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ANAIS
III SEBRAMUS – Novembro 2017
Belém-PA
ISSN 2446-8940
1
III SEMINÁRIO BRASILEIRO DE MUSEOLOGIA
20 a 24 de novembro de 2017
Universidade Federal do Pará
Belém-PA
REALIZAÇÃO
Rede de Professores e Pesquisadores do Campo da Museologia
Curso de Museologia/FAV/ICA - Universidade Federal do Pará
APOIO
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN
Editora da Universidade Federal do Pará – EDUFPA
COLABORADORES
Dra. Ana Cláudia Melo DIAGRAMAÇÃO
Me. Sâmia Batista Bruna Antunes
Claudio Alfonso
Pedro Cordeiro
2
APRESENTAÇÃO
3
HISTÓRICO DO SEBRAMUS
4
GRUPOS DE TRABALHOS
5
APRESENTAÇÃO ................................................................................................................................... 3
HISTÓRICO DO SEBRAMUS ............................................................................................................... 4
GRUPOS DE TRABALHOS ................................................................................................................. 5
ACERVOS QUE CONTAM HISTÓRIA: A TRAJETÓRIA DO MUSEU DE GEOCIÊNCIAS DO IGC-
USP ATRAVÉS DE SUAS COLEÇÕES .................................................................................................. 14
A FORMAÇÃO DE UM ACERVO DE MODA: A SEÇÃO MODA DA COLEÇÃO AMAZONIANA
DE ARTE DA UFPA. ................................................................................................................................ 37
“FUNDAÇÃO DE SÃO VICENTE”, DE BENEDITO CALIXTO: LEITURAS DE UMA IMAGEM
NAS EXPOSIÇÕES DO MUSEU PAULISTA (1900-1939).................................................................... 56
O MUSEU DO TROPEIRO E A TRAJETÓRIA DE UMA COLEÇÃO ................................................. 73
A PESQUISA E A COMUNICAÇÃO EM MUSEUS: O POTENCIAL HISTÓRICO DAS IMAGENS
DE ARTE SACRA PARA A COMPREENSÃO E A MEDIAÇÃO DA COLEÇÃO DE BUSTOS
RELICÁRIOS NO MUSEU DE ARTE SACRA DA UFBA .................................................................... 88
ALGUMAS FONTES PARA O ESTUDO DE MUDANÇAS DE PERCEPÇÃO SOBRE OS
GABINETES DE CURIOSIDADES E AS PRÁTICAS COLECIONISTAS DA ERA MODERNA À
CONTEMPORÂNEA .............................................................................................................................. 107
OITO PINTURAS DE ALBERT ECKHOUT NOS MUSEUS OITOCENTISTAS DA DINAMARCA:
UM ENSAIO SOBRE A SOBREDETERMINAÇÃO HISTÓRICA DAS PRÁTICAS EXPOSITIVAS
SOBRE A INTERPRETAÇÃO DE ACERVOS MUSEOLÓGICOS ..................................................... 123
OTIMIZAÇÃO DAS PESQUISAS SOBRE HISTÓRIA DAS COLEÇÕES COM O USO DE BANCOS
DE DADOS SISTEMATIZADOS, ANÁLISES QUANTITATIVAS E SISTEMA DE INFORMAÇÕES
GEOGRÁFICAS101 .................................................................................................................................. 148
“SEGUNDO O BOM GOSTO DAS NAÇÕES EUROPEIAS”. A FORMAÇÃO DA COLEÇÃO
EGÍPCIA DO MUSEU NACIONAL DA UFRJ, NO SÉCULO XIX ..................................................... 164
TRAJETÓRIA DE FORMAÇÃO DA COLEÇÃO MANOEL PASTANA129........................................ 183
A FORMAÇÃO DE UM ACERVO BRASILEIRO NO MÉXICO: AS MOSTRAS LATINO-
AMERICANAS DE FOTOGRAFIA CONTEMPORÂNEA, MÉXICO (1978-1981) ........................... 197
MUSEU PAULISTA: CONCEITOS E REFERÊNCIAS PARA A DEFINIÇÃO DE UM MUSEU
HISTÓRICO E DE UMA POLÍTICA DE AQUISIÇÃO DE ACERVO .................................................. 216
UM ACERVO PARA CHAMAR DE REPÚBLICA .............................................................................. 235
O MUSEAL NA GÊNESE DO PARQUE ZOOBOTÂNICO DO MUSEU GOELDI (1895-1914) ...... 255
O MUSEU PARAENSE NO PROCESSO DE MUSESEALIZAÇÃO DAS CERÂMICAS
AMAZÔNICAS EM MEADOS DO SÉCULO XIX165 ........................................................................... 270
PERSPECTIVA IDENTITÁRIA EM SONS CONSERVADOS: COLECÃO E MEDIAÇÃO NA
FONOTECA PÚBLICA SATYRO DE MELLO (BELÉM- PA)............................................................ 288
COLEÇÃO KARAJÁ LIPKIND (1938-1939) DO MUSEU NACIONAL: ROTAS
ANTROPOLÓGICAS BRASIL-ESTADOS UNIDOS ........................................................................... 308
AÇÕES MUSEOLÓGICAS: UMA REFLEXÃO SOBRE AS ATIVIDADES DO MUSEU DO
INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO PARÁ ...................................................................... 315
PATRIMÔNIOS AFETIVOS, ACERVOS MUSEOLÓGICOS: APONTAMENTOS A CERCA DAS
CARTAS DO MAESTRO WALDEMAR HENRIQUE ......................................................................... 324
A PERSPECTIVA PÓS-COLONIAL E SEUS GANHOS EPISTÊMICOS NO ÂMBITO DA
MUSEOLOGIA SOCIAL ........................................................................................................................ 333
6
A RUPTURA DAS CIÊNCIAS NA AMAZÔNIA: O MUSEU GOELDI DE PORTAS ABERTAS NO
DÍÁLOGO COM A COMUNIDADE ..................................................................................................... 352
CARTOGRAFIA CULTURAL: VOZES E APARÊNCIAS .................................................................. 370
UM DIÁLOGO ENTRE ESCOLA E MUSEU NO COMBATE À INTOLERÂNCIA RELIGIOSA ... 390
COLEÇÃO AMAZONIANA DE ARTE DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ, DESAFIOS,
PROCESSOS E SUBVERSÕES PARA UM CAMPO ALARGADO E DECOLONIALISTA. ............ 408
O SAMBA DE RODA COMO DIÁLOGO UNIFICADOR ENTRE O CORPO E A PALAVRA ........ 422
ARTE E CULTURA: MUSEUS AUXILIANDO NO ENTENDIMENTO E NA CONSTRUÇÃO DA
SOCIEDADE ........................................................................................................................................... 436
A MEMÓRIA SOCIAL DO CAMPO DE FUTEBOL DE VÁRZEA DO BAIRRO DA VILA
PROGRESSO: O ESTUDO DE CASO DO SETE DE SETEMBRO. .................................................... 455
ENTRE TERRITÓRIOS: AS NARRATIVAS SOB PERSPECTIVAS DAS COMUNIDADES DE SÃO
LÁZARO ................................................................................................................................................. 463
MAPEANDO CAMINHOS:DELINEAMENTOS SOBRE A PRESERVAÇÃO DO CAMPUS DE SÃO
LÁZARO ................................................................................................................................................. 470
A MUSEALIZAÇÃO NA EDUCAÇÃO COM BASE NA IDENTIDADE SOCIAL ........................... 478
A PRODUÇÃO E APROPRIAÇÃO DOS ESPAÇOS: O PONTO DE MEMÓRIA MUSEU DO
TAQUARIL ............................................................................................................................................. 498
DA EXPLOSÃO DE SENTIDOS A CONSCIÊNCIA IMEDIATA: DEFINIÇÕES DA “TEORIA DA
PRÁTICA” DE HUGUES DE VARINE- BOHAN NO BRASIL .......................................................... 516
MEMÓRIA E SOCIABILIDADE EM PERCURSO INTERATIVO NA PERIFERIA DE BELÉM:
PROTAGONISMO SOCIAL E FORMAS ALTERNATIVAS DE VALORIZAÇÃO DA IDENTIDADE
................................................................................................................................................................. 535
MUSEOLOGIA INOVADORA E ARQUITETURA PARTICIPATIVA: CONSTRUINDO
NARRATIVAS SOCIAIS INCLUSIVAS E EMANCIPATÓRIAS ....................................................... 551
MUSEOLOGIA, PARQUES, ECOMUSEUS, ASSOCIAÇÕES E INICIATIVAS COMUNITÁRIAS EM
DEFESA DO PATRIMÔNIO CULTURAL. .......................................................................................... 570
TRABALHO DE REDES COMUNITÁRIAS: A EDUCAÇÃO AMBIENTAL COMO FERRAMENTA
DE TRANSFORMAÇÃO SOCIAL, EM BAIRROS PERIFÉRICOS DE BELÉM, PORTO ALEGRE E
GRAVATAÍ............................................................................................................................................. 590
PATRIMÔNIOS (IN)VISIVEIS: DA EXPOSIÇAO À CRIAÇÃO DE UM MUSEU COMUNITÁRIO
NA ILHA DE MAIANDEUA/PA ........................................................................................................... 614
BRASÍLIA SOB A ÓTICA DA MUSEOLOGIA SOCIAL: ESTUDO DE CASO DA RESTAURAÇÃO
DA IGREJINHA NOSSA SENHORA DE FÁTIMA ............................................................................. 633
O TEATRO DO OPRIMIDO COMO ESTRATÉGIA ÉTICA, ESTÉTICA E POLÍTICA PARA A
PROMOÇÃO DO MUSEU COMUNITÁRIO DA TERRA FIRME. ..................................................... 647
NARRATIVAS E MEMÓRIAS: CONSTITUINDO TERRITÓRIOS E IDENTIDADES .................... 664
A DOCUMENTAÇÃO COMO FERRAMENTA DE CONSERVAÇÃO: OS ORNAMENTOS DE
FERRO DA WALTER MACFARLANE’S EM BELÉM ....................................................................... 673
AÇÃO DA LUZ NA PLUMÁRIA:A COR E OS EFEITOS FOTOQUÍMICOS ................................... 694
CRITÉRIOS E PROCEDIMENTOS DE HIGIENIZAÇÃO E MARCAÇÃO NAS COLEÇÕES
ARQUEOLÓGICAS DO LEPA/UFSM (2012-2016) ............................................................................. 713
MUSEU DA FORÇA EXPEDICIONÁRIA BRASILEIRA: UMA EXPERIÊNCIA EM
DOCUMENTAÇÃO MUSEOLÓGICA.................................................................................................. 725
PESQUISA, FORMAÇÃO E SALVAGUARDA: HISTÓRIAS DE VALORIZAÇÃO DO
PATRIMÔNIO DE BENS CULTURAIS MÓVEIS DO PIAUÍ ............................................................. 743
PRAGAS NO MUSEU: ANÁLISE DA PRESENÇA DE PRAGAS NO MUSEU CASA DAS ONZE
7
JANELAS E NO MUSEU DE ARTE DE BELÉM ................................................................................ 761
UM APASA NO MUSEU: SE CORRER ELE PEGA, SE FICAR ELE COME .................................... 774
OS TROFÉUS METÁLICOS DA TUNA LUSO BRASILEIRA: DOCUMENTAÇÃO COMO
SUBSÍDIO DA CONSERVAÇÃO ......................................................................................................... 796
CONSERVAÇÃO: ALIADA PESSOAL DOS MUSEUS LEVANTAMENTO DE PRAGAS NO
MUSEU DA POLÍCIA MILITAR .......................................................................................................... 814
PROBLEMÁTICAS NA CONSERVAÇÃO E PRESERVAÇÃO DE ACERVOS EM INSTITUIÇÕES
SECULARES: ESTUDO DE CASO DO MUSEU DE ARTE SACRA DE PERNAMBUCO .............. 822
VAMOS PUBLICAR SOBRE CONSERVAÇÃO PREVENTIVA? A PRODUÇÃO ELETRÔNICA
SOBRE CONSERVAÇÃO PREVENTIVA DE ESCULTRAS DEVOCIONAIS EM MADEIRA – UMA
BREVE ANÁLISE .................................................................................................................................. 833
SALVAGUARDA NO MUSEU DA MEDICINA DE PERNAMBUCO – MMP PRESERVAÇÃO DA
COLEÇÃO DR. OCTÁVIO DE FREITAS ............................................................................................. 844
MUSEU ITINERANTE DO ATLETISMO PARAENSE: A CONCRETIZAÇÃO DO FAZER
MUSEOLÓGICO .................................................................................................................................... 856
ATRIBUIÇÃO DE AUTORIA PELA TRADIÇÃO: COLEÇÕES EM MARFIM ................................ 865
DIAGRAMAS DA SEGREGAÇÃO URBANA: O PATRIMÔNIO CULTURAL COMO RECURSO 882
DO DISPÊNDIO IMPRODUTIVO AO USO SUSTENTÁVEL: NOTAS SOBRE O CONCEITO
(GERAL) DE PATRIMÔNIO E SOBRE O PATRIMÔNIO GENÉTICO ............................................. 911
MUSEUS E AS CONVENIÊNCIAS DESCOVENIENTES DA CULTURA POLÍTICA NO CENÁRIO
CONTEMPORÂNEO .............................................................................................................................. 926
O MUSEU DA BEIRA DA LINHA DO COQUE (PE) COMO CONTRAPÚBLICO........................... 933
REFLEXÕES SOBRE AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA OS MUSEUS NOS GOVERNOS
DEMOCRÁTICOS POPULARES DO SÉCULO XXI: ARGENTINA - BRASIL - URUGUAI .......... 945
SOBRE POLÍTICA CULTURAL, CRIATIVIDADE E MUSEUS ........................................................ 961
DJA GUATA PORÃ: CONSTRUÇÃO EM DIÁLOGOS ...................................................................... 971
MUSEALIZAÇÃO DE OBJETOS ARQUEOLÓGICOS: ESTUDO DE CASO SOBRE AS LOUÇAS
DO SÍTIO ENGENHO DO MURUTUCU EM BELÉM-PA .................................................................. 991
VALORIZAÇÕES E MUSEALIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO MUNDIAL NO BRASIL: ESTUDO DE
CASO DO PLANO PILOTO DE BRASÍLIA E DO COMPLEXO DE CONSERVAÇÃO DA
AMAZÔNIA CENTRAL .......................................................................................................................1011
A MUSEALIZAÇÃO COMO PROCESSO DE SACRALIZAÇÃO DOS OBJETOS ..........................1032
A PROBLEMÁTICA DOS PROCESSOS DE CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES COLETIVAS:
REFLEXÕES A RESPEITO DAS RELAÇÕES ENTRE OS PROCESSOS DE CONSTRUÇÃO DE
IDENTIDADES COLETIVAS, E A UTILIZAÇÃO DOS PATRIMÔNIOS CULTURAIS COMO
RECURSO DE MANUTENÇÃO DAS IDENTIDADES. .....................................................................1037
COMUNICAR É PRESERVAR: ANALISANDO VIA WEB A MUSEALIZAÇÃO DA COLEÇÃO
PALEONTOLÓGICA DO MUSEU PARAENSE EMÍLIO GOELDI. .................................................1043
CRIAÇÃO E MANUTENÇÃO DO CENTRO DE MEMÓRIA DA FARMÁCIA DA UFMG: UM
TRABALHO INTERDISCIPLINAR E EM REDE ...............................................................................1052
CULTURA MATERIAL, MUSEUS E SOCIEDADE: PASSADO E PRESENTE NA COLEÇÃO DE
ARQUEOLOGIA URBANA DO MUSEU DA UFPA EM BELÉM-PA ..............................................1065
ESTUDO DA SISTEMATIZAÇÃO DA DOCUMENTAÇÃO MUSEOLÓGICA À COLEÇÃO
CARMEN SOUSA DO MUSEU DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (MUFPA) ...............1084
UM OLHAR MUSEOLÓGICO PARA OS MUSEUS UNIVERSITÁRIOS DE CIÊNCIAS DA UFPA
................................................................................................................................................................1105
ESTUDO DE PÚBLICO DO MUSEU DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ: DIAGNÓSTICO
8
PARA CONSTRUÇÃO DO PLANO MUSEOLÓGICO .......................................................................1118
MUSEU DA UFRGS: HISTÓRIA E TRAJETÓRIA DE UM MUSEU UNIVERSITÁRIO ................1133
MUSEUS E COLEÇÕES EM REDE: A REMAM/UFRGS ..................................................................1152
O HERBÁRIO PROFª DRª MARLENE FREITAS DA SILVA (MFS) DA UNIVERSIDADE DO
ESTADO DO PARÁ: DIÁLOGOS ENTRE CIÊNCIA, UNIVERSIDADE E MUSEU .......................1171
ANÁLISE DE CONSERVAÇÃO PREVENTIVA EM ACERVO DIDÁTICO: UM ESTUDO DE CASO
NA SALA DO ACERVO DE FIGURINO DA ESCOLA DE TEATRO E DANÇA DA UFPA ..........1191
COLEÇÃO QUADROS DE FORMATURA DO MUSEU DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ
(MUFPA): UM ESTUDO PELO PROCESSO DA DOCUMENTAÇÃO PARA ACERVOS
MUSEOLÓGICOS .................................................................................................................................1199
MUSEALIZAÇÃO E PALEONTOLOGIA: UMA REFLEXÃO SOBRE A FORMAÇÃO DA
COLEÇÃO PALEONTOLÓGICA DO CURSO DE MUSEOLOGIA DA UFPA ................................1214
DESRECALQUES DE GÊNERO? O HEROISMO POÉTICO NAS EXPOSIÇÕES SOBRE CORA
CORALINA E MARIA BONITA ..........................................................................................................1220
MULHERES INDÍGENAS NAS MISSÕES: PROBLEMAS ETNO- HISTÓRICOS,
ARQUEOLÓGICOS E MUSEOLÓGICOS NA HISTÓRIA, SÍTIOS ARQUEOLÓGICOS E MUSEUS
DEDICADOS ÀS MISSÕES MERIDIONAIS ......................................................................................1241
MUSEALIZAÇÃO DA ARQUEOLOGIA: PROVOCAÇÕES E PROPOSIÇÕES FEMINISTAS .....1262
PESQUISA PARA EXPOSIÇÕES EM MUSEUS: UMA ANÁLISE DA EXPOSIÇÃO GÊNERO E
JUDICIÁRIO: UM OLHAR SOBRE A REPRESENTAÇÃO DA MULHER NO SÉCULO XX. .......1278
QUANDO A MEMÓRIA LGBT SAI DA RESERVA TÉCNICA: MAPEAMENTO PRELIMINAR DOS
MUSEUS, PATRIMÔNIOS E INICIATIVAS COMUNITÁRIAS EM MEMÓRIA E MUSEOLOGIA
SOCIAL ..................................................................................................................................................1297
TESSITURAS SOBRE A INDUMENTÁRIA DE CANDOMBLÉ A PARTIR DA COLEÇÃO DONA
NÓLA .....................................................................................................................................................1321
MUSEU DE CIÊNCIAS DA TERRA COMO MEIO DE COMUNICAÇÃO DO CONHECIMENTO:
GÊNERO NA PAISAGEM GEOLÓGICA BRASILEIRA ...................................................................1331
AUDIOVISUAL COMO FERRAMENTA PARA A EDUCAÇÃO PATRIMONIAL .........................1340
CULTURA ORGANIZACIONAL E POLÍTICAS PÚBLICAS: PROCESSOS SOCIAIS QUE
ENVOLVEM AS FIGURAÇÕES MUSEAIS .......................................................................................1352
ECOMUSEU DELTA DO PARNAÍBA (MUDE): ARQUITETURA DE MUSEUS E RESTAURO A
SERVIÇO DA VALORIZAÇÃO DE UMA RICA E COMPLEXA PAISAGEM CULTURAL ..........1368
REVITALIZAÇÃO DO CENTRO HISTÓRICO DE PARNAÍBA: A ESTRATÉGIA DA
IMPLANTAÇÃO DE CURSOS UNIVERSITÁRIOS ...........................................................................1388
‘MUSEU DE PORTAS ABERTAS’: AÇÃO EDUCATIVA DO MUSEU PARAENSE EMÍLIO
GOELDI PARA POPULARIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO CIENTÍFICO ............................................1403
O MUSEU CONTEMPORÂNEO ..........................................................................................................1424
PARNAÍBA: PATRIMÔNIO VIVO, CIDADE VIVA ..........................................................................1436
A FUNÇÃO EDUCATIVA DO MUSEU E SUA RELAÇÃO COM A ESCOLA................................1453
REDE DE MUSEUS DELTA DO PARNAÍBA ....................................................................................1473
PRODUÇÃO CIENTÍFICA NA MUSEOLOGIA DA UFPA: MAPEAMENTO DOS TEMAS DOS
TCC’S DE 2013 A 2016 .........................................................................................................................1479
ESPAÇO PASÁRGADA: UM MUSEU-CASA SEM “BANDEIRA”? ................................................1485
MUSEU PARQUE SERINGAL E A SALVAGUARDA DO PATRIMÔNIO IMATERIAL ..............1492
A CONCEPÇÃO DE MUSEUS EM ESPAÇOS DIGITAIS: SOBRE AS POSSIBILIDADES DE
MUSEALIZAÇÃO ONLINE .................................................................................................................1501
9
A CRIAÇÃO DE MUSEUS ATRAVÉS DAS TIC ENQUANTO OBJETO DE ESTUDO DA
MUSEOLOGIA ......................................................................................................................................1519
TECNOLOGIA E EXPOGRAFIA NA CONTEMPORANEIDADE. OS MUSEUM MAKERS E A
SEDUÇÃO DO OLHAR ........................................................................................................................1533
AS INTERAÇÕES TECNOLÓGICAS E AS VIVÊNCIAS NO MUSEU CASA DE CORA CORALINA:
A EXPERIÊNCIA DE EDUCAÇÃO NÃO FORMAL PARA ALÉM DA EXPOSIÇÃO
EXPOGRÁFICA. ...................................................................................................................................1547
ENTRE REALIDADES: USO DE NOVAS MÍDIAS NA COMUNICAÇÃO MUSEAL ....................1563
CARTOGRAFIAS NA INTERNET: MUSEUS, PÚBLICO E PATRIMÔNIO NA REDE ..................1577
MUSEUS E PATRIMÔNIOS VIRTUALIZADOS: A MUSEOLOGIA E AS TECNOLOGIAS
DIGITAIS PARA ALÉM DA CONEXÃO ............................................................................................1599
AS NOVAS TECNOLOGIAS A SERVIÇO DA COMUNICAÇÃO MUSEAL ..................................1621
CULTURA MATERIAL AMAZÔNICA NO AMAZONIAN MUSEUM NETWORK EXPOSIÇÃO
DIGITAL SOB OLHAR PROCESSUALISTA .....................................................................................1628
O JOGO 3D COMO RECURSO PEDAGÓGICO PARA A APRENDIZAGEM SOBRE ARTE
PÚBLICA ...............................................................................................................................................1639
ESTUDO DA ACESSIBILIDADE NOS MUSEUS DE ARACAJU E LARANJEIRAS-SE:
EDUCAÇÃO E USO DAS TECNOLOGIAS ASSISTIVAS ................................................................1648
MUSEU INTERATIVO E A LÍNGUA PORTUGUESA: ATIVIDADE PEDAGÓGICA NO MUSEU
DA LÍNGUA PORTUGUESA ...............................................................................................................1655
A DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA NO MUSEU DE CIÊNCIAS DA TERRA - MCTer: ASPECTOS
HISTÓRICOS E DIMENSÕES EDUCATIVAS ...................................................................................1664
MUSEU EM REVISTA: A SEÇÃO ‘RELÍQUIAS BRASILEIRAS’ DA REVISTA SELECTA (1930)
................................................................................................................................................................1678
CONSIDERAÇÕES SOBRE A CARREIRA DE OFICIAL DO MUSEU HISTÓRICO NACIONAL
NOS ANOS 1920....................................................................................................................................1691
TRAJETÓRIAS CRUZADAS DOS NATURALISTAS DOMINGOS VANDELLI E VIEIRA COUTO:
PENSANDO UM ESTUDO DE PROTO-HISTÓRIA DAS INSTITUIÇÕES DE SALVAGUARDA NA
VIRADA DO SÉCULO XVIII PARA O XIX. ......................................................................................1708
UMA MIRADA PARA O PASSADO: PROJETOS EDUCATIVOS NO MUSEU HISTÓRICO
NACIONAL (1922-1960) .......................................................................................................................1728
TRILHANDO CAMINHOS: ITINERÁRIOS DA REDE DE EDUCADORES EM MUSEUS DO RIO
GRANDE DO SUL – REM-RS (2010 A 2015) .....................................................................................1754
REFLEXÕES SOBRE O ENSINO DA GESTÃO E DO PLANEJAMENTO NOS CURSOS DE
BACHARELADO EM MUSEOLOGIA NO BRASIL ..........................................................................1780
CENTRO DE REFERÊNCIA DA ARTE DE PESCA: OS SABERES E FAZERES DOS PESCADORES
................................................................................................................................................................1802
ACERVO CULTURAL: CURADORIA DIGITAL E REUSO .............................................................1816
PRESENÇA KARAJÁ: IDENTIFICAÇÃO, PROTEÇÃO E PROMOÇÃO DE COLEÇÕES E DO
PATRIMÔNIO IMATERIAL ................................................................................................................1833
ACESSIBILIDADE: UM DOS VIESES DA MUSEOLOGIA SOCIAL ..............................................1853
UMA LUZ SOB AS INSTITUIÇÕES HISTÓRICAS: O PROCESSO DE SALVAGUARDA DO
ACERVO DO MUSEU DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO PARÁ .......................1864
APONTAMENTOS SOBRE AS AÇÕES DE MUSEALIZAÇÃO DOS CANHÕES DO MIHGP ......1874
MUSEOLOGIA, MUSEU E SALVAGUARDA DO PATRIMÔNIO IMATERIAL: UM ESTUDO DE
CASO SOBRE OS MUSEUS DE BELÉM E A REPRESENTATIVIDADE DO BREGA PARAENSE
................................................................................................................................................................1883
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ACERVO ARTÍSTICO DA UFMG: O PAPEL DA MUSEOLOGIA NA GESTÃO DO PATRIMÔNIO
UNIVERSITÁRIO ..................................................................................................................................1893
CONSTITUIÇÃO DO FÓRUM PERMANENTE DE MUSEUS UNIVERSITÁRIOS: TRAJETÓRIA,
DESAFIOS E MOBILIZAÇÕES. ..........................................................................................................1912
PROGRAMA DE INVENTÁRIO DO PATRIMÔNIO CULTURAL DA UNIVERSIDADE FEDERAL
DE PERNAMBUCO: CAMINHOS PARA CONHECIMENTO E PRESERVAÇÃO .........................1932
DIAGNÓSTICO MUSEOLÓGICO EM MUSEUS E ESPAÇOS UNIVERSITÁRIOS DE MEMÓRIA E
CIÊNCIA ................................................................................................................................................1945
CENTRO DE ENSINO DE CIÊNCIAS DO NORDESTE E SUAS COLEÇÕES DE ENSINO:
ANÁLISE DA CULTURA MATERIAL DO COLÉGIO DE APLICAÇÃO DO RECIFE (2017). ......1961
A RELAÇÃO ENTRE O ARTISTA E O MUSEU: DOCUMENTAÇÃO MUSEOLÓGICA DE
PERFORMANCES NO MUSEU DE ARTE DO RIO GRANDE DO SUL ..........................................1969
“A REVOLUÇÃO SOMOS NÓS”: JOSEPH BEUYS EM PERSPECTIVA MUSEOLÓGICA ..........1985
ARTE PARÁ: VISUALIDADES LOCAIS E INTERCULTURAIS EM CIRCUITOS AMAZÔNICOS
................................................................................................................................................................2001
CLARA-CLARA E PROMENADE: ARTE CONTEMPORÂNEA DE GRANDE ESCALA E SUA
RELAÇÃO COM O ESPAÇO URBANO..............................................................................................2033
ARTE CONTEMPORÂNEA E INTERAÇÃO COM O PÚBLICO: EXPOSIÇÃO AXIS ...................2052
MUSEOLOGIA E ARTE CONTEMPORÂNEA: CONEXÕES POSSÍVEIS ENTRE A
PERFORMANCE E A DOCUMENTAÇÃO .........................................................................................2076
UMA POÉTICA NO ARQUIVO DO ARTISTA: O CONTÍNUO DESDOBRAR DAS PAISAGENS DA
MEMÓRIA DE GERALDO RAMOS....................................................................................................2090
ARTE ON-LINE: EXPOSIÇÃO, DOCUMENTAÇÃO E COLEÇÃO .................................................2110
MIRANTE E DESAPEGO: OBRA EM DESLOCAMENTO, DIFERENTES LUGARES E UM SÓ
MUSEU. .................................................................................................................................................2126
AS CAMADAS DO DIABO: ALGUMAS TRANSFORMAÇÕES DE (IN)VISIBILIDADE .............2150
RITUAIS PARA BRANCOS E COLEÇÕES ETNOGRÁFICAS: AS RELAÇÕES DOS WAUJA COM
OS MUSEUS E A SUBJETIVAÇÃO DOS OBJETOS..........................................................................2182
VÉIO E O MUSEU DO SERTÃO: UMA PERSPECTIVA INICIAL SOBRE O POTENCIAL
CRIATIVO, A PRESERVAÇÃO DE MEMÓRIAS E A REELABORAÇÃO DE SABERES
POPULARES..........................................................................................................................................2204
CAMINHOS DE UM PATRIMÔNIO SIMBÓLICO MARGINALIZADO: A ROTA MUSEOLÓGICA
DO CANGAÇO. .....................................................................................................................................2213
UM MUSEU QUE DÁ SAMBA! A MUSEALIZAÇÃO COMO INSTRUMENTO DE
SALVAGUARDA DAS MATRIZES DO SAMBA CARIOCA ...........................................................2233
ESCOLAS DE SAMBA E PATRIMÔNIOS AFETIVOS: ENTRE VIDA E CARNAVAL. ................2258
“MEMÓRIAS NEGRAS”: CONFLITOS EM TORNO DO MEMORIAL DAS BAIANAS EM
SALVADOR – BAHIA ..........................................................................................................................2268
O ESTUDO DA JOALHERIA AFRICANA DO MAFRO/UFBA: EM BUSCA DOS SUJEITOS
PRODUTORES ......................................................................................................................................2287
O TRABALHADOR NEGRO NO MUSEU DE ARTES E OFÍCIOS: REPRESENTAÇÃO E
SILENCIAMENTO ................................................................................................................................2301
ENTRE SILÊNCIOS E VOZES: ESTUDO DA COLEÇÃO DE CÓPIAS EM GESSO DE ARTE
CENTRO-AFRICANA DO MUSEU AFRO-BRASILEIRO DA UFBA ..............................................2321
MUSEU, ENSINO E IMPRENSA: EXPERIÊNCIAS NO MUSEU TIPOGRAFIA PÃO DE SANTO
ANTÔNIO (DIAMANTINA, MINAS GERAIS) ..................................................................................2342
PÓS-VISITA AO MUSEU TIPOGRAFIA PÃO DE SANTO ANTÔNIO: O QUE ACONTECE NA
11
SALA DE AULA....................................................................................................................................2357
VISITANTES E MUSEALIZAÇÃO: NARRATIVAS VISUAIS DE VISITAS À DIAMANTINA ....2370
OS INSTRUMENTOS DE TRABALHO DO NEGRO NO MUSEU HOMEM DO NORDESTE ......2386
SUBJETIVIDADES E CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS NA EXPERIÊNCIA DE USO EDUCATIVO
DO MUSEU DE ARTES E OFÍCIOS ....................................................................................................2405
INTERATIVIDADE EM MUSEUS HISTÓRICOS EXPERIÊNCIAS DO MUSEU CASA HISTÓRICA
DE ALCÂNTARA..................................................................................................................................2423
12
História das
coleções e
dos processos
museológicos nas
eras moderna e
contemporânea
13
ACERVOS QUE CONTAM HISTÓRIA: A TRAJETÓRIA DO MUSEU
DE GEOCIÊNCIAS DO IGC-USP ATRAVÉS DE SUAS COLEÇÕES
Resumo: Este trabalho é parte da dissertação de mestrado que estou elaborando para o Programa de
Pós-Graduação Interunidades em Museologia da Universidade de São Paulo.
Trata-se de um trabalho sobre o resgate da história de um museu por meio de suas coleções. O locus
para o desenvolvimento da pesquisa é o Museu de Geociências do Instituto de Geociências da USP,
espaço entendido como um museu, cujo status jurídico é o de acervo de unidade de ensino
universitária. A proposta é, a partir da análise das coleções que atualmente compõem o acervo do
Museu de Geociências do IGc – USP, poder resgatar sua história, que não está registrada na
documentação institucional oficial. A investigação sobre a trajetória das coleções que compõe
atualmente o acervo, através do resgate de informações sobre a coleção, adquiridas de fontes primárias
(periódicos de época, etiquetas de coleção, documentação do colecionador) pode ajudar a recuperar a
trajetória histórica da própria instituição.
As metodologias utilizadas indicam o levantamento da biografia das coleções; deste modo, ao traçar
seu percurso de “vida”, deverá também ser traçada a trajetória histórica do Museu de Geociências da
USP, nunca descrita cientificamente até este trabalho. Para isso serão utilizadas bibliografias que
tratam sobre análise de objetos em Museus, que aqui serão adaptadas para coleções.
Palavras Chave: Coleção; Museu de Geociências; acervo geológico; acervo mineralógico; museu
universitário.
14
Abstract: The work presented in this meeting is part of the master's dissertation that it is been
prepared for the Interunit Postgraduate Program in Museology of the University of São Paulo.
It is a work on the rescue of the history of a Museum through its collections. The locus for the
development of the research is the Museum of Geosciences of the Institute of Geosciences of USP,
space understood as a museum, whose legal status is that of a collection of university teaching units.
The proposal is, based on the analysis of the collections that currently make up the collection of the
Museum of Geosciences of IGc - USP, to be able to recover its history, which cannot be found in the
official institutional documentation. Research on the collection that currently compose the Museum,
through the retrieval of information about the collection, acquired from primary sources (periodical
periodicals, collection labels, collector documentation) can help to recover the historical trajectory of
the institution itself.
The methodologies used include studies in the field of biography of collections; In this way, the
historical trajectory of the Museum of Geosciences of the University of São Paulo (USP), which has
never been scientifically described until this work, should be traced. For this, bibliographies dealing
with object analysis in Museums will be used, which will be adapted here for collections.
15
Este é um trabalho sobre coleções, museu e história. Pretende ser um espaço de
encontro entre Museologia, História e Geologia, por meio do estudo da trajetória das Coleções
do Museu de Geociências do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo.
O Museu de Geociências do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo,
conhecido apenas por Museu de Geociências, originou-se a partir do antigo Museu de
Mineralogia da extinta Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da USP. Este, por
sua vez, nasceu da coleção didática da cadeira de Mineralogia e Geologia, Gabinete de
Mineralogia, do curso de Ciências Naturais da FFCL-USP, por volta de 1936.
O acervo do Museu foi originado concomitantemente às atividades da Universidade,
nos anos de 1930, tendo assim, mais de oitenta anos de idade. As coleções estão atreladas à
implantação do curso, por isso, sua história, se entrelaça ao cotidiano docente, discente,
administrativo e cultural do espaço universitário, o que lhe confere um caráter único. No
entanto, com o passar dos anos e dessas mesmas atividades, muita informação essencial se
diluiu, mas nem tudo se perdeu.
O Museu ocupa uma área de 550m2 no primeiro andar do Instituto de Geociências da
USP. A reserva técnica ocupa uma área de 16m2 no térreo do mesmo edifício. A estrutura do
Museu contempla ainda: 1) a partir de 2014, a Oficina de Réplicas do IGc-USP, setor que
atua, desde 1997, na produção de réplicas de fósseis para utilização didática; 2) a partir de
2015, a recém-criada Litoteca do Instituto de Geociências, setor responsável pela salvaguarda
de coleções geológicas de rochas, provenientes de pesquisas científicas de docentes e alunos
do IGc.
Trabalhar com coleções é útil para que elas deixem de ser meros objetos memoriais e
voltem a ser a voz da instituição, ou ainda, pode ser que a instituição descubra que certa
coleção já não está de acordo com a missão institucional e deva ser destituída do acervo. Sem
uma análise aprofundada, uma coleção de museu, é apenas um montante de objetos ocupando
espaço em uma vitrina. Uma coleção pode ser definida como um conjunto de objetos
materiais ou imateriais (obras, artefatos, mentefatos, espécimes, documentos arquivísticos,
testemunhos, etc.) que um indivíduo, ou um estabelecimento, se responsabilizou por reunir,
classificar, selecionar e conservar em um contexto seguro e que, com frequência, é
16
comunicada a um público mais ou menos vasto, seja esta uma coleção pública ou privada.
(DESVALEÈS A. & MAIRESSE F. 2013. Pg.32).
No Museu de Geociências, com o passar do tempo, as coleções iniciais (estabelecidas
de acordo com a definição acima) foram sendo agrupadas umas às outras, de modo que a
caracterização de grupo foi perdida. Atualmente, alguns conjuntos que possivelmente outrora
foram coleções, encontram-se fundidos dentro do grupo maior (coleção) de minerais e/ou
rochas. Pode-se recuperar um conjunto de acordo com seu doador, mas dificilmente é possível
reestabelecer o critério de ordenação que um dia fora proposto, ou seja, motivo pelo qual a
coleção foi incorporada ao Museu.
No início deste trabalho as informações acerca das coleções do Museu eram
superficiais e estavam, na maioria das vezes, escondidas em locais não acessados, o que dava
a falsa impressão de que elas não existiam. Para conhecer melhor o conteúdo do seu acervo,
foi utilizada como base a pesquisa publicada por Helen Fothergill em 2005. No intuito de
fazer um inventário de todos os museus com coleções geológicas na Inglaterra, em
comparação com pesquisa semelhante realizada em 1981, Fothergill elaborou um questionário
para ser distribuído entre instituições inglesas1.
Algumas dessas questões foram aplicadas ao Museu de Geociências: Qual o tamanho
do acervo (em quantidades de exemplares)? Do que ele é composto? Quantas coleções
existem? Há material associado? Existe catálogo publicado? Há material tipo? Há publicações
sobre a coleção? Há pesquisas realizadas sobre o Museu? Algumas dessas perguntas serão
respondidas neste momento, pois colaboram para um conhecimento prévio importante para a
análise das coleções. Outras serão respondidas durante o processo de apresentação das
coleções.
1
Em 1981, o Geological Curator´s Group, elaborou uma pesquisa intitulada “The State and Status of Geology in
United Kingdom Museums”, a qual fornecia um panorama geral sobre a situação das coleções geológicas no
Reino Unido, no que concerne à curadoria, conservação, armazenamento e utilização. Vinte anos depois, Helen
Fothergill propôs uma nova pesquisa, com título semelhante, porém mais incisivo nas coleções (The state and
status of Geological Collections in United Kingdom), para verificar o quanto essas instituições tinham evoluído
ou regredido no intervalo de vinte anos. (FOTHERGILL, 2005).
17
Qual o tamanho do acervo? Há catálogo publicado?
Estima-se que o Museu de Geociências possua cerca de dez mil amostras geológicas.
No entanto o acervo está em processo de inventário desde o final de 2015. A área expositiva,
cujo processo de inventário já está concluído, conta com 2284 amostras de minerais, 40
amostras de mineraloides, 85 amostras de espeleotemas, 810 amostras de gemas, 51 amostras
de meteoritos e 161 amostras de rochas e 14 amostras de fósseis, totalizando 3445 amostras
geológicas expostas. O inventário está atualmente concentrado na guarda intermediária, ou
seja, amostras que são utilizadas esporadicamente, mas por questões práticas (facilidade de
acesso) não estão armazenadas na reserva técnica, que fica em outro local do IGc. Neste
momento, não se pode precisar, portanto, qual o tamanho do acervo do Museu. Uma vez que
o Museu não tem pleno conhecimento do seu acervo, não existe catálogo publicado.
18
Há material associado? Há material tipo? Há publicações sobre a coleção?
Essas três perguntas podem ser respondidas de uma só vez. Há dois tipos de material
associado às coleções do Museu: histórico e científico. Algumas coleções possuem
quantidade expressiva de material associado. Com relação ao material associado do tipo
histórico, as coleções Luiz Paixão e Schnyder possuem material de melhor qualidade, com
diários e cadernos dos colecionadores. A coleção Dirings possui pastas com relação de
amostras do colecionador. Já o material associado do tipo científico, existe em grande
quantidade para a coleção de amostras tipo. É importante frisar que muitas das amostras
possuem trabalhos publicados em revistas científicas. O resgate do cruzamento dessas
amostras com as respectivas publicações é um trabalho a parte, e merece a devida atenção.
19
Durante a pesquisa encontrou-se duas questões de difícil solução: coleções dispersas
de modo que não se constituem mais como grupos coesos a serem denominados “coleção” e
ausência de documentação institucional que possibilite o rastreamento da entrada dessas
coleções na instituição.
De acordo com LOURENÇO & GESSNER (2014) a utilização das coleções para
estudos históricos é benéfica não apenas para melhorar os procedimentos de conservação e
pesquisa, mas permite que o museu faça uma nova abordagem de seus objetos, propondo
novas exposições e novas propostas educativas. Ainda secundo os autores, a documentação
das coleções oferece um panorama geral da vida do objeto antes de sua entrada no Museu. No
entanto, essa é etapa de vida do objeto mais difícil de ser recuperada, uma vez que quando a
documentação entrou para o Museu, na maioria das vezes não houve preocupação em
preservar seus dados anteriores, e nem os de seus antigos donos. Para conhecer esse panorama
é necessária pesquisa histórica em fontes externas ao Museu.
Baseando-se no trabalho de Alberti (2005), que afirma ser possível escrever uma
biografia dos objetos, fazendo-lhes perguntas similares à que se faz a pessoas, para melhor
compreender as coleções que existem no Museu é possível “entrevistá-las”, a partir de
algumas perguntas: Onde? Por que? O que? Como? Fazer essas perguntas a cada uma das
coleções é trabalhoso e pode ser um desafio, mas certamente esclarecerá muitos pontos até
então desconhecidos, ou não observados pelas pessoas que trabalham com elas.
A inter-relação com eventos externos às coleções, mas que causaram impactos cruciais
a elas, os “pontos críticos”, são essenciais para a compreensão da história da coleção, pois
servem de guia para pesquisas arquivísticas, imprescindíveis para casos nos quais as coleções
são muito antigas e não possuem documentação associada (quase todas as coleções citadas
neste estudo). Em linhas gerais, a análise de coleções propostas por LOURENÇO &
GESSNER (2014), inclui três passos: (1) Identificação atual da coleção; (2) estabelecimento
de parâmetros que possam caracterizar a coleção em algum dado momento no passado; (3)
identificação dos pontos críticos. Parâmetros variáveis e pontos críticos são mutualmente
dependentes e não precisam ser exaustivos.
20
Assim, a análise das coleções envolve: a coleção em si, neste caso, as amostras
geológicas, com suas características naturais e intervenções humanas (marcações do
colecionador, do museu e/ou marcas de intervenção para pesquisa); e outras fontes
documentais associadas a ela, no caso do Museu de Geociências, documentação do
colecionador original (quando houver), documentos de arquivo (documentação textual
administrativa do Museu), imagens (panfletos ou fotografias) e reportagens de jornais. Desta
forma, a pesquisa evolui em frentes simultâneas.
A identificação atual da coleção, parte do pressuposto do que já existe: assume-se que
as informações contidas nos textos de divulgação do Museu e etiquetas da exposição estejam
corretas. Partindo-se do que já existe, pode-se rastrear a informação em outras fontes, e assim,
ratificar ou retificar a informação atual sobre as coleções.
O estabelecimento de parâmetros que possam caracterizar a coleção em certo
momento de seu passado, direciona perguntas à coleção: “onde?”, corresponde à localização
física das coleções: salas que ocuparam/ocupam, locais por onde passaram, mobiliário que
ocuparam/ocupam, entre outras informações possíveis de serem levantadas sobre espaço. “Por
que?”, refere-se ao(s) propósito(s) e meta(s) pelos quais a coleção foi constituída (ensino,
pesquisa, apoio, deleite). “O que/quais?” corresponde aos componentes da coleção: tipos de
peças que a compõe. Enfim, a última pergunta corresponde à interação com pessoas ou
instituições envolvidas no processo de acumulação e chegada até o Museu.
A identificação dos pontos críticos, diz respeito ao levantamento de eventos externos
que tenham tido impacto direto nas coleções, seja para seu acúmulo, mudança de posse ou
desmembramento. São acontecimentos pontuados, de curta duração e grande impacto. Como
todas as coleções estão sujeitas a fatores externos, todas apresentam ponto(s) crítico(s); seu
estudo é crucial para compreender a trajetória histórica da coleção e o motivo pelo qual ela se
encontra no estado atual.
No caso do Museu de Geociências, alguns nomes que atualmente são tratados no
cotidiano do Museu como doadores, na verdade foram coleções. Outros grupos de amostras
que são tratados ordinariamente por sua tipologia, são, na verdade coleções. Deste modo, cada
coleção apresentada a seguir, segue o critério de coleção estabelecido pelo ICOM, assim
21
redefinidas pela autora. Ao lado de cada nome, será indicado como ela é tratada no dia a dia
da instituição. É preciso salientar que, devido ao espaço reduzido, apenas as coleções de
minerais serão tratadas neste trabalho.
Coleção Araújo Ferraz (é tratada como coleção no museu, embora não haja vínculo
entre as amostras ditas dessa coleção):
Alguns documentos internos, em formato de relatos de funcionários, afirmam ser esta
a segunda coleção mais antiga do Museu. QUEIROZ (1962, pg.9) afirma ter sido adquirida
pelo governo do Estado, em 1935, pelo valor de Cr$ 60.000,00 (sessenta mil cruzeiros), o que
significaria R$ 128.851,76 em moeda atual.2 Tal informação também aparece em reportagem
do jornal O Estado de São Paulo de 19673. Outros relatos dizem que a coleção foi doada pela
viúva do colecionador.
Não foi possível encontrar menções à aquisição dessa coleção por meio de
documentos públicos. José Belmiro de Araújo Ferraz foi engenheiro de minas e chegou a
2
Conversão realizada em 25 de junho de 2017 pelo site da Fundação de Economia e Estatística do Rio Grande
do Sul. Com base em moeda de 1944 (possibilidade de conversão mais antiga disponível no site) atualizada pelo
INCC. Disponível em http://www.fee.rs.gov.br/servicos/atualizacao-valores/
3
Juvenal Kohl de Queiroz foi contratado como conservador, nos anos 1940, tendo sido na prática um tipo de
zelador do Museu. Cuidou da coleção sozinho por mais de duas décadas. As informações que constam no jornal
O Estado de São Paulo, em 1967 foram fornecidas por ele. Foi contemporâneo de Saldanha da Gama e Rui
Ribeiro Franco e pode ter tido, por conta da convivência institucional, informações orais sobre a origem das
primeiras coleções. Seu artigo na Associação Brasileira de Gemologia (fundada pelo Prof. Rui Ribeiro Franco),
não cita fonte das informações sobre as coleções do Museu.
22
assumir interinamente a direção do Serviço Geológico e Mineralógico. Ellert (grifos da
autora) afirma que “Para a montagem do Museu de Mineralogia foi importante a
transferência do acervo mineralógico do Museu Paulista e a aquisição da Coleção Araújo
Ferraz, além de doações de pessoas amigas. (ELLERT, 2007, pg. 53). Tal afirmação
corrobora a ideia de aquisição da coleção, além de atrelá-la ao início das atividades do Museu
(através da palavra montagem). Se foi utilizada na montagem do Museu, a data de 1935
parece se encaixar nesse contexto.
A coleção atualmente em posse do Museu conta com 494 amostras4 de minerais,
sendo estes os representantes de uma fase em que o Museu era um laboratório de aulas
práticas, pois são as amostras mais didáticas em termos de cristalização, hábitos e
procedência. As amostras não formam um arranjo único que as identifique como uma
coleção; não há nenhuma marcação que as identifique como um conjunto. As etiquetas
utilizadas na exposição são as únicas pistas de que pertenceram à coleção Araújo Ferraz. As
amostras foram totalmente incorporadas ao acervo de minerais e receberam, provavelmente
nos anos 1960, um número de inventário, que as descaracterizaram como um conjunto que um
dia formaram. Não há registros feitos pelo colecionador que acompanhem a coleção. Não se
sabe se nunca existiram ou se foram extraviados ao longo dos anos. Resta atualmente apenas
uma etiqueta que se acredita ser original do colecionador.
4
Levantamento realizado nos anos 90, sem data.
23
complementar, composta por cadernos do colecionador, onde constam descrições minuciosas
da maioria das peças adquiridas, incluindo fotografias, cartões postais, recortes de jornais e
bilhetes de terceiros, que funcionam como informações adicionais à peça registrada. Esses
cadernos não fornecem informações gerais sobre a coleção, como quantidade geral de peças,
data da primeira aquisição. Não foi encontrado no Museu nenhum documento referente à
entrada da coleção na instituição.
Para um maior esclarecimento sobre o colecionador e a entrada da coleção na
universidade foi necessário recorrer à fontes externas, neste caso os jornais de grande
circulação com acervos digitais abertos à consulta pública5. A pesquisa a esses acervos trouxe
à luz a existência de outra parte da coleção, em posse do Museu de Arqueologia e Etnologia
da USP (MAE-USP). A pesquisa ao acervo do MAE não trouxe novas informações sobre a
aquisição da Coleção Paixão pela universidade, uma vez que o museu também não possui
registros da chegada da coleção à instituição.
Segundo ELLERT (2007, pág. 57) “o Museu de Mineralogia (...) foi muito
enriquecido na década de 1950 com a aquisição do valioso acervo da Coleção Luiz Paixão e
seus respectivos mostruários”. Os mostruários da coleção, segundo relatos de funcionários
antigos, foram descartados no final dos anos 1970, pois sofreram infestações de cupim.
As poucas informações sobre Luiz Paixão foram encontradas no jornal O Estado de
São Paulo. Sabe-se que Luiz Paixão Silva de Araújo Costa foi funcionário do Banco dos
Funcionários Públicos, ocupando o cargo de gerente em 1940. Não foi possível localizar
informações sobre seu nascimento, no entanto, a mesma fonte informa que ele viveu até os 69
anos de idade, tendo falecido em São Paulo em 20 de abril de 1949.
A partir de 1950 o nome de Luiz Paixão entrou para a história da Universidade de São
Paulo, como comprovam as pesquisas realizadas no acervo online do Diário Oficial do Estado
de São Paulo. Partindo da data “1954”, que é citada nos textos sobre a memória do Museu de
Geociências, a pesquisa encontrou a primeira referência a esta coleção em 14 de abril de
5
Para a pesquisa sobre a Coleção Paixão foram utilizados os acervos digitais do Jornal O Estado de São Paulo e
do Diário Oficial do Estado de São Paulo.
24
1950. Após a publicação do inventário em 08 de outubro de 19496, os herdeiros ofereceram a
coleção à USP e após quase um ano da morte do colecionador, a Assembleia Legislativa
doEstado de São Paulo, por meio da Indicação 145, do deputado estadual Salomão Jorge,
indicava ao Poder Executivo do Estado de São Paulo:
Esta fonte revela ainda que a coleção foi fruto de quarenta anos de pesquisas do
colecionador e não era apenas mineralógica. Luiz Paixão colecionava também fósseis,
conchas e objetos etnográficos, o que contribuiria para várias áreas do conhecimento da
universidade.
Já em 10 de agosto de 19508, uma comissão formada pelos docentes da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras, Professores Doutores Plínio Ayrosa (Departamento de
Antropologia), Rui Ribeiro Franco (diretor interino do Departamento de Mineralogia e
Petrografia) e Victor Leinz (diretor do Departamento de Geologia e Paleontologia) deu o
parecer sobre a coleção. A parte petrológica e paleontológica, com algumas exceções, não
seria de interesse para a universidade. No entanto,
6
Diário Oficial do Estado de São Paulo. Ano 59 nº 261, página 16. Sábado 08 de outubro de 1949.
7
Indicação nº 145 de 1950. Diário Oficial do Estado de São Paulo, Executivo, Nº 62, ano 60. pág 01. 14 de
Abril de 1950.
8
Diário Oficial do Estado de São Paulo. Ano 61 nº 85, página 21. Quinta-feira 19 de abril de 1951.
25
Após a emissão do parecer favorável à aquisição da coleção, os mesmos docentes
foram convocados para realizar sua avaliação, publicada em 5 de março de 19519. As partes
mineralógica e petrológica foram avaliadas em Cr$ 1.500.000,00 (um milhão e quinhentos mil
cruzeiros). As partes arqueológica e etnográfica foram avaliadas em Cr$ 250.000,00
(duzentos e cinquenta mil cruzeiros). O valor total da coleção, em moeda atual seria cerca de
R$ 933.262,1110. Apesar do parecer ter sido emitido poucos meses após a Indicação 145, a
verba para a aquisição da coleção só foi liberada três anos depois, em 25 de setembro de 1954
pelo Decreto nº 23.66811, assinado pelo governador Lucas Nogueira Garcez.
O decreto apresentado é o último elo entre a entrada da coleção na Universidade e o
que hoje existe no Museu de Geociências e no MAE. Presume-se aqui que a coleção tenha
sido separada por assuntos, de acordo com os acervos de departamentos que existiam na
FFCL: a porção etnológica da coleção ficou a cargo do Departamento de Antropologia 12 e as
porções mineralógica e paleontológica ficaram a cargo dos departamentos de Mineralogia e
Petrografia e Geologia e Paleontologia respectivamente. No IGc – USP atualmente estão
alocadas na Coleção Didática (amostras paleontológicas e petrológicas) e no Museu de
Geociências (amostras mineralógicas).
A pesquisa ao acervo do MAE13 revelou que Luiz Paixão colecionava exemplares de
diversas partes do mundo, sendo muitos de seus objetos, oferecidos por uma gama de
colaboradores, que incluíam padres missionários em aldeias distantes, herdeiros de
colecionadores e mercadores locais. A data de aquisição de peça mais antiga encontrada nos
diários é de 08 de dezembro de 1937, mas algumas peças remontam ao início do século XX
(no caso de peças que pertenceram a colecionadores anteriores). O MAE possui três cadernos
9
Diário Oficial do Estado de São Paulo. Ano 61 nº 85, página 22. Quinta-feira 19 de abril de 1951.
10
Conversão realizada em 09/06/2017 no através do site do Banco Central.
11
Diário Oficial do Estado de São Paulo. Ano 64 nº 213, página 1. Terça-feira 28 de setembro de 1954.
12
Atualmente a porção etnográfica da Coleção Luiz Paixão encontra-se no Museu de Arqueologia e Etnologia
da USP (MAE-USP), pois no ato de sua criação, em 1989, este museu incorporou as coleções do Acervo Plínio
Ayrosa, que mantinha as coleções etnográficas em posse do Departamento de Antropologia da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas.
13
Para a pesquisa realizada no MAE foram requisitados todos os documentos relativos à Coleção Paixão em
posse da Instituição. No entanto, os únicos documentos existentes são três cadernos do colecionador, nos
mesmos moldes dos que existem no Museu de Geociências da USP.
26
do colecionador, desmembrados por questões de conservação. Estão acondicionados em
pastas plásticas, cada folha do fichário ocupando uma folha de plástico, com as respectivas
imagens, caso haja (as fotografias, cartões e jornais estavam originalmente anexados ao
caderno por clipes de metal). Os cadernos em posse do MAE tem numeração entre 3000 e
4560.
A documentação da coleção em posse do Museu de Geociências conta com nove
cadernos do colecionador, em forma de fichário, todos em seu estado original, tendo sido
retirados apenas os clipes de metal. Os fichários trazem o nome do colecionador, a numeração
dada a cada amostra e sua descrição. Em alguns casos especiais, como já foi dito,
acompanham recortes de jornais com reportagens relacionadas à amostra, cartões postais e
fotografias. Todas as marcações referem-se a minerais.
Apesar de possuírem a mesma tipologia documental de apoio à coleção, a
documentação em posse do MAE tem finalidade histórica, servindo como apoio ao cientista
que deseja pesquisar os artefatos que compõem a coleção; já no Museu de Geociências, essa
documentação é quase corrente, uma vez que, por ser a coleção mais completa do Museu, que
ainda mantém a numeração original das amostras, o caderno do colecionador é
constantemente utilizado para a conferência de informações. No entanto, a marcação era feita
com etiqueta colada na amostra, sendo que muitas se desprenderam com o passar do tempo,
não sendo possível, portanto, fazer uma conferência correta de todas as amostras que
pertencem à esta coleção.
Devido às amostras de minerais pertencentes à Coleção Luiz Paixão terem sido
agrupadas ao total do acervo mineralógico, a quantidade absoluta de peças atualmente no
Museu é desconhecida. Seria necessária, após o término do inventário geral do acervo, a
digitalização dessas informações, para que o montante de amostras da coleção pudesse ser
conhecido. Esse procedimento também possibilitaria saber com exatidão as fontes de
aquisição de amostras de Luiz Paixão.
Os diários revelam que o colecionador possuía amostras de todos os estados
brasileiros, a maioria coletadas por ele mesmo, como comprovam as descrições detalhadas e
as fotografias de campo. O cruzamento de imagens, presentes tanto nos documentos do MAE
27
quanto nos do Museu de Geociências, atreladas às descrições de locais, permitem saber que
Luiz Paixão fazia as coletas para todos os “temas” de sua vasta coleção em um mesmo local.
Regiões amazônicas, por exemplo, eram constantemente visitadas para a coleta de material
etnográfico (uma vez que havia muitas etnias indígenas na região), arqueológico (material
funerário e ritualístico de comunidades indígenas passadas) e mineralógico (obtido através de
atividades de garimpo).
Uma coleção do porte da Coleção Luiz Paixão, mostra que nem sempre a divisão das
coleções em assuntos, no caso dos departamentos de ensino, é a melhor forma de explorar o
material. Numa coleção de história natural como esta, as peças acabam por representar vários
universos do conhecimento, sendo um tanto complicado estabelecer fronteiras. Um exemplo é
o registro nº 4299, do MAE: “hematita com a qual os índios fazem a pintura vermelha em sua
cerâmica”. A utilização da fase oxidada do minério de ferro para a obtenção da cor vermelha é
um processo geológico; no entanto a utilização cultural do material estabelecida pelo ser
humano é etnológica. Uma peça de coleção pode possuir múltiplos significados; rotulá-la a
um assunto específico pode ser a causa da sua subutilização em acervos museológicos.
Dentre os minerais pertencentes à Coleção Paixão, estão os mais admirados do Museu.
O mais famoso é a “ágata olho de coruja”, cuja representação em desenho foi utilizada como
logotipo do Museu durante muitos anos.
Alguns fatores fazem com que a Coleção Paixão se destaque das demais coleções do
Museu. Ela é a coleção que possui a documentação mais completa, que pôde ser rastreada
além dos arquivos institucionais (foi encontrada no diário oficial do estado, ou seja, representa
um discurso oficial do Estado, de apoio à educação superior e à ciência. Daí pode-se ver sua
relevância frente aos outros objetos ou coleções existentes no museu). Desta forma, sua
trajetória conta a história da universidade, novamente, extrapolando os limites do Museu, já
que está presente em mais de uma instituição. É a coleção mais bem preservada e
documentada do Museu, pois já nasceu com status (foi declarada importante por docentes
renomados do quadro da universidade), tendo custado muito dinheiro, e não apenas trabalho
(como as demais amostras resultantes de coletas de campo). Além disso, o Museu ganhou
notoriedade e importância com essa coleção. É provável que tenha sido a partir de sua
28
aquisição que a trajetória da coleção do departamento de Mineralogia se diferenciou das
demais coleções de departamento da FFCL, adquirindo um status de Museu que resistiu às
transformações acadêmicas ao longo de oito décadas. Hoje existe um Museu de Geociências
(cuja predominância tipológica do acervo é de mineralogia), mas não existe um museu de
paleontologia, de química ou de botânica.
14
Relatório da Diretoria 1984. Universidade de São Paulo, Instituto de Geociências, 1985. Pág. 05.
15
Informação obtida através de depoimento de Maria Lúcia Rocha Campos à autora, em 17 de fevereiro de
2017.
16
Informação obtida por relato do ex-funcionário do Museu, Daniel Machado, que atuou como técnico de
Museu de 1992 a 2016.
29
como ocorre na exposição sistemática. As amostras expostas foram escolhidas por critério
estético.
O colecionador divide a coleção em três grupos: cristais e minerais; rochas; e
mineraloides. Além disso, as classes nas quais os minerais são divididos demonstram
familiaridade do colecionador com o tema; a página “terminologia”, apresenta descrição
correta do que se refere cada termo utilizado.
Essa coleção, diferente de todas as outras em posse do Museu, permite conhecer o
período exato em que o colecionador esteve em atividade. As amostras aparecem registradas
de acordo com a data de aquisição e cobrem o período entre 1960 (primeiro registro do
caderno) e 1983 (último registro do caderno).
É possível saber também onde as amostras foram adquiridas. O colecionador foi
minucioso ao relacionar, no início do caderno uma lista com 49 fornecedores de minerais. Em
cada novo registro, de acordo com o local de compra, foi colocado o número correspondente
ao lado da descrição. Entre os locais de aquisição destaca-se o estado de Minas Gerais, com
treze fornecedores no total: de Belo Horizonte (nove locais), Ouro Preto (dois locais),
Governador Valadares e Teófilo Otoni (um local em cada). Em seguida está São Paulo com
nove fornecedores no total, todos da Capital, principalmente centro (Praça da República, Ruas
Barão de Itapetininga e 24 de Maio). Aparecem também Rio Grande do Sul, com um
fornecedor em Lajeado e outro em Porto Alegre. Rio de Janeiro e Espírito Santo aparecem
com um fornecedor cada um (Rio de Janeiro e Vitória). No exterior a maioria das amostras foi
adquirida em na Suiça (Zurique com cinco fornecedores), seguida pela Alemanha (um
fornecedor em Idar-Olberstein e outro em Munique), um fornecedor em Paris e um na Pérsia.
A lista relaciona também coletas próprias e presentes.
O grau de detalhamento de informações oferecido pelos registros de Carlos L.
Schnyder é útil na medida em que abre possibilidades para estudos sobre a história do
colecionismo particular, como a verificação de redes de colecionadores que compravam
amostras nos mesmos circuitos (que envolvia garimpos, lojas e feiras). No entanto, esse
assunto merece um estudo a parte, e não será abordado neste trabalho.
Coleção Ricardo Von Diringshofen (no Museu, tratada como Coleção Dirings):
30
Pouco se sabe sobre a entrada dessa coleção no Museu. Leva o nome de seu
colecionador, Ricardo Von Diringshofen (1900-1986), representante comercial da Companhia
Artex, indústria têxtil que ajudou a construir. Foi também um entusiasta em História Natural,
e, apesar do seu maior legado para a história natural ser de insetos (cujo acervo está no Museu
de Zoologia da USP) formou também uma grande coleção de tipologias variadas, incluindo
joalheria egípcia, chifres e marfins, pássaros, conchas, objetos indígenas brasileiros e minerais
(FERREIRA & PRADOA, 2016, pg.118). Composta por 307 exemplares de minerais e
rochas.
Assim como as outras coleções do Museu, foi fundida com o total do acervo, restando
apenas algumas amostras com a numeração original do colecionador. Há exemplares em
exposição e em reserva técnica. Não se tem conhecimento sobre o processo de doação dessa
coleção ao Museu, mas acredita-se que tenha sido encaminhada pelo Museu de Zoologia
(MZ-USP) que recebeu a coleção, por esta ser formada majoritariamente por insetos. Para a
escrita final da dissertação, essas informações serão checadas por meio de pesquisa à
documentação da coleção em posse do Museu de Zoologia da USP.
O material em posse do Museu é composto por duas pastas, a primeira delas numerada
de 1 a 307 e a outra com numerações aleatórias, descritas como 400/500/1000. Pelo catálogo
do colecionador é possível apenas saber a procedência geográfica de cada exemplar e sua
composição química. Não fornece informações como data de coleta, ou tipo de aquisição.
17
Data de doação atribuída. Consta em uma documentação interna da biblioteca do IGc/USP, que atesta a
doação de livros que pertenceram a Vitório Estéfano com a data citada. Acredita-se que a coleção de minerais e
rochas do Museu tenha sido recebida na mesma data dos livros.
31
Biblioteca do IGc, mas o restante não se sabe como foi organizado. O Museu não possui
documentação de doação, nem material do colecionador, apenas uma relação das amostras
que estão na instituição, um total de 109, sendo 26 rochas e 83 minerais. O conjunto original
foi incorporado ao restante do acervo, e as amostras doadas por Vitório Estéfano
acompanham seu nome como doador, e não como “Coleção Vitório Estéfano”.
Coleção Evgeny Semenov (no Museu tratada como Coleção Terras Raras):
Adquirida pelo Museu em 1995, durante visita do professor Evgeny I. Semenov, então
membro da Academia de Ciências de Moscou, ao IGc. A coleção é formada por 57 amostras
de minerais raros e minerais terras raras. Das amostras adquiridas, dezesseis são holótipos. As
amostras são provenientes da Rússia, China, Groënlândia, Tadjikistão, Índia, Kazakistão e
Kirgízia e estão em exposição em seu conjunto total. Esta coleção serve de referência para as
comunidades científicas nacional e internacional que desenvolvem trabalhos relacionados à
mineralogia dos complexos alcalinos carbonatíticos, geologia dos pegmatitos e geologia dos
elementos raros a eles associados. Não foram encontrados documentos que informassem o
valor de compra das amostras.
Coleção de Minerais Tipo (não é tratada como conjunto, apenas como “amostras tipo”):
32
tipos presentes no Museu pode será inserida como anexo para a dissertação final. Além dessa
coleção o Museu possui 15 amostras de mineral tipo na coleção Semenov, mas, por motivos
de catalogação não pertencem ao mesmo conjunto. Um ponto positivo deste trabalho é que,
através do processo de descrição das coleções atualmente no Museu, é possível rever o
processo de catalogação de certos conjuntos e verificar a pertinência de reagrupa-los em
diferentes arranjos, mais adequado às necessidades de pesquisa e de acesso atuais.
Coleção de Gemas
Diamantes Fancy:
É uma das coleções mais valiosas do Museu, embora tenha pouca visibilidade. Devido
à preocupação com a segurança das amostras, esses diamantes foram expostos raras vezes. É
parte da Coleção Luiz Paixão, mas tratado separadamente devido à sua importância e valor. É
uma coleção bem documentada, com descrição detalhada de suas peças. Esses resultados
originaram um relatório, datado de 17 de maio de 1993, assinado pelo docente aposentado
José Barbosa de Madureira Filho, do Departamento de Mineralogia e Petrologia, Maria Lúcia
Rocha Campos, chefe técnica do Museu na ocasião e Daniel Machado, técnico do Museu.
33
O relatório traz informações detalhadas de cada amostra, classificadas primeiramente
em brutas e lapidadas. Às lapidadas foram descritas de acordo com os seguintes elementos:
coloração, tipo de lapidação, peso (em quilates), medidas e características gerais. Já as brutas,
foram descritas por: peso (em miligramas e em quilates), hábito cristalino (octaedro perfeito
ou irregular), transparência, presença de inclusões e coloração.
A coleção é formada por 39 diamantes lapidados, 40 diamantes brutos e duas peças de
joalheria em ouro com diamante bruto. Em 2008 foi base para a dissertação de mestrado de
Tatiana Ruiz Cavallaro, no Programa de Mineralogia e Petrologia do IGc/USP. Cavallaro
refez as pesagens e medidas realizadas em 1993, além de selecionar alguns exemplares para
análise com espectroscopia UV-VIS a fim de estudar centros de cor e aferir se a coloração do
espécime era natural ou produzida artificialmente (CAVALLARO, 2008).
Conclusões
Este trabalho pretendeu apresentar as coleções em posse do Museu de Geociências do
Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo e indicar de que forma é possível,
através da metodologia de análise de coleções, preencher as lacunas de informação
pesquisando não a história da instituição, mas a história de cada coleção.
As histórias das coleções são relevantes, pois têm pontos em comum que ajudam a
entender a trajetória da instituição à qual estão vinculadas. A metodologia utilizada consistiu
em levantamento bibliográfico sobre biografias de objetos, aqui adaptadas para coleções, e o
levantamento de documentação paralela sobre as coleções (periódicos de época, registros de
memórias, entre outros). A partir disso realizou-se então: a identificação atual da coleção;
estabelecimento de parâmetros que possam caracterizar a coleção em algum dado momento
no passado; a identificação dos pontos críticos.
