (Catálogo). Museu de Arte do Rio Grande do Sul,
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processo criativo. In: @pha.Boletim, n.5, p.1-6, 2007.

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Seminário de Investigação em Museologia dos Países de Língua Portuguesa e
Espanhola. Departamento de Ciências e Técnicas do Património da Faculdade de Letras
da Universidade do Porto, 2009.

PADILHA, Renata. Documentação Museológica e Gestão de Acervos. Coleção


Estudos Museológicos, v. 2. Florianópolis: FCC, 2014.

SEHN, Magali Melleu. A preservação da arte contemporânea. In: Revista Poiésis, Rio
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1983
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contemporânea: análise do Donato como sistema de catalogação do acervo do
Museu Nacional do Conjunto Cultural da República (2011-2013). Monografia
(Graduação em Museologia) – Universidade de Brasília, Faculdade de Ciência da
Informação, Brasília, 2013.

THOMAZ, Didonet. 'Dizer e mostrar' = 'Designar e significar': intuições penetrantes.


NASCIMENTO, Décio Estevão do; QUELUZ, Marilda Lopes Pinheiro; SILVA, Nanci
Stancki. In: III Simpósio Nacional de Tecnologia e Sociedade: Desafios para a
transformação social. (Programa de Pós-Graduação em Tecnologia - PPGTE,
Universidade Tecnológica Federal do Paraná – UTFPR, Curitiba-PR, 10 a 13 de
novembro). Paraná: Curitiba, 2009. p. 1-15.

1984
“A REVOLUÇÃO SOMOS NÓS”: JOSEPH BEUYS EM PERSPECTIVA
MUSEOLÓGICA

Luciana Moniz* 6
*Universidade Federal da Bahia

Resumo: Este artigo contém alguns aspectos da pesquisa de mestrado em desenvolvimento no


PPGMuseu da Universidade Federal da Bahia, que utiliza conceitos do artista e teórico alemão
Joseph Beuys como respaldo teórico, a ser articulado com teorias museológicas, para refletir
criticamente sobre a natureza e dinâmica da museologia contemporânea e suas possibilidades
metodológicas, em especial no âmbito da prática museal. O texto destaca a metáfora tripartida
de Beuys – que envolve passado/tradição, presente/comunicação, futuro/criação – como mote
para pensar os modelos e processos de institucionalização de memória e patrimônio na
contemporaneidade, e suas relações com apreensões extracognitivas e outras percepções
subjetivas, potencialmente capazes de alargar conceitos museológicos.
Palavras-chave: Joseph Beuys; museologia contemporânea; arte.

Abstract: This article contains some aspects of the master's research, developed in the Post-
Graduation Program in Museology of the Federal University of Bahia, which uses concepts
from the German artist and theorist Joseph Beuys as theoretical support, to be articulated with
museological theories, to reflect critically on the nature and dynamics of contemporary
museology and its methodological possibilities, especially in the context of museum practice.
The text highlights Beuys' tripartite metaphor – which involves past / tradition, present /
communication, future / creation – as a motto for thinking about the models and processes of
institutionalization of memory and cultural heritage in contemporary times, and their relations
with extra-cognitive apprehensions and other subjective perceptions, potentially capable of
extending museological concepts.
Key-words: Joseph Beuys; contemporary museology; art.

6
Museóloga, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Museologia da UFBA,
lumoniz.ufba@gmail.com

1985
Neste instante, sentimos que o artista está no meio de um modelo
desatualizado de arte e cultura, e que propõe (…) a urgência de abrir
os sentidos para uma nova ordem de percepções. Ele propõe – eu diria
de maneira beuysniana – ativismo em situações de crise, em vez de
acomodar-se a modelos caducos. (JUANPERE, 2003, p. 372.
Tradução nossa.)

Sendo a museologia lócus de discussão sobre construção da memória, emissão


de discursos simbólicos, ela pode, potencialmente, espelhar esquemas narrativos
alternativos e decoloniais7, em contraponto àqueles baseados nas noções de patrimônio
universalistas e excludentes; e refletir sobre enquadramentos, silenciamentos,
esquecimentos, arquivamentos. O lugar discursivo da museologia contemporânea,
combinado à sua natureza transdisciplinar, permite outras possibilidades de construção
de discursos, de manejo dos conflitos e experimentos sobre a produção simbólica em
uma esfera coletiva outra; possibilita olhares múltiplos, leituras antropofágicas não
hegemônicas, e apropriação de teorias, como por exemplo, no campo da arte, as ideias
de Joseph Beuys.

Joseph Beuys foi um artista e teórico alemão que viveu entre 1921 e 1986.
Nasceu após a Primeira Guerra, cresceu durante a República de Weimar8 e tinha 18
anos de idade quando eclodiu a Segunda Guerra Mundial. Viveu, deste modo, o auge da
instabilidade política e social do seu país e presenciou a ascensão de Adolf Hitler. No
campo acadêmico e artístico Beuys estudou Escultura Monumental na Academia de
Artes de Düsseldorf, onde foi professor de Escultura entre 1963 e 1971; e na década de
1960 atuou no grupo Fluxus, cujas práticas tinham foco na comunicação com o público.

7
Segundo Luciana Ballestrin, "giro decolonial" é um termo cunhado por Nelson Maldonado-
Torres em 2005, que significa o movimento de resistência teórico, prático, político e epistemológico, à
lógica da modernidade/colonialidade.
8
República de Weimar é um termo historiográfico que designa um período de transição na
história alemã (1919-1933) em que o sistema de governo passou de monarquia a democracia, e que foi de
intensa instabilidade política e social, que culminou com a ascensão do Partido Nacional-socialista.

1986
Além disso, sua vida foi marcada pela atividade política, como, por exemplo, a
participação na criação do partido ambientalista alemão. Esta trajetória e este ambiente
político marcaram de maneira contundente sua obra.

Influenciado por variadas áreas de conhecimento, da filosofia à botânica, Beuys


produziu suas obras e teorias entre as décadas de 1950 e 1980, criando esculturas,
instalações, desenhos, objetos, cartazes, cartões-postais, e ações como debates, grupos
de discussão, quadros negros – trabalhados como processos artísticos –, além de
manifestos e canções de protesto9. Seu conceito de Arte Ampliada defendia que a arte
estava ao alcance de todos e poderia resultar de qualquer processo criativo. Para Beuys,
qualquer trabalho podia ser ação criativa, capaz de intervir e reformular o campo social,
promover a revolução. Ele considerava que se podia reconstruir a sociedade como se
cria uma obra, através de exercícios estéticos / criativos (grupos de trabalho, debates),
moldar a sociedade como se molda uma escultura, a Escultura Social, “que está
relacionada com a estética, a vida e a espiritualidade” (VICINI , 2013, p.85). Por isso
entendia que “A revolução somos nós”.

Alguns dos principais elementos estruturantes das teorias de Beuys talvez


tenham sido os conceitos de organismo social do filósofo e educador austríaco Rudolf
Steiner (1861-1925) e de planta-arquétipo do escritor alemão Johann Wolfgang von
Goethe (1749-1832). As ideias desses e de outros pensadores influenciaram na
construção de suas ideias. Sua obra relacionou arte e vida, simbólico e prático, natureza
e alquimia. A partir de estudos sobre botânica, sobre a natureza, Beuys desenvolveu sua
Teoria da Plasticidade, que tinha a planta como arquétipo: “a planta como objeto natural
e a planta como imagem ou símbolo – como obra de arte” (HARLAN, 2010, p. 28). A
constituição da planta se relacionava aos princípios constitutivos da alquimia: enxofre,
mercúrio e sal. Steiner aplicou esses princípios da formação das plantas aos seres

9
Joseph Beuys. Disponível em: http://www.videobrasil.org.br/beuys/. Acesso em: ago. 2017.

1987
humanos, e Beuys aplicou essa metáfora tripartida à planta arquetípica da Teoria da
Plasticidade e à floresta como arquétipo da Escultura Social.

A Escultura Social seria um processo contínuo, como os ciclos naturais, o


pensamento transformado em palavras, potentes o suficiente para provocar mutações;
moldada a partir do pensamento humano:

Meus objetos (...) devem provocar reflexões sobre (...) como o


conceito de escultura pode ser expandido para materiais invisíveis
usados por todos. Como podemos moldar nossos pensamentos ou,
como podemos transformar nossos pensamentos em palavras ou,
como nós moldamos e damos forma às palavras (...), a escultura como
um processo evolucionário; todos como artistas. O processo continua
na maioria delas: com reações químicas, fermentações, mudanças de
cor, decadência, ressecamento. Tudo em estado de mudança.
(BEUYS, 1990, p. 19).

“Indizível”10
A matéria plástica utilizada pelo artista para moldar a Escultura Social era o
pensamento: “Para mim, a formação do pensamento já é escultura” (BEUYS, 1990, P.
91). Segundo Tisdall (1989), para Beuys o ato de pensar coletivamente produziria
fluxos de energia entre os indivíduos, “insights filosóficos” (LAUF, 1992), por isso ele
promovia discussões sobre temas como arte e política, em processos criativos e ações
artísticas.

A palavra foi um elemento poderoso na obra de Beuys. Ele utilizava um


vocabulário simbólico próprio e outros elementos para conjurar união e cura. Seus
processos artísticos envolviam exercícios mentais e ritualísticos coletivos, com a
intenção de combater a alienação. E o uso dos meios de comunicação em massa11 como

10
Alusão ao verso de Manoel de Barros (apud BRITTO 2017, p. 199).
11
Estratégias de comunicação do regime nazista durante a 2ª Guerra, e das indústrias / mercado
pós-guerra.

1988
cartazes e cartões-postais teria o objetivo de difundir essas ideias e potencializar a
comunicação entre indivíduos e grupos.

Segundo Beuys, seria necessária a formulação de novos conceitos filosóficos, a


conscientização do ser humano sobre a necessidade de mudança nas dimensões política,
orgânica, ecológica e cognitiva; necessário trabalhar pelos direitos humanos, pelo
aproveitamento sustentável dos recursos naturais do planeta, contra os danos
ambientais, desenvolvendo conexões entre sentir, pensar, conhecer e agir, para sermos
capazes de entender as necessidades básicas prioritárias, comuns a todos os indivíduos;
e recriar o mundo sob os paradigmas da liberdade, da criatividade e da arte.

Beuys considerava que um método capaz de multiplicar esses processos


criativos revolucionários seria a criação de instituições híbridas, capazes de amplificar
esse sistema de maneira multidisciplinar, articulando diferentes campos do saber, e que
encontrassem o caminho do desenvolvimento social a partir do florescimento mental e
espiritual do ser humano. Esta ideia é o eixo central da sua Universidade Livre
Internacional (FIU), um lugar pensado para expandir suas teorias e para experimentar,
um lugar de criação coletiva.

Após sua demissão da Academia de Arte de Düsseldorf – por aceitar alunos


reprovados nos testes de aptidão artística –, Beuys criou a “Universidade Livre
Internacional para a Criatividade e Pesquisas Interdisciplinares”. Fundada em abril de
1973 no estúdio do artista em Düsseldorf, a escola seria um lugar de pesquisa, trabalho
e comunicação, para refletir sobre o futuro da sociedade. Posteriormente a FIU foi
implantada por pessoas e grupos em lugares como Amsterdã, Antuérpia, Hamburgo,
Munique, Pescara, Salvador e São Paulo. Junto com o escritor Heinrich Böll, Beuys
escreveu o Manifesto de Fundação da FIU, que começa indicando seu objetivo
principal: “Cada um de nós tem um potencial criativo que está escondido pela

1989
competitividade (...). Reconhecer, explorar e desenvolver esse potencial é a tarefa da
escola”.12

Zeitgeist13
Talvez esse seu desejo por um espaço institucionalizado transdisciplinar de
produção do sensível tenha vindo também de uma das principais influências de Beuys: o
filósofo e educador Rudolf Steiner, que viveu e atuou na transição entre os séculos XIX
e XX.

Quando as consequências da Revolução Industrial se tornaram mais visíveis,


Steiner e outros seus contemporâneos parecem ter percebido que a onda industrial
poderia destruir o espírito humano. Mais adiante a observação deste processo resultou
em conceitos como a ideia de objetificação da subjetividade, que, segundo Adorno
(apud Zanolla 2015, p. 463) seria resultado da negação do subjetivismo pelo
objetivismo, como elemento ideológico: “Na prática, isso acontece com atividades
ligadas à militância (ativismo irrefletido), artísticas, políticas, científicas e intelectuais;
qualquer ação que envolva a elaboração pelo trabalho”.

Para várias gerações, a forma de garantir a sobrevivência dos valores humanos


no mundo industrializado seria a educação, o ensino, a formação de seres humanos
sensíveis. A educação e as instituições educativas parecem ter sido, para diversos
pensadores, intelectuais, artistas e filósofos, desde o início do século XX, uma saída, um
instrumento potencial para proteger os valores humanos.

Em 1919, a convite da fábrica de tabaco Waldorf em Sttutgart, Rudolf Steiner


implantou um método de ensino (depois conhecido como Pedagogia Waldorf14) para
12
Disponível em:
https://sites.google.com/site/socialsculptureusa/freeinternationaluniversitymanifesto
13
Zeitgeist é um termo alemão que significa espírito da época, espírito do tempo. O conceito faz
referência ao clima intelectual e cultural do mundo ou características genéricas de uma determinada
época.

1990
crianças com base nos seus conceitos de Antroposofia, doutrina sistematizada por ele,
através da qual buscava reaproximar a fé e a ciência, separadas desde a Escolástica15.
Steiner entendia que a vivência deveria preceder a teoria, conduzindo o aluno a um
pensamento livre e autônomo, através de uma formação que envolvesse
desenvolvimento global: intelectual, artístico e social. Considerava que a arte estava
relacionada com dois aspectos fundamentais do ser humano: a sensibilidade e a
criatividade, esta última baseada na fantasia, na capacidade de desenvolver ideias
inéditas e concretizá-las no mundo real.

O Método Pedagógico Waldorf e os princípios da Antroposofia de Rudolf


Steiner tinham como objetivo essencial a formação de seres humanos plenos,
combinando experiência pessoal com sensibilização artística e atividades coletivas.
Muito dessas teorias deriva do pensamento científico de Goethe – cuja obra Steiner
estudou com profundidade –, e suas discussões a respeito dos fundamentos estéticos da
arte, ligados às manifestações empíricas da natureza. Estas ideias tiveram grande
impacto nas teorias de Joseph Beuys.

Outro exemplo de experimento inovador e potente que envolvia educação e arte


foi a Black Mountain College, inaugurada em 1933, na Carolina do Norte, Estados
Unidos. A fundação da escola coincidiu com a ascensão de Hitler, o fechamento da
escola alemã de design Bauhaus16 pelos nazistas e a perseguição de artistas e

14
Pedagogia Waldorf é uma abordagem que procura integrar de maneira holística o
desenvolvimento físico, espiritual, intelectual e artístico dos alunos, para desenvolver indivíduos livres,
integrados socialmente, competentes e moralmente responsáveis. Existem mais de mil Escolas Waldorf
no mundo, além de quase dois mil jardins de infância, em mais de 64 países.
15
Em filosofia teológica, a Escolástica é o pensamento cristão da Idade Média, baseado na
tentativa de conciliação entre o ideal da racionalidade (platonismo e aristotelismo) e a “verdade revelada”
da fé cristã.
16
A Staatliches-Bauhaus foi uma escola de design, artes e arquitetura de vanguarda fundada na
Alemanha em 1919, tida como uma das maiores e mais importantes expressões do Modernismo no design
e na arquitetura.

1991
intelectuais na Europa. Alguns entre eles, por consequência, migraram para os Estados
Unidos e passaram a ensinar e/ou colaborar com a universidade, como o físico Albert
Einstein e Walter Gropius, arquiteto alemão, fundador da Bauhaus. O currículo de artes
da Black Mountain incorporava uma abordagem interdisciplinar, combinando belas
artes, artesanato, arquitetura, teatro e música. Além de matérias tradicionais, incluía
trabalho agrícola, projetos de construção e culinária. A escola também se baseava no
princípio de que a experiência pessoal, a sensibilização artística e as relações comunais
eram o caminho para a formação de indivíduos plenos.

Transvaloração17
Por muito tempo, experimentos educacionais e instituições educativas têm sido o
potencial espaço de resistência do espírito humano, contrapondo-se a estruturas
políticas, sociais e econômicas degradantes. Mas na contemporaneidade, no “mundo
líquido”18, quando as estruturas do pensamento moderno tem sido descontruídas, e as
instituições modernas estão em franca transição, talvez o museu, instituição que é
essencialmente território de memória e de criação, possa ser o laboratório, ou o ateliê,
onde se dará o ponto de inflexão de uma sociedade nova, a instituição híbrida e
desmaterializada, como pretendia ser a Universidade Livre Internacional de Joseph
Beuys.

O lugar do museu como espaço do simbólico, é abordagem trabalhada nas


ciências sociais, como, por exemplo, pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-
2002) que, através de conceitos de habitus, campo e capital cultural, reconhece o museu
como uma das instituições de guarda de estruturas de poder. Segundo Bourdieu (2001),

17
Conceito criado pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche, que trata do processo, do modo como
os valores mudam ao longo do tempo.
18
Conceito de Zygmunt Bauman (1925-2017), cuja base de pensamento é a oposição entre o
mundo sólido e o mundo líquido, pós-moderno, que ignora barreiras, assume formas, ocupa espaços e
dilui certezas.

1992
o habitus é como uma segunda natureza, conhecimento sem consciência,
intencionalidade sem intenção; o campo, o espaço relacional entre indivíduos e grupos;
e o capital seria a força de cada agente em suas posições no campo. Assim a estrutura
simbólica do museu, lugar de pesquisa e comunicação, pode variar conforme a atuação
dos agentes no campo, e envolver processos compartilhados.

Os principais marcos teóricos da museologia nas últimas décadas já trataram do


“caráter social e ideológico da museologia e dos museus”, entendendo “o museu como
espaço de exercício democrático e de cidadania e, por isso, espaços dialógicos” (CURY,
2005, p. 63). Conceitos parecidos com aqueles das instituições educativas inovadoras,
que tiveram influencia na construção do conceito da Universidade Livre Internacional
de Beuys.

Teóricos da museologia também trabalharam conceitos de museu como


instrumento de desenvolvimento social, através da experiência pessoal compartilhada
em relações comunais: a Mesa Redonda de Santiago do Chile de 1972 é considerada um
marco da instauração das ideias de Patrimônio Integral; como a Declaração de Quebec
reforçou em 1984 a noção de museu a serviço do desenvolvimento social; e a
Declaração de Caracas de 1992 legitimou a ideia da essência comunicacional dos
museus, como agentes de construção coletiva de processos culturais.

Em uma entrevista19, o pesquisador francês Hugues de Varine-Bohan (1935),


um dos principais teóricos da chamada Nova Museologia, explicou que o termo implica
em participação e utilização dos saberes de cada um dos integrantes de um grupo para o
desenvolvimento coletivo. Varine assume a influência do educador brasileiro Paulo
Freire (1921-1997), defensor da ideia de que só o pensamento crítico pode transformar o

19
Entrevista realizada a 19/04/2013 na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade
Nova, Lisboa, publicada no site No Mundo dos Museus: Entrevistas, livros, conferências. Disponível em:
http://nomundodosmuseus.hypotheses.org/tag/paulo-freire. Acesso ago. 2017.

1993
mundo, através da troca de conhecimentos entre interlocutores, como também propunha
Beuys.

Muitas das teorias museológicas contemporâneas trazem o essencial da Nova


Museologia entre seus pilares: as mudanças de papel dos museus em relação à educação
e à sociedade; a visão ampliada dos vínculos entre meio material e cultura; a museologia
comunitária; a ecologia; a etnologia regional; transformações radicais nas finalidades da
museologia e na mentalidade dos museólogos, defendendo o museu como instrumento
de desenvolvimento social. O Museu-Integral da Nova Museologia seria uma alternativa
ao tripé Museu-Objeto-Funções, e seus paradigmas de Conservação/Preservação.
Atuante diante das demandas da sociedade, relacionado à museologia popular,
preservação do patrimônio e da cultura, com forte ligação com aspectos políticos e
econômicos, o Ecomuseu seria o laboratório de experiências do ser-humano com a
natureza, o tempo, o espaço e o futuro. Para Georges Henri Rivière (1897-1985) era
“um instrumento, espelho, laboratório, expressão do homem e natureza, expressão do
tempo e do espaço”, museu como “sistema museógrafico associando itinerários tal qual
antenas” (RIVIÉRE apud CERÁVOLO, 2004. p.262). Esses conceitos parecem bem
próximos dos conceitos de Joseph Beuys.

Se essa “Revolução Radical” (VARINE, 1980) da museologia já é defendida há


mais de 40 anos, como as abordagens artísticas de Joseph Beuys poderiam contribuir
para ampliar perspectivas da museologia? Embora Beuys tenha participado da
construção de estruturas partidárias como Os Verdes20, e seus conceitos possam, à
primeira vista, parecer tratar de questões da dimensão sociocultural, engajadas no seu
tempo – militância pelos direitos humanos, sistemas autogestados sem interferência do
Estado, etc. –, a essência do seu pensamento é a subjetividade:

20
Partido ambientalista alemão.

1994
Como a maioria das pessoas pensam em termos materialistas, não
podem entender a minha obra. Esta é a razão pela qual não considero
necessário apresentar objetos, para fazer com que as pessoas entendam
que o homem não é um mero ser racional. (BEUYS apud KLÜSER,
2006).

Beuys não fala de dogmas da identidade social ou cultural, revitalização de


postos de trabalho urbano ou atividades industriais. Suas falas e propósitos tangem
questões sobre a ancestralidade humana, sobre a relação ciência e arte, e arte e vida, a
criatividade individual compartilhada, o trabalho como processo criativo de libertação
do espírito, o sentido da existência humana na Terra.

A diferença principal entre a abordagem de Beuys e as de pensadores do campo


museológico como Rivière e Varine-Bohan, talvez possa estar ligada à racionalidade de
uma tradição intelectual – no caso dos dois últimos, a escola de pensamento francesa. E
embora Joseph Beuys talvez também possa ser enquadrado em uma tradição intelectual
germânica, ou tenha sido um alemão falando de questões alemãs, parece ter buscado o
que havia de mais universal na sua aldeia21: o espírito humano, a criatividade humana, o
ser criativo capaz de gerar o novo Organismo Social.

Polinização cruzada
Segundo a metáfora tripartida da Teoria da Plasticidade de Beuys, toda
construção, toda escultura, é formada pelos três elementos da alquimia: sal, mercúrio e
enxofre. O conceito relaciona:

ENXOFRE FLORES Criação do novo, o futuro, conhecimentos híbridos.

MERCÚRIO RAMOS Mediação, formação, comunicação, desenvolvimento.

21
Referência a uma frase “para ser universal, pinta tua aldeia”, atribuída ao escritor russo Leon
Tolstói, e que resume a ideia central da obra “O que é a arte?” onde o escritor defende ideia de que a arte
universal é aquela acessível a todas as pessoas do mundo (2016, p. 226).

1995
SAL RAÍZES Rigidez, forma, estabilidade, resistência,
conhecimento e preservação do passado, tradição.

Nas plantas, a floração multiplica a vida. Através do pólen, a planta doa sua
vida, para multiplicá-la de maneira híbrida. O princípio vivo da planta é compartilhada
em polinização cruzada e não em autopolinização; por isso cria novas formas.

A essência da metáfora tripartida pode ser aplicada às dinâmicas do patrimônio


cultural e à teoria museológica, mudando a perspectiva acerca dos métodos
museológicos. Pode ser aplicada à tradicional cadeia operatória do museu, que Peter van
Mensch (apud MAROEVIĊ, 1992, p. 222) identificou como modelo PRC (descrito no
Manual Of Curatorship publicado em 1984 pela British Museum Association),
relacionando preservação às raízes, comunicação aos ramos e o resultado da pesquisa
expandida às flores. Nos processos do museu – o espaço potencial de criação – a relação
entre pesquisa, comunicação e acervo, quando mediados pela criatividade, em método
ampliado de curadoria colaborativa22, pode criar nova Escultura Social.

O sal
A dicotômica contraposição reproduzida pelo senso comum, entre as figuras
institucionalizadas do museólogo e do artista (agora também o curador, agente do
campo da arte), vê o primeiro, a priori, como guardião do passado, tradicional, datado,
caduco, ultrapassado, incapaz de criar; e o segundo, o futuro, profeta, etéreo, criativo,
inovador. Às vezes é justamente o contrário. Pensar rigidez, resistência, preservação do
passado como elementos chave do fazer museológico, pode resultar em um dilema que
deixa o museólogo em uma posição desconfortável.

22
Segundo Carolina Ruoso (UFC), em falas e entrevistas, a curadoria colaborativa é um método
curatorial, inserido na perspectiva de uma museologia crítica, que se caracteriza pela construção de um
projeto comum, em que todos os agentes contribuem, inclusive os frequentadores com experiência
prolongada com o museu; e se diferencia de outras metodologias, como a curadoria coletiva (vários
curadores), ou compartilhada (envolvendo a equipe).

1996
A lenda grega de Orfeu e Eurídice23 permite refletir um pouco sobre este dilema,
relacionado ao passado, à preservação do patrimônio. Orfeu, filho da musa Calíope24 e
de Apolo, vai até o reino dos mortos para resgatar sua amada Eurídice, que lhe é
devolvida, com a condição de que ele não olhasse para trás. Na dúvida, para certificar-
se que quem o seguia era Eurídice, Orfeu olha para trás e a transforma em estátua de sal.
Este “olhar para trás” de Orfeu, que transforma Eurídice em sal25, pode ser entendido
como a necessidade de racionalizar, de tentar ter controle daquilo que se vê quando se
olha para trás: o passado, as memórias, as referências patrimoniais.

Se a museologia trabalha necessariamente com o patrimônio instituído, isto é,


com a rigidez do sal, talvez neste mundo contemporâneo, a racionalidade não seja mais
capaz de responder às suas questões. Mas talvez a intuição e a criatividade sim. A
criatividade, elemento catalizador da alquimia de Beuys, pode ter a mesma função na
alquimia museológica, permitindo aceitar o passado estabelecido, transcendendo seus
sentidos. Estes exercícios extracognitivos, capazes de injetar aura da arte beuysniana na
teoria museológica, pode libertar a museologia de uma racionalidade infértil.

Pensar Beuys nesta perspectiva é tentar criar um “cânone de pensamento mais


amplo do que o cânone ocidental” (GROSSFOGUEL, 2008) – que pode ressoar e
reverberar outras percepções anteriores e posteriores a ele. Seus conceitos teórico-
artísticos, que configuram um conceito de arte, podem ser elementos para a produção de
um novo conceito de museu, de uma nova abordagem museológica, de um novo

23
Metáfora utilizada por autores da museologia, como por exemplo Marília Xavier Cury (2005, p.
58).
24
Primeira das nove musas da mitologia grega, filhas de Zeus e Mnemosine (personificação da
memória). Musa da ciência e da eloquência. Mais velha e sábia das musas, considerada por isso a rainha
das musas.
25
Raízes, rigidez, forma, estabilidade, resistência, preservação do passado, tradição, na metáfora
de Beuys.

1997
entendimento sobre os modelos metodológicos da museologia, modelos de museu, na
contemporaneidade.

E se este museu contemporâneo é espaço de articulação de elementos simbólicos


de vários campos, ele pode ser a própria Universidade Livre Internacional, o lugar da
criação coletiva proposto por Beuys. E se esse conceito de arte é capaz de ampliar o
conceito de museu, da mesma forma um novo conceito de museu pode ampliar o
conceito de arte, como no ateliê de construção do novo mundo.

Assim, hipoteticamente, a museologia – lócus epistemológico de natureza


transdisciplinar, menos formatado, mais maleável, pronto para ser moldado como
matéria-prima da nova escultura social – seria a ciência híbrida proposta por Beuys, o
lugar potencial da nova revolução social. “A revolução somos nós”.

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2000
ARTE PARÁ: VISUALIDADES LOCAIS E INTERCULTURAIS EM CIRCUITOS
AMAZÔNICOS

John Fletcher*
Agenor Sarraf*
Ernani Chaves*
*Universidade Federal do Pará

Resumo: O seguinte trabalho retoma uma discussão Crítica e Decolonial, dentro de uma leitura
antropológica interpretativista, das primeiras edições do Salão Arte Pará (1982-1997), evento
competitivo de artes visuais que ocorre na cidade de Belém, Estado do Pará. Desse modo, foi
analisada a base conceitual inicial do evento e como se deu seu desenvolvimento e maturação,
para refletir acerca do poder discursivo de circuitos expositivos de teor intercultural para uma
região Amazônica. Buscamos conversar, principalmente, com escritos de Clifford Geertz e de
Walter Mignolo, atravessados por outros focos de pensamentos advindos da orientação Pós-
Colonial/ Decolonial, com ênfase em autores como, Inge Valencia, Adolfo Albán, Nestor Garcia
Canclini, João de Jesus Paes Loureiro e Osmar Pinheiro Jr. Com o intuito de expor um olhar
mais crítico sobre nosso presente assimétrico, esta pesquisa, parte de análises de uma pesquisa
de doutorado, visa a conferir novas dimensões à dinâmica geral da experiência humana.
Palavras-chave: Artes Visuais; Arte Pará; Amazônia.

Abstract: The following paper resumes a critical and Decolonial discussion, inside an
interpretative and visual anthropological reading, of the first editions of the Salon Art Pará
(1982-1997), a competitive event of visual arts that takes place in Belém, State of Pará. In
this sense, we analyzed the initial conceptual basis of the event and how the development and
the maturation of its conceptual basis occurred, so we may reflect upon the discursive power of
intercultural exposition circuits for an Amazon region. We sought to talk directly with the
writings of Clifford Geertz and Walter Mignolo, transversed by other thoughts arising from the
Postcolonial/ Decolonial guidance, with emphasis on authors such as Walter Mignolo, Inge
Valencia, Adolfo Albán, Nestor Garcia Canclini, João de Jesus Paes Loureiro and Osmar
Pinheiro Jr. In order to expose a more critical look at our asymmetrical present, this research,
part of the analysis of a doctoral research, aims to provide new dimensions to the general
dynamics of human experience.
Key-words: Visual Arts; Art Pará; Amazon.

2001
Introdução

Diversos diálogos entre Artes Visuais e Ciências Sociais, mesmo em um


contínuo processo de (re)construção, tem gerado horizontes mais complexos para a
pesquisa acadêmica (FLETCHER et al, 2014; FLETCHER et al, 2015). Frente aos seus
potenciais “interdisciplinares, os quais buscam evidenciar as coisas que escapam das
classificações e dos paradigmas da ordem” (SILVA, 2005: 42), estes diálogos e
reinscrições teóricas26 advindas nesta esteira podem nos fazer vislumbrar perspectivas
dinâmicas, talvez mais inclusivas e menos autoritárias (SARLO, 2000).
Franz Boas (1955), um dos primeiros antropólogos a discutir esta interface,
destacou a indissociabilidade das artes com a cultura, por ser, ao mesmo tempo,
faculdade primordial dos humanos e zona de impossibilidade para a existência de
valores estáveis e estáticos – daí sua pertinência para funções não somente artísticas,
mas teóricas, culturais, filosóficas, políticas, dentre outras (ver também PAREYSON,
2001). Por também serem tidas, em suas formulações polifônicas27, por linguagens,
estruturas, sistemas, atos, símbolos, padrões de sentimento (GEERTZ, 2008), estas
proposições alocadas no território da produção geralmente imagética de sujeitos
culturalmente diversos28 ajudam a gerar outro ponto interessante de comparação e
reflexão entre sociedades irregulares e interculturais (GLISSANT, 2005; ALVES, 2008;
CAMPOS et al, 2012; GARCIA CANCLINI, 2012).

26
Estas reinscrições podem ocorrer, principalmente, sobre operações limitantes, algumas vezes retóricas,
sem um refinamento para se interpretar elementos relacionados a realidades irregulares e contextos
específicos (BHABHA, 2003).
27
Polifonia aqui usada nos termos do conceito estabelecido por Mikhail Bakhtin (2003), que reconhece o
diálogo e a criação artística como o encontro de diversas vozes, realidades e temporalidades,
interceptando-se em um ir e vir sem categorização. Nesse sentido, a polifonia pode continuamente ser
construída como estratégia discursiva de visibilidades, ao convergir diferentes vozes sociais para pôr em
destaque nuances variáveis ligadas à autoria e ao exercício de não falar sobre, mas falar com o outro (ver
também BAKHTIN e VOLOSHINOV, 1997).
28
Destaque para o debate em torno da apropriação sofrida pelas artes, a partir do século XVIII, quando o
pensamento imperial as transformaram em uma limitação conceitual e ocidental do que seriam
(BARRIENDOS, 2008; HALL, 2009; MIGNOLO, 2010; ALBÁN, 2011).

2002
De modo aproximável e posterior, Alfred Gell (1998) também percorreu um
roteiro análogo ao pensar as expressões artísticas sob uma abordagem antropológica.
Observado o fato do autor considerar estas supracitadas expressões por vozes sociais
alcunhadas sob princípios comunicacionais próprios, não seria muito dificultoso buscar
para a antropologia inspiração em outras disciplinas, principalmente as de cunho visual,
como a estética, semiótica, história da arte, dentre outras, de maneira a compreender
uma estrutura de pensamento próxima à da religiosidade, visto as artes apresentarem
quase um caráter substitutivo ante um possível vulto laico-ocidental nos limites do
contemporâneo29.
Um terceiro antropólogo, a título desta breve introdução, George E. Marcus
(2004), viu nesta convergência de campos uma aliança potencial para a Antropologia.
De acordo com o pesquisador, este diálogo não somente criticaria esta última por um
suposto não-esteticismo alocado em seu interior, como a chamaria para uma
reestruturação de antigas representações tradicionais e funções documentais, aspecto
este já estranhado e discutido pelo próprio ethnographic turn do Seminário de Santa
Fé30.
Frente a esses debates e interfaces inicialmente elencados, por conseguinte, é
significativo observar em que medida a Antropologia e, por extensão, as Ciências
Sociais, tem buscado novos limites e novas facetas interpretativas ao dialogar com o
campo das artes visuais. Estas facetas, acreditamos, podem propiciar rastros denotativos
e conotativos para se compreender a complexidade de relações sociais irregulares e

29
O contemporâneo, para além da problemática envolvendo sua terminologia, pode ser tomado por um
campo/ contexto de disputas pelo reconhecimento sociocultural, pelas autoafirmações étnicas e
indenitárias e pelo questionamento da concepção das histórias e dos dispositivos os quais construíram
narrativas excludentes ou silenciadas (ALBÁN, 2011).
30
O Seminário de Santa Fé ocorreu na Escola de Investigação Americana de Santa Fé, Nuevo México,
em 1984, e teve seu tema central em torno da redação do texto antropológico, da autoridade etnográfica e
da relação entre pesquisador e seus pesquisados (ROCHA e ECKERT, 1998).

2003
particulares, alocadas em um contemporâneo intercultural e sequioso de alternativas
outras de investigação, análise e compreensão para a pesquisa científica.
Em face aos argumentos expostos, portanto, o presente trabalho visa a reunir
uma faceta interpretativa e historiográfica do Salão Arte Pará, com um recorte a partir
da sua primeira edição, em 1982, até sua edição de 1997, período este de grande teor
Decolonial, com ênfase nas suas narrativas curatoriais. Em protocolos metodológicos, o
estudo foi configurado em uma frente diacrônica, a qual envolveu pesquisa documental
nos relacionados catálogos do Salão, tangenciada por análises de textos de artistas,
críticos, curadores, mais edições contextuais do jornal O Liberal sobre as atividades do
Arte Pará31. Este grupo de documentos, também tomado como parte de uma experiência
memorial e conceitual inter-relacionada discursivamente (PORTELLI, 1997;
THOMPSON, 1997; LE GOFF, 2010; BENJAMIN, 2011), ajudou a conferir um tiro de
largada para os entendimentos e representatividades capazes de fornecer um ângulo de
visão para uma interpretação antropológica elaborada a partir de uma alcunhada
periferia global.
Aliada a esta frente documental, entrevistas fechadas e abertas32 foram
realizadas com interlocutores previamente escolhidos, cujos papéis contribuíram para
estabelecer outros pontos de encontro entre as suas participações e o agora da pesquisa –
estes interlocutores, donos de posições simbólicas de destaque para este percurso do
Arte Pará, trataram de iluminar aspectos não encontrados nas narrativas oficiais sobre as
edições do evento. De certa forma, esta relação, otimizada para ser uma cooperação com
o outro (CRAPANZANO, 1986; CRAPANZANO, 1991; CLIFFORD, 1998), buscou se

31
Estes documentos puderam ser encontrados no site da Fundação Rômulo Maiorana e nos arquivos de
jornais do Centro Cultural Tancredo Neves, em Belém, PA. Destaque para a generosidade da curadora
Vânia Leal que nos concedeu inúmeros dos catálogos que também não tínhamos fisicamente.
32
Inicialmente, foi tomado por base um questionário com 07 perguntas para curadores, organizadores e
artistas, questionário este elaborado em parceria com o Prof. Dr. Orlando Maneschy. Frente à dificuldade
de receber as respostas de muitos destes atores envolvidos nas diversas edições do evento, passamos para
um método de entrevistas abertas, presenciais e gravadas, com suas posteriores transcrições, para dar mais
desenvoltura à dimensão intersubjetiva travada para a pesquisa sobre o Arte Pará.

2004
basear nos chamados efeitos da verificação coerente33 e do esclarecimento das
interpretações (GEERTZ, 2011), tipo de operação em que o tempo é interiorizado e
vivificado, de maneira a quebrar com as limitações do sujeito cognoscente, não mais
estático e intocável por uma realidade movente e não agenciável, porém capaz de
inaugurar uma investida em defesa direta da contextualização do conhecimento e da
consciência artístico-cultural (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2003; RAMIREZ, 2004;
MIGNOLO, 2010; LUCERO, 2011).
Para um aprofundamento destes aspectos metodológicos, certas exemplificações
com algumas das obras de arte que fizeram parte deste percurso do Arte Pará foram
estabelecidas, e que, por serem vozes sociais (GELL, 1998), rascunharam indicativos de
desenhos curatoriais pensados pelo Salão para construir um roteiro mais ou menos
coeso de relações culturais entre local e global. Estas exemplificações com obras
participantes, igualmente alicerçadas por diálogos entre a antropologia e o estudo da
imagem, conferiram um andamento em que as mesmas foram tidas como informantes
capazes de iluminar descrições inteligíveis para falar sobre a regularidade de tempos e
espaços, sem dirimir particularidades.
O Salão Arte Pará, mesmo ante à pequena quantidade de pesquisas acadêmicas,
é um marcador para as artes visuais feitas e apresentadas em Belém, Pará, com espaço
na mídia e referencial para artistas e curadores, não somente locais. E observado o fato
da própria pesquisa antropológica ter ainda discretas relações com práticas artísticas
institucionais e recentes, este evento aqui é tomado, em muitos aspectos de maneira
inaugural, como um campo fecundo para investigações e análises em torno de suas
narrativas conceituais e curatoriais, tecidas plurivocalmente, por meio de agenciamentos
transculturais, em uma metrópole e, por extensão, em circuitos da região amazônica.

33
Como observou James Clifford (1998: 58), uma pesquisa coerente “pressupõe um modo controlador de
autoridade”.

2005
Primeiros Anos

O Arte Pará, evento de artes visuais realizado em Belém, Pará, com moldes
competitivos, e que possui dimensões interculturais desde suas primeiras realizações,
teve sua primeira ocorrência no ano de 1982 e logo foi acordado para ter a abertura de
sua mostra expositiva na quinta-feira que antecede o Círio de Nazaré34. Delineado a
partir de uma reunião de artistas, a qual foi idealizada e capitaneada pelo jornalista e
Presidente do Grupo Liberal35, Rômulo Maiorana, este projeto de mostra visual
acompanhou o desenvolvimento, influenciou e deu visibilidade a parte de uma cena
artística local. Mesmo com seu início sem um eixo diretor estabelecido, manteve uma
recorrência anual até os dias de hoje, a qual lhe outorgou o título de um dos maiores e
mais longevos Salões privados de artes visuais do país (MACHADO, 2011).
Com 36 edições ininterruptas desde 1982 (com base em suas edições até o
presente momento, em 2017), este Salão é um marcador não somente para o cenário
artístico e conceitual belenense, mas para o próprio panorama nacional das artes visuais.
Organizado pela Fundação Rômulo Maiorana, com a primeira diretoria executiva a
cargo de Sônia Renda, sua mostra é alvo de um número muito significativo de
participantes não somente paraenses, sejam eles curadores, artistas selecionados,
convidados e membros de Júri36. Por conseguinte, destaca-se ao ser micro e contínuo
território simbólico de encontros e contatos; potencial célula de ação para se
34
O Círio de Nazaré ocorre em todo segundo domingo de outubro. Embora as primeiras edições do
evento não tenham ocorrido na quinta-feira que antecede o Círio, em pouco tempo esta data ficaria
tradicionalmente estabelecida para o vernissage do Salão.
35
O Grupo Liberal é um conglomerado de mídia brasileiro, fundado em 1966, e representa o maior grupo
em comunicação do Estado do Pará, sendo também um dos maiores do Brasil e grande afiliado à Rede
Globo através da Rede Liberal. Após a morte de seu fundador, Rômulo Maiorana, em 1986, passou a ser
chamado de Fundação Rômulo Maiorana. As Organizações Rômulo Maiorana são grandes rivais do
Grupo RBA de Comunicação, pertencente ao político Jáder Barbalho (PMDB), e possuem, no governo do
Estado, ligado ao partido do PSDB, o seu maior cliente (ver mais em PINTO, 2013).
36
O Júri de Seleção e, posteriormente, o Júri de Premiação buscavam congregar nomes de artistas, curadores, críticos
de arte e acadêmicos. Em cada edição do evento, novos jurados trabalhariam, mediante critérios objetivos e
subjetivos, para dar um caráter dinâmico, mais autêntico e negociável aos artistas selecionados e premiados do Arte
Pará.

2006
estabelecerem traduções culturais e visuais, sejam em operações endógenas, quanto
exógenas a seu organismo dialógico – aspecto este próximo ao que a antropóloga Elsje
Lagrou (2003) apontou, quando observou em circuitos de arte, um fluxo de visibilização
de culturas, de suas “autenticidades” e vitalidades.
As primeiras edições do evento foram chamadas de Salão Liberal e, mesmo
frente à ausência de um desenho curatorial, congregou uma série de nomes para compor
o inaugural Júri de Seleção, caso dos artistas Ruy Meira e Osmar Pinheiro Jr., e do
ensaísta e representante da cultura amazônica, neste contexto de recolocação cultural,
João de Jesus Paes Loureiro (O LIBERAL, 1982; MACHADO, 2011).
Segundo Alexandre Sequeira37, professor do curso de Graduação em Artes
Visuais/UFPA, artista e curador de diversos momentos do Salão:

“Acompanho o Arte Pará desde a sua primeira edição e creio que, em


sua primeira década de realização, o evento buscou, principalmente,
consolidar sua imagem no cenário local (já que, na época, não havia
outro evento de arte acontecendo com regularidade na cidade ou
talvez na região) e nacional (buscando estimular o envolvimento e
participação de pessoas ligadas à cena artística de todas as regiões do
país). Creio que, desde sua segunda edição, o evento já contava com
importantes nomes do cenário nacional, compondo o corpo de jurados,
como também com uma crescente participação de artistas de outros
Estados da federação, o que a meu ver, contribuiu significativamente
para oxigenar a produção e as discussões sobre arte no Estado. Nessa
primeira década, o Salão se estruturava como uma mostra em moldes
mais “convencionais”, sem um desenho curatorial que provocasse a
constituição de núcleos de discussão entre as obras participantes. A
mostra ocorria de forma regular, promovendo, talvez, em alguns
momentos, núcleos de obras que guardassem alguma relação com a
técnica empregada, ou, em alguns casos, com um tema específico.
Associada a essa mostra, havia quase sempre uma sala especial que
destacava um artista ou um recorte de conteúdo histórico da produção
artística local e/ou nacional. Lembro, também, que, nesses primeiros
anos, havia uma divisão de dois espaços distintos: um que abrigava
uma mostra de Artes Plásticas; e outro que abrigava uma mostra de

37
A entrevista com Alexandre Sequeira foi realizada no dia 22/10/2014.

2007
produção fotográfica – o Salão de Artes Plásticas acontecia no prédio
de O Liberal [2º andar do antigo prédio do Hotel Baré, na Rua Gaspar
Viana], e o de Fotografia na Galeria da Residência Maiorana, situada
na Praça Batista Campos. Essa divisão deixou de existir a partir de
2004” (Alexandre Sequeira, Comunicação Pessoal).

Para termos de pesquisa documental, o Arte Pará pôde, mais efetivamente,


declarar algum tipo de eixo narrativo graças aos membros do seu Júri de Seleção, Júri
este que tinha uma relevante parcela de envolvimento com o mundo das artes visuais no
Pará e que tentou, então, cumprir com uma função que deveria ter ficado a cargo de um
equivalente a curador ou da própria comissão de organização no evento (esta atuação só
seria efetivada, em vias de fato, no ano de 1990 com a oficialização do curador Paulo
Herkenhoff). Nesse caso, os supracitados membros somente puderam externar suas
compreensões estéticas, naquela conjuntura, mais por meio de textos e de publicações
ocorridas em outros veículos de comunicação, tantas vezes em datas posteriores à
primeira edição do evento, já que as próprias oportunidades, nos jornais locais, eram
muito esparsas, superficiais e meramente informativas. Aliado a este dado, devemos
destacar que o catálogo oficial da mostra, inexpressivo e descritivo, só trazia, em folhas
datilografadas, os nomes dos selecionados e um breve texto de apresentação do Salão,
sem maior oportunidade conceitual. Seja como for, foi por meio dessas alternativas
outras de mapeamento teórico de alguns dos membros do Júri que se buscou
inicialmente observar qual intento poderia conferir alguma carga de coesão expositiva
para os primeiros anos do Arte Pará, intento este declaradamente alinhado a uma ideia
de uma visualidade amazônica, sendo esta última uma proposição artístico-conceitual
afinada com a política cultural da Fundação Nacional de Artes (Funarte).
Os chamados ideais de uma visualidade amazônica revelaram, por conseguinte,
uma estreita relação com os debates do 1º Seminário sobre as Artes Visuais na
Amazônia, ocorrido após à abertura do Salão, já no ano de 1984, em Manaus,

2008
paralelamente ao 7º Salão Nacional de Artes Plásticas. O evento, organizado pelo
Instituto Nacional de Artes Plásticas (INAP), sob direção de Paulo Herkenhoff
(HERKENHOFF, 1985; MOKARZEL e MANESCHY, 2010), rendeu o livro As Artes
Visuais na Amazônia: Reflexões sobre uma Visualidade Regional, espécie de
compêndio com a transcrição das conferências apresentadas, caso das de Vicente
Cecim, Berta Ribeiro, Osmar Pinheiro Jr., Carlos Zílio, João de Jesus Paes Loureiro,
dentre outros, tornando-se um importante documento histórico para se acessar alguns
dos ideais que circundavam os ensejos de indivíduos ligados às artes visuais na região e,
por extensão, às do Salão Arte Pará nos seus primeiros anos.
Para melhor detalhar este contexto de reflexão conceitual e empírica, João de
Jesus Paes Loureiro38 destacou:

“Esse livro, As Artes Visuais na Amazônia, foi um projeto que teve a


idealização e aprovação na Funarte pelo Paulo Herkenhoff. E aqui em
Belém, a pessoa que ficou encarregada de desenvolvê-lo foi o Osmar
Pinheiro Jr., que era artista plástico. O Osmar convidou o nosso
fotógrafo, Luiz Braga, para, junto com ele, percorrerem as áreas
ribeirinhas, periféricas da cidade e fazer a documentação fotográfica,
no caso aqui do Pará, a documentação fotográfica dessa visualidade.
Na verdade, paraense e amazônica da época. Quando eles estavam
com esse material todo pronto, eles me procuraram e me colocaram a
par do projeto. Eu fiquei com as fotografias e com, digamos assim, o
piloto do projeto só para ter uma ideia da abrangência dele. E me
pediram para fazer um texto teórico sobre essa experiência. E o texto
que eu escrevi foi com o nome As Fontes do Olhar. Ele nem é
propriamente aquele que está no Visualidade Amazônica. No
Visualidade Amazônica eu falo da questão do colonialismo, se não me
engano. E da questão da transformação artística, de certa forma,
também. Mas nesse caso, só para poder situar duas coisas: o
Visualidade Amazônica, aquele livro, ele resultou já de uma segunda
etapa desse projeto que foi desenvolvido com a coordenação do
Osmar Pinheiro Jr. E a segunda parte que seria o seguinte: um
seminário em Manaus e, em seguida, um outro seminário em Belém.
Para o seminário de Manaus é que foram solicitados aqueles textos,

38
A entrevista com João de Jesus Paes Loureiro foi realizada no dia 12/05/2016.

2009
que são ligados a vários ângulos da questão aqui da Amazônia nessa
área. E eu escrevi aquele texto especificamente para ler na minha
conferência lá nesse seminário para depois ser incluído no livro. O
segundo seminário que seria no Pará já não ocorreu, por que houve
uma crise na Funarte e, pra te dizer um detalhe, a Funarte nem tinha
recursos mais, eu não sei por que motivo ou projeto para imprimir o
livro. E só fizeram toda a editoração. [...] Esse me parece que era o
mesmo espírito, do ponto de vista de Salão de arte, era o mesmo
espírito do Arte Pará, através do idealizador, que foi o Rômulo, e da
diretora que tinha toda e total condução do Salão, que era a Sônia
Renda. E a Sônia Renda é que me convidou para a participação dessa
primeira etapa. E, no meu entender, a grande expectativa e o grande
interesse do Rômulo àquela altura, e operacionalizado pela Sônia e
pelas pessoas que colaboraram, era dar condições e visibilidade para
as artes visuais aqui no Pará e na Amazônia, mas sobretudo no Pará. E
que através dessa exposição, os artistas pudessem ter uma repercussão
em nível nacional. Então, era esse o espírito do Arte Pará que, com o
passar do tempo e com a contratação posterior de curadores já de
experiência nacional, seja do Rio ou seja de São Paulo, o Salão foi se
transformando num Salão também de integração entre expositores
locais com abertura para expositores de fora do Estado também.
Suponho que a ideia era poder favorecer mais essa interligação entre a
arte visual local e a visualidade que se estava praticando no Brasil e
em outros lugares. Em suma, um desejo de dar maior propulsão” (João
de Jesus Paes Loureiro, Comunicação Pessoal).

Osmar Pinheiro Jr. (1985), a partir das informações concedidas por Paes
Loureiro, é um dos nomes que ganha, portanto, atenção por ser, neste supracitado livro,
As Artes Visuais na Amazônia, um relator de alguns dos elementos para se entender esta
tônica da visualidade em questão. Para ele, pelo fato da região apresentar a
“sobrevivência” de formas de cultura específicas, caso não semelhante ao que ocorreu
em outras regiões do país39, era destacável a produção artística deste período em foco,
pois, em seu conjunto, apresentava ruídos destas “sobrevivências” culturais, além de
uma mudança de ótica em relação a um quadro anterior de “reprodução tardia de ecos

39
Para Pinheiro Junior (1985), o processo de colonização no Nordeste, por exemplo, massacrou, em
grande medida, a cultura local, gerando um novo substrato cultural.

2010
distantes da arte moderna, bem como um desvencilhamento de parte de um isolamento
tornado em condição de prática por uma pequena elite, sequiosa de diferenciação
cultural” (PINHEIRO JUNIOR, 1985: 94-95).
Ainda segundo o texto do professor e artista visual, o qual foi selecionado e
premiado em variadas edições do Arte Pará, tal visualidade emergente e relevante para
ser valorizada dialogava com as “práticas de uma tecnologia de base em processo de
extinção, especialmente da cultura pesqueira, que envolveria a construção de barcos,
canoas, remos, instrumentos” (PINHEIRO JUNIOR, 1985: 96). Para o mesmo, neste
enredo, as organizações cromáticas de fachadas e de embarcações oriundas de uma
tradição mestiça, donas de admiráveis rigor e inteligência, eram também assimiladas
artisticamente e aliadas às geometrias de papel de seda dos papagaios e das rabiolas, a
ponto de revelar condições particulares de uma outra ordem, distinta da corriqueira do
mercado institucionalizado da arte. Nesta ordem diversa e contra hegemônica, portanto,
o suporte da obra poderia ser a casa, o barco, o boteco, o papagaio, o brinquedo, o
instrumento de trabalho, sem contar que os artistas seriam todos os sujeitos amazônicos,
para não falar dos próprios mestres, já reconhecidos pela população por seus nomes.
Os processos técnicos, celebrados por esta mudança paradigmática, pontuemos,
no território das artes visuais paraenses, envolveram “a construção de objetos, as
resinas, pigmentos, entrecascas de árvores que são papéis artesanais, variedades de
madeiras e cipós” (PINHEIRO JUNIOR, 1985: 97) e passaram a buscar uma
consciência crítica de um universo de referências entrecruzadas entre o utilitário e o
lúdico, o oficial e o não-oficial, e entre temporalidades diversas. Tal consciência, por
apontar uma continuidade dialógica com as tradições da cor oriundas das práticas da
arte plumária indígena; por também ser História Sensível, Cosmovisão, Ensinamento e
Ancestralidade, firmava-se, nesse caso, como estratégia silenciosa de resistência cultural
– ou o que o mencionado artista cunhou por estética do prazer.

2011
O breve texto de apresentação do primeiro catálogo do Arte Pará, escrito por
João de Jesus Paes Loureiro (1982), pode ser pensado como convergente com muitos
dos apontamentos de Pinheiro Júnior, uma vez que, igualmente, destacava a
importância, naquele recorte temporal, para a proposição de um espaço de liberdade
artística ante sua condição de reinscrição essencial e ancestral – e aqui podemos pensar
em uma ocasião de virada logística para a dimensão das artes visuais locais não somente
pela autocrítica quanto às abordagens empregadas no seu passado, como por sua
concretização sintomática em um presente mais dinâmico e cheio de transformações. De
certa forma, devemos acrescentar, esta erupção de um novo contexto de produção e
reflexão para as artes visuais ainda pôde ser lida pela ocorrência da Primeira Mostra
Paraense de Fotografia (FotoPará40), organizada pela emergente associação Fotoativa,
capitaneada por Miguel Chikaoka41, na extinta Galeria Ângelus42.

“Se os textos da Visualidade Amazônica surgiram exatamente como


uma forma de criticar e abrir espaço para a situação de colonialismo
cultural que se vivia e ainda se vive, de certa maneira um pouco mais
atenuada, se havia esse pressuposto, no caso do Arte Pará era
diferente. O Arte Pará queria promover o que estava sendo feito, até
por que tinha que levar em conta os trabalhos existentes, uma vez que
o Arte Pará era um recolhimento de coisas que, individualmente, os
artistas deveriam fazer, cada qual seguindo seu ponto de vista, sua
tradição etc. Ele não nasce num sentido, digamos, de uma visão crítica
na relação região e Brasil. Ele nasce em um sentido de impulsionar o
40
O FotoPará ocorreu entre os anos de 1982 a 1984. A partir dessas experiências de trocas e discussões
de processos fotográficos, na passagem de 1983 para 1984, nasceu a renomada FotoAtiva, gerida
paralelamente à fundação do Grupo FotoPará e mais tarde transformada em Associação (MOKARZEL,
2014).
41
Miguel Chikaoka tem uma trajetória local que remonta ao começo da década de 1980, quando
abandonou a carreira de engenheiro para trabalhar como repórter fotográfico em Belém. Paulista, nascido
em Registro, interior de São Paulo, é ainda hoje um grande artista e educador, participante ativo de
grandes iniciativas fotográficas para o Estado (MOKARZEL, 2014).
42
A Galeria Ângelus, primeira galeria pública de Belém, funcionou no Theatro da Paz, sendo localizada
na área do foyer do prédio. Neste mesmo prédio funcionou a Galeria Theodoro Braga, já nos fundos do
teatro, na área correspondente à sua função administrativa. Embora a Ângelus tenha encerrado suas
atividades em 1983, a Theodoro Braga ainda ficou no local até seu fechamento em 1985, quando, então,
foi transferida para um novo espaço na Fundação Cultural Tancredo Neves, Centur (MEDEIROS, 2012).

2012
que estava sendo feito na região, para ter uma visibilidade local e,
possivelmente, extra local. Então são duas situações que se
completam, por que o fato de ter, o que foi demonstrado pelo Arte
Pará, uma produção artística de alto nível entre nós fortalece aquela
visão crítica que nós tínhamos do isolamento que se vivia e, ao mesmo
tempo, de uma forma de marginalidade diante de uma compreensão
nacional de valor da questão das artes plásticas. Diria que, no caso do
Arte Pará, você tem a valorização da realização, no modo como ela
estava sendo realizada. E a Visualidade Amazônica é uma forma
crítica de ver a dependência cultural e a busca de fortalecer novas
visões, novos valores, que pudessem competir também com esse
contexto nacional, no mesmo plano de igualdade e com a mesma
atualidade estética e compreensão artística” (João de Jesus Paes
Loureiro, Comunicação Pessoal).

Paes Loureiro (1985), mesmo lido por seu texto para o livro As Artes Visuais na
Amazônia, demonstrou em que medida pensamentos-ações eram difusores, neste
momento, de um novo entendimento politizado para as artes visuais locais (reiteremos
que o mesmo era, então, o Secretário Municipal de Educação e Cultura de Belém).
Muito interessado, neste caso, em uma problematização sobre o binarismo existente e
separatista entre alta cultura e baixa cultura – e a atribuição corrente de alta cultura para
o que vinha de fora e baixa cultura para a produção local –, o ensaísta sintonizou-se com
alguns dos discursos decolonizadores em voga, os quais deveriam “servir a sujeitos
concretos, em especial às classes populares, aos homens da religião, aos seres dos rios e
dos campos, categorias de subalternos e marginalizados do processo controlado de
nosso desenvolvimento” (PAES LOUREIRO, 1985: 114) para possibilitar outro ritmo
de atenção e importância para a visualidade local (ver também PAES LOUREIRO,
2008).
Esta mesma tônica, a qual “questionava um conhecimento operacionalizado por
uma linguagem que calava nossa fala; uma linguagem que recusava a nossa diferença;
que plantava as sementes do silêncio em nossa voz” (Paes Loureiro, 1985: 117),
demarcou um posicionamento contra hegemônico e vivo, pois também tratou de

2013
declarar, como estratégia, a apropriação da herança do colonizador (capturar o
capturante) para romper com o círculo da cultura como prisão – algo que Bhabha
(2003), alguns anos mais tarde, marcaria como a reinscrição política do signo, de acordo
com novos lugares de enunciação (ver também SCHMIDT, 2011).
A antropóloga Inge Valencia (2011), quando de seu estudo sobre as genealogias
de um pensamento decolonial na América Latina, é passível aqui de ser tomada como
paralelo historiográfico para se aprofundar à noção de em que medida o local também
estava contaminado por uma lógica descentralizadora e crítica mais ampla e
interconectada. Nesse sentido, a mesma delineou três gerações importantes para se
estabelecer nexos temporais, os quais mostram como o solo teórico latino-americano foi
favorável, cheio de peculiaridades e, por que não, tantas vezes antecipatório aos debates
que vieram a ocorrer em outras geografias quanto aos efeitos de se valorizar epistemes
críticas e não hegemônicas – e aqui podemos aludir sobre como os intelectuais ligados à
Visualidade Amazônica possuíam muitas características simétricas e dialógicas, se
postos em paralelo com toda essa trajetória de pensamento insurgente, visto a Amazônia
ser um território continuamente tratado por olhares colonizadores nacionais e
estrangeiros (MIGNOLO, 2003).
A primeira geração, nesse caso, emergente no final do século XIX, manifestou
uma forte inquietação e debate sobre as culturas populares, as populações indígenas e
campesinas, sendo estas últimas ligadas a problemas de exclusão e discriminação por
conflitos alicerçados em pertencimento de terras. Ainda que, muitas dessas ações,
paralelas aos processos de independência de Estados da América Latina, não tenham
ganhado maior força – devido não à descolonização, mas por causa da substituição desta
descolonização por formas de colonialismo interno (ver também MIGNOLO, 2003) –,
tais chaves de entendimento já anunciavam a necessidade de emancipações Decoloniais.
A segunda geração, de acordo com a autora, marcada pelo começo da agroindústria e
pela proletarização rural em começos do século XX, trouxe discussões

2014
ligadas à emancipação de mulheres trabalhadoras e rurais, à convivência na diversidade
racial e o respeito à autodeterminação de sujeitos quanto aos seus territórios, além de
uma necessidade de redistribuição rural de acordo com objetivos de desenvolvimento
acordados mutuamente entre classes. A terceira geração, por fim, já relacionada ao
contexto interpretativo de construção da nação, dirigiu muitos dos seus debates para
compreender as causas do período de violência na Colômbia, as lutas por terras, além de
eixos relacionados à inclusão e à coexistência igualitária de etnias diversas. De certa
forma, esta geração foi responsável por toda uma rede de ideias retroalimentares para se
problematizar, mais à frente, condições geo-históricas na América Latina (VALENCIA,
2011).
As gerações mencionadas por Inge Valencia são importantes para se revelar
entendimentos constituintes e fundadores para os questionamentos sobre a colonialidade
e a libertação. Elas trouxeram não somente ativistas, como escritores, antropólogos,
filósofos, políticos, teóricos da literatura, entre outros intelectuais, de maneira a irrigar
um solo politizado, difuso e intenso para entendimentos perspectívicos de dilemas
empíricos e epistemológicos na América Latina, distinto em muitos aspectos do
pensamento Pós-Colonial desde suas genealogias43 histórico-epistemológicas
(VALENCIA, 2011; PINTO, 2012; BALLESTRIN, 2013) – e os debates dos primeiros
anos do Arte Pará também estiveram inscritos em uma ordem de pensamento-ação
alinhada contextualmente para se empoderar a Amazônia frente aos discursos
exploratórios e excludentes. Estes debates/ práticas, não obstante, também se fizeram

43
Para um maior entendimento dessa dissenção entre o pensamento Pós-Colonial e o pensamento
Decolonial, Walter Mignolo (2003), portanto, observou que o Pensamento Pós-Colonial possuía, como
fronteira cronológica da modernidade, o século XVIII do Iluminismo. Todavia, em virtude das
problemáticas de Mignolo serem ancoradas nas heranças coloniais dos impérios espanhol e português, o
autor, com a pretensão de não excluir a lógica colonialista da América Latina, optou pelo século XVI
como horizonte de um sistema mundial Colonial/ Moderno e, portanto, de primeira ordem, se comparado
aos efeitos posteriores do Iluminismo e da Revolução Industrial (ver também CASTRO-GÓMEZ e
MENDIETA, 1998).

2015
amplificados, já que foram, de alguma forma, aquecidos pela redemocratização nacional
do país – vivíamos, então, os últimos anos da ditadura militar – e por um novo juízo,
para além de suas inevitáveis e necessárias críticas, de conexão e tentativa de buscar
equidade, de maneira a apoiar e divulgar nomes locais como os de P. P. Condurú, Ruy
Meira (Figura 01), Dina Oliveira, Alexandre Sequeira, Acácio Sobral, Emmanuel
Nassar, Marinaldo Santos, Rosângela Britto, Luiz Braga, dentre tantos outros
(MEDEIROS, 2012).

Figura 01. Forma, de Ruy Meira. Fonte: Arte Pará, 1986.

A obra de Ruy Meira pode aqui ser tomada como um primeiro e possível
destaque a revelar, visualmente, alguns dos princípios estéticos encontrados sob a rede
de negociações e reflexões destes anos iniciais do Arte Pará. Também evidenciada pelo
fato de aparecer, no primeiro catálogo, com melhor qualidade de imagem, o de 1986 –
e, infelizmente, as obras das anteriores edições vinham em qualidade nula, muito
inferior ou em preto e branco para reprodução, além de pertencerem, atualmente, a
coleções particulares, muitas vezes, inacessíveis –, sua premiação igualmente marcou

2016
outro triunfo na trajetória do artista, iniciada nos anos 1940, com contornos relevantes
ainda para a década de 1980.
O artista paraense Acácio Sobral (2002) bem destacou que Meira primou por um
caminho pela arte abstrata a partir dos anos 1960. Já um pintor amadurecido naquele
momento do Arte Pará, com uma prolífica carreira marcada pela convivência com
renomados pintores que visitaram Belém – caso de Raul Deveza, Kaminagai e Armando
Balloni –, a escultura Forma, sugeriu um diálogo com esta sua própria percepção e
atuação pictórica abstrata, de maneira a sugerir um posicionamento alocado em meio ao
reconhecimento iconográfico da região e uma surpresa da forma como representação
liberta.
Passível de ser lida como uma alusão aos rios barrentos da região, com seus
igarapés e olhos d’água emoldurados por vegetação alquebrada, raízes respiratórias e
planícies de inundação, ou mesmo um semitotem ou urna indígena banhada por
cachoeiras de açaí, fruta típica da região amazônica, a escultura de Meira foi também
tributária de um diálogo com os grandes mestres do artesanato local em cerâmica, quer
sejam tapajônicas ou marajoaras. E observado o fato de sua premiação marcar uma
abertura de interesse do Arte Pará para outros tipos de arte mais vernaculares e,
portanto, de menor interesse institucionalizável, sua articulação conceitual reiterada
pelo evento, assinou, para aquele contexto, certo tipo de destituição de um comum
sistema dinâmico e sofisticado de exclusão e obediência44, capaz de converter a
diversidade cromática, étnico-racial e os modos de vida de sociedades não hegemônicas
em uma narrativa reducionista e falsa de uma universalidade da arte (ALBÁN, 2011).

44
Diversos autores latino-americanos têm pensado em uma chamada cromática do poder, para
problematizar os antigos limites impostos, de forma exógena, às interpretações e fruições simbólico-
visuais. Nesse contexto, apontam, inclusive, como mesmo as chamadas vanguardas artísticas foram
tentativas de implementação, em outros territórios cosmológicos, de um papel subsidiário de tendências,
discursos e re-produções dos eixos europeus e norte-americanos. Esta espécie de colonialidade do ver, por
consequência, foi mantida indissociável até nas recentes tensões geopolíticas e nas dívidas econômico-
culturais da região eurolatinoamericana, isto é, nas consequências birregionais do capitalismo cultural
transatlântico no contexto da economia global (BARRIENDOS, 2008; ALBÁN, 2011).

2017
É oportuno mencionar, ademais, que naquele mesmo ano de 1986, exatamente
em abril, poucos meses antes da abertura da 5º edição do Arte Pará, o jornalista Rômulo
Maiorana faleceu, o que, definitivamente, representou que mudanças, de maneira
inevitável, estavam por vir. Ainda que com uma tônica em certo sentido política e
alinhada à ação cultural da Funarte para este contexto e para o momento de abertura do
país a um novo eixo democratizador, estas mudanças se fizeram observáveis na edição
de 1987, as quais trariam sua reconfiguração, desenvolvimento e maturação. Tais
alterações foram: a troca da diretoria executiva da Fundação Rômulo Maiorana, agora a
cargo de Roberta Maiorana, diretora que trouxe Daniela Sequeira como Assessora
Técnica (sai de cena, portanto, Sônia Renda); a convocatória da Fundação Nacional de
Arte (Funarte), para que o Arte Pará se tornasse polo de recepção para o X Salão
Nacional de Artes Plásticas; e um Júri de Seleção e Premiação formado por Luiz Paulo
Baravelli, Glauco Pinto de Moraes e Paulo Herkehhoff – a chegada deste último
oficializaria o início de uma trajetória relevante aos futuros desenhos curatoriais do
Salão, ainda que, neste momento, não houvesse tal definição, com um consequente
aumento do seu capital simbólico45. Herkenhoff, há algum tempo, já se tratava de um
nome de destaque no cenário das artes visuais brasileiras e ocupava, neste contexto, a
posição de direção no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (ARTE PARÁ, 1987).

Amazônia: Novos Repertórios no Mapa Artístico Brasileiro

A partir de 1990, a oficialização de desenhos curatoriais trouxe Paulo


Herkenhoff, reiteremos, como curador geral do evento, ofício este que o manteria com
uma extensa e significativa trajetória em Belém, de modo que uma forte interrelação
com posteriores e distintos desenhos curatoriais se fariam claros e consequentes – e aqui

45
O capital simbólico, de acordo com Bourdieu (2006), reflete um poder invisível, comumente chamado
de prestígio ou honra e que permite identificar os agentes no espaço social. Ligado a saberes e
conhecimentos reconhecidos por protocolos institucionalizados e hegemônicos, sua ocorrência é também
ligada ao pensamento marxista e revela todo recurso ou poder que se manifesta em uma atividade social.

2018
podemos pensar em como cada novo curador, em momentos posteriores, buscou
estabelecer novos limites para o alcance do Salão; trouxe, em seus diversos contextos,
nomes de outros centros de produção artística na forma de Júris, de selecionados ou de
convidados; articulou uma certa continuidade coerente com muitos dos ensejos
principiados por Paulo Herkenhoff; enriqueceu o evento e a cena cultural local com
novos panoramas e dilemas conceituais, muitos deles emblemáticos para se estabelecer
pontos de conexão e transformação de uma trajetória também pertencente à História da
Arte Paraense.
De acordo com Marisa Mokarzel46, curadora participante e membro de Júris do
Salão em diversas ocasiões,

“As existências tanto do projeto curatorial quanto do projeto educativo


são fundamentais, pois a organização não se dá ao acaso, mas passa a
existir a partir de um pensamento e de uma vivência que conjugam
pontos nodais, articulando não apenas artistas selecionados com
artistas convidados, mas também o que será discutido, o que se pode
pensar no contexto de arte e vida. Não é mais a ideia de arte pura que
se apresenta, mas a ideia de contaminação, do lugar que cada um
ocupa num espaço de mistura, de convivência plural. A questão é
como achar a si mesmo no caos, que não é só o da arte, é do mundo no
qual se adentra em meio a toda diversidade e quantidade de
informação, envolvido em constantes entradas de novas tecnologias e
consequentes mudanças de comportamento, postura, formas de
relacionamentos” (Marisa Mokarzel, Comunicação Pessoal).

Este princípio de desenhos curatoriais marcaria uma nova etapa profissional do


Arte Pará e se tornaria um elemento indissociável para a sua montagem em edições
posteriores. Naquele período de fim dos anos 1980 e início dos anos 1990, ainda
considerado um momento de transição ante a morte do jornalista Rômulo Maiorana, a
presença de figuras como as de Paulo Herkenhoff e de Claudio De La Rocque – este

46
A entrevista com Marisa Mokarzel foi realizada no dia 08/12/2014.

2019
último como assistente curatorial – firmou a continuidade de um projeto de Salão
competitivo, então repensado para adquirir uma ressonância de interesse maior para
outros artistas do país.
A primeira fase de Paulo Herkenhoff à frente da curadoria geral do Arte Pará se
prolongou até o ano de 1997, antes de assumir, entre os anos de 1997 e 1999, a
curadoria geral da XXIV Bienal de São Paulo, quando orquestrou um panorama das
artes visuais mundiais pelo prisma da Antropofagia. Seguido a este período, assumiu o
cargo de curador-adjunto no Departamento de Pintura e Escultura do Museu de Arte
Moderna de Nova York (MoMA), entre os anos de 1999 a 2002. Somente em 2005,
voltaria para a curadoria geral do Arte Pará (OLIVA, 1999). Claudio De La Rocque, por
outro lado, antigo curador assistente ao lado de Herkenhoff, assumiu a função de
curador geral do Arte Pará pelo breve período entre os anos de 1998 e 1999, ao passo
que Jussara Derenji permaneceu na curadoria geral para a edição do ano de 2000, sendo
substituída pela curadoria geral de Marcus Lontra47 entre os anos de 2001 a 2004.
A décima edição do Salão, em 1991, pode aqui ser tomada como um
significativo exemplo para se compreender a tônica desta segunda fase do Arte Pará.
Com Herkenhoff na curadoria principal e De La Rocque na assistência curatorial, esta
edição rascunhou o que seria um Salão interessado por refletir acerca de uma
contribuição paraense à formação da arte em Salões e exposições no Brasil –
contribuição esta exemplificada por três reconhecidos artistas nacionais convidados, os
quais compuseram a estreia de uma Sala Especial: Cildo Meireles (RJ), Flávio Shiró
(RJ) e Oswaldo Goeldi (RJ).
No caso desses três nomes, todos ligados, de certa forma, a memórias de
infâncias suas vivenciadas em terras amazônicas – seja com Cildo Meireles e as lutas de

47
Marcus Lontra ficou conhecido por ser um dos curadores, ao lado de Paulo Leal e de Sandra Magger,
da exposição “Como vai você, geração 80?”, realizada na Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Esta
exposição, ocorrida em 1984, período este final da ditadura militar, teve um caráter expressivo para as
artes visuais realizadas nos eixos Sul-Sudeste (LUZ, 2010).

2020
seu pai em Belém; Flávio Shiró e sua infância como migrante para a colônia japonesa
de Tomé Açú, no interior do Pará; e Oswaldo Goeldi, com sua formação em Belém
quando seu pai, Emílio Goeldi, veio para a cidade organizar, sob novas bases
científicas, o Museu Paraense Emílio Goeldi –, suas energias artísticas bem puderam
agregar rastros de um localismo paraense, rastros estes componentes para a construção
de poéticas as quais viriam a fortalecer uma variabilidade visual brasileira. Caso
semelhante ao de Mário de Andrade, de acordo com o texto curatorial, quando de sua
estadia de profundo envolvimento com Belém, estes três nomes puderam alimentar, em
termos factuais concretos, um fornecimento criativo para tantos outros artistas locais e
não locais, integrantes de um presente cada vez mais veloz e interculturalizado
(HERKENHOFF, 1991).
Uma premissa, de algum modo, difusionista, podemos adicionar, foi a faceta
conceitual desenhada nas entrelinhas desta narrativa curatorial. Muito análoga a
algumas concepções de um pensamento Culturalista boasiano, mais especificamente,
àquelas relacionadas a uma postura mais relativista para o caso da interpretação de
sociedades, com “o estudo de mudanças culturais aferidas através da análise de
processos de transformações, a serem acompanhadas muitas vezes passo a passo pela
via da construção histórica e pela observação comparada” (CARDOSO DE OLIVEIRA,
1988: 63), esta prerrogativa de uma contribuição paraense à formação da arte em Salões
e exposições no Brasil naquele ano de 1991 também destacou uma horizontalização do
fazer artístico nacional, ausente de hierarquias entre regiões, de forma que não seria
coerente aproximar e generalizar aspectos que fossem semelhantes somente em sua
aparência, uma vez que, em sua própria metafísica, poderiam se encontrar
heterogeneidades (DA MATTA, 1983; CARDOSO DE OLIVEIRA, 1988; CARDOSO
DE OLIVEIRA, 2003).
Ainda seguindo este contexto do pensamento boasiano, podemos enfatizar, sob
um ponto de vista metonímico para a primeira fase do Salão, uma possível paridade

2021
conceitual com o desenho curatorial do Arte Pará de 1991, por este último não ceder a
um “evolucionismo reducionista ou um difusionismo que negava a criatividade à maior
parte das culturas” (LAGROU, 2003: 107), o que desembocaria não somente em
representações de valores estéticos distintos a denotar uma comprovação fundamental
da cognição de populações diversas (uma unidade fundamental), mas também em
resultados atrelados a histórias e psicologias culturais irrepetíveis e complexas (uma
unidade cultural relativista) (BOAS, 1955). Longe de configurar elementos artísticos
objetificados e destituídos de contexto, os empreendimentos curatoriais deste Arte Pará
debruçaram-se em uma “busca de regularidades e generalidades em fenômenos
portadores de unidade objetiva e uma tentativa de compreender a singularidade de
fenômenos portadores de unidade apenas subjetiva” (ALMEIDA, 1998: 08) – elementos
estes que ratificam seu teor cultural e prenhe de debates a partir de distintas posições
valorativas.
Algumas análises levantadas por Almeida (1998), quando de suas pesquisas
sobre o Culturalismo, fizeram-se convergentes aos desenhos curatoriais de Paulo
Herkenhoff entre os anos de 1990 a 1997. Esta autora declarou que o Culturalismo
transpôs um antigo limite de separação valorativa existente entre as artes de diferentes
agrupamentos sociais e sobrepujou uma espécie de semântica superficial, implícita ao
ponto de vista hierarquizante. Não obstante, ela viu o quanto Boas fez do julgamento da
forma técnica um julgamento estético, de maneira a garantir uma autonomia da arte
enquanto sistema significativo, sistema constituído por princípios não somente visíveis,
mas que seriam agenciados e poderiam equivaler, inclusive, a uma dimensão além das
fronteiras concretas do objeto. Esta dimensão, além de fronteiras concretas,
reconheceria temporalidades variadas, estados de sentimento e de percepção não muito
diferentes dos discursos em torno das poéticas particulares praticadas nas artes visuais
da atualidade.

2022
De certa forma, o discorrer boasiano sobre as artes trouxe, para este momento,
alternativas aplicáveis de se ler experiências, práticas e significados (elementos os quais
atuam como símbolos) no e para além do estado emocional da vida cotidiana (BOAS,
1955). Aplicável, em grande medida, em torno do entendimento dos diversos contextos
de enunciação artísticos aliados pelo eixo curatorial do Arte Pará – o que também inclui
seus diversos processos e objetos –, a relevância destes debates puderam, ainda, trazer
nuances para um espaço discursivo de representações e de fenômenos que ultrapassaram
a dimensão visual e estabeleceram diálogos com significados antropológicos
(FELDMAN BIANCO e MOREIRA LEITE, 1998; PELLEGRINO, 2007).
Para exemplificar algumas dessas análises em questão, podemos elencar a obra
Ponta D’areia (Figura 02), do fotógrafo paraense Luiz Braga, ganhadora do Grande
Prêmio da edição de 1988, conferido pelo Júri de Seleção e Premiação então formado
pelo filósofo Benedito Nunes; pelo próprio curador Paulo Herkenhoff; pelo diretor do
Museu de Arte Brasileira da Fundação Álvares Penteado, Walter Domingues Álvares
Penteado; pelo jornalista e crítico de arte Alberto Beutenmüller; e pelo poeta paraense
Max Martins (ARTE PARÁ, 1988).

Figura 02. Ponta D’areia, de Luiz Braga. Fonte: arquivo do artista Luiz Braga.

2023
A fotografia de Luiz Braga, por destacar modos de vida e sujeitos amazônicos,
com destaque para a presença negra na região, com as consequentes apropriações
desiguais dos seus bens econômicos e culturais, bem evidenciou uma estética híbrida de
acordo com o que Garcia Caclini (1997) chamou de os princípios de compreensão,
reprodução e transformação das condições gerais e próprias de trabalho e de vida.
Paradigmática quanto à produção deste período do artista, Ponta D’areia empregou, à
luz de cores artificiais e frias a banhar um expressivo negro em primeiro plano, em
contraste com um pôr-do-sol pitoresco e romântico ao fundo, discursos visuais feitos
dentro de um determinado contexto, para si e suas alteridades.
De certa forma, podemos acrescentar que este projeto artístico de Braga, ainda
que passível de ser deslocado para outros locais de apresentação (exposições em outras
cidades, galerias, museus), revelou uma dimensão conotativa e capaz de iluminar um
conjunto de propostas visuais ensejadas pelo Salão, com contornos viventes e inter-
relacionados de grupos com relações específicas. Com um repertório declaradamente
polifônico em sua tessitura imagética, sua concretização pela fruição no Arte Pará tratou
de conjugar práticas visuais, acepções e valores sentidos ativamente, em uma espécie de
estrutura de sentimento vivenciada por atores de um campo com jogos de linguagens e
conflitos internos (WILLIAMS, 1973).
Estas estruturas de sentimentos, as quais envolvem, além dos valores e
significados vividos e sentidos, relações existentes entre estes significados e as crenças
de acento variável – e, aqui, inclui-se “a dimensão privada até interações mais
matizadas existentes entre as crenças selecionadas e interpretadas e as experiências
efetuadas e justificadas” (WILLIAMS, 1973: 155) –, igualmente demonstraram
elementos característicos e especificamente afetivos da consciência e das relações
etnicamente sociais. Não se trataria, portanto, de uma noção de sentimento contra
pensamento, mas de pensamento tal como seria sentido e de sentimento tal como seria
pensado (WILLIAMS, 1973).

2024
Possível representante de alguns dos ensejos com enredos Culturalistas, a
inserção de Ponta D’areia em meio ao recorte conceitual desta fase segunda do Arte
Pará bem se estabeleceu ativamente para a rearticulação de um novo mapa das artes no
Brasil, ainda mais, reiteremos outra vez, quando tomado este contexto sem as
facilitações de uma profunda acessibilidade e integração provida pela Internet e por uma
maior proximidade geoculturais. De certo modo, certo senso Culturalista, pensamos,
viabilizou um crescente contato com outros artistas e acadêmicos da arte, constituintes
para uma experiência local capaz de buscar novas referências para suas ações de
construção e de desconstrução criativa.

Algumas Considerações

Com o Arte Pará de 1986, encerrou-se uma primeira fase do evento, na qual as
diferentes Amazônias, com suas amplas formações assimétricas e “distanciadas” dos
maiores centros de produção artístico brasileiros, a exemplo de seus modos de ser e
viver, diferenciados e relacionais, ganharam um tratamento simbolicamente novo e
empoderador. Este tratamento, marcadamente político, mostrou-se deveras alinhado à
política cultural da Funarte para este contexto e ao momento de abertura do país a um
novo eixo democratizador. Por conseguinte, como bem pôde ser detectado no decurso
dos primeiros anos deste trabalho, o início do evento supracitado, em diálogo com a
cena artística de Belém nos anos 1980, alinhou grande sintonia, através de alguns de
seus pares, com pensamentos críticos e decolonizadores, sendo todos eles contextuais a
uma rede de simultaneidades conceituais praticadas no vasto território da América
Latina. Estes posicionamentos liminares, bem acreditamos, foram fundamentais para
reposicionar sujeitos mais críticos e atuantes ante uma contínua exploração predatista,
tanto em termos concretos quanto simbólicos, de maneira a (re)instaurar uma dignidade
ainda alquebrada e insegura na prática artística local.

2025
Um dado que não pode ser negligenciado sobre estes anos do Salão, por
conseguinte, é o referente à participação de artistas em suas edições de 1982 a 1986. Em
seus dois primeiros anos, o salão Arte Pará teve 59 e 74 artistas selecionados,
respectivamente, todos paraenses. A partir de 1984, houve a inserção de nomes de fora
do Estado – neste caso específico, ocorreu a escolha de três artistas do Nordeste, com
Bahia, Ceará e Pernambuco, e um artista do Sudeste, de São Paulo –, o que totalizou 20
selecionados, com um acentuamento ainda maior nos anos de 1985 e de 1986, com 44 e
74 artistas selecionados, mas não mais somente paraenses. Por meio desses dados, é
inevitável não pensar em como esse grande circuito de abertura à participação no Salão
ajudou para se aquecer um interesse por exposições de arte, digamos, contemporânea,
bem como, em face à crescente participação de outros Estados, proporcionou o
estabelecimento de uma rede dialógica, em vias de fato, com produções visuais de
outras localidades, ainda mais se pensarmos que não havia nenhuma facilitação pela
Internet neste período (GARCIA CANCLINI, 2009). O percentual massivo de 88% de
artistas nortistas, em sua quase totalidade paraense, foi capaz de denotar uma
inquietação para com uma movimentação local, desejosa de novos espaços e
oportunidades expositivas, pois, independente destas edições ainda permanecerem
centradas na pintura, no desenho, na escultura e na fotografia, eram tomadas como
expansões de um circuito deveras restrito.
Com o término do ano de 1997, encerrou-se um período extremamente
produtivo em que o Arte Pará saiu de uma condição ainda experimental, sem desenhos
curatoriais estabelecidos, para o desenvolvimento de uma própria narrativa, com difusão
e reconhecimento no restante do país. Frente a esse agrupamento de anos, o qual
remonta a 1987, quando Paulo Herkenhoff passou a trabalhar para a Fundação Rômulo
Maiorana, é detectável, portanto, um largo trabalho para que as bases conceituais do
Salão finalmente fossem estabelecidas, com uma sucessão de edições mais ou menos
coerentes e inter-relacionadas.

2026
Por mais que, em diversos casos, o Arte Pará se mostrasse discreto no que se
relaciona a maiores considerações políticas declaradas – e as nuances discursivas
capazes de abraçar públicos fruidores e conflitos de ordem social em vias de fato
poderiam ter sido mais efetivas, em um sentido crítico –, é inegável o grande volume de
encontros visuais e conceituais empreendidos por Herkenhoff e De La Rocque, em face
a um projeto de inclusão visual mais ostensivo à Amazônia, o que por si só já apresenta
uma faceta política alocada nos termos da execução.
A Região Norte, mais uma vez, apresentou uma concentração maior de
participantes, 76%, sensivelmente menor em comparação aos 88% de participação nos
primeiros anos do Salão, ao passo que outras regiões se mostraram mais reincidentes,
diferentes dos anos anteriores. Para muitos, estes dados podem não ser significativos.
Todavia, para o foco da pesquisa, denotam um aumento de popularidade no restante do
país, muito provavelmente ocasionado pela maturação do Salão, com a oficialização de
narrativas curatoriais, mais a presença de artistas e de membros para os Júris de Seleção
e de Premiação nacionalmente reconhecidos. Esta operação curatorial de integração do
Arte Pará com outros centros de produção e reflexão artísticas bem ilustram como a
recepção de um evento desta ordem no Pará passou a ultrapassar suas fronteiras e
temáticas locais.

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2032
CLARA-CLARA E PROMENADE: ARTE CONTEMPORÂNEA DE GRANDE
ESCALA E SUA RELAÇÃO COM O ESPAÇO URBANO

Fernanda Werneck Côrtes*48


* Universidade de Brasília

Resumo: O presente artigo discute a instalação de obras de arte contemporânea de grande


escala no espaço público. Para tanto, parte da análise de duas obras do artista estadunidense
Richard Serra expostas simultaneamente em Paris em 2008, com o intuito de refletir acerca de
duas questões centrais. A primeira delas é referente à dinâmica do lugar do artista, que se
modifica a cada exposição ou reapresentação. A segunda, à fundação de um espaço institucional
fora dos limites físicos do museu, no ambiente urbano, colocando em evidência o
posicionamento do artista em relação à importância do local para a obra e a sua relação com o
espectador.

Palavras-chave: Arte pública; instalação de arte; site-specific; Richard Serra; Monumenta.

Abstract: The following paper discusses the installation of large-scale contemporary artworks
in public spaces. To this end, it analyses two artworks by the American artist Richard Serra,
exhibited simultaneously in Paris in 2008, with the intent of reflecting on two central issues.
The first one refers to the dynamics surrounding the artist's place, which changes with each
exhibition or re-presentation. The second is the establishment of an institutional space outside
the physical boundaries of the museum, in the urban environment, which highlights the artist's
position towards the importance of the artwork's location and its relation with the spectator.

Key-words: Public art; instalation art; site-specific; Richard Serra; Monumenta.

48
Museóloga e mestranda no programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade
de Brasília (PPGCInf/UnB). E-mail para contato: fwerneck@gmail.com.

2033
A arte pública é a prática caracterizada, de modo geral, pela instalação de obras
de arte contemporânea – normalmente de grande porte – fora do ambiente convencional
do museu, em espaços abertos e de ampla circulação. Nas últimas décadas, tal prática
fora marcada pela variedade de projetos estéticos. Todavia, com frequência, essas obras
são instalações site-specific, que trabalham com a especificidade do local. Desse modo,
o processo de criação envolve o ambiente designado, e o contexto no qual a obra será
fruída passa a ser determinante, envolvendo necessariamente as categorias de espaço e
de tempo.

Apesar de estarem no espaço público, essas obras geralmente permanecem, até


certo ponto, sob a influência institucional. Muitas vezes comissionadas por instituições
museológicas e concebidas e apresentadas no âmbito de um discurso curatorial, elas
interagem, ao mesmo tempo, com o urbano e com as tensões sociais que nele ocorrem.
Elas constituem, portanto, um desafio para as instituições museológicas no que
concerne não apenas à sua aquisição e ao seu acervamento, mas também à sua
mediação, de modo que o artista participa de todo o processo.

Logo, a presença dessas obras de arte contemporânea de grande escala no espaço


público remete não somente a questões práticas, referentes à viabilização de sua
instalação e à sua preservação, mas também ao posicionamento do artista perante o seu
trabalho, as instituições, o público e o local, operando em uma lógica museológica fora
do ambiente físico do museu. Nesse sentido, dois trabalhos do artista estadunidense
Richard Serra - produzidos em um intervalo de mais de duas décadas e expostos em
Paris simultaneamente em 2008 - podem nos ajudar a compreender melhor a produção e
exibição da arte pública em sua relação com as instituições museológicas e com o
espaço onde são instaladas.

2034
A Monumenta é uma exposição de arte contemporânea que ocorre a cada dois
anos no Grand Palais, em Paris49. Iniciativa do Ministério de Cultura e Comunicação
francês, o evento apresenta somente um artista a cada edição, escolhido para conceber
uma obra especialmente para a ocasião e para o espaço da nave do Grand Palais, cuja
superfície é de 13500m² e a altura é de, no máximo, 35m.