O estudo das coleções do Museu levantou pontos críticos comuns a muitas
instituições: dispersão de coleções (no caso da Coleção Luiz Paixão), extravio de
documentação relacionada, e erros de registro são os principais deles.
A importância deste trabalho está na possibilidade da escrita de uma narrativa
histórica consistente sobre o Museu de Geociências da USP, através do levantamento de
34
informações inéditas sobre a trajetória do Museu. Há ainda a abertura de novas possibilidades
de exploração do acervo, que pode se traduzir em novas exposições e ações educativas.
Cabe ressaltar que o presente trabalho poderá servir de base para uma futura
redefinição institucional das coleções do Museu, baseado nos mesmos critérios de
agrupamento utilizados neste trabalho: relevância histórica (do conjunto e/ou do doador),
importância temática do conjunto, tipo de entrada no museu, entre outros.
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36
A FORMAÇÃO DE UM ACERVO DE MODA: A SEÇÃO MODA
DA COLEÇÃO AMAZONIANA DE ARTE DA UFPA.
Resumo: Este artigo busca refletir sobre a formação de acervos de vestuário a partir do processo de
musealização do acervo formador da Seção Moda da Coleção Amazoniana de Arte da UFPA.
Considerando o crescimento da criação de acervos de vestuário e seus acessórios, objetivamos refletir
sobre como objetos de moda, que a priori estão relacionados com a efemeridade e seu rápido
consumo, podem vir a ser objetos-documentos, dignos de um trabalho de salvaguarda, por meio das
ações de musealização, mais especificamente, a Documentação de Acervos Museológicos. São
abordados nesse trabalho os conceitos de musealização e documentação museológica, focando no
processo desenvolvido junto ao acervo da Seção Moda da Coleção Amazoniana de Arte da UFPA.
Abstract: This article objective to reflect on the building of clothing collections from the process of
musealization of the Fashion Section of the Amazonian Collection of Art of UFPA. Considering the
growth of the creation of clothing collections and their accessories, we target to reflect on how objects
of fashion, which a priori are related to an ephemerality and its rapid consumption, it can become
documentary objects and it worthy of a safeguard work, for Medium of musealization actions, more
specifically, the Documentation of Museological Collections. They are approached in the conceptual
work of musealization and museum documentation, focusing on a process developed together with the
collection of the Fashion Section of the Amazonian Art Collection of UFPA.
37
Introdução
A formação de coleções abertas à visitação de acervos que envolvem peças e
acessórios de vestuários no Brasil não é algo novo. Segundo Viana (2016), em setembro de
1933, a Coleção de Têxteis do Instituto Feminino da Bahia foi aberta ao público em uma
exposição de Arte e Lavores, na qual apresentava peças de indumentárias colecionadas por
Henriqueta Martins Catharino. O mesmo autor também cita o Museu de Indumentária de
Santa Teresa, no Rio de Janeiro, também chamado de Museu de Indumentária Histórica e
Antiguidades, constituído pelo acervo de peças de vestuários tradicionais de diversas partes
do mundo da colecionadora Maria Sophia Jobim (VIANA, 2016, p. 38).
Atualmente, nota-se no Brasil um rápido crescimento de museus, galerias, instituições
afins, colecionando e expondo roupas antigas e contemporâneas. Deste modo, observamos
que estes objetos são entendidos como portadores de informações, de identidade e indicadores
de memória, Stallybrass (2008), dessa forma observamos o vestuário para além do simples ato
de cobrir o corpo para proteção, por pudor ou distinção social (PERROT, 1994. apud,
OLIVEIRA, 2009, p.71). A roupa persiste ao tempo podendo carregar informações tanto de
quem a vestiu, quanto de quem a produziu ou idealizou; o uso de materiais e técnicas de
produção de uma época e todo o seu contexto. Daí é pertinente a afirmação de Barthes (2005),
quando diz “ […] o vestuário é objeto ao mesmo tempo histórico e sociológico por
excelência. […] o vestuário é, a cada momento da história, o equilíbrio entre formas
normativas, cujo conjunto, apesar disso, está o tempo todo em devir” (BARTHES, 2005,
p.259).
A roupa, na maior parte da sua história, serviu para cobrir o corpo e proteger do frio ou
calor, no entanto, nem sempre essa proteção foi o principal motivo. Segundo Perrot (2008),
vestir é um ato de significar, uma vez que a roupa pode ser compreendida como marca de
diferenciação e distinção de hierarquia, possuindo assim um código de leitura social da
sociedade que a produziu. Em uma outra perspectiva, Stallybrass (2008) salienta a roupa
como um indicador de memória, haja vista que pensar sobre roupas é pensar sobre memórias.
Na esteira da memória, Halbwachs (2003) afirma que a memória, para além de ser um
fenômeno individual, pode ser entendida como um fenômeno coletivo e social. Nesse caso, a
38
roupa é de grande relevância enquanto registro histórico para a sociedade que a produziu, pois
através da sua relação com a memória, a roupa se vincula à memória individual e coletiva.
Com isso Roche (2007) destaca que a roupa nos permite perceber as transformações sociais e
tecnológicas dos aglomerados urbanos (ROCHE, 2007, p.23. apud, OLIVEIRA, 2009, p. 71).
Portanto, podemos afirmar que a roupa assume um papel de objeto-documento, visto que esta
pode ser um importante meio de evidenciar acontecimentos e experiências (FERREIRA,
2015).
Assim, o vestuário possui uma função representativa quando este é selecionado para
integrar uma coleção de museu Benarush (2015). Aqui, para além da ideia tradicional de
museu abarcamos as instituições de salvaguarda, instituições de caráter museológico, como é
o caso da Reserva Técnica do Curso de Museologia da Universidade Federal do Pará.
Consideramos que objeto pode vir a ser um documento, desde que haja uma
intencionalidade. Então podemos pensar o vestuário contemporâneo, que a princípio, é
destinado ao consumo, devido a sua relação com a moda - a qual a priori é algo
intencionalmente efêmero - vir a ser interpretado como documento, como prova de um fato.
Assim, vemos cada vez mais acervos relacionados à moda em espaços como os museus,
devido ao acúmulo sistemático de roupas e acessórios (BENARUSH, 2015, p.29). Esses
acervos relacionados à moda, sobretudo roupas, muitas vezes são provenientes de doações de
empresas do ramo da moda e têxtil ou de estilistas, como é o caso do acervo de moda do
estilista André Lima, que após o encerramento das atividades do seu atelier em 2014 doou seu
acervo para quatro instituições: Fundação Armando Álvares Penteado, o Museu de Arte do
Rio, a Faculdade Anhembi Morumbi e a Universidade Federal do Pará.
André Lima é estilista paraense que expressa, em muitas das suas criações inspiradas
em diversos elementos culturais existentes no estado do Pará e de paisagens e lugares que o
rodeia, levando através de suas peças estas referências às passarelas pelo Brasil (LOGULLO,
2008). Dentre os objetos doados pelo estilista para a UFPA, se destacam as roupas de
passarelas e lojas, documentos de processos de criação, materiais de divulgação do seu
trabalho e clippings (ver imagem 01 02, 03), os quais vieram compor a Coleção Amazoniana
de Arte da UFPA, formando a Seção Moda dentro dessa coleção.
39
Figuras 01, 02, 03: vestido, Clipping e acessórios, peças do acervo doado pelo André Lima.
Fonte: Projeto Ações de Curadoria de Acervo na Seção Moda da Coleção Amazoniana de Arte.
40
Museologia da UFPA, onde são desenvolvidas ações de documentação de acervos
museológicos, conservação e pesquisa, por meio do projeto de extensão intitulado “Ações de
Curadoria de Acervo na Seção Moda da Coleção Amazoniana de Arte”. Esse projeto visa
desenvolver ações de curadoria que envolve ações de documentação museológica,
conservação, pesquisa e comunicação, no acervo doado por André Lima.
Este acervo é formado por vestuário bermuda, blusa, calça, camisa, macacão, short,
saia, vestido, blazer, bolero, capa, casaco, colete, jaqueta, paletó, suéter, calcinha, cinta-liga,
combinação, corpete, sutiã, estola, xale, body e biquíni. A vinda da doação para a UFPA foi
planejada pelos professores Orlando Maneschy18 e a professora Yorrana Maia19, que após o
recebimento pelo Laboratório de Conservação e Documentação do Curso de Museologia da
UFPA foram iniciadas as ações de musealização.
Musealização
A musealização é um processo em que os objetos são retirados do seu contexto
primário, e passam a estabelecer relações nas quais estes objetos são revestidos com novos
significados (LOUREIRO e LOUREIRO, 2013, p.1). Essa intenção segundo Mário Chagas
(1994) se estabelece como uma construção de um processo seletivo representacional ligado a
uma atribuição de valores, estabelecendo assim um recorte de tudo que pode ser musealizado.
Portanto, observamos que a musealização pode ser entendida como um olhar seletivo, pois é
justamente esse processo de seletividade que dá a determinados objetos a
valorização/importância para ser um objeto museológico, caso contrário seria apenas mais um
objeto comum.
Esse processo compreende um conjunto de atividades que objetiva a preservação do
objeto, bem como as informações referentes a ele. Dessa forma Desvallées e Meiresse
apresentam as etapas que constitui o processo de musealização, que são “preservação
(seleção, aquisição, gestão, conservação), pesquisa (catalogação) e de comunicação (por meio
da exposição, das publicações, etc.)” (DESVALLÉES e MEIRESSE, 2013, p. 58). Deste
18
Prof, Dr. Orlando Maneschi é professor da Faculdade de Artes Visuais da UFPA.
19
Profa. Me. Yorrana Maia é professora do curso de Moda da Universidade da Amazônia (UNAMA).
41
modo, é a partir desses processos que a musealização atribuí aos objetos o status de objeto-
documento, agregando significados diferentes do seu ciclo inicial que envolve produção, uso
e manutenção.
O processo de musealização é um ato de transcendência, apesar desses
procedimentos não estarem, necessariamente, sendo realizados em um museu, uma vez que
entendemos que a museologia teórica permite uma compreensão da ampliação das práticas de
musealização fora da instituição museu. Esse processo permite que esses objetos estejam
inseridos em uma dinâmica cultural e de produção de conhecimento, haja vista que a
musealização nos oferece novos olhares ou múltiplas possibilidades acerca do material que
está sob guarda de instituições de caráter museológico. Nesse sentido, a musealização envolve
ações da Museologia, mais especificamente, denominada por museografia, que é a sua parte
aplicada, a qual possibilita uma comunicação entre sujeitos e objetos a partir do ato que
envolve investigação, reflexão e releitura dos acervos museais.
De acordo com Marília Xavier Cury “A musealização, então, se inicia na valorização
seletiva, mas continua no conjunto de ações que visa à transformação do objeto em
documento e sua comunicação [...] (CURY, 2005, p. 25) ”, ou seja, em outras palavras a
musealização é um processo que tem como efeito a transformação do objeto em documento.
Portanto, podemos concluir que a musealização através das suas ações de
preservação e produção de conhecimento é a valorização do objeto que se dá em diferentes
momentos do processo, indo desde a seleção e comunicação que completa o processo de
musealização por meio de exposição, publicações, ações educativas, dentre outras. Logo
podemos observar que a musealização não é apenas uma mudança de nomenclatura do objeto
comum para objeto documento, mas todo o processo de transformação e ressignificação desse
objeto através das ações que garantem a preservação e a extração de informações que serão
tratadas e analisadas pela documentação de acervos museológicos.
Quando esses objetos passam pelo processo de musealização são inseridos em um
novo contexto, ganhando novos significados, como portadores de informação e testemunhos
de uma determinada cultura e sociedade, devendo ser salvaguardados, pesquisados e
difundidos.
42
Segundo Benarush (2012) atualmente muito se é produzido e muito se é usado, mas
apenas uma parte será selecionada, portanto, não é exagero dizer segundo a autora que a
maioria dos têxteis encontrados em coleções particulares e museológicas são os excepcionais,
os quais, pertenceram na maioria das vezes à elite, pois as roupas comuns do cotidiano,
raramente, sobrevivem a seu usuário. Assim, conforme Benarush o que se leva em conta
como objeto representativo do hoje para a moda contemporânea, é a influência que a roupa
pode ter, principalmente entre seus próprios criadores, pois esta carrega em si a materialização
criativa e as representações imagéticas dos estilistas que movimentam as mudanças da moda.
Documentação Museológica
A Documentação é compreendida como uma segmentação da Ciência da Informação,
relacionada a uma ação exercida sobre documentos, bem como nas suas funções e análises
(SMIT, 2008, p. 11). A Documentação enquanto disciplina fundada no final do século XIX,
por Paul Otlet e Henri La Fontaine, foi estabelecida no início do século XX na Europa, com o
intuito de tratar as informações de forma mais detalhada, bem como a sua organização e
disseminação (MONTEIRO, 2014, p. 20; SMIT, 2008, p.15). De acordo com Smit (2008)
para Paul Otlet, a Documentação é um processo que se ocupa em selecionar, coletar e tratar as
informações referentes aos documentos buscando desenvolver uma melhor organização e
disseminação das informações. Dessa forma, o processo de Documentação envolve métodos
específicos destinados às áreas do conhecimento que trabalham com suporte de informação.
A Arquivologia, a Biblioteconomia e a Museologia são áreas do conhecimento que
promovem a gestão desses suportes da produção intelectual do ser humano, as quais possuem
uma abordagem complementar por parte de um todo da Documentação concebida por Paul
Otlet e Henri La Fonteine (FONTOURA, 2012, p.91). Entretanto, é importante destacar que
segundo Eloisa Barbuy (2008) não podemos considerar a Museologia como uma Ciência da
Informação, haja vista que seus objetivos são distintos.
A Museologia de acordo com Perter Van Mensch (1983) “é definida como um
conjunto de teorias e práticas envolvendo um cuidado e uso da herança cultural e natural”. Ou
seja, é entendido que a Museologia aborda na sua totalidade o material e o imaterial,
43
sobretudo objetos tridimensionais de caráter cultural e educativo. A partir disso, entendemos
que a Museologia e sua relação com a Ciência da Informação deve ser feita em torno das
ideias de documento como portador de informação (BARBUY, 2008, p. 33). Portanto, na
Museologia, a parte que se dedica à preservação e salvaguarda de bens patrimoniais é a
Documentação Museológica. (CERÁVOLO, 2012).
A Documentação Museológica, segundo Padilha (2014) é o registro de toda a
informação referente ao acervo museológico, sendo importante salientar que a documentação
museológica é dividida em dois aspectos: a documentação das práticas administrativas do
museu, que envolve toda a documentação produzida para legitimar as práticas desenvolvidas
pela instituição, ou seja, é a parte relacionada à gestão do acervo; e a segunda é a
documentação de acervos que envolve a produção de dados e o tratamento da informação
extraída de cada objeto.
Assim, sobre o processo de documentação de acervos a definição para Helena Dodd
Ferrez é apresentada da seguinte forma:
44
A documentação de acervos museológicos como um sistema de recuperação
de informação capaz de transformar acervos em fonte de pesquisa cientifica
e/ou em agentes de transmissão de conhecimento que exige uma aplicação
de conceitos e técnicas próprias, além de algumas convenções visando a
padronização de conteúdos e linguagens (CÂNDIDO, 2006, p.34)
45
A noção de documento para a Museologia segundo Ferrez (1991) é todo e quaisquer
objetos produzidos pelo homem e, deste modo, esses objetos são em potencial portadores de
informações intrínsecas (análise das suas propriedades físicas, tais como: forma, cor, material,
técnica e tamanho) e informações extrínsecas (informações obtidas por outras fontes com o
intuito de identificar o contexto do objeto e as suas relações de significado), e essas
informações precisam ser identificadas pela documentação museológica. Com isso, o objeto
ao ser inserido no âmbito museológico, perde sua função primária e passa por uma
ressignificação, inferindo-lhe status de documento, devido a sua capacidade de expressar o
conhecimento humano (MONTEIRO, 2014, p.34).
O processo de documentação de acervos museológicos consiste na “seleção,
pesquisa, interpretação, organização, armazenamento, disseminação e a disponibilização da
informação” (PADILHA, 2014, p. 35). A partir disso, podemos observar que a documentação
de acervos se inicia com a aquisição e pesquisa do objeto, dessa forma, nota-se que desde o
processo de seleção o objeto perde e ganha informação, por isso Padilha evidencia a
importância do registro que deve se iniciar desde a aquisição do objeto no acervo.
Nesta perspectiva, Camargo-Moro (1986) explica que há uma série de pré-requisitos
para a aquisição do acervo, tais como, uma documentação prévia para comprovar a veracidade
da origem e procedência das peças, sendo importante para todas as formas de aquisição, tais
como, compra, legado, coleta, empréstimo, permuta e doação. Além disso, Camargo-Moro
enfatiza que nos procedimentos de aquisição, devem ser sistematizados através da numeração,
possibilitando a identificação do objeto e o registro fotográfico de todo momento do processo
de aquisição para evitar perda de informações e o acúmulo de peças sem registro (SANTOS
2000. pg.54).
Após a incorporação do objeto ao acervo, Padilha (2014) ratifica que é
imprescindível um arrolamento. Este instrumento documental consiste em uma lista numerada
com informações básicas dos objetos e uma numeração e marcação de caráter provisório,
dessa forma é recomendada a utilização de etiquetas em papel neutro com a numeração
temporária anexada em cada objeto por um barbante ou fio de algodão cru e sem goma, haja
vista que a numeração de registro e a marcação permanente ou semipermanente, devem ser
46
cuidadosamente pensadas antes de serem aplicadas no objeto e no que diz respeito aos
materiais utilizados e ao local onde a numeração é grafada. Portanto, percebemos que o
arrolamento é fundamental para o conhecimento geral do acervo, pois obtém-se uma noção da
quantidade total de peças e uma prévia classificação do acervo.
47
III Acessórios 239
IV Acervo documental 284
V Aviamentos 117
Sabendo que este acervo trabalhado na Seção Moda é bastante diverso, tanto na
forma quanto na função, foi desenvolvido um modelo de ficha de arrolamento para a
quantificação do acervo. Essa ficha é composta por seis campos: número de ordem,
numeração provisória, objeto, estado de conservação, descrição e observação, sendo que no
modelo de ficha trabalhado no acervo de vestuário, foi inserido o campo “Título”, o qual foi
preenchido somente quando a peça é acompanhada com um Tag20 com as informações do
desfile e sua respectiva coleção e o nome intitulado por André Lima, sem essa informação é
inserido neste campo a indicação “SR” = sem referência, indicando que a peça não possui
título ou este ainda não foi identificado. Além disso, com a tag é possível identificar também
a coleção a qual a roupa desfilou, o tamanho, as cores utilizadas e o tipo de tecido que
compõem a peça, como pode ser visto na imagem abaixo.
Fonte: Projeto Ações de curadoria de acervo na Seção Moda na Coleção Amazoniana de Arte da UFPA.
20
Tags são etiquetas com informações referentes à coleção e ano, título da peça, o nome do estilista e a sua
marca (grifo nosso).
48
A numeração provisória estabelecida para o arrolamento foi utilizada a codificação
alfanumérica dividida em quatro partes “RTM.AL. I.01” tais siglas é referente à Reserva
Técnica de Museologia, “AL” compreende o acervo do André Lima, “I” número em
algarismo romano que corresponde o grupo do acervo de vestuário e o número sequencial dos
objetos, como observado na imagem abaixo. Assim, é importante salientar que em caso de
desdobramento é acrescentado ao final do número uma letra minúscula.
Fonte: Projeto Ações de curadoria de acervo na Seção Moda na Coleção Amazoniana de Arte da UFPA.
49
preenchimento, o qual segundo Camargo-Moro (1986) é um elemento de instrução
convencionado para cada um dos campos da ficha. Esse modelo de ficha de arrolamento mais
detalhada permitiu o reconhecimento geral do acervo, tanto da quantificação do acervo quanto
a avaliação do estado de conservação. A partir disso, foi possível sistematizar as informações
referentes ao acervo de vestuário estabelecendo um plano de classificação do mesmo, com o
intuito de desenvolver um vocabulário controlado.
Ficha catalográfica
Segundo Camargo-Moro (1986) para o preenchimento da ficha catalográfica é
necessária a exatidão da informação, por isso desenvolver um vocabulário controlado é
extremamente importante para uma padronização dos termos. Deste modo, através da
listagem do acervo, foi possível ter acesso a informações de forma mais prática e rápida.
Logo, a classificação das peças foi realizada conforme Thesaurus para acervos museológico,
mas para a definição dos termos foi utilizado a publicação “Termos básicos para a
catalogação de vestuário” do ICOM (2014), pois o acervo em questão, é formado por objetos
de moda, no qual o Thesaurus não foi suficiente para definir todas as terminologias para o
preenchimento da ficha catalográfica.
De acordo com Ferrez e Bianchini (1987) a classificação do objeto se constitui em
um dos passos metodológicos mais importantes na construção de terminologia referente ao
acervo. Assim, a classificação do acervo de vestuário de acordo com Thesaurus, tem a sua
Classificação como “Objeto Pessoal” e sua subclassificação “Peça de Indumentária”
conforme a tabela abaixo.
50
sutiã, estola, xale, body e biquíni.
51
possui terminologias específicas, mas para este trabalho, os termos definidos foram no seu
âmbito geral buscar a organização e o agrupamento do acervo em categorias iguais.
Foram realizados os registros fotográficos de cada um dos objetos destes, os quais
contaram com as peças vestidas em um manequim, assim foi possível otimizar a identificação
e a definição dos termos gerais e específicos das peças.
Deste modo, foi criado um banco de dados com informações intrínsecas dos objetos,
contendo a ficha do arrolamento, com informações referentes à numeração, termo, título,
avaliação e um breve diagnóstico da conservação das peças, além do seu registro fotográfico,
os quais são importantes para o preenchimento da ficha catalográfica.
Portanto, foram definidos os campos integrantes básicos da ficha catalográfica, tais
como os campos; de numeração, dos termos, origem, procedência, datação, material, técnica,
autoria e imagem. Para os campos integrantes das análises do objeto, foram pensados com o
intuito de organizar e sistematizar as informações provenientes de pesquisa sobre cada um dos
objetos, favorecendo a otimização e eficiência para a recuperação de informação, assim os
campos definidos são referentes ao histórico, publicações e características iconográficas e
estilistas, seguido de um campo de referências para o preenchimento da ficha. Esse modelo de
ficha busca manipular o maior número de categorias de informações referentes às peças,
garantindo assim o maior acesso e uso das informações referentes aos objetos.
Considerações finais
Portanto, concluímos que esses procedimentos da documentação de acervos
museológicos são etapas da musealização que busca a salvaguarda desse acervo, haja vista
que a documentação é uma prática fundamental para a produção, organização e sistematização
de informação referente aos objetos de qualquer coleção museológica.
Sabendo que o acervo da Seção Moda chegou no Laboratório de
Documentação/Conservação do curso de Museologia da UFPA, sem nenhuma identificação
das peças, a qual foi realizada por meio do arrolamento, a identificação dos termos gerais e a
quantificação das peças existentes no acervo. Em seguida, foi definida a classificação e a
subclassificação dos objetos de vestuário, para o desenvolvimento de uma divisão no acervo
da Seção Moda por meio da classificação conforme os critérios do “Thesaurus para acervos
52
museológicos”. Após essa etapa, foi pensado nos metadados específicos para as necessidades
do acervo em questão com vistas a criação da ficha catalográfica. Tudo isto, buscou através
desses instrumentos documentais, a melhor organização, sistematização e recuperação de
informações de cada objeto desse acervo.
Pois, considerando o caráter patrimonial do acervo André Lima, os procedimentos
realizados neste acervo, visam à preservação das peças para conhecimento das futuras
gerações, haja vista que este acervo é um importante registro da moda brasileira do século
XXI, e permite refletir aspectos da moda contemporânea por meio das cores, cortes e
formatos das peças, das estampas dos tecidos, dos acessórios e do acervo de documentos
contemplados na doação recebida, que compõem a o acervo referida seção.
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– São Paulo, 2000.
55
“FUNDAÇÃO DE SÃO VICENTE”, DE BENEDITO CALIXTO: LEITURAS DE
UMA IMAGEM NAS EXPOSIÇÕES DO MUSEU PAULISTA (1900-1939)
Eduardo Polidori*
*Universidade de São Paulo
Resumo: Destinadas aos grandes museus, as representações artísticas de grandes episódios do passado
serviam para comunicar a unidade política nacional por meio da partilha de valores cívicos e morais.
Enquanto prática pedagógica, a instrução pelo olhar enseja a necessidade de problematizar as
condições, agentes e tensões presentes na constituição de acervos públicos, especialmente em relação
aos processos de musealização e permanência no circuito expositi- vo. Apresentaremos as condições
de incorporação da tela Fundação de São Vicente (o.s.t., 385 x 188cm, 1900) ao acervo do Museu
Paulista e hipóteses preliminares para sua exibição nas exposições planejadas por Hermann von
Ihering e Afonso Taunay.
Palavras-chave: Fundação de São Vicente; Museu Paulista; Benedito Calixto; Hermann von Ihering;
Afonso Taunay.
Abstract: Destined to the grand museums, the artistic representations of great episodes from the past
served to communicate the national politics unity by sharing civic and moral values. As a pedagogical
practice, the instruction by the look meets the necessity to discuss the agency conditions and
contemporary tensions in the public’s services constitution, especially related to the musealization
processes and permanency in the exhibition circuit. The incorporation conditions of the Fundação de
São Vicente (o.c.c., 385x188cm, 1900) to the Museu Paulista’s collection will be shown, as weel the
preliminary hypothesis to it’s planned exhibition by Hermann von Ihering and Afonso Taunay.
Key-words: Fundação de São Vicente; Museu Paulista; Benedito Calixto; Hermann von Ihering;
Afonso Taunay.
56
Encomendada ao pintor Benedito Calixto, a tela “Fundação de São Vicente” foi
exibida pela primeira vez na comemoração vicentina organizada pela Sociedade
Commemoradora do IV Centenário da Descoberta do Brasil, em 1900. Bastante apreciada na
época, a descrição de seu conteúdo visual apareceu em jornais de grande circulação nas
cidades paulistas.21 Com o fim da exposição, em 13 de maio, a tela voltou a ser noticiada
apenas em novembro, quando foi doada ao governo do Estado de São Paulo como
agradecimento pelas verbas destinadas à organização das festividades.22
Na ocasião, Calixto foi recebido por Hermann von Ihering, diretor do Museu Paulista.
Era 10 de novembro, segundo noticiaram o Commercio e O Estado de São Paulo.23 É
provável que tenha acompanhado o transporte e o processo de desembalagem e instalação da
obra, ou representado a Sociedade Commemoradora como diretor das programações do IV
Centenário. Dois dias depois, von Ihering escreveu a Bento Pereira Bueno, então titular da
Secretaria do Interior, informando a alocação da tela na sala B-11, situada na ala oeste do
Monumento do Ipiranga, por vontade do próprio pintor, e cobrando um documento que
atestasse oficialmente sua doação ao governo do Estado.24
O secretário atendeu a solicitação cerca de um mês depois, e remeteu a von Ihering um
ofício timbrado e assinado por Gregório I. de Freitas, presidente da Câmara Municipal de São
Vicente e da Sociedade Commemoradora.25 No relatório de atividades referentes a 1899 e
1900, a tela já foi mencionada entre as novidades do acervo do Museu.26
21
E.g., O Estado de São Paulo, Correio Paulistano, Cidade de Santos e o Vicentino.
22
Correspondências. Dossiê do pagamento da tela Fundação de São Vicente. Acervo Benedito Calixto, Fundo
IHGSP/APESP.
23
O Commercio de S. Paulo e O Estado de S. Paulo, 11 de novembro de 1900.
24
Ofício de Hermann von Ihering a Secretaria do Interior, 12/11/1900. Fundo Museu Paulista, Pasta 74. O
documento aparece registrado com o número 91 no Livro de Registros de Protocolos Enviados do Museu, p. 30-
31.
25
“Com a mais sabida consideração tenho a honra de levar ao conhecimento de V. Exa. Que o Exmo. Dr. José
Cesario da Silva Bastos foi auctorizado pela Directoria desta Sociedade a fazer entrega ao Exmo. Governo
Estadoal do vosso Estado, da grandiosa tela histórica representando a Fundação da Capitania de São Vicente,
cellula mãe não só do Estado de S. Paulo, como da Patria Brasileira, a qual tela foi pintada pelo artista nacional
B. Calixto por encommenda desta Sociedade para commemorar-se o Quarto Centenario do Descobrimento do
Brasil. Saúde e Fraternidade. Ilmo. Exmo. Snr. Dr. Francisco de Paula Rodrigues Alves. Digmo. Presidente do
Estado de S. Paulo. O Presidente, Gregorio I. de Freitas.” IN: Correspondências. Dossiê do pagamento da tela
Fundação de São Vicente. Acervo Benedito Calixto, Fundo IHGSP/APESP.
26
IHERING, H. von. O Museu Paulista em 1899 e 1900. IN: Revista do Museu Paulista, v. 05, 1902, p. 03.
57
Calixto nunca recebeu os dez contos de réis acordados com a Sociedade Comemora-
dora como pagamento pela pintura. Isso fez com que protocolasse uma petição junto à
Câmara dos Deputados, requerendo alguma indenização ou a devolução do quadro. Em
dezembro de 1905, a Comissão de Fazenda destinou cinco contos de réis ao pintor durante as
discussões de elaboração da lei sobre o orçamento para 1906.27
A despeito desse episódio, a Fundação de São Vicente permaneceu em exibição na
sala B-11 durante todo o período em que Hermann von Ihering ocupou a direção do Museu.
Seu sucessor, o advogado Armando Prado, manteve a tela no mesmo lugar durante os seis
meses que dirigiu a instituição. Foi o engenheiro Afonso Taunay, no entanto, quem promoveu
rearranjos significativos nas salas de exposição e conferiu outras camadas de sentidos à obra
de Calixto.
Reconstituir o trânsito do objeto nas exposições do Museu é um exercício necessário à
compreensão da historicidade dos sentidos curatoriais que lhes foram atribuídos,
relacionando-o aos demais conjuntos de objetos em exibição e, sobretudo, aos significados
agenciados em outras esferas da vida social. Com isso, apresentaremos hipóteses sobre a
alocação da tela nas exposições da sala B-11, destinada por von Ihering às coleções de
mineralogia e paleontologia e da sala A-10, primeira exposição de História organizada por
Afonso Taunay, voltada à documentação cartográfica do período colonial.
27
Dossiê do pagamento da tela Fundação de São Vicente. Acervo Benedito Calixto, Fundo IHGSP/APESP.
58
A decisão em atribuir ao Monumento do Ipiranga a função de sediar um museu estava
diretamente atrelada aos interesses de reforma cultural pleiteadas pelo governo da República,
onde a instrução popular ocupava lugar de destaque entre as preocupações mais imediatas.28
A primeira encomenda de um edifício público, já em 1890, foi destinada à instalação da
Escola Normal, precisamente na Praça da República. Fica evidenciada, portanto, a relação
visceral entre a monumentalidade arquitetônica e o projeto republicano de instrução popular
por meio das ciências naturais e do elogio à história pátria protagonizada pelos paulistas.29
A simbiose entre a semântica celebrativa e a modernidade científica faziam do Museu
Paulista, nas palavras de Ana Maria de Alencar Alves, um “monumento à civilização”.30 Na
retórica republicana finissecular, cumpria inserir São Paulo no rol das civilizações modernas,
tendo na arquitetura urbana e nos projetos de instrução popular as fórmulas para o progresso
desejável e para o espelhamento com as capitais europeias.
A criação do Museu Paulista foi regulamentada pelo decreto nº 249 de 26 de julho de
1894. Sua finalidade seria a produção e a difusão do conhecimento sobre a história natural da
América do Sul, do Brasil e de São Paulo, tendo a zoologia e a “história natural e cultural do
homem” como interesses principais. Além das coleções de história natural, haveria também a
coleção de História Nacional e de numismática, além da Galeria Artística, a coleção de obras
de arte adquiridas pelo Estado de São Paulo e alocadas no Monumento do Ipiranga.
Pedro Nery notou que a legislação dissociou os espaços do edifício, cujos usos seriam
divididos entre o Museu Paulista e o Panteão Histórico comemorativo, bem como a diferença
entre a coleção de pinturas, administrada diretamente pelo Estado, e as coleções do Museu,
cujas decisões sobre novas aquisições caberiam exclusivamente a von Ihering. A composição
28
ALVES, Ana Maria do A. O Ipiranga apropriado: ciência, política e poder. O Museu Paulista 1893-1922.
São Paulo: Humanitas, EDUSP, 2001. p. 64, n. 66.
29
A criação do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (1894) é um sintoma desse processo: a agremiação
reunia políticos, intelectuais e burocratas, em sua maioria egressos da Faculdade de Direito de São Paulo e
filiados ao Partido Republicano Paulista. As publicações nas Revistas anuais demonstram a inclinação à ênfase
nos episódios da história nacional protagonizados pelos paulistas.
30
ALVES, op. cit., p. 79.
59
da Galeria Artística, assim, teria se dado de maneira independente. Entre 1894 e 1904, trinta
obras de arte foram adquiridas e alocadas nas dependências do edifício-monumento.31
Conviria mencionar a preocupação de von Ihering sobre a falta de espaço no edifício
para instalar as novas pinturas, explicitada no relatório referente aos anos de 1901 e 1902. 32 A
solução oferecida pelo diretor seria construir um pavilhão próximo ao Monumento, ideia que
nunca foi levada a cabo.
Von Ihering era leitor e correspondente do ictiólogo norte-americano George Brown-
Goode, do Smithsonian Institute, autor de The Principles of Museum Administration. A obra
se tornou referência em fins do século XIX e suas diretrizes previam a possibilidade de uma
coleção ser provisoriamente alocada em um museu provincial, sendo posteriormente
deslocada para uma instituição especializada.33 Nesse sentido, a transferência das pinturas que
compunham a Galeria Artística do Estado de São Paulo foram transferidas em 1905 para a
pinacoteca do Liceu de Artes e Ofícios corrobora a visão do diretor sobre a necessidade de
realocação das pinturas.
No relatório referente aos anos de 1903 a 1905, von Ihering atesta claramente que os
quadros transferidos foram aqueles pertencentes à Galeria Artística.34 Há de se considerar que
as obras de arte remanescentes no edifício-monumento, entre elas a Fundação de São Vicente,
portanto, pertencessem à coleção de história nacional do Museu Paulista, e deveriam compor
o panteão comemorativo. Retomando Brown-Goode, uma de suas proposições era a de que
toda cidade deveria ter uma coleção histórica que representasse seus eventos memoráveis e
sobre os homens que deles participaram.35
Isso explicaria a transferência das telas “Partida da Monção” (o.s.t., 390 x 640cm,
1897), de José Ferraz de Almeida Júnior, e “Primeiro Desembarque de Pedro Álvares Cabral
31
NERY, P. Arte, pátria e civilização. A formação dos acervos artísticos do Museu Paulista e da
Pinacoteca do Estado de São Paulo. (1893-1912). Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação
Interunidades em Museologia da Universidade de São Paulo, 2015.
32
IHERING, H. von. O Museu Paulista em 1901 e 1902. IN: Revista do Museu Paulista, v. 06, 1904, p. 06
33
BROWN-GOODE, G. The Principles of Museum Administration. York: Coultas & Volans Exchange
Printing Works, 1895. p. 17
34
IHERING, R. von. O Museu Paulista nos annos de 1903 a 1905. IN: Revista do Museu Paulista, v. 07, 1907.
p. 14-15.
35
BROWN-GOODE, op. cit., p. 34.
60
em Porto Seguro” (o.s.t., 190 x 330cm, 1900), de Oscar P. da Silva, pinturas históricas
adquiridas pelo governo estadual e incorporadas à Galeria respectivamente nos anos de 1901 e
de 1902, mas cujas temáticas não reportavam a participação dos paulistas nas origens da
nação brasileira. A permanência da “Fundação de São Vicente” se explicaria, assim, pelo
potencial em celebrar o protagonismo paulista na ocupação do território brasileiro durante o
período colonial; já a tela “Independência ou Morte!” (o.s.t., 415 x 760cm, 1888), de Pedro
Américo, celebraria a nação independente, também a partir de São Paulo. Além destas cenas
episódicas, os retratos de personagens históricas também permaneceram, segundo informa o
diretor no mesmo relatório de 1903 e 1905 e conforme estava previsto para a coleção de
História Nacional nos artigos 3º e 4º do decreto nº 249.36
O primeiro guia pelas exposições do Museu Paulista surgiu em 1907 e, por sua
narrativa descritiva, consiste na principal fonte documental sobre o sistema de organização e
exibição de objetos planejada por von Ihering. Até o momento em que foi publicado, a
localização dos objetos se tornou conhecida apenas por meio de referências ocasionais. O
Guia nos informa, por exemplo, que “Independência ou Morte!” era o único objeto em
exposição no Salão de Honra. Já os retratos históricos estavam alocados na sala B-8 que,
conjuntamente à sala B- 9, eram destinadas à exibição das coleções de História Nacional.37
As três salas dedicadas à História Nacional eram as únicas situadas no corpo central
do edifício, muito embora o acesso fosse diferenciado: enquanto o Salão de Honra poderia ser
alcançado pela escadaria principal, o acesso às outras era possível apenas pela escadaria
situada atrás do saguão principal, o que despertou críticas ao suposto desprezo do diretor pelas
coleções de história. É provável, no entanto, que tenham sido alocadas ali precisamente pelo
seu potencial em atrair o fluxo de visitantes para um espaço particular do edifício, conforme
sugerem as diretrizes oferecidas por George Brown-Goode.38
Evidenciamos, portanto, que as salas situadas no corpo central do edifício-monumento
equivaleriam ao espaço destinado ao panteão comemorativo e eram efetivamente ocupadas
pelas coleções de História Nacional. Fábio Rodrigo de Moraes demonstrou, além disso, que
36
IHERING, R., op. cit., O Museu Paulista nos annos de 1903 a 1905, p. 14-15.
37
Guia pelas collecções do Museu Paulista, op. cit., 1907, p. 99.
38
BROWN-GOODE, op. cit., p. 34
61
von Ihering dispunha de critérios claros para a recusa ou aquisição de novos objetos, ainda
que desse maior atenção às coleções de história natural, sendo esta a especialização principal
do Museu.39
As demais salas se dividiam em exibir as coleções de zoologia (B-1 a B-6, B-10, B-14
e B-15), mineralogia e paleontologia (B-11), numismática (B-13) e antropologia e etnografia
indígena brasileira (B-12) e dos índios Carajá (B-16). Pode-se verificar certa descontinuidade
na exposição em função da exibição da coleção de mamíferos nas salas B-14 e B-15, o que se
explicaria, possivelmente, por serem mais espaçosas que as demais. Após 1907, conforme já
explicitamos, os retratos históricos permaneceram na sala B-8, enquanto “Independência ou
Morte!” passou a ser o único objeto exposto no Salão de Honra.40
A localização de uma obra de arte na sala B-11, a “Fundação de São Vicente”, ensejou
críticas à Hermann von Ihering por parte de Afonso Taunay, assim que foi comissionado para
dirigir o Museu Paulista, em 1917.41 As impressões negativas de Taunay foram recebidas pela
historiografia recente, afirmando ser incompreensível a coexistência entre a pintura histórica e
as coleções de rochas e fósseis.42 Nesse sentido, apresentaremos uma hipótese que procura
desconstruir a aleatoriedade da relação entre os objetos expostos conjuntamente,
demonstrando a intersecção entre semânticas homólogas.
Retomemos, de início, o fato de Benedito Calixto ter escolhido a sala B-11 para exibir
a “Fundação de São Vicente”, segundo nos informa um ofício de Hermann von Ihering ao
secretário do Interior, Bento Bueno.43 Das pinturas em grande formato recebidas pelo Museu,
a tela de Calixto foi a primeira a ser incorporada à exposição, o que permite descartar a ideia
de não haver outras possibilidades em função de suas dimensões físicas. Mesmo a
39
MORAES, F. R. de. Uma coleção de história em um museu de ciências naturais: o Museu Paulista de
Hermann von Ihering. IN: Anais do Museu Paulista, v. 16, n. 01, p. 208.
40
Guia pelas collecções do Museu Paulista, op. cit., 1907.
41
Relatório de Atividades referente ao ano de 1917. IN: APMP/MP-USP.
42
BREFE, A. C. F. O Museu Paulista: Afonso Taunay e a Memória Nacional (1917-1945). Editora da
UNESP, Museu Paulista da USP, 2003. p. 90, n. 04: “É o caso, por exemplo, da tela Fundação de São Vicente,
de Benedito Calixto, disposta na sala B11, dedicada à mineralogia e à paleontologia. Além de pedras e fósseis,
a tela ainda divide espaço com pequenos quadros representando gêiseres e paisagens de antigas épocas
geológicas (!), como pode ser constatado pela descrição da sala presente no Guia pelas Collecções”.
43
Cf. supra, n. 04.
62
transferência da Galeria Artística não alterou seu local de exibição, que permaneceu o mesmo
até 1917.
O “Guia pelas Collecções do Museu Paulista” de 1907 informa detalhadamente quais
os objetos em exibição em conjunto com a pintura.44 A descrição detalhada das coleções seria
dispensável para nosso propósito. Interessaria notar, isso sim, a correlação semântica
guardada entre a temática fundacional e as coleções de mineralogia e paleontologia, que
remetem à formação física do território e à antiguidade de sua ocupação.
Observemos a definição que o jornal Correio Paulistano, de grande circulação em São
Paulo no início do século XX, confere à “paleontologia”:
44
Guia pelas collecções, 1907, op. cit., p. 102-104.
45
Oficio da Sociedade Commemoradora da Descoberta do Brasil ao Gabinete da Presidência do Estado de São
Paulo, 11/12/1900. Fundo Secretaria do Interior/APESP.
63
concórdia entre as partes. Segundo notou Caleb Faria Alves, o espectador é convidado a olhar
o mar, que se torna uma personagem da composição.46
A descrição do “meio físico”, além disso, remontaria a uma tradição historiográfica
iniciada por Francisco Adolfo de Varnhagen, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
que dedicou o primeiro capítulo de “História Geral do Brasil” à descrição da geografia e da
geologia.47 Essa tradição se replicou em diversos autores ao longo da segunda metade do
século XIX, especialmente em livros de função pedagógica como, por exemplo, “A história
de São Paulo ensinada pela biographia de seus vultos mais notáveis”, de Tancredo do Amaral,
professor da Escola Normal da Praça da República, onde o livro de sua autoria foi adotado.48
O elogio à natureza, demonstra Marcelo da Rocha Wanderley, era um topos retórico
de grande relevância para o discurso ufanista finissecular, fortemente presente entre os grupos
que articularam as comemorações do IV Centenário da Descoberta do Brasil, precisamente
em um momento de grande desconfiança e pessimismo em relação ao regime republicano,
sobretudo em função da crise econômica enfrentada no governo Campos Salles. 49 Assim, a
representação de um litoral exuberante e pacificador converge com o discurso da Sociedade
Commemoradora, cujo desejo era celebrar o protagonismo vicentino no passado nacional.
A cordialidade entre o europeu e o indígena é celebrada assimetricamente em relação
ao processo de ocupação do território paulista, motivado pela expansão da lavoura cafeeira, da
malha ferroviária e da exploração mineral, processo profundamente marcado pela violência na
última década do século XIX. Seja como for, o intercâmbio de sentidos comunicados pela
pintura histórica torna possível que a exposição da sala B-11 fosse dedicada à temática da
origem natural e histórica de São Paulo, à antiguidade de sua ocupação e à primazia paulista
na fundação do território brasileiro. Afinal, como instruía o artigo 2º do decreto nº 249, o
Museu se dedicaria à “história natural e cultural do homem”.
46
ALVES, C. F. Benedito Calixto e a construção do imaginário republicano. Bauru, SP: EDUSC, 2003, p.
216.
47
WANDERLEY, M. da R. Jubileu Nacional: A Comemoração do Quadricentenário do Descobrimento do
Brasil e a Refundação da Identidade Nacional (1900). Dissertação de Mestrado: IFCH/UFRJ, 1998, p. 128.
48
AMARAL, T. A história de São Paulo ensinada pela biographia de seus vultos notáveis. São Paulo: Alves
& Cia., 1895. p. 27-35.
49
WANDERLEY, op. cit., p. 158.
64
O fim da gestão de Hermann von Ihering trouxe mudanças substantivas à exposição da
coleção de História. Já durante o ano de 1917, quando Afonso Taunay assumiu a direção,
duas salas foram inauguradas: a sala A-7, de botânica, e a sala A-10, que expunha mapas,
objetos, cartas, retratos e a “Fundação de São Vicente”. Analisaremos a seguir os novos
sentidos adquiridos pela pintura durante as duas décadas subsequentes à montagem da
exposição. Assinale-se de imediato que não houve uma ruptura brusca no que diz respeito às
coleções de história natural, que, durante as décadas de 1920 e 1930, permaneceram expostas
até sua definitiva transferência. A implementação do projeto de Taunay, no entanto,
ressignificou paulatinamente o papel da História no Museu Paulista, conferindo-lhe grande
poder simbólico na representação discursiva sobre o lugar de São Paulo na formação histórica
do Brasil.
Aberta ao público em 25 de dezembro de 1917, a sala A-10 enunciava as primeiras di-
retrizes de Taunay, cujos compromissos enquanto diretor comissionado foram marcados forte-
mente pelas críticas à leviandade de von Ihering em relação às coleções de História. No
relatório de 1917 ao secretário do Interior, Taunay explicita suas inquietações com a exibição
da tela “Fundação de São Vicente” na sala B-11:
Esse suposto deslocamento fez com que Taunay afirmasse ser a nova exposição uma
“verdadeira necessidade”, “pois nada havia ali que lembrasse as tradições nacionais ou
regionais”.51 Noutros termos, as pinturas comemorativas e a arquitetura monumental haviam
perdi- do a capacidade em veicular o poder simbólico do que deveriam representar.
50
Relatório de Atividades referente ao ano de 1917, p. 15-16. IN: APMP/FMP P5, D33.16 e D.33.17
51
Relatório de Atividades referente ao ano de 1917, p. 16. IN: APMP/FMP P5, D.33.17
65
O planejamento da primeira sala voltada à exposição da cartografia colonial levou
alguns meses, tendo sido alguns detalhes registrados nas “Chronicas do Museu Paulista” do
ano de 1917. Em novembro daquele ano, por exemplo, Taunay deslocou os retratos de
Bartolomeu de Gusmão, do Padre José de Anchieta e de Domingos Jorge Velho, todos da
autoria de Calixto, da sala B-8 para a sala A-10. Foram solicitados envios de inúmeros
documentos e mapas de outras instituições públicas paulistas, brasileiras e do exterior, a fim
de garantir o maior detalhamento possível nas informações oferecidas pela exposição.
Após meses de montagem, o Correio Paulistano noticiava a abertura da nova sala:
66
anterior, que já sinalizava a capitania de São Vicente como o “ponto de partida” da expansão
de todo o território brasileiro. Ao construir unidades territoriais concretas, os mapas seriam,
para Benedict Anderson, um instrumento de legitimação do poder de grande apelo visual no
traçar de um “perfil político-biográfico” historicamente situado da nação.52
É fundamental que se tenha em conta, além disso, o interesse de Taunay pelo
bandeirantismo seiscentista. Muito embora suas publicações surgissem apenas durante os
primeiros anos da década de 1920, as montagens posteriores das demais salas de exposição
voltadas à história permitem compreender o lugar central da “Fundação de São Vicente” para
a narrativa sobre a história da São Paulo quinhentista no Museu Paulista.
A articulação desta centralidade se inicia já na disposição do conjunto de objetos na
sala A-10, conforme Taunay relata ao secretário do Interior: “(...) annexei-lhes [à “Fundação
de São Vicente” e aos retratos históricos] uma collecção de documentos e cartas geográficas
(...)”. Em perspectiva relacional, as personagens retratadas são capazes de tornar os mapas e
documentos expostos veículos eloquentes de acesso ao processo histórico que o diretor queria
comunicar aos espectadores.
Fica evidenciada a liderança paulista na formação do território brasileiro. Novamente,
é privilegiado o discurso pacífico e o “acordo político”, entendendo a fundação como ato de
diplomacia entre as partes. A sala recebeu novos objetos ao longo dos anos. Em 1932, a A-10
era uma exposição significativamente mais rica do que a versão inicial apresentada em 1917.
Seria oneroso proceder a uma investigação qualitativa de cada um dos objetos da exposição. É
mister mencionar, no entanto, a “Carta Geral das Bandeiras Paulistas”, incorporada em 1922.
O objeto chama a atenção precisamente por ser alocado de maneira espelhada à “Fundação de
S. Vicente”, servindo também como ponto de equilíbrio visual e tendo certo domínio sobre o
restante do conjunto. [Cf. FIG. 02 e 03].
O sentido de cellula mater, já orquestrado pela Sociedade Commemoradora na virada
do século XX, é redimensionado e aliado aos episódios seguintes da formação territorial do
Brasil: a ação bandeirante e os tratados diplomáticos firmados durante o século XVIII, XIX e
XX, representado pelo Barão do Rio Branco e a questão acreana. Assim, a “Fundação de São
52
ANDERSON, B. Comunidades Imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São
Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 241.
67
Vicente” recebe uma nova camada semântica que a torna a visualidade do Brasil quinhentista
e da legitimidade de São Paulo em liderar a nação brasileira.
Procuramos demonstrar como a pintura histórica “Fundação de São Vicente” foi
mobilizada pelos dois diretores mais expressivos do Museu Paulista durante a primeira
metade do século XX. Muito embora promova continuidades em função de seu próprio
conteúdo, o sentido relacional adquirido a partir da exibição com outros conjuntos de objetos
ajuda a perceber e a problematizar a historicidade dos artifícios de construção da memória
social veiculadas e legitimadas pelos museus de História e sobre como o “passado” é
constantemente mobilizado enquanto instrumento de poder político e simbólico.
Lista de Imagens
Fundação de São Vicente, de Benedito Calixto, 1900. (o.s.t., 385 x 192cm, 1900). Acervo do Museu Paulista da
Universidade de São Paulo.
68
A Fundação de São Vicente na Sala A-10 em 1937. Acervo do Museu Paulista.
A Carta Geral das Bandeiras Paulistas na sala A-10, em 1937. Acervo do Museu Paulista.
69
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Santos: Fundação Pinacoteca Benedito Calixto, 2002.
THUILLER, J. Le problème des “grands formats”. IN: Revue de l’Art, n. 102, 1993.
71
WANDERLEY, M. da R. Jubileu Nacional: A comemoração do quadricentenário do
Descobrimento do Brasil e a refundação da identidade nacional (1900). Dissertação de
Mestrado. UFRJ, 1997.
72
O MUSEU DO TROPEIRO E A TRAJETÓRIA DE UMA
COLEÇÃO
Resumo: O presente trabalho tem por objetivo apresentar apontamentos sobre a trajetória do Museu
do Tropeiro de Castro-PR e a formação de sua coleção. A instituição foi inaugurada em 1977 e é
mantida pela Prefeitura Municipal de Castro desde a sua fundação. O Museu tem por finalidade
preservar a memória do tropeirismo de muares no Sul do Brasil e suas implicações socioculturais no
município. Os dados e as problemáticas apresentadas neste texto resultam do trabalho desenvolvido
pela autora na instituição. Busca-se através deste texto expor o início de uma pesquisa sobre
patrimônio, cultura material e tropeirismo no Paraná.
Abstract: The present paper aims to present appointements about the trajectory of the "Museu do
Tropeiro" (Tropeiro's Museum), localizated in Castro-PR, and the formation of its collection. The
institution was inaugurated in 1977, and is maintained by the Municipality of Castro since its
foundation. The purpose of the Museum is to preserve a memory of the "tropeirismo" moviment, about
the transfer of the mules in the brazilian's south, and the sociocultural implications of this moviment in
the municipality. The data and problems presented in the text are resulted from the work developed by
the author in that institution. By mean of this text, the autor pretends to iniciate a investigation based
in research on patrimony, material culture and "tropeirismo" in Paraná State
73
Introdução
Colecionar: reunir um conjunto de coisas por gosto ou passatempo; coligir, compilar,
juntar. Assim é a definição do termo em um dicionário brasileiro de língua portuguesa53,
contudo, compreender as subjetividades do ato de colecionar pode se tornar um trabalho
complexo, ademais quando tratamos de uma instituição de esfera pública e não
exclusivamente de um sujeito ou uma realidade privada.
O filósofo e historiador polonês Krzysztof POMIAN define coleção como “qualquer
conjunto de objetos naturais ou artificiais, mantidos temporária ou definitivamente fora do
circuito das atividades econômicas, sujeitos a uma proteção especial num local fechado
preparado para este fim, e expostos ao olhar do público” (POMIAN, 1984, p.53). Esta
definição compreende os museus, as coleções particulares, as bibliotecas e também os
arquivos. O autor expõe o paradoxo que há no ato de colecionar no que diz respeito ao valor e
a utilidade dos objetos “por uma lado, as peças de coleção são mantidas temporária ou
definitivamente fora do circuito das atividades económicas mas, por outro lado, são submetias
a uma proteção especial, sendo por isso considerados objetos precisos” (POMIAN, 1984,
p.53-54).
Refletindo sobre as origens das coleções podemos destacar os objetos conquistados
através das guerras, os tesouros dos príncipes, coleções que indicavam ascensão social e
também os conjuntos de objetos sagrados, como as relíquias por exemplo. Algumas dessas
coleções “serviam como estimulo à curiosidade e à pesquisa, e outras visavam unicamente ao
estímulo emocional e estética” (HORTA, 1987, p.160). Portanto, esta prática de reunião de
objetos, ou então, a história dos museus, pode ser dividida em três momentos: primeiro no
período da Antiguidade Clássica, quando eram reunidas coleções de arte em templos gregos e
romanos; um segundo momento seria o período do Renascimento, no qual foram criados os
chamados gabinetes de curiosidades, com coleções de objetos raros ou peculiares, bem como
as coleções dos príncipes; já o terceiro momento na história destes espaços distingue-se a
partir dos ideais do Iluminismo, quando os museus europeus foram se modificando,
53
MICHAELIS: moderno dicionário da língua portuguesa. São Paulo: Companhia Melhoramentos, 1998.
74
transformando-se em locais de pesquisas e em instituições públicas (CARNEIRO,2001, p.13-
15).
É com o racionalismo iluminista que os museus se estabelecem como locais de
pesquisa e como instituições públicas. Os burgueses começam a almejar o acesso à arte e à
ciência dando “origem ao museu moderno, com suas funções de pesquisa, educação,
valorização do racionalismo, método e classificação” (POULOT, 2013, p.63).
Após o chamado século das luzes, temos a “Era dos Museus” - o século XIX.
Verificando as datas de criação dos museus mais tradicionais, é possível perceber que o
nacionalismo do século XIX contribuiu expressivamente na ampliação dos museus, com a
criação de novas instituições para além do continente europeu, bem como o fortalecimento
dos museus já existentes. No Brasil o nacionalismo é um forte aliado das instituições
museológicas54, e é através deste mesmo nacionalismo, retomado no século XX, que se tem
uma nova perspectiva aos espaços museológicos e ao patrimônio histórico e cultural
brasileiro. Segundo Maria de Lourdes Horta as coleções brasileiras foram “institucionalizadas
nos ‘grandes museus nacionais’ durante a década de 30, época de perfil político-nacionalista
exacerbado e que coincide cm a criação do SPHAN55” (HORTA, 1987, p. 160).
O antropólogo José Reginaldo Santos Gonçalves, na obra Antropologia dos objetos:
coleções, museus e patrimônios, sugere que este processo de condução dos objetos materiais
do cotidiano para os museus implica uma categoria de pensamento: o colecionamento. “Quem
coleciona o que, ondem segundo quais valores e com quais objetivos?” (GONÇALVES, 2005,
p.24). O autor lembra que “toda e qualquer coleção pressupõe situações sociais, relações
sociais de produção, circulação e consumo de objetos (GONÇALVES, 2005, p.24). Deste
modo, acreditamos que é preciso historicizar e problematizar as práticas da curadoria que
estão na origem de coleções privadas ou institucionais. É preciso compreender que “os
54
Em 1818, 10 anos após da vinda da família real, cria-se o Museu Real com o objetivo de propagar os
conhecimentos das ciências naturais no Reino do Brasil. Ainda no século XIX são criados espaços como: Museu
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838), Museu do Exército (1864), Museu da Marinha (1868),
Museu Paraense Emilio Goelgi (1871), Museu Paranaense (1876) e o Museu Paulista (1895).
55
SPHAN, criado pelo decreto-lei n° 25 de 30 de novembro de 1937, hoje IPHAN – Instituto do Patrimônio
Histórico Artístico Nacional é então responsável pela identificação, documentação e promoção do patrimônio
cultural brasileiro. O órgão deveria organizar, fiscalizar e proteger os bens móveis e imóveis considerados
exemplares de notável valor histórico, artístico, arqueológico ou bibliográfico
75
processos sociais e culturais que levam à escolha desses objetos escapam em grande parte às
nossas ações conscientes e propositais de natureza política e ideológica” (GONÇALVES,
2005, p.29), ou seja, conhecer este processo de reclassificação que eleva os objetos do
cotidiano à condição de patrimônios culturais.
76
entre o final da década de 1920 até meados da década de 1950, destacamos o período
ininterrupto de mandato entres os anos de 1936 a 1945.
Durante este período o interventor do Paraná era o senhor Manoel Ferreira Ribas.
Segundo o sociólogo Ricardo Oliveira, Manuel Ribas pertencia a uma tradicional família da
classe dominante no estado e estava vinculado56 também a classe dominante dos Campos
Gerais57 do Paraná, “além disso, era uma importante liderança dos trabalhadores ferroviários,
este conjunto de fatores ajudou a explicar a sua continuidade à frente do poder executivo
paranaense de 1932 até 1945.” (OLIVEIRA, 2004, p.19). Oliveira analisa ao longo de suas
obras a influência e a configuração do poder político no Paraná a partir das relações
familiares. Estas informações podem auxiliar também na compreensão dos fatores que dão
origem ao Museu do Tropeiro. Manoel Ribas no governo do Paraná e o pai de Judith na
administração de Castro.
56
Casou-se com Zelinda Cândida da Fonseca em Castro-PR.
57
Geograficamente Reinhard Maack (1991) define Campos Gerais como uma região de aproximadamente
19.060 km²: “utilizados predominantemente para a criação intensiva de gado bovino, entende-se desde a
fronteira com o Estado de Santa Catarina até o limite com o Estado de São Paulo” (p.256).
77
“Eu me lembro que o Dr. Newton Carneiro, grande historiador paranaense,
foi quem me despertou essa vontade de conhecer a história de Castro.
Porque, até então, eu não dava muita importância, porque eu não ouvia falar
da história de Castro. Quando o Dr. Newton foi comigo até a casa aonde nós
instalaríamos o Museu de Castro, ele disse: Olha, Judith, me desculpe eu dar
um palpite assim, a minha arrogância, mas eu acho que aqui, nós estaríamos
fazendo um Museu do Tropeiro, que é a origem de Castro. Então, eu pensei e
respondi “Dr. Newton, o senhor está aqui para me orientar, pois eu pretendia
fazer um Museu, porque estou vendo que todas as coisas de Castro, os
costumes de Castro estão se evaporando. (MELLO, 2013, p.25)
58
Obras publicadas pelo pesquisador: A Louça da Cia das Índias no Brasil, São Paulo, Ed. Revista dos
Tribunais, 1943. Iconografia Paranaense, Curitiba, Impressora Paranaense, 1950. As Artes e o Artesanato do
Paraná. Curitiba, Ed. Requião, 1954. O Mate nas Artes Luso-Brasileiras, 1965. Em Defesa dos Chamados
Bens Culturais Brasileiros, Brasília, Impressora Nacional, 1966. Quarenta Aquarelas Inéditas de Debret,
São Paulo, 1970. O Paraná e a Caricatura, Col. Memória Cultural do Paraná, n.º 1, Curitiba, Grafipar,
1975. Chichorro e Seus Calungas, 1975. As Artes Gráficas em Curitiba, FCC, Curitiba, Edições Piol,
1976. A Fábrica de Colombo e a Cerâmica Artística no Brasil, Curitiba, BADEP, 1979. Rugendas no Brasil,
Rio de Janeiro, Livraria Kosmos Ed., 1979. A Arte Paranaense Antes de Andersen, Curitiba, Ed. Casa
Romário Martins, 1980.
78
Este artigo indica também que Newton possuía alguns objetos relacionados ao tema
tropeirismo, inclusive ele doou peças de sua coleção para o Museu recém criado. Continuando
o depoimento, Judith revela seu diálogo com o historiador e como deu início a coleção:
A gente não ouve mais as histórias como eu ouvia de minha avó, e como o
povo vivia diferente. Estou vendo um descaso pela nossa história, nossa
origem. Então, eu fico muito grata que o senhor me dê essa orientação. Eu só
peço uma coisa: que o senhor me ajude a fazer esse museu. Ele falou: “Ah!
Mas eu estou muito satisfeito (...) porque Castro é a cidade depositária de
toda a história do Paraná”. Eu fui vendo que toda aquela história que meu pai
contava, do caboclo de Castro, estava dentro daquilo que eu procurava (...)
em dois meses eu pus todo aquele acervo do museu lá dentro, graças às
amizades do meu pai. No interior do município, aonde eu chegava, eles
diziam: “não posso ir, mas a senhora pode levar o que achar que pode servir
para o seu museu. (MELLO, 2013, p. 26)
Esta história é portanto a história de uma estrutura agrária, não somente composta por
grandes latifúndios, mas também com pequenas propriedades, é o que a historiografia
tradicional paranaense denominou de “sociedade campeira”. A economia era baseada na
subsistência e nas atividades pecuárias. Saint-Hilaire, em sua viagem pela região dos Campos
Gerais, em 1822, descreveu os hábitos e as caraterísticas que encontrou durante o caminho,
segundo o viajante os homens desta região estavam “sempre a cavalo e andavam quase
sempre a galope, levando um laço de couro amarrado à sela, que é de um tipo especial
denominado lombilho (SAINT-HILAIRE, 1995, p. 18).
79
A partir de então de todo o sul, inclusive da Argentina e do Uruguai, eram levadas
tropas de muares para a feira anual de Sorocaba. Atravessando as regiões que correspondem
hoje ao estado do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e o Paraná até chegar ao estado de São
Paulo.
80
O regionalismo (ou o nacionalismo) é apenas um caso particular das lutas
propriamente simbólicas em que os agentes estão envolvidos quer
individualmente e em estado de dispersão, quer coletivamente e em estado
de organização, e em que está em jogo a conservação ou a transformação das
relações de forças simbólicas e das vantagens correlativas, tanto econômicas
como simbólicas; ou, se se prefere, a conservação ou a transformação das
leis de formação dos preços materiais ou simbólicos ligados às
manifestações simbólicas (objetivas ou internacionais) da identidade social.
Nesta luta pelos critérios de avaliação legítima, os agentes empenham
interesses poderosos, vitais por vezes, na medida em que é o valor da pessoa
enquanto reduzida socialmente à sua identidade social que está em jogo.
(BURDIEU, 2012, p. 124)
Consideramos que todos aqueles que trabalhavam nesta atividade podem ser
denominados tropeiros, e não somente os donos das tropas, entretanto, muitos destes homens
enriqueceram e inclusive pela sua posição econômica tiveram grande participação na vida
política do Sul. Brasil Pinheiro Machado, escreve que os grandes proprietários rurais, os que
detinham grandes fortunas da província, representavam o poder político local. A partir da
emancipação da Província do Paraná, em 1853, o poder local é inteiramente restituído às
classes superiores locais e, especialmente, à classe dos fazendeiros dos Campos Gerais,
constituindo assim uma oligarquia. (MACHADO; BALHANA, 1968)
Para se ter uma noção da influência e do prestígio destes comerciantes a historiadora
Cecília Westphalen constata que entre os anos 1842 e 1888 foram outorgados na região do
Paraná oito títulos de nobreza, sendo seis destes títulos para tropeiros59: Barão de Antonina,
Barão do Tibagi, Barão dos Campos Gerais, Barão de Guarapuava (depois Visconde de
Guarapuava), Barão de Guaraúna e Barão de Monte Carmelo (WESTPHALEN, 1995, p.17).
Neste contexto, Castro se torna no século XVIII e meados do XIX o centro
administrativo de toda essa região. Pelo regime de sesmarias, a Coroa Portuguesa concedia
grandes extensões de terras às famílias que desejassem fixar moradia. O primeiro
requerimento desse caráter, feito por Pedro Taques de Almeida, data de 19 de março de 1704.
O rio Iapó, por sua característica de tornar-se alagado, obrigava os tropeiros a aguardar e
59
Os títulos restantes foram dados aos comerciantes de erva-mate: Barão do Nacar (depois Visconde de Nacar) e
Barão do Serro Azul.
81
acampar. Assim, o antigo Pouso do Iapó evoluiu para a categoria de Freguesia de Sant'Ana do
Iapó no ano de 1774, quando foi construída a primeira capela. A ascensão da Vila Nova de
Castro ocorreu em 20 de janeiro de 1789, em homenagem a Martinho Mello e Castro, então
Secretário dos Negócios Ultramarinos de Portugal. A Vila Nova de Castro foi elevada à
categoria de cidade em 21 de janeiro de 1857, sendo considerada a primeira cidade instituída
após a instalação da Província do Paraná. Durante um período considerável as cidades citadas
acima pertenciam ao território de Castro, a qual centralizava as atividades burocráticas da
região. Ademais, todos os caminhos vindos do Sul passavam por Castro para seguir adiante.
De posse destas informações e amparada pela historiografia paranaense Judith Carneiro de
Mello dá início a coleção do Museu do Tropeiro.
A cultura material relacionada a este tema é bastante diversificada. A lida com os
animais é composta por diversos objetos bem específicos como: freios, selas, pelegos,
estribos, coxonilhos, chicotes, esporas; objetos de carga, como bruacas, canastras, cangalhas,
jacás; objetos de indumentária, como chapéus, botas, ponchos; objetos de uso nos pousos,
bancos, caldeirões, chocolateiras, talheres; objetos de uso pessoal, garruchas, facas, punhais,
bengalas; entre outros artefatos que estão relacionados diretamente ao trabalho, à viagem e ao
comércio de animais.
Observando os documentos institucionais do museu, sabe-se que algumas peças foram
adquiridas pela Prefeitura Municipal, outras pela própria Judith e muitas por doação. Em
razão de ser a única instituição museológica pública do Município, o museu acabou
ultrapassando a temática, ampliando o acervo com móveis, objetos de arte sacra, utensílios
domésticos, objetos de arqueologia, moedas, cédulas, fotografias, obras de arte, livros e
documentos.
Com a ampliação do acervo foi possível no ano de 2004 criar uma outra exposição, em
outro imóvel, denominada Casa da Sinhara. O objetivo do ambiente era retratar a vida da
mulher castrense no período do tropeirismo com ênfase para o cotidiano doméstico. Seria uma
exposição de curta duração, no entanto, a comunidade, os turistas e os dirigentes municipais
apreciaram a proposta e a exposição permanece até os dias atuais com algumas
reformulações, principalmente por mudanças de imóveis.
82
Novos desafios
No ano de 2017 foi concluído o processo de restauro do prédio original do Museu, um
grande avanço para a preservação do patrimônio edificado de Castro. As peças que estavam
em outro imóvel voltaram para a sede definitiva. A exposição de longa duração foi
reformulada de acordo com as possibilidades. Hoje a instituição não possui espaço suficiente
para abrigar adequadamente todo o seu acervo e se faz necessária a construção de uma reserva
técnica. Nesse sentindo, mesmo com dois imóveis à disposição não há espaço para exposições
temporárias e aproximadamente 80% do acervo encontra-se em exposição.
Judith Carneiro de Mello dirigiu a instituição 30 anos, de 1977 até o ano de 2007
quando faleceu. Durante este período dedicou-se ao estudo do tema e também contou com o
apoio dos funcionários do museu e de pesquisadores interessados na história de Castro e do
tropeirismo no Brasil. Através de depoimentos sabemos que as decisões eram tomadas por
ela, ou seja, hoje conhecendo as normas da nova museologia, diríamos que ela deliberava qual
era a Política de Acervo da instituição, bem como existia uma relação de confiança perante os
doadores. As peças eram doadas para Judith.