Com início em 2007, a exposição já apresentou obras site-specific de Anselm


Kiefer, Richard Serra, Christian Boltanski, Anish Kapoor e Daniel Buren, dentre outros
artistas. Na Monumenta de 2008, Richard Serra ocupou o espaço com a obra
Promenade50, que consistia em cinco placas de aço com 17m de altura e 4m de largura,
pesando 75 toneladas cada. Dispostas ao longo do eixo da nave do Grand Palais, as
cinco placas foram instaladas com inclinação de pouco mais de 1º em relação ao eixo do
teto da nave.

49
Até o ano de 2014 a mostra ocorria anualmente. Entretanto, após este ano passou a ser realizada
somente em anos pares.
50
Apesar de em dicionários francês/português a palavra promenade ser usualmente traduzida apenas
como “passeio”, dicionários francês/francês apresentam que a palavra é derivada do verbo “promener”,
que imprime a ideia de prazer no ato de se locomover. Tal definição implica, ainda, que esse passeio seja
realizado a pé. Com isso, promenade também não significaria apenas andar, mas andar desfrutando da
caminhada.

2035
Fig. 1
Richard Serra, Promenade, 2008. Disponível em:
<http://www.nytimes.com/2008/05/07/arts/design/07serr.html>.
No mesmo período em que ocorria a Monumenta de 2008, um antigo trabalho de
Serra, denominado Clara-Clara, o qual pertence à prefeitura de Paris e permanecia na
reserva técnica desde 1993, foi reinstalado no Jardin des Tuileries, local em que havia
estado em 1983. A obra, apesar de ter sido concebida mais de duas décadas antes, segue
as mesmas características do estilo atual do artista (FOSTER, 2008).

Constituída por duas placas de aço curvadas, cada uma com 36m de
comprimento e 3,40m de altura, lembrando dois parênteses colocados não
paralelamente, mas em posições opostas, Clara-Clara foi uma obra concebida em 1983
para ocupar o Forum do Centre Pompidou, no térreo do edifício, em uma retrospectiva
do artista realizada pela instituição no mesmo ano. Entretanto, devido à incapacidade do
chão do local em resistir ao seu peso, foi sugerido que a obra fosse instalada no Jardin
des Tuileries, em frente à Place de la Concorde, onde permaneceu por alguns meses.
Após ser adquirida pela prefeitura de Paris, Clara-Clara ficou instalada por algum
tempo no Parc de Choisy, no 13º arrondissement, mas devido ao fato de obra estar
arranhada, coberta de grafites e servir como abrigo para moradores de rua, acabou por
ser removida do local e colocada na reserva técnica 51.

51
Ver ERLANGER, Steve. Serra’s Monumental Vision, Vertical Edition. In: The New York Times, 7 de
maio de 2008, p. E1. Disponível em:
<http://www.nytimes.com/2008/05/07/arts/design/07serr.html?pagewanted=all&_r=1&> Acesso em 25
ago. 2017.

2036
Fig. 2
Clara-Clara no Parc de Choisy. Disponível em:
<http://www.cronologiadourbanismo.ufba.br/apresentacao.php?idVerbete=1392#prettyPhoto>.

A instalação da obra no Jardin des Tuileries – próxima ao portão que dá acesso à


Place de la Concorde e entre o Musée de l’Orangerie e o Jeu de Paume – a conferia um
novo discurso, diferente daquele pensado para o Forum do Centre Georges Pompidou,
na medida em que ela passou a integrar o Grande Eixo ou Eixo Histórico da cidade de
Paris. O eixo consiste em uma linha iniciada no Louvre que segue até o Grande Arco de
La Défense, passando por alguns monumentos históricos, como o Obelisco de Luxor e o
Arco do Triunfo. À esquerda desse eixo é possível avistar o Grand Palais, local onde a
obra Promenade estava em exposição. Da maneira como foi disposta no Jardin des
Tuileries, Clara-Clara conduzia o público a esse eixo, por meio de um pequeno espaço
deixado entre as duas placas curvadas.

2037
Fig 3
Clara-Clara no Jardin des Tuileries em 1983.
Disponível em: <https://www.artsy.net/artwork/richard-serra-clara-clara-1983-signed>.

Com isso, os dois trabalhos de Serra instalados em Paris em 2008, apesar de


concebidos em momentos distintos, passaram a possibilitar uma interpretação conjunta.
Ao passar entre as duas placas de aço curvadas que constituem Clara-Clara, o público
poderia seguir em uma promenade52 pelo eixo histórico até chegar ao Grand Palais,
onde encontrava-se a obra site-specific concebida para a ocasião (FOSTER, 2008).

Richard Serra e a arte pública


As obras de arte que desde o final da década de 1960 passaram a ser
comissionadas para ocupar espaços públicos localizados fora do ambiente físico dos

52
Cf. Nota 2 desse artigo.

2038
museus são incluídas na abrangente denominação de “Arte Pública”. Entretanto, apesar
dessa nomenclatura, muitas dessas obras continuam por operar dentro de um sistema
institucional, visto que muitas vezes são integradas a acervos e respondem a uma
determinada lógica expositiva.

As instalações que estão contidas nessa categoria geralmente caracterizam-se por


ser arte site-specific, isto é, arte que adere ao “contexto ambiental, sendo formalmente
determinada ou direcionada por ele” (KWON, 2002, p. 11, tradução nossa). Isto é, as
obras de arte pública site-specific apenas se realizam quando produzem identidade no
momento da recepção no local determinado. A obra é, nesses casos, um “transmissor
entre o local e o sujeito que (re)define a topologia de um ambiente pela motivação do
espectador” (FOSTER, 2000, p. 178, tradução nossa).

Apesar de muitas vezes possuírem dimensões monumentais e de atuarem como


símbolos de negociações referentes à memória, as obras de arte site-specific realizadas
para o espaço urbano distanciam-se do sentido tradicional de monumento, segundo o
qual a obra seria produzida com o intuito de perpetuar uma memória, de “presentificar
na consciência das gerações posteriores um evento ou pessoa” (RIEGL, 2014, p. 24). A
esse respeito Sylvia Furegatti aponta:

A disposição convencional, centralizada, maciça e vertical de uma


peça escultórica nesse tipo de terreno já não é mais suficiente para
construir o sentido coerente à comunidade que habita o centro urbano,
tal qual realizava o monumento nas cidades. As manifestações
artísticas do século XX, atreladas à novidade de sua linguagem e a
uma construção espacial bastante complexa, são levadas, assim, a
revisar a validade do sentido público contido nos termos que as
identificam e no repertório de dispositivos que as apresentam.
(FUREGATTI, 2007, p. 22)
Um trabalho de Serra, em particular, é emblemático para a reflexão acerca da
presença de obras site-specific no espaço público e a relação que estabelecem com a
cidade, o local, as instituições e os espectadores. Encomendada no início da década de

2039
1980, a obra Tilted Arc foi instalada permanentemente na Federal Plaza, em Nova
Iorque, no verão de 1981.

Fig. 4
Richard Serra, Tilted Arc, 1981, Federal Plaza, Nova Iorque.
Disponível em: <http://www.tate.org.uk/context-comment/articles/gallery-lost-art-richard-serra>.

Em 1985, após alegações de que a obra “perturbava a visão normal e as funções


sociais da praça” (CRIMP, 2005, p. 135), foi gerado um grande debate em torno da
permanência da obra no local, que acabou por ser removida em 1989. Na ocasião, Serra
afirmou:

2040
Trabalhos site-specific lidam com componentes ambientais de
determinados lugares. Escala, tamanho, localização dos trabalhos site-
specific são determinados pela topografia do lugar, seja esse urbano
ou paisagístico ou clausura arquitetônica. Os trabalhos tornam-se parte
do lugar e reestruturam sua organização tanto conceitual quanto
perceptualmente. (Serra apud KWON, 2008, p. 168)
A respeito dessas novas possibilidades de ocupação do espaço e sua dimensão
criadora de significados, Douglas Crimp (2005, p. 137) coloca: “Tal reorientação da
experiência de percepção da arte fez, de fato, do observador o tema da obra”. De mesmo
modo, Miwon Kwon aponta para a presença física do espectador como determinante
para as obras site-specific, mas confere à localidade e à temporalidade igual participação
na obra: “O objeto de arte ou evento nesse contexto era para ser experimentado
singularmente no aqui-e-agora, pela presença corporal de cada espectador em
imediatidade sensorial da extensão espacial e duração temporal” (KWON, 2008, p.
167).

As site-specifics incorporaram, portanto, um contexto à produção artística,


contexto esse que não é constituído apenas pela dimensão espacial, mas também pela
dimensão temporal. Na medida em que esses trabalhos pressupõem a imutabilidade do
espaço, eles necessariamente trabalham também com a categoria do tempo.

Clara-Clara não foi concebida para o Jardin des Tuileries, mas foi concebida
para um espaço aberto ao público, de forma que é possível supor que parte daquilo que
Serra pretendia suscitar com a obra permaneceu mesmo com a mudança da localidade.
O contexto no qual seria fruída, no entanto, tornou-se outro, o que modificou a relação
entre obra, local, observador e experiência tão cara às site-specifics.

Com a mudança de localidade da obra, as suas possibilidades de apreciação e


interação foram ampliadas, conferindo-a uma característica pretendida por Serra em
seus trabalhos, a redefinição do sítio e a participação do espectador nessa descoberta:
“O site é redefinido, não reapresentado... O posicionamento de todos os elementos

2041
estruturais no espaço aberto dirige a atenção do espectador para a topografia do terreno
no momento em que se caminha por ele” (Serra apud BOIS, 2000, p. 60, tradução
nossa).

Yve-Alain Bois (2000, p. 90) argumenta que a mudança de local de instalação da


obra ofereceu à Clara-Clara ao menos três diferentes abordagens por parte dos
espectadores. A primeira delas, a de um espectador apressado, que entraria no Jardin
des Tuileries no sentido Place de la Concorde - Louvre, permanecendo no eixo
histórico simétrico, na medida em que o eixo da própria obra estava alinhado a ele e ao
eixo principal do jardim. Segundo Bois (2000, p. 90), essa abordagem possivelmente
seria proporcionada caso a obra tivesse sido instalada no Centre Pompidou.

A segunda possibilidade de apreensão da obra seria, para Bois (2000, p. 90), a


do espectador caminhando no sentido Louvre - Place de la Concorde, que também
permaneceria no eixo, mas observaria a obra de um ponto no qual o comprimento e o
curvamento das placas de aço ficaria em evidência e o Obelisco de Luxor, claramente
emoldurado por elas. No entanto, uma vez que há uma fonte no eixo do Jardin des
Tuileries, esse espectador seria obrigado a desviar dele para um dos lados e, dessa
forma, seguiria juntamente a curvatura de uma das placas que constituem Clara-Clara,
dialogando com a obra.

Já a terceira possibilidade, pressupõe que o espectador seguiria em direção ao


eixo pelas laterais do jardim, onde o Musée de l’Orangerie e o Jeu de Paume
encontram-se em um nível elevado. Desse modo, esse espectador teria uma visão mais
abrangente do espaço interior da obra e, logo em seguida, seguiria em sua curvatura
(BOIS, 2000, p. 90-91). Essa possibilidade de apreensão conferiu à Clara-Clara uma
mudança de ritmo que seria, segundo Bois (2000, p. 91), impossível no Centre
Pompidou.

2042
Com isso, no caso da reinstalação de Clara-Clara em ocasião da Monumenta de
2008, foi produzido um quarto sentido à obra – aquele que mais nos interessa nessa
reflexão -, sentido esse determinado não somente pelo distanciamento temporal do
período de produção da obra e de sua primeira exposição, mas pelo observador que
realizava a promenade entre o Jardin de Tuileries e o Grand Palais e seu interior, como
sugerido por Hal Foster (2008).

Fig.5
Clara-Clara no Jardin des Tuileries em 2008.
Disponível em: <https://www.flickr.com/photos/tybo/2581286776/in/photostream/>.

2043
A especificidade do local para Promenade
Enquanto Clara-Clara foi reinstalada, inserindo-se em outro contexto e
integrando um novo discurso, Promenade foi pensada durante dois anos para ocupar o
espaço do Grand Palais, caracterizando-se, dessa forma, como uma site-specific. As
enormes placas verticais de aço bruto, cuja altura, a largura e a inclinação foram
definidas em relação ao Grand Palais, dialogam com a arquitetura do lugar, composta
de uma estrutura de aço trabalhado e vidro.

Fig. 6
Richard Serra, Promenade, 2008. Obra concebida para a Monumenta 2008, no Grand Palais, em Paris.
Disponível em: <http://www.grandpalais.fr/en/node/3750>.

Construído para a Feira Mundial de 1900, o Grand Palais possui uma fachada
de estilos variados, típica do ecletismo entre-séculos. Apesar disso, o seu interior é
limpo, composto apenas pela estrutura em aço verde e um teto de vidro, que permite

2044
uma iluminação natural ao espaço interno. Segundo Hal Foster (2008), ao longo das
margens do Rio Sena, a horizontalidade do Grand Palais é complementar à
verticalidade da Torre Eiffel. Dessa forma, com as cinco placas de Promenade, Serra se
utiliza desse contraste entre o horizontal e o vertical, mas dessa vez no interior do
edifício. Foster ressalta ainda para inevitabilidade de, ao observar a obra de Serra no
espaço do Grand Palais, fazer-se uma associação com itens estruturais, tal como
colunas, e isso promoveria um encontro entre dois monumentos da modernidade
industrial: a obra de Serra, concebida em aço, e o edifício (FOSTER, 2008).

Para Foster, a maneira como o artista dispôs as cinco placas, algumas no eixo
central da nave do Grand Palais, outras levemente deslocadas para os lados, conferiu
ritmo à obra: “Esses desvios criam, de maneira simples, uma grande tensão; o
espectador sente-se levado pela obra como que por um percurso de slalom” (FOSTER,
2008, tradução nossa). Foster nota ainda que essa disposição permite tanto que as placas
sejam observadas como conjunto – com o espectador no eixo da nave – quanto
separadamente – com o espectador nas laterais do espaço. Com isso, assim como em
Clara-Clara, Serra trabalha com a questão do eixo (FOSTER, 2008).

É, portanto, no que tange às relações estabelecidas pela obra que Clara-Clara se


distingue de Promenade. Apesar de ambos os trabalhos possuírem grandes dimensões e
serem constituídos do mesmo material, a localidade na qual estão instalados conduz a
diferentes interpretações e coloca em evidência diferentes problemas. Enquanto Clara-
Clara, inserida no ambiente urbano suscita questões relativas ao espaço público, à
vivência cotidiana e à cidade, Promenade dialoga com um espaço expositivo, destinado
justamente a produções ou a eventos de grande porte, uma vez que sua própria
arquitetura é monumental.

Ainda que o Grand Palais não remeta necessariamente a um espaço museal,


durante a Monumenta ele assume tal posição e a obra disposta em seu interior passa a

2045
participar de uma dinâmica institucional. Mesmo que Clara-Clara tenha sido
reapresentada concomitantemente à Promenade, de uma maneira que poderia levar a
sua compreensão como um conjunto, se tomados separadamente esses dois trabalhos de
Serra respondem a lógicas distintas de apreciação. Para o artista, ainda que de maneira
não-intencional, a obra exibida dentro da lógica museal se torna imediatamente
autorreferente, visto que a autoria não é deixada fora de questão nesses espaços.

Já a obra disposta em espaço público evidencia outros aspectos que não o artista
em si: “Uma vez que a obra entra no domínio público, o problema da autorreferência
não existe. O que importa é como a obra altera um determinado local, não a persona do
autor” (Serra apud CRIMP, 2005, p. 147). Essa afirmação de Serra evidencia uma
distinção crucial entre as duas obras: a maneira como serão interpretadas em relação ao
ambiente onde estão instaladas. Promenade só será vista caso haja a intenção de se
frequentar o Grand Palais em razão da mostra. Já Clara-Clara, ao estar instalada no
espaço urbano, atinge todo o tipo de público, mesmo aquele que não esperava se deparar
com a obra.

Algumas reflexões sobre a reinstalação de Clara-Clara em sua relação com


Promenade
Esse aspecto distintivo entre os dois trabalhos de Serra expostos em Paris
simultaneamente não modifica o fato de que, mesmo permitindo a fruição
separadamente, as duas obras se comunicam gerando um novo significado. Clara-Clara
talvez não suscitasse tão fortemente a aceleração constante do ritmo cotidiano se
Promenade não estivesse lá para nos lembrar da necessidade de flanar pela cidade. Ao
mesmo tempo, Serra pretende, ao instalar uma obra de grande dimensão no ambiente
urbano com grande fluxo de pedestres, intervir no espaço, proporcionando um choque
no espectador (BOIS, 2000, p. 78).

2046
Segundo Foster (2000, p. 178-179, tradução nossa), um dos aspectos da obra de
Serra é o aspecto fenomenológico, segundo o qual a obra está necessariamente
relacionada ao espectador: “(...) a escultura existe em uma relação primária com o
corpo, não como sua representação, mas sua ativação em todos os seus sentidos, todas
as suas apercepções de peso e medida, tamanho e escala". Outro princípio importante
para Serra que Foster destaca é o situacional, segundo o qual a escultura está
relacionada à particularidade de um local (FOSTER, 2000, p. 179).

Essa colocação nos leva, inevitavelmente, ao problema da relação do artista com


as suas obras e com as instituições que as adquirem e as exibem. Em 1985, quando
defendia a permanência de Titled Arc na Federal Plaza, Serra afirmou que a obra foi
“encomendada e projetada para uma localização específica: a Federal Plaza. É um
trabalho site-specific e como tal não é para ser realocado. Removê-lo é destruí-lo”
(Serra apud KWON, 2008, p. 168). Clara-Clara também foi concebida para uma
localização específica, o Forum do Centre Pompidou53. Apesar disso, Serra concordou
com a sua realocação para o Jardin des Tuileires e, posteriormente, para o Parc de
Choisy. Desde sua remoção dessa última localidade, o artista rejeitou várias propostas
de locais feitas pela prefeitura de Paris para uma nova instalação permanente da obra54,
apenas aceitando que fosse reapresentada no Jardin des Tuileires e, de certo modo,
integrada à Monumenta55.

53
Algumas fontes apontam que a obra foi concebida especialmente para o Jardin des Tuileries.
Entretanto, em texto escrito para o catálogo da mostra realizada no Centre Georges Pompidou e
publicado em 1985, Yve-Alain Bois (2000), afirma que a obra foi realizada para ocupar o Forum do
edifício.
54
Ver ERLANGER, Steve. Serra’s Monumental Vision, Vertical Edition. In: The New York Times, 7 de
maio de 2008, p. E1. Disponível em:
<http://www.nytimes.com/2008/05/07/arts/design/07serr.html?pagewanted=all&_r=1&> Acesso em 25
ago. 2017.
55
Ver o site do Museu do Louvre, que detém a administração do Jardin de Tuileries. Disponível em:
<http://www.louvre.fr/expositions/richard-serra-clara-clara-1983>. Acesso em: 27 de ago. 2017.

2047
Conforme aponta Jean-Marc Poinsot (2012), a exposição é um espaço de
enunciação que não se esgota nela mesma, podendo ser considerada como aquilo que
Jacques Rancière (2009) define como “partilha do sensível”56.

A exposição é uma situação de discurso complexa que possui suas


próprias regras em permanente evolução, mas não tem história própria
independente das prestações estéticas que ela atualiza. Por isso, cada
obra produzida é concebida com conhecimento de suas regras, sejam
elas admitidas de maneira implícita, sejam elas explicitadas e até
mesmo transgredidas. É pelo conhecimento dessas regras que os
artistas podem conceber obras que se adaptam de maneiras variadas às
situações de discursos enquanto continuam a transformá-las.
(POINSOT, 2012, p. 163)
Tal fato nos leva a refletir sobre a dinâmica do lugar do artista, que adapta seu
discurso ao longo de sua trajetória, operando em um jogo de interesses e força com as
instituições. Miwon Kwon (2008, p. 174) explica que, em seu próprio curso histórico,
os artistas que produzem site-specifics se desapegaram da ideia de que a obra só
existiria em determinado lugar e em determinado tempo. Atualmente, remover o
trabalho não significa mais destruí-lo, como Serra havia afirmado em 1985. Pelo
contrário, remover o trabalho e realocá-lo permite que ele seja recontextualizado, não
necessariamente se desassociando por completo dos significados anteriormente
adquiridos. Reapresentar Clara-Clara no contexto da Monumenta, uma mostra
consolidada e de alcance internacional, era, sem dúvida, interessante para Serra,
especialmente se consideramos que a obra permanecia longe do olhar do público desde
1993 e que enfrenta dificuldades de aceitação quanto à sua instalação em sítios
históricos da cidade de Paris, como é o caso do Jardin des Tuileries.

Com relação à instalação de obras de arte contemporâneas em localidades


históricas e/ou turísticas, Nathalie Heinich (1997, p. 120-121) demonstra que a rejeição

56
Rancière (2009, p. 15) denomina como partilha do sensível “o sistema de evidências sensíveis que
revela, ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele definem lugares e partes
respectivas”.

2048
dessas obras por parte do público está relacionada a dois aspectos. O primeiro deles
refere-se às circunstâncias de financiamento da obra, e o segundo, à alteração
permanente de um local ou monumento histórico. No caso de Clara-Clara, apenas o
segundo nos interessa aqui. Apresentada no contexto da Monumenta, fica claro para o
público o caráter temporário da instalação, facilitando a sua aceitação, assim como
Heinich (1997) demonstra ao contrapor o empacotamento da Pont-Neuf por Christo e
Jeanne-Claude, em 1985, às colunas de Daniel Buren no pátio do Palais Royal, ambos
também na cidade de Paris57.

Logo, apresentar Clara-Clara nesse contexto propõe a apreciação conjunta com


Promenade, mas também permite que a obra seja fruída e interpretada separadamente,
em suas particularidades formais ou discurso individual, sem que enfrente a priori uma
rejeição por parte do público devido ao seu local de instalação. Nesse sentido,
poderíamos pensar que um espaço institucional é criado para aqueles que observam a
obra mediada pelo discurso proposto pela Monumenta, espaço esse validado pelo seu
caráter museológico?

Heinich (2013), ao refletir acerca do processo de desartificação58 do patrimônio,


trabalha com “categorizações operadas em situação pelos atores” (HEINICH, 2013),
não buscando, dessa forma, uma definição do termo alcançada a priori, e sim uma
compreensão que parte de seus usos pelos atores em momentos específicos. Para

57
Heinich (1997, p. 120) argumenta que uma das repostas possíveis ao fato de o empacotamento da Pont-
Neuf, obra de Christo e Jeanne-Claude realizada no outono de 1985, ter gerado menos comoção pública
que a obra site-specific de Daniel Buren instalada em 1986, Les Deux Plateaux, é o seu caráter não-
permanente, tendo permanecido instalada por apenas duas semanas. “Desse modo, o público poderia ficar
tranquilo quanto à proteção da Pont-Neuf, um grande marco do patrimônio histórico parisiense: o
empacotamento não causaria nenhum dano, nenhum desrespeito” (HEINICH, 1997, p. 120-122, tradução
nossa), ao contrário da obra de Buren, cujo foco das críticas recaiu sobre a alteração permanente de sítio
histórico público.
58
Heinich utiliza-se do termo “artificação”, definido por Roberta Shapiro (2007, p. 137) como o
“processo pelo qual os atores sociais passam a considerar como arte um objeto ou uma atividade que eles,
anteriormente, não consideravam como tal”; ou, simplesmente “a transformação da não-arte em arte”
(SHAPIRO, 2007, p. 135).

2049
Heinich (2013), “o patrimônio torna-se, assim, o estado no qual são mergulhados os
objetos na medida em que são submetidos a certos tipos de operação (semântica,
jurídica, cognitiva, gestual etc.)”. Trazendo a perspectiva de Heinich com relação ao
patrimônio para o âmbito do urbano como espaço expositivo, talvez pudéssemos falar
sobre um processo de “artificação” de um espaço, tal qual proposto por Roberta Shapiro
(2007); isto é, a obra, inserida no contexto de uma exposição, fundando um espaço
institucional extramuros.

Esse questionamento nos leva novamente ao ponto crucial dessa pesquisa: a


forma como a localidade da obra e as suas possibilidades de fruição no espaço urbano
estão intrinsecamente ligadas aos discursos autorizados pelo artista. As obras de arte
contemporânea quase sempre suscitam novas formas de pensar não somente o fazer
artístico, mas também a lógica institucional e a prática museológica, de forma que,
ainda que tenha sido comissionada há três décadas, Clara-Clara continua a nos
apresentar novos direcionamentos para reflexão acerca da arte pública e suas
implicações, incongruências e formas de realização.

Referências Bibliográficas

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by Hal Foster with Gordon Hughes. Cambridge: The MIT Press, 2000.

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Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, USP, São Paulo, 2007. Disponível em:
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HEINICH, Nathalie. O inventário: um patrimônio em vias de desartificação? In:


PROA: Revista de Antropologia e Arte, v. 1, n. 5, 2013/2014. Disponível em:
<http://www.revistaproa.com.br/05/wp-
content/uploads/2014/PDF/PROA_Traducao_Heinich.pdf>. Acesso em: 30 nov. 2016.

. Outside art and insider artist: gauguing public reactions to


contemporary public art. In: Outsider art: contesting boundaries in contemporary
culture. ZOLBERG, V.; CHERBO, J. (ed.). Cambridge: Cambridge University Press,
1997.

KWON, Miwon. One place after another: site-specific art and locational identity.
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Ensaios, 2008, nº 17, p. 166.

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Fragmentos de uma teoria da arte. São Paulo: Edusp, 2012. p. 145.

RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. 2 ed. São Paulo: EXO
experimental org; Editora 34, 2009.

RIEGL, Alois. O culto moderno dos monumentos: a sua essência e origem. São
Paulo: Perspectiva, 2015.

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SALZTEIN, Sônia (Org.) Fronteiras: textos e entrevistas. São Paulo/ Rio de Janeiro:
Itaú Cultural/ Contracapa, 2005.

SHAPIRO, Roberta. O que é artificação? In: Sociedade e Estado, Brasília, v. 22, n. 1,


p. 135-151, jan./abr. 2007.

2051
ARTE CONTEMPORÂNEA E INTERAÇÃO COM O PÚBLICO: EXPOSIÇÃO
AXIS

Carlos Alexandre Madalena*


Lucinéia Maria Bicalho*
Eliana Aparecida Rodrigues*
Débora Tavares Octaviano*
*Universidade Federal de Minas Gerais

Resumo: A pesquisa analisa diversos aspectos do público visitante de uma exposição de arte
contemporânea – AXIS –, que disponibilizou obras do artista plástico Marco Túlio Resende, em
Belo Horizonte/MG, no período de 29/07 a 30/10/2016. O principal objetivo foi traçar um perfil
do público da exposição e compreender os motivos que levaram os visitantes a tocarem ou
deixarem de tocar nas obras expostas, considerando-se que não havia nenhuma informação
acerca da proibição ou permissão para isso em toda a exposição. Os resultados confirmaram
alguns aspectos levantados na literatura relativamente à caracterização do público de museus ou
exposições de arte, e, quanto à manipulação das obras, concluiu-se que a interatividade física do
público com as obras dependerá, em grande medida, da proximidade do visitante com o artista
ou suas obras, e da realização de satisfação pessoal de curiosidade ou impulso para conhecer
melhor a obra por meio da exploração do material utilizado em consonância com as formas
como os objetos são expostos. Concluiu-se, ainda, que a inibição ao toque dos objetos está
atrelada à cultura de “sacralização” das obras de arte, frequentemente encontrada em ambientes
de museus e de exposições. A importância social do círculo de produção artística contemporânea
(ou atual) e o status advindo de seu reconhecimento e valorização se confirmaram como valores
cultivados pelos “amigos do artista”.
Palavras-chave: Interação, Manipulação; Exposição de arte, Público de museu, Arte
contemporânea

Abstract: The research analyzes several aspects of the visiting public of a contemporary art
exhibition - AXIS -, which made available the works of the plastic artist Marco Túlio Resende,
in Belo Horizonte / MG, from July 29 to October 10, 2016. The main objective is to draw a
profile of the audience of the exhibition and to understand the reasons that led the visitors to
touch or not in the exhibited works, considering that there was no information about the
prohibition or permission for this throughout the exhibition. The results confirmed some aspects
raised in the literature regarding the characterization of the public of museums or art exhibitions
and, as far as the manipulation of the works, it was concluded that the physical interactivity of
the public with the works will depend to a great extent on how proxim the visitor is to the artist

2052
or his works, and, also, on the personal satisfaction of curiosity or impulse to know better the
work by means of the exploration of the material used, depending too on the ways objects are
exposed. It is also concluded that the inhibition to the touch of objects is closely linked to the
culture of "sacralization" of works of art, often found in museums and exhibitions. The social
importance of the circle of contemporary artistic production and the status of its recognition
have been confirmed as values cultivated by “artist's friends”.
Key-words: Interaction; Hands-on; Art Exhibition; Public of Museum; Contemporary art.

2053
Introdução
A intenção da presente pesquisa foi compreender o comportamento de público
visitante de uma exposição de arte contemporânea, com base em estudos anteriores
relacionados ao público de museus (BOURDIEU, 2003; ALMEIDA, 2004),
identificando os motivos que levam visitantes a tocarem ou deixarem de tocar em obras
expostas em locais onde não há informações acerca da proibição ou da permissão para
isso.
Para contextualização do ambiente e do artista, é importante informar que a referida
exposição de arte contemporânea – AXIS – do artista plástico Marco Túlio Resende, um dos
mais expressivos artistas contemporâneos mineiros foi montada no Palácio das Artes, um dos
mais importantes espaços públicos de promoção da cultura de Belo Horizonte, localizado no
centro da cidade. A exposição esteve aberta ao público no período de 29/07 a 30/10/2016, e, no
mesmo período houve exposições de outros três reconhecidos artistas mineiros, em galerias
distintas. A Galeria Genesco Murta (sala retangular de aproximadamente 300m2) foi
destinada à exposição objeto desta pesquisa. As obras expostas, não são peças de grande
vulnerabilidade devido ao material com que foram produzidas, sendo que algumas delas só
poderiam ser completamente observadas se fossem manipuladas, fazendo parte da novidade do
estilo inovador da arte contemporânea que disponibiliza seus produtos através de novos
materiais e novas formas de expressão e de produção artística. Suas características gerais
merecem ser mencionadas.

A arte contemporânea
Definir o que é a arte contemporânea é tarefa complexa que tem sido motivo de
muitos estudos, não sendo, por isso, pretendido fazê-lo, neste trabalho. É conveniente,
contudo, guiar a leitura pelos caminhos e entendimentos que se tem deste novo e
diversificado sistema de produção artística. Sua apreensão pelo público em geral
complexa e por isso também faz parte do desafio de se estudar e compreender como
ocorre todo o processo.

2054
Segundo Barbosa (2009), “Não dá para resumir a arte contemporânea numa só
característica, pois a pluralidade domina nosso tempo”. Para essa autora, é possível
apreender esse tipo de produção artística pela observação de uma série de aspectos que a
caracterizam, tais como:
- consciência da morte da autonomia da obra ou do campo de sentido
da arte em prol da contextualização;
- metalinguagem: reflexão sobre a própria arte;
- incorporação de matrizes populares na arte erudita;
- preocupação em instaurar um diálogo com o público e levá-lo a
pensar;
- tendência ao comentário social;
- ‘interritorialidade’ das diversas linguagens;
- tecnologias digitais substituindo a vanguarda (ITAÚ, 2009).

A produção de arte contemporânea utiliza as mais variadas formas de material e


de apresentação, podendo por isso ser considerada como a arte “pós-suporte”, cujas
definições usuais fazem seu contraponto à arte moderna ou modernista, como aponta
Rajchman (2011). Nela, as aparências perdem prioridade ante a atitude e o conceito, ou
seja, “a ideia vem em primeiro lugar e a execução da mesma fica em segundo plano por
ser pouco relevante” (RODRIGUES; CRIPPA, 2015, s/p). O surgimento desse novo
processo data dos anos 1960 ou início dos anos 1970, e, segundo Rajchman (2011),
também pode ser retratado como
o momento no qual a ideia de arte se libertou de uma série de amarras e
distinções, convenções e hábitos que se prendia — dos suportes tradicionais
da pintura e da escultura e das “habilidades” a eles relacionados; da
“produção em estúdio” e das exposições nos assim chamados “cubos
brancos”; das divisões que separavam a “alta” arte da arte comercial ou de
massa (ou da cultura popular ou vernacular); e daqueles que distinguiam arte
e vida cotidiana, ou arte de informação ou documentação e seus “aparatos”
de produção e recepção, ou arte e linguagens da crítica e da teoria.
Surpreende que a arte “visual” e suas instituições desempenhem um papel‑
chave nesse processo...” (RAJCHMAN, 2011, p. 99).

A esta primeira tese, chamada de “pós-suporte”, o autor acrescenta outras duas


que direcionam o entendimento de alguns estudiosos sobre a arte contemporânea, como

2055
“a arte da “globalização” da arte e de suas instituições” (tese 2), como forma de
resistência a uma nova forma capitalista pós-industrial, ou “uma arte sem transgressão”
(tese 3), que se baseia na afirmação de possibilidades exploradas por “conexões” ou
“grupos”. Neste ponto, estaria desprovida de teoria crítica, ou seja, “uma arte na qual o
crítico foi substituído pelo curador como novo “catalisador”do pensamento”. Embora o
autor ressalte que essas teses sejam limitadas em alguns pontos, ele discute cada uma e
ao final conclui “que, de uma maneira um tanto esquisita [...], a questão da arte
contemporânea é a questão de pensar a si mesma”.
O embrião da arte contemporânea tem origem na forma inovadora de produção
artística de Marcel Duchamp (1887-1968), Andy Warhol (1928-1987) e Leo Castelli
(1907-1999), segundo a filósofa francesa Ane Cauquelin (2005). Duchamp "faz notar
que apenas o lugar de exposição torna esses objetos obra de arte. Ele dá o valor estético
de um objeto, por menos estético que seja" (CAUQUELIN, 2005, p. 93-94). A ideia do
feito à mão é rompida com os ready-mades, industrializados, mostrando que tanto o
local quanto o artista podem dar às obras o status de arte.

Interatividade nas exposições de arte


A exposição é a conexão onde ocorre o confronto “obra-espectador” por meio da
qual o artista propõe suas ideias, questiona, dialoga e cria seu próprio contexto
expositivo. A exposição torna-se, portanto, um ambiente para o diálogo, onde a teoria, a
crítica e a história são elementos básicos para a discussão do conteúdo exibido. A
exposição é, pois, o espaço da troca de experiências, do diálogo, da discussão, da síntese
(VÁLIO, 2011).
Entende-se como uma das funções do museu exibir trabalhos de arte. A
experiência museal é uma experiência interativa cuja troca ocorre nas dimensões
sociocultural, física, temporal e pessoal (ALMEIDA, 2005 apud FARIA, 2013). O tipo
de interação chamado de hands-on (manual), realiza-se pelo toque e manipulação física

2056
das obras, e é destacada, como a principal forma de interação, pois segundo esses
autores, possibilita a produção de conhecimento e sua ampliação pela compreensão de
processos e fenômenos. Além desse tipo de interação, o autor elenca o minds on
(mental) e heart on (emoção cultural). A interatividade do tipo mental “minds on”
desafia o visitante cognitiva e emocionalmente, fazendo com que ele se manifeste de
forma crítica. Ao optar por identidades presentes ao redor do museu, a exposição
desenvolve a interatividade cultural “heart on”, incentivando a identificação, com o
acervo, do visitante da comunidade local, e despertando o visitante de outro lugar para
uma nova cultura (WAGENSBERG, 2000 apud FARIAS, 2013).
Nóbrega (2008, p.1-2) busca mostrar a percepção, seu diálogo com a arte e com
a ciência, bem como configurar relações entre corpo, percepção e conhecimento,
concluindo que a percepção está relacionada à atitude corpórea, compreensão esta que
modifica a noção de percepção proposta pelo pensamento objetivo, fundado no
empirismo e no intelectualismo, cuja descrição ocorre através da causalidade linear
estímulo-resposta.
A forma como as obras são expostas e o material utilizado para sua exposição,
ou seja, a expografia de uma exposição interativa são itens que devem ser aqui
destacados. A este respeito Studart (2005), ao se referir à forma como as exposições
interativas devem ser projetadas, afirma que os aparatos técnicos ajudam a formar
memórias, lembranças e conhecimento, uma vez que se relacionam com os visitantes ao
serem acionados e utilizados. As exposições interativas, segundo a autora, devem ter
abordagens interpretativas e sua concepção (tema abordado, design, natureza da tarefa
do aparato interativo, tempo de duração da interação, uso individual ou em equipe etc.)
afeta substancialmente a dinâmica das visitas. Portanto, todos os aspectos devem ser
cuidadosamente considerados durante o seu desenvolvimento e avaliados, antes de sua
realização definitiva.

2057
Finalmente, salienta que a interatividade não é somente uma troca de
comunicação, mas também geração de conteúdo, não estando restrita a atributos da
tecnologia, devendo-se pensar também no design dos mobiliários e dos módulos
expográficos, ou seja, da comunicação de forma ampla e dos apelos digitais
(STUDART, 2005). Os ambientes de museus e exposições de arte são privilegiados
para promoção e êxito desta forma de interação e de aprendizagem.

O público de museus e exposições de arte


Segundo a literatura sobre público de museus e exposições de arte, este pode ser
minimamente definido como “o conjunto de usuários [visitantes] do museu”
(DESVALLÉES; MAIRESSE, 2014, p. 87) e de exposições de arte. Ainda, segundo a
mesma publicação, “por extrapolação a partir do seu fim público, o conjunto da
população à qual cada estabelecimento se dirige”. É importante ressaltar que os museus,
enquanto lugares de formação − artística, histórica, científica, humanística – nem
sempre foram abertos ao público de forma geral, permanecendo, por muito tempo, como
um “território da ‘república dos sábios’”. Por isso, o interesse crescente por parte das
equipes dos museus e instituições similares pela população que os frequenta e, também,
pelos que não os frequentam, especialmente a partir dos anos de 1980, quando, com o
movimento da Nova Museologia, o papel social dessas instituições passaram a ser
fortemente buscados. O público de museus ou exposição tornou-se objeto de estudo
central na área da museologia com o objetivo principal de compreender as necessidades
e anseios dos visitantes, bem como seus hábitos de visitação (DESVALLÉES;
MAIRESSE, 2014, p. 88).
Importante pesquisa desenvolvida pelo sociólogo Pierre Bourdieu (2003)
envolvendo caracterização do público de museus levantou questões que ajudam a
entender a relação do público com os museus e será utilizada como uma das bases para
análise dos resultados obtidos nesta investigação. Embora realizada em contexto social

2058
diferente, oferece diretrizes para estudo de público em outros meios, como o caso da
presente pesquisa. Bourdieu (2003) aponta, por exemplo, o caráter sagrado da obra de
arte que “se opõe ao mundo [profano] da vida cotidiana: a intocabilidade dos objetos, o
silêncio religioso imposto aos visitantes, o ascetismo puritano dos equipamentos” (p.
168). Como solução, o autor sugere que “Para existir, o objeto deve deixar-se
'saborear'”. Um museu deveria ser o espaço em que o visitante sonolento fosse intimado
a reagir em contato com as obras sublimes, ao invés de se perder em “procedimentos
educativos que pretendem transmitir conhecimentos, mais ou menos superficiais, por
meio de conceitos puramente intelectuais”, que não conseguem atingir o público em
profundidade (BOURDIEU; DARBEL, 2003, p. 20).
Especificamente, em relação à experiência estética dos menos cultos, a conduta
dos visitantes oriundos de classes populares, segundo a citada pesquisa, estes preferem
evitar perguntar aos mediadores (se existirem) e leem as tabuletas discretamente;
sentem-se inseguros e por isso se vigiam; dão preferência pela visita com parentes ou
colegas. Ao contrário, os visitantes da classe culta, preferem fazer visitas sozinhos, não
aceitam formas de ajuda escolares e utilizam guias ou catálogos, recusando com maior
frequência os subsídios institucionalizados e coletivos para se informarem.
Ao se referir à experiência estética, os autores afirmam que esta ocorre a partir
de diferentes percepções que se estabelecem dentro de um determinado contexto, e a
partir das relações que cada indivíduo é capaz de desenvolver em contato com a obra de
arte. Seria, portanto, uma experiência subjetiva, porém há também influência de um
conjunto de instrumentos para a apropriação estética que podem ser adquiridos em
função das oportunidades e instrumentos oferecidos pelas diferentes condições
econômicas e sociais vividas pelo indivíduo. Existem, pois, diferentes graus de
apreensão estética, através dos quais se dá a configuração da obra de arte no sentido de
uma interpretação mais plena, sob os moldes de um sistema de disposições a priori não
reveladas ao espectador comum.

2059
A experiência estética dos “amigos do artista” se manifesta, sobretudo pelo
reconhecimento das obras, e, à medida que se sobe na hierarquia social, fazem citações
a outros originais e manifestam sentimentos de participar de uma cultura livre que
valoriza artistas mais inovadores, criadores contemporâneos, demonstrando terem
conhecimento sobre maior número de autores (BOURDIEU; DARBEL, p.96).
Segundo pesquisa realizada no Brasil por Almeida (2004), que também servirá
de base para análise dos resultados desta investigação, o público visitante dos museus (e
exposições) de arte é mais especializados/escolarizados, preferem fazer suas visitas de
forma solitária ou na companhia de outro adulto e é composto por pessoas que têm o
hábito de visitar este tipo de museu com mais frequência.

Metodologia da pesquisa
Para responder à questão “o que motiva visitantes de uma exposição de arte a
tocar/manusear uma obra sem que tenham sido permitidos ou proibidos de fazê-lo?”,
buscou-se, como objetivo principal, identificar esses motivos, no âmbito de uma
exposição de arte contemporânea. Buscou-se, ainda, caracterizar o público visitante da
exposição (influências pessoais, culturais e sociais), compreender os motivos das visitas
e as reações dos visitantes diante da “possibilidade” de manusear as obras.
A exposição pesquisada – “AXIS” – apresentou, basicamente, quatro conjuntos
de obras de arte. O primeiro conjunto, disposto na parede lateral esquerda à entrada e na
parede fundo da galeria de arte, era composto de cinco pinturas no formato 2,40m x
2,00m cada e 01 (uma) pintura 4,00m x 2,00m, técnica tinta acrílica e carvão sobre lona.
No centro da sala foi exposta uma instalação de 40 (quarenta) peças tridimensionais em
cerâmica, com tamanhos que variaram entre 0,65m x 0,30m x 0,25m. Essa instalação
constitui-se de mobiliário expositivo, composta de 04 (quatro) mesas de ferro e tampo
de madeira na cor preta, com dimensões 0,80m x 2,10m x 0,45m cada. O terceiro
conjunto apresentou uma mesa-objeto composta de base de chapa de aço na cor preta,

2060
dimensões 2,10m x 0,90m x 0,80m. Sobre essa mesa, foi encaixada uma instalação com
120 (cento e vinte) pinturas na técnica tinta acrílica e carvão sobre lona, com dimensão
de 1,10m x 0,75m cada. O quarto e último conjunto apresentou uma instalação de
Livros/Desenhos suspensos, composta por 240 (duzentos e quarenta) desenhos,
distribuídos em 40 (quarenta) livros com seis páginas cada, no formato 0,75m x 0,65m.
Essas obras foram realizadas sobre suporte lona “tubox” e em técnica tinta acrílica e
grafite, encadernação manual e suporte de parede (Figura 1). Por determinação do
artista, não houve colocação de nenhuma instrução ou legenda com informações de
qualquer natureza sobre as obras, em toda a exposição. A ideia do artista e do
responsável pela expografia era de que os visitantes explorassem os objetos por meio da
manipulação dos mesmos, especialmente os livros.
A amostra dos visitantes foi definida de forma aleatória estratificada e se
concentrou nas categorias: tocou/não tocou nas obras expostas. A pesquisa foi
desenvolvida com duas técnicas principais: questionário e entrevista. A base de cálculo
do tamanho da amostra utilizou como parâmetro informações sobre o número de
visitantes diários da exposição computado por funcionários do próprio local, perfazendo
uma média de 120 pessoas por dia. Os questionários aplicados continham questões
envolvendo: idade, sexo, escolaridade, atuação profissional e frequência de visitação a
espaços museais/exposições, e os respondentes foram escolhidos de forma aleatória,
buscando-se certo grau de variedade possível nos estratos relativos a sexo e idade dos
visitantes. As questões eram fechadas ou abertas, de acordo com a ocorrência ou não de
interação física do visitante com as obras.

2061
Figura 1 – Imagens da Exposição “AXIS”

Foi realizado um pré-teste (30 questionários) e os questionários finais foram


aplicados nos dias 04/10/2016, terça-feira, dia útil comercial, 12/10/2016, quarta-feira,
feriado nacional, e 15/10/2016, sábado. Ao todo, foram respondidos 123 (cento e vinte e
três) questionários.

2062
Tratamento e análise dos dados coletados:

Em relação à caracterização do público visitante da exposição, duas categorias


básicas, sexo e estado civil, os dados mostraram que 57,72% são do sexo feminino e
42,28% do sexo masculino. Entre esses, a maioria, 49,59% são solteiros, 26,5%
casados, e 24,39% informaram estar em outro estado civil.
A condição de escolaridade pode ser vista pelos dados apresentados na tabela 1:

ESCOLARIDADE VOLUME %
CURSO
PROFISSIONALIZANTE 15 12,20%
ENSINO MEDIO 52 42,28%
ENSINO SUPERIOR 48 39,02%
MESTRADO/DOUTORADO 8 6,50%
TOTAL 108 100,00%
Tabela 1 – Escolaridade dos visitantes

Registra-se que a opção Ensino Fundamental, apesar de estar presente no


questionário, não foi marcada por nenhum dos pesquisados.
A tabulação dos motivos que levaram os pesquisados a visitarem a exposição
mostra que a curiosidade foi o fator preponderante, correspondendo a 30,08% do total
da amostra:
MOTIVOS DE VISITAR A EXPOSIÇÃO/MUSEU VOLUME %
CURIOSIDADE 37 30,08%
JA CONHECE A OBRA / REVER A EXPOSIÇÃO 30 24,39%
JÁ CONHECE O ARTISTA 29 23,58%
OPORTUNIDADE 6 4,88%
PASSAGEM PELO LOCAL 15 12,20%
VISITA COM ALUNOS DA ESCOLA 6 4,88%
TOTAL 123 100,00%
Tabela 2 – Motivos que levaram à Exposição

2063
Em relação aos hábitos de visitação a museus/exposições, os dados estão
mostrados no gráfico 1.

Gráfico 1 - Modo de visitação a museus(acompanhantes)

Ainda sobre os hábitos de visitação a museus/exposições, agora em relação à


frequência com que os entrevistados costumam visitar museus/exposições, os resultados
mostram que a maioria, 54,47% dos entrevistados, visitam museus/exposições mais de 6
(seis) vezes ao ano; 27,64% visitam de 2 a 5 vezes/ano; e 17,89% visitam uma vez/ano.
Os dados relativos à proveniência dos visitantes mostraram interessantes
resultados, tendo sido analisados, primeiramente, em dois grandes setores: cidade de
Belo Horizonte e outras cidades do Estado, e em um segundo recorte, no caso dos
visitantes residentes na Capital, os dados foram analisados de acordo com as regiões
que dividem oficialmente a cidade. Os dados apontam que a maioria dos visitantes eram
moradores de Belo Horizonte – 58,53% (72 visitantes) - Tabela 3, a seguir.

2064
PROVENIÊNCIA (CIDADE) VOLUME %
OUTROS PAÍSES 1 0,81%
OUTROS ESTADOS 18 14,63%
OUTRAS CIDADES DE MG 11 8,94%
CIDADES DA REGIÃO
METROPOLITANA 17,07%
21
BELO HORIZONTE 72 58,54%
TOTAL 123 99,98%
Tabela 3 – Local de proveniência dos visitantes

A distribuição por região da Capital mostra a seguinte configuração (Tabela 4):

PROVENIÊNCIA (REGIÕES DE BH) VOLUME %


Região Centro Sul 37 51,38%
Região Leste 8 11,11%
Região Nordeste 7 9,72%
Região Oeste 6 8,33%
Barreiro 4 5,55%
Região Venda Nova 4 5,55%
Região Noroeste 3 4,16%
Região Pampulha 2 2,77%
Região Norte 1 1,38%
TOTAL 72 99,95%
Tabela 4 – Proveniência dos visitantes/Bairros de Belo Horizonte

O ponto central da pesquisa – visitantes que interagiram fisicamente (ou não)


com as obras – dividiu o grupo quase igualitariamente: 50,41% do público
(correspondendo a 62 pessoas) tocaram nas obras59 e 49,59% (61 pessoas) informaram
não o fizeram.
Os dados quantitativos relativos à ocorrência do toque das obras foram cruzados com
outros. Os primeiros resultados – escolaridade x interação física –, estão na Tabela 5.

59
As informações obtidas nas entrevistas com as 61 pessoas que tocaram as obras estão descritas
qualitativa e quantitativamente a seguir.

2065
ESCOLARIDADE x TOCOU/MANIPULOU AS OBRAS NÚMERO %
CURSO PROFISSIONALIZANTE 15 % relativo 12,20%
NÃO 12 80% 9,76%
SIM 3 20% 2,44%
ENSINO MEDIO 52 42,28%
NÃO 30 57,7% 24,39%
SIM 22 42,3% 17,89%
ENSINO SUPERIOR 48 39,02%
NÃO 19 39,5% 15,45%
SIM 29 60,5% 23,58%
MESTRADO/DOUTORADO 8 6,50%
NÃO 1 12,5% 0,81%
SIM 7 87,5% 5,69%
TOTAL 123
Tabela 5 – Escolaridade dos visitantes x interação com as obras

Quanto à frequência de visitas a museus/exposições, tem-se que quanto maior o


número de visitas ao ano, mais ocorrem interações físicas, indicando que quanto maior a
frequência a museus/exposições mais se sentem mais à vontade para tocar as obras,
conforme Tabela 6.

FREQUÊNCIA DAS VISITAS x INTERAÇÃO COM AS OBRAS NÚMERO %


NÃO 62 % relativo 50,41%
1 VEZ AO ANO 15 24,2% 12,20%
2 A 5 VEZES AO ANO 17 27,4% 13,82%
MAIS DE 6 VEZES 30 48,38% 24,39%
SIM 61 49,59%
1 VEZ AO ANO 7 11,4% 5,69%
2 A 5 VEZES AO ANO 17 27,9% 13,82%
MAIS DE 6 VEZES 37 60,65% 30,08%
TOTAL 123 100%
Tabela 6 – Frequência a museus x interação com as obras

Relativamente ao sexo dos visitantes, os dados mostram maior interação pelo


grupo feminino (57,72%) contra os (42,28%) do grupo masculino.

2066
Os motivos apresentados pelo grupo de 62 pessoas que não manipularam as
obras foram identificados, quantitativamente, e os resultados mostram que 27,62% (34
visitantes), não tocaram as obras por falta de informação ou de autorização para fazê-lo;
ainda neste grupo, 13,01% (16 pessoas) não marcaram nenhuma resposta e 9,76% (12
pessoas) relataram que não tocaram porque não queriam correr o risco de danificar a
obra exposta.
O número dos visitantes que tocaram pelo menos uma das obras expostas
corresponde a 49,59% da amostra de visitantes, o que equivale a 61 (sessenta e um)
visitantes. Os motivos que os levaram a tocar/manipular foram agrupados na Tabela 7, a
seguir.
MOTIVOS QUE LEVARAM AO TOQUE/MANIPULAÇÃO VOLUME %
CURIOSIDADE 27 21,95%
FALTA DE INFORMAÇÃO E AUTORIZAÇÃO 2 1,63%
MATERIAL UTILIZADO NA OBRA 13 10,57%
NÃO INFORMADO 7 5,69%
TENTAR ENTENDER A EXPOSIÇÃO E O PENSAMENTO DO
9,76%
ARTISTA 12
TOTAL 61 49,59%
Tabela 7 – Motivos que levaram a tocar/manipular as obras de arte

Os dados obtidos indicam que o público que compareceu à Exposição Axis é,


em sua maioria, do sexo feminino, solteiro, com predomínio de pessoas que cursaram o
Ensino Médio ou Superior (com variação de 3% a mais para os primeiros), que
preferem fazer suas visitas com amigos e que costumam frequentar museus/exposições
mais de seis vezes por ano.
Estes dados confirmam pesquisa de Bourdieu (2010) Almeida (2004) em relação
às preferências e características dos visitantes em exposições de arte, ou seja, os
visitantes de museus têm escolaridade alta. No caso de acompanhantes, esta pesquisa
mostrou, de forma diferente da de Bourdieu, que os visitantes preferem visitas na
companhia de amigos.

2067
Os principais motivos para a visitação foram a curiosidade sobre a exposição e a
proximidade com as obras do artista, por já ser conhecido.
Relativamente à proveniência dos visitantes, a maioria é morador da cidade de
Belo Horizonte e da Região Metropolitana (75,61%). Entre os moradores de Belo
Horizonte, mais da metade são provenientes da Região Centro-Sul, o que pode ser
explicado pela proximidade do local da exposição, e que também indica certa
associação à classe social mais alta, coincidente com a valorização dos bairros do
entorno. Por outro lado, a exposição foi visitada por moradores de todas as nove regiões
que dividem administrativamente a cidade, além de várias cidades da Região
Metropolitana, o que mostra que teve grande capilaridade local.
Em relação à questão do tocar ou não tocar as obras, os principais impedimentos
para que haja a interação física é a falta de informação ou autorização, seguido do
cuidado com a obra para evitar que ela seja danificada. Este aspecto confirma pesquisa
de Bourdieu sobre o efeito sacralizador exercido pelo museu. Este distanciamento
diminui à medida que a escolaridade aumenta, levando a uma relação positiva entre o
nível de formação intelectual e a plenitude da experiência subjetiva, calcada, também
nas oportunidades oferecidas pelas diferentes condições econômicas e sociais dos
indivíduos.
Os principais fatores que levaram o público a interagir com as obras expostas
foram a curiosidade sobre a obra e o material utilizado, bem como tentar entender a
mensagem do artista, utilizando o tato como complemento ao que foi percebido.
As respostas dadas pelo grupo das pessoas que interagiram com as obras foram
exploradas qualitativamente e a análise das informações obtidas é apresentada a seguir,
de forma a explicitar aspectos não perceptíveis pelos dados quantitativos da pesquisa.

2068
Parte Qualitativa da Pesquisa
A amostra qualitativa foi definida segundo critérios não probabilísticos, por
conveniência, para se tomar conhecimento dos motivos que levaram os visitantes a
interagirem fisicamente com as obras, possibilidade ainda pouco frequente em
exposições museológicas e artísticas. Assim, optou-se por incluir neste grupo todos os
visitantes da exposição que tocassem as obras. Foram utilizadas duas técnicas de
pesquisa: a observação em equipe e a entrevista semiestruturada, que previa a liberdade
de explorar mais amplamente uma dada situação, com aprofundamento de informações
de acordo com o interesse do pesquisador (LAKATOS; MARCONI, 1991). A técnica
da observação utiliza os sentidos na obtenção de determinados aspectos da realidade e
foi realizada no ambiente da exposição AXIS como instrumento para identificar os
visitantes que tiveram a iniciativa de tocar as obras, a partir do que, essas pessoas foram
acionadas para participarem de entrevista.

Tratamento e análise das informações


As respostas obtidas para explicar as ocorrências do toque às obras estão
resumidamente descritas abaixo, com seleção de algumas falas ilustrativas da situação,
emitidas pelos visitantes. Conforme mencionado, um total de 61 (sessenta e um)
visitantes interagiram fisicamente com os objetos expostos. Para melhor apresentação e
compreensão dos resultados as informações foram separadas em dois grupos de
entrevistados. O primeiro grupo foi formado por aqueles que, de alguma forma,
receberam ou tinham informações sobre a possibilidade de tocarem as obras, perfazendo
um total de 28 pessoas, ou seja, 45,9%, deste subgrupo.
A análise dos motivos relatados pelo segundo grupo – pessoas que não
receberam quaisquer informações a priori, mas que tocaram nas obras –, permitiu
identificar quatro principais tipos de motivação: 1) Curiosidade; vontade de sentir a
textura das obras e de entender o artista (25 pessoas); 2) Viu outras pessoas “lendo o

2069
livro”/tocando e desejou fazer o mesmo (6 menções); 3) Impulso/ convite ao toque (6
menções); 4) Oportunidade singular de interagir com a obra (5 menções). Partes dos
depoimentos ajudam a compreender melhor as razões que levaram ao ato de tocar a
obra.
A curiosidade aparece associada a outros motivos, como por exemplo, a
novidade e também uma oportunidade única, como se apreende pelos depoimentos a
seguir: “Toquei porque, normalmente, não se pode sentir com o toque um desenho”
(30)60; “Foi a primeira vez que isso aconteceu comigo em uma exposição” (45); “O que
me levou a tocar nas obras foi aproveitar a oportunidade dessa gentileza do artista...”
(87).
O caráter funcional ou exploração didática da interatividade da exposição foi
mencionado por duas pessoas: “Interagir com a obra através da manipulação é muito
especial e didático.” (18); “Realizei a visita a essa exposição com propósito didático e
gostei bastante do trabalho do artista.”(61).
Em muitos casos, o que provocou o ato de tocar foi o material utilizado ou o
formato em que as obras foram expostas: “O material utilizado é muito interessante,
sendo similar a um tecido encorpado, porém é sintético” (17); “Também sou artista e
fico procurando novos materiais. Além da beleza do exposto, o material me chamou a
atenção para tocar.” (55); “A forma exposta era um convite à manipulação.” (60);
“Queria saber como o artista imprimiu as imagens, depois percebi que eram desenhos.”
(62); “Toquei nos desenhos abertos e fiquei muito curioso com o material utilizado e a
forma que os desenhos foram expostos.” (69); “Toquei e mexi bastante, porém quero
voltar, pois estou muito curioso com o material e com o traço do artista.” (85); “...
curiosidade sobre a forma que foi pendurada na parede. Os livros abertos foi o que eu
toquei [...]. Dei uma passada de mão para sentir a textura e a queima [...] da cerâmica.”
(94); “Toquei na obra porque senti vontade de perceber a textura e ver os outros

60
Os números entre parênteses correspondem à identificação dos entrevistados na pesquisa.

2070
desenhos que estavam sem ser mostrados.” (106); “Eu toquei nas telas penduradas. Tive
curiosidade em ver como foi exposta sem as molduras. Muito bom!” (116); “Toquei
porque as obras nos convidavam a serem tocadas.”(121); “... a obra convida para ser
manipulada, pois é um objeto livro” (103); “Toquei por impulso, meio escondido, muita
curiosidade em ver mais a história dos livros descrita em forma de desenho.”(109).
A falta de informação explícita ou a “consciência” de que não deveria haver a
manipulação não impediu o toque: “Mesmo sem autorização, percebi que a obra
convida para ser manipulada...” (103); “Toquei nas obras que estavam em uma mesa em
forma de um grande livro. Sem autorização mesmo, pois não havia nenhuma forma de
impedimento”(118).
Alguns depoimentos revelam sensações diversas e níveis diferentes de satisfação,
cuidado e interesse resultante da interação: “Foi uma experiência maravilhosa, gostei
bastante de perceber o volume de desenhos e algumas características do artista que
somente percebe-se quando está com uma observação muito próxima. Adorei a
experiência”(49); “Emocionada com tudo o que foi apresentado. Uma alegria conhecer
o trabalho do artista Marco Tulio”(24); “Toquei por várias vezes, buscando as imagens
que mais estão presentes no trabalho do artista, como a asa, a escada, a faca e os
números e datas. A série “Diário” é muito linda”(61); “Manipular as obras foi
demais”(90); “Como poderia não tocar nessa maravilha?”(91); “To-quei por amor ao
trabalho do artista”(114); “Eu adorei tocar nos desenhos e sentir as texturas e as
marcações do artista”(102); “Toquei a obra com as mãos por muitas vezes. Quando vi
outros visitantes tocando nas obras de arte, eu também toquei e fiquei muito feliz” (57).
Em alguns casos, o toque foi realizado, porém com o devido cuidado e respeito, como
relatado em dois depoimentos: “Toquei na obra exposta com muita atenção e carinho”
(27); “Toquei por curiosidade, com muito respeito ao trabalho do artista” (121).
Um grupo de 11 (onze) entrevistados informou possuir alguma proximidade com
obras do artista ou com o próprio artista. Tal fato facilitou a compreensão de que as

2071
obras poderiam ser tocadas, mas é aqui mencionado por ser um fato significativo para
esta pesquisa. Representa um percentual de quase 20% dos visitantes. Entre outros
depoimentos: “Fui aluno e assistente de atelier do Marco Tulio...”(11); “Conheci os
trabalhos em Paris...”(15); “Já produzi uma exposição do Marco Túlio...”(19); “Estou
muito próxima à obra do Marco Tulio”(25); “Conheço o trabalho do artista...”(61).
A análise das declarações dos visitantes indicam, primeiramente, que a
realização do contato físico com as obras provoca reações e sensações nos visitantes que
intensificam a forma como os mesmos vivenciam a experiência da visita. Pode também
ser inferido que a possibilidade é uma novidade que agrada a quem participa dela,
mesmo para aqueles que já conhecem o artista ou sua obra. Pode-se afirmar que este
resultado confirma posição de Bourdieu (2003) de que “Para existir, o objeto deve
deixar-se 'saborear'”. Explicitamente, a possibilidade de tocar a obra é algo quase
“profano” que pode ser percebido pelos depoimentos de que o toque foi feito de maneira
respeitosa e com cuidado para não danificar, mostrando a presença de uma certa
“sacralidade” das obras..
O material e a forma utilizados para apresentar as obras também chamou a
atenção dos visitantes levando muitos ao “impulso incontrolável” de tocar as obras e
“sentir” sua textura, ou mesmo conferir como foram expostas.
A experiência estética do círculo de “amigos do artista” (BOURDIEU;
DARBEL, 2003) se mostrou na exposição de forma expressiva, confirmando valores do
mundo contemporâneo em relação à arte.

Considerações finais:
Pelos resultados é possível confirmar alguns aspectos de pesquisas anteriores,
em especial Almeida (2004) e Bourdieu (1999) sobre público de exposição de arte,
como a questão da alta escolaridade, o fato de que esse público ter o hábito de visitar
exposições com frequência e sua preferência por visitá-las na companhia de outro adulto

2072
ou sozinho. É composto principalmente por mulheres, com escolaridade dividida entre
Ensino Médio e Superior, com tendência a fazer seis ou mais visitas a museus por ano,
na companhia de amigos. Confirmou-se também a importância da experiência estética
dos “amigos do artista” identificado por Bourdieu, muito clara nos depoimentos.
O público é, em sua maioria, proveniente da Região Centro-Sul de Belo
Horizonte, o que indica o predomínio de classe socioeconômica alta, embora a
exposição tenha sido visitada por moradores de todas as regiões da cidade e de cidades
da região metropolitana (além de visitantes de outros Estados e cidades do interior),
Em relação à motivação para tocar ou não uma obra de arte, verificou-se que
quanto maior o grau de escolaridade e a frequência aos museus/exposições mais as
pessoas se sentem à vontade para tocar as obras. Este fato talvez possa ser explicado
pelo conhecimento de que obras de arte, especialmente da Arte Contemporânea, não
são, normalmente, “sacralizadas” como costumavam ser anteriormente.
Os motivos que levam as pessoas a tocarem as obras estão predominantemente
ligados à curiosidade e à vontade de compreender melhor a mensagem do artista. Os
sentidos são utilizados, nestes casos, para entender o processo criativo do artista e as
escolhas de materiais e suas composições físicas. Às vezes, a oportunidade de tocar as
obras representa uma distinção para o visitante, uma oportunidade de aprendizagem,
quase um prêmio, além de satisfazer motivações de cunho pessoal traduzidas como
desejo, impulso e maior proximidade com a obra e o artista.
Outro aspecto a ser destacado, e que não foi previsto nas duas pesquisas citadas
como referência, é o fato de que muitos visitantes tocaram as obras ou visitaram a
exposição para se fotografarem (selfies, principalmente) e publicarem as fotos em redes
sociais, numa clara indicação do valor atribuído à associação da pessoa a um ambiente
“culto” e de “alto nível” social, mesmo não fazendo parte de seu círculo de amizade.
É necessário mencionar dificuldades e limitações da pesquisa. Entende-se que
ela teria sido mais completa se o número de visitantes aos quais se aplicou a entrevista

2073
tivesse sido ampliado, abrangendo também as pessoas que não tocaram as obras, o que
ofereceria, possivelmente, respostas mais diretamente relacionadas às limitações do
processo como um todo, em relação aos visitantes. Não foi possível fazer análise
satisfatória das imagens captadas por vídeo, o que acabou inviabilizando seu uso e
inclusão nos resultados. Outra limitação foi a curta duração da exposição, fato que
impediu que fossem feitas revisões, reavaliações ou novas aplicações de questionários
ou novas observações no local.
Conclui-se que a oferta da possibilidade de interação física do público com as
obras expostas foi uma maneira muito bem sucedida de aproximação do artista com seu
público. Pelo lado dos visitantes, essa possibilidade propiciou aproximação, maior
compreensão das obras, a realização de desejos pessoais e de impulsos, bem como a
satisfação da curiosidade, que ao final, é o que leva a maioria dos visitantes a museus e
exposições.

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2075
MUSEOLOGIA E ARTE CONTEMPORÂNEA: CONEXÕES POSSÍVEIS ENTRE
A PERFORMANCE E A DOCUMENTAÇÃO

Jéssica Simone da Silva Santos*61


Neila Dourado Gonçalves Maciel*62
*Universidade Federal de Sergipe

Resumo: O seguinte artigo traz reflexões sobre a Arte Contemporânea, especialmente sobre a
linguagem da Performance, pretendendo apresentar essa linguagem artística numa interseção
com o campo da Museologia, afim de trazer algumas discussões sobre documentação de obras
de arte contemporânea nos museus, apresentando alguns dos principais desafios encontrados na
área e alguns métodos que podem ser buscados para organizar acervos que tem como ênfase o
conceito e não o objeto. Como é sabido, as performances possuem uma complexidade, assim, e
ao pensá-las como acervo, institucionalizado, é possível perceber que a recuperação e
salvaguarda deste tipo de linguagem nem sempre é possível sem que seja feita a fragmentação
dos dispositivos utilizados para a transmissão do conceito da obra. O estudo de suas
especificidades garante que sejam compreendidas de maneira mais ampla a variação de
materiais, técnicas e propósitos que podem ser utilizadas tanto em seu tratamento, quanto em
seus diálogos, para que assim a potência da obra seja ampliada. Entretanto, a linguagem da
performance é algo que se mantém distante da maioria das instituições porque não é um acervo
físico que pode ficar em exposição, mas isso não impede que estas sejam inseridas nos acervos
das instituições museológicas. Este artigo, portanto, tenta problematizar sobre a documentação
das performances como espaço de experimentação, fazendo com que estas obras possam estar
em discussões e assim buscar novas formas de preservação dentro da área museográfica que
atenda uma maior variedade de coleções.
Palavras-chave: Performance; Arte Contemporânea; Documentação; Acervos.

Abstract: The following article reflects on Contemporary Art, especially on the language of
Performance, intending to present this artistic language in an intersection with the field of
Museology, in order to bring some discussions about documentation of contemporary works of
art in museums, presenting some of the main challenges Found in the area and some methods
that can be searched for to organize collections that have as an emphasis the concept and not the
object. As it is known, the performances have a complexity, so, to think them as a collection,
institutionalized, it is possible to perceive that the recovery and safeguarding of this type of
language is not always possible without the fragmentation of the devices used for the
transmission of the Concept of the work. The study of its specificities ensures that the variation
of materials, techniques and purposes that can be used both in its treatment and in its dialogues
are understood in a broader way, so that the potency of the work is amplified. However, the
language of performance is something that remains far from most institutions because it is not a

61
Discente do curso de Museologia da UFS
62
Docente do departamento de Museologia da UFS

2076
physical collection that can be exposed, but this does not prevent them from being inserted into
the collections of museological institutions. This article, therefore, tries to problematize on the
documentation of the performances, which usually have a script specifying how and where it
will occur and all the necessary details for its accomplishment, being able to be re-presented
when it is necessary or requested, what places it like space of Experimentation, ensuring that
these works can be in discussions and thus seek new forms of preservation within the
museographic area that serves a greater variety of collections.
Key-words: Performance; Contemporary art; Documentation; Collections.

2077
Introdução

A arte contemporânea está cada vez mais inserida nas discussões e nas
instituições museológicas que contém obras com este viés, que por isso conta em seu
acervo com uma ampla variedade de coleções que precisam ser trabalhadas, devendo
fazer um tratamento informacional, que nada mais é que a documentação museológica,
que permite garantir a disseminação de informações para seu público, o que faz com
que a linguagem utilizada em seus sistemas seja de acordo com o seu respectivo acervo.
Dentro desses espaços que englobam a arte contemporânea há uma necessidade por
mecanismos que resguardem tais acervos e que trabalhem com diferentes suportes
diante das mais variadas propostas.

Assim, este trabalho tem como objetivo problematizar a documentação


museológica de obras de arte contemporânea que são determinadas por suas
características, e a institucionalização destas em meio às dificuldades encontradas
durante o processo de realização da salvaguarda, entre outras questões referentes ao
processo museológico. Para tal empreendimento, tomaremos como referência o estudo
da performance e suas formas de apresentação.

A linguagem da performance oferece-nos vários desafios, visto que, ao tentar ser


resguardada em acervo museológico enfrenta uma dificuldade muito grande na
realização do processo de documentação, por se tratar de obras efêmeras e exigir outras
estratégias metodológicas, já que estes acervos tem o conceito a se preservar, por ser um
movimento de contestação em que o performer irá formar um conceito, e através de
símbolos expressar essa ideia.

Surgindo na segunda metade do século XX, a performance, denominada como


manifestação de arte contemporânea, ou seja, uma arte desenvolvida em meio um tanto
confuso, em que não se sabia ao certo o que estava acontecendo, e que conta com

2078
muitas as possibilidades de se trabalhar, o artista é quem passa a definir a proposta e
diante do que ele está pretendendo transmitir, com materiais e técnicas pré-definidas
esta será elaborada, sendo muito difícil de se definir já que diferentes autores a
apresentam como uma linguagem “híbrida”.

Muitos autores afirmam que a arte das performances surge através de


manifestações que ocorreram entre a década de 1940 e 1960, como “Action painting”
com Jackson Pollock, quando em seus trabalhos utilizava a técnica de jogar a tinta
diretamente em suas telas sem utilizar pincéis ou qualquer outro tipo de ferramenta para
desenvolver suas pinturas causando efeitos com as maneiras em que ele derramava a
tinta, dentre outras manifestações que deram um direcionamento para a chegada da
performance.

Apesar de sua característica anárquica e de, na sua própria razão de


ser, procurar escapar de rótulos e definições a performance é antes de
tudo uma expressão cênica: um quadro sendo exibido para uma plateia
não caracteriza uma performance; alguém pintando esse quadro, ao
vivo, já poderia caracterizá-la. (COHEN 2002, p, 28).

Partindo deste conceito dado por Renato Cohen, que trabalha com a questão da
relação de performance com o teatro, pode-se perceber que se trata de uma linguagem
que é multidisciplinar já que nesta se incorporam outras linguagens como o teatro, a
dança, a música. Afim de se aproximar de forma que envolva muito mais o público em
seu desenvolvimento, causando sempre uma reflexão da arte sobre a vida, levantando
questionamentos e deixando livre a interpretação que pode ser múltipla, o fato de uma
obra ter uma intenção e deixar que esta intenção transpareça de forma a fazer que o
público tome aquilo como a forma que ele deveria entender é limitar a arte de maneira a
torná-la estática, pois não precisa deixar de ter uma proposta para a obra a desenvolvê-
la, mas também não vai taxar uma forma de se ver sem ir além do que está visível.

2079
Documentação de obras de arte contemporânea

Com as novas discussões dos campos artístico e museológico surgem também


algumas questões diante do processamento das informações diante das produções, como
também nas práticas curatoriais em relação a questão do arquivo, quando a obra é
também um arquivo, e como tem sido essas problematizações já que:

As linguagens contemporâneas – dentro do processo de


desmaterialização artística, das práticas conceituais empreendidas a
partir dos anos 1960, das hibridações no campo da linguagem e da
incorporação da dimensão do tempo e do processo em seu fazer –
trouxeram para o debate as questões simbólicas e o entendimento
sobre arte, mas também indagações sobre as práticas arquivais
habituais. (ARANTES, 2006, p. 103, 104).

Que apesar de se tratar de conceito, de artista, quem estiver realizando o trabalho


prático dos processos museológicos pode ficar na dúvida sobre tais questões de como
interpretar os conceitos trabalhados a partir de materiais que colaboram para a
transmissão da ideia, tendo então que estar totalmente engajado com as discussões e o
contato com o público que participou e até desenvolveu junto os conceitos propostos
pelo artista, o que traz inúmeros desafios às metodologias trabalhadas pela figura do
museólogo ao trabalhar a documentação a partir do acervo que já se encontra na
instituição e que permanece sem trato, para que então este seja pesquisado e levantadas
referências que promovam o alcance das informações, como no caso de acervos
tradicionais.

Para a realidade dos acervos contemporâneos, e em especial das obras efêmeras,


há uma aproximação maior em relação com o profissional que tratará tais propostas, já
que é de grande importância, que este esteja presente em grande parte do
desenvolvimento da obra ou do artista para que consiga fazer o registro do conceito de
forma mais fiel possível. E o pesquisador passa a ter uma possibilidade imensa de

2080
materiais para novas formas de comunicação, os dispositivos que surgem a partir desta
nova lógica são inúmeros.

E na documentação Museológica esse registro da informação deve ser feito de


forma que se tenha o máximo possível de dados sobre a obra e que isto venha a
colaborar para o que posteriormente seja planejado se fazer com tal acervo,

Cabe ressaltar que essa documentação possui essencialmente o


objetivo de organizar e de possibilitar a recuperação da informação
contida em seu acervo. Uma vez realizadas essas ações, os objetos
e/ou as coleções museológicas se tornam fonte de informação (para
curadoria, pesquisa científica, ações culturais e educativas,
publicações diversas, entre outras) que poderá produzir novos
conhecimentos. (PADILHA, 2014, p. 35).

E a padronização que é buscada ao se trabalhar com documentação em se tratar


de acervo efêmero torna-se mais difícil ainda, pois, a variedade e falta de dispositivos
adequados e especialização no momento atual, não permite que isto seja alcançado de
imediato e sobre a obra talvez não reste nada que possua materialidade, para que se
possa preservar além de sua ideia. Portanto, acredita-se que uma das alternativas é
garantir registros que sirvam de documentos que permitam a permanência destas
linguagens.

Lima afirma (2010) que será a partir das décadas de 1970 e 1980, que haverá a
distinção entre o moderno e o contemporâneo, quando artistas, críticos se dão conta que
as novas formas de construção da obra de arte vão se distanciando da arte moderna e do
seu espírito de revolução e ruptura. Então é com a arte conceitual que a arte
contemporânea acaba atingindo os espaços de maneira mais abrangente em que a ideia
do fazer artístico se torna a obra e o objeto já não é mais o protagonista e essa arte acaba
se sustentando também em movimentos passados.

2081
As conexões entre arte contemporânea e a documentação são um campo em
construção no Brasil e que acaba passando por vários desafios, pois, as formas de
preservação dessas obras ainda são muito recentes e sem segurança, deixando muito a
desejar por conta de vários problemas em relação aos sistemas de inventário, as
tipologias de acervo também são muito variadas, o que as vezes chega a dificultar o
trabalho dos responsáveis pelo tratamento do acervo, já que a instituição muitas vezes
não dispõe de meios tecnológicos para garantir uma maior disponibilidade de
informação.

Tecnologias que inclusive são atualizadas rapidamente promovendo também


uma instabilidade de guarda. Por isso sustentamos que é importante que seja realizado a
parte manual do processo como uma forma de assegurar as informações que por
acidente possam ser perdidas e o detalhamento das informações são essencialmente
necessárias para que o processo de registro seja amplo nas suas especificações.

A documentação vem como uma forma de preservar uma obra já que se houver
materialidade esta pode não existir mais a determinado período de tempo, e quando já
não há a materialidade ao se tratar das obras contemporâneas, como o caso da
performance aqui analisada, que busca preservar seu conceito, sem o advento da
documentação não será possível que futuramente se tenha qualquer aspecto preservado,
já que pode não existir mais o artista para contar a história, e Silva trata desse aspecto:

Se para um objeto material ou em uma obra de arte tradicional as


informações extrínsecas permitem a ampliação da condição
informacional do objeto como documento, no caso das obras
contemporâneas imateriais ou relacionais essas informações e suas
respectivas estruturações dentro de um sistema de documentação, são
imprescindíveis para a existência da obra. (SILVA, 2014, p. 188).

E entre o trabalho de reunir as informações deve-se fazer uma reflexão acerca do


que é documento já que muitas das obras contemporâneas confundem-se podendo ser

2082
tanto o documento como a obra ao mesmo tempo, sendo que o vai definir vai ser a
intenção do artista. E a informatização destes acervos de materiais não convencionais e
que precisam de cuidado especial, sendo que o fluxo do material é permitido por meio
de uma base de dados em que será propício para articulação de obras que precisam ser
desmembradas pela distinção de suportes como aponta Silva:

Mais do que uma ferramenta para a execução do projeto institucional,


a base de dados é fundamental para a manutenção das obras de suporte
complexo. As linguagens efêmeras, imateriais ou relacionais, por
prescindir da fisicalidade, dependem de mecanismos estratégicos de
materialidade temporária. (SILVA, 2014, p. 188).

Os elementos que compõe a obra e que sofrem por serem frágeis quando são
separados por setores pode resultar na perda por parte ou até total do conceito que foi
proposto por seu autor. Então, existindo a normatização dos instrumentos pode ser
realizada a organização com conhecimentos específicos sobre a obra e por seus
respectivos suportes evitando alguns problemas de terminologia.

Performances e formas de documentação Museológica

A museologia perpassa muitas barreiras, como lançar-se diante de diálogos que


envolvem diversas áreas, mas que acaba absorvendo imensas contribuições permitindo
desenvolver e aperfeiçoar até seu senso crítico frente a novas formas e meios de alcance
pela comunicação de seus projetos e exposições, e como as relações de aproximação em
meio aos desafios são necessárias, assim também algumas metodologias para que a
percepção se torne mais abrangente já que:

“A interdisciplinaridade delineia seu caráter alcançando visão polimorfa,


multifocal, inspira movimentos conectivos, propõe superar as facetas parciais de análise

2083
e de crítica, estimulando parcerias que se prestam à construção epistemológica da
unidade do conhecimento”. (LIMA, 2003, p. 04).

Se torna um caminho para aprofundar e criar novas buscas pelo saber,


funcionando como impulso para novos alcances em que ao se deparar com a
multiplicidade de conexões possíveis torna a pesquisa mais satisfatória pelo alcance de
teorias que podem ser experimentadas. E na arte das performances são utilizados
diversos conceitos e que na maior parte está ligado ao tempo presente.

As fotografias podem funcionar como um meio de documentação da


performance, onde a partir da imagem são percebidos e captados certos detalhes
refletidos na escolha de certos ângulos que podem retratar um conteúdo paralelo e,
associadas aos registros da escrita, são traduzidas algumas emoções, e impressões não
captadas pelas fotografias.

Segundo Freire (2006), essa preponderância da ideia, a transitoriedade dos meios


e a precariedade dos materiais utilizados, aliado a uma atitude crítica às políticas dos
museus, provocaram um estranhamento entre os artistas e as instituições na década de
1970, fazendo com que algumas manifestações fossem praticadas e expostas em
circuitos alternativos. Daí uma das finalidades da documentação de performances é de
fazer com que atinja um público maior, já que no geral ocorre em um determinado local,
com determinadas pessoas e que talvez não venha a ser repetida novamente.

E a tomada de novos espaços, trazendo propostas de concepção tanto da arte


como de como essa arte é vista e compreendida, lança-se então uma proposta de formas
de apreensão pelas instituições e de como estas podem contribuir para sua disseminação
e:

Em face dessa ambientação mista de conhecimentos, capitais


simbólicos, cuja configuração se enquadra pelos estudos da

2084
interdisciplinaridade na ‘categoria’ “híbrida”, a informação em arte
vem estabelecendo articulações para integrar as diversidades de
conteúdos, linguagens e atividades em processo de elaboração
combinada nas práticas relativas à geração, ao processamento e à
disseminação da informação. (LIMA, 2003, p. 24).

O conhecimento é alimentado a partir dessas trocas de experiências que


transcorre no meio em que são gerados e desenvolvem conceitos que são utilizados
como apoio para ambas as partes garantindo sustentação para outras possibilidades, e o
não-lugar buscado pela arte a partir de então configura formas de apreensão muitas
vezes desafiadoras pelo público que acaba sendo inserido num misto de possibilidades
de experimentação que inclui este como agente da obra ao mesmo tempo o que faz com
que permaneça e propicie um pertencimento maior e mais próximo, despertando a
criatividade em cada um.

Na documentação é feita uma reconstrução, mas que acaba sendo fragmentada e


incompleta, daí no inventário deve conter a origem dos materiais, técnica e processo
criativo, histórico desses materiais, condições de exposição e instalação para que se
possa incrementar as informações que auxiliem na busca por atingir formas a garantir o
máximo de acesso a informação da obra.

A concomitância da obra e de sua documentação constitui um exemplo


recorrente no domínio da performance. É muito comum que uma performance só seja
“encenada” pela perspectiva de realização de seu registro fotográfico, fílmico ou
videográfico”. (BÉNICHOU, 2013, p.179).

Todavia, algumas performances acontecem sem plateia, sendo exclusiva para ser
fotografada, onde chama-se de “fotografia performada”, que acontece de uma forma não
espontânea. Sendo ensaiada, confunde com o fato de ser ou não uma documentação esse
tipo de registro, tornando-se, portanto, um evento que nunca aconteceu a não ser na

2085
foto. Tal questão gera discussões se seria então fotografia, como outro trabalho, ao
invés de performance, cuja presença do público só viria posteriormente, diante dos
registros fotográficos ou videográficos, e não diante da ação ao vivo, como no trabalho
a seguir de Rettamozo “Ar/Reta”. (é uma obra que consiste em um envelope contendo
três folhas de tamanho A3, nas quais estão impressos trabalhos fotográficos e poemas.
Nestas fotografias o artista opera nas fronteiras entre as linguagens performática e
fotográfica. Estes trabalhos fotográficos afirmam uma poética entre a performance e a
fotografia, no qual a fotografia não é o registro de uma ação ao vivo, mas o lugar de seu
acontecimento disponível e: https://colecaolivrodeartista.wordpress.com/2015/05/26/ar-
reta/).

Ar/Reta
Rettamozo (Luiz Carlos Ayalla Rettamozo – São Borja/RS, 1948)

E também a obra “Blinks” de Vito Acconci de 1969, que levanta questões sobre
o acontecimento da performance, já que o artista caminhava em uma rua deserta
fotografando, em que tentava não piscar.

2086
Vito Acconci, Blinks, 23 de novembro de 1969; tarde.
Photo-piece, Greenwich Street, Nova York;

https://performatus.net/traducoes/perf-doc-perf/

Considerações finais

Neste artigo foi possível adentrar rapidamente nas discussões sobre a arte
contemporânea e sua inclusão ao acervo das instituições museais que resguardam tais
obras e suas respectivas abordagens. As instituições devem rever suas práticas
museológicas convencionais para adequar os acervos contemporâneos, pois a
necessidade de guarda e conservação da informação é algo muito importante e os
paradigmas modernos de classificação e a separação por meios e técnicas são
ineficientes e o fluxo entre alguns espaços são resultantes dessa ineficácia.
E o problema de guarda que esse tipo de obra possui que já não depende mais de
um espaço que se destine a isso, mas sim espaços pela sua variedade de suportes, o que
acabou por dificultar mais ainda o fazer museográfico dentro do museu e que ainda há
muito o que se buscar para a melhoria e diminuição da complexidade nas relações entre
os museus e a preservação.

2087
São poucos os museus que possuem performances em sua coleção, por ser uma
forma difícil de aquisição, por se tratar de instruções e também por não ser a intenção da
maioria das performances que seja realizado essa guarda institucional, e aí entra
também o fator de que muitas das vezes é o autor da obra que a executa, sendo então
mais fácil de ser atualizadas as performances que não são exclusivamente realizadas
pelo autor da obra.
E a instituição para se propor a integrar acervos também não precisa ter
definição, não precisa ser especificamente uma instituição exclusiva para acervos de
obras contemporâneas. Se na obra esses questionamentos como de quebra, rompimento
de ideais, de definições, são tão evidentes, certamente a proposta realmente é de
integração desses acervos em diversos espaços e porque não em todos, já que a obra
pode dialogar com o tempo presente e tornar possível os diálogos sem que seja pré-
concebido um padrão de lugar, até porque não vai existir uma instituição dita ideal para
obras contemporâneas. Os museus existentes para tal finalidade são para concentrar um
acervo maior de obras com tal caráter, mas não significa que seja um padrão de museu
destinado a estes acervos, claro dependendo da linguagem trabalhada.

Referências Bibliográficas
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em: 03/04/2017.

2089
UMA POÉTICA NO ARQUIVO DO ARTISTA: O CONTÍNUO DESDOBRAR
DAS PAISAGENS DA MEMÓRIA DE GERALDO RAMOS

Madalena Felinto Geraldo Ramos*


*Universidade Federal do Pará

Resumo: Esta comunicação põe em movimento o desarquivar do processo de criação do


projeto de pesquisa "Uma poética no arquivo do artista: o contínuo desdobrar das paisagens da
memória de Geraldo Ramos". O desarquivar é concebido como gesto disparador de proposições
epistêmicas compreensivas, uma espécie de "poiésis epistemológica", um conceito engendrado
pelo pesquisadora na tessitura do projeto. Tal conceito é mais afeito ao encontro do "entre" na
pesquisa, como pesquisadora e interlocutor atravessam-na, e menos habituado a localizar a
essência do conhecimento que é posto em ação. Porquanto “desdobrar” é o operador
metodológico que atravessa não só a escritura desta pesquisa, mas também a pluralidade de
arranjos que as paisagens da memória inscrevem como esgarçamentos desta proposição, o
trabalho convoca o acompanhamento de quatro dispositivos, quatro "desdobramentos", que
enlaçam a escrita corporificada, construída em tautocronia aos deslocamentos empreendidos
pela pesquisadora e o artista pelas paisagens da memória do interlocutor, deslocamentos que
implodem as concepções costumeiras de espaços vividos e momentos lembrados, já que se
permite adentrar o terreno fluídico da imaginação criadora de ambos os construtores desta
narrativa, brincando com os referenciais mais palpáveis que habitam essas paisagens. Os
dispositivos são o caderno de campo / diário de bordo, o livro do artista, o diário dos sonhos e o
caderno do projeto poético concebido como exposição, o qual atravessa a pesquisa, todos em
processo.
Palavras-chave: poética em arquivos; paisagens da memória; poiésis epistemológica; Geraldo
Ramos.

Abstract: This communication sets in motion the unleashing of the process of creating the
research project "A poetics in the artist's archive: the continuous unfolding of the landscapes of
the memory of Geraldo Ramos". Unarchiving is conceived as a trigger for understanding
epistemic propositions, a kind of "epistemological poise", a concept engendered by the
researcher in the design of the project. Such a concept is more conducive to the encounter of the
"between" in the research, as the researcher and interlocutor cross it, and less accustomed to
locate the essence of knowledge that is put into action. Because the "unfolding" is the
methodological operator that crosses not only the writing of this research, but also the plurality
of arrangements that the landscapes of the memory inscribe as scrapes of this proposition, the
work summons the accompaniment of four devices, four "unfoldings", the Which enclose the
embodied writing, constructed in tautochronology to the displacements undertaken by the
researcher and the artist through the landscapes of the interlocutor's memory, displacements that
implode the habitual conceptions of lived spaces and moments remembered, since it allows to

2090
enter the fluidic terrain of the creative imagination of both The builders of this narrative, playing
with the most palpable references that inhabit these landscapes. The devices are the field
notebook / log book, the artist's book, the dream diary and the exhibition design notebook that
goes through the research, all in the process.
Key-words: poetics in archives; landscapes of memory; epistemological poiesis; Geraldo
Ramos.

2091
Das paisagens da memória à poética em arquivos: experienciar aberturas
Guimarães Rosa: “abro a paisagem”. Minha referência é a abertura de paisagem
de Rosa. São paisagens-modos-de-fazer, são jeitos-memórias-desenhadas, maneiras-
incorporações-desformas. Essas paisagens bebem numa concepção de memória tão
incorpóreas quanto elas, rejeitam Cronos e convocam Aion para as escrituras. Portanto,
estão mais afeitas aos modos de fazer, à observância dos procedimentos, às invenções
memorialísticas: uma memória como de uma velha louca que não reconheceu as marcas
do tempo no próprio corpo e persiste no verbo as vivências de outrora. Tem horror às
ditas “presentificações” do que houve por meio do verbo simplesmente porque seu
tempo é o agora. A partir de algumas leituras propostas na disciplina “Artes, patrimônio
cultural e memória: da salvaguarda à produção de narratividades”, tem-se repensado,
especificamente no quesito métodos e procedimentos metodológicos, o quanto das
estratégias da história oral podem ser disseminadas na feitura dessa pesquisa, embora
não mencionem explicitamente esse método e este seja objeto de reflexão quanto à
eficácia das narrativas em produzir possíveis verdades.

Assim sendo, o presente projeto-devir propõe o estudo de um arquivo


fotográfico constituído ao longo de mais de quarenta anos de atividade profissional do
fotógrafo paraense Geraldo Ramos (1950), em face dos estudos que tangenciam a
apropriação de arquivos no âmbito das artes e em diálogo com as contribuições
epistemológicas advindas da ciência antropológica, especificamente em relação às
discussões que tratam sobre as paisagens arquivadas. Embora os estudos sobre arquivos
estejam no domínio de um campo que os tomam primordialmente enquanto repositórios
documentais e fontes de consultas, não se trata aqui, enquanto proposta de estudo, das
elucubrações técnicas que envolvem a arquivística, mas de experimentações de cunho
conceitual e metodológico que, para além dos usos tradicionalmente tributados aos
arquivos, refletem os usos que são dados a eles pelos seus detentores. Desta forma, o

2092
percurso investigativo do arquivo em questão será conduzido na perspectiva do olhar do
seu detentor, Geraldo Ramos, por meio dos sentidos que o fotógrafo dá às imagens que
estão em repouso em armários, pastas-arquivo, gaveteiros e outros suportes. Essas
imagens, inicialmente retiradas do seu locus de guarda, serão “desdobradas”, literal e
conceitualmente, à maneira das reflexões empreendidas no campo da imagem pelo
historiador da arte francês Georges Didi-Huberman (1953), segundo o qual as imagens
devem não só ser observadas, mas também “desdobradas e abertas” (2007, p. 45).
Imagens-força, imagens pensadas ou não pelo interlocutor das experimentações em
diálogo constante com a propositora desse percurso. No regime das imagens que
compartilham das experienciações epistemológicas dos saberes produzidos nesse
percurso, inventariamos uma espécie de tipologia das imagens dessa pesquisa. Temos
imagens que nos “dão as mãos” nessa escritura, aquelas mesmas que se alvoroçam no
meu interlocutor de pesquisa e me atravessam como que por osmose. São as histórias,
as deambulações pelas paisagens, os esforços por narrar os asteriscos que a ponilha
deformou. Já outras, irromperam o desenho da pesquisa: pastas-arquivo, fotos de uma
Amazônia paraense. Elencamos, também, as imagens que vêm sendo produzidas no
decorres desse desenho epistemológico, são os “produtos” da pesquisa: Paisimagem
(poema/ conceito); Paisagens de lance (Como desarquivar um arquivo, instalação);
Feeling Blue (projeto artístico que dialoga arquivo e cianotipia); Flumen (proposição
artística que conjuga arte e documento); Sonoras Paisagens (áudios, narrativas). Em
suma, a nossa pesquisa elegeu o conceito imagem como propositor desse desenho
epistemológico, e como o atravessamos é o mote desse itinerário. Chamamos de
“poiésis epistemológica” ao movimento de produzir conhecimento por meio da
pesquisa, à essa convocação epistemológica a qual é acompanhada de obras artísticas
como experienciações, atravessamentos no meio da pesquisa acompanhada de escrituras
dissertativas.

2093
O movimento de ‘desdobrar” a imagem de arquivos vistos não só como espaços
de guarda pretende, ao abrir os suportes e espraiar seu conteúdo imagético, repensar sua
forma organizacional e propor novas formas de montagem de um arquivo, agora fruto
de uma imersão nas paisagens da memória do seu detentor. Por que remexer numa
ordem que já fora estabelecida? Qual a necessidade de cavoucar documentos imagéticos
para deles emular o que estava arquivado? A perspectiva de uma desmontagem de
acervo vai ao encontro da concepção da heterogeneidade que funda a construção da
imagem e, também, da construção de um atlas da memória, pautada na obra Bilderatlas
Mnemosyne, Atlas de Imagens Mnemosyne, obra inacabada do historiador de arte
considerado, pela literatura especializada, o pensador fundante da iconologia moderna,
Aby Warburg (1866-1929). Esse pesquisador concebia o atlas como um dispositivo que
pressupunha uma escolha diante das imagens e a consequente possibilidade de
remontagens imagéticas, já que essas escolhas seguiriam um fluxo não cronológico de
se pensar a história. As imagens, vistas como montagens constituídas de
heterogeneidades, de “tempos suplementares- fatalmente anacrônicos e heterogêneos
entre si” (DIDI- HUBERMAN, 2007, p.51), se permitem na própria constituição o
movimento de montagem, pensar o seu (movimento) contrário também é concebível.
Montar e desmontar, na proposta de estudo ora apresentada, se funda como movimento
criador enquanto processo de criação e também como um percurso cognitivo enquanto
pensamento por imagens. As imagens desdobradas do título dessa pesquisa vão
obedecer a uma forma de se manifestar própria dos meandros das paisagens arquivadas,
nas quais estão sempre imbricados tempos sucessivos e heterogêneos. Considera-se que
as paisagens estão inscritas nos arquivos. No jogo de montar e desmontar imagens
arquivadas procede-se a um processo de desarquivamento: “desarquivar” por meio de
desdobramentos na perspectiva de Didi-Huberman (2007, p. 48) e na esteira da
reconstrução de um arquivo mais afeito às memórias afetivas do seu detentor. O gesto
de desarquivar convoca um certo movimento espiralado, labiríntico, cíclico, não se

2094
detém no minimalismo do abrir-fechar (imagens, gavetas, memórias). Se as imagens
estão imersas nas bricolagens temporais com as quais dialogam, há de se esperar
movimentos irmanados nessa superposição vertiginosa de tempos.

No jogo de montar e desmontar imagens no intuito de reconfigurar o tempo, há


que se pensar com qual concepção ela está irmanada a ponto de permitir tais
desdobramentos. Usualmente parte-se da noção de imagem a partir da configuração de
algo que toma corpo, presença diante do nosso olhar, isto é, a imagem é aquilo que se
assoma diante de nós enquanto realidade mais imediata. Entretanto, essa realidade mais
imediata é perpassada por pelo menos três instâncias: a realidade mesma do objeto que
se dá a ser visto; a visão, ou reflexo, desse objeto numa dada configuração de tempo e
espaço; a perspectiva do olhar de quem está diante desse objeto. Diversas serão as
interpretações sobre esse objeto como diversas serão as perspectivas que se põem diante
dele, assim como tal objeto dar-se-á ao olhar do outro segundo condições específicas de
sua aparição (do objeto). Estaremos diante de um objeto que se dá a ser visto, mas
estaremos, também, diante da possibilidade de jogar com o que ele é em-si-mesmo e
com o que ele permite, digamos assim, que seja visto. Lidaremos com a perspectiva de
relação entre uma imagem, com a formatação de algo que se assoma diante de nós, e o
que diremos que é uma imagem. Nessa aparente instabilidade na qual estão as imagens
mergulhadas emerge o binômio de presença e ausência, daquilo que se dá a ser visto e
que, concomitantemente, se retrai no que escapa a toda configuração. Embora essa
aparente instabilidade das imagens cause uma certa insegurança diante do que é possível
ver e apreender da essência delas, o interstício aberto a partir desse movimento flutuante
força-nos a tomar as diferenças, que necessariamente acompanharão as interpretações
sobre a natureza da imagem, de forma positiva. Entraremos num universo onde a
imagem “cessa de ser segunda em relação ao modelo” (BLANCHOT, 2007, p. 34). As
brechas, as fendas, os intervalos, as aberturas advindas de uma concepção flutuante do
trato com as imagens apontarão para a possibilidade sempre recorrente de interpretações

2095
que não mais se assentarão na ilusória estabilidade de sentidos que supostamente
acompanhariam essas imagens. O jogo, aqui, é a via de acesso ao que elas deixam
escapar naquilo que se retraem ao se darem a “ser vistas”, assim como o contrário é
verdadeiro; na ausência delas os rastros do que estava diante do nosso campo de visão
serão os indícios da permanência do horizonte do que qualificamos como imagens. O
jogo entra na esfera da dialética de uma compreensão de imagem que não é a
mensurável, a objectualizada, a factível. Antes, ela está no entre, nos espaços
intervalares, nos interstícios, nos hiatos, no terreno fértil das ambiguidades e das
discordâncias e, quiçá, dos possíveis desvios. Aqui a diferença se instaura como
norteadora da leitura que as imagens suscitam.

Certas palavras-chave abraçam o jogo perceptual do desenho epistêmico: poética


em arquivos, paisagens da memória, etno-biografia/biografema de artista,
desdobramentos-barroquismo das imagens. Esses vocábulos convocam algumas atitudes
metodológicas: gestos de cartografar, mapear, derivar, deslocar, deambular, flanar,
apontando para a opção do lidar com a pesquisa. A poética em arquivos pode ser uma
atitude metodológica (método) e também um conjunto de procedimentos metodológicos
(como fazer), congregando uma poética epistemológica no binômio método-
procedimentos. Quais são esses procedimentos metodológicos? Abrir o arquivo;
selecionar paisagens da memória significativas para o artista (nessa seleção de
paisagens/imagens já deslocamos as imagens dos lugares onde repousavam no arquivo.
Esse movimento implica, por extensão, um deslocamento de sentidos na memória do
artista e, concomitantemente, os deslocamentos que empreendemos quando da pesquisa
de campo); ir ao encontro dessas paisagens.

Diante da abertura que a natureza ambígua da imagem coloca, os espaços serão


redimensionados enquanto elementos partícipes das interpretações dessas imagens,
assim como o tempo. Reitera-se que um estudo sobre imagens que reconhece uma

2096
condição flutuante da natureza delas em conformidade com as imbricações de
perspectivas de tempo-espaço e olhar do outro, não se fixa numa suposta natureza
“essencialista” das imagens, como se elas tivessem entranhadas algo no próprio âmago
que escapa ao outro. Quando se diz que elas “se dão a ver”, tal assertiva está sempre
aspeada, compatível com as posições claudicantes que se nos impõem em relação ao “o
que vemos e o que nos olha” (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 32). A proposta de estudo,
aqui, se funda pela relação, sendo assim, tocar no binômio espaço-tempo é tocar
especificamente no objeto dessa proposta de pesquisa, um arquivo fotográfico. O
arquivo enquanto um espaço não só repositório de documentos imagéticos, mas também
locus de memórias carregadas de afetos, dialogando com um tempo que se faz presente
a partir do momento no qual imagens fotográficas são retiradas desses loci repositórios
e ressignificadas pelos afetos do detentor do arquivo. Tempo ausente que se presentifica
pela paisagem que é desarquivada, pelas imagens que são sintoma de algo que não elas
mesmas, que apontam para algo que não elas mesmas, numa tentativa de extrair do
visível o que está latente no invisível, na esteira do conceito de sintoma, como
manifestação de algo que não se expressa, mas está lá: “A imagem é um rastro, uma
esteira, um arrastamento visual do tempo que quis tocar (...)” (DIDI- HUBERMAN,
2007, p. 51). O que é sintoma no presente já foi manifestação no passado, assim como o
que qualificamos como espaço arquivístico no presente já foi o vivido num tempo
pregresso. Esse espaço arquivístico, ao abrigar imagens que por natureza se permitem a
imprecisão, e na esteira das relações que estão imbricadas num e noutro enquanto jogo
de alteridades, não pode repousar na qualificação de espaço sem embates dos jogos de
memória. A metáfora da esteira em Didi-Huberman estende nosso olhar de um tempo
recuado, mas sempre presentificado, esgarça a compreensão de arquivo para um lugar
de devir e, também, para o espaço arquivístico como exercício de pensamento. Ainda
com o historiador da arte, concordamos com a concepção de arquivos como não só
locus de informação, mas o espaço privilegiado de onde se pode tirar “emoções e

2097
bocados de memória, imaginação e bocados de verdade” (2012, p. 123). O arquivo é
portador de imagens que são sintomas de tempos heterogêneos os quais, nesse jogo de
heterogeneidade, permitem montagens e desmontagens de tempos, idas e vindas, o
presente-ausente: sempre a dialética, o jogo.

A partir do momento que efetuamos o gesto de abrir um arquivo (seria


redundante classificar o arquivo de “imagético”? Todo espaço se funda numa
construção de imagem, afinal), colocamos em movimento pelo menos dois atos: o de
repensar sua organização e fundar uma nova ordem. Essa pesquisa pretende investigar o
arquivo como o locus prenhe de potência estética para além do espaço repositório, o
lugar no qual estão “adormecidos” documentos que servem para a ponte investigativa
em áreas distintas do conhecimento como a história, a antropologia, a sociologia e a
própria arquivística. A classificação e ordenação usuais de um arquivo obedecem a
dispositivos internacionais de organização que os assentam no lugar ilusório da ausência
de conflitos, do apagamento das idiossincrasias, do silêncio dos ruídos da memória.
Embora os documentos institucionais tenham um trato diferente dos documentos de
detentores físicos, mesmo assim há como que um forçoso refutar dos indivíduos que
elegeram esses documentos como aqueles que merecem a guarda e consequente lugar de
destaque na história. Como lembra Ana Pato (2015), o estudo dos arquivos nas artes,
suas práticas imbuídas de um novo repensar desses espaços repositórios estão
circunscritas no que se convencionou chamar, na história da arte ocidental, de
“conceitualismo” (1960-1970). Questionava-se o sistema da arte a partir dos espaços
tradicionalmente elencados como meios expositivos e de classificação do que merece o
estatuto de arte, entre outros. Destaca-se aqui, por ora, esses dois elementos, espaço
expositivo e classificação de objetos porque são questões caras a um campo disciplinar
que se pretende organizador de conteúdos imagéticos fugidios e fruto da história de
indivíduos nem sempre concordantes quanto ao que mereça ou deva ser guardado. A par
dessas reflexões, a eleição do arquivo do fotógrafo Geraldo Ramos (1950) se insere na

2098
perspectiva de constituição de arquivos de artistas na Amazônia paraense, um arquivo
que vem sendo trabalhado há pelo menos 40 anos. Geraldo Ramos foi, ele mesmo, um
dos diretores do Museu da Imagem e do Som (MIS), a partir de meados da década de 80
até o início dos anos 90. Isto é, deparou-se com as mesmas questões que envolvem a
seleção e guarda de material imagético.

Diante do exposto sobre as imagens e seus loci de guarda, intui-se que não basta
armazená-las e organizá-las em repositórios arquivísticos. Há que presentificá-las no
gesto de desdobramento, há que fazê-las imagens desdobradas. Se permitem o
desdobramento é porque algo na sua natureza condiz com as dobraduras que se lhe
interpõem. Pelo o exposto até aqui, esse algo é o entre que se desvela quando diante
dela estamos. Esse entre, expondo as dobraduras, permite do mesmo modo se repensar
em novas montagens. Portanto, a partir do entrelaçamento de imagens instáveis
dispostas como registros fotográficos em loci repositórios como arquivos, somos
desafiados a repensar como estão dispostas essas imagens efêmeras em depósitos
“estáveis”.

Posto isso, retomamos os questionamentos que foram dispostos no segundo


parágrafo dessa Introdução a partir de outros: por que abrir um arquivo? Que sentidos
são dados pelo detentor do arquivo às imagens-paisagens que nele estão guardadas, no
arquivo, e como acessar essas imagens-paisagens que estão espraiadas em armários,
gavetas, pastas-arquivo e outros materiais de inventário? O que será feito dessas
imagens? Alguns movimentos possíveis para essa pesquisa serão tratados adiante.

Quanto à abertura de arquivo de artista a hipótese com a qual trabalhamos é de


que o arquivo, independentemente de sua classificação nominal em acervos ou outra
que aponte sua natureza de guarda, é o espaço privilegiado no qual as paisagens da
memória estão arquivadas. Arquivadas, mas não silenciadas; antes, empreendem um
diálogo unívoco sobre o que guardam nesse território privado de todo contato. A

2099
concepção de arquivo se esgarça para além do espaço tradicionalmente eleito como tal.
Nosso corpo, por exemplo, posto que tem na pele aparente ou nos sistemas neuronais as
marcas das vivências atravessadas enquanto constituintes da memória, configura-se
como um arquivo vivo (VIGARELLO, 2003, p. 29). As memórias que estão sendo
processadas no presente são um arquivo, quiçá um arquivo do futuro. No tocante às
paisagens, George Simmel (1996) postulou que os recortes são inerentes à concepção de
paisagem, paisagem que tem sua forma oriunda da natureza e das suas continuidades
infinitas. Essa possibilidade de recortes originou o enquadramento e intersecção de
quadros assentados de forma expansiva na natureza. Isso é visível na representação
pictórica no ocidente a partir do século XVI, no qual o enquadramento foi a via de
acesso a esses recortes em potência.

Simon Schama (1996) postula que o olhar humano estabelece a percepção


transformadora entre matéria bruta e paisagem, relegando ao bruto o trabalho
objectificador da ciência e inserindo a paisagem na ordem do estético. Mesmo estando
perceptíveis as cisões que engendram o conceito de paisagem, como algo que está “lá”,
dentro do meu campo de percepção humana, mas apartado de uma configuração
subjetiva da memória, ainda assim abriu-se espaço para pensar as paisagens enquanto
representações simbólicas que fazem os grupos humanos. E no tocante às artes há que
se ressaltar o caráter fabulatório que esse campo disciplinar ensejou e, embora o recorte
pictórico tenha reforçado uma suposta cisão entre paisagem e subjetividade, ainda assim
esses recortes enquadrados assentavam-se no aspecto criador e na imaginação do artista
diante das paisagens. Anne Couquelin (2007), por exemplo, mostra que a paisagem foi
idealizada para inaugurar uma prática pictórica, cuja idealização influenciou de forma
decisiva nossas categorias cognitivas e espaciais. No jogo das representações e sob
influência dessa idealização, natureza e paisagens se confundem, se imbricam e, quase
sempre, são tomadas por sinônimos. No exposto, opta-se por “paisagens” no plural na

2100
mesma esteira de raciocínio que toma as imagens como formas múltiplas porque
múltiplos são as depreensões que repousam nelas.

Outro aspecto que vale ressaltar é a concepção de imagem mesclada à de


paisagens, algo recorrente na escrita dessa proposta de pesquisa. As paisagens, assim
como as imagens, estão situadas nos entrelugares. É nesse entrelugar que instalamos
esse instante do reconhecimento de ambas, paisagens e imagens, no qual elas estarão
imbuídas de uma forma que procura por outra forma, não devendo se tratar a imagem-
paisagem original como uma imagem-paisagem que meramente deposita informações
de um tempo ou de um lugar nos quais estão inscritos nas classificações arquivísticas
dos seus inventários. As paisagens estão inscritas nos arquivos assim como estão as
imagens. No jogo de mexer e remexer no arquivo, no montar e desmontar das imagens,
no arquivar e desarquivar de conteúdos imagéticos procedemos ao reconhecimento de
que ambas obedecem aos movimentos claudicantes da memória, configurando-se assim
como “paisimagens”. Afinal, mesmo a concepção mais tradicional de paisagem fundou-
se, necessariamente, a partir de uma imagem de paisagem, idealizada, recortada e
imutável na sua estrutura originária. E as elucubrações contemporâneas, que fundem a
subjetividade humana e não-humana nas construções paisagísticas, apoiam-se em outro
estatuto de imagem para as desconstruções que pretendem empreender. Nessa esteira
discursiva os vocábulos se mesclam apontando para a potência mesma que atravessa
suas constituições.

Quanto à segunda pergunta que norteará essa pesquisa iremos proceder, junto às
indagações que norteiam o percurso investigativo, a uma experimentação no trato com o
arquivo do fotógrafo, já que os sentidos que o detentor porventura atribua ao seu acervo
imagético implica o primeiro gesto supracitado nessa proposta, que é o de abrir o
arquivo. Diante da abertura, que não pode estar destituída de uma intenção, os sentidos
dados pelo fotógrafo ao próprio acervo serão justificados pela memória afetiva que se

2101
espraia nas imagens produzidas num tempo recuado, a partir da seleção de algumas
imagens mais carregadas de sentidos para ele. O acesso a essas imagens selecionadas
dar-se-á pelo “desarquivamento” das paisagens arquivadas, por meio do diálogo
empreendido entre a pesquisadora e o fotógrafo e de desdobramentos da imagem na
perspectiva de Didi-Huberman. Aqui nos depararemos com o princípio das “imagens
desdobradas”. De fato, as imagens serão desdobradas a partir do arquivo, no gesto de
abrir armários e cavoucar os registros imagéticos nos quais estão assentadas as
paisagens da memória afetiva do fotógrafo. Nesse gesto de abrir e fechar espaços
repositórios, as paisagens arquivadas virão à tona, como numa ação arqueológica. É
importante frisar a interlocução que atravessará todo o percurso de abertura e seleção
das imagens do arquivo, o papel da pesquisadora não só na elaboração conceitual de
trato do objeto ora investigado, mas também com intenso acompanhamento desse
desdobrar e redescoberta das paisagens afetivas.

De posse das imagens selecionadas resta saber o que fazer com elas, com essas
memórias imagéticas que se abrem em outra perspectiva no presente. Entraremos na
terceira pergunta que norteará a pesquisa, na qual trabalhar-se-á com a hipótese de que
as imagens selecionadas, antes dispersas nos espaços escuros não só da memória como
também dos armários arquivísticos, podem ser redispostas ou remontadas na confecção
de um livro de artista. Montar e remontar aos moldes de um Atlas Mnemosyne de Aby
Warburg. A concepção de Atlas nessa pesquisa se estende para a elaboração de um livro
de artista, isto é, passaremos de um arquivo para um livro. O livro de artista enquanto
um espaço expositivo privilegiado está ancorado, também, na concepção de arte
conceitual (MELIM, 2013, p. 35). O campo expositivo do livro vai de encontro ao
sistema da arte que insiste numa produção seriada marcada por diretrizes
mercadológicas, as quais aferem o que deva ou mereça ser publicizado. Tratar de livros
de artista implica uma escolha cuidadosa dos elementos que dele farão parte, desde a
escolha do suporte livro aos materiais que participarão do conceito que está em

2102
elaboração. A escolha do iconólogo pelo Atlas conjectura a possibilidade de abertura
inerente ao suporte que dele se depreende. Atlas implicam escolhas, redistribuições de
imagens e seleções carregadas de sentidos por alguém. Assim como os livros de artista,
agora frutos de um processo que, mais que apontar as paisagens que foram
desarquivadas, serão escolhas imagéticas carregadas de sentidos para aquele que com
elas sempre conviveu.

Exporei inicialmente alguns dados da minha trajetória no campo da pesquisa


com o tema proposto, os quais justificam a opção pelo estudo de arquivos ora
apresentado. Minha formação acadêmica inicial em Letras proporcionou-me o contato
com as teorias que embasam a Crítica Genética, com seu objetivo de compreender os
processos de constituição de uma obra literária por meio do estudo dos registros do
escritor encontrados em manuscritos, rascunhos, cadernos de campo, cadernetas, enfim,
todo e qualquer material que apontasse para o processo de elaboração do escritor. Aí
entraram no campo da pesquisa os arquivos de escritores institucionalizados em bancos
de imagens. Embora nesse primeiro momento meu contato estivesse circunscrito aos
processos teórico-críticos de criação na literatura, o gérmen do se debruçar sobre o
processo de criação de outros campos disciplinares já estava lançado. Posteriormente,
com meu ingresso em vários grupos de estudo e pesquisa institucional, pude estender a
paixão pelo estudo do processo, dos arquivos e pela pesquisa na perspectiva
transdisciplinar a esses grupos. Destaco dois: em antropologia, integro o Grupo de
Pesquisa Antropologia das Paisagens: Memórias e Imaginários na Amazônia (CNPq-
UFPA-PPGSA-ICA), no qual o estudo dos arquivos de artistas e pesquisadores é
tomado enquanto um campo de pesquisa, isto é, aqui o campo é o arquivo. Como
ouvinte, fiz disciplinas tanto na graduação como na pós-graduação em estudos
antropológicos, as quais tangenciaram o estudo da imagem, do imaginário e dos
processos de arquivamento da memória. Em artes, integro o Grupo de Pesquisa Arte,
Corpo e Conhecimento (CNPq-UFPA-PPGARTES). Os estudos empreendidos por esse

2103
grupo foram de importância capital no tocante ao pensamento e as obras de Didi-
Huberman e Aby Warburg. Há exatos um ano e meio as ideias empreendidas por esses
dois teóricos da imagem vêm sendo exaustivamente pesquisadas e trabalhadas pelo
grupo de pesquisa. Temas como o estatuto das imagens, sua permanência e
desdobramentos, as concepções de montagem e desmontagem que delas são
depreendidas vêm suscitando inquietações que se estendem não só ao repensar da
imagem enquanto ideia, mas também um possível pensar por imagens, assim como
novas perspectivas no que tange aos métodos de empreender um estudo por imagens.

No tocante ao estudo de arquivos na arte e em outros campos disciplinares,


como a antropologia, o caráter transdisciplinar da proposta é de fundamental
importância. Inicialmente porque, de certa forma, todo e qualquer campo disciplinar
acaba criando um espaço arquivístico sobre o qual o conhecimento que é produzido é
acumulado. Não há como fugir do arquivo e, consequentemente, do acúmulo de
conhecimento. Reitera-se aqui uma noção ampliada de arquivo a qual extrapola os
dispositivos usuais de espaço ordenador de objetos. Na antropologia o arquivo tomado
enquanto campo de pesquisa questiona os espaços tradicionais que normatizam que
apenas grupos sociais têm a capacidade de aferir o que deve ser validado na pesquisa. O
trato com o material documental é de elemento que viabiliza o acesso às informações, e
não tomado em si mesmo o campo sobre o qual repousam as diretrizes que conduzirão
ao que pode ser novo na pesquisa. É no campo das artes que o estudo sobre arquivos
tem mostrado um certo vigor, ao propor elaborações estéticas ao que é visto como
repositório, mas não só isso. Questões como espaço expositivo estão na ordem das
inquietações, pois como pensar o arquivo enquanto locus de exposição diante do
tradicionalmente fechado e pouco acessível espaço no qual repousam documentos e
outras fontes. Um dos autores elencados para a pesquisa por mim apresentada debruçou-
se nas bricolagens empreendidas pelos campos da Antropologia e Artes, tendo o estudo
sobre as imagens a porta de entrada para essas interseções, o pensador alemão Aby

2104
Warburg, que nos inícios do século XX já antecipava o que posteriormente tomaríamos
como ordem para os estudos sobre as imagens. O estudo do arquivo de um fotógrafo
paraense pretende, também, abrir novas perspectivas de estudo no que tange ao
colecionismo nas artes produzidas na Amazônia paraense, não só como um campo
pleno de potencialidades mas também por conta das preposições heurísticas que serão
levantadas por essa pesquisa, especialmente no que toca as propostas de métodos
investigativos de conteúdos arquivísticos e na elaboração de um novo suporte para as
imagens fruto da abertura do arquivo, que será a confecção do livro de artista. Livro
produzido aos moldes de desmontagem e remontagem de imagens, isto é, produzido
segundo a definição de atlas tal qual a ensejada por Warburg, na qual as imagens
selecionadas serão consequência da releitura do conteúdo do arquivo.

Reitera-se que o debruçar sobre o arquivo de um artista paraense conclama as


memórias coletivas que jogam na constituição do arquivo. Especialmente quanto ao
arquivo sobre o qual empreenderemos nossa pesquisa, do fotógrafo Geraldo Ramos,
entrarão em jogo um acervo que é iniciado no período pós-abertura política no país, por
volta de 1974, arregimentado pelas atividades de técnico fotográfico e, posteriormente,
de diretor do Museu da Imagem e do Som-MIS, durante uma década que privilegiou o
registro da cultura da Amazônia paraense nos espaços institucionais. Há uma memória
desse registro institucional que se entrelaça à memória do artista: acessá-la é o que dá
sentido à constituição de um arquivo.

A realização dessa pesquisa é orientada pela busca de possíveis respostas


acerca das inquietações que envolvem o acesso e a abertura de um arquivo de artista,
com os sentidos que são dados pelo seu detentor. Essa pesquisa tem um cunho teórico e
empírico. Desse modo, para iniciar as atividades investigativas, recorreremos ao
desenvolvimento de uma pesquisa bibliográfica, a fim de mobilizar o aporte teórico que
a questão requer, pois se faz necessário recorrer às teorias formuladas por pesquisadores

2105
que têm incursões nesse campo temático e publicações científicas e poéticas que
subsidiem o desenvolvimento dessa investigação, assim como repensá-las no âmbito do
inusual que uma poética em arquivos mobiliza.

Como podemos observar, este item fundamenta a pesquisa, por meio do


levantamento de autores que dão a sustentação teórica necessária ao estabelecimento do
diálogo com os dados empíricos mobilizados. Desse modo, com este tipo de pesquisa
buscaremos fundamentar o processo investigativo, por meio do levantamento de
teóricos, em cujas formulações intelectuais edificaremos o corpus teórico, metodológico
e epistemológico que o presente estudo requer.

A fim de mobilizar dados empíricos acerca do objeto de estudo desta pesquisa,


será realizada também uma pesquisa de campo. Neste tipo de pesquisa, buscaremos, na
condição de pesquisador, estabelecer contato direto com o interlocutor da pesquisa, e
construir um olhar de maior proximidade com os processos de significação que este
estabelece entre si diante do arquivo, na mediação das tessituras do objeto de estudo
desta investigação. Estudo de campo busca aproximação com a realidade que se deseja
analisar. Será realizado por meio da observação participante, observação direta e
contato direto com as atividades do sujeito pesquisado junto ao seu arquivo, para
coletar os dados sobre o objeto e o interlocutor da pesquisa. Na pesquisa de campo é
possível conhecer mais de perto as tessituras que amalgamam as relações construídas
entre os indivíduos numa determinada sociedade e especificamente em um determinado
lócus de investigação. A opção de desenvolver a pesquisa com o arquivo de Geraldo
Ramos é perpassada pela história do fotógrafo entrelaçada com uma história de
constituição da fotografia produzida na Amazônia paraense, assim como a intimidade
que a proponente da pesquisa tem com o arquivo do interlocutor desse estudo, já que
em outros âmbitos de estudo acadêmico o referido arquivo do fotógrafo tem sido o
campo de pesquisa usual.

2106
Após a coleta de dados, através de observação participante e observação direta,
o passo seguinte será a definição de uma ação metodológica para interpretá-los,
articular as evidências com as fontes teóricas mobilizadas, a fim de construir sentido e
significado para as informações coletadas. Os teóricos levantados para essa reflexão
são, inicialmente, Aby Warburg (os procedimentos metodológicos tangenciados pela
montagem e remontagem das imagens; a construção de um atlas na mesma proposição
da construção de um livro de artista); Didi-Huberman (as imagens e seus
desdobramentos; os estudos empreendidos sobre Aby Warburg) e George Simmel
(paisagens na ordem da subjetividade; as paisagens arquivadas da memória).

O caráter empírico da pesquisa é perpassado pelo estudo exploratório do


arquivo. Sendo assim, justificam-se a mobilização das seguintes etapas de natureza
experimental, um experienciar tanto conceitual quanto metodológico, os quais
resultarão na confecção de um livro de artista aos moldes de um atlas warburguiano, no
qual as imagens falarão por si mesmas: abertura do arquivo; seleção de imagens
enquanto paisagens da memória; de posse das imagens selecionadas, confecção de um
livro de artista. Ademais, a pesquisa tem produzido proposições artísticas as quais,
definitivamente, serão inseridas no corpo dissertativo que se desenha. No tocante aos
dispositivos que foram convocados para essa pesquisa, enquanto esgarçamento de
elucubrações conceituais e objetos artísticos, temos quatro em processo: o “Mapa
poético das travessias e atravessamentos da prática de campo no devir de uma
pesquisa”, um caderno de campo, diário de bordo, documento que aborda os
deslocamentos entabulados em campo, como foi gestada a pesquisa em curso, exibição
do processo de feitura no corpo-a-corpo da experienciação, o dia-a-dia dos proponentes
da pesquisa corporificado na captura textual de um caderno, os procedimentos, os
processos de elaboração narrados no devir pesquisa, as narratividades das potências
imaginativas que emergem do meu campo; o “Atlas dos movimentos das paisagens da
memória”, aqui encarnado como um livro de artista, livro-arquivo, obra artística como

2107
experimento, atravessamento no corpo da pesquisa acompanhado da dissertação; o
“Diário dos sonhos”, experiências transpessoais que enxameiam os sonhos oníricos e
contaminam a pesquisa; o “Caderno do projeto poético concebido como exposição”,
rascunhos das imagens que irromperam o desenho da exposição proposta como a
reunião dos diversos “desdobramentos” engendrados em proposições artísticas, a saber:
“Como desarquivar um arquivo” (instalação: audiovisual e caderno de campo);
“Feeling Blue” (projeto artístico e exposição que dialoga arquivo, a saudade na
fotografia, melancolia e cianotipia); “Flumen” (exposição premiada que conjuga arte e
documento); “Sonoras Paisagens” (álbuns de fotografia nas quais as imagens
iconográficas foram retiradas, e a substituição por paisagens sonoras); “Paisagens
Prospectivas” (instalação: audiovisual, instalação fotográfica e caderno de campo).
Assumindo uma postura de abertura à poésis tal como Guimarães Rosa, estamos
abrindo as paisagens.

Referências bibliográficas

BLANCHOT, Maurice. A Conversa Infinita 2: a experiência limite. São Paulo:


Escuta, 2007, p. 34.

CAUQUELIN, Anne. A Invenção da Paisagem. São Paulo: Martins, 2007.

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Neves. São Paulo: Ed. 34, 1998, p. 32. (TRANS).

------------------------------------. L’image ouverte. Motifs de l’incarnation dans les arts


visuels. Paris: Gallimard, 2007ª, p. 45, 48, 51.

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SCHAMA, Simon. Paisagem e Memória. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

SIMMEL, George. A filosofia da paisagem. Portugal: Covilhã: Universidade da Beira


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14, n. 2 (41), maio/ago. 2003, p. 21-29.

WARBURG, Aby. Gesammelte Schriften II-I. Der Bilderatlas Mnemosyne (editado


por Martin Warnke e Claudia Brink). Berlim, Akademie Verlag, 2000, 2ª ed. 2002.
Versão castelhana (de Fernando Checa) Atlas Mnemosyne (Trad. Joaquim Chamorro
Melke). Madrid: Ediciones Akal, 2010.

2109
ARTE ON-LINE: EXPOSIÇÃO, DOCUMENTAÇÃO E COLEÇÃO

Emerson Dionisio Gomes de Oliveira

Resumo: O objetivo do artigo foi discutir as condições de exposição, documentação e coleção


de arte on-line. As negociações realizadas entre artistas, museólogos e historiadores nos
interessaram para compreender como a produção artística em interface com as mídias digitais,
uma parte cada vez mais influente da arte contemporânea, reorganiza procedimentos
museológicos em instituições convencionais. Utilizamos uma literatura preocupada com o
fenômeno da arte on-line e elegemos exemplos para consideração e debate. A discussão
apresenta alterações no sentido de colecionar, transformando museus em lugares de partilha,
preocupados em intermediar o acesso às obras, abrindo mão da exclusividade de possuí-las,
expô-las e armazená-las.
Palavras-chave: arte contemporânea; arte on-line; documentação; exposição; coleção.

Abstract: The purpose of the article was to discuss exhibition conditions, documentation and
online art collection. Negotiations between artists, museologists and historians have interested
us to understand how artistic production in interface with digital media, an increasingly
influential part of contemporary art, reorganizes museological procedures into conventional
institutions. We use a literature concerned with the phenomenon of online art and we choose
examples for consideration and debate. The discussion presents changes in the sense of
collecting, transforming museums into places of sharing, concerned with intermediate access to
works, giving up the exclusivity of owning, exposing and storing them.
Keywords: Contemporary art; Art online; documentation; exhibition; collection.

2110
Introdução
“Sentimental Journey” foi uma obra-projeto de Cleido Vasconcelos de 2011. Até
recentemente toda vez que utilizávamos verbos nas formas pretéritas para uma obra
estávamos, com grande probabilidade, nos referindo a bens materiais desaparecidos e
destruídos. O caso de “Sentimental Journey” é distinto. Ele nos transporta para a relação
entre a arte on-line e sua contingência off-line. A obra em questão usava um recurso
simples da web. Utilizando como base o recurso Google Maps, Vasconcelos identificou
o lugar (rua, edifício, cidade) onde amigos e familiares morreram em anos anteriores.
Tais pessoas são lembradas e tagueadas de forma pública. No processo o artista
consultou parentes e outros amigos próximos dos homenageados. Todo um protocolo
ético foi criado para preservar a memória dos afetos perdidos. Vasconcelos utilizou uma
linguagem cartográfica muito divulgada e conhecida na atualidade para propor uma
intervenção afetiva, uma criação autorreferente que se manifestava pelo tabu da perda.

2111
Figs. 1 e 2. Site do projeto“Sentimental Journey”, Cleido Vasconcelos, 2011. Reprodução do artista; Site
não encontrado, tentativa de acesso em agosto de 2015.

O projeto estava hospedado no site www.sentimentaljourney.com.br (figs.1 e 2).


A obra foi apresentada pela primeira vez na exposição intitulada “Arsênico”. Uma
mostra coletiva na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, na cidade de
Ribeirão Preto, no interior de São Paulo. Nesta exposição, o artista não projetou
qualquer imagem do trabalho, negando transformá-la ou traduzi-la numa vídeo-
instalação que atendesse aos regimes expositivos convencionais. Nem mesmo um
equipamento fora disponibilizado para que o público pudesse acessar o site. Apenas
uma filipeta com o endereço do site era entregue para o visitante, que poderia acessá-lo

2112
quando lhe fosse conveniente (fig.3). A ideia inicial era propor uma obra em processo.
Em expansão graças à derradeira perspectiva de que outros entes queridos
desapareceriam no futuro. Todavia, o trabalho deixou de existir há quatro anos. Sua
existência “material” foi legada a alguns registros fotográficos e aos arquivos de outras
pessoas que guardaram trechos da obra que lhe eram especiais. A manutenção tornou-
se inexequível para o artista e, segundo Vasconcelos, só um colecionador ou uma
instituição poderiam mantê-lo em funcionamento63. Certamente uma visão otimista do
artista, sobretudo em relação a capacidade das instituições museológicas convencionais
em manter uma obra on-line disponível ao público.

Fig.3. “Sentimental Journey”, Cleido Vasconcelos, 2011, exposição “Arsênico”, Faculdade de Medicina
da Universidade de São Paulo, em Ribeirão Preto-SP. Fotografia gentilmente ofertada pelo artista.

A história das artes visuais, desde os anos de 1960, celebrou linguagens díspares
como vídeoarte, performance, intervenções urbanas, arte-mídia, entre tantas que

63

Depoimento do artista ao pesquisador e a conservadora Silmara Carvalho em 15 de


junho de 2015, na cidade de Ribeirão Preto (SP).

2113
surgiram a partir daquela década. Atualmente quase todas as linguagens surgidas, desde
então, iniciaram uma aproximação com as práticas, as lógicas e o aparato constitutivo
das novas mídias. Instalações que se metamorfoseiam-se em vídeo-intalações, cine-
instalações, e em tantas formas de ambientes imersivos. Performances telemáticas
(INAUGLE; CRAWFORD, 2014) ou ciber-digitais. Intervenções “e-urbanas” a partir e
para plataformas digitais. A videoarte alcançou os ambientes das redes globais de
difusão, decupando-se em mídias móveis e dispositivos de compartilhamento, como a
game-arte ou arte locativa (BAMBOZZI, 2010). Ou seja, o continente que costumamos
denominar de arte-mídia, arte digital e arte computacional ampliou-se na direção das
demais linguagens e estratégias criadoras da arte contemporânea (GASPARETTO,
2016). Diante dessas novas formas de produzir arte e seus desafios para historiadores da
arte, conservadores, museólogos, educadores etc., a obra de Vasconcelos torna-se um
exemplar do extenso e complexo problema do desaparecimento da produção arte-mídia,
em especial da arte on-line, nas últimas décadas e de seus possíveis impactos no
acervamento de uma infinidade de outras obras, dependentes direta ou indiretamente das
tecnologias difundidas desde os anos de 1990. De modo desafiador, já podemos partir
da premissa que parte considerável desta produção não tem sido colecionada nem por
instituições, nem por colecionadores dedicados às artes visuais (BOONE, 2013).
Embora bem-sucedidos, os projetos e instituições que se dedicam à memória da time-
based-midea, em especial aquela produzida no sistema World Wide Web, são pontuais e
demasiadamente tímidos no sistema museológico brasileiro (PATO, 2014).
Tomemos nesse sentido apenas a arte on-line como questão. A demanda do
colecionamento da arte on-line esbarra numa cadeia de relações interpessoais e
institucionais que vem afetando a produção das obras consideradas “efêmeras” desde os
anos de 1960. Desta forma, o conflito entre a produção artística contemporânea e as
narrativas de “arquivamento” não é recente. Nos últimos 60 anos, um elenco formidável
de obras veio colocar em xeque os sistemas de registro e de documentação, os modelos

2114
de circulação e de interação, os discursos expositivos e as narrativas historiográficas.
Num passado recente, para muitos artistas a política do arquivamento, a manutenção
residual ou a reapresentação de suas obras não eram questões cruciais do
desenvolvimento de seus trabalhos. Muitas obras não estavam, em sua origem,
programadas para o colecionamento ou para reexibição. Todavia, do outro lado, todo
um sistema de garantias patrimoniais começava a se redefinir para incorporar alguns
exemplares de obras “efêmeras”, seja pela reconsideração do que vinha ser chamado de
registro, seja pela ampliação do entendimento de onde começava e terminava uma obra
de arte, dentro e fora das relações de recepção e visibilidade (OLIVEIRA, 2015). Assim
sendo, a arte on-line acrescentou particularidades à questão. Se podemos considerá-la
com uma parte efetiva da produção da arte contemporânea, tê-la colecionada e
arquivada como política de memória parece-nos fundamental, mesmo que, mais uma
vez, tenhamos de contrariar a intenção do criador. E isso certamente não é nem mais
nem menos polêmico na atualidade, visto que a maioria dos artistas contemporâneas
reconhece nas instituições essa capacidade de instigá-los e de contradizê-los, embora
não são raros os excessos que pervertem a obra, destituindo-a de sua potência poética.
Como no passado, a arte on-line coloca em cheque dois processos cruciais para
arquivos e coleções: exposição e registro. Tratar-se de duas práticas operadoras que nos
auxiliam na compreensão dos processos de (re) introdução das obras no circuito
artístico. E, portanto, na garantia de seu reconhecimento pelos profissionais das artes.
Tais operações, tomadas pelo viés da história das práticas museológicas, funcionam
como verificadores metodológicos, capazes de instruir e demonstrar mudanças
importantes nas relações entre museus e a produção hodierna. E mais: de oferecer
indícios sobre a obsolescência tanto das obras, quanto dos discursos museológicos.
Visto que, como bem nos alertou Domingues (2009), a incapacidade de salvaguarda e
de comunicação de parte efetiva da arte contemporânea – a pesquisadora dedicou

2115
especial atenção a arte-mídia – reforça a própria relevância e função dos museus na
atualidade.

Exposição e documento
As exposições passaram por uma rápida mutação nas últimas duas décadas em
museus tradicionais dedicados à arte contemporânea. Graças à dinâmica de obras
constituídas pela transitoriedade, os museus passaram a ocupar o papel de co-executores
dos trabalhos (HUCHET, 2005, p.76), transformando muitas exposições em eventos
curatoriais vinculados ao processo de reconhecimento das próprias obras – feitas para
museu, por museus e em museus. Mesmo que ainda raros na realidade brasileira,
projetos curatoriais passaram a privilegiar em suas expografias a variabilidade e o
efêmero contidos em obras de caráter descontínuo. Todavia, quando se trata da arte on-
line o perigo reside na transformação de uma obra construída para habitar ambientes
virtuais em um trabalho materialmente localizado. Uma extensão “negativa” da obra
que nega sua própria poética transitória. Algo que Vasconcelos evitou ao não traduzir
“Sentimental Journey” para o espaço expositivo.
Este é um aspecto importante para a contingência museológica. Museus tem
disponibilizado em seus sites, ou mesmo em seus espaços edificados, acesso a obras que
foram instituídas no ciberespaço. Caquelin nos lembra que isso é crucial para uma obra,
visto que “A grande diferença entre o espaço tradicional das obras e o espaço
cibernético é a impossibilidade de tratar o espaço cibernético segundo a análise, isto é,
segundo a possibilidade de distinguir suas partes, como o recomendaria o espírito
geométrico” (2008: 144). Isso significa que a obra on-line e sua exposição são
indissociáveis. A própria obra, em sua fatura numérica, organiza e produz os efeitos
próprios da expositividade. Assim, o modo como a intenção poética primaria (o que em
casos convencionais chamaríamos da obra em si), a exposição e seus rastros impactam

2116
na salvaguarda dos projetos artísticos, em sua sobrevida. Todavia, muita da produção
on-line tem sido apropriada apenas em sua dimensão documental.
Umas das estratégias possíveis de curadores atuais é a “encenação
documental”64, cujo caráter central é a reintrodução de obras por meio de seus registros
em expografias críticas. A recente literatura está repleta de exemplos de obras cujos
relatos orais, os registros fotográficos e videográficos são os únicos elementos
instituidores de uma memória sobre e da obra, tanto no plano internacional, quanto
local. Esta estratégia é limitada para Nathalie Leleu, que nos lembra que as obras que
utilizam aparatos tecnológicos atuais exigem uma condição documental ampla. Leleu
defende que para a obra tecnológica seja construída um dossiê com uma hierarquia
própria de informações, cujas informações pertencentes à obras são indissociáveis de
sua condição de circulação, interação, mutabilidade e expositividade. Ou seja, o dossiê
para a arte on-line seria aberto, colaborativo e interativo, embora evidentemente
custoso:
O custo de uma unidade documental aberta, colaborativa e interativa é
medida pelos benefícios alcançados. O custo da infraestrutura técnica
e tecnológica desenvolvido é uma cifra orçamentária significativa e
que não pode ser negligenciada sem o risco de total fracasso. No
entanto, as preocupações com o investimento mais caro,
especialmente com recursos humanos, dedicado à criação de um
sistema é um valor agregado. O sucesso de tal empreendimento é
baseado em uma política documental rigorosa e ambiciosas
habilidades de gestão: controle de acesso e contribuições; validação de
conteúdo com contribuições de vários atores na produção cultural,
níveis artísticos e de gestão de confidencialidade e sustentabilidade
dos dados e das redes (LELEU, 2010, p.388, tradução livre).

Ou seja, a capacidade de manutenção da arte on-line exige uma nova maneira de


articular a existência da obra em circulação expositiva e sua perspectiva off-line,
criando parcerias para a produção e extensão de sentidos. Todavia, na realidade
64

Devo essa expressão ao artigo do curador Rudolf Frieling (2014).

2117
brasileira, raramente tal modalidade artística é considerada em suas particularidades.
Frequentemente os registros alienam a obra de seu processo de visibilidade constante.
Nas últimas décadas a arte instituída por meio de tecnologias emergentes, numa solução
terminológica oferecida por Rosangella Leote (2007), ampliou a discussão e estabeleceu
novas fronteiras para as políticas de arquivamento. Tais tecnologias tem mesmo
eliminado o sentindo temporal de antes e depois, numa coabitação entre tempos que
tornam o registro um próprio essencial para a circulação de determinado ato criador
(GIANNETTI, 2006). Pouco a pouco a ética de tais procedimentos volta-se para a
estética do arquivamento, da reapresentação contínua e da obsolescência material.
Questões ainda pouco debatidas pelas instituições colecionadoras.
Parte efetiva da produção time-based-midea pode parecer obsoleta em poucos
anos. Muda-se o sentido do que é interativo para o público. Mudam-se as bases
operacionais e sensitivas das imersões. Mudam-se as plataformas de acessibilidade. Um
trabalho produzido na chamada estética 8bits precisa ser contextualizado, por exemplo.
É nesse ponto, que acreditamos que as instituições convencionais podem oferecer
estratégias de documentação, traduções eficazes para a reapresentação, acessibilidade e
preservação da arte on-line. Em especial no caso brasileiro, cuja dependência do Estado
para a preservação de obras de arte é historicamente relevante. Mas que isso é preciso
compreender como três valores necessários para a compreensão desta produção
artísticas precisam ser debatidos pelos museus: a emulação, a migração e a
reinterpretação.
A emulação funciona como estratégia de acomodação e atualização de uma obra
de arte dentro de uma tecnologia (software, plataforma digital, etc) similar e compatível
à original, de modo a não alterar a estrutura da obra, mas identificando as mudanças
ocorridas pela adequação: “Emulated culture looks the same, feels the same, behaves
the same as the original, but in a different medium”. Assim sendo, “in digital culture,

2118
however, the technique of software emulation – whereby one computer impersonates
another – is a powerful preservation tool.”65 (IPPOLITO, 2014, p.9)
A Migração já exige uma mudança na matriz tecnológica, aqui transportar o
trabalho artístico significa alterá-lo pela tradução. Assim sendo, imprime sobre a obra
uma alteridade negativa, tornando-a outra, mas com efeitos e ecos da intenção primeira
da obra. “That said, migration can alter a work’s look and feel, and the further a work is
migrated away from its original medium, the greater the risk of its departing from the
spirit of the original” (idem). E, até recentemente mais rara nas artes visuais era
reinterpretação, que consiste na reintrodução da obra em outro espaço-tempo:

Reinterpretation for artistic installations or sculptures, meanwhile.


Replaces obsolete mass-produced items or out-of-date products with
their functional or metaphorical equivalent (a telegram handed to a
character in a play might be replaced with a text message on a mobile
phone), or obeys a set instructions that varies according to the site,
audience, or occasion (the backdrop might depict the skyline of
whatever city the play is performed in). Or a work of software art
written in one language may be completely rewritten for a different
platform, as artist Mark Napier recommended for his online work
net.flag once its original language, Java, becomes obsolete. (ibidem,
p.10)

A obra de Napier, lembrada por Ippolito, foi adquirida pelo Museu Guggenheim
em 2002 e compõe seu acervo on-line. Com o uso de um software on-line, visitantes do
site netflag.guggenheim.org, sob responsabilidade do museu (fig.4), podem criar, alterar
bandeiras do mundo todo. Napier buscava com a obra o questionamento da cultura

65

“A cultura emulada parece igual, sente o mesmo, comporta-se do mesmo modo que o
original, mas numa mídia distinta (...) Na cultura digital, no entanto, a técnica de emulação de
software – por meio de um computador que faz passar por outro – é uma poderosa ferramenta
de preservação”(tradução livre).

2119
“nacional”, seus símbolos e sua lógica territorial. Para o curador e pesquisador
estadunidense, net.plag é um exemplo da possibilidade do infinito armazenamento de
toda arte-mídia criada, embora os custos políticos e econômicos não fiquem claros.
Ippolito (2014) predica que a memória da arte arte-mídia está sob três níveis de ameaça
não excludentes: a ameaça tecnológica, que ao inserir novas ferramentas no sistema
produtivo, catalisa o que ele chama de “cultura da obsolescência”; a ameaça da
legislação, que permanece atrelada às garantias de uma propriedade autoral unificada e
singular e; a ameaça institucional, na medida que instituições, como os museus, tanto
negociam políticas de conservação quanto estimulam ações de esquecimento (2014, p.
7).

Fig.4. Mark Napier, net.flag, obra on-line do Museu Guggenheim (netflag.guggenheim.org); criação
inicial: 2002; fonte: http://marknapier.com/netflag

2120
Embora essas particularidades sejam cruciais para reflexão incipiente da relação
entre produção on-line e web-colecionamento, temos, no caso brasileiro uma questão
que agrava o processo: instituições museológicas brasileiras raramente compram obras
de arte. A doação tornou-se o mais importante e corriqueiro processo de assimilação dos
museus públicos dedicados às artes visuais. Os museus, de modo geral, são amplamente
dependentes das doações para ampliar seus acervos. Se a doação é o dispositivo mais
usual na composição de acervos de arte contemporânea, artistas e colecionadores
privados tornaram-se, indiretamente, os provedores de tais acervos. Todavia, quando
artistas não são solicitados a doar e quando colecionadores não adquirem obras
vinculadas às novas tecnologias, temos uma cadeia de problemas que comprometem a
manutenção memorial de obras como a de Vasconcelos66.
De fato, algumas características da arte on-line não são facilmente assimiladas
pelo mercado de arte. Em especial, a produção vinculada à web fere os valores de
exclusividade, de raridade e, portanto, de distinção. Valores tão caros à economia das
artes visuais. Tradicionalmente trata-se de uma produção colocada à disposição de
milhões de pessoas, uma produção que pode ser copiada, hackeada e alterada por
interatores, independente dos desejos e intenções de seus criadores e, possíveis,
colecionadores proprietários. Neste tocante, Quaranta apresenta seu diagnóstico para o
problema:

Na verdade, a impossibilidade de se impor artificialmente uma


escassez a trabalhos digitais circulando on-line é uma das principais
razões que dificultam a aceitação e a integração por completo da arte
digital on-line no mercado de arte. Como persuadir colecionadores
públicos e privados a comprar e preservar um site de internet que, na
verdade, pode ser copiado por qualquer pessoa que entrar nele? Ou

66

Como lembramos acima, a questão é mais delicada na medida que outras linguagens
são “contaminadas”

2121
uma obra em vídeo, som ou software, uma imagem animada ou
estática, que podem ser facilmente baixadas por qualquer um?
(QUARANTA, 2014, p.239)

Quaranta é essencialmente pessimista quanto à capacidade de instituições


convencionais em salvaguardar a arte produzida na atualidade. Ele tem razão ao apontar
que a arte nem sempre dependeu de coleções institucionais e pode sobreviver para além
delas (2014, p.235). Segundo o curador a memória da arte on-line reside justamente nos
defeitos a ela atribuída pelo mercado: a cópia indiscriminada. “Para o arquivista ou
historiador de arte do futuro, o seu disco rígido pode ser um recurso tão valioso como a
coleção digital de um museu” (idem, p.242).
É nesse ponto que o curador nos oferece uma saída promissora. Como ele, uma
das preocupações de conservadores, museólogos, historiadores da arte e artistas é
garantir a manutenção da experiência poética da obra. Apenas preservar um artefato
digital pode transformar a obra em mero documento encenado como vimos, sem
características estéticas, independente do que se considere como “estético”.
Na perspectiva museográfica, pedagógica e comunicacional muitos museus têm
nos ofertado projetos onde a tecnologia passou a questionar e redefinir os processos
museais.67 Já no que concerne ao colecionamento, temos um impasse gerado pela
morosidade das instituições brasileiras em adaptar-se às demandas da arte on-line. Uma

67

Apenas para citar alguns exemplos: WeARinMoMA, uma exposição alternativa


realizada em 2010, pelos artistas Sander Veenhof e Mark Skwarek, utilizava a tecnologia da
“realidade aumentada” em dispositivos móveis para subverter os enquadramentos do espaço e
da lógica de distribuição das obras nele alocadas. O Museu de Londres desenvolveu um
aplicativo chamado StreetMuseum, que possibilita ao visitante acessar parte de seu acervo ao
andar pelas ruas da cidade. Museu Nacional da Cracóvia criou a campanha Secrets Behind
Paintings, cujo aplicativo desenvolvido pela instituição anima pinturas de seu acervo,
ampliando a narrativa sobre a obra para além da visualidade. Devo esses exemplos ao artigo de
Casimiro (2015).

2122
das estratégias possíveis é seguir o conselho de Quaranta, adaptando-a às instituições
convencionais.
Podemos especular um momento em que as instituições admitam publicamente
sua incapacidade de gerir obras que necessitem de acesso continuo, provedores atentos
às alterações de suas obras, de segurança cibernética capaz de garantir a integridade dos
trabalhos, de atualizações tecnológicas demandas pelos artistas, entre outros fatores.
Uma vez que poucas instituições em países em desenvolvimento são capazes de garantir
recursos para esse tipo de colecionamento - garantir a emulação, a migração ou a
reinterpretação das obras -, uma possibilidade é a construção de uma rede de
colecionadores privados, vinculados aos museus por códigos éticos e de pertença.
Uma rede de coleções compartilhadas gerida pelas instituições que contasse com
obras arquivadas, preservadas e mantidas por parceiros das instituições68, na mesma
direção apontada por Leleu (2010) na condição documental. Evidentemente isso não
destituiria museus de sua participação nesse colecionamento. Mas ampliaria as
possibilidades de acesso, via a parceria, a obras que tendem à condição off-line. Esta
rede certamente colocaria os museus de arte nas discussões patrimoniais próprias aos
museus de comunidade. Exigiria uma rediscussão do sentido de posse-propriedade
paternalista, fartamente amplificado pelas demandas fetichistas conferidas às obras de
arte pelas sociedades de consumo. Tal rede seria uma coleção de colecionadores, ou
seja, uma coleção de relações, de tensões, de enfrentamentos e de confiança, muito mais
próxima à realidade poética da arte contemporânea. Num continuo jogo de re-coleção,
pois alteraria dentro dos museus o próprio sentido de colecionar, transformando as

68

Alguns projetos bem-sucedidos devem ser lembrados: Projeto Medien Kunst Netz, plataforma
digital para arte midiática criada em 2004 pelos pesquisadores Rudolf Frieling e Dieter Daniels. Acesso:
˂http://www.medienkunstnetz.de/medienkunstnetz˃; Projeto Netzspannung.org , plataforma para arte
midiatica criada pelos midiartistas Monika Fleischmann e Wolfgang Strauss em 1997; acesso:
˂http://www.netzspannung.org/about/?lang=en˃

2123
instituições em lugares de partilha, preocupadas em intermediar o acesso às obras,
abrindo mão da exclusividade de possuí-las, expô-las e armazená-las.

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Museus e Arquivos Digitais. São Paulo: Peirópolis Editora: Edusp, 2014.

2125
MIRANTE E DESAPEGO: OBRA EM DESLOCAMENTO, DIFERENTES
LUGARES E UM SÓ MUSEU.

Marisa de Oliveira Mokarzel*


Rosangela Marques de Britto**
Werne Souza Oliveira***
**Universidade Federal do Pará

Resumo: Os inúmeros deslocamentos de uma obra do artista paraense Armando Queiroz,


localizada no Jardim de Esculturas do MUFPA e seu posterior desaparecimento do ângulo de
visão, nos instigou a refletir acerca dos processos de salvaguarda e comunicação museológica de
uma obra de arte conceitual e seus modos de aparição e desaparição em um museu universitário
voltado às artes visuais. As reflexões desta comunicação fazem parte da pesquisa “Coleções e
Artistas Plásticos e Visuais do Acervo do Museu da Universidade Federal do Pará (MUFPA):
Pesquisa sobre Arte e pesquisa em Arte”, que contou com o apoio do Edital de Acervos de 2015
da Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-graduação (PROPESP) da Universidade Federal do Pará
(UFPA). A metodologia da pesquisa aproximou o campo da Arte Contemporânea (história da
Arte e crítica de Arte) ao campo da Museologia e Patrimônio, no que se refere ao processo de
documentação museológica. Os recursos adotados foram entrevistas semiestruturada com o
artista e curadora, aplicação de questionário com o público. Ao final tecemos algumas reflexões
acerca da dificuldade de realização de pesquisas e da documentação museológica de duas obras
de arte conceitual do artista, intituladas de Mirante (escultura em madeira/módulos de 2006) e
Desapego (performance para vídeo de 2012). O contato com uma obra conceitual específica,
salvaguardada em um museu universitário como MUFPA estabelece vínculo com a definição de
museu e suas funções que decorrem de sua ação que inclui: preservação, pesquisa,
comunicação, educação, exposição, mediação, gestão, arquitetura. Articular e refletir sobre o
processo pelo qual passou a obra Mirante/Desapego de Armando Queiroz contribui para o
estudo desse fenômeno em pleno desenvolvimento no mundo dos museus, como o conhecemos
com seu papel de salvaguardar memórias.
Palavras-chave: MUFPA; Arte Conceitual; Documentação Museológica; Armando
Queiroz; Desapego.

Abstract: The numerous offsets from a work by artist paraense Armando Queiroz, in the
sculpture garden MUFPA and subsequent disappearance of your viewing angle, we instigated
the safeguard procedures reflect and museological communication of a work of conceptual art
and its modes of appearance and disappearance in a University Museum back to Visual Arts.
The reflections of this communication are part of the research "and artists and Visual
Collections from the Museum of the Federal University of Pará (MUFPA): research on art and
research in art, who was supported by the Announcement of 2015 collections of Dean of
research and graduate studies (PROPESP) at the Federal University of Pará (UFPA). The
research methodology approached the field of contemporary art (art history and art criticism) to
the field of museology and heritage, with regard to the process of Museum documentation. The

2126
resources used were semi-structured interviews with the artist and curator, questionnaires with
the public. At the end we weave some thoughts about the difficulty of conducting research and
museological documentation of two works of conceptual art of the artist, titled of Mirante
(wood carving/2006 modules) and Detachment (performance for video of 2012). Contact with a
specific conceptual work, safeguarded in a University Museum as MUFPA establishes link with
the definition of Museum and its functions arising from your action that includes: preservation,
research, communication, education, exhibition, mediation, management, architecture.
Articulate and reflect on the process by which work Gazebo/Detachment of Armando Queiroz
contributes to the study of this phenomenon in full development in the world of museums, as we
know with your role to safeguard memories.
Key-words: MUFPA;Conceptual Art; Museum Documentation; Armando Queiroz;
Detachment.

2127
Introdução

As reflexões desta comunicação fazem parte da pesquisa “Coleções e Artistas


Plásticos e Visuais do Acervo do Museu da Universidade Federal do Pará (MUFPA):
Pesquisa sobre Arte e pesquisa em Arte”, que contou com o apoio do Edital de Acervos
de 201569 da Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-graduação (PROPESP) da Universidade
Federal do Pará (UFPA), viabilizando dois bolsistas de iniciação à pesquisa, um da área
de Artes Visuais e outro de Museologia. Projeto coordenado pela museóloga e artista
plástica, Rosangela Britto e com apoio da historiadora da arte e curadora independente
Marisa Mokarzel.
O método da pesquisa em Artes Visuais correlaciona o estudo formal, estético e
estilístico das obras dos artistas, e o seu contexto histórico e social. Os instrumentais
adotados englobaram o levantamento de dados intrínsecos e extrínsecos às obras da
Coleção Carmem Souza e de Armando Queiroz, que será destacado nesta comunicação;
a realização de conversações e entrevistas semiestruturadas com o artista visual
Armando Queiroz.
Ao analisar o lugar da pesquisa nas Artes Visuais nos períodos Moderno e
Contemporâneo, Iclea Cattani (2002, p. 37-50) nos lembra de que a Arte não é discurso,
é ato. A obra de arte é a materialização de gestos, processos e procedimentos, no âmbito
do pensamento visual. O seu instrumental plástico é composto por suportes, cores,
linhas, formas, volumes, dentre outros elementos visuais. Esta modalidade de
pensamento visual se expressa por meio dos formantes da forma, dos formantes da cor e
das questões sobre espaço e suporte. Este pensamento visual guiou as duas modalidades
de pesquisa em Arte (à criação das obras) e a pesquisa sobre Arte (a análise das obras,

69
O projeto foi desenvolvido entre os anos de Agosto de 2015 até julho de 2017. A partir dele foram
realizados dois Trabalhos de Conclusão de Cursos no Curso de Museologia, da discente Sandra Regina
Coelho da Rosa (2017), que versou sobre documentação Museológica da Coleção Carmen Souza e outra
do Curso de Bacharelado em Artes Visuais do discente Werne Souza Oliveira (2017), que tratou do tema
da Arte Conceitual no MUFPA por meio da análise das obras de Armando Queiroz.

2128
congregando a história da arte, a crítica, as teorias da arte e os conceitos de outras áreas
do saber). Em ambas as modalidades de pesquisa há apenas a diferença de intensidade
deste pensamento visual.
A diferença da pesquisa em Arte e da pesquisa sobre Arte, segundo Sandra Rey
(2002, p.125-140) nos aproxima da Arte em seu processo de constituição, como num
fluxo. Propõe-nos imaginar a nascente de um rio – aí se situaria a pesquisa em Arte,
enquanto que na desembocadura do rio, no mesmo fluxo – estaria a pesquisa sobre Arte.
Ambas realizam trocas e se situam no mesmo fluxo, e chega a um mesmo destino – o
espectador da obra.
A pesquisa sobre a Arte Contemporânea, como as obras do artista visual
Armando Queiroz, foi processada por uma aproximação dos pesquisadores nas três
dimensões de instauração da obra, que se entrelaçaram mutuamente: na forma de ideias,
de esboços; os procedimentos ou a dimensão prática do modo de fazer do artista; e as
atribuições de significados. Neste sentido, por meio do instrumental metodológico que
inclui a entrevista semiestruturada e as conversações com o artista, e a observação in
loco dos processos de documentação museológica realizado pelo MUFPA. A pesquisa
aproximou campos disciplinares da Arte Contemporânea- Crítica e História da Arte ao
campo da Museologia e Patrimônio, em especial aos processos de documentação
museológica.
O contato com uma obra conceitual específica, salvaguardada em um museu
universitário como MUFPA estabelece vínculo com a definição de museu e suas
funções que decorrem de sua ação que inclui: preservação, pesquisa, comunicação,
educação, exposição, mediação, gestão, arquitetura (DESVALLÉES; MAIRESSE,
2013). Articular o processo pelo qual passou a obra Mirante/Desapego de Armando
Queiroz contribui para o estudo desse fenômeno em pleno desenvolvimento no mundo
dos museus, como o conhecemos com seu papel de salvaguardar memórias.

2129
Os inúmeros deslocamentos de uma obra do artista paraense Armando Queiroz,
localizada no Jardim de Esculturas do MUFPA e seu posterior desaparecimento do
ângulo de visão, nos instigou a refletir acerca dos processos de salvaguarda e
comunicação museológica de uma obra de arte conceitual e seus modos de aparição e
desaparição em um museu universitário voltado às artes visuais.

Museu da Universidade Federal do Pará


O Museu foi criado em 1983 e instalado em 1984 no “Palacete Augusto
Montenegro”, edificação eclética construída entre 1903 e 1904, representante do
período da Belle époque paraense. Em maio de 2006 a direção diretora do museu,
arquiteta Jussara Derenji, convidou alguns artistas para durante o processo de restauro
do Palacete, transformar o jardim do museu em um jardim de esculturas. Os artistas
convidados foram Klinger Carvalho, Geraldo Teixeira, Emanuel Franco e Armando
Queiroz, que desenvolveram projetos artísticos /escultóricos específicos para criação do
Jardim de Esculturas.
A ocupação anterior do terreno do jardim era composta por cinco casas que
foram adquiridas e demolidas e o lote foi agrupado ao espaço da residência entre os
anos de 1948 a 1950, que deram origem ao jardim (Figura 1). Na Figura 1 a-b
apresentamos duas maquetes para sintetizar as mudanças físicas do espaço urbano com
as quais, o Palacete adquiriu a condição de “esquina”. Na primeira maquete, a
residência de Montenegro; na segunda maquete observa-se o jardim de esculturas
implantado em 2006, e a configuração atual do MUFPA.

O MUFPA foi criado em 1982, período da gestão do Reitor Daniel Coelho de


Souza, e instalado no Palacete Augusto Montenegro, em 1984. Este museu é
classificado como um museu tradicional por conter três elementos: o Edifício, que
configura um cenário museológico; a Coleção, que reúne os artefatos, elementos de

2130
investigação, sob a guarda da instituição; e o Público (BRITTO, 2014). Quase trinta e
cinco anos de sua criação o MUFPA se afirma como o único museu instituído
oficialmente pela Universidade Federal do Pará (UFPA).

a b

Figura 1. Maquetes do palacete no lote, a e b.

O acervo do MUFPA é composto, segundo o último inventário realizado pela


instituição em 2011, por 831 peças, sendo: 246 pinturas, 303 desenhos, 178 gravuras, 79
esculturas, 25 fotografias e 11 objetos (MUFPA, 2011). O MUFPA reúne coleções de
artistas plásticos e visuais que abrange um período entre os séculos XIX ao XXI: Joseph
Leon Righini, Theodoro José da Silva Braga, Antonieta Santos Feio, Ruy Meira, Antar
Rohit, dentre outros. Deste acervo destacamos a Coleção de Artistas Contemporâneos
Paraenses, dentre estes Ruma, Geraldo Teixeira, Armando Queiroz, dentre outros.
O museu da Universidade atualmente é detentor de um significativo acervo de
arte contemporânea paraense e dentro desta linguagem das artes visuais, surge um novo
e emblemático acervo de arte conceitual, um desafio para o museu e uma novidade para

2131
o público. Entender a arte conceitual é desafio para poucos, não só depende de uma
acentuada sensibilidade adquirida por um notório conhecimento teórico e técnico do
assunto, mas também para compreender as mensagens no objeto é preciso ter e estar em
atualidade com os fatos políticos e sociais da sociedade em que vive. Segundo Cristina
Freire (1999, p.15) “A obra conceitual quebra expectativas arraigadas e cria, muitas
vezes, um desconforto intelectual ou em alguns casos até mesmo físico para o
espectador”.
Deste acervo de arte conceitual do MUFPA, destacam-se as peças de Armando
Queiroz que tiveram suas aquisições pelo museu, de origens diferenciadas, seja pelas
exposições (Traços Locais II e Amazônia Lugar da Experiência ) ou por doação do
artista ou aquisição por compra da obra pelo museu, que detém obras de diferentes
períodos e criações do artista, sendo elas: “Tempo” (2005), objeto; Indumentária da
performance para vídeo- “Urubu-Rei(2009)” , “Aparelhos para escutar sentimentos e
segredos” (2008), instalação; “Auto da Devassa”, “Cartório de óbitos” e “Lista de
Morte” (2010), instalação; “Ouro de Tolo” (2010), objeto ; “Casa sega” (2012), objeto;
“Máscara I, II, III, IV e V” (2012), escultura; 25 Objetos de vidro (2012), “Leque para
borboletas” (2012), gravura; “Mirante” (2006), escultura; “Desapego”(2012), vídeo.
Portanto a pesquisa propiciada pelo edital e a bolsa consistiu em estudar a obra
de Armando Queiroz a partir de característica evidenciada na arte conceitual conectada
com sua salvaguarda no MUFPA. Escolhemos a obra Mirante e Desapego, dentre as
citadas para realizar um estudo mais detalhado, uma pesquisa que pudesse possibilitar a
compreensão do processo pelo qual passou a obra em sua constituição até sua recepção
e salvaguarda no museu. Ou seja, entender a obra “Mirante” (2006) e a ideia que a
criou, se foi concretizada a partir da ideia inicial ou não, como se deu a relação da obra
com o espaço e suas transformações, esse processo relacional fazia parte da ideia
original ou foi consequência das limitações espaciais por estar instalada no museu.
Com essas indagações ancoramos nossa pesquisa em aspectos que conduzem a pesquisa

2132
em arte tais como: As novas formas de efetivação das propostas artísticas e os canais de
circulação que inclui os papéis do artista e do público. Questões relacionadas à atividade
do artista na arte conceitual, que como chama a atenção Cristina Freire (1999) muitas
criações fundem-se com a interpretação do crítico, do curador e até mesmo, em certos
projetos, com o pesquisador em ciências sociais. Por outro lado a ideia como
predomínio na arte conceitual incita o questionamento sobre o papel do Museu e sua
concepção enquanto espaço de salvaguarda e ou como local de experimentação.
Neste sentido, verificamos as proposições do museu para o tratamento aos novos
suportes usados na apresentação da arte conceitual. Será possível experimentar e
comunicar esta relação que vem se estabelecendo entra as obras de arte salvaguardadas
pelo MUFPA com suas características expressas nas estratégias utilizadas na elaboração
da obra, em que predomina a ideia, caso da proposta de Armando Queiroz. A
experiência de Armando fez interação com o espaço e com funcionários. Ao
permanecer a ideia, então mais do que guardião o museu é testemunha do processo pelo
qual passou a obra.
Baseadas nestas informações, estudamos as diversas possibilidades da relação
obra/museu, público e os questionamentos sobre o conceito que integra esta obra e faz
do museu seu grande interlocutor com o público. Para pesquisar a obra “Mirante”
(2006), que se transforma pelo ato do artista em “Desapego” (2010), foi observado o
processo de criação, transformação e inserção em um museu universitário voltado para
arte contemporânea, segundo as afirmações de sua atual diretora a profa. Jussara
Derenji.

Musealização e o processo de documentação museológica

Esse estudo teve como objeto de pesquisa as obras de arte de Aramando Queiroz,
cuja relevância justifica-se pela pesquisa dos objetos/documentos acondicionados na
reserva técnica do MUFPA, na intenção de ampliar o entendimento da investigação,
interligando as obras artísticas e os documentos(registros, entrevistas, recepção da obra,

2133
dentre outros), de modo que promovam a recuperação de informações referentes à
trajetória de vida e obra de duas obras da coleção do artista sob a guarda do museua por
meio da documentação de acervos museológicos em relação aos artefatos/objetos
artísticos.
A documentação de acervos museológicos segundo Helena Dodd Ferrez (1994) é o:
[...] conjunto de informações sobre cada um dos seus itens e, por
conseguinte, a representação desses por meio da palavra e da imagem
(fotografia). Ao mesmo tempo, é um sistema de recuperação de
informação capaz de transformar as coleções dos museus de fontes de
informações em fontes de pesquisa científica ou em instrumentos de
transmissão de conhecimento (FERREZ, 1994, p. 66, grifo nosso).
Nesta perspectiva museológica, a pesquisa apoiou-se no filtro teórico-prático da
documentação, em busca do conjunto de informações das obras, considerada aqui como
fonte de pesquisa científica, por meio da análise das etapas/ações direcionadas a esse
acervo ao adentrar no MUFPA – seleção, aquisição, pesquisa, conservação,
documentação e comunicação (CURY, 2005), ou seja, os processos ora citados em que
os objetos e documentos perpassam por cada uma dessas ações, deixando um registro
informacional dessas etapas; e quando sistematizadas em uma proposta de catalogação
das peças, com campos de registros definidos para gerar novas informações e produção
de conhecimento, pois, mediante a sua estrutura organizacional, os museus estão ligados
diretamente aos métodos de salvaguarda e ao processo de comunicação dos bens
culturais para com o seu público.
Segundo Ulpiano Meneses (1998), a transformação do artefato em documento é
possível pelas ações da musealização, constituída e compreendida em diversos
processos para assumir a função documental. Ampliando o entendimento, Waldisa
Rússio (1990) assegura que o ato de musealizar pondera a informação trazida pelos
objetos em termos de “documentalidade, testemunhalidade e fidelidade” (RÚSSIO,
1990, p. 8). Esses procedimentos são mais bem interpretados por Marília Cury (2005),
sobre os caminhos percorridos pelos objetos almejando a musealização. Esses caminhos
iniciam-se na aquisição, depois passam pelos processos de pesquisa, conservação e
documentação e finalizando com a comunicação, como mostra a representação gráfica
do processo de musealização dos objetos no Quadro 1.

2134
Quadro 1- Diagrama do Processo de Musealização.

Fonte: Cury (2005, p. 26).

O diagrama exemplificado por Cury (2005) expõe resumida e visualmente o


circuito de tratamento do objeto em meio às ações específicas que integram o processo
de musealização. No caso deste trabalho atenta-se para a documentação como forma de
sistematizar a informação sobre o objeto a partir do processo investigativo de sua
materialidade patrimonial.
A documentação museológica configura-se como um dos elementos mais
relevantes para a gestão de acervos, funcionando como fio condutor entre as
informações sobre os objetos e os setores do museu, ou seja, essa atividade está
alinhada à estruturação e a recuperação da informação contida no acervo, gerando novos
conhecimentos para as próprias ações desenvolvidas na instituição, tais como curadoria,
pesquisa científica, ações culturais e educativas, publicações diversas, entre outras
(PADILHA, 2014, p. 35).
Na visão de Heloisa Barbuy (2008), o objetivo da documentação museológica
consiste em:
[...] constituir uma base ampla de informações, que alimente pesquisas
e ações de curadoria, tanto da própria instituição como externas, e se
alimente, por sua vez, das pesquisas realizadas sobre o acervo
institucional ou em torno dele (BARBUY, 2008, p. 37).
Segundo Fernanda Camargo-Moro (1986), documentar cada peça de forma
completa não é tarefa fácil, pois o reconhecimento dos objetos/documentos, ao serem
integrados nas instituições museológicas, agregam "valores" documentais quando
comunicados, preservados e pesquisados, transpassado pelo processo de codificação das
informações acerca de cada objeto. Foi nesta direção que voltamos à pesquisa tendo
como campo a Arte Contemporânea, história da arte e crítica da arte associada ao fazer
museológico da documentação.

2135
Mirante e Desapego de Armando Queiroz
Armando Queiroz (Belém, 1968) é artista visual paraense, graduado em artes
visuais pela UFPA e atualmente está cursando o mestrado em poéticas visuais em Minas
Gerais na Universidade Federal. A trajetória artística de Armando se insere no sistema
de arte da cidade em 1993, participando de diversas mostras coletivas e individuais no
Brasil e no Exterior. Nesta fase, em 1993, o artista se expressava criando pequenos
objetos a partir do cultivo do universo do bricabraque, e produzia os ready-made, termo
adotado pelo artista Marcel Duchamp (1887-1968) para designar os objetos criados por
ele a partir de materiais de uso cotidiano, de uma cultura de massa. Nos termos da
historiadora da arte, Marisa Mokarzel (2011, p.50), os objetos de Queiroz trazem: “Os
arranjos construtores de uma cultura popular [que] deixam antever a admiração por
Emanuel Nassar e já revelam a percepção crítica do mundo, a acidez interpretativa que
não impede a poética visual”.
No início, Armando propôs ao museu a criação da obra “Mirante”, uma
escultura de grande verticalidade, composta por módulos quadrangulares de madeira
fixos uns aos outros que, juntos, funcionariam como uma espécie de observatório ao
qual, ironicamente, era vedada a observação (Figura 2).

2136
6 metros

Figura 2.Projeto da obra “Mirante”. Desenho: Armando Queiroz.

Depoimento de Queiroz sobre o projeto do Mirante:

Então essa obra, ela foi concebida, percebida como mirante, porque
até então eu não sabia que fazia parte do projeto da professora Jussara,
de abrir aqueles muros que até então eram muros que impediam a
visibilidade dali, de quem passava na rua, que depois ela colocou
um gradio. E aí eu acho que foi uma opção muito boa dela, de uma
possibilidade que a cidade ganhasse esse jardim, e as pessoas
percebessem esse fluxo assim, que ela comentando comigo, que o
Museu da UFPA é um espaço muito privilegiado da cidade, e que
ela teve informação de uma pesquisa que aquela esquina é a
esquina de maior fluxo de Belém, de trânsito de pessoas e carro.
Então, na verdade, ela nunca se configurou como esse obelisco, e ela
ganhou a horizontalidade. Então desses elementos que estão muito
mais lidando com a relação com o espaço, com as outras obras e
com pouco público, e antes disso teve um experimento (Entrevista
Armando Queiroz, 2014,Grifo nosso).

2137
O processo de criação da obra Mirante só foi possível após a realização de vários
diálogos do artista com os funcionários e gestora do espaço museológico, assim como após
ter realizado algumas instalações da obra nas salas da casa-Palacete. Conforme relato de
Armando:

Um momento mais especial dessa obra foi o momento em que ela


dialogou diretamente com o restauro que estava sendo feito nas salas,
no ambiente interno do prédio do Museu. Então foi até uma época
como essa agora, assim, de final de ano, que esses elementos que eram
modulados de madeira foram levados lá pro Museu da UFPA,
aguardando o momento de serem instalados no jardim. E o prédio tava
todo ainda cheio de andaimes e tudo mais, cheio de pó, assim, cheio das
coisas, e aí eu falei pra ela que eu gostaria muito de me relacionar com
essa coisa da restauração e do processo de transformação de tudo aquilo
que estava acontecendo, e até mesmo que esses elementos, esses
módulos, eles também fossem vistos com algo sempre em construção.
Então, assim nós levamos pras salas que estavam sendo restauradas lá e o
Patrick fez imagens muito bonitas. A obra recebeu, na verdade, um
público especial – os operários da obra de restauração (Entrevista
Armando Queiroz, 2014,Grifo nosso)..

Foi neste período de experimentação, e a partir dos possíveis diálogos da obra nos
ambientes da Casa-Palacete, que Armando observou a interação dos operários da
construção civil com a obra, nos espaços construídos e abertos. Os operários estavam
trabalhando na obra de restauração da edificação. Na Figura 3 apresento a imagem da obra
exposta em dois salões do MUFPA, conforme descrito por Armando e registrado por
Patrick Pardini.
Essa ideia inicial de construir o Mirante em sua grande verticalidade foi
inviabilizada devido à interferência visual que provocaria na fachada do prédio. Assim,
o artista buscou uma nova concepção, a partir de módulos soltos, que poderiam tomar
formas variáveis (Figura 4). A intenção do artista era buscar um diálogo da obra com os
diversos públicos que podiam interagir com os módulos e articulá-los de diferentes

2138
maneiras. As Figuras 5 e 6 apresentam duas arrumações diferenciadas da instalação Mirante no
jardim do MUFPA, após o processo de feitura e posterior inauguração do espaço expositivo e
paisagístico, em maio de 2006. A primeira imagem (Figura 5) demonstra a interação de visitante
anônimo e sua proposta; a segunda fotografia (Figura 6), realizada em 2009, demonstra a
relação dos transeuntes nas calçadas da “esquina” e suas possíveis interações visuais com a
instalação, que se encontra em outra organização.

Figura 3. Experimentação da obra no salão do


Palacete. Fotografia: Patrick Pardini.
Fonte: MUFPA.

2139
Figura 4. Mirante, escultura 2006. Armando Queiroz.
Foto: Arquivo do Artista.

Figura 5. Montagem de um autor anônimo no jardim do MUFPA.


Fotografia: Patrick Pardini. Acervo: MUFPA

2140
Figura 6. Relação das pessoas com a obra no jardim, em maio de 2009
Após longo período de exposição da obra em área livre, com as intempéries do
tempo, a deterioração da madeira foi inevitável. Neste contexto, em 2010, Queiroz
resolveu desdobrar o princípio conceitual da obra e fazer o seu enterro; houve então um
longo período de negociação com a diretora do museu. O artista só colocou em prática o
seu novo projeto: “Desapego”, durante a programação especial do 20º Salão Arte Pará
(2012), quando houve uma performance voltada para vídeo e fotografia, constituída por
uma cerimônia de enterramento da obra, realizada ao amanhecer no próprio jardim do
MUFPA (Figura 7).

Figura 7. Desapego, 2010. Vídeo (frame da performance


para vídeo do artista).Foto: Acervo do artista.

2141
Nos relatos de Marisa Mokarzel (2011, p.37-53), que foi a curadora da ação de
Queiroz, ela narra sobre o dia do ritual artístico:

Naquele dia em que acompanhávamos o enterramento, no meio do


ritual soou o som dos pássaros, e ele nunca mais saiu de nossos
ouvidos. A despedida da obra foi acompanhada de um ritual matutino,
no qual se presenciou o nascer do dia: o espetáculo da natureza.
Quando o cotidiano citadino teve início, o vazio da terra
aguardava uma por uma das peças. Separados pela grade de
ferro, encontravam-se o jardim, a cidade e o prédio eclético [...].
As trocas de memórias marcaram o encontro de tempos distintos:
os fragmentos, encontrados na escavação, momentaneamente
serviram de lençol à terra que acolheu o Mirante.(...).
A memória visual integrou-se à memória olfativa e sonora. A
performance ritualística desteceu a matéria, as imagens sobrepuseram-
se para que as lacunas fossem preenchidas por outras histórias, reais e
imaginárias.(...). Como disse no início: em sua trajetória, Armando
Queiroz sempre teve o olhar atento, voltado para a Amazônia.
Perspicaz e crítico, caminha além-fronteira. Em uma atitude de
desapego, propõe compartilhar um bem coletivo que tanto atrai os
olhos do mundo (MOKARZEL,2011, p.53, grifo nosso).

Neste ritual, outros tempos da história e da memória do lugar afloraram por meio
dos fragmentos de louças e objetos encontrados por ocasião da escavação do sítio usado
para enterrar a obra. Hoje, há apenas uma placa com a datação de um Mirante que
nunca existiu, ficou no trânsito da escultura modular, na imagem ora ausente, na matéria
abrigada na terra. Deste cerimonial de enterramento da obra no Jardim do MUFPA
ficaram os registros do ato performático que gerou o vídeo, assim como as fotografias.
Estes produtos artísticos são as coleções geradas a partir da performance do artista
Armando Queiroz. E na paisagem do Jardim de Esculturas estão as marcas inscritas
deste ato performático, não visíveis ao visitante, mas que agenciam para outras tramas e
urdiduras daquele “lugar de memória” (NORA, 1993, p.1-28).
As informações das etapas de metamorfose da obra Mirante em Desapego e suas
questões conceituais não estão registradas nos processos de documentação museológica

2142
da obra, nem mesmo o vídeo da performance foi tombado enquanto acervo do MUFPA.
Na pesquisa realizada, e em fase de finalização até agosto de 2017, foi elaborado o
arrolamento de todas as obras do artista. Assim como, a proposição de criação da
Coleção Armando Queiroz, que contenha as fases e momentos de seu fazer conceitual,
assim como, a proposta de criação de uma ficha catalográfica, que tenha o registro das
fases da obra e seu projeto inicial e metamorfoses, assim como, entrevista com o artista
e sua recomendação para salvaguarda e comunicação da sua obra “Desapego”.
Outro momento realizado pela pesquisa refere-se às questões comunicacionais
ou de recepção da obra por parte do público. Neste sentido, foi organizada a atividade
“Conhecendo Arte Conceitual no MUFPA” pelo discente de Artes Visuais e bolsista de
iniciação à pesquisa Werne Oliveira. A proposta foi vivenciar e experiênciar junto com
treze discentes do Curso de Artes Visuais, a visita ao MUFPA pra conhecer a obra
Mirante e Desapego, atividade da disciplina Laboratório de Projetos Experimentais,
ministrada pelo docente Ubiaraelcio Malheiros.
A visita foi realizada no horário da tarde, primeiro foi feita a visita ao jardim do
museu, os alunos sabiam sobre a obra, mas não o seu destino, o enterro no jardim, ou
seja, sua ausência material, e não mais existente no campo visual. Observa-se que neste
local, consta apenas uma placa com o nome do artista e o nome da obra Desapego. A
visita em seu roteiro, foi iniciado como o “conhecer a obra a partir do seu fim”, como
explicitou Marisa Mokarzel que conversou com os discentes nesta atividade, falando
sobre o artista, a obra e arte conceitual. Depois, foi encaminhado um questionário70 aos
participantes com três questões, dentre estes cinco discentes responderam.
Na questão: “O que você sentiu sobre a obra Mirante e Desapego?”:

A princípio, antes de conhecer as obras, senti curiosidade para


entender a proposta do artista que apresentava características

70
Dados apresentados no Trabalho de conclusão de Curso em Artes Visuais (bacharelado) de Werne
Oliveira (2017).

2143
minimalistas e permitia a interação do espectador para transformar sua
composição. No entanto, ao chegar ao museu da UFPA fiquei frustado
por não encontrar uma obra que ocupava um significativo campo
visual no local. Somente com a apresentação da obra metamorfoseada
em Desapego, fui entender a sua ausência no espaço e perceber todo
um processo reflexivo do artista para a obra, desde o seu início até o
seu relativo fim performático. E isso realmente achei incrível (Ailson
Tanaka, 2017).

Outras duas questões que se interligam: “A placa no jardim é suficiente para


entender sobre a obra Desapego, enterrada no Jardim?” “Sem as informações (conversa
com Marisa, vídeo e fotografias) você entenderia o conceito da obra?”:

Não, sem o aviso de alguém a respeito da obra, ela passaria


despercebida (Ana Lu, 2017).

Não sei que as obras conceituais valorizam sobretudo a ideia e o


pensamento do artista do que a materialidade da obra. Entretanto, não
há no local nenhuma informação que leve ao entendimento da obra
Desapego. E sem as informações transmitidas na conversa com Marisa
a placa de Aramando Queiroz não representa a obra para mim, poderia
ser qualquer placa com qualquer tipo de informação ou aviso, como
não pise na grama. E sabemos agora que a obra vai muito além da
visualidade espacial e isso precisa estar claro a todos os que visitam o
museu da UFPA (Ailson Tanaka, 2017).

Após processar todos os questionários dos discentes na condição de


público/receptor da obra, realizamos uma conversa com o artista Queiroz sobre a
questão da existência de uma placa ou totem com mais detalhes sobre a obra Desapego
ou mesmo, acerca das informações sobre o processo que o obra passou no museu
pudesse estar mais disponível ao público que visita o MUFPA:

Gosto da ideia de haver apenas uma placa. Para mim esta placa é
lápide. Lápide da obra. Sempre me interessei pelo silêncio, pela
sutileza do silêncio. Agora, cada vez mais considero muito
interessante pensar em como alguém pode encontrar aquela placa, ao

2144
acaso, e se perguntar o que representa, onde está aquele mirante do
qual fala esta lápide. Onde está?