É nesse sentido que apresentamos o contexto de criação do Museu, posto que segundo
Gonçalves, antes de se tornarem objetos de coleção ou objetos de museus, eles possuíram suas
funções e portanto tem sua própria biografia cultural (Kopytoff, 1986), esta etapa seria apenas
um momento na vida social do objeto.
Muitos dos objetos que compõe o acervo do museu pertenciam a famílias tradicionais
e abastadas do município de Castro, famílias próximas a família de Judith. Contudo, os
objetos que contam a história do tropeirismo são também objetos comuns do cotidiano da vida
rural no Brasil. Em um artigo dedicado a História da Cultura Material, José D’Assunção
Barros escreve que “tudo pode ser objeto de uma História da Cultura Material” (BARROS,
83
2009, p.6) e também destaca que além da noção de ‘materialidade’, uma outra noção
frequente neste campo de pesquisa é o ‘cotidiano. Sabemos que a principal mão-de-obra no
Brasil em grande parte deste período que corresponde a tropeirismo é a mão-de-obra negra
escrava, ou seja, estas pessoas estão no cotidiano do século XVIII e quase todo o século XIX.
Por diversas vezes os museus são vistos como locais estáticos e velhos, possuindo a
função de guardar “coisas” que não tem mais utilidade ou contar a história dos grandes heróis
nacionais. Espaços da elite intelectual e econômica. De fato, é possível a partir dos objetos do
Museu do Tropeiro produzir um discurso enaltecendo esta elite campeira dos Campos Gerais,
presente na historiografia, nos móveis imponentes, nos objetos de prata e nas louças finas,
elite esta que dominava o espaço político e social. Entretanto, para se contar a história do
cotidiano é preciso falar de todos os atores. “O museu e qualquer política patrimonial devem
tratar os objetos, os ofícios e os costumes de tal modo que, mais que exibi-los, tornem
inteligíveis as relações entre eles, proponham hipóteses sobre o que significam para a gente
que hoje os vê e evoca” (CANCLINI, 1994, p. 113). Este é o desafio.
Ao longo dos 40 anos de atuação a instituição desenvolveu diversas atividades para
comunidade, como exposições temporárias, seminários, palestras, feiras de artesanato,
pesquisas para publicações, entre outras. A partir do ano de 2014 o Museu realizou
importantes projetos de adequação estrutural como por exemplo o projeto de "Documentação
Museológica", resultando na catalogação e tombamento do acervo.
Durante este processo constatou-se que muitas peças não possuíam documentação de
origem ou termo de doação. Algumas informações puderam ser recuperadas em anotações de
agendas que Judith e as funcionárias atualizavam diariamente. Existiam também fichas de
algumas peças, entretanto, com informações incompletas ou pouca descrição dos artefatos. É
possível perceber que a instituição mantinha uma organização própria e a sua memória,
porém, acreditamos que a partir de 2009, com a criação do IBRAM e a implementação de
políticas públicas e leis específicas para o campo museológico brasileiro é possível perceber p
encaminhamento da instituição para adequação de suas práticas a fim de se fortalecer e
garantir a preservação dos bens culturais sob sua guarda.
84
O projeto de Documentação do Acervo resultou na elaboração de novas fichas
catalográficas, na produção de fotografias das peças e no tombamento municipal da coleção.
Muitos museus classificam suas coleções por doadores e fundos de produção, no Museu do
Tropeiro, esta classificação não foi possível. Portanto, as peças foram divididas de acordo
com o possível uso original.
Na sequência, no de 2016 foi elaborado o Plano Museológico da instituição, que é
previsto pela Lei nº 11.904/2009 e caracteriza-se como um documento essencial na gestão de
um espaço museológico. Neste documento as rotinas técnicas e administrativas do Museu do
Tropeiro foram analisadas e os resultados foram organizados de modo a permitir uma visão
global da proposta da instituição e a tomada de consciência sobre os processos que precisam
ser melhorados para o pleno funcionamento do Museu.
No que diz respeito as coleções, o texto do Plano indica a necessidade de se construir
de fato uma Política de Acervos, um documento que conduza as ações dos museus e defina
quais critérios devem ser considerados para que um objeto integre a coleção. Como dito
anteriormente, o Museu do Tropeiro é principal instituição pública do município e portanto
muitos artefatos não relacionados a temática foram incorporados ao acervo como: máquinas
de escrever, câmeras fotográficas, equipamentos domésticos do século XX, bem como a
acumulação de objetos semelhantes ou que transmitem a mesma informação.
Depois de quase 40 anos de atuação a instituição definiu que a sua missão é preservar
a memória do tropeirismo de muares no Sul do Brasil e suas implicações socioculturais no
município de Castro. Os artefatos materiais, vulgarmente, são vistos apenas como produto da
ação humana, entretanto é importante compreender que os comportamentos sociais também
podem ser moldados pelos objetos. Os apontamentos construídos neste texto marcam o início
de uma proposta de reflexão sobre os bens culturais preservados no Museu no Tropeiro.
Acreditamos que a pesquisa sob a ótica dos estudos de cultura material será capaz de fornecer
subsídios para auxiliar a instituição museal pesquisada a cumprir sua função social e assim
atingir os mais diferentes públicos. Reiteramos que os museus devem ir além do senso comum
de “depósito de coisas velhas”, estes deveriam possibilitar ao sujeito o acesso à cultura, ao
85
conhecimento da sua história, estabelecer laços indetitários e, consequentemente permitir a
conquista da cidadania.
Referências
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em suas relações intradisciplinares e interdisciplinares. Patrimoniuss, Maricá, 2009 p. 1-17.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 16ª. ed. Rio de Janeiro: Bertand Brasil, 2012.
LIMA, Solange Ferraz de, CARVALHO, Vânia Carneiro de. Cultura Material e a coleção
em um museu de história: as formas espontâneas de transcendência do privado. In: Museus:
dos gabinetes de curiosidade à museologia moderna/Betânia Gonçalves Figueiredo, Diana
Gonçalves Vidal, organizadoras. 2 ed – Belo Horizonte: Fino Trato, 2013.
MAACK, R. Geografia física do Estado do Paraná. Rio de Janeiro, Livraria José Olympio
Ed., 1981, 442 p.
86
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Rio de Janeiro: Rocco, 20.
SAINT-HILAIRE, August de. Viagem pela Comarca de Curitiba. Curitiba: Fundação
Cultural, 1995.
87
A PESQUISA E A COMUNICAÇÃO EM MUSEUS: O POTENCIAL HISTÓRICO
DAS IMAGENS DE ARTE SACRA PARA A COMPREENSÃO E A MEDIAÇÃO DA
COLEÇÃO DE BUSTOS RELICÁRIOS NO MUSEU DE ARTE SACRA DA UFBA
Resumo: Este artigo tem o objetivo de contribuir com pesquisa para a comunicação em museus na
perspectiva de demonstrar o potencial histórico das imagens de Arte Sacra e o seu desdobramento na
compreensão da coleção de Bustos Relicários através dos processos de mediação museológica no
Museu de Arte Sacra da UFBA. O método de análise é a pesquisa histórica que privilegia a imagem
como um documento e que permite a mediação com o aporte da pesquisa para a comunicação nos
museus, daremos ênfase a conceituação a perspectiva do culto às relíquias e a produção de relicários,
especialmente o da tipologia bustos relicários. A proposta foi perceber a necessidade da pesquisa para
a comunicação e a natureza de expor uma coleção para contribuir para a extroversão da coleção, deste
modo é fulcral a pesquisa.
Abstract: This article aims to contribute with research for communication in museums with the
perspective of demonstrating the historical potential of Sacred Art images and its unfolding in the
understanding of the collection of Reliquary Bustos through the processes of museological mediation
in the Museum of Sacred Art of UFBA. The method of analysis is historical research that privileges
the image as a document and allows mediation with the contribution of research to communication in
museums, we will emphasize the conceptualization of the perspective of worship of relics and the
production of reliquaries, especially that of Typology reliquaries. The proposal was to perceive the
need of the research for communication and the nature of exposing a collection to contribute to the
extraversion of the collection, in this way it is central to the research.
88
No cenário contemporâneo brasileiro percebe-se uma nova configuração da política
patrimonial e museal, dentre os fatores estão o novo desenho para a participação das
instituições em programas promovidos pelo Estado e o mercado; além do fomento a
construção de políticas públicas enquadradas na perspectiva do acesso aos bens patrimoniais e
a sua ressignificação para e com os públicos. Neste aspecto na Modernidade Canclini entende
a “cultura hibrida” e argumenta sobre os patrimônios, entende “os museus, como meios de
comunicação de massa, podem desempenhar um papel significativo na democratização da
cultura e na mudança do conceito de cultura” (CANCLINI, 2008, p. 169).
89
A argumentação de Canclini sobre as culturas e as reverberações no campo social
coadunam com a perspectiva de Cury que entende o processo de seleção dos objetos atrelado
a sua institucionalização e vinculado as etapas para a extroversão das coleções. A museóloga
explica o critério de seleção dos objetos a partir da musealidade, para Cury “o objeto
museológico é o objeto institucionalizado. É o objeto integrado a um museu e sendo atenção
de um continuo processo técnico, cientifico e administrativo que garanta a sua preservação,
documentalidade e comunicação” (CURY,2005, p. 28).
Esta musealidade é definida pelo valor documental e pelo que é conferido ao objeto
enquanto potência e índice de informação sobre as culturas e correlacionado a memória, ou
seja, o atributo e o valor que lhe é conferido enquanto objeto e ou musealia – aquilo que
permite a rememoração de um acontecimento ou é índice de informação sobre uma sociedade
e sua época. A perspectiva de enveredar para a problemática do potencial histórico das
imagens de arte sacra no que tange a imagem como um documento, que permite a mediação
com o aporte da pesquisa para a comunicação nos museus, embasado em autores que
discutem a relevância da pesquisa histórica para a contextualização das imagens em
instituições museológicas, associamo-nos a proposta “compreendemos que os museus são
feitos para as coleções e que é preciso construí-los, por assim dizer, de dentro para fora,
modelando aquilo que contém a partir do conteúdo” (RÉAU, 1908). Essa perspectiva de Réau
favorece a discussão sobre o museu e a constituição de coleções pois problematiza a questão
do discurso da exposição atrelada a pesquisa e neste caso ao estudo das imagens com ênfase
nos aspectos socioculturais inscritos em uma paisagem crítica e implicados no contexto
histórico.
90
forma com o intuito de colaborar para o debate da temática, resolvemos elucidar os principais
conceitos sobre o objeto de estudo. Trazendo a luz do texto pareceres de alguns estudiosos de
tempos e espaços distintos que discutem os conceitos e a sua elaboração no contexto histórico,
desde a noção de relíquias e os relicários, a tipologia dos bustos relicários na arte sacra cristã
luso-brasileira. Os relicários e as relíquias são objetos do culto cristão católico e a coleção dos
bustos relicários no Museu de Arte Sacra – UFBA está inscrita temporalmente em uma
trajetória que remonta ao século XVI, extenua as relações bilaterais entre o Brasil e Portugal,
a América Portuguesa e a Europa. Enquanto objeto de análise, privilegiamos o caráter
histórico da coleção e a sua musealização pelo viés da potência para a pesquisa e a
comunicação em museus. (Figura 01,02,03).
Figura 1 - Vista da Sala de Exposição dos Bustos Relicários no Museu de Arte Sacra da UFBA
91
Figura 02 - Bustos Relicários dos Santos Martíres
92
Para a Museologia enquanto campo científico, o museu é uma instituição, deste modo
realizar a escolha da coleção para adentrar ao acervo do Museu de Arte Sacra - MAS-UFBA,
uma instituição que musealizou objetos do culto cristão católico, isto implicou um processo
de construção de discursos sobre estes em uma perspectiva museológica. Apropria-se de Réau
para pensar a organização dos museus e a pesquisa iconográfica, Pomian para elucidar o
conceito de coleção, Silva-Nigra que estudou a coleção dos bustos relicários de Frei Agostino
da Piedade e organizou a primeira exposição sobre bustos, Cury contribui com a leitura dos
processos museológicos da musealização e o foco na comunicação a partir da pesquisa,
Canclini conclui que o museu é um meio para o acesso à cultura e mudança das dimensões
para o acesso e as implicações desta instituição cultural na contemporaneidade. Neste
momento, daremos ênfase a conceituação do elemento do objeto de pesquisa, desta forma
utilizaremos autores que se debruçaram na questão da arte sacra e na perspectiva do culto as
relíquias e a produção de relicários, especialmente o da tipologia bustos relicários. A primeira
definição que utilizamos é a de Bluteau que compreendia as relíquias como as coisas sagradas
pertencentes a algum santo, segue a definição sobre relicários:
93
período da Idade Média na Europa e as condições de propagação de relíquias nos territórios
de expansão marítima lusitana; para o autor a Igreja condicionou o culto as relíquias como um
elemento constitutivo da fé e da organização do espaço cristão nas cidades, ou seja, as
relíquias de certa forma legitimaram os espaços consagrados à fé e ao imaginário cristão no
Ocidente (CYMBALISTA, 2006, p.13-14).
De acordo com a pesquisa de Silva-Nigra sobre o culto às relíquias e sua presença no
cotidiano da sociedade, existia o ideário cristão que instituiu a presença das relíquias na vida
cotidiana da população e a sobreposição de uma orientação realizada pelas ordens religiosas,
isto possibilitou a relação do homem cristão com um tipo de fé que constituiu um aparato
espiritual no cotidiano e no imaginário da sociedade. Existia uma relação umbilical entre o
sujeito crente, a igreja, a devoção e a mentalidade da sociedade da época. (SILVA-NIGRA,
1971, p. 22). A partir das determinações da Igreja sobre a santificação dos mártires e a
transladação dos corpos, instituiu-se uma configuração do corpo santoral aliado a necessidade
da guarda das relíquias foi produzido diversos cofres para a proteção deste artefato
representativo da fé cristã, ou seja, uma musealia. A definição de “Relicário, f. m. caixa de
riquias”, conforme o Vocabulário do século XVIII (BLUTEAU, 316). Louis Réau em sua
Iconografia da Arte Cristã define as relíquias, a partir de uma ampla pesquisa bibliográfica,
compreendendo a história da religião cristã, a hagiografia, iconologia, e suas diversas fases
até a contemporaneidade. A investigação sobre o culto as relíquias e a importância atribuída a
estas, é compreendida no seguinte excerto: “El culto a los santos que es uma forma de culto a
los muertos, se basa em La veneración de sus relíquias, es decir, de sus restos corporales. El
estúdio de lãs relíquias, que constituye uma parte importante de la hagiografia, recibe ele
nombre de lipsanografia (del griego leipsana, “reliquias”)” (RÉAU, 2002, p. 465).
Cymbalista ao pesquisar sobre as relíquias sagradas (ossos e artefatos) se deteve a
perceber como os atributos sacros e móvel perpassaram a trama da experiência e vivência
religiosa e os desdobramentos no cotidiano da igreja e da população, além da socialização
destas práticas culturais contextualizado pela ótica da história e da memória cristã
(CYMBBALISTA, 2006, p. 12). Segundo RÉAU (2002), “las relíquias son objetos materiales
que los fieles pueden ver y tocar, pero son de uma espécie muy particular, a la vez matéria y
94
espíritu”. (RÉAU, 2002, p.466). A concepção de relíquia para Reau e a de Cymbalista
coadunam com a perspectiva de compreender a trajetória de vida do santificado, a elaboração
de uma biografia e dos atributos, a sua hagiografia, o corpo do santificado e sua materialidade
transladada para o espaço religioso, a questão da devoção e o sentido de construção de um
discurso sobre a fé cristã. Pomian entende a disseminação da cultura religiosa a partir das
práticas religiosas e das demandas da sociedade, especialmente a relação imersiva entre o
crente e a sua vida pessoal e coletiva no que tange as doenças e a relação com o sagrado, os
santos mártires e sua as relíquias eram convocados pela população para atender às súplicas.
Em adição a investigação de Silva-Nigra pretende entender o culto das relíquias nas ordens
religiosas e a constituição de uma paisagem que instituía a forma de se cultuar e a devoção
cristã e a religiosidade.
A pesquisa sobre as relíquias e os relicários contribuem para a compreensão da história
da cristã, da religiosidade, da devoção e dos aspectos socioculturais de uma sociedade, esta
forma de percepção a partir da pesquisa histórica demanda uma interpretação do processo de
musealização dos bens culturais de matriz religiosa cristã. Deste modo, Bluteau se destaca
pelo entendimento do léxico e o entendimento de relíquia no século XVII. Para Cymbalista é
necessário a justificação da presença do corpo santificado no território como modus operandi
para a sacralização do espaço e a legitimação das práticas de devoção pela ação dos
religiosos. A coleção de bustos relicários no Museu de Arte Sacra da UFBA é representativo
de um tipo de devoção e culto disseminado no período da colonização lusitana no território
brasileiro, conforme Pomian a relíquia servia para expressar um tipo de fé e Silva-Nigra
elucida sobre a participação dos beneditinos na construção de um discurso e de uma práxis
sobre a fé cristã, esta investigação nos permite entender que algumas dessas representações
em destaque se assemelham a práticas cultuais na Bahia colonial, a exemplo do culto e
procissão de São Francisco Xavier que tornou-se padroeiro da cidade do Salvador no século
XVII após a propagação de uma doença avassaladora que matou um considerável número da
população. Após essa breve apresentação sobre as relíquias e o contexto histórico de
produção, passa-se agora a dialogar com um dos chamados bustos relicários.
95
A tipologia de relicários: os Bustos Relicários da coleção no Museu de Arte Sacra
A definição de Bustos Relicários para Guimarães é atrelada a produção artística de um
receptáculo para a guarda das relíquias consagradas (sacralizadas/santificadas). Pelo viés da
arte o autor salienta:
96
especificamente a pesquisa para a comunicação - referentes à exposição do acervo de arte
sacra em instituição museológica, JULIÃO, 2006; CURY, 2006; DUARTE CÂNDIDO, 1998;
SOFKA, 2009. A investigadora do campo da comunicação e recepção na Museologia explica
que “a exposição, forma particular de comunicação museológica, também procede de uma
seleção de valores” (CURY, 2006 p.26). As instituições museológicas são compreendidas
como local de pesquisa, preservação e comunicação dos bens culturais de uma sociedade. Os
museus fazem parte da dinâmica social, sendo os objetos museal a referência para a
concretização de lócus da cultura e da diversidade. Segundo Roque:
97
introdução de vídeo) impedem de continuar falando dessas instituições como
simples depósitos do passado. (CANCLINI, 2008, p. 170)
98
O estudo da temática de arte sacra resulta da necessidade de conhecer a trajetória do
acervo dos bustos relicários, conforme a autora “Ao definir o acervo como cerne de suas
investigações e reflexões, o museu encontra no domínio da cultura material um campo
privilegiado e fértil para o desenvolvimento de suas pesquisas.” (JULIÃO, 2006, p. 98)
Este aspecto relacionado ao conceito de coleção tratado por POMIAN (1984), o
fomento as categorias do acervo institucional e operacional pensado por MENESES (1994) a
concepção de acervo e coleção desenvolvida por LONDRES (1999) e o debate sobre a
pesquisa histórica dos acervos e coleções fomentados por JULIÃO (2006) como fator
especifico para a pesquisa no sentido de compreender as conexões e as intenções na
constituição dos acervos e coleções das instituições museológicas.
A partir da leitura bibliográfica e a análise dos documentos (manuscritos, impressos e
imagéticos) sobre o acervo dos bustos relicários no museu, a exemplo dos livros, catálogos e
as demais publicações lançadas sobre a temática da arte sacra e especialmente sobre o museu
e o acervo, foi possível compreender a relevância da pesquisa para a comunicação, após
coligir as informações sobre as coleções que se encontram sob a responsabilidade do Museu
de Arte Sacra da Universidade Federal da Bahia (UFBA) organizamos o enfoque da
investigação. A noção de Coleção defendida por Pomian explicita as conexões entre os
objetos e o significado atribuído pelas instituições (POMIAN, 1984, p.53).
O historiador da arte e monge beneditino Dom Clemente Maria da Silva-Nigra no livro
“Os dois escultores Frei Agostinho da Piedade – Frei Agostinho de Jesus e o arquiteto Frei
Macário de São João”, publicado em 1971, no capítulo “Os Relicários de Frei Agostinho da
Piedade”, o texto é sobre a exposição comemorativa do terceiro centenário de morte do artista
beneditino Frei Agostinho da Piedade no Museu de Arte Sacra. Outra publicação refere-se a
“Ação de Dom Clemente no Museu de Arte Sacra” (1979), de autoria SENTO SÉ (1979) que
no capítulo ‘A exposição de Frei Agostinho da Piedade’, apresenta um memorial sobre o
processo de execução do projeto expográfico, a saber:
99
alturas das peanhas em relação aos tamanhos de cada imagem (SENTO SÉ,
1979, p. 76).
Nos dois mais antigos mais antigos altares da catedral da Bahia, antiga igreja
da Companhia de Jesus, acham-se hoje dois grandes armários, contendo cada
um quinze bustos-relicários, a maior parte de barro, trabalhos do século 17.
Provavelmente grande parte de suas relíquias foi já trazida pelo Padre
Cristóvão de Gouveia, em 1583. (SILVA-NIGRA, 1971, p. 24)
100
A partir de uma questão da preservação do bem cultural foi possível à restauração da
coleção dos bustos relicários jesuítas, neste sentido JULIÃO (2006) apresenta a necessidade
do diagnóstico das coleções, mas a vitalidade da pesquisa para a comunicação (JULIÃO,
2006, p. 104). A comunicação museológica é percebida por CURY (2006) de uma forma
processual e organizada conforme os pressupostos dos museus. Este aspecto especifico de
comunicar a coleção e os seus sentidos é desenvolvido pela autora com o intuito de definir
uma noção da exposição (CURY, 2006, 34). No estudo sobre a conservação da coleção dos
bustos relicários dos jesuítas oriundos dos armários dos retábulos da Catedral da Sé da Bahia
em Salvador, DANNEMAN demonstrou o percurso da coleção:
A coleção dos bustos relicários oriundos da antiga igreja da Companhia de Jesus (atual
Catedral Basílica), foram apresentados em uma exposição (1999) na Pinacoteca de São Paulo.
Da coleção de 30 (trinta) bustos relicários foi possível realizar a analise iconográfica de 7
(sete) bustos relicários identificados, a saber; Santa Águeda, Santo Eustáquio, Santa Inês, São
Jorge, São Sebastião, Santo Estevão e Santa Dorotéia. Existe outra publicação (2005), um
catálogo organizado pelo Museu de Arte Sacra da UFBA com a temática dos bustos relicários
da Catedral Basílica do Salvador, neste catálogo tem o texto “Bustos Relicários” de Francisco
Portugal (então diretor do MAS/UFBA) e um outro texto “A restauração da coleção de Bustos
Relicários” de João Dannemanna (então coordenador do Setor de Conservação e Restauração
do MAS/UFBA), o restaurador elucida a trajetória histórica e religiosa da coleção e o projeto
de restauração dos bustos relicários. Deste modo, o autor explica a coleção na igreja:
101
“Antes de chegarem ao MAS, as trinta esculturas permaneceram por
aproximadamente três séculos, dispostas em dois retábulos na nave da igreja
do Colégio dos Jesuítas, atual Catedral Basílica de Salvador. Com o passar
do tempo, as relíquias sagradas desapareceram e os relicários apresentaram
sério comprometimento físico, em resposta às condições de armazenagem, às
intervenções anteriores e à manutenção deficiente.” (DANNEMANN, 2005,
p. 5).
102
em seu contexto e inferir suas qualidades intrínsecas e extrínsecas, deste modo contribuirá
para a análise do assunto e significado da coleção estudada.
A investigação sobre as relíquias, os santos, os bustos relicários contempla a definição
dos principais conceitos referentes ao temática da iconografia cristã; a investigação de Louis
Réau coaduna com a perspectiva da investigação sobre o a acervo dos relicários, inclusive, no
processamento técnico dos objetos de arte sacra (acervos e coleções em museus),
especialmente no que tange ao objeto de análise, desde o acervo e a proposta de pesquisa
sobre a exposição das peças denominadas de bustos-relicários. O autor conceitua as relíquias,
os santos e os bustos relicários, realiza uma pesquisa profícua, densa e perspicaz, define o
enquadramento teológico, histórico e hermenêutico de sua empreitada para a maioria dos
santos cristãos. As questões referentes à comunicação museológica serão refletidas pelo
aparato teórico de CURY e a pesquisa sobre a exposição através dos seus conceitos e
problematizações para o desenho do conhecimento expográfico. Além dos estudos vinculados
a comunicação e recepção de REBOLLO GONÇALVES apresentados em sua pesquisa sobre
o museu, o acervo e a tipologia da arte moderna. Os aspectos relacionados à musealização e
experiência de gestão de acervos de arte sacra utilizarão a pesquisa em contexto português da
historiadora, ROQUE (2006) na qual investiga a comunicação nos museus, o discurso e a
musealização de objetos de arte sacra em instituições museológicas em Portugal. O estudo
iconológico é um meio para a mediação do objeto de arte sacra nas instituições museológicas,
especialmente no contexto da Nova Museologia que busca valorizar os públicos e o discurso
sobre os objetos musealizado (TEIXEIRA, 2003). Neste aspecto a proposta de Panofsky
coaduna com a perspectiva metodológica desta tendência na Museologia de valorização dos
objetos a partir da memória e de sua contextualização. Para Panofsky a iconologia é:
103
Para Alice Duarte a Museologia é um campo de práticas e de experimentações, as
instituições museológicas são espaços de criação e de crítica, a construção do discurso
museológico sobre os objetos musealizado deve ocorrer de forma a perceber as demandas
sociais e a contextualização do presente. O estudo iconológico da coleção de bustos relicários
da antiga igreja do Colégio dos Jesuítas priorizou a compreensão das imagens de artes sacra
de matriz cristã com o objetivo de analisar o programa iconográfico dos jesuítas, a
disseminação do culto cristão das santas relíquias, a contextualização da colonização
portuguesa no Brasil Colônia. A partir da pesquisa elaboramos uma proposta de entendimento
das relíquias e relicários e sua relevância para a instituição museológica que o abriga e
especialmente para o público que na mediação cultural conhece e apreende sobre a cultura
tridentina. Ao abordar o potencial histórico das imagens de arte sacra conseguimos apresentar
através da coleção dos bustos relicários da antiga igreja do Colégio dos Jesuítas alguns
conceitos de relíquias, relicários, bustos relicários e musealização de objetos de culto cristão,
além de discutir as formas dos relicários atrelados as determinações tridentinas. O culto às
relíquias no Brasil Colônia foi disseminado pelos padres jesuítas, especificamente no Colégio
de Jesus em Salvador. As imagens de arte sacra são percebidas como um documento que
possibilita o conhecimento da história através da contextualização da coleção no seu tempo e
espaço. Conseguimos observar o acervo através da proposta da pesquisa com a leitura dos
documentos referentes às coleções dos bustos relicários que contribuíram para perceber a
relevância desta coleção, a partir da valorização das coleções de arte sacra e a sua integração
ao espaço expositivo do museu através de uma mediação que tenha acesso a uma pesquisa
para a elaboração do discurso museológico embasado no método iconográfico.
Expomos o potencial histórico das imagens de arte sacra como um documento e sua
contextualização através da pesquisa histórica nas instituições museológicas. A partir da
história da Ordem Jesuítica conseguimos compreender o culto as Santas Mártires Virgens na
Bahia e sua relação com os acontecimentos da Reforma Católica através das determinações do
Concílio de Trento e no caso especifica do culto as relíquias representadas nos dois altares da
sua antiga igreja. A proposta foi perceber a necessidade da pesquisa para a comunicação,
expor uma coleção é contribuir para a sua extroversão, deste modo é fulcral a pesquisa, pois é
104
através desta que se pode revelar o potencial histórico das imagens de arte sacra nas
instituições museológicas.
Referências bibliográficas
ARAUJO, Emanoel. Bustos-relicários da Catedral-Basílica de Salvador-Bahia.
PINACOTECA, São Paulo. 1999.
CAMPOS, Adalgisa Arantes. Arte Sacra colonial. Belo Horizonte: C/Arte, 2011.
CURY, Marília Xavier. Exposição, Montagem e Avaliação. São Paulo: Annablume, 2005.
DANNEMANN, João; GUIMARÃES, Francisco. Catálogo da exposição Coleção de Bustos
Relicários. Salvador-Bahia. 2005.
FREIRE, Luiz Alberto Ribeiro. A talha neoclássica na Bahia. Rio de Janeiro: Versal, 2006.
GAMA, Isnard. Ensaio de Arte Sacra e Cristã. Esdeva Empresa Gráfica. Juiz de Fora -
MG.1979.
105
KOSSOY, Boris. Fotografia e História, São Paulo: Editora Ática, 1989.
PANOFSKY, Erwin. Significado nas Artes Visuais. Coleção Dim. S. Especial, nº 14.
Editorial Presença. 1ª edição. Lisboa, 1989.
SENTO SÉ, E. Ação de Dom Clemente no Museu de Arte Sacra. Editora Europa, Rio de
Janeiro. 1979.
106
ALGUMAS FONTES PARA O ESTUDO DE MUDANÇAS DE
PERCEPÇÃO SOBRE OS GABINETES DE CURIOSIDADES E AS
PRÁTICAS COLECIONISTAS DA ERA MODERNA À
CONTEMPORÂNEA
Resumo: O presente trabalho apresenta alguns apontamentos sobre fontes de diferentes períodos
históricos de interesse para o estudo das práticas de colecionamento da Primeira Idade Moderna, em
especial coleções enciclopédicas convencionalmente denominadas “gabinetes de curiosidades”. A
compreensão contemporânea dessas coleções ecoa a forma como foram descritas e categorizadas ao
longo da história, e a referências selecionadas ilustram algumas das mudanças de percepção e
apreciação das coleções da Primeira Idade Moderna em momentos diversos. As fontes aqui reunidas
foram: Samuel Quiccheberg, Inscriptiones vel Tituli Theatri Amplissimi, 1565; Robert Hooke,
“Lectures and Discourses of Earthquakes and Subterraneous Eruptions”, 1705; M. d’Aubenton e
Denis Diderot, “Cabinet d’Histoire naturelle”, Encyclopedie, 1751; Felice Fontana, Saggio del real
gabinetto di física e di storia naturale di Firenze, 1775; Thomas Greenwood, Museums and Art
Galleries, 1888; David Murray, Museums: Their History and their Use, 1904.
Palavras-chave: História das Coleções; Gabinete de Curiosidades; Primeira Idade Moderna; Práticas
de colecionamento; Colecionismo.
Abstract: This paper presents some observations regarding primary sources from different historical
periods which are relevant to the study of Early Modern collecting practices, especially to the study
of the encyclopaedic collections conventionally known as ‘curiosity cabinets’. The contemporary
comprehension of these collections echoes the way they were described and categorised throughout
history, and the selected references illustrate some shifts in the perception and appreciation of Early
Modern collections in distinct moments. The sources here gathered were: Samuel Quiccheberg,
Inscriptiones vel Tituli Theatri Amplissimi, 1565; Robert Hooke, “Lectures and Discourses of
Earthquakes and Subterraneous Eruptions”, 1705; M. d’Aubenton e Denis Diderot, “Cabinet
d’Histoire naturelle”, Encyclopedie, 1751; Felice Fontana, Saggio del real gabinetto di física e di
storia naturale di Firenze, 1775; Thomas Greenwood, Museums and Art Galleries, 1888; David
Murray, Museums: Their History and their Use, 1904.
Key-words: History of Collections; Curiosity Cabinet; Early Modern Period; Collecting Practices;
Collectionism.
107
O presente trabalho reúne alguns apontamentos de uma pesquisa em andamento sobre
o colecionismo na Primeira Idade Moderna (aproximadamente, sécs. XV-XVIII). Nas
discussões dos campos da Museologia, História Cultural e História da Arte, as coleções desse
período são frequentemente apresentadas como origem dos museus e das práticas
colecionistas contemporâneas. Essas coleções integram o escopo de estudos do projeto de
pesquisa “Raridades em Contexto: incorporação e ressignificação de objetos e imagens das
Índias Ocidentais nas coleções norte-europeias (séc. XVII)”, do qual participo desde 201360.
Partindo dos estudos de casos específicos desenvolvidos por nós pesquisadores do projeto, e
sistematizando ideias e percepções que emergiram ao longo desses anos, desde o começo de
2016 tenho me dedicado à reflexão sobre questões mais gerais pertinentes à forma como
coleções, colecionadores e práticas colecionistas da Primeira Idade Moderna têm sido
compreendidas e abordadas nos campos supramencionados, sobretudo no que tange à noção
de “gabinetes de curiosidades”.
Por gabinetes de curiosidades – alternativamente chamados na literatura de “câmara
das maravilhas” ou variações dessas duas expressões em diversos idiomas – convencionou-se
denominar coleções majoritariamente privadas, de caráter enciclopédico, baseadas na
compreensão então vigente de que as relações entre os objetos colecionados correspondiam às
relações entre os fenômenos naturais e artificiais do cosmo, que vigoraram sobretudo na
Europa dos séculos XVI e XVII – um fenômeno histórico específico dentro da história das
coleções61. Entretanto, conforme apresentei alhures62, a expressão comumente figura, tanto
em discursos acadêmicos como naqueles voltados ao público amplo, como síntese de todas as
práticas colecionistas do início do Período Moderno e como antecessores diretos dos museus
60
O projeto “Raridades em Contexto” é coordenado pelo Professor Dr. René Lommez Gomes da Escola de
Ciência da Informação da UFMG, está integrado às atividades do RARIORUM - Núcleo de Pesquisa em
História das Coleções e dos Museus, e tem por objetivo investigar processos de recontextualização e mudança de
significado de objetos advindos das Américas e da África nas coleções da Europa setentrional, no quadro das
práticas de colecionamento da Primeira Idade Moderna.
61
A variedade de denominações que se referem a essas coleções, tanto na Primeira Idade Moderna como
posteriormente, é frequentemente notada pelos estudiosos. Alguns estudos contemporâneos optam por empregar
o termo ‘museu’ em referência às coleções modernas, o que parece enfatizar as continuidades e minimizar as
diferenças entre as práticas colecionistas modernas e a instituição que se consolidou posteriormente. Para
posicionamentos distintos sobre o tema, cf. BOWRY, 2015; FINDLEN, 1989.
62
CARVALHO, 2017.
108
de arte e ciência da contemporaneidade. Naquela ocasião, argumentei que a noção sintética
atual de gabinetes de curiosidades ecoa a forma como essas coleções e práticas foram
descritas e categorizadas ao longo do tempo, com a permanência de interpretações que se
originaram junto ao colecionismo ilustrado, o que tanto esconde a variedade de manifestações
do colecionismo da Primeira Idade Moderna como dificulta a compreensão dos valores, usos
e significados que esses objetos, seu colecionamento e sua exibição tomavam à época.
Uma vez que anteriormente me detive em especial na discussão da produção
acadêmica contemporânea sobre o assunto, gostaria, agora, de trazer algumas fontes de
períodos históricos anteriores. Essas foram escolhidas dentre as referências arroladas em tais
estudos contemporâneos e acredito que possam ilustrar mudanças de percepção e apreciação
das coleções da Primeira Idade Moderna ao longo do tempo. Devido à natureza do presente
trabalho, não será possível desenvolver análises pormenorizadas e exaustivas das mesmas;
trarei, portanto, observações pontuais sobre trechos que iluminam a questão em foco. As
fontes aqui reunidas foram: Samuel Quiccheberg, Inscriptiones vel Tituli Theatri Amplissimi,
1565 (trad. parcial de Antonio Leonardis, publicado em BOWRY, 2015); Robert Hooke,
“Lectures and Discourses of Earthquakes and Subterraneous Eruptions”, 1705; M.
d’Aubenton e Denis Diderot, “Cabinet d’Histoire naturelle”, Encyclopedie, 1751; Felice
Fontana, Saggio del real gabinetto di física e di storia naturale di Firenze, 1775; Thomas
Greenwood, Museums and Art Galleries, 1888; David Murray, Museums: Their History and
their Use, 1904.
63
As observações ora apresentadas partem da tradução para o inglês de trechos da obra de Quiccheberg
realizada por Antonio Leonardis e publicada como parte integrante da tese de Stephanie J. Bowry (BOWRY,
2015). Todas as citações de Quiccheberg que seguem se referem a essa tradução.
109
influência do pequeno tratado de Quiccheberg nas práticas colecionistas do período, a obra
interessa ao estudo do tema como expressão sistematizada de ideias e valores então
amplamente disseminados (BOWRY, 2015; SCHULZ, 1990).
Algo sobre a função ou objetivo das práticas modernas de colecionismo é expresso
por Quiccheberg no próprio título de sua obra, em sua versão completa:
64
Sobre a experiência sensorial de visita a coleções e museus no período moderno, cf. CLASSEN, 2007.
110
A ordem e o ideal, todavia, estão imbuídos de flexibilidade, característica atrubída
por diversos estudiosos ao pensamento da época65. Em um trecho, Quiccheberg observa que
seu sistema de classes e categorias deveria funcionar como orientação para que cada
colecionador escolhesse o que colecionar, conforme interesses e possibilidades:
O colecionismo ilustrado
Mudanças nos paradigmas e práticas de construção e validação do conhecimento,
com a consolidação progressiva das ciências modernas propriamente ditas, acompanharam
alterações sociais consideráveis. Configurou-se um contexto em que emergiram outros
parâmetros de formação e usufruto de coleções, bem como a atribuição de outras funções às
mesmas. A especialização, tanto das coleções como de eruditos e estudiosos, marcou as
críticas voltadas às coleções que não seguiam os novos padrões de pensamento e atividade.
Um desses críticos foi Robert Hooke (1635-1703), membro da Royal Society of
London for the Improvement of Natural Knowledge. Ele defendia a formação de uma
coleção institucional de espécimes naturais, sob os paradigmas de investigação científica
65
Cf. KURY & CAMENIETSKI, 1997; HOOPER-GREENHILL, 1995; SHELTON, 1994.
66
Tradução livre do original: “Quiccheberg’s system of titles and inscriptions therefore promotes a complex
understanding of materials and material culture, in which the many nuances of a single object are acknowledged,
but in which certain qualities take precedence over others”.
111
emergentes – o não tão bem-sucedido Repositório da Royal Society67. Em um “Discurso
sobre Terremotos” publicado postumamente, no qual critica a descrição de conchas, animais
marinhos e fósseis que aparecem nos livros de estudiosos anteriores como Conrad Gesner
(1516-1565) e Ulisse Aldrovandi (1522-1605), Hooke argumenta pela necessidade do
contato direto com os espécimes de estudo; condena, entretanto, como infantil o uso de
coleções para o prazer, divertimento ou admiração:
[...] for the Observations for the most part are so superficial, and the
Descriptions so ambiguous, that they create a very imperfect Idea of the true
Nature and Characteristick of the thing described, and such as will be but of
very little use without an ocular Inspection and a manual handling, and other
sensible examinations of the very things themselves; for there are so many
considerable Instances that may by that means be taken notice of, which may
be useful to this or that purpose for which they may be instructive, that ‘tis
almost impossible for any one Examiner or Describer to take notice of them,
or so much as to have any imagination of them. It were therefore much to be
wishht for and indeavoured that there might be made and kept in some
Repository as full and compleat a Collection of all varieties of Natural
Bodies as could be obtain’d, where a Inquirer might be able to have
recourse, where he might peruse, and turn over, and spell, and read the Book
of Nature, and observe the Orthography, Etymologia, Syntaxis and Prosodia
of Natures Grammar, and by which, as with a Dictionary, he might readily
turn to and find the true Figure, Composition, Derivation and Use of the
Characters, Words, Phrases and Sentences of Nature written with indelible,
and most exact, and most expressive Letters, wihtout which Book it will be
very difficult to be thoroughly a Literatus in the Language and Sense of
Nature. The use of such a Collection is not for Divertisement, and
Wonder, and Gazing, as ‘tis for the most part thought and esteemed,
and like Pictures for Children to admire and be pleased with, but for the
most serious and diligent study of the most able Proficient in Natural
Philosophy. (HOOKE, 1705, p. 338, ênfases minhas)
67
Para uma apresentação do projeto do Repositório da Royal Society e discussão de seu insucesso cf. HOOPER-
GREENHILL, 1995, p. 133-166.
112
pensamento e parecia ignorar intencionalmente os critérios de ordenamento subjacentes às
coleções anteriores, destarte julgadas irracionais ou incompreensíveis (ibid, p. 232).
A Encyclopedie, publicada entre 1751 e 1772, trazia em seu segundo tomo um
verbete sobre gabinetes de história natural, de autoria de Denis Diderot com contribuição de
M. d’Aubenton, guardião e ‘demonstrador’ do Cabinet du Roi. O Cabinet du Roi, no jardim
real em Paris, era apresentado como um modelo de coleção de história natural a ser seguido
por sua organização e modos de exibição, e sobre ele é dito:
Toutes ces collections sont rangées par ordre méthodique, & distribuées de la
façon la plus favorable à l’étude de l’Histoire naturelle. Chaque individu
porte sa dénomination, & le tout est placé sous des glaces avec des
étiquettes, ou disposé de la maniere la plus convénable. [...]Les choses les
plus belles & les plus rares y ont afflué de tous les coins du monde; & elles y
ont heureusement rencontré des mains capables de les réunir avec tant de
convenance, & de les mettre ensemble avec tant d’ordre, qu’on n’auroit
aucune peine à y rendre à la nature un compte clair & fidele de ses richesses.
(D’AUBENTON; DIDEROT, 2016, p. 2:490)
A ordem – uma ordem metódica, que não se confunde com a forma como as coisas
aparecem na natureza – é premissa para que uma reunião de objetos constitua uma coleção
capaz de servir ao estudo e instrução e de justificar as dificuldades e despesas de sua
formação:
113
A exaltação da ordem também marca a defesa de novos paradigmas de
colecionamento na Itália, por volta do mesmo período. Em uma apresentação descritiva do
Gabinete Real de Física e História Natural de Florença, inaugurado em 1775, Felice Fontana
(1730-1805), o responsável por sua organização, escreve:
Speriamo che i lettori di sapranno grado di aver rilevate alcune poche cose di
questo Real Gabinetto, che non solo per l’abbondanza delle cose vá a
diventare il più rispettabile dell’Europa, ma quello, che è più da stimare, è
senza dubbio il più utile di tutti per il metodo affatto nuovo immaginato com
tanta sagacità dal nostro Autore, ed eseguito con tanta arte, ed ingegno. Ogni
cosa è si bene ordinata, che una persona può approfittare in pochi giorni
assai più, che negli altri Gabinetti in molti anni, che pajono fatti più per
ostentare le grandezze dei Sovrani, che per l’utilità publica. (FONTANA,
1775, p. 34)
L’ordre méthodique qui, dans ce genre d’étude, plait si fort à l’esprit, n’est
presque jamais celui qui est le plus avantageux aux yeux. D’ailleurs,
quoiqu’il ait bien des avantages, il ne laisse pas d’avoir plusieurs
inconvéniens. On croit souvent connoître les choses, tandis que l’on n’en
connoît que les numeros & les places: il est bon de s’éprouver quelquefois
114
sur des collections, qui ne suivent que l’ordre de la symmétrie & du
contraste. Le cabinet du Roi étoit assez abondant pour fournir à l’un & à
l’autre de ces arrangemens; [...] Le surplus de chaque collection a été
distribué dans les endroits qui ont paru le plus favorables, pour en faire un
ensemble agréable à l’oeil, & varié par la différence des formes & des
couleurs. [...]On est donc obligé, afin d’éviter la confusion, d’employer un
peu d’art, pour faire de la symmétrie ou du contraste. (D’AUBENTON;
DIDEROT, 2016, p. 2:491)
115
de bibliotecas públicas gratuitas e de livre acesso – em sua perspectiva, bibliotecas públicas,
museus e galerias de arte seriam instituições inseparavelmente associadas (ibid, p. vi).
Logo no início de seu argumento, o autor se mostra averso à desordem, em uma
passagem que ecoa as denúncias iluministas:
The ordely soul of the Museum student will quake at the sight of a Chinese
lady’s boot encircled by a necklace made of shark’s teeth, or a helmet of one
of Cromwell’s soldiers grouped with some Roman remains. Another corner
may reveal an Egyptian mummy placed in a medieval chest, and in more
than one instance the curious visitor might be startled to find the cups won
by a crack cricketer of the county in the collection, or even the stuffed relics
of a pet pug dog. (GREENWOOD, 1888, p. 4)
116
nos trabalhadores urbanos ou agrícolas, atuando ainda no combate de comportamentos
moralmente repreensíveis:
The working man or agricultural labourer who spends his holiday in a walk
through any well-arranged Museum cannot fail to come away with a deeply-
rooted and reverential sense of the extent of knowledge possessed by his
fellow-men. It is not the objects themselves that he sees there, and wonders
at, that causes this impression, so much as the order and evident science
which he cannot but recognise in the manner in which they are grouped and
arranged. (GREENWOOD, 1888, p. 26)
He has gained a new sense, a craving for natural knowledge, and such a
craving may, possibly, in course of time, quench another and lower craving,
which may at one time have held him in bondage – that for intoxicants or
vicious excitement of one description or another. (ibid, p. 27).
Nas descrições sucintas que Greenwood traz sobre os primeiros museus ingleses, o
autor não elabora juízos que explicitem sua opinião sobre as mesmas. Ele endossa, contudo,
o posicionamento especializado do Prof. Herdman sobre o museu ideal, reproduzindo a
comunicação desse à Sociedade Literária e Filosófica de Liverpool em 21 de março, 1887:
117
proferiu em 1897 na Sociedade Arqueológica de Glasgow. Segundo Murray, seu objetivo era
estudar “a história e desenvolvimento dos museus enquanto instituições culturais”68, uma vez
que inicialmente não encontrara informações sobre o assunto nas enciclopédias e obras de
referências então em circulação.
Murray inicia o primeiro capítulo apresentando a definição corrente de museu, que
reverbera argumentos já familiares: “a collection of the monuments of antiquity or of other
objects interesting to the scholar and the man of science, arranged and displayed in
accordance with scientific method” (MURRAY, 1904, p. 1). Em sua narrativa histórica,
contudo, observa com interesse as mudanças de paradigmas de colecionamento ao longo do
tempo, percebendo certa utilidade nas “velhas coleções”:
Some of the exhibits of the old museums – unicorn’s horn, giants’ bones,
petrified toad-stools, and the like – strike us as somewhat extraordinary, but
they were placed there in accordance with the opinions and teaching of the
time. Our point of view is so different that we are inclined to look upon
much of the material of the old collections as rubbish, and it is apt to be so
treated by keepers only interested in the current views of museum
management, but this is a mistake. Many of these objects are of much
interest in the history of science, and to the discussion and controversies,
which some of them evoked, we are indebted for the science of to-day. [...] it
does not seem to have occurred to anyone to illustrate in a museum the
[hist]ory of the ideia of the museum, its arrangement and contents
(MURRAY, 1904, p. 39-40)
68
“I was anxious to learn something of the history and development of museums as scientific institutions”.
MURRAY, 1904, p. v.
118
atribuição de valor histórico às coleções do passado não o impede, contudo, de escrever um
capítulo sobre o “caráter não-científico dos primeiros museus”69.
Para Murray, os “defeitos” das coleções antigas seriam falta de espaço e meios de
exibição dos objetos, e um mau ordenamento (MURRAY, 1904, p. 205). Pondera,
entretando:
Not that the matter of arrangement was not considered, for the space that a
collection should occupy, the uses it should serve, and its proper disposition,
the position and size of the rooms, and their decoration, were all questions
discussed by the old writers upon museums; but their ideas were too vague
and ill-defined to lead to useful results, and they contented themselves with
merely reciting what one collector or another had done. (MURRAY, 1904, p.
207)
Murray encerra sua obra com um capítulo sobre os usos dos museus, em que advoga
pelo papel desses tanto na pesquisa especializada e na educação formal como no prazer e
instrução dos visitantes em geral, de forma semelhante ao defendido por Greenwood:
69
“Chapter XIV – Non-scientific character of early museums”, MURRAY, 1904, p. 186-204.
119
In a general sense a museum is a popular educator. It provides recreation and
instruction for all classes and for all ages. Its doors are open to all alike, and
each visitor gets profit or pleasure by viewing its objects just as he does from
a visit to a picture gallery. The modern museum has, however, more definite
aims. A museum has now become a recognised and necessary instrument of
research; it plays an important part in university and technical instruction,
and it should be adopted as an aid in elementary and secondary education.
(MURRAY, 1904, p. 259-260)
Apontamentos finais
Se noções como as de ‘classificação’ e ‘ordenamento’ dos objetos são temas comuns
e recorrentes nos escritos sobre coleções dos diversos períodos aqui reunidos, elas ganham
expressões muito diversas em cada caso, de forma que podem ser acionadas para sustentar
argumentos e interpretações por vezes opostos. A compreensão disso passa pela
consideração tanto de mudanças nos contextos sociais – de ordem política, cultural, material,
intelectual e assim por diante –, como da maneira de cada autor construir seu argumento a
partir de intenções e valores próprios, mobilizados pelos indivíduos a partir das
possibilidades que configuram e são configuradas por seu lugar na história e na sociedade. É
assim, por exemplo, que Murray e Greenwood, partindo do cenário comum das instituições
museais britânicas em fins do século XIX, podem expressar concepções distintas sobre os
museus ideais e suas contrapartes reais nas coleções do presente e do passado, concordando
em alguns pontos e discordando em outros.
Nesse sentido, as convergências, tanto na sincronia como na diacronia, são tão
relevantes quanto as divergências para o estudo das percepções sobre as práticas de
colecionamento da Primeira Idade Moderna ao longo do tempo. Voltando-nos para as
percepções hodiernas sobre os denominados gabinetes de curiosidades, pode ser elucidativo
tentar identificar fatores contextuais, valores e intenções que informam as diferentes
concepções desse fenômeno, em suas convergências e divergências. Apenas a título de
120
ilustração, de forma rápida e superficial, poderíamos tomar a formulação bastante comum
que apresenta tais gabinetes como origem ou antepassado dos museus contemporâneos –
nota-se que, partindo desse ponto convergente, características bastante distintas (e, por vezes,
contraditórias) dessas práticas de colecionamento modernas são ressaltadas quer se tenha
como referência ou museus de arte ou museus de ciência como ponto final da “evolução”.
Parafraseando o que escreveu o historiador da arte Ernest Gombrich sobre o estudo
das obras de arte do passado, olhamos para o colecionismo da Primeira Idade Moderna “pelo
lado errado do telescópio” (GOMBRICH, 2007, p. 54), imersos nas questões, percepções e
experiências do presente. Um esforço consciente constante seria necessário para ‘compensar’
as distorções que tal condição de investigação irremediavelmente impõe e nos aproximar, na
medida do possível, das variadas percepções, valores, usos e significados do passado.
Referências bibliográficas
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representation in Early and Post Modernity. Tese (doutorado). School of Museum Studies,
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121
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literature of the sixteenth to eighteenth centuries. Journal of the History of Collections.
Oxford, v. 2, n. 2, p. 205-218, 1990.
122
OITO PINTURAS DE ALBERT ECKHOUT NOS MUSEUS
OITOCENTISTAS DA DINAMARCA: UM ENSAIO SOBRE A
SOBREDETERMINAÇÃO HISTÓRICA DAS PRÁTICAS EXPOSITIVAS
SOBRE A INTERPRETAÇÃO DE ACERVOS MUSEOLÓGICOS
Resumo: Por meio da investigação da biografia de um conjunto de pinturas produzidas por Albert
Eckhout, em seu trânsito por diversos museus dinamarqueses, ao longo do século XIX, este paper se
propõe a investigar as relações históricas que podem conectar as interpretações de acervos museais
com as práticas e espaços expositivos aos quais foram submetidos.
Palavras-chave: História das Coleções; História das Exposições; Museologia; Arte Neerlandesa
123
DINAMARCA, 1845
O naturalista escapou de cair no mar. Foi por pouco. O navio corria a dez nós, entre as
costas da Pomerânia e da Zelândia. Ele e o rei da Prússia estavam no convés, observando os
efeitos da luz da lua sobre as ondas, quando ocorreu o incidente. Do insignificante episódio,
resultou uma longa impressão do tombadilho em uma de suas pernas. Dias depois, um
espirituoso comentário brotou em uma carta endereçada ao astrônomo François Arago: “Cair
no mar [...] seria uma forma muito bela de sair da vida e ficar prudentemente livre do
segundo volume do Kosmos”. (HUMBOLDT, 1869, p. 311)
Lançado havia dois meses, o primeiro volume da obra tinha alcançado uma inesperada
popularidade, surpreendendo seu autor. Naquele momento, em junho de 1845, a primeira
edição havia se esgotado. (MACGILLIVRAY, 1860, 416) A surpresa com o sucesso do livro
era enorme. Só não era menor que o incômodo causado pelos críticos, que o acusavam de
ateísmo e de um superficial apego aos sentimentos – uma mistura de afeto e razão que soava
estranha aos olhos de alguns amantes das ciências, naquele momento em que o Criacionismo
e a epistemologia da objetividade científica competiam ombro a ombro com outros sistemas
de pensamento pela hegemonia no campo da produção do conhecimento. (HUMBOLDT,
1860. p. 194. HUMBOLDT, 1860b. p. 133-134.)
124
Não seria estranho, portanto, que o naturalista sentisse alguma ansiedade face às
expectativas geradas em torno da continuidade do trabalho. Embora o problema não
abandonasse sua mente,
a escrita do segundo volume da obra ficaria suspensa, enquanto durasse aquela viagem
à Escandinávia. Humboldt era camareiro e conselheiro privado do rei da Prússia, Friedrich
Wilhelm IV. E, como membro da comitiva real, fazia sua primeira visita à Dinamarca.
No dia anterior ao acidente, 16 de julho, o naturalista partiu de Berlim rumo ao porto
de Estetino, na Pomerânia. Ali, se juntou aos seus companheiros de viagem e o navio zarpou.
A jornada de um dia, a bordo do Rainha Elisabeth, brindou seu olhar treinado com magníficas
vistas da vegetação costeira. Ventava fresco e o mar estava extremamente alto. Em poucas
horas de navegação, o navio aportou em Swinemünde. Durante a tarde, a comitiva real seguiu
para Copenhague. No dia 18 de julho, já na cidade, Fredriech Wilhelm IV e seu séquito
seguiram uma intensa agenda. Humboldt alegrava-se de ter a perna muito pouco dolorida.
Não seria ela, portanto, que o impediria de percorrer a pé largos trajetos pela cidade.
(HUMBOLDT, 1869, p. 311) Sendo a figura mais ilustres da comitiva, sua presença era
esperada pelo monarca dinamarquês e por vários intelectuais.
Entre um compromisso e outro, a breve jornada ofereceu a Humboldt oportunidades
para refinar seu repertório de conhecimentos sobre o mundo natural e repensar o rumo de sua
obra. Na viagem à Dinamarca, o naturalista teria a chance de conhecer novas paisagens, travar
discussões com intelectuais e visitar os novos museus locais, que prometiam ser importantes
repositórios de elementos da natureza daquela zona fria e da cultura material dos homens que
ocuparam a Europa setentrional. Nestas peregrinações, movido pela curiosidade ou pelas
obrigações, entre os dias 19 e 20, o naturalista se ausentou de Copenhague. Movido pela
curiosidade ou pelas obrigações, entre os dias 19 e 20, ele se ausentou de Copenhague.
Rumando para o norte, ele visitou o castelo de Frederiksborg, em Hillerød. O antigo castelo
sediava, desde 1825, a nova criação do rei Dinamarquês: o Museu Real de Arte (Det
Kongelige Kunstmuseum). [fig. 1]
Pássaros, mamoeiros, bananeiras, helicônias, indígenas e negros... É de se imaginar a
surpresa do naturalista ao descobrir enormes telas com imagens da América, expostas no
125
museu, em meio a obras de renomados mestres da pintura europeia. No interior da Dinamarca,
Humboldt não encontrou apenas representações de montanhas e rochedos cobertos pela alva
neve, ravinas verdejantes entrecortadas por plantações de trigo ou praias serenas e pedregosas;
temas que se tornaram recorrentes na pintura de paisagens bálticas do século XIX.
Inesperadamente, a visita ao museu deu-lhe a oportunidade de contemplar um conjunto de
telas cobertas com sete diferentes paisagens dos trópicos.
Nos grandes quadros, à frente de cada paisagem, Alexander von Humboldt pode ver
figuras de homens e mulheres com os mais diversos aspectos: um casal de índios nus,
selvagens e canibais, ocupavam um par de telas; outras duas eram preenchidas pela imagem
de um casal de ameríndios e uma pequena menina, que adotaram modos civilizados como o
uso de roupas e de facas de metal; a terceira dupla de quadros continha um homem e uma
mulher negros, sendo ela acompanhada por um menino. Junto às pinturas, a sala de exposição
do museu ainda revelava outra obra, desta vez exibindo oito homens indígenas dançando em
frente a duas mulheres de seu grupo. [fig. 2-8]
O naturalista foi informado que as telas haviam sido pintadas por Albert Eckhout, um
artista neerlandês que viveu no Brasil seiscentista, aonde esteve a serviço do conde Johann
Moritz von Nassau-Siegen. É possível imaginar o misto de surpresa e familiaridade que teria
tomado conta de Humboldt, ao conhecer as obras de Albert Eckhout nas galerias do museu. O
pintor era absolutamente desconhecido pelos amantes da arte, no século XIX. Seu nome havia
sido esquecido havia muito tempo. Tampouco eram conhecidas outras obras com a marca de
sua assinatura, para além daquele conjunto de pinturas que pertencia ao rei da Dinamarca e se
encontravam no museu.70
Ainda assim, parte das imagens que Humboldt descobria na Galeria de Retratos lhe
eram conhecidas. Quando jovem, o naturalista possuiu em sua coleção uma taça de noz de
coco contemporânea às telas da galeria. [fig. 26] (SPENLÉ, 2011, p. 10.) A peça havia sido
70
O catálogo da Galeria Real de Pintura, instalada em Copenhague, indicava a existência, na coleção de pinturas
da “escola neerlandesa”, de uma tela que portava a assinatura “N. Eckhout f.”; correspondendo “f.” a fecit (fez).
(SPENGLER, 1827. p. 3002.) O tema pintado foi tradicional entre artistas protestantes do século XVII: o banho
de Susana. Não se sabe, contudo, o destino desta tela, que poderia ter sido realizada por Gerbrand van den
Eckhout ou por Albert Eckhout; considerando-se a possibilidade de o “N” ser um equívoco de leitura da
assinatura por desconhecimento de algum pintor. Caso fosse confirmada a fatura da imagem por Albert Eckhout,
esta seria a única obra conhecida do autor com tema não brasileiro.
126
feita a partir de uma noz esculpida, fixada por três braçadeiras em um pé de prata. Uma
tampa, do mesmo metal, finalizava a taça. Objetos como este foram cobiçados na Europa dos
séculos XVI e XVII, fazendo-se presente em inúmeras coleções e gabinetes de curiosidades
da época.
Contudo, o exemplar que pertenceu a Humboldt se diferenciava de objetos
semelhantes. No espaço entre cada braçadeira, a noz era decorada com relevos, reproduzindo
três cenas ambientadas na América. Uma das cenas era cortada ao meio por uma grande
bananeira. Ao seu redor, podiam ser vistos casebres e choupanas espalhados pela paisagem.
Junto à bananeira, dois ameríndios destacavam-se no primeiro plano: um homem à esquerda,
uma mulher à direita. Ornado com um cocar, o índio carregava uma borduna, um propulsor de
lanças e duas grandes lanças. A índia, com o sexo oculto por folhas, carregava uma grande
cesta às costas, presa por uma correia que lhe passava na testa. Na mão esquerda e sob o
braço, ela levava um maço de plantas. Na direita, segurava uma mão humana decepada, a
denunciar a antropofagia. Essas imagens – é de se imaginar – teriam habitado a fantasia do
jovem naturalista que sonhava viajar pela América. Eram figuras – e talvez Humboldt o
percebesse agora – que indubitavelmente haviam sido copiadas de dois quadros de Eckhout,
que se encontravam do museu de Hillerød: o Homem Tapuia e a Mulher Tapuia.
Em outra face da noz, a cena esculpida era entrecortada por um coqueiro no lugar da
bananeira. Ali, um homem seminu carregava um arco e flechas. Próximo a ele, uma mulher
trajando uma bata equilibrava uma cesta de frutos na cabeça. A figura do homem copiava o
Homem Tupi, mais uma criação do pintor neerlandês que pertencia ao museu. Já mulher
representada, embora não fosse perfeitamente idêntica, em muito lembrava a tela da
Mameluca, que Humboldt tinha à sua vista, ali em Frederiksborg.
Havia mais de quarenta e cinco anos que Alexander von Humboldt não possuía mais
aquela taça. Em algum momento às vésperas de partir em sua famosa viagem à América,
iniciada no ano de 1799, o naturalista teria presenteado Reinhardt von Haeften com o refinado
objeto. É possível que a oferta tivesse sido ocasionada pelo fato de Haeften não poder
acompanhar o amigo em sua aventura oceânica, o que impediu a realização de um sonho há
muito tempo acalentado por eles. Após isto, não há registros de que Humboldt tivesse tornado
127
a ver a taça de noz de coco, que permaneceu em posse da família de Haeften por cerca de dois
séculos, desde sua morte em 1803. (SPENLÉ, 2011, p.10.)
Se o naturalista ainda se recordava da taça é muito provável que ele realmente tivesse
associado as imagens gravadas em sua superfície com as representações da pintura de
Eckhout. Esta hipótese, contudo, permanece no campo das conjecturas. Em lugar algum,
Alexander von Humboldt registrou as impressões que o assaltaram no momento em que,
percorrendo o Museu Real de Arte, ele se deparou com as obras de Albert Eckhout. As
emoções, memórias, associações e ideias que lhe ocorreram no momento do encontro com
aquelas recriações do mundo tropical estão irremediavelmente perdidos.
Entretanto, a impressão causada pelas pinturas brasileiras foi tão forte que se fixou na
memória de Humboldt. Dois anos após a visita a Frederiksborg, a lembrança dos quadros era
fresca o suficiente para que Humboldt os descrevesse no segundo volume do Kosmos,
caracterizando-os como “primorosos grandes quadros a óleo, conservados na Dinamarca (em
uma galeria do belo castelo Frederiksborg)”. (HUMBOLDT, 1847. p. 85.)
A citação às telas de Albert Eckhout cumpria um papel crucial na composição do
segundo capítulo do livro, no qual o naturalista tentou reconstituir a tradição europeia de
representações das paisagens naturais. A referência às galerias do Museu Real de Arte, por
outro lado, não desempenha papel algum na narrativa de Humboldt. Ela tão somente indica o
local de guarda daquelas pinturas, nunca antes referenciadas na literatura científica ou nos
compêndios de história da arte. Ao mesmo tempo, ela deixa transparecer uma pálida pista
sobre as apreciações construídas pelo viajante em sua visita ao museu.
Ao mencionar a galeria do “belo castelo”, o naturalista abre uma brecha em sua
narrativa que incita perguntas sobre o papel daquele espaço na construção de sua reflexão
sobre as pinturas de Albert Eckhout. Elevando o questionamento a âmbitos mais gerais, e
alinhando-as aos universos de pesquisa da Museologia e da História dos Processos Museais,
esta passagem do Kosmos induz o pesquisador a investigar os possíveis impactos das
condições de exibição de acervos museológicos, incluindo os próprios espaços expositivos,
sobre as percepções que o visitante constrói dos acervos museológicos que observa. Ao
recriar a biografia das obras de Albert Eckhout, este ensaio pretende demonstrar como
128
diferentes culturas e condições de exposição, em interação com distintos sistemas de
pensamento, fizeram com que as telas vistas por Humboldt, em sua passagem pela
Dinamarca, fossem interpretadas de formas radicalmente distintas.
PRÚSSIA, 1847
O cerne do primeiro tomo do Kosmos havia sido uma vasta discussão sobre tudo
aquilo que “a ciência, fundada sobre observações rigorosas e apurada das falsas aparências,
nos deu a conhecer sobre os fenômenos e as leis do universo”. (HUMBOLDT, 1847. p. 1.)
Mas, para Humboldt, o “espetáculo da natureza” não estaria “completo se não considerarmos
como ele se reflete no pensamento e na imaginação” dos homens, especialmente quando há
uma predisposição para “impressões poéticas”. Assim, publicado em 1847, o novo volume foi
dedicado a reconstruir traços da história do conhecimento do mundo físico, identificando as
maneiras como o “sentimento da natureza” marcou o pensamento de poetas, pintores e
viajantes – homens que, “através da pluma e do pincel”, descreveram cenas naturais, dando-
lhes uma segunda existência. (HUMBOLDT, 1847. p. 85-86. GALUSKY, 1855. p. X.)
O naturalista dividiu o livro em duas partes: Reflexo do mundo exterior sobre a
imaginação do homem e Ensaio histórico sobre o desenvolvimento progressivo da ideia de
universo. A primeira foi destinada à análise dos “meios próprios à difusão do estudo da
natureza”, sob “três formas particulares, segundo as quais se manifestam o pensamento e a
imaginação criadora do homem”: a literatura descritiva, a pintura de paisagem e as coleções
de vegetais dos jardins e estufas. (HUMBOLDT, 1847. p. 1.)
A cada forma de expressão, foi dedicado um capítulo. Cada capítulo comportou
exemplos nada fortuitos. Ao contrário, a reflexão de Humboldt voltara-se exclusivamente para
o estudo da obra de homens que cumpriram um papel decisivo no desenvolvimento do gosto
pela natureza e por seu estudo científico. No capítulo sobre a pintura de paisagem, ele
advertiu que o interesse por este gênero de arte residia em sua capacidade de nos convidar,
“de maneira tão instrutiva quanto agradável, a entrar em livre comércio com a natureza”,
instigando o desenvolvimento do “gosto pelas viagens” e da contemplação da “fisionomia das
plantas” própria de cada espaço da terra. (HUMBOLDT, 1855. p. 85-86.)
129
O segundo volume do Kosmos assumiu, então, a forma de uma história do
conhecimento sensível do mundo físico. Nele, Humboldt discorreu sobre as maneiras como a
visão da natureza produziu impactos nos sentidos, no pensamento e na imaginação de homens
de diferentes épocas e origens. Explicou como celtas, árabes, hebreus, os cristãos primitivos,
os germânicos da Idade Média e europeus da era moderna expressaram seu interesse pela
natureza por meio de textos e imagens; registros da natureza ora fidedignos, ora não, mas que
nunca alcançaram o objetivo perseguido pelo naturalista: produzir o equilíbrio entre a
descrição exata das coisas e a transmissão das emoções causadas pela visão da natureza.
A análise de Humboldt percorreu os tempos e as geografias do mundo, forjando
tradições para
a representação literária e pictórica do mundo natural. Nos capítulos sobre a escrita
descritiva e a pintura de paisagem, as narrativas alcançaram o ápice a uma mesma altura da
passagem do tempo: a conquista do Novo Mundo.
A “sede de ouro” e o “desejo de visitar terras longínquas” foram, segundo ele, os
motores que levaram portugueses e espanhóis à América, descortinando a zona tórrida e suas
formas de vida ao escrutínio da curiosidade europeia. Pela primeira vez, “o mundo tropical,
em conjunto, ofereceu ao olhar dos europeus a magnificência de suas planícies fecundas,
todas as variedades da vida orgânica escalonada sobre as encostas das Cordilheiras, e os
aspectos dos climas do norte que parecem refletidos sobre os platôs do México, da Nova
Granada e de Quito”. Espíritos inflamados de amor pela natureza, europeus de muitas nações
compassaram o globo, ampliando “o círculo das observações científicas”. Aos olhos do
naturalista, a conquista da América foi a revolução que franqueou aos homens a possibilidade
de conhecer e conectar os fenômenos naturais do cosmos. (HUMBOLDT, 1855. p. 59-61.)
Na genealogia traçada pelo autor, Cristóvão Colombo ocupou o lugar de primeiro
europeu a ter o gênio e a pena animados por “um profundo sentimento da natureza”. Com
“nobreza e sensibilidade de expressão”, seus textos teriam descrito as novidades que a vida, a
terra e o céu da América apresentaram diante de seus olhos. (HUMBOLDT, 1855. p. 62.)