Para a potencialidade do silêncio, das descobertas sutis, naquilo que


tanto acredito. Neste ponto voltamos à questão da placa-lápide... a
disponibilidade das informações, a meu ver, devem ser ativadas neste
momento. Sugiro que o museu tenha uma pasta, que seja física ou
virtual, acessível aguardando estas pessoas. Talvez, isto seja uma
raridade ou que mesmo isso não aconteça. Contudo, o simples fato de
tu estares pesquisando este trabalho e me fazendo estas perguntas
aponta positivamente (Armando Queiroz, 2017).

Em síntese, o que observamos das coleções dos artistas catalogadas nas


linguagens de instalações, objetos, pinturas, fotografias, vídeos e desenhos de diferentes
décadas, encontram-se num ambiente na fronteira do passado e presente, e com muitos
questionamentos para o futuro. Adquiridas em maior parte por meio de doações, o
expressivo acervo do MUFPA de Arte Contemporânea está condicionado na reserva
técnica do museu e a coleção do artista Armando Queiroz encontra-se deslocado dentro
da política de preservação do museu, em especial nas ações de pesquisa e documentação
museológica.

Considerações Finais

Enfim apresentamos o percurso de criação e produção da obra Mirante e


Desapego de Queiroz, enfatizamos a proposta conceitual do artista, e a apreciação de
um grupo de discentes da obra instalada no jardim do MUFPA. Ao final destacamos o
atrito entre o discurso da obra Desapego para o Queiroz, que compreende que a obra
deve ter apenas uma placa-lápide, destacando o silêncio. Já o público que respondeu o
questionário, num total de cinco de treze visitantes, solicitam mais informações
próximas a própria obra situada no jardim. De fato, essa tensão de perspectivas do
artista e do público pode vir a ser equacionada pela reflexão e criação de um processo

2145
de gestão do acervo contemporâneo do MUFPA e quanto ao processo de documentação
museológico, na atualidade do museu não existe essa preocupação ou ação.

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patrimônio cultural musealizado na “esquina” da “Jose Malcher” com a
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2148
Patrimônio e memória
da alteridade em
coleções museológicas
de arte e cultura
populares

2149
AS CAMADAS DO DIABO: ALGUMAS TRANSFORMAÇÕES DE
(IN)VISIBILIDADE

Judivan Alves Ferreira*


*Universidade Federal de Goiás

Resumo: O diabo tem lugar de destaque no imaginário coletivo ocidental. Este artigo objetiva,
de forma panorâmica e preliminar, apresentar a pesquisa em andamento sobre a representação
do diabo em museus brasileiros de arte e cultura popular. Metodologicamente, tem como base a
literatura especializada proveniente dos estudos literários e culturais sobre o diabo. Constata,
por meio da revisão de literatura, que o diabo passou por inúmeras transformações de
visibilidade ao longo dos anos e que ao passo que existe uma dessacralização do diabo na
literatura, o tema ainda é invisibilizado e pouco estudado na museologia.
Palavras-chave: Diabo; Literatura; Cultura Popular; Museologia; Museu.

Abstract: The devil has a prominent place in the Western collective imagination. This article
aims, in a panoramic and preliminary way, to present the ongoing research on the representation
of the devil in Brazilian museums of art and popular culture. Methodologically, literature based
on literary and cultural studies on devil. He notes, through a literature review, that the devil has
gone through countless of visibility over the years and whereas of the devil in the literature, the
theme is still invisible and little studied in the museology.
Keywords: Devil; Literature; Popular Culture; Museology; Museum.

2150
“No princípio...
o anjo Lúcifer foi expulso do céu e condenado a governar o inferno eternamente.
Até que decidiu tirar férias...” 1

Esta é a voz-off (e texto) que abre a série televisiva Lucifer (2016), produção
norte-americana criada por Tom Kapinos que narra o dia a dia, ou pelo menos as férias
na terra, de Lúcifer Morningstar. Nesta narrativa audiovisual o diabo é branco,
heterossexual, alto, bonito, sexy, sensual, articulado, arrogante, culto, divertido,
persuasivo, espontâneo, influente e elegante. Sim, ele “veste Prada” (FRANKEL, 2006)
mesmo! Mas nem sempre foi assim.

Imagem 1 – Lúcifer e suas asas

Fonte – Frame extraído da série Lucifer (2016), de Tom Kapinos.

Ao contrário do estilo de Lúcifer Morningstar – o anjo caído, que decidiu não


mais governar o inferno – o diabo, ao longo dos anos, passou (e passa) por inúmeras

1
Conforme no original: “In the beginning... the angel Lucifer was cast out of Heaven and condemned to
rule Hell for all eternity. Until he decided to take a vacation…”

2151
transformações de visibilidade. Essas transformações das “camadas” do diabo são o
mote deste texto, que é fruto das considerações preliminares de uma pesquisa que
desenvolvo na Universidade Federal de Goiás – cujo objetivo é levantar e analisar
musealias que representem e façam pensar a figura do diabo nos acervos de arte e
cultura popular dos museus brasileiros – junto aos projetos de pesquisa Museologia e
memória social em performances culturais e Performances e representações do diabo
nos acervos de cultura popular de museus brasileiros ambos sob a coordenação e
orientação da professora Vânia de Oliveira.

“Conhecem o Diabo?”2
“O diabo é-nos muito mais próximo que o Senhor e [segui-lo] é muito mais
cômodo e simples do que perseguir os obscuros caminhos divinos” (FLUSSER, 1965, p.
17). O filósofo tcheco, naturalizado brasileiro, Vilém Flusser (1965, p. 16), no livro
História do Diabo, aponta que “nós, os ocidentais, somos produtos de uma tradição
oficial que pinta o diabo com cores negativas, a saber, como opositor de Deus”. No
entanto, pontua o autor, “essa tradição parece querer esgotar-se” (FLUSSER, 1965, p.
16).
O diabo, como é sabido e apesar da tradição oficial apontada por Flusser, tem
lugar de destaque no imaginário coletivo ocidental, sobretudo enquanto “resultado da
ascensão do cristianismo à religião do Império” (MAGALHÃES; BRANDÃO, 2012, p.
277) nos séculos XII e XIII até a ideia de sedução e consumo que lhe cabe na
contemporaneidade. Ele – e os temas ligados a ele – desperta e alimenta o interesse do
público. Não à toa existam tantas narrativas sobre o diabo e tantos produtos culturais –
como Lucifer, por exemplo – que bebam dessas narrativas.

2
Trata-se de uma referência ao conto “O Senhor Diabo”, do escritor português Eça de Queirós.

2152
A literatura, o teatro, a música, as artes em geral e as várias manifestações
culturais nos dão pistas do por que desse lugar de destaque e – compete mencionar que
– as buscas por arcabouço teórico para fundamentar a pesquisa sobre a representação do
diabo em museus brasileiros de arte e cultura popular evidenciaram que o campo de
maior produção bibliográfica sobre o diabo é a literatura. Neste sentido, é a partir dela
que este texto pretende abordar as camadas do “tinhoso”. Todavia, oportunamente,
serão citados outros campos e outras linguagens.
O “diabo é idêntico à língua” (FLUSSER, 1965, p. 88) e língua é entendida neste
texto, numa leitura flusseriana, como realidade na qual se articulam os pensamentos.
Nesse emaranhado de pensamentos, observa-se – à luz de Magalhães e Brandão (2012,
p. 283) – que “a figura do diabo apenas surge na escrita por meio da expressão literária”
e temos, na literatura, inúmeras narrativas sobre o diabo “que forjam o imaginário
ocidental” (MAGALHÃES; BRANDÃO, 2012, p. 283). Dada a centralidade que o
diabo tem em algumas narrativas religiosas consideradas sagradas para os cristãos (que
acabam sendo reconstruídas e/ou citadas pelas narrativas seculares), entende-se, neste
texto a Bíblia como literatura.
Posto isto, observa-se no Antigo Testamento, por exemplo, embora pouco
presente, que o diabo é considerado um anti-deus e recebe o nome de “Serpente”,
responsável pela “perda do paraíso” de Eva e Adão. No Novo Testamento, por sua vez,
ele aparece como “Satanás” e no Apocalipse, como “Lúcifer”, “Anjo Caído” e “Estrela
da Manhã” (Morningstar, lembra?), nomes que se multiplicam em inúmeras narrativas
com o passar do tempo.
O diabo, ainda citando Flusser,

é possìvelmente imortal, mas certamente surgiu em dado momento.


Êle nada na correnteza do tempo, quiçá a dirige, êle é histórico no
sentido estrito do termo. É possível a afirmativa de que o tempo
começou com o diabo, que o seu surgir ou a sua queda representam o
início do drama do tempo, e que o ‘diabo’ e ‘história’ são os dois

2153
aspectos do mesmo processo. Assim poderíamos afirmar que a nossa
tentativa de fugir do diabo é um outro aspecto da nossa tentativa de
emergir da temporalidade (FLUSSER, 1965, p. 15).

Temporalidade que tem contribuído, consideravelmente, para a transformação da


visibilidade do diabo. Aqui proponho uma ligação entre o drama pontuado por Flusser,
e o conto O Senhor Diabo, em que Eça de Queirós aponta que

O Diabo é a figura mais dramática da História da Alma. A sua vida é a


grande aventura do Mal. Foi ele que inventou os enfeites que
enlanguescem a alma, e as armas que ensanguentam o corpo. E
todavia, em certos momentos da história, o Diabo é o representante
imenso do direito humano. Quer a liberdade, a fecundidade, a força, a
lei. É então uma espécie de Pã sinistro, onde rugem as fundas
rebeliões da Natureza. Combate o sacerdócio e a virgindade;
aconselha a Cristo que viva, e aos místicos que entrem na
humanidade. É incompreensível: tortura os santos e defende a Igreja.
No século 16 é o maior zelador da colheita dos dízimos. É
envenenador e estrangulador. É impostor, tirano, vaidoso e traidor.
Todavia, conspira contra os imperadores da Alemanha; consulta
Aristóteles e Santo Agostinho, e suplicia Judas que vendeu Cristo e
Bruto que apunhalou César. O Diabo ao mesmo tempo tem uma
tristeza imensa e doce. Tem talvez nostalgia do Céu! [...] O Diabo
amou muito (QUEIRÓS, 2016, on-line).

Eça de Queirós (2016, on-line) mesmo afirmando, no início do conto


supracitado, que é “redondamente inapto para escrever revistas, dizer finamente das
modas, e falar da literatura contemporânea” faz pontuações que evidenciam que o diabo
perpassa, cruza e até se confunde com as narrativas da história ocidental, ideia que
corrobora a premissa de Flusser ao afirmar que o tempo começou com o diabo.
Além do âmbito da religiosidade, espaço onde “ele é figura insuperável como
mito religioso, como convicção religiosa mais conservadora, como parte do imaginário
ocidental e constitutivo da arte no ocidente e no oriente” (MAGALHÃES; BRANDÃO,
2012, p. 278), o diabo está presente, faz aparições e protagoniza muitas das narrativas
consideradas, pela crítica e teoria literárias, canônicas na literatura ocidental. Salma

2154
Ferraz (2009, p. 02) pontua que as narrativas sobre o diabo foram contadas e recontadas
“pelos autores das mais diferentes épocas e das mais diversas literaturas”.
Estas narrativas vão desde A Divina Comédia, de Dante Alighieri (2003);
passando pelo pacto com o Diabo em Fausto, de Goethe (2003); O Diabo do
Campanário, de Edgar Allan Poe (2017); O Auto da Barca do Inferno, A Hora do
Diabo, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de Gil Vicente (2012), Fernando Pessoa
(2004) e José Saramago (1991), respectivamente. Obras de autores que, em conjunto
com os anteriormente citados, influenciam – direta ou indiretamente – a produção
literária brasileira e as nossas leituras acerca desta tão incompreendida personagem.
Exemplo dessas influências são as obras Macário, de Álvares de Azevedo
(1988); Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa (1994); O Auto da
Compadecida, de Ariano Suassuna (2005), que foi adaptada para o teatro e cinema, na
qual o diabo é o “Encourado” acusador, uma mistura de “promotor, sacristão, cachorro e
soldado de polícia” (SUASSUNA, 2005, p. 128); e, por falar em outras linguagens,
temos no cinema e audiovisual – para citar alguns exemplos – Deus e o Diabo na Terra
do Sol (1964); Rainha Diaba (1974); Madame Satã (2002) e O Homem que Desafiou o
Diabo (2007) filmes de Glauber Rocha, de Antônio Carlos Fontoura, de Karim Aïnouz
e de Moacyr Góes, respectivamente, dentre outras manifestações.

Entre “serpente” e “desejo”: para crianças, jovens e adultos...

Nota-se que o diabo – ou o imaginário coletivo que se criou sob esta personagem
– transita e se confunde com a história, passeia pela literatura, pela teologia e dá o ar da
graça no teatro, no cinema e, sobretudo, nas manifestações de cultura popular, pois
como nos lembram Magalhães e Brandão (2012, p. 279), “é dentro da cultura popular

2155
cristã que o Diabo passará a ter força na arte”. Afinal, “uma coisa é certa: o cristianismo
é o principal responsável pela força do Diabo no mundo, pois é justamente nele que as
representações e projeções do Diabo encontrarão um singular avanço na cultura e na
civilização” (MAGALHÃES; BRANDÃO, 2012, p. 278).
Ainda no âmbito da literatura, campo em que existe uma extensa produção
acerca do diabo, Salma Ferraz (2009, p. 04) pontua que “o Diabo, em carne, osso e
espírito fez (e faz) sucesso entre as crianças” e essa afirmativa, penso, se estende aos
jovens e adultos – não à toa o livro O Diabo veste Prada tenha sido adaptado, em um
curto intervalo de tempo, para o cinema e conseguido um grande público e a série
televisa Lucifer, citada no início desta comunicação, tenha alcançado só no primeiro
episódio mais de sete milhões de espectadores3.
Infere-se que esse fascínio pelo diabo seja fruto das sucessivas transformações
de sua visibilidade, que ganhou inúmeras camadas ao longo dos anos e que passou,
segundo Marcos Renato Holtz de Almeida (2010, p. 01), a “ser utilizado pela indústria
do entretenimento e pela sociedade de consumo como mercadoria capaz de satisfazer os
gostos das sociedades e das culturas contemporâneas”.

Mas, e os museus?

Os museus constituem espaço privilegiado de fruição artística e cultural. Cabe a


eles adquirir, conservar, estudar, expor e transmitir o patrimônio cultural da humanidade
e do seu meio, com fins de estudo, educação e deleite (DESVALLÉES; MAIRESSE,
2013). Além disso, Marcelo Nascimento Bernardo da Cunha (2012) pontua que os
museus, independente de sua tipologia, devem possuir necessariamente uma cadeia

3
Os dados podem ser consultados neste link: http://www.adorocinema.com/series/serie-18145/audiencias/

2156
operatória que é, nas palavras dele, “o conjunto sequencial e inter-relacionado de
atividades que são inerentes ao fazer museológico, que independem da perspectiva
formal ou conceitual da instituição” (CUNHA, 2012, p. 242). O autor esclarece ainda
que esta cadeia conta com ações de salvaguarda e comunicação patrimoniais. Mas de
que maneira os museus expõem o fascínio pelo Diabo?
Vânia de Oliveira (2015, p. 08), no projeto de pesquisa intitulado Performances
e representações do diabo nos acervos de cultura popular de museus brasileiros,
pontua que “a vivência profissional tem mostrado que o capeta aparece nos museus em
geral, e em particular nos acervos de cultura popular, onde sua ocorrência é mais
frequente”. Todavia, a pesquisadora constatou que não foram, até o momento,
encontradas referências sobre esta indagação (OLIVEIRA, 2015). Vale mencionar que
os estudos de Oliveira (2015) vão ao encontro dos estudos de Magalhães e Brandão
(2012) quando dizem que é na cultura e na arte popular que o diabo e a representação
dele têm maior aparição.
No âmbito dos museus, no contexto brasileiro e utilizando como mecanismo de
busca o Cadastro Nacional de Museus (CNM), não foi encontrado nenhum museu cuja
denominação ocorresse a palavra diabo ou algum de seus sinônimos. Contudo, apesar
de não haver museus do diabo e afins e considerando o que a literatura especializada diz
acerca da cultura popular enquanto campo para se estudar o diabo, foram levantados –
por meio do CNM – quatorze museus/centros culturais que têm por tipologia a arte e a
cultura popular. Estes e os acervos/coleções que possuem são o foco de análises da
pesquisa que se delineia, sob a coordenação e orientação de Vânia de Oliveira, em
artigos a serem publicados e em exposição a ser organizada ao fim do desenvolvimento
desta pesquisa.

2157
À guisa...

de considerações finais sobre as camadas do diabo, neste texto, evidencia-se, a partir da


revisão de literatura, que existe na contemporaneidade uma dessacralização da figura do
diabo (FERRAZ, 2009) no âmbito das expressões literárias e que sua visibilidade que
outrora era, majoritariamente, mal quista, uma vez que ele era entendido como um anti-
deus se transforma em mais um produto para satisfazer os mais diversificados desejos.
O diabo troca a pele de “serpente” para vestir mais um “Prada”, pois até ele – que tem
como dever “manter o mundo no tempo” (FLUSSER, 1965, p. 17) – está a serviço das
engrenagens do “capitalismo”.
No que tange à museologia e ao fazer museológico, observou-se que este tema
se mostra ainda invisibilizado, inexplorado e com poucas publicações. Se, como nos
possibilita dizer as teorias do objeto e da cultura material, tudo pode ser musealizável,
por que não temos no Brasil um museu do diabo ou discussões sobre as musealias que o
representa? Teria alguma relação com a forma com que o diabo é visto/entendido em
nossa sociedade? Estas e outras questões serão discutidas futuramente, em publicações
próximas.

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2158
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2159
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VICENTE, Gil. Auto da Barca do Inferno. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2012.

2160
O MUSEU DO FOLCLORE EDISON CARNEIRO - RJ E O MUSEU DE ARTE
POPULAR - BA: DOIS EXEMPLOS DE DISPUTA E DOIS MODOS DE FAZER
MUSEU

Jean Costa Souza*

Resumo: O presente estudo tem por objetivo refletir a problemática que envolve o uso dos
termos, “cultura popular” e “folclore”, frente a formação e classificação de coleções em museus,
considerando sua concepção frente uma conjuntura social onde se pensava construir uma
identidade nacional pautada na produção do homem comum. Dessa forma, refletir uma
categorização destes conceitos no que tange uma classificação na identificação dessas coleções
encontra-se de forma complexa. Assim, como processo metodológico trago para estudo de caso,
a formação da coleção Museu de arte Popular da Bahia, discorrendo desde sua formulação como
também, uma análise frente ao discurso expográfico que a mesma propaga na sociedade.
Palavras-chave: cultura popular; artesanato; folclore.

Summary: The present study aims to reflect the problematic that involves the use of the terms
"popular culture" and "folklore", in front of the formation and classification of collections in
museums, considering its conception before a social conjuncture where it was thought to
construct a national identity ruled In the production of the common man. Thus, to reflect a
categorization of these concepts regarding a classification in the identification of these
collections is complex. Thus, as a methodological process, I bring to the case study the
formation of the collection of the Museum of Popular Art of Bahia, discussing from its
formulation as well as an analysis of the discography discourse that it propagates in society.
Key-words4: popular culture; Crafts; folklore.

2161
Introdução
Os museus e suas coleções constituem-se num campo de estudo que envolve
agentes sociais e práticas que dinamizam a memória e o esquecimento frente a
construção de uma identidade nacional. No Brasil, no início do século XX, foi possível
mapear discursões acerca da valorização da cultura popular brasileira como
instrumentos de construção e consolidação da identidade nacional. No entanto,
associado a isso, começavam também a surgir problemas que envolvem a identificação
dos artefatos como exemplares do folclore e da cultura popular ao passo que estes são
usados como sinônimos.
Para os intelectuais daquele período o assunto teve uma grande problemática
conceitual, mas isso não impediu que coleções identificadas como “folclore” “cultura
popular”, e ou “arte popular” começassem a emergir dentro dos espaços museais,
tornando-se sinônimos de folclore. É dessa forma que o discurso político a partir da
institucionalização do patrimônio na década de 30 e o movimento folclorista entre as
décadas de 40 e 50, começam a promover a valorização e a preservação desses artefatos
para compor a noção de nacionalidade brasileira.
Atrelados a uma ideia de produção artesanal diversos museus identificaram os
artefatos em suas expografias por meio de uma narrativa em que o cotidiano do homem
comum fosse ali apresentado.
Desse modo o presente estudo tem por objetivo refletir a problemática que
envolve o uso dos termos “folclore e cultura popular” utilizando dois museu como
parâmetro: o Museu do Folclore Edison Carneiro, no Rio de Janeiro – RJ e o Museu de
Arte Popular da Bahia pertencente à Fundação Instituto Feminino da Bahia – FIFB, em
Salvador - BA.
Enquanto método, optou-se pela pesquisa histórica e bibliográfica nos livros,
artigos, catálogos, periódicos e websites que discutem ou apresentam a problemática em
estudo e também uma pesquisa documental. Buscamos sistematizar as temáticas sobre a

2162
“arte popular” que envolve uma discussão acalorada, visto que existem múltiplas
interpretações na realidade nacional que exaltam “valores” em detrimento do seu
contexto social.
O objeto em estudo, desperta o interesse para pesquisa, por trata-se de um tema
que ao refletir os conceitos de folclore, cultura popular, e arte popular, e como estes são
identificados nos Museus brasileiros por meio dos artefatos, verifica-se a necessidade de
pesquisas em relação à temática, pela carência de trabalhos e publicações no que tange a
Museologia e o campo interdisciplinar de outras áreas do saber.

O Museu do Folclore – Rio de Janeiro/RJ


O atual Museu de Folclore do Instituto Nacional do Folclore/Fundação Nacional
de Arte5, que foi criado em 1968 pela Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro
(CDFB) sob administração do professor Renato Almeida, é um projeto de Edison
Carneiro6.
O Museu viveu no seu histórico diversas tentativas de implantação sendo a
primeira em 1963 quando Edison Carneiro apresenta a criação do “Museu de Arte
Popular da Guanabara”. Sua abertura estaria atrelada “às comemorações do quarto
centenário da Cidade do Rio de Janeiro” e o museu teria o objetivo de “proporcionar ao
público uma série de exposições rotativas, abrangendo diversos aspectos da música, da

5
Todas as informações apresentadas acerca do Museu do Folclore Edison Carneiro estão disponíveis
nos jornais do bando de dados da hemeroteca do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular e
foram organizadas de modo que auxiliasse a leitura. Disponível:
http://docvirt.com/docreader.net/docmulti.aspx?bib=hemeroteca&pesq=MUSEU%20DO%20FOLC
LORE%20EDISON%20CARNEIRO%20. Acesso em 08/ 10/ 2016.
6
Baiano de Salvador/BA o etnólogo, folclorista, historiador e cientista Edison Carneiro, viveu no Rio
de Janeiro desde 1939, onde trabalhou como jornalista, ensaísta e professor. Atento às questões da
brasilidade e do popular ele se tornou um dos mais destacados pesquisadores da cultura popular,
tendo participado de movimentos que visavam ao conhecimento e valorização do folclore nacional e
internacional. Disponível em: http://www.cnfcp.gov.br/interna.php?ID_Materia=162. Acesso em
08/ 10/ 2016.

2163
pintura e da escultura populares, apresentados de modo compreensivo e didático”
(NOTICIÁRIO, 1963, p. 105) e seu acervo seria composto “por doação de seus amigos
e por aquisição já acertada com alguns colecionadores, de um total de mais de duas mil
peças de arte popular dos mais variados pontos do Brasil” (NOTICIÁRIO, 1963, p. 105
e NASCIMENTO, 1988, p. 6).
Em 1965, no Noticiário do número 11 da Revista Brasileira de Folclore (1965, p.
95) o projeto do Museu é novamente relatado e agora a proposta seria num “prédio
doado pelo Governador Carlos Lacerda, na Ilha de Paquetá”. Novamente não acontece
e, no ano seguinte, reaparece como Museu de Artes e Tradições Populares – Museu já
existente na cidade de São Paulo – mas infelizmente também não obtêm êxito
(NOTICIÁRIO, 1966, p. 317).
Em 1968, após o convênio entre a Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro e
o Museu Histórico Nacional é firmado o acordo onde as duas instituições partilhariam a
responsabilidade pelo Museu. Dessa forma, o Museu de Folclore foi inicialmente uma
das seções do Museu Histórico Nacional. Não foi possível identificar quando os
artefatos deixam o Museu Histórico Nacional, mas em 1974, na Rua do Catete n 179,
mesmo endereço do Palácio do Catete – Museu da República, a Campanha Nacional do
Folclore consegue um local para abrigar o acervo.
Com o gradativo crescimento do acervo do Museu, em 1975, o então
departamento de assuntos Culturais do Ministério da Educação e Cultura cedeu o Prédio
da antiga garagem do Palácio do Catete localizado na rua do Catete no prédio nº 179,
onde a CDFB na gestão de Bráulio do Nascimento, passou a ter sede própria e onde
funciona até hoje o Instituto Nacional de Folclore. Em 1976, a instituição passa a ser
denominada Museu do Folclore Edson Carneiro pela lei nº pela Lei 63537, dado a

Brasil. Lei n 6.353, de 13 de Julho de 1976. Da o nome de “Edison Carneiro” ao Museu do Folclore.
Disponível em: legis.senado.gov.br/legislação/ListaTextoIntegral.action?id=99767&norma=123557

2164
contribuição que o professor e jornalista ofereceu aos estudos do folclore, como também
a sua atuação como diretor da campanha de 1961 até 1964.
A partir de 1982, o Instituto Nacional de Folclore, então sob direção de Lélia
Gontijo Soares, foi submetido a um processo de (re) conceituação, através do qual os
fatos folclóricos passaram a ser estudados a luz de teorias mais abrangentes e adequadas
às normas conceituais que regem a antropologia cultural, do qual o folclore foi tido
como parte integrante. Renovando seus critérios teóricos e museológicos, o museu
refletiu essa concepção emergente e se voltou para estudos etnográficos do objeto, que
conduzissem à contextualização de seu acervo respaldado em uma documentação de
campo e minucioso registro museológico. Surgiu assim, a necessidade de reformular sua
galeria de exposição permanente e, por já contar com um acervo de dez mil peças,
implicar em espaço físico maior (BOLETIM DO PROGRAMA NACIONAL DE
MUSEUS, 1985).
Desse modo, em 1983, a Fundação Nacional de Arte adquiriu a casa de n 181
na rua do Catete, uma antiga casa de beira de rua erguida em 1880 e tombada na
primeira metade do século XX. O prédio que se encontrava em estado lamentável,
contava com azulejos e grades de ferro rendado na fachada que fugia do estilo neo-
clássico trazido pela missão francesa (1816) e em voga na época. Com o apoio da
Fundação Nacional Pró-memória procedeu às obras de restauração do imóvel.
Executado pela FUNARTE e sob a coordenação do prof. Alcides da Rocha Miranda,
arquiteto com 40 anos de dedicação à área patrimonial, o projeto de recuperação atingiu
o máximo de fidelidade do prédio original (BOLETIM DO PROGRAMA NACIONAL
DE MUSEUS, 1985).
Durante o processo de adequação para cunho museológico, as salas receberam
iluminação especial e, visando integrar o conjunto, o terraço agora construído, foi

2165
ornamentado com plantas brasileiras, comumente empregadas em rituais, doadas pelo
paisagista Roberto Burle Marx. Os espaços foram projetados com livre circulação para
cadeirantes e conta com um elevador, fruto de doação da construtora Andrade Gutierrez.
A ação interdisciplinar envolveu museólogos, antropólogos e demais técnicos da
instituição como arquitetos, engenheiros, mestres de obras e operários. Em cada uma
das áreas do museu estão expostas peças de várias regiões do Brasil e ao ampliar suas
instalações o museu transformou sua antiga sede em anexo abrigando a Galeria Mestre
Vitallino para exposição temporárias. Nesse local ainda há um auditório, reserva técnica
e gabinetes de trabalho (BOLETIM DO PROGRAMA NACIONAL DE MUSEUS,
1985).
Desde então o Museu está instalado em dois casarões do final do século XIX e
mantêm-se estruturado em quatro unidades: museologia, antropologia, conservação e
restauração e difusão cultural. A exposição de longa duração reúne cerca de 1.500
objetos, de um acervo total de 14 mil peças, que contam uma multiplicidade de histórias
sobre o homem brasileiro e apresenta-se organizada em cinco unidades temáticas: vida,
técnica, religião, festas, e arte.

Sem privilegiar uma região ou área cultural, o museu, em seus dois


andares, apresenta conjuntos integrados de atividades espalhadas por
todo país, reunidas por tema ou linguagem. Assim, no primeiro
momento, a amostra oferece uma representação dos ritos de passagem,
isto é, as cerimônias que marcam os diferentes momentos de crise no
ciclo da vida – nascimento, puberdade, casamento e morte. Em barro e
madeira os artistas expressam sua visão destes momentos com
singeleza e perspicácia. Segue-se o mundo ritualizado das festas em
que o colorido dos vestuários, adornos e adereços do Bumba-meu-boi,
das Folias de Reis e do Divino, do Maracatu e do Carnaval, entre
outras têm uma representação atraente. Três salas especiais
reconstituem o ambiente de produção cultural do homem brasileiro na
transformação da natureza: uma casa de farinha, os instrumentos de
trabalho de um pescador e de um vaqueiro exemplificam a passagem
dos materiais em produtos culturais. Já no segundo andar, está a parte
mais rica do museu pela variedade e qualidade das peças expostas, que

2166
levam a assinatura de artesãos que já tem renome internacional. Não,
não é uma contradição: o indivíduo criador que produz o que se
denomina arte do povo, não é anônimo, nem a-histórico. Recebido o
legado de seu grupo cultural, ele reelabora e exprime sua
contemporaneidade no trabalho artesanal. A mostra começa com as
rendeiras e seus diferentes teares, com as diversas rendas, do filé ao
bilro. O traçado de palha, das cestas aos abanicos e a vez da cerâmica
do vale do Jequitinhonha (MG) ao Maragogipinho (BA). Lá estão as
areias coloridas engarrafadas pelos artistas de Timbau (RN) e as
esculturas fantásticas de GTO, Valentim Rosa, Laurentino que
trabalham pedras-sabão e madeiras de tipos diversos. Há pintores
primitivos diversos cujas obras representam bem o impacto da
civilização industrial sobre seus trabalhos e são representativos do
processo histórico nas artes populares. O museu Edison carneiro
apresenta uma visão dinâmica e viva do folclore brasileiro e permite
aos visitantes um descobrimento das ricas tradições culturais do país,
submerso nas redes de comunicação eletrônica. O folclórico não é
apenas o sui generis, o exótico, mas corresponde às maneiras de se
expressar nas populações, desde o hábito de vestir, às formas de lazer,
às comemorações comunitárias, até a reverência às divindades,
concebidas e processadas pelo grupo humano de que são signo das
necessidades e solução cotidianas, no nível do real e do imaginário.
(Jornal do Brasil, Crianças Folclore Vivo, Eliana Yunes)8.

Para esse trabalho é importante destacar que as primeiras denominações do


Museu do Folclore estavam atreladas a palavra arte ainda que identificasse como
popular. Não foi possível esclarecer porque o nome foi trocado e onde ao certo o projeto
de Edison Carneiro foi perdido ou modificado. Levantamos a hipótese que os embates
teóricos dentro da Comissão do Folclore possa ter contribuído para esse ajuste e,
considerando a proposta inicial desse pesquisador, o seu nome foi incluído
posteriormente como forma de homenageá-lo.

O Museu de Arte Popular da Fundação Instituto Feminino da Bahia - FIFB –


Salvador/BA

8
Não foi possível identificar a data do jornal havendo apenas no site a numeração da hemeroteca F-
1028.

2167
O Museu de Arte Popular é uma das três instituições museológicas que faz parte
da Fundação Instituto Feminino da Bahia – FIFB9. Construído no ano de 1937 e
inaugurado no ano de 1939 no Bairro da Politeama, Salvador- BA, o prédio da
Fundação possui uma área de aproximadamente 5.000 m² distribuída em cinco
pavimentos. Nascida de um projeto católico e assistencialista de Henriqueta Martins
Catharino10 e Monsenhor Flaviano Osório Pimentel a FIFB foi sendo construída e
idealizada desde 1923 e ocupou outras sedes e teve diversas funções até se constituir no
que atualmente conhecemos11.
O Museu de Arte Popular está localizado no subsolo da Fundação e dividiu sua
área, quando havia o funcionamento da escola, com as práticas de esporte e lazer para as
internas, contando inclusive com uma piscina. O primeiro pavimento era destinado ao
setor administrativo e ainda é assim. Havia um restaurante e salões de recepção que hoje
funcionam como parte do cerimonial onde é realizado casamentos, batizados,
confraternizações e missas. No segundo pavimento, localizavam-se as salas de aula,
hoje salas de exposição do Museu Henriqueta Cataharino e ainda há uma capela para as

9
A Fundação Instituto Feminino da Bahia é uma instituição de cunho particular, ligada a
arquidiocese Primaz do Brasil e que possui, além do Museu de Arte Popular, o Museu Henriqueta
Catharino – de arte decorativa, localizado nos dois primeiros pavimentos do palacete; e o Museu do
Traje e do Têxtil – de trajes e tecidos, organizado no terceiro andar.
10
Heriqueta Martins Catharino, foi uma mulher que viveu na alta sociedade baiana, entre o século
XIX e XX. Filha do Comendador Bernardo Martins Catharino, teve uma educação privilegiada que lhe
permitiu se aprofundar em conhecimento em pintura, princípios morais, musica, língua, e etc.
11
No ano de 1923 Dona Henriqueta alugou um grande prédio na praça 15 de novembro, número 15,
antigo Terreiro de Jesus e criou a Casa São Vicente. O espaço funcionou como uma biblioteca, sala de
leitura, uma pensão para as moças, uma Agência de Colocações e um Restaurante para senhoras e
jovens. Em 8 de dezembro do mesmo ano inaugura-se a Escola Comercial Feminina. Meses antes da
inauguração, em abril de 1923 em um prédio da Avenida Sete foi aberto o Atelier São José onde
moças que não casaram eram preparadas para o trabalho com salário. Com a morte de sua mãe, D.
Úrsula Martins Catharino no dia 9 de setembro de 1924, coube a Henriqueta entre outros imóveis, o
prédio da praça 13 de maio 5, Piedade, para onde se transferiu Casa São Vicente em 1926. Em março
de 1928 a Escola Comercial Feminina passou a funcionar na casa da Avenida Sete, 215 antigo
Rosário e em seguida as demais seções também foram transferidas. Em 21 de março de 1929 a
escola foi oficializada pelo Governo Federal, e dado o crescimento da Casa São Vicente, elaboram o
primeiro estatuto da obra em 21 de 1929 onde passou a denominar-se Instituto Feminino da
Bahia (MUSEU DO TRAJE E DO TÊXTIL, 2003).

2168
celebrações religiosas da arquidiocese. “Embora todo o espaço da Instituição fosse
decorado com móveis, porcelanas, biscuits, opalinas e uma diversidade de arte
decorativa” (MUSEU DO TRAJE E DO TÊXTIL, 2003, p. 11) o conjunto de peças do
Museu de Arte Popular está no subsolo o que indica a hierarquização do acervo.
Para Helder do Nascimento Viana (2002) é legitimo compreender que o Instituto
Feminino da Bahia fez uso de um aparato pedagógico composto por uma rede de órgãos
e instituições que incluía além de uma estrutura administrativa e sala de aulas, uma série
de unidades auxiliares.

Para realizar tal projeto, a escola foi concebida considerando três


subdivisões: a Divisão de Economia Doméstica, a Divisão de
Assistência Social e a Divisão de Cultura. Esta última estava voltada
para a transmissão do conhecimento escolar, sendo composta da
Biblioteca, dos Museus, da Escola Técnica de Comércio Feminino, da
Escola de Datilografia e dos Cursos de Línguas, Literatura,
Taquigrafia, Mecanografia, Secretária e Auxiliar de Comércio. Para
isto, o Instituto foi devidamente instalado no final da década de 30,
num palacete localizado no bairro do Politeama (VIANA, 2002, p.
130).

A coleção de arte decorativa do Museu Henriqueta Catharino, é pensada frente a


sua exposição, reconstituindo cenograficamente espaços do cotidiano de um lar, de uma
família abastada frente a uma conjuntura social do século XIX. Objetos como
mobiliários, vidros, pinturas, esculturas, pratarias, cristais, porcelanas, e objetos
decorativos de modo em geral, encontram-se caracterizado numa trama onde o passado
e o presente se entrelaçam entre o “objeto exposto” e o “público” que o visita,
constituindo a formação da identidade baiana (VIANA, 2002).
Entretanto, é possível localizar artefatos da cultura popular dialogando
diretamente com a filosofia religiosa católica da Fundação. Escumilhas12 e oratórios em

12
Quanto ao significado da palavra Escumilha, torna-se difícil definir uma vez que o seu uso foi
atribuído em diferentes contextos e ações. Segundo Marijara Souza Queiroz “A imprecisão das

2169
miniatura, provenientes do Museu do Recolhimento dos Humildes do município de
Santo Amaro - BA, estão expostos nos corredores que dão acesso a Capela. No Museu
do Traje e do Têxtil ainda há na Ala Eclesiástica a presença do Deus Menino do
Monte13, outra forte representação cultural popular presente no museu e fora do Museu
de Arte Popular.
Para Viana (2002) é provável que o contanto das alunas com as coleções dos
museus e com as exposições periódicas14, servisse de instrumento de conhecimento
sobre usos e boas maneiras dentro de um espaço social.
O Museu de Arte Popular da Bahia teve sua coleção formada ainda na década de
1920 conforme consta no catálogo. Entretanto, no ano de 1957 devido ao III Congresso
Nacional do Folclore, com as temáticas “O Artesanato”, “Folclore do mar e dos rios”, e
o “Folclore da Bahia”, a coleção do museu foi exposta abrindo o referido congresso
como parte de destaque na programação oficial. A coleção constituída por mais ou
menos 1.000 peças, serviria, na prática, como reflexo a uma releitura moderna de uma
produção artesanal cultural da Bahia.

informações coletas na documentação da FIFB apresentou-se como uma dificuldade na


interpretação dos dados. Segundo o mesmo texto institucional sem autoria, na Bahia, desde o
principio do século XIX, era costume cortarem-se alguns fios de cabelo das pessoas queridas,
quando elas faleciam. Como uma homenagem póstuma, as famílias levavam esses fios ao Convento
dos Humildes em Santo Amaro da Purificação, Recôncavo Baiano, para que as freiras executassem,
com eles, o trabalho artesanal que era uma prática feminina (QUEIROZ, 2014, p. 12).
13
Segundo Edjane Cristina Rodrigues da Silva “Assim como em Portugal, aqui no Brasil o culto ao
Deus Menino sempre esteve mais relacionado a figura feminina, talvez pela ligação entre a criança e
os cuidados maternais. A imagem de Jesus criança era presença obrigatória nos oratórios familiares,
chegando até ser tratado como membro da família. [...] Caracterizado por ser uma produção
tipicamente feminina, a representação do Menino Jesus no Monte esteve muito ligada aos conventos
e recolhimentos baianos, especialmente nos séculos XVIII e XIX, momento em que as únicas opções
de vida para a mulher eram o casamento com um homem ou com Deus” (SILVA, 2007, p. 165-166).
14
Além de apresentar um museu de arte decorativa com uma coleção permanente, “realizava
periodicamente exposições temáticas com esse mesmo objetivo. Entre as exposições temporárias
realizadas estavam a “Exposição de Cristais”, de 1953, a “Exposição da Princesa Isabel”, de 1954, a
“Exposição de louças, porcelanas e panos da Costa das autenticas baianas”, de 1955, a “Exposição
de beleza do mas nos lares baianos”, de 1956, a “Exposição de marfim”, de 1957, além das
“Exposições de Natal” que eram realizadas todos os anos (VIANA, 2002, p. 136).

2170
É oportuno deixar aqui anotado que o interesse do IFB [Instituto
Feminino da Bahia] pelas manifestações artísticas das camadas mais
simples do povo é muito anterior aos movimentos oficiais surgido
com a finalidade de estimular e amparar essas mesmas manifestações.
[...] Sem ter ainda um museu de arte popular, a verdade é que o rico
material adquirido e carinhosamente guardado pelo IFB ia não só
impressionando a quantos tinham oportunidade de vê-lo, como
aumentando em quantidade e categoria. Olga Obry fez para a
“Gazeta” de São Paulo, em 1947, o seguinte comentário: “o Instituto
Feminino da Bahia possui o museu mais rico de artes femininas de
caráter tipicamente local, que se possa encontrar pelo mundo afora”.
[...] Com a transferência do IFB para as novas instalações, na Rua
Monsenhor Flaviano, n 2, em 1939, foi que resolveu sua direção
reunir todas as peças de arte popular em um mesmo local (REVISTA
AABB, 1961, p. 22 - 23).

Segundo a Revista da AABB (1961), foi na ocasião do III Congresso Nacional


do Folclore, realizado em Salvador em 1957, que o Museu de Arte Popular foi
inaugurado como “departamento da Divisão de Cultura do Instituto Feminino da Bahia,
que compreende o Museu de Arte Antiga, Museu de Ciências Naturais, Biblioteca,
Escola Técnica de Comércio, Escola de Datilografia, Ginásio Feminino da Bahia, além
de cursos diversos” (REVISTA AABB, 1961, p. 23).
O jornalista Antônio Augusto Nóbrega Fontes, responsável pelo texto publicado
na Revista da AABB destaca na matéria que “até então não existia no Brasil nenhum
museu dedicado exclusivamente à arte popular. O IFB era o primeiro” (REVISTA
AABB, 1961, p. 23).
Não querendo entrar na polêmica da primogenitura de um museu de arte popular
é preciso destacar que antes mesmo de se denominar esses artefatos como artístico,
Henriqueta Martins Catharino já o fazia sem distinção às demais peças que compunham
a sua vasta coleção.
D. Henriqueta tinha uma maneira muito especial de ver o objeto de
arte: não o compreendia de uma forma restrita, mas de um modo
divino. Nesta percepção, a beleza não é um atributo derivado, mas
coincide com a sua própria realidade. A preocupação com a
preservação da memória cultural e, consequentemente, com a

2171
divulgação dos bens culturais brasileiros, foi uma constante em toda a
sua vida, haja vista o imenso acervo reunido na Fundação Instituto
Feminino da Bahia (MUSEU DO TRAJE E DO TEXTIL, 2003, p.
12).

Na exposição os artefatos estavam organizados em seções da seguinte forma:


“Cerâmica, Lataria, Trançados, Tecelagem, Lavores Femininos, Escultura, Pesca e
Transportes” (REVISTA AABB, 1961, p. 22 -23) o que está de acordo com a forma
expográfica da época que contemplava o material constitutivo da peça e ou sua função15.
A importância do conjunto de peças é significativa e cresce conforme a leitura da
matéria.
Um determinado ângulo do museu chama especial atenção dos
visitantes. Êle (sic) reproduz com finalidade o ambiente de uma
cozinha baiana, mostrando variada coleção de peças hoje encontradas
com menos frequência, como o ralador de pedra, empregado no
preparo do acarajé. Na seção de tecelagem, junto a rústicos panos de
execução manual estão raros e delicados exemplares de pano de costa.
Antiquíssimo tear pode também ser admirado. Foi herdado de seus
antepassados por Abdias Nascimento Nobre e por êle (sic) mesmo
oferecido ao museu. Em horas de folga volta êle (sic) ao velho tear e
tece ainda os coloridos panos da Costa, cada vez mais raro na
indumentária das baianas. São valiosos os mostruários de cerâmica.
Tão valioso que de lá foram feitas as ilustrações e o documentário
fotográfico para o magnífico estudo feito por C. J. da Costa Pereira,
“A Cerâmica Popular da Bahia”. Ao lado de peças primorosas do
mestre oleiro Silvestre Costa, uma das mais expressivas figuras da
cerâmica de Maragogipinho, está o velho e rústico torno no qual
trabalhava o grande artesão, oferta ao museu feita por seu filho, o
Padre Otacílio Costa (Revista AABB, 1961, p. 23).

15
Foi a partir da comparação entre as diversas manifestações culturais pesquisadas que se elaborou
uma tipologia, distinguindo fazeres codificados (como a tecelagem) dos que dão margem à
criatividade individual (como a cerâmica); fazeres tradicionais (como a cerâmica e a tecelagem) do
artesanato de transformação e reciclagem (como as lixeiras, que são um subproduto da atividade
industrial, e como, frequentemente nos dias de hoje, o brinquedo popular). Em todos os casos se
procurava entender os processos de transformação e/ou de resistência dessas atividades, sempre
tentando se aproximar o máximo possível do ponto de vista dos produtores e dos consumidores, de
modo a apreender, sem preconceitos, essas trajetórias, e a fundamentar uma visão prospectiva
(FONSECA, 2009, p.147-148).

2172
Não foi possível dizer com precisão o ano de fechamento do museu, mas sua
coleção ficou guardada no Instituto Feminino da Bahia até o ano de 2014 quando o
Museu de Arte Popular da Bahia foi reaberto ao público. O conjunto de peças por pouco
não foi deslocado para outro lugar conforme descrito por Ana Lucia Uchoa Peixoto no
catálogo do Museu do Traje e do Têxtil.
A museóloga Ana Lucia Peixoto e posterior diretora da Fundação descreve no
catálogo institucional sua atuação na montagem do Museu do Traje e do Têxtil
indicando como possível local o subsolo do palacete.
Demos início ao projeto em março do mesmo ano. O espaço que
dispúnhamos era o subsolo do edifício-sede da Fundação. O problema
era então o que fazer com a coleção de arte popular. Imaginamos,
juntamente com a Presidente, em transferi-la para um dos casarões de
propriedade da Instituição, situado em rua nobre do Pelourinho.
Definido o local para abrigar Museu de Arte Popular, prosseguimos
com o projeto. Entretanto, desconhecíamos os planos reservados pela
Divina Providência (MUSEU DO TRAJE E DO TÊXTIL, 2003, p.
13).

Apesar de compreender a preocupação da implantação do Museu do Traje e do


Têxtil e de reconhecer a importância dele como único exemplar especializado em
tecidos da América Latina, percebe-se, pelo que foi descrito, que o conjunto de arte
popular viveu uma avaliação desmerecida diante dos tecidos a ponto de haver a
possibilidade de alojar os artefatos em outro local.
Felizmente isso não aconteceu e atualmente a coleção está disposta no subsolo
do prédio no mesmo espaço de origem e que era destinado às práticas esportivas quando
ali funcionava o Colégio Feminino. O mobiliário que expõe os artefatos está disposto
em um espaço amplo e arejado, mas a expografia confusa não permitiu identificar a
classificação anteriormente apresentada pelo documento do Centro Nacional do
Folclore e Cultura Popular.
Durante a visita uma das museólogas da Fundação nos relatou que a exposição
foi montada considerando a importância daqueles artefatos e que a FIFB tem

2173
consciência que há muita pesquisa a ser realizada que os auxilie a identificar as muitas
peças que estão expostas, bem como outras que ainda estão em reserva técnica. Ela
também reconheceu que o objetivo principal da abertura do Museu foi tornar novamente
aquele conjunto visível ao público para que pesquisadores possam ter acesso aos
artefatos e contribuam com suas pesquisas na melhora do tratamento museológico como
um todo.
Na Museologia, a representação da nacionalidade em museus é trabalhada, por
exemplo, tomando como referência três intelectuais brasileiros - Gustavo Barroso,
Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro – no trabalho de Mario de Souza Chagas (2009) na
criação do Museu Histórico Nacional, o Museu do Homem Nordeste e o Museu do
Índio, respectivamente.
O Museu Histórico Nacional criado em 1922, sobre influência da figura de
Gustavo Barroso, colaborou para construção de uma nacionalidade no início do século
XX. Em sua coleção selecionada e valorada pelo viés estético celebra uma nação unida
pelo entendimento de tradição que, através de objetos acionam uma memória do
passado representando personalidades heroicas. Assim, o Museu Histórico Nacional
promove, através de uma nostalgia de uma passado, uma continuidade de
temporalidades históricas que retratam uma nacionalidade pelo viés de uma tradição
Imperialista e Republicana.
Dessa forma, a mediação simbólica se dá pelo processo de preservação da
memória através da materialidade, transformando e reelaborando um passado a partir de
um determinado ponto de visto. Vale destacar que Gustavo Barroso fazia parte do seleto
time de intelectuais folcloristas que pensavam e discutiam essa representação da cultura
popular na década de 40 pelo viés do folclore. Sua posição enquanto aristocrata não o
impediu de pensar lições sobre arte indígena e arte popular no curso de museus.

Gustavo Barroso, como se sabe, foi um estudioso de temas do


folclore, e isso também não representava nenhuma contradição com o

2174
conservadorismo político que informava o seu pensamento. É
oportuno registrar que, em 1942, ele publicou, no Anais do Museu
Histórico Nacional, o artigo “Museu Ergológico Brasileiro”, que
contém ideias básicas para a criação de um possível museu de “ciência
folclórica”. Para Barroso, essa ciência dividia-se em duas partes. A
primeira “animologia”, referente à alma e ao espírito do povo, é
dedicado ao estudo dos “costumes, usos, cerimônias, ritos, fórmulas
de vida, contos, cantos, música, danças, anexins, parêmias, jogos,
pulhas, adivinhações, apólogos, fábulas etc.” A segunda, “ergologia”,
diz respeito ao estudo dos elementos de utilidade, “desde os alimentos
e os modos de prepará-los até os ofícios manuais como os de
trançador de couro, prateiro e profissões rústicas, algumas muito
originais como as de domador, rastreador, cantor e curandeiro”
(BARROSO, 1942).

A proposta do Museu Ergológico Brasileiro ficou no papel mas, segundo


Marilena Chaui (1983), essa iniciativa contribuiu para que entendamos que o lugar da
cultura popular, “na perspectiva barrosiana, [não poderia ser] Museu Histórico Nacional
e muito menos o Museu Nacional de Belas Artes, uma vez que esses dois estariam
reservados para os heróis e artistas consagrados” (CHAUI, 1983, p. 98).
Em Recife, Gilberto Freyre por meio do Manifesto Regionalista de 1926,
entende a nacionalidade pautada numa representação em que a gente do povo - o
sertanejo, o matuto -, e suas práticas culturais serão também expostas como
representações identitárias. Dessa forma criou o Museu do Homem do Nordeste, um
museu antropológico que representa a cultura regional e fez dele um
“órgão federal (vinculado à Fundação Joaquim Nabuco/Ministério da
Educação), que reúne acervos que revelam a pluralidade das culturas
negras, indígenas e brancas desde nossas origens até os diferentes
desdobramentos e misturas que formam o que hoje é chamado
genericamente de cultura brasileira. Esses acervos servem de suporte
para construir narrativas que estão traduzidas em exposições
etnográficas e exposições de arte, assim como em ações educativas de
mediação cultural e em diferentes eventos que compõem a
programação cultural do museu
(http://www.fundaj.gov.br/index.php?option=com_content&id=250&I
temid=238).

2175
Por fim, ao analisar Darcy Ribeiro e o Museu do Índio, Chagas (2009) apresenta
que Darcy Ribeiro problematizou, com o museu, o lugar dos povos indígenas chamando
atenção quanto a sua representação nesses espaços institucionais. O estabelecimento do
lugar do exótico e do preguiçoso, facilmente direcionado aos povos indígenas, para
Ribeiro, é tratamento comum dado pelos Museus Tradicionais. Assim, na expografia do
Museu do Índio eles serão vistos como “seres humanos movidos pelos mesmos
impulsos fundamentais, suscetíveis dos mesmos defeitos e qualidade inerentes a
natureza humana e capazes dos mesmos anseios de liberdade, de progresso”
(RIBEIRO,1955, p. 2). Para Chagas (2009), desse modo a alteridade cede lugar a
identificação de pertencimento partilhando da mesma natureza humana.
Decerto, a partir das problematizações em torno da identificação dos artefatos de
cultura popular no Museu do Folclore Edison Carneiro e no Museu de Arte Popular da
Bahia –FIFB, bem como a abordagem que Mario Chagas (2009) fez acerca do nacional
nos Museus, fica claro que o tratamento dado a essas coleções traduzem uma
representação (de) sobre o outro. Apenas no Museu do Índio a questão da auto-
representação foi colocada em debate.
O caráter nacionalista e/ou regionalista atribuídos a estes artefatos contribuem
para fabricação de uma identidade onde seus referentes muitas vezes não são
devidamente contemplados. Esse fato ganha centralidade quando esses artefatos são
musealizados dentro das instituições museológicas reproduzindo práticas de campo de
intelectuais folcloristas ou colecionadores particulares que pensaram a formações desses
objetos frente aos pensamentos da época.
Hoje, é possível perceber que nas instituições museológicas que detém esse tipo
de acervo, surge a difícil tarefa de categorizar esses objetos da coleções de cultura
popular ao modo que possibilite uma maior apreensão da sua real significância,
ampliando para além das categorias que foram instituídas, enquanto objetos de
expressões artísticas.

2176
Inquietações

Problematizar sobre o que é nomeado por arte popular e como ela está inserida nesse
campo indefinido de termos se faz importante. São objetos que transitam entre os
espaço museais que legitimam uma representatividade, e isto influencia quanto a
construção da identidade do outro, seja através de exposições ou de práticas outras que
o museu venha a desenvolver.
Desse modo foi possível aferir que conforme os tempos históricos e o
aprofundamento das pesquisas, o conceito de folclore e o de cultura popular ora se
aproximam ora se distanciam. Faz parte de um jogo de tensões políticas e ideológicas,
onde as articulações em torno desses conceitos resultam no campo da cultura e em
específico na cultura popular enquanto palco de conflito. Para esse estudo acreditamos
que o caráter tradicionalista e a imutabilidade são elementos que dificilmente são
ajustados ao conceito de cultura, menos ainda em cultura popular, visto que a cultura é,
em essência, dinâmica. Assim como a cultura e seus elementos referentes, é interessante
observar que as palavras também são dinâmicas, elas sofrem em diferentes contextos e
tempos históricos significados distintos, e isso ganha relevância quando identificamos a
noção de arte.
Os museus, por meio da formação dessas coleções de cultura popular e
folclore, legitimaram a representação cultural do povo em um espaço de fabricação do
nacional e regional, fortalecendo a construção de uma suposta identidade nacional
brasileira. Assim, enquanto instituição política buscamos analisar como as políticas
públicas culturais que cercaram o campo do patrimônio e os Museus, atuaram frente o
papel das instituições culturais que normatizaram artefatos ora como folclore ora como
cultura popular e outras vezes como arte popular.
Com isso é válido ressaltar que para o campo da Museologia coube a tarefa de
organizar os bens em exposições que atendessem as necessidades técnicas da área e

2177
também resolvesse os impasses conceituais que aparecem nos discursos expográficos e
no tratamento das peças. Dito isto os museus, por meio da formação de coleções de
cultura popular e folclore, legitimaram a representação cultural do povo em um espaço
de fabricação do nacional e regional, fortalecendo a construção de uma suposta
identidade nacional brasileira.
Visto sob esse entendimento, reconhecemos que os museus e suas coleções
como instrumentos responsáveis pela consolidação de versões sobre folclore e cultura
popular, produzem e (re) produzem discursos a respeito que se faz necessário repensar
essas práticas representativas sobre o outro. Talvez por essa razão, seja oportuno
sublinhar as orientações de Mário Chagas (2009) quando reconheceu que hoje na
contemporaneidade o museus modernos ainda procuram o seu lugar enquanto
instituição inovadora. É nas interfaces desses elementos que devemos pensar a
musealização dos objetos e a imagem do museu como um componente social de
construção de instrumento significativo à compreensão do campo museal, onde a
museologia e o museus estejam centrados nas pessoas, nos seus referentes e não apenas
nos objetos.

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2181
RITUAIS PARA BRANCOS E COLEÇÕES ETNOGRÁFICAS: AS RELAÇÕES
DOS WAUJA COM OS MUSEUS E A SUBJETIVAÇÃO DOS OBJETOS

Aristoteles Barcelos Neto*

Resumo: Essa comunicação apresenta alguns elementos etnográficos e museológicos sobre os


sentidos das transações entre os índios wauja do Alto Xingu, museus antropológicos e seus
representantes. As mais complexas dessas transações se dão em contextos rituais, para os quais
são produzidos, trocados e vendidos um número expressivo de objetos rituais. Analiso, a partir
das dinâmicas dos processos rituais e xamânicos, como os modos de subjetivação desses objetos
desafiam os pressupostos e propósitos colecionistas museológicos. São analisados três casos
museológicos interconectados, envolvendo um museu norte americano, um museu português e
um museu francês.
Palavras-chave: rituais; coleções etnográficas; museus antropológicos; cosmologia indígena;
xamanismo

Abstract: This paper presents some ethnographic and museological elements about the
meanings of the transactions between Xinguano Indians, anthropological museums and their
agents. The most complex of these transactions happen in ritual contexts for which are
produced, exchanged and sold an expressive amount of ritual artefatcs. From the dynamics of
ritual and shamanic processes, I analyse how the modes of subjectivization of these artefacts
challenge the assumptions and aims of museological collecting. Three interconnect
museological cases are analysed, involving a North American museum, a Portuguese museum
and a French museum.
Key-words: rituals; ethnographic collections; anthropological museus; indigenous cosmology;
shamanism

2182
Introdução

O início das relações dos Wauja do Alto Xingu com museus e seus
representantes data de 1884, quando o etnólogo alemão Karl von den Steinen, chefe da
equipe de expedição do Museu de Etnologia de Berlim, visitou as quatro aldeias wauja
então existentes no Alto rio Batovi, um dos formadores do rio Xingu (STEINEN, 1886).
O interesse colecionista pelo Alto Xingu existe, portanto, desde longa data e perdura até
a atualidade. À ele tem sido somados mais recentemente novos significados e desafios
tanto para a guarda das novas coleções, quanto para seu conhecimento e presença como
legado cultural ameríndio.
O objetivo principal deste texto é discutir as representações e transações entre
os índios Wauja do alto rio Xingu, Amazônia Meridional, as instituições museológicas
e seus representantes. O patrocínio direto e indireto de rituais xinguanos por brancos e
suas instituições é, comparativamente ao trabalho colecionista, uma atividade mais
recente, cujo início data da década de 1990. No Alto Xingu, esses rituais estão
diretamente ligados ao sistema de objetos, o que resulta na produção e circulação de um
volume considerável de objetos, dos quais muitos têm como destino a constituição de
coleções públicas e privadas. Embora essas relações se manifestem por transações
materiais concretas e facilmente quantificáveis, um outro plano relacional aponta para a
subjetivação desses conjuntos materiais. Esse plano não é quantificável, nem estável.
Sua instabilidade e inconstância são próprias das ontologias multinaturalistas
ameríndias, que tem no xamanismo um modo particular de conhecer e revelar essas
subjetividades (VIVEIROS DE CASTRO, 2015). Esse texto procura mostrar como os
museus, seus agentes e os rituais por eles patrocinados, são capturados, como índices
externos de poder, e incluídos na dinâmica sociocosmológica wauja.
A realização de rituais para brancos ou patrocinados por brancos reflete, dentro
dessa mesma dinâmica, uma expansão de fronteiras espaço-temporais, nas quais os

2183
xinguanos têm possibilidades de manipular símbolos de representação política no
âmbito das suas relações com os brancos. Um exemplo disso foram os rituais funerários
Kwarup feitos para os indigenistas Cláudio e Orlando Villas Boas e para o empresário
Roberto Marinho. Ao permitir a visitação cerimonial de brancos, esses rituais ajustam
tais relações na órbita do próprio mundo xinguano.
Analizarei aqui aspectos de um caso que envolveu uma antropóloga americana e
o National Museum of Natural History da Smithsonian Foundation e de dois casos nos
quais tive participação direta como criador e executor dos projetos museológico-
etnográficos; o primeiro deles para o Museu Nacional de Etnologia de Portugal, e o
segundo para o Museu do quai Branly de Paris, cujos trabalhos se desenrolaram,
respectivamente, entre setembro de 1999 e dezembro de 2000 e entre fevereiro de 2004
e julho de 2005. O projeto português envolvia a formação de uma grande coleção
etnográfica sistemática e a montagem de duas exposições de longa duração (PAIS DE
BRITO, 2000; BARCELOS NETO, 2004). O projeto francês previa a montagem de um
espetáculo de música vocal e instrumental e dança de máscaras para o Festival de Radio
France et Montpellier (BARCELOS NETO, 2005), o qual implicava na aquisição de
uma coleção etnográfica de máscaras que serviriam, por sua vez, para a própria
encenação do espetáculo. A aquisição dessas coleções dependia, inevitavelmente, da
realização de rituais em que os objetos pudessem ser produzidos. Mas o que significa
realizar rituais para museus com o propósito de adquirir coleções etnográficas? Antes de
responder a essa pergunta dedico alguns parágrafos sobre os Wauja e seu sistema ritual.

Os Wauja e seu sistema ritual


Os Wauja habitam a bacia dos formadores do rio Xingu, no Estado de Mato
Grosso, Brasil. Eles vivem em três aldeias no Parque Indígena do Xingu. A maior delas,
Piyulaga, situa-se a 400 metros de uma lagoa homônima, ligada por um canal à margem
direita do sinuoso rio Batovi. A segunda maior aldeia, Ulupuene, situa-se próxima da

2184
cabeceira do rio Batovi há poucos quilometros da fronteira sudoeste do Parque Indígena
do Xingu com as extensas fazendas de soja e gado dos municípios de Paranatinga e
Gaúcha do Norte, Estado do Mato Grosso. A terceira e menor aldeia, Piyulewene, é
também a mais isolada, localizada à margem esquerda do médio rio von den Steinen,
um dos formadores do rio Ronuro. A Secretaria Especial da Saúde Indígena recenseou a
população wauja em 542 indivíduos (SESAI, 2013). Falantes de uma língua do tronco
arawak (família maipure), eles constituem, juntamente com os Mehinako, os
Yawalapíti, os Pareci e os Enawene Nawe, o grupo dos Arawak centrais. Segundo a
hipótese de Urban (1992), os Arawak teriam como centro de dispersão original a região
das cabeceiras dos rios da bacia amazônica que nascem nos piemontes andinos
boliviano e peruano, em uma profundidade cronológica de três mil anos ou mais antes
do presente. Urban supõe que os Arawak-Maipure tiveram duas direções migratórias
básicas: uma em direção ao sul amazônico e outra ao norte, conservando-se sempre na
periferia da grande bacia (URBAN, 1992, p. 95-96). As investigações arqueológicas
recentes sobre a formação da cultura xinguana apontam que os grupos arawak teriam
sido os primeiros a se estabelecerem na região do Alto Xingu por volta do ano 900
(HECKENBERGER, 2005).
Os Wauja integram, juntamente com outros oito grupos étnicos, a saber os
Kamayurá, os Aweti, os Yawalapíti, os Mehinako, os Kuikuro, os Kalapalo, os Matipu e
os Nahukwa, um sistema regional multiétnico e multilinguístico existente na região da
bacia dos formadores do rio Xingu desde pelo menos meados do século XVIII
(HECKENBERGER, 2001a, 2001b). Os grupos xinguanos distinguem-se uns dos
outros, sobretudo, pela língua (no Alto Xingu são faladas duas línguas do tronco tupi-
guarani, três do tronco arawak e duas do tronco carib), pela especialização tecnológica
(conhecimento e efetiva utilização das técnicas de fabricação da cerâmica, dos
instrumentos musicais, dos trançados, dos arcos e dos adornos corporais), ou por
práticas específicas no âmbito dos rituais e da chefia. Tal profunda e variada

2185
diferenciação lingüística entre os povos xinguanos, todavia, não impede que haja entre
eles eficientes mecanismos de coesão e comunicação, que se dão, acima de tudo, em
níveis supralingüísticos, notadamente nos planos do ritual, dos intercasamentos, das
trocas de artefatos, da pintura e ornamentação corporais, da feitiçaria e do xamanismo.
O Alto Xingu é bastante conhecido na literatura etnológica das terras baixas da
América do Sul pela existência de um sistema formal de trocas de objetos
especializados. Tal especialização se dá de acordo aos grupos que compõem o sistema
multiétnico e multilinguístico xinguano. Assim, os grupos de língua arawak (Wauja e
Mehinako), carib (Kuikuro, Kalapalo, Matipu, Nahukwá), tupi-guarani (Kamayurá) e
tupi (Aweti) são respectivamente especializados na produção de utensílios de
cerâmica16, colares e cintos de casca de caramujo, arcos de madeira dura e sal de aguapé
(GALVÃO, 1953; AGOSTINHO, 1974). As trocas ocorrem majoritária e
preferencialmente nos rituais intercomunitários que acontecem ao longo do ano, sendo o
Kwarup, o mais importante deles (AGOSTINHO 1974, CARNEIRO, 1993;
GUERREIRO, 2015). Esses objetos de troca, altamente visíveis e prestigiosos, atuam
como marcadores estéticos da xinguanidade e dos movimentos de recursos materiais nas
redes políticas xinguanas. Em coexistência a esse sistema de objetos de trocas rituais há
um outro sistema, cujos objetos são muito menos visíveis e de circulação extremamente
restrita, quando não proibida; são os objetos de apapaatai, os quais circunscrevem os
xinguanos em relações de alteridade e identidade marcadas pela presença de espíritos-
animais (BARCELOS NETO, 2008).
Dois dos cinco principais rituais intercomunitários xinguanos, o Pohoká (furação
de orelhas para reconhecimento público de status de nobreza e potencial chefia) e o
Kwarup (ritual funerário para pessoas nobres) o têm o jaguar associado a ambos, porém
ele é pouco presente nos demais rituais xinguanos, sejam eles intercomunitários ou
intracomunitários. Contudo, essa presença menos explícita dificilmente permitiria

16
Os Yawalapiti, embora sejam um grupo de língua arawak, não são especialistas na arte da cerâmica.

2186
aventar hipóteses de uma menor relevância simbólica. O mesmo pode ser dito para a
anaconda e a harpia, outros dois grandes predadores amazônicos, cujos espíritos são
também considerados poderosos nos domínios do xamanismo e da chefia. Importante
salientar que das peles e penas desses três animais são elaborados um número limitado
de adornos, de acordo com um tipologia específica, que marcam, sobretudo em âmbito
ritual, as distinções entre nobres e não-nobres. Nos grandes rituais intercomunitários
Kwarup e Yawari, esse sistema de distinções marcados diretamente no corpo é
intensamente atuado. O fazimento desses espíritos-animais como objetos-personagens
rituais constitui um dos pontos centrais da ontologia política do sensível xinguana.

Os rituais de apapaatai
A estrutura organizacional dos rituais wauja permite que qualquer indivíduo ou
grupo, disposto de recursos suficientes, patrocine um ritual. Os patrocínios não-
indígenas necessitam ser mediados por um “dono” (weheho em wauja, geralmente
traduzido como “aquele que cuida de algum recurso ou de alguém”) de apapaatai, i.e.,
dos seres patogênicos que ganham corpo na forma de máscaras, aerofones e demais
objetos rituais. Um “dono” de apapaatai é um indivíduo que foi adoecido por esses
seres e que para estabilizar seu estado de saúde deverá assumir os cuidados alimentares
exigidos pelos apapaatai, os quais são representados (no sentido de representante,
conforme GELL, 1998) pelos kawoká-mona, pessoas da comunidade investidas de
conhecimentos performáticos específicos oriundos desses mesmos apapaatai.
Quem cuidou dos apapaatai para o Museu Nacional de Etnologia de Portugal e
para o Museu do quai Branly foi um grupo de “donos”, encabeçado por Itsautaku, um
xamã visionário-divinatório (yakapá), que considerou a venda dos apapaatai, e a sua
posterior conservação em museus, uma oportunidade de obter recursos para a compra de
máquinas necessárias para a aldeia e de permitir aos brancos conhecerem melhor a
cultura wauja.

2187
O ponto central das transações entre os museus e os índios Wauja envolve a
feitura de objetos-sujeitos rituais (máscaras basicamente), que devem ser alimentados e
postos a dançar e a cantar, para posteriormente serem vendidos. Mas a venda não subtrai
por completo a personitude dos objetos rituais: enquanto estes permanecerem intactos,
um resíduo de personitude ainda os ligará aos seus “donos” apapaatai, ou melhor, aos
protótipos espirituais causadores de doenças.
Com a exceção dos rituais de iniciação (Pohoká e Kaojatapá) e funerários
(Kwarup e Yawari), todos os demais rituais xinguanos têm os apapaatai – os seres
prototípicos da alteridade – como protagonistas.
Os apapaatai podem assumir sete formas rituais básicas: (1) máscaras
(apapaatai onai, literalmente “roupa de apapaatai”), (2) aerofones (flautas, clarinete e
trompete), (3) coros femininos (Yamurikumã), (4) pá de beiju e desenterrador de
mandioca (personagens do ritual Kukuho), (5) Matapu/Mapulawá (zunidor e demais
personagens da festa sazonal do pequi), (6) grupo de trocas presidido por Andorinhas
(Huluki) e (7) trocano (Pulu Pulu). A forma ritual que os apapaatai irão assumir
depende, direta e exclusivamente, da forma como eles se apresentaram aos xamãs
visionário-divinatórios (yakapá) durante os transes que envolveram a cura de um pessoa
em estado grave de adoecimento.
Uma doença grave corresponde ao rapto da alma (princípio vital, consciência)
do doente pelos apapaatai. Em sua companhia, ela passará a se alimentar das comidas
dos bichos  carne crua ou podre, sangue, capim, folhas  as quais, obviamente, não
fazem parte da dieta wauja. Essa mudança alimentar e o convívio com os apapaatai
desencadeiam um processo de animalização do doente. No sonho, ou seja, na sua
condição cativa, a alma do doente começa a adquirir a forma dos apapaatai que o
adoeceram, e, em pouco tempo, ela será como um deles. A desanimalização só pode ser
feita pelos xamãs, que retiram do corpo do doente as substâncias que provocaram a sua
transformação em pessoa-animal e revelam os apapaatai que o adoeceram.

2188
Após as revelações xamânicas, o doente (ou ex-doente caso seu estado de
saúde tenha se normalizado) torna-se “dono” (wekeho) dos apapaatai que lhe estão a
adoecer e passa a ter o direito de fabricá-los como objetos rituais, contudo ele pode
transferir esse direito a quem demonstre interesse na fabricação dos apapaatai. A
depender dos objetos rituais produzidos, o “dono” deverá alimentá-los por períodos que
variam de algumas semanas a vários anos17.
Quanto à ritualização dos seus apapaatai, o doente tem quatro possibilidades:
1. jamais festejá-los, o que implica a possibilidade dos mesmos apapaatai lhe fazerem
mal novamente; 2. festejá-los, em pequenos rituais, logo após o processo de
intervenções terapêuticas dos xamãs; 3. festejá-los no âmbito de uma festa oferecida por
uma outra pessoa; 4. guardar os apapaatai para que todos sejam festejados, de uma só
vez, numa grande festa de máscaras (Apapaatai Iyãu), que poderá ter então entre 25 e
50 personagens rituais18.
Tomo aqui o caso de produção de um Apapaatai Iyãu, o único ritual capaz de
produzir um grande número de máscaras que atenda as exigências de uma coleção
etnográfica sistemática.
No início da década de 1990, Atamai, o atual chefe wauja, foi acometido por
uma gravíssima infecção nos olhos. Aos dois maiores yakapá de Piyulaga, a aldeia
wauja, foi dada a responsabilidade de identificar os agentes patogênicos, que foram
revelados como sendo: Kawoká (flauta de madeira), Kawoká Otãi (filhote de Kawoká),

17
A oferta alimentar e a duração dos objetos rituais têm uma incidência direta sobre o sentido de
permanêcia dos apapaatai entre os Wauja. Em um trabalho recente (BARCELOS NETO, 2012) analiso as
estratégias e conflitos em torno da mantenção dos objetos e a sua atuação em ciclos rituais biográficos.
18
A performance do Apapaatai Iyãu tem um “palco” muito bem definido: o enekato (a grande praça da
2
aldeia), cuja área, em Piyulaga, é de 3,84 acres (15.540 m ). Uma pequena parte dessa área é
constituída pelo enekutaku, pátio central situado em frente à porta frontal da kuwakuho. O enekutaku é
correntemente traduzido pelos Wauja como “o meio”. Na verdade, grande parte da atividade ritual
acontece no enekutaku, é também aí que os homens se reúnem diariamente, logo após o por do sol,
para conversar sobre assuntos diversos.

2189
Yamurikumã e Makaojeneju (tipos de mulheres monstruosas), Tankwara Yanumaka
(Jaguar clarinetista), Atujuwá Yanumaka (Jaguar vestido com “roupa” redemoinho),
Ewejo (Ariranha), Yuma (Pirarara), Tukujen (uma espécie de Pombo), Kukuho (uma
espécie de Larva), Kagaapa (uma espécie de Peixe), Yukuku (uma espécie de Árvore),
Nukuta Pitsu Run Run Run (Arqueiro), Kapulu (Macaco-Preto), uma espécie de Peixe
vestido de Kuwahãhalu, e sete espécies de apapaatai vestidos de Sapukuyawá (um tipo
genérico de máscara).
Após as revelações xamânicas, Atamai tornou-se “dono” dos apapaatai
mencionados. Kukuho foi festejado enquanto Atamai estava internado num hospital de
Brasília e Ewejo logo que ele retornou à Piyulaga. Um par de anos mais tarde, foi a vez
de Tankwara e Kagaapa. Os outros dezenove apapaatai ficaram “guardados”, a espera
da ocasião mais oportuna para serem festejados. Para Atamai, essa oportunidade chegou
inesperadamente por uma via bastante incomum: uma solicitação da Artíndia19 de
Brasília para que os Wauja fizessem uma “demonstração” do seu praticamente
desconhecido grande ritual de máscaras. Reproduzo a seguir um trecho de uma narrativa
de Atamai, datada do ano 2000, que enquadra esse evento na perspectiva temporal do
seu adoecimento e da subseqüente produção ritual das máscaras.
Lá, em Brasília, eu fiquei mais doente. Eu pensei que ia morrer. Eu não tinha
apetite, não comia nada mesmo, por isso fiquei muito fraco. Eu achava que apapaatai
estavam comigo. Depois descobri que Tankwara e Atujuwá que estavam comigo eram
de Yanumaka (Jaguares). Os dois estavam comigo, por isso eu comia as comidas dos
Jaguares nos meus sonhos, como porco, veado, anta. Eram os Jaguares que estavam
dando esses animais para eu comer, por isso eu não tinha fome.
Na aldeia, chegou a notícia de que eu tinha piorado. Foi aí que os meus
kawoká-mona perguntaram à minha filha se eles podiam fazer a festa de Kukuho para

19
A Artíndia foi um programa de revenda de “artesanato indígena brasileiro” da Fundação Nacional do
Índio (FUNAI). O programa foi oficialmente extinto em 2011.

2190
mim, mesmo eu estando distante. Minha filha disse que sim, e aceitou fornecer todas as
comidas da festa enquanto eu estava em Brasília. Assim, fizeram a festa de Kukuho para
mim.
Quando terminou a festa aqui em Piyulaga, logo na mesma noite eu sonhei
com algumas “pessoas” (apapaatai) falando comigo:  “Nós vamos embora, pois já
terminou tudo o que nós queríamos”.
Então, quando eu acordei eu estava me sentindo melhor. Eu já não sentia as
mesmas dores fortes de antes. Só sentia algumas dores na cabeça.
Quando eu cheguei de volta à aldeia, o pessoal falou para mim:  “Tio, nós
fizemos apapaatai (Kukuho) para você”.
Aí eu pensei: ah! é por isso que eu estou melhor agora. Eu fiquei emocionado
com essa atitude deles, com a sua preocupação comigo. Eles fizeram a coisa certa para
eu melhorar. Então eu fiquei aqui na aldeia. Eu já estava um pouco melhor, mas não
podia trabalhar como antes, nem ficar muito tempo exposto ao sol.
Logo quando eu cheguei aqui, fizeram Ewejo (Ariranha) para mim. Chamaram-
me e disseram que iam fazer apapaatai para eu melhorar. Então fizeram. Quando
terminou a festa de Ewejo eu nunca mais pesquei no meu sonho e nem comi peixe cru.
Depois de algum tempo fizeram Tankwara. São eles que estão me ajudando
agora. Tankwara não permite que outros apapaatai me façam mal. Agora eu estou bem.
Só o meu olho que às vezes fica um pouco ruim.
Mas os meus sonhos com as “pessoas” (apapaatai) não tinham parado
totalmente, eu ainda sonhava muito com as “pessoas” que me adoeceram. Até quando a
Artíndia de Brasília pediu para a gente mostrar a festa de apapaatai para eles.
Então eu contei (consultou) para os meus irmãos e sobrinhos (que neste caso
são seus kawoká-mona). Eles aceitaram fazer a festa. O pessoal da Artíndia veio,
assistiu, fez fotos da dança, levou as máscaras para a loja e nunca mais voltou.

2191
Fui eu que patrocinei essa festa de máscaras para a Artíndia. Perguntei a todos
da aldeia se eles tinham apapaatai, e se gostariam de fazer a sua festa. Os que já tinham
apapaatai optaram em festejá-lo em outra ocasião. Assim, eu mesmo ofereci os meus
apapaatai para que fosse feita a grande festa.
Depois que terminou aquela grande festa eu melhorei mesmo. Eu me senti tão
forte. Eu realmente me senti bem.
Os eventos abrangidos por essa narrativa aconteceram num intervalo de
aproximadamente 7 anos, sendo o primeiro evento a ida de Atamai para Brasília e o
último, a realização do grande ritual das máscaras (Apapaatai Iyãu) para a Artíndia,
ocorrido em agosto de 1997. A contrapartida solicitada pelos Wauja foi o auxílio para a
abertura de uma pista de aterragem para pequenos aviões. O auxílio consistia no envio
de máquinas que permitissem tal trabalho. É importante notar que Atamai relaciona a
sua melhora, de modo direto e inequívoco, à realização desse ritual, e igualmente
enfatiza a idéia de que estrangeiros podem encomendar/patrocinar uma festa
“original”20 de apapaatai.
A raiz desse tipo de promoção do ritual, que o liga diretamente a instituições
como museus e lojas renomadas, não é assim tão recente, ela pode ser remontada há
pelo menos duas décadas. E se pensarmos em termos de um comércio mais amplo da
cultura material wauja, devemos levar em consideração a grande coleção feita por
Harald Schultz em 1963, que reuniu 664 peças para o então Museu Paulista da
Universidade de São Paulo.
Em 1983, a antropóloga Emilienne Ireland, então em trabalho de campo
financiado pelo National Museum of Natural History da Smithsonian Foundation,
pretendia fazer uma coleção de máscaras. Contudo, a sua aquisição mostrou-se mais
20
“Original” é uma categoria nativizada pelos Wauja e diz respeito basicamente aos objetos e
performances produzidas em contextos rituais ou solenes, cujo rigor estético está diretamente ligado a
vegonha/respeito pelas pessoas que receberão esses objetos como pagamento ritual e pelas pessoas que
assistirão às performances. A categoria “original” opõe-se à de “paraguai”, que carrega um sentido
ofensivo e é geralmente aplicada aos objetos falsos, de má qualidade e ao artesanato para turistas.

2192
complicada do que parecia ser à primeira vista. Foi impossível para Ireland comprar as
máscaras que os Wauja guardavam e que futuramente seriam ritualmente queimadas.
Também não era possível encomendá-las a um artesão, visto que os Wauja
consideravam um desrespeito fazer apapaatai “simplesmente para vender”.
Because the sponsor of a given ceremony is supposed to display in his house
paraphernalia associated with the ceremony he has sponsored, it would not have been
possible for me to collect a mask that had been used on a ceremony commissioned by a
Waura without going against local custom and public opinion. Of course, it is always
possible to find individual Waura who are willing to sell to outsiders items that the
Waura say it is wrong to sell, but this would have create bad feelings. The only
reasonable solution was to sponsor a ceremony myself, which would automatically
make me the rightful owner of the ceremonial paraphernalia. I had planned to do this as
a purely economic transaction, and applied to the Smithsonian for a grant to sponsor the
atujuá ceremony in this fashion (IRELAND, 1985, p. 16-17).
Portanto, a única alternativa de Ireland era a encomenda de um ritual de
máscaras para que ela pudesse ter a posse desses objetos. Mas esse seu projeto sofreu
uma inesperada reviravolta.
No período em que os Wauja aguardavam chegar de São Paulo parte das
matérias-primas encomendadas para fazer as máscaras Atujuwá para o National
Museum of Natural History da Smithsonian Foundation, Ireland ficou muito doente,
tendo sido levada a recorrer aos cuidados de um xamã local (Ireland, 1985: 18).
Segundo o diagnóstico xamânico, a sua doença fora causada pelos apapaatai
Sapukuyawá e Kuwahãhalu, com os quais ela então passava a ter a relação de “dona”.
Assim, na condição de “dona” desses apapaatai, Ireland pode tranquilamente promover
o ritual dessas máscaras e viabilizar a sua aquisição para o National Museum of Natural
History da Smithsonian Foundation. Ao adoecer, Ireland adquiriu imediatamente uma
prerrogativa ritual sobre o fazimento dos apapaatai. Porém, como ela não ficou doente

2193
das grandes máscaras circulares Atujuwá, Ireland não teve o direito de fabricá-las em
seu ritual de cura.
A aquisição das grandes máscaras Atujuwá sempre foi uma tarefa difícil. Por se
tratar de um apapaatai de extraordinários e perigosos poderes, ele é raramente trazido e
corporificado pelos xinguanos, e em geral seu ritual é acompanhado pelas caríssimas
flautas de madeira conhecidas como kawoká. Em 1887, Karl von den Steinen desejou
levar um exemplar para o Museu de Etnologia de Berlim, porém as precárias condições
logísticas da sua viagem o impediram. Finalmente, em 1898, Herrmann Meyer
conseguiu levar uma máscara Atujuwá para o mesmo museu. Este único exemplar
sobreviveu até os últimos anos da Segunda Guerra Mundial, quando então foi destruído
pelos bombardeios que devastaram Berlim. Em 1963, Harald do Schultz fotografou
duas Atujuwá, mas não pode adquiri-las. Em 1983, Emmiliene Ireland fracassou, como
mencionei acima, em seu projeto de aquisição de um casal de Atujuwá para o National
Museum of Natural History da Smithsonian Foundation, em Washington. Em 1994,
Michael Heckenberger logrou adquirir, para o Carnegie Museum of Natural History de
Pittsburg, um casal dessas máscaras, feita pelos Kuikuro, porém de menor tamanho e de
iconografia muito diferente daquela executada dos Wauja. Esses dizem que as Atugua
dos grupos carib do Xingu não são exatamente como as suas Atujuwá. O casal de
Atujuwá Yanumaka feito ritualmente pelos Wauja, em agosto 1997, para curar Atamai,
foi vendido pela Artíndia de Brasília para um antiquário (Baú-Baú) da cidade do
Salvador. Em julho-agosto de 2000, adquiri para o Museu Nacional de Etnologia de
Portugal, juntamente com dois casais de Atujuwá, também feitos pelos Wauja, um
conjunto de 32 máscaras rituais. E por fim, em março de 2005 os Wauja fizerem três
casais de Atujuwá para o Museu do quai Branly acompanhados de outras vinte máscaras
de menor tamanho.
Eu soube da produção do ritual Apapaatai Iyãu para a Artíndia antes mesmo da
minha primeira viagem à Piyulaga, em março de 1998. Porém, só soube dos detalhes da

2194
negociação em março de 2000, quando indaguei Atamai sobre o assunto. Desde 1998,
desejava ver esse mesmo ritual. No entanto, queria que ele acontecesse
espontaneamente, sem que se caracterizasse uma transação comercial. Mas isso não se
mostrou possível.
A conversão dos apapaatai de bens metafísicos a artefatos rituais é antes de
tudo uma decisão individual, ou melhor, daquele indivíduo que possui apapaatai ainda
não festejados. Se sua decisão for positiva, ele poderá então solicitar, com a mediação
do chefe, neste caso o “dono da aldeia” (putakanaku wekeho), a ajuda do resto da
comunidade. Essas negociações internas são delicadas e dependem de um forte apoio
dos amunaw (nobres/chefes). Portanto, apenas possuir muitos apapaatai não é um
requisito suficiente para realizar um Apapaatai Iyãu.
Simultaneamente à aquisição das máscaras para o Museu Nacional de
Etnologia de Portugal, interessava-me a performance ritual “original” das máscaras.
Inicialmente supus que se o ritual fosse encomendado, o processo “original” que
informa a sua execução seria elidido pelo objetivo comercial que o motivava, o que
faria a minha encomenda resultar em uma mera demonstração de dança e não em um
ritual. Porém, não tardou algumas semanas para eu perceber que a minha suposição
inicial estava errada.
Era a última semana de junho de 2000 quando consultei Atamai sobre a
possibilidade de se realizar o Apapaatai Iyãu. “Acabou tudo naquela festa” (para a
Artíndia). Esta foi a resposta que Atamai me deu quando lhe expus minha intenção de
comprar máscaras rituais para a coleção. Com efeito, o que ele quis dizer é que não lhe
sobravam mais máscaras. “Vou perguntar se alguém ainda tem”, disse Atamai,
procurando não anular minhas esperanças. Atamai levou o caso ao “dono da aldeia” e
demais amunaw, que o discutiram ao longo de uma semana. Verificou-se então que
apenas o amunaw Itsautaku tinha apapaatai suficientes para realizar o Apapaatai Iyãu.
Ele imediatamente concordou em promover o fazimento ritual dos seus apapaatai,

2195
porém, era preciso que os seus kawoká-mona concordassem em levar a cabo essa
produção. Diante da unânime concordância dos kawoká-mona, a questão foi mais uma
vez discutida pelo “conselho dos amunaw”. Assim, cinco semanas mais tarde, a minha
encomenda virou ritual.
Embora o ritual tenha sido inicialmente motivado por uma encomenda, é
preciso esclarecer que essa motivação tornou-se irrelevante. Logo após as primeiras
reuniões destinadas a discutir o pagamento das máscaras e a organizar o Apapaatai
Iyãu, os Wauja calaram-se em relação ao destino museológico das máscaras, como se
fossem indiferentes ao mesmo. Assaltados pela alegria da festa, os Wauja conferiram
um sentido autônomo ao Apapaatai Iyãu. A realização do ritual já não era movida por
uma razão externa aos Wauja. Nessa oportunidade, pude recuperar uma série de
informações a respeito da festa “para” a Artíndia.
A razão pela qual foi realizado o Apapaatai Iyãu em agosto de 1997 foi
elaborada a posteriori pelos Wauja, que diziam que o pessoal fez a festa “para Atamai,
a festa era dele, para ele ficar melhor, para dor ir embora, para ele sonhar bem”. É o
próprio Atamai que, em seu depoimento, diz: “Depois que terminou aquela grande
festa eu melhorei mesmo. Eu me senti tão forte. Eu realmente me senti bem”. É como se
há tempos ele esperasse por aquela festa, cujo momento adequado pareceu ser aquele
em que a Artíndia manifestou seu interesse pelas máscaras. Portanto, a festa não foi
realizada com o propósito de se obter uma pista de aterragem de aviões, que afinal
acabou sendo feita sem a ajuda da Artíndia. Enfim, o ponto de vista que prevalece é o
xamânico-terapéutico, ou seja, se não são por razões de cura não há porque se fazer os
custosos rituais de máscaras e aerofones.

A subjetivação dos objetos rituais


Em outubro de 2004, retornei à Piyulaga para realizar um trabalho de campo
de trinta dias e para propor aos Wauja a produção de mais um Apapaatai Iyãu. Dessa

2196
vez com um triplo objetivo: realizar um vídeo etnográfico, uma coleção etnográfica de
máscaras para o Museu du quai Branly e a adaptação do ritual como espetáculo, o qual
deveria ser encenado por dezessete Wauja no Festival de Radio France et Montpellier,
em julho de 2005. Alguns Wauja disponibilizaram seus apapaatai ainda não festejados
para compor o Apapaatai Iyãu, que finalmente ocorreu em março de 2005. Igualmente
como sucedeu em 1997 com a Artíndia e 2000 com o Museu Nacional de Etnologia, a
decisão de fazer um Apapaatai Iyãu para o Museu do quai Branly implicou na imediata
constituição de uma rede de serviços rituais baseada em obrigações de oferta alimentar e
em retribuições desses alimentos com presentes, como panelas, flechas, longos colares
de miçangas e outros objetos de apreço.
Tudo aquilo que envolve os apapaatai é cercado de imenso cuidado. Quando
se decide dar corpo aos apapaatai na forma de objetos rituais, a primeira disposição
moral mútua que emerge entre o “dono” do ritual e os kawoká-mona é o respeito-
vergonha. A carga moral atribuída ao ritual é que ele gera mais e mais obrigações entre
os participantes. Não se trata apenas de produzir para trocar/vender (seja entre índios ou
entre índios e brancos), mas de despertar a vida oculta dos objetos, ou melhor, de
despertar os famintos apapaatai em objetos-sujeitos. Toda a produção de alimentos que
um ritual exige é destinada à satisfação dos apapaatai. Vejamos alguns detalhes desse
despertar e de como a oferta alimentar está por trás da retenção de personitude nos
objetos de origem ritual.
Os cantos escuros das casas wauja escondem tesouros. Certa feita, em junho de
2000, deparei-me acidentalmente com três impressionantes panelas kamalupo,
protegidas sob panos velhos e poeirentos. Elas faziam parte de um conjunto de cinco
panelas oferecidas ao chefe Atamai por seus kawoká-mona Tankwara. Cada uma das
panelas correspondia a um dos cinco tubos que invariavelmente constituem o conjunto
dos clarinetes Tankwara e cada tubo corresponde a um kawoká-mona Tankwara.