A revolução da pintura ocorreria um século mais tarde. Segundo Humboldt, o
amadurecimento da pintura de paisagens resultou da concorrência de várias condições,
130
surgidas apenas no século XVII: a emancipação deste gênero artístico em relação à pintura de
história, o aperfeiçoamento de técnicas que permitiam a observação direta da natureza e o
surgimento de uma “consciência mais elevada do sentimento da natureza” tornaram os
pintores hábeis na imitação dos modelos oferecidos pelo mundo natural. A transformação foi
lenta e teria decorrido das conquistas obtidas pelos pincéis de artistas como Claude Lorrain,
Gaspar e Nicolas Poussin, Salomon van Ruysdael, Albert Cuyp, Meindert Hobbema e Allart
van Everdingen. (HUMBOLDT, 1855. p. 93-94.)
Entretanto, Humboldt considerava que a pintura de paisagens só teria atingido a
maturidade quando a ampliação “dos conhecimentos geográficos” e a descoberta América
conferiram maior “variedade e precisão” à arte de representar “as formas individuais da
natureza”. Para ele, as viagens ultramarinas; o comércio global de especiarias e de substâncias
medicinais; as gravuras de relatos de viagem e de livros de história natural; e a aclimatação de
espécies vegetais de todos os continentes em menageries e jardins botânicos teriam
familiarizado artistas que não saíram da Europa com as “formas maravilhosas de um grande
número de produtos exóticos”. (HUMBOLDT, 1855. p. 95.)
Jan Brueghel, o velho, seria um dos primeiros pintores tocados pela realidade
ultramarina. O naturalista reconhecia em sua pintura uma “charmosa verdade” a dar forma a
“galhos de árvores, flores e frutas estrangeiros à Europa”. (HUMBOLDT, 1855. p. 96.) Ainda
assim, nem este flamengo e nem de seus contemporâneos teriam logrado êxito na reprodução
do “caráter particular da zona tórrida”, sem travar contato com a fisiognomia do Novo
Mundo. Na tradição da pintura de paisagem inventada por Humboldt, a descrição fiel da
natureza tropical e o ápice deste gênero artístico surgiriam com os primeiros quadros pintados
in situ, por artistas atentos às novidades que os circundavam.
O “mérito dessa inovação”, segundo o naturalista, coube a “Frans Post, de Harlem, que
acompanhou Moritz von Nassau ao Brasil, quando esse príncipe, muito curioso das produções
tropicais foi nomeado governador, pela Holanda, das províncias conquistadas aos
portugueses”. Revisitando informações colhidas junto ao historiador da arte e diretor da
Galeria Real de Pintura de Berlim, Gustaf Friedrich Waagen, Humboldt reputou o artista
neerlandês como o primeiro artista a representar as regiões tropicais, a partir da observação
131
direta.71 Complementando as informações sobre o artista, Humboldt registrou que, “durante
vários anos, Post realizou estudos d’après nature sobre o promontório de Santo Agostinho, a
Baía de Todos os Santos e as margens do Rio São Francisco”, chegando a transpor alguns
deles em pinturas e gravuras. (HUMBOLDT, 1847. p. 85.)
Mas, na tradição da pintura de paisagem construída por Humboldt, Frans Post dividia a
primazia na representação da natureza da zona tórrida com seu colega de viagem, Albert
Eckhout. Com efeito, Humboldt não deixou de empregar as lembranças da estadia em
Hillerød na construção
da sequência de sua história da influência do “sentimento da natureza” sobre a
sensibilidade e o trabalho dos pintores. Ao descrever os “primorosos grandes quadros a óleo,
conservados na Dinamarca”, ele afirmou que as “palmeiras, mamoeiros, bananas e helicônias”
figurados pelo artista haviam sido “muito caracteristicamente retratados”, como também o
seriam “a figura dos nativos, as aves de pensas coloridas e pequenos quadrupedes”.
(HUMBOLDT, 1847. p. 85.)
Ao frisar as características que percebia nos quadros criados pelo “pintor Eckhout que,
em 1641, também esteve com o Príncipe Maurício de Nassau na costa brasileira”, Humboldt
reforçou seu argumento de que o engrandecimento do gênero da pintura de paisagens advinha
do exercício de um procedimento que ele reputava ter sido inaugurado pelo artista e seu
colega de viagem: a representação da natureza tropical com base em esboços realizados a
partir da observação do ambiente natural.
O barão não conhecia outros artistas que, ao se aventurarem fora da Europa, deixaram-
se impregnar pelas formas e cores dos trópicos. Por isto, asseverou que o pioneirismo de Post
e Eckhout não produziu continuadores de imediato. Humboldt escreveu no Kosmos que “esses
exemplos da representação fisiognômica da natureza não foram seguidos por muitos artistas
71
Não se sabe, até o momento, se Humboldt colheu informações acerca de Frans Post diretamente com Waagen
– que certamente pertencia a seus ciclos sociais – ou se através de algum de seus trabalhos. Em uma das
publicações sobre coleções de arte da Grã-Bretanha, o eminente historiador da arte arrolou “duas pequenas
paisagens com cenas americanas” pintadas por Post, entre os quadros existentes em Broughton Hall.
(WAAGEN, 1854. vol. 3, p. 460.) Ao descrever as pinturas, ele indicou que seus assuntos “formam os temas das
primeiras imagens deste artista”; o que sugere que Waagen tinha familiaridade com outras obras do pintor de
Nassau.
132
de talento até a segunda viagem de circunavegação de Cook”, em 1772. (HUMBOLDT, 1847.
p. 86.)
O segundo elo na tradição das pinturas de paisagens tropicais cunhada por Humboldt
apareceria, portanto, mais de cem anos depois que os artistas de Nassau retornaram do Brasil
para a Europa. A viagem do pintor William Hodges pelas ilhas ocidentais e pelo mar do sul,
em companhia de James Cook, seria a ocasião que propiciaria a perpetuação da invenção de
Post e Eckhout na pintura europeia. Hodges havia sido professor de Humboldt. É possível,
portanto, que a observação de sua produção tivesse influenciado o jovem naturalista,
orientando a formação de seu gosto e a criação de suas próprias ideias sobre como deveria ser
composta a obra de um bom ilustrador científico.
Seguindo a seara aberta pela expedição de Hodges e pela viagem de Ferdinand Bauer à
“Nova Holanda e à terra de Diemen”, Humboldt identificou em sua própria época a
emergência de uma nova geração de artistas que, ao visitarem os trópicos, deram continuidade
ao trabalho de representar suas paisagens. Johann Moritz Rugendas, o Conde de Clarac,
Ferdinand Bellerman e Édouard Hildebrandt executaram, “com um talento superior”,
paisagens dos países tropicais da América já visitadas por Post e Eckhout. Do mesmo modo,
Henri de Kittlitz, “que acompanhou o almirante russo Lutke em sua expedição ao redor do
mundo, prestou o mesmo serviço ao descrever inúmeras outras partes da terra”.
(HUMBOLDT, 1847. p. 86.)
Elevada à condição de ponto nodal de uma tradição paisagística que produzia uma
ponte que unia a arte à ciência, a obra dos dois artistas de Nassau saiu das sombras impostas
pelo culto aos grandes mestres do século XVII e ganhou um novo status. Um “despertar
oficial do interesse” pelos pintores seguiu a menção de Humboldt às suas obras. (BRIENEN,
2012, p. 81) Os quadros de Post chamaram a atenção dos amantes da arte e foram disputados
por museus, institutos históricos e colecionadores privados, especialmente no Brasil e nos
Países Baixos. Já as obras de Eckhout, tiveram outra fortuna. De início, não atraíram a
atenção dos conhecedores e amantes da arte. O público acadêmico foi lentamente seduzido
pelas imagens do passado americano que, com um aspecto acentuadamente realista, brotaram
das mãos do pintor. A exuberância das helicônias, das palmeiras, dos mamoeiros delineados a
133
óleo encantou-os pela beleza; e por oferecer um trampolim para a renovação do pensamento
sobre o Novo Mundo nas ciências naturais.
Reflexo de sua popularidade, a passagem do livro sobre “os artistas que pintaram as
paisagens do Novo Mundo” foi republicada e citada em livros e periódicos da época, como o
Le Magasin Pittoresque. (MAGAZIN PITTORESQUE, 1849, p. 363) As ideias contidas no
Kosmos mudaram a percepção coletiva das pinturas expostas no museu dinamarquês, que
foram alçadas do desconhecimento à proeminência internacional. As considerações do
naturalista sobre o modo como o pintor condensou “muito caracteristicamente” a imagem da
natureza tropical e de seus habitantes suscitaram o interesse pelas obras. Não entre os
especialistas em arte, mas sim em naturalistas e em antropólogos, despertados pela opinião de
um dos seus mais célebres colegas. Os olhos deste público, treinados pelos paradigmas da
ciência oitocentista e orientados pela observação de Humboldt que fazia crer que as pinturas
eram descrições fiéis do mundo tropical, escrutinaram as imagens do pintor batavo. Eles
buscavam documentos virgens sobre o passado da América, prontos para serem inquiridos em
suas pesquisas.
DINAMARCA, 1820.
No momento em que Alexander von Humboldt deitou os olhos sobre as pinturas de
Albert Eckhout, elas já estavam no reino da Dinamarca por mais de 190 anos. Elas faziam
parte de um conjunto de 24 pinturas, produzidas no Brasil, com que o conde de Nassau
presenteou seu primo Frederik III, soberano do Reino Duplo da Dinamarca e da Noruega, em
1654. Além das sete obras observadas por Humboldt, o presente era composto por mais uma
dupla de pinturas representando uma mameluca e um mulato, doze naturezas-mortas com
vegetais da América, da África e da Europa, um retrato de Dom Miguel de Castro,
embaixador do Conde do Sonho enviado a Recife em 1640, dois retratos de Nassau e duas
efígies de pajens negros. (GOMES, 2016, p. 22)
De sua criação no Recife, entre os anos de 1641 e 1643, à sua chegada em
Copenhague, as pinturas haviam percorrido uma turbulenta jornada, que incluía sua partida do
Brasil, em 1644; a travessia do Atlântico em navios; sua instalação e exibição na Mauristhuis,
134
residência de Nassau em Haia; e uma possível permanência no condado de Kleef, a partir de
1652. Ao largo do tempo, as peças sofreram inúmeros deslocamentos e sucessivos danos. Já
na Dinamarca, elas foram restauradas e, finalmente, incorporadas à Kunstkammer de Frederik
III, em 1646. (GOMES, 2016)
Na Kunstkammer real, as obras foram acondicionadas em diversas câmaras temáticas,
que alinharam suas interpretações às relações políticas do rei dinamarquês e à suas
expectativas pela introdução do Reino Duplo no comércio ultramarino das índias Ocidentais,
com a exploração de terras na África e na América.
Com o falecimento de Frederik III, sua coleção foi herdada por seu filho Christian IV,
que a fez aumentar sem perder os significados com que foram revestidas no tempo de seu pai.
Transferidas para uma galeria no castelo de Christiansborg, especialmente criada para acolher
a coleção, a Kunstkammer real permaneceu praticamente intocada até o século XVIII, quando
algumas de suas pinturas – incluindo os dois retratos de Nassau pintados por Eckhout – foram
separados do restante do conjunto para compor uma galeria de arte à moda iluminista, na qual
estas obras passariam a ser encaradas como importantes representantes da retratística
neerlandesa do século XVII. As outras obras, por mais de um século, descansaram nas
paredes da antiga Kunstkammer, expostas de uma maneira já fora de moda e sem já conseguir
evocar
os sentidos que orientaram sua acumulação.
Neste largo tempo, ocorreu o esquecimento do artista e de suas obras pelos
connoisseurs e pelos amateurs de arte da Europa ocidental. Mas, a despeito das aparências, na
Dinamarca, a vida das pinturas não adormeceu. Individualmente ou como parte de coleções,
elas passaram por transformações – nem sempre físicas, muitas vezes simbólicas – que
constantemente ocasionaram renegociações de seus sentidos e significados. Durante toda a
existência, as pinturas de Eckhout mudaram de contexto, variaram na forma como foram
percebidas e acumularam histórias. Os significados que elas apresentaram, quando vistas por
Humboldt, antes ou depois disto, derivam em parte das “pessoas e eventos aos quais
estiveram conectadas”, em parte dos museais e expositivos em que foram percebidas.
(GOSDEN; MARSHALL, 1999. p. 172)
135
Ao entrarem para o acervo do Museu Real de Arte da Dinamarca – onde Humboldt as
viu –, as obras de Eckhout tomaram parte no processo de dissolução da Kunstkammer real.
Fundado por Frederik III, em 1650, o gabinete de curiosidades foi herdado e ampliado pelos
descendentes do monarca. A despeito de várias transformações, a coleção e a instituição da
Kunstkammer real sobreviveram até meados da década de 1820. A partir de então, diversos
fatores levaram à sua dissolução, por decisão de um grupo de especialistas escolhidos pelo rei
Frederik VI para garantir a preservação dos acervos reais. A Kunstkammer fragmentada deu
origem a coleções menores, que foram absorvidas pelos museus públicos e especializados que
estavam a ser criados. (GUNDESTRUP, 1988. p. 187; 189) É neste momento e neste contexto
de percepção que as pinturas de Eckhout fizeram sua aparição para Humboldt, foram
redescobertas e ganharam proeminência internacional.
DINAMARCA, 1848
72
THOMSEN, 1938. p. 5-6.
73
Joachim Frederik Schouw tornou-se diretor do Jardim Botânico em 1841. Um de seus projetos acadêmicos foi
a produção de um estudo da geografia da vegetação da Itália e da Sicília, elaborado com o intuito de obter um
estudo intermediário sobre zonas climáticas intermediárias aos trópicos, estudados por Alexander von Humboldt,
e as regiões polares e altas, trabalhadas por Goran Wahlenbergs. Para cumprir seus objetivos, Schouw
permaneceu na Itália por três temporadas. Na segunda, ocorrida entre 1829 e 1830, ele contou com a colaboração
do paleontólogo P.W. Lund, recém retornado de sua primeira viagem ao Rio de Janeiro.
136
Assim, antes que arte, a pintura do artista neerlandês passou a ser percebida como
“uma inestimável lição etnográfica”.74 Esta mudança de estatuto das obras foi coroada quando
“cientistas oficiais fizeram transferi-la, em 1848 e 1849, para o novo museu” que se
encontrava em montagem: o Museu Etnográfico Real (Det Kongelige Ethnographiske
Museum).75 Esta instituição derivava do Museu Real de Arte (Det Kongelige Kunstmuseum).
Em verdade, a razão maior de sua fundação foi o enorme crescimento do departamento
etnográfico do museu de arte, sob a coordenação do arqueólogo diletante Christian Jürgensen
Thomsen.76
Thomsen envolveu-se profundamente com a ampliação da sessão etnográfica,
especialmente após 1839, ano em que foi apontado como novo diretor do Museu Real de Arte.
Em pouco tempo, ele começou a selecionar itens para compor a coleção de um museu
etnográfico, que planejava criar.77 A crescente coleção foi, então, transferida para o palácio
Prindsens, em Copenhague. Por fim, o Museu Etnográfico Real abriu as portas em 1849,
como uma das primeiras instituições do gênero a serem criadas na Europa.
Da produção de Albert Eckhout, o novo museu expôs em suas salas somente “os
quadros que mais interessavam à ciência”, mais propriamente à etnologia.78 A primeira seção
da exposição permanente era dedicada às “nações que geralmente não processam seu próprio
metal”.79 Nela foram dispostas as grandes telas com a dança indígena, os índios tapuias e os
tupis, integrando os setores dedicados às regiões quentes da América do Sul.80 Os quadros
com o casal de negros foram pendurados na seção seguinte, que abordava as “nações que
trabalham o metal, mas que não desenvolveram sua própria literatura”.81 Eles foram exibidos
no setor destinado ao Brasil, junto aos povos das áreas cálidas da América. No catálogo da
74
GUIMARÃES, 1932. p. 96. GUIMARÃES, 1931. p. 272. GUIMARÃES, 1957. p. 152.
75
GUIMARÃES, 1932. p. 96. GUIMARÃES, 1931. p. 272. GUIMARÃES, 1957. p. 152.
76
ESKILDSEN, 2012. p. 31.
77
GUNDESTRUP, 2012. p. 112.
78
GUIMARÃES, 1932. p. 96. GUIMARÃES, 1931. p. 272. GUIMARÃES, 1957. p. 152. GUNDESTRUP,
2002. 112.
79
STEINHAUER, 1866. p. 1.
80
No catálogo do museu, estas peças aparecem sob os números 97, 99, 100, 110 e 110. STEINHAUER, 1866. p.
40; 43.
81
STEINHAUER, 1866. p. 44.
137
exposição, foram apresentados como a imagem de “um negro e uma negra libertos, com seu
filho”, “pintada no Brasil por Albert Eckhout”.82
A partir de então, as telas que foram expostas – seis das oito representações de
homens e mulheres dos trópicos – se tornaram o foco da apreciação de todos os interessados
pela obra de Albert Eckhout. Perante a proeminência destas obras e a força do discurso
expográfico que as apresentava, as outras 20 telas ofertadas por Nassau a Frederik III foram
obscurecias e relegadas ao segundo plano. A expografia do Museu Etnográfico, oferecia as
imagens dos homens do Brasil ao olhar de curiosos e intérpretes. Ao fazê-lo, ela construía um
contexto de percepção que informou as primeiras interpretações acadêmicas das pinturas do
artista neerlandês, após a publicação do Kosmos. Não tardou, então, para que as oito telas com
habitantes do Brasil ganhassem a alcunha imprecisa de retratos etnográficos.
Recolhidas às reservas técnicas ou expostas em outras instituições, as pinturas
atribuídas a Albert Eckhout permaneceram à sombra das telas dos ditos retratos, agora
valorizados como documentos para a etnografia dos povos brasileiros. As obras com os bustos
dos africanos – o retrato de Dom Miguel de Castro e o par de peças com pajens – haviam sido
transferidas para a Galeria Real de Pinturas (Det Kongelige Billedgalleri), instalada no castelo
Christiansborg. [fig. 47] Por lá, elas ficaram um longo tempo. A transferência ocorreu ainda
na década de 1820, durante a formação do Departamento Etnográfico do Museu Real de Arte
da Dinamarca (Det Kongelige Kunstmuseum), já comandado por Christian Thomsen. É
provável que, àquela altura, ele considerasse as imagens de negros vestidos à europeia
irrelevantes como registros da cultura dos “primitivos” africanos, uma representação nada fiel
ao seu estágio evolutivo. Nem a visita de Humboldt, nem a instalação do Museu Real de
Etnografia trouxeram estas pinturas para o lado das outras obras do artista.83
Da mesma maneira, a despeito dos clamores do diretor do Jardim Botânico de
Copenhague, as naturezas-mortas de Eckhout foram recolhidas à reservas do Museu Real de
Etnografia. Posteriormente, elas foram resgatadas por seu valor decorativo, sendo penduradas
em um corredor escuro do palácio que sediava o museu. Os grandes quadros com a Mameluca
82
STEINHAUER, 1866. p. 67. As duas telas aparecem, no catalogo, sob o mesmo número 178.
83
GUNDESTRUP, 2012. p. 112. GUNDESTRUP, 2004. p. 56. SPENGLER, 1827.
138
e o Mulato, separados das outras telas com representações de habitantes dos trópicos, tiveram
um destino semelhante. Incialmente, eles foram expostos junto às pinturas do casal de negros,
como registros de estágios intermediários da civilização americana. Já na passagem entre as
décadas de 1920 e 1930, elas haviam sido retiradas da exposição e podiam ser vistas
ornamentando as paredes do gabinete de um dos diretores do museu, o historiador Carl
Mouritz Clod Mackeprang.84
O Museu Etnográfico Real, enfim, criou um lugar a partir do qual uma restrita seleção
de obras do o pintor seria lembrada e interpretada; e este não era a história da arte. Era o lugar
da etnografia avant la lettre.
Um etnólogo que atuava no museu, Kristian Bahnson, fixou este modo de perceber a
obra de Eckhout no meio acadêmico internacional. Quarenta e dois anos após a publicação do
Kosmos, ele foi o primeiro pesquisador a escrever um artigo dando relevo às pinturas
brasileiras. O texto não tinha os quadros como assunto principal. Seu foco era a investigação
sobre a origem das lanças de madeira sul-americanas que pertenciam à instituição. Ainda
assim, o artigo escrito pelo dinamarquês fundou um modo de interpretar a obra de Eckhout,
cujos argumentos foram repetidos, como cacoetes, na literatura especializada.
A tarefa de Bahnson não era fácil. Alguns artefatos não davam pistas sobre sua
procedência: eles tinham formas tão singulares, que não permitiam comparações e analogias
com outros exemplares conhecidos. Dois dardos e um propulsor de dardos, no entanto, eram
diferentes. [fig. 48] “Pelo menos dentro de certo limite”, o assistente do museu acreditava ser
capaz de “identificar sua origem”, posto que os artefatos estavam representados em duas telas
do conjunto de nove pinturas com brasileiros, criadas por Eckhout. Replicando o discurso do
museu, ele assegurava que aquelas obras de arte se encontravam na Dinamarca “há mais de
200 anos”. Quiçá – indicou ele – os quadros e as armas e teriam chegado juntos às coleções
reais, como aquisições da Kunstkammer do rei Frederik III, soberano do Reino Duplo da
Dinamarca e Noruega, como ocorreu com os objetos dos esquimós. As pinturas, afinal,
estavam arroladas nos inventários desta coleção desde a segunda metade do século XVII.
84
STEINHAUER, 1866. p. 66. GUIMARAES, 1931. p. 272.
139
Observando as duas telas – a pintura com um índio com o propulsor de dardos na mão
e aquela com um grupo indígena a dançar com armas em punho –, Bahnson destilou dados
sobre os objetos do museu e condensou conclusões gerais acerca do pintor. Os artefatos
existentes na coleção da instituição – segundo o etnólogo – eram quase idênticos às armas
indígenas representadas por Eckhout. Considerando que os dois quadros eram “as mais
antigas representações de tipos étnicos americanos, que se conhece”, ele afirmou que toda a
obra do pintor tinha “um significativo interesse”; um valor, a bem dizer, documental.85
A importância documental das pinturas de Eckhout era expressa, para o etnógrafo, na
pequena diferença percebida entre o realismo da representação das coisas brasileiras e o
aspecto dos artefatos salvaguardados pelo museu. Segundo Bahnson, “as características dos
personagens, seus penteados, seus lábios, suas joias nas bochechas, e a forma dos braços”,
somadas às assinaturas das telas, não deixavam dúvidas: as imagens representavam nativos do
Brasil. Por analogia, também eram brasileiros os objetos colecionados pelo museu. As
imagens criadas pelo artista foram interpretadas, assim, como registros dos vários “tipos de
povos” brasileiros do passado. Por esta característica, elas serviam ao etnólogo como fonte de
dados sobre os costumes e o modo de viver daqueles indígenas. Ao museu, como base para a
identificação da origem dos artefatos que integravam a sua coleção.86
Havia, contudo, limites para o uso das imagens de pela ciência oitocentista. E Bahnson
o percebia. No que concernia às “características faciais” do índio pintado por Eckhout – que o
dinamarquês tomou erroneamente por um tupi –, elas pareciam grosseiras e “dificilmente
reproduzidas de forma correta”. O etnólogo acreditava que “embora o artista tivesse uma
habilidade, rara em seu tempo, para reproduzir tipos estrangeiros”, “o tratamento da mão de
um artista habituado a pintar figuras europeias” pesava sobre as representações, distanciando-
as do real. O treinamento artístico, para o etnólogo, teria contaminado a habilidade de
Eckhout em transferir fielmente o visto para a representação, criando uma imagem pouco
acurada do aspecto do indígena. Sua mão, pelo hábito, se tornara infiel ao que os olhos viam.
O que não seria de todo estranho, afinal, “não se pode esperar uma representação
85
BAHNSON, 1889. p. 223.
86
BAHNSON, 1889. p. 221-222.
140
antropológica precisa dos tipos étnicos em pinturas do século XVII”, concluiu o
pesquisador.87
Este era um ponto sensível para a argumentação de Bahnson. O que importava para a
sustentação de sua hipótese era o caráter documental, e até testemunhal, das representações de
Eckhout. Era-lhe necessário, portanto, obter garantias da autenticidade do documento visual –
da fidelidade da representação à realidade das coisas. E, de fato, Bahnson sentia-se seguro
sobre isto. Sua confiança vinha da constatação de que as obras foram “realmente pintadas a
partir de modelos e não de esboços perdidos ou da imaginação” do artista. Em outras palavras,
as imagens que compunham as nove telas brasileiras seriam registros exatos da realidade, não
maculados por constrangimentos da tradição artística, nem falseados pela inventividade ou
pela fantasia do pintor.
Neste ponto, o aspecto das figuras dos índios, dos negros e dos mestiços fazia o
etnólogo acreditar que o artista as desenhou “inegavelmente a partir do natural”.88 Alexander
von Humboldt, antes dele, já havia afirmado que Frans Post – e não Albert Eckhout –
“realizou estudos a partir do natural” de paisagens do nordeste brasileiro, algumas delas
resultando em “pinturas concluídas”; outras, em gravuras feitas “de modo muito original”.89
Diferente do naturalista prussiano, Bahnson não baseou sua afirmação no conhecimento de
desenhos preparatórios ou esboços de observação feitos pelo artista, mas em suas impressões
no contato com as pinturas. Ele tinha para si que tão somente através da observação direta um
pintor obteria tamanha qualidade no registro dos adornos, das armas, corpos e estilos de
cabelo de “povos estrangeiros” tão diferentes. Parecia-lhe que a produção daquelas pinturas
seria “possível apenas se o artista tivesse os vários tipos diante de si”. Bahnson concluiu,
desta certeza, que os quadros foram realizados em alguma área do Brasil colonial, com índios
tupis e seus apetrechos bélicos, todos desenhados ao vivo.90
87
BAHNSON, 1889. p. 222-223. Paul Ehrenreich identificou e corrigiu o erro de Bahnson, pouco depois da
publicação de seu artigo. Ver, EHRENREICH, 1894, p. 81. EHRENREICH, 1905, p. 19.
88
BAHNSON, 1889. p. 223.
89
HUMBOLDT, 1847. p. 85. HUMBOLDT, 1855. p. 96.
90
BAHNSON, 1889. p. 223.
141
Descrevendo as circunstâncias de criação das imagens, Bahnson projetou valores da
ciência oitocentista sobre sua percepção do modo de produzir de um pintor seiscentista. Neste
processo, anteviu em Eckhout o exercício de uma virtude epistemológica ainda inexistente no
seu tempo: a aspiração por revelar a realidade, a verdade natural, através da observação arguta
e da representação fidedigna ao aspecto típico das coisas. Ele viu nas telas com homens e
frutos do Brasil o resultado de uma deliberada intenção de produzir registros acurados, fiéis
ao natural, criando uma radical separação entre uma cópia da realidade e a representação
submetida à interveniência da fantasia. Em suas análises, Bahnson, expurgou a possibilidade
de o artista haver empregado fosse a invenção, a ficção ou a simbolização em seu processo de
criação. A cópia fiel era o único recurso artístico próprio à obra de Eckhout.
Quando surgiram os primeiros estudos dedicados exclusivamente a Albert Eckhout, na
década de 1930, já estavam consolidados os padrões de leitura de suas obras como
documentos visuais. Os museus da Dinamarca forneceram os contextos de interpretação. Os
escritos e interpretações de Humboldt, Christian Thomsen, Bahnson e outros – como o
antropólogo Paul Ehrenreich – fecharam os argumentos utilizados nas primeiras leituras da
obra de Albert Eckhout. Argumentos que, com o tempo e pela força da repetição exaustiva,
passaram de hipóteses e incertezas a verdades.
142
RITORNELO: DINAMARCA, 1845
Tais são as visões. O visitante logo sai do museu; e, à porta, talvez não consiga ter em
conta quais daquelas extraordinárias aparições do mundo – cuidadosamente criadas a tinta –,
ficarão impressas em sua memória. Nem qual aspecto as coisas vistas tomarão ao se tornarem
lembrança ou serem futuramente recuperadas, como imagens mentais, na formulação de um
pensamento.
Não se deve menosprezar o fato de que o naturalista conheceu objetos, não apenas
imagens. Foram pinturas dotadas cuja presença física que o ajudaram a articular seu sistema
de ideias sobre a representação da América. Não se tratava apenas de imagens incorpóreas,
recortadas do mundo real. Além disto, os quadros de Eckhout fizeram sua aparição diante dos
olhos de Humboldt, não em um lugar qualquer. Mas, em um museu oitocentista – um espaço
que usualmente sobredeterminava a contemplação dos objetos com sentidos, significados,
discursos e valores, sobrepostos e intercruzados.
143
interpretação em um único discurso.93 Antes “do estágio da exposição verbal” – por meio de
legendas, textos e catálogos –, a espacialização dos itens de uma coleção já “encarna
propostas de ordenação” e significação. “Colocar três objetos em uma vitrine” não seria um
gesto fortuito e envolveria “implicações adicionais de relação” e significação.94 Um museu de
arte, como o de Frederiksborg, ofereceria ao público um eloquente contexto de percepção do
acervo.
93
GREENBLATT, 1991. p. 43.
94
BAXANDALL, 1991. p. 34.
95
BAXANDALL, 1991. p. 36.
144
O segundo agente é o expositor. Ele, em geral, opera no interior da mesma cultura que
o observador. É através dela que ele se apropria dos objetos. Seus propósitos são complexos.
Criar “uma boa apresentação para o objeto” é um deles. “Instruir o público”, outro. Quando
seus objetivos implicam na representação ou interpretação de outra cultura, então o ato de
expor “inclui, funcionalmente, a validação de uma teoria” ou de uma leitura desta cultura,
mediada pela presença do objeto.96
O último agente, é aquele para quem a exposição se dirige. Suas especificidades são a
intenção de “ver um objeto com interesse visual” e de procurar o seu entendimento. Ele,
obviamente, “é um ser de sua cultura”;97 é por meio das ferramentas mentais oferecidas por
ela, somadas à suas próprias experiências e expectativas, que o observador percebe o objeto e
o complexo expositivo que o apresenta.
96
BAXANDALL, 1991. p. 36-37.
97
BAXANDALL, 1991. p. 36-37.
98
BAXANDALL, 1991. p. 37.
99
BAXANDALL, 1991. p. 37.
145
exposição, formavam o contexto perceptivo que enquadrou suas possibilidades de
visualização e interpretação da obra de Albert Eckhout. Faziam exatos 20 anos que as telas
haviam sido transferidas de Copenhague para Hillerød, de Christiansborg para Frederiksborg,
da Kunstkammer real para o Museu Real de Arte. Se o naturalista tivesse observado as telas
em sua antiga morada – onde elas permaneceram expostas por quase 300 anos –, quem sabe,
as teria visto de forma distinta? Quiçá elas teriam entrado no Kosmos portando outros
sentidos.
Estas são apenas conjecturas. A realidade é que, na longa história de suas existências,
as pinturas do artista neerlandês sofreram sucessivos deslocamentos. De sua criação, no
Brasil, elas passaram à República batava, ao condado de Kleef e a Copenhague. Finalmente,
elas deram entrada na Kunstkammer de Frederik III, no Reino Duplo da Dinamarca e
Noruega. Muito aconteceu com as obras neste percurso. Elas foram exibidas em diversos
lugares e situações, como no palacete de Johann Moritz von Nassau-Siegen, em Haia.
Submetidas a novas formas de exibição, inseridas em outros contextos de percepção, elas
foram dadas a ver por vários atores. A cada visão, as pinturas foram revestidas por
significados novos.100 A todo deslocamento físico, as obras foram deslocadas simbolicamente.
Na história dos deslocamentos, novos significados se acumularam, como escombros, sobre as
tintas.
REFERÊNCIAS
GALUSKY, CH. Préface du Traducteur. In: HUMBOLDT, Alexander von. Cosmos. Essai
d’une Description Physic du Monde. Tome Deuxième. Paris: Gide et Baudry, 1855. p. IX-
XIV.
HUMBOLDT, Alexander von. Cosmos. Essai d’une Description Physic du Monde. Tome
Deuxième. Paris: Gide et Baudry, 1855.
100
Igor Kopytoff, estudando a passagem de mercadorias entre dois sistemas culturais, buscou compreender “os
meios pelos quais os objetos se tornam investidos por significados através das interações sociais em que são
tomados”. Segundo o autor, “estes significados mudam e são renegociados através da vida de um objeto”; e tais
mudanças no significado não necessariamente são conduzidas por modificações físicas ou de uso de um objeto”.
(GOSDEN; MARSHALL, 1999. p. 170. KOPYTOFF, 1986.)
146
HUMBOLDT, Alexander von. Kosmos. Entwurf einer physischen Weltbeschreibung von
Alexander von Humboldt. Zweiter band. (VOLUME II) Stuttgart; Tümbingen: J.G. Cotta,
1847.
147
OTIMIZAÇÃO DAS PESQUISAS SOBRE HISTÓRIA DAS COLEÇÕES
COM O USO DE BANCOS DE DADOS SISTEMATIZADOS,
ANÁLISES QUANTITATIVAS E SISTEMA DE INFORMAÇÕES
GEOGRÁFICAS101
Resumo: Os relatos de viajantes do passado têm sido utilizados como fontes documentais nos estudos
sobre formação de coleções criadas entre os séculos XVI e XVIII, incluindo os estudos sobre a
procedência de objetos colecionados. Um dos desafios impostos a estas pesquisas é a sistematização e
a análise das informações coletadas, pois narrativas livres e detalhadas dificultam a organização dos
fatos e a identificação da relação entre eles. A partir do estudo de relatos que fornecem dados sobre o
comércio de marfim entre África, Brasil e Portugal, na era moderna, propõe-se verificar o alcance da
organização das informações coletadas em base de dados e do uso da cartografia digital para a
reconstrução de rotas de comércio e a identificação das possíveis relações existentes entre
fornecedores, comerciantes e artífices produtores de peças de marfim; dados estes essenciais para a
aprofundar o conhecimento sobre a procedência dos objetos de marfim e acerca dos processos de sua
inserção em coleções. O objetivo dessa pesquisa é, portanto, estruturar um banco de dados para a
coleta sistemática das informações dos relatos de viajantes, visando responder as principais perguntas
sobre colecionismo de produtos naturais e manufaturados provenientes da África: Quem, o quê, onde e
quando esses produtos eram coletados e colecionados.
101
Este trabalho foi realizado graças à concessão de bolsa de Iniciação Científica PROBIC/FAPEMIG ao
Projeto “Raridades em Contexto: incorporação e ressignificação de objetos e imagens das Índias Ocidentais nas
coleções norte europeias”, subprojeto “Rotas do marfim africano no espaço atlântico (séculos XVI a XVIII)”,
por meio do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica PRPq-UFMG. O trabalho integra-se, ainda,
ao projeto “Marfins Africanos no Mundo Atlântico: uma reavaliação dos marfins luso-africanos”, realizado em
parceria estabelecida entre a Universidade Federal de Minas Gerais e a Universidade de Lisboa, e financiado
pelos Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, em Portugal, no âmbito do
projeto PTDC/EPHPAT/1810/2014.
148
Abstract: Travelers’ accounts of the past have been used as documentary sources in studies on the
formation of collections created between the sixteenth and eighteenth centuries, including studies on
the provenance of collected objects. One of the challenges imposed on these researches is the
systematization and analysis of the information collected, since free and detailed narratives make it
difficult to organize the facts and identify the relationship between them. Starting from the study of
reports that provide data on ivory trade between Africa, Brazil and Portugal in the modern era, it is
proposed to verify the range of the organization of the information collected in database and the use of
digital cartography for the reconstruction of routes and the identification of possible relationships
between suppliers, traders and manufacturers of ivory parts; data that are essential to deepen the
knowledge about the origin of the objects of ivory and about the processes of their insertion in
collections. The objective of this research is, therefore, to structure a database for the systematic
collection of information from travelers' reports, in order to answer the main questions about
collecting natural and manufactured products from Africa: Who, what, where and when these products
were collected?
149
Introdução
150
hábitos e valores cultivados pelas sociedades ocidentais do período moderno. O emprego
destas fontes de informação tem se mostrado especialmente profícuo nas análises dos hábitos
cotidianos das populações que viviam às margens dos grandes Impérios europeus, entre
séculos XVI e XVIII, quando são cuidadosamente inquiridos por estudiosos atentos aos
equívocos de percepção e desvios de interpretação próprios a indivíduos em breve trânsito por
contextos superficialmente conhecidos. Os relatos, correspondências, instruções e memórias
dos viajantes revelam dados importantes sobre suas percepções acerca dos hábitos sociais, das
condições de vida, da diversidade da fauna e da flora, e da importância dos minerais e de
outras riquezas naturais de cada localidade visitada; chegando-se, eventualmente, a
observações sobre a possibilidade de transferência e aclimatação de práticas culturais
europeias a novos contextos.
No que diz respeito à Museologia e à História das Coleções, as narrativas de viajantes
contém vestígios muito úteis para o estudo dos processos de aquisição ou coleta de itens de
acervos, bem como sobre a circulação global da cultura material. No que concerne ao estudo
do colecionismo do marfim africano, os relatos de viagem guardam informações importantes
para a complementação das lacunas existentes na narrativa da biografia de peças como
trompas, saleiros, píxides, colheres e braceletes talhados em marfim por artífices africanos.
Quando estudadas individualmente, a partir da escassa documentação existente sobre os
processos de produção, aquisição, trânsito e colecionamento sofridos pelos objetos, a
biografia dos marfins africanos que hoje se encontram em acervos museológicos e em
coleções privadas possuem curto fôlego e estão atravessadas por imensas lacunas, sobretudo
no que diz respeito à trajetória das peças em solo africano. Mas, quando os objetos são
analisados em conjuntos estilisticamente coerentes e os dados de suas trajetórias individuais
são cruzados com informações mais abrangentes sobre a produção, o comércio e o trânsito de
categorias especificas de marfins africanos, surgem novas informações que ajudam a
ressignificar o processo de criação destes objetos, a formação do gosto europeu por eles e os
caminhos que levaram ao seu colecionamento. Na literatura de viagem podem ser encontradas
pistas sobre os processos de encomenda, comércio, deslocamento e acumulação destas peças,
151
incluindo indicações de suma importância sobre a localização dos centros africanos difusores
de marfim in natura e dos locais em que eram talhadas as peças colecionadas pelos europeus.
Esta investigação faz parte de um estudo mais abrangente da questão, intitulado “Rotas
do marfim africano: circulação, comércio e colecionismo de presas de elefante e objetos em
marfim na África, no Brasil e na Europa nos séculos XVI e XVII". Desenvolvido pelo
RARIORUM – Núcleo de Pesquisa em História das Coleções e dos Museus, da Universidade
Federal de Minas Gerais, este projeto de pesquisa articula-se com um esforço internacional de
investigação dos marfins africanos, encetado pelo projeto “Marfins Africanos no Mundo
Atlântico: uma Reavaliação dos Marfins Luso-africanos”. Desenvolvido em uma parceria
estabelecida entre a Universidade Federal de Minas Gerais e a Universidade de Lisboa, o
projeto investiga as origens dos marfins africanos que circulavam nos espaços ligados pelo
Oceano Atlântico, como recurso para a reconstituição das rotas de comércio e das redes de
solidariedade estabelecidas entre comerciantes e colecionadores, que conectavam a Europa,
Brasil e África, no período moderno. Uma frente de investigação do projeto concerne à
análise estilística dos objetos inventariados. A outra, no entanto, incluiu como alvo de
pesquisa o estudo das relações existentes entre os objetos e outros fenômenos culturais das
regiões que os produziam, atentando para o significado simbólico desses artefatos para as
comunidades onde eram criados. Atualmente, a metodologia do estudo abrange: (1) a
inventariação e classificação de objetos de marfins identificados em coleções públicas e
privadas em Portugal e em Minas Gerais; (2) a compilação de todas as referências a marfins
presentes na literatura de viagem, em documentos arquivísticos e em fontes visuais; e (3) a
análise laboratorial dos materiais (História da Arte Técnica), para determinar a datação e
procedência do marfim.
O estudo das narrativas do passado e das fontes arquivísticas é a base para uma análise
historicamente contextualizada desses acervos. Entretanto, um dos desafios presentes nas
pesquisas consiste na sistematização do imenso volume de informações coletadas em fontes
de diferentes tipologias, para além dos relatos de viajantes: inventários, testamentos,
memórias, cartas, contratos, regimentos, jornais. Se, por um lado, os métodos de interpretação
destas fontes tornaram-se mais sofisticados com o andamento da pesquisa, por outro, tem-se
152
dado pouca atenção ao desenvolvimento dos métodos de coleta e cruzamento das informações
contidas nesses documentos. Diferentemente de documentos cartoriais, os relatos de viagem
possuem redações livres, com informações por vezes muito detalhadas e pouco padronizada, o
que dificulta a organização dos fatos e a identificação da relação entre eles. No caso do
projeto em questão, as informações coletadas por um grande número de pesquisadores,
atuando em diferentes países, são registadas em planilhas ou simplesmente em apontamentos
em editores de texto, limitando ainda mais o cruzamento e interpretação das informações.
Diante das dificuldades impostas para a organização destes dados, propôs-se a criação de uma
base de dados capaz de não apenas reunir e sistematizar as informações coletadas, mas
também de servir como um instrumento de inovação na metodologia de pesquisa sobre os
acervos de marfins africanos, pela introdução das análises quantitativas e do
georreferenciamento como técnicas alternativas de investigação.
153
avaliação das informações. A estrutura da base permite, ainda, o cruzamento de dados e a
fusão de bases de coleta afins, produzidas por pesquisadores que não mantém contato estreito
no momento da produção de informações.
O espaço geográfico
154
Metodologia
155
minerais)? Como a qualidade do produto comercializado estava relacionada à sua origem e ao
seu preço? É possível identificar instruções para a remessa ou a manufatura dos produtos? Os
produtos manufaturados podem ser associados a alguma região, etnia ou demanda
específicos? Como esses produtos chegaram até os colecionadores? Quais eram a
relações existentes entre os principais centros de comércio? Quais relações podem ser
estabelecidas entre a demanda por artefatos de marfim por colecionadores europeus e a
manufatura de produtos de uso local?
Resultados parciais
A estrutura do banco de dados foi elaborada utilizando o software Epi-Data.
Posteriormente o banco será adaptado para um programa mais adequado para a consulta on
line das informações.
A definição de variáveis foi realizada a partir da avaliação das planilhas habitualmente
utilizadas pelo grupo de pesquisa para a coleta de dados dos relatos de viajantes. Sempre que
possível, foram estabelecidas categorias fechadas e pé-codificadas, com padronização de
códigos para ausência de informação e dados não aplicáveis. Um manual de instruções para
preenchimento foi elaborado para permitir a padronização da coleta por diferentes
pesquisadores. Posteriormente, os dados serão exportados para um programa de análise.
156
agregada, porto de saída, local de origem dos mercadores, local de destino e desvio de rota. O
grupo “Citação” inclui a descrição do fato (ano do encontro ou relato sobre marfim, comércio,
rituais ou relatos sobre caça a elefantes e comércio de marfim vegetal, data do relato, autor do
relato, dirigido a quem). A pesquisa é feita utilizando os seguintes descritores: marfim, marfil,
marfi, presa, dente de elefante e dallyfante, nas diferentes variações ortográficas que
aparecem na literatura de época; a serem convertidos em entradas autorizadas. O grupo
“Localização” inclui o nome do sítio, suas coordenadas geográficas, tipo de sítio (porto, rio,
ilha, distrito, aldeia, reino, etc.) e pontos de referência (povoados, vizinhanças, rios, lagoas,
montanhas). A “Identificação da fonte” inclui todas as informações bibliográficas (tipologia
do documento, titulo, autor, ano da publicação, editora, edição, capítulo, etc.). O último grupo
inclui a identificação do responsável pela pesquisa, data do registro e de alterações nos
registros.
Foi realizado um pré-teste para avaliação do banco e adequações dos campos. A
exportação dos dados entre os programas está sendo adequada, pois são utilizadas diferentes
ferramentas para coleta, mapeamento, e análise das informações. Os softwares a serem
utilizados estão sendo definidos, priorizando aqueles de distribuição gratuita, para facilitar a
utilização da metodologia por outros grupos de pesquisa.
Os parágrafos completos com a ocorrência do termo marfim foram copiados em um
arquivo de texto, adotando-se um sistema de numeração para identificação do relato e sua
correspondência com o a fonte registrada no banco de dados.
O pré-teste foi realizado com os dados obtidos em duas fontes: nos relatos de
naufrágios de naus portuguesas que partiram para a Índia no século XVI e naufragaram na
região de Moçambique na África, onde são mencionadas regiões de resgate de marfim pelos
portugueses (GOMES DE BRITO, 1904) e nas memórias de Adèle Toussaint-Samson que
relatam suas observações sobre o povo brasileiro e nossa cultura, nos anos em que morou no
Brasil, na década de 1850. (TOUSSAINT-SAMSON, 2003)
Em Gomes de Brito foram identificadas 19 referências a comércio de marfim bruto
entre portugueses e africanos, e uma ocorrência a grande número de dentes de elefante, a
157
exemplo do seguinte trecho do relato “Naufrágio da Nao S. Thomé na terra dos Fumos, no
anno de 1589”:
Parte este reino com umas grandes serranias de mais de vinte legoas, tão
ásperas, intratáveis e fortes por natureza, que não tem entrada senão por
alguns passos muito difficultosos, e em cima se estendem muito largas
campinas, as quaes são de um senhor chamado Monhimpeca, o qual por
nenhum caso desce abaixo, nem communica com os vizinhos, porque todos,
uns e outros são muito grandes ladrões. Ha nestas serras infinitos elefantes, e
este senhor tem grandes covas cheas de seos dentes, os quaes nunca quiz
resgatar com os portuguezes, porque se recea que mandando abaixo lhos
tomem os vizinhos. (COUTO, 1611, p.103)
Faz o mar nestas terras do Inhaca uma grande bahia de quinze ou vinte
legoas de comprido, e a partes pouco menos de largo, e nella esbacam quatro
grandes rios, pelos quaes entra a maré dez e doze legoas. O primeiro da parte
do Sul se chama Mclengana, ou Zembe, que divide as terras de um Rei assim
chamado, das do Inhaca; o segundo Ansate, e dos nossos de Santo Espirito,
ou de Lourenço Marques, que primeiro descobrio nelle o resgate do marfim,
de quem tomou a bahia o nome [...] Vem aportar a ella de dous em dous
annos um navio de Moçambique a resgatar marfim, e nella estava quando
estes nossos portuguezes chegaram ás terras do Inhaca. (LAVANHA, 1611,
p. 82-83).
A ilha de Inhaca é o sítio de comércio mais citado nesses relatos. Em outro relato, as
contas são novamente mencionadas como mercadorias de troca nessa mesma região:
158
São os trajes destes negros como os de Tizombe, e demais que elles trazem
umas continhas vermelhas nas orelhas: as quaes perguntando Nuno Velho ao
cafre, (a quem dera a cobertura) donde vinham, entendeo pelas
confrontações que as traziam da terra de Inhaca, que é o Rei que povoa o rio
de Lourenço Marques. São estas contas de barro, de todas as cores, da
grandeza de coentro, e fazem-se na índia, Negapatão, donde se levam a
Moçambique, e dalli pelas mãos dos portuguezes se communicam a estes
negros, resgatando-as com elles por marfim. (LAVANHA, 1611, p. 32-33).
Outros sítios relatados com frequência são o Rio de Lourenço Marques, “Manhiça” e a
“Terra dos Fumos”, que serão georeferenciados e utilizados no Sistema de Informações
Geográficas. A Figura 1 apresenta a região descrita nessas narrativas.
Figura SEQ Figura \* ARABIC 1: Ilha de Inhaca, na Bahia de Maputo, em Moçambique. Região de comércio
de marfim.
Uma pesquisa preliminar realizada no Google Maps, a partir dos nomes das regiões e
rios citados nesses relatos demonstrou que a identificação de regiões citadas é mais factível
quando associadas aos nomes dos rios e povoados. Mesmo que não seja possível geo-
referenciar todos os sítios reportados nessas narrativas, o cruzamento das informações sobre
as regiões citadas nesses relatos e a identificação de vizinhanças, permitirá identificar a região
de comércio com maior precisão e estabelecer as relações de comércio existentes entre elas,
como mostrado no esquema da Figura 2.
159
Figura SEQ Figura \* ARABIC 2: Relações de comércio entre regiões de Moçambique.
160
bacia, rio, terra, reino_ no mesmo trecho (parágrafo ou seção do texto) onde se relata a
ocorrência de marfim e (2) frequência com que o local é citado no relato. Para essa
qualificação, foi elaborada uma ficha manuscrita, onde se registra todos os locais
mencionados nos relatos, sua frequência e se corresponde ou não ao local do encontro ou
comércio de marfim. Dessa forma, são registrados no banco, apenas os locais de maior
interesse, de acordo com os critérios estabelecidos.
Considerações finais
O processo ora proposto busca a interação de ferramentas utilizadas em estudos
populacionais, pesquisas históricas, geográficas e museológicas. Como pesquisa
multidisciplinar, o estudo necessita agregar novos colaboradores, na área de Tecnologia da
Informação, História, Geografia, para um esforço conjunto e incorporação de recursos
utilizados com sucesso nas diferentes áreas de conhecimento.
O uso de bancos de dados permitirá a análise quantitativa dos dados registrados.
Através de recursos estatísticos, pretende-se avaliar a magnitude dos fatos relacionados ao
comércio de marfim e as relações entre as variáveis coletadas. Um banco de dados organizado
permite recuperar informações de diferentes documentos textuais e estabelecer relações entre
as fontes, o que pode ser uma boa alternativa para a identificação de regiões de comércio.
As próximas etapas da pesquisa consistem na ampliação do escopo das fontes a serem
interpeladas e na realização de uma análise descritiva dos dados de georeferenciamento, de
mapeamento e de avaliação das rotas e locais de comércio de marfim. Os dados preliminares
reforçam a necessidade de se pesquisar com mais detalhes a geografia e hidrografia das
regiões citadas nas narrativas, destacando-se a importância do cruzamento dos dados para o
mapeamento das informações.
A cartografia digital pode auxiliar historiadores e museólogos nas investigações sobre
História das Coleções, gerando dados para novas investigações e análises, ao incluir a
dimensão espacial nas pesquisas sobre história de viajantes. A coleta de dados sistematizada
sobre objetos específicos (ex.: um saleiro de marfim colecionado no século XVI) ou acerca de
determinadas categorias de objetos (como mobiliário, talheres, saleiros, punhais de marfim) e
161
a localização das regiões nas quais foram observados por viajantes e outras testemunhas do
passado tornaria possível estabelecer os locais por onde um objeto específico passou, bem
como as mudanças de sua valoração e uso em diferentes contextos.
Esta metodologia poderá ser utilizada em outras pesquisas sobre viagens ao território
brasileiro em outras vertentes da História das Coleções. Sua aplicação às pesquisas realizadas
no Brasil apresenta inúmeras vantagens, pois os rios, lagoas e montanhas relatados podem ser
mais facilmente reconhecidos e georeferenciados pela consulta à diferentes fontes
documentais, mapas do passado e contexto de sua produção.
O mapeamento das fontes através dessa metodologia pode ser utilizado como
instrumento adicional de informação e comunicação em espaços museais. Baseado nos
resultados georeferenciados é possível criar animações que permitem a visualização das rotas
de comércio, com recursos de intensidade e temporalidade que dinamizam a informação
disponibilizada ao público de museus. Dessa forma, surgem novas possibilidades
expográficas com a criação de ambientes interativos de conhecimento. Na medida em que as
ferramentas de comunicação digital ganham cada vez mais espaço como recurso para o
diálogo com o público, a representação visual das rotas de comércio pode favorecer a
interatividade e uma melhor compreensão dos processos de constituição das coleções nas
nossas instituições museais.
Referências bibliográficas
BARBOSA, W. DE A. Dicionário histórico-geográfico de Minas Gerais. [s.l.] Editôra
Saterb, 1971.
COUTO, Diogo do. Relação do Naufrágio da Não S. Thomé na terra dos Fumos, no anno de
1589 e dos grandes trabalhos que passou D. Paulo de Lima nas terras da Cafraria até sua
morte. In: História Tragico-Maritima com outras notícias de naufrágios. v. IV, Lisboa:
Escriptorio. Bibliotheca de Clássicos Portuguezes_Volume XLIII, 1904. p. 83-133.
162
Epidata. Lauritsen JM, Bruus M. Myatt MA. Programa para criar banco de dados. GNU Free
Documentation License. Disponível em: <http://www.epidata.dk>.
GIL, Tiago Luiz. Cartografia digital para historiadores: algumas noções básicas. In:
Marilda Santana da Silva; Ana Célia Rodrigues (Org.). História, arquivos e mídias digitais.
Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2013, p. 57-73.
KNOWLES, Anne Kelly. Emerging trends in Historical GIS. Historical Geography. v33:7-
13, 2005.
LAVANHA, João Baptista. Relação do Naufragio da Não Santo Alberto no Penedo das
Fontes, no anno de 1593 e itinerário da gente que dele se salvou até chegarem a Moçambique.
In História Tragico-Maritima com outras notícias de naufrágios. v. IV, Lisboa:
Escriptorio. Bibliotheca de Clássicos Portuguezes_Volume XLIV, 1904. p.82-83.
163
“SEGUNDO O BOM GOSTO DAS NAÇÕES EUROPEIAS”. A
FORMAÇÃO DA COLEÇÃO EGÍPCIA DO MUSEU NACIONAL DA
UFRJ, NO SÉCULO XIX
Resumo: Este trabalho tem como objetivo analisar o processo de formação da coleção egípcia do
Museu Real (atual Museu Nacional da UFRJ),102 situando-o nos contextos oitocentista do
colecionismo de curiosidades e da formação de museus; bem como das diversas modalidades de
colecionismo de antiguidades egípcias vigente no Brasil imperial. Adquirida em 1826, essa coleção
possui extrema relevância para compreendermos as tendências colecionistas do período. Para além
disso, o acervo ganhou notável destaque em sua época, sendo possível recompor a trajetória dos usos
dados a ela pela instituição, o que permitem entender as diversas formas de recepções e
ressignificações pelos quais seus itens passaram, ao longo do século XIX.
Abstract: This paper aims to analyze the process of formation of the Egyptian collection of the Royal
Museum (current National Museum of UFRJ), situating in the nineteenth-century contexts of
collecting curiosities and the formation of museums; as well as of the diverse modalities of collection
of Egyptian antiquities present in Imperial Brazil. Acquired in 1826, this collection is extremely
relevant to understand the collecting pratices of period. In addition, the collection gained remarkable
prominence in its time, and its is possible to recompose the trajectory of the uses given to it by the
institution, which yours items passed during the XIX century.
Key-words: Collecting; Egyptian Antiquities; National Museum of UFRJ; Empire of Brazil; History
of Collections.
102
Também chamado de Museu Imperial Nacional ou Museu Nacional. A nomenclatura “Imperial” foi
definitivamente retirada [no início da República, em 1889.
164
O colecionismo de antiguidades egípcias
Ao longo da era moderna, foi recorrente a presença de objetos do Antigo Egito nas
coleções europeias, ainda que houvesse um predomínio do gosto pelo colecionismo de
antiguidades clássicas, gregas e romanas. Grande parte das mais renomadas coleções dos
séculos XVI e XVII possuíam, mesmo que em número reduzido, seus próprios exemplares da
cultura material do Antigo Egito. Na França, o botânico e astrônomo Nicolas Claude Fabri
Peiresc foi um dos vários eruditos que possuíram um notável gabinete de curiosidades, no
qual se encontravam antiguidades egípcias. Em Roma, o cardeal Pietro Bembo estabeleceu
um studiolo – lugar de estudo e contemplação mais íntima do humanista –, que reunia uma
considerável quantidade deste tipo de objetos, encontrados nas cotidianas obras de construção
de edifícios.103
Nestas coleções, itens da cultura material da antiguidade egípcia podiam ser
compreendidos como curiosidades de uma terra distante ou serem objeto de interpretações
esotéricas. Entretanto, a partir do século XVIII, este cenário mudou e estes objetos passaram a
ser interpretados como fontes de informação sobre o passado das civilizações.
No fim do século XVIII e início do XIX, surgiram as primeiras grandes instituições
museológicas, que se caracterizaram por reunir um grande número de objetos em seus
acervos, muitos dos quais foram teriam sido adquiridos como contribuições de coleções régias
e particulares. O Museu do Louvre e o Museu Britânico são os principais representantes
destas instituições oitocentistas que investiram na formação de coleções de antiguidades
egípcias.
Com a Revolução Francesa colocou-se a importância de tornar o conhecimento
acessível a todos os cidadãos, fazendo com que os museus passassem a ser percebidos como
instituições que deveriam contribuir para a formação da nação. Em seu tempo, os antigos
gabinetes de curiosidades,104 como locais de organização sistemática e ordenada do
103
Para saber mais sobre gabinete Nicolas Claude Fabri Peiresc, ver: https://curiositas.org/cabinet/curios1156.
Sobre o studiolo do cardeal Pietro Bembo ler: LA FUENTE, Mª Amparo Arroyo de. El cardenal Pietro Bembo y
el colecionismo de piezas egípcias en el Renacimiento. Glyphos, Revista de História, nº3, 2015. pp.33-47.
104
Sobre os gabinetes de curiosidades e para melhor compreensão desse termo, recentes trabalhos da Museóloga
Carolina Vaz de Carvalho possibilitam uma melhor compreensão sobre o colecionismo na época Moderna. De
modo que essa pesquisadora realiza diálogos que saem dos tradicionais clichês reducionistas. Para saber mais,
165
conhecimento de acordo com a visão de mundo do colecionador, recebiam visitantes e
contribuíam para a circulação de conhecimento. Entretanto, para a perspectiva dos novos
museus, esta circulação do saber era muito tímida e pouco influía na formação do público
mais leigo, não sendo interessante que o acesso às coleções permanecesse restrito apenas ao
mundo aristocrático105.
Não foi por mera coincidência que este trabalho se inicia mencionando o Museu do
Louvre e o Museu Britânico. Na emergência dos novos museus nacionais, estas instituições se
tornaram exemplares deste movimento de reunir e expor amplas coleções de antiguidades
egípcias, transformando-as em fontes de estudo científico e de formação do cidadão.
Simultaneamente, museus deste tipo se transformaram em símbolos do poderio dos grandes
Impérios europeus, representando sua capacidade de conquistar e dominar as sedes das
grandes civilizações do passado.106 O poder simbólico destas instituições ao representarem as
nações podia ser percebido não apenas pela magnitude arquitetônica dos museus instalados
nas principais capitais europeias, como também pela extensão de suas coleções, muitas vezes
formadas por meio do espólio do patrimônio histórico dos lugares e povos conquistados.
É notável a diferença existente entre as práticas colecionistas desenvolvidas entre o
século XVIII e o XIX. No primeiro momento, a mentalidade iluminista promoveu
transformações na organização das coleções privadas e régias, que assumiram o novo caráter
sistemático de organização dos saberes preconizado. Nestes espaços destinados à promoção
de vários tipos de conhecimento por meio de exibição da cultura material, o principal público
era composto por sábios e eruditos que enxergavam os museus como locais de produção do
saber e de salvaguarda das antiguidades remanescentes. A presença de um antiquário – que
segundo Arnaldo Momigliano era “um amante, colecionados e estudioso das tradições antigas
[...], mas não um historiador”107 – garantia notariedade para a instituição museal. Em algumas
ler: CARVALHO, Carolina Vaz de. Reorganizando o Gabinete: uma discussão sobre a categoria de “gabinetes
de curiosidade” e o colecionismo na primeira era moderna. IN: Anais do VI EPHIS.
105
CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. Tradução de Luciano Vieira Machado. 3 ed. São Paulo:
UNESP, 2006. 288 p
106
Para saber mais, ler: SAID, Edward W.. Cultura e imperialismo. Tradução Denise Bottman. São Paulo:
Companhia das Letras, 2011. 567 p.
107
MOMIGLIANO, Arnaldo. Ancient History and the Antiquarian. In: Journal of the Warburg and
Courtauld Institutes. Vol.13, Nº3/4 (1950) p. 290.
166
coleções, eram eles os responsáveis por classificar os acervos e destacar seus itens de maior,
promovendo a magnitude do Estado Real na extroversão das coleções.
No século XIX, com as transformações sociais e políticas causadas pela Revolução
Francesa e a emergência dos grandes Impérios europeus, os museus adquiriram um novo
status. Civilização e progresso eram noções que começaram a ser atreladas ao trabalho dos
museus e de outros aparatos culturais, que se transformaram em instrumentos para a produção
de uma boa imagem e de discursos de legitimação para as ações das grandes nações. A
sistematização e ordenação dos acervos propostas pelo Iluminismo, no século XVIII, se
mantiveram no século XIX, de modo que os museus assumiram um caráter enciclopédico,
embora ampliando a dimensão do seu público. Agora, esses espaços não são dedicados apenas
a aristocracia, mas também todo cidadão da nação. Segundo Françoise Choay:
108
CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. Tradução de Luciano Vieira Machado. 3 ed. São Paulo:
Estação Liberdade: Unesp. 2006. p.100-101.
167
nação, mas o poder de cada nação em mostrar as riquezas trazidas de
outras civilizações como parte de sua história109.
Com a euforia das grandes nações europeias em ampliar o seu domínio pelo mundo e
com a presença marcante desse imperialismo cultural, vários museus constituíram suas
principais coleções a partir de espólios obtidos em situações de guerras e conquistas. É nesse
contexto que a figura do general e futuro imperador Napoleão Bonaparte surgiu e provocou
um dos mais caudalosos fluxos de cultura material e bens patrimoniais espoliados,
provenientes de toda a Europa e direcionados para as coleções da França.
Após sua coroação, Napoleão Bonaparte ressuscitou símbolos e práticas da
antiguidade romana, entre elas a exibição de espólios de guerra como forma de comemoração,
exaltação e legitimação de suas conquistas. As ações de Napoleão no campo simbólico são
importantíssimas para a reflexão na construção desta pesquisa, pois suas práticas colecionistas
se tornaram tendência na Europa, sobretudo quando com a conquista do Quedivato do Egito
resultou na constituição de enormes coleções de antiguidades egípcias, que maravilharam
diversas nações.
O Egito era um lugar pouco conhecido pelos europeus desde a suas conquistas pelos
otomanos. Sua beleza excitava a imaginação europeia, criando sedutoras imagens sobre a
cidade do Cairo e suas diversas mesquitas, criadas na era dos sultões. Foi com a invasão de
Napoleão ao Egito, entre 1798 a 1801, que grande parte do mundo passou a ter o contato
direto com elementos materiais de outros momentos do passado glorioso, especialmente da
época dos faraós. Segundo Silvia Einaudi:
109
SANTOS, Myriam S.. Os museus Brasileiros e a constituição do imaginário nacional.Soc. estado. Brasília , v.
15, n. 2, p. 271-302, Dec. 2000. p. 279
110
EINAUDI, Sílvia. Museu Egípcio do Cairo. Rio de Janeiro: Mediafashion, 2009. p.
168
Com a abertura do Egito, o mundo ficou admirado com a magnitude das pirâmides e
demais construções monumentais que a civilização egípcia construiu em seus tempos de
glória. As fascinantes múmias, que ao mesmo tempo causava espanto e admiração, se
transformaram no souvenir preferido dos viajantes que iam conferir de perto a Terra dos
Faraós. Neste período, o fascínio pelo Egito Antigo foi ampliado, como efeito da publicação
da inusitada e monumental obra da Commision des Arts et des Sciences de France, intitulada
“Descrição do Egito”. Esta publicação expôs para um largo público as diversas facetas dessa
terra, abordando desde sua flora e fauna, até suas construções monumentais, havendo certa
preferência pelas produções da antiguidade.
De caráter enciclopédico, a Descrição do Egito reunia textos com todo o
conhecimento adquirido pela missão francesa. Ela trazia também pranchas litografadas de
vários artistas, com as maravilhosas paisagens do oriente. Quem via as imagens se encantava
pelo do lugar, que suscitava “um enorme interesse no público, nos eruditos e nos governos
europeus” (SILIOTTI, 2007. p.102). O impacto da obra, que “incluía nove volumes de texto
in folio com mais de sete mil páginas, complementados por dez tomos de gravuras”
(SILIOTTI, 2007. p.100), foi reforçado pelo fato dela mostrar os grandes monumentos
egípcios das épocas dos faraós e também dos sultões.111
Bonaparte e a Commision foram, portanto, responsáveis por fazer o Egito cair
definitivamente no gosto europeu. À sombra de seus feitos e atrelado ao orientalismo, surgiu
o fenômeno da egiptofilia, que pode ser definida como uma admiração profunda pelo mundo
dos faraós, acompanhada pelo desejo de conhecer a cultura material e os costumes deste
lugar. Com a abertura da Terra dos Faraós e o surgimento da egiptofilia, conhecer o Egito
tornou-se um fetiche para a sociedade europeia. Viajantes e exploradores frequentaram a
terra. Antiguidades ocultadas pelas areias do deserto começaram a ser reveladas. O desejo de
possuí-las se tornou corriqueiro. Consequentemente, no começo do séc. XIX, o Egito assistiu
atônito suas preciosidades saírem de seu domínio, levados para museus e coleções particulares
111
O período faraônico vai desde 3150 a.C. até 30 a.C. Já o dos sultões vai de 639 d.C. até 1919 d.C.
169
estrangeiros112.
Em meados do século XIX, o comércio de antiguidades egípcias se tornou fervoroso.
Grandes levas de objetos saíram do Egito, indo parar nas mãos de antiquários europeus, que
alimentavam as coleções públicas e privadas existentes na época. Segundo Sales, “ao mesmo
tempo que se procedia a este comércio oficial e legal de antiguidades, muitas outras [peças]
continuavam a sua intensa circulação nos prósperos mercados paralelos” do Egito. O tráfico
ilegal “era um lucrativo negócio para muitos comerciantes do Cairo e para numerosos
camponeses da província”113, bem como para comerciantes da Europa.
112
VERCOUTTER, Jean. Em busca do Egito Esquecido. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. 176 p.
113
SALES, José das Candeias. A Arqueologia Egípcia no século XIX: da «caça ao tesouro» à salvaguarda da
herança faraônica. Revista do Instituto Oriental da Universidade de Lisboa. Lisboa: Coimbra Univ. Press. p.88
170
mirar, ou davam a ele aspecto um pouco turvo e desfocado114.
114
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Cultura. In: SCHWARCZ, Lilian Moritz; SILVA, Alberto da Costa e. História
do Brasil Nação: 1808-2010. Volume 1, Crise Colonial e Independência 1808-1830. São Paulo: Fundación
Mapfre, Objetiva. 2011. p.207
115
MUSEU NACIONAL. Regulamento nº123 de 3 de fevereiro de 1842. In: Livro dos Ofícios desde o ano de
1819 até 1842, Seção de Memória e Arquivo do Museu Nacional da UFRJ. folha 4.
171
brasileira. Mas, também incluía coleções cujo sentido deveria ser produzir uma narrativa da
história de outras nações, que seriam incluídas na seção que mais nos interessa nesse trabalho:
a Seção de Numismática, Artes liberais, Arqueologia e Usos e Costumes das Nações
Modernas. Foi este seguimento do museu que incorporou as coleções de antiguidades,
incluindo a de Antiguidades Egípcias.
A presença das coleções de Usos e Costumes das Nações Modernas adquiria um duplo
sentido nas narrativas construídas pelo museu. Por um lado, a presença deste tipo tradicional
de coleção aproximava o Museu Real da realidade dos museus nacionais europeus, com os
quais dividia as mesmas tipologias de acervos e coleções. Por outro, coleções com exemplares
da cultura material de outras nações, sobretudo daquelas consideradas civilizadas, permitiam a
produção de paralelos entre a realidade do Brasil e seus povos com os estágios de construção
histórica das nações de outras partes do mundo. Assim, segundo Myriam Santos:
O Museu Nacional se constituiria como uma entidade que nos primórdios de sua
constituição deveria estar dialogando com as demais nações europeias civilizadas,
principalmente após a Independência, de modo que o Império do Brasil apagasse seu passado
colonial e mostrasse as outras nações a sua glória. Possuindo o Museu do Louvre e o
Britânico como referências para a sua organização. As primeiras décadas do Museu Real faria
um diálogo com a presença de obras de artes e elementos da História Natural.
116
SANTOS, Myriam S.. Os museus Brasileiros e a constituição do imaginário nacional. Soc.
estado., Brasília, v. 15, n. 2, p. 271-302, Dec. 2000. p.281
172
“Dou-te parte que fui à Alfândega mostrar as múmias à imperatriz”117; em um trecho
rápido e simples de uma carta endereçada a sua amante, Domitila de Castro, a Marquesa de
Santos, o imperador do Brasil revelou como ocorreu seu contato com as peças que
constituiriam a primeira coleção egípcia no Brasil. Naquele 21 de julho de 1826, com a sua
esposa, a imperatriz D. Leopoldina, D. Pedro I foi à alfândega carioca observar os objetos que
o Jornal Astrea caracterizaria como “dignos da admiração dos amigos de antiguidades”118. O
interesse do imperador e da imperatriz pelas novidades foi tamanho que, três anos depois, foi
formalizada sua compra para o acervo do Museu Imperial119.
A chegada destas antiguidades às terras brasileiras ocorreu em meados do ano de
1826120. Supostamente, um comerciante de antiguidades que viajava para a Argentina sofreu
imprevistos e teve que ficar no Rio de Janeiro. Nicolau Fiengo, em sua bagagem, não levava
apenas roupas e objetos pessoais, mas também uma carga com múmias, sarcófagos,
esculturas, objetos funerários e outros itens que compunham um lote de “curiosidades” do
Oriente.
As peças foram exibidas na alfândega da capital do Império.121 Qual seria a reação de
um brasileiro ao ouvir um estrangeiro afirmar que aqueles objetos tinham milhares de anos e
que sua origem era um lugar só conhecido por meio de passagens bíblicas? Muito
provavelmente, os visitantes que estiveram no local teriam observado as peças com
curiosidade e alarme.
A coleção recém-adquirida pelo Estado Imperial passou pouco tempo na alfândega.
Dado o interesse dos monarcas, após a visita, todo o acervo foi levado para o Museu Imperial.
Percebemos isso, pois a documentação de julho de 1826 informa a presença da coleção na
117
Carta de D. Pedro I para a sua filha. In: ARQUIVO NACIONAL. Cartas de Pedro I à Marquesa de Santos.
Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira. 1974. 633 p.
118
ASTREA, Jornal. Antiguidades na alfândega do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Typographia de Torres,
29/07/1826, nº 16. p. 63-64. Digitalizado, Hemeroteca da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. p .63
119
A compra das antiguidades foi finalizada no ano de 1829, sendo registrada pelo Diário da Câmara dos
Deputados, na seção de despesas extraordinárias, como “Compra das antiguidades egípcias”. Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/749419/4745, último acesso: 25/08/16.
120
Para uma listagem das antiguidades egípcias que estavam expostas na Alfândega do Rio de Janeiro, ver:
ASTREA, Jornal. Notícias. Rio de Janeiro, Nº37, 19 de setembro de 1826. p. 63.
121
ASTREA, Jornal. Antiguidades na alfândega do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Typographia de Torres,
29/07/1826, nº 16. p. 63-64. Digitalizado, Hemeroteca da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. p.63.
173
alfândega. Já em setembro do mesmo ano, o crítico Basílio Ferreira Goulart informa o
seguinte: “Sr. Redator, parecia-me que a loja do museu se tinha convertido nas antigas
catacumbas [...] que de gente vai a ver! ”122. Portanto, estes trechos das matérias veiculadas
pelos jornais cariocas nos dão a certeza de que, logo após a visita dos monarcas à alfândega e
três anos antes da efetivação da compra123, a coleção egípcia de Fiengo foi transferida para o
Museu Imperial e que, ali, sua exposição atraiu grande quantidade de visitantes.
Até o século XIX, muitos brasileiros conheciam o Egito apenas como um lugar bíblico
que serviu de refúgio para Jesus e seus pais. Havia sido ali, também, o local em que o povo
hebreu havia sido escravizado, servindo de mão de obra para “tirânicos faraós”. Desde o
século XVI, a terra dos faraós encontrava-se fechada para os ocidentais. Não era de se admirar
que a Bíblia fosse a referência mais popular sobre o Egito124. Portanto, não seria estranho
também que ocorressem reações de desconfiança com relação à antiguidade e valor dos
objetos e que a credibilidade de Fiengo fosse contestada. É nesse contexto que, novamente, a
figura de Basílio Ferreira Goulart é de extrema relevância para o estudo desta coleção.
Basílio Ferreira Goulart, ou mais conhecido pelo seu pseudônimo, B.F.G o Carioca
Constitucional, escreveu uma extensa crítica sobre a coleção para o Jornal Astrea. Publicada
no dia 19 de setembro de 1826, a crítica avaliava que a coleção exposta no Museu Imperial
não passava de “embrulhos nojentos” e “trapos e farrapos embrulhados em cadáveres
esmirrados”. Por meio da crítica, é possível notar, ainda, qual concepção de gosto e qualidade
artística esse indivíduo possuía, pois Goulart via maior relevância nas pinturas de grandes
artistas que o Museu possuía que nos objetos egípcios.
Para além da crítica feita por Basílio, podemos contar com a resposta do comerciante
de antiguidades, Nicolau Fiengo, que fora o responsável por vender a coleção egípcia. Com
um caráter defensivo, Fiengo argumentou diversas vezes a autenticidade dos objetos, bem
122
CONSTITUCIONAL, O Carioca. Que mangação!. IN: Periódico Astrea. Rio de Janeiro: Typographia de
Torres, 29/07/1826, nº 37. p. 150 (destaque feito pelo autor)
123
A compra das antiguidades foi finalizada no ano de 1829, sendo registrada pelo Diário da Câmara dos
Deputados, na seção de despesas extraordinárias, como “Compra das antiguidades egípcias”. Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/749419/4745, último acesso: 25/04/17
124
ARAÚJO, Luís Manuel de. O Egito faraônico, Uma Civilização com três mil anos. Lisboa: Arranha-céus,
2015. p. 291.
174
como provocou certo deboche pela falta de conhecimento de Basílio, que via nos objetos
indígenas maior elaboração. Em sua defesa, Fiengo disse que “não tenho nada a que fazer se
não carregar outra vez o que é meu e procurar outras terras onde o ouro tenha mais estimação
do que a missanga”. Ou seja, o italiano equipara o valor das antiguidades ao do ouro e
desmerece as artes indígenas, inferiorizando-as. Além disto, ele critica veementemente a falta
de instrução e desinteresse que certos brasileiros possuíam em relação à coleção egípcia.
Após o período em que a coleção chegou no Rio de Janeiro, desencadeando um
embate tão fervoroso, a documentação já encontrada não indica a existência de outro
momento em que interpretação da coleção egípcia do Museu Imperial tivesse exaltado
ânimos. É interessante notar, sobretudo, como a aquisição desses objetos provocou incertezas
na população. Muitos duvidaram, mas outros se maravilharam, com a riqueza das
curiosidades do Oriente.
Após a incorporação da coleção ao acervo do museu, os dados mais relevantes sobre
as apropriações da coleção egípcia não dizem respeito à sua percepção pública, mas ao
tratamento dado à coleção. Como já abordado, inicialmente, o Museu Imperial atuava de
forma bem tímida no que se refere ao tratamento de seu acervo, mas estamos falando de
concepções de disposição e acondicionamento do século XIX, que são pertinentes ao seu
tempo. Graças a documentação museológica do Museu Imperial, existente desde a sua
fundação, podemos traçar os caminhos que as coleções tiveram no espaço museal,
identificando as formas de organização e exposição que tiveram ao longo do tempo. Não
diferente, também é possível traçar a história do acervo egípcio do Museu Imperial por meio
dos relatórios anuais e de alguns inventários produzidos ao longo do século XIX.
Como parte de um primeiro momento de constituição e consolidação do Museu
Imperial, os objetos foram dispostos da melhor forma que convinham. A documentação dos
primeiros anos da instituição até os anos 20 do séc. XIX é escassa, não indicando se já havia
um direcionamento para a organização das salas expositivas que refletisse divisões temáticas
segundo as diversas ciências ou ramos do conhecimento. Entretanto, já em 1838, temos a
primeira “Relação dos objetos que se conservam no Museu Nacional desta Corte”, que
inventariava os itens que compunham o acervo do museu, indicando sua localização no
175
edifício
A Relação indica que, quando a coleção egípcia chegou ao museu, ela foi
desmembrada e suas principais peças foram acondicionadas nas salas de exposição que
continham “objetos relativos as artes, usos e costumes de diversos povos”. Este local também
abrigava elementos da cultura material de outras civilizações, como antiguidades mexicanas e
europeias, peças intituladas da África Inculta, da Ásia, da Nova Zelândia, das ilhas Sandwich,
Ilhas Atlentas [sic] e objetos de diversos grupos indígenas do Brasil. Podemos pensar,
portanto, que o museu já possuía um local dedicado exibir e interpretas as antiguidades de
todo o mundo. É possível inferir que esta organização do acervo refletia a persistência de
práticas dos antiquários ilustrados, evidenciando uma tradição colecionista que foi transposta
da Europa para o Brasil por aqueles que estavam habituados com esse tipo de colecionismo.
Segundo Myriam Santos:
125
SANTOS, Myriam S.. Os museus Brasileiros e a constituição do imaginário nacional. Soc. estado.
Brasília, v. 15, n. 2, p. 271-302, Dec. 2000. p. 274
176
objetos da antiguidade clássica com obras de arte contemporâneas, como se fez na França do
séc. XIX:
O prédio que abrigava o Museu Nacional, assim como vários museus pelo mundo, não
foi construído e pensado para ser uma instituição museológica. Adaptações foram necessárias
para melhor distribuição do acervo, ao longo dos primeiros anos de funcionamento da
instituição. Entretanto, o “boom” de doações e coletas de objetos para comporem seus acervos
ocasionou o esgotamento dos espaços do pequeno prédio, que ficou abarrotado de objetos.
Assim, tornou-se necessário ampliá-lo. Esta foi uma das preocupações centrais de vários
diretores que coordenaram a instituição, ao longo dos anos. Manoel Araújo Porto Alegre, por
exemplo, fez um extenso elogio a Seção de Numismática, Artes Liberais, Arqueologia e Usos
e costumes das Nações Modernas, no relatório anual de 1844. Mas, ao mesmo tempo, expos
sua preocupação que os rumos que a ordenação daquela seção do museu estava tomando, em
razão do crescimento do acervo. De acordo com Porto Alegre:
[...] os objetos desta seção têm sido colocados da melhor maneira que
convém ao local, mas não como conviria ao museu de uma Nação
civilizada, a pequenez da sala e sua construção imprópria não oferece os
meios de apresentar ao público uma classificação e ordem simétrica nos
objetos plásticos e nas antiguidades egípcias, segundo o bom gosto das
Nações europeias127.
Esse trecho possui informações riquíssimas sobre a percepção de Porto Alegre acerca
de como a construção desse ambiente conectaria o Novo Mundo com o Velho. Notamos, que
ao contrário que muito se pensa, havia uma grande preocupação dos diretores do Museu em
126
SANTOS, Myriam S.. Os museus Brasileiros e a constituição do imaginário nacional. Soc. estado. Brasília,
v. 15, n. 2, p. 271-302, Dec. 2000. p. 277
127
MUSEU NACIONAL. Seção de Numismática e Artes Liberais, Arqueologia, Uso e costumes das nações. In:
Relatório dos trabalhos e aquisições havidas no Museu Nacional durante o ano de 1843, e assim bem das
necessidades mais urgentes do mesmo Estabelecimento. Seção de Memória e Arquivo do Museu Nacional da
UFRJ. folhas 43-44. (destaque feito pelo autor)
177
garantir a melhor forma de exibição do acervo. A exposição não era, portanto, fruto de uma
desordem total. Existiam maneiras de se pensar como uma coleção era exposta em um
ambiente. Para o Manoel Araújo Porto-Alegre, era necessário dispor o acervo de forma
classificada e em uma ordem simétrica para melhor facilitar a fruição dos visitantes. Para
além disso, essas concepções de exibição estavam relacionadas com o gosto europeu, de
modo que possamos pensar que os funcionários do Museu estavam conectados com o que se
pensava na Europa em termos de organização do espaço museal.
Por outro lado, garantir a essência da organização e sistematização do acervo
assegurava que o Museu Nacional passasse a imagem de uma instituição digna de uma nação
civilizada. O Brasil acabara de conquistar sua independência e era necessário apagar os
vestígios de uma ex-colônia portuguesa. Portanto, esses personagens que eram responsáveis
pelo museu sabiam a importância dessa instituição para compor um retrato da jovem nação.
Segundo a interpretação que Manoel Araújo Porto Alegre fez da Seção de Numismática, Arte
Liberais, Arqueologia e Usos e Costumes das nações:
128
MUSEU NACIONAL. Seção de Numismática e Artes Liberais, Arqueologia, Uso e costumes das nações. In:
Relatório dos trabalhos e aquisições havidas no Museu Nacional durante o ano de 1843, e assim bem das
necessidades mais urgentes do mesmo Estabelecimento. Seção de Memória e Arquivo do Museu Nacional da
UFRJ. folha 44. (destaque feito pelo autor)
178
possuía com os modelos de museus existentes. É bem provável que o Museu Britânico e o
Louvre sejam exemplos de museus a serem seguidos, pois, nesse momento, essas instituições
eram compostas por uma mistura de história natural, artes plásticas e arqueologia. Mesmo
sendo uma instituição pequena, o museu possuía exemplares artísticos que se equiparava aos
grandes museus europeus, incluindo objetos das principais civilizações antigas do mundo:
Roma, Grécia e Egito, sendo esta última com notável número de objetos.
Para além disso, o Manoel Araújo Porto Alegre evidenciou as dificuldades em seguir
os modelos europeus, mostrando que no Brasil não havia mercados de antiguidades da
Europa. Também fica evidente nessa descrição feita pelo diretor do museu, que até aquele
momento, as antiguidades eram vistas como exemplares artísticos. No caso das antiguidades
egípcias, a egiptologia estava acabando de nascer e não era de se esperar que esses objetos
tivessem o mesmo tratamento que era dado na França ou na Inglaterra.
Ocasionalmente, após década de quarenta do séc. XIX, não houveram muitos registros
sobre a coleção egípcia nos relatórios anuais. De fato, ocorreram novas aquisições, embora
poucas. É interessante perceber, por meio dos relatórios, a existência de habitantes do Império
que enviavam vários objetos para enriquecer a quarta seção do Museu Nacional. Este dado
permite percebermos que existiam práticas do colecionismo privado na sociedade imperial,
que poderiam estar sob a esfera de influências das atividades da instituição museal e do casal
imperial. A importância da relação entre o colecionismo privado e a formação dos acervos do
museu poder ser percebida no processo de doação das antiguidades pompeianas, pela
imperatriz Teresa Cristina, em 1856. Passada a euforia com a coleção egípcia, o mais notável
acontecimento na expansão da Seção de Numismática, Arte Liberais, Arqueologia e Usos e
Costumes das nações não foi uma aquisição promovida pela instituição, mas sim a doação de
uma coleção privada.
Segundo Myriam Santos, o museu passou por uma desaceleração no ritmo do
colecionismo de caráter mundial decorrente da diminuição do desejo de possuir objetos de
várias nações, no momento em que a missão do Museu começou a caminhar para outro lado: a
História Natural. “Em meados do século dezenove, mesmo o Museu Nacional [...] modifica o
rumo de sua trajetória ao voltar-se quase que inteiramente para o estudo do reino da natureza”
179
(SANTOS, 2000, p.285). Portanto, diferente das concepções de colecionismo do início do séc.
XIX, o museu passou a seguir novas tendências e, para acompanhar as nações civilizadas, era
necessário se atualizar, o que levou à decadência do colecionismo de antiguidades.
Conclusão
De modo a acompanhar as tendências colecionistas que surgiram durante o século
XIX, o Museu Nacional teve como missão nesse período, além de construir uma instituição
que colocasse o Brasil no hall das ciências naturais, de transformar o museu em um lugar que
fosse o espelho dessa nação aos olhos dos viajantes e estrangeiros que por aqui vinham a
procura da exuberante flora e fauna. Para além disso, era necessário mostrar que essa jovem
nação seguia os padrões necessários de um museu que estava à altura dos da Europa.
A presença dessa coleção no Museu Nacional garantia prestígio e brilhantismo a
jovem nação. Uma vez que essa foi a primeira coleção egípcia da América Latina, ela garantia
que essa instituição possuísse um acervo rico e que mostrava a cultura material de vários
lugares, não apenas do antigo Egito, mas da África Ocidental, Roma antiga na Seção de
Numismática, Artes Liberais, Arqueologia e Usos e costumes das Nações Modernas. Portanto,
além de representar os costumes de outros lugares, o museu criava uma imagem de si que
representava a nação brasileira, mostrando que seus cidadãos estavam se civilizando através
da ciência.
180
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Arranha-céus, 2015. 449 p
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Editorial, 2004. 191 p.
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Mundo Antigo – VII Encontro Nacional do Grupo de Trabalho de História Antiga
(GTHA/ANPUH). 30 de agosto a 3 de setembro – 2010. ISBN 978-85-85936-92-1. (online).
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NOBRE, C., CERQUEIRA, F.. POZZER, K. (ed.) Fronteiras & Etnicidade no mundo
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Canoas: ULBRA, 2005. p. 271-281. (online)
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2010. 228 p.
CARVALHO, Carolina Vaz de. Reorganizando o Gabinete: uma discussão sobre a categoria
de “gabinetes de curiosidade” e o colecionismo na primeira era moderna. IN: Anais do VI
EPHIS.
181
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heranças faraônicas. Revista Eletrônica de Antiguidade, Ano VII, Número I. Rio de Janeiro:
Núcleo de Estudos da Antiguidade, UERJ. 14 p. Disponível em:
<http://www.revistanearco.uerj.br/arquivos/numero13/17.pdf>. Acesso em: 01/07/2017.
MOMIGLIANO, Arnaldo. Ancient History and the Antiquarian. In: Journal of the Warburg
and Courtauld Institutes. Vol.13, Nº3/4 (1950).
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Companhia das Letras, 2011. 567 p
SALES, José das Candeias. A Arqueologia Egípcia no século XIX: da «caça ao tesouro» à
salvaguarda da herança faraônica. Revista do Instituto Oriental da Universidade de
Lisboa. Lisboa: Coimbra Univ. Press.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Cultura. In: SCHWARCZ, Lilian Moritz; SILVA, Alberto da
Costa e. História do Brasil Nação: 1808-2010. Volume 1, Crise Colonial e Independência
1808-1830. São Paulo: Fundación Mapfre, Objetiva. 2011.
VERCOUTTER, Jean. Em busca do Egito Esquecido. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. 176 p.
182
TRAJETÓRIA DE FORMAÇÃO DA COLEÇÃO MANOEL
PASTANA129
Resumo: O trabalho apresenta a trajetória de formação da coleção Manoel Oliveira Pastana que
integram os acervos dos museus ligados a Secretaria de Estado de Cultura – SECULT/PA. O processo
de pesquisa teve início com o tratamento de conservação realizada nas obras existentes, visando
garantir a sua preservação, sendo estabelecida uma metodologia de tratamento que envolvia a
conferencia de dados, com registro fotográfico documental associada a processos de conservação e
higienização de parcela da coleção.
Abstract: This study presents the trajectory of the Manoel Oliveira Pastana's artwork which integrates
the museum's collection of the Secretaria Executiva de Culutura do Pará - SECULT / PA. The research
had began with the conservation treatment carried out in the existing works. To guarantee its
preservation, it was established a methodology of treatment that involved the data review, including
the photographic register associated to process of conservation and safeguard of Pastana's paintings
and drawnings.
129
Artigo faz parte da pesquisa de mestrado do Programa de Pós-graduação em Artes – Ppgartes/ UFPA.
183
Contexto Museológico: A coleção Manoel Pastana
É dentro desse contexto que foi dado início ao processamento da “coleção Manoel
Pastana” tendo a compreensão aqui de coleção como o conjunto de obras e objetos existentes
nos Museus elaboradas e feitos pelo artista, o que difere do arranjo documental estabelecido
nos museus do SIM, onde os objetos artísticos feitos por Manoel Pastana (pinturas, desenhos,
objetos do artista) estão distribuídos nas coleções de dois museus: Espaço Cultural Casa das
Onze Janelas (coleção COJAN) e Museu do Estado do Pará (Coleção Lauro Sodré). Portanto
184
como se trata de uma pesquisa referente as obras de um único artista resolvemos tratá-la como
uma única coleção.
Manoel Pastana é ainda pouco conhecido no cenário artístico nacional, mais é certa
que foi figura marcante no cenário artístico de sua época, contribuindo na estruturação de uma
história da Arte no Pará. Ele nasceu em 26 de julho de 1888 na Vila do Apeú, município de
Castanhal e faleceu no Rio de Janeiro no dia 25 de abril de 1984.
130
O curso particular de Manoel Pastana é citado nos Relatório dos Presidentes do Estado do Brasil (PA), onde
contem informações sobre a exposição escolar de Desenho realizada no salão de honra do Teatro da Paz.
131
Dissertação de mestrado O moderno em aberto: O mundo das artes em Belém do Pará e a pintura de
Antonieta Santos Feio de autoria de SILVA,Caroline Fernandes.Niterói. 2009,p. 65. Disponível em:
<http://www.historia.uff.br/stricto/teses/Dissert-2009_Caroline_Fernandes_Silva-S.pdf>
185
Figura 1: Imagem da peça “Acará Bandeira”, (Bronze) que ganhou o diploma de honra na exposição de Paris
em 1937. Jornal Correio da Noite - Rio de Janeiro, 17 jan.1939.
186
Na Exposição Mundial de Paris de 1937, Pastana foi consagrado com dois prêmios:
Diploma de honra, e a medalha de Prata132. Pastana estava presente com três peças. [...] “uma
grande jarra Marajoara, um jarro estilização passarão e um jarro estilização acará-bandeira. O
133
primeiro cerâmica e os dois outros bronze” . De acordo com as notícias da época, foi
grande junto aos visitantes, o sucesso das peças no pavilhão brasileiro, o que garantiu ao
artista paraense, concedido pelo júri do certame, o Diploma de honra com o vaso acará-
bandeira, o mais alto prêmio conferido a seção de arte decorativa134.
Em 1939 Manoel Pastana participou do 45º Salão Nacional de Belas Artes, onde
recebeu a medalha de ouro.
Presidido pela senhora Sarah Villela de Figueiredo e tendo como vogaes: sra.
Maria Francelina, Sr. Henrique Cavalleiro e Castro Filho o Jury de arte
decorativa, reunido, deliberou attribuir a “Medalha de ouro” ao artista
Manoel Pastana e a “Medalha de bronze” á sra. Dolores Angela Rodriguez e
a “Menção Honrosa” foi attribuida aos senhores: José Jardim de Araujo,
Sylvio Brtas de Araujo Franco Cenni e Hugo Marianni.136
132
A arte indígena prehistorica brasileira. Jornal “Correio da Manhã”. Rio de Janeiro, domingo 31 de maio de
1942.
133
A arte brasileira em Paris - O brilhante artista Manoel Pastana obteve, com seus trabalhos, o maior premio
conferido á secção de arte decorativa. Jornal do Brasil 21 de outubro de 1937.
134
No Mundo das artes- Arrumação não é estylização (Manoel Pastana especial para o correio da Noite) Jornal
Correio da Noite - Rio de Janeiro 17-01-1939.
135
As premiações do Salão Nacional de Bellas Artes de 1938. Jornal Correio da Noite, Rio de Janeiro, 29 nov.
1938.
136
Attribuidos os premios do Salão nacional de Bellas Artes. Jornal Correio do Noite. Rio de Janeiro, 18 set.
1939.
187
De 1935 a 1941 serviu na Casa da Moeda, por solicitação do Ministro da Fazenda.
Nesse período, trabalhou no projeto de reformulação dos selos do tesouro nacional, criando
vários modelos cuja composição utiliza motivos da fauna e flora da Amazônia configurando
“elementos decorativos genuinamente nacionaes” 137.
Até meados de 2011, avistava alguns desenhos sempre em exposição ou nas gavetas
das mapotecas dentro da Reserva técnica, no entanto, em junho do mesmo ano, o setor
estabeleceu como uma de suas ações o processo de conservação dos desenhos do artista que
estavam guardados em reserva. Para essa ação, foi constituído como metodologia a avaliação
137
A exposição de motivos marajoaras da galeria Heuberger uma palestra com Manoel Pastana, o ceramista que
revive a arte prehistorica dos “aruans”. Jornal “O popular”.s/l. 17 set. 1937.
188
dos desenhos, o registro fotográfico e o processo de higienização. Na análise dos desenhos foi
constatado que estes estavam colados sobre um suporte de papel de cor cinza azulado, que se
encontrava já em processo de oxidação, podendo comprometer os desenhos de Manoel
Pastana. Como medida de preservação optamos em fazer a separação do desenho do suporte
cinza azulado.
Foi efetivado a remoção do papel ácido e resquícios de adesivos aderidos no verso das
obras por meio de remoção mecânica, e química; remoção de intervenções inadequadas
(repinturas) e por fim o armazenamento das lâminas em invólucros de proteção
confeccionados em papel tyvek, para posterior devolução a reserva técnica. Esse processo
teve a duração de aproximadamente três meses e foram executadas em 105 Lâminas de
desenho, sendo finalizado em setembro de 2011. Vale ressaltar que apesar de ter sido feito a
separação do desenho que estava colado sobre o papel ácido, este último foi mantido e
preservado com o registro associado a sua prancha de origem, pois muitos apresentavam
dedicatórias, assinaturas e inscrições.
Durante esse processo de análise observamos que o artista trabalhou com técnicas
diversas como: desenho a grafite e nanquim, pintura a guache e aquarela.
189
Após realizar os trabalhos sobre as pranchas de desenhos, partimos para o
levantamento de outras obras existentes nos museus do SIM/SECULT, sendo feito um estudo
preliminar sobre o histórico das coleções, pesquisa bibliográfica sobre o artista, atualizando e
ampliando as fichas catalográficas de modo a consolidar informações para disponibilizar ao
público interessado.
Foi constatado que além dos desenhos, existiam várias pinturas de personalidades
ilustres, pintura de paisagens, autorretratos, maleta contendo pinceis, tintas e paleta do artista,
um livro de recorte e assinaturas e moedas cujo projeto foi elaborado por Manoel Pastana.
190
Soma-se a este conjunto de obras, mais 17 pranchas adquiridas da Sra. Amassi
Palmeira em outubro de 1988, pela Fundação Nacional Pró-Memória (atual IPHAN). As 17
lâminas de desenhos (pranchas decorativas) são projetos de arte aplicada para construção de
objetos decorativos, móveis, porcelanas e utensílios domésticos, possivelmente feitos para
serem utilizados em várias indústrias como relatou o próprio artista:
Nesta aquisição, estavam inclusos também: 6 (seis) moedas, cujo projeto foi executado
pelo artista durante sua permanência na casa da Moeda; 55 (cinqüenta e cinco) fotografias
diversas retratando o artista, seu ambiente e suas obras; e 1 (uma) fita gravada com o
depoimento de Manoel Pastana, configurando um total de 79 (setenta e nove) peças140. Em
função do trâmite e deslocamento do acervo ao longo dos anos, excetuando as 17 (dezessete)
lâminas decorativas, os últimos itens listados, estão em processo de localização e conferência.
Sendo já localizadas 38 (trinta e oito) fichas catalográficas, contendo 32 (trinta e duas)
fotografias, e 3 (três) moedas. O levantamento dos demais itens, ainda está em processo de
verificação.
A idéia que tínhamos anteriormente era que a coleção de pranchas, havia chegado à
instituição em um único momento, entretanto, o conjunto total constituído de 115 lâminas deu
entrada no museu no ano de 1982 (98 pranchas) e 1988 (17 pranchas).
139
Entrevista com Pastana - Trecho extraído do jornal O popular, 17 de setembro de 1937
140
Recibo com relação em anexo, assinada pela Sra. Amassi Carrera Palmeira, informando ter recebido da
Fundação Nacional Pró- Memoria/SPHAN a importância de Hum milhão de cruzados, referente a venda de obras
do artista plástico Manoel Pastana datada de 06 de outubro de 1988. (Arquivo SIM/grupo: COJAN, Série
Diversos, Caixa 07 – Coleção Pastana).
191
Em 02 de fevereiro de 2001 foi doado a Secretaria de Cultura, pelo Sr. Washington
Araujo Pastana141, um álbum que pertenceu ao pai Manoel Pastana, contendo lista de
assinaturas de pessoas que prestigiaram as exposições e notícias de jornais. Tal documento
contém convites, catálogos e inúmeros recortes de jornais divulgando as exposições de
Pastana nas cidades de Belém, Rio de Janeiro e São Paulo de 1933-34, 37,39, 42.
141
Registro de doação do Álbum de Manoel Pastana. Arquivo SIM - grupo: COJAN, Série: Álbum de
Assinatura de Exposições. Caixa: 19.
192
Além das obras doadas pelo Conselho de Cultura, existem no acervo do Museu, de
autoria do artista, pinturas de retratos das seguintes personalidades: Presidente Epitácio
Pessoa (óleo s/ tela, 76 x 65 cm), Presidente Arthur Bernardes (óleo s/ tela, 75 x 61 cm) e os
governadores Dionísio Bentes (óleo s / tela, 73 x 59 cm) e Magalhães Barata (óleo s/ tela, 100
x 72 cm). Obras que possivelmente foram feitas via encomenda, para compor a antiga galeria
de retratos de governadores e presidentes que existia na sede do governo no Palácio Lauro
Sodré. Pastana informa em entrevista concedida ao jornal Correio do Norte em 10 de outubro
de 1939 que: “Em Belém tenho vários trabalhos de pintura, paisagens e retratos, estes, na
galeria dos presidentes, no Palácio do Governo, na prefeitura e nas galerias das Faculdades de
Medicina e Direito”.
Existem também, três pinturas de paisagens urbanas. “Praça Batista Campos” pintada
em 1972 (óleo s/Duratex, dim: 50 x 42 cm) 142, “Teatro da Paz” (óleo s/madeira, Dim: 45 x 63
cm) 143, executada em 1978 e uma pequena paisagem, datada de 1975 (óleo s/ madeira, dim.:
144
26 x 40 cm) . Apesar de esta última ser intitulada apenas de paisagem, no verso da obra
encontra-se uma inscrição a lápis “São João da Barra – Rio”, feita pelo próprio artista,
parcialmente encoberta por um papel contendo informações técnicas colada na superfície da
madeira. Tal informação sugere que o nome original da pintura seja “São João da Barra”,
inclusive porque ela foi assinada e datada Pastana, Rio 975, o que confirma a origem da peça.
142
No verso da pintura encontramos as seguintes informações: a obra participou de uma exposição do artista em
1979. A peça foi depositada no teatro da Paz, como doação para fazer parte do acervo da Galeria Angelus.
Possui a numeração antiga que se refere ao número de tombo AB 0067. Exp. No. 163/77. Obra no. 106/79.
Existe também o período de 23/12/76 a 8/02/77 que possivelmente refere-se a um período de exposição na qual a
obra participou.
143
Alem das informações técnicas, são encontrados no verso da obra os seguintes dados: acervo da Secretaria de
Estado de Cultura, Desporto e Turismo, trabalho depositado no Bolonha. Antigo número de tombo AB – 0162.
Galeria Theodoro Braga/Teatro da Paz. E o período 14/09/78 a 25/09/78 que pode tratar-se de um período de
exposição na qual a obra participou. Obra no. 012/79, exp. no. 026/78.
144
Além das informações técnica, no verso encontram-se os seguintes dados: acervo da Secretaria de Estado de
cultura, Desporto e Turismo. Número de tombo AB. 0063. O trabalho fez parte de exposição do autor na galeria
Theodoro Braga e está depositado no teatro da Paz. Existe o Número de obra 005/79 e exposição número 007/77.
Conta também as datas de 13/09/77 a 25/09/77 que possivelmente refere-se a um período de exposição na qual a
obra participou.
193
As três obras foram doadas a SECDET, acredita-se que pelo próprio autor, depois de terem
feito parte de exposições apoiadas pelo Governo do Estado.
Considerações finais
Esta pesquisa que tem como ponto de partida coleções existente nos museus, está
associada à proposta apresentada ao Processo Seletivo do Programa de Pós-Graduação em
Artes, do Instituto de Ciências da Arte da Universidade Federal do Pará, Mestrado – Turma
2017, com o tema: “A Coleção Manoel Pastana: Interlocuções na construção de uma arte
nacional”, com a orientação da professora Dra. Rosangela Britto. Configura-se de um
levantamento documental e analise visual feito na coleção Manoel Pastana existente nos
museus do SIM/SECULT. É ainda um estudo preliminar que deverá ser aprofundado e
esmiuçado durante a pesquisa do mestrado.
Referências bibliográficas
Braga, Theodoro. Artistas pintores no Brasil. São Paulo:São Paulo editora limitada, 1942.
Fontes:
A arte brasileira em Paris- O brilhante artista Manoel Pastana obteve, com seus trabalhos, o
maior premio conferido a secção de arte decorativa. Jornal do Brasil, 21 out. 1937.
Arte Marajoara. Jornal O Imparcial. Ano VIII, No. 2033, Rio de Janeiro, Domingo, 11 jan.
1942.
Bellas Artes. Vicente Leite vai percorrer o Brasil - A exposição de um artista do Pará. Jornal
A Nação, 22out. 1933.
195
GOMES, Tapajos. A arte indígena prehistoricabrasileira. Marajó – Principal fonte de
documentação. A palavra de Manoel Pastana. Jornal Correio da Manhã, 31 mai. 1942.
Um pouco de Arte Marajoara. Jornal A gazeta, São Paulo, quinta feira, 07 out. 1937.
Uma Exposição de arte brasileira. O Artista paraense Manoel Pastana diz ao “Diario da
Noite” que em breve mostrará a S. Paulo os seus trabalhos de arte applicada, motivos
marajoaras, e estylização da fauna e flora brasileiras. Jornal Diário da Noite, 2 jan. 1936.
196
A FORMAÇÃO DE UM ACERVO BRASILEIRO NO MÉXICO: AS
MOSTRAS LATINO-AMERICANAS DE FOTOGRAFIA
CONTEMPORÂNEA, MÉXICO (1978-1981)
Resumo: O presente trabalho expõe alguns dos resultados de uma pesquisa realizada no Instituto de
Investigaciones Esteticas, da Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM). Nosso objetivo
foi analisar a participação brasileira em duas mostras fotográficas que fizeram parte dos colóquios
latino-americanos de fotografia, realizados na Cidade do México, nos anos de 1978 e 1981. Tais
imagens, agregadas depois ao acervo do Consejo Mexicano de Fotografia, estão hoje aos cuidados do
Centro de la Imagen, no qual realizamos nossa investigação. As referidas exposições demarcam um
esforço pioneiro no sentido de criar laços entre os fotógrafos do subcontinente, dando ainda
visibilidade às variadas produções nacionais. A participação brasileira foi emblemática, sendo a
segunda em quantidade de participantes, ficando atrás apenas do país organizador. Dentre seu vasto
material, encontramos fotógrafos de vertentes variadas, com uma predominância de fotojornalistas e
fotodocumentaristas. Neste trabalho daremos atenção ao processo de construção do acervo, seus
critérios básicos e seus encaminhamentos, à criação de laços com o Brasil e, finalmente, analisaremos
o conjunto de fotografias brasileiras.
Abstract: This work exposes some of the results of a research that was accomplished at the Instituto
de Investigaciones Esteticas, from Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM). Our
objective was to analyze the Brazilian participation on two photographic shows which were part of
Latin American photography colloquiums, performed in Mexico City, in the years of 1978 and 1981.
Such images, that after were incorporated into the collection from Consejo Mexicano de Fotografia,
are today in the care of the Centro de la Imagen, where we have done our investigation. Those photo
exhibitions demarcate a pioneering effort to create ties between the photographers of the
subcontinent, still giving visibility to varied national productions. The Brazilian participation was
emblematic, it was the second one in number of attendees, behind only the organizer country.
Between its vast material, we have found photographers of varied tendencies, with a predominance of
photojournalists and photodocumentarists. In this work we will give attention to the construction
process of the collection, its basic criteria and referrals, to the creation of ties with Brazil and,
ultimately, we will analyze the group of Brazilian photos.
197
Introdução
Os primeiros passos que levaram ao grandioso acervo de imagens do Consejo
Mexicano de Fotografia foram dados no momento de sua criação, no dia 17 de fevereiro de
1977, na Cidade do México, quando alguns dos principais nomes da fotografia mexicana se
reuniram numa das mesas do restaurante Vips, dando os primeiros passos em direção à sua
criação. Estavam presentes, Lázaro Blanco, Enrique Franco, Jorge Alberto Manrique, Pedro
Meyer e Raquel Tibol. Dentre seus principais objetivos estava: “Organizar o Primeiro
Colóquio Latino-americano de Fotografia” e, paralelamente, realizar “uma exposição da obra
representativa da fotografia latino-americana”145. Ambos visavam ter a participação de um
grande número de fotógrafos e estudiosos da área, permitindo a unificação de uma variedade
de visões por meio de um evento agregador.
As coisas caminharam e o pioneiro colóquio ocorreu no ano de 1978 e, juntamente
com ele, tivemos a mostra fotográfica Hecho en Latinoamérica. Primera Muestra
Latinoamericana de Fotografia Contemporánea. Após o enorme sucesso da primeira edição,
em 1981, foi realizado o Segundo Colóquio, também acompanhado de uma exposição, a
Hecho en Latinoamérica. Segunda Muestra Latinoamericana de Fotografia Contemporánea.
Nas duas ocasiões o Brasil foi o segundo país, tanto com relação à quantidade de
trabalhos enviados, como pela qualidade. Além da troca de experiência internacional,
convocar os brasileiros foi fundamental também para organizar melhor a produção nacional,
até então dispersa. Isso se deve ao fato de que, até então, não havia sido feita nenhuma ação
desse tipo.
Nossa apresentação pretende expor alguns aspectos políticos dos referidos eventos, as
participações brasileiras e, finalmente, abordaremos este rico acervo de fotografias que se
formou em terras mexicanas.
145
CONSEJO MEXICANO DE FOTOGRAFIA, 1977, Restaurante Vips (Insurgentes). Ata de reunião. México
D.F., 17 de fevereiro de 1977, 3 páginas.
198
Iguais e diferentes: a busca de uma identidade regional
A segunda metade do século XX se caracterizou pela crescente polarização política na
América Latina, especialmente pela existência de governos ditatoriais apoiados pelos Estados
Unidos e, ao mesmo tempo, pela consolidação do regime socialista cubano. Além dos fatores
políticos, temos ainda como ponto comum os reflexos do encontro entre colonizadores e
nativos ameríndios e, em muitos dos países, a presença dos descendentes de escravos
africanos. Tal cenário, colocado num panorama de desigualdade social, fomenta essa nova
realidade, que deve ser entendida também por suas trocas e fusões culturais (CANCLINI,
1977).
Além disso, vemos o processo de urbanização dos países e o surgimento de grandes
cidades. A ideia de identidade regional se modifica, agregando, entre outros, elementos
ligados ao multiculturalismo. Assim, perante o neocolonialismo, resgatam-se realidades locais
como espaço de resistência. A partir de tal quadro o sentimento de latinidade ganha corpo. É
quando temos pertinentes modificações nas formas de pensar algumas questões sociais, como
as minorias étnicas, os camponeses e as populações mais pobres dos centros urbanos. Novas
falas, novos movimentos, delineiam a valorização de uma sociedade multicultural, tanto no
campo como nas cidades (CANCLINI, 2008). Assim, pensar a América Latina, desde então, é
reconhecer um espaço diverso, no qual podemos ver referências culturais distintas e que, ao
mesmo tempo, estão interligadas pelas resistências diante de processos de intervenção e de
imposições culturais.
A complexidade da formação de uma identidade da região passa por questões diversas
que, em geral, versam sobre as similaridades possíveis e as formas de resistência que podem
unir os países. É nesse ambiente que, no final dos anos 1970, emergem ações ideológicas
ligadas ao uso da fotografia como forma de construção de um discurso crítico. Idealiza-se o
Consejo Mexicano de Fotografia, associação que tem como uma das metas fazer um grande
evento sobre a fotografia latino-americana. Suas diretrizes buscam, claramente, organizar uma
abordagem que valorize o contato direto com a realidade, enfatizando questões sociais vividas
numa zona de desigualdades. Nas palavras do principal organizador desse projeto, Pedro
Meyer, essa relação entre o fotógrafo e o meio deveria ser direta, cabendo a ele constatar as
199
questões sociais e as inúmeras contradições de nossa sociedade. Diz ele: “Todo que nos rodea
son contradiciones, desde lo elemental hasta lo profundo y transcendente. Inmersos como
estamos en un ambiente de valores opuestos entre sí, hay quienes, para sobrevivir emocional y
moralmente, han aprendido a ‘ya no ve’” (MEYER, 1978, p. 8). Meyer convoca aqueles que
ainda estão comprometidos com um posicionamento político, atentos às questões sociais ao
produzir suas imagens.
Nos debates do Consejo Mexicano de Fotografia, a participação de outros personagens
também foi determinante, tais como Enrique Franco, Jorge Alberto Marique, José Luís Neyra,
Lázaro Blanco, Nacho López, Julieta Jimenez Cacho, Raquel Tibol e Rodrigo Moya. Se, num
primeiro momento, eles buscavam um encaminhamento mais imediato com relação à
produção mexicana (na qual cada um à sua maneira estava inserido), o desafio de construir
uma organização regional foi o passo seguinte. Porém, ainda imperava o desconhecimento
sobre como alcançá-los, além disso, todo processo dependia da articulação e construção de
contatos com pessoas de outros países. Assim, os organizadores tinham a intuição de que a
similaridade existia, sem, no entanto, conhecerem-na. O processo de organização do Primer
Coloquio Latinoamericano de Fotografia foi exaustivo, seus membros criaram alianças em
outros países no sentido de viabilizar sua realização. A parte da mostra de fotografias, sem
dúvida, foi a mais complexa, pois lhes obrigou a fazer uma divulgação da convocatória em
todas as nações.
No item da convocatória para a mostra fotográfica, denominado Princípios y Objetivos
del Consejo Mexicano de Fotografia146, evidenciam-se aspectos relativos ao discurso
fotográfico pretendido, como o anseio de que o fotógrafo tivesse conhecimento dos problemas
sociais de seu país e compreendesse seu momento histórico, fazendo, assim, uma arte
compromissada com as questões vividas. Notamos, portanto, a evidência do viés político
buscado pela organização, dando aos fotógrafos a atribuição de fomentar o debate por meio de
suas imagens. Nos termos de Bustus, aquele era um momento no qual se esperava dos
fotógrafos latinoamericanos um compromisso com os acontecimentos: “La fotografía asumió
una tarea de compromiso social pues existía la necesidad de generar un registro y testimonio,
146
CONSEJO MEXICANO DE FOTOGRAFÍA. ‘Convocatoria - Primero Coloquio Latinoamericano de
Fotografía’. 1978, Folheto, 6 páginas.
200
principalmente en una época en que los regimenes autoritarios del poder controlaban la
información” (BUSTUS, 2007, p. 58). Trata-se, portanto, da fotografia como uma ferramenta
importante para a comunicação sobre as questões vividas na América Latina.
A aproximação com outros países foi gradativa, depois dos primeiros contatos com
possíveis colaboradores, foram organizadas listas com fotógrafos que poderiam enviar
trabalhos, publicadas notas nos meios de comunicação, além da distribuição direta dos
folhetos. A resposta foi surpreendente, tanto do ponto de vista quantitativo, como qualitativo.
Coube depois aos organizadores adequar o material aos critérios estabelecidos, elegendo
aqueles que se aliavam ao conceito pretendido.
147
Boris Kossoy é professor, pesquisador e fotógrafo. Formado em Arquitetura pela Universidade Mackenzie,
fez mestrado e doutorado pela História de Sociologia e Política de São Paulo. É professor livre-docente
aposentado pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Teve, desde os anos 1970,
inúmeras atuações no campo da fotografia brasileira, tendo publicado 13 livros.
148
KOSSOY, Boris. [Carta] 26 set. 1977, São Paulo SP [para] Pedro Meyer, México DF. 2f. Colocações
variadas sobre a palestra e a convocatória da exposição.
201
colocou um comunicado sobre o colóquio e a convocatória na revista brasileira Iris,
especializada em fotografia, “como parte do programa de divulgação que tenho efetuado no
Brasil”149.
Articulações desse tipo ocorreram, em menor escala, em outros países e, ao final,
considerando a colaboração de todos, foram enviadas para o primeiro evento 3098 fotografias
de 355 fotógrafos, representando 15 nações. Reunida entre os dias 2 e 5 de março de 1978150,
a comissão de seleção formada pelo colombiano Jaime Ardila e os mexicanos Fernando
Gamboa, Nacho López, Raquel Tibol e Pedro Meyer, selecionou 600 imagens enviadas por
160 fotógrafos. Dentre estes, 46151 eram brasileiros, aproximadamente 25% do total,
quantidade superada apenas pelo México, com 50 fotógrafos.152
Considerando que os próprios membros do Consejo Mexicano de Fotografia foram
aqueles que selecionaram as imagens, intuímos que eles buscaram eleger fotografias
convergentes com os critérios por eles elencados. Realizando um processo de curadoria da
série fotográfica, alinhando e potencializando os elementos centrais do projeto, criando uma
unidade coesa e orientando o público diante do material exposto.
Com relação aos brasileiros, para a Primera Muestra Latinoamericana de Fotografia,
foram selecionados: Abelardo Bernardino Alves Neto, Adriana de Queiros Mattoso, Alberto
Melo Viana, Ameris Manzini Paolini, Antonio Carlos Silva D’Avila, Antônio Luiz Benck
Vargas, Assis Valdir Hoffman, Ayrton de Magalhães, Bete Feijó, Boris Kossoy, Claudia
Andujar, Evandro Teixeira, Fernanda Maria de Castro Paula, Francisco Aragão, Geraldo de
Barros, German Lorca, Januário Garcia Filho, João Aristeu Urban, Leonid Streliaev,
Lourenço Delfim Martins, Luis Humberto Martins Pereira, Luiz Abreu, Luiz Carlos
Felizardo, Luiz Carlos Velho, Luiz Claudio Marigo, Manuel Antonio Espinosa Cabrera,
149
KOSSOY, Boris. [Carta] 22 de dezembro de 1977, São Paulo SP [para] Pedro Meyer, México DF. 2f.
Esclarecimentos sobre divulgação no Brasil do primeiro colóquio de fotografia.
150
CONSEJO MEXICANO DE FOTOGRAFIA, 1., 1978, México DF. Ata de Reunião - Comitê de seleção da
‘Primera Muestra de la Fotografia Latinoamericana Contemporánea’. México D.F., 3 de março de 1978.
151
Incluímos aqui o fotógrafo convidado Boris Kossoy, que não passou pela seleção dos jurados, mas cujas
fotografias fizeram parte de Hecho en América Latina. Primera Muestra Latinoamericana de Fotografia
Contemporánea.
152
CONSEJO MEXICANO DE FOTOGRAFIA. ‘Primera Muestra de la Fotografia Latinoamericana
Contemporánea’. México, DF, 1978. 1 folheto, 6 páginas.
202
Maria Beatriz Albuquerque, Mario Antonio Cabrera Espinosa, Mauri Tadeu Gregório
Granado, Mazda Pérez, Mendel Rabinovitch, Milton Montenegro, Ódilon de Araujo, Olnay
Kruse, Penna Prearo, Reginaldo Rosa Fernandes, Renato de Luna Pedrosa, Ricardo Leone
Chaves, Ricardo Nardelli Malta, Ricardo Van Steen, Rosa Jandira Gauditano, Rosa Maria
Alves Santos, Sebastião Barbosa da Silva, Vera Simonetti, Vicente Sampaio Neto e Wilson
Weber.
O número de representantes brasileiros foi extremamente significativo e aponta o
sucesso das estratégias de encaminhamento realizadas. Diante disso, nos parece fundamental
que, para entendermos a participação brasileira, seja necessário compreender aspectos da
difusão realizada, cuja pluralidade de ações proporcionou grande diversidade de propostas, já
que houve convocação por revistas, jornais, foto-clubes, além de contatos diretos feitos com
alguns dos principais nomes da fotografia brasileira na época. O resultado foi uma
representação bastante diversificada, mesmo que tal convocatória deixasse claro o perfil
pretendido pelos organizadores.
O primeiro exemplo da participação brasileira vem do fotojornalismo, segmento
bastante presente nas duas mostras. Vejamos nas figuras 1, 2 e 3, a série denominada “Pátria”,
de Antônio Luiz Benck Vargas, de Porto Alegre.
203
Figuras 1, 2 e 3
Figuras 4 e 5
204
A seguir, nas imagens 6, 7, 8 e 9, vemos algumas das fotografias da série “Travestis”,
feitas no centro de São Paulo por Ayrton de Magalhães. Trata-se de um trabalho documental
pioneiro com relação ao tema. Para fazê-lo, Ayrton Magalhães aproximou-se de um grupo de
travestis que viviam no entorno do Hotel Hilton, ganhou intimidade e pode mostrar aspectos
até então desconhecidos deste grupo social.
Figuras 6, 7, 8 e 9
Nas fotografias 10, 11, 12 e 13, vemos a série “Uma visão dos Yanomamis” de
Claudia Andujar, realizada em Roraima, entre 1976 e 1977. Atuando como fotojornalista pela
revista Realidade, Andujar foi para a região amazônica onde, ao encontrar tal grupo étnico,
enveredou outro caminho, vindo a se dedicar por décadas a causa dos Yanomamis.
Tais trabalhos, ao tocarem em temas centrais da realidade social do Brasil, indicam um
posicionamento de nossa fotografia diante do chamamento crítico colocado pelos
organizadores.
205
Figuras 10, 11, 12 e 13
Além dessas obras mais documentais, outros segmentos enviaram imagens. Como os
trabalhos de German Lorca e Geraldo de Barros, dois expoentes da fotografia moderna
brasileira. A presença deles dentre os participantes está diretamente ligada às articulações
feitas por Boris Kossoy, que promoveu uma convocatória abrangente e, apesar da linha
proposta pelos organizadores, não ficou restrito aos trabalhos de crítica social. Nas figuras
14, 15, 16 e 17, de German Lorca, “Aeroporto – Embarque”; “Galinhas”; “Janelas –
Homenagem a Mondrian” e “Formas”. Todas produzidas na década de 1960. São estudos do
fotoclubismo que colocam novas possibilidades de uso da fotografia, questionando questões
de enquadramento, congelamento dos elementos, dando importância as linhas, aos contrastes
e as texturas dos elementos.
206
Figuras 14, 15 e 16
Nas figuras 17, 18 e 19, vemos os trabalhos de Geraldo de Barros, que investiga os
limites da fotografia enquanto processo, manipulando negativos, fazendo múltiplas
exposições, montagens, sobreposições e recortes.
Figuras 17, 18 e 19
207
resumen, no sólo nos dimos a conocer sino que además nos percatamos
claramente de quiénes somos153.
153
CONSEJO MEXICANO DE FOTOGRAFÍA. Convocatória - Coloquio Latinoamericano de Fotografia.
México, DF, 1978. Folheto, 6 páginas.
154
CONSEJO MEXICANO DE FOTOGRAFIA. Critérios y Objetivos para el Comité de Selección. México DF,
1980, 3 p., p. 1.
155
CONSEJO MEXICANO DE FOTOGRAFÍA. Hecho en Latinomérica II. Segundo Coloquio Latinoamericano
de Fotografía. Palacio de Bellas Artes. Ciudad de México. Abril-Mayo 1981. Consejo Mexicano de Fotografía,
A.C. 1982, p. 138.
208
ante lós fenômenos existencialistas de la vida y de la muerte. Este Comité de
Selección señala también, con interés, la existência entre lós fotógrafos de
América Latina, de uma forma de expresión clara, enérgica, vehemente, más
propicia al juego de los contrastes que el virtuosismo formal, reveladora de
uma personalidad bien definida156.
No mesmo sentido, a primeira crítica publicada sobre o material veio pouco após a
seleção e antes mesmo da exposição, quando Ambra Polidori, do periódico Uno Más Uno,
salientou a capacidade de síntese daquilo que é verdadeiramente característico da sociedade
latino-americana.
Polidori também aponta que a exposição tem amplo caráter de denúncia social,
estando dentro dos parâmetros ideológicos buscados pelos organizadores.
Por fim, foram classificados 33 brasileiros: Ana Jannini, Antonio Carlos Dávila,
Antonio Saggese, Ayrton de Magalhães, Beatriz do Carmo Dominguez, Bernardo Alps,
Carlos Alberto Vieira, Carlos Henrique de Souto, Carlos Terrana, Dulce Araújo, Ed Viggiani,
Eduardo Simões, Euvaldo Macedo, Genaro Antonio Joner, Hilton de Souza Ribeiro, Jaqueline
Joner, João Aristeu Urban, José Roberto Cecato, Juca Martins, Lino Stefano de Nes, Luis
156
CONSEJO MEXICANO DE FOTOGRAFÍA. Hecho en Latinomérica II. Segundo Coloquio Latinoamericano
de Fotografía. Palacio de Bellas Artes. Ciudad de México. Abril-Mayo 1981. Consejo Mexicano de Fotografía,
A.C. 1982, p. 138.
209
Carlos Felizardo, Luiz Abreu, Mario Espinosa, Maurício Sominetti, Milton Guran, Nair
Benedicto, Paulo Vieira Leite, Pedro Vasquez, Renata Falzoni, Ricardo Nardelli Malta, Rino
Marconi, Rolnan Pimenta e Vicente Sampaio Neto.
Finalmente, é aberta no dia 24 de abril de 1981 a segunda versão da exposição Hecho
en Latinoamérica. Muestra Latinoamericana de Fotografia Contemporánea, desta feita, no
Palácio de Bellas Artes, no qual ficou até o dia 31 de maio de 1981. A participação brasileira
nessa segunda edição contou com uma grande quantidade de fotojornalistas e, por meio de
tais trabalhos, a ênfase nos problemas sociais do país esteve muito mais presente.
Figuras 20 e 21
210
Figuras 22, 23 e 24
Figuras 25, 26 e 27
Outra participação com retratos veio de Hilton de Souza Ribeiro, que enviou uma
interessante série que mostra aspectos relacionados às posições sociais. Legendando por meio
dos títulos das fotografias a função exercida por cada um dos seus retratados, vemos, pela
ordem crescente, “Diretor Financeiro”; “Faxineiras” e “Secretárias”, todas de 1980.
Questões políticas ligadas à ditadura militar reaparece na série “Confronto” (Figuras
28, 29 e 30), do fotojornalista Eduardo Simões. Nela vemos a greve dos metalúrgicos ocorrida
em São Bernardo do Campo, São Paulo, no ano de 1980. Na sequencia temos uma narrativa
que nos guia entre o início de um conflito, a ação da polícia e, finalmente, a detenção dos
operários.
211
Figuras 28, 29 e 30
Figuras 31, 32 e 33
212
Figuras 34, 35 e 36
Realizadas pelo fotojornalista Paulo Leite, então fotógrafo do jornal O Estado de São
Paulo, as fotografias 37, 38 e 39, foram enviadas sem título e data de realização, mas podem
ser identificadas como sendo feitas em São Paulo pelos indícios que contém, como o
calçamento típico da cidade. Na série vemos o trabalho de recolhimento forçado de moradores
de rua, ação comum nos dias mais frios do inverno. Na sequência é possível constatar que tal
abordagem é feita com o auxílio da polícia.
Figuras 37, 38 e 39
Considerações finais
O conjunto de fotografias aqui apresentadas enfatizou aspectos da potencialidade do
acervo deixado pelos brasileiros participantes das duas mostras latino-americanas realizadas
no México157. No âmbito geral, tal material se articula com os aspectos políticos buscados
pelos organizadores, mesmo que, na primeira participação, seja notória a presença de uma
diversidade de estilos. Sendo assim, o Brasil tinha a oferecer aquilo que era esperado como a
157
No total, entre fotografias expostas e não classificadas paras as exposições, formou-se um acervo de 1230 de
153 brasileiros. Tal material encontra-se no Centro de La Imagen, na Cidade do México.
213
“verdadeira” fotografia latino-americana, preocupada com nossas questões sociais, como
esperavam os organizadores.
Outro fato relevante a ser considerado é a qualidade da participação brasileira, que
permitiu a formação de um rico acervo em terras mexicanas. Isso foi possível principalmente
pela qualidade da articulação feita no Brasil, seguida da preocupação do Consejo Mexicano
de Fotografia em formar uma coleção com o material enviado pelos participantes e a posterior
doação ao Centro de la Imagen. Desta forma, acreditamos que o projeto de construção de um
conjunto crítico da fotografia latino-americana foi alcançado de forma muito satisfatória pelos
organizadores e participantes. Além disso, foi um evento responsável pela aproximação entre
produtores de países distintos, que possibilitou posteriormente outros encontros.
Com relação ao Brasil, é notório que, num primeiro momento, o chamamento foi em
direção à diversidade, congregando propostas com linhas distintas, dando um conjunto
heterogêneo. Porém, com uma análise comparativa dos dois colóquios, vislumbrando aspetos
que podem relacioná-los às articulações políticas do evento, vemos as adequações dos
brasileiros ao mesmo, indicam um alinhamento discursivo claro, que faz com que tenhamos
maior presença de fotojornalistas e fotógrafos documentais no segundo encontro.
Um panorama comparativo entre as duas participações brasileiras nos indica um
alinhamento ao viés ideológico em questão. Trata-se, porém, de um encaminhamento da
convocatória em nosso país, já que estávamos produzindo obras de linhas diversas. Isto posto,
devemos considerar que, com relação ao papel político dos fotógrafos e diante do projeto que
foi idealizado pelo Consejo Mexicano de Fotografia, houve um avanço significativo em nossa
participação, formando um acervo relevante que demarcou a produção fotográfica brasileira
diante de uma realidade maior, que foi entender os processos históricos e as implicações
sociais vividas pelos países latino-americanos.
Referências bibliográficas
BUSTUS, Irene Adriana Barajas. Un discurso latinoamericano en la fotografía de los
setenta en México. Ciudad de México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2007, p.
58.
214
CANCLINI, Néstor García. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da
modernidade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006.
KOSSOY, Boris. [Carta] 22 de dezembro de 1977, São Paulo SP [para] Pedro Meyer,
México DF. 2f. Esclarecimentos sobre divulgação no Brasil do primeiro colóquio de
fotografia.
KOSSOY, Boris. [Carta] 26 set. 1977, São Paulo SP [para] Pedro Meyer, México DF. 2f.
Colocações variadas sobre a palestra e a convocatória da exposição.
215
MUSEU PAULISTA: CONCEITOS E REFERÊNCIAS PARA A
DEFINIÇÃO DE UM MUSEU HISTÓRICO E DE UMA POLÍTICA DE
AQUISIÇÃO DE ACERVO
Resumo: O Museu Paulista da USP, como boa parte das primeiras instituições museológicas
nacionais, foi criado como uma instituição voltada ao campo das ciências naturais. Após sofrer
sucessivos desmembramentos em seu acervo desde meados da década de 1920 o museu tornou-se
exclusivamente dedicado ao campo da História. A Resolução GR-3.560 de 11/08/1989, que
determinou a transferência do acervo, pessoal técnico científico e projetos de natureza antropológica
para o novo Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, constitui um dos pontos cruciais deste
processo.
Tendo como ponto de partida a resolução citada acima, a instituição, sob a gestão do professor
Ulpiano Bezerra Toledo de Meneses, deu início à elaboração de seu Plano Diretor. Tal documento,
instituído em 1990, apresenta não apenas a redefinição da área de atuação da instituição, mas também
uma série de conceitos e diretrizes que serviriam como base para a atuação futura do museu.
Este trabalho pretende apresentar pontos essenciais do Plano Diretor do MP - tais como a meta geral e
o campo de atuação propostos para a instituição - e as diretrizes referentes à política científica e de
acervo do museu. Pretende-se também sublinhar as referências intelectuais implícitas no documento
em questão. Cabe lembrar que as reflexões apresentadas neste trabalho são fruto do desenvolvimento
da pesquisa de mestrado intitulada Análise do processo de musealização do Museu Paulista sob a
perspectiva da democratização do direito à memória. Tal pesquisa está sendo desenvolvida no âmbito
do Programa de Pós-graduação Interunidades em Museologia da USP – PPGMus-USP.
216
Abstract: The Paulista Museum of USP, like many of the first national museums, was created as an
institution focused on the field of natural sciences. After suffering successive dismemberments in its
collection since the mid-1920s the museum became exclusively dedicated to the field of history. The
Resolution GR-3,560 of August 11, 1989, which determined the transfer of the collection, technical
scientific personnel and projects of anthropological nature to the new Museum of Archeology and
Ethnology of USP, is one of the crucial points of this process.
Starting from the resolution mentioned above, the institution, under the management of Professor
Ulpiano Bezerra Toledo de Meneses, began the preparation of its Master Plan. This document,
instituted in 1990, presents not only the redefinition of the institution's area of activity, but also a
series of concepts and guidelines that would serve as a basis for the future performance of the
museum.
This paper intends to present essential points of the Master Plan of the MP - such as the general goal
and field of action proposed for the institution - and the guidelines regarding the museum's scientific
and collection policy. It is also intended to underline the intellectual references implicit in the
document in question. It should be remembered that the reflections presented in this work are the
result of the development of the master's research entitled Analysis of the process of musealization of
the Paulista Museum under the perspective of democratization of the right to memory. Such research
is being developed within the scope of the Post-Graduation Program in Museology of USP - PPGMus-
USP.
217
A gestão do professor Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses durante os anos de 1989 e
1994 no Museu Paulista da USP foi decisiva para a atual feição que a instituição possui nos
dias atuais. Com a implementação do Plano Diretor (PD) do museu, em 1990, a instituição
firmou-se definitivamente como um museu estritamente histórico, alinhado a inúmeras
discussões contemporâneas que permeavam os debates acerca dos museus e da disciplina da
história.
Para as professoras Heloisa Barbuy e Sheila Walbe Ornstein, o Museu Paulista em
1990 sofreu uma “reorganização conceitual e uma racionalização” que permitiram um
significativo desenvolvimento acadêmico e institucional, além de uma maior inserção da
instituição em contextos acadêmicos nacionais e internacionais (BARBUY; ORNSTEIN,
2015, p. 263). Dentre as tendências nacionais e internacionais nas quais o Museu Paulista
mostrava-se em consonância destaco a profissionalização do campo museológico, a busca
por uma democratização dos museus e a valorização, por boa parte dos historiadores, da
noção de processo histórico e de uma história coletiva.
A partir da criação do ICOM em 1946, foram efetuados inúmeros esforços para uma
maior profissionalização e uniformização das práticas das instituições museológicas158.
158
É importante apontarmos que o Brasil, por meio da atuação do embaixador Paulo Carneiro – delegado do
país à UNESCO – estabeleceu vínculos estreitos com o ICOM desde sua constituição: o país foi um dos
membros fundadores do Conselho, sendo representado pelo professor Oswaldo Teixeira, então diretor do Museu
de Belas Artes do Rio de Janeiro. Em 1972, foi criada a Associação de Membros do ICOM (AMICOM-BR), que
representava uma nova força de trabalho e tinha como objetivo a expansão e divulgação dos novos conceitos
218
Dentre os marcos deste processo podemos citar, de acordo com a museóloga Marília Xavier
Cury, a realização de eventos científicos visando a discussão de temas essenciais para a área
e a edição de documentos referenciais (CURY, 2005, p. 45).
219
importância de uma política de aquisição de acervo clara e formalmente estabelecida e
exemplos deste tipo de documento de algumas instituições museológicas.
O documento não se propõe a ser um conjunto de regras a ser seguido e sim uma
referência para a conduta dos profissionais e das instituições com relação a temas como a
definição formal da missão da instituição, sua política educacional, financeira, de pessoal e
de acervo. Com relação ao primeiro ponto citado, o documento estabelece que cada museu
deverá ter um estatuto escrito que defina seus propósitos e seus objetivos, sua política, sua
natureza não-lucrativa, e que esteja de acordo com a legislação nacional e internacional
(ICOM, 1986, p.17).
220
no que tange à meta da instituição, ao seu campo de atuação e às políticas educativas e de
acervo.
A Meta Geral proposta pelo Plano Diretor estabelece que todos os esforços devem
convergir na transformação do MP em um museu-histórico-universitário, condizente a uma
prática cientifica e cultural contemporânea (MENESES, 1990, p. 1). Portanto, o que está
sendo proposto no PD não é apenas a especialização da instituição em um ramo do
conhecimento científico – a História – e sim a atualização de conceitos-base para o trabalho
desenvolvido no MP, como o conceito de museu, de museu histórico e museu universitário.
221
aquelas que a curadoria puder cobrir, e como óbvio, centradas na sociedade brasileira (e seu
segmento paulista)” (Idem, p. 2).
Como dito anteriormente, a redefinição pelo qual passou o Museu Paulista a partir do
Plano Diretor de 1990 atingiu também o campo de atuação da instituição. Mais do que uma
mudança, o que ocorreu nesse âmbito foi uma explicitação conceitual da importância do
estudo da cultura material para o entendimento das estruturas, do funcionamento e das
mudanças de uma sociedade. Dessa forma, o PD estabelece que o museu é uma instituição
privilegiada para a análise de questões fundamentais que escapam às instituições ordinárias
de pesquisa, ou seja, as questões relacionadas ao campo da cultura material, entendida como
o conjunto de sistemas físicos de produção e reprodução social (Idem, p. 2).
222
funcionar como garantias de que a instituição conseguirá aprofundar os conhecimentos nos
tópicos aos quais o MP deve ser referência obrigatória.
O Plano Diretor coloca que “o Museu Paulista tem sido um repositório de “objetos
históricos” (duplicados por um arquivo de “documentos históricos”), coletados ou recebidos
segundo uma perspectiva positivística da História, que privilegiava eventos e figuras de
exceção (além do valor estético)” (Idem, p. 1). A nova política de acervo surge, portanto,
com o intuito de transformar a faceta do acervo institucional.
223
na historiografia como constitutivas do movimento da Nova História, comumente associado
à chamada École des Annales, mas que se configura autonomamente como uma geração com
enfoques e métodos específicos, consolidada entre os anos 1960 e 1980.
Fundada pelos historiadores Lucien Febvre e Marc Bloch, em 1929, a revista Annales
d’histoire économique et sociale agrupou os principais agentes do que seria posteriormente
chamado Escola dos Annales. Seus fundadores idealizaram a revista para que ela constituísse
a porta-voz “em favor de uma abordagem nova e interdisciplinar da história” (BURKE,
1992, p. 24), contrapondo-se, dessa forma, ao chamado paradigma tradicional da história.
Peter Burke coloca que o movimento iniciado por Lucien Febvre e Marc Bloch “está
unido apenas naquilo a que se opõe” (BURKE, 1992, p. 2), ou seja, às formas tradicionais de
escrita da história. Estas seriam caracterizadas essencialmente pelo entendimento da história-
disciplina enquanto uma narrativa objetiva dos acontecimentos políticos, produzida a partir
da visão dos grandes homens e baseada apenas em documentos escritos. A Nova História,
portanto, proporá uma ampliação do horizonte historiográfico em várias frentes, sobretudo a
partir de fins da década de 1970.
Com o interesse dos historiadores se deslocando para um leque cada vez maior de
temas, a interdisciplinaridade surgia como uma necessidade natural para a produção
historiográfica. A revista dos Annales já nasceu com forte ênfase no caráter interdisciplinar
da história, haja vista que em seu comitê editorial fazia parte historiadores, geógrafos,
sociólogos, economistas e cientistas políticos (BURKE, 1992, p. 24). Um dos campos do
saber que mais receberam a atenção dos historiadores neste período foi a geografia; a tese de
doutorado de Fernand Braudel, intitulada O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico na
224
época de Filipe II, constitui uma das principais obras nesta perspectiva (BURKE, 1992, p.
34).
Para além da intenção de compreensão total dos fenômenos sociais, é preciso chamar
atenção para o fato de que a profusão temática decorrente da nova história – chamada por
alguns como a “história em migalhas” - é também consequência da desilusão de uma geração
de intelectuais que abandonaram a crença na possibilidade de transformação global da
sociedade (CARDOSO, 1997, p 42-43).
Para Peter Burke, mesmo o movimento dos Annales tendo defendido a legitimidade
do interesse da história-disciplina por questões relacionadas ao âmbito cultural das
sociedades, predominou durante as três primeiras décadas o interesse pela história
econômica. Esta situação será revertida a partir da publicação de L’Enfant et la vie famíliale
sous l’Ancien Régime, de Philippe Ariès, no ano de 1960.
Este ponto nos remete a duas outras frentes de atuação da nova história: a
desconstrução da ideia de que a história-disciplina possa propiciar um entendimento objetivo
das sociedades estudadas e, consequentemente, a necessidade de inclusão de pontos de vista
variados em relação a um mesmo objeto.