2197
Os objetos rituais wauja podem ser dispostos em um escala dos menos duráveis
aos mais duráveis, a qual é homóloga à duas outras escalas: a da dureza da matéria-
prima e a da dificuldade/tempo de fabricação do objeto. No pólo inferior de dureza
estão as máscaras de palha (apapaatai onai) e no pólo superior as flautas de madeira
(Kawoká). Elas ocupam o centro do sistema ritual e são responsáveis pela produção de
uma série de outros objetos de menor dureza/durabilidade. As Kawoká, em função de
sua condição de longa permanência/longa retenção de personitude, é capaz de mobilizar
uma cadeia produtiva que vai desde o plantio de uma roça até a construção de uma casa
residencial e os seus silos de armazenamento da farinha produzida a partir daquela
mesma roça.
No ano de 1999, quando a grande amunaw opona (casa do chefe) foi
concluída, realizou-se em Piyulaga um Iyeju Tankwara, um grande ritual dedicado aos
cinco “donos” de Tankwara da aldeia para que estes fossem retribuídos pela comida que
eles ofereceram aos seus kawoká-mona ao longo de meses ou anos seguidos. Vinte e
cinco panelas foram pagas de uma só vez aos cinco “donos” de Tankwara pelos seus
respectivos kawoká-mona. As panelas de Atamai estavam entre as mais bem feitas, com
pinturas finamente executadas.
A produção de objetos “bonitos” não implica apenas em respeito pelo “dono”,
ela gera também a satisfação estética dos apapaatai, cujo efeito é a supressão da sua
agressividade patogênica e o direcionamento da ação ritual para a cura. Cabe à beleza
contribuir para o sucesso da terapia.
Das cinco panelas que Atamai recebeu, uma tinha se partido em abril de 2000,
depois de meses de intenso uso, o que o obrigou a lançar mão de uma segunda panela, e
as três remanescentes permaneceram guardadas21. Consultei Atamai, sobre a
possibilidade de venda das suas panelas, que me respondeu negativamente,

21
A última delas só foi usada em setembro de 2002.

2198
acrescentando: “isso é pagamento de Tankwara, não posso desrespeitar quem está me
ajudando, se eu fizer isso, eu morro.”
A declaração coloca seus kawoká-mona, as pessoas que fabricaram as panelas,
numa condição implícita de agentes e a ajuda é dita ser de Tankawara, mais
precisamente dos Jaguares que o adoeceram. Atamai evocou um princípio básico da
relação com os apapaatai, que é o medo-respeito (ou risco de adoecer gravemente),
para reforçar o ponto de vista da proibição da venda. Portanto, a desaprovação da venda
não seria apenas dos seus tão bem dispostos kawoká-mona, mas também dos Jaguares.
Portanto, as panelas não são de Atamai, mas de Tankwara mesmo, pois são elas que
permitem os Jaguares consumirem alimentos cozidos.
Em julho de 2000, mais de um mês depois do episódio das panelas, estávamos
eu e Atamai a conversar sobre o seu adoecimento e sobre os trabalhos pregressos de
seus kawoká-mona Tankwara. Foi aí que de repente, ele me disse: “eu tive Ewejo
(Ariranha) também. Faz tempo eles me ajudaram muito. Você quer ver?” Atamai, como
que se tivesse lembrado de algo há tempos esquecido, dirigiu-se ao fundo escuro da casa
com uma lanterna, vasculhou os cantos e trouxe, arrastando, um enorme saco plástico
coberto de poeira, fuligem e teias de aranha, do qual começou a retirar o que tinha
dentro. Eram oito máscaras Ariranha (Ewejo) feitas quando ele retornou do hospital de
Brasília. Elas constituíram o grupo de personagens do segundo ritual de apapaatai que
os Wauja fizeram para Atamai depois de sua crise, o primeiro, Kukuho, foi feito quando
ele ainda estava internado. Portanto, em julho de 2000, aquelas máscaras já tinham
quase uma década de existência.
Diante das oito máscaras dispostas no chão, Atamai voltou a dizer: “essas
Ariranhas me ajudaram muito”. Perguntei se elas ainda o ajudavam. Atamai disse que
não, que elas (i.e. as Ariranhas que o adoecerem) já tinham ido embora, mas que um dia
elas (as máscaras) seriam queimadas.

2199
Algum tempo depois do ritual das máscaras, os oito kawoká-mona Ewejo de
Atamai fizeram para ele quase duas dezenas de cestos cargueiros, os quais ele
dependurou sob o teto da sua casa, formando uma linha horizontal de cestos. Tal
disposição dos grandes cestos deve ter causado um efeito visual altamente impactante
sobre os estrangeiros que visitaram Piyulaga naquela altura. Conforme Atamai, os
mesmos pediam com insistência para que ele lhes vendesse ao menos um cesto. Atamai
recusou todas as solicitações. Os cestos foram sendo usados aos poucos pelas mulheres
da casa. O último deles foi desamarrado do teto quase dois anos mais tarde. Tal qual sua
amunaw opona (casa do chefe), os cestos são índices da sua aliança com os apapaatai,
com os kawoká-mona e, por extensão, com a comunidade.
Depois de me contar a história dos cestos, Atamai perguntou se eu queria levar
as oito máscaras para o Museu Nacional de Etnologia de Portugal. A oferta causou-me
surpresa, que mais tarde se tornou uma questão: por que, ao invés de certos cestos e
panelas, máscaras podem ser vendidas a um museu? A resposta envolve três aspectos
básicos: função, produção e posse. As máscaras, depois de usadas no ritual, perdem sua
função. Porém, em casos excepcionais como o de Atamai, as máscaras podem assumir,
antes de serem destinadas ao fogo, uma breve colaboração com objetos rituais
hierarquicamente superiores.
Após o ritual de Ewejo, as máscaras foram guardadas, mas a relação de Atamai
com seus kawoká-mona Ewejo não cessou, pois ele continuou, esporadicamente, a
oferecer-lhes comida. Dois anos mais tarde, os kawoká-mona Tankwara decidiram fazer
o ritual de clarinetes para Atamai, criando-se assim um novo grupo de produção ritual,
ao qual os oito Ewejo vieram a se somar como colaboradores. A superioridade
hierárquica e a tendência dos clarinetes a permanecerem como personagens rituais agem
como um atrator em relação às máscaras, situando-as no esquema da produção ritual
para seu “dono”. No entanto, se Atamai não possuísse os clarinetes, as máscaras jamais
trabalhariam em suas roças, no máximo, teriam feito alguns cestos.

2200
Panelas, cestos e outros artefatos integram a cadeia de produção e pagamentos
rituais que mencionei no início desta seção. Esses artefatos são índices da distribuição
de pessoas humanas e não-humanas (GELL, 1998). Eis a via dessa distribuição: em
primeiro lugar, os apapaatai fragmentam a alma do doente, cada fragmento corresponde
a um apapaatai raptor, que é familiarizado pela oferta de comida a um kawoká-mona,
portanto a primeira grande distribuição dá-se ao nível dos membros da comunidade; em
segundo lugar, os kawoká-mona produzem artefatos rituais (máscaras e aerofones
basicamente) que lhes permitem atualizar a agência dos apapaatai, cujo sentido é
direcionado para produção de roças, panelas, cestos, fardos de pequi, armadilhas de
pesca, pás de beiju, desenterradores de mandioca etc., portanto a segunda grande
distribuição dá-se ao nível dos artefatos.
Tanto quanto os membros da comunidade, tais artefatos fazem parte das
relações de produção ritual, portanto eles não são simplesmente
implementos/instrumentos de trabalho, e sim pessoas que trabalham. Os artefatos,
escrupulosamente proibidos a venda por Atamai, estão repletos de personitude, tanto
dos apapaatai quanto dos kawoká-mona que os fabricaram. É por esse motivo que a
venda de objetos rituais para museus abrange, quase exclusivamente, aqueles que teriam
como destino a fogueira, o esquecimento ou a destruição pelo tempo, ou seja, objetos
que após a performanece ritual passarão por um longo processo de perda de personitude.
As máscaras são, por excelência, tais objetos, objetos que morrem consumidos pela
fome ou pelo fogo. Por outro, lado há objetos rituais que são hiper-retentores de
personitute, como as flautas kawoká, os clarinetes tankwara e o trocano pulupulu, pois
idealmente devem receber alimentos por anos ou décadas a fio. Esses objetos muito
dificilmente farão parte uma transação monterária sem que seja apagado algo que
compõe sua personitude.

2201
Referências bibliográficas

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2203
VÉIO E O MUSEU DO SERTÃO: UMA PERSPECTIVA INICIAL SOBRE O
POTENCIAL CRIATIVO, A PRESERVAÇÃO DE MEMÓRIAS E A
REELABORAÇÃO DE SABERES POPULARES.

Neila Dourado Gonçalves Macfiel Maciel*


Julia Katiene Pereira Santos**
Vanessa Cavalcanti Vargas Leal***

Cícero Alves dos Santos é um dos artistas plásticos sergipanos com maior
visibilidade nacional e internacional na contemporaneidade. Conhecido pelo seu
apelido: Véio, contração de velho, cuja alcunha recebeu ainda criança, aos cinco anos de
idade, devido a um interesse constante em estar entre os mais idosos, ouvindo histórias
e narrativas de sua gente. Autodidata, o escultor, tem obras no acervo da Fondation
Cartier Pour Lárt Contemporain, em Paris (França), no Pavilhão das Culturas
Brasileiras, na Pinacoteca do Estado de São Paulo, e em diversas coleções particulares
importantes no Brasil, além de ser representado pela Galeria Estação, em São Paulo. Já
realizou inúmeras exposições individuais e coletivas em Sergipe, em outros estados
brasileiros e em alguns países, como a Itália, por exemplo, quando expôs em Veneza,
integrando a programação da Bienal de Veneza, em 2015. O escultor foi contemplado
ainda com um dos maiores prêmios do sistema das artes brasileiros: o Prêmio Itaú
Cultural 30 Anos. Este prêmio, entregue no último dia 12 de junho, foi entregue a dez
pessoas e coletivos que, ao longo das últimas três décadas, intervieram
significativamente na vida artística e cultural do Brasil, demonstrando a importância e o
alcance da potência criativa e a reelaboração dos saberes populares deste sergipano.

2204
Figura 1 - (Foto: Rogério Vieira, disponível em https://medium.com/revista-bravo/pr%C3%AAmio-
celebra-a-diversidade-cultural-d589aa7f4d1a)

Nascido em 1947, na cidade de Nossa Senhora da Glória, sertão sergipano, Véio


começou a esculpir muito jovem. Seu interesse em “modelar formas” teve a cera de
abelha como primeiro suporte e material. Véio conta em entrevistas (NAVES, 2014)
que não teve contato com outros artistas e ninguém era capaz de compreender seu
desejo pelas formas naquele ambiente rural, sem instrução, repleto de rudeza e
preconceitos. Era constantemente questionado quanto à sua orientação sexual por conta
disso, assim decidiu trabalhar com a madeira, diretamente ligada ao ofício de
marceneiro, “coisa de homem”. A partir disso se especializa em criar mundos e
personagens que vem sendo sobrepostos a um desejo latente de preservação de
memórias, as quais são apresentadas tanto em suas esculturas, quanto através das
centenas de objetos que coleciona.

2205
Véio é um colecionador de toda sorte de objetos, demonstrando seu interesse
pelas histórias dos homens e mulheres de sua região, pelas manifestações culturais,
sobretudo as ligadas ao universo popular: “causos”; religiosidade popular católica,
curandeiros, benzedores, Padre Cícero, Candomblé, feitiços, grupos de penitentes,
crendices de todas as ordens; reisados; danças; circo; caretas; e mais uma miríade de
manifestações da cultura popular sertaneja sergipana. Este profundo interesse, associado
a uma ideia de preservação e divulgação da história de Glória, de Sergipe, do Brasil,
motivou a criação do Museu do Sertão. Véio, que vive da venda de suas esculturas há
muito tempo, conseguiu com recursos próprios montar um espaço, ao lado de sua
residência, no sítio SóArte, localizado entre Feira Nova e Nossa Senhora da Glória,
designado pelo mesmo de Museu do Sertão. Neste espaço, cujo acervo conta com
aproximadamente 17.000 (dezessete mil) peças, segundo Cícero, estão misturados
objetos, entre os quais figuram documentos, fotografias, mapas, cartas, livros,
ferramentas e instrumentos de trabalho, uma casa de farinha completa, máquinas de
diversos tipos e funções, e esculturas de sua autoria. Os objetos, incluindo as esculturas
de sua autoria, estão distribuídos e organizados em espaços específicos em cada “casa”
construída para abrigar as seções elaboradas pelo artista-colecionador, como um
percurso consciente e estruturado pelas narrativas históricas e simbólicas do mesmo.

2206
Figura 2 - Vou mudar essa imagem por uma tirada por Alexandra

Em entrevista aos autores, Véio conta que está no sítio há 15 anos e o espaço do
Museu do Sertão vem se desenvolvendo desde então. São quatro “salas” interligadas e
outros quatro espaços independentes, as “casas temáticas”. Tudo apresentado de modo
um pouco improvisado, empoeirado e sem recursos tecnológicos ou de identificação.
No entanto, tudo tem relação entre si, transformando o Museu do Sertão num espaço de
uma potência histórica, estética, e simbólica único, principalmente diante do contexto
local, ou seja, numa cidade do interior sergipano, cujos equipamentos culturais são
praticamente inexistentes. Cristina Freire (1997), aponta sobre espaços que condensam
o passado e o presente, numa recriação de diversidades de tempos e de espaços, cujo
exemplo do Museu do Sertão pode ser apresentado como tal. Este impõe sua própria
narrativa, todavia, se mostra aberto à múltiplas leituras, intervenções e sugestões de
aprendizado sobre cultura, sobre memória, patrimônio, arte, estética, história, entre
outros. Os museus, enquanto instituições, vem sendo associados aos processos de
formação simbólica de diversas modalidades de autoconsciência individual e coletiva,
constituindo a ideia de patrimônios, os quais “nos ‘inventam’ (no sentido de que
constituem nossa subjetividade), ao mesmo tempo em que os construímos no tempo e
no espaço. Em outras palavras: quando classificamos determinados conjuntos de objetos

2207
materiais como ‘patrimônios culturais’, esses objetos estão por sua vez a nos ‘inventar’,
uma vez que eles materializam uma teia de categorias de pensamento por meio das
quais nos percebemos individual e coletivamente. (GONÇALVES, 2007, p 29)
O Museu do Sertão foi, e continua a ser, construído pelo agrupamento de objetos
que refletem uma memória coletiva, do sertanejo, mas também do indivíduo Cícero
Alves dos Santos. É notório a relação simbiótica entre a coleção e as esculturas
produzidas pelo artista, entre o colecionador e o escultor. Véio faz de sua arte uma
espécie de testemunho do encontro com o irrepresentável, que segundo Rancière (2009),
desconcerta o pensamento normativo e ordinário das coisas. O artista trabalha de duas
maneiras em suas esculturas: na primeira, escolhe, com o que chama de troncos abertos,
pedaços de vegetação que encontra dispostos pela região em que vive, e nos quais ele
faz poucas e precisas intervenções artísticas. Véio consegue extrair da natureza um
caráter expressivo, contido em suas torções e formas já encontradas e através de cores e
cortes bem específicos, acaba por delinear formas de animais, homens e outras figuras
fantásticas; na segunda maneira, entalha o que nomeia de troncos fechados. Véio
debasta a madeira até deixar à vista o que planejou ou previu no tronco, segundo o
mesmo. São composições que abordam diversos temas e possuem dimensões muito
variadas, desde um milímetro a 12 metros de altura.
Acreditamos que Véio não “representa” o mundo sertanejo, mas organiza e
constitui narrativas criativas e complexas a partir de várias camadas de memórias e de
histórias de Nossa Senhora da Glória e das pessoas com as quais ele conviveu e ouviu
falar a vida toda. Trata-se de um artista com uma produção impressionante pela
quantidade de obras produzidas, pela variedade de temas e possibilidades simbólicas,
além da capacidade de sua oralidade e construção de narrativas poéticas. Entendemos
que para construir um estudo sobre a produção deste artista é preciso um cuidado
minucioso com muitos aspectos que a circunda. Os conceitos/métodos elaborados por
Cecília Salles (2004), por exemplo, apresenta outros meios de perceber a construção de

2208
uma obra de arte, além de seus aspectos visuais. A autora afirma que para se aproximar
do sujeito criador é preciso percorrer seu espaço e tempo, suas questões relativas à
memória, percepção e recursos de criação. “Daí a necessidade de se pensar a criação
artística no contexto da complexidade, romper o isolamento dos objetos ou sintomas,
impedindo sua descontextualização e ativar as relações que os mantêm como sistemas
complexos. [...] Do mesmo modo, a obra vai se desenvolvendo por meio de uma série
de associações ou estabelecimento de relações.” (SALLES, Op. Cit., p.27) Zeny
Rosendahl (2003), é outro autor pertinente nestes estudos sobre a produção artística e
suas relações, sobretudo, a partir de seu estudo da geografia cultural, no qual afirma que
é pela existência de uma determinada cultura que se cria um território, e é dentro deste
território que se constrói e se exprime a relação simbólica existente entre a cultura e o
espaço. E, talvez se encontre nesta relação uma possibilidade de compreensão do
universo simbólico particular criado pelo artista-colecionador sergipano. Sua relação
com o espaço vivenciado, espaço este, que assim como a cultura, neste caso cultura
popular nordestina, sertaneja e sergipana, são plenos de referências e memórias
múltiplas.

2209
Figura 3 - Penitentes. Foto
Em todas as entrevistas realizadas, Véio se queixa de não ser reconhecido na sua
própria região, apesar de já ter participado de muitas exposições, feiras de arte e mesmo
de ter representado Sergipe em eventos realizados em Brasília, por exemplo. Todavia, a
queixa mais frequente é em relação a não valorização da “memória do sertão”, dos
costumes e fatos acontecidos em Glória. O museu, a partir dos objetos que o criador
coleciona, reelabora e reclassifica estas peças de acordo com seus desejos, perspectivas
e construções narrativas orais.
Todavia, existe um risco real dessas narrativas, histórias e objetos se perderem. Em
primeiro lugar, Cícero não tem seguidores ou aprendizes. Ninguém da família seguiu
seus passos e ainda não foi realizado um processo de documentação e registro de seu

2210
acervo, nem tão pouco de suas obras escultóricas. O Museu do Sertão existe, porém não
como uma instituição formal, ou seja, não possui nenhum tipo de documentação,
histórico ou qualquer acompanhamento técnico museológico de seu acervo. Os telhados
necessitam de reparos, as salas necessitam de limpeza, iluminação, organização na
disposição das peças, ou melhor, uma expografia, extintores de incêndio, questão
apontada como uma das maiores preocupações do artista-colecionador, entre outras
necessidades primárias, como o inventário do acervo, por exemplo.
Trata-se de um espaço que existe independente de qualquer financiamento
externo, completamente fragmentado, o qual resiste pela imensa vontade de um homem
que tem consciência da potência cultural e das relações patrimoniais, educativas e
simbólicas do Museu do Sertão. Esta iniciativa partida de um sujeito, que é ao mesmo
tempo produtor de objetos-obras de arte-significantes, e sujeito analítico, agente de
intervenção do meio cultural, cujas funções se misturam e se complementam, é muito
desafiadora para se pensar a formação e o sentido das instituições formais que lidam
com a preservação de bens culturais, sobretudo, os bens ligados ao universo
conceituado como popular, já que a maioria dos exemplos de museus de arte poppular
ou cultura popular foram constituídos a partir de acervos provenientes de pesquisadores,
antropólogos, etnólogos, ou colecionadores, estrangeiros ou brasileiros, interessados em
elementos das culturas populares, quase sempre de origem abastada.
É possível diagnosticar que a maior urgência, pensando numa questão de
estrutura e permanência do que já existe, é a realização do inventário das peças do
acervo do Museu do Sertão. Segundo Padilha (2014), o inventário é a contagem de
todos os objetos que fazem parte do museu e esse procedimento é fundamental para ter
o conhecimento geral sobre seu acervo e contribui para a segurança do mesmo. Foi
pensando neste contexto e na importância do Museu do Sertão que um projeto de
pesquisa começou a ser desenvolvido neste ano por alguns professores e estudantes da
UFS. Tal iniciativa pensa nos desdobramentos dos procedimentos museológicos de

2211
documentação, catalogação e expografia do acervo existente, além da documentação de
algumas das narrativas orais elaboradas pelo artista, nas quais o mesmo entrecruza as
memórias do sertanejo às da sua própria vida e poética. Este projeto prevê muitas etapas
conceituais, as quais poderão contribuir para a análise e debate críticos das artes visuais
sergipanas, brasileira e contemporânea, além da ampliação dos discursos sobre
apropriação, patrimônio, conceituações sobre o popular, a musealização de objetos,
memória e etc. O estudo sistemático e amplificado da trajetória artística de Cícero Alves
dos Santos, o Véio, e sua relação direta com a construção do Museu do Sertão tem
muito a acrescentar aos campos dos estudos da Museologia, Artes Visuais, Design,
História, Ciências Sociais, entre outros.

Referências Bibliográficas
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casas e a monumentalização de Mario Quintana. In MUSAS – Revista Brasileira de
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NAVES, Rodrigo. Cícero Alves dos Santos [Véio]: esculturas. São Paulo: Editora
WMF Martins Fontes, 2014.

2212
CAMINHOS DE UM PATRIMÔNIO SIMBÓLICO MARGINALIZADO: A ROTA
MUSEOLÓGICA DO CANGAÇO.

Luan Vinícius Carvalho De Almeida*

Resumo: O cangaço foi um fenômeno social ocorrido no sertão brasileiro no final do século
XIX, tendo grande destaque na década de 30 do século seguinte devido à atuação de grupos
vistos como bandidos por parte da população do nordeste. Virgolino Ferreira da Silva, vulgo
Lampião, foi o líder que ganhou mais destaque pela resistência, disciplina e organização de seu
bando, sendo posteriormente bastante estudado. Esse grupo era constituído de homens e
mulheres que estavam insatisfeitos com uma ordem social estabelecida devido às desigualdades
e injustiças econômicas da época em que viviam. Assim, esse artigo objetiva identificar os
possíveis locais para construção de um circuito expográfico do cangaço que englobe os estados
nordestinos do país e que discuta esse patrimônio cultural muitas vezes marginalizado. Acredita-
se que o processo de musealização dos locais e das celebrações que ocorrem como a missa dos
vaqueiros, por exemplo, poderá fortalecer e valorizar ainda mais a cultura popular nordestina e
sertaneja.
Palavras-chave: Cangaço; Rota; Musealização; Patrimônio simbólico; cultura popular.

Abstract: The “cangaço” was a social phenomenon occurred in the Brazilian backlands in the
late nineteenth century and highlight in the 30 of the next century due to the action of groups
seen by part of population as villains throughout the northeast of the country. Virgolino Ferreira
da Silva, aka Lampião, was the leader who gained more prominence because of his strength,
discipline and organization of his band subsequently been intensively studied. This group was
constituted of men and women who were dissatisfied with a social established order due to the
inequalities and economic injustices of the period in which they lived. Thus, this work aims to
identify possible sites for building an expografic circuit of cangaço covering the northeastern
states of the country and to discuss this cultural heritage often marginalized. It is believed that
the musealization process of local and celebrations that occur as the cowboy mass, for example,
could fortify and valorize even more the northeastern backlands popular culture.
Key-words: cangaço; route; musealization; symbolic heritage; popular culture.

2213
Introdução
O cangaço foi um fenômeno social ocorrido no fim do século XIX e início do
século XX, na região do semiárido do nordeste brasileiro, e ficou conhecido por sua
característica de revolta contra o sistema econômico e social da época que desfavorecia
os mais pobres. Composto por homens e mulheres, esses bandos percorriam toda a
região do sertão realizando saques e assaltos, mas especialmente definindo uma posição
de revolta contra o sistema estabelecido.
No Brasil, esse período é marcado por uma série de injustiças econômicas e
políticas, onde diversas revoltas ocorreram principalmente pela ditadura estabelecida em
toda a Era Vargas. Além disso, o poder continuou concentrado nas mãos dos ricos
fazendeiros o que ocasionou contestações dos trabalhadores pobres daquelas fazendas
sobre aquela forma de administração de terras e de riquezas produzidas que enriqueciam
apenas os grandes fazendeiros.
Dessa forma, os cangaceiros ocuparam um importante papel de disputa social, e
os lugares que tem registro de sua passagem nessa delimitação geográfica ganharam
posteriormente a designação de lugares de memória. Nessa geografia, entre outras
coisas, encontram-se rotas de passagem dos cangaceiros que se tornaram atualmente
pontos de memória desse fenômeno.
Ao identificar os lugares de passagem desses bandos e perceber o cangaço como
um patrimônio cultural, devido seu valor histórico no cenário cultural do nordeste,
sendo assim uma marca dessa história e memória, poderemos discutir os processos de
patrimonialização em relação às rotas nos estados nordestinos com a presença desse
fenômeno que já foi muitas vezes marginalizado.

O cangaço e sua característica de resistência


Segundo Ieda Lebensztayn (2009), a palavra cangaço, em sua raiz, vem de canga
e “está atrelada à esfera do trabalho de vaqueiros. Significando também ‘pau assentado

2214
nos ombros para transportar objetos’, remete ao fardo de armas objetos que os
cangaceiros, nômades, carregavam” (LEBENSZTAYN, 2009, p. 135). Rastreando a
origem das palavras “cangaceiro”, “bandoleiro” e “bandido”, a autora afere que a
semelhança entre cangaceiro e bandoleiro é o fato deles carregarem bandola, cinto do
qual pendem cartucheiras de pólvora o que evidencia a existência do que ela considera
ser um círculo vicioso, da ordem do trabalho explorado, do banimento, à esfera da
violência.
Dessa forma, o cangaço é compreendido como um movimento que tem como
característica principal a relação com os poderosos homens donos da terra, a existência
de um clima semiárido com períodos de seca constante e uma paisagem social de
desolação. A pesquisadora Élise Grunspan-Jasmin (2006), recorrendo a documentos
antigos, identifica que

O cangaço em geral é um brado de revolta, um movimento impulsivo


de defesa das víctimas de prepotências e injustiças. O pobre sertanejo,
perseguido por governos corruptos e prepotentes, víctima de
autoridades ignorantes e brutaes, julgados por magistrados venaes,
sendo naturalmente bravo, recorre ao seu braço forte, para supprir a
justiça inexistente de seu paiz. Em geral, são filhos que vingam a
morte do pai ou de irmãos, trucidados por uma polícia de sicários. São
víctimas de esbulhos que reivindicam pela própria força os direitos
que lhes deviam ser outorgados pela lei (ROCHA, apud GRUNSPAN-
JASMIN, 2006).

Para Sarah Lima Batista (2012), o cangaço é formado por bandos de pessoas
armadas que podiam ser parentes do coronel local, jagunços, e o cabra ou cangaceiro
manso, comumente identificado como um morador comum que se comprometeria em
defender o proprietário de terra, em troca de trabalho nesta e de proteção.
O cangaço seria então considerado um fenômeno banditista como explica José
Bezerra Lima Irmão (2014) ao diferenciar o que é bando e quadrilha. O bando atuaria
nas zonas rurais e a quadrilha (com mais de quatro integrantes) nas zonas urbanas. O

2215
cangaço viria do termo bandido, derivado de bando, de onde surge o banditismo
caracterizado pelo autor como um fenômeno universal.

Mais que um simples fenômeno caracterizado pela atuação de homens


armados que saqueavam fazendas, vilas e cidades do Nordeste, o
cangaço representa na verdade uma manifestação coletiva típica de
luta de classes gerada nas caatingas, de forma espontânea, do povo
analfabeto e pobre contra o domínio absoluto do coronel igualmente
analfabeto, porém rico e prepotente, embora tal manifestação não
tivesse um objetivo definido, já que [...] não tinha consciência social e
não seguia nenhuma orientação ideológica, mas apenas o sentimento
de revolta (IRMÃO, 2014, p. 21).

Assim após o período de existência do grupo de Lampião os registros são dos


mais variados, tais como “ensaios biográficos, estudos históricos e sociológicos,
romances, artigos, reportagens, depoimentos, além de vasta literatura de cordel”
(IRMÃO, 2014, p. 23).
A diminuição da atuação dos bandos ocorria com a chegada das chuvas que
propiciava um reestabelecimento na oferta de gêneros alimentícios o que garantia o
sustento econômico da população com um todo. Luiz Henrique Cascelli de Azevedo
(1998) explica que as condições climáticas interferiam nas condições econômicas do
sertão como um todo. Com as chuvas havia mais oferta de produtos e isso amenizava os
conflitos sociais, em contrapartida, nos períodos de seca ocorriam mais ataques dos
bandos. Uma desorganização econômica, provocada pela seca, gerava conflitos bastante
frequentes entre os abastados e os mais pobres, chegando ao ponto de matar por pouco.
Era comum o fato das pessoas migrarem de uma região mais afetada pela seca
para outra não tão afetada. Entretanto, os menos favorecidos sofriam ainda mais porque
eram afugentados para não dizimarem as poucas reservas de alimentos e água
disponíveis. Nesse cenário, alguns grupos de retirantes ganharam destaque pela prática
de pilhagens e saques (AZEVEDO, 1998).

2216
Motivados pela própria condição de miséria que viviam, um tipo de resistência
tomava forma nesses bandos por meio do uso de força e violência. Assim, eles passaram
a ter uma organização sólida e estratégias de luta eficientes especialmente para não
serem presos em suas atuações. Historicamente o que se passava no entorno social do
Brasil naquele período e que como com uma mola propulsora impulsionou o cangaço no
Nordeste na década de 3022, estava fortemente ligado aos fatos sociais e políticos.
Entretanto, distante de ser um movimento uniforme, no cangaço há períodos
marcados pela organização de bandos também a serviço dos coronéis que queriam
proteger suas fazendas e terras e os cangaceiros eram contratados para prestarem esse
tipo de serviço. Contudo, houve tempo em que esses bandos tornaram-se independentes,
o que gerou um cenário de luta armada. O cangaço, naquele momento, não apenas
lutava e resistia por motivos de fome generalizada em períodos de seca, mas também
contra as injustiças que ocorriam com a população mais pobre.
James Scott (2011) afere que a resistência estava diretamente ligada ao embate
entre classes sociais. Havia naquele cenário árido uma recusa em atender as diversas
demandas feitas pelas classes superiores como a proteção às fazendas, serviços
domésticos exploratórios e ou trabalho na terra. Portanto, tais demandas e
reivindicações – entendida aqui como recusa – têm normalmente a ver com o que
motiva a relação da luta de classes, ou seja, a apropriação da terra, do trabalho, dos
22
Na década de 30, o Brasil enfrentava um período de transição: A Revolução de 1930; Movimento de
oligarquias que não se beneficiavam com a política “Café-com-Leite”, marcou o início de uma década de
mudanças para o Brasil. Com a Revolução, foi possível a ascensão ao governo nacional de um
representante do Rio Grande do Sul: Getúlio Dornelles Vargas, assumindo um governo provisório que
futuramente, através de um golpe, se consolidaria até seu suicídio em 1954. O levante comunista de 1935
tinha por objetivo depor Getúlio Vargas e implantar um governo comunista no Brasil, tendo como líder da
revolta Luís Carlos Prestes. Porém a revolta fracassou, sendo reprimida terrivelmente pelo governo
Vargas, que aproveitando a ameaça comunista implantou o Estado Novo em 1937, suspendendo as
eleições de 1938, alegando não poder haver uma eleição com o Brasil em estado de guerra, assim
efetivou-se a Ditadura Varguista, concentrando todos os poderes nas mãos do presidente. Foi neste
contexto nacional que o Banditismo Social ou o popularmente conhecido “Cangaço” teve seu auge,
repercutindo não apenas regionalmente, mas também a nível nacional, representando mais uma ameaça ao
governo ditatorial do período (BATISTA, 2012, p. 14).

2217
impostos, das rendas, etc. Portanto, a resistência dos cangaceiros tinha o intuito de
conquistar ganhos sociais imediatos.
Maria Isaura Pereira de Queiroz (1982) aponta como destaque de resistência a
figura de Virgolino Ferreira da Silva, vulgo Lampião23, um dos líderes mais conhecidos
dos bandos de cangaceiros, devido seu caráter disciplinado, sua resistência nas lutas e a
organização de seu bando e trabalha seu mito de origem chegando à delimitação
geográfica do cangaço, ao que ela chama de “Polígono das Secas” (QUEIROZ, 1982, p.
15).
Tanto Serra Talhada/PE, como Triunfo/PE, Petrolina/PE, Piranhas/AL ou Poço
Redondo/SE e Mossoró/RN, são lugares que registraram a passagem pacífica ou não de
Lampião nesses territórios, sejam como trincheiras de resistência ao cangaço ou como
locais que apoiaram as ações dos cangaceiros, ou mesmo como cenário de confrontos
dos cangaceiros com a volante, como explica Marcos Edilson de Araújo Clemente
(2006, p. 44).
Fernando Sá (2014), em sua pesquisa sobre o cangaço no sertão de Sergipe e
Alagoas, realizou diversos levantamentos científicos nas cidades de Poço Redondo/SE,
Canindé do São Francisco/SE, Piranhas/AL, Olho D’água do Casado/AL, Juazeiro do
Norte/CE, Triunfo/PE, Serra Talhada/PE, Paulo Afonso/BA e Poço Redondo/SE, e
acaba apontando também essas cidades como locais de ações comemorativas em relação
à figura de Lampião.
Logo, o autor explica que, de algum modo, nessas visitas realizadas e nas
consultas a jornais e livros, percebeu que em cada estado ou cidade na qual se registrou
a passagem do bando de Lampião, havia uma preocupação em demarcar na geografia a
especificidade da participação no fenômeno social do cangaço (SÁ, 2014, p. 286).
23
Filho de José Ferreira dos Santos e Maria Vieira Lopes, conhecido como “Rei do Cangaço”. Lampião
nasceu no sítio de Passagem das Pedras, atual município de Serra Talhada, mas sua data de nascimento é
duvidosa, enquanto alguns afirmam ter sido em 07 de julho de 1897, outros sustentam que foi em 04 de
junho de 1898. A data de morte não tem tanta indistinção, o cangaceiro morreu na Grota de Angicos,
município de Poço Redondo, em 28 de julho de 1938 (FILHO, 2014, p. 1).

2218
Assim, o recorte feito aqui passa por cinco estados, sendo eles, Pernambuco,
Bahia, Sergipe, Alagoas e Ceará, por onde o bando de Lampião passou e deixou marcas
históricas, sejam elas através da memória do povo ou mesmo dos jornais da época que
faziam tal registro da passagem dos cangaceiros por determinados locais, indicando essa
preocupação em registrar a passagem dos cangaceiros.
Os levantamentos feitos em pesquisas destacam até agora sete estados brasileiros
com atividades do cangaço24, entretanto para esta pesquisa, o foco cai sobre os estados
de Alagoas, Sergipe, Pernambuco, Bahia e Ceará, por atrelarem de alguma maneira
memórias sobre a passagem do bando de Lampião.
Outras marcas são atualmente identificadas em museus e locais de celebração,
como a Grota de Angicos, onde é realizada a missa do cangaço, fazendas de coiteiros
que eram utilizadas como refúgio, entre outros espaços.
Assim, depois de delimitado o espaço geográfico do cangaço como também
alguns motivos e consequências de sua passagem por determinadas cidades do sertão
nordestino, traçaremos uma explanação sobre o que tange o patrimônio e suas questões,
e também pelo fato de que a simbologia que rodeia o cangaço na sua ótica atual pode
ser compreendida como um patrimônio relativamente interligado à identidade cultural
do povo nordestino, assim como uma marca registrada nos capítulos da história do povo
brasileiro.

O patrimônio simbólico do cangaço


Locais como a Grota de Angicos, entre outros lugares, se tornaram espaços de
celebração e de culto dessa memória do cangaço considerada por muitos como um
patrimônio cultural simbólico. Tais eventos são destinados a rememorar a ideia de que o
cangaço se constitui também como um elemento patrimonial.
24
Os estados por onde o bando de Lampião passou contam com Alagoas, Sergipe, Bahia, Pernambuco,
Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, sendo essa a contagem feita até o momento desta pesquisa baseado
no levantamento bibliográfico realizado aqui.

2219
O patrimônio aqui discutido e que podemos chamar de marginalizado, segue a
mesma linha lógica sobre o que ocorreu com o cangaço, também marginalizado hoje em
dia e por parte da população da época. É por essa e outras ligações que se nomeia esse
patrimônio dessa maneira. É bastante válido, neste momento, discutir o conceito de
patrimônio. Para Mario Chagas (2005):

O patrimônio cultural se constitui a partir da atribuição de valores,


funções e significados aos elementos que o compõem. O
reconhecimento de que o patrimônio cultural não é um dado, mas uma
construção que resulta de um processo de atribuição de significados e
sentidos, permite avançar em direção à sua dimensão política,
econômica e social; permite compreendê-lo como espaço de disputa e
luta, como campo discursivo sujeito aos mais diferentes usos e
submetido aos mais diferentes interesses (CHAGAS, 2005, p. 1).

Considerando esta constatação em relação ao patrimônio, Chagas (2005) ainda


traz em seu texto a ideia de que sempre será encontrada a noção de patrimônio que
caracteriza o conjunto de bens tangíveis, intangíveis e naturais a que se atribuem valores
e sentidos em determinado tempo. Porém, ainda de acordo com o autor, o patrimônio “é
terreno em construção, fruto de eleição e campo de combate” (CHAGAS, 2005, p. 1). E
levando essa premissa para um entendimento mais plano sobre o patrimônio e seu
conceito, aprofundaremos ainda mais essa noção no decorrer do artigo.
Entretanto, segundo o Dicionário crítico de políticas culturais (1997, p. 285), o
patrimônio cultural é o conjunto de bens móveis e imóveis existentes no país cuja
conservação seja de interesse público por [...] fatos memoráveis quer pelo seu valor
arqueológico ou etnográfico, bibliográfico, artístico.
Outra perspectiva é que Donizete Rodrigues (2012) explica que o conceito de
patrimônio no âmbito cultural se resume ao “conjunto de bens, materiais e imateriais,
que são considerados do interesse coletivo, suficientemente relevantes para a
perpetuação no tempo” (RODRIGUES, 2012, p. 4), no entanto essa interpretação de que
os bens do cangaço tem uma importância na historia da cultura e que podem ser

2220
patrimônio, é bastante recente, tendo em vista que no período em que existia não
possuía tal significado, sentido ou relevância para alguma contribuição cultural da
época.
Vale salientar o que seria o cangaço senão esse movimento de respaldo na
identidade cultural do povo do Nordeste. O que aqui se pretende mostrar é como o
cangaço pode se tornar um patrimônio da região nordeste no sentido de que resquícios
de seus símbolos e signos moveram o imaginário da população nordestina e brasileira.
Assim, o conceito que mais se adequaria ao caso do cangaço sob essa ótica, seria o do
autor Mário Chagas ao tratar o patrimônio como um lugar de conflitos, construção, de
embates, situações estas em que o cangaço se encontra inserido.
Essa mistura de símbolos e signos presente no legado deixado pelo cangaço
acaba se estruturando como uma das forças motrizes geradoras da identidade cultural do
povo nordestino, sendo também um legado histórico e cultural nessa memória visitada
devido à realidade existente naquela região. Dessa forma, Sarah Lima Batista (2012)
nos explica que o movimento pode ser compreendido como “pertencente à cultura
imaterial, posto que esta modalidade de cultura necessita inevitavelmente da memória
coletiva para existir” (BATISTA, 2012, p. 16).
São, portanto, legados que percorrem a imaterialidade dessas manifestações do
cangaço na memória e que traçam o paralelo com o que podemos atualmente chamar de
patrimônio cultural ou patrimônio simbólico, constituinte também de uma identidade
cultural.
Ao longo dos tempos, houve uma construção de discursos que se contrapunham
até os dias de hoje entre pesquisadores do tema, levantando o debate sobre a questão dos
cangaceiros e cangaceiras serem heróis ou bandidos naquela realidade sertaneja e dentro
do imaginário nordestino, tomando-os, portanto, como patrimônio cultural desse povo.

2221
É comum que os bens do cangaço sejam interpretados de maneira equivocada
nos museus, como destaca Clovis Carvalho Britto em seu artigo sobre a as mulheres e a
musealização do cangaço.

A análise das trajetórias da musealização das mulheres ferradas em


Canindé contribui para problematizarmos a relação entre memória,
museus e “eventos críticos”, além dos desafios em torno da
manipulação dessas narrativas. Do mesmo modo, evidencia as
diversas potencialidades – entre silêncios e marcas – em torno da
exposição de um mesmo fato. Esses recortes relacionados à
representação do cangaço nos museus brasileiros contribuem para o
reconhecimento de questões como a importância da pesquisa e da
ética nos museus, juntamente com as possibilidades polissêmicas a
serem utilizadas na construção das exposições museológicas
(BRITTO, 2016, p. 64).

Nessa pesquisa do tema, Britto (2016) também problematiza acerca dos objetos
do cangaço em museus e sobre as mulheres no cangaço e aponta que de acordo com
José Murilo de Carvalho, “os cangaceiros eram compreendidos, [...] como bandidos
sociais que reagiam à situação de desigualdade [...] no sertão, mas que se utilizavam das
mesmas táticas dos coronéis, sobretudo a violência” (BRITTO, 2016, p. 54).
A questão torna-se mais complexa a ponto de ser possível analisar o fato de que
nesse imaginário popular, o cangaço ganhou espaço e gerou sentimentos de
pertencimento à região nordeste, além de ressoar na herança cultural em suas mais
diversas manifestações, sejam elas materiais ou imateriais, encontrando aí as suas
características museológicas sendo este objeto uma fonte de pesquisa na área da
Museologia e do campo do patrimônio que expande-se constantemente, podendo o
cangaço ser identificado como patrimônio simbólico, intangível e cultural.

A proposta museológica: a construção de uma rota geográfica para visitação


Após análise da obra Combates entre História e Memórias de Fernando Sá,
percebe-se que o autor busca também pontuar algumas regiões que possuem certa

2222
expressividade em relação à Lampião e seu bando. Fernando Sá inicia sua jornada
através dos confins de Serra Talhada/PE e tal escolha não é aleatória e nem por acaso,
pelo contrário, o autor indica um dos pontos de partida para desembocar no cangaço e
sua força através de Lampião.
O que possui de cangaço nesses espaços geográficos? A partir do ponto de vista
da construção de um patrimônio simbólico que é também muitas vezes marginalizado,
volta-se o olhar mais fortemente para Triunfo/PE que possui um Memorial do Cangaço,
além de Poço redondo/SE que tem a Praça Lampião e o Museu do Sertão em
Piranhas/AL. Esses locais são os principais apontados por Fernando Sá e intitulados
como Museus de cangaço.
Cabe discutir também como se constituem as rotas geográficas com um caráter
ainda museológico25 para se pensar o patrimônio simbólico. Logo, um viés necessário e
crucial para o entendimento e a pesquisa sobre a rota geográfica do cangaço, é
justamente captar a essência do que se entende por rota geográfica e trabalhar na
construção da produção da mesma.

Na atualidade, as rotas revelam-se dos produtos mais procurados pelos


visitantes na indústria turística. Assim, na ótica da oferta turística, a
rota (ou itinerário) é vista como a produção de um conjunto de
atividades e atrações que estimulam a articulação entre áreas distintas
e servem de estímulo ao desenvolvimento económico através do
turismo (Briedenhann & Wickens, 2004 apud Maia, 2011). Trata-se,
deste modo, de um processo ativo, interativo e evolutivo, fundamental
na área do turismo e do lazer, e que necessita de uma programação
meticulosa e de uma gestão otimizada (MAIA; BAPTISTA, 2011, p.
2-3).

A elaboração e constituição de uma rota geográfica é complexa, principalmente


no que se refere à questão do cangaço, pois era um movimento de mobilidade constante,

25
Para Cristina Bruno (2005) “museológico é o fenômeno (é quando este fato é identificado, percebido,
ou seja: o museu)”. (BRUNO apud CURY). Logo, aqui, o que se chama de uma rota museológica é uma
rota identificada e tendo o fenômeno, no caso do cangaço, como elemento constituinte.

2223
errante e aparentemente, incerta. Assim, é capaz surgir uma nova perspectiva e noção de
patrimônio através da rota. Para compreender o conceito de rota, o ICOMOS, apresenta
que:

O conceito de rota ou itinerário cultural é inovador, completo,


complexo e pluridisciplinar, pois contribui qualitativamente para a
noção de património, para a sua divulgação e conservação, ao mesmo
tempo que reforça o valor de cada elemento que compõe a rota e
valoriza a comunidade local (ICOMOS, 2008 apud BAPTISTA;
MAIA, 2011).

Então, como se pensar a construção da rota museológica do cangaço, do bando


de Lampião, através da produção teórica e constituição de um roteiro que seja um fiel
traçado dos principais locais, ou lugares onde há uma produção expressiva sobre o tema
do cangaço?
Diversos aspectos devem ser considerados na construção dessa rota
museológica, desde uma avaliação dos pontos listados como lugares de cangaço até
planejamento e organização dessa rota. Dentre os locais que estão selecionados para tal,
Triunfo/PE, Poço Redondo/SE e Serra Talhada/PE são lugares chave para esse
processo. Uma dúvida que surge dentro da seleção desses locais é justamente observar a
produção que ocorre ali para tentar problematizar o que se exercita da identidade do
cangaço e suas celebrações como uma forma de delimitar na geografia o registro da
passagem desses bandos.
São exemplos de lugares que possuem acervo para essa rota o Museu do
Cangaço/Fundação Cultural Cabras de Lampião em Serra Talhada/PE; Museu do
Cangaço e da Cidade de Triunfo, em Triunfo/PE; Museu-Casa de Maria Bonita, em
Paulo Afonso/BA; Museu do Cangaço, no Povoado de Alagadiço em Frei Paulo/SE;
Memorial da Universidade Tiradentes, em Aracaju/SE; Museu Histórico de Sergipe, em
São Cristóvão/SE; Museu Estácio de Lima, em Salvador/BA; Museu do Instituto
Histórico e Geográfico de Alagoas, em Maceió/AL; Museu do Sertão, em Piranhas/AL.

2224
Dos segmentos capazes de serem investigados sobre tais museus que possuem
acervos de cangaço, considerando os estados onde esses espaços museais estão
inseridos faz-se relevante contextualiza-los para compreender a importância da
passagem e produção do cangaço nesses locais. Muitos dos indícios a serem
encontrados nessas abordagens quanto à rota, se revelará também à medida de uma
busca meticulosa, profunda e uma pesquisa bibliográfica mais especializada sobre o
tema cangaço e rotas geográficas e processos de musealização26.
Logo, esses espaços de consagração e fabricação de uma ideia de patrimônio
simbólico ressalta a preocupação atual das populações de delinearem esses lugares
como sendo de memória, logo pontos geográficos memoráveis e significados atribuídos
a esses locais são indicativos para a construção dessa rota patrimonial e museológica.
Atribuindo esse valor de lugares de memória, atualmente, e partindo da
concepção de Pierre Nora sobre tal conceito, vale destacar o desenvolvimento da
simbologia que envolve tal memória e que percorre o campo também do patrimônio
nessa compreensão mais ampla do que o cangaço representa hoje em dia. Então, o autor
explica que tais espaços são lugares capazes de gerarem efeitos sobre o material, o
simbólico e o funcional, todas em graus diversos e mesmo um espaço aparentemente
material, só se tornará de memória quando a imaginação investi-lo dessa aura simbólica
(NORA, 1984, p. 21).
Portanto, essas estratégias dos processos de consagração dos lugares,
celebrações e manifestações oferecem subsídios para fortalecer a ideia da cultura
sertaneja como um elemento simbólico assim como foi o movimento do cangaço. Como
explica Sara Maia e Maria Baptista (2011, p. 14), “as rotas museológicas são inovadoras
e promovem a interdisciplinaridade”.

26
É um processo que se inicia com a seleção realizada pelo “olhar museológico” sobre as coisas
materiais, ou seja, “[...] uma atitude crítica, questionadora, capaz de um distanciamento reflexivo diante
do conjunto de bens culturais e naturais [...]” (CHAGAS apud CURY, 2005, p. 24).

2225
Pois assim como o campo da Museologia, a proposta de uma rota museológica é
justamente possuir em seu cerne o interesse e o caráter interdisciplinar. A partir dessa
vertente trabalhada é que novas formas surgirão de maneira mais nítida na elaboração
da rota do cangaço.

A rota: museologia e tratamento patrimonial


De acordo com Xerardo Pérez (2009, p. 232), os itinerários culturais devem
reconhecer a identidade patrimonial cultural e natural representativa de um dado local,
ao mesmo tempo em que procuram servir de elo entre visitantes e visitados. Assim, de
tal modo, as rotas museológicas que caracterizam especificamente um circuito que
permeie um patrimônio, dará poder de fruição para dentro dela.
Além de perceber o patrimônio do cangaço como marginalizado pela questão de
trazer em seu cerne o estigma de um movimento banditista, sendo percebido, portanto,
como um movimento marginal por parte de estudiosos do cangaço e de parte da
população, é bastante provável que algumas ressonâncias ocorram no campo desse
patrimônio, devido principalmente à falta de produções bibliográficas que debrucem um
olhar diferenciado a esse âmbito das rotas, existindo apenas uma rota do cangaço feita
na trilha da Grota de Angicos.
É uma rota museológica aquela que potencializa os recursos socioculturais e
patrimoniais de um local ou de uma região, integrando outras áreas como a tradição, o
patrimônio, a arte, os costumes, o artesanato, a etnografia e a história (BAPTISTA;
MAIA, 2011, p. 4), diferente do que ocorre nessa trilha do cangaço citada acima cuja o
único objetivo é chegar ao local do massacre dos cangaceiros e cangaceiras. Para Sarah
Vidal e Maria Baptista (2011, p. 4), essas rotas museológicas sempre se associam a um
tema e um representativo de uma identidade dos elementos que a constituem,
reconhecendo sua identidade patrimonial, cultural e natural, proporcionando assim uma
experiência e uma vivência para os visitantes.

2226
A construção de rotas museológicas é uma das formas de colocar em prática a
relação entre a atividade cultural e a turística. Podemos compreender que o que se
entende por museológico, segundo Cristina Bruno (2005), é o fenômeno, ou seja, o fato
identificado e percebido, como pontuado acima, logo a rota museológica é uma rota
cujo fenômeno do cangaço é identificado ali e cujo bando de Lampião traçou
geograficamente esses pontos.
Mais do que uma simples rota turística, uma rota museológica pode vir a ser o
testemunho de uma identidade (BAPTISTA; MAIA, 2011, p. 4). Porém mais do que
uma construção turística desses sistemas de rotas, elas possuem um caráter
museológico, e nesse caso se relaciona diretamente com a noção de patrimônio aqui
discutida. A proposta da rota do cangaço é importante para que se pense e descontrua
alguns estratégias empreendidas em relação ao tema que cristalizam uma versão do que
foi o cangaço a partir desses lugares, e que a Grota seria um elemento chave desse
processo, demarcando um ponto final da trajetória de alguns integrantes do bando de
Lampião.
Os patrimônios simbólicos estão a todo o instante se movendo, sendo
transformados e transformando quem o vivencia, fazendo assim com que a comunidade
onde esteja inserida, interaja diretamente com eles. No entanto, tal patrimônio é antes de
tudo, um meio para se chegar a algo. Ele é o intermédio e busca ser um elo que una o
seu contexto de memória com a atualidade do meio em que está inserido.
Portanto esse ponto de vista se encaixa na ideia de movimentação e de rotação
constante, pois o cangaço também era um fenômeno com bastante movimento e
mudança de lugar no sertão nordestino. E assim como a missa do vaqueiro,
manifestação do sertão nordestino, o cangaço acaba por tornar-se elemento crucial na
construção da sociedade sertaneja. Para Janirza Cavalcante da Rocha Lima (1991):

Dentro da estrutura social sertaneja, o elemento mais representativo é


o vaqueiro, onde sua presença é constante. Como analisar o sertão sem

2227
estudar o sentimento e a realidade do vaqueiro, seu trabalho, sua vida,
seu sofrer, seu viver e seu morrer? [...] Polariza todas as injustiças e
desmandos do seu tempo (LIMA, 1991, p. 38).

Desse modo, a missa do vaqueiro assemelha-se ao cangaço no sentido de se


tornar um elemento simbólico importante na construção de uma ideia de legado deixado
no nordeste brasileiro. Assim como o bando de Lampião é massacrado na Grota de
Angicos, a missa do Vaqueiro traz uma memória bastante próxima ao fato, por ser
realizada em um local de assassinato de um vaqueiro, e isso pode aplicar-se aos locais
aonde os cangaceiros e cangaceiras chegaram a passar e deixar marcas representativas.
É o sentido de celebração dos lugares que garante a possível ideia de uma rota
museológica que trabalha a memória coletiva de um povo.
Logo para Sara Maia e Maria Baptista “o desenvolvimento de uma rota
museológica é de tal maneira complexo que abrange diversos agentes (públicos e
privados) no seu planejamento, na sua organização e na sua gestão”. (2011, p. 4) E
esses agentes, assim como um público que vai até um espaço museal, devem interagir e
progredir no que se refere à questão da constituição de tal rota a ser proposta e
desenvolvida visando uma contribuição para o campo do cangaço assim como do
patrimônio. As autoras defendem que “desta forma, entende-se que uma rota
museológica deve contar uma história e proporcionar uma vivência/experiência”
(BAPTISTA; MAIA, 2011, p. 4). Assim como se propõe aqui com o cangaço.
Consequentemente, inicia-se um trajeto primeiramente pensado por Sergipe,
devido os últimos anos do bando de Lampião no Cangaço terem sido pelo Estado,
findando na Grota do Angico, em Poço Redondo, que inclusive possui a Praça Lampião,
em sua homenagem.
A rota museológica poderá abranger esses principais pontos onde há uma marca
histórica do cangaço em evidência, seja devido os objetos do cangaço que estejam por
tal local e que são objetos de memória, seja pelos espaços que cultuam esse tratamento
para com o cangaço e Lampião.

2228
Logo a rota museológica poderá receber um tratamento patrimonial, levantando
esses principais pontos, no que se refere à questão sobre o que existe de patrimônio do
cangaço por essa determinada região. Patrimônio este no sentido de haver alguma
possibilidade de representação da memória do cangaço e que faça parte de uma
memória que integra a identidade dos povos que possuem tal material, onde a
celebração da memória torna-se um componente marcante na escolha desses espaços.

Consideração Final
Por fim, no entanto, há de se considerar que este artigo busca identificar
possíveis pontos geográficos para construção desse circuito expográfico e museológico
do cangaço, englobando estados nordestinos do país que justamente abordem e tratem
do patrimônio simbólico desse tema que é muitas vezes marginalizado pelo seu caráter
considerado de banditismo.
Assim, para gerar uma provocação inicial referente à construção do patrimônio
simbólico marginalizado, torna-se importante dialogar com teóricos da Museologia
(quanto aos conceitos de patrimônio) e teóricos que buscam trabalhar a questão de rotas
geográficas, para que assim seja possível pensar de forma mais elaborada uma rota
museológica delimitada. Aliando o que se tem de cangaço nos estados a serem
estudados, além das rotas já construídas, se faz relevante problematizar as rotas
existentes a partir desta nova construção museal.
O processo de musealização dessa rota, incluindo os locais e celebrações que
eles abrigam, transforma-se em mais uma ferramenta capaz de fomentar e impulsionar a
cultura nordestina, como um elemento crucial na identidade cultural, assim como
relevante elemento simbólico do país.
O início de um projeto da rota museológica do cangaço, partindo de seus
espaços geográficos, busca provocar outros meios de modificar a dimensão real e
simbólica do cangaço, que por sua vez encontra-se na memória coletiva do povo

2229
nordestino, ora como um fenômeno símbolo das reivindicações de direitos de um povo,
ora como um movimento de bandidos, mas que fortaleceu e contribuiu para o que se
conhece hoje como cultura popular nordestina e sertaneja.

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UM MUSEU QUE DÁ SAMBA! A MUSEALIZAÇÃO COMO INSTRUMENTO DE
SALVAGUARDA DAS MATRIZES DO SAMBA CARIOCA
Paula C. Leite e Silva*
Elizabete de Castro Mendonça*
*Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO

Resumo: A proposta de criação do Museu do Samba resulta do processo de Patrimonialização


das Matrizes do Samba do Rio de Janeiro. Soma-se a isto a experiência de ações isoladas que,
ao longo do histórico institucional, buscam aproximações com os processos de Musealização.
Considerar essa articulação entre os processos de Patrimonialização de bens imateriais e de
Musealização permite-nos refletir sobre o papel da Museologia e dos museus no âmbito da
Política Nacional de Patrimônio Imaterial (PNPI). Nesta vertente, a presente investigação tem
como objetivo geral analisar, com base nos embasamentos conceituais do campo da
Museologia, o discurso institucional e as práticas do Centro Cultural Cartola (foco do projeto de
criação do Museu do Samba) no que tange o paralelo entre Patrimonialização e Musealização de
referências culturais imateriais. Para este estudo de caso foram coletadas e analisadas
referências bibliográficas e documentos institucionais, e também realizada observação
sistemática sobre o funcionamento do Museu. Desse modo, observa-se a utilização do processo
de Musealização como estratégia de Salvaguarda para as Matrizes do Samba do Rio de Janeiro e
evidencia-se também o papel que a Museologia e os museus podem desempenhar no âmbito das
políticas públicas para o Patrimônio Imaterial no Brasil, configurado-se como importantes
instrumentos para ações de salvaguarda de bens dessa natureza.
Palavras-chave: Museologia; Patrimônio Imaterial; Salvaguarda; Musealização; Museu do
Samba.

Abstract: The proposal to create the Samba Museum results from the Patrimonialisation
process of the Samba Matrices in Rio de Janeiro. Added to this is the experience of isolated
actions that, throughout the institutional history, seek approximations with the processes of
Musealization. Considering this articulation between the Patrimonialisation of intangible assets
and Musealization processes allows us to reflect on the role of museology and museums in the
scope of the National Policy on Intangible Heritage (PNPI). In this aspect, the present research
has as general objective to analyze, based on the conceptual bases of the field of Museology, the
institutional discourse and the practices of the Cultural Center Cartola (focus of the project of
creation of the Museum of the Samba) in what concerns the parallel between Patrimonialization
And Musealization of intangible cultural references. For this case study, bibliographical
references and institutional documents were collected and analyzed, as well as a systematic
observation about the functioning of the Museum. In this way, the use of the Musealization
process as a Safeguard strategy for the Samba Matrices of Rio de Janeiro can be observed, and
also the role that Museology and museums can play in the scope of public policies for

2233
Intangible Heritage in Brazil, configured as important instruments for actions to safeguard
assets of this nature.
Key-words: Museology; Intangible Heritage; Safeguard; Musealization; Samba Museum.

2234
Introdução

As discussões internacionais a cerca do alargamento da concepção de


Patrimônio Cultural ao longo do século XX culminam numa série de normativas que
pretendem o reconhecimento e acautelamento do Patrimônio Imaterial, resultando na
Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial (UNESCO, 2003). Esse
entendimento implica na construção de políticas culturais que possibilitam a inserção de
Patrimônios antes não valorizados, por serem decorrentes de grupos sociais
historicamente invisibilizados no âmbito das políticas patrimoniais. Mais do que isso,
suscita debates sobre a construção de ações de Salvaguarda27 no contexto brasileiro. A
gênese do Museu do Samba apresenta como fio condutor o processo de
Patrimonialização das “Matrizes do Samba do Rio de Janeiro: Partido-Alto, Samba de
Terreiro e Samba-Enredo”. O Museu, cuja proposta de criação inicia-se em 2013, é
emblemático por se vincular as propostas do Decreto n.º 3.551 de 2000, que, ao
estabelecer o registro, possibilitou o reconhecimento e o acautelamento de Bens
patrimoniais intangíveis e também a efetivação de políticas públicas para o Patrimônio
Imaterial no Brasil. Uma de suas particularidades está no fato de ter sido concebido pelo
Centro Cultural Cartola (CCC), instituição referencial para a compreensão do estudo de
caso ora analisado, pois a partir de sua trajetória e inserção no debate sobre o

27
O termo Salvaguarda, no campo das políticas de Patrimônio Cultural Imaterial, é entendido conforme
preconiza a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial (2003). Segundo Mendonça
(2016), “cabe destacar que existe diferenciação entre o termo Salvaguarda utilizado no âmbito das
políticas de Patrimônio Cultural Imaterial e no contexto específico dos processos de Musealização”.
Frente aos processos de musealização, Salvaguarda é um procedimento de Preservação que inclui ações
de conservação e documentação (Bruno, 1995). Utilizamos nesse trabalho o termo salvaguarda como
sinônimo de Preservação, ou seja, como política maior, que engloba diversas ações, como a conservação,
a pesquisa, o restauro, o tombamento ou registro, a comunicação dentre outras. No âmbito do Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN, o termo salvaguarda é mais utilizado no que diz
respeito à proteção do Patrimônio Imaterial, enquanto o termo preservação seria seu correlato no que
tange ao patrimônio material.

2235
reconhecimento e defesa da memória do samba carioca, impulsiona o nascimento do
Museu do Samba. O CCC nasce com caráter social, de prestação de serviços à
comunidade do entorno, entretanto tinha como principal aspiração o “desejo de romper
com o descaso com a memória do samba, recuperar o protagonismo social da
comunidade sambista e se opor a descaracterização imposta pela indústria cultural e
globalização” (NOGUEIRA, 2014, p.34). Destaca-se pela grande atuação ao lado da
comunidade sambista no processo de registro como Patrimônio Imaterial e Salvaguarda
dos principais elementos que compõem as chamadas Matrizes do Samba Carioca.
O desenvolvimento do presente trabalho se deu por meio de estudo de caso e
para sua estruturação, inicialmente foram coletadas e analisadas referências
bibliográficas que tratam de conceitos fundamentais (como Musealização,
Patrimonialização, Museu e Patrimônio Imaterial) além do histórico do CCC e Museu
do Samba. No segundo momento, foi feito levantamento e análise da documentação
institucional do CCC (idealizador do Museu do Samba) e do Museu do Samba, para
compreensão do contexto de surgimento do museu, seus objetivos e suas atividades.
Foram levantados e analisados também os documentos referentes à preservação,
pesquisa e comunicação. Na etapa subsequente, realizou-se pesquisa empírica - análise
situacional do objeto de pesquisa. Esta etapa abarcou a observação sistemática sobre o
funcionamento do Museu do Samba. Por fim, foram observados os seguintes elementos:
seleção, aquisição, gestão, conservação, catalogação, exposição, publicações.
Estruturamos nossa pesquisa no ambiente teórico da Museologia. Sendo assim,
procurou-se estabelecer as relações existentes entre Patrimonialização e Musealização, a
partir da definição destes conceitos, buscando a compreensão do potencial para efetivar
a Preservação a partir desses processos. Esta concatenação reflexiva busca apoiar-se a
partir da Linguagem de Especialidade do campo da Museologia, entendendo que a
compreensão de sua terminologia permite ao acesso ao conhecimento específico
desenvolvido pelo campo (SANTOS, 2010). Além disso, Lima (2009, p. 61) chama

2236
atenção para o fato de que o “uso adequado da linguagem pode ajudar a alinhar aqueles
dentro do grupo atrás de um compromisso que identifica os valores comuns envolvidas
com a organização. No caso de um museu: o que é, a quem ele serve, e por que ele
existe”. Para compreensão da potencialidade do campo da Museologia em realizar a
Salvaguarda do Patrimônio Imaterial é preciso fazer uma breve análise sobre o processo
de Musealização e suas implicações no que diz respeito à preservação, assim como do
papel da instituição museu. À luz de autores do campo da Museologia, como Desvallés
e Mairesse (2013), Loureiro (2012), Santos e Loureiro (2012), Mendonça (2015), Lima
(2008, 2012, 2014,2015, 2016) e Guarnieri (1990), pretende-se estabelecer um debate
sobre como a Musealização através de sua natureza preservacionista pode incidir como
importante elemento para a realização da Salvaguarda de bens de natureza imaterial. O
museu é concebido como local por excelência de aplicação do processo de
Musealização, objetiva-se contextualiza-lo como local potencial para implementação da
Salvaguarda desses bens, conforme preconiza Carvalho (2011).
A presente investigação tem como objetivo geral a análise do embasamento
conceitual do campo da Museologia presente no discurso institucional e nas práticas do
Centro Cultural Cartola no que tange o paralelo entre Patrimonialização e Musealização
de referências culturais imateriais, foco do projeto de criação do Museu do Samba. Para
tal, pretende-se identificar os procedimentos de Musealização realizados pelo Centro
Cultural Cartola no período de 2006 a 2015; analisar as ações de Musealização
realizados pelo Centro Cultural Cartola, em especial as que fundamentam o projeto de
criação Museu do Samba; e, por fim, analisar as justificativas que direcionaram a
criação do Museu do Samba dentro das ações do Centro Cultural Cartola – em especial
as referentes a proposta de preservação das “Matrizes do Samba no Rio de Janeiro”
como Patrimônio Imaterial.

Fundamentação Teórica

2237
A relação entre a Museologia e os museus com o Patrimônio Imaterial é
consequência do desenvolvimento do processo histórico em que o campo se estrutura e
desenvolve seus modelos interpretativos, sempre afinado com as transformações e
desdobramentos da noção de Patrimônio. Lima (2012), ao contextualizar longa trajetória
que estabelece a relação existente entre Patrimônio – Patrimonialização e Museologia –
museu/Musealização, afirma que sempre houve grande ação do campo museológico em
favor das questões do Patrimônio, e que as áreas apresentam como ponto de
aproximação o debate em torno da Preservação. O alargamento da concepção de
Patrimônio, que passa a incluir não mais somente a tipologia monumento histórico e
artístico, possibilita que o museu passe a figurar como importante agente de Preservação
dentro do processo de Patrimonialização. O museu passa a ter a incumbência da
Salvaguarda para a Preservação, a partir do processo de Musealização, no “qual se
imprime ao Bem Cultural um caráter diverso da sua função original, dotando-o de teor
museológico, colocando-o sob tutela especializada para a proteção e a guarda” (LIMA,
2012, p. 40). Os novos Patrimônios musealizados suscitaram a inserção do intangível no
contexto museológico, compreendido como importante representante de referências
culturais28.
Para esse estudo, o conceito de Patrimonialização será compreendido conforme a
definição de Lima (2012, p.34), segundo o qual trata-se do “ato que incorpora à
dimensão social o discurso da necessidade do estatuto da Preservação”. Para melhor
compreensão desta definição dentro no contexto das políticas de Patrimônio Cultural,
Vianna e Teixeira (2008, p. 122) afirmam que patrimonializar é o ato jurídico através do

28
Arantes (2001) afirma que “no caso do processo cultural, referências são as práticas e os objetos por
meio dos quais os grupos representam, realimentam e modificam a sua identidade e localizam a sua
territorialidade” (ARANTES, 2001:130-131). As referências culturais podem estar em objetos e nas
práticas (performances), caracterizando-se por serem sentidos atribuídos a suportes materiais ou
imateriais, por isso apresentam um caráter múltiplo. Partindo desse entendimento, o Patrimônio Imaterial
traduz-se pelas referências das identidades sociais.

2238
qual “o Estado declara um fato cultural como patrimônio nacional e passa a tratá-lo
como bem cultural de interesse público. Patrimonializar pode ser compreendido como
ato jurídico tanto como político”. Nesse contexto específico, o processo de
Patrimonialização é corroborado a partir de procedimentos documentais, como o
tombamento (no caso de Bens de natureza material), ou o registro (que contempla Bens
imateriais). Grigoleto (2012, p. 65) assevera que “a documentação patrimonial não é um
recurso elaborado simplesmente para registrar ou transcrever o pré-existente, mas para
construir um campo discursivo capaz de outorgar um ato e sustentá-lo”. Ressalta, dessa
maneira, a importância da documentação como instrumento primordial para valoração e
consequente reconhecimento de um Patrimônio em sua institucionalização, pois
documentos patrimoniais materializam valores materiais e imateriais atribuídos.
Torna-se importante salientar que é possível estabelecer afinidades entre as
ações de Patrimonialização e Musealização, principalmente no que diz respeito ao
objetivo de alcançar o propósito da Preservação de referências culturais. Nesse sentido,
segundo Lima (2014)

Preservar como atitude de demanda primeira tornou-se a política que


move as instâncias. Passou a referendar a atribuição de valores
promotores dos processos de Musealização-Patrimonialização e a
permitir assegurar a legitimidade da ação que imprime a figura do que
reconhece culturalmente como um Bem. (LIMA, 2014, p. 4348)

Este entendimento destaca o entrelace (LIMA, 2012; 2014) entre


Patrimonialização e Musealização, a partir do objetivo de alcançar a Preservação.
Autores como Desvallées e Mairesse (2013), Lima (2012, 2014), Mendonça (2015)
sublinham que esses processos de institucionalização de bens culturais são
caracterizados por métodos e finalidade comuns. Abarcam a valorização seletiva do
objeto, e, ao conferir valor a determinada referência cultural em detrimento de outra,
apresentam-se como práticas excludentes e de poder. No entanto, um aspecto
importante é o fato de que a Patrimonialização não se dar exclusivamente no âmbito da

2239
perspectiva museológica. Posto que, o entrelace entre a Musealização e a
Patrimonialização encontra-se no objetivo de realizar a Preservação, musealizar bens
culturais já patrimonializados justifica-se pelo fato de que “o ato de musealizar o
patrimônio historicamente tornou-se uma ferramenta auxiliadora e fomentadora do
processo de Patrimonialização” (MENDONÇA, 2015, p.95). Esta perspectiva ressalta a
importância do processo de Musealização como elemento capaz de intensificar a
Preservação.

O conceito de Musealização é definido por Desvallés e Mairesse (2013) como


processo científico, não se limitando na simples transferência de um objeto para os
limites físicos de um museu. Na perspectiva dos autores, o trabalho de musealizar
compreende necessariamente o conjunto das operações do museu, que consiste em
“atividades ligadas à seleção, à indexação e à apresentação daquilo que se tornou
musealia” (DESVALLEÉS;MAIRESE, 2013, p. 58). Ressaltam, ainda, que a
Musealização apresenta um caráter de Preservação, por conter atividades relacionadas à
seleção, aquisição, gestão e conservação.
Ao enfatizar o papel da Musealização como instrumento operacional da
Museologia, Guarnieri (1990) aponta que essa ação busca abranger os testemunhos do
homem e seu meio (natural ou urbanizado) que tenham significação. Reforça que a
“musealização se preocupa com a informação trazida pelos objetos (latu sensu) em
termos de documentalidade, testemunhalidade e fidelidade” (1990, p. 8, grifo do autor),
com a pretensão de passar informações à comunidade. Seguindo esse ponto de vista,
Bruno (1995, p.123) caracteriza a Musealização como os procedimentos de
documentação, assim como os de pesquisa, conservação e comunicação que integram
uma cadeia operatória. A execução desses procedimentos em conjunto tem como
finalidade a gerência e a Preservação de referências culturais, ação que permite a
geração e difusão de conhecimento.

2240
Comumente o sentido de Preservação está relacionado à proteção, garantia de
integridade e salvaguarda. Este conceito aplicado às políticas patrimoniais configura-se
como ações que propiciem a transmissão dos valores culturais às outras gerações, ou
seja, a perpetuação da herança cultural. Pinheiro e Granato (2012, p. 31) afirmam que o
termo remete a atitude que objetiva a manutenção física de determinado Bem Cultural,
mas que também incidi sobre um maior conhecimento sobre o mesmo, abrangendo,
assim, “a documentação, a pesquisa em todas as dimensões, a conservação e a própria
restauração [...]”. No âmbito da Museologia e dos museus, Ferrez (1994, p.65) afirma
que a função de Preservar incorpora ações de coleta, aquisição, armazenamento,
conservação, restauração e documentação, com vistas à pesquisa e comunicação. Com
base nessa perspectiva, a Preservação pode ser concebida de maneira ampla, abrangente,
pois inclui o conjunto de ações voltadas para a manutenção de um determinado Bem
Cultural, desde os instrumentos legais que o protegem até os mecanismos e as
intervenções que colaboram para sua integridade, passando pelas ações de
documentação, destinadas ao registro e à transferência de informações.
(SANTOS;LOUREIRO, 2012, p.50)
Ao refletirmos sobre a potencialidade do campo da Museologia para a realização
de ações que propiciem a Salvaguarda do Patrimônio Imaterial, tomamos como ponto
de partida a assertiva de Meneses (2009) de que o Patrimônio Cultural tem,
necessariamente, como suporte vetores materiais, desconsiderando a existência de uma
suposta dicotomia entre o tangível e intangível. De acordo com o autor, “se todo
patrimônio material tem uma dimensão imaterial de significado e valor, por sua vez
todo patrimônio imaterial tem uma dimensão material que lhe permite realizar-se”
(MENESES, 2009, p. 31). O entendimento de que são as práticas sociais que atribuem
os sentidos, significações e valores aos vetores materiais, sendo assim, tangível e
intangível são indissociáveis, permite conceber a Musealização como estratégia de
Preservação do Patrimônio Imaterial. Lima (2014) esclarece que:

2241
E ao tratarmos de preservação não podemos esquecer que o conceito
de preservar que entendemos também se estende ao contexto
informacional, portanto, abrange o que se reconhece como
preservação de Bens Culturais musealizados representados no sentido
tradicional do contexto da materialidade e, de igual modo, como
preservação das informações. (LIMA, 2014, p. 4341)
O sentido alargado que o processo confere a Preservação, devido sua natureza
infocomunicacional - que permite a integração mútua entre tangível e intangível ao
considerar as informações intrínsecas e extrínsecas contidas na estrutura informativa do
objeto de museu (FERREZ, 1994, p. 66), o torna um potente meio para Salvaguarda de
bens de natureza imaterial. Por esse ângulo, Santos e Loureiro (2012, p. 51) concebem a
Musealização como estratégia de Preservação, compreendendo que esta não visa apenas
“garantir a integridade física de uma seleção de objetos, mas também promover ações
de pesquisa e documentação voltadas à produção, registro e disseminação das
informações a eles relacionadas, com vistas à transmissão a gerações futuras”. Dessa
maneira, a Musealização propicia o acesso a partir do desenvolvimento de pesquisas, de
diferentes pontos de vista, indagações inéditas, proporcionando a produção de novas
informações, caracteriza-se por ser um instrumento que possibilita a Preservação, mas
esta compreendida em sentido mais amplo e total.
Para além dos procedimentos operacionais contidos no processo de
Musealização, cabe também destacar o papel político do processo. Guarnieri (1990)
reforça que Musealização pressupõe Preservar, e esta ação aplicada ao patrimônio
cultural é um ato e um fato político, pois através da Musealização a Preservação
exprime a atribuição de significados a objetos que se convertem em Patrimônio
Cultural. A autora ressalta que a Preservação denota aspectos ideológicos diversos, e no
que tange a ação museológica, ao informar para agir “reaproxima objetos e homens
(Homem e Realidade), revitalizando o fato cultural” (Ibid., p.10). Subjacente ao
processo de Preservação há ainda a construção de uma “memória” que possibilita a
existência de identidade cultural, “algo extremamente ligado à auto-definição, à

2242
soberania, ao fortalecimento de uma consciência histórica” (Ibid.). A partir desse
prisma, musealizar Bens Culturais de natureza imaterial significa, então, atitude política
no sentido do reconhecimento da diversidade cultural e Preservação de elementos da
cultura de grupos tradicionais e populares historicamente alijados do processo de
formação da memória e identidade das nações. Em outras palavras, contribui para a
formação de outra memória, de outra herança patrimonial, fundamentada nos elementos
da cultura popular.
Nesse contexto, a Musealização pode ser traduzida como uma forma de
intervenção, consistindo numa atribuição de valor, um juízo engendrado pelo campo
cultural ao “reinterpretar as manifestações culturais”, tendo em vista sua “inserção na
categoria de Bem Cultural”, conforme elucida Lima (2015, p. 387). Consequentemente,
o Bem Cultural é registrado como “elemento possuidor de caráter diferencial”, sendo
musealizado a partir do critério de representatividade para o grupo em questão. A autora
enfatiza ainda que nesse processo, as instâncias de legitimação cultural desempenham
papel fundamental por classificar e definir categorias, além de registrarem e
estabelecerem diretrizes e normativas para interpretação e uso (Ibid.). É importante
ressaltar que a Musealização ao institucionalizar, sob o olhar da Museologia, os bens já
patrimonializados, dota-os de outros usos e sentidos, colocando-os sob o amparo da
instituição museológica, que passa a ser responsável pela proteção de sua integridade
física, informacional e sua comunicação a partir de então. Essa percepção evidencia
ainda mais o entrelace entre as ações de musealizar e patrimonializar, já que:
Musealização e Patrimonialização são processos gestados por
estatutos de perfil imposto, reconhecidos e aplicados por instâncias
culturais personificadas como agentes especializados e
institucionalizados para trato do tema. São, ao mesmo tempo,
instrumentos do poder simbólico cuja presença é exercida pela
qualificação emprestada às instâncias para atuar como representantes
das necessidades e aspirações vocalizadas por inúmeros grupos sociais
nos moldes comunitários, associativos, profissionais, entre outros, aos
quais foi relacionada a figura da identidade cultural (pertencimento).
(LIMA, 2014, p. 4345)

2243
Como importante instância de legitimação cultural no contexto de políticas
patrimoniais destaca-se a instituição museu, devido sua singularidade de lugar onde a
memória se corporifica e se criam discursos. O museu apresenta importante papel como
promotor de Preservação patrimonial, caracterizando-se como “Instituição Cultural de
Memória” (LIMA, 2008, p.37), e, como tal, possui relação intrínseca com os elementos
estruturadores da Memória Social. Mais precisamente, é importante instituição
responsável por tutelar a proteção e divulgação das informações referentes aos bens
culturais. Essa atuação confirma a Preservação como sua função primordial,
constituindo-se como cerne de sua ação. Operações como aquisição de acervo, pesquisa,
conservação, documentação e comunicação são facetas de suas atividades que devem
estar subordinados ao seu caráter preservacionista (BRUNO, 1997, p. 25).
Diante da emergência das exigências colocadas a partir dos novos sentidos do
termo Patrimônio e das crescentes transformações estruturais da sociedade, é possível
reafirmar aos museus um papel estratégico na valorização integrada do Patrimônio
Cultural que inclua o imaterial, através dos elementos de Musealização. Carvalho
(2011), sob a influência dos desdobramentos da Convenção para a Salvaguarda do
Patrimônio Cultural Imaterial, ao analisar a relação entre o Patrimônio Cultural
Imaterial (PCI) e os museus, assegura que o alargamento da noção de Patrimônio
impulsionou o mesmo com o campo de atuação do museu, que não mais se limita
apenas aos aspectos materiais de suas coleções, mas sim numa visão integrada e mais
completa que abarca o material e imaterial. Nesse sentido, sua reflexão tem por objetivo
afirmar que o museu configura-se como instituição estratégica para implementação de
Planos de Salvaguarda do PCI, partindo da compreensão de que sua trajetória o coloca
como local que apresenta possibilidades para uma abordagem integrada de ações
voltadas a valorização, Salvaguarda e difusão de referências culturais imateriais
patrimonializadas. A fim de tornar esse ponto mais preciso, frisa que a mudança de

2244
discurso do ICOM (Conselho Internacional de Museus)29 corrobora essa ideia, pois a
partir da alteração da definição de museu, em 2007, é nítida a tentativa de sobrepujar
uma tradição de atuação dos museus profundamente arraigada na cultura material –
incluindo em sua definição os testemunhos imateriais (ICOM, 2007).
Essa nova demarcação da abrangência de funções de um museu ao incluir os
testemunhos imateriais em seu escopo, revela a importância dos museus na Preservação
de bens dessa natureza. O que é importante considerar é que os museus “poderão ser
uma das instituições mais bem posicionadas para implementar estratégias de
salvaguarda do PCI” (CARVALHO, 2011, p. 101). Contudo, é necessário lembrar que a
Salvaguarda do Patrimônio Imaterial não apresenta centralidade na formação de
coleções de museus. O grande desafio colocado por essa categoria de Patrimônio é a
realização de ações de pautadas nas comunidades envolvidas.

Resultados / Discussão
Localizado na Mangueira, um dos redutos mais tradicionais de sambistas no Rio
de Janeiro (IPHAN, 2014b, p. 91), o Museu do Samba é gestado após a
Patrimonialização das “Matrizes do Samba do Rio de Janeiro: Partido-Alto, Samba de
Terreiro e Samba-Enredo”, evidenciando as novas políticas públicas para a área da
cultura, em especial, para as áreas de Patrimônio Imaterial e de museus, caracterizando-
se, assim, como importante reflexo das transformações ocorridas na área. Nasce das
aspirações do Centro Cultural Cartola30 (CCC) em efetivar e fortalecer ações de

29
Mendonça (2016, p. 12) esclarece que a trajetória da mudança de perspectiva do órgão é marcada por
documentos de referência “como a Carta de Shanghai (2002) e a Declaração de Seoul (2004)”, por
atribuir “competências aos museus na participação da salvaguarda do Patrimônio Imaterial”.
30
A pesquisa ora apresentada constatou que a tentativa de implementação do referido Museu acarretou
sobreposição de ações entre CCC e o Museu do Samba Carioca, ficando este diluído dentro do primeiro,
fato que não possibilitou sua real efetivação. No entanto, existem elementos que confirmam sua
existência, ou tentativa de implementação a partir de 2013, como minuta do “Regimento Interno do
Museu do Samba Carioca”, placa fixada na fachada e legenda nas exposições com as inscrições “Museu
do Samba Carioca”, além de ter sido noticiado pela mídia.

2245
salvaguarda do bem titulado. Sua concepção inicial como “Museu do Samba Carioca”,
em 2013, pode ser constatada a partir da implantação do Plano de Atividades do
“Museu do Samba Carioca”, com apoio da Secretaria do Estado de Cultura (CCC, 200-
).
Os desdobramentos do PNPI estimularam a comunidade sambista do Rio de
Janeiro, que, capitaneada pelo CCC, foi responsável pelo lançamento de diversas ações
que vislumbravam a titulação do Samba Carioca como Patrimônio Imaterial,
pretendendo sua valorização e salvaguarda. Nessa ação é possível reconhecer o
protagonismo dos detentores decorrente das disposições legais sobre bens de natureza
imaterial, tanto no processo de reivindicação do reconhecimento de seu Patrimônio,
quanto na concepção e estruturação de ações de salvaguarda para o mesmo. Mais do que
isso, reforça a ressonância (GONÇALVES, 2007) do patrimônio em questão junto a um
setor específico da sociedade carioca.
A investigação dos eventos que levaram à Patrimonialização das Matrizes do
Samba Carioca permite identificar a utilização de estratégias de articulação entre os
processos de Patrimonialização e de Musealização, culminando na criação do Museu do
Samba. Ao refletirmos sobre qual papel o campo pode desempenhar nesse contexto,
podemos afirmar que a Museologia e os museus têm se configurado como importantes
instrumentos nas políticas de Patrimônio Imaterial, ocupando lugar de destaque no que
diz respeito a ações de Salvaguarda de bens dessa natureza. Nessa perspectiva, Primo
(2006, p. 91) aponta que no atual contexto de políticas públicas a Museologia pode ser
concebida como recurso para a preservação, a comunicação e a divulgação dos valores
culturais. Seu ponto de vista compreende a Museologia como importante artifício
cultural a serviço da sociedade, num contexto de lógica de expansão e criação de novos
valores, ou de reforço dos valores culturais locais. Concebe, assim, o campo da

2246
Museologia como espaço de ação de políticas públicas, configurando-se como
instrumento estratégico das políticas culturais contemporâneas.
O primeiro passo é dado em 2004, com o projeto “Samba Patrimônio da
Humanidade”, que teve por objetivo o encaminhamento à UNESCO de uma proposta de
transformar o samba carioca em Obra-prima do Patrimônio Oral e Imaterial da
Humanidade (CCC,200-). Apesar de não obter êxito, esse projeto iniciou o
levantamento de fontes documentais sobre o tema e, concomitantemente, a fomentação
de ação de cunho Museológico, a partir da elaboração de exposição sobre a história do
samba do Rio de Janeiro. No ano seguinte, em 2005, foi celebrado convênio entre o
Iphan e o CCC, com participação da Fundação Cultural Palmares e Secretaria Especial
para Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), cujo objetivo foi realizar pesquisa para
instrução de processo de registro do Samba Carioca como Patrimônio Imaterial. Essa
parceria possibilitou a formação de um banco de dados e a montagem da exposição de
longa duração intitulada “Samba Patrimônio Cultural do Brasil”, inaugurada em
dezembro de 2006. Nessa exposição, é clara a utilização de ações de cunho
Museológico para salvaguarda, objetivando a disseminação, já que sua narrativa busca
abordar os primórdios do samba carioca exaltando sua origem na cultura afro-brasileira
e concebendo-o como importante símbolo de identidade nacional. A análise do
Catálogo da Exposição (CCC, 2008) demonstra que foi considerada elemento
estratégico na campanha pelo reconhecimento das Matrizes do Samba Carioca como
Patrimônio Imaterial.
Como importante resultado dessa campanha, há a elaboração de um Dossiê, cujo
principal objetivo foi o registro do Bem “Matrizes do Samba do Rio de Janeiro: Partido-
Alto, Samba de Terreiro e Samba-Enredo”, que em 2007 foi considerado Patrimônio
Cultural Brasileiro e inscrito no Livro de Registro de Formas de Expressão do IPHAN.
As Recomendações de Salvaguarda contidas no “Dossiê das Matrizes do Samba do Rio
de Janeiro: Partido-Alto, Samba de Terreiro e Samba-Enredo” apresentam reivindicação

2247
de ações que se pode atribuir caráter museológico, principalmente no que diz respeito à
transmissão do saber. Esse documento sugere além de pesquisa e documentação, a
reunião de acervo específico com intuito de promover o “estímulo e apoio à criação e
capacitação de centros de memória e referência do samba, dentro das comunidades e/ou
na Cidade do Samba” (IPHAN, 2014b, p. 119).
Em 2009, partindo dessa premissa e com o apoio do Iphan, que procurava
ampliar a construção de políticas públicas de Salvaguarda de bens registrados, o CCC
passou a Pontão de Memória das Matrizes do Samba Carioca, instituindo-se como
Centro de Referência de Pesquisa e Documentação do Samba do Rio de Janeiro
(NOGUEIRA, 2015, p. 122). No mesmo ano, o CCC realizou o “II Seminário Samba
Patrimônio Cultural do Brasil”, ocasião na qual foram levantadas diretrizes iniciais para
elaboração do Plano de Salvaguarda das Matrizes do Samba Carioca. Nesse documento,
assinalamos como de suma importância o ponto “Produção, registro, promoção e apoio
à organização”, por apresentar proposta de criação, produção, apresentação e difusão
das Matrizes do Samba Carioca com objetivo de realizar “pesquisa, reflexão e
documentação; aquisição, organização, gestão, manutenção e recuperação de acervos”,
assim como “montagem de exposições; formação de novos públicos; transmissão do
saber e troca de experiências” (NOGUEIRA, 2009, p. 45, grifo nosso). Note-se que as
ações destacadas propostas pela instituição com o intuito de realizar Salvaguarda efetiva
do Bem em questão, vão claramente ao encontro do campo da Museologia, pois
fundamentam-se em elementos como pesquisa, documentação, gestão de acervo,
exposição, visando disseminação, aproximando-se, assim, da Musealização.
O processo de Patrimonialização das Matrizes do Samba Carioca confere novas
linhas de atuação ao CCC, principalmente no que diz respeito às novas funções
designadas relacionadas à elaboração e implementação de um plano de salvaguarda para
o Bem titulado. Como consequência direta, em 2013 é iniciado o processo de criação do
Museu do Samba. Mendonça (2015, p. 96) aponta que após cerca de dois anos de

2248
idealização, perspectivas foram construídas e reconstruídas até o lançamento oficial da
instituição Museu do Samba, em 13 de agosto de 2015.
O minucioso exame da proposta de criação do Museu do Samba a partir do
discurso institucional explicita uma perspectiva de fundamentação da instituição
ancorada nos preceitos da Museologia, apresentando reivindicação de embasamento
conceitual no campo. Cabe assinalar que o histórico apresentado confirma que as
justificativas e o embasamento conceitual que direcionaram a criação do Museu são
desdobramentos da proposta de Salvaguarda das Matrizes do Samba Carioca como
Patrimônio Imaterial.
Ao balizarmos o debate aqui proposto a partir das narrativas institucionais, o
pensamento de Nilcemar Nogueira (2015), então Diretora Executiva do Museu do
Samba, torna-se essencial para a análise da formação do Museu em questão. Além de
detentora e herdeira de importante memória do samba – devido às figuras de seus avós
D. Zica e Cartola, distingue-se por ser uma agente social reconhecida pela comunidade
sambista. Sua tese de doutorado, intitulada “O Centro Cultural Cartola e o Processo de
Patrimonialização do Samba Carioca”, fornece elementos para a compreensão da
transformação do CCC em Museu do Samba e a motivação desta reconfiguração.
Destaca que o processo de Patrimonialização das Matrizes do Samba Carioca delineou
as ações do CCC, que passa a ser responsável por execução de ações de salvaguarda
para o Bem titulado. Reforça, ainda, que a instituição ficou incumbida de apresentar
proposta de trabalho ancorada nas ações de resgate, registro e difusão, enfatizando que a
partir da Patrimonialização “o Centro Cultural Cartola desenvolve um trabalho de
salvaguarda do samba, uma política do Ministério da Cultura de proteção a bens
imateriais inscritos nos Livros de Bens Patrimoniais do Brasil” (NOGUEIRA, 2015,
p.124).
O novo cenário formado em decorrência da Patrimonialização permite que a
instituição Museu passe a ser vislumbrada como local potencial para aplicação de

2249
Salvaguarda do Patrimônio em questão, confirmando-a como instituição estratégica para
implementação de Planos de Salvaguarda, conforme sugere Carvalho (2011). Nesse
sentido, Nogueira (2015, p. 208) afirma que o Museu do Samba passa a representar um
“espaço que sensibiliza para a reflexão da importância do patrimônio imaterial como um
modo de viver de seus detentores, para a ameaça a que estão expostas essas expressões
culturais, pela descaracterização ou pela perda de sua essência”, desempenhando, assim,
relevante papel social através de atividades de “documentação, estudos, exposições,
educação patrimonial, seminários”. Ainda sobre a importância do museu, Guarnieri
(1990) nos chama atenção para o fato de ser o cenário institucionalizado que fornece a
base necessária à atividade museológica e, consequentemente, a Musealização.
Nos discursos institucionais é perceptível a reivindicação da Musealização das
Matrizes do Samba Carioca como importante meio de Preservação, por possibilitar a
realização de projetos de identificação, documentação, repasse de saberes e
disseminação de informação. Segundo Nogueira,
Tendo [o Centro Cultural Cartola] criado o Museu do Samba Carioca,
fomentou o surgimento de um espaço de memória social que revela a
história do samba como a “expressão cultural” que melhor representa
a alma brasileira em sua totalidade coletiva.
[...] A musealização, utilizada como estratégia de preservação,
objetiva não apenas garantir integridade física de uma seleção de
objetos, mas promover ações de pesquisa e documentação voltadas à
produção, registro e disseminação de informações relacionadas ao
samba, com vistas a fazer conhecê-lo bem nas suas características
fundamentais e garantir a transmissão de sua essência a gerações
futuras. (NOGUEIRA, 2014, p. 35, grifo nosso)
A concepção apresentada evidencia a apropriação da Musealização como
poderoso artifício para a execução da salvaguarda do Bem titulado, ressaltando a
potencialidade preservacionista inerente ao processo. Além disso, traz a tona o
importante debate sobre sua aplicabilidade ao Patrimônio Imaterial, ao reforçar que sua
natureza infocomunicacional a torna forte instrumento para efetivação de ações de

2250
salvaguarda. Também ressalta a importância da Musealização como ação política, por
possibilitar um processo de Preservação que recai sobre a construção da memória e
reforço da identidade cultural da comunidade sambista do Rio de Janeiro, contribuindo,
assim, para a construção de sua herança patrimonial e reconhecimento em âmbito
nacional.
O contexto apresentado refere-se a instituição em seu período de construção,
mas que apresenta forte intento em estruturar-se enquanto museu. Até a fundação do
Museu do Samba (2015) apresentou três exposições de longa duração e uma temporária,
a saber: “Simplesmente Cartola” (2005), “Samba Patrimônio Cultural do Brasil” (2006),
“Dona Zica 100 anos” (2012) e “Cenários da Mangueira (2014), respectivamente.
Apesar da não existência de definição de política de acervo, este encontra-se em estágio
embrionário e tem sido formado principalmente através de doações espontâneas, sendo
composto por acervo de artes plásticas, acervo de clipping, acervo de croquis, acervo
de fotos e vídeos, acervo de LPs, acervo de manuscritos, acervo de revistas, acervo de
VHS, acervo hemeroteca e depoimentos da personagens emblemáticos da comunidade
sambista, assim como de objetos pessoais que contam a trajetória de sambistas.
Apresenta também biblioteca especializada em samba voltada para o público em geral.
Observa-se que o acervo do Museu do Samba apresenta perfil de constante expansão,
justamente pela natureza dinâmica do Patrimônio em questão. No que tange a
documentação, há tentativas não padronizadas de catalogação isoladas que não
contemplaram ainda a totalidade das coleções. Relevante ponto a se ressaltar é a
existência de Setor de Pesquisa com profissionais especializados, existência de
publicação denominada “Samba em Revista”, visitas mediadas com o público e
desenvolvimento de projetos educativos com as escolas do entorno.
Importante frisar que as “Matrizes do Samba do Rio de Janeiro” foram
registradas como Bem Cultural no “Livro de Registro das Formas de Expressão”, pelo
seu perfil performático, fato que traz muitos desafios ao Museu do Samba, já que tem

2251
como desafio ultrapassar a Musealização do objeto em si. O Museu tem respondido a
esta demanda com algumas ações pontuais em seu espaço, como, por exemplo, a roda
de Samba de terreiro, que compõe o projeto 'Memória das Matrizes do Samba do Rio de
Janeiro', conduzido pelo Museu com o objetivo de resgatar e incentivar a preservação e
novas produções deste gênero musical. Realizada no espaço do Museu e aberta ao
público configura-se como local de sociabilidade da comunidade sambista. Além da
produção e apreciação musical, os participantes podem degustar pratos e bebidas, como
feijoada e cerveja, tradicionalmente relacionados ao mundo do samba. Trata-se de uma
ação criativa que tem como meta a articulação do detentor do conhecimento e suas
referências culturais patrimonializadas. O evento funciona como ponte para a geração
do registro tendo como finalidade o processo de Musealização dos depoimentos dos
sambistas participantes.

Considerações Finais
O debate teórico ao longo do texto reforça o entendimento de que a execução do
conjunto de procedimentos que compõem o processo de Musealização viabiliza a
efetivação da Preservação de Bens Culturais. Essa potencialidade preservacionista
inerente ao escopo da Museologia pode ser um poderoso artifício nas políticas
patrimoniais direcionadas ao Patrimônio Imaterial, principalmente por seu caráter
infocomunicacional. O ponto de aproximação entre a Museologia e a Salvaguarda do
Patrimônio Imaterial está na ação de musealizar, partindo da compreensão de que a
Preservação é um desdobramento deste processo que não é centrado somente nos
aspectos materiais dos objetos.
Ao refletirmos sobre qual papel a Museologia e os museus podem desempenhar
no âmbito das políticas públicas para o Patrimônio Imaterial no Brasil, a partir do
estudo de caso do Museu do Samba podemos afirmar que têm se configurado como
importantes instrumentos, ocupando lugar de destaque no que diz respeito a ações de

2252
Salvaguarda de bens dessa natureza. Observa-se que o campo apresenta significativa
potencialidade para efetivar e intensificar ações de Salvaguarda do Patrimônio
Imaterial, através da elaboração e execução de estratégias de articulação entre os
processos de Patrimonialização e de Musealização. O processo de criação do Museu do
Samba vem ilustrar esse quadro. Seu surgimento está relacionado a campanha pela
titulação das Matrizes do Samba do Rio de Janeiro como Patrimônio Imaterial.
Conforme discurso da instituição, esta campanha iniciada em 2004 pelo CCC lança mão
de uma gama de ações Museológicas para legitimar a Patrimonialização, que culminam
na proposta de criação do Museu. Após a titulação, essas ações continuam encadeadas e
resultam, em 2013, no primeiro projeto de estruturação do Museu do Samba Carioca,
revisto em 2015 como Museu do Samba. A Musealização das Matrizes do Samba é tida
como fator que possibilita a realização de projetos de identificação, documentação,
repasse de saberes e disseminação de informação. Esse contexto evidencia como a
Museologia e os museus podem contribuir para a salvaguarda do Patrimônio Imaterial,
através do processo de Musealização e sua natureza infocomunicacional.
A construção do Museu do Samba, então, configura-se como poderoso artifício
para execução do projeto de Salvaguarda e, principalmente, de real estruturação da
instituição. Mais do que isso, reforça o potencial que a Museologia e os museus
possuem para efetivar políticas preservacionistas relacionadas ao Patrimônio Imaterial.
Além disso, o processo em questão evidencia a inserção do campo nas políticas
brasileiras direcionadas a bens de natureza imaterial, trazendo subsídios para futuras
reflexões. No entanto, o Museu do Samba passa a ter um grande desafio: ser um espaço
apropriado pelas múltiplas comunidades sambistas.

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2257
ESCOLAS DE SAMBA E PATRIMÔNIOS AFETIVOS: ENTRE VIDA E
CARNAVAL.
Suzete Montalvão Fraiha*
*Universidade Federal do Pará

Resumo: O presente trabalho tem como objeto de estudo os acervos de duas escolas de samba
de Belém: o Rancho não Posso me Amofina e a Embaixada Império Pedreirense. Trata-se de um
olhar museológico sobre os acervos de samba abrigados nas sedes e nas casas de integrantes
dessas agremiações. Procuramos pensar as relações estabelecidas com os objetos
salvaguardados, as narrativas de memórias produzidas através dos objetos e dos significados
neles contidos. O propósito refletir sobre acervos e constituição de acervos para além dos muros
dos museus, entender o especial processo de musealização envolvido na seleção, guarda,
conservação e exposição das “coisas do samba”, feito pelas escolas de samba em suas sedes e
por sambistas nas residências particulares. A pesquisa atenta para as motivações, os sentimentos
que levaram a constituição e salvaguarda dos acervos. O trabalho se desenvolveu através de
pesquisa em campo com entrevistas semiestruturada com os brincantes das escolas de samba de
Belém e dos registros de imagens para análise dos resultados pesquisados.
Palavras chaves: Escola de Samba, acervo, memória, afetivo e museu

Abstract: The present work has as object of study the collections of two schools of samba of
Belém: the Rancho não Posso me Amofina and the Embaixada Império Pedreirense. It is a
museological look at the samba collections housed in the headquarters and houses of members
of these groups. We try to think of the relations established with the safeguarded objects, the
narratives of memories produced through the objects and the meanings contained therein. The
purpose is to reflect on the collection and the creation of collections beyond the walls of
museums, to understand the special process of musealization involved in the selection, guard,
conservation and exhibition of "samba things", done by samba schools at their headquarters and
by samba artists in private residences. The careful search for the motivations, the feelings that
led to the constitution and safeguard of the collections. The work was developed through field
research with semistructured interviews with the students of the samba schools of Belém and of
the records of images to analyze the results researched.
Keywords: School of Samba, collection, memory, affective and museum

2258
Introdução
O museu pode ser visto como um espaço de salvaguarda de objetos,
agenciamento da cultura material e sua transformação em memória. Todavia, nesta
pesquisa partimos do princípio de que outros espaços têm a mesma potência.
Movimentos de aquisição, descarte e salvaguarda, de transformação de coisas
(MILLER, 2013) em fontes de narrativas memoriais que ocorrem fora dos museus. Com
um olhar sensível podemos pensar nessa espécie de musealização da vida cotidiana
ainda nas nossas casas, onde selecionamos o que guardar e o que se desfazer, o que
lembrar e o que esquecer, transformando, por conseguinte, o sentido das coisas. Há uma
musealidade, então, nos processos de constituição de memórias e de patrimônios
afetivos que sustentam nosso “museu particular”; nossa museália é acumulada e
ressignificada ao longo da vida sem que percebamos o conteúdo museológico disso.
Desse modo, pensamos que as manifestações da cultura popular são boas para
pensar o que temos chamado de uma espécie de musealização de objetos fora dos
museus. Escolhemos as escolas de samba da cidade de Belém do Pará levando em
consideração a força dessas agremiações na cidade e sua expressividade diante de outras
brincadeiras de carnaval paraenses. As escolas de samba de Belém constroem ao longo
de anos muitas histórias, enredos, música, fantasias, encontros, enlaces, desencontros e
desafetos, tudo traduzido nas coisas que guardam e nas narrativas, em constante
transformação, que eles detêm.
Durante a construção do carnaval do ano seguinte, desde a concepção do
enredo ao desfile na Aldeia Cabana, o que a antropóloga Maria Laura Cavalcanti (1995)
chama de “processo ritual do desfile”, muitas coisas são produzidas como figurinos,
adereços e carros alegóricos, um trabalho coletivo. Tais coisas, no entanto, em poucos
minutos após o desfile perde sua função original, e quando não são descartados
definitivamente, ou guardados para reaproveitamento no desfile do ano seguinte, será
salvaguardado como objeto de memória, dentro da escola de samba ou na casa dos

2259
brincantes de samba, ganham a nova função. A museologia, como área do
conhecimento preocupada com o patrimônio e a memória pode contribuir para analisar
o lugar das coisas na vida social das escolas de samba e de seus componentes. As coisas
ocupam não apenas o espaço físico da escola ou da casa, mas são elos materiais entre o
passado e o presente.
Ao adentrar no universo do carnaval, nas sedes das escolas de samba de Belém
escolhidas para a pesquisa, nos deparamos não apenas com sedes sociais onde
acontecem festas, ensaios e projetos sociais, elas são verdadeiros espaços de memória
com coisas, testemunhos materiais, espalhados por todos os lados, das paredes aos
armários. Guardam memórias de uma vida de samba desconhecida por muita gente da
cidade, de várias vidas que se conectaram pelo carnaval e agora também pelas memórias
de carnaval. Despertam narrativas, biografias, fatos e versões, falam de gente e de
Belém. As sedes, grandes artefatos, transformam-se em lugares de abrigo para acervos
constituído de modo intuitivo, numa musealização possível, irrefletida, orgânica.
Entretanto, tais acervos estão articulados com outros acervos, àqueles
guardados na casa dos brincantes e ex-brincantes, que misturam com mais potência as
memórias afetivas, particulares, e as coletivas, compartilhadas. Roupas, fotografias,
documentos, adereços que dizem respeito a carnavais específicos, quando a escola
ganhou ou perdeu, mas também dizem respeito às memórias indivíduas, ao que o
brincante viveu.
A pesquisa como objetivo principal iluminar a existência desses acervos, ou de
um grande acervo interligado que se ramifica e se instala nas sedes das escolas de
samba e nas casas dos brincantes. Como se constitui, quais objetos são guardados, quais
histórias abrigam, ou, em suma, iluminar processos de produção de memória que se
revelam nessa espécie de musealização fora dos museus. Atentar para as transformações
de sentidos de um objeto de carnaval que passa a ser objeto de memória, as motivações
e sentimentos que levaram ao processo de seleção, de salvaguarda e exposição nos

2260
espaços das escolas de samba e locais privados como salas, quarto, gavetas e armários
das residências dos sambistas, evidenciando, assim, as relações afetivas que se
estabelecem entre o colecionador e o objeto.
Para esta pesquisa seguimos as pistas deixadas por Mário Chagas (2002) que
também esteve atento aos processos de produção de memória nas escolas de samba.
Para ele o patrimônio cultural da escola de samba é a pessoa e ainda o espaço (a
quadra), a materialidade (o pavilhão, o instrumento, a fotografia...), e a imaterialidade
(as relações, as casas, as amizades, o amor...). O patrimônio das escolas de samba, para
Chagas, “é preservado dentro e fora dos sambistas.”.
Estamos ainda alinhados com o trabalho do antropólogo Vinícius Natal (2010 e
2016) que realizou pesquisas sobre memória e escola de samba a partir de acervos do
departamento cultural do Acadêmicos do Salgueiro (RJ) e na casa de um dos fundadores
(o único ainda vivo), Djalma Sabiá, detentor de muitas coisas com as quais promove o
processo rica e complexo de fusão entre as memórias indivíduas de sua vida de samba e
das histórias do carnaval do Rio de Janeiro e do Salgueiro. A ideia de Natal é entender
tanto a sede da Escola quanto a casa de Djalma como lugares de elaboração de memória
e constituição de acervo.
Também alinhados coma a ampliação do conceito de objeto, inadvertidamente
proposto por Daniel Miller (2013), a proposta de coisas atende à variedade de elementos
que fazem parte desses acervos. Miller (2013) faz pensar além da materialidade sem
perdê-la de vista, o que ajuda a reflexão museológica, pois é a circulação de coisas cria
a sociedade. As coisas guardadas mostram que é possível viver o carnaval não só nos
poucos minutos do desfile na avenida do samba, mas ao longo de todo o ano. Diz
respeito às histórias vividas, aos afetos construídos, a convivência dentro dos barracões,
no bairro, nas casas dos sambistas, nas reuniões, nas relações sociais. As coisas que
circulam animam o mundo social que agita parte da cidade a cada ano.

2261
Ao adentrar na casa dos sambistas entrevistados encontramos, sem surpresa,
uma forte relação afetiva com as suas escolas de samba, o que nos levou a pesquisar
sobre a história das duas agremiações pesquisadas. Uma delas, o Rancho, tem muitos
registros em documentos, livros e outras plataformas. A Império, por outro lado, exigiu
um esforço de ouvir as narrativas fundacionais e montar uma versão da história, um
esforço inédito como registro desse grupo. A pesquisa, então, se subdivide em duas
partes uma voltada para a história das agremiações e a outra que atende ao indicativo de,
nesse momento, apresentar os acervos que materializam os esforços de seus
componentes na produção de memória.

Desenvolvimento

O que fazer com adereços, alegorias, figurinos, fotos, documentos, livros, e


outros objetos tantos objetos produzidos anualmente por uma escola de samba? Como
lidar com objetos que pertenceram ou representam componentes, fundadores e
participantes importantes para o grupo? O poder instigante e mobilizador dessas
diretrizes desperta curiosidade e impulsiona o desejo de pesquisar o tema proposto. Os
processos sociais de produção de memória que envolvem escolas de samba na cidade de
Belém podem ser tomados como objetos de investigação museológica produzindo
discussões ricas a relacionar ciência, emoções e materialidades.
Os objetos traduzem a vida de carnaval, viver carnaval, não só nos poucos
minutos que atravessa a avenida do samba, mas ao longo de todo o ano na convivência
dentro dos barracões, no bairro, nas casas dos sambistas, nas reuniões, nas relações
sociais que traz vivacidade, segundo Vinicius Natal (2017), O desfile configura um
amplo mundo social que agita e movimenta toda a cidade a cada ano.
Podemos considerar a escola de samba como um espaço de memória, onde o
processo de musealização acontece, nos objetos que ganham novos significados e

2262
cumpre a tarefa de comunicar e de preservar a memória e salvaguardar o patrimônio
cultural material e imaterial. E, expande-se para além do universo dos barracões das
escolas e se intensifica e reafirma nas narrativas de memória dos sambistas dentro de
suas residências. Nos afirma CHAGAS, (2002) “ O patrimônio cultural da escola de
samba é a pessoa, a quadra, a bandeira, o ritmo, o instrumento, a dança, a experiência, a
fotografia, a fita, o disco, o vídeo, a casa do amigo, a amizade, o amor e a devoção. O
patrimônio é material e espiritual, é móvel e imóvel, é preservado dentro e fora dos
sambistas. ”
Como metodologia de pesquisa, realizamos visitas a campo para observação e
entrevistas semiestruturadas em duas escolas de samba de Belém: Rancho não Posso me
Amofiná e Embaixada Império Pedreirense, situadas no bairro do Jurunas e Pedreira,
respectivamente. Ambas escolhidas porque são referências de valor histórico e social
dentro do contexto do carnaval. Realizamos 9 (nove) visitas na Escola não Posso me
Amofiná e 7 (Sete) na Império Pedreirense, em oportunidades variadas como eventos
comemorativos, festas, reuniões de diretoria, entre outras. Durante o processo da
pesquisa de campo escolhemos nossos interlocutores mais importantes para a realização
de 09 (nove) entrevistas na sede e nas casas de sambistas, além de registros visuais para
criação de um banco de dados de imagens. Através das escutas, da vivência e das
experiências narradas pelos representantes do universo do samba, começamos a
encontrar as primeiras respostas para as indagações levantadas na interface entre
museologia e antropologia. Produção de um banco de imagens com fotografias dos
acervos das sedes e das casas, foram registrados total de 412 fotografias, sendo 317 do
Rancho não posso me amofiná e 95 da Escola de Samba Embaixada da Império
Pedreirense. As visitas a campo foram norteadas pela perspectiva etnográfica - que
envolve identificação, escuta, vivência e experimentação -, para a produção de dados e
narrativas sobre a experiência do samba em Belém e salvaguarda – e musealização
particular - dos objetos produzidos para e pelo carnaval. O trabalho de campo na

2263
perspectiva etnográfica demandou a aplicação de entrevistas semi-estruturadas e/ou
depoimentos com agentes representativos desse universo, apontamentos do diário de
campo e registros fotográficos. As entrevistas foram transcritas, alguns dados
depurados, outros ainda serão burilados. Foram entrevistados:

- Rosangela Maria do Nascimento – Escola de Samba Rancho não posso me Amifiná,


Bairro da Cremação
- Maria da Gloria Alexandra Luna – Escola de Samba Rancho não posso me Amifiná,
Bairro do Jurunas
- Tiago Aragão Miranda - Escola de Samba Rancho não posso me Amifiná, Bairro do
Jurunas
- Ranieri Euclides Franco Lima - Escola de Samba Rancho não posso me Amifiná,
Bairro do Cremação
- Gertrude Pereira Viana – Escola de samba Embaixada da Império Pedreirense – Bairro
da Pedreira
- Tereza Regina dos Santos Câmara - Escola de samba Embaixada da Império
Pedreirense, Bairro da Pedreira
- Help Luna - Escola de samba Embaixada da Império Pedreirense, Bairro da Pedreira
- Terezinha de Jesus Ramos de Araujo -- Escola de samba Embaixada da Império
Pedreirense, Bairro da Pedreira
- Márcia Tereza da Costa Franco - Escola de samba Embaixada da Império Pedreirense,
Bairro da Marambaia

2264
Imagem: Quadros e troféus exposto na sede da escola de samba Rancho.
Foto: Suzete Fraiha

Imagem: Fantasias e fotografias das sambista de D. Tereza Camara e Ex-porta bandeira Rosangela Dias.
Foto: Suzete Fraiha

2265
Considerações Finais
O movimento que se constrói no universo das escolas de samba durante o
processo de preparação para o desfiles das escolas na avenida resulta na produção de
diversos objetos materiais como fantasias e adereços, alegorias, enredo, samba enredo e
outros elementos para serem expostos por alguns minutos na passarela do samba. Após
esse momento os objetos, supostamente perdem sua real função e acabam por ficar as
margens dos interesses que moveram a sua construção, mas o que se pode observar que
os objetos selecionados ganham vida e novos significados e adentram os espaços
expositivos das escolas e da própria casa dos sambistas com a força de rememorar fatos
da história que ligam a vida dos integrantes do samba com a dos objetos e com a própria
história da escola contribuindo para a permanência do samba na vida cotidiana dos
sambista na comunidade carnavalesca. Esse é um processo de a ser tomado como objeto
na perspectiva museológica.

Referências bibliográficas
CHAGAS, Mário. A Escola de Samba como lição de processo museal. Caderno visual
de turismo, Vol.2, Nº 2,(2002).

MILLER, Daniel. Treco, Troços e coisas: estudos antropológicos sobre a cultura


material; tradução: Renato Aguiar.- Rio de Janeiro: Zahar,2013.

NATAL, Vinicius. Memórias e Culturas nas Escolas de Samba do Rio de Janeiro:


Dramas e Esquecimentos. Nova Terra, Rio de Janeiro, 2016.

NATAL, Vinicius Ferreira. Os caminhos da memória no batuque do carnaval carioca.


Textos escolhidos de cultura e arte populares, Rio de Janeiro, V.7, n.2, p.207-215, nov.
2010.

RAMOS, Francisco Regis Lopes. A Danação dos objetos: O Museu no ensino da


História. Disponível em:
http://www.pead.faced.ufrgs.br/sites/publico/eixo4/estudos_sociais/a_danacao_do_objet
o.pdf . Acessado em 09/08/2017.

2266
Museu, memória e
patrimônio das culturas
negras

2267
“MEMÓRIAS NEGRAS”: CONFLITOS EM TORNO DO MEMORIAL DAS
BAIANAS EM SALVADOR – BAHIA

Rafael Jesus da Silva Dantas*

Resumo: O objetivo do trabalho é analisar a resistência contra a destruição do patrimônio afro-


brasileiro, partindo das categorias de “Ressonância” e “Batalhas das Memórias”. A problemática surge
em torno dos espaços expográficos com a temática negra, é como os bens culturais afro-brasileiros
acionam no campo da produção cultural, simbólica. Diante de como o objeto gera tensões relativas à
ausência da representação negra nos espaços de memória. Nesse aspecto, o trabalho discute a
articulação entre cultura, religião e patrimônio das representações no Memorial das Baianas em
Salvador - Bahia, tendo como suporte as notícias divulgadas e veiculadas na internet
relacionadas aos constantes ataques de racismo, preconceito contra os bens de representações
do patrimônio afro-brasileiro. Destacando as dificuldades enfrentadas pelas baianas para a
manutenção do espaço museológico e como o memorial se torna um espaço de resistência em
uma sociedade ainda marcada pelo racismo e intolerância religiosa. Para este trabalho,
propomos uma análise preliminar, de como os museus e a Museologia têm se posicionado nas
“batalhas das memórias”.

Palavras-chave: Memorial; Baianas de acarajé; Museologia; Exposição; Mídia.

Abstract: The objective of this work is to analyze the resistance against the destruction of the Afro-
Brazilian patrimony, starting from the categories of "Resonance" and "Battles of Memories". The
problem arises around the expogues spaces with the black theme, is how the Afro-Brazilian cultural
assets trigger in the field of cultural, symbolic production. In front of how the object generates
tensions relative to the absence of the black representation in the spaces of memory. In this aspect, the
work discusses the articulation between culture, religion and heritage in the representations at the
Memorial of the Baianas in Salvador - Bahia, supported by the news divulged and transmitted on the
internet related to the constant attacks of racism, prejudice against the assets of representations of the
patrimony Afro-Brazilian. Highlighting the difficulties faced by the Bahians for the maintenance of
museum space and how the memorial becomes a space of resistance in a society still marked by
racism and religious intolerance. For this work, we propose a preliminary analysis of how museums
and Museology have positioned themselves in the "battles of memories".

Key-words: Memorial; Baianas of acarajé; Museology; Exhibition; Media.

2268
Museu, memória e exposição: o sujeito e o “entre – lugar” do negro nos museus
As mudanças dos hábitos, horários e lugares são índices influentes, anacrônicos da nova
percepção transformacional do tempo; buscando alguns indicadores que contribuem para o
diálogo em torno dos significados que contextualizam os conceitos de museu e da museologia
diante do “homem”.
Os museus consistem em um importante instrumento social acionador e reprodutor de
memórias, caracterizado por meio da comunicação - “exposição”. As instituições
museológicas são lugares de preservação de discursos sobre o limite do “tempo”, preservando
“as memórias” para o futuro com o propósito de valorizar o objeto ressignificado,
incorporando as ideias de memória social, patrimônio simbólico, virtual/digital.
Ao discutir o “entre – lugar” do negro na sociedade brasileira ao longo dos séculos, o
modo de como a cultura afro-religiosa é preservada, o processo de patrimonialização e da
musealização nós espaços de memória, investigando as práticas e os discursos de intolerância
religiosa a partir da divulgação nas mídias. Nesta perspectiva de Homi K. Bhabha (1998).
Contribui questionando “de que modo se formam sujeitos nos "entre - lugares\ nos excedentes
da soma das "partes" da diferença (geralmente expressas como rap/classe/gênero etc.)” (1998,
p, 20).
No Brasil, em Salvador, na capital baiana observamos a maior quantidade de objetos
musealizados de herança negra; destaca - se algumas instituições que tem em seu acervo
peças de matrize africana, a saber: O Museu Estácio de Lima, Memorial de Mãe Menininha, e
o Instituo Histórico e Geográfico da Bahia que consiste em uma das principais coleções sobre
o candomblé consiste em uma coleção, originária das apreensões e quebras promovidos pela
polícia no início do século XX. Dessa coleção, um dos objetos que possui grande
representação para o candomblé é a cadeira do pai de santo Jubiabá, que foi retirada à força
do seu local de culto, inserida na coleção e devolvida décadas depois ao terreiro de origem:

De fato, ela tem uma importância própria no candomblé: pode ser


literalmente um assento do poder (Axé) do pai – de - santo. Podemos
suspeitar que os policiais tivessem familiaridade com o candomblé e suas
práticas - e reconhecem os elementos centrais do ritual com facilidade -,
ainda que nesse reconhecimento eles contradigam os princípios

2269
supostamente racionais da colheita de provas do crime. (ROCA, 2007, p.
99).

Assim como a cadeira de Jubiabá, muitos objetos que integram as coleções afro-
brasileiras nos museus brasileiros, sobretudo em Salvador, que por meios de atos violentos em
que os objetos foram retirados do lugar “sagrado” e doados para as instituições. Exemplo
disso é o Museu Estácio de Lima que possui em sua coleção um conjunto de otás:

O Otá, ou pedra sagrada do candomblé. No relatório do processo, o otá é


citado como uma peça que não pode ser mostrada, sendo a sua exibição um
sacrilégio. O otá não é uma obra de arte ou artefato: seu poder imanente tem
de ser respeitado; tem que ser escondido, e não mostrado. Seguindo esse
argumento, o caráter ‘sagrado’ do otá não é transformado pelo museu.
(ROCA, 2007, p. 101).

A representação das culturas negras nos museus também pode ser observada em outros
estados brasileiros, a exemplo de Sergipe e do Museu Afro-Brasileiro. Situado na cidade de
Laranjeiras - Sergipe, local impactado pela economia do açúcar e da escravização para a
manutenção da organização colonial, a cidade congregou considerável contingente de negros,
conforme afirma Raul Lody: “Por tudo, isso ver se vive um forte e expressivo legado
afrodescendente, notando-se até uma comunidade chamada Mussuca, como sua inspiradora,
em Angola, África Austral” (LODY, 2005, p. 195).
O acervo do museu reúne várias coleções de tipologias e procedências diversas. A
parte térrea do sobrado onde se localiza no centro da cidade, na tentativa de recontar as
matrizes africanas em Sergipe, abriga instrumentos agrícolas, instrumentos de tortura, além de
peças da casa senhoril. É notável que a escravidão consiste em uma das linhas mestras da
exposição que não problematiza essa condição, nem indica outras contribuições dos afro-
brasileiros para além da religiosidade:

Destaco a vocação de instalações museográficas, como é o caso do peji,


buscando criar um contexto votivo e hierarquizado conforme concepções
regionais que unem o tradicional nagô à emergência de outras fontes
religiosas, como umbanda, e mesmo às festas marcantes da cidade, como as

2270
taieiras, por exemplo, bem como outras manifestações populares e
tradicionais, profundamente religiosas. (LODY, 2005, p. 196).

Outro lugar de memória relevante para o candomblé brasileiro é o Memorial Mãe


Menininha do Gantois, em Salvador. O Memorial é criado com o intuito de memorar a casa
da ialorixá (mãe – de – santo) Maria Escolástica da Conceição Nazaré - “Mãe Menininha do
Gantois”, com objetivo de que os objetos se tornem lembrados, por meio da exposição criada
no (terreiro). “a exposição museológica consiste na representação do quarto da ialorixá, com
móveis, roupas, fios de conta, fotos de família... Todavia, nem todo o espaço pode ser visitado
visto que se situa em uma casa de axé. O memorial contribui para desconstruir uma imagem
recorrente dos negros nos museus brasileiros vinculados a escravidão” (CUNHA, 2006, p.39).
Nesse viés, as exposições museológicas surgem como uma possibilidade de reagir e
aguçar as ideias e de promover críticas. Muitas vezes também contribuem para reforçar
preconceitos e estereótipos. Esse último fato “o preconceito” é um acontecimento que surge
em torno dos temas abordados nas exposições museais em específicos de temática negra. Que
ainda remoto ao passado/presente os negros são apresentados para a sociedade em um
sentimento de “dor” representado no modo trabalhista ou da religiosidade sincrética, sem
esclarecer a sua origem, história e contribuições dos africanos para o Brasil:

No caso especifico das exposições apresentadas no Brasil, as imagens que


mais têm sido exploradas são relativas ao negro escravo, negro capoeira,
com suas ‘barbarizadas’ práticas religiosas, deixando-se de lado várias
outras possibilidades de enfoque, como as organizações civis afro-
brasileiras, a produção de artes gráficas e plásticas, os fazeres musicais,
literários, teatrais, cinematográficos, as narrativas de poéticas orais, de
leituras e transmissão orais de tradições, as práticas de resistências e de
reinvenções de suas tradições em territórios estrangeiros. (CUNHA, 2006, p.
40)

Diante de todas as regiões do Brasil, destaco o estado da Bahia como o local de maior
concentração de negros das regiões habitadas pelos daomeanos (jêjes) e pelos iorubás (nagôs).
Nesse contexto, destaco a questão simbólica e ancestral das religiões de matrizes africanas,
problematizando o espaço de disputa e afirmação dos valores afro-brasileiros nos museus. Os
escravizados ao chegarem ao Brasil foram proibidos de exercer seus modos tradicionais de
origem como; falar, vestir e sobretudo, o modo de cultuar seus deuses. Mesmos sabendo que

2271
o culto era proibido, os negros buscaram modos de contornar esse repúdio, dando origem ao
que muitos reconhecem como sincretismo:

Deve-se evitar a tentativa de ridicularizar o sincretismo de praticantes mais


simples dos cultos afros e de outras religiões populares, que muitas vezes
trocam pedaços de palavras de ladainhas e orações em um latim estropiado,
mas conservado com orgulho em inúmeras festas populares de todo o Brasil.
Como o latim vulgar da Idade Média, o nagô, o jeje e outras línguas usadas
na diáspora, também se modificaram e se misturaram por razões fonéticas e
outras. Variações fonéticas usadas popularmente não devem ser encaradas
como obscurantismo ou ignorância e ridicularizadas, como às vezes
acontece. (FERRETTI, 1997, p. 188).

Através dessa retórica do “tempo” cabemos perceber os processos de musealização do


patrimônio afro – religioso e a sua representação nos lugares de memórias por meio das
exposições museológicas. O expor algo é preparar um fio condutor da exposição para
compreensão do público na concepção do objeto selecionado. A exposição possibilita
conhecer, valorizar e memorar os inúmeros olhares interpretantes e desafiadores dos museus.
As exposições museológicas promovem discursos de caráter narrativos e descritivo do
objeto em uma linguagem significativa da relação entre o Homem e o objeto, assim os museus
são apenas um suporte institucional direcionado a museografia, refletidos por meio dos
critérios seletivos ao objeto. Ultrapassando os sentidos de afirmação, registro e comunicação,
chamo atenção para as temáticas negras no museu e para os constantes silenciamento do
negro nas exposições museais, buscando refletir o valor da memória e as contribuições para a
construção de símbolos e identidades no Brasil.
São várias as contribuições do negro no cenário brasileiro que contribuiu nos aspectos
econômicos, sociais e políticos para a formação da identidade brasileira como o negro no
folclore, na dança, música etc. O africano como povo “escravizado” luta até os dias atuais
para manter uma identidade cultural, seus valores como método de não deixar-se perdidos na
sociedade.
Nesse aspecto analiso os conflitos em torno do ofício das Baianas de acarajé
relacionado ao conceito de musealização, patrimonialização e ressonância diante das práticas
do oficio. Com o objetivo de valorizar a cultura através da trajetória simbólica e imagética do
negro que por muitas vezes são considerados “estranhos” pelos brancos.

2272
Os museus são instituições que objetiva; a preservação, pesquisa, exposição e
comunicação, possibilitando inúmeros caminhos de pesquisa em uma expectativa
preservacionista e memorável, resgatando indicadores de memórias em suas diferentes
significações. A Museologia tem como objeto de estudo a relação entre o “Homem e Objeto”
Waldisa Rússio Camargo Guarnieri (2010). Que constitui a base de preservar a memória
social. A ação preservacionista é vista como um ato de “valor”:

Sem a identificação de um valor qualquer (mágico, econômico, simbólico,


artístico, histórico, cientifico, afetivo ou cognitivo), a preservação não será
deflagrada, ainda que haja perigo de destruição. (CHAGAS, 2009, p.36).

Os museus são lugares que desenvolvem o sentido das coisas “objetos”, que por meio
da preservação da herança cultural e histórica, responsáveis por atuar junto com a sociedade.
Os museus através da exposição desenvolvem a categoria “imaginação museal” em torno dos
objetos visíveis e invisíveis, transformando em vetores de pesquisa e comunicação por meio
do processo de musealização.

O potencial do objeto museológico em ensinar algo a, logicamente, alguém.


Como testemunho, o objeto de ser preservado: preservar para ensinar,
preservar para comunicar. [...] A Musealização, então, se inicia na
valorização seletiva, mas continua no conjunto de ações que visa à
transformação do objeto em documento e sua comunicação.
(CURY, 2005, p.25).

O processo de musealização pretende a valorização do objeto, evocando lembranças e


desenvolvendo determinadas narrativas. Marília Xavier Cury (2005) apresenta o conceito de
que a musealização consiste em um processo composto por um conjunto de procedimentos
sobre os objetos (aquisição, pesquisa, conservação, documentação e comunicação), que
começa “ao selecionar um objeto de seu contexto e completa-se ao apresentá-lo publicamente
por meio de exposições, de atividades educativas e de outras formas. Compreende, ainda, as
atividades administrativas como pano de fundo desse processo” (p. 26). De acordo com suas
análises, a comunicação é a principal parte do processo de musealização e deve ser construída
a partir de experimentações museográficas.

2273
Para problematizar a representação do negro nas exposições museológicas, destaco
questões como a situação local, cada instituição possui uma realidade distinta da outra. Qual a
“missão” dos museus? Apenas expor? A exposição atribui valores entre a relação o homem
com a realidade social. Ao selecionar os objetos é necessário criar estratégias para não
acontecer o distanciamento da sociedade perante ao objeto

O museu é um registro de aspectos da trajetória do Homem, personagem e


agente da História. Essa é sua tarefa principal, sua finalidade, que permanece
imutável. O que variará no Museu são os seus recursos de comunicação,
adaptados ao Homem de sua época; assim, o museu será variável, quanto a
sua forma e aos seus meios, de acordo com a sociedade. (GUARNIERI,
2010, p.77).

Nesse caso cabe ao museu criar meios de combater esse distanciamento e acionar
práticas de aproximação, trilhando novos caminhos, para retroceder os constantes ataques a
instituições, revisando as políticas públicas, técnicas e teóricas. As exposições são analisadas
através da experiência museal, reconhecida pela presença dos termos da musealização. No
qual destaco a preservação da memória negra, com objetivo de salvaguardar o patrimônio afro
– brasileiro promovendo um trabalho de “solidificação” das memórias.
O preservar os objetos museais, aguça os sentidos e desejos. O desejo pela posse e
pela satisfação, destacando que muitos dos objetos que são introduzidos nas coleções museais
principalmente objetos que representam o negro, que são destacados como conquistas perante
a história. Muitos dos objetos que compõe os museus com a temática afro brasileira, foram
retirados à força dos lugares de origem, dos terreiros de candomblé (lugar - sagrado).
Nesse trabalho não se busca mostrar que a cultura negra é frágil, mas de trazer ao
campo da museologia e da museografia a compreensão dos processos museais simbólicos dos
objetos da cultura negra. Chamo a atenção para homenagear o “outro” diante as intersecções
do sujeito protagonista negro, buscando compreender como a museologia e os museus se
posicionam na ressignificação do modo de como reescrever a história da representação da
mulher negra.
Nesse aspecto, os museus são lugares que desenvolvem o sentido das coisas “objetos”,
bem assim os memoriais que são espaços destinados a “lembranças, relatos, homenagens e

2274
recordações da memória” de um agente ou de um grupo. O silenciamento será fundamental
para problematizarmos o processo de musealização no memorial, ao mesmo tempo,
analisando a ressonâncias dos bens culturais afro-brasileiros acionados no campo de produção
cultural. O fato é que apesar de ser um pequeno espaço expositivo, o Memorial das Baianas
contribui para acionar uma série de reflexões sobre o modo como as mulheres negras são
representadas, verificando o acervo do memorial das baianas em suas diversas tipologias a
partir das memórias em torno dos silenciamentos, embates e racismo religioso. Analisando o
processo de musealização do oficio das baianas e a falta de delimitação do conceito de
“memorial”,

A ressonância dos bens culturais afro-brasileiros


Refletir sobre o patrimônio cultural negro é um desafio constante e importante para, a
partir do passado, pensar o presente e assegurar um futuro promissor. Discutir essa temática é
necessário para articular as experiências culturais expostas para a sociedade como meio de
proteção e resistência contra a destruição:

Desse modo, é importante salientar que a noção de Patrimônio foi formulada


no contexto da sociedade ocidental moderna e que está diretamente ligada a
uma noção de herança particular que pode não fazer sentido em outros
contextos. Entretanto, é também importante salientar que a noção de
Patrimônio, como ocorre com o campo da linguagem, é uma noção
dinâmica, onde diferentes significados vão se justapondo no embate entre
políticas de lembranças e de esquecimentos. (ABREU, 2003, p. 4)

O conceito de patrimônio articula-se com um complexo histórico de significação. A


ausência da representação dos afro-brasileiros no cenário cultural é algo que merece ser
constantemente problematizada:
O patrimônio sempre terá uma relação com a memória e, por isso, com o conflito já que
é seletivo. Do mesmo modo, a memória é o que mantém o patrimônio vivo e, se o patrimônio
não se mantiver vivo, como a sociedade irá preservar sua ancestralidade?

O patrimônio cultural negro é algo para nós fundante da nossa própria


humanidade, na medida em que ele está entretecido com o continente

2275
africano, considerando o fato de que historicamente a África nos legou não
somente os primeiros humanos, mas também os saberes primordiais, os
valores civilizatórios presentes nas religiões e culturas africanas e os
conhecimentos, como a agricultura, como condição primeira para a
reprodução da vida; um sistema de cura; a medicina; a tecnologia, o saber da
forja ancestral do ferro que deu origem à metalurgia e as técnicas para a
extração do ouro; a primeira universidade, a filosofia. (CARDOSO, 2012, p.
22)

Muitas vezes essa memória é silenciada. Um exemplo é o Museu da Magia Negra que
Alessandra Rodrigues Lima (2012) destaca ter sido a primeira experiência do SPHAN 1 na
patrimonialização de um bem cultural vinculado ao universo afro-brasileiro:

O tombamento da coleção foi realizado em 1938 sem detalhamento de


justificativas, além de não apresentar uma descrição pormenorizada dos
objetos. [...] A própria instituição teria ‘negado’ esse tombamento, uma vez
que não havia na lista de bens tombados referências ao museu. (LIMA, 2012,
p. 45)

A partir dessas implicações em torno do longo processo em busca da patrimonialização


de bens culturais materiais e imateriais, que tem como marco o tombamento do primeiro
templo não católico no Brasil, o Ilê Asé Iyá Nassô Oká, conhecido como Terreiro da Casa
Branca, em Salvador-BA, em 1984:

O terreiro de Casa Branca apresentava uma tradição de mais de 150 anos e,


com certeza, desempenhava um importante papel na simbologia e no
imaginário dos grupos ligados ao mundo do candomblé e aos cultos afro-
brasileiros em geral. Do ponto de vista dessas pessoas o que importava era a
sacralidade do terreno, o seu ‘axé’. Em termos de cultura material,
encontrava-se um barco, importante nos rituais, um modesto casario, além da
presença de arvoredo e pedras associados ao culto dos orixás. (VELHO,
2006, p. 237)

O mesmo ocorreu com os bens intangíveis, com a instituição do Decreto n.º 3.351 de
2000. Ao logo dos anos a capoeira, por exemplo, era uma prática proibida no Brasil. Os
desafios contra a sua destruição foram árduos, visando seu reconhecimento enquanto
importante expressão cultural: “Um reforçado imaginário produzido por livros, filmes e
1
Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) foi a primeira denominação do órgão federal de
proteção ao patrimônio cultural brasileiro, hoje Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).

2276
telenovelas relacionou a capoeira à escravidão rural, à sua prática nas senzalas sob o olhar
desconfiado do senhor de engenho” (Ofício dos Mestres de Capoeira, 2008, p.10).
A capoeiragem, porém, fincou raízes nas áreas urbanas (Oficio dos mestres de capoeira,
2008, p. 13). A luta em busca de afirmação foi contínua até que o ofício dos mestres foi
reconhecido como patrimônio nacional e registrado no livro de saberes, como estratégia
política e jurídica de legitimação e de combater o constante preconceito em torno dessa
manifestação cultural. Aqui é necessário destacar a noção de ressonância – para
problematizarmos como os bens de matriz africana são visualizados -, segundo a proposta de
José Reginaldo Santos Gonçalves (2005) citando o historiador Stephen Greenblatt: “ao poder
de um objeto exposto atingir um universo mais amplo, para além de suas fronteiras formais, o
poder de evocar no expectador as forças culturais complexas e dinâmicas das quais ele
emergiu e das quais ele é, para o expectador, o representante” (GONÇALVES, 2005, p. 19).
A luta pelo respeito às expressões de matriz africana é constante. Um fato recente (e
reincidente no Brasil) foi o incêndio que destruiu a imagem de Osalá, na Praça dos Orixás em
Brasília, no dia 11/04/2016. A partir das divulgações nas mídias aos constantes ataques ao
patrimônio cultural afro – religiosos. O Portal G12 divulgou a nota sobre o acontecimento. Na
madrugada do dia (11), os vizinhos perceberam um incêndio na praça dos orixás em Brasília.
O caso foi entendido como “crime” e foi registrado na 1ª Delegacia da Policia Civil (Asa Sul)
como “dano ao patrimônio”:

‘Não há como ter pegado fogo por uma vela, como já disseram na delegacia,
porque a chama não seria alta o suficiente. Se pegasse fogo de baixo para
cima, o pé queimaria primeiro e a imagem tombaria’, diz o presidente da
Federação de Umbanda e Candomblé de Brasília e Entorno. ‘São vários
casos, e até hoje ninguém foi responsabilizado. Como não tem segurança
nem câmera, é sempre a denúncia de alguém que viu, alguém que contou, é
difícil seguir investigação. A gente depende do relato de quem mora aqui na
praça, é um relato que não costumam levar a sério no inquérito’, diz o
presidente.3

2
Disponível em: http://g1.globo.com/distrito-federal/noticia/2016/04/incendio-destroi-imagem-de-oxala-na-
praca-dos-orixas-em-brasilia.html Acesso em: 4 fev. 2017.
3
Idem.

2277
Para melhor compreendemos os jogos de poder na “batalha das memórias” (Ângela de
Castro Gomes, 1999) evidenciando as representações do modo de fazer o acarajé e os
conflitos em torno do ofício das Baianas de acarajé. Ao observar a “batalha” em diversas
interprestações, reconhecido e autênticos, as memórias são retrocedidas entre a exaltação da
religiosidade e a apresentação do sofrimento. Exaltando a divulgação das mídias nas páginas
virtuais na internet, O blog “O Portal GospelPrime” – apresentou uma nota com título O
cristão bem informado4, destacando que a prefeitura de Salvador, anunciou as “regras” para
vender acarajé nas ruas. Com a obrigatoriedade do uso dos trajes da baiana de tabuleiro,
alguns evangélicos pararam de vender acarajé. Como forma de rebater essa posição da
prefeitura, os evangélicos buscaram outra estratégia e rebatizaram o acarajé como “bolinho de
Jesus”, desvinculando a sua ligação com a cultura afro. Outra tensão consiste nos constantes
ataques que o Memorial tem sofrido e que merecem ser problematizados como fruto do
racismo religioso.

Memorial das baianas de acarajé na "batalha das memórias”


O Memorial foi criado em 1992 e, além da exposição museológica, realiza diversos
cursos, a exemplo de técnicas em tecidos e do modo culinário baiano. Todavia, o fato de
difundir e preservar os saberes de um bem patrimonializado relativo aos saberes do acarajé e
que ao mesmo tempo é um bem de matriz afro, possui o conflito como prática constitutiva.

4
Disponível em: https://noticias.gospelprime.com.br/evangelicas-acaraje-bolinho-de-jesus/ Acesso em: 9 fev.
2017.

2278
Figura 1: Vista lateral do Memorial.

Foto: Max Haack, 2017.

A ABAM foi fundada em 19 de abril de 1992 com a finalidade de fortalecer a história e


a herança com a intenção de melhorias das condições sociais da região, de promover cursos
de capacitação e de buscar a profissionalização. A sede fica localizada em Salvador-BA, mas
a ABAM tem outras mediações no Rio de Janeiro, São Paulo e Fortaleza. Também possui
núcleos em Manaus, Brasília, Paraíba, Rio Grande do Sul, além de Portugal, Espanha, Áustria
e Nigéria.
Para a fundação do Memorial foram selecionados líderes de diferentes grupos do
movimento afro visando obter apoio, os mesmos que lutaram para o reconhecimento do ofício
das baianas de acarajé como patrimônio imaterial nacional, a exemplo do terreiro Ilê Asê Opó
Afonjá, da ABAM e do Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia.
Apesar disso, a instituição do Memorial não ocorreu sem conflitos.
Como meio de preservar e garantir a valorização do saber fazer acarajé, a Associação de
Baianas do Acarajé e Mingau - ABAM, regulariza a comercialização do acarajé – não basta
vestir-se de baiana, é necessário preservar a cultura afro-brasileira. Localizado no centro
histórico da capital baiana, o Memorial extrapola a função meramente expositiva associando
projetos de apoio ao artesanato, como os fios – de - contas, o pano- da- costa, cursos de

2279
bordados, valorização da identidade afro-baiana etc. Desse modo, os conflitos serão
inseparáveis:

Os valores atribuídos ao bem cultural, quando entram em disputa, revelam


um processo de hierarquização. Um valor será selecionado como mais
importante e mais legítimo; os outros permanecerão como seus opostos
complementares: valor artístico/valor da fé. O grupo que estiver de posse da
gestão daquele bem cultural estabelecerá seus valores como mais legítimos.
Na arena de disputa, os outros não poderão ser considerados. (TAMASO,
2002, p. 15)

A associação é uma das mantenedoras do Memorial e possui mais de 4 mil baianas


cadastradas. Consta no registro que para conseguir o cadastro, as baianas precisam apresentar
atestado de saúde e comprovar conhecimento de técnicas de conservação, acomodação e
armazenamento de alimento. Também é necessário usar a indumentária completa, com saia e
torço na cabeça. Ao serem cadastradas, as baianas passam ter alguns benefícios: plano de
saúde, exames e suas iguarias submetidas às inspeções da Vigilância Sanitária.

Figura 2: Detalhe das indumentárias na exposição.

Foto: Rafael Dantas, 2017.

O primeiro fato é o aspecto de perda, o que é considerado “sagrado e ritualístico” ganha


espaço para o “técnico de profissionalização”, colocando em risco os fazeres e saberes das
baianas. Os saberes em torno do sagrado correm o risco de desaparecimento. De acordo com

2280
Izabela Tamaso (2002), há, contudo, um patrimônio que ainda não foi expropriado do grupo
que o produziu e lhe atribuiu valores: o patrimônio imaterial. Este é um domínio no qual a
agencialidade dos sujeitos sociais ainda não sofreu impacto. Para a pesquisadora, a cultura
tradicional e popular – crenças, comida, dança, procissões, folias, expressões, música etc. –
mantém-se com relativa autonomia, no que concerne à ação dos realizadores e participantes
locais.
Conforme destacou Alessandra Rodrigues Lima (2012), cabe ressaltar que a perspectiva
de patrimônio e a noção de salvaguarda que marcam o entendimento da ABAM possui
orientações que ressaltam o ofício principalmente como uma profissão:

As diferentes formas de entendimento dos conceitos tanto de patrimônio


quanto de salvaguarda e os conflitos decorrentes dessas variações podem
interferir profundamente no diálogo entre os agentes envolvidos na
salvaguarda e dificultar o andamento do processo. A apropriação política de
expressões culturais e a utilização das mesmas como instrumento de
mobilização em torno de questões específicas, trabalhistas e comerciais no
caso das baianas, tornam complexas as dinâmicas de salvaguarda e coloca
novas questões para os gestores dessa política pública. (LIMA, 2012, p. 110-
111)

Alessandra Rodrigues Lima (2012) problematiza as diferenças entre as baianas de


terreiro, de tabuleiro e de receptivo e a reflexão sobre que tipo de ação pode agregá-las em
torno da salvaguarda do ofício:

Por esta razão, o patrimônio como resultado dessa operação torna-se


constitutivamente uma categoria que congrega várias naturezas. Por isso é
compreendido aqui como fato social total. [...] O patrimônio como reunião
de coisas e práticas com sentido estabelece a interconexão entre os domínios
da subjetividade humana e a realidade objetiva. Daí a sua natureza
multiforme de transitar na esfera econômica, religiosa, moral, política,
jurídica, estética e psicológica. (AMORIM, 2013, p. 45)

Nesse sentido, o Memorial das Baianas torna-se exemplo dos múltiplos atravessamentos
em torno do campo do patrimônio, especialmente as “batalhas das memórias” e dos conflitos
acionados pelo preconceito e pelo racismo religioso. Exemplo desses fatos são os ataques
frequentes que o memorial sofre que são divulgados nas mídias.

2281
O portal Kickante5 divulgou um noticiário na internet com objetivo de arrecadar
recursos para impedir o fechamento do Memorial das Baianas, em Salvador-BA, visando
garantir a segurança do mesmo após 42 ocorrências em menos de dois anos. A matéria
intitulada “ABAM: Resgate histórico de um símbolo nacional” apresenta os conflitos e meios
de proteger o patrimônio afro-religioso no campo cultural.
O título da matéria chama atenção por atingir um espaço de preservação de um conjunto
de expressões culturais da diáspora negra, “Memorial das Baianas pode ser fechado por
causa de arrombamentos; 39 ocorrências registradas”. Os furtos ao Memorial se tornam
rotina, um espaço sem segurança, sem policiamento. Como informa o blog, em 18 de junho
de 2016 foram furtados, por exemplo, um botijão de gás, dois fogões e ainda um rolo de
fiação. O blog procurou Rita Santos, coordenadora da Associação das Baianas de Acarajé,
após sofrerem 39 assaltos que também incluíam peças da exposição museológica:

Há um ano, a prefeitura retirou o policial que ficava de noite e de lá pra cá,


já teve seis arrombamentos. Teve um que quebraram toda lojinha, levaram
tudo, panela e fiação. Agora, na segunda-feira, quando chegamos lá tinham
entrado e arrebentaram a grade e levaram máquina, furadeira do pedreiro que
estava trabalhando. Aí quando foi essa madrugada, de novo. E a gente não
conseguiu recuperar nada. Não resolvem nada. (...) Rita revelou ainda que
não aguenta mais conviver com a bandidagem e pode fechar o local. ‘Tô
para jogar a toalha, não aguento mais’. A ideia mesmo agora, só passa na
minha cabeça, é fechar. O Memorial pode ir para outro lugar, como o Rio de
Janeiro. Lá a prefeitura já ofereceu o espaço. Basta levar as coisas daqui’. 6

A discussão sobre os roubos e os ataques dos vândalos ao Memorial, encaixa na


metáfora de perigo, abandono, renúncia e ameaça em torno do objeto. O Memorial corre o
risco de fechar as portas por falta de segurança, além disso, o local está sem luz, forro e grade.
Outro noticiário sobre o Memorial é lançado pelo portal Metro17 que denuncia outros
furtos que resultaram em 42 boletins de ocorrência. Na matéria, Rita Santos denuncia os
ataques e as perdas no Memorial: “‘Hoje nós não temos panelas, não temos fogões, não temos

5
Disponível em: https://www.kickante.com.br/campanhas/abam-resgate-historico-de-um-simbolo-nacional
Acesso em: 4 fev. 2017.
6
Idem.
7
Disponível em: http://www.metro1.com.br/noticias/cidade/26212,abandonado-memorial-das-baianas-de-acaraj-
j-foi-arrombado-42-vezes.html. Acesso em: 10 fev. 2017.

2282
freezers, não temos nada. Levaram tudo que você possa imaginar. Mesa, cadeira,
liquidificador, fogão, botijão de gás. Não tenho geladeira, porque eles arrancaram o motor’”.8
Importante enfatizar que o Memorial das Baianas é um espaço do Município, cedido
pela prefeitura de Salvador. De acordo com Rita Santos, nenhum órgão se responsabilizou em
prestar assistência ao Memorial após os danos causados: "O município não ajuda em nada.
Serraram as grades, arrancaram as luminárias do teto todas, e eu não recebi uma visita, nada".
Os policiais informam que os itens roubados foram recuperados, no entanto, a própria
coordenadora nega essa afirmativa, os policiais procuram produzir a crença em um espaço
seguro e controlado, embora não seja bem a realidade do local:

Segundo a presidente, só foram reavidos um dos três moinhos utilizados para


moer o feijão, uma das mais de 20 panelas, duas garrafas térmicas, três
luminárias roubadas, mas que foram devolvidas quebradas. Por conta da
falta de utensílios, atividades como oficinas de produção de acarajé não
podem ser mais realizadas no museu.9

Os conflitos aumentam a cada ano e as ações de reconstrução e manutenção tornam-se


dispendiosas. Esses constantes ataques ao Memorial podem ser visualizados como uma forma
de racismo religioso – muitas peças do acervo, além de material de escritório, artigos
culinários e a loja com todos os itens foram levados.
Além disso, compete destacarmos a rivalidade existente no campo religioso que muitas
vezes demoniza as religiões de matriz africana e, consequentemente, o discurso difundido
pelo Memorial:

Quando a Universal acusa o Candomblé de práticas demoníacas, a primeira


verdade avançada por este discurso, antes mesmo de “os orixás são
demônios”, é “os orixás existem”. Assim, a Igreja Universal, cujo um dos
seus objetivos é exorcizar os demônios que se esconderiam sob o manto de
divindades de religiões de matriz africana, tem necessidade da existência de
cultos que veneram os inquinces, os voduns ou os orixás. De lutar contra o
outro adotando as suas próprias armas, as Igrejas neopentecostais terminam
também por copiar certos traços de práticas rituais que estigmatizam e de
confortar assim nas suas existências os demônios que convocam e
perseguem. (PÉCHINÉ, 2011, p.168)

8
Idem.
9
Idem.

2283
O preconceito existente em torno das baianas (a maioria filhas de santo) surge do modo
de fazer acarajé, relacionando-o à Iansã e ao candomblé. Essas baianas por seguirem o
candomblé ficam expostas a uma sequência de atos de racismo, violência física, psíquica e
moral, além de intolerância religiosa. Seus trajes, o ritual de preparo do acarajé, a limpeza do
local, todos esses costumes são de herança africana:

A tradição do fazer acarajé vem principalmente da roça (casa que evocam a


memória de distintas matrizes africanas), na qual dão a obrigação do acarajé,
sobretudo quando se é iniciado no candomblé. As mulheres de Iansã
pegavam as gamelas e saiam pelas ruas em venda para poder fazer sua
obrigação ao orixá. Yansã e um orixá feminino, considerada a rainha dos
raios, dos ventos, orixá também tida como guerreira, batalhadora, autoritária,
possessiva. Teria sido a primeira esposa de Xangô. (DANTAS, 2014, p. 5).

As baianas ao saírem nas ruas são expostas a serem chamadas por várias frases
preconceituosas, por exemplo: “Para uma negra, você até que é bonita”; “Por que você não
penteia o cabelo?”; “Você vai se dar bem com os gringos, mula de exportação”; “Negrinha,
você usa maquiagem ou carvão”.10 O Portal O Globo11 divulgou um caso de racismo a uma
baiana de acarajé na praia de Salvador, o agressor foi acusado de racismo e agressão física e
verbal, chamando-a de “negrinha”:

Ele a empurrou do terceiro degrau da escadaria que dá acesso a sua barraca


de praia. Além disso, a injuriou, além de ter proferido palavras
preconceituosas, praticando o crime de racismo. Por esse motivo, foi autuado
em flagrante delito pelo artigo 20 da lei 7.716, lei federal, e no artigo 140 do
Código Penal, além do artigo 129, que trata das lesões corporais.12

No entanto, ao trabalhar o preconceito, esquecimento e o silenciamento, está sendo um


desafio perpetuo, em torno reação de outros valores exógenos da representação arbitrária das
“Memórias negras” propiciando a valorização a nível nacional simbólica da mulher negra
com adjetivações de guerreiras, lutadora, carismáticas. As novas roupagens em que o
patrimônio afro - religioso enfrenta está direcionado a narrativa representativa da baiana

10
Informações obtidas durante a pesquisa de campo.
11
Disponível em: http://oglobo.globo.com/brasil/dono-de-barraca-agride-baiana-de-acaraje-e-preso-por-racismo-
em-salvador-2965399. Acesso em: 10 fev. 2017.
12
Idem.

2284
“moderna”. Tornando indícios representativos do modo como as culturas herdeiras da
diáspora africana ainda são visualizadas como jogos, também enquadradas na “batalha das
memórias”. O papel dos museus e da Museologia é enfrentar essas tensões, na luta em prol de
uma prática cultural mais igualitária.

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2285
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2286
O ESTUDO DA JOALHERIA AFRICANA DO MAFRO/UFBA: EM BUSCA DOS
SUJEITOS PRODUTORES

Maria das Graças de Souza Teixeira*


Rogério Wesley Reis Felix Santos*
**Universidade Federal da Bahia

Resumo: Este artigo tem por finalidade apresentar os resultados da pesquisa sobre o acervo de joias
que faz parte da Coleção Africana do Museu Afro-Brasileiro da Universidade Federal da Bahia
(MAFRO/UFBA). O projeto foi desenvolvido no programa de iniciação científica, contemplado pelo
EDITAL PROPCI/UFBA 01/2016 – PIBIC, intitulado Estudo do Acervo do Museu Afro-Brasileiro
para a Requalificação da Exposição de Longa Duração. Para tanto, será apresentado o percurso
metodológico, os objetivos traçados e resultados alcançados, focando principalmente na importância
da pesquisa museológica para a formação acadêmica dos bolsistas, estudantes de graduação do Curso
de Museologia, inclusive para o desvelamento dos objetos, na revelação de informações que até então
estavam presas na materialidade física dos mesmos. Esta pesquisa, além de subsidiar a escrita de
novas narrativas acerca dos objetos, irá identificar os sujeitos responsáveis pela sua criação,
evidenciando seus contextos de produção e uso, trazendo à tona informações que até então não haviam
sido apresentadas nas antigas legendas e painéis informativos.

Palavras-chave: pesquisa museológica; autoria; objetos; narrativas; sujeitos produtores.

Abstract: This article aims to present the research’s results about the jewelry collection, which is part
of the African Collection in the Afro-Brazilian Museum of Federal University of Bahia. The project
was developed through the scientific initiation program, approved by the ANNOUNCEMENT
PROPCI/UFBA 01/2016 – PIBIC, entitled Study of the Afro-Brazilian Museum of UFBA for a
Requalification of the Long-Term Exhibition. To do so, it will present the methodological course,
objectives outlined and the results achieved, mainly focusing on the importance of the museum studies
research for the academic formation of the undergraduate students, who receive a scholarship, from
the Museology Course, as well as for the unveiling of objects, in the discovery of information that,
until this moment, was trapped in their physical materiality. This research, besides subsidizing the
writing of new narratives about the objects, also will contribute to identify the subjects creators,
showing the contexts of production and use, bringing to the light information that, so far, hasn’t been
showed in the old subtitles and informative panels.

Key-words: museum studies research; authorship; objects; narratives; subjects producers.

2287
Introdução

O presente artigo visa apresentar os resultados do projeto Estudo do Acervo do


Museu Afro-Brasileiro para a Requalificação da Exposição de Longa Duração,
contemplado pelo EDITAL PROPCI/UFBA 01/2016 – PIBIC. Inicialmente, apresentaremos o
percurso metodológico, os objetivos traçados e, por fim, os resultados da pesquisa
desenvolvida sobre o grupo de peças em metal, classificadas, até então, na documentação do
acervo como adornos, e denominadas neste trabalho de Coleção de Joalheria Africana do
Museu Afro-Brasileiro da Universidade Federal da Bahia. A pesquisa é um recorte
estabelecido a partir da Coleção Africana do MAFRO/UFBA estudada pelo bolsista Rogério
Wesley Reis Felix Santos, discente do Curso de Museologia da UFBA, orientado pela Prof.ª
Dr.ª Maria das Graças de Souza Teixeira.

A Coleção Africana é composta por mais de 1192 peças, provenientes das regiões
Ocidental, Central e Oriental do Continente Africano. Nela estão reunidos objetos de
tipologias e funções diversificadas, a exemplo de tapeçarias proverbiais, instrumentos de
Orixás, vasos em cerâmica e terracota, máscaras gueledés, adirês, dentre outros.

Motivação e percursos metodológicos

Os museus, na sua grande maioria, têm apresentado em suas mídias, especialmente nas
exposições de longa duração, o acervo de maneira estanque. Trazem informações que
constroem uma narrativa estéril e, frequentemente, pretensiosa, ressaltando, muitas vezes,
apenas técnica e materialidade, aprisionando e/ou negando o contexto social que circunscreve
os objetos. Contribuindo, ainda, para a negação e ocultamento dos/as produtores/as e
usuários/as destas peças, agentes diretos da tessitura dos objetos e, portanto, da escultura
social.

A motivação para realizarmos este estudo surgiu ao constatarmos que a exposição de


longa duração do Museu Afro-Brasileiro/UFBA, aberta ao público há mais de uma década,
apresenta os problemas citados acima.

2288
A partir disso, se fez necessário intensificar o número de pesquisas sobre o acervo,
visto que a maioria dos objetos que o compõem se encontram somente com informações
oriundas das antigas listas de arrolamento e fichas de catalogação e identificação, que não
apresentam muitas informações para além daquelas intrínsecas, caracterizadas por Ferrez
(1991, p. 2) como aquelas que “são as deduzidas do próprio objeto, através da análise das suas
propriedades físicas”, que foram transcritas para as legendas e painéis informativos da
exposição de longa duração.

Como acreditamos ser o museu um espaço de reflexão, para além de entretenimento,


defendemos a importância de termos nas pesquisas do acervo um suporte informacional que
suscite questionamentos a partir de novas descobertas embasadas nas experiências pessoais e
particulares do/a visitante. Propomos que na concepção e elaboração dos textos expositivos
sejam tangenciadas discussões relativas a questões de raça, classe, gênero e poder, uma vez
que esta instituição [o Museu] não deve estar ensimesmada, senão voltada para permitir uma
leitura mais ampliada de questões cotidianas, suscitadas pela sociedade. Para tanto, a equipe
do Museu deverá se comprometer com a acessibilidade das informações, dispensando um
cuidado maior para não desclassificar, ignorar ou silenciar os sujeitos.

Reforçando a nossa fala contra formas sutis e perversas dos museus de Salvador, neste
caso, baseando-se na análise dos museus de tipologia histórica, de acordo com o Cadastro
Nacional de Museus do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), que apresentam obras e
objetos no intuito de representar sujeitos de uma classe com menor poder econômico-social e
grupos étnico-raciais, considerados minoria, apresentamos aqui a ponderação crítica reflexiva
de Joana Flores no seu livro-denúncia Mulheres Negras e Museus de Salvador: Um diálogo
em branco e preto: “É reservado ao objeto o lugar que lhe possibilita o destaque de maior ou
menor visibilidade, sem levar em consideração as questões de gênero e raça que podem
desencadear uma nova perspectiva metodológica na expografia.” (FLORES, 2017, p. 58).
Partindo deste ponto de vista é que objetivamos contribuir para a ampliação do olhar sobre os
objetos, identificando os sujeitos envolvidos na sua produção, distribuição e uso – dados
fundamentais para perceber as relações entre sujeitos e objetos.

2289
No caso deste estudo, ainda incipiente, conseguimos identificar, ao menos, alguns de
seus nomes para lhes atribuir a devida autoria nas joias a partir da documentação primária
produzida por Pierre Verger, etnólogo responsável pela aquisição do acervo africano.
Iniciamos o levantamento dos dados acerca deste grupo de objetos investigando informações
sobre seu processo de aquisição, para fazer o delineamento da biografia.

Biografando o objeto para desvelar nomes, saberes e fazeres

Coleção de Joalheria Africana do MAFRO/UFBA

O grupo de objetos em metal, intitulado neste estudo de Joalheria Africana, é formado


por 30 peças, conforme indica o quadro abaixo:

Tabela 1

Quantidade Designação Material País de origem

24 Pulseira Cobre e Benin


Bronze

03 Tornozeleira Ferro Benin

01 Tornozeleira Cobre Togo

01 Anel Cobre Benin

01 Colar Cobre Benin

As peças, confeccionadas majoritariamente em cobre, apresentam, como elementos


decorativos, linhas e formas circulares, bem como grafismos em linhas diagonais permitindo
remeter às escarificações corporais feitas por grupos étnicos africanos, a exemplo dos
iorubanos, que se utilizam destas incisões como indicadores simbólicos de variadas situações,

2290
como está exemplificado nas imagens comparativas, abaixo, da pulseira de Oxum e da face
escarificada.

Figura 1: Pulseira de Oxum.

Fonte: Acervo Digital MAFRO/UFBA (2016).

Figura 2: Pessoa não identificada pela fonte.

Fonte: https://www.geledes.org.br/cultura-fotografa-da-costa-marfim-faz-exibicao-sobre-tradicao-da-
escarificacao/

Até o momento não temos registros suficientes que possam comprovar as técnicas
empregadas na confecção das peças. Apenas podemos inferir que algumas delas,

2291
possivelmente, foram produzidas pela técnica da cera perdida13. Ainda que a documentação
da qual dispomos atualmente tenha sido de grande valia para o desenvolvimento das
atividades, serão necessárias outras iniciativas para viabilizar o entendimento desta coleção
em seus diferentes aspectos.

Neste caso, temos nos embasado nos documentos de compra – faturas, recibos,
registros de encomenda, entre outros – produzidos por Pierre Verger, que foi um dos
principais responsáveis pela aquisição dessas peças, ao registrar os trâmites realizados.
Fotógrafo e etnólogo francês, participou do grupo de professores/as, intelectuais e
representantes da comunidade negra da Bahia no Centro de Estudos Afro-Orientais da
Universidade Federal da Bahia (CEAO/UFBA) a fim de conceber e executar o projeto de
criação do MAFRO/UFBA. O Museu é resultado de um acordo de cooperação (convênio)
entre o Ministério das Relações Exteriores do Brasil, o Governo do Estado da Bahia, a
Universidade Federal da Bahia, e a Prefeitura Municipal de Salvador, firmado entre os anos
de 1972-1974, mas só aberto ao público em 7 de janeiro de 1982.

Verger foi designado para formar a Coleção Africana devido a sua experiência tanto
em viagens à África, para países como Benin e Togo, quanto em acervos etnográficos. Sendo
contratado como professor visitante, pela Universidade Federal da Bahia, de acordo às
informações de Thiara Matos (2012), que pesquisou suas correspondências no período em que
esteve envolvido com as atividades de criação do Museu Afro-Brasileiro/UFBA e formação
de seu acervo:

[...] para fazer encomendas a escultores e ferreiros que eu conheço e que


fazem atualmente excelentes peças bastante dignas de um museu. Nós
poderemos comprar igualmente nestes lugares objetos a preços infinitamente
mais razoáveis do que os praticados para aqueles já transportados na Europa
e na América pelos ‘especialistas’ de objetos de arte dita primitiva. (Carta de
Pierre Verger para Fernando Simas Magalhães em 22/06/1974, p. 2, citado
por MATOS, 2012, p. 129)

13
Técnica empregada, principalmente, na confecção de peças pequenas como as joias e outros adornos e
amuletos. O processo se dá esculpindo no primeiro momento o molde em cera de abelha que em seguida é
introduzido na argila ou barro e que quando posto para secar a cera se derrete e escorre, por uma abertura feita
previamente e por onde, finalmente, o metal em estado líquido é inserido. E, como a cera é utilizada apenas no
primeiro momento e possivelmente é descartada essa técnica é comumente denominada “cera perdida”.

2292
Matos (2012, p. 12) afirma que “Entre as principais atividades realizadas por ele,
destaca-se a elaboração do projeto conceitual e a realização de uma viagem ao continente
africano em 1975 para comprar peças para o acervo da instituição.” - Grifo nosso.

O fato desses objetos terem sido comprados em mercados populares, como o da cidade
de Ibadan, na Nigéria, com a finalidade de compor o acervo de um Museu, não torna menos
potentes os valores sociais, históricos e culturais utilizados como pano de fundo para sua
produção e posterior atuação no desenvolvimento dos processos museológicos. Tais peças,
certamente, seguem cânones específicos relativos ao período em que foram fabricadas e,
portanto, falam da sociedade onde foram produzidas, ponto central do nosso estudo, uma vez
que buscamos identificar não só os produtores, mas também os contextos em que estavam
inseridos, para que possamos traçar sua biografia buscando compreender não apenas as
motivações artísticas, mas um amplo entendimento do cenário sociocultural. Como caminho
para esta compreensão, utilizamos a Coleção de Joalheria Africana.

A joalheria é entendida pelo senso comum, e por especialistas, como conjunto de


objetos para servir de ornamento, confeccionados em ouro ou prata, muitas vezes incrustrados
de pedras preciosas e outras similares. No entanto, as peças por nós analisadas, mesmo não
seguindo este padrão “de nobreza”, são consideradas joias, uma vez que têm as mesmas
funções que a “joalheria tradicional”, principalmente a de ser ornamento: Objetos que são
utilizados pelos seres humanos na sua longa jornada histórica, para diversificadas finalidades,
indicando, principalmente, marcadores sociais daqueles/as que os utilizam. Estando:

[...] vinculados à interpretação dos diferentes povos, civilizações e épocas,


que ao ligar o ornamento aos objetos, transformam esses mesmos objetos em
veículos que nos auxiliam a compreender, hoje, em sua permanência, as
culturas humanas. (GOLA, 2008, p. 18-19)

Desta forma, é possível perceber o modo como esta coleção de joalheria em metal atua
enquanto imanência da cultura material africana e torna possível remeter ao uso dessas joias –
as quais, neste artigo, serão também referidas como artefatos, uma vez que são resultado de
um saber fazer materializado por mãos humanas – no Benin e no Togo, países onde foram
adquiridas. Neste caso, tais artefatos atuam como identificadores e legitimadores de valores

2293
sociais e culturais das sociedades às quais pertencem, e que as produzem e as utilizam, agindo
não apenas no campo simbólico, mas no cotidiano, à medida que ratifica os valores que
fomentam a produção dos objetos. Conforme ressalta Lima (2011, p. 19): “Por meio de
discursos materiais, as pessoas falam silenciosamente sobre si mesmas, sobre sua visão de
mundo, sobre o que não pode ou não deve ser dito verbalmente, e aí reside a sua força”.

Nos referidos países, como em outras regiões da África, a utilização de joias está para
além de fins estritamente estéticos ou artísticos. Há uma forte função social imbricada no
objeto, que pode denotar hierarquia social; rituais de passagem que demarcam, além de status
social, também gênero, e o poder mágico, simbolizado, no sentido de trazer proteção, atraindo
boa sorte e evitando infortúnios para quem as usa. Fisher (1984, p. 81) assinala alguns desses
usos:

The Benin name for coral, eshugu, means rank and wealth, and coral is
believed to protect the fertility of the land - a property renewed every year
by washing the beads in blood. This jewelry [...] is handed down through
generations of Obas14.

A produção dessas peças permite, também, remeter aos processos de desenvolvimento


humano, a partir do domínio do fogo e da descoberta do potencial das matérias-primas
oferecidas pelo meio ambiente, como os metais, que possibilitaram a elaboração e
aperfeiçoamento de técnicas de manufatura.

Ao longo do extenso continente africano foram formados importantes centros que se


dedicavam à produção metalúrgica. As experiências desses locais foram bastante utilizadas
pelos colonizadores europeus tanto no próprio território africano, como nas colônias da
diáspora, citando o caso análogo do Brasil, ao se valeram do conhecimento prévio de muitos
dos/as escravizados/as no período do ciclo do ouro para o desempenho das atividades de
extração e produções auríferas, sobretudo em Minas Gerais.

14
O nome utilizado no Benim para coral, eshugu, significa prestígio e riqueza, e acredita-se que o coral protege
a fertilidade da terra - uma propriedade renovada a cada ano, lavando-se as contas em sangue. Essa joia [...] é
passada através de gerações de Obas. - Tradução livre nossa.

2294
Isso se deve ao fato de que a produção de objetos em metais era de domínio, também,
de sociedades africanas, muito antes da chegada dos europeus em África. O conhecimento
especializado no âmbito da metalurgia foi primordial para criação de objetos confeccionados a
partir de mais de um metal, como é o caso, principalmente, do cobre que, ligando-se ao
estanho ou ao arsênio, forma a liga metálica que dá origem ao bronze, outro importante metal
bastante utilizado para produção de joias no Benim.

Nesse contexto, é possível perceber a maneira com que diferentes civilizações lidaram
de modos diversos com o emprego e utilização dos metais por sujeitos que dominavam a
metalurgia, que eram vistos como artífices por uns, e por outros reconhecidos como artistas
que trabalhavam diretamente na produção de joias. Nesse sentido, Matos afirma que:

O artista era considerado um agente capaz de reproduzir no plano material


algo que percebia em outra dimensão, ou seja, em um mundo superior não
localizável no tempo ou no espaço. Para cumprir este papel, ele precisaria
atingir um estado propício através da execução de uma série de
procedimentos. (MATOS, 2012, p. 138)

A partir da concepção africana de arte, que leva em conta não apenas o objeto estético,
para fruição, mas o percebe através de uma ótica de simbolismos e códigos próprios aos
grupos sociais que o produzem e, portanto, emitem mensagens entre si, ou seja, “uma tradição
artística calcada na verdade utilitária e mágica do cotidiano” (Araújo, 2016, p. 5), é possível
perceber as sociedades africanas. Nesse caso, daquelas oriundas do Benin e do Togo. Como
afirma Dohman:

Artefatos simples ajudam a contar histórias de vida, mas a singularidade do


seu design ou estilo são fatores que podem transformar mercadorias ou
objetos do cotidiano em símbolos ou sistemas de signos portadores de ideias
e significados com alto poder evocativo. (DOHMAN, 2014, p. 1-2)

Com base no pensamento do autor, ressaltamos o potencial desses artefatos serem


geradores de conhecimento acerca dessas sociedades, as quais influenciaram a formação
cultural brasileira. Para tanto, utilizamos como estratégia o cruzamento dos registros na
documentação do Museu, catálogos de museus africanos, bem como os documentos

2295
produzidos por Pierre Verger15 - importa informar que estes foram basilares para a nossa
investigação.

A documentação (fontes primárias) existente na Fundação Pierre Verger (FPV)


referente ao Museu Afro-Brasileiro/UFBA compreende correspondências oficiais e pessoais,
lista de encomendas, lista de objetos adquiridos, desenhos com esboços de ferramentas de
orixás, faturas com registros acusando pagamento e recebimento dos objetos com as
identificações dos locais e de seus fornecedores e ou produtores. Essa documentação, que foi
acessada durante o desenvolvimento do projeto no período 2016-2017, trouxe à tona novas
informações sobre a Coleção de Joalheria em Metal Africana, o que contribuiu para
compreensão de algumas lacunas e/ou informações díspares que, por vezes, surgiam acerca
das peças estudadas, além de permitir identificar os sujeitos-autores que as produziram.
Ribeiro (2008, p. 47) citado por Matos (2012, p. 139) ressalta que: “a identificação da autoria
das peças adquiridas por Verger é uma característica que distingue a coleção africana do
Museu em relação às demais existentes no país”.

Nos primeiros documentos produzidos pelo CEAO/UFBA, durante o processo de


criação do MAFRO/UFBA, e depois pelo próprio Museu, foram reproduzidas informações
incoerentes sobre as peças estudadas, (como o modo de aquisição, que é indicado,
integralmente, como doação tendo como doador majoritário o Ministério das Relações
Exteriores do Brasil) que vinham sendo repetidas em ações de documentação, verificadas
durante o desenvolvimento do projeto Sistematização e Documentação do Acervo do
Museu Afro-Brasileiro da Universidade Federal da Bahia16, quando foi realizada uma
revisão de toda documentação existente no Museu, seguida da checagem do acervo,
relacionando cada objeto ao inventário, as fichas de catalogação e de identificação.

15
Encontramos tais documentos na Fundação Pierre Verger (FPV), durante a pesquisa de campo, localizados em
uma pasta classificada como Museu Afro-Brasileiro (FPV 1B-299). Estes documentos foram digitalizados e
disponibilizados no MAFRO/UFBA, bem como serão entregues, ao final do projeto, à FPV. Esta iniciativa foi
importante no sentido de afunilar as informações constantes tanto na Fundação, quanto no Museu, e foi
possibilitada graças à receptividade da equipe da FPV a quem agradecemos na pessoa da Profª Drª Ângela
Lühning.
16
Este projeto foi contemplado pelo Edital MinC/UFPE de 2013 que tinha como objetivo principal formar
acervos digitais do patrimônio afro-brasileiro. Foi desenvolvido com a participação de quatro bolsistas,
estudantes de museologia, coordenado pela Prof,ª Dr,ª Maria das Graças de Souza Teixeira e supervisionado pela
museóloga Andrea de Britto. Atualmente é supervisionado pela museóloga Zinalva Ferreira.

2296
Nesse processo, pudemos verificar que os dados replicados na documentação
subsequente não eram, na sua totalidade, confiáveis uma vez que o conteúdo de alguns
campos apresentava muitas divergências, contribuindo para a permanência de ausências de
dados condizentes com os objetos, implicando, assim, na disseminação de informações
equivocadas. Diante desse cenário, a pesquisa aqui apresentada tem sido de suma importância
não só para atender ao objetivo inicial, o de subsidiar a construção de novas narrativas para o
projeto de requalificação da exposição de longa duração do Museu Afro-Brasileiro – UFBA,
mas para preencher lacunas ainda existentes, como a identificação da origem precisa das
peças, dos contextos de produção e, principalmente, desvelar nomes de seus produtores.

Importa ressaltar que, felizmente, Pierre Verger produziu uma documentação


organizada, onde sistematizou as informações necessárias, a partir das faturas dessas compras,
além de listas de arrolamento das aquisições, que foi preservada pela FPV. Essa
documentação possibilitou identificar, além dos locais onde as peças foram adquiridas,
também os sujeitos-autores e/ou intermediários para a aquisição destas, a exemplo do artesão
Aboudou Idrissou, ligado ao endereço Carré 327, Cotonou, Dahomey – Benim, como
identificado na Fatura 4, e de Bakari Abou, estando ligado ao território do Quartier Tagogo na
cidade de Porto Novo – Benim. Conforme ilustram as imagens nas figuras abaixo:

Figura 3: Fatura 4 Figura 4: Fatura 17

Fonte: Pasta Museu Afro-Brasileiro - Fundação Pierre Verger

2297
Estes documentos possibilitaram não só traçar uma pequena parte da biografia dos
objetos em questão, a partir, também, da assinatura dupla em cada fatura, certificando autoria
dos produtores/fornecedores deste tipo de peças, e de um outro tipo de assinatura que são as
observações manuscritas a lápis feitas pelo próprio Verger. Ao nosso ver, esses escritos são
como as marcas por incisões, tanto no corpo metálico das joias, como no corpo físico
daqueles/as aos quais os objetos se destinaram.

Nesta perspectiva, os autores destas assinaturas representam os sujeitos sociais, foco


central da nossa pesquisa, neste caso, o artesão; o artífice que desenvolvia, naquele contexto,
uma arte conhecida como “Arte de Corte”, pois era incentivada pelo Oba (chefe político) do
Benim, onde artesãos/ferreiros eram contratados a fim de desenvolver peças para o uso real e
cerimonial não só em ocasiões importantes, mas também para o cotidiano, sendo impelidos a
exercitarem sua criatividade na criação e execução cuidadosa das peças, para melhor servir a
corte.

Esse conjunto de informações nos possibilita reconstituir parte do percurso


estabelecido desde a produção, o processo de aquisição e incorporação destas peças ao acervo
do Museu. Deste modo, explicitando nomes dos sujeitos que participaram da tessitura da sua
biografia [do objeto] mostra-se um dos caráteres que constituem o patrimônio cultural,
ressaltado por Lemos (1981), que é o saber fazer. Esta categoria valoriza, sobretudo, a ação
humana que é responsável pelas diversas realizações que permeiam a história da humanidade.
Conquanto os objetos de museus, muitas vezes, são apresentados como se fossem esvaziados
de sentidos conferidos pela ação humana geradora.

Considerações finais

Diante do exposto acima, consideramos que a pesquisa contribuiu sobremaneira para


adensar o corpus de conhecimento que se tem sobre o acervo do museu, acerca da Coleção
Africana, bem como iniciar o preenchimento de lacunas ainda existentes na documentação
museológica e, consequentemente, na narrativa da exposição de longa-duração. Verificou-se

2298
também a importância do cruzamento de registros diversificados, no sentido do
desenvolvimento da pesquisa museológica, que deve buscar diálogo entre fontes documentais
distintas ampliando o escopo epistemológico para dar conta das várias facetas que envolvem a
concepção, produção, distribuição e usos dos objetos de museus.

Isto posto, assegura-se a construção de narrativas que possam contribuir para leituras
que fomentem a reflexão tanto daqueles/as que as produzem, neste caso os/as profissionais de
museus e o público visitante. Tendo em conta que se o museu é uma grande mídia que está a
serviço do desenvolvimento social, como preconizam o ICOM – Conselho Internacional de
Museologia e o Instituto Brasileiro de Museus, acreditamos, portanto, que esta é a função
social do museu, à medida em que preserva a memória, evidenciando a humanidade imbricada
na relação entre os sujeitos e as realidades das quais fazem parte, mediadas pelos objetos.
Ressaltamos ser importante o desdobramento desta pesquisa, visto que este é um recorte da
Coleção Africana, e ainda se faz necessário preencher as demais lacunas referentes a outros
grupos de objetos.

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2299
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2300
O TRABALHADOR NEGRO NO MUSEU DE ARTES E OFÍCIOS:
REPRESENTAÇÃO E SILENCIAMENTO

Sofia Gonçalez*
*Programa de Pós-Graduação Interunidades em Museologia
da Universidade de São Paulo (PPGMus-USP)

Resumo: O artigo propõe uma descrição analítica da exposição de longa duração do Museu de Artes e
Ofícios de Belo Horizonte, que abriga objetos relacionados a ofícios pré-industriais, sobretudo
instrumentos de trabalho. Observamos os núcleos expositivos que apresentam ofícios exercidos por
homens e mulheres negros, sobretudo escravizados, debatendo a forma pela qual estes trabalhadores
são representados. Procuramos demonstrar que, apesar do MAO ser uma experiência recente, as ideias
mobilizadas no imaginário nacional pelo mito da democracia racial permanecem agentes no discurso
da exposição. Além disso, o artigo recupera o início da trajetória do Museu de Artes e Ofícios,
apresentando aspectos dos projetos originais, sobretudo sua relação com a corrente museológica dos
ecomuseus.

Palavras-chave: exposição; democracia racial; apagamento da escravidão; Museu de Artes e Ofícios.

Abstract: The article proposes an analytical description of the long-term exhibition of the Museum of
Arts and Crafts of Belo Horizonte, which houses objects related to pre-industrial crafts, mainly labor
instruments. We observe the expository nuclei that present offices exercised by black men and women,
especially enslaved, debating the way in which these workers are represented. We try to demonstrate
that, although the MAO is a recent experience, the ideas mobilized in the national imaginary by the
myth of racial democracy remain agents in the discourse of the exhibition. In addition, the article
recovers the beginning of the trajectory of the Museum of Arts and Crafts, presenting aspects of the
original projects, especially its relation with the current museum of the ecomuseums.

Key words: exhibition; racial democracy; erasure of slavery; Museum of Arts and Crafts.

2301
O Museu de Artes e Ofícios (MAO) configura-se como uma experiência pioneira no
cenário museológico brasileiro, abrigando uma expressiva coleção de instrumentos de
trabalho associados aos ofícios manuais. Coleções semelhantes estão presentes em outras
instituições, no entanto, além de mais volumoso, o acervo do Museu de Artes e Ofícios
recebeu um tratamento expográfico diferente e inovador, quando da sua inauguração,
inspirado na estética expográfica dos ecomuseus franceses do século XX. A exposição
apresenta soluções discursivas que procuram revelar beleza em objetos comumente
entendidos como rústicos, sendo então uma proposta museológica inusual no Brasil.

Sob a responsabilidade do Instituto Cultural Flávio Gutierrez (ICFG), o museu tornou


pública a coleção privada herdada por Ângela Gutierrez, constituída de objetos associados aos
diversos ofícios pré-industriais do Brasil, especialmente instrumentos de trabalho. Localizado
na Praça Rui Barbosa, no centro de Belo Horizonte, o Museu ocupa os edifícios da antiga
Estação Ferroviária Central de Belo Horizonte e da Estação Oeste de Minas, que abrigam
também atualmente uma estação de metrô de superfície.