225
Uma ideia muito difundida pelos partidários do paradigma tradicional era a noção de
que cabia aos historiadores a apresentação dos fatos aos seus leitores “como eles realmente
aconteceram”. Pretendia-se, dessa forma, afirmar a capacidade da história em produzir
conhecimento objetivo, livre de referências externas aos fatos narrados.
Será a partir desta frente de atuação que se dará o interesse na chamada “história vista
de baixo”. Jim Sharpe afirma que, embora este campo de atuação deva seu maior
desenvolvimento conceitual aos estudos empreendidos por historiadores marxistas ingleses,
o livro que utilizou essa perspectiva e que criou mais impacto na historiografia recente foi
Montaillou, do historiador francês Emmanuel Le Roy Ladurie, publicado em 1975. Cabe
destacarmos também o trabalho de Carlo Ginzburg, Il formaggio e i vermi: il cosmo di un
mugnaio del '500, publicado em 1976.
226
Juntos, os trabalhos de Ginzburg e Le Roy exemplificam a preocupação de diversos
historiadores com a constituição histórica de temas e vidas das classes subalternas, porém, os
dois trabalhos merecem destaque também pelo fato de se utilizarem de fontes não usuais até
as décadas de 1970 e 1980 na produção da escrita da história. A busca pela ampliação do
escopo documental utilizado pelos historiadores constituirá também uma das frentes de
atuação da Nova História.
Por consequência, o estudo da cultura material ganha uma importância cada vez
maior no trabalho dos historiadores. Marcelo Rede coloca que, mesmo não tendo constituído
um campo de pesquisa, houve esforços importantes neste sentido durante as décadas de 1960
e 1970. Dentre tais impulsos destacam-se os trabalhos de Jean Baudrillard, Abraham A.
Moles e Fernand Braudel160 (REDE, 2003, p. 281).
160
O livro O sistema dos objetos, publicado originalmente em 1968 por Baudrillard, e Teoria dos objetos de
Moles, publicado em 1972, mostram-se como produtos de uma tendência particular muito presente em várias
frentes de atuação da nova história: a semiologia, ou hermenêutica nas palavras de Ciro Cardoso. Estas obras
preocupam-se em “descrever o papel das coisas materiais na sociedade moderna, e sobretudo, a valorização da
função sígnica dos objetos” (REDE, 2003, p. 281). O caráter representacional – “investigação do sentido” nas
palavras de Bourdé e Martin - terá uma importância ímpar nas produções dos historiadores ligados a nova
história (BOURDÉ; MARTIN, 1983, p. 149).
227
Fernand Braudel contribui para este tópico com a publicação de Civilização material,
economia e capitalismo em 1979. Nesta obra o autor empreende uma análise da história
mundial durante os séculos XV e XVIII e afirma, para o período estudado, ser o estudo da
cultura material indissociável do estudo do capitalismo. Para Jean-Marie Pesez este livro de
Braudel consistiu na “primeira grande síntese sobre a história da cultura material” (PESES In
LE GOFF, 1993, p. 184).
A apresentação de “pontinho por pontinho” da história já não faz mais sentido para os
historiadores da Nova História, tanto pela incapacidade de representação dos fatos como
realmente aconteceram, quanto pela percepção dos acontecimentos como “perturbações
superficiais, espumas de ondas que a maré da história carrega em suas fortes espáduas”
(BRAUDEL apud BURKE, 1992, p. 33).
228
Ao adotar a cultura material como campo de atuação da instituição - para além da
obviedade por tratar se de um museu, ou seja, uma instituição essencialmente voltada para
vestígios materiais da sociedade – e entendendo-a como responsável por produzir e
reproduzir padrões sociais, Ulpiano T. Bezerra de Menezes foi ao encontro das ideias
difundidas pelos partidários da nova história com relação a este tópico.
229
desenvolvimento se daria pelo empoderamento cultural e econômico das populações a partir
da instrumentalização dos equipamentos culturais. Somente dessa forma, com a participação
de diferentes segmentos da sociedade, o museu deixaria de ser uma instituição distante, sem
relações orgânicas com a comunidade a qual representa.
Hernán Crespo Toral chama a atenção para o fato de que o Seminário de 1958
respondia a um plano da UNESCO de propiciar uma reflexão acerca do papel educativo dos
museus perante a sociedade. Tal reflexão seria desenvolvida em cada uma das regiões do
mundo.
Hernán Toral também comenta que ao mesmo tempo em que o Seminário salienta
“que o objeto é o cerne do museu”, percebe-se durante o evento a necessidade de vencer “o
tradicionalismo do Museu conservatório de objetos [...] para transformá-lo em meio de
comunicação atrativo que pudesse incidir nos problemas reais da comunidade” (TORAL In:
BRUNO, 1995, p. 25-26).
230
como ação, isto é, instrumento dinâmico de mudança social” (VARINE In: BRUNO, 1995,
v. II, p. 40, grifo do autor).
Para o museólogo Mário Canova Moutinho, foi durante o “Ateliê Ecomuseus – Nova
Museologia”, realizado em Quebec, que a comunidade museológica internacional viu-se
confrontada com uma série de experiências museológicas em curso que demonstravam
“aspectos específicos de uma Nova Museologia”. Dentre tais aspectos, Moutinho destaca a
investigação e interpretação de testemunhos materiais e imateriais voltadas para as questões
de ordem social, a importância da interdisciplinaridade, a ideia da exposição museológica
como “processo de formação permanente e não mais o objeto de contemplação” e a
substituição da noção de público pela noção de “colaborador, de utilizador ou de criador”
(MOUTINHO In: BRUNO, 1995, v. II, p. 53-56).
231
interessada com a aquisição de objetos enquanto mecanismo de um especifico programa de
pesquisa cientifica, educação, conservação e demonstração do patrimônio cultural e natural,
seja ele nacional ou internacional (ICOM, 1970).
Cabe lembrar também que, ao elaborar a Política de Acervo - mesmo que de forma
muito sucinta – e nos termos comentados acima, o MP mostra-se mais uma vez em
consonância com o estabelecido pelo ICOM nas duas normativas referenciadas neste texto.
Dentre outros direcionamentos, o Ethics of Acquisition estabelece que a política de aquisição
de acervo deva ser publicada e que nenhum objeto deverá ser adquirido a não ser que possua
uma relação direta com os objetivos institucionais (ICOM, 1970).
Outro ponto digno de nota é a concepção de uma série de leituras possíveis das
evidências materiais: esta não é apenas explorada em seu caráter instrutivo, e está sujeita a
leituras afetiva, estética, intelectual e lúdica – de acordo com a concepção do museu como
espaço múltiplo, como comentado anteriormente (ICOM, 1970).
232
longo dos anos posteriores, haja vista que o Code of Professional Ethics de 1986 refere-se
aos objetos apenas como “material evidence”.
A partir do exposto até aqui podemos perceber que o Plano Diretor do Museu
Paulista reverbera muitos conceitos e práticas incentivadas pelos partidários da Nova
Museologia. Dentre tais práticas, destacamos a compreensão alargada de patrimônio, ou seja,
uma visão ampla dos museus – com o entendimento de que seus recursos científicos,
educacionais e culturais constituem uma atividade da mais alta expressão social - e dos
objetos possíveis de serem musealizados, além de uma postura crítica com relação à
comunicação museológica, não entendida como responsável por cristalizar parâmetros e sim
como mais uma das forças no debate público.
Referências bibliográficas
BARBUY, Heloisa; ORNSTEIN, Sheila Walbe. Museu Paulista: Contribuições Acadêmicas e
Políticas Públicas. In: GOLDEMBERG, J. (coord). USP 80 anos. São Paulo, Edusp, 2015.
BURKE, Peter. (Org.). A Escrita da História: novas perspectivas. São Paulo: Fundação
Editora da UNESP, 1992, 13º edição.
CARDOSO, Ciro F.; VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da História: Ensaios de Teoria
e Metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. Disponível em:
<http://www.univas.edu.br/menu/BIBLIOTECA/servicosOferecidos/livrosDigitalizados/histo
ria/DominiosdaHistoriaCiroFlamarionCardosoeRonaldoVainfas.pdf>. Acessado: maio de
2017.
233
. ICOM Statutes: Code of Professional Ethics. 1987.
LE GOFF, Jacques. A história nova. 2. ed.. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Plano Diretor do Museu Paulista da USP. São Paulo,
Museu Paulista, 1990.
NOVAIS, Fernando A.; SILVA, Rogério F. da. Nova história em perspectiva (volume 1).
São Paulo: Cosac Naify, 2011.
O’KEEFE, Patrick J. (1998), Museum Acquisitions Policies and the 1970 UNESCO
Convention. Museum International, 50: p. 20–24. Disponível em <
http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/1468-0033.00131/epdf1>. Acesso em: outubro de
2016.
REDE, Marcelo. Estudos de cultura material: uma vertente francesa. São Paulo: Anais do
Museu Paulista. N. Sér. v. 8/9. p. 281-291, 2003. Disponível em
<http://www.scielo.br/pdf/anaismp/v8-9n1/08.pdf>. Acesso em: jun. de 2017.
234
UM ACERVO PARA CHAMAR DE REPÚBLICA
Resumo: Este artigo apresenta um estudo sobre o acervo preservado no Museu da República,
instituição museológica nacional localizada na cidade do Rio de Janeiro. Examina, especificamente, o
acervo museológico da instituição, com o intuito de compreender os sentidos sociais que instruíram a
sua formação.
O pressuposto é o de que a formação de um acervo museológico necessariamente ocorre em
articulação com determinados valores e visões de mundo, presentes no meio social. Valores e visões
de mundo que legitimam a transformação de determinados objetos em acervo, aludindo, portanto, às
razões sociais que justificam a formação de um determinado acervo e não de outro.
Abstract: This article presents a study about the collection preserved in the Museu da República
(Republic Museum), a national museum located in the city of Rio de Janeiro. It examines, specifically,
the museological collection of the institution, in order to understand the social meanings that have
instructed its formation.
The assumption is that the formation of a museological collection necessarily occurs in articulation
with certain values and world views, present in the social environment. Values and world views that
legitimize the transformation of certain objects into a collection, alluding, therefore, to the social
reasons that justify the formation of a certain collection and not of another one.
235
Apresentação
O Museu da República foi criado em 1960, como uma seção do Museu Histórico
Nacional. Recebeu o nome de Museu da República, mas constituiu, de fato, entre 1960 e
1983, a Divisão de História Republicana do Museu Histórico Nacional. Em 1983, obteve
autonomia administrativa, para o que concorreu o contexto favorável de discussão, na esfera
governamental, em torno do lugar dos museus na sociedade brasileira. Em outubro de 1981,
todos os museus federais haviam passado para o âmbito da então Fundação Nacional Pró-
Memória161, tendo início uma série de reuniões entre os seus diretores e o então secretário da
Cultura do MEC, Aloísio Magalhães. O propósito era elaborar uma política específica para o
setor, sendo traçadas as linhas gerais do que viria a ser o Programa Nacional de Museus.
Repensar a autonomia administrativa do Museu da República colocava-se, assim, em linha
com repensar os museus em geral e desenvolver projetos para a sua revitalização.162
161
A Fundação Nacional Pró-Memória funcionou entre 1979 e 1990, como órgão executivo do Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, organismo federal, vinculado ao Ministério da Cultura, criado em
1937 e responsável pela proteção ao patrimônio cultural brasileiro.
162
MELO, 1997, p. 37-44.
236
Fonte: Fotografia de Rômulo Fialdini & Valentino Fialdini.
O Palácio permaneceu como propriedade da família Nova Friburgo até 1890, quando
foi vendido para o grupo Companhia Grande Hotel Internacional e, logo depois, para
Francisco de Paula Mayrink, acionista da companhia e que ocupou, entre 1891 e 1908, uma
cadeira na Câmara dos Deputados. Mayrink hipotecou e, em 1896, acabou por vender o
Palácio para o Governo Federal. Entre 1897 e 1960, o prédio tornou-se a sede da Presidência
237
da República do Brasil e, também, residência oficial de alguns presidentes. Após a
transferência da Capital Federal para Brasília, passa a abrigar o Museu da República.
238
Figura SEQ Figura \* ARABIC 3: Salão Mourisco, no Palácio do Catete.
239
Figura SEQ Figura \* ARABIC 4: Salão Venizano, no Palácio do Catete.
Imponência e requinte artístico estão presentes em cada detalhe que compõe os objetos
de iluminação e de interiores (lustres, piso, portões, maçanetas, janelas etc.) e as obras de arte
(pinturas, esculturas) do Palácio, produzidas por artistas renomados como Antônio Parreiras,
Décio Rodrigues Villares, Emil Bauch, Francisco Aurélio de Figueiredo, Henrique
Bernardelli, Jean-Baptiste Debret, Pedro Bruno, Quirino Antônio Vieira, Rodolfo Amoedo,
entre outros.
240
Na área externa, o jardim, aberto ao público quando da criação do Museu, confirma a
excelência artística do edifício. Quando de sua ocupação pela Presidência da República, novo
projeto paisagístico foi realizado por Paul Villon – que havia trabalhado com Auguste Marie
Françoise Glaziou em reforma do Campo da Aclamação, atual Praça da República – sendo
incorporados canteiros, uma gruta e um rio artificiais, além de bancos e pontes campestres,
integrados ao ambiente de árvores e plantas. Um belo chafariz, que exibe o grupo escultórico
O Nascimento de Vênus, criado pelo escultor francês Mathurin Moreau, repousa ao centro de
uma aleia de palmeiras. Esta e outras esculturas do jardim foram encomendadas à fundição
francesa Val d'Osne, responsável pela fabricação de um conjunto importante de peças em
ferro, produzidas no século XIX, que hoje compõem espaços públicos e edifícios da cidade do
Rio de Janeiro, como o chafariz da Praça Mahatma Gandhi, na Cinelândia, e os equipamentos
em ferro fundido instalados no Campo de Santana.
Figura SEQ Figura \* ARABIC 5: Nascimento de Vênus, de Mathurn Moreau, Fundação Val d'Osne. Jardim
do Palácio do Catete.
241
O edifício e o jardim do Palácio foram tombados pelo Serviço do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional, em 1938.
Assim, quando foi construído, o Palácio do Catete despontou, não apenas como opção
estética ou de bem-estar material, mas também como parte de um projeto de poder, que
afirmava a primazia dos padrões da civilização europeia no Novo Mundo. Fundamental era
impressionar, estabelecendo/ostentando uma série de condições simbólicas que pudessem
garantir a caracterização do Palácio como residência diferenciada, de prestígio, e o
reconhecimento da família Nova Friburgo como elite maior.
Quando o Palácio se torna a sede do Museu da República, todo o seu simbolismo e
suas circunstâncias como espaço de moradia e de poder da elite brasileira são incorporados ao
museu, como memória preservada e valorizada da República.
O acervo museológico preservado no Museu da República reúne quase dez mil itens,
agrupados em 74 coleções. Entre as coleções, 63 recebem nomes de personalidades da vida
nacional e 11 são nomeadas a partir de referências temáticas. Ou seja, trata-se de um acervo
predominantemente biográfico, formado com objetos que se justificam no acervo sobretudo
por serem de uso pessoal ou profissional de determinados titulares.
242
Entre os titulares das coleções, 29 são ex-presidentes da República163, o que decerto
tem relação com o fato do Palácio do Catete ter sido a sede da Presidência da República
durante muitos anos. Por outro lado, a figura do presidente da República tem força no
imaginário político nacional como representação do poder e não surpreende que isso tenha
influenciado na atribuição dos nomes das coleções, que confirmam o peso da mística
presidencial na cultura política brasileira.
163
Afonso Pena; Arthur Bernardes; Campos Salles; Café Filho; Carlos Luz; Castelo Branco; Costa e Silva;
Delfim Moreira, Deodoro da Fonseca; Dilma Rousseff; Emílio Garrastazu Médici; Epitácio Pessoa; Ernesto
Geisel; Eurico Gaspar Dutra; Floriano Peixoto; Getúlio Vargas; Hermes da Fonseca; Jânio Quadros; José
Linhares; José Sarney; Juscelino Kubitschek; Lula; Nereu Ramos; Nilo Peçanha; Prudente de Moraes; Rodrigues
Alves; Tancredo Neves; Washington Luís; e Wenceslau Brás.
243
Figura SEQ Figura \* ARABIC 6: Honório Peçanha.
Busto de Juscelino Kubitschek.
Acervo do Museu da República/Ibram/MinC.
244
Figura SEQ Figura \* ARABIC 8: Edgard Andrade de Freitas.
Garrafa de areia, do artista popular cearense.
Acervo do Museu da República/Ibram/MinC.
245
Figura SEQ Figura \* ARABIC 9: Quarto de Getúlio Vargas, no Palácio do Catete.
Coleções temáticas
Entre as onze coleções temáticas do acervo em exame, duas fazem menção à categoria
Presidência da República: a Coleção Palácio Itamaraty e a Coleção Presidência da República.
246
Figura SEQ Figura \* ARABIC 10: Salão Ministerial, no Palácio do Catete.
247
alertando: “Todas as nações têm seus Museus Militares guardando as tradições guerreiras de
sua história, documentando os progressos dos armamentos e exaltando o culto das glórias
passadas. Nós ainda não o possuímos” (DUMANS, 1942, p. 384).
248
A coleção, no museu, apresenta alguns exemplares especiais, como as primeiras
moedas cunhadas após a Proclamação da República, porém, a expressiva maioria são modelos
do sistema monetário brasileiro.
Figura SEQ Figura \* ARABIC 12: Primeiras moedas cunhadas após a Proclamação da República.
Acervo do Museu da República/Ibram/MinC.
De todas as coleções museológicas em exame, a maior delas, com mais de 2.500 itens,
é a Coleção Museu da República. Trata-se de uma coleção “coringa”, que reúne todos os itens
do acervo do museu que não encontram lugar em quaisquer das demais coleções.
Um de seus destaques são as figurações e símbolos da República. A primeira Bandeira
Nacional do Brasil republicano – um símbolo oficial –, mas também diversas outras
figurações que destacam a República como elemento forte da identidade nacional. Em
comum, tais representações reforçam a ideia do regime republicano como um lugar de
encontro e de agregação simbólica de todos os brasileiros.
249
Figura SEQ Figura \* ARABIC 13:
Primeira Bandeira Nacional oficial do Brasil, ca.1890, tecido, 1,80 x 1,30 m.
Acervo do Museu da República/Ibram/MinC.
Figura SEQ Figura \* ARABIC 14: Pedro Bruno. A Pátria, 1919, óleo sobre tela, 1,90 x 2,78m.
Acervo do Museu da República/Ibram/MinC.
250
Figura SEQ Figura \* ARABIC 15: Décio Vilares.
A República, s/d, óleo sobre tela, 40,5 x 33 cm.
Acervo do Museu da República/Ibram/MinC.
251
predominantes ou exclusivas na formação do acervo museológico passaram a conviver com
outras possibilidades. A coleção de bottons, por exemplo, expressiva da diversidade de forças
sociais e políticas presentes no debate naquele momento, sugere uma perspectiva
absolutamente diferente do padrão de perceber a elite política como protagonista do processo.
Observações finais
252
Museu da República e dos acervos que a instituição preserva não se limita a um lugar de
memória, sendo, também, lugar de criação e recriação de maneiras de perceber o mundo
social.
Referências bibliográficas
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no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco/Lapa, 1996.
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Belém, out. 1990, p. 41-45.
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Aberta Editora, 2016.
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República, 2010, p. 10-25.
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253
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nacional. Anais do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro, v. 28, 1996, p. 21-36.
254
O MUSEAL NA GÊNESE DO PARQUE ZOOBOTÂNICO DO MUSEU GOELDI
(1895-1914)
Resumo: O artigo analisa a construção do Parque Zoobotânico do Museu Paraense Emílio Goeldi
durante a gestão de seus idealizadores, Emílio Goeldi (1895-1907) e Jacques Huber (1907-1914). Ele
foi concebido como dois anexos: o jardim zoológico e o horto botânico, que hoje se constituem em
uma área orgânica no centro de Belém (PA). O ponto de partida para a construção desse parque foi a
desapropriação de terrenos e a posterior transformação e ressignificação das edificações e plantas
vivas existentes no local. A partir do conceito de musealidade, o texto se desenvolve em quatro
narrativas – comunicacional e educativa, científica, lazer e sociabilidade, doméstica – que entendemos
como eixos estruturais que deram forma e organicidade ao espaço museológico. Essas narrativas
permitiram estudar a gênese da identidade institucional, a qual, em sua essência, se perpetua até a
atualidade.
Abstract: The article analyses the construction of the Zoobotanical Park of the Museu Paraense
Emilio Goeldi during the administration of its idealizers, Emilio Goeldi (1895-1907) and Jacques
Huber (1907-1914). It was conceived as two annexes of the museum: the zoo and the botanic garden,
which today constitute an organic area in the center of Belem (PA). The starting point for the
construction of this park was the expropriation of land and the subsequent transformation and
resignification of the buildings and living plants on the site. Based on the concept of museality, the
text was developed in four narratives – communicational and educational, scientific, leisure and
sociality, domestic – which we understand as structural axes that gave form and organicity to the
museological space. These narratives allowed us to study the genesis of institutional identity, which, in
its essence, is perpetuated to the present day.
255
O atual Parque Zoobotânico do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG) foi concebido
como dois anexos diferenciados do antigo Museu Paraense de História Natural e Etnografia: o
Jardim Zoológico e o Horto Botânico. Os dois espaços foram núcleos essenciais do projeto
político-museológico concebido pelo governador do Pará, Lauro Sodré (1891-1896), e
encampado durante a gestão de Emílio Goeldi (1894-1907) e de Jacques Huber (1907-1914)
(SANJAD, 2010). A desapropriação, por parte do governo paraense, de uma edificação e área
privada de arquitetura típica de Belém do século XIX foi o ponto de partida para a realização
desse projeto. As ‘rocinhas’, como se denominam esse tipo de residência, tal como as
chácaras, localizavam-se nos subúrbios, em terrenos amplos e ajardinados onde também se
cultivava hortas e pomares e se criava animais para consumo familiar. A diferença entre elas
radica no partido arquitetônico sui generis das rocinhas: as casas eram posicionadas no centro
do terreno e distinguiam as áreas de convívio social das áreas destinadas à intimidade da
família (SOARES, 1996) (Figura 1).
Figura 1: Primeira planta baixa do Parque Zoobotânico do Museu Paraense de História Natural e Etnografia, de
1897, onde é possível observar o imóvel e o terreno contíguo desapropriados para a instalação do museu (em
rosa) e as intervenções feitas.
256
Com a análise a seguir, interessa compreender a ressignificação da ‘rocinha’ onde foi
instalado o Museu Paraense em 1895, assim como o processo de musealização das coleções
vivas, em especial a configuração do horto, por meio do estudo dos diferentes usos conferidos
ao espaço físico e dos sentidos atribuídos aos espécimes vegetais que já existiam ali, antes da
instalação do museu, e os que foram posteriormente introduzidos. Esses usos e sentidos,
próprios às atividades dos museus de história natural do século XIX, podem ser abordados
como dimensões interligadas, de acordo com a ideia de musealidade proposta por Rocha
(2009) em seu estudo sobre o arboreto do Jardim Botânico do Rio de Janeiro (JBRJ). Segundo
a autora “é exatamente na possibilidade de colocar em relação estas diversas dimensões –
lazer, educação, pesquisa, comunicação e informação – associadas a uma coleção que reside
nosso olhar da musealidade do arboreto” (ROCHA, 2009, p. 111). Nessa perspectiva,
estudamos a musealidade dos dois anexos do Museu Paraense por meio de quatro narrativas
transpostas no espaço físico e baseadas na proposta de Rocha: comunicacional e educativa,
científica, lazer e sociabilidade e doméstica, esta última incluída apenas em nosso estudo.
Essas quatro narrativas permitem identificar os princípios que nortearam a instalação e o
funcionamento do jardim zoológico e do horto botânico. Elas são aqui apresentadas de
maneira bastante resumida. O trabalho completo será publicado em outro local.
257
tradição dos museus de história natural do século XIX, para a qual a exibição de ‘produtos da
natureza’ era central (LOPES; MURIELLO, 2005, p. 24). O chamado ‘método intuitivo de
ensino’, também conhecido pela expressão ‘lição de coisas’ ou ‘ensino pelo aspecto’, era
baseado na observação como premissa da compreensão (MACHADO, 2010). A exposição foi
uma ferramenta fundamental para a instrução pública e se tornou assunto central nos museus
do século XIX. Foi com e através da exibição e do arranjo dos objetos segundo leis
sistemáticas e taxonômicas, reflexo das práticas científicas de classificação da natureza, que
se pretendeu ‘civilizar’ o público leigo.
A exposição das ‘coisas da natureza’ nos museus de história natural teve uma dupla
função: ensino e pesquisa. O caso do Museu Paraense, com seus espaços divididos em salas
de exposição dentro do prédio principal, em laboratórios e em anexos ao ar livre, com regras
de uso e acesso distintas, é um exemplo da implementação dessa dupla função nos museus de
século XIX (SANJAD, 2010, p. 191). Entretanto, essa dupla função não se deu de maneira
evidente no horto botânico. Ali, a própria coleção viva tinha um duplo status: tinha um caráter
educativo, pois era utilizada com finalidades pedagógicas e era acessível ao público, e
científico, pois foi produzida a partir de um projeto científico, obedecendo a uma agenda de
investigações, tal como apresentamos aqui.
258
espécimes da fauna, visualizar a forma, a estrutura e os materiais usados em jaulas e gaiolas,
assim como estudar o manejo e o processo de curadoria dessa coleção (SANJAD et al., 2012).
259
Outra importante característica no aspecto comunicacional e pedagógico do museu foi
a sinalização da coleção viva como dispositivo expográfico e registro das expedições
científicas realizadas pela instituição. Os letreiros apresentavam o “nome científico e vulgar,
parentesco e filiação sistemáticos, proveniência e distribuição geográfica”, dados que,
segundo Goeldi, “agradariam tanto pelo lado da estética como pelo lado da aplicação de
severas regras científicas” (GOELDI, 1897b, p. 17). A importância de etiquetar e de dar a
cada objeto colecionado seu respectivo letreiro foi mencionada tanto por Goeldi quanto por
Huber, reiteradamente, nos relatórios administrativos. Forma e conteúdo, portanto, eram
preocupações de Goeldi, inclusive as informações de domínio popular, como os nomes
vernáculos de cada espécie, capazes de aproximar o público da ciência. Huber também
considerou os nomes populares das plantas, pois notou um interesse por parte das pessoas na
“identificação dos nomes científicos com os nomes vulgares geralmente conhecidos”
(HUBER, 1898, p. 291).
Na época, qualquer casa de Belém possuía um pomar e/ou uma horta, além de muitos
animais silvestres, portanto muitas das espécies de animais e plantas exibidas no museu já
eram bastante conhecidas da população amazônica, mesmo urbana. A grande novidade que o
museu oferecia com suas exposições foi a ressignificação de cada espécime como objeto
cientifico, perceptível no modo em que se apresentavam, de maneira ordenada por princípios
ditados pela ciência e conforme uma estética eurocêntrica.
Narrativa científica
260
construídos para abrigar a coleção faunística, além de servirem para a exibição dos animais,
foram pensados para a criação de muitas espécies em cativeiro, selecionadas a partir dos
interesses científicos do diretor (SANJAD et al., 2012); no segundo, dirigido por Huber, tanto
a seleção e a organização da coleção viva quanto a utilização do espaço como local de
observação e experimentação seguiram regras prevalentemente científicas. No horto se
realizaram diversas atividades, como coleta de material botânico, descrição de novas espécies,
observação fenológica, estudos em morfologia e em fisiologia de vegetais, domesticação de
espécies de diferentes ecossistemas amazônicos e a cultura de plantas consideradas ‘uteis’
pelo seu valor econômico, sobretudo as do gênero Hevea, no qual são classificadas as
seringueiras.
261
espécies para a ciência, mas os nomes propostos por ele são atualmente inválidos. Uma das
árvores, a sorva, também conhecida como guajará, ainda vive no Parque Zoobotânico do
MPEG e é considerada o indivíduo mais velho da coleção viva, com mais de 120 anos. Tendo
sido objeto de uma descrição taxonômica, é um exemplar-tipo, uma ‘árvore-patrimônio’
conforme a acepção de Taylor (2016) para quem os espécimes vegetais considerados dentro
dessa categoria são pontos de referência primordial para se delimitar a paisagem histórica de
um jardim.
164
Cabe ressaltar que não é nossa intenção, neste momento, reconstituir a proto-coleção do horto botânico do
Museu Paraense. Basta mencionar, como base de nosso argumento, que essa reconstituição é perfeitamente
possível graças ao levantamento documental realizado pelos autores. Este assunto, por sua complexidade e nível
de detalhe, merece uma pesquisa específica.
262
espécies dos gêneros Hevea, Manihot, Castilloa e Sapium, além da produção constante de
mudas, do estudo da reprodução e desenvolvimento das árvores, dos fungos que as
parasitavam e de ensaios sobre a extração de látex.
263
legitimador da existência da instituição e, portanto, como discurso que Goeldi usou para a
captação de recursos, a ponto do orçamento da instituição, a partir de 1897, ter sido dividido
em duas partes: uma destinada ao financiamento das despesas de manutenção e custeio, outra
específica para a desapropriação dos terrenos vizinhos e para obras de transformação do
espaço. Essa ‘verba extraordinária’, como era chamada, foi justificada para atender o alto
índice de visitação e a crescente demanda do público por curiosidades, animais e plantas.
Assim, o grande afluxo de visitantes de todas as classes sociais no museu pode ser
explicado pela busca de instrução, distração e/ou entretenimento, pelas formas de
sociabilidade ali desenvolvidas, com o necessário aprendizado de comportamentos ditos
civilizados, ou seja, serviços que a instituição prestou à cidade, ao governo e à elite local e
que deram-lhe uma capilaridade social vigente até a atualidade. O amplo apoio da população
transformou os anexos do museu em referências para a cidade, ponto de encontro, lugar de
264
recreio, atração turística, símbolo de progresso, mostruário e propaganda das riquezas naturais
do estado.
Narrativa doméstica
O espaço doméstico nos museus de história natural e jardins botânicos do século XIX
tem sido pouco trabalhado pela história da ciência e pela museologia. As articulações entre o
público e o privado, entre funcionários e visitantes e também entre os próprios funcionários e
suas famílias, que geralmente residiam dentro das instituições, são relações a ser exploradas e
estudadas em profundidade (OUTRAM, 1996). Poucos estudos abordam a influência das
relações pessoais e familiares no desenvolvimento da ciência e nas atividades museológicas.
265
com o uso de uma cerca, que evitava o trânsito de pessoas estranhas. Havia, portanto, uma
separação mínima entre vida familiar/privada e vida laboral.
Para Goeldi a dedicação integral e exclusiva aos que residiam às custas do museu
significava uma exigência e um compromisso institucional. Segundo ele, era “de máxima
utilidade aplicar a este Instituto o cunho e caráter de uma ‘colônia científica’”, isto é, o museu
deveria prover residência a todos os funcionários para obter o máximo desempenho de cada
pessoa, argumento utilizado para reforçar os pedidos de desapropriação dos terrenos vizinhos
(GOELDI, 1897b, p. 14). O diretor considerava que “a atual organização do estabelecimento
com a sua ‘engrenagem’ de verdadeira colônia científica, não admite mais a ideia, nem a
possibilidade de um Museu sem diretor interno”, havendo necessidade, portanto, da
desapropriação de uma residência condigna para ele e sua família “(...) para não perder o
caráter obrigatório de interno e de primus inter pares (...)”(GOELDI, 1897b, p. 7). Portanto,
se era dever do diretor residir no museu e se dedicar apenas à instituição, o mesmo deveria ser
cobrado dos demais funcionários.
Considerações finais
266
observou-se a identidade museal da instituição, a qual, em sua essência, se perpetua até a
atualidade.
267
Referências
GOELDI, Emílio. Relatório apresentado ao Sr. Dr. Secretário de Estado da Justiça, Interior e
Instrução Pública, referente ao ano de 1902, pelo Diretor do Museu. Boletim do Museu
Paraense de História Natural e Etnográfica, v.4, n.4, p. 467-510, 1906.
. Relatório apresentado pelo Director do Museu Paraense ao Sr. Dr. Lauro Sodré,
Governador do Estado do Pará. Boletim do Museu Paraense de História Natural e
Etnografia, v.2, n.1, p. 1-27, 1897b.
HUBER, Jacques. Relatório sobre a marcha do Museu Goeldi no ano de 1907 apresentado ao
Exmo. Sr. Dr. Secretário de Estado da Justiça, Interior e Instrução Pública pelo Dr. J. Huber,
Diretor do Museu. Boletim do Museu Paraense de História Natural e Etnográfia, v.6, p. 1-
21, 1909a.
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ano de 1896. Boletim do Museu Paraense de História Natural e Etnografia, v.2, n.3, p.
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OUTRAM, Dorinda. New Spaces in Natural History. In: JARDINE, Nick; SECORD, James;
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1996. p. 249-265.
268
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Museus e Museologia, v. 5, p.110-121, 2009.
SANJAD, Nelson, et. al. Documentos para a história do mais antigo jardim zoológico do
Brasil: o Parque Zoobotânico do Museu Goeldi. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi.
Ciências Humanas, v.7, n.1, p. 197-258, 2012.
SOARES, Roberto de La Rocque. Vivendas Rurais do Pará. Rocinhas e outras (do século
XIX ao XX). Belém: FUMBEL, 1996.
TAYLOR, Nigel. Living Collections at the Singapore Botanic Gardens – historic and modern
relevance. Museologia & Interdisciplinaridade, v. 9, n. 5, p. 120-134, 2016.
269
O MUSEU PARAENSE NO PROCESSO DE MUSESEALIZAÇÃO DAS
CERÂMICAS AMAZÔNICAS EM MEADOS DO SÉCULO XIX165
Abstract: The present work sought to understand the processes of musealization that led the
archaeological ceramics found in the region of Maracá (Amapá), in the middle of the
nineteenth century, to compose the objects of the Museu Paraense. When analyzing the first
museum dynamics of the ceramics of Maracá, Sought to understand also how the museum was
organized, what were the collections of the institution at that time, the expeditions made in
search of these ceramics and why these objects were musealized. The research also sought to
make a dialogue between the areas of Museology and History. The sources used were
provincial reports, the Jornal of Pará and the searches made by Domingos Soares Ferreira
Penna.
165
A escrita desse artigo é derivada da dissertação de mestrado intitulada “Objetos em Trânsito: a
musealização de artefatos arqueológicos no Museu Paraense Emílio Goeldi (1894-1907)”. A dissertação
abordou a musealização de artefatos arqueológicos no Museu Paraense Emílio Goeldi no período de 1894 a
1907, sobretudo das cerâmicas Cunani, encontradas ao norte do Amapá em 1895, e das cerâmicas dos rios
Maracá e Anauerá-Pucú, no sul desse mesmo estado, em 1896.
270
da mão de obra nordestina à assimilação de costumes estrangeiros. Sarges (2010) afirma que, diante
das políticas de urbanização e do desenvolvimento material do final do século XIX, “a configuração
de uma nova estética pautou-se pelos símbolos que identificavam uma ‘cidade civilizada’, ao
mesmo tempo em que criava significados que seriam cristalizados na memória dos habitantes da
pretensa ‘Paris Tropical’.” (SARGES, 2010, p.195). Coelho (2011), ao retrabalhar as formas de
representação da chamada belle époque em Belém, afirma que:
Os artefatos, por exemplo, são não apenas produtos, mas vetores de relações
sociais. Que percepção temos desses mecanismos? Não se trata, apenas,
portanto, de identificar quadros materiais de vida, listando objetos móveis,
passando por estruturas, espaços e configurações naturais (...). Trata-se, isto
sim, de entender o fenômeno complexo da apropriação social de segmentos
166
De acordo com Nazaré Sarges (2010), entre 1870 a 1910 a cidade de Belém foi “o principal porto de
escoamento de produção do Látex, além de se tornar a vanguarda cultual da região”. IN: SARGES, Maria de
Nazaré. Belém: riquezas produzindo a Belle Époque (1870-1912). Ed. 3. Belém, Paka-Tatu, 2010, p. 146.
167
COELHO, Geraldo Mártires. Na Belém da Belle époque da borracha (1890-1910): dirigindo os olhares.
Revista Escritos. Ano 5, n. 5, 2011, p. 150.
168
O Museu Paraense foi criado em 1866 e transformado, em 1894, em Museu Paraense de História Natural e
Etnografia. Em1900, tornou-se Museu Goeldi. A partir de 1931 foi renomeado para Museu Paraense Emílio
Goeldi, sua atual denominação. Ver SANJAD, Nelson. A Coruja de Minerva: o Museu Paraense entre o
Império e a República (1866-1907). Brasília: Instituto Brasileiro de Museus; Belém: Museu Paraense Emílio
Goeldi; Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, 2010, p. 50.
271
da natureza física – e, mais ainda, de apreender a dimensão material da vida
social. (MENESES, 2005, p. 18)
Para entender esse processo, foi preciso analisar como o museu estava organizado,
quais expedições foram feitas, quais coleções arqueológicas foram coletadas pelo museu e
quais pesquisas foram feitas sobre as cerâmicas, além disso, é necessário entender quais
sujeitos históricos estavam envolvidos nas dinâmicas de trocas e coletas de objetos e
informações.
O Museu Paraense surge no cenário cultural amazônico em 1866 como Sociedade
Filomática. A instalação oficial do Museu Paraense e da Biblioteca Pública enquanto repartições
públicas, ocorreu em 25 de março de 1871, aniversário da Constituição, pelo presidente da
província Joaquim Pires Machado Portella (SANJAD, 2010, p. 62-63). Ambas as instituições foram
instaladas em salas térreas do Liceu Paraense e ali funcionaram durante suas primeiras décadas. A
biblioteca foi instalada com 2.196 volumes e depois viria a receber do Rio de Janeiro “um bom
contingente remettido e offerecido pelo fundador da Bibliotheca, o sr. dr. Portella”, como afirmou o
vice-presidente Abel Graça (1871, p. 15). Também foi remetida uma coleção quase completa da
272
revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro pelo diretor Fernandes Pinheiro e livros novos
oferecidos por Hartt. Quanto ao museu, Abel Graça reforçaria a importância de desenvolver as
ciências na província:
273
Musêo, podendo este interesse ser tratado collectivamente, por influencia e trabalho
particular de cada um dos membros do conselho.” O conselho deveria organizar as seções
científicas, incluindo a classificação dos objetos, em número de sete: 1.ª Mineralogia e
Geologia; 2.ª Botânica e Zoologia. 3.ª Ciências Físicas; 4ª. Agricultura; 5ª. Arqueologia; 6ª.
Numismática; 7ª. Artes Liberais e Artes Mecânicas. (DO PARÁ, p. 1). Os membros do
conselho também deveriam oferecer “lições públicas”, isto é, palestras abertas ao público em
geral. Como afirma Sanjad (2010, p. 64), há diferenças entre o Museu Paraense imaginado
por Ferreira Penna em 1866 e a instituição oficializada em 1871: o aumento significativo de
seções, a substituição da Etnografia pela Arqueologia e o desaparecimento da História.
As ciências físicas e naturais foram priorizadas na estrutura do Museu Paraense em 1871.
Não seria demasiado afirmar que isso se deveu pelo compromisso social e econômico que o museu
assumiu, desde a década de 1860, ao incentivar a exploração do território e a exibição de objetos
naturais para potencializar a economia agrícola na província. Deve-se considerar, ainda, que a
década de 1860 revela o início do chamado ‘movimento dos museus’ no Brasil, cujo foco foi,
justamente, a coleta e exibição de objetos naturais, bem como a exploração do território nacional.
Segundo Lopes (2009), em meados do século XIX, “o Museu Nacional deixaria de ser o único
dedicado à História Natural do país” (p. 152). Nesse período, surgiram ou ganharam melhor
estrutura o Gabinete de História Natural da Bahia, o Gabinete de História Natural do Maranhão, o
Gabinete de História Natural de Pernambuco, o Gabinete do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro e o Museu Paraense. Em 1876, ocorreu a reforma do Museu Nacional, sob a liderança de
Ladislau Neto, a fundação do Museu Paranaense e, no ano seguinte, a inauguração da Associação
Auxiliadora do Progresso da Província de São Paulo (Lopes, 2009). Figueirôa (1997, p. 103-105)
afirma que, a partir da década de 1870, o crescimento econômico e a ampliação da infraestrutura
material do Estado ensejaram a criação de novos espaços científicos, a reformulação de espaços já
existentes e a especialização e profissionalização de técnicos e cientistas. O desenvolvimento
econômico e material do país deu espaço para a valorização e incorporação da ciência em vários
setores da sociedade, sobretudo a mineração e a agricultura. Assim, novos museus e práticas
museais iam ganhando espaço no cenário nacional.
274
A etnografia e a arqueologia passaram a ser valorizadas em outra chave analítica, mais
próxima dos estudos históricos incentivados pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
(IHGB) ao longo do Segundo Reinado: o processo de construção de uma identidade nacional, que
exigia a idealização de um passado enobrecido pela existência de ‘civilizações’ indígenas e a
incorporação dos povos indígenas do presente como mão de obra para uma agricultura em
expansão. Os museus, em geral, eram os núcleos onde esse debate era promovido. Por exemplo, ao
analisar a formação de museus nacionais na América Latina, como os da Argentina (1812), Brasil
(1818), Chile (1822), Colômbia (1823), México (1825), Peru (1826) e Uruguai (1837), Lopes
(1998) associa o papel social desses museus e os processos de independência de cada país. A
ruptura política do antigo sistema colonial e a construção de novos Estados fez com que os museus
se engajassem na exploração dos territórios e também fossem os principais produtores de símbolos
e signos das novas identidades nacionais. Nesse sentido, a autora concebe os museus enquanto
“ideais em funcionamento” (p. 157). Portanto, a musealização de objetos naturais e artefatos
arqueológicos no Império se deu por motivações políticas de um Estado em fase de consolidação
territorial e civil.
Nesse mesmo sentido, Poulot (2011), ao estudar o museu e o empreendimento patrimonial
de monumentos e objetos artísticos na França durante e pós-Revolução, revela-nos como os objetos
foram sendo inseridos em uma nova economia moral. O que surge nesse processo é o uso do
patrimônio para “uma nova representação do passado que se tenta forjar através de uma judiciosa
distinção do insignificante a ser apagado ou do memorável a ser instaurado (...)” (p. 16). Assim,
afirma Poulot que:
275
qual os indígenas estariam impregnados de valores europeus e viveriam em grande ‘adiantamento
moral’. (LANGER, 2002). Buscavam-se vestígios que sinalizassem a existência de grandes
‘civilizações’ em território brasileiro, tal como ocorrera com o Peru dos Incas e o México dos
Astecas. As cerâmicas da ilha de Marajó e do Amapá, já conhecidas na década de 1870, serviram,
inicialmente, a esse propósito, isto é, compuseram uma narrativa ‘majestosa’ dos povos do passado.
A origem da cerâmica marajoara, por exemplo, foi atribuída por Ladislau Neto a “alguns Incas
[que] teriam fugido da fúria espanhola, descendo pelo grande rio, até chegarem na acolhedora ilha,
que também serviu de refúgio contra outros índios.” (LANGER, 2002, p. 62).
Após sua instalação oficial em 1871, Ferreira Penna começou a ampliar a coleção
arqueológica do Museu Paraense por meio de sucessivas viagens ao Marajó e ao Amapá. Os
relatórios e trabalhos publicados por Penna, assim como os de Hartt e Ladislau Neto, são
primordiais para entender a formação dessa coleção e o processo de musealização dos artefatos
arqueológicos.
Em 1872, Abel Graça informou à Assembleia Provincial, novamente, sobre as coleções da
Biblioteca Pública e do Museu Paraense. De início, o vice-presidente manifestou preocupação com
as condições de conservação do museu, que se achava “mal accommodado; o que occasionou a
destruição de alguns dos seus ainda poucos produtos.” (GRAÇA, 1872, P. 17). Recebendo
instruções de Abel Graça, Ferreira Penna visitou e fez estudos nas comarcas de Gurupá, Macapá,
Bragança e Marajó (Figura 1). Em 30 de janeiro de 1872, chegou a Gurupá, passou às cachoeiras do
Xingu, Aquiqui e Paru. No retorno, visitou Almeirim, subiu os rios Tauaré até a boca do Aramucu,
Jari e parte do Cajari, Maracá e Mazagão. A partir dessa viagem, publicou o relatório “Notícia Geral
das Comarcas de Gurupá e Macapá”, em 1874, contendo informações sobre os rios visitados, o
estado das povoações, a instrução pública, o estado religioso, as antiguidades locais e recordações
históricas, sobre o porto de Mazagão e as coleções formadas para o Museu. (PENNA, 1873).
276
Figura 1: Alguns dos lugares percorridos por Domingos Soares Ferreira Penna nas comarcas de Gurupá e
Macapá.
O que mais interessa aqui é explorar quais coleções foram reunidas no museu,
principalmente as oriundas da região do rio Maracá. Ferreira Penna afirma que, nessa viagem,
pouco foi coletado. Tentou contratar um taxidermista, mas não obteve os recursos necessários.
Acabou levando um rapaz, a quem iria ensinar a preparar animais, pagando-lhe uma gratificação
diária pelo serviço. Dois motivos foram colocados para justificar o pouco que foi coletado: a) as
fortes chuvas, que inundaram os campos e as matas vizinhas; e b) e o fato da viagem ter sido feita
em barco a vapor, transporte impróprio para esse tipo de atividade, pois demoravam no porto e
desperdiçavam tempo. Ferreira Penna chama atenção para algumas “antiguidades e recordações
históricas” encontradas em Macapá, Almeirim, Porto de Moz e Gurupá, como as ruinas de antigas
fortificações. Visitou grutas e jazigos funerários dos antigos índios, principalmente no curso do rio
Maracá e afluentes (PENNA, 1873).
O principal motivo da visita ao rio Maracá foi a busca das urnas encontradas, pela primeira
vez, pelo médico e naturalista amador Francisco da Silva Castro (1815-1899). Segundo Ferreira
Penna, foi ele quem ‘descobriu’ os jazigos dispostos ao longo do rio e formou a primeira coleção
277
Maracá, doada ao Museu Paraense em 1871. Esses jazigos poderiam ser similares aos dólmens, isto
é, aos monumentos megalíticos tumulares coletivos encontrados na Europa e no Oriente. Contudo,
ao visitar o local, Ferreira Penna chegou à conclusão que se tratava de abrigos sob rocha naturais e
não produtos da engenhosidade humana:
Estas urnas (...) foram a causa principal da minha visita ao rio Maracá, na
intenção de examinar os seus próprios jazigos, conjecturando eu então que
bem podia ser que êstes fossem outros tantos Dolmens como os dos tempos
pré-históricos da Europa. Verifiquei, porém, que os jazigos eram grutas
naturais, onde a arte humana não teve a menor parte. (PENNA, 1873, p.17).
169
Ferreira Penna afirmava que “Cerâmio, com efeito, exprime, por sua etimologia um local em que abundam artefatos
de barro, como Pacoval, Santa Izabel, Camutins, Maracá etc., e por sua aplicação entre os gregos, - jazigos onde
repousam os ossos ou cinzas de homens distintos por seus serviços. Ainda este último sentido o nome Cerâmio é
plenamente aplicável aos chamados Aterros Sepulcrais, pois não resta duvida que as urnas mortuárias que nestes se tem
encontrado, pertenciam unicamente a pessoas que, por qualquer princípio, gozavam de certas honras e distinções entre
278
época, como os de Miracanguera (rio Madeira), Óbidos, rio Maracá (Amapá), Santa Izabel, Pacoval
e Camutins (ilha de Marajó). Sobre Miracanguera, Ferreira Penna afirmou ter encontrado dois
“cerâmios” com artefatos de barro, feitos com argila fina, levemente corada, com ornatos na parte
externa. Em Santa Izabel, encontrou material arqueológico com “perfeição dos desenhos, relevos e
pinturas dos vasos”, assim como em Pacoval (Figura 2). Para Ferreira Penna, o “cerâmio” do
Pacoval era o mais importante de todos, com formato de pequena colina baixa e artificial, “pela
maior parte coberto de árvores de mediana grandeza”. (PENNA, 1973, p. 146-147). Encontrou ali
urnas de barro grosso, quebradas, duas urnas pintadas de “amarelo e vermelho em campo
acinzentado e outra com alguns relevos e pinturas de côr azul e encarnada”. (p. 150). Viu uma urna
grande, “belamente pintada e com alguns relevos”, mas “algumas raízes da árvore tinham penetrado
no bojo da urna, fazendo-a estalar e a sua queda acabou de quebra-la” (p. 141). Afirmou, sobre o
resultado das escavações, que não foi muito satisfatório por não ter encontrado “nem um vaso
inteiro”. (p. 151). Encontrar um objeto inteiro e bem ornamentado, que pudesse servir de
testemunho, modelo e exemplo, era primordial para comprovar a existência de grandes
‘civilizações’ em território brasileiro e para ‘monumentalizar’ esse mesmo território.
Figura 2. Estampa representando as urnas de Miracanguera (5) e Pacoval (3 e 4) (Penna, 1877).
279
Sobre o Amapá, Ferreira Penna afirmou ter visitado o “cerâmio” de Maracá duas vezes e
encontrado “urnas de formas tubulares representando corpos humanos, e outras em forma de
jabutis, tartarugas terrestres.” (PENNA, p. 148). Ele disse não ter bases suficientes para formar um
juízo seguro sobre a significação simbólica das urnas de Maracá, mas que era possível distinguir,
em uma delas, um jabuti com rosto humano (Figura 3, número 1) e, na outra, uma criança sentada
sobre um jabuti e com o distintivo sexual masculino (Figura 3, número 2). Sobre as demais urnas
tubulares do Maracá, semelhantes à de número 2, Ferreira Penna não pôde descrevê-las por ter
perdido parte das suas anotações, mas indicou um artigo de Hartt, publicado no “American
Naturalist”, no qual “descreveu magistralmente e figurou uma urna do mesmo caráter e semelhante
àquelas, a qual existira também no Museu Paraense.” (PENNA, 1973, p. 165).
280
ornatos, representam outras tantas fases de uma civilização decrescente.” (p. 152). Nesse sentido,
afirmou que houve, no Marajó, um povo que retrocedeu gradualmente por ter encontrado condições
difíceis de desenvolvimento. Afirmou:
O segundo argumento é uma hipótese sobre a identidade dos “construtores dos cerâmios”.
Descobrir qual povo elaborou essas cerâmicas foi um dos objetivos de Ferreira Penna. Ele não
achou importante apenas descrever as peças, suas dimensões e seus formatos, mas procurou
também responder sobre a origem desses pequenos monumentos. Para isso, utilizou trabalhos de
antropólogos norte-americanos, como J. W. Foster (1836-1917), que pesquisou sobre os mounds
dos Estados Unidos. Segundo Ferreira Penna, as urnas de Maracá estavam dispostas de maneira
semelhante às encontradas nos mounds do Tennessee e do sul dos Estados Unidos, onde os
“Caraíbas” teriam se estabelecido em épocas remotas (PENNA, p. 161). Esses “Caraíbas” também
teriam sido os construtores dos tesos e das cerâmicas da foz do Amazonas, levando Ferreira Penna a
concluir que as Américas não haviam sido povoadas por asiáticos ou povos do Velho Mundo, e sim
por “uma raça puramente americana”. Essa “raça” teria se originado no planalto central de Minas
Gerais, “o mais antigo torrão do Globo, segundo a autoridade do Venerável [Peter] Lund, o
patriarca da antropologia brasileira.” (PENNA, 1973, p. 169).170 Essa “raça” teria migrado para o
sul e para o norte e dado origem às grandes civilizações andinas e aos povos do Caribe, incluindo os
da foz do Amazonas. Ferreira Penna também se utilizou de um trabalho do arqueólogo Ephraim
George Squier (1821-1888), que fazia estudos sobre os chulpas peruanos e do qual absorveu a
questão sobre migração ou autoctonia. Squier (1870) afirmou que “monumentalmente ao menos, a
civilização do Pará era indígena, tendo sido gradualmente desenvolvida mas não introduzida de
fora.”(apud PENNA, p.169). Essa era uma questão importante para demonstrar que, no passado, o
170
Ibidem, p. 169. Como afirma Funari (1994), Peter Wilhelm Lund é considerado o primeiro estudioso da pré-história
brasileira. IN: FUNARI, Pedro Paulo. Arqueologia Brasileira: visão geral e reavaliação. Revista de História da Arte e
Arqueologia. N. 1, 1994. P. 25.
281
solo nacional havia sido habitado por uma ‘raça nobre’, que havia surgido e se desenvolvido ali
mesmo, chegando a se espraiar por todo o continente americano.
Essas ideias também eram defendidas por brasileiros como João Batista de Lacerda (1846-
1915), Batista Caetano de Almeida Nogueira (1797-1839) e Couto de Magalhães (1837-1898), que
procuravam fortalecer o argumento com base na antropologia física e na linguística. Batista
Caetano, por exemplo, defendia que os povos que primeiro povoaram o Brasil foram os Caribas e
que seu berço seria o planalto central de Minas Gerais.171 Para Ferreira Penna, esse povo dominou a
costa sul do Brasil e transmigrou para o norte da América, não parando “senão nas montanhas dos
Aleganis ou Apalachos” (PENNA, p. 171). Portanto, em sua resposta sobre quem seriam os
construtores das antiguidades encontradas na foz do Amazonas e no Solimões, Ferreira Penna
afirmou que foi a “raça mais nobre e mais empreendedora da América”, os Caribas. No decurso de
seu desenvolvimento, essa nobre “raça” teria encontrado dificuldades para sobreviver no território
brasileiro e acabou degenerando nos atuais índios.
As teorias de Ferreira Penna foram analisadas por Ferreira (2003) e Noelli e Ferreira
(2007) a partir da perspectiva crítica dos estudos pós-coloniais, principalmente, no que tange a ideia
de ‘degeneração’ característica do século XIX. Segundo os autores, a arqueologia se originou
historicamente com o movimento imperialista e colonialista, o que acarretou o surgimento de
teorias como a da degeneração dos povos indígenas americanos. Entre os teóricos está Karl
Friedrich Philipp von Martius (1794-1868). Segundo ele, o indígena não tinha galgado para a
evolução da humanidade e nem estaria, como apostava Rousseau, em seu estado primitivo, ele teria
se degenerado e passava pelo processo de involução. As representações feitas sobre o passado,
dentro de um projeto colonialista, não se deram apenas no âmbito da exploração dos territórios
nativos, da conquista econômica e política de lugares periféricos, mas também no âmbito da
elaboração cultural e científica do colonialismo. Existem, portanto, jogos de representação
motivados pelas relações entre colonizado e colonizador, que reorientam a construção de imagens
“que colocaram as sociedades indígenas em posição de inferioridade cultural, classificando-as como
bárbaras, primitivas e (...) degeneradas.” (NOELLI; FERREIRA, 2007, p. 1241). Nesse sentido, os
autores afirmam que a arqueologia se consolidou como um projeto geoestratégico, no qual a suposta
171
CAETANO, Batista. Apontamentos sobre o abanheenga (também chamado guarani, ou tupi, ou língua geral dos
Brasis)
282
‘degeneração’ dos povos indígenas serviu como chave interpretativa da relação entre o índio e o
Estado monárquico. O desenvolvimento das ciências e o papel difusionista dessas teorias na
América junto à expansão imperial europeia, “geraram nas colônias uma intensa criatividade
intelectual; uma dialética entre propagação metropolitana e reelaboração colonial.” (NOELLI;
FERREIRA, 2007, p. 1241).
Outros autores também analisaram a obra de Ferreira Penna e seus contemporâneos,
ressaltando certa dissonância nas interpretações. Langer (2002), por exemplo, afirma que, nos
oitocentos, alguns dos primeiros arqueólogos, diferentemente de Ferreira Penna, acreditavam que os
antigos marajoaras haviam se originado no Peru incaico e que ambos, povos do Amazonas e dos
Andes, eram provenientes da Ásia, ideia que colidia com o autoctonismo ameríndio. Ladislau Neto
foi um dos principais defensores dessa outra hipótese. Ele baseou seus argumentos em comparações
entre os grafismos achados nas cerâmicas marajoaras e os encontrados no México, na China, no
Egito e na Índia. Como afirma Linhares (2015, p. 58), essas comparações eram feitas para provar a
evolução cultural dos indígenas brasileiros do passado. Ao comprovar semelhanças entre as
cerâmicas produzidas por maias, astecas, incas, gregos, indianos e chineses, Ladislau Neto
mostraria que os índios que habitaram o Brasil eram o “berço” da nossa civilização nobre, mesmo
que tenham degenerado ou sido extintos.
Além de Ladislau, João Barbosa Rodrigues (1842-1909), mineiro e formado em
engenharia, também contribuiu para as teorias difusionistas transcontinentais, que explicavam a
migração e conexão entre diferentes culturas a partir de um ponto de origem comum. Segundo
Ferreira (2010, p. 41), Barbosa Rodrigues interpretou o surgimento da ‘civilização’ amazônica a
partir de um suposto contato dos índios com os povos nórdicos e de suas relações com os “filhos de
Odin”. Esse argumento também era baseado em comparações: pinturas rupestres do rio Branco que
pareciam embarcações nórdicas; a semelhança entre motivos decorativos da cerâmica marajoara e o
martelo de Thor e entre os sambaquis do Pará e os da Dinamarca; e os chamados ‘ídolos
amazônicos’, pequenos amuletos em formato de animais (geralmente batráquios) confeccionados
com minerais verdes, jadeíte e nefrita, que, para Barbosa Rodrigues, eram provenientes da
Ásia.(LANGER, 2002,p. 75). Como afirma Ferreira (2010), essas ideias difusionistas e a hipótese
283
das migrações nórdicas para a América ganharam grande divulgação no final dos anos 1830 na
Dinamarca e nos Estados Unidos. (FERREIRA, 2010, p. 41)
Assim, pergunta-se, a partir de Noelli e Ferreira (2007), “como fundar um contrato social
com ‘ruínas de povos’, como colonizar e integrar à sociedade povos degenerados?” (p. 1248). Em
termos da incorporação intelectual e discursiva dos grupos indígenas à sociedade nacional,
pensamos, aqui, em duas possibilidades: a primeira, que não será desenvolvida por extrapolar
nossos objetivos, mas que já é objeto de análise de muitos autores, diz respeito ao processo de
imaginação do índio no século XIX, o qual sofreu influência dos modelos de pensamento do
romantismo brasileiro de José de Alencar e Gonçalves Dias, que valorizavam um homem americano
idealizado e exaltavam a natureza profícua do continente. A segunda possibilidade remete ao
processo de musealização que ora analisamos. Se o tal ‘índio brasileiro’, idealizado, enobrecido, foi
personagem importante para a arte literária nacional, o foi também para museus e cientistas. Ele
povoou, no período, salas e mais salas de museus no Brasil e no mundo. O museu do século XIX
construiu narrativas com intenções cientificizantes, isto é, com aparência de verdade irrefutável
porque baseada em evidências e vestígios materiais. Por mais esdrúxulos ou bizarros que os
argumentos desses primeiros arqueólogos soem atualmente, eles portavam uma racionalidade
característica da época, assentada em teorias evolucionistas e difusionistas e em métodos
comparativos. As cerâmicas, sobretudo as consideradas íntegras em sua estrutura e ornamentação,
tornaram-se fundamentais para a sustentação de hipóteses e também objetos de disputa e
dissonâncias.
A musealização de artefatos arqueológicos durante o Império do Brasil, mais precisamente
no segundo reinado, foi realizada por razões científicas e políticas que retroalimentaram teorias
variadas diante da origem do homem americano. As ações museológicas em torno das cerâmicas
arqueológicas amazônicas foram motivadas por questões estéticas, políticas e culturais. O Estado se
utilizou da arqueologia para construir uma identidade nacional forte o bastante para manter os
regimes políticos da época. Nesse momento, ciências como antropologia, etnologia e arqueologia
passaram por processos de consolidação científica e foram utilizadas como ferramenta política na
construção das identidades nacionais. Assim, as pesquisas arqueológicas feitas no século XIX
introduziram, no ramo científico, cultural e político, discussões sobre a formação social e cultural
284
do país. No Brasil, essas narrativas consolidaram a homogeneização de grupos indígenas e
formataram estereótipos vivos do índio brasileiro, que adentra o nosso imaginário até os dias atuais.
A valorização de objetos “belos” e simétricos confortava a retórica do passado civilizado
dos povos indígenas, ora, os povos que criaram essas cerâmicas com ornamentações belíssimas
(tanto da Ilha de Marajó quanto as encontradas no rio Maracá), só poderiam ter um grau de
civilidade e intelectualidade majestosas. As cerâmicas coletadas eram, geralmente, as inteiras e
integralmente conservadas, os “cacos” cerâmicos pouco eram valorizados. Pode-se chamar esse fato
de uma hierarquia de objetos, pois, nas diversas dinâmicas materiais da vida, as coisas recebem
valores diferenciados um dos outros.
Diante desse processo, foi primordial entender a trajetória dos artefatos arqueológicos,
como esses objetos chegavam ao Museu Paraense e como eram reinterpretados em um novo sistema
de significados. Com a musealização, nota-se que esses objetos passam por dinâmicas de duplas
desnaturalizações: primeiro, foram produtos da cultura material indígena, com significados e formas
pensadas pelos sujeitos que os fabricaram e depois foram re-apropriados pelos museus e seu sistema
de classificação ocidental. Observa-se que, chegando ao museu, os objetos não se estagnam em si,
mas ganham novas formas de sobrevivência.
Referências
CUNHA, Osvaldo Rodrigues da. Talento e Atitude: Estudos biográficos do Museu Emílio Goeldi.
I. Belém: MPEG, 1989.
285
FERREIRA, Lúcio Menezes. História Petrificada: A arqueologia Nobiliárquica e o Império
Brasileiro. Cadernos do CEOM-Ano 17, n 18- Arqueologia e populações indígenas. Dez. 2003.
FUNARI, Pedro Paulo. Arqueologia Brasileira: visão geral e reavaliação. Revista de História da
Arte e Arqueologia. N. 1, 1994. P. 25.
LANGER, Johnni. Vestígios na Hiléia: a Arqueologia Amazônica durante o segundo Império. Bol.
Mus. Para. Emílio Goeldi. Sér. Ant. !8 (1), 2002. P. 62.
LINHARES, Anna. Um grego agora nu: índios marajoara e identidade nacional brasileira.
Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Pará, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Programa de Pós-Graduação em História, Belém, 2015.
LOPES, Maria Margaret. A formação de museus nacionais na América Latina independente. Anais
do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro. Volume 30, 1998.
LOPES, Maria Margaret. O Brasil descobre a pesquisa científica: os museus e as ciências naturais
no século XIX. São Paulo: Aderaldo &Rothschild; Brasília, DF: Ed. UnB, 2009.
PENNA, D. S. Ferreira. Notícia Geral das Comarcas de Gurupá e Macapá. IN Obras completas de
Domingos soares Ferreira Penna. 2 v. Belém: Conselho Estadual de Cultura, 1973.
286
PENNA, D. S. Ferreira. Notícia Geral das Comarcas de Gurupá e Macapá. IN Obras completas de
Domingos soares Ferreira Penna. 2 v. Belém: Conselho Estadual de Cultura, 1973.
POULOT, Dominique. O modelo republicano de museu e sua tradição. IN: BORGES, Maria Eliza
Linhares, (Org.); Inovações, coleções, museus. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011.
SARGES, Maria de Nazaré. Belém: riquezas produzindo a Belle Époque (1870-1912). Ed. 3.
Belém, Paka-Tatu, 2010.
SQUIER, E. G. The Primeval Monuments of Peru, 1870, p. 2-14. Apud PENNA, D. S. Ferreira.
Op. Cit.
287
PERSPECTIVA IDENTITÁRIA EM SONS CONSERVADOS: COLECÃO E
MEDIAÇÃO NA FONOTECA PÚBLICA SATYRO DE MELLO (BELÉM- PA)
Resumo: Este artigo discute alguns pontos acerca de uma coleção de registros fonográficos com a
intenção de apontar elementos da atuação da instituição que a salvaguarda no processo de atribuição e
sustentação de identidade. Isso se justifica devido ao imperativo social contemporâneo de que a arte e
a cultura localizadas são campos de atuação carregados de interesse. Trata-se do acervo material,
sonoro e discográfico, de música popular paraense conservado na Fonoteca Pública Satyro de Mello,
seção da Biblioteca Pública Arthur Vianna da Fundação Cultural do Pará, em Belém. O objetivo é
apresentar uma discussão que tem como fio condutor verificar a atuação dessa coleção pública na
realidade sociocultural local no contexto contemporâneo, considerando tanto a ordem objetiva, que
tem em conta o material usado – nesse caso se trata de lidar especificamente com os discos Long Play
(LP) em vinil – por meio de sua agência, como os pontos de ordem subjetiva – e a sua constituição
simbólica com nuances de discurso, haja vista que se trata de uma instituição que salvaguarda objetos
culturais como patrimônio público. Assim, o interesse é verificar como se dá a atuação dessa Fonoteca
como lugar de referência cultural, seus procedimentos de salvaguarda (coleção) e uso público
(mediação) do artefato cultural com o qual lida. A perspectiva analítica, entrelaçando conceitos e
procedimentos dos campos museológico e antropológico, se desenrola acerca do processo de formação
e uso dessa coleção discográfica entrevendo, assim, a possibilidade de que as acepções culturais
socialmente instituídas se projetam na coleção ali conservada com características de expediente
instrucional.
Palavras-chave: coleção; mediação; Fonoteca Pública Satyro de Mello; lugar de memória; música
popular paraense.
288
Abstract: This article discusses some points about a collection of phonographic records with the
intention of pointing out elements of the institution's performance that safeguards it in the process of
attribution and identity support. This is justified by the contemporary social imperative that localized
art and culture are fields of action charged with interest. It is the material, sonorous and record
collection of popular music from State of Pará, preserved in the Satyro de Mello Public Music Library,
section of the Arthur Vianna Public Library of the Fundação Cultural do Pará (FCP), in Belém. The
objective is to present a discussion that has as a guiding thread to verify the performance of this public
collection in the local sociocultural reality in the contemporary context, considering both the objective
order, which takes into account the material used - in this case it is a question of dealing specifically
with Long Play (LP) vinyl records - through its agency , as the subjective points of order - and its
symbolic constitution with nuances of discourse, given that it is an institution that safeguards cultural
objects as public patrimony. Thus, the interest is to verify how the action of this Public Music Library
as cultural reference place, its procedures of safeguard (collection) and public use (mediation) of the
cultural artifact with which it deals. The analytical perspective, intertwining concepts and procedures
of the museological and anthropological fields, unfolds about the process of formation and use of this
record collection, thus screening the possibility that socially established cultural meanings are
projected in the collection preserved therein with characteristics of an instructional medium.
Keywords: collection; mediation; Fonoteca Pública Satyro de Mello; Place of memory; Popular music
from Pará State.
289
No contexto atual as múltiplas possibilidades de circulação da informação tornaram
relativo o contato físico com o artefato cultural como a forma mais consistente para que
ocorra interação social (subjetiva ou objetiva) ou apreensão de conhecimentos. Isso é devido à
imensidão do universo informativo virtual que a globalização permite contatar por meio de
seu instrumento mais eficaz, a internet. Embora seja espaço imensurável de fluxo de dados,
todavia essa realidade virtual mostra que as trocas culturais não se dão em pé de igualdade
nos processos ativados. Por isso, ainda que se obtenha sucesso na busca por informações
acerca de um determinado assunto quando de uma incursão na rede mundial de computadores,
a aquisição de informação sobre artefatos, realidades e processos culturais localizados mais à
margem da galáxia da internet se torna proporcionalmente mais escassa. Isso ratifica aquela
visão de que se trata de um processo mais de transmissão unilateral do que objetivamente de
troca. Nesse sentido, pode-se considerar que em seu caráter difusor de informações, na
internet já estão embutidas formas de intromissão. E isso é revelador de como se trata de um
processo parcial e não de uma relação entre elementos de uma mesma natureza (WARNIER,
2003; HANNERZ, 1997; CANCLINI, 2007).
Embora esta realidade seja um fato de peso considerável no atual contexto, todavia é
necessário ponderar que há aí uma notável complexidade. Essa complexidade se apresenta
quando observamos que, apesar do processo de globalização veicular sua tese de trocas e
influências mútuas, na realidade social e cultural localizadas, que é onde se desenrolam os
processos empíricos de fato, é uma necessidade a ativação de meios como elementos
constituintes da identidade. Dessa forma, os processos socioculturais locais não prescindem
totalmente de um espaço geograficamente delimitado. E essa detecção traz à tona uma série
de elementos que corroboram para a afirmação das culturas localizadas. Como consequência,
temos a manifestação de distintos interesses no campo social que geram, por sua vez
possibilidades de estudo, haja vista que se trata de lidarmos com ações sociais em interação.
Remetendo a discussão ao objetivo desse estudo, na busca por respostas à satisfação
dos interesses da sociedade territorializada em manter aquilo que tomam como sua identidade
cultural, imiscuem-se diversos interesses e formas de atuação, às vezes, contraditórios. Mas,
por fim, o que se tem em vista é a perspectiva de manutenção da estabilidade do campo social
290
onde se desenrolam as ações cotidianas. Nesse sentido, assegurar a dimensão social e cultural
em espaços ou objetos físicos é um recurso recorrentemente ativado na satisfação dessa
demanda. E assim se instauram os lugares de memória, como saída para alcançar esse intento;
e a salvaguarda de objetos como “artefatos culturais identitários” é um procedimento que
atende à essa intenção, haja vista que espontaneamente isso não ocorre na sociedade. Dito de
outra forma, esses tais lugares de memória existem porque não há memória espontânea e,
portanto, não há arquivo espontâneo (NORA, 1993).
Por outras palavras, os lugares de memória são espaços sociais que servem como
referências memoriais para o assentamento de uma perspectiva de unidade para a sociedade
por meio da sua atuação pedagógica. É aqui alcançamos o objeto dessa pesquisa, a Fonoteca
Pública Satyro de Mello como um lugar de memória. Seção da Biblioteca Pública Arthur
Vianna da Fundação Cultural do Pará, em Belém do Pará, a FPSM172 funciona como espaço
institucional mantenedor de uma coleção de registros musicais em diversos suportes. No meio
desse acervo direciono o olhar para a coleção de música popular paraense com a hipótese de
que ali temos um instrumento institucional de atuação de pressupostos identitários. Nesse
sentido, o interesse aqui é apresentar alguns elementos que acredito serem pertinentes, embora
incipientes, para verificar que se trata de um lugar de memória. Assim, a leitura se encaminha
sobre a perspectiva de considerar os artefatos culturais da música paraense localizados na
FPSM como elementos de uma coleção que tem como função social atuar na fundamentação,
divulgação e manutenção de premissas de identidade por meio do ajuntamento de material
com intenção de ser a memória da produção musical local.173
Comumente a noção de local é colocada como contraposição ao global. Ainda que isso
se apresente como um lugar comum, todavia é preciso atentar para o paradoxo que aí se
172
Doravante FPSM. Para um apanhado histórico da atuação de Raymundo Satyro de Mello, músico compositor
e instrumentista paraense que deu nome à fonoteca pública, cf. COSTA, 2014.
173
Acerca da perspectiva de formação de uma discoteca como lugar de salvaguarda da memória do artefato
sonoro com premissas de identidade, já no final da década de 1920 o pesquisador Mário de Andrade chamava a
atenção para a importância de um “museu de discos”, com a principal função de ser local de salvaguarda de
registros da produção de música popular e regional. Elogiando a criação de uma Discoteca do Estado pelo
governo italiano, a isso se seguiu a descrença do pesquisador de que no Brasil fosse tomada uma providência
nesse sentido, o que fez com que Mário de Andrade “apelasse” ao “povo [e as] sociedades locais [para que
fizessem] alguma coisa para salvar esse tesouro”. (GONÇALVES, 2013, p. 41).
291
instaura. Ou seja, como ratificar a ideia de um lugar estritamente localizado ante um mundo
interconectado, sem contar que são imprescindíveis os procedimentos de interação, o que leva
a dedução lógica de que o local só se realiza com o global, e vice-versa? (BOURDIN, 2001).
Isso vem à tona porque, para fins a que se interessa esse trabalho, considerar essas duas
dimensões imbricadas tem sua razão de ser.
Como espaço institucional de salvaguarda da memória musical local, a FPSM se
encontra como importante elemento nessa relação local-global, porque é um campo de
atuação, um espaço de interação entre público e objetos culturalmente situados. (Comum
ouvir de quem frequenta a FPSM que se trata de um local onde está a “produção musical da
Amazônia”). Assim, cabe verificar o grau desse processo interação, como se dá a atuação
dessa instituição num contexto de relação entre público visitante/usuário e os objetos. O que
certamente é de grande valia nesse processo de entendimento é incursionar por meio de um
levantamento do espaço onde existe essa interação, do tempo em que ocorre essa interação
público-artefatos, e qual o sentido desses objetos na coleção, suas formas de observação e
uso174. Cabe salientar, o que será tratado adiante, é que a coleta, a manutenção, a conservação
e a disponibilidade de acesso ao público, são partes de um discurso que compuseram a
formação da FPSM e ainda hoje compõe a política cultural de Estado que aponta ser
necessário esse espaço para a manutenção da perspectiva identitária.
E é essa visada de que se trata de um lugar referencial de salvaguarda da “cultura
musical” regional (paraense, amazônica) e local (belemense) que se pode ilustrar com um
exemplo. Em texto de propaganda turística que retrata os centros de convenções existentes na
cidade, quando se refere ao CENTUR175, a FPSM aparece como o lugar “que possui [o]
acervo musical com ritmos amazônicos e os ritmos que influenciaram toda a cultura musical
paraense”.176 Como se vê nessa elaboração discursiva a FPSM é apresentada como esse
174
Espaço, tempo e objeto constituem o tripé da “pedagogia do museu”, do processo de educação que define a
relação particular entre público e exposição (MARTINS, s/d).
175
Nome pelo qual era conhecido o Centro Cultural do Pará Tancredo Neves, inaugurado em 1987, espaço que
hoje é denominado Fundação Cultural do Pará. A Fundação é formada por cinco prédios, todos tombados pelo
patrimônio histórico. Disponível em: http://www.fcp.pa.gov.br/institucional. Acesso: 09 jul. 2017.
176
“Belém do Pará: informações sobre o destino”. Disponível em:
http://www.sbmet.org.br/userfiles/info_belem.pdf Acesso: 03 jul. 2017.
292
reduto da memória discográfica-musical paraense e amazônica. Assim, algumas questões
podem ser elaboradas: de que maneira a FPSM desempenha seu papel de veículo de
informação acerca da cultura musical local por meio da coleção discográfica ali
conservada177? Especificamente, que espaço a coleção de178 música popular paraense ocupa
na FPSM? Em que medida a Fonoteca efetivamente é um espaço de encontro entre um
público e os discos - o material e o seu conteúdo sonoro? Quais as implicações do tipo de
mediação executado, tendo como mediador o aparato estatal? Como essa coleção ali assentada
corresponde à premissa de um lugar de memória em prol de uma identidade local por meio da
música? E, por fim, quem é o seu público, quem usa o acervo dessa coleção? Portanto,
tomado como objeto, a FPSM pode ser um campo que possibilita entender as formas de
resposta ativadas por meio da ressonância da sua atividade. Ressaltando as limitações devidas
às próprias contingências do campo, foi o que se pretendeu com o que está aqui
apresentado.179
177
O termo “música em conserva” foi usado pela Revista Phono-Art para se referir aos discos, por volta dos
anos 1920 (GONÇALVES, 2013, p. 64). Também, é como se referiam alguns textos, no final do XIX e início do
XX, ao arquivamento dos sons e músicas nos cilindros fonográficos de cera e pianola. Depois ela também serviu
para designar as chapas e discos fonográficos. Isso “transformou profundamente os processos de memorização,
registro, divulgação, reprodução e recepção da música, criando um novo mundo de sons, técnicas, sociabilidades
e escutas” (VINCI DE MORAES; MACHADO, 2011, p. 162). Aqui o termo é usado no sentido denotativo de
conservação do suporte material que contém o som e, metaforicamente, como conservação da memória “musical,
sonora”.
178
A noção de gênero musical como a classificação do produto musical deve ser relativizada, pois se trata mais
de uma organização em prol da finalidade de consumo e de estabelecer hierarquias. No entanto, esse processo dá
o sentido para uso, interpretação e circulação dessa mercadoria cultural na sociedade, sendo a mídia o que
produz sentido e condições de reconhecimento de um gênero musical. Obviamente, isso tem consequência nas
práticas de sociabilidade, no consumo cultural e na representação do produto musical (JANOTTI JR., 2006).
179
Os dados aqui usados foram coligidos no decurso das idas à FPSM como campo das pesquisas que
desenvolvo sobre a música popular paraense.
293
Formação e atuação de uma coleção de discos pública
A constituição de uma fonoteca180 pública na cidade de Belém, a primeira da região
amazônica e segunda do país, teve como objetivo corresponder às aspirações que o campo
experimentava em decorrência das transformações políticas no Brasil no decurso do processo
de abertura da segunda metade dos anos 1980. Inaugurada em 26 de junho de 1987, por meio
de ação da Secretaria de Cultura do Estado, a FPSM se conformou como um espaço cultural
que veio a lume já dotado com grande carga simbólica, haja vista que compunha o conjunto
do Centro Cultural Tancredo Neves, CENTUR, núcleo de atuação das políticas para cultura
ensejadas pelo Estado. Capitaneada pelo professor e poeta João de Jesus Paes Loureiro, essas
políticas visavam colocar em prática uma política de valorização da cultura regional paraense-
amazônica.181
Historicamente, desde sua fundação a premissa basilar dessa instituição esteve
assentada em pressupostos de ser um lugar de memória da música paraense/amazônica, cuja
finalidade era atuar no processo de ativação de elementos identitários por meio da
constituição de uma coleção da produção musical local. Isso ainda hoje é um discurso usual,
haja vista o processo de globalização que, ao mesmo tempo em que desencadeia intenções de
uma suposta cultural global, acaba por fazer com que as culturas localizadas busquem se
afirmar ante esse processo.
A ideia primordial é de que ali seria um espaço público para disponibilização de
acesso à coleção discográfica angariada.182 Assim, como coleção183 de música, os objetos ali
180
Phone = som, voz; thêké = lugar para guardar objetos do mesmo gênero, armário. A fonoteca é um lugar
destinado à salvaguarda de e arquivamento de todo material relacionado a sonoridade, todos os tipos de suporte e
aparelhos de reprodução de sons, ordenados de maneira lógica. A discoteca é um lugar onde se guarda
especificamente um tipo de suporte, que é o disco.
181
Efetivamente, Paes Loureiro formulou um conceito de cultura amazônica por ele acionada desde as suas
primeiras incursões e atuações no campo artístico Belém, nos anos 1970. Então, sua atuação nos anos 1980 à
frente da Secretaria de Cultura, remete a essa perspectiva identitária, todavia agora subsidiada por uma forma de
atuação institucional de “política cultural” por ele preconizada (CASTRO; CASTRO, 2012). Essa construção
conceitual está sistematicamente exposta em sua obra “Cultura Amazônica: Uma poética do Imaginário”
(LOUREIRO, 1995).
182
O ingresso de material à FPSM é continuo, sendo isso apresentado como uma das formas de interação com
público. Assim, desde sua criação continua entrando material, que é selecionado, higienizado, catalogado e
disponibilizado.
294
alojados e mantidos teriam como função atuar nessa empreitada de constituir um consistente
corpo de conhecimento da realidade cultural local como meio de sua preservação e
manutenção. Logo, imprescindível erigir tais ações tendo em vista a constituição de uma
memória discográfica que fosse referencial à região.
Os primeiros discos do acervo, cuja monta atual é de aproximadamente 35 mil títulos
de diversos gêneros184 (“do popular ao erudito”, como frisa o funcionário responsável pelo
atendimento na FPSM) foram adquiridos via compra pelo Estado, na época da sua criação. No
entanto, posteriormente muitos discos que ali se encontram foram doadas, o que repercutiu na
criação de uma política para recebimento desse material. Dessa forma a FPSM se constituiu
como uma coleção pública. Ali está um conjunto de objetos públicos assentados num
estabelecimento de Estado a quem cabe a responsabilidade pela organização, classificação,
conservação e exposição. E é aqui que se instaura a problemática da relação entre as ações
culturais “espontâneas” e o Estado como “fazedor” de cultura. Assim, é premente salientar
que essa leitura encontra anteparo na proposição de que, na contemporaneidade, a cultura
ainda é campo de conflitos, sendo uma teoria da ordem social e uma prática de cultivação
(BAUMAN, 2011, p. 304). Vista, por esse prisma, a FPSM tem a função de instrumento
instrucional.
183
O suporte teórico fundamental é a teorização contida em texto clássico do historiador polonês Krzysztof
Pomian, o verbete “Colecção”, da Enciclopédia Einaudi, de 1984.
184
Interessa aqui o uso das produções em música popular, precisamente obras de Música Popular Paraense.
Embora seja termo bastante vago, e até mesmo contextualmente dotado de contradições, operacionalmente é útil,
na medida em que denota “um terreno de trocas, diálogos e embates pela significação” (NÉDER, 2010, 182).
295
Figura 1: Vista da parte externa. À direita o Salão da Fonoteca Satyro de Mello. À esquerda, estantes com
discos LP’s de vinil da coleção de música popular paraense.
Partindo do que foi exposto anteriormente, o objetivo desse trabalho é verificar de que
maneira essa coleção atende às premissas fundamentais de uma coleção, ou seja, como se
processa o elemento mediação entre os artefatos que constituem a cultura musical e um
público consumidor. Por outro lado, é valido ressaltar que tem interesse em se vislumbrar de
que maneira a agência desses objetos é ativada nesse processo, haja vista a existência de uma
dupla interesse: ao projeto de política pública estatal para a cultura local, e ao público como
consumidor. Em outras palavras, é interessante verificar como o Estado retira desses objetos
as premissas de seu interesse e, por outro lado, como esses objetos atuam sobre o interesse do
público, certamente possibilitando acesso a conhecimentos que, por sua vez, leva a outras
relações sociais. Sendo assim, é por isso que partimos da detecção de que essa acumulação é
interessada e se constitui em elemento que subsidia ações de prática identitária.
O conceito de coleção aqui ativado remete aos títulos discográficos – álbuns185
institucionalizados -, artefatos e suportes sonoros localizados na FPSM que compõe um
conjunto coeso com objetivo de mediação. Assim, há uma perspectiva museal que caracteriza
185
O álbum é uma mercadoria cultural, um conjunto informativo que é formado pelas canções, pela parte
gráfica, pelas letras, pela ficha técnica e pelos registros de enunciação, como os agradecimentos, que se
conformam como elementos necessários à lógica mercadológica (JANOTTI JR, 2006).
296
a atuação da FPSM. Buscando justificar essa proposição, cabe uma breve inflexão teórica.
Quando aqui é usado o termo museal como adjetivo,186 tem-se em conta que a FPSM se
configura como um espaço social que propicia uma forma específica, por parte do público, de
contato com a realidade material ali guardada. Isso certamente propicia uma forma
experiência de lidar “diretamente” com o objeto. As aspas se justificam porque o usuário187
não é quem vai até a estante e retira o disco, o que efeito pelo funcionário. Mas após a
instalação do disco no aparelho reprodutor – o toca-discos188 -, quem usa o objeto sonoro, e
também o suporte de guarda onde geralmente estão informações sobre a produção – a capa, o
álbum -, é o usuário.
Obviamente, essa maneira de lidar com o objeto da coleção escapa àquela experiência
ditada pelo museu “tradicional”, haja vista que na FPSM a prioridade é fazer circular o
produto cultural, embora isso se dê de forma enviesada. Isso se configura em uma forma
particular de interação entre o público e o campo da cultura musical porque é mediada pelos
Estado (funcionário). Mas essa forma de contato não obsta, ou elimina, a possibilidade
hermenêutica ali contida. Pelo contrário, acaba por ser um componente do processo de
interação, porque a experiência de contato com o suporte físico e a audição do material sonoro
acaba se configurando como uma experiência de interpretação mantendo-se, assim, o caráter
subjetivo (RICOEUR, 1988).189
Então, tomando esses argumentos como norteadores agora cabe apresentar os termos
da problemática que justifica esse texto. Um primeiro ponto se encontra em procurar saber em
que medida a FPSM atende às preconizações das práticas de política cultural de Estado. Por
outro lado, sabendo que isso não determina as atuações, tanto do público como do objeto, é
pertinente procurar tecer algumas reflexões acerca do status da agência de ambos. Assim,
considerando a suposta materialidade do objeto ali mantido em sua situação de alienado do
186
Como adjetivo, quer dizer que se trata de lidar com aquilo que é relativo a museus. Como substantivo, o
termo museal refere-se à fundamentos e reflexões sobre o museu (DESVAILLÉES; MAIRESSE, 2013).
187
Termo usado para denominar o público.
188
A FPSM possui 8 aparelhos desse formato.
189
Obviamente, uma pesquisa de campo mais alentada pode fornecer resultados etnográficos com mais
subsídios para corroborar essa incipiente leitura. Como esse texto é resultado de uma pesquisa em curso, optei
por não adentrar aqui por esse campo.
297
circuito original do qual fazia parte, é viável notar como eles são “usados” pelo público.
Todavia, seu uso deve ser tangenciado ao valor mais simbólico que efetivo que agora o
conformam. E, por fim, é interesse também fazer uma ligação dessa condição sígnica com a
prática política estatal de reunir aspectos da cultura musical local em um lugar como intenção
de ratificação de identidade, ou seja, de estabelecer uma memória com intenção pedagógica.
Nesse sentido, como espaço físico, o caráter ostensivo190 da coleção também se coloca
como um elemento constituinte da atuação simbólica da FPSM, haja vista que os objetos ali
estão expostos para o público, acondicionados de maneira que possam ser vistos como um
conjunto em exposição. Dispostos dessa forma, esses objetos passam a ser portadores de um
sentido distinto daquele material-denotativo adquirindo, assim, status de serem referência.
Efetivamente, é dessa forma que tais objetos encorpam a coleção. Portanto, os discos expostos
ali são objetos dotados de autenticidade porque têm a característica de ser a parte concreta de
pressupostos indiciários para acesso à cultura musical regional.
Isso suscita uma questão de ordem teórica: até que ponto esses discos, como suporte,
são objeto ou coisa? Isso se lança porque atualmente é ponto de discussão nas áreas que lidam
com cultura material, como a Antropologia e a Museologia, essa distinção. Aqui
encaminharemos esse trabalho por meio da noção do objeto como portador um estatuto
ontológico, ou seja, tomando ele não apenas em materialidade bruta, mas como portador de
algo intrínseco que o torna um ser de linguagem.191
Segundo o historiador Krzysztof Pomian (1984) o que caracteriza um objeto de
coleção é a perda do seu atributo de uso, quando um objeto passa a ter status de singularidade,
o que o coloca como uma forma de demonstração do que pretende a coleção. É essa premissa
que sustenta a tese aqui de que os discos da coleção de música paraense reunidos na FPSM
são mais simbólicos do que práticos, embora sejam “usados” de alguma forma, sobre o que já
190
Segundo Pomian, os objetos, sejam naturais ou artificiais, para se enquadrarem na categoria coleção têm que
atender a três requisitos: 1) Devem estar temporária ou definitivamente fora do circuito das atividades
econômicas; 2) Tem que estar protegidos em um lugar preparado para esse fim; 3) Devem estra expostos ao
olhar do público (POMIAN, 1984).
191
Ainda que não tenhamos como recurso teórico a incursão pelas propostas de Bruno Latour, é pertinente
ressaltar o peso que suas perspectivas, sistematizadas na Actor Network Theory (ANT), exercem nesse campo,
quais sejam: a realidade é resultado do entrelaçamento de relações que se dão em rede, também, entre humanos e
não-humanos (LATOUR, 1994).
298
se falou. Assim, quando um usuário requer ao funcionário um disco físico (objeto-matéria)
para audição esse disco se torna um sígnico (objeto-valor). Passa ali a haver uma relação na
qual o disco fornece índices ao ouvinte, o que o orientará por determinado percurso, todavia
não determinando-o, mas sim atuando como pressuposto importante no seu trabalho de
interpretação. Por isso, sua carga informativa é eivada de significados simbólicos e, por mais
que seja materialmente tangível, esse objeto exerce por “imaterialidade sonora” sua
finalidade, que é promover comunicação por meio da sua audição.
É preciso ter em conta que esse processo, por mais que parece atuação desinteressada
e livre por parte do usuário, é uma ação sob controle de vários fatores: da instituição, das
características do objeto, da carga cultural do ouvinte. Por consequência lógica, o seu
significado também é controlado. Mas, para ficarmos numa camada mais superficial de
análise, ele é definido como representação, logo, exerce a função que é propiciar meios para
produção de significado.
Para realizarmos o que foi proposto anteriormente, ao tomarmos os discos da FPSM
como obras, é preciso lidar com sua agência no processo de comunicação. No caso aqui
abordado, isso é pertinente devido à patente interesse da alocação desse material na Fonoteca,
o que se justifica pela perspectiva de que eles sejam elementos de constituição e/ou
manutenção de uma memória musical numa projeção sociocultural. É por isso que cabe aqui
considerar, também, até que ponto eles agem no processo social que os utiliza. Nesse sentido,
a seguirmos o antropólogo Alfred Gell quando diz que é o contexto social de produção,
circulação e recepção do produto artístico que dita a sua existência como objetos que
“ganham” vida (GELL, 1999), podemos fazer esse tipo de leitura sobre os objetos da FPSM
quando agem. Essa via propicia que tomemos os discos como ocupantes de um lugar
importante na relação entre o público e o material simbólico da FPSM, tendo no horizonte que
essa situação interfere na produção de sentido.
Dessa forma, os discos podem ser vistos para além de serem apenas uma linguagem
que atua na comunicação, ou como um símbolo apenas; são agentes na medida em que, no
ciclo de sua atuação como objeto referencial promoveram, e promovem, práticas de interação
social. Isso é importante na medida em que possibilita um quadro do processo de interação
299
entre o público que acessa os objetos da FPSM, afim de notar como esses objetos, como
entidades materiais, promovem inferências.
Como incitador de respostas ou interpretações, o material sonoro se materializa em
relações sociais, cujo mote subjacente é a perspectiva identitária, imputada e ativada nesses
objetos que então se conformam como agenciamento de identidade. Assim, a coleção de
música popular paraense da FPSM pode ser vista como uma instituição que atua na mediação
do público para com a produção musical de mote regional. De certa forma, a escolha do nome
de um compositor paraense, de uma cidade do interior, tido como expressão da música
regional negra e urbana, com atuação destacada no centro cultural que foi a cidade do Rio de
Janeiro dos anos 1930 a 1950 (COSTA, 2014) já explicita essa intenção demarcatória de
valorização “regionalista” da FPSM.
A FPSM tem como objetivo ser um lugar de conservação, inventário e
acondicionamento de suportes discográficos de vários gêneros musicais, sendo a coleção de
música paraense um “gênero” – por sua vez subdividido em “subgêneros”, como carimbó,
brega, MPP, etc. – resultante de uma política de intervenção. Assim, está colocada a forma
objetiva de propiciar melhores formas de acesso aos artefatos discográficos, se consolidando
como um centro prestador de serviço, de preservação para comunicação. Nesse caso, a
exposição dos discos de música paraense, colocados na estante que é visível do salão, atua
como instrumento de divulgação, sendo parte importante da lógica instaurada nesse processo
de comunicação.
300
tarefa a se fazer: um estudo de público, pois apenas dessa forma se poderá obter informações
que possibilitem traçar um quadro mais consistente afim de corroborar essas conjeturas.
De toda forma, é possível apontar que o disco que ali está conservado é objeto com a
característica peculiar de ser objeto original e exemplar ao mesmo, ou seja, é musealia e
réplica, porque se situam fora do circuito da circulação espontânea e adquiriram o curioso
status de material em exposição – alocados nas estantes estão visíveis ao público - para uso –
podem ser requeridos para audição. É por isso que aqui se expõe a ideia de que esses objetos,
mesmo sendo elementos de uma série – objetos de arte resultantes da reprodutibilidade
técnica de que falou Walter Benjamin (1990) - são dotados de autenticidade e carga
simbólica, o que lhes fora socialmente instituído quando retirados do fluxo de circulação no
mercado. E assim se configuram como agentes no processo de mediação do qual são
componentes.
Ainda que conte com um acervo bastante numeroso que abarca diversos gêneros, a
FPSM tem em seu escopo sedimentar, de maneira prioritária, a organização da coleção de
música popular paraense. Mas, apesar de ser a prioridade da instituição, ainda não há a
Coleção de Música Paraense, a não ser em projeto.192 Uma estimativa aponta que há mais ou
menos 1100 LP’s de música paraense (Imagem 2) devidamente conservados, alocados em 14
prateleiras de estantes que ficam à vista do público, e disponíveis para consulta-audição, e
cerca de 50 discos compactos.193 Notadamente, são discos de artistas “emblemáticos” da
cultura musical local, de vários subgêneros do gênero música popular paraense, como
carimbó, brega, canção popular e outros.
O número de pessoas que procura e usa a coleção de música paraense é muito
reduzido. Por alto, algo aproximado a 10% do público total que frequenta a Fonotaca, informa
a funcionária. E dentro desse número, 90% é de pesquisadores. Ou seja, grande parte das
pessoas que ali frequentam tem uma finalidade prática para usar a coleção: realizar pesquisas.
Portanto, a função de comunicação da coleção é exercida, todavia com essa característica de
192
No momento em que escrevo este texto está em curso o processo de organização e catalogação para fins de
constituir a Coleção de Discos de Música Paraense, devidamente identificada.
193
Número não definitivo porque, além de recebimento constante de doações, há evidências de que há discos
dessa vertente que estão misturados com outros de outros gêneros.
301
ser mais laboratório do que um lugar onde a divulgação da música local se estenda a um
público espontâneo. De toda forma, isso não retira a importância da coleção, haja vista que,
ainda que por outros meios, ela cumpre seu papel de divulgação do material ali localizado.
Mesmo sendo ínfimo o acesso por parte de pessoas que escapam a essa finalidade
pragmática, há essa visão de ser um lugar de memória da música paraense, pois os usuários
contatados que estavam usando discos da coleção de música paraense quando abordados
ressaltaram que estavam ali para ouvir “a tradicional música da Amazônia”, ou a “bonita e
exótica música do Pará”. Normalmente, esse público é formado por alguém que lhe indicou o
lugar. Todavia, como está patente, as adjetivações mostram que há certa visão diferenciada
acerca do material de música paraense no conjunto da coleção.
Bem entendida a coisa, de acordo com alguns usuários, parece que a “parte de
música paraense da Fonoteca” é um lugar específico no conjunto da FPSM e que deve ser
visto diferenciado porque “é onde está a música paraense”. (Talvez as motivações para esse
tipo de assertiva tenham sido dadas pelo rumo que tomou a conversa estabelecida com o
usuário). E, embora fisicamente isso não encontre correspondência, já que não há um “setor”
identificado como sendo a coleção de música paraense, é pertinente notar que essa visão
comum de que ali está um reduto da música paraense tem vigor. Possivelmente, isso assim se
conformou por conta de um processo de transferência de narrativas que apontam nesse
sentido, possibilitando que assim se instituísse uma espécie de circuito de opiniões.
302
A assertiva de que ali é prioridade a música paraense encontra ressonância na forma
como está ocupado o mostruário localizado na entrada da FPSM. Trata-se de um “aquário”
(Imagem 3) onde estão colocados à mostra álbuns, mais precisamente capas de discos de
importantes músicos paraenses: Sebastião Tapajós (o emblemático disco “Guitarra Criola”, de
1982, premiado na Alemanha como Disco do Ano), Salomão Habib, - ambos instrumental -,
Alcir Guimarães, Fafá de Belém (disco “Atrevida”), Heliana Barriga e a coletânea Folguedos
Populares do Pará. Em termos simbólicos, essa peça pode ser tomada como uma apresentação
da proposta da FPSM, uma espécie de sinalização, cujo objetivo é ser uma demonstração do
conteúdo disponível na coleção. Separados do mundo – colocados numa vitrine –, esses
objetos acenam que os discos de música paraense, assim como os de outras coleções, se
encontram distantes da sua real existência, passando a ter função simbólica e, em certa
medida, didática.194
Considerações finais
Na esteira das múltiplas possibilidades de acesso à informação colocadas atualmente
pelo desenvolvimento de tecnologias digitais, na FPSM está atualmente em curso o processo
de organização, catalogação e disponibilização do acervo no Sistema de Bibliotecas da
Fundação Cultural do Pará – FCP, na plataforma Pergamum,195 haja vista que a FPSM é uma
seção da Biblioteca Pública Arthur Vianna. Alguns discos do acervo já estão catalogados e
seus dados informativos disponíveis para consulta na internet. Assim, “em breve o acesso a
informações do acervo de música paraense, assim como de todo o material da coleção, poderá
ser feito on line”, diz a funcionária. Certamente, isso promoverá mudanças que exercerão
impacto no acesso e uso desse material.
Mas, em seu papel de lugar de memória da música paraense, a FPSM continuará
sendo um espaço físico onde estarão em atuação a guarda, a organização, disponibilização e o
acesso aos suportes sonoro. Nesse sentido, o público (e como foi mostrado, a estimativa é de
194
Há mais três mostruários-vitrines, onde estão livros, objetos e imagens, todos relacionados à música, mas
sem um direcionamento temático, como o desse que foi citado.
195
Endereço: http://www.fcp.pa.gov.br/consulta-do-acervo/acervo-bibliografico/consulta-do-acervo-da-
biblioteca
303
que 90% dos que consultam a coleção de música paraense seja de pesquisadores) que fará uso
da coleção de música paraense possivelmente pode conhecer um incremento. Como se vê,
trata-se de uma parcela ínfima, que certamente não exerce impacto no conjunto, mas que tem
peso se considerarmos os resultados dessas pesquisas, em dissertações e teses acadêmicas.
Desta forma, as implicações acerca do conhecimento da vida cultural, precisamente do campo
da música popular paraense, ainda são significativas, embora num circuito fechado.
O uso do espaço por um público espontâneo que por ali transite em busca de
conhecer a coleção, ou melhor, usá-la para obter conhecimento acerca da cultura material e
imaterial resultante da produção musical local, das gravações como bens culturais que
constituem o campo da cultura local, ainda não é significativo. Mas, essa detecção requer uma
investigação mais ampla. De fato, os pesquisadores que incursionam e produzem
conhecimento a parir do uso do material da FPSM é a forma mais comum de comunicação do
acervo, muito embora tais produções resultantes dessas empreitadas acabem, por sua vez,
atingindo um público restrito. Reiterando, configura-se assim uma circularidade, que por sua
vez redunda na formação de uma rede “auditiva”.
Outro ponto a ser atentado é sobre as implicações políticas atuantes nesse acervo, os
interesses institucionais em atuar para a conservação, exposição e as formas de controle do
uso do significado desses bens culturais. Foi apontado anteriormente que a agência dos
objetos traz implicações para essa questão do significado, ressaltando que há um fluxo de
significações, o que coloca o objeto em constante mudança. Mas, a forma de disposição e a
trajetória do FPSM, que desde a sua fundação já tem em procedência interesses de “cultura
institucionalizada” porque mediada pelo Estado, possibilitam remete a que se pense numa
perspectiva de “narrativa memorial acerca da música popular paraense” como elemento no
processo de constituição de uma memória musical regional. Então, de certa forma, como lugar
de memória, a FPSM visa atender a essa premissa, ainda que esse “escutar para não esquecer”
se dê de modo enviesado.
Assim, pode-se tomar como parâmetros em visada de conclusão para essa leitura que
à proposição objetiva do que está contido nos objetos da coleção se impõe uma ordem
subjetiva, que atua como discurso no sentido do controlar o imaginário e a vida social. Então,
304
como instrumento do Estado, a instituição de uma memória assentada sobre um patrimônio
material/imaterial é também um elemento constitutivo. A consequência disso é que as práticas
de sociabilidade são afetadas por esse processo. Logo, a coleção de música popular paraense
como lugar de memória efetivo tem em potencial a finalidade de ser instrumento para
ratificação de uma pressuposta identidade paraense/amazônida, como comunidade de
sentimento territorialmente localizada ante o atual contexto da globalização.
Daí que se veicule, tanto por parte do público como dos elementos de Estado, o
discurso da tradição de uma “memória sonora” incrustrada em um lugar de memória. Assim, a
FPSM se configura como um espaço de encontro com a cultura musical local e, também,
como meio de comunicação e formatação dessa, pois essa coleção se consolida como um
meio de promover a “arquitetura de participação” como prática de interação por meio da
colaboração (SIMON, 2007, apud. SEMEDO, 2013, p. 53).
Por fim, embora calcado nessa visão de ser um lugar institucional e, por conseguinte,
constituído por todos os elementos que conformam as “intenções institucionais” e práticas de
política cultural de Estado, não se pode desprezar o fato de que tais objetos têm seu valor
espontâneo na formação e atuação do público. Assim, ainda que se pressupunha um
direcionamento na forma de interação entre o público e os discos ali reunidos, a coleção pode
proporcionar, certamente, variadas maneiras de conexão entre esses objetos e o público
encetando, assim, experiências múltiplas.
Referências
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Zahar Ed., 2011.
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307
COLEÇÃO KARAJÁ LIPKIND (1938-1939) DO MUSEU NACIONAL: ROTAS
ANTROPOLÓGICAS BRASIL-ESTADOS UNIDOS
Resumo: O trabalho tem como foco de estudo a “Coleção Karajá William Lipkind” composta por 527
artefatos do acervo do Setor de Etnologia e Etnografia do Museu Nacional- UFRJ realizada pelo
antropólogo estadunidense que permaneceu por 14 meses de 1938 a 1939 entre os Karajá do vale do
Araguaia. Sua pesquisa foi mediada pela diretora do Museu Nacional, Heloisa Alberto Torres que
tinha um papel importante no controle das pesquisas estrangeiras antropológicas no Estado Novo.O
estudo dos itinerários da coleção, do antropólogo William Lipkind entre outros atores e instituições no
Brasil nos Estados Unidos traz conhecimento inédito a respeito da qualificação da própria coleção, da
história da antropologia no Brasil e nos Estados Unidos.
Abstract: The study focuses on the "Karajá William Lipkind Collection" which consists of 527
artifacts belonging to the Ethnology and Ethnography Sector of the National Museum - UFRJ
conducted by the American anthropologist who lived for 14 months from 1938 to 1939 with the
Karajá of the Vale do Araguaia. Her research was facilitated by the director of the National Museum,
Heloisa Alberto Torres, who had an important role in the control of the anthropological research in the
Estado Novo. The study of the collection itineraries, and the relationships between William Lipkind
and other actors and institutions in Brazil and the United States, brings new knowledge about the
collection itself, the history of anthropology in Brazil and the United States.
308
O foco da pesquisa
196
A pesquisa ainda em processo já permitiu a produção de uma capitulo de livro (2015), um artigo (LIMA
FILHO, 2016) e dois no prelo, um na revista Midas em co-autora com a museóloga Cecília Ewbank e outro na
revista Mana.
309
e acondicionar de maneira apropriada 358 objetos de um total de 426 itens Karajá registrados
no livro do Tombo (LIMA FILHO, 2015; EWBANK, 2015; GRIPP, 2015).
Uma vez realizada essa indispensável fase de estudos foi relevante implementar uma etapa
central do processo etnográfico ainda em curso: a interlocução e, portanto, pesquisa
compartilhada com os Karajá, uma vez que a coleção, agora, pode ser disponibilizada na
reserva técnica com condições adequadas para recebê-los, a fim de se realizar um estudo
detalhado in situ. Ao mesmo tempo a interlocução com os Karajá já acontece quando eles
visitam Goiânia e o Museu Antropológico da Universidade Federal de Goiás.
A inspiração teórica
O antropólogo Johannes Fabian (2010) chamou a atenção para o fato de que o
renascimento da cultura material, que temos acompanhado com vigor nos últimos anos,
desempenhou um papel crucial nas reorientações que a Antropologia vem assumindo num
movimento consciente de superação do positivismo e de sua atuação quanto à condenação
moral que sofreu enquanto empresa colonial-imperial. O papel da cultura material nesse
processo de reorientações epistêmicas foi pelo menos tão significativo quanto a “virada
literária” da Antropologia na direção do movimento da cultura como texto.
O interesse pelo estudo de artefatos e coleções segue, então, na direção de implodir a
inércia de análises centradas no paradigma culturalista preso à própria origem da antropologia
numa obsessão por enquadramentos tipológicos, hierárquicos e colonialistas.
A tarefa de recontextualizar objetos etnográficos ganha amplitude ao serem
investigados os sentidos e os novos conceitos que contribuíram para a sua redefinição, uma
tarefa absolutamente indispensável, à qual devem se debruçar tanto os museólogos quanto os
antropólogos. O grande desafio é o de ultrapassar primeiramente uma perspectiva clássica,
que considera apenas os artefatos obsoletos da vida cotidiana, ditos ‘tradicionais’, ou então os
empregados em cultos ou rituais. (VAN VELTHEM, 2012: 58).
A literatura antropológica e as produções provenientes dos estudos culturais têm,
então, apresentado textos críticos sobre a apropriação dos objetos deslocados de contextos
culturais, mercado e arte e o papel dos museus na contemporaneidade. Nesse sentido, as
práticas do colecionamento, para Reginaldo Gonçalves (2007) uma categoria de pensamento,
310
assume uma função mediadora nos processos que envolvem desde aretirada dos objetos de
seus contextos culturais nativos até suas transformações em objetos etnográficos, preservados
e expostos nos museus ocidentais.
Quanto aos museus, Néstor Canclini afirma que:
(...) a crise do museu não se encerrou (...) são debatidas as mudanças de que
necessita uma instituição, marcada desde sua origem pelas estratégias mais
elitistas, para rever sua posição na industrialização e na democratização da
cultura (CANCLINI, 2003: 170).
311
contrário da captura e da contenção – na descarga e vazamento – que descobrimos a vida nas
coisas” (INGOLD, 2012: 35).
Nesse sentido, o foco do projeto é buscar aprender sobre a dinâmica dos fluxos dos
materiais na vida dos Karajá, instigado pela reflexão de Tim Ingold de que:
(...) a coisa tem o caráter não de uma entidade fechada para o exterior, que se
situa no e contra o mundo, mas de um nó cujos fios constituintes, longe de
estarem neles contidos, deixam rastros e são capturados por outros fios
noutros nós. Numa palavra, as coisas vazam, sempre transbordando das
superfícies que se formam temporariamente em torno delas (INGOLD, 2012:
29).
Assim, se a coisa existe na sua coisificação - no processo de vir a ser - e não apenas
enquanto um objeto fora do fluxo de sentidos do pensar e do fazer de quem com ele se
conecta em momentos quando rastros são produzidos; a pesquisa tem almejado construir uma
exegese das narrativas compartilhadas com os Karajá sobre o lugar que a cultura material,
para Ingold (2012) materialidades e biografia/circularidade/cadeias valorativas Koptoff
(2006) , têm na vida social. Interessa compreender a recepção ou produção de sentidos dos
Karajá com o reencontro de uma coleção de coisas de 1938 e a ressonância disso em suas
redes de relações sociais internas (família, grupo doméstico uxorilocal interaldeias,
subgrupos) e as externas com outros povos indígenas ou estrangeiros (ixyju) e com o mundo
dos tori, ou seja, os “brancos”. Atenção tem sido dada também para as narrativas, na
oportunidade do acesso dos Karajá à coleção William Lipkind, relacionadas aos agentes
patrimoniais, museológicos e antropológicos.
Referências Bibliográficas
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Severo. (Orgs). Usos e Abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Editora da FGV.1996.
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jan.-abr. 2012.
314
AÇÕES MUSEOLÓGICAS: UMA REFLEXÃO SOBRE AS ATIVIDADES DO
MUSEU DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO PARÁ
Abstract: This research aims to present and analyze the process of museological documentation
developed at the Museum of the Historical and Geographic Institute of Pará (MIHGP) by means of the
“Documentation project of museological collection from Museum of the Historical and Geographic
Institute of Pará”. Therefore, elaborating on reflections and suggestions specifically about actions
related to pinacoteca collection, we present theoretical and practice considerations to selfsame
safeguard and diffusion, which registry list filling it’s an important device to its preserve and control.
315
Introdução
316
peças da Pinacoteca, mesmo que distribuídas pelas dependências do Instituto
(IHGP, 2005, p.03).
Formação da Pinacoteca
317
prédio. “Ao tomar posse nas funções de Diretor do Museu, confesso que fiquei perplexo com
a total e evidente constatação do abandono [...]” (ROUMIÉ, 2004, p. 4).
Com a falta de segurança do local, o Museu tornou-se propicio a assaltos, nos quais
itens da coleção da pinacoteca foram extraviados, sendo em sua maioria nunca recuperados.
Tendo conhecimento disto, Roumié reuniu a coleção em algumas das salas do Solar, para que
estas pudessem estar em maior segurança, iniciando o processo de documentação e
tombamento da coleção restante, tomando como base para conhecimento das peças
remanescentes da pinacoteca, a seção I do Catálogo da exposição em homenagem ao
centenário do nascimento do ex-Imperador D. Pedro II, presente no seu Relatório de Gestão
do interstício 2002 a 2003, no qual foram utilizadas peças do acervo da pinacoteca do
MIHGP, sendo este documento fornecido pelo Dr. Guaraciaba Quaresma Gama (ROUMIÉ,
2004).
318
Ações de documentação da pinacoteca do MIHGP
Realizamos este estudo tendo por objetivo colaborar com a instituição em seu papel de
mantenedora de memória e conhecimento, para fins da preservação histórica e material desta
coleção. Tendo em vista que a principal função da documentação é a preservação das
informações contidas nos documentos. Ressalta Ferrez, a relevância da documentação dentro
do museu, e define este procedimento técnico como
Uma das definições de musealização é apresentada por Marília Xavier Cury que
percebe como uma valorização dos objetos e que se inicia no ato de seleção, seguido por
aquisição, pesquisa, documentação, conservação e comunicação (CURY, 1989, p. 24-26).
Deste modo, compreendemos por musealização a mudança de status de um objeto do
cotidiano, dentro de um circuito de produção – uso – manutenção, para objeto de museu. Para
197
Segundo Ulpiano Meneses (1998), as informações intrínsecas dizem respeito ao conteúdo físico-químico do
objeto, enquanto que os dados extrínsecos é o conteúdo que forma o discurso acerca do objeto, implicando assim
na questão da “verdade e ‘autenticidade’ do artefato”.
319
que isto aconteça, muitas vezes, é necessário retirar a coisa de seu contexto original para
possibilitar o estudo, e então, comprovação do seu valor documental como representação
fidedigna de uma realidade cultural, podendo se tornar, assim, um testemunho de dada
cultura, preservando tanto a memória como o seu caráter informacional.
Uma vez que este acervo já passou por um incipiente processo de documentação, no
próximo tópico será apresentado o andamento de cada etapa desenvolvida dentro do projeto a
partir de exemplos práticos do acervo em questão.
Documentação e Pesquisa
Para o registro documental foi concebida uma ficha de inventário. Estas fichas foram
preenchidas com dados sobre a identificação do objeto, análise, conservação, notas, dados de
preenchimento e reprodução fotográfica. Como no modelo de ficha a seguir:
320
Figura 1: Ficha de inventário utilizada no projeto para o MIHGP.
As informações das telas são descritas com o máximo de detalhes possíveis, tanto de
sua parte frontal quanto em seu verso, procurando inscrições, assinaturas e marcas que
possam ajudar na obtenção das informações extrínsecas; também são observados agentes
deteriorantes nas obras, como fungos, traças, manchas de umidade, rasgos e craquelamento;
suas medidas de comprimento e largura verificadas, devendo ser registrados sempre em
centímetros. Se uma tela estiver com sua moldura, é feito o desdobramento, que é a realização
de uma ficha individual para cada parte integrante ao quadro. Cada peça desdobrada deve ser
representada com uma letra minúscula do alfabeto devendo as respectivas peças seguir a
ordem crescente. As informações extrínsecas, que não são encontradas na própria obra, são
deixadas para serem pesquisadas posteriormente. Após todo o preenchimento, deve-se fazer a
identificação da peça, marcando-a provisoriamente para posterior marcação definitiva com
uma pequena etiqueta com alfanumérico e tripartido dado pela própria instituição, como
exemplo “MIHGP.I.216.a”, no entanto, também pode haver um número de inventário
anterior, este devendo ser igualmente documentado.
Com o término da retirada de informações, pode-se começar a penúltima etapa, a
limpeza da obra, que é feita com pincéis de tamanhos variados, sempre manuseados com
extremo cuidado. Dessa forma, a obra pode ser guardada à reserva técnica. Por fim, todos os
321
dados obtidos devem ser repassados da ficha impressa para a ficha de arrolamento
Considerações finais
Observamos com este trabalho que o MIHGP já possuía uma noção da importância da
Documentação Museológica para a salvaguarda do seu acervo. Entretanto, mesmo não sendo
um processo totalmente desconhecido, este era limitado a uma lista de arrolamento, e até
mesmo o Catálogo de exposição do Theatro da Paz não apresentava mais que o nome dos
objetos, dimensões e material e técnica. Vimos que, com o projeto Documentação do Acervo
do MIHGP, que na edição de 2017 foca a documentação das obras da Pinacoteca, é
desenvolvida uma numeração própria e uma ficha de inventário para o registro do acervo,
visando uma gama de informações, organicidade e acessibilidade maior para a coleção.
322
elaborações mais concretas para externalizar este acervo à comunidade em geral, visto que no
momento esta coleção só se encontra disponível para pesquisadores, devido a precária
situação documental e de conservação.
Referências Bibliográficas
FERREZ, Helena D. Documentação museológica: teoria para uma boa prática. In:
CADERNOS de ensaios, nº 2. Estudos de museologia. Rio de Janeiro, Minc/ Iphan, 1994, p.
64-73.
323
PATRIMÔNIOS AFETIVOS, ACERVOS MUSEOLÓGICOS:
APONTAMENTOS A CERCA DAS CARTAS DO MAESTRO
WALDEMAR HENRIQUE
198
Museu da Imagem e do Som.
324
199
Sistema Integrado de Museus e Memoriais.
325
Abstract: The research deals with the study of part of the collection of the Paraense maestro
Waldemar Henrique. The collection is safeguarded by the MIS and the SIM of Belém do Pará. After
his death in 1995, he became an internationally recognized musician. The study focuses on the six
texts and sixty letters written and sent by the maestro for his friends and relatives. Waldemar Henrique
had the habit of writing letters during his personal travels and artistic tours. The research stills in
progress and is carrying out a curatorship to select the letters and texts; ordering them on a
chronological order, highlighting the themes, the senders, the cities and countries from which they
were sent; also scanning of all the selected material and the survey of recurring subjects. The maestro
was the only artist from state of Pará who lived the phase of Brazilian musical modernism, as the
composer Heitor Villa-Lobos and the critic Mario de Andrade, both friends of Waldemar Henrique.
The research intends to carry out an anthropological study on the content of the letters and in the
museological and communication context to elaborate a virtual exhibition with the contents of this
research, thus being able to provide a better accessibility to new researchers.
326
Objetivos
O Sistema Integrado de Museus e Memoriais e o Museu da Imagem e do Som do
Estado Pará, tem a guarda de todo o acervo do Maestro Waldemar Henrique com mais de
15.00 peças, que é compreendido de diários, álbuns de fotografias, matérias jornalísticas,
obras de arte, discos, músicas, partituras, cadernos de anotações, poesias, correspondências
recebidas e enviadas entre outros. As “Cartas Enviadas” do maestro Waldemar Henrique
serão o objeto desta pesquisa, através destas serão recriadas memórias por meio de seus
escritos às pessoas que lhe tinham apreço.
No contexto da Museologia foi realizada uma curadoria para seleção do material, feito
um arrolamento em ordem cronológica que deu suporte ao inicio da pesquisa. Dentro deste
processo tomamos por base a leitura de 60 cartas e 6 textos que compõe parte do DVD
Coleção Waldemar Henrique (2005), e que datam de dezembro de 1934 a agosto de 1990.
327
de Andrade e o maestro Heitor Villa Lobos. Nos anos 1940 excursiona pela Argentina e
Uruguai, acompanhado pela irmã e outros intérpretes. Destacam-se pelo sucesso o registro
de Minha Terra, por Francisco Alves, e Tamba-Tajá, gravada por Antonieta Fleury de Barros.
Participou da fundação da Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Editores de
Música (Sbacem). Em 1949 como funcionário do Itamaraty excursionou pela França, Espanha
e Portugal, para divulgar a música brasileira. Entre 1953 a 1954, viaja novamente pela Europa
e por Paraguai, Uruguai e Argentina. Em 1960 retorna à Belém, cinco anos depois é nomeado
diretor do Departamento de Cultura da Secretaria de Estado de Educação e Cultura do Pará,
assumindo a direção do Teatro da Paz, em Belém, também foi diretor do Conservatório Carlos
Gomes. Em 1981 é eleito para a Academia Brasileira de Música. Com problemas de saúde se
afasta da música e morre em 1995.
O maestro Waldemar Henrique em suas diversas viagens no decorrer destes anos de
sucesso escreveu dezenas de cartas para familiares, amigos e colegas de profissão onde conta
sobre os diversos assuntos de grande relevância na sua história. O maestro tinha o hábito de
reproduzir suas cartas, tendo sempre uma cópia, e quando não era possível ele solicitava ao
destinatário que este a guardasse para devolvê-lo. Nestes escritos um de seus principais
objetivos era documentar o dia-a-dia de suas viagens, como um diário (fez isso em alguns
exemplares), para que no futuro pudesse relembrar aqueles momentos ao reler seus escritos.
Mas o que fazer com cartas e textos antigos de um ilustre artista?, Eles podem ser
considerados objetos relevantes para memória e patrimônio cultural do Estado?. Como
apresentá-los a sociedade e transformar este conteúdo em objetos de conhecimento?.
328
A problematizarmos este conjunto documental de 60 “Cartas Enviadas” e mais os seis
textos, foi realizado o levantamento do conteúdo existente no material, separados por assuntos
e importância. A pesquisa em foco busca trazer a tona o homem Waldemar Henrique através
de suas próprias palavras, narrativas sobre sua vida pessoal, a carreira, os amigos, sua obra,
viagens, alegrias, decepções. Estes patrimônios afetivos que compõem este acervo
museológico encontram-se retidos dentro de uma instituição que dificulta o acesso da
sociedade a este conhecimento. Para que se possa facilitar este acesso às memórias do
Maestro Waldemar Henrique, tem-se como objetivo final desta pesquisa a construção de uma
exposição virtual, para Oliveira (2006), “podemos pensar o meio tecnológico como extensão e
comunicação de nossa própria história e memória [...] um acervo onde o próprio observador,
cidadão comum, se fará presente, guardando a sua memória histórica”. Conforme Desvallées
e Mairesse (2013) “poderá ser utilizada para apresentar os resultados da pesquisa efetuada e
facilitando o acesso aos objetos que compõem esta coleção”. A exposição não será apenas
parte integrante da pesquisa, mas um elemento de comunicação que possibilite a
potencialização e a socialização deste conhecimento, através da acessibilidade que a internet
proporciona, desta forma projetaremos a Museologia para além dos muros dos museus.
Metodologia
Esta pesquisa lança mão de estratégias metodológicas clássicas da Antropologia para
produção de dados e análises qualitativas. Inicialmente foi realizado um levantamento das
cartas e textos que serão utilizadas na pesquisa, em seguida, a digitalização de cada
documento, um arrolamento em ordem cronológica, com seus destinatários, locais de envio,
assuntos tratados no respectivo documento e observações.
As visitas a campo foram norteadas pela visitação ao acervo do maestro que estão
salvaguardados no SIM - que envolveu identificação, seleção, leitura e registro digital -, para
a produção de dados e narrativas sobre a vida do artista, demandando também a aplicação de
leituras as cartas e textos selecionados através da visitação ao acervo e do DVD Coleção
Waldemar Henrique, foi realizado um arrolamento que norteará todo o projeto de pesquisa.
Para BECKER (2007), “existem as representações substantivas, o senso comum, ou seja,
329
nossa visão de mundo e as imagens que dele fazemos no dia-a-dia precisam ser trabalhadas
cientificamente”.
Dessa forma, a princípio, estima-se como meta tomar para a pesquisa um quantitativo
de sessenta cartas e seis textos, construir um banco de imagens para registro dessas cartas e
textos, tendo como resultado a realização de uma exposição virtual, que proporcionará a
reprodução e a acessibilidade do conhecimento adquirido neste projeto de estudo,
possibilitando novas perspectivas de pesquisas sobre a vida e obra do maestro Waldemar
Henrique.
Resultados da pesquisa
No decorrer da pesquisa descobrimos que o Maestro Waldemar Henrique tinha o
hábito de escrever e guardar cópias de cartas que enviava aos amigos e familiares. Quando
não conseguia fazer uma cópia, solicitava ao destinatário que a guardasse para lhe devolver.
Suas narrativas são ricas em detalhes para que no futuro ao reler suas cartas e textos pudesse
relembrar os bons e maus momentos vividos em seu cotidiano e em suas viagens. “Waldemar
Henrique é lembrado pelo constante ato de narrar, de contar causos, de rememorar histórias,
num modo todo particular de fazê-lo” (DIAS, 2009, p.11)
Também escrevia textos autobiográficos fazendo a cronologia de sua carreira, auto-
entrevistas com jornalistas fictícios nas quais falava o que pensava, narrativas de momentos
vividos por ele e Mára - sua irmã que interpretava suas canções folclóricas que contavam o
imaginário das lendas amazônicas e que foi sua parceira em várias turnês pelo mundo - e a
biografia que escreveu sobre ela como homenagem póstuma.
330
No levantamento realizado neste acervo museológico encontramos um rico material
deixado por um dos maiores compositores brasileiros, que fez parte da fase áurea do
Modernismo Brasileiro, retornou para sua cidade natal na qual tinha o reconhecimento
artístico sendo considerado representante maior do Cancioneiro Amazônico. Morreu aos 90
anos na cidade de Belém.
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Doutorado)
331
Museu, museologia e
educação museal:
práticas, poéticas e
políticas decoloniais
332
A PERSPECTIVA PÓS-COLONIAL E SEUS GANHOS EPISTÊMICOS NO ÂMBITO
DA MUSEOLOGIA SOCIAL
Vania Gondim*
Resumo: No contexto da museologia social, a cada dia que passa, a perspectiva pós-colonial têm
ganhado cada vez mais espaço levando a desconstrução de velhas perspectivas e a emergência de
novas abordagens. Neste sentido o presente texto busca colocar em evidência alguns dos
desdobramentos que em função da utilização da perspectiva pós-colonial levaram ao fortalecimento do
campo da museologia social. Para isto, iniciamos o texto com uma breve digressão histórica acerca do
campo da museologia e da museologia social, para em seguida, adentrarmos nos ganhos
epistemológicos que tal abordagem pode proporcionar aqueles que buscam estudar projetos e
propostas museológicas ligadas as mais diferentes minorias sociais. Resultados preliminares da
pesquisa construídos a partir do argumento aqui desenvolvido, apontam para a existência de ganhos
substanciais para a museologia social, na medida em que – desde a perspectiva pós-colonial – dá-se
cada vez mais voz aos sujeitos socialmente excluídos, e que desde muito, têm sido deixados de fora
pelas instituições tradicionais centrada exclusivamente em seus acervos museais.
Abstract: In the course of time in the social museology context the postcolonial perspective has
progressively spread leading to the deconstruction of the old perspectives and the emergency of a new
approach. In this sense, the present text aims to put in evidence some of the progress which, due to the
application of the postcolonial perspective prompt the strength of the social museology field. Thus,
here we begin with a succinct historic digression about the museology and social museology field,
then we discuss the gains of an epidemiological approach can provide for those who aim develop
studies, projects and museology proposals linked to distinct social minorities. Preliminary results of
this research based on the argument here developed point to a substantial gain for the social
museology because - since the postcolonial perspective - it is increasingly the voice of the social
excluded, those that since long, have been suppressed by traditional institutions focusing exclusively
on their museum collections.
333
Introdução
1
MALINOWSKI, Bronislaw. Argonautas do Pacífico Ocidental. (Introdução). São Paulo: Abril Cultural, 1976
334
qual ela emerge, ou seja, de modo dialético e problematizador ,o que no âmbito da educação
museal, se aproxima bastante da abordagem proposta por Freire (2002, 2014, 2014b, 2015).
Assim, é com este olhar que a museologia social busca pensar a realidade, ou seja, fora
do jugo das instituições e sempre articulada com a perspectiva dos movimentos sociais e das
demandas oriundas de um contexto político que preza pela liberdade de expressão, de modo
que a questão da memória social e dos museus passa a ser abordada a partir de uma
perspectiva crítica e problematizadora dos diferentes contextos socioculturais, dos quais essas
iniciativas emergem e com os quais se propõe a dialogar.
Dito isto, no presente estudo buscaremos a partir de alguns excertos e relatos
etnográficos mostrar como essa perspectiva se faz presente no âmbito da museologia social,
não podendo assim ser desconsiderada. Outrossim e com vistas a se construir um caminho
mais fluído em relação ao texto, optamos por dividir o mesmo em três partes. Uma primeira
onde realizamos uma breve digressão acerca da questão dos museus, sua gênese e mudança ao
longo da história. Uma segunda, desde a perspectiva da museologia social, onde procuro
mostrar o modo como se deu uma inversão no modo de se pensar os museus e os próprios
acervos a partir de um conjunto de políticas públicas implementadas por diferentes países, em
diferentes contextos, que a partir dos anos de 1970 vão ganhando espaço no âmbito das
práticas, políticas e estudos museais. E, uma terceira onde busco – em tom quase conclusivo –
pensar a aplicabilidade e a possiblidade de se utilizar da ideia de uma “epistemologia do sul”
para se pensar e estudar as novas práticas museais como é caso, por exemplo, das políticas
públicas voltadas aos Pontos de Memória.
Sabe-se que desde já na Antiguidade, no ano de 295 a.C. foi fundado o Museu de
Alexandria que como mostram Santos e Chagas (2007, p. 13) no artigo: “A linguagem de
poder dos museus”, este “tinha um caráter religioso e era dedicado às musas” representando,
assim, “uma resposta à hegemonia anteriormente mantida por Atenas no campo das artes e da
335
cultura” de modo que, desde a perspectiva dos autores supra-referidos esse museu estava
calcado “claramente ao conhecimento e ao poder” de um sobre o outro.
Hoje, conhecemos museus que embora associados às grandes mudanças econômicas,
sociais e políticas do século XVIII, remetem a uma intrínseca relação com o fortalecimento
dos estados nacionais no mundo ocidental, tais como o Museu Britânico, aberto em 1753,
sendo o primeiro museu público, que retratou as coleções representando mudanças inerentes
da Revolução Industrial, da urbanização e crescimento do sistema educacional. Já na França,
como mostra Poulot (2013, p. 83), o Museu teve suas origens na Revolução Francesa visto
que sua construção – e a montagem dos acervos museais – baseou-se, sobretudo “no confisco
dos bens do clero e, em seguida, dos nobres que haviam emigrado durante a Revolução, assim
como nas antigas coleções régias e nas conquistas militares”. Mas, assim como os museus
britânicos, os museus franceses também traziam consigo – e também davam ênfase – a
história de alguns grupos, omitindo e/ou silenciando outros, que em sua maioria
correspondiam a maior parte da população que naquela parte da história ficava excluída.
No Brasil, essa questão não foi muito diferente, de modo que, aqui como em outras
colônias americanas que ficaram independentes de suas metrópoles europeias no século XIX,
os museus representaram uma clara tentativa por parte dos estados emergentes de legitimar
esses novos estados nacionais, como é o caso por exemplo, do Museu Real (Nacional),
apontado por (Chagas, 2015, p.43 apud Schwarcz, 1989, p. 25) que “gradualmente, durante o
século XIX, [...] apresentou-se como um museu comemorativo da nação emergente e adotou
uma prática [...] isolada, no sentido de dialogar exclusivamente com os centros europeus e
americanos”.
Nesse sentido, (Santos e Chagas 2007, p. 14) afirmam que a vinculação da história
dos museus modernos está ligada “ à constituição dos estados nacionais, à democracia, ao
capitalismo, à industrialização, ao individualismo e à ordenação crescente do tempo e do
espaço” de modo que, “à medida que as instituições religiosas deixaram de ser as principais
formuladoras da ordem natural e humana, outras instituições ganharam poder e passaram a
exercer a função de explicar a razão do mundo”, dentre elas, os museus.
336
Assim, o que se percebe por muitos anos nos museus brasileiros é que, estes quase
sempre buscaram a partir de seus acervos museais, apresentar uma memória que estava
calcada na supremacia de uma elite branca dominante, ou dito de outra forma, na história
daqueles que colonizaram e, não daqueles que estavam aqui antes de sua chegada – os
colonizados. Portanto, tem-se então que grande parte do discurso museal institucionalizado –
e, portanto, aquele que organiza as coleções – sempre esteve preso a linguagem e a memória
do colonizador de modo que, os nativos alcunhados como índios tiveram seus rituais, suas
vestimentas, seus hábitos sempre expostos como algo exótico que fazia parte desses acervos e
que – integrados a identidade nacional a partir da ideia de uma democracia racial (DaMatta,
1981) – compunha junto com outros elementos ligados a escravidão e as populações negras, a
cultura no Brasil.
Aconteceu inclusive um caso curioso de um antropólogo alemão alcunhado pelos
indígenas de Nimuendajú, que segundo (Abreu, 2005, p. 108), em seu artigo: “Museus
Etnográficos e práticas de colecionamento: Antropofagia dos sentidos”, “coletava para
museus europeus e brasileiros, especialmente para museus na Suécia, como o Museu de
Gotemburgo e para o Museu Nacional e o Museu Goeldi” sendo inclusive sua subsistência
com a venda dos objetos aos museus, situação que vem a se modificar a partir de 1933,
quando criou-se no Brasil, “o Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e
Científicas que atuou até 1968, inspecionando, controlando e fiscalizando todas as expedições
feitas no Brasil por estrangeiros ou por iniciativa de particulares”.
No artigo, “Colecionando museus como ruínas: percursos e experiências de memória
no contexto de ações patrimoniais”, Regina Abreu (2012, p. 83) relata que na pesquisa para
mapear os museus do Estado do Rio de Janeiro foi encontrado entre outros,
337
que essas experiências estão trazendo formas de empoderamento social e de
uma nova apropriação dos sentidos do espaço, transformando territórios lisos
em paisagens rugosas, iluminando o que antes era opaco e invisível. São
museus recém-criados em regiões de baixo Índice de Desenvolvimento
Humano (IDH), regiões periféricas e estigmatizadas de espaços urbanos
Dito isto, e após essa breve digressão passemos ao modo como esse movimento foi
ressignificando a ideia de museu, e dando contornos a partir de uma série de encontros
promovidos pela UNESCO, pelo ICOM e pelo ICOMOS aquilo que, hoje, denominamos de
museologia social.
Em 1945, a Organização das Nações Unidas (ONU) cria a Organização das Nações
Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), cujo objetivo é através da cultura,
ciência e educação certificar o respeito à justiça, às leis, aos direitos do homem e às liberdades
fundamentais para, desta forma garantir a manutenção da paz e da segurança mundial, uma
vez que pelo entendimento mútuo dos povos, à época, era necessário para que se reduzisse as
tensões e incompreensões existentes, se reconhecesse a diversidade e a pluralidade existentes
em diferentes contextos e lugares.
Em novembro de 1946 é, então, criado o Conselho Internacional de Museus (ICOM),
que é uma Organização não Governamental de museus. Seus profissionais têm como objetivo
a promoção dos interesses da Museologia e de outras disciplinas relacionadas às atividades
dos museus. É também foco de atenção do ICOM, a relação museu-sociedade como mostrado
por Soto (2014, p. 63) que deixa claro que também “é seu papel trabalhar para o melhor
conhecimento do lugar que os museus ocupam na sociedade, percebendo a sua função e,
como as instituições, cada uma em seu modo particular, podem colaborar para o
desenvolvimento social”. E ainda, “o ICOM propõe que o museu deve aproveitar todas as
338
oportunidades para desenvolver o seu papel de recurso educativo a ser usado por todos os
setores da população ou por grupos especializados, aos quais ele tem por objetivo servir”.
Em maio de 1964 foi criado o Conselho Internacional de Monumentos e Sítios
(ICOMOS), uma organização não governamental internacional “que atua na promoção da
conservação, proteção, reabilitação e melhoria de monumentos, grupos de edifícios e sítios,
tanto no âmbito nacional quanto internacional”. Assim, “tanto o ICOMOS quanto o ICOM
exercem um papel de grande importância junto à UNESCO em diversas áreas, principalmente
no que se refere à elaboração das listagens do Patrimônio Cultural Mundial (material e
imaterial, tangível e intangível” (Soto, 2014, pp. 63-64).
Anterior a essas organizações, tem-se que as décadas de 1920/1930 foram marcadas
como mostrado por Soto (2014, p. 65) “pela necessidade de se constituir uma identidade
nacional” que “por meio do patrimônio como herança coletiva da nação” buscava, através do
“reconhecimento da importância, do valor, da educação pública e universal” difundir, de
forma mais generalizada que as coleções existentes nos museus “deveriam ser acessíveis à
todos, e caberia às elites dinamizar as questões político-culturais, o que incluía a esfera
museológica”.
Dito isto, e agora retornado ao nosso tempo, temos que na contemporaneidade, em
todos os continentes, as instituições museológicas, tanto públicas como privadas, apresentam
“as conquistas e os valores da humanidade e os dramas e atrocidades vivenciados pelas mais
diferentes sociedades e culturas” de modo que, o que se percebe em todos esses contextos é
que são “as evidências materiais da cultura persistem no centro das atenções e atraem
diferentes estudos, que têm estruturado e consolidado distintos campos de conhecimento”,
como nos aponta Bruno (2009, p. 21).
Segundo Postman,2 1989 citado por Bruno (2009, p. 11) “os avanços não cessam de
surgir, mas ao mesmo tempo, as instituições museológicas não abandonam o compromisso de
2
Postman, N. (1989). Museus e Geradores de cultura: palestra. In: Conference Générale et Assemblée Générale
du Conseil International des Musées. [Tradução de texto impresso]. Haia: ICOM.
339
procurar responder à antiga questão: o que é a condição humana”. Essa é a principal razão da
“busca incessante de respostas a essa pergunta tem levado os profissionais de museus a
estabelecerem novos paradigmas em suas ações e reflexões. Nesse contexto e muito
influenciado pelo já clássico MINOM - Movimento pela Nova Museologia”, é que surge a
Sociomuseologia como:
340
sociedade. Com isso, assevera Santos (2002, p. 96), “o conceito de patrimônio é revisto e
ampliado”.
Essa ampliação da noção de patrimônio segundo Rivard3 (1984 p. 3) citado por
Santos (2002, p. 96) “terá como consequência direta uma revisão dos poderes que assumem a
gestão e a valorização dos monumentos, sítios, museus e de todo lugar considerado
patrimônio público”. Como desdobramento do movimento de contracultura, a década de 1970
é marcada “pelos golpes e pelas revoluções, resultado dos investimentos dos países
imperialistas, que procuram reagir à onda de contestação e às lutas revolucionárias da década
de 60”, tendo como consequência “a implantação das ditaduras militares na América Latina, a
ampliação da intervenção na Indochina, o reforço aos governos colonialistas e de apartheid na
África e a sustentação da política israelense no Oriente Médio” (Santos, 2002, p. 96-97).
Assim, para atingir uma consciência social crítica é utilizado a proposta de educação
popular de Paulo Freire, através da investigação participativa, como forma de oferecer uma
nova explicação da realidade (Santos, 2002). Nesse sentido, o papel social dos museus e o seu
papel pedagógico na sua relação com o público foram discutidos no seminário regional da
UNESCO realizado no Rio de Janeiro em 1958, que teve como objetivo a discussão da função
educativa nos museus, que segundo Judite Primo (1999, p. 10) teve como ponto de partida
discutir “a importância da formação [de] profissionais para a área da museologia”. Assim em
1971, é realizada em Paris e Grenoble, a IX Conferência Geral do ICOM, com o propósito de
discutir o tema: “O Museu a Serviço do Homem, Atualidade e Futuro - o Papel Educativo e
Cultural”. Nesse evento,
3
Rivard, R. (1984). Que Le Musée S” Ouvre – ou une nouvelle muséologie: les écomusées et les musées
ouverts. .(mimeo. p.2). Québec.