O programa museológico ficou, inicialmente, a cargo da empresa paulista Expomus,


liderado por Maria Ignez Mantovani Franco. ICGF e Expomus, personificados nas figuras de
Ângela e Maria Ignez, já haviam realizado outros projetos com êxito, o que levou Ângela a
convidar Maria Ignez para encabeçar o projeto. Maria Ignez Franco aceitou o convite e propôs
a montagem de uma equipe de consultores curatoriais, a ser formada pela museóloga Maria
Cristina Bruno e o historiador Nicolau Sevcenko. O projeto museográfico e arquitetônico foi
executado pelo francês Pierre Catel, museógrafo-arquiteto formado por George Henri
Rivière17 na década de 1970, tendo sido escolhido pelo ICFG também por já ter realizado
outros trabalhos para o instituto.

A exposição permanente do MAO é herdeira da tradição museológica dos ecomuseus,


como indica o Programa Museológico para o Museu de Artes e Ofícios (FRANCO, 2004, p.

17
Como se sabe, um dos profissionais mais expoentes da tradição do ecomuseu é George Henri Rivière, cuja
trajetória foi marcada na França e no mundo pela musealização de acervos de cultura popular e pela consagração
de sua “definição evolutiva” de ecomuseu, compilada no livro La museologie selon George Henri Rivière.

2302
38). Buscando musealizar o trabalho, os ofícios e as técnicas dos trabalhadores, a matriz dos
ecomuseus mostrou-se pertinente aos idealizadores do projeto do Museu de Artes e Ofícios.
Ainda que não se pretendesse construir um ecomuseu, a equipe utilizou-se dessa referência no
estabelecimento de seu conceito gerador:

O conceito gerador do Museu de Artes e Ofícios objetiva abordar o trabalho


como herança patrimonial, no que se refere aos gestos, às técnicas, à
multiplicidade dos ofícios e das artes, às formas de subsistência e de
organização sociocultural, à apropriação e transformação do território e da
natureza (...)
Este conceito gerador foi inspirado em elementos constitutivos dos museus
de sociedade, ecomuseus, museus de técnica, pois estes evidenciam
diferentes diretrizes para o tratamento do patrimônio vinculado ao trabalho,
como resultado das relações que se estabelecem entre os gestos e o domínio
das técnicas, e são, também, modelos de musealização que privilegiam os
ofícios e as artes (FRANCO, 2004, p. 40).

A partir do conceito gerador, segundo Maria Ignez Franco, pretendia-se explorar


enfoques temáticos relativos às referências materiais e imateriais, às questões de gênero e ao
perfil dos lugares de memória do trabalho (FRANCO, 2004, p. 40). Algumas das missões
institucionais seriam, para ela, mobilizar o homem como elemento central do processo
histórico; agregar o contemporâneo ao histórico; e questionar o conflituoso universo do
trabalho no Brasil, numa perspectiva do trabalho como eixo transformador da sociedade
(FRANCO, 2004, p. 46-47).
O projeto museográfico de Pierre Catel parecia estar, em certa medida, afinado com
estes princípios. Apesar de seu texto justificativo ser curto e pouco específico, ele afirma ter
projetado espaços para apresentação da “organização social do trabalho e o gestual do
trabalhador”, bem como a instalação de um “percurso temático que apresenta o trabalho
artesanal e o trabalho realizado no interior da casa” (CATEL, 2004, p. 50) e um espaço para
apresentação do “trabalho artesanal e o trabalho realizado em oficinas” (CATEL, 2004, p. 51).
No entanto, apesar desses discursos minimamente consonantes, uma leitura do relatório
produzido pela Expomus e de seus anexos18 revela um trabalho no qual houve

18
Documentação não publicada, gentilmente cedida por Maria Cristina Bruno.

2303
dificuldades para o estabelecimento de consensos dentro da equipe, opondo Catel ao grupo da
Expomus. Como exemplo, citamos os dissensos gerados em função das sugestões do
consultor em História Nicolau Sevcenko, que entendia que um museu que tratasse do trabalho
no Brasil deveria abordar a questão da tradição escravista do trabalho manual e sua
estigmatização. Para ele, seria preciso marcar as diferenças entre trabalho livre e trabalho
escravo. Sevcenko afirmou em reunião:

Quanto mais na introdução do percurso melhor, para fixar o conceito, para


que as pessoas entrem sabendo as diferenças cruciais entre o trabalho
escravo, o trabalho livre, e o trabalho artesanal e artístico, trabalho
assalariado (...) é importante lembrar que o trabalho no Brasil é de tradição
essencialmente escravista (SEVCENKO, 2002, não publicado)

Como se vê, as distinções entre as diversas formas de trabalho eram importantíssimas


para esse historiador, devendo estar já no início da exposição, para que a apreensão do
visitante fosse orientada por essas diferenças. E tal distinção deveria assinalar as
reverberações que a dimensão escravista do trabalho no Brasil ainda provoca.
Ele afirma, em seu texto de consultoria, que a opção dos colonizadores portugueses
pelo trabalho cativo e a consequente relação entre colonizadores e escravizados se tornaram o
padrão fundamental a partir do qual se processou a formação histórica da sociedade brasileira.
Nesse sentido, o MAO poderia promover uma privilegiada reflexão sobre a singularidade da
evolução socioeconômica do Brasil, marcada pelas heranças da escravidão e pelos entraves
que ela impôs (SEVCENKO, 2002, não publicado).
Pierre Catel entendia, porém, a questão de forma diferente, tendo discordado de
Sevcenko nas reuniões19, propondo que a exposição deveria versar sobre aspectos mais
“objetivos”. Em entrevista posterior já a inauguração do Museu, Catel revela, infelizmente,
seu pouco conhecimento sobre a força da tradição escravista nas relações de trabalho e na
história do Brasil:

19
Como pudemos verificar nas atas, sobretudo da reunião realizada em 22 de maio de 2002. Esta ata se encontra
anexa ao relatório da Expomus.

2304
temos um museu que se construiu sobre demonstrações da evolução das
técnicas, efetivamente: energias humana, animal, hidráulica, elétrica – e em
cada uma delas, historicamente, talvez possamos explicar melhor por que a
escravidão desapareceu. Não foi apenas uma forma de pensar, mas foram
também as origens da evolução técnica que permitiu descobrir que não
tínhamos mais necessidades de escravos (CATEL, 2005, p. 329).

Assim sendo, devido aos entraves no trabalho com o arquiteto e a uma divergência
quanto ao cronograma entre Expomus e ICFG, a empresa paulista encerrou suas atividades
junto ao projeto em 05 de julho de 2002.
De acordo e a partir do pensamento de Sevcenko, que era uma proposta inicial para a
abordagem curatorial da instituição, entendemos que o acervo do Museu de Artes e Ofícios
teria a potencialidade de ser mobilizado para representar uma interpretação sobre a história do
Brasil capaz de colocar em destaque a reflexão sobre as dinâmicas, violências e resistências
que permeiam o mundo do trabalho no país. Contudo, essa leitura que o historiador entendia
como necessária, centrada na reflexão sobre a escravidão e as relações e consequências
sociais que ela engendrou e engendra, e suas diferenças em relação a outros regimes de
trabalho, não se verifica na atual exposição. Não orientada plenamente pela proposta histórica
de Sevcenko, o museu fez aparecer outra interpretação, já que enquanto discurso a exposição
é sempre mediadora de ideias.
Tentaremos demonstrar que a exposição, tal como se apresenta atualmente, é reflexo,
em certa medida, da ideia de democracia racial. Os profissionais responsáveis pelo
assentamento da exposição após da saída da Expomus tornaram-se vetores e reflexo –
inconscientemente, cremos – dessa interpretação sobre o Brasil e o brasileiro, atestando que a
ideia de democracia racial ainda está em forte circulação no Brasil.
Entendemos que, no MAO, o tema da escravidão aparece menos do que seria
necessário, e menos do que Sevcenko aconselharia, imaginamos.

2305
Figura 120: mapa do primeiro nível do museu.

Fonte: disponível no site da instituição. Acesso em 12 de junho de 2017.

No prédio A, estão dispostos, entre outros, os núcleos relativos aos Ofícios do


Comércio, compreendidos por Carregador e Comerciante, que apresentam uma expressiva
coleção de balanças e pesos de medida utilizados por estes profissionais em seu trabalho.
Próximo a estes núcleos, em um nicho dentro da parede do edifício (FIGURA 2), há uma
balança para pesar escravos (FIGURA 3) e os pesos usados como referência, colocada à parte
do restante dos objetos da exposição. Na legenda, consta o texto informativo de caráter quase
anedótico:

No Brasil a compra de escravos por peso não era prática comum. As


referências históricas encontradas são provenientes da América do Norte
onde, segundo documentos encontrados na Biblioteca Pública de Nova York,
crianças e mulheres eram comercializadas pelo peso.

20
Siglas referentes aos agrupamentos de ofícios: A1: ofícios do transporte; A2: ofícios ambulantes; A3: ofícios
do comércio; A4: proteção do viajante; B1: jardim das energias; B2: ofícios da mineração; B3: ofícios do fogo;
B4: ofícios da madeira; B5: ofícios da cerâmica; B6: ofícios do comércio; B7: ofícios da lapidação e ourivesaria;
B8: ofícios do couro; B9: ofícios da terra.

2306
Figura 2: nicho Figura 3: balança de pesar escravos

Fonte: fotografia da autora, 2017.

Trata-se de uma legenda informativa e não problematizadora. Considerando que a


forma como expomos interfere na forma como aquele conteúdo será apropriado pelo visitante,
colocar em separado um objeto tão emblemático, e ainda com menos iluminação que o
restante da exposição, dá a ele o caráter de exceção, de exótico, corroborado pelo conteúdo da
legenda. A balança está exposta, mas está quase escondida. Caso passe desapercebida por
algum visitante, sua ausência não será sentida no discurso da exposição.
Ainda que possa sugerir uma ideia de humilhação e desumanização, a balança não se
configura como um objeto de tortura, não é o óbvio grilhão presente em tantos museus
brasileiros para a representação da escravidão. Seria então um objeto interessante para se pôr
o tema em questão, associando-o ao ofício do comerciante. Seria possível promover uma
discussão sobre a prática de comercializar seres humanos, informando ao visitante como era
feito esse comércio no Brasil, já que a venda por peso não era comum, como apontado na

2307
legenda. E, talvez numa camada mais profunda de apreensão, incitar uma reflexão sobre o
comércio de escravos como forma de circulação e acúmulo de capital. Porém, a balança de
pesar escravos é apenas apresentada ao visitante.
Ao que parece, o local foi escolhido para abrigá-la devido a uma aproximação
tipológica com as outras balanças presentes naquela área do museu. Contudo, não entendemos
que esteja construído efetivamente um diálogo, visto que a balança não foi associada ao ofício
do comerciante e está deslocada dentro da parede. Não foi feita nenhuma alusão a quem
comercializava e quem comprava escravos, e não se referiu a cor de cada um desses
personagens.
Imediatamente em frente ao nicho onde se encontra a balança, há um módulo dedicado
ao Carregador (FIGURA 4), em que encontramos um deque um grande objeto sobre o qual
está um saco rústico. Ao lado, um manequim carrega outro saco rústico nos ombros e pesos
de referência encontram-se dispostos pelo chão.

Figura 4: módulo expositivo dedicado ao Carregador.

Fonte: fotografia da autora, 2017.

2308
Há dois painéis que contam com imagens, por exemplo de Debret, e textos21. Neles, há
referência ao trabalho dos africanos escravizados como carregadores, mas a associação dos
carregadores ou dos comerciantes com a balança logo em frente dependerá de uma elaboração
demasiado grande por parte do visitante, que nós mesmos só fomos capazes na redação deste
texto.
Além disso, como fica claro na figura 4, não há referência na primeira camada de
comunicação – a dos objetos, figuras e texto principal22 – ao fato de que aquele ofício foi
bastante comum entre os negros escravos. O texto traz informações interessantes, mas
também se mostra insuficiente: explica bastante pouco com a primeira afirmação, e já parte
para o presente trabalho de carregadores nos portos sem especificar se este serviço continua
sendo executado por negros majoritariamente, mas pode dar a entender que sim. A referência
à “força de seus ombros e músculos” parece ser uma manifestação de um fenômeno
recorrente nos museus brasileiros, no qual se verifica uma tendência em se destacar os
atributos físicos dos negros como uma das poucas contribuições que eles poderiam dar à
sociedade. O trecho final sobre sindicatos e luta por melhores condições de trabalho denota
que anteriormente as condições eram ruins, mas pode sugerir também que o passado era
marcado por uma atitude de submissão desses carregadores, que aceitavam tudo “por um
vintém”, sem reclamar.
A não problematização sobre a escravidão é um problema também nos núcleos
dedicados aos Ofícios Ambulantes. Nos Vendedores Ambulantes (FIGURA 5), há fotografias
no primeiro nível de comunicação com o público: um homem negro vendedor de doces; um

21
Painel da esquerda: “No século XIX, os negros que viviam nas cidades carregavam tudo por um vintém.
Apesar da crescente modernização das tecnologias de produção, algumas atividades ainda utilizam o trabalho
braçal. Nos portos, por exemplo, carregadores e estivadores continuam se valendo da força de seus ombros e
músculos.
A grande diferença é que, hoje, essa categoria está organizada em sindicatos, com capacidade de reivindicar
melhores condições de trabalho.”
Painel da direita: “Até meados do século XIX, o transporte de carga no Brasil empregava, principalmente, a
força humana. Eram usados, para essa finalidade, escravos africanos ou índios.
‘... nas costas, nos ombros, no pescoço e na cabeça de homens é que se arrebatavam não só fardos e caixas de
mercadorias como também viajantes, estes escanchados no cangote, ou então, como preferiam os mais
comodistas e aquinhoados, espichados em redes frescas e acalentadas ao balanço ritmado dos carregadores’,
registrou José Alípio Goulart, em seu livro Tropas e Tropeiros na Formação do Brasil. ”
22
No painel utilizado para apresentação do ofício, que em alguns casos conta com um verso popular ou trecho
de narrativa de viajante, neste caso se lê apenas “Carregador” e “A2 Ofícios do comércio”.

2309
homem branco ou mulato vendedor de vassouras; uma mulher negra, acompanhada de um
menino negro, vendedora de frutas. Os objetos resumem-se a tabuleiros de doces. Na
legenda23 de um dos tabuleiros, encontramos um texto meramente informativo e que não
corresponde às fotografias, visto que quem está vendendo doces é um homem. O texto do
painel24 novamente atesta o protagonismo das mulheres como vendedoras de comida, e faz
um paralelo muito interessante com os camelôs, propondo a percepção da permanência deste
tipo de serviço nas cidades brasileiras. Porém, apesar de afirmar que os negros de ganho
“tinham no balaio o seu maior instrumento de trabalho”, não há balaios em exposição, o que
configura um discurso conflitante entre o texto de apoio e os objetos.
Figura 5: módulo expositivo dedicado ao Vendedor de rua.

23
Legenda: “tipo de tabuleiro usado pelas quituteiras, ofício muito comum entre as ‘escravas de ganho’ no
Brasil Império”
24
Painel: “Os ambulantes têm uma longa tradição na paisagem urbana do Brasil. Como vendedores ou
prestadores de pequenos serviços, são personagens que resistem à passagem do tempo. No século XIX, os
ambulantes eram componentes típicos das ruas das grandes cidades. Pessoas pobres que participavam de feiras
livres e mercados públicos, exibindo as mercadorias em baús pendurados no ombro ou em caixas de madeira
abertas.
Os negros de ganho (escravos) estavam por toda parte no Rio de Janeiro e tinham no balaio o seu maior
instrumento de trabalho. Vendia-se de tudo: frutas, verduras, utensílios e adornos.
As mulheres negras, escravas ou libertas, ocupavam os mercados e monopolizavam o comércio de comidas
preparadas, doces ou salgadas, vendidas na rua, em tabuleiros. Entre os ambulantes havia músicos que animavam
festas religiosas ou profanas e também aqueles que, com seu realejo, vendiam a sorte nas ruas.
Atualmente, os camelôs são a face mais visível da economia informal, ocupando as ruas das grandes cidades.
Nas praias e nos eventos populares, são os ambulantes que matam a sede e a fome do público, vendendo seus
produtos em carrinhos ou em pesadas caixas de isopor.”

2310
Entendemos que seria interessante uma discussão sobre as especificidades do trabalho
do escravo de ganho em comparação, por exemplo, ao escravo lavrador, condicionadas pelo
espaço urbano e pelo fato de trabalharem com vendas e, portanto, dinheiro. A menção ao
negro de ganho e ao trabalho na cidade poderia funcionar como disparador para uma
discussão sobre as formas de resistência inventadas por ele no espaço urbano, de forma que o
museu se colocaria no cenário da representação do negro superando o modelo da submissão e
dos atributos sentimentais, e ressaltando sua participação ativa na dinâmica político-social,
para além de sua condição de vítimas de exploração.
Outra possibilidade seria o questionamento sobre as diferenças entre ser mulher e ser
homem e trabalhar na rua, já que discussões sobre gênero estarem previstas no programa
museológico. Entretanto, a exposição se furtou a possibilidade de mobilizar a escravidão e
questões paralelas, abordando tais temas de forma secundária, em legendas e textos pouco
legíveis e de maneira informativa.
Em outro núcleo sobre os Ofícios Ambulantes, entre o trabalhador de rua e o
fotógrafo lambe-lambe, temos um módulo dedicado ao Dentista e ao Barbeiro. Nele encontra-
se um painel vertical (FIGURA 6) colocado de forma perpendicular ao corredor, contendo
duas reproduções de imagens de Debret sobre escravos urbanos, entre as quais se encontra um
texto sobre barbeiros, dentistas e cirurgiões. Nessas imagens, vemos homens negros escravos
exercendo o ofício de barbeiro, tratando de outros homens negros. As imagens, no entanto,
são utilizadas apenas como ilustração25, e uma ilustração deslocada, porque efetivamente não
há no texto do painel26 qualquer referência ao fato de esse ofício ter sido exercido por

25
O uso de imagens, sobretudo de época, como ilustração e sem problematização sobre a produção da imagem é
alvo de vasta literatura. Não entraremos neste debate, apesar de sua notável relevância.
26
Painel: “Barbeiro, dentista e cirurgião são profissões que se entrelaçam em suas origens alimentando, por
muito tempo, o imaginário popular: ‘quem lhe dói os dentes vai a casa dos barbeiros’. Ainda no começo do
século XIX, o barbeiro era identificado como o indivíduo que fazia barbas e aparava o cabelo, arrancava dentes e
aplicava sanguessugas. As técnicas eram transmitidas, na prática e oralmente, de geração a geração.
A barbearia, ambiente predominantemente masculino, já era importante como ponto de encontro: nela se
trocavam informações e circulavam as notícias locais. Havia também barbeiros ambulantes.
Como material de trabalho, os barbeiros utilizavam bacia de latão modelada de forma a se adaptar ao pescoço; e
o próprio dedo ou uma noz, por dentro da boca do cliente, para melhor escanhoar – era a barba de caroço ou
barba de dedo. O barbeiro ambulante usava também o artifício de pedir ao freguês para fazer bochecha,
facilitando, assim, o movimento da navalha: “Ioiô, fazê buchichim”.
Ao final do século XIX, com o advento dos profissionais liberais de formação acadêmica, fica mais definida a
distinção entre barbeiro, dentista e cirurgião.”

2311
escravos e também por homens livres brancos – e o que essa condição poderia revelar sobre
as dinâmicas sociais em que esse ofício se desenvolvia. As imagens estão ali, cremos, porque
Debret é um clássico na representação de ofícios no Brasil e porque “retratam” a profissão
representada, mas não se propõe uma reflexão sobre as imagens.
Atrás do painel (FIGURA 7), sobre um deque, há um manequim vestido como
Barbeiro próximo a uma cadeira, como quem convida o freguês a sentar. Logo atrás, há uma
fotografia de dois homens negros, na qual se vê que o assento usado por eles é bastante
diferente da cadeira exposta, mas tal diferença não é explorada. Ao lado há o painel sobre o
Dentista, com a especificidade de não ter fotografia, mas um diploma do século XIX. A
possibilidade – e a necessidade – de pôr em questão a formação dos profissionais no Brasil
não foi aproveitada com a exposição deste diploma, tendo apenas sido sugerida pelo texto do
painel. Entendemos que caberia a problematização sobre o prestígio que se dedica no Brasil às
profissões diplomadas em comparação aos ofícios manuais e qual a colocação dos negros – já
que se optou por iniciar o módulo com as pinturas de Debret – nessa condição de diplomados
ou não, no XIX ou atualmente.
Figura 6 – painel referente aos ofícios do Barbeiro e do Dentista.

Fonte: fotografia da autora, 2017.

2312
Outra reflexão interessante neste sentido seria sobre o fato de que cirurgiões e
dentistas não são atualmente considerados trabalhadores manuais, enquanto o barbeiro o é. A
formação acadêmica exigida dos profissionais de saúde e o prestígio associado a elas apaga
sua condição de trabalho manual, a que se associa pouca dignidade. Outro dado a respeito
dessa questão é a baixa porcentagem de pessoas negras que exercem atualmente as profissões
da área da saúde. A proposta de Sevcenko caminhava exatamente neste sentido, de refletir
sobre essas atribuições de sentido negativo devido à herança escravista, mas tais
possibilidades não foram exploradas na exposição. As diferenças são apagadas em função
daquilo que há de comum no passado, o trabalho no espaço urbano. Tudo que seria diferente –
livres ou escravos, diplomados ou não, brancos ou negros – não precisa, no entendimento da
exposição, ser posto em discussão.
Eichestedt e Small, analisando as falas oficiais de antigas fazendas escravistas do sul
dos Estados Unidos, hoje abertas à visitação, perceberam existir um padrão discursivo de
apagamento da instituição da escravidão e dos homens escravizados. Segundo eles, a
promoção do apagamento e da marginalização se dá na combinação entre o que está presente
e o que não está (EICHSTEDT; SMALL, 2002, p. 105), das informações que são incluídas e
das que não são (EICHSTEDT; SMALL, 2002, p. 107).
Os autores propõem o conceito de aniquilação simbólica, como uma poderosa
estratégia retórica e representacional para obscurecer a instituição da escravidão
(EICHSTEDT; SMALL, 2002, p. 106). Esta estratégia se opera, segundo eles, a partir de
diversos mecanismos. Entre eles, dois nos interessam particularmente: menção dos
escravizados ou negros de forma superficial27 e fugaz, geralmente numa afirmação
descartável dos fatos, sem detalhes ou elaboração, e geralmente com pouco ou nenhum
contexto; ausência de menção, reconhecimento ou discussão sobre a escravidão e os
escravizados (EICHSTEDT; SMALL, 2002, p. 107).
Identificamos no discurso da exposição do MAO a presença desses mecanismos – ou,
pelo menos, de seus efeitos –, na medida em que a escravidão é apresentada de forma apenas

27
No original, perfunctory, que pode significar também negligente, descuidado, por mera formalidade. Estes
significados parecem também servir ao sentido que queremos dar aqui.

2313
informacional e por vezes até anedótica. O primeiro deles especialmente no núcleo do
Trabalhador de rua, em que nem ao menos havia uma relação direta entre o texto e os objetos
expostos. Com os autores, entendemos que o silêncio e a superficialidade no tratamento são
bastante agentes, bastante responsáveis pela produção de sentido que a exposição promove.
Quando ela não discute a escravidão, apenas menciona tangencialmente, ela contribui para o
ofuscamento da importância da escravidão numa reflexão sobre a história do trabalho no
Brasil.

Figura 7: módulo expositivo dedicado ao Barbeiro e ao Dentista.

Fonte: fotografia da autora, 2017.

Tendo em vista que toda exposição é, também, um produto de seu tempo e seu lugar,
procuramos demonstrar nessa descrição analítica que ocorre na exposição do MAO um
apagamento da condição negra e escrava destes trabalhadores. Entendemos que tal
silenciamento deve-se a agência das ideias mobilizadas pela “democracia racial” ainda em
forte circulação no Brasil, aliada a um desconhecimento por parte do museógrafo responsável
sobre a história do trabalho no Brasil e sua tradição escravista.

Em seu texto “O mito da democracia racial no Brasil”, Emília Viotti da Costa recupera
o surgimento e o declínio da ideia da democracia racial. Para ela, a chave para compreender o
padrão racial, a formação do “mito da democracia racial” e sua crítica encontra-se no sistema
de clientela e patronagem e no seu desmoronamento (COSTA, 1998, p. 380). Neste sistema

2314
vivenciado principalmente durante o período colonial, brancos pobres, negros livres e mulatos
seriam a clientela de uma elite branca que controlaria a mobilidade social, negando ou
permitindo ascensões conforme seus próprios interesses. Não havia, portanto, um racismo
oficial ou discriminações legais, como encontramos nas experiências de outros países. Essa
aparente possibilidade de mobilidade criava a sensação de que as diferenças reais eram as
sociais, não as raciais.

Tendo observado e analisado este fenômeno nos anos 1930, poucas décadas depois do
desmantelamento do sistema, e convencidos de que os portugueses não eram movidos por
sentimentos racistas, intelectuais como Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda
consolidaram esta interpretação de que as diferenças reais eram as sociais, não as raciais 28.
Como afirmou Costa, “os cientistas sociais e os historiadores operam no nível da mitologia
social e eles mesmos, quer queiram quer não, ajudam a destruir e a criar mitos” (COSTA,
1998, p. 369).

Como a própria autora indica no final do texto, “no Brasil, o mito da democracia
racial não está completamente morto” (COSTA, 1998, p. 386), mesmo atualmente, tantos
anos depois da publicação original. A ideia de que não existe racismo no Brasil é bastante
difundida no senso comum e a representação do Brasil a partir do encontro harmonioso de três
raças é recorrente, especialmente no âmbito das práticas e representações culturais. São
exemplos recentes disso as cerimônias de abertura da Copa do Mundo de 201429 e a dos Jogos
Olímpicos de 201630. Assim, apesar do esforço de gerações de revisionistas a partir dos anos
1960, a democracia racial permanece ressoando fortemente no imaginário coletivo sobre o
Brasil. Acreditamos, porém, que o mito não só não está completamente morto, como está
bastante vivo e atuante, inclusive nos museus do país.

28
A reflexão destes intelectuais é, sem dúvida, muito mais complexa, bem como sua participação na circulação
das ideias que consolidaram uma certa interpretação de Brasil a partir dos anos 1930. Por limitações de espaço e
proposta, apresentamos este resumo, grosso modo, na intenção de indicar as bases de nosso argumento. Uma
discussão mais pormenorizada está sendo feita na dissertação de mestrado em andamento, da qual este artigo é
fruto.
29
A abertura da Copa do Mundo antecedeu o primeiro jogo da competição, realizado na Arena Corinthians, em
12 de junho de 2014. Não encontramos o vídeo oficial do evento.
30
A cerimônia de abertura teve lugar no Rio de Janeiro, no Estádio no Maracanã, na noite do dia 5 de agosto de
2016. A gravação oficial do evento pode ser vista em:
https://www.youtube.com/watch?v=N_qXm9HY9Ro

2315
A forma como os museus brasileiros representam a população negra ainda hoje, salvo
exceções, continua reverberando tais mitos. Quando o negro brasileiro é representado nos
museus brasileiros31, são estereótipos resultantes da democracia racial que aparecem. Por
vezes, a negritude desses personagens é negada ou embranquecida. Analisando o Museu
Nacional de Belas Artes, por exemplo, Myriam Sepúlveda dos Santos conclui que o “silêncio
sobre a origem racial de artistas brasileiros pode ser explicado a partir do imaginário nacional,
ou seja, a partir da ideia de democracia racial” (SANTOS, 2007, p. 325). Em casos como este,
opera-se um discurso unificador que combate a polaridade entre branco e negro, valorizando
uma certa miscigenação – a que embranquece –. Nesse pensamento, seria desnecessário
apontar a negritude dos artistas e intelectuais, afinal “somos todos mestiços”.

Em outra operação, o negro é comumente associado a tudo que se distancia das


faculdades da razão: a tangibilidade do corpo físico, o gingado para a música, a sensibilidade
religiosa. Ainda que seja uma representação que se pretende positiva, ela é reducionista e
insuficiente para dar conta de toda a complexidade da participação deste grupo na sociedade
brasileira. Foi o caso do núcleo do Carregador (FIGURA 4), como vimos, em que
carregadores atuais “continuam se valendo da força de seus ombros e músculos”, apesar das
novas tecnologias, das quais eles são, aparentemente, “incapazes” de se apropriar.

Analisando a Coleção Perseverança, incorporada ao acervo do Instituto Histórico e


Geográfico de Alagoas, Lody identifica o fenômeno, presente em outras instituições, de
associação do negro a aspectos tão somente religiosos e questiona o que ele chama de
“suficiência de representação”, ou seja, expõe que este hábito de caracterizar o negro apenas a
partir de suas práticas religiosas não é suficiente para representá-lo: “retifica o âmbito da
religião como campo possível de manifestação. Uma espécie de território esperado e
permitido de revelação etnocultural do negro brasileiro” (LODY, 2005, p. 32). Além de
insuficiente, tal hábito transforma-se em vício e promove o estigma do negro como relevante
apenas no que tange às manifestações sensíveis, aprisionando-o fora das construções

31
Novas instituições têm surgido no cenário museológico brasileiro, como o Museu Afro Brasil, apresentando
acervos e expografias que valorizam as produções e práticas afro-brasileiras. Porém, entendemos que uma
problematização sobre as “antigas” formas de representação do negro ainda se faz necessárias, porque ainda
estão presentes em muitas instituições, sobretudo as de caráter mais clássico, como parece ser o caso do MAO, a
despeito de sua pouca idade.

2316
intelectuais e políticas, assim como da memória do trabalho e das formas de exploração e
acumulação econômicas.

Talvez ainda mais grave do que a insuficiência na apresentação de aspectos positivos,


seja a quase onipresente representação da escravidão, e da associação do negro enquanto
escravo, e tão somente escravo submisso, promovendo mais um reducionismo baseado quase
sempre na hiper exploração visual dos instrumentos de castigo e tortura, perpetuando mais um
estereotipo sobre quem é o negro e qual papel ele ocupa na sociedade brasileira, ou seja, de
submissão e humilhação. Foi o caso, como vimos, do núcleo do Carregador (FIGURA 4) e da
Balança de pesar escravos (FIGURAS 2 e 3).

Concordamos com a consideração de Véron e Levasseur que “expor não é


simplesmente dar acesso a um sentido que seria próprio, de maneira autônoma, ao que
expomos; expor é, sempre e inevitavelmente, propor, sobre o que mostramos, um sentido
particular” (VÉRON; LEVASSEUR, 1991, p. 21, grifo dos autores). Sendo a exposição uma
proposta, ela tem agência sobre a apropriação e subsequente negociação que o visitante fará
daqueles conteúdos. Como afirmou Marília Cury, “recai sobre a enunciação uma enorme
responsabilidade na complexidade do produto cultural que será apropriado pelo público de
uma forma complexa” (CURY, 2005, p. 91).

Considerando, assim, a responsabilidade do museu e de seus comunicadores no


processo de comunicação museológica, se dissolve qualquer ilusão de neutralidade, tanto do
enunciado como dos próprios artefatos. O “objeto histórico”, e consequentemente o objeto
escolhido para estar exposto no museu, “é de ordem ideológica e não cognitiva” (MENESES,
1994, p. 20), ou seja, não traz em si significados imanentes, mas tem compromissos com o
presente (MENESES, 1994, p. 19), com os comunicadores e visitantes, e seus significados
apreendidos dependerão, em grande parte, da forma como serão expostos. Meneses defende
ainda que, ao contrário do que se concebe comumente, o museu histórico deve operar não
com objetos históricos, mas com problemas históricos (MENESES, 1994, p. 19).

Não cremos que o silenciamento promovido na exposição do MAO tenha acontecido


de forma planejada, visando deliberadamente ofuscar a população negra e a trajetória
escravista do trabalho no Brasil. O MAO foi executado por homens e mulheres de seu tempo,

2317
que foram guiados por ideias ainda muito fortes no imaginário brasileiro e adaptadas a uma
certa representação do negro e da escravidão. Dada a disseminação da ideia de democracia
racial, continua parecendo desnecessário colocar em evidência a negritude dos atores sociais,
assim como a memória do escravismo ou das formas de resistência a ele associados. A
escravidão continua sendo representada sem algozes. Todavia, a força da democracia racial no
imaginário brasileiro não tira a responsabilidade que os curadores da exposição, na condição
de propositores de um sentido particular, tinham, justamente, de confrontá-la.

Quando isso não acontece, ou seja, quando o museu não se debruça sobre problemas
históricos – como, por exemplo, a escravidão e seu legado de estigmatização do trabalho
manual no Brasil –, muitas vezes o resultado é uma fetichização dos objetos, o que nos parece
ser o caso dos núcleos expositivos observados. Da tradição dos ecomuseus, identificamos
algumas das inovadoras técnicas expositivas de Rivière, “mago das vitrines”, que adotava
“uma museografia do fio de náilon e do fundo preto, segundo um puritanismo que rejeita
absolutamente o manequim, mas pretende restituir da melhor forma possível, com seus
movimentos no espaço, os usos do objeto” (POULOT, 2013, p. 48).

Porém, permeado de manequins sem rosto ou identidade, no MAO permanece apenas


a estética do fio de náilon e toda a elegância, movimento e plasticidade que ela promove à
exposição, provocando encantamento no observador e dando demasiado foco ao objeto, em
detrimento das relações humanas.

Meneses define a fetichização como “deslocamento de atributos do nível das relações


entre os homens, apresentando-os como derivados dos objetos, autonomamente, portanto
‘naturalmente’” (MENESES, 1994, p. 26-27). Nos núcleos que analisamos, por diversas vezes
o foco foi colocado prioritariamente nos objetos e pouco ou quase nada nas relações entre os
homens, ou mesmo nas relações do corpo com os objetos, como Meneses propõe como um
caminho para uma desfetichização (1994, p. 27), apesar de Franco afirmar no programa
museológico que um dos compromissos do museu seria mobilizar o homem como elemento
central do processo histórico (2004, p.47). Foi o caso, por exemplo, do Dentista, em que se
priorizou uma abordagem sobre as técnicas utilizadas por ele – com a exposição de uma
enorme quantidade de objetos, acompanhados de explicações nas legendas sobre o uso e o

2318
funcionamento de cada um deles – em detrimento de uma discussão sobre saúde ou sobre as
condições de inserção social deste profissional.

Como procuramos demonstrar, o MAO não promove uma narrativa sobre a história do
Brasil em que se represente apenas a humilhação e a subordinação do negro escravizado,
prática recorrente nos museus brasileiros. Tal resultado deve-se, entendemos, ao fato de que o
discurso que o museu pretendia construir simplesmente não passava por narrar os horrores da
escravidão, portanto tais representações não caberiam – inclusive porque o acervo não possui
instrumentos de tortura. Nesse sentido, este “avanço” na forma de representação, que supera o
castigo e mostra o trabalho, não foi tampouco intencional. Assumir completa e
deliberadamente uma nova posição na narrativa sobre o negro seria procurar efetivar o
programa histórico de Sevcenko e o planejamento de Franco, superando a tendência ao
embranquecimento e revelando a negritude, ressaltando a importância da escravidão na
trajetória do trabalho brasileiro, explicitando em que medida ser negro e / ou ser escravo
condicionava o acesso de homens e mulheres a determinados ofícios. E, como já apontamos,
este “avanço” não é acompanhado por outro de aspecto museológico, já que se deu
protagonismo aos objetos e não aos homens.

Fontes consultadas
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CATEL, Pierre. Museu de Artes e Ofícios, Belo Horizonte: afinal, como nascem os museus?
(Entrevista concedida a Luciana S Koptke). História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v.12
(suplemento), p. 323-338, 2005.

. Museu de Artes e Ofícios: projeto museográfico. In: ICFG. Anais dos Seminários
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FRANCO, Maria Inez M. Programa Museológico para o Museu de Artes e Ofícios: modelo
de gestão. In: ICFG. Anais dos Seminários de Capacitação Museológica. Belo Horizonte:
ICFG, 2004, p. 38-47.

. Relatório de atividades. ICFG, MAO: Não publicado, 2002.

SEVCENKO, Nicolau. Proposta de consultoria da área de História. In: Relatório de


atividades. ICFG, MAO: não publicado, 2002.

2319
Referências bibliográficas

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CURY, Marília Xavier. Comunicação museológica: uma perspectiva teórica e metodológica


de recepção. 2005. 366 p. Tese (Doutorado) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade
de São Paulo, São Paulo.

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Southern Plantation Museums. Washington and London: Smithsonian Institution Press, 2002.

FREYRE, Gilberto. Condições étnicas e sociais do Brasil moderno. In: .


Interpretação do Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 2001, cap. 4, p. 187-233.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Trabalho e aventura. In: . Raízes do Brasil. 15 ed.
Rio de Janeiro: José Olympio, 1982, cap. 2, p. 12-40.

LODY, Raul G. da Motta. Coleção Perseverança de Alagoas. In: . O negro no museu


brasileiro: construindo identidades. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005, cap. 3, p. 29-45.

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et témoignages. Paris: Bordas, 1989.

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Pereira, Claudio; Sansone, Livio. (Org.). Projeto Unesco no Brasil. Salvador: Edufba, 2007,
p. 321-344.

MENESES, Ulpiano Bezerra de. Do teatro da memória ao laboratório da História: a exposição


museológica e o conhecimento histórico. Anais do Museu Paulista – História e Cultura
Material, São Paulo, v. 2, p. 9-42, jan./dez. 1994.

VERON, Eliseo; LEVASSEUR, Martine. Ethnographie de l`exposition. L`espace, le corps


et le sens. Paris: Centre Georges Pompidou, 1991.

2320
ENTRE SILÊNCIOS E VOZES: ESTUDO DA COLEÇÃO DE CÓPIAS EM
GESSO DE ARTE CENTRO-AFRICANA DO MUSEU AFRO-BRASILEIRO DA
UFBA

Joseania Miranda Freitas32*


*curso de Museologia da UFBA

Resumo: Este texto apresenta a síntese de uma pesquisa institucional, em andamento, que estuda a
primeira coleção do Museu Afro-Brasileiro da Universidade Federal da Bahia (MAFRO/UFBA). Ao
propor o estudo da produção escultórica específica “África Central”, que tem seus originais em um
museu colonial e cópias em uma ex-colônia americana, na dimensão de coleção-documento-
testemunho, não se trata tão somente de opção teórica, mas, metodologicamente, implica em uma série
de planos e ações que se entrelaçam à perspectiva conceitual de estudos decoloniais para compreender
historicamente e de forma implicada e entrecruzada, as diversidades e complexidades deste conjunto
de obras da cultura material africana. A intervenção investigativa pretende através da análise de
diferentes propostas curatoriais elucidar as vozes e silêncios intercontinentais entre África (África
Central), Europa (museus etnográficos coloniais) e América (Salvador – cidade considerada mais
negra fora da África).

Palavras-chave: Arte Centro-Africana; Memória; Patrimônio; Museus.

Abstrat: This text presents the synthesis of an institutional research, in progress, that studies the first
collection of the Afro-Brazilian Museum of the Federal University of Bahia (MAFRO / UFBA). In
proposing the study of the specific sculptural production “Central Africa”, which has its originals in a
colonial museum and copies in an ex-American colony, in the dimension of collection-document-
witness, it is not only a theoretical option, Methodologically, implies in a series of plans and actions
that are intertwined with the conceptual perspective of decolonial studies to understand historically
and in an implicated and interwoven way, the diversities and complexities of this set of works of
African material culture. The research intervention seeks to elucidate the intercontinental voices and
silences between Africa (Central Africa), Europe (colonial ethnographic museums) and America
(Salvador - a city considered to be the blackest outside Africa) through the analysis of different
curatorial proposals.

Keywords: Art Central African; Memory; Patrimony; Museums.

32
Professora do curso de Museologia da UFBA (graduação e pós).

2321
Esta pesquisa institucional destaca a primeira coleção do Museu Afro-Brasileiro da
Universidade Federal da Bahia (MAFRO/UFBA)33, composta por doze cópias em gesso de
importantes obras que se constituem como referências da arte centro-africana, doadas pelo
Museu Real da África Central (MRAC), situado em Tervuren-Bélgica, destacadas nos
principais livros e catálogos especializados.
O desenvolvimento deste estudo visa iluminar aspectos, até então opacos, da história
desse conjunto, que ficou por muito tempo sem o destaque merecido como a primeira coleção
de 12 peças do Museu34, quiçá por trata-se de peças “não originais”. No entanto, com relação
às cópias é sempre bom lembrar as palavras de Walter Benjamin (1994, p. 166): “Em sua
essência, a obra de arte sempre foi reprodutível. O que os homens faziam sempre podia ser
imitado por outros homens.” Ainda refletindo sobre o universo da obra de arte e suas cópias,
vale a pena também citar as palavras de Alpha Oumar Konaré35 (1985, p. 57) relativas à
produção, comercialização e uso de cópias no continente africano:

Vista da África a produção generalizada de falsificações e cópias é um


legado da Administração colonial e as consequências da atribuição de um
valor de mercado aos bens culturais. Tradicionalmente, a fabricação de
cópias se fazia segundo determinados ritos, em circunstâncias conhecidas,
por homens nomeados; elas eram tão somente utilizadas em ocasiões
específicas.36

Em relação à autenticidade (valor verificado e colocado por especialistas) é possível


argumentar um pouco mais, lembrando que, mesmo não sendo obras originais, houve
autenticidade na elaboração, assim como continua tendo na divulgação das cópias.
Compreender a dimensão de cópias autorizadas faz com que a coleção seja igualmente
revestida de autenticidade na sua tipologia de cópia de obra de arte. As peças em estudo são
33
As cópias foram doadas em 1962, porém o MAFRO só veio a ser inaugurado 20 anos mais tarde.
34
Individualmente determinadas peças foram apresentadas em catálogos, apresentadas em folheteria, mas não
com um conjunto matricial.
35
Malinense, vice-presidente do ICOM entre 1983-1989 e presidente entre 1989-1992.
36
Tradução nossa do francês: “Vue d'Afrique la production generalisee de faux et de copies est un heritage de
l'Administration coloniale et une des consequences de l'attribution d'une valeur marchande à des biens culturels.
Traditionnellement la fabrication des copies se faisait selon des rites donnes, dans des circonstances connues, par
des hommes attitres; elles etaient ainsi utilisees dans des occasions précises.”

2322
autênticas testemunhas das várias histórias, relativas à técnica da modelagem em gesso,
principalmente, a primeira célula constituinte do acervo do MAFRO, pois elas são dotadas de
“[...] um valor de autenticidade, ligadas à materialidade da obra.” (HENNING, 2006, p. 293).

O plano metodológico de estudo das peças incluiu uma série de ações que se
entrelaçam à perspectiva de estudos decoloniais, como opção conceitual para compreender
historicamente e de forma implicada e entrecruzada, as diversidades e complexidades deste
conjunto de obras da cultura material da África Central37, através de propostas curatoriais
advindas das vozes e silêncios intercontinentais entre África, Europa e América.

A partir da dinâmica decolonial, alavancada pelos movimentos sociais, pelos


movimentos negros e, especificamente, pelo movimento da nova museologia38, este processo
de pesquisa pretende “escutar as vozes” das cópias que, mesmo elaboradas com a frieza do
gesso, são artefatos da cultura material, produtos de relações humanas e carregam em si um
potencial de informações que lhes dá sentido material e simbólico. Em tal perspectiva, o
processo curatorial que construirá a “fala”, ou seja - a retórica institucional, definida por
Meneses (1997) - deverá expressar a polivocalidade na comunicação museológica. Com base
nas concepções defendidas por Lidchi (1997), a “expografia poética” e “expografia política”
deverão expressar a polifonia e polissemia, de forma a valorizar o manancial semântico dos
objetos, através da “poética” e da “política” que integram as informações intrínsecas e
extrínsecas das peças (originais e cópias), numa abordagem na qual linguagem e significado
se entrelacem.

O formato estabelecido para esta abordagem, com narrativas entrecruzadas, levou à


perspectiva de construção do perfil biográfico da coleção de cópias, no qual serão utilizados
aportes teóricos dos estudos de cultura material atrelados a outros, como chama atenção
Salum (1997, p. 72):

[...] uma coleção africana não pode ser tratada como uma coleção genérica da
cultura material, sem as prerrogativas oferecidas pela História da Arte, pela

37
Conceito África Central utilizado em função da categoria do Museu que possui as peças originais.
38
Ainda que não apareça como campo teórico específico dos estudos decoloniais.

2323
Tradição Oral e pela Etno-estética africanas - estas, como sustentáculo de
todo o projeto museológico.

O conceito de etno-estética “[...] baseia-se na observação do fazer estético nas


sociedades estudadas [...]”39, como explica Diop (2006, p. 2). Porém, não se pode esquecer
que o conceito de estética é um produto colonizado da aesthesis, como considera Mignolo
(2010, p. 14):

[…] certo que se a aesthesis é um fenômeno comum a todos os organismos


vivos com sistema nervoso, a estética é uma versão ou teoria particular de
tais sensações relacionadas com a beleza. Quer dizer que não há nenhuma lei
universal que faça necessária a relação entre aesthesis e beleza.40

A colonização dos conceitos, aliada à forma eurocêntrica e hegemônica de coleta e


organização das produções dos povos africanos, em institutos de pesquisa e museus
etnográficos, a partir da lógica ocidental, que compartimenta o conhecimento, prevaleceu
durante muito tempo, com base na razão capitalista, como salientam as palavras de Antonacci
(2016, p. 241):

Se a razão capitalista racializa e normaliza conhecimentos, massifica


comunicações, submete costumes a suas concepções de bem-estar, torna-se
indispensável questionar seus pressupostos, decolonizando cotidianos a
partir dos que têm em corpos, línguas e expressões artísticas, âncoras de
outras memórias e diferentes viveres.

Na perspectiva de traçar um perfil biográfico desta coleção-documento-testemunho, os


principais conceitos de análise precisam estar articulados à característica matricial dos
objetos, ou seja, o processo colonial escravista, como lembram as palavras de Marta (Lisy)
Salum (2012, p. 198), relativas à necessidade de marcar que os estudos relativos à África e à
diáspora “[...] não se sustentam se não diante do reconhecimento das atrocidades coloniais
39
Tradução nossa do espanhol: “[…] se basa en la observación del hacer estético en las sociedades […]”.
40
Tradução nossa do espanhol: “[…] puesto que si aesthesis es un fenómeno común a todos los organismos
vivientes con sistema nervioso, la estética es una versión o teoría particular de tales sensaciones relacionadas con
la belleza. Es decir, que no hay ninguna ley universal que haga necesaria la relación entre aesthesis y belleza.”

2324
implicadas na coleta dos artefatos e registro dessas imagens - indeléveis e a serem reveladas
em toda a sua essência; inócuas sem essa revelação.”

Ainda que, individualmente, cada peça tenha sua história de vida anterior à coleta, o
mundo ocidental só tomou conhecimento desta coleção através da retirada do contexto
original. Esta tomada de conhecimento coincide com o que preconiza Samuel Alberti (2005,
p. 565), quando afirma que “[...] a biografia de um objeto não fica estagnada quando este
chega ao museu. [...] sua incorporação à coleção foi, talvez, o evento mais significativo
[...].”41 Portanto, o perfil biográfico da coleção não se dissocia “[...] das atrocidades coloniais
implicadas na coleta [...]”, como bem salientou Salum (2012, p. 198).

Seis etnias estão representadas na coleção, onze peças são da República Democrática do
Congo (RDC): 1 Bena-Lulua; 1 Yombe; 6 Luba; 2 Kuba; 1 Ndengese e 1 peça de Angola:
Quioco.

41
Tradução nossa do inglês: “Clearly the biography of an object did not stagnate once it arrived at the museum.
Nevertheless, its incorporation into the collection was perhaps the most significant event in the life of a museum
object - and the point at which documentation tends to be richest.”

2325
Figura 1: Escultura feminina ancestral Bena Lulua 42

43 44

Frank Willett (2000, p. 190) afirma que “As figuras dos Bena Lulua são muito
diferentes. Mostram uma elaborada escarificação e em geral têm o umbigo enfatizado, supõe-
se que é porque ela representa a união física com os antepassados.”45

O Catálogo da Exposição “La Figura Imaginada” (2004, p. 158) apresenta estátuas da


mesma categoria, classificando-as como “propiciadoras da maternidade” - destaca que as
peças Lulua “[...] Tatuadas e com umbigo sobressalente, as figuras estabeleciam a relação
com o mundo dos não-nascidos. A atitude recolhida, pálpebras viradas e os pequenos traços
faciais dão a estas estatuetas uma graça e um lirismo especiais.”.46

42
Todas as definições apresentadas nas peças estão de acordo com as utilizadas nas fichas de documentação do
MAFRO/UFBA, em processo de revisão.
43
Todas as fotografias das peças são institucionais.
44
O mapa de autoria de Juan Crisóstomo Arriaga, publicado no Catálogo: ÁFRICA EL LEGADO ETERNO
(2001, p. 7).
45
Tradução nossa do espanhol: “Las figuras de los bena lulua son muy distintas. Muestran una escarificación y
por lo general tienen el ombligo enfatizado, se supone que debido a que representa la unión física con los
antepasados.”
46
Tradução nossa do espanhol: “[...] Tatuadas y con el ombligo sobresaliente, las figuras establecían la relación
con el mundo de los no nacidos. La actitud recogida, los párpados entornados y los pequeños rasgos del rostro
dotan a estas estatuillas de una gracia y un lirismo especiales.”

2326
Figura 2: Escultura Mãe e filho Yombe

47

A escultura “Maternité Pfemba Kongo”- traduzida na documentação do MAFRO


como “Escultura Mãe e filho”, pertence a um grupo de esculturas representativas de “mãe e
filho” que são recorrentes para vários grupos étnicos, Willett (2000, p. 245) apresenta um
exemplar da coleção de Pierre Arman, pertencente ao Museu do Homem de Paris, como
“Figura de antepassado com a forma de uma mãe sentada com as pernas cruzadas,
sustentando uma criança, Bakongo”.48

Peter Junge e Alfons Hug (2004) apresentam um exemplar de coleção de Wihelem


Joest (adquirida em 1896) de uma “Estátua da Maternidade”, pertencente ao Museu
Etnológico de Berlim, classificada como peça Pfemba, da República Democrática do Congo,
ou Cabinda, de Angola, do século XIX. Sobre esta categoria de escultura os autores afirmam
que: “A tradição escultural da região costeira do Baixo Congo atingiu seu apogeu nas figuras
realistas representando mãe e filho, utilizadas a partir da segunda metade do século XIX no
âmbito de um novo culto feminino da fertilidade (pfemba).” (JUNGE; HUG, 2004, p. 160).

Ezio Bassani (2012) apresenta dois exemplares, do grupo étnico Kongo Yombe,
provenientes da República Democrática do Congo, uma pertencente ao MRAC e a outra de
coleção particular Drs Daniel and Marian Malcom Collection, Tenafly (EUA). Estão
classificadas como “figuras de maternidade”, atribuídas ao Mestre Kasadi:

47
Mapa publicado no Catálogo EL PRIMERO EROS (2004, p. 37).
48
Tradução nossa do espanhol: “Figura de antepasado con la forma de una madre sentada con las piernas
cruzadas sosteniendo un niño, baKongo”

2327
O ‘Mestre de Kasadi’ é identificado como o autor de mais de uma dúzia de
esculturas, a primeira das quais, agora em uma coleção privada, foi adquirida
em 1898. Ele viveu do final do século XIX e início do século XX,
provavelmente na aldeia de Kasadi, na atual República Democrática do
Congo, onde duas de suas obras foram encontradas. (BASSANI, 2012, p.
178).49

Figura 3: Escultura Mulher abaixada com tigela Luba.

50

Marta Salum (1999, p. 173) destaca a representação do poder feminino nessa


escultura: “[...] a tigela que ela segura com as mãos espalmadas sustentada entre os braços,
representa a cabaça mítica do poder político e da adivinhação; às vezes, a dimensão da tigela
compete com a da personagem.” Mary Roberts e Allen e Roberts (2007, p. 48) destacam que
“As portadoras de tigela fazem parte dos objetos Luba mais conhecidas, com suas figuras
femininas refinadas e suas composições complexas.”51 Marcando as características do povo e
de sua arte, o Catálogo LA FIGURA IMAGINADA (2004, p. 164) destaca que por sua
organização social matrilinear:

49
Tradução nossa do inglês: “The ‘Master of Kasadi’ is identified as the author of over a dozen sculptures, the
first of which, now in a private collection, was acquired in 1898. He lived in the late 19th and early 20th century,
presumably in the village of Kasadi in the present-day Democratic Republic of the Congo, where two of is his
works were found.”
50
O mapa de autoria de Juan Crisóstomo Arriaga, publicado no Catálogo: ÁFRICA EL LEGADO ETERNO
(2001, p. 7).
51
Tradução nossa do francês: “Les porteuses de coupe font partie des objets luba les plus cunnus, avc leurs figures
féminines raffinés et leurs compositions complexes.”

2328
[...] representavam a figura feminina com elegância, sensualidade e doçura,
descrevendo os penteados e as escarificações com tanta precisão que as
superfícies das esculturas ofereciam uma textura carnosa. Untadas com óleo
de palma, muitas esculturas Luba possuem pátinas lacadas de uma grande
beleza.52

Figura 4: Escultura Tamborete de chefe.

53

Sobre os tamboretes dos Luba (também denominados Baluba e Luba-Hemba), no


estilo “Mestre Buli”, Junge e Hug (2004, p. 98) afirmam que as cariátides que sustentam este
tipo de bancos, têm caráter sagrado: “A reprodução espiritualizada das formas humanas é uma
característica típica da tradição escultural dos Luba, que não retratam indivíduos reais do
passado ou do presente, mas o caráter sagrado da realeza, representada pelos ancestrais [...]”.
A obra de Willett (2000, p. 223) descreve um “Tamborete atribuído ao Mestre ou Mestres de
Buli” como: “Tamborete de chefe Baluba, esculpido no ‘estilo rosto comprido de Buli’, um
dos primeiros estilos de escultor individual ou ateliê registrado na literatura.”54 Roberts e

52
Tradução nossa do espanhol: “[…] representaron la figura femenina con elegancia, sensualidad y dulzura,
describiendo los peinados y las escarificaciones con tan exactitud que las superficies de las esculturas ofrecen
una textura carnosa. Untadas con aceite de palma, muchas esculturas luba posen pátinas lacadas de una gran
belleza.”
53
O mapa de autoria de Juan Crisóstomo Arriaga, publicado no Catálogo: ÁFRICA EL LEGADO ETERNO
(2001, p. 7).
54
Tradução nossa do espanhol: “Taburete de jefe de los baLuba, tallado en el ‘estilo de cara larga de Buli’, uno
de los primeros estilos de escultor individual o taller registrado en la literatura.”

2329
Roberts (2007) afirmam que os tamboretes “[...] são os assentos de autoridade [...]” (p. 34),
também chamados de “[...] tamboretes cariátides estão reservados às funções políticas mais
altas” (p. 38)55. E, finalmente uma obra mais recente, de Bassani (2012, p. 187), apresenta a
produção dos tamboretes atribuídos ao Mestre Buli, como produção do “Mestre de Kateba”56.

Figura 5: Escultura Máscara ritual Búfalo.

57

A “Masque Luba”, segundo informações do site do MRAC foi recolhida por Oscar
Michaux58, em 1899, sendo considerada:

[...] obra-prima emblemática do Museu, tanto por suas qualidades estéticas


como por sua raridade. Os chifres aparecem nas laterais e um pássaro é
visível na parte traseira. Esta figuração antropozoomórfica refere-se ao
búfalo, o que sugere pensar que se trata de um objeto importante associado
ao poder do chefe. O búfalo é realmente um animal ao mesmo tempo calmo
e agressivo, que é associado às qualidades sobrenaturais e ambivalentes do
chefe sagrado dos Luba.59

55
Tradução nossa do francês : “[...] sont des sièges d'autorité [...]” “[...] les tabourets caryatides étaient réservés
aux fonctions politiques les plus hautes”
56
Esta discussão vai ser aprofundada no livro-catálogo em processo de organização.
57
O mapa de autoria de Juan Crisóstomo Arriaga, publicado no Catálogo: ÁFRICA EL LEGADO ETERNO
(2001, p. 7).
58
<http://www.africamuseum.be/museum/home/treasures/lubamask_jul13> Acesso: 30/08/2016.
59
Tradução nossa do francês: “Ce masque buffle est le chef d’œuvre emblématique du Musée, tant pour ses
qualités esthétiques que pour sa rareté. Des cornes apparaissent sur les côtés latéraux et un oiseau est visible à
l’arrière. Cette figuration anthropozoomorphe réfère au buffle, ce qui laisse penser qu’il s’agit d’un objet
important associé au pouvoir du chef. Le buffle est en effet un animal à la fois paisible et agressif qui est associé
aux qualités surnaturelles et ambivalentes du chef sacré des Luba.”

2330
Figura 6: Escultura Tigela com tampa

60

Roberts e Roberts (2007) também apresentam e descrevem a “Coupe royale - Kiteya”,


como “[...] um tesouro desta categoria. Ela serviu anteriormente como um emblema poderoso
na posse de um rei Luba. Os dois lagartos, provavelmente, do rio Nilo, estão relacionados aos
[...] poderes místicos da natureza” (p. 126)61. Sobre as representações femininas nas obras
Luba os autores também pontuam: “As mulheres, frequentemente representadas apoiando os
seios com as duas mãos, portam sinais de identidade Luba, tais como escarificação, critérios
de beleza que invadem dorso, braços, costas e coxas.” (p. 12)62.

60
O mapa de autoria de Juan Crisóstomo Arriaga, publicado no Catálogo: ÁFRICA EL LEGADO ETERNO
(2001, p. 7).
61
Tradução nossa, sintética do francês : “Cette coupe à couvercle est un trésor de cette catégorie. Elle servit
autrefois d'emblème puissant lors de l'investiture d'un roi luba. La paire d'esprits semble contempler deux grands
lézards - probablement des varans du Nil - comme des puissances mystiques de la nature.”
62
Tradução nossa do francês : “La femme, souvent représentée soutenant ses seins des deux mains, porte des
signes de l'identitité luba telles les scarifications, critères de beauté qui envahissent torse, bras, dos et cuisses.”

2331
Figura 7: Assento do chefe Bajokwe.

63

Única peça de Angola, região fronteiriça com a RDC, descrita como pertencente ao
povo Quioco - também conhecido com outras denominações, como Cokwe, Tshokwe. A profª
Manuela Borges, com base na sua dissertação de mestrado de 199264, trata sobre a
importância de conhecer esta etnia:

[...] apreender aspectos da cultura material e imaterial do grupo étnico Cokwe


[...] através da análise dos símbolos de poder tradicional [...] Os símbolos de
poder revelam, não só as concepções simbólicas que os Cokwe elaboram da
sua própria sociedade, como permitem situar este estudo no âmbito da
mudança caracterizada pelo binômio tradição versus modernidade.
(BORGES, 2013, p.1)

Esta peça, segundo a ficha de documentação do MAFRO, é relativa ao assento:

[...] do chefe Bajokwe, inspirado num modelo europeu do século XVI. A


personagem feminina que forma o encosto não é, provavelmente, o retrato de
uma determinada mulher, mas a representação simbólica dos servos do chefe
em geral. (ARQUIVO MAFRO)

63
O mapa de autoria de Juan Crisóstomo Arriaga, publicado no Catálogo: ÁFRICA EL LEGADO ETERNO
(2001, p. 7).
64
Em fevereiro de 2009 quando juntas estudávamos cultura material africana, ela me entregou o artigo para
publicarmos futuramente em conjunto, quando eu tivesse condições de escrever sobre a única peça Quioco do
MAFRO. No entanto, a profª faleceu em 13/07/2013, por isso o seu texto será publicado no livro-catálogo
produto desta pesquisa. A sua dissertação foi sobre a coleção do Museu Nacional de Etnologia de Lisboa.

2332
Figura 8: Efígie Real - Kata Mbula 109º rei dos Bushongo e Kata Mbula - Efígie Real.

65

O par de esculturas Kuba “Kuta Mbula, 109º roi des Bakubas” - traduzido na
documentação do MAFRO como “Efígie Real - Kata Mbula 109º rei dos Bushongo” e o outro
tão somente “Kata Mbula - Efígie Real” são também chamadas de Ndop.

Segundo Willett (2000) “Os reis de Kata Mbula ou Bushongo, os mais conhecidos das
tribos dos Bakuba, foram comemorados em figuras de madeira, cada um com um símbolo
para identificar o indivíduo representado.” (p. 106).66

Quanto à arte Kuba, Salum (2012, p. 210-211) assim define:

[...] o sistema decorativo dos bushoong, generalizado como kuba, de grande


sofisticação e beleza. [...]. A arte kuba, então, deve ser relacionada aos fatos
que antecederam de perto a partilha da África, e que se desdobram na fase
mais aguda da escravidão e exploração da borracha no Congo [...]. Seu
sistema decorativo poderia, assim, alinhavar a história dos bakuba e de
outros povos da África central com a história das ciências [...].

65
O mapa de autoria de Juan Crisóstomo Arriaga, publicado no Catálogo: ÁFRICA EL LEGADO ETERNO
(2001, p. 7).
66
Tradução nossa do espanhol: “Los reyes de los baMbala o bushongo, los más conocidos de las jefaturas de los
bakuba, fueron conmemorados en figuras de madera, cada una con un símbolo para identificar qué individuo
estaba representado.”

2333
Figura 9: Escultura comemorativa Ndengese

67

Willett (2000, p. 106) apresenta a peça original do MRAC, descrevendo-a da seguinte


maneira: “[...] Vivem do outro lado do rio Sankuru, ao norte dos BAkuba, também têm
figuras de antepassados reais, de forma muito mais alongada, os braços e o tronco decorados
com desenhos de sacrifícios.”68

Bassani (2012, p. 280) chama atenção para determinados detalhes da peça: -


austeridade, alongamento excessivo, motivos geométricos intrincados e regulares, que
formam uma composição, uma espécie de linguagem destinada àqueles que são
familiarizados, “[...] A parte inferior do corpo é sintetizada em um bloco semicircular que
também forma a base da figura, sendo um dispositivo engenhoso.”69

67
O mapa de autoria de Juan Crisóstomo Arriaga, publicado no Catálogo: ÁFRICA EL LEGADO ETERNO
(2001, p. 7).
68
Tradução nossa do espanhol: “[...] viven al otro lado del río Sankuru, al norte de los baKuba, también tienen
figuras de antepasados reales, de forma mucho más alargada y los brazos y el tronco adornados, con dibujos de
sacrificios.”
69
Síntese e tradução nossa do inglês: “The austerity, of the cylindrical and inordinately elongated torso and arms
is accentuated by the white decoration that envelopes them in an ornate sheath. The intricate and regular
geometric motifs of which it is composed constitute a kind of sing language the recipients were certainly familiar
with. The lower part of the body is synthesized in a semicircular block that also forms the base of the figure,
which is an ingenious device.”

2334
Figura 10: Estatueta masculina e Estatueta feminina.

Par de esculturas, uma masculina e outra feminina, Kuba. Inicialmente, na


documentação do MAFRO estavam classificadas como: “Estatueta masculina de mabasa
(gêmeo)” e “Estatueta feminina de mabasa (gêmeo)”, numa visita do profº Kabengele
Munanga70, salientou que esta categoria de “mabasa”, seria uma referência dos povos Yorubá
e, portanto não caberia esta descrição, sendo necessário um processo de estudo para revisão.

Estes objetos eram de uso ritual e cotidiano, inseridos na dinâmica temporal do


presente dos povos; estavam relacionados aos seus processos de memorização, sendo
representantes e representações do poder real vigente naquele momento, ainda que
remetessem às relações com o passado ancestral, sagrado e político - foram
desterritorializados, arrancados de seus lugares e de seus significados. Passaram de “objeto de
uso” para a categoria “objeto etnográfico”, que anulou, numa primeira instância, o tempo presente,
colocando os objetos no passado, transformando-os em material de estudo sobre povos que os
produziram e os utilizaram, como salienta José Reginaldo Gonçalves (2007, p. 16): “Objetos retirados
dos contextos os mais diversos, dos mais distantes pontos do planeta, eram re-classificados com a
função de servir como indicadores dos estágios de evolução pelos quais supostamente passaria a
humanidade como um todo.”

70
Proveniente da RDC, o professor será convidado para compor, com seus textos as narrativas escritas e
expográficas.

2335
Últimas considerações, ainda sem um ponto final...

As peças originais foram retiradas de seus ambientes e transformadas em objetos de


museu, esta transformação não somente levou à perda das suas funções e usos, mas também
acarretou na incorporação de uma categoria alheia aos objetos, a categoria de objetos
etnográficos, objeto de estudo da Antropologia e Etnologia, passando a servir de suporte
material para a divulgação de ideias raciais e racistas de inferioridade cultural e social dos
povos africanos nos institutos de pesquisa e nascentes museus etnográficos.

A história das cópias autorizadas, ainda que não tenham sido diretamente coletadas,
não se dissocia da história de suas originais, marcadas pelas memórias da colonização da
África Central, comandadas pelo rei Leopoldo II. A história colonial escravista, baseada no
sistema econômico de venda de seres humanos e de sua força de trabalho, criou e manteve um
conjunto de instituições, administrativas e posteriormente culturais, com personagens que se
cruzaram e ainda se entrelaçam à história da coleção, em diferentes contextos. Em outras
palavras, o passado colonial imperialista belga está atrelado às cópias, mesmo que sua
produção e uso se distanciem geográfica e temporalmente. Não se pode esquecer que este
cruel processo, não somente econômico, envolveu processos subjetivos, transformou
identidades, marcando cada indivíduo pertencente aos povos submetidos, como lembram as
palavras de Aníbal Quijano (2005, p. 127):

[...] sua nova identidade racial, colonial e negativa, implicava o despojo de seu
lugar na história da produção cultural da humanidade. Daí em diante não
seriam nada mais que raças inferiores, capazes somente de produzir culturas
inferiores.

O modelo colonialista, que marcou as grandes instituições museológicas, tem sido


criticado a partir de diversas ações, como exemplificam as reflexões de Walter Mignolo
(2010) sobre as experiências expositivas: “Minar o museu” - de Fred Wilson e “Espelho
negro” - de Pedro Lasch, que questionaram o uso e o papel social e político das coleções
etnográficas, apresentadas em textos, imagens e museus.

2336
Você acha que tudo que foi aprendido é de pouca utilidade para entender
Wilson e Lasch. Os seus dados são úteis, mas a lógica da compreensão na
qual lhe ‘educaram’ já não é mais. Chega assim, a conclusão de que era
necessário desaprender o aprendido e voltar a reaprender. Talvez isso
pudesse ser uma leitura decolonial da estética, enquanto as instalações já são
estéticas decoloniais. (p. 21).71

O autor aprofunda um pouco mais a temática decolonial nos museus, ao tratar da


exposição de Fred Wilson:

[...] vejo em Wilson todos os sinais de um pensar e um fazer decolonial. Seus


atos de desobediência aesthética e institucional. A estética é abertamente
política e decolonizadora, como é também a inversão do papel que o Museu
joga na esfera pública e na educação. (MIGNOLO, 2010, p. 18).72

Felizmente as formas de resistência se fazem presentes, como chamam atenção as


palavras de Edward Said (1993, p. 7): “[...] em quase todos os lugares do mundo não europeu
a chegada do homem branco gerou algum tipo de resistência.” O século XX foi palco de
diversos movimentos sociais, de variadas experiências relativas à incorporação de elementos
culturais nativos nos processos culturais hegemônicos. Um dos pontos focais relativos às
mudanças efetivas que começaram a acontecer nas instituições museológicas está na mudança
“[...] do ponto de vista dos princípios, não se dirige exclusivamente aos objetos a conservar ou
a exibir a um público, mas sim aos sujeitos sociais.” (PRIMO, 2014, p. 5).

Neste estudo, utilizando a imagem da trama de um tecido, os diversos aspectos


históricos, culturais e artísticos serão entrelaçados e problematizados de forma a criar
possíveis leituras dos processos de coleta e transformação de objetos da cultura material

71
Tradução nossa do espanhol: “Piensas que todo lo aprendido es de poca utilidad para entender a Wilson y a
Lasch. Los datos que tenías son útiles, pero la lógica de la comprensión en la que te “educaron” ya no lo es.
Llegas así a la conclusión de que era necesario desaprender lo aprendido y volver a reaprender. Quizás esto
podría ser una lectura decolonial de la estética, a la vez que las instalaciones son ya estéticas decoloniales.”
72
Tradução nossa do espanhol: “[…] veo en Wilson todos los signos de un pensar y un hacer decoloniales. Los
suyos son actos de desobediencia aesthética e institucional. La estética es abiertamente política y
decolonizadora, como lo es también la inversión del papel que el Museo juega en la esfera pública y en la
educación.”

2337
africana em material etnográfico e, consequente transformação em peças de museus e
posterior coleção de cópias. Esta trama museal, constituída pelas diversas trajetórias de
sujeitos e instituições que se entrelaçam em conceitos, ideologias e políticas, articularam os
caminhos da triangulação das peças originais às suas cópias: produção, uso e saída do
continente africano, transferência para um museu colonial belga e a chegada das cópias ao
Brasil. Elementos fundamentais para a tessitura das narrativas escritas e expográficas sobre a
coleção de doze cópias em gesso. Para a construção desta tessitura são pensadas estratégias
curatoriais coletivas73, nas quais são inevitáveis os enfrentamentos com tensões, necessárias
para explicitar as formas de aquisição-exploração no contexto histórico colonial-escravista-
racista74.

O desafio posto nesta pesquisa, de entrelaçar a perspectiva de estudos decoloniais


através de propostas curatoriais advindas das vozes e silêncios intercontinentais, propõe a
escrita de um livro-catálogo e a produção de exposições75, que explicitem as tramas coloniais
que levaram à retirada das peças dos espaços e funções originais para a institucionalização
num espaço museal na Europa colonial e o posterior contexto pós-colonial de produção de
suas cópias até a chegada à Bahia para confirmar suas novas categorias - de modelagens em
gesso para peças de museu.

Referências

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Martínez. Barcelona: Oba African Art Gallery. 2004a.

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ARQUIVO Institucional do Museu Afro-Brasileiro. Fichas de Documentação do acervo.

73
Neste sentido há um esforço na busca e encontro de pesquisadoras e pesquisadores do continente africano,
como vozes autorizadas, de forma prioritária, mas não excludente, para a realização, compartilhada, destes
processos curatoriais.
74
Entre tantas tensões se destacam aquelas que envolvem o conceito de estética, colonizado da asesthesis, como
salienta Mignolo (2010).
75
Virtuais e presenciais (temporárias e de longa duração).

2338
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2340
Educação e mediação
cultural em museus

2341
MUSEU, ENSINO E IMPRENSA: EXPERIÊNCIAS NO MUSEU TIPOGRAFIA
PÃO DE SANTO ANTÔNIO (DIAMANTINA, MINAS GERAIS)

Wellington Gonçalves*

Resumo: Com a intenção de investigar o lugar das fontes históricas e da produção do conhecimento
no ensino de História, este artigo elege a imprensa e o museu como esses “lugares privilegiados” para
a constituição de “outros” e “novos” saberes. A partir da análise de uma visita de alunos do Ensino
Fundamental II da Escola Estadual Professora Gabriela Neves ao Museu Tipografia Pão de Santo
Antônio, ambos na cidade de Diamantina, Minas Gerais, realizada no primeiro semestre de 2017,
investiga-se a importância, no percurso de ensino-aprendizagem da disciplina de História, da relação
entre museus, ensino de História e fontes históricas, com destaque para a imprensa e para os espaços
museais.

Palavras-chave: Museu; Ensino de História; Imprensa; Fontes Históricas.

Abstract: With the intention of investigating the place of historical sources and the production of
knowledge in the teaching of History, this article selects the press and the museum as these “privileged
places” for the constitution of “other” and “new” knowledge. From the analysis of a visit of
elementary school students of the Escola Estadual Professora Gabriela Neves to the Museu Tipografia
Pão de Santo Antônio, both in the city of Diamantina, Minas Gerais, held in the first half of 2017, the
importance of teaching learning of the discipline of History, of the relationship between museums,
teaching of History and historical sources, especially the press and museum spaces.

Key-words: Museum; History Teaching; Press; Historical Sources.

2342
Introdução
O presente artigo é fruto do projeto de intervenção pedagógica realizado no primeiro
semestre de 2017, ligado ao estágio supervisionado da licenciatura em História na
Universidade Federal dos Vales Jequitinhonha e Mucuri – UFVJM, na cidade Diamantina-
MG. O projeto foi desenvolvido com os alunos do oitavo ano do ensino fundamental da
Escola Estadual Professora Gabriela Neves. Localizada num bairro periférico de Diamantina,
a escola é mantida pelo governo do Estado de Minas Gerais e oferece à comunidade
diamantinense as séries dos ensinos fundamental e médio.
O objetivo geral da intervenção foi apresentar os jornais como fontes históricas e a sua
importância para a pesquisa e produção do conhecimento. O documento histórico – ou fonte
histórica, como também é conhecido – é um importante instrumento para o labor do
historiador e do pesquisador de diferentes áreas do conhecimento, e também para o professor
de História interessado na efetiva produção do conhecimento. Compreender o significado da
importância histórica e social dos jornais foi o principal objetivo da intervenção. Para
exemplificar e tornar palpável a pertinência do documento histórico, de modo geral, e da
imprensa, de modo específico, realizou-se uma visita técnica ao Museu Tipografia Pão de
Santo Antônio. Esse espaço museal apresenta um acervo que (res)guarda parte da história da
imprensa da cidade de Diamantina, tendo sido imprimido ali, por quase um século (1906-
1990), os periódicos Pão de Santo Antônio (1906-1936) e A Voz de Diamantina (1936), este
último ainda em circulação, porém, impresso em outra gráfica da cidade.
Justifica-se essa ação por compreender que a utilização da imprensa como fonte, tanto
na pesquisa científica, como na sala de aula, é um importante instrumento para a produção de
conhecimentos. Sendo assim, pensar os jornais como fontes históricas nos coloca na condição
de sujeitos históricos, atores sociais que constroem e deixam vestígios nos mais diferentes
formatos.
A temática sobre as fontes históricas no ensino de História tem sido relacionada a
várias questões, como por exemplo, as relações do aluno com a História, e consequentemente,

2343
o seu papel social na sua comunidade. O ensino de história e o contato direto com os
documentos históricos realizados in loco podem fomentar aspectos importantes relacionando
o ensino e o aprendizado, fazendo com que determinados assuntos coexistam nos âmbitos
concretos e simbólicos. Neste caminho, uma pesquisa sobre a visita ao Museu Tipografia Pão
de Santo Antônio se justifica, por tornar palpáveis aos alunos, os processos de produção de
jornais durante o século XX na cidade de Diamantina. Além disso, o Museu apresenta um
acervo com mais de 4.000 jornais, disponibilizados em acervos materiais e digitais, acessíveis
para pesquisa, além de outros objetos museais. A visita ao Museu Tipografia Pão de Santo
Antônio proporcionou a construção de relações entre o que foi discutido em sala de aula com
as realidades sociais da cidade de Diamantina, tendo como foco, alguns jornais da imprensa
que circulou na cidade, ampliando assim, os conhecimentos e abrangendo outros espaços
formativos não escolares. A questão dos espaços e práticas sociais da cidade como espaço de
construção do conhecimento histórico foi abordado pela pesquisadora Luciana Rossato:

Muito sabemos que a história é decorrente do que aprendemos na escola. No


entanto, também aprendemos sobre o passado em outros espaços, no
convívio com pessoas mais velhas, andando pela cidade e conhecendo
espaços memorialísticos e/ou museológicos, bem como consumindo
diferentes produtos culturais, como filmes, telenovelas, jogos digitais,
propagandas, telejornais, programas de variedades e os mais variados tipos
de materiais impressos (ROSSATO, 2013, p. 75).

As visitas ao museu, em conjunto com as aulas expositivas, proporcionaram outras


experiências educativas aos alunos, ao professor supervisor e ao estagiário. Tornar aprazível o
ensino de História requer construir relações entre espaços não escolares e os conteúdos
ministrados em sala de aula. Neste contexto, analisou-se vários objetos de estudo que os
museus podem proporcionar, contudo, a ênfase recaiu nos objetos expostos e na sua relação
com os conteúdos didáticos.

2344
Os jornais como fontes históricas

Os jornais são exemplos dos registros da ação dos homens e seus grupos sociais, e eles
podem revelar vestígios das vivências humanas. A partir deles, é possível visualizar traços do
passado, buscando conhecer o cotidiano e as práticas em determinado recorte espaço-
temporal. Esses periódicos não devem ser lidos como pedaços de papel que perdem o valor no
dia seguinte, quando suas informações serão consideradas ultrapassadas. Estes que,
geralmente, eram utilizados para embrulhar pão, forrar a casinha do cachorro e outras tantas
utilidades, aqui, tornam-se importantes registros.
Os jornais se tornam um “manancial fértil para o conhecimento do passado, fonte de
informação cotidiana, material privilegiado para a recuperação dos acontecimentos históricos
são alguns dos qualificativos sobre a utilidade da imprensa para a pesquisa histórica” (CRUZ;
PEIXOTO, 2007, p. 256) A premissa da imprensa enquanto manancial fértil apontada pelas
historiadoras Heloísa de Faria Cruz e Maria do Rosário da Cunha Peixoto exprime a
importância da imprensa na pesquisa histórica.
Por meio dos jornais é possível recuperar dimensões históricas importantes, como as
lutas, os ideais, os compromissos e os interesses de diversos grupos sociais, sobretudo, as
trajetórias de grupos antes marginalizados por uma história seleta que priorizava o campo
político e os seus “grandes” personagens. A utilização da imprensa enquanto fonte histórica
possibilitou um melhor conhecimento das sociedades no nível de suas condições de trabalho,
vida, manifestações culturais, dentre outros aspectos.
Compreender os processos da pesquisa histórica ainda tem sido uma importante e
difícil tarefa para se empreender no ensino de História na educação básica. Uma das
principais atribuições do ensino de História, para além de ensinar o conteúdo programático, é
fazer com que os alunos consigam se atentar para as dinâmicas dos processos históricos.
Tendo isso em conta, não foi intenção da intervenção criar “mini-historiadores”, mas sim
atentar nos alunos que todos os sujeitos e suas produções materiais e simbólicas são históricas
e, portanto, partes da História.

2345
Assim, ao articularmos o conteúdo historiográfico e a visita ao Museu foi possível
visualizar o que chamamos de “vestígios histórico-sociais”, que podem ser, das mais
diferentes naturezas.

A expressão “vestígios histórico-sociais” é utilizada aqui como um termo


correlato de fonte histórica, documento, registro. Todas essas expressões têm
como interesse definir tudo aquilo produzido pela humanidade no tempo e
no espaço: a herança material e imaterial deixada pelos antepassados que
serve de base para a construção do conhecimento histórico. O termo mais
clássico para conceituar a fonte histórica é documento. Palavra, no entanto,
que, devido às concepções da escola metódica, ou positivista, está atrelada a
uma gama de ideias preconcebidas, significando não apenas o registro
escrito, mas principalmente, o registro oficial. Vestígio é a palavra
atualmente preferida pelos historiadores que defendem que a fonte histórica
é mais do que o documento oficial: que os mitos, a fala, o cinema, a
literatura, tudo isso, como produtos humanos, torna-se fonte para o
conhecimento da história (SILVA; SILVA, 2009, p. 158.)

Contudo, explorar o acervo museológico possibilitou ampliar os conhecimentos e


aguçar as relações entre fontes históricas, vestígios histórico-sociais, História e ensino de
História, demonstrando aos alunos que todos os sujeitos sociais são produtores de
conhecimentos.

Aula expositiva: fontes históricas e o uso de jornais como fonte

Para aplicar o conteúdo em sala de aula realizou-se uma aula expositiva sobre fontes
históricas e o uso de jornais como fonte. Para essa aula foi solicitado que os alunos
trouxessem jornais recentes, que foram utilizados para ilustrar e exemplificar passagens da
aula, construindo o conhecimento histórico a partir do presente. Atentar nos alunos que eles
são sujeitos históricos, portanto, partícipes e construtores da História, ainda é um desafio no
ensino de história na educação básica:

A história é um conhecimento construído a partir de questões colocadas pelo


presente: a dimensão temporal e o contexto no qual as questões são

2346
produzidas influem decididamente em sua solução; diversas são as
abordagens ou visões sobre o problema em questão, pois diferentes são os
sujeitos que com ele dialogam de diferentes espações sociais; para a sua
compreensão, construção/reconstrução é fundamental o confronto das
posições, assim como a identificação de suas argumentações e contra-
argumentação (CIAMPI, 2007, p. 203-204).

Nesse sentido, pensando na contraposição de ideias e na (re)construção histórica, a


aula suscitou o debate que as fontes históricas são os documentos que o historiador utiliza
para estudar episódios históricos do passado, ou seja, investigar, estudar a “história”. Essas
fontes podem ser visuais, materiais, escritas e orais, porém, foi dado ênfase aos jornais.
As fontes visuais são aquelas cujas informações estão nas pinturas, fotos, quadros,
gravuras ou filmes. Os objetos utilizados pelo homem no passado constituem as fontes
materiais. Vestígios de cerâmica deixados pelos povos que viveram na região amazônica, na
época da Pré-História brasileira, são exemplos de fontes materiais.
Jornais e revistas podem ser considerados como fontes escritas. O historiador também
pode fazer suas pesquisas por meio de conversas com pessoas mais velhas, ouvindo as
histórias que elas têm para contar. Essas são as fontes orais. É através das relações entre as
diversas fontes históricas que o conhecimento humano sobre o passado vai sendo
aprofundado.
Com os jornais em mãos analisamos algumas matérias expostas, principalmente, as
que trataram sobre o cotidiano da cidade, suas festas, denúncias, embates políticos:

De certa forma, o que orientou os processos educativos, no tocante ao


patrimônio, até determinado momento, entrelaçava-se com o enfoque no
passado histórico e cultural e exigia uma postura de retorno e vislumbre do
passado como gesto fundamental no usufruto da cultura. A consideração da
imaterialidade desta nos registros patrimoniais vem suscitar uma mudança
no foco educativo, colocando o tempo presente na centralidade do processo.
Podemos dizer que, se modificam tanto a relação temporal nos processos
educativos como também o aspecto de abordagem (CIAMPI, 2015, p. 70).

2347
Muitos alunos levaram o jornal A Voz de Diamantina, publicado desde 1936 até os
dias atuais. Por meio desses jornais, foi possível demostrar que eventos cotidianos, conflitos,
relatos podem tornar-se fontes históricas. Desta forma, utilizamos o trabalho do historiador
Wellington Carlos Gonçalves, que estudou as práticas religiosas e culturais nos anos 1940 em
Diamantina através da imprensa local, com destaque para os jornais A Voz de Diamantina e A
Estrela Polar (GONÇALVES, 2017), exemplificando o papel das fontes histórias para a
investigação da história local da cidade.

Espaço de “histórias” e ensino: Museu Tipográfico do Pão de Santo Antônio


A visita ao Museu Tipográfico do Pão de Santo de Santo Antônio, importante espaço
de preservação da memória da produção de jornais em Diamantina, inseriu na intervenção
pedagógica o debate sobre história local. O ensino da história local é fundamental para a
formação histórica de qualquer sujeito, principalmente no período escolar, e o ensino de
História, como não poderia deixar de ser, tem papel fundamental:

Permitir repensar a cidade, sua história, suas possibilidades para recuperar o


vivido, as experiências dos alunos, por vezes esquecidas ou mesmo
desfocadas da história do livro didático. Que a prática pedagógica, que a lida
cotidiana, nos leve a ter um olhar rotineiro para os possíveis temas a serem
trabalhados no dia-a-dia da sala de aula (CIAMPI, 2007, p. 212).

O ensino de História, preferencialmente, deve apresentar questões práticas que estejam


ligadas ao cotidiano dos alunos. Muitos deles passam diante desses espaços museais e não se
dão conta que ali é apresentado, guardado e preservado vestígios histórico-sociais da história
da sua comunidade. Outra perspectiva importante ao conciliar teoria e prática é a
possibilidade de proporcionar aos alunos o questionamento e participação no processo de
construção histórica, tirando-os da posição de meros receptores de informações. De acordo
com Júnia Sales Pereira:

2348
As repercussões educativas são visíveis na ampliação das potencialidades de
abordagem de bens culturais mais próximos da realidade dos sujeitos, com a
inclusão de indícios bibliográficos nos processos educativos. Há expansão
das noções de cultura e patrimônio, com inclusão de critérios de valor
referencial e simbólico, que não são intrínsecos aos valores materiais dos
objetos e registros, mas que se ligam à atribuição de sentido pelos grupos e
sujeitos de referência (PEREIRA, 2015, p. 83).

O Museu Tipografia Pão de Santo Antônio, de acordo com as informações em seu site
virtual na Internet, reúne um acervo museológico e documental que testemunha a longa
prática jornalística, editorial e tipográfica desenvolvida, entre 1906 e 1990, pelos jornais
diamantinenses Pão de Santo Antônio e Voz de Diamantina. Foi criado a partir da seleção
pública promovida pela Petrobrás Cultural com o apoio da Universidade Federal de Minas
Gerais, sendo fruto, portanto do projeto Memória do Pão de Santo Antônio, que atuou entre
agosto de 2013 e maio de 2015.
Situado na antiga tipografia dos jornais, oficina que funcionou ao longo de todo o
século XX, o Museu é caracterizado pela união singular dos meios de produção próprios da
tipografia com os impressos saídos dos seus prelos. Trata-se de máquinas impressoras,
cavaletes tipográficos, mobiliário, clichês e outras ferramentas, que assumem seu estatuto,
hoje patrimonial, ao lado dos quase 4 mil exemplares dos jornais outrora ali redigidos,
compostos e impressos.
Outro fator importante destacado pelo museu é fato de ser único do seu gênero no
Brasil. O Museu Tipográfico do Pão de Santo Antônio traz, ainda, na sua concepção, uma
proposta museológica pautada, também, pelas questões do tempo presente. Depois de terem
passado por uma minuciosa restauração, os equipamentos remanescentes da antiga tipografia
foram reativados, dando origem a um novo jornal, desta vez, dedicado à memória da imprensa
tipográfica diamantinense. Assim, através de diferentes ações educativas e patrimoniais o
visitante tem a oportunidade de vivenciar o patrimônio gráfico em movimento.

A visita ao Museu Tipografia Pão de Santo Antônio

2349
Figura 1: Início da visita ao Museu Tipográfico do Pão de Santo Antônio

Fonte: Arquivo pessoal.

O Museu ocupa duas salas amplas no prédio onde também funciona um asilo para
recolhimento de idosos. No início da visita foi apresentado um pequeno memorial sobre o
fundador do Asilo Pão de Santo Antônio e dos jornais Pão de Santo Antônio (1906-1936) e A
Voz de Diamantina (1936-atualmente), José Augusto Neves:

José Augusto Neves nasceu em Diamantina em 1875 e formou-se em Direito


em São Paulo. Retornou a Diamantina em 1898, assumiu um posto no
funcionalismo público, e aulas de geografia em escolas da região. Durante as
décadas seguintes, ocupou diversos cargos administrativos e honoríficos,
atuando intensamente no campo cultural e político da cidade e região. Entre
essas atividades, merece destaque seu envolvimento com associações de
ação católica. Faleceu em 1955 (GOODWIN JÚNIOR, 2015, p. 140-141).

2350
Depois da apresentação – factual e pautada nos grandes feitos do fundador da
tipografia – realizada pelo funcionário do Museu, a visita foi iniciada. Foram apresentados
placas e objetos pertencentes à tipografia, contudo, sempre enfatizadas como coisas curiosas e
extraordinárias. Apresentar o Museu através de uma perspectiva positivista pode possibilitar o
apagamento da atuação de outros sujeitos, além disso, a história da instituição e seus
fundadores foram contadas linearmente, sem apresentar conflitos. O museu deve atuar como
um espaço social de construção de novos saberes, construção e ressignificação de memórias,
ou seja, um local de interesse e representação para a sua comunidade:

As visitas a museus são uma possibilidade de ampliação da formação


acadêmica e profissional para além do espaço escolar e, ao mesmo tempo, de
trazer para o cotidiano de formação múltiplas dimensões históricas, políticas
e culturais. Situações de visita a museus permitem investigar, nesse caso, a
hipótese da circularidade da cultura. Articulam-se reflexões sobre as
experiências próprias ao campo de trabalho docente em História aos saberes
elaborados no campo da museologia, identificando a circulação dupla de
saberes específicos, elaborados nos dois campos distintos de um universo
conceitual a outro e retornando ao campo profissional de forma
sistematizada (SEABRA, 2012, p. 19).

Ainda sobre a visita coordenada pelo responsável do Museu, salientamos que ela teve
um caráter técnico de demonstrar como as peças lá expostas eram utilizadas. Desta forma,
explicou-se o emprego daqueles objetos na produção dos jornais, o que tornou a visita longa
e, por horas, enfadonha. Na explicação eram utilizados muitos termos técnicos, o que
certamente provocou incompreensão, pois não são termos habituais e usados cotidianamente.
Nesse sentido, houve várias intervenções, e a solicitação ao guia histórico que fizesse
comparações com objetos do dia a dia para facilitar a compreensão dos alunos. As analogias
surgiram a partir de uma série de objetos encontrados no Museu que hoje, ressignificados e
remodelados, fazem parte do cotidiano, como as caixas de caracteres que podemos entender
como o teclado das máquinas de escrever e computadores; grampeadores; tintas e
principalmente a relação entre os modos de fazer a imprensa no século XX e automatização
do processo no tempo presente.

2351
A visita na primeira sala, como anunciado, terminou com a execução da impressora
que funcionou por quase um século naquela tipografia. É interessante ver num objeto um
“resquício” de um passado não tão distante, porém, conservada e ainda em funcionamento. A
impressora passou por um processo de restauração, contudo, torná-la “história viva” e
palpável foi uma grande experiência para os alunos.

Figura 2: A impressora em funcionamento.

Fonte: Arquivo pessoal.

A segunda sala do Museu é destina ao arquivo onde são guardados os jornais


produzidos por aquela instituição. São mais de 4.000 exemplares, todos higienizados,
catalogados e restaurados. Este espaço também é destinado para a pesquisa documental.
Tivemos acesso a alguns exemplares, inclusive o 2º exemplar (o primeiro não existe) do
jornal Pão de Santo Antônio, mais tarde substituído no título e nas propostas pelo Voz de
Diamantina, ambos impressos na tipografia até os anos 1990.

2352
Ressaltamos aspectos importantes na visita ao Museu: na perspectiva do ensino de
História, “vestígios” do passado em diálogo com realidades e produções atuais possibilitaram
aos alunos a discussão sobre questões relacionadas à nossa atuação enquanto sujeitos sociais e
como produtores de conhecimento. Ao debatermos sobre a produção de dois jornais em
Diamantina, foi possível elucidar que através deles pode-se contar parte da trajetória da
cidade, sujeitos, grupos sociais, instituições, práticas sociais e culturais e outros.
Sobre as experiências proporcionadas pela produção e execução do projeto de
intervenção, e transpostas aqui na forma de narrativa científica, é importante destacar que o
projeto, em alguma medida, criou expectativas sobre sua execução: o tempo programado será
ser suficiente? Os alunos vão se interessar pelo tema? E se der algo errado, temos um “plano
B”? Enfim, todas essas dúvidas foram respondidas no momento em que se iniciou a execução
do projeto. A visita ao Museu exemplificou, tornou real e palpável a visão dos alunos sobre a
produção dos jornais em Diamantina, aqui tomados como fonte para a produção da História.
Sair pela cidade com os adolescentes diamantinenses e lhes apresentar aqueles
espaços, ao mesmo tempo em que foi marcante, também foi desafiador. Compreender que não
há sentimento de pertencimento à sua cidade naqueles jovens da periferia é verificar que há
limites entre o histórico, o patrimonial, o turístico e o simbólico na relação entre eles e os
vários espaços da [sua] cidade.

Considerações finais
O presente trabalho pretendeu investigar o lugar das fontes históricas e da produção do
conhecimento no ensino de História. Elegendo a imprensa e o museu como esses “lugares
privilegiados”, analisamos o episódio da visita dos alunos do ensino fundamental II da Escola
Estadual Professora Gabriela Neves ao Museu Tipografia Pão de Santo Antônio, ambos da
cidade de Diamantina, realizada no primeiro semestre de 2017. Partimos da ideia da
importância, no percurso de ensino-aprendizagem da disciplina de História, dos alunos terem
maior contato com experiências que os aproximem das realidades vivenciadas pela prática da
pesquisa histórica/historiográfica, e assim, sejam capazes de relacionar e construir

2353
criticamente o seu papel social na sua comunidade e enquanto produtor de “Histórias” e
conhecimento.
A trajetória do Museu Tipografia Pão de Santo Antônio foi um importante lócus nesse
sentido, pois, além de evidenciar a relevância da História e da memória da imprensa –
enquanto fonte histórica e também como vestígio histórico-social –, igualmente, salientou
como os sujeitos são participantes e produtores diretos de conhecimento histórico e também
da construção das sociedades e das suas histórias e memórias.
Nesse sentido, os museus não devem ser lidos apenas como receptáculos de objetos e
memórias do passado, mas também como locais de lazer e sociabilidades, (re)construção de
memórias, pertencimento e, também, como um espaço educativo:

As visitas aos Museus podem ser entendidas como movimentos de


circulação entre o momento efetivo da prática pedagógica e de formação,
indicando a construção de sensibilidades que envolvem todo trabalho com a
cultura e uma orientação para a vida prática daqueles implicados na
dinâmica das visitas. A experiência de visita possui, junto a sua dimensão
prática, uma qualidade estética dada não pelo resultado final, mas pelo
movimento/transcurso da ação. É um agir e padecer frente às coisas físicas e
imaginadas. Une eventos e objetos numa relação mútua de extensão e
profundidade. As visitas a museus geram conhecimentos e narrativas à
medida que permitem uma aprendizagem pela observação e pela própria
experiência (SEABRA, 2012, p. 161).

O resultado do projeto foi positivo – ao menos alcançou seus objetivos – que foi, entre
outros, despertar o interesse dos alunos pela disciplina da História e o seu ensino através da
prática do labor histórico e, de modo igual, por meio do seu (re)conhecimento como produtor
de conhecimentos, ou seja, aquilo que esta “guardado” no Museu deve ser interpretado como
resultado das suas ações como sujeitos produtores de culturas e saberes diversos, como bem
apontou a historiadora Elizabeth Aparecida Duque Seabra:

As visitas [aos museus] podem trazer uma série de efeitos formativos para os
estudantes-visitantes, [como] desencadear afirmações sobre a identidade
profissional, verbalizar sentimentos e pensamentos sobre o pertencimento

2354
cultural ao tempo presente e estimular a reflexividade sobre o exercício da
escrita da história em museus (SEABRA, 2012, p. 162).

A pesquisa no Museu Tipografia Pão de Santo Antônio evidenciou a diversidade que


um espaço museal pode comportar. Uma boa maneira de conhecer essa diversidade – aqui
restringimos nosso diálogo aos professores, de modo geral, e aos professores de História, de
modo específico – é aproveitá-los enquanto espaços educativos e visitá-los. Esse exercício de
uso cultural permanente dos museus – que é para toda a vida – “é bastante formativo e com
certeza contribuirá para o exercício de sua profissão de ensinar. Afinal, essa é uma postura
que certamente poderá compor o seu processo mais amplo de formação humana e cidadã”
(PEREIRA, 2007, 112).

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2356
PÓS-VISITA AO MUSEU TIPOGRAFIA PÃO DE SANTO ANTÔNIO: O QUE
ACONTECE NA SALA DE AULA

Rhayane Santos*
Elizabeth Aparecida Duque Seabra*

Resumo: O trabalho apresenta uma reflexão sobre o uso pedagógico do Museu Tipografia Pão de
Santo Antônio, localizado na cidade de Diamantina, MG e que possui um acervo composto de uma
coleção de mais de quatro mil exemplares de jornais impressos, devidamente acondicionados e
disponíveis aos diversos públicos. É um espaço expositivo composto em torno da tipografia que
funcionou no mesmo local e produziu esses jornais entre a década de 1940 e 1990. Inicialmente é feita
uma descrição do Museu, seu acervo e das expectativas de visitação expressas pela própria instituição.
Descreve-se em seguida uma visita realizada com uma turma de estudantes da Educação Básica e, por
fim, analisa-se material interpretativo produzido pelos acadêmicos, o seu uso em sala de aula no pós-
visita e os resultados alcançados junto aos estudantes.

Palavras-chave: Museu Tipografia Pão de Santo Antônio; material didático; Educação histórica;
visita a museus; Diamantina.

Abstract: The proposed work presents a reflection on the pedagogical use of the Pão de Santo
Antônio typography museum, located in Diamantina (state of Minas Gerais, Brazil), which has a
collection composed of over four thousand copies of printed newspapers, properly conditioned and
available to the general public. The museum is also an expositive site constructed around the printing
press that took place on the same region and produced these newspapers on the decades between 1940
and 1990. Initially the museum, its collection and the visitation expectations expressed by the
institution are described. Secondly, a visit done by elementary school students is detailed and, finally,
we analyze the interpretive material produced by the academics, its use in the classroom after the visit
and the results achieved amongst the students.

Key-words: Museu Tipografia Pão de Santo Antônio; courseware; Historical education; museum
visits; Diamantina.

2357
Introdução

O Museu Tipografia Pão de Santo Antônio, localizado na cidade de Diamantina,


possui tanto um acervo museológico, quanto um acervo documental. Segundo o catálogo do
Museu ele reúne documentos e objetos relativos às atividades jornalísticas, tipográficas e
editoriais realizadas entre 1906 a 1990, pelos jornais Pão de Santo Antônio e Voz de
Diamantina. O conjunto arquitetônico idealizado pela Associação do Pão de Santo Antônio
abriga além do museu, uma capela, uma praça, jardins e o asilo do Pão de Santo Antônio, em
funcionamento1. O nome dado ao museu é uma homenagem ao padroeiro da cidade. Santo
Antônio é conhecido por não deixar faltar alimentos, ou aquilo de o que se precisa; uma
religiosidade muito presente na história do asilo.

Situado na antiga tipografia dos jornais, oficina que se manteve


surpreendentemente ativa ao longo de todo o século XX, o Museu ganha
forma e realidade na união singular dos meios de produção próprios da
tipografia com os impressos saídos de seus prelos. Trata-se de máquinas
impressoras, cavaletes tipográficos, mobiliário, clichês e outras ferramentas
gráficas, que assumem seu estatuto, hoje patrimonial, ao lado de milhares de
jornais outrora ali redigidos, compostos e impressos. (UTSCH, 2015, p. 9)

O acervo passou por restauração e ações de preservação com o Projeto Memória de


Santo Antônio, coordenado por uma equipe de professores e técnicos da UFMG que
resultou no Museu hoje dedicado à memória da imprensa diamantinense, mineira e também
brasileira. A máquina impressora é centenária e encontra-se no centro do espaço expositivo.
Dois materiais foram produzidos, reproduzidos e distribuídos na realização da reinauguração
do espaço. São eles “O Jornal Tipográfico Pão de Santo Antônio” e o “Catálogo do Museu
Pão de Santo Antônio”.
A criação da oficina de tipografia teria se dado para auxiliar nas contas do asilo para a
população carente; ajudar de forma social e assistencial aos idosos excluídos da sociedade.

1
O Asilo do Pão de Santo Antônio possui capacidade para 44 internos. Atualmente abriga um total de 33 idosos
de ambos os sexos.

2358
Como apontado pelo guia do museu, recentemente abolida a escravidão, os libertos que não
tinham aonde residir e não tinha ninguém por eles vagavam pelas ruas da cidade e precisavam
ser vistos. E asilo atenderia essa população; só que era preciso contribuições financeiras e
apoio para realização do projeto assistencial. Com a invocação ao santo padroeiro aqueles que
idealizaram a obra do Pão construíram inicialmente treze casinhas, que até hoje abrigam
idosos e editaram um jornal entre 1940 a 1990. A oficina tipográfica teve como presidente o
escritor/jornalista José Augusto Neves, que entendia que os jornais iriam complementar a
renda para o Recolhimento dos Pobres.

Foi para tentar amenizar a escassez de recursos (além de seu aspecto


informativo e cultural) que Zezé Neves idealizou e criou mais um Pão: o
jornal Pão de Santo Antônio. As “pelejas e amarguras” foram as mesmas, o
jornal chegou a deixar de circular em diversas ocasiões, mudou de nome,
mas também sobreviveu e, como Voz de Diamantina, continua cumprindo
sua missão inicial. (UTSCH, 2015, p. 16)

A coleção de impressos do museu é constituída por quase 4 mil exemplares de jornais


disponíveis para consulta ao público, pesquisadores, estudantes e interessados. Sobre o acervo
impresso consta-se a quase completa coleção dos jornais produzidos no mesmo local, o jornal
“Pão de Santo Antônio” que passou a ser chamado de “Voz de Diamantina” em 1940; até o
momento que parou de produzido em 1990; manteve realizando sua função de publicar nos
jornais pedidos de doações ao Recolhimento dos Pobres. A reinauguração do Museu
aconteceu em 13 de junho de 2015.
O catálogo apresenta imagens da hemeroteca física e digital; textos que dialogam com
a escrita da história e que refletem sobre a memória e o patrimônio.

...teve como desafio devolver à comunidade um espaço de memória pautado


na concepção de um museu vivo, incluindo a reabilitação da centenária
máquina impressora e dos demais objetos pertencentes à antiga tipografia. O
projeto expográfico do novo espaço seguiu, portanto, este fundamento
museológico: criar um museu em movimento, com a participação ativa da
comunidade. (UTSCH, 2015, p.67).

2359
A invocação presente no catálogo é para que a visitação ao Museu se torne dinâmica; é
proposto que a participação da população ocorra. E, para isso ao final da exposição, se imita a
reprodução de jornais; é demonstrado o processo por onde o papel passou até tornar-se jornal.
Nesse espaço, também acontecem oficinas e ações educativas; por estar em bairro
considerado periférico, nota-se a importância de incorporar os moradores locais com a
preservação do patrimônio.

Figura 1: Interior do Museu Tipografia Pão de Santo Antônio.

Fonte: Catálogo do Museu Tipografia Pão de Santo Antônio. Diamantina, 2015.

A visita ao Museu
Foi realizada uma visita ao Museu Tipografia Pão de Santo Antônio em junho de
2017, como projeto de intervenção de Estágio Supervisionado em História. O objetivo da
visitação era promover a educação histórica e incentivar a formação de consciência histórica2.
Foi escolhida uma turma de estudantes do 8º ano de uma escola pública localizada em um dos

2
A Educação histórica pode ser entendida como uma área de pesquisa que considera o ensino e a aprendizagem
histórica um campo de intervenção no qual ensino, didática e teoria da história estão correlacionados. São
representativos do campo a produção em diversas universidades brasileiras, na Europa, Canadá e Inglaterra.

2360
bairros fora do centro tombado pelo IPHAN e UNESCO. A escola atende crianças e jovens
em condições de vulnerabilidade econômica e social. Em trabalhos anteriores já havíamos
identificado que os próprios estudantes não se identificam como pertencentes ao centro
musealizado e se consideram distantes tanto do centro, quanto dos espaços entendidos como
culturais como os museus, teatro e biblioteca, também localizados fora de seu bairro. O foco
então foi desenvolver no pós-visita atividades voltadas à história local e o estudo de fontes
documentais consideradas vestígios para a história e ajudariam na ampliação do conceito de
História e patrimônio entre os estudantes.
Foram às visitas um total de 21 estudantes, entre 12 a 14 anos de idade, meninas e
meninos. Com supervisão de três estudantes estagiários do curso de licenciatura em história.
Foram caminhando da escola até o centro de Diamantina, o primeiro local de visita foi a
Biblioteca Antônio Torres, logo após o Mercado Municipal e, em seguida o Museu
Tipográfico. Ao serem perguntados se já haviam visitado a Biblioteca, ou o Museu
Tipográfico do Pão, a maioria desses estudantes afirmaram que nunca estiveram nesses locais.
Alguns apontaram ter estado no centro, mas não entraram nestes prédios.
A visita ao Museu Tipográfico Pão de Santo Antônio é mediada por um outro
estudante da UFVJM que é funcionário do Museu e obedece aos seguintes ambientes:
recepção, impressão e hemeroteca. Na recepção cada estudante assina seu nome em um livro
e anota a data de visitação. A área de impressão recria o espaço da antiga redação do jornal;
contêm ali retratos e objetos de José Augusto Neves, tinteiro e penas. No espaço central está a
impressora tipográfica E. Durand- WIBART; ao seu redor mesa de montagem da chapa
tipográfica, prelo de rosca, cavaletes, gavetas de tipos, prelo de provas, matrizes xilográficas e
clichês fotográficos ou reticulados, entre outros. Já a hemeroteca é área de acesso aos
documentos impressos, ou seja, os jornais produzidos.
Os estudantes ficaram admirados com a estátua de um menino com jornal debaixo do
braço, Zezé Neves, filho de José Augusto Neves. A princípio queriam fotografar junto à
estátua do menino, que está fixada próxima à entrada do Museu. Ficaram curiosos quanto ao
mito de relata o menino estar dentro da estrutura de barro. “É verdade que o menino está lá

2361
dentro?” O interesse pelo museu se iniciara nesse momento. Enquanto uns assinavam o livro,
outros tiravam fotografias com Zezé Neves.
Na apresentação, o mediador do museu relatou uma breve história sobre a construção
do conjunto dos prédios do Pão, a fundação do asilo, a biografia do fundador, e os objetos
utilizados por ele como penas e tintas; fotografias em que ele estava acompanhado de outras
figuras e “personagens de peso” que provavelmente também estavam nas fotografias. Depois,
demonstrou os objetos que eram usados na escrita dos jornais, como tipos de letras, prelo de
provas e gavetas de tipos; a impressora e, em seguida a hemeroteca. Aparentemente os
estudantes voltaram suas atenções para a parte onde se encontra a impressora; perguntavam
“isto é um motor” perguntavam. Ansiosos para que chegasse o momento no qual a impressora
fosse apresentada a eles; “essa roda é para girar? E se girar ela irá funcionar?”. Na hemeroteca
os estudantes chegaram a folear os jornais, arriscaram a ler um e outro trecho de artigos. A
apresentação dos objetos foi bastante descritiva; e, em alguma medida reproduzia as
informações dos textos do catálogo. Ao final da exposição, foi demonstrado como seria os
processos caso a impressora estivesse funcionando, explicou passo a passo dos processos até
o jornal ser reproduzido.
Figura 2: Visita ao Museu Tipografia Pão de Santo Antônio.

Fonte: Fotografia de Rhayne Cristine dos Santos. Diamantina, MG, 2016.

2362
Na fotografia acima os estudantes se posicionam ao redor de um prelo que fica na
entrada da exposição do Museu Tipografia do Pão de Santo Antônio.

Material Pedagógico
Colocou-se em prática o material, cuja elaboração foi pensada para uso em sala de aula
após a visita ao Museu Tipografia Pão de Santo Antônio. Esse material pedagógico, voltado
ao visitante escolar, foi elaborado por uma turma cursando a disciplina Ensino de História I,
do curso de história de uma UFVJM. A proposta da disciplina era que os estudantes
universitários produzissem recursos pedagógicos relacionados às temáticas voltados à
educação histórica.
Na elaboração do material seguiu-se um roteiro que incluiu: primeiro uma visita
presencial ao Museu e a problematização da visita com o objetivo de aprofundar os
conhecimentos adquiridos durante a visita. Analisou-se a relação entre o prédio (edifício) que
abriga a sede do museu e os demais espaços internos e externos que constituem o conjunto
arquitetônico do Pão de Santo Antônio (capela, jardins, praça, asilo e etc.). E, a partir desse
debate foi possível refletir sobre o tipo de acervo documental e museológico que está
disponível à consulta e visitação e quais suas possibilidades de uso no ensino de história
(quais temas, abordagens, metodologias) podem ser exploradas. Também, identificou-se a
partir dos objetos/acervo tipos de atividades que poderiam ser realizadas no museu e/ ou nas
escolas considerando questões relativas às práticas de memória e patrimônio, história local e
metodologias de pesquisa documental.

2363
Figura 3: Capa do Material Pedagógico.

Fonte: Acervo Elizabeth Seabra, Diamantina, MG, 2017.

O material elaborado tem por eixo o trabalho com os conceitos de conceitos de museu,
patrimônio, memória e documentos e se propõe a avaliar a proposta expositiva e o trabalho do
museu em relação à preservação, restauração e divulgação do seu acervo. Voltado para o uso
em turmas de estudantes de 11 a 14 anos de idade prevê um tempo de uso de duas horas aula.
Os objetivos específicos das atividades elaboradas são incentivar uma análise sobre o
trabalho do tipógrafo a partir dos objetos visualizados no museu e propiciar experiências de
pesquisa histórica aos estudantes. Com as atividades propostas pretende-se que com o
conteúdo programado seja tangível visualização da história através dos objetos do museu e
ocorra interpretação de fontes documentais e objetos do acervo do museu.

O material didático “Explorando o Museu Tipográfico Pão de Santo Antônio” é


composto de quatro atividades. A primeira diz respeito à relação História e museus. São

2364
apresentadas algumas perguntas ao estudante e pede-se que ele faça um desenho do objeto
que mais lhe chamou a atenção na visita.
A segunda atividade pede que se faça correção tipográfica de texto digitalizado do
Jornal Pão de Santo Antônio. Os estudantes deverão identificar as letras/ palavras que foram
alteradas e reescrever o texto. Após o novo texto é apresentado uma reflexão sobre o trabalho
do tipógrafo. A terceira questão está relacionada com a reprodução de alguns cabeçalhos e
trechos do Jornal Pão de Santo Antônio/Voz de Diamantina. É necessário leitura e
interpretação dos jornais. São apresentadas perguntas sobre o ano de publicação, local da
publicação e nome do jornal. Já a quarta atividade é um caça palavras com objetos do museu.

Análise do uso do material pedagógico


Após a visita, realizou-se em sala de aula questionamentos sobre o conceito de história
e possibilidades de interpretação de vestígios; os tipos de fontes. Em outra aula foi utilizado o
material didático acima referenciado. Para essa apresentação selecionamos uma das atividades
para análise proporcionando olhares sobre um mesmo objeto, essa atividade exigia
interpretação e explicação do estudante sobre um objeto por ele escolhido.
Dentre os 23 estudantes que visitaram o museu, 21 responderam a atividade proposta.
Mesmo aqueles que parecem copiar os desenhos dos colegas, há desenhos muito semelhantes,
eles conheciam os objetos do acervo do museu. Como dito, pediu-se aos estudantes que
identificassem um objeto do museu que mais lhes chamasse a atenção e fizesse um desenho
desse objeto. Dos 21 estudantes, 10 desenharam a impressora, ou peças que são partes da
impressora; desenhos relacionados aos jornais, ou tipos de letras somam quatro desenhos;
canetas de pena aparecem em três desenhos e, clichês e mobiliário para separar tipos de letras
um desenho cada um.

2365
Figura 4: Desenho do objeto que mais chamou a Figura 4: Desenho do objeto que mais chamou a
atenção no Museu atenção no Museu

Fonte: Desenho realizado por um estudante do 8º ano Fonte: Desenho de uma máquina impressora
Ensino Fundamental. realizado por um estudante do 8º ano Ensino
Fundamental.

Figura 5: Desenho do objeto que mais chamou a atenção no Museu

Fonte: Desenho realizado por um estudante do 8º ano Ensino Fundamental.

A máquina impressora é a “peça de maior porte do acervo - e de todas as etapas da


produção tipográfica foi essencial para a construção da narrativa expográfica.” (UTSCH,
2015, p. 70). Dez estudantes fizeram representações da máquina; nessa mesma questão, pedia-

2366
se para que respondessem de qual tipo de material o objeto é feito e como ele era utilizado. A
maioria das respostas contém informações a respeito de forma correta.

Outros objetos
Figura 6: Desenho do objeto que mais chamou a Figura 7: Desenho do objeto que mais chamou a
atenção no Museu atenção no Museu

Fonte: Desenho realizado por uma estudante do 8º Fonte: Desenho realizado por uma estudante do 8º
ano Ensino Fundamental. ano Ensino Fundamental.

As figuras 6 e 7 apresentam desenhos de uma caneta e de um móvel utilizado para


guardar as letras, ou tipos. Esperava-se, que os desenhos fossem em maioria, representações
da impressora, que de fato é destaque na exposição. Por outro lado, a caneta de pena que pode
parecer desconexa ao conjunto; por estar exposta num museu de tipografia é representada três
vezes na atividade. Como explicar essa escolha. Circe Bittencourt parece nos ajudar:

Mesas, vasos de cerâmica, vidro ou metal, roupas, tapetes, cadeiras,


automóveis ou locomotivas, armas e moedas podem ser transformados de
simples objetos de vida cotidiana, que apenas despertam interesse pelo
“viver de antigamente”, em documentos ou em material didático que
servirão como fonte de análise, de interpretação e de crítica por partes dos
alunos. (BITTENCOUT, 2013, P. 355).

2367
Por ser um objeto presente no dia a dia, pode-se inferir que, para os estudantes, esse
objeto destacado, por ser mais próximo dos mesmos, possibilita maior interpretação de
transformações e permanências do passar do tempo. A caneta torna-se fonte de análise, de
interpretação de períodos temporais distantes, e, com isso, o estudante pode identificar o
“viver de antigamente”. Por fim, percebe-se que o material usado como proposta avaliativa
demonstra que os estudantes que realizaram a visita ao museu foram capazes de resolver de
forma mais elaborada ou simples a atividade proposta em sala; o que não ocorreu de forma
semelhante por partes dos estudantes que se ausentaram na visita ao museu.

Considerações finais
O trabalho com o Museu Tipografia Pão de Antônio levou-nos a refletir sobre os
espaços de memória; seja os espaços que estão ao nosso redor e, que não percebemos a
importância sejam aqueles espaços musealizados da cidade. Cabe-nos questionar os usos
desses locais públicos abertos à visitação. Cabe observar como os jovens se apropriam destes
diferentes locais e como as visitas escolares podem modificar a visão do próprio lugar da
escola e da cidade.
Refletir sobre as práticas pedagógicas e as práticas de memória diárias considerando o
contexto e a realidade específica das instituições de ensino leva a se perguntar quem são os
alunos e por quais espaços eles costumam a andar e quais outros locais de aprendizagem são
possíveis.
Cada vez mais os professores se perguntam o que fazer para despertar o interesse do
aluno em sala. Pode ser que quando professores e estudantes compreenderem que só com um
projeto que considere a questão da cidadania e do direito ao uso dos locais patrimonializados
pode resultar em melhores condições para a educação escolar.
No museu não encontramos sempre respostas; nem a procuramos tanto. O que se torna
importante é perceber que o conhecimento é amplo e; são amplas as compreensões de
realidades econômicas, sociais e políticas. O debate historiográfico é importante? Sim. O livro
didático também é importante. Como também, produzir material didático também é uma

2368
alternativa real, depende do professor fazer e justificar suas escolhas. O mesmo que pode se
tornar real propostas de atividades que façam refletir o ser e estar do aluno; e melhor, o onde
ele pode chegar.

Referências bibliográficas

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SCHMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA, Isabel. Aprender história: perspectivas da


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UTSCH, Ana. Museu Tipografia Pão de Sto. Antônio: patrimônio gráfico entre ação e
preservação. Diamantina, MG: Associação do Pão de Santo Antônio, 2015.

2369
VISITANTES E MUSEALIZAÇÃO: NARRATIVAS VISUAIS DE VISITAS À
DIAMANTINA

Guilherme Henrique Silva*

Resumo: O presente trabalho é parte de um projeto em desenvolvimento pelo PIBID-HISTÓRIA-


UFVJM nas escolas públicas na cidade de Diamantina, MG, cujo objetivo central é desenvolver ações
educativas de interpretação do patrimônio e avaliar a apropriação e usos dos bens preservados pelos
estudantes. Nessa apresentação problematizamos uma visita realizada com estudantes do ensino
fundamental pelo chamado centro histórico de Diamantina e as atividades desencadeadas, em sala de
aula, como desdobramento e reflexão sobre o patrimônio, a aprendizagem histórica e a história local.
Foram utilizados dois instrumentos de avaliação da visita, um questionário e a produção de cartões
postais pelos próprios visitantes.

Palavras-chave: Diamantina; Visitantes; Museus; Aprendizagem histórica; Patrimônio; Memória.

Abstract: The present work is part of a developing project done by the group PIBID-HISTÓRIA-
UFVJM at the public schools of Diamantina (MG, Brazil). The main goal of the project is to develop
educational acts of heritage interpretation and to evaluate the appropriations done by students of this
preserved heritage. In this presentation, we analyse a visit done with middle school students through
the historical centre of Diamantina city as well as the consequential activities in the classroom, such as
the reflection about heritage, historical learning and the local history. Two methods were used to
evaluate the visit: a questionnaire and the production of postcards, done by the visitors themselves.

Key-words: Diamantina; Visitors; Museums; Historical learning; Heritage; Memory

2370
Introdução
O projeto é o resultado da parceria entre a Universidade Federal dos Vales do
Jequitinhonha e Mucuri - UFVJM e Capes através do Programa Institucional de Bolsa de
Iniciação à Docência (Pibid) da área de História, que atua em escolas de ensino fundamental e
médio na cidade de Diamantina.
O trabalho tem por objetivo levar os estudantes das escolas nas quais o programa atua
para visitas ao chamado centro histórico da cidade, realizou-se assim uma visita mediada
pelos bolsistas do PIBID do bairro Bela Vista até o centro, percorrendo os principais pontos
de referência turística passando pela Casa da Glória, onde funciona o Centro de Geologia
Eschwege, ligado ao Instituto de Geociências da UFMG, pelo prédio do Campus I da
UFVJM, pelo Hotel Tijuco, um dos prédios projetos pelo arquiteto Oscar Niemeyer, pelo
Museu do Diamante, pelo Mercado Velho que um local onde ocorre eventos culturais e feiras
artesanais e na Biblioteca Antônio Torres.
O cortejo pelo centro histórico de Diamantina foi realizado com uma turma do 8 º ano
da Escola Estadual Maria Augusta Caldeira Brant, totalizando vinte e oito estudantes
acompanhados por sete pibidianos, uma professora da escola e a coordenadora do Pibid-
História. Ao longo do percurso foram dadas explicações acerca dos prédios e lugares que
compõem o circuito do tombamento. Muitos dos estudantes não sabiam ao certo a história e
os usos dos espaços presentes na caminhada, por isso, foi elaborado com antecedência um
roteiro para explicar cada ponto durante a passagem. Acostumados com a rotina de sala de
aula, ou mesmo não estando presentes nesses ambientes, a maioria dos estudantes não sabiam
dizer a funcionalidade desses locais.

2371
Figura 1: Mapa do centro de Diamantina

Fonte: Folheto disponibilizado pelo Centro de Informação Turística da prefeitura de Diamantina. Diamantina,
2017.

O Mapa acima foi utilizado na preparação para a caminhada. O mapa que é distribuído
pelo Centro de informação ao turista da cidade e indica os principais pontos do centro
histórico que estão dentro do perímetro de tombamento da Unesco, como Patrimônio Cultural
da Humanidade. Foram distribuídas cópias para os estudantes e feita a leitura conjunta, em
sala de aula, antes da saída a campo.
O projeto visava ampliar a visão acerca dos espaços de memória, monumentos e o
vasto casario musealizado, contribuindo com o ensino da história local e fazendo uso dos
monumentos, construções que remetem ao passando e que são fontes históricas, através deles
são possíveis explanar sobre a história do antigo Tijuco.

2372
Figura 2: Saída da escola Bairro Bela Vista

Fonte: Fotografia de Marcony Cruz. PIBID, Diamantina, MG 2017.

A saída da escola foi precedida de uma explicação sobre os lugares a serem visitados e
um pequeno exercício de alongamento para preparar para a caminhada. O deslocamento foi
feito a pé e o dia estava frio e chuvoso.
A cidade ao fundo parecia exercer nesse momento da descida um papel educativo, a
escola sendo a base e os estudantes se tornando uma espécie de conectores entre as praticas
tradicionais escolares e as práticas urbanas dessa forma

A vivência da cidade pode propiciar uma educação dos sentidos por meio da
ampliação das experiências dos estudantes, proporcionando, inclusive, re-
significação da experiência formativa vivenciada dentro do espaço escolar. A
cidade passa a ser local privilegiado para uma “educação do olhar e do sentir” com
os sentidos, perceber através dos sentidos. Há, assim, expansão da noção de
território educativo, o que faz ruir fronteiras dos muros, portões, grades e cercas,
introduzindo a escola na cidade e a cidade na escola, compondo cenário educador
mais integrado, num universo expansível de partilhas. (BERNARDI; PEREIRA,
2013, p. 290)

O eixo norteador do projeto consistia em romper barreiras geográficas, físicas e


históricas que estão arraigadas tanto na escola quanto nas instituições de memória e

2373
patrimônio, insistindo em tomar a cidade como um lugar para todos e indicar no processo de
formação dos professores essa possibilidade de diálogo com a cidade.
A Casa da Glória foi o primeiro lugar da parada na caminhada. A recepção foi
realizada pelos funcionários da instituição, onde foi exibido um vídeo contando a história do
edifício e de suas funções ao longo dos séculos XVIII ao XXI. Sendo que um dos principais
usos foi abrigar o Colégio Nossa Senhora das Dores, um internato religioso para meninas, e
posteriormente, nos anos de 1970, chegou a ser a sede da própria escola estadual na qual
estudam.

Figura 3: Passadiço da Casa da Glória

Fonte: Fotografia de Letícia Gomes. Diamantina, MG. 2017.

Figura 4: Visitantes no interior da Casa da Glória.

Fonte: Fotografia de Rhayane Santos. PIBID. Diamantina, MG. 2017.

2374
Percorremos as exposições do segundo andar e atravessamos o Passadiço, um dos
símbolos de Diamantina, que dá acesso ao outro lado do prédio. Os estudantes nunca haviam
percorrido o interior da Casa. Visitamos também a área externa, um extenso quintal com
frutas e área de hospedagem.
Em seguida passamos pelo campus I da Universidade Federal dos Vales do
Jequitinhonha e Mucuri - UFVJM, onde apresentamos aos estudantes parte da própria e os
cursos que funcionam nessa nesse espaço e a biblioteca.

Figura 5: Visita ao Campus I da UFVJM.

Fonte: Fotografia de Rhayane Santos. PIBID. Diamantina, 2017.

Os alunos reconheceram esses espaços, por fazerem parte de outros subprojetos do


PIBID, existentes na escola como Geografia e Educação Física, outros já haviam frequentado
a clínica odontológica que funciona no local.

2375
Figura 6: Visita ao Hotel Tijuco.

Fonte: Fotografia de Rhayane Santos. PIBID. Diamantina, MG. 2017.

O Hotel do Tijuco foi outro local visitado. Antes da entrada propriamente dita foi
comentado com os estudantes sobre alguns aspectos gerais da arquitetura de Oscar Niemeyer
e sua importância no diálogo com a arquitetura chamada colonial. Existem outros prédios de
Niemeyer na cidade como o próprio Campus I, a escola Júlia Kubitschek e a Praça de
Esportes. Falou-se também da ligação do arquiteto com Juscelino Kubitschek em outros
projetos como a construção do conjunto arquitetônico da Pampulha, em Belo Horizonte e de
Brasília, quando o estadista era governador de Minas Gerais e depois presidente da república.
Mesmo sendo o edifício particular em uso por hospedes tivemos a possibilidade de percorrer
desde a cozinha até os corredores dos quartos do andar superior.

2376
Figura 7: Prédio da antiga Escola Normal

Fonte: Rhayane Santos. PIBID. Diamantina, 2017

A fotografia acima tem ao fundo a Escola Estadual Leopoldo Miranda, conhecida


como Escola Normal, o prédio já teve diversos usos entre eles foi a primeira escola pública
para meninas, oficializada em 1928. O conjunto arquitetônico, localizado na área do
tombamento da cidade chamou a atenção dos estudantes que reconheceram outros colegas que
estudam no prédio. Dois bolsistas ficaram responsáveis por pesquisar e apresentar elementos
de cada um dos edifícios durante o trajeto.
Não houve visitação interna a nenhuma das igrejas tombadas de Diamantina. O
circuito escolhido já contava com muitos pontos de destaque e as igrejas, ainda que algumas
possam ser visitadas regularmente, demandariam ou outro trabalho de preparação com
agendamentos e estudos sobre o barroco e composição específica de fachadas e retábulos. Foi
preparada uma explicação breve sobre a religiosidade colonial que gerou um debate entre os
estudantes sentados na escadaria da igreja.

2377
Figura 8: Igreja São Francisco.

Fonte: Fotografia de Marcony Cruz. PIBID.Diamantina, MG, 2017.

A partir da visão da escadaria da igreja foi feita também a leitura de um plano mais
elevado da cidade com a vista para a Serra dos Cristais e o casario central. Descemos em
direção ao Mercado Velho para uma pausa para o lanche antes das visitas a Biblioteca
Antônio Torres e ao Museu do Diamante que já estavam agendadas.

Figura 9 Uso do Mercado Velho para o lanche.

Fonte: Fotografia de Rhayane Santos. PIBID. Diamantina, MG, 2017.

2378
O chamado Mercado Velho fica na Praça Barão de Guaicui. O local que era uma das
principais referências para o abastecimento da região por meio de tropas nos séculos XIX,
hoje é um ponto de encontro nos finais de semana. Na praça ocorrem shows e outros eventos
do calendário religioso, festas juninas, feiras de produtores agrícolas e de artesanato aos
domingos. O prédio que abriga o Mercado e o conjunto arquitetônico ao redor foi recuperado
numa ação para candidatura da cidade à Patrimônio da Humanidade em 1999.
Os estudantes levaram seus próprios lanches e alguns socializaram com os colegas em
pequenos grupos enquanto aproveitavam para tecer alguns comentários sobre as visitas.
Outros se mantiveram alheios, ou isolados; outros ainda conversavam com os bolsistas sob
assuntos variados como a morte, a sexualidade e as diferenças entre eles.
A visita seguinte foi à Biblioteca Antônio Torres, ou Casa do Muxârabiê, uma das
instituições mais visitadas em Diamantina por pesquisadores. Segundo as informações obtidas
durante a visita o edifício foi construído na segunda metade do século dezoito e possui
influências da arquitetura árabe. Foi doado à União em 1942 e em 1950 foi tombado pelo
IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional).
O prédio no qual está localizada a Biblioteca, no centro de Diamantina, é considerado
uma construção singular do chamado período colonial mineiro. Uma das estudantes que toca
na banda de música mirim da cidade e se apresenta na Vesperata, um evento que se tornou
atração turística após o tombamento, falou que tem acesso a uma das sacadas próximas à
biblioteca e identificou o balcão de procedência mourisca fechado com treliças de maneira e
que se projeta, no segundo andar do edifício, para a rua juntamente com duas outras sacadas
em madeira. O prédio possui ainda uma estrutura interna em torno de um pátio contornado
por varada e pequenos cômodos nos quais estão acomodados o acervo documental da
biblioteca.

2379
Figura 10: Visita ao interior da Biblioteca Antônio Torres.

Fonte: Fotografia de Rhayane Santos. PIBID. Diamantina, MG. 2017.

Fundada em meio a uma disputa em torno do local sediaria o Museu do Diamante, a


Biblioteca Antônio Torres homenageia o escritor e político de Diamantina que doa seu acervo
particular composto de uma coleção de 241 documentos dos séculos e início do século XX.
Segundo dados reunidos pela própria bibliotecária o acervo da Antônio Torres é
composto de documentos dos séculos XIX e XX e congrega usuários diversos: estudantes da
Educação Básica, pesquisadores de diferentes áreas acadêmicas e moradores que buscam nos
mais de 3224 exemplares de jornais, fontes cartoriais como livros de registro, ofícios, contas
que totalizam 23.419 documentos, cerca de 200 partituras e 14 estampas. (IPHAN-MG, S/D).

2380
Figura 9: Interior da Biblioteca Antônio Torres.

Fonte: Fotografia de Rhayane Santos. PIBID. Diamantina, MG. 2017.

Nesse espaço os estudantes puderam ter contanto com uma casa que traz resquícios do
período escravagista, com um espaço preservado aos escravos, a senzala, e ao mesmo tempo
uma biblioteca de valor documental inestimável.
Terminando o percurso pelo centro, concluímos com a visita ao Museu do Diamante.
Os estudantes foram divididos em dois grupos e conduzidos pelos espaços expositivos com
uma narrativa que destacava determinados objetos e unificava o conjunto de objetos em torno
de uma temática. Assim, uma sala era destacado o diamante, outra peças da religiosa católica,
da escravidão, mais peças e cenários do interior de moradias como quarto e sala de música.
Cabe registrar que esse tipo de mediação e o próprio acervo já foi objeto de reflexão em
outras atividades do projeto.

2381
Figura 10: Entrada no Museu do Diamante.

Fonte: Fotografia de Rhayane Santos. PIBID. Diamantina, 2017

A reflexão sobre as relações entre museus e visitantes nem sempre é pautada pela
preocupação com o entendimento do papel social de ambos os atores. Nessa visita ao Museu
do Diamante podemos mais uma vez identificar a negociação dos sentidos de uso derivados
das situações e do ponto de vista dos visitantes. Isso acontece no tipo de perguntas que fazem
diante dos objetos e no pós-visita quando podem discutir mais e apresentar o que coletaram
durante as visitas.

2382
Figura 11: Visita ao Museu do Diamante

Fonte: Fotografia de Marcony Cruz. PIBID. Diamantina, MG. 2017

Ainda que as instituições museais e de memória sejam revisitados por estudos


acadêmicos empíricos e quantitativos que estabelecem dados sobre condições de acesso e uso
dos públicos tanto no plano relacional das trocas e negociações, quanto no plano institucional
de valores e imagens, os estudantes continuam afastados desses espaços. A visita e o visitante
são objetos de inquéritos em diferentes museus. Ao estudar o visitante essas pesquisas
problematizam o papel dos museus na sociedade e as percepções sociais de suas ações. Fala-
se de público, ou públicos, de uma determinada atividade cultural. Nos museus o lugar do
público está associado ao visitante, ou usuário, e as investigações sobre os públicos vêm se
consolidando juntamente com outros temas como a educação e a história em museus.
Tentamos mostrar aqui um visitante ordinário, comum que frequenta com seus colegas os
lugares da cidade musealizada.

2383
Considerações finais: pós-visita

Após a visita realizada pelo centro histórico de Diamantina-MG, foi aplicado um


questionário para avaliar o conhecimento dos estudantes sobre o próprio centro e as
instituições que o compõem e identificar o que chamou mais atenção deles durante o percurso.
As perguntas então percorreram desde informações básicas dos estudantes, qual dos lugares
visitados mais chamou a atenção e se eles já tinham ido a estes locais anteriormente.
Os resultados foram diversos, quando perguntado quais dos pontos visitados eles mais
gostaram, ficou divido entre o Mercado Velho, Museu do Diamante e Casa da Gloria. A
possibilidade de os estudantes poderem entrar nesses espaços e saberem que são para eles já
modifica toda a visão do que é o centro da cidade.
Essa pratica de ensino por meio de visitações impulsiona a aprendizagem histórica,
pois, quando questionado sobre qual impressão os estudantes tiveram ao sair do museu 18
deles afirmaram que saíram com a impressão de estarem em uma sala de aula, 8 dos
estudantes confirmaram que saíram com a sensação de estarem em uma biblioteca e os 2
restantes se abstiveram. Ou seja, as sensações diante os ambientes estão ligadas a educação,
mas de uma forma dinâmica, fora da rotina e por meio das memórias que a cidade e os
espaços conservam.
A terceira parte do projeto está em andamento que se trata da confecção de cartões
postais retratando qual lugar os estudantes mais gostaram e posteriormente mandar para um
colega da escola convidado o mesmo para conhecer o lugar.
Portanto, a extensão do ensino além da escola é uma forma de trazer o real em
contraste com as teorias ensinadas na escola, com a história do passado, é uma maneira
empírica de ensinar. Reconhecer os espaços educativos que rodeiam as escolas é um novo
meio de se fazer a educação.

2384
Referências

BERNARDI, Andréia Menezes de, PEREIRA, Júnia Sales. Partilha da cidade nos territórios
educativos: a escola entre sensibilidade e expansão. In: MIRANDA, S. R.; SIMAN, L. M. C.
Cidade, memória e educação. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2013. p. 59-92.

BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de história fundamentos e métodos. 4 ed.


São Paulo: Cortez, 2001. (Coleção docência. Série ensino fundamental; Coordenação Antônio
Joaquim Severino, Selma Garrido Pimenta).

GUERRA, M. G. O patrimônio na perspectiva da diversidade. In: PEREIRA, J. S. (Org.)


Produção de Materiais Didáticos para a Diversidade: patrimônio e práticas de memória numa
perspectiva interdisciplinar 1. Belo Horizonte/Brasília: Faculdade de Educação e Centro
Pedagógico da UFMG: Caed UFMG / Secad / MEC, 2010. p. 67-88.

INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL - IPHAN.


Educação Patrimonial: Manual de aplicação - Programa Mais Educação/Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Brasília: Iphan/DAF/Cogedip/Ceduc, 2013.

KNAUSS, Paulo. A presença de estudantes: o encontro de museus e escola no Brasil a partir


da década de 50 do século XX. Varia Historia: Belo Horizonte, vol. 27. nº46. p.581- 597,
jul/dez 2011. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-87752011000200010&script=sci_arttext.
Acesso em 30 de junho 2013.

LAUTIER, Nicole. Saberes históricos em situação escolar: circulação, transformação e


adaptação. Revista Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 36, n.1, p. 39-58, jan./abr., 2011.
Disponível em: <http://www.ufrgs.br/edu_realidade.> Acesso em 17, ago 2017.

MATTOZZI, Ivo. Currículo de História e educação para o patrimônio. Educ. rev. [online].
2008, n.47, pp. 135-155. ISSN 0102-4698. Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_serial&pid=0102-
0188&nrm=iso&rep=&lng=pt>. Acesso em 17 ago. 2017.

SCHMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA, Isabel. Aprender história: perspectivas da


educação histórica. Ijuí: Unijuí, 2009

2385
OS INSTRUMENTOS DE TRABALHO DO NEGRO NO MUSEU HOMEM DO
NORDESTE

Rafael Brito dos Reis*

Resumo: A presente pesquisa busca entender a associação dos instrumentos de trabalho relacionado
ao defeito mecânico e, ao personagem negro, ao visitar o Museu Homem do Nordeste - MUHNE,
problematizando o processo historiográfico de trabalho negro pelos instrumentos exposto no museu e
ampliando as discussões sobre os processos de fabricação das representações sociais e das memórias
de segregações raciais, presentes no Brasil e na cidade do Recife, por causa de 358 anos de escravidão
institucionalizada entre os anos de 1530 a 1888 na história da escravidão do Brasil e as novas
continuidades de trabalhos análogos a escravos na pós abolição, ao analisar alguns instrumentos de
trabalhos da cozinha da produção do açúcar, a bacia de barbear, a caixa de sorvete, a máquina para
fazer algodão doce, a máquina de amolar faca, a máquina de lambe lambe, a tábua de pirulitos, a caixa
de cavaquinho, o triângulo, o tabuleiro de doce japonês, tampa do tabuleiro, a mesa, equipamentos
associativos à figura do trabalho mecânico negro oriunda da tensão social entre: branco e negro,
senhor e escravo, casa grande e senzala, relacionados a uma produção historiográfica da cultura
material e da memória regional-local nas relações de poder presentes nesse processo. Não obstante,
iremos introduzir apenas três instrumentos associativos ao negro do MUHNE, a saber: a máquina de
amolar facas, a cozinha da produção do açúcar; e a máquina para fazer algodão doce.

Palavras-chave: MUHNE; Cultura Material; instrumentos de trabalho; defeito mecânico; negro.

2386
Abstract: The present research seeks to understand the association of the instruments of work related
to the mechanical defect and, to the black personage, when visiting the Museum Man of the Northeast
- MUHNE, problematizing the historiographic process of black work by the instruments exposed in
the museum and expanding the discussions on the processes Of social representations and memories of
racial segregation, present in Brazil and in the city of Recife, because of 358 years of institutionalized
slavery between the years 1530 and 1888 in the history of Brazilian slavery and the new continuities
of similar works to Slaves in the post-abolition, when analyzing some instruments of kitchen work of
sugar production, shaving basin, ice cream box, cotton candy making machine, knife grinding
machine, lambe licking machine, ironing board Lollipops, ukulele box, triangle, Japanese candy tray,
board lid, table, equipment And black and white, lord and slave, large house and senzala, related to a
historiographic production of material culture and regional-local memory in the relations of power
present in this process. Nevertheless, we will introduce only three associative instruments to the Negro
of MUHNE, namely: the grinding machine knives, the sugar production kitchen; And the machine to
make cotton candy.

Key-words: MUHNE; Culture Material; Work tools; Mechanical defect; black.

2387
Introdução

“Não seria possível uma história da vida quotidiana sem as evidências da


cultura material, assim como a história da cultura material seria ininteligível
se esta não fosse colocada no contexto da vida social quotidiana. Peter
Burke”

Este trabalho tem por objetivo geral analisar os instrumentos de trabalho mecânicos
associados a figura do negro e seu defeito mecânico (GUEDES, 2006, p, 379-380), no Museu
Homem do Nordeste - MUHNE, como um processo historiográfico na perspectiva da cultural
material, considerando a reprodução da tensão social entre senhor e escravo na memória
regional e local, a parti, da finalidade comunicativa e as reverberações socioespaciais dos
objetos patrimoniais musealizados, apontando algumas ponderações sobre “elementos que
orientam o uso dos museus no ensino de história” (PACHECO, 2012, p, 63).

O problema de pesquisa encontra-se nas seguintes perguntas: Quais são os


instrumentos de trabalho associado a figura do negro no museu Homem do Nordeste? Qual o
tipo de trabalho que está associado ao negro em cada objeto patrimonial musalizado? Como a
cozinha da produção do açúcar, o afiador, o carrinho de algodão doce, são formas de
discursos da tensão social entre: branco e negro, senhor e escravo, casa grande e senzala?
Qual a intencionalidade comunicativa do Museu Homem do Nordeste na exposição desses
instrumentos associativos a figura do trabalho negro e seu trabalho mecânico?

Essas questões devem ser amplamente respondidas ao longo de um trabalho de


pesquisa como dissertação que buscaremos fazer em outra oportunidade, não obstante, aqui
buscaremos levantar algumas considerações iniciais sobre os equipamentos de trabalho do
negro como formas de discursos e o caráter comunicativo do Museu Homem do Nordeste
nesse contexto de exposição de instrumentos de trabalho relacionado a divisão do trabalho.

Não obstante, “cabe ao museu ampliar a sua consciência quanto ao direito básico de
cada cidadão no processo da cultura e, no que concerne o seu compromisso institucional, no
processo da cultura material” (CURY, 2013, p, 26).

2388
A intencionalidade comunicativa para Meneses (2000, p. 94) é ação revestida de
criticidade, onde deve estar afinado com os “princípios essenciais e elementares, distanciando
educação de transmissão, indução, paternalismos, autoritarismos, boas intenções e apelos
outros diversos” (Apud: CURY, 2013, p, 14).

Para Cury “em síntese, diríamos que a problemática do museu é justamente a


problemática da cultura material, mas em um lugar institucionalizado que se apoia em um
acervo” (CURY, 2013, p, 15).

De acordo com Durkheim (1978, p, 82) temos na divisão do trabalho uma perspectiva
mais alargada, isto é, uma perspectiva da solidariedade mecânica e solidariedade orgânica, do
nosso ponto de vista, carregada de intencionalidade e discriminações sociais e raciais, onde
necessariamente inclui o trabalho negro e seus instrumentos de trabalho na escravidão e pós
abolição.

A solidariedade mecânica é detentora de seus instrumentos de trabalhos semelhantes


que levam uma identidade, porém com relações simples na divisão do trabalho, “numa
conexão do indivíduo (consciência individual) com o grupo social ao qual pertence
(consciência coletiva) (DURKHEIM, 1978, 76).

Enquanto que a solidariedade orgânica os trabalhadores não possuem o controle dos


instrumentos de trabalho, marcada por uma divisão de trabalho mais sistematizada, bem
como, pelas diferenças entre os indivíduos, que se complementam pela divisão do trabalho
(DURKHEIM, 1978, 82).

A Cultura Material, grosso modo, seria todo objeto que é manipulado e construído
pelo homem, tratado no sentido simbólico e de uso, tendo várias representações sociais em
determinados tempos espaciais.

A expressão cultura material refere-se a todo segmento do universo físico


socialmente apropriado. Aqui, no entanto, para simplificar, falar-se-á

2389
sobretudo do artefato, que é apenas um dos componentes - dos mais
importantes, sem dúvida - da cultura material (MENEZES, 1988, p, 100).

Conforme o IPHAN (2000, p, 29) a cultura material refere-se a bens imóveis e bens
móveis, sendo a vertente mais consolidada nas políticas de patrimônio.

No caso da chamada cultura material, que é a vertente mais consolidada nas


políticas de patrimônio, esses levantamentos referem-se a bens imóveis ou
móveis, tomados isoladamente ou em conjuntos. Nos dois casos – bens
móveis ou imóveis –, as unidade e observação podem ser identificadas sem
muita dificuldade: serão estruturas arquitetônicas ou objetos bem
delimitados que se encontram em determinado sítio (IPHAN, 2000, p, 29).

Para Agier (2001, p, 22) os objetos patrimoniais musealizados possui uma tenção entre
a identidade e a cultura, sendo um paradóxoco e problemática que é o contrário da
transparência suposta pelo qualificativo de “identidade cultural”:

Ao exibi-la, eles produzem uma concepção museográfica da cultura material,


intocável e “pura”. No entanto, sua ação favorece a dinâmica cultural. Esse é
o paradoxo permanente da relação entre identidade e cultura - uma relação
problemática, conflituosa, ou seja, o contrário absoluto da transparência
suposta pelo qualificativo de “identidade cultural” (AGIER, 2001, p, 22).

Não obstante, a cultura material envolve aspectos propriamente econômicos e político,


pois entendemos que o patrimônio é uma escolha política, isto é, um ato político.
O Museu Homem do Nordeste, claramente demonstra uma associação tendenciosa de
que o negro está relacionado ao defeito mecânico, a um tipo de trabalho mais braçal e menos
intelectual oriundo do imaginário sociedade e sua história.
Esses trabalhos associados ao negro são mais mecânicos oriundo a uma continuidade
da tensão social entre: branco e negro, senhor e escravo, casa grande e senzala, relacionados a

2390
uma produção historiográfica da cultura material e da memória regional-local nas relações de
poder presentes nesse processo, consequentemente, não estando na memória popular a
associação do negro com trabalhos tidos como complexos e orgânicos como medicina,
advocacia e engenharia dentre outros.
Em diálogo com Durkheim (1978, p, 82) entendemos que a memória e as expressões
culturais da cultura material nas peças do museu sobre os instrumentos de trabalho do negro
possuem diferenças, no entanto, o sistema escravista e pós abolicionista, na perspectiva da
memória e da cultura material, se mesclaram dentro de uma sociedade de trabalhadores onde
“estas duas solidariedades não passam de uma só. São duas faces de uma única realidade..."
(DURKHEIM, 1978, 82).
Para Cury, a organização das salas temáticas de um museu e a localização de suas
peças e objeto patrimonial musealizado são pedagogicamente orientados visando a formação
de uma cidadania e solidariedade, pois “o museu é um meio de comunicação comprometido
com a qualidade de comunicação, ou seja, com a capacidade de despertar a consciência,
estimular questionamentos e pensamentos críticos” (CURY, 2013, p, 13).
Nos parâmetros da comunicação museológica, a máquina de amolar facas, a cozinha
da produção do açúcar; e a máquina para fazer algodão doce para os visitantes do museu, faz
a memória retomar o pensamento que o trabalhador negro afrodescendente está relacionado
ao trabalho social de serviços gerais e do trabalho informal.
Concordamos com Cury, pois existe uma práxis comunicativa no Museu Homem do
Nordeste realista quanto a situação social dos trabalhadores negros da época indica pela
cultura material, mas, ao mesmo tempo, existe uma mensagem pejorativa ao apontar a
segregação racial e a discriminação do trabalhador negro, onde mesmo a pós abolição da
escravatura existem trabalhos análogos a escravidão, bem como, a discriminação profissional
de negros que saem desses parâmetros da comunicação musealizado de que o tipo de trabalho
do negro é predominantemente penoso e braçal (CURY, 2013, p, 17-18).
Ao buscar compreender que o tipo de trabalho do negro, assim como, as continuidades
e descontinuidades dessa memória racista na perspectiva da Museologia, assim como,

2391
reflexões sobre a práticas de memórias e a História Social e Cultural, podemos ampliar as
noções e discussões sobre os instrumentos de trabalho do negro em cada objeto patrimonial
musealizado, propondo outras possibilidades de análises.
Embora isso possa ser considerado para alguns museólogos e historiadores como algo
em segundo plano, deve se configurar como um grande desafio empírico para a compreensão
das potencialidades de aprendizagens nos museus com finalidade em discutir a relação cultura
material e memória em museus e as memórias relacionadas por disputas simbólicas. Isso
porque nos ajuda a analisar as continuidades e descontinuidades da produção da memória e o
papel educador e comunicativo do museu na formação da cidadania.
Nesse sentido, a visão do museólogo e o historiador devem estar sempre se colocando
em perspectiva, porque refletir um objeto patrimonial musealizado e as memórias coletivas
em diferentes contextos e fazer uma história dos poderes simbólicos em meio aos períodos
que são marcos historiográficos ainda são trabalhos bastante desafiadores. No entanto, temas
como este estão presentes nas discussões envolvendo as aprendizagens sensíveis no uso
pedagógico dos museus, tanto a memória regional relacionada ao museu, como a cultura
material e a memória local.
Assim, comprovamos a relevância científica da pesquisa ao atrelar essas dinâmicas da
memória e da historiografia na perspectiva da Cultura Material, a partir dos diferentes
processos temporais dos discursos políticos sobre o objeto patrimonial musealizado acerca
dos instrumentos de trabalho do negro, relacionando-as com o resgate dos debates polêmicos
que envolvem a relação apropriação-ressignificação, entre as tensões, por exemplo, mas não
somente, do senhor e escravo, negro e branco, casa grande e senzala, orla e favela. Onde
nessas relações “sem dúvida, o racismo adicionou um tom perverso” (THOMPSON, 1998, p,
366).
Com base nisso, e agrupando toda essa relevância da cultura material para a História,
esta pesquisa buscará tecer algumas ponderações aos questionamentos iniciais propostos,
dialogando sobre a comunicação museológica e os equipamentos de trabalho do negro
legitimados no exercício do defeito mecânico como formas de discursos.

2392
Os equipamentos de trabalho do negro como formas de discursos
Os equipamentos de trabalho do negro como formas de discursos consideram que
existe um contexto onde a educação patrimonial é importante para a memória e a história no
processo de comunicação e formação da cidadania.
Isso no sentido positivo, no entanto, como discurso um objeto patrimonial
musealizado também pode ser usado como instrumentos reacionários, legitimação do domínio
socioespacial e manipulação de pessoas.
Ao considerar que nenhum discurso patrimonial é neutro, partimos para o
entendimento que também nenhum objeto patrimonial está fora de sintonia com as
intencionalidades do museólogo.
Nesse sentido, o trajeto de cada objeto patrimonial musealizado relacionado ao
instrumento de trabalho do negro deve ser considerado como maneiras de educar e
desenvolver discursos, mas para isso, devemos entender o que realmente está por traz dos
discursos, isto é:

[...] a articulação entre o ato que propõe e a sociedade que reflete; o corte,
constantemente questionado, entre um presente e um passado; o duplo
estatuto de um objeto, que é um "efeito do real" no texto e o não-dito
implicado pelo fechamento do discurso (CERTEAU, 1982, p, 54).

A intensão do objeto patrimonial, ao nosso ver, está carregado de símbolos, memórias


e discursos, onde o educador de museu é um comunicador, ou seja, “aquele que articula a
cultura material ao cotidiano do público, fazendo com que os processos educacionais tenham
sentido para diferentes categorias de público” (CURY, 2013, p, 19).
Não obstante, mesmo o educador não sendo um decifrador de códigos, é um sujeito
relevante que possui um papel na formação da cidadania a partir dos discursos do objeto
patrimonial musealizado.

2393
O primeiro objeto patrimonial musealizado exposto no museu do Nordeste que
analisaremos dentre os equipamentos de trabalho do negro como discursos intrínsecos na
perspectiva da cultura material é o afiador ou amolador de facas.
O afiador na historiografia é um instrumento de trabalho que retoma em princípio as
atividades dos homens Sapiens, onde utilizavam as rochas mais resistentes para a afinação de
lanças e ouras rochas. Nesse sentido, não se associa diretamente ao trabalho mecânico do
negro, mas de um utensílio rudimentar que nessa periodização se assemelhava o que
chamamos de pedra de amolar e afiador ou amolador de facas e tesouras.

Figura 01: Máquina de amolar facas e tesouras.

Fonte: Base ISIS / COMUS - MUHNE/FUNDAJ – FOTO DE 20173.

No MUHNE a “máquina de amolar facas e tesouras” encontrra-se na sala temática dos


instrumentos de trabalhos associativo ao negro e seu defeito mecânico. Do nosso ponto de
vista, esse objeto patrimonial musealizado está inserido numa legitimação da memória que
criminaliza a figura do negro mesmo nos pós abolição, trabalhando a memória de
discriminação racial, social e econômica.
Antigamente o afiador ou a “máquina de amolar facas e tesouras” era conhecido como
reparador de sombrinhas e eram serviços comerciais prestados por pessoas que viviam de
trabalhos penosos como ambulantes e, sobretudo, os escravos que iriam amolar as facas e
tesouras de seus senhores. Onde não necessariamente seriam escravos negros, mas por

3
MAQUINA DE AMOLAR FACAS. Registro: 88.17.1. Autor: JOSE ANTONIO DA COSTA FILHO. Origem:
RECIFE PERNAMBUCO. Class.: CIÊNCIA, TECNOLOGIA, MAQUINARIA. Técnica: MARCENARIA,
SOLDAGEM Material: MADEIRA, FLANDRE, COURO Localização: EXPOSICAO, ANTROPOLOGIA -
MODULO A - BASE 18. Aquisição: (19/07/88).

2394
associação oriunda dessa memória segregadorizante, ao nosso ver, vários fazeres
historiográficos e usos pedagógicos dos museus muitas vezes colocam o continente africano
numa generalização como uma região exclusivamente de negros pobres e “inferiores”.
Na escravização institucionalizada a partir de 1530 até 1888, a américa portuguesa
realmente importava escravos negros em sua predominância, porém, também vinham
escravos muçulmanos não negros da África e escravos de outras culturas, como no caso do
escravo muçulmano Rufino que teve sua trajetória de vida na Bahia, Porto Alegre, Rio de
Janeiro e Recife (REIS, 2010, p, 9-12).
A cozinha da produção do açúcar, possui vários objetos patrimoniais musealizados,
dentre eles, instrumentos de trabalho do negro como peças como colheres com cabos longos
utilizadas pelo responsável do caldeirão, artes artesanais sobre a produção açucareira, quadros
que expõem um panorama geral da produção do açúcar pelo trabalho escravo. Assim como,
existe a exposição das fôrmas de pão de açúcar, para formar os blocos de açúcar em formato
de cone. E os instrumentos da produção do caldo grosso de açúcar, com várias bacias de ferro
e um grande caldeirão, seguido de uma foto para ser comparado em justaposição.
Esses utensílios sobre a produção do açúcar expostos no museu possuem veracidade
histórica, pois de fato representam os instrumentos de trabalho do período, de acordo com a
memória e a historiografia. Porém, especificamente no MUHNE a distribuições de três
momentos e salas diferentes, dificulta ao nosso ver, muito o ensino de história, e não existe
nenhum recurso áudio visual pera melhorar o ambiente. E nenhuma interação criativa do tema
histórico com o público visitante que potencializam a aprendizagem sensível da cultura.
Nesse sentido, a cozinha de produção de açúcar claramente mostra o tipo de trabalho
mecânico dos negros escravizados na américa portuguesa, especialmente no Recife, passando
uma mensagem de exploração de trabalho, sofrimento e abuso que na realidade era o que
estava acontecendo, porém, do nosso ponto de vista, o ensino museológico dessa sala temática
no NUHNE enriqueceu a problemática antropológica do museu e de seu papel de formação de
esclarecimento social, assim como, da preocupação do que, na perspectiva do discurso do

2395
patrimônio musealizado, faz uma discriminação do trabalho do negro, um discurso de
manutenção da dominação da casa grande sobre a senzala, até nos tempos hodiernos.
Para Cury, à crítica que se faz aos museus como “lugar de coisa velha”, monótono e,
chato, está associada à sua comunicação, onde na cozinha da produção do açúcar essa
mensagem traz um discurso que esquivar-se do problema ou distanciar-se do que seria a
problemática do museu e seu papel social” (CURY, 2013, p, 14).

Se a exposição é essencial para a comunicação museológica porque é a


melhor forma de materialização de problemáticas museológicas, a ação
educativa é essencial também porque vai além da exposição, potencializando
a experiência do visitante com o patrimônio cultural (CURY, 2013, p, 21).

Em outra passagem Cury continua:

O público agrega valor à sinergia não com a sua presença, mas com a sua
contribuição em torno da discussão sobre o significado do patrimônio
cultural. Assim, a comunicação não é o fim e tampouco o começo da
curadoria e sim possibilidade de participação dos sujeitos do museu -
profissionais e público - na dinâmica da cultura material. Há com esta
concepção uma mudança institucional substancial que compreende: (1)
como o museu se pensa e se organiza? (2) como o museu conceitua o
público? (3) como o público participa efetivamente na sinergia? (CURY,
2013, p, 17-18).

O terceiro objeto patrimonial musealizado que destacaremos nessa pesquisa e oferece


discursos sobre o tipo de trabalho do negro e seu defeito mecânico é o carrinho de algodão
doce. A historiografia revela que o algodão doce foi criado nos Estados Unidos por volta do
final do século XIX e início do século XX, onde “a máquina de fazer o algodão doce é

2396
constituída por um recipiente na forma de uma bacia e com um cilindro giratório no centro,
dentro do qual é colocado o açúcar”4.

Figura 02: Máquina para fazer algodão doce.

Fonte: Base ISIS / COMUS - MUHNE/FUNDAJ – FOTO DE 20175.

O discurso desse patrimônio musealizado se integra como um instrumento de trabalho


negro, pela ênfase no trabalho mecânico como os instrumentos da produção do açúcar e o
afiador. Mas também, por ser um trabalho econômico de pouca rentabilidade e pouco esforço
intelectual.

Nas entrelinhas dos discursos analisados até agora, retomamos ao contexto onde a
educação patrimonial é importante para a formação da cidadania mais democrática e menos
reacionária.

A análise linguística poderia demonstrar os discursos nos objetos patrimoniais como


proposições e, nas teorias dos atos de fala, tendiam a apresentar os pensamentos como
elocuções atuantes sobre aqueles que as observam, e até mesmo sobre aqueles que as
enunciam.

4
A Origem das Coisas. Disponível em: http://origemdascoisas.com/a-origem-do-algodao-doce/ . Acessado em:
28.06.2017.
5
MAQUINA PARA FAZER ALGODAO DOCE. Registro: 81.30.1. Autor: NAO IDENTIFICADO Marca:
SEM MARCA. Origem: RECIFE, PERNAMBUCO. Material: MADEIRA, FLANDRE. Localização:
EXPOSICAO: ANTROPOLOGIA - MODULO A - BASE 16. Aquisição: COMPRA Procedência: MARLINDO
ANTONIO DE LIMA. Conservação: BOM. Valor: 00023000CR$. Dimensões: 76X166X59 CM. (ABERTA)-
140X166X59 CM. (FECHADA).

2397
A “máquina para fazer algodão doce” do MUHNE se integra a sala temática dos
instrumentos de trabalhos associativos ao negro e seu trabalho mecânico, porém leva em
consideração uma “evolução” na diversificação do trabalho, onde o negro ainda é mantido
como uma forma de trabalho inferiorizada.

Percebemos ainda que essa “máquina para fazer algodão doce” na sua localização no
MUHNE se encontra entre três subdivisões dessa sala temática dificultando sua real
contextualização para os olhares menos técnicos e apurados.

Pode se dizer até para fins de propostas na comunicação do MUHNE dessa sala
temática, que existe até mesmo o certo anacronismo nesse objeto patrimonial musealizado em
relação a temporalidade mais moderna em comparação com a cozinha da produção do açúcar,
devido a sua localização e falta de adequação com os outros instrumentos de trabalhos
associativos ao negro e seu defeito mecânico expostos nessa sala temática. No entanto, se
encontra contextualizado com as intencionalidades antropológicas e sociológicas do MUHNE,
influênciada pelo seu fundador Gilberto Freyre em 1979.

Essa tendência mais antropológica do que historiográfica e temporal do MUHNE no


certo sentido dificulta o ensino de história nessa perspectiva. Porém, no que refere a sua
grande mensagem museológica sobre a legitimação das divisões raciais e as divisões de
trabalhos encontra-se corretamente contextualizada, pois expressa as práticas de uma memória
racista e, por conseguinte, uma aprendizagem sensível no uso pedagógico desse objeto
patrimonial musealizado, do nosso ponto de vista, carregado de simbolismos.

Não obstante, é necessário não igualarmos como sinônimos os três discursos oriundos
dos objetos patrimoniais musealizados, pois na perspectiva da cultura material os discursos
são dinâmicos e marcados no tempo e espaço.

Propomos uma análise mais ampla para os equipamentos de trabalho do negro como
discursos, pois essa questão ainda é passiva de pesquisa. Indicando como auxílios teóricos e
metodológicos os autores Poulot (2013); Chuva (2008); Cury (2013); Galvão (2011);

2398
Gonçalves (2003); Silvania Sousa do Nascimento (2013); Meneses (2000); Scheiner (2003);
Nora (1981); Oliveira (2008) e Pacheco (2010; 2012) na área de museu-comunicação, museu-
escola e museu e história. Assim como, as abordagens da Análise do Discuso (AD), a Escola
dos Annales - Lucien Febvre e Marc Bloch, tendo a noção de história e memória, e memórias
coletivas em Le Goff (1990) e Halbwachs (2003) respectivamente, e, a questão do mito em
Miguel (2000) e a noção de identidade, sujeito e sujeito sociológico com Hall (2000).

A noção de sujeito sociológico refletia a crescente complexidade do mundo


moderno e a consciência de que este núcleo interior do sujeito não era
autônomo e auto-suficiente, mas era formado na relação com “outras pessoas
importantes para ele”, que mediavam para o sujeito os valores, sentidos e
símbolos - a cultura - dos mundos que ele/ela habitava [...] O sujeito ainda
tem um núcleo ou essência interior que é o “eu real”, mas este é formado e
modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais “exteriores” e as
identidades que esses mundos oferecem (HALL, 2000, p, 11).

Em outra passagem Hall (2000, p, 11-13) continua:

A identidade, nessa concepção sociológica, preenche o espaço entre o


“interior” e o “exterior”- entre o mundo pessoal e o mundo público. O fato
de que projetamos a “nós próprios” nessas identidades culturais, ao mesmo
tempo que internalizamos seus significados e valores, tomando os “parte de
nós”, contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares
objetivos que ocupamos no mundo social e cultural. A identidade, então,
costura (ou, para usar uma metáfora médica, “sutura”) o sujeito à estrutura.
Estabiliza tanto os sujeitos quanto os mundos culturais que eles habitam,
tomando ambos reciprocamente mais unificados e predizíeis. Argumenta-se,
entretanto, que são exatamente essas coisas que agora estão “mudando”. O
sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável,
está se tomando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias
identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas.
Correspondentemente, as identidades, que compunham as paisagens sociais
“lá fora” e que asseguravam nossa conformidade subjetiva com as
“necessidades” objetivas da cultura, estão entrando em colapso, como
resultado de mudanças estruturais e institucionais. O próprio processo de
identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades
culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático. Esse processo

2399
produz o sujeito pós-moderno, conceptualizado como não tendo uma
identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-se uma
“celebração móvel”: formada e transformada continuamente em relação às
formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas
culturais que nos rodeiam (Hall, 1987). E definida historicamente, e não
biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes
momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente.
Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes
direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente
deslocadas. Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o
nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cômoda estória
sobre nós mesmos ou uma confortadora “narrativa do eu” (veja Hall, 1990).
A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma
fantasia. Ao invés disso, à medida em que os sistemas de significação e
representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma
multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com
cada uma das quais poderíamos nos identificar — ao menos
temporariamente (HALL, 2000, p, 11-13).

É importante lembrarmos que essas referências são propostas de acordo com nosso
estudo empírico que necessariamente não são absolutos, mas servem como pontos de partidas
iniciais.
Nesse sentido, consideramos que faz toda a diferença o entendimento da realidade que
todo argumento não é inocente, pelo contrário, o discurso é carregado de emblemas e
intencionalidades que, paulatinamente, fazem “referência a um conteúdo sociopolítico que
identifica uma forma social de ser e de existir historicamente” (NEVES, 2012, p, 7).

Considerações Finais
É muito difícil pensar até para fins de pesquisa em uma desarticulação do museu com
sua função de ensino, comunicação, salvaguardo uma vez que todas essas apropriações e
ressignificações fazem parte da memória coletiva do objeto patrimonial musealizado, seja
negativa ou positiva, mito ou verdade, onde a história cultural e a cultura material servem
também, mas não somente, para esclarecer os equívocos museológicos e historiográficos.

2400
As discussões encontradas nos instrumentos de trabalho mecânicos associados a figura
do negro, no Museu Homem do Nordeste, como um processo historiográfico na perspectiva
da cultural material demonstram que o tipo de trabalho do negro associado na memória é de
trabalho inferior, por uma associação aos trabalhos penosos dos escravos caracterizado como
um trabalho de nenhuma ou pouca rentabilidade financeira.
Propomos um fazer historiográfico mais apurado, numa busca na ampliação das
discussões a comunicação dos museus e os objetos patrimoniais musealizados como os
instrumentos de trabalho associados ao trabalho negro. Onde estão inseridos no fazer
historiográfico sobre a cultura material, direto ou indiretamente os discursos de classes,
direitos sociais, etnia, escravidão, abolição, pós-abolição, nacionalidade, relações de poder,
ações políticas de Estado, movimentos sociais, economia, na atual sociabilidade brasileira.
Enfim, os instrumentos de trabalhos do negro expostos no MUHNE possuem uma
extensão temporal que é a mão de obra negra, a nova escravidão nas representações sociais e
continuidades pós abolicionistas, por exemplo, o barbeiro de rua que foi apresentado como
futuro alvo de pesquisa, por questão de espaço não discutimos, mas gostaríamos de finalizar
com algumas considerações, era uma peça do século XIX, do negro em geral e do escravo de
ganho, onde mostram a forma de escravidão daqueles que manipulam esses instrumentos,
intrinsecamente, revelando uma “divisão” de trabalho precária na escravidão, que continua
sendo precária, discussão, do nosso ponto de vista, carregada de simbolismo.

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2404
SUBJETIVIDADES E CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS NA EXPERIÊNCIA DE
USO EDUCATIVO DO MUSEU DE ARTES E OFÍCIOS

Jezulino Lúcio Mendes Braga*

Resumo: Nesse texto apresento as relações subjetivas de professores com a exposição do Museu de
Artes e Ofícios em Belo Horizonte. Entendo o museu como um cenário que proporciona experiências
interferentes nos saberes que os professores mobilizam para ensinar história. Apresentamos o museu
como processo e não como um produto, como fenômeno em constante transformação nas relações que
estabelece na sociedade. Esse museu é formativo e os saberes adquiridos na relação com a exposição
são mobilizados nas escolas ampliando o currículo, gerando um conhecimento histórico original, que
está longe de ser uma simplificação da história de corte acadêmico.

Palavras-chave: Museus; Educação; Professores, Formação

Abstract: In this text I discuss the subjective relations between teachers and the Arts and Crafts
Museum’s exposition, in Belo Horizonte. The museum is seen as a setting that provides interfering
experiences on the knowledge gathered by educators in order to teach history. As opposed to a
product, the museum is presented as a process, a phenomenon in constant transformation amongst the
relations it establishes on society. This museum is formative and the knowledge acquired at the
exposition is mobilized in schools broadening the curriculum, which creates an original historical
knowledge that is far from being a simplification of the academy cut on history.

Key-words: Museums; Education; Professors; Formation.

2405
Introdução
Esse texto é parte de minha tese de doutorado que têm como tema principal as
experiências sensíveis dos professores de história no Museu de Artes e Ofícios, Belo
Horizonte, MG. Na tese, analisamos experiências de uso pedagógico do museu e as relações
subjetivas que os docentes estabelecem com a exposição. Os professores vivem experiências
em situação de trabalho, no usufruto cultural, nos ambientes familiares, partidos políticos,
sindicatos, associações de bairro e instituições religiosas. Estas experiências adquiridas são
interferentes nos saberes que mobilizam para ensinar.

Segundo Tardif (2011), o saber dos professores é individual ao mesmo tempo que é
social, uma vez que resulta de experiências individuais e das confrontações que ocorrem na
sociedade. A condição docente é da ordem do humano e, como tal, nas relações que
estabelece com o outro ocorrem tensões, conflitos e também partilhas, trocas, interações
diversas expressas em seu modo de conceber a educação e de dar sentido à sua profissão.

A formação docente se desenvolve em contextos sócio-histórico temporais, seja


porque esta formação se realiza nas relações entre sujeitos com distintos posicionamentos nos
ciclos da vida, ou pelo fato de que o desenvolvimento cognitivo e emocional tem seus ritmos
e temporalidades peculiares. Os professores são sujeitos historicamente construídos e usam
de suas experiências em seu desenvolvimento profissional na avaliação de suas práticas e na
mobilização de saberes para ensinar.

Os museus são espaços formativos e neles os professores vivem experiências


interferentes em seu processo de ensinar. Usamos a categoria experiência sensível para
analisar como se dá essa formação docente nos museus. Chamamos de experiência sensível as
ações humanas acontecidas no museu que passam pela rememoração, imaginação,
reafirmação identitária, pelo encantamento, sofrimento, reposicionamento de concepções
prévias, entre tantas outras reações provocadas pelos sentidos colocados em ação no uso
pedagógico dos museus. A experiência sensível é corpórea, pois é com o corpo que
garantimos nossa presença no mundo. É pelo corpo que se dá a primeira aproximação com o

2406
acervo do museu. Por se tratar de uma instituição que propõe uma visualização da história por
meio de objetos tridimensionais, a experiência sensível depende do contato visual com as
exposições dos museus. Pelo contato visual, os sujeitos elaboram percepções baseadas em
suas experiências e constroem uma narrativa empática.
Os museus instituem uma relação de alteridade e, potencialmente, podem promover
diálogos, confrontos, deslocamentos e afirmações identitárias. Portanto, são ambientes de
formação, tanto para educadores que atuam diretamente na instituição museal, quanto para
professores que dele fazem uso educativo. Partimos da consideração de que o museu permite
uma experiência sensível por meio da visualização da história narrada com objetos
tridimensionais, imagens e textos. Os professores relacionam-se de forma empática com essa
narrativa mobilizando estratégias no processo de ensino e aprendizagem da história. No uso
pedagógico dos museus, os professores resinificam sua prática e constroem novas concepções
para a história, baseada em suas experiências vividas.

De que museu falamos

Os museus são reconhecidamente instituições de memória que se justificam pela


preservação de coleções e exposição ao público. Sua origem mítica esteve ligada ao Templo
das Musas (Mouseion), local destinado à adoração das nove musas filhas de Mnemosine e
Zeus. Aproximando desse conceito temos o museu como uma instituição de salvaguarda que
sacraliza os objetos a despeito das ressonâncias que provocam em quem visita suas
exposições. Afastando dessa ideia buscamos um museu que presentifica as musas, um local
físico em Delfos onde as musas falavam através das pitonisas e, portanto, presentifica as
lembranças encarnando as experiências dos sujeitos que visitam os museus (SCHEINER:
2008).

Nesse texto, partimos das considerações de Tereza Scheiner (2008) que defende um
museu em processo; um museu dionisíaco e apolíneo, pois a despeito de sua lógica racional
permite nossa abertura para as coisas do mundo por meio do fenômeno da memória e

2407
lembrança (SCHEINER, 2008). Scheiner redimensiona a origem mítica dos museus a fim de
mostrar que, para além de um espaço físico de adoração às musas, o Mouseion é um espaço de
presentificação das ideias e de recriação do mundo por meio da memória. Segundo a autora o
Mouseion estava ligado ao culto à Apolo e Dionísio na Grécia antiga.

O primeiro Deus é cultuado presidindo a atividade das musas que são as responsáveis
no panteão grego pela manutenção do universo. As musas são palavras cantadas - “expressão
criativa da memória via tradição oral, trazidas a luz da consciência pela ação dos poetas, para
tornar presentes os fatos passados e futuros, reinstaurando o tempo e o mundo a partir de sua
origem” (SCHEINER, 2008, p. 39). As musas recuperam o ser do não ser (esquecimento),
revelando continuamente a presença das coisas no mundo.

Já Dioniso teria sido aprisionado pelos Titãs, que o despedaçaram, ferveram em um


caldeirão e devoraram suas partes. Nesta mesma batalha, Zeus, o pai de Dioniso, fulminou os
Titãs com seu raio. Depois deu o coração de Dioniso ainda pulsante de vida à mortal Sêmele
que o engoliu e iniciou uma gestação em seu ventre. Tratava-se de um novo Dioniso que
nasce do ventre de Sêmele representando a abertura do mundo ao poético, à arte e à
espontaneidade humana. Para Scheiner, Dioniso é o deus que se manifesta, aparece e dá a
conhecer, rompendo com os mistérios do mundo por meio da emoção e da sensibilidade. Já
Apolo dá equilíbrio e razão, colocando ordem nas coisas que estão no mundo.

Em Nietzsche, o mundo apolíneo representa, também, processos de individuação, a


partir do momento que o sujeito toma consciência de si. Para o autor, Apolo – deus da beleza
cujos lemas são "Conhece-te a ti mesmo" e "Nada em demasia" – é a imagem divina do
princípio de individuação. O oposto seria a reconciliação das pessoas umas com as outras e
com a natureza, trazida por Dioniso, que é a possibilidade de escapar da divisão e da
individualidade (MACHADO, 2005).

Dessa forma, podemos compreender Apolo como a experiência individual, o


fechamento em si mesmo, e Dioniso como as relações intersubjetivas, a abertura para o

2408
mundo. E assim, ao recuperar estes dois deuses na origem mítica dos museus, Scheiner (2003)
defende a relação existente entre o ser humano e as coisas do mundo como diálogo mais
profundo que o museu pode proporcionar. Para além de todos os aparatos interativos
presentes no museu, Scheiner propõe o olhar para a experiência humana entendendo o museu
como fenômeno que “(...) remete à possibilidade de percebê-lo através da experiência de
mundo de cada indivíduo- por meio das múltiplas e complexas relações que cada ator, ou
conjunto de atores sociais estabelece com o real complexo (SCHEINER, 2003, p. 1).

Baseando nessas considerações podemos pensar o museu como processo e não como
um produto, ou seja, para além de seu caráter institucional, de seus acervos e processos
curatoriais (também essenciais ao museu) deve-se pensá-lo como fenômeno, em constante
transformação nas relações que estabelece na sociedade. Nesse caminho, rompemos com a
visão de um museu organizado para influenciar padrões culturais, sociais e estéticos a partir
do espetáculo e privilegiar um paradigma em que o sujeito possa partilhar com o museu a sua
existência no mundo (SCHEINER, 2008). Pelo museu podemos ver como as sociedades
resolveram seus problemas existenciais ou como tentaram controlar as coisas do mundo, ou
até mesmo a sua incapacidade de se agruparem e manterem laços de solidariedade entre si.

Em museus classificados tipologicamente como de história, a exposição é montada


para proporcionar uma narrativa visual relevante para o levantamento de problemas na relação
entre o passado, o presente e o futuro. No contato visual com a exposição os sujeitos elaboram
a consciência histórica, entendida como a capacidade humana de ter consciência da
historicidade de todo presente e de relativizar toda opinião. O modo como olhamos para o
campo de experiência e o diferenciamos do vivido, ajuda-nos a revelar as implicações do
pretérito no presente entendidos como ordens temporais distintas e de acordo com Gadamer é
uma forma de superar de “(...)modo consequente a ingenuidade natural que nos leva a julgar o
passado pelas medidas supostamente evidentes de nossa vida atual, adotando a perspectiva de
nossas instituições, nossos valores e nossas verdades adquiridas” (GADAMER, 2003, p. 18).

2409
A nossa atitude em relação ao passado é sempre interpretativa, uma vez que é
necessário olhar para além do sentido imediato do que nos é oferecido como informação. Nos
museus, o que nos é oferecido a olhar nos exige uma atitude interpretativa, posto que “o
diálogo que travamos com o passado nos coloca diante de uma situação fundamentalmente
diferente da nossa-uma situação estranha diríamos-que consequentemente exige de nós um
procedimento interpretativo” (GADAMER, 2003, p.20).

Como uma experiência sensível, essa interpretação é constituída por nossas


lembranças provocadas pelo contato visual com o acervo dos museus. No museu, para além
da narrativa visual, ocorrem os fenômenos miméticos de lembrança, esquecimento, espanto,
horror, encantamento, pós memória, entre outros provocados pelo contato com a exposição.

Nesse texto, o museu é entendido como processo e não como produto. Não
restringimos o conceito de museu ao acervo e espaço físico. Para além dos processos
curatoriais, interesse do público e capacidade técnica, a dimensão simbólica revela que o
museu é espelho de diferentes categorias de representação social, entendido como processo
capaz de assumir diferentes formas e apresentar-se de diferentes maneiras, de acordo com os
sistemas de valores priorizados em cada sociedade. Acompanhamos as concepções de Tereza
Scheiner, que propõe entender o museu como:

(...) fenômeno, o museu processo, o museu que independe de um espaço e de


um tempo específicos, mas que revela de modos e formas muito definidas
como espelho e símbolo de diferentes categorias de representação social.
Compreender que Museu (fenômeno) não é o mesmo que Museu (expressão
limitada do fenômeno) permite-nos aceitar que ele assume diferentes formas;
permite-nos, ainda, prestar atenção às diferentes ideias de Museu, presente
no universo simbólico dos diferentes grupos sociais (SCHEINER, 2008, p.
41).

Para além das exposições com seus aparatos interativos e outras soluções expográficas
é preciso pensar nos fenômenos provocados em uma situação de visita aos museus. Por meio

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de seus cantos as musas proporcionam experiências diversas que se dão através do plano
afetivo, o modo de fruição individual dos sujeitos que transitam pelo museu.

Museu em processo e subjetividades

A ideia de um museu em processo que convida à experiência e que nos encarna, rompe
com a objetividade pretendida no momento em que o professor planeja a visita. Em processo,
a exposição museal admite subversões feitas pelos sujeitos portadores de experiências, que
dão novos sentidos aos conteúdos de história que aprendem nas escolas. Os professores, por
sua vez, admitem estas subversões e as relacionam aos conteúdos curriculares baseados no
saber referente. Há, nesse caso, produção de um conhecimento original, que é consolidado na
escola na fase pós-visita.
O museu é também processo porque admite subversões, desmontagens, principalmente
quando tratamos de seu uso pedagógico. Quais trilhas são propostas pelos professores? Como
subvertem os discursos encontrados nos museus, e aqueles feitos no momento da visita por
educadores de museu? Quais os limites e potencialidades desta relação sob a ótica dos
professores de história? Quais as expectativas trazidas pelos professores aos museus de
história? Quais saberes são acionados pelos professores de história no uso dos museus? Como
planejam suas visitas? Como avaliam as propostas de setores educativos de museus? Qual a
avaliação esses professores fazem antes, durante e depois das visitas feitas ao museu com os
estudantes? Como qualificam sua experiência educativa tendo os museus como cenário
privilegiado? Que problemas localizam na parceria museu e escola? Que dilemas profissionais
enfrentam para fortalecimento deste vínculo? Que conteúdos são construídos e provocados
durante e após a visita aos museus?
Balisamos nossa análise nas considerações propostas à pesquisa por autores da
fenomenologia, em especial as teorias de Merleau Ponty (1999). A fenomenologia tem como
objeto de estudo o próprio fenômeno, isto é, as coisas em si mesmas e não o que é dito sobre
elas. Assim sendo, a investigação fenomenológica busca a consciência do sujeito através da

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expressão das suas experiências internas. A fenomenologia busca a interpretação do mundo
através da consciência do sujeito, formulada com base em suas experiências, e pode ser um
método adequado para pesquisas qualitativas. No método fenomenológico são descritos os
fenômenos e não as origens causais e sua natureza fora do próprio ato da consciência. Em sua
raiz etimológica temos duas palavras de origem grega: phainomenon (aquilo que se mostra a
partir de si mesmo) e logos (ciência ou estudo). O estudo ou a ciência do fenômeno poderia
ser uma definição adequada para fenomenologia (MOREIRA, 2002).Para Merleau Ponty
(1999) “a fenomenologia é também uma filosofia que repõe as essências na existência, e não
pensa que se possa compreender o homem e o mundo de outra maneira senão a partir de sua
"facticidade" (MERLEAU PONTY, 1999, p. 1). A fenomenologia parte da presença das
coisas e do homem lançado ao mundo, estudando a relação que se dá entre os dois. Na
condição de ser lançado ao mundo, o que vem ao encontro do homem é a própria coisa e não
a sua definição. A coisa começa a fazer parte do mundo quando é percebida pelo homem. De
acordo com Merleau Ponty (1999), a nossa abertura inicial aos fenômenos é marcada por uma
revisão pré-objetiva do mundo, que se refere à própria condição existencial do homem,
revelada pelos movimentos do corpo, relações e percepções e pelas concepções que possui. O
método fenomenológico enfoca fenômenos subjetivos baseados na crença e na experiência
vivida. O pesquisador adquire subsídio

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