341
utilizando as técnicas museológicas para solucionar problemas sociais e
urbanos. (SANTOS, 2002, p. 99)
4
Berrueta, J. T. (1996). Desarrolo Sostenible, Herencia Cultural y Educación de Adultos en América Latina y el
Caribe. (Trabalho apresentado no 7 S Tailler internacional sobre Nueva Museologia) Pátacuaro, Mich. (p.3.
Mimeografado). México.
342
documento de 1984 é a Declaração de Oaxtepec, no México, que “integra então a relação de
território, patrimônio e comunidade, marcando definitivamente a importância da comunidade,
para estabelecer a parceria efetiva entre museu e sociedade” (2014, p 74). Em síntese, tem-se
que a história da Nova Museologia (MINOM) segundo Soto (2014, p. 68)
343
denominada museologia social ou sócio-museologia”. Nesse sentido, os referidos museólogos
sustentam (2014, p. 17)
Desta feita, para uma maior compreensão dos avanços das questões sociais
contemporâneas na museologia, utilizo as reflexões da professora Maria Célia Santos (2014)
em seu artigo “Um compromisso social com a museologia”, quando ressalta as contribuições
no campo científico-filosófico para a busca do novo fazer científico que “reconhece a ideia de
“multiverso cultural” com a contribuição da antropologia e do materialismo histórico’, como
registrado por Pessanha5 (1987, p. 64 citado por Santos, 2014) .
Em 2007, foi realizado o I Encontro Ibero-americano de Museus, na Cidade do
Salvador - Bahia, após 35 anos da Mesa Redonda de Santiago do Chile, com seus “aportes
teóricos e práticos das denominadas museologia popular, museologia social, ecomuseologia,
nova museologia e museologia crítica” que ressalta “a compreensão de que a museologia e os
museus ibero-americanos estão em movimento e de que a renovação do campo museal tem
propiciado uma maior aproximação dos movimentos sociais (Ibermuseus, 2007, p. 7). Neste
5
Pessanha, J. A. (1987). Cultura como ruptura. In: Bornheim, G. Et ali. Cultura brasileira: tradição contradição.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, Funarte.
344
encontro foi firmado um compromisso: “Recomendações da cidade de Salvador”: 1. A
destinação de recursos suficientes para seu adequado funcionamento, desenvolvimento e
cumprimento da missão dos museus; 2. Que fosse implementado políticas públicas de
museus, que contemplassem a comunicação, a educação, a preservação e a investigação
científica do patrimônio cultural e natural; e ainda, 3. Que os governos nacionais dos países da
Ibero-américa estabeleçam políticas de promoção para o turismo cultural e sua relação com os
museus, a partir de uma perspectiva de respeito e conservação ao patrimônio cultural e
natural. (Ibermuseus, 2007, p. 17)
A “Recomendação sobre a proteção e a promoção dos museus e coleções, de sua
diversidade e de sua função na sociedade”, foi uma iniciativa conjunta do IBRAM com apoio
decisivo do Programa Ibermuseus, que constou na pautado V Encontro Iberoamericano de
Museus, realizado em junho de 2011, na Cidade do México, e também na XIV Conferência
Iberoamericana de Cultura, realizada em Assunção, no Paraguai, em agosto de 2011. Desses
encontros foi sugerido que fosse incentivado a UNESCO a “criação de um instrumento
normativo de proteção ao patrimônio museológico”, sendo analisado por dois anos
subsequentes, no Conselho Executivo da UNESCO, obtendo aprovação em novembro de
2015. Essa Recomendação referenda a atuação dos museus “em todos os continentes, que se
reconhecem como atores do desenvolvimento, da inclusão social, da igualdade de gênero, do
respeito pelas diversidades, assumindo plenamente princípios e valores já inscritos na
Declaração de Santiago do Chile. Nesse sentido, afirma Moutinho no Editorial da Revista
Sociomuseologia “neste importante documento é bem explicito que a função social dos
Museus é, ou deverá ser, a razão profunda da sua existência (2017).
Assim, os diversos documentos produzidos, configuraram o que Chagas (2009, p. 49)
diz ser um “novo conjunto de forças capazes de dilatar ao mesmo tempo o bastião museal e a
cidadela patrimonial”, com a proliferação de uma infinidade de fazeres museológicos.
345
O que pode ser observado a partir dos dois pontos anteriores é que até os anos de 1970
o pensamento dominante na conduta do patrimônio, museus, identidade, memória e educação
patrimonial esteve sempre empenhado na ideia de perpetuar valores dominantes e
pertencentes as elites tanto no que diz respeito ao conhecimento, ao racismo e ao sexismo e
que tinham como bandeira a construção de uma identidade de estado-nação, a qual, buscava
silenciar a grande maioria dos excluídos, como dantes o fizera no Brasil, a construção do mito
da democracia racial.
Na esteira dessa inversão proposta pela nova museologia, é ilustrativo nessa
perspectiva que busca repensar as práticas, as políticas e os estudos museais desde uma
perspectiva pós-colonial, o relato de Abreu (2005, p. 113-114), onde, lê-se que:
Onde:
346
De modo que, “a ideia de criação de um museu surgia como uma estratégia de
organização da memória e revigoração da identidade étnica”. Neste sentido, refletindo sobre
isso, Abreu (2005, p. 116-118) pontua que: 1) Os ticuna “talvez pela primeira vez na história
do Brasil realizavam uma experiência museológica na primeira pessoa”; 2) o Museu objetivou
“preservar a arte e a língua ticuna, assim como o mito e a história”; 3) percebe-se nitidamente
que ocorreu uma “necessidades de construção e de afirmação de uma identidade étnica”; 4)
recuperação da “cultura que foi sendo modificada e principalmente, espoliada por
madeireiros, latifundiários, políticos” uma vez que, o Museu se inscrevia numa ação de
resistência ou até mesmo de reexistência”; 5) “o Museu ticuna voltava-se para o presente e
não para as lembranças do passado”; e, ainda, que diferentemente dos museus etnográficos,
tinha-se que 6) “a proposta do Museu Magüta emergia como proposta ativa de vida e
construção de autoestima para um grupo indígena que acreditava poder construir um futuro
enquanto grupo com identidade própria e peculiar”.
E, sendo assim, é fato que, nos últimos anos, assistimos ao surgimento de novos
museus que se coadunam a essa nova perspectiva sobre a qual se pauta a museologia social. O
que é perceptível nessas iniciativas, é uma ênfase de afirmação da identidade, da memória, do
patrimônio e da territorialidade dos grupos envolvidos no processo que, institucionalizados ou
não em movimentos sociais de lutas por direitos e políticas, constroem, reconstroem e
institucionalizam suas memórias, reafirmando sua própria história e identidade.
É, portanto, com base nos preceitos da museologia social que a partir do começo desde
século, diversos museus comunitários e ecomuseus, tais como o Museu Indígena Kanindé
(CE), Museu Vivo de São Bento (RJ), Museu Comunitário da Cultura Popular Tambores e
Maracás (MA), Ecomuseu Nega Vilma (RJ), entre outros foram criados. E, políticas
específicas ligadas a nova museologia foram institucionalizadas com a criação do Programa
Pontos de Memória conduzidos pelo Instituto Brasileiro de Museus (Ibram/MinC).
347
Considerações finais
348
Referências bibliográficas
DAMATTA, Roberto. O oficio de etnólogo ou como ter anthropological blues. In: NUNES,
E. de O. A aventura sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
FREIRE, Paulo. Educação como prática da Liberdade. 26ª Edição. Rio de Janeiro: Paz e
Terra. 2002.
349
Pedagogia da Tolerância. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 2014.
GEERTZ, Clifford. Obras e Vidas - Antropólogo como autor. Rio de Janeiro: UFRJ, 2009.
PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. O que é contracultura. Coleção Primeiros Passos. São
Paulo: Editora Brasiliense: 1984.
SANTOS, Maria Célia Teixeira. Reflexões sobre a Nova Museologia, In: Cadernos de
sociomuseologia n. 18. 2002 Acedido em 13 de novembro de 2015. Em
http://revistas.ulusofona.pt/index.php/cadernosociomuseologia/article/view/363/272
Reflexões sobre a Nova Museologia, In: Cadernos de sociomuseologia n. 18. (p. 83-
139). 2002. Acedido em 13 de novembro de 2015. Em
http://revistas.ulusofona.pt/index.php/cadernosociomuseologia/article/view/363/272
350
VARINE, Hugues de. As raízes do futuro: patrimônio a serviço do desenvolvimento local.
Trad. Maria de Lourdes Parreiras Horta. Porto Alegre: Medianiz, 2012.
351
A RUPTURA DAS CIÊNCIAS NA AMAZÔNIA: O MUSEU GOELDI DE
PORTAS ABERTAS NO DÍÁLOGO COM A COMUNIDADE
Resumo: Este texto tem por objetivo apresentar a experiência de uma prática museológica em um
museu de ciências naturais na Amazônia, o Museu Paraense Emílio Goeldi – MPEG, unidade de
pesquisa integrante da estrutura do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações –
MCTIC. Trata-se do Programa Museu Goeldi de Portas Abertas, uma atividade anual organizada no
âmbito do Serviço de Educação - SEEDU e envolvimento da Coordenação de Pesquisa e Pós-
Graduação – COPPG. Envolve os sujeitos da educação, pesquisa científica e comunidade. Seu
objetivo principal é incentivar os atores sociais ligados a Ciência e Tecnologia o diálogo com a
comunidade e a instigação desta, as atividades e práticas científicas. O Programa Museu Goeldi de
Portas Abertas é objeto de estudo de Tese de Doutorado em Educação no Programa de Pós-Graduação
– PPGED - Instituto de Ciências da Educação - ICED da Universidade Federal do Pará - UFPa, na
linha de Pesquisa Educação, Cultura e Sociedade e Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Teorias,
Epistemologias e Métodos da Educação - EPSTEM. Observou-se a busca de colocar a ciência no
campo da participação popular e sob o crivo do diálogo com os movimentos sociais.
Palavras-chave: Museu de Ciências Naturais; Museu Goeldi de Portas Abertas; Pesquisa Científica
Abstract
This text aims to present the experience of a museological practice in a museum of natural
sciences in the Amazon, the Museu Paraense Emílio Goeldi - MPEG, a research unit that is
part of the structure of the Ministry of Science, Technology, Innovation and Communications
- MCTIC. This is the Goeldi Museum Open Doors Program, an annual activity organized by
the Education Service - SEEDU and the Involvement of the Coordination of Research and
Graduate Studies - COPPG. It involves the subjects of education, scientific research and
community. Its main objective is to encourage the social actors connected to Science and
Technology the dialogue with the community and the instigation of this, the activities and
scientific practices. The Goeldi Museum of Open Doors Program is an object of study of the
Doctoral Thesis on Education in the Postgraduate Program - PPGED - Institute of Educational
Sciences - ICED of the Federal University of Pará - UFPa, in the line of Education, Culture
and Society Research and Group of Studies and Research on Theories, Epistemologies and
Methods of Education - EPSTEM. It was observed the search of placing science in the field of
popular participation and under the sieve of dialogue with social movements.
352
Introdução
Este artigo tem como objetivo dar visibilidade a uma ação da responsabilidade do
Serviço de Educação - SEEDU do Museu Paraense Emílio Goeldi - MPEG, denominado de
Museu Goeldi de Portas Abertas. É um Programa que faz parte do calendário da Semana
Nacional de Ciência e Tecnologia, desde outubro de 2004, mas que surgiu na década de 80,
como a interação do Museu Goeldi e a sociedade, uma vez que na mesma década foi
construído o Campus de Pesquisa da instituição em um bairro periférico da cidade de Belém,
denominado Terra Firme.
O Museu Paraense Emílio Goeldi é um museu vinculado ao Ministério da Ciência,
Tecnologia, Inovações e Comunicações – MCTIC. De acordo com o Art. 2º do Regimento
Interno do Museu Paraense Emílio Goeldi: O MPEG é Instituição Científica e Tecnológica -
ICT, nos termos da Lei nº 10.973, de 2 de dezembro de 2004, regulamentada pelo Decreto nº
5.563, de 11 de outubro de 2005 (2016). Tem como finalidade gerar e comunicar
conhecimentos sobre os sistemas naturais e processos socioculturais relacionados à Amazônia,
por meio das Coordenações de Ciências da Terra e Ecologia – COCTE; Coordenação de
Botânica – COBOT; Coordenação de Zoologia - COZOOVI e Coordenação de Ciências
Humanas - COCHS (Antropologia, Arqueologia e Linguística Indígena).
Durante sua trajetória, vem divulgando conhecimentos pelo setor de comunicação e
popularizando com o Serviço de Educação - SEEDU, tendo modelos os projetos: O Jardim
Botânico vai à escola6 e O Museu Goeldi leva Educação em Ciência à Comunidade. Assim por
meio do Serviço de Educação; Coordenação de Pesquisa e Pós-Graduação - COPPG e
Coordenação de Comunicação e Extensão – COCEX, acontece o Museu Goeldi de Portas
Abertas, que ocorre a mais de 30 anos, de forma anual e que segue em consonância com tema
eixo da Semana Nacional de Ciência e Tecnologia do Governo Federal, e coordenado pelo seu
Departamento de Popularização e Difusão de Ciência e Tecnologia da Secretaria de Ciência e
6
Este projeto foi elaborado pela Comissão de Educação Ambiental- CEA da Rede Brasileira de Jardins
Botânicos.
353
Tecnologia para a Inclusão Social (DEPDI). Criado por Decreto Presidencial em 2004 ocorre
desde então, sempre no mês de outubro, em centenas de municípios brasileiros, contando com a
participação ativa de governos estaduais e municipais, de instituições de ensino e pesquisa e de
entidades ligadas à Ciência e Tecnologia. O Portas Abertas concentra suas atividades na
popularização do estudo científico, tendo como público: escolas (públicas e privadas),
acadêmicos e comunidades.
De acordo com Oliveira (2005, p. 12), os conhecimentos científicos são divulgados
em círculos limitados e estão remotos da vida diária das pessoas. Para Moreira (2006, p. 13), o
que carece para uma extensa parcela da população brasileira é o acesso à educação científica de
qualidade. Hilgartner (1990) aponta ainda outra dificuldade, a questão da autenticidade da
fonte: o conhecimento científico é divulgado em muitas fontes e em vários níveis de
complexidade. Santos (2007, p. 478), em concordância com as ideias do pesquisador anterior,
abaliza críticas sobre a forma fragmentada e descontextualizada da educação científica nos
diversos níveis de educação. Mueller (2002) preconiza que as pessoas comuns, em geral, não
têm experiência própria em pesquisa nem educação adequada em ciência, e dependem
absolutamente de intermediários tanto para tomar conhecimento de novos fatos científicos
quanto para avaliar possíveis implicações desses fatos em sua vida.
O Portas Abertas possui diversos atores envolvidos no processo de Popularização da
Ciência - PC, aumentando as possibilidades de diálogo, além do encontro de gerações
abrangidas. O processo de popularizar a ciência abre e amplia o espaço para questionamentos e,
portanto, para debates, sobre os atores, as instituições e as formas de autoridade envolvidas na
produção de conhecimento (MOTTA-ROTH, 2010, p. 156).
De acordo com Motta-Roth (apud GERHARDT, 2011 7), o processo de PC tem assim
três eixos centrais que o justificam: a) O dever dos meios de comunicação (mais e menos
acadêmicos) de informar a sociedade sobre o avanço do conhecimento; b) A responsabilidade do
7
Tese de Doutorado sob orientação de Motta-Roth: Didatização do discurso da ciência na mídia eletrônica.
354
mediador (seja jornalista ou autor de livros)8 em explicar princípios e conceitos para que a
sociedade avance na transformação conjunta do conhecimento; c) E a necessidade da sociedade
entender a relevância da pesquisa para que continue financiando a empreitada científica.
Gerhardt (apud GERMANO; KULESCA, 2007, p. 20) considera que o acesso ao
conhecimento científico deve ser uma ação cultural que, referenciada na dimensão reflexiva da
comunicação e no diálogo entre diferentes, pauta suas ações respeitando a vida cotidiana e no
universo simbólico do outro.
Muitos pensam que Portas Abertas é o público não pagar o ingresso no Parque
Zoobotânico do Museu Paraense Emílio Goeldi, mas é importante explicar que esse tema é
imprescindível para o objetivo desta prática museológica, que acontece no Goeldi desde o ano
de 1985, como uma aproximação com a comunidade do entorno e os pesquisadores das áreas
científicas do Goeldi. Este entorno, trata-se dos moradores do bairro da Terra Firme, em Belém
do Pará. É um alerta para que o Museu Goeldi não feche as suas portas para a sociedade.
Tem como principal objetivo disseminar a informação científica que é produzida pelo
Museu Goeldi para diferentes públicos que visitam e participam das atividades na instituição.
As informações científicas são dinamizadas a partir de uma ação integrada que envolve vários
profissionais do MPEG que por intermédio de palestras, exposições temáticas, kits entre
outros recursos procuram popularizar a ciência como bem cultural da humanidade. O Projeto
faz parte da Coordenação de Museologia, que é uma das principais bases da comunicação
científica do MPEG e responsável pelas ações de educação patrimonial na instituição.
É uma oportunidade única de envolvimento entre pesquisadores, técnicos,
terceirizados, bolsistas, estagiários e voluntários com a comunidade, desde alunos do ensino
médio até centros comunitários e outros públicos.
8
No Museu Goeldi de Portas Abertas se faz por intermédio de: pesquisadores, pós-graduandos, tecnologistas,
bolsistas CNPQ e funcionários do MPEG em geral.
355
A dinâmica do Programa Museu Goeldi de Portas Abertas tem sua preparação no início
do ano quando é realizado um seminário para apresentar os resultados ocorridos no ano
anterior, contando com diversos participantes, que revelam as experiências, erros e acertos
durante o evento, e assim planejar de modo eficaz o próximo a ser realizado no ano vigente. O
planejamento ocorre desde a divulgação nas escolas até a mobilização com os pesquisadores,
tecnologistas e técnicos da instituição. Em seguida são organizadas as articulações de espaços
a serem visitados, que geralmente ocorrem em dois dos espaços físicos da Instituição, O Parque
Zoobotânico e o Campus de Pesquisa do Museu Goeldi.
Os pesquisadores deslocam-se do Campus de Pesquisa para o Parque Zoobotânico,
trazendo materiais que entendem serem mais práticos para o entendimento dos alunos e
frequentadores do evento, dentro de sua área de atuação.
No Campus de Pesquisa não se faz necessário o deslocamento de materiais, pois os
pesquisadores enunciam suas apresentações e diálogos com o público nos laboratórios
associados às coleções científicas.
As Coordenações de Pesquisa se organizam geralmente da seguinte maneira:
A Coordenação de Ciências Humanas - COCHS (Antropologia, Arqueologia e
Linguística Indígena), na área de Antropologia é divulgado o trabalho de campo dos
pesquisadores nas comunidades agro pesqueiras do litoral do Pará, por meio de fotografias;
Divulga a língua geral falada no Brasil; divulgar estudos antropológicos sobre a saúde de
populações indígenas; demonstrar os usos do fruto açaí e dos demais elementos da palmeira do
açaizeiro no cotidiano de comunidades ribeirinhas da região amazônica; promover diálogos entre
o setor de Etnografia do Museu Goeldi e Estudantes do ensino básico do Município de Belém
para discutir ideias sobre o patrimônio, memória, sociedade, museus e história; e divulgar o
trabalho que vem realizando entre os KA’APOR.
Na Arqueologia divulgam-se as pesquisas arqueológicas do MPEG; demonstrando as
várias maneiras em que cultura e identidade são materializados no meio físico, seja na forma de
objetos portáteis ou de estruturas (semi) permanentes. Na Linguística, divulgam os trabalhos que
356
realizam sobre as línguas indígenas; divulgam a prática de estudar uma língua indígena no
campo.
Na Coordenação de Ciências da Terra e Ecologia – COCTE, são divulgadas as
atividades realizadas pelos alunos PIBIC; apresentam o patrimônio paleontológico da Amazônia;
expõem os resultados de pesquisas do COCTE através de Painéis.
Na Coordenação de Zoologia - COZOOVI apresentação de Coleção Didática de
invertebrados e demonstração do processo de coleta e conservação de insetos, quais são as
principais espécies de invertebrados (principalmente insetos e aracnídeos) da Amazônia, quais
são as espécies “perigosas” e quais transmitem doenças. Mostram também as principais
diferenças entre as ordens de insetos e aracnídeos. Além disso, demonstram como os
espécimes são coletados, preparados e conservados na Coleção. Na COZOOVI informam aos
visitantes dados sobre a importância e utilidade das formigas; da pesquisa em Mastozoologia:
do campo à Coleção científica; o GEMAM - Grupo de Estudos de Mamíferos Aquáticos da
Amazônia mostram a preparação do material de mamíferos aquáticos, catalogação e depósito
na Coleção de Mamíferos. Buscando explorar desde da taxonomia de alguns vegetais
conhecidos na Amazônia até os sentidos humanos a etnobotânica traz ao público uma
aproximação dos saberes científicos possibilitando interligar Ciência e Cotidiano.
A Coordenação de Botânica - COBOT se organiza apresentando aos visitantes alguns
exemplos de plantas aromáticas, realizando uma dinâmica (“advinha que planta é essa?”), na
qual os participantes serão convidados a reconhecer as plantas por meio do olfato; Mostrar
aos visitantes como ocorre a destilação dos óleos essenciais, descrevendo e apresentando as
vidrarias e metodologias utilizadas.
Já a Coordenação de Comunicação e Extensão - COCEX é o setor diretamente
responsável pela popularização da Ciência dentro do Programa Museu Goeldi de Portas
Abertas, uma vez que compete coordenar as atividades de Comunicação Social, de
Museologia, de Informação e Documentação, de Editoração de livros, Ouvidoria e Serviço de
Informação ao Cidadão - SIC, além das desenvolvidas no Parque Zoobotânico.
357
E a COCEX por meio de suas coordenações participa no Portas Abertas da seguinte
maneira:
Na Biblioteca Domingos Soares Ferreira Penna a equipe organiza a Trilha dos livros
em uma Biblioteca, assim, permitir com que o visitante tenha compreensão de uma coleção e
uso de documentos bibliográficos com demonstração de uma trilha do livro dentro dessa
Biblioteca. Organizam também a Mostra da “Coleção Fotográfica MPEG”, Mostra de
Documentos do Arquivo “Guilherme de La Penha”, apresentando o acervo do Arquivo
“Guilherme de La Penha” para o público em geral, propiciando conhecimentos sobre a
História do Museu Goeldi e as práticas documentais arquivísticas realizadas no setor.
Há um envolvimento total de todas as áreas nesta ação museológica, abrindo
literalmente as portas da pesquisa científica do Museu Goeldi.
358
Figura 1 - Réplica de Fóssil da Coleção Didática Emília Snethlage, Parque Zoobotânico,
Foto: Eryck Jhonathan, 2014
359
Figura 3 - Coleção Didática Zoologia- Herpetologia, Foto: Eryck Jhonathan, 2014.
Figura 4 - Ciências Humanas Arqueologia, manipulação de como conserva artefatos arqueológicos, Foto: Eryck
Jhonathan, 2014.
360
Figura 5 - Zoologia- Herpetologia, exposição ao ar livre no Campus de Pesquisa, Foto: Eryck Jhonathan, 2014
6.3
6.4
6.5
6.6
6.7
6.8
361
Figura 7 - Recepção aos alunos no auditório do campus de pesquisa, Foto: Eryck Jhonathan, 2014.
362
- Formar recursos humanos no âmbito de suas finalidades;
- Desenvolver e disponibilizar serviços decorrentes de suas pesquisas, contratos,
convênios, acordos e ajustes, resguardados os direitos relativos à propriedade intelectual;
- Promover, patrocinar e realizar cursos, conferências, seminários e outros conclaves de
caráter técnico-científico;
- Formar, manter e custodiar acervos científicos e documentais; e
- Fornecer subsídios para a formulação de políticas públicas para o desenvolvimento de
projetos estratégicos para a Amazônia.
E ao Serviço de Educação – SEEDU aonde o Programa está formalizado, no Art. 29.
Compete planejar e executar programas educativos e de inclusão social, de acordo com as
especificidades dos diversos públicos do Museu Goeldi visando o desenvolvimento
sociocultural e o exercício da cidadania das populações amazônicas, bem como gerenciar as
atividades do Núcleo de Visitas Orientadas, de acordo com Diário Oficial (2016, p.03) cujas
atribuições são:
- Participar na concepção e execução das ações educativas e de divulgação do
conhecimento científico, de acordo com a política institucional;
- Promover cursos, oficinas, palestras e treinamentos para professores, estudantes de
nível superior, profissionais especializados, monitores e estagiários, terceira idade;
- Manter e dinamizar a Coleção Didática Emília Snethlagee a Biblioteca de Ciências
Clara Maria Galvão;
- Produzir e dinamizar material educativo nas diversas áreas do conhecimento da
instituição;
- Manter e dinamizar a Coleção Didática Emília Snethlagee a Biblioteca de Ciências
Clara Maria Galvão;
- Promover a iniciação científica de estudantes do ensino fundamental por meio do
Clube do Pesquisador Mirim;
363
- Realizar práticas educativas que estimulem a organização social de comunidades
amazônicas para a melhoria de suas condições de vida e reconhecimento de sua identidade e
seu patrimônio cultural;
- Promover a formação de recursos humanos para a pesquisa na Educação (em ciência,
museal, ambiental e patrimonial), por meio de bolsas de iniciação científica;
- Atender o público escolar por meio de programas educativos planejados pelo Núcleo
de Visitas Orientadas/NUVOP;
- Promover a prática de atividades terapêuticas e da qualidade de vida da terceira idade;
- Divulgar os processos educativos gerados no setor, por meio de publicações e eventos
técnicos científicos;
- Participar em fóruns, redes e projetos institucionais e interinstitucionais, visando o
fortalecimento de políticas públicas;
- Realizar práticas educativas de caráter lúdico e cultural voltadas para o público em
geral do PZB; e
- Exercer outras competências que lhe forem cometidas no seu campo de atuação.
364
de forma aleatória, a entrevista foi áudio gravada e de forma posterior transcrita, os
participantes autorizaram a divulgação e publicação dos dados. Segue os depoimentos:
365
pertencimento dos objetos expostos, no sentido de a ciência pertence a todos e não a um
grupo minoritário de seu entendimento.
O Museu Goeldi de Portas Abertas trabalha a
criatividade, que está associada com diferentes
práticas que são exemplificadas, ilustradas e
demonstradas, no momento que se concebe uma
exposição ao ar livre. O museu tem o diferencial de
passar o conhecimento para a comunidade, mas não
somente passar, fazer uma troca. Em um evento
como este lidamos com diferentes níveis de
compreensão, escolaridade e etnias indígenas que
também estão aqui repassando conhecimento. O
Museu Goeldi de Portas Abertas não é uma formula
de exposição é um exercício de criatividade e
cidadania, eu vejo tanto o interesse do pesquisador
pelo público, mas também o protagonismo dos
mediadores infanto-juvenis, incentivando a vocação
científica, moral e ética. (Entrevista D com membro
da comissão organizadora, Serviço de Educação).
Considerações
366
A “conscientização” envolve o coletivo, movimentando, ampliando o
conhecimento e suas relações de mundo, conhecendo-o para transforma-lo e ao
transforma-lo, conhece-lo (Loureiro, 2014). O Museu Goeldi de Portas Abertas mostra-se
eficiente, de fácil articulação e execução, envolvendo diversos atores chaves para o
sucesso da PC na Amazônia. O feedback das atividades traz a tona o impacto do evento
nos jovens e pessoas envolvidas. A “abertura de portas” dos centros e museus de ciências
é mais que a divulgação de suas atividades mais um compromisso com o
desenvolvimento social com e para/com a comunidade. Tendo assim uma ruptura de
pensamento, dentro do próprio significado da palavra, da ideia de interrupção de
continuidade, divisão e corte, do colonialismo ainda muito presente nas práticas e
extensões museais.
E, na Amazônia Brasileira, mais especificamente na Região Norte existem outros
museus atuantes com a educação museal, entretanto o foco de nossa investigação será aonde
está instalado um dos primeiros museus brasileiros, na categoria de museu de ciências, as
vésperas de completar seus 151 anos: o Museu Paraense Emílio Goeldi, em que é primordial
um estudo mais aprofundado de seu setor educativo, para que seja apresentado
epistemologicamente suas ações primordiais de interação com a sociedade. E está bem
justificado o estudo no parágrafo VII do Diário Oficial (2016, p.03) da importância da
pesquisa na área de educação para a instituição.
Daí o Programa Museu Goeldi de Portas Abertas ser o objeto de estudo de Tese de
Doutorado em Educação no Programa de Pós-Graduação – PPGED - Instituto de Ciências da
Educação - ICED da Universidade Federal do Pará - UFPa, na linha de Pesquisa Educação,
Cultura e Sociedade e Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Teorias, Epistemologias e Métodos
da Educação – EPSTEM com o título provisório A Interação do Museu Paraense Emílio
Goeldi e a Sociedade: uma perspectiva da educação sociocultural na Amazônia.
Referências Bibliográficas
367
DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO. Seção 1 – ISSN 1677 - 7042. Documento assinado
digitalmente conforme MP no- 2.200-2 de 24/08/2001, que institui a Infraestrutura de Chaves
Públicas Brasileira - ICP-Brasil. PORTARIA Nº 5.160, DE 14 DE NOVEMBRO DE 2016.
Disponível em: http://www.in.gov.br/autenticidade.html. Acesso em: 31/08/2017.
368
SANTOS, W. L. P. dos. Educação científica na perspectiva de letramento como prática
social: Funções, princípios e desafios. Revista Brasileira de Educação - ANPED, v. 12, n.
36, p. 474-492, set./dez. 2007.
369
CARTOGRAFIA CULTURAL: VOZES E APARÊNCIAS
Summary: The exploratory research started in 2013, in Belém, the capital city of Pará State
Brazil, with the realization of the lack of information about cultural heritage of poor
neighborhoods of the city. From the methodological and theorical perspective, the study built
upon theories, concepts and recommendations of the knowledge fields of cartography and
museology, in interface with the ´new´ cultural cartography. The concepts were discussed in
the context of alive cultural heritage, widening emerging concepts such as “Integral
Museum”, “Museum Phenomena” and “Cultural Cartography”, in a utopia cycle.
Key words: Cartography, cultural public policies, Community Cultural Heritage, Museology,
Amazon.
370
Introdução
Este trabalho propõe um diálogo que leve a uma discussão crítica sobre o papel das
políticas, culturais e de desenvolvimento na Amazônia, com base numa informação cidadã.
Organizado em dois ensaios. No caso Pará – Amazônia, Brasil e As Experimentações e
Dualidades. O local e o global foi pensando à partir das geotecnologias até chegar na hodierna
cybercartografia, numa utopia em dar voz a complexidade do patrimônio cultural vivo de
comunidades carentes. Foram analisados autores da teoria crítica e moderna.
9
Site www.cartografiacultural.org
371
No caso do Pará, Amazônia, Brasil.
Nem tudo se faz sozinho. O saber escutar, e dar à voz, é um exercício que não se
adquiri nos livros, ou mesmo nas universidades. Aprendemos por meio de um processo de
convivência, vivencia, cooperação e dualidade nestes ‘território’ e nestes ‘lugares’.
A história social da Amazônia é bastante complexa e ainda possui muitos aspectos
culturais, sociais e econômicos, pouco explorados; várias de suas características foram
acessadas até o presente momento pelo meio acadêmico e pela elite, enquanto o público em
geral recebe ainda informações incompletas e não atualizadas. No caso do Pará, conjuntos de
documentos históricos apenas recentemente tornaram-se públicos, viabilizando novas, e mais
completas interpretações dos momentos e memórias passadas. Todavia essa problemática se
intensifica na transposição didática dos livros de escolas públicas, na rigidez de textos e
imagens ‘centralizados e codificados’, ou no acesso a documentos históricos, tornando-se
inacessíveis a boa parte da população paraense. “quando se avalia o lugar das temáticas da
História da Amazônia nesses manuais, as mudanças ainda são tímidas ou quase
imperceptíveis; O problema se aprofunda quando o assunto em tela é o Marajó” (Pacheco,
2012, p. 07).
Segundo Edna Castro (2008) “encontramos lacunas na formulação de balanços
teóricos mais abrangentes que busquem entender as regularidades, continuidades, estruturas e
as singularidades do fenômeno urbano na Amazônia.” (CASTRO, 2008, p., 13). Esta autora
desvela os efeitos da globalização e do mercado transnacional sobre os atores sociais e
territórios-rede na Amazônia, por meio de um discurso hegemônico integrador e cooperador,
que por sua vez transformam a região num local de exportação de produtos agrícolas,
florestais, minerais, de recursos hídricos e energia. “A função econômica de circulação e
gestão da produção da rede urbana da cidade, é a chave para o entendimento da formação da
rede urbana na Amazônia.”(CASTRO, 2008, p. 18).
Atualmente a cidade de Belém, núcleo urbano com altas taxas de crescimento
populacional, apresenta elevado índice de pobreza associado a baixa qualidade de
oferecimento de serviços públicos em diferentes áreas, como educação, saúde e cultura. Tal
372
situação não é exclusiva de Belém no Brasil. Este padrão de cidade, na verdade, é um reflexo
do que ocorre em muitas regiões, capitais, bairros, vilas, ilhas da sociedade ocidental.
Todavia é preciso considerar a falta permanente de diálogo que a Secretaria de Cultura
do Estado do Pará tem com os artistas e agentes culturais que à anos induz à vários embates
sociais. O mais recente foi a entrega da Carta de Protesto dos Artistas Paraenses,10 que
ocorreu durante o evento cultural Terruá Pará 2013, que exigia a demissão do atual
Secretário. Segundo Eliana Bogéa (2014):
10
Secretaria de Estado de Comunicação
373
compartilham – o patrimônio humano, cultural, natural.” (VARRINE, 2013,
p. 18).
374
enquanto que na Região Norte este número atende à 81% (oitenta e um por cento) da
população, puxando a estatística de exclusão para cima. Quanto aos possuidores de
computadores, há dados interessantes: o computador portátil - que compreende notebooks,
palms e celulares (ainda não havia tablets no mercado nacional na época da pesquisa) -
corresponde à 23% (vinte e três por cento) na média nortista, contra 14% (quatorze por cento)
da média brasileira, o que irá indicar na produção de conteúdo de objetos de aprendizagem
uma abordagem voltada a produtos para celulares, como aplicativos, vídeos e podcasts.
A velocidade de conexão é outro elemento fundamental para o desenvolvimento de
produtos relacionados à internet. Segundo a definição da International Telecomunication
Union - ITU, braço da ONU para a Inclusão Digital e Cibercultura, banda larga é
caracterizada por transmissões com taxa de conexão igual ou superior a 256 Kbps, enquanto a
alta conexão é caracterizada pela taxa de transmissão igual ou superior a 2 Mbps1. No Estado
do Pará, a conexão inferior a taxa de banda larga ainda é inferior a 48% (quarenta e oito por
cento) do total de conexões à Rede, com exceção da capital Belém e algumas cidades
adjacentes à Região Metropolitana. O serviço de banda larga é praticamente indisponível na
Região Norte, e mesmo onde existe ele pode ser considerado de baixa qualidade11.
Uma categoria importante para este trabalho é a dinâmica do patrimônio cultural, pois
está em constante interação com a história e a natureza. “O patrimônio cultural é a ainda um
recurso para o desenvolvimento, na verdade o único recurso, juntamente com a população,
que se encontra em toda parte e que basta procurar para encontrá-lo. (VARRINE, 2013, p.
19).
São consideradas nesta pesquisa, as seguintes dinâmicas do patrimônio cultural: seus
modos de produção e criação de suas práticas cotidianas, conflitos e políticas, tempo e
mobilidade, gestão e participação à medida que nossas relações socais estabeleciam
11
ISSN 2358-0488 | ISBN 978-85-495-0020-5 | ROCHA, Cleomar (Org). Anais do IV
Simpósio Internacional de Inovação em Mídias Interativas. Goiânia: Media Lab / UFG, 2016.
375
estratégias para a sustentabilidade do projeto, e desdobram-se em oportunidades e desafios
que permeiam as relações de valores, atitudes e opiniões desses fazedores de cultura. Segundo
Pelegrine e Funari (2008),
A dinâmica cultural expressa movimentos que deram origem as discussões
sobre a necessidade de salvaguarda do patrimônio imaterial e à historicidade
que a envolvem explicitam o reconhecimento de que o patrimônio
materializa as mais diversas formas de cultura e que, portanto, se constitui
em mais uma esfera de embates sociais. (PELEGRINE E FUNARI, 2008,
p.46)
376
sobrevivência: visibilidade, acessibilidade, auto-estima, fortalecimento institucional, espaço
físico, falta de informação, dificuldade de localização e identificação, falta da presença do
Estado em promover mecanismo estratégicos de gestão cultural e de comunicação, assim
como de espaços públicos apropriados à sua realidade.
As relações com o patrimônio cultural comunitário pesquisado desde o ano de 2013, se
deu entre as partes, de forma heterogênea, complexa, difusa e conflituosa, em diferentes
situações e contextos durante todo processo de construção da cartografia cultural. “O grande
impacto que a ciência do século XX fez foi a percepção de que os sistemas não podem ser
entendidos pela análise [...] O pensamento sistêmico é “contextual”, o que é o oposto do
pensamento analítico (CAPRA, 2003 p. 41).
Com relação as políticas públicas culturais à nível nacional. Gostaria de destacar a
iniciativa do extinto Ministério da Cultura (MinC), quando lança um dos seus marcos
regulatórios - O Plano Nacional de Cultura-PNC12 (2003), composto de 53 metas para a área
da cultura. E entre elas destaco a Meta 03 – Elaborada coletivamente entre sociedade e
gestores públicos da Secretaria da Diversidade Cultural, na utopia de se fazer a cartografia da
diversidade cultural brasileira até 2020. Hoje esse movimento do qual fiz parte se fragmentou,
por conta da atual crise (política, ética e financeira) do país. A extinção do “Ministério da
Cultura” foi um retrocesso ao desenvolvimento sustentável da diversidade cultural brasileira,
que por sua vez produzirá profundos impactos sociais e ambientais.
A Cartografia caminha lado a lado com o progresso da ciência e do conhecimento.
Muitas cartografias são elaboradas a partir de trabalhos de campo e de laboratório, pautados
em métodos diversificados - analógico, temático, social, mental, cultural e a hodierna
cybercartografia. Possuem ainda abordagens qualitativas, quantitativas, ordenadas ou
mentalizadas, como propõe a filosofia das diferenças de Deleuze13, em uma ontologia não
metafísica, de modo, que existem várias formas de se fazer Cartografia.
12
Lei N. 12.343, de 2 dezembro de 2010 (MinC, 2012).
13
Mil Mil platôs - capitalismo e esquizofrenia, vol. 1 / Gilles v.l Deleuze, Félix Guattari ; Tradução de Aurélio Guerra
Neto e Célia Pinto Costa. —Rio de janeiro : Ed. 34, 1995 94 p. (Coleção TRANS).
377
A Cartografia cuida da representação gráfica da Terra ou de parte dela, de forma
matemática, imagética ou pictórica, definindo-se como arte e ciência.
Para Martinelli (2009).
a finalidade mais marcante em toda a história dos mapas, [...] sempre
voltados à prática, principalmente a serviço da dominação, do poder. Sempre
registraram o que mais interessava, fato este que acabou estimulando o
incessante aperfeiçoamento deles. [...] os mapas confirmam-se como armas
do imperialismo, promovendo a política colonial. (MARTINELLI, 2009, p.
09).
378
fundamentalmente na década de 90. Destacam-se, até o ano de 2005, no caso do Brasil, os
propósitos e as metodologias da etnocartografia, que, de acordo com Ataide (2011), não eram
legitimados pela Sociedade Brasileira de Cartografia, tendo reconhecimento apenas de
indigenistas, antropólogos e ambientalistas, com base em trabalhos realizados por ONG´s.
A etnocartografia ou etnomapeamento colaborativo é hoje fruto de uma metodologia
inrtercientifica, resultado da aplicação de métodos das ciências ocidentais, (em especial
Cartografia e Antropologia), associadas a métodos próprios dos sistemas de conhecimento
tradicionais, tendo a cosmivisao do grupo a que se aplica, a pesquisa de campo, a narrativa e o
simbolismo gráfico, como aspectos essenciais (ACT Brasil 2008, p. 179)
As cartografias cultural é aquela que incorporou as tecnologias de precisão – as
geotecnologias, muito importante para resolução das questões ambientais e fundiárias. A
cartografia cultural é um instrumento que perpassa pelo campo sistemático, exploratório e
comunicativo, o qual necessita incontestavelmente da visualização cartográfica para
estabelecer uma dimensão simbólica. Suas ferramentas de pesquisa, são atravessadas por
ações políticas, educativas, comunicacionais, sociais até a elaboração de um mapa cultural.
Numa perspectiva que articula diferentes maneiras de combinar estruturas e agentes,
múltiplos acúmulos de eventos e de visualizações cartográficas.
A cartografia cultural possui um visão interdisciplinar e atualmente surge como uma
possibilidade técnica para à criação de um método autônomo e colaborativo, que permitam
uma capacidade interpretativa de sua dinâmica para o futuro de forma mais ampla. – livre e
aberta.
“O grande impacto que a ciência do século XX fez foi a percepção de que os
sistemas não podem ser entendidos pela análise [...] O pensamento sistêmico
é “contextual”, o que é o oposto do pensamento analítico (CAPRA, 2003 p.
41).
A cartografia cultural, então é vista como ferramenta que perpassa pelo campo
sistemático, exploratório e por fim dinâmico da cultura local. São ferramentas de pesquisa,
atravessada por ações sociais, comunicacionais, educativas e tecnológicas até a elaboração de
um mapa, que surge como uma possibilidade técnica para à comunicação cartográfica, à
379
medida que o patrimônio cultural estabelecem estratégicas para sua sustentabilidade, e
desdobram-se em oportunidades e desafios que permeiam as relações de valores, atitudes e
opiniões daqueles fazedores de cultura.
Todavia ainda não existe um método para a cybercartografia cultural, o que por sua
vez dificulta a autonomia cartográfica das populações carentes, impactados socialmente,
quando necessitam alimentar, ampliar e difundir seu banco de dados levando-os
inevitavelmente buscar mão de obra especializada. Correndo o risco de congelar no tempo as
informações dos seus mapas culturais.
A cognição cartográfica é um processo bastante singular que envolve o cérebro para
reconhecer padrões e relações espaciais. A autonomia em manipular as informações espaciais
sobre seus espaços físicos e apreensão sob o ponto de vista estático ou dinâmico do território.
Sendo assim, os mapas culturais participativos são instrumentos estratégicos para ações e
intervenções nos territórios, assim como para sua gestão compartilhada de apreensão sob o
ponto de vista estático ou dinâmico do território.
Para o pesquisador Hugues de Varine o “museu integral” são agentes ativos do
desenvolvimento e aponta duas medidas imprescindíveis, que são:
380
fator de construção comunitária, apresentando uma inovação: a relação entre patrimônio;
sociedade demonstrada pelo sentimento; pela ação. Para eles, os testemunhos do passado,
traços de identidade de um território, eram de responsabilidade coletiva servindo de
instrumento de educação popular para a invenção criadora do futuro. Daí, essa primeira fonte
deu origem a dois modelos.
1. Ecomuseu do Meio Ambiente: aperfeiçoamento dos museus ao ar livre
escandinavos e das casas do parque americanas.
2. Ecomuseu de Desenvolvimento Comunitário: seguindo a fonte originária francesa,
distingue-se, basicamente, por emanar da comunidade, que tem papel de protagonista nas
ações e animações. Os problemas atuais e futuros constituem a base de sua programação.
Possuem caráter urbano, pois, apoiam-se em associações comunitárias e todo o tipo de
organizações coletivas.
Segundo Barquero (2001), a teoria do desenvolvimento endógeno é antes de mais
nada, uma estratégia para a ação. Na perspectiva da nova sociologia econômica a
pesquisadora Elinor Ostrom (2016) inaugura uma abordagem institucionalista inovadora com
foco na gestão do que categoriza com common pool resources (CPR ou simplesmente
commons). Os commons combinam os atributos de serem bens de difícil exclusão e alta
rivalidade, conforme denominação da ciência econômica (OSTROM, 1994, p.6-7).
Destaco para a discussão à importância dessas teorias, pois possui diferentes maneiras
de combinar estruturas e agentes, múltiplos acúmulos de eventos e de visualizações que
permitem uma capacidade interpretativa do futuro de forma mais ampla. Todavia o autor
David Harvey (2014), aborda sobre a reflexão teórica dos bens comuns na cidade, os
processos e mecanismo que engendram sua criação, continuidade e (quiçá) destruição. E nos
alerta sobre uma hierarquização nas governanças dos comuns culturais e ambientais.
As Experimentações e Dualidades
As ciências e as humanidades passam por um período de crise e transformação,
imposto por paradigmas da ‘modernidade’. Impondo de alguma maneira nosso
381
posicionamento frente à ela. A dinâmica de novos pensares e fazeres surgem como uma
resposta as questões epistemológicas devido aos paradigmas modernos e a fragmentação dos
conhecimentos ocorridos após a revolução industrial, e podem nos servir para interpretar os
fenômenos das relações sociais do patrimônio cultural vivo, priorizando e valorizando
informações substanciais sobre a diversidade cultural, social, ambiental e econômica.
A Museologia é uma área de estudo que envolve questões de ordem práticas e teóricas.
Sua estruturação teórica teve início na década de 70 do século XX a partir do pensamento de
teóricos do Leste Europeu como Vinos Sofka e Jean Jelinek. Ela é compreendida como “a
relação específica do homem com a realidade” (Stránský, 1980) ou como a “relação mediada
entre o homem e o patrimônio” (Bellaigue, 2000). Segunda Tereza Scheiner (2012):
“desde 1980 a Museologia já conseguia seu espaço no universo acadêmico, e
no ano de 1990, se consolida como uma disciplina de caráter
transdisciplinar, dedicada ao estudo da relação especifica do homem e o
‘real’, tendo como objeto de estudo “o fenômeno museu”. (SCHEINER,
2012, p.8).
382
museológicas”. (IMS, 2016, p. 05). Este novo documento reafirma à função social do Museu,
preconizada anteriormente, assim como materializa, traduz e renova a função social dos
Museus possibilitando o exercício de uma Museologia socialmente engajada. Essa foi mais
uma conquista no campo museal.
A Declaração de Caracas (1984) amplia o conceito de museu incorporando o conceito
de patrimônio natural e cultural. Neste evento, o movimento da Nova Museologia, conhecido
como MINOM (1984), “parte do princípio de que, é necessária uma participação ativa da
comunidade no desenvolvimento e funcionamento dos museus”. (GUARNIERI, 1999). Tais
concepções surgiram a partir do ano de 1960 como uma resposta prática ao novo papel social
dos museus, tendo como principais expoentes DESVALLÉES (1980), VARRINE (1970) E
RIVIERE (1970). Neste aspecto foram sendo criados novas tipologias de instituições
museológicas como Ecomuseu, Museu de Território, Museu de Percurso, Museu de
Vizinhança, Museu Digital, entre outros.
Para o autor Hugues de Varine (1986), no artigo, Repensando o Conceito de Museu,
elaborado após sua palestra proferida no encontro ICOM/UNESCO sobre Museus e
Comunidades, em 1986, o autor apresentou as novas funções que o museu deveria
desempenhar para a sociedade, assim como propôs uma urgente revisão de suas práticas e de
seus métodos por parte dos profissionais que atuam direta ou indiretamente nesta área,
recolocando o Museu no contexto das mudanças sociais, econômicas, políticas e culturais da
sociedade, confrontando-o com os desafios do desenvolvimento e o seu papel no mundo
contemporâneo.
Para ele, essa instituição
“[...] deve tornar-se um agente ativo do desenvolvimento geral, e isto
porque [...] é um símbolo e um repositório da identidade cultural. [...]”, e não
apenas um reservatório da cultura com a função de apresentar segmentos do
saber científico. Dessa maneira, propõe que o museu assuma o papel de
instrumento original da comunicação através da linguagem fundamentada
nos objetos reais. Pautado nesta visão, o autor estabelece as quatro principais
funções do novo museu: banco de dados sobre objetos; observatório de
mudanças; meio de produção científica, assim como de integração
comunitária; mostruário da atual conjuntura da comunidade.
383
Esse novo museu proposto deve adotar estas novas funções sem deixar de
desempenhar as antigas. Hughes de Varine aponta também duas medidas imprescindíveis, que
são: eliminar o uso de rótulos (metodologias pré-stabelecidas), pois cada comunidade tem
suas características e necessidades próprias e atuar efetiva e simultaneamente no âmbito da
ação, da capacitação e da investigação, onde o museu deve ser um meio pelo qual sua
comunidade possa reconhecer-se, desempenhando assim sua função de centro de memória.
É considerado o precursor dos chamados ECOMUSEUS, devido sua experiência com
uma comunidade francesa, da região industrial das cidades de Creusot e Montceau lesMines
entre os anos 1971-82. De acordo com seu depoimento, nasceu sob noções de ecologia
humana, de comunidade social, de entidade administrativa e, sobretudo, da definição do
território e da vontade de contribuir ao seu desenvolvimento. Para aquelas populações, o
ecomuseu representava um fator de construção comunitária, apresentando uma inovação: a
relação entre patrimônio e sociedade demonstrada pelo sentimento e pela ação. Para eles, os
testemunhos do passado, traços de identidade de um território, eram de responsabilidade
coletiva servindo de instrumento de educação popular para a invenção criadora do futuro. Daí,
essa primeira fonte deu origem a dois modelos:
1. Ecomuseu do Meio Ambiente: aperfeiçoamento dos museus ao ar livre
escandinavos e das casas do parque americanas;
2. Ecomuseu de Desenvolvimento Comunitário: seguindo a fonte originária francesa,
distingue-se, basicamente, por emanar da comunidade, que tem papel de protagonista nas
ações e animações. Os problemas atuais e futuros constituem a base de sua programação.
Possuem caráter urbano, pois, apoiam-se em associações comunitárias e todo o tipo de
organizações coletivas.
De acordo com Tereza Scheiner (2012),
“hoje, o Museu é percebido pelos teóricos como um fenômeno, identificável
por meio de uma relação muito especial entre o humano, o espaço, o tempo e
a memória, relação está a que denominaremos ‘musealidade’. A musealidade
é um valor atribuído a certas ‘dobras’ do Real, a partir da percepção dos
384
diferentes grupos humanos sobre a relação que estabelecem com o espaço, o
tempo e a memória, em sintonia com os sistemas de pensamento e os valores
de suas próprias culturas. E, portanto, a percepção (e o conceito) de
musealidade poderá mudar, no tempo e no espaço, de acordo com os
sistemas de pensamento das diferentes sociedades, em seu processo
evolutivo. Assim, o que cada sociedade percebe e define como ‘Museu’
poderá também mudar, no tempo e no espaço.” E a Museologia portanto,
entendida como:
“o campo do conhecimento dedicado ao estudo e análise do Museu enquanto
representação da sociedade humana, no tempo e no espaço. Abrange o
estudo das múltiplas relações existentes entre o humano e o Real,
representadas sob diferentes formas de museus: museus tradicionais,
baseados no objeto; museus de território, relacionados ao patrimônio
material e imaterial das sociedades do passado e do presente; museus da
natureza; museus virtuais/digitais. Como disciplina acadêmica, tem
metodologias específicas de trabalho, relativas à coleta, preservação,
documentação e comunicação do patrimônio da Humanidade. Possui ainda
uma terminologia específica, ora em desenvolvimento, que permite o
trabalho integrado com outras áreas do conhecimento, tanto na teoria como
na prática.”
Deste modo, nota-se que o objeto de estudo da Museologia não é somente o “museu”,
nem mesmo seu objeto de estudo é restrito à esta instituição, o cenário real vivido está
condicionado à um tipo de Instituição Museológica ou mesmo dentro do espaço Museu
institucionalizado. Nesta perspectiva observa-se que o fenômeno museu é dotado de uma
produção natural, cultural, individual e coletiva, que permiti vislumbrar a relação da
humanidade com sua produção material e imaterial, e com aquilo que a humanidade acredita
como relevante, e lhe confere como status de bem cultural.
A Museologia pode explicar o processo entre o homem, o objeto e o cenário
pelo qual se encontra, a partir do espaço geográfico ou cultural que ele se
sente representado. Procura ainda, através do cenário real vivido, entender as
relações sociais e as possíveis consciências dentro da realidade que ali se
encontram, através de uma visão espacial e temporal e das perspectivas e
prospectivas do homem e da sociedade (GUARNIERI, 1984).
385
Ela se manifesta com apelo obrigatório à várias áreas do conhecimento, como por exemplo à
sociologia, semiótica, psicologia, antropologia, filosofia, e agora pela Cartografia Cultural.
A Museologia por sua vez pode investigar o patrimônio cultural vivo que se
expressa no comportamento individual e coletivo de uma cultura, articulando
estratégias e abordagens para seu público. A interdisciplinaridade deve ser o
método de pesquisa e de ação da Museologia (GUARNIERI, pag. 126,
1981).
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Amazônia: região universal e teatro do mundo/organização Willi Bolle, Edna Castro, Marcel
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URBANOS E REGIONAIS V.16, N.2, p.241-246, / NOVEMBRO 2014.
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MORIN, Edgar. Ciência com Consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
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2011. 240 p.;29,7cm;vol. 1.
388
Remando por campos e florestas: patrimônios marajoaras em narrativas e vivencias: ensino
médio/Agenor Sarraf Pacheco, Denise Pahl Schaan, Jane Felipe Beltrão; organizadores.
Belém: GKNoronha, 2012.
SANTOS, Boaventura de Sousa. “Para alem do Pensamento Abissal: das linhas globais a uma
ecologia de saberes”. In: Meneses, Maria Paula; Santos, B. S (orgs) Epistemologias do Sul.
Coimbra: Edicoes Almedina, 2009. 1 Edicao.
389
UM DIÁLOGO ENTRE ESCOLA E MUSEU NO COMBATE À INTOLERÂNCIA
RELIGIOSA
Carolina Barcellos Ferreira
390
Visitando a exposição “Portugueses no mundo”, do Museu Histórico Nacional, no
centro Rio de Janeiro, com alunos do nono ano do Ensino Fundamental, em 2015, uma
experiência me impactou: diante da instalação “Altar de Oxalá”, de autoria de Emanoel
Araújo14, uma das alunas leu a legenda da obra e saiu correndo da sala gritando cruz credo. O
mais incômodo era que havíamos passado antes por uma sala com vários oratórios e
crucifixos e nenhum dos alunos exprimiu nenhum tipo de estranhamento.
Por que os objetos oriundos das religiões de matriz africana são rechaçados por uma
parte dos alunos quando em visitas a museus? Por que eles não são vistos como objetos de
arte, cultura, história como os objetos religiosos católicos? De que forma eles passaram a
fazer parte dos acervos de museus nacionais e comunitários? Como os professores podem
combater o racismo e a intolerância religiosa presentes na sociedade a partir das visitas
escolares aos museus?
14
Emanoel Araújo é artista plástico, colecionador, fundador e gestor do Museu Afro-Brasil, localizado
em São Paulo.
391
estudar/aceitar dogmas religiosos com os quais não compactuassem. Essa visão,
compartilhada por parte dos responsáveis, diretores escolares, secretarias de educação e
grupos religiosos conservadores, tem como mais nova arma o Projeto de Lei nº 867/2015,
mais conhecido como “ Escola sem partido” de autoria do deputado federal Izalci, do PSDB
do Distrito Federal, que pretende, entre outras coisas, impossibilitar dentro das escolas
discussões que envolvam a diversidade religiosa e cultural do país.
Ao contrário deste entendimento que limita a visão de mundo dos alunos, acreditamos
ser dever do ensino de História debater a importância das religiosidades de matriz africana no
conteúdo a ser trabalhado no ensino das relações étnico-raciais e a necessidade de inscrevê-las
no processo histórico nacional investigando de que modo integram a paisagem cultural do
país. Importa também compreender qual o papel e o espaço destas religiosidades atualmente,
uma vez que essa discussão não pode ser apartada do debate atual na sociedade brasileira
sobre os estigmas e discriminações que sofrem os jovens alunos das escolas públicas
praticantes de religiões como a Umbanda e o Candomblé, que têm constantemente seus
saberes e conhecimentos rechaçados e silenciados em sala de aula pelos outros alunos e
mesmo professores. Acreditamos, por fim, que estes espaços educativos – os museus – pelos
seus acervos e exposições são ambientes ideais para refletir sobre esta temática de forma
sensível e diversificada.
392
centenário da Independência. O objetivo de seu criador era organizar um museu que
transmitisse às demais gerações as glórias e conquistas do Brasil desde seu período colonial.
Para tanto, Gustavo Barroso construiu um acervo baseado nas conquistas militares do país e
nas obras que remetem ao poder político e econômico do Brasil, reunindo doações e compras
de objetos representativos da pujança nacional. Seu foco em heróis da pátria e figuras de proa
da política brasileira reuniram poucos elementos que pudessem tratar da imensa maioria dos
brasileiros naquele momento, formada por ex-escravizados e seus descendentes, imigrantes
estrangeiros, e pobres em geral.
393
dos grandes centros europeus, destacando-se como um museu de antropologia, vinculado aos
princípios do evolucionismo social então em voga no final do século XIX.
Já o Museu da Maré, segundo Mário Chagas e Regina Abreu (2007), nasceu do desejo
de alguns jovens universitários da Maré de tentar modificar a realidade da localidade a partir
de ações que traziam uma possibilidade de ascensão social e reflexão sobre a história da
comunidade. A partir de uma associação sem fins lucrativos, o CEASM – Centro de Estudo e
Ações Solidárias da Maré –, foi inaugurado em 1998 um curso pré-vestibular em um espaço
cedido por uma igreja do Morro do Timbau. Aos poucos, outros projetos foram se integrando,
incluindo dança, moda e um núcleo sobre a história da comunidade – a Rede de Memórias da
Maré.
A partir dos encontros promovidos pela Rede de Memória, dos objetos doados pelos
moradores e da parceria com profissionais da Universidade Federal do Estado do Rio de
394
Janeiro (UNIRIO), foram montadas exposições em vários espaços públicos sobre a História
da Maré, incluindo o Museu da República, em 2004. E em 2006, a partir da cessão pela
Companhia Libra de Navegação de um amplo galpão localizado na Av. Guilherme Maxwel,
foi idealizada e montada uma exposição permanente que pretendia refletir e debater a história
da comunidade a partir do ponto de vista de seus moradores, para além do senso comum, o
qual projeta na Maré apenas uma história de miséria e violência.
Do lado esquerdo desta parede com os ex-votos, atrás de uma cortina de pano vemos
um altar que simboliza o espaço dedicado às religiões de matriz africana, como o Candomblé
e a Umbanda. Neste espaço, vemos esculturas reproduzindo imagens de diversos ícones
católicos, comuns nos centros espíritas umbandistas, como Santa Bárbara, São Francisco, São
Jorge e o próprio Cristo, além de esculturas que remetem diretamente às crenças simbólicas
395
dessas religiões, como é o caso da vovó Baiana e do Pai Joaquim, Iansã, Xangô, Ogum e
Iemanjá. Em uma mesa colocada abaixo do altar, estão em uma cesta diversos pacotes de
defumadores, um círculo formado por colares de contas de diversas cores, um recipiente para
incenso e diversas vasilhas, além de uma escultura intitulada Nanã. Embaixo desta mesa,
estende-se uma cortina e atrás delas vemos as esculturas de entidades que, segundo os
preceitos religiosos da Umbanda, não poderiam ficar à mostra, como o Zé Pelintra.
396
Segundo o autor, não só os objetos deveriam ser questionados, mas também os
discursos sobre o passado produzidos pelas instituições museais, uma vez que “a exposição
museológica pressupõe [...] uma concepção da sociedade, de cultura, de dinâmica social, de
tempo, de espaço, de agentes sociais e assim por diante” (MENESES, 1994, p.25). Portanto,
as exposições, sejam elas permanentes ou temporárias, guardariam um discurso de memória
do qual nós, pesquisadores e professores, deveríamos nos apropriar para transformá-los em
objetos de análise e investigação. Se não o fizermos, corremos o risco de reproduzir estas
memórias ao invés de problematizá-las.
A própria historicidade dos objetos reunidos nestes museus pode nos trazer questões e
reflexões sobre as intenções e valores privilegiados nestas instituições. Para debater estas
questões envolvendo a historicidade e o uso pedagógico dos objetos expostos em museus
históricos, recorremos a Ramos (2004) e à metodologia do objeto gerador – em uma analogia
ao conceito de palavra geradora veiculada por Paulo Freire – para identificar um método
voltado para o diálogo entre visitantes e objetos:
O autor alerta para o fato de que o objeto perde seu valor de uso quando passa a fazer
parte de uma exposição, ele não vale mais pelo que fazia ou simbolizava. Seu valor e
importância passam a ser ditados por novos interesses, a favor dos discursos dos museus nos
quais estão expostos. Dessa forma, o trabalho pedagógico deve motivar reflexões sobre a
trama entre sujeito e objeto: perceber a vida dos objetos, entender e sentir que os objetos
expressam traços culturais, que os objetos são criadores e criaturas do ser humano.
Seria então, de fundamental importância para os objetivos deste trabalho, ao lidar com
a noção de objeto gerador, indagar sobre os objetos religiosos expostos nas salas “Tempo da
Fé”, “Kumbukumbu” e “Portugueses no mundo”: a quem pertenceram os objetos recolhidos?
397
É possível saber sua origem? Quais eram as suas funções e significados antes de fazerem
parte do acervo de um museu? Que caminhos percorreram? Por que foram coletados e
preservados, ao contrário de vários outros objetos que se perderam ao longo do tempo? O que
permitiu a sua preservação? Como e por que foram adquiridos pelo museu? Como são
expostos? Por que estão expostos? Quais sentimentos e emoções despertam dentro da
exposição? Assim, longe de corroborar discursos de poder e de memória, as funções
pedagógicas do museu estariam voltadas para um trabalho de análise e crítica envolvendo a
história e os objetos. Uma proposta pedagógica assim formulada pretende dialogar, criticar e
debater a relação entre objetos, seus usos no passado e seus usos no tempo presente, revelando
as mudanças e rupturas da sua própria historicidade.
As demandas levadas pelos movimentos negros e pelo surgimento das leis que
obrigam o ensino das histórias e culturas africanas e afro-brasileiras nas escolas
impulsionaram também a crítica aos acervos e às exposições dos chamados museus
tradicionais, como o Museu Histórico Nacional, o Museu de Belas Artes e o Museu Nacional,
todos localizados no Rio de Janeiro, quanto à onipresença da escravidão, dos objetos de
tortura, da folclorização dos objetos religiosos e do silenciamento sobre a arte e os
conhecimentos trazidos e produzidos pelos africanos e seus descendentes.
Entre as críticas apontadas por Santos (2007) aos museus tradicionais estão o
silenciamento sobre as origens africanas de diversos artistas e escritores brasileiros, a
recorrência da representação da escravidão e a ausência de objetos produzidos por africanos e
seus descendentes. Com relação ao primeiro ponto, a autora comenta que, ao visitar o Museu
de Belas Artes ou a Biblioteca Nacional, não são discutidas as origens africanas de artistas
como Arthur Ramos ou Machado de Assis.
398
uma abordagem que valoriza o sincretismo e não aborda o caráter de luta e resistência dos
terreiros, por exemplo.
Trazendo esta discussão para o cotidiano das visitas escolares a museus, o que
podemos perceber é que quando os alunos entram em contato com estes objetos, não veem
objetos históricos, com uma longa biografia que os habilita a fazer parte de acervos e
exposições sobre a história do Brasil, mas como objetos religiosos, deslocados do espaço e
tempo dos museus, o que faz aflorar o estranhamento por parte destes estudantes, mesmo
entre os que as famílias são adeptas de religiões de matriz africana, pois se questionam por
que a “macumba” está ali representada.
Algumas das perguntas que orientaram esta proposta pedagógica foram: Por que estes
objetos fazem parte do acervo de determinado museu e não outros? Como ele foi adquirido
pelo museus? Com qual intenção? Procuramos não apenas estabelecer um diálogo com o
passado a partir da biografia dos objetos, mas também trazer esta discussão para o presente,
refletindo sobre como as exposições apresentam estes objetos, se os objetivos mudaram e o
que eles pretendem provocar nos seus visitantes. Além disso, propomos atividades para os
alunos discutirem e pesquisarem o tema no seu bairro, na sua cidade, relacionando suas
experiências pessoais com o tema da intolerância religiosa e do respeito à diversidade.
399
mostrar que os objetos das religiões afro-brasileiras tinham um lugar nos museus ao lado de
objetos religiosos de outras origens, não havia por que isolá-los em um material pedagógico.
O mais lógico seria justamente juntá-los, demostrando que assim com um oratório do século
XVIII poderia fazer parte do acervo sem trazer nenhum tipo de estupefação, também uma
instalação chamada “Altar de Oxalá” poderia compor o ambiente e as duas obras poderiam
dialogar, afinal faziam parte da mesma exposição.
O material pedagógico foi produzido em três etapas: a primeira foi a pesquisa sobre os
museus selecionados, seu histórico e a formação de seus acervos, através da leitura de
bibliografia especializada, visitas aos setores técnicos das instituições, e entrevistas com
profissionais que participaram da montagem das atuais exposições. No caso do Museu
Histórico Nacional, pude recorrer ao seu acervo documental, digitalizado e disponibilizado no
ambiente virtual, para analisar os processos de entrada dos objetos escolhidos, verificando
assim sua procedência. Também nos foi possível visitar a reserva técnica da instituição e
conferir a descrição, medida e anotações feitas sobre os objetos depois da sua entrada no
museu.
Também para saber sobre a procedência e disposição dos objetos presentes no Museu
da Maré, recorremos a uma entrevista com o cenógrafo Marcelo Pinto Vieira, uma das
pessoas responsáveis pelas exposições do referido museu. Através do seu relato,
400
compreendemos o significado pretendido pelo museu para os ambientes que compõem a
exposição analisada e também a motivação para a criação do “Tempo da Fé”.
Diante desta pesquisa, um material preliminar foi redigido, e para testá-lo quanto à
adequação linguística e relevância dos debates propostos, procedeu-se à segunda etapa de
elaboração do material: a formação de um grupo focal composto por 5 alunas e 4 alunos do
oitavo ano do Ensino Fundamental de uma escola pública da Zona Norte da cidade do Rio de
Janeiro.
Segundo Krueger e Casey (2000), um grupo focal é formado por um grupo especial de
pessoas em termos de objetivos e composição, cuja finalidade é ouvir e obter informações
sobre um problema, serviço ou produto. Neste caso específico, o grupo se reuniu uma vez por
semana durante os meses de março e abril de 2016, intercalando a leitura do material
pedagógico e a visita aos museus trabalhados na pesquisa. Seu objetivo foi analisar a
adequação à linguagem, a pertinência das discussões engendradas e as características das
visitas após a leitura e discussão do material. As sessões do grupo, tanto as reuniões sobre o
material quanto as visitas aos museus, foram registradas em caderno de campo, para que
pudessem ser analisadas posteriormente.
Por já haver trabalhado com eles no ano anterior sobre seus conhecimentos prévios em
relação a religiões em geral, pude aferir sobre suas crenças religiosas e suas noções sobre
outras religiões. A primeira aluna, Amanda15, disse ser católica e ter amigos com outras
religiões, como as evangélicas. A segunda aluna, Júlia, disse ser evangélica e ter amigos que
seguem o espiritismo. A terceira aluna, Vitória, disse ser evangélica e ter amigos católicos e
espíritas. A quarta aluna, Catarina, disse ser católica e ter uma amiga cuja religião é a
Umbanda. A quinta aluna, Emília, disse ser evangélica e ter amigos que seguem o espiritismo.
Entre os garotos, o primeiro aluno, Rodolfo, disse não seguir nenhuma religião, mas conhecer
amigos evangélicos. O segundo aluno, Renato, disse seguir a religião cristã e ter amigos
15
Para preservar a identidade dos alunos, foram utilizados nomes fictícios.
401
evangélicos e espíritas. Kevin, disse ser católico, e ter amigos evangélicos e do Candomblé. O
quarto aluno, José, disse ser evangélico e ter amigos que seguem outras religiões, mas não
soube dizer quais.
Com o objetivo de exemplificar a experiência única trazida pela formação deste grupo
focal, que muito engrandeceu as reflexões do material pedagógico e minha prática
pedagógica, cito alguns dos momentos considerados mais significativos desta discussão para
que sejam objeto de uma análise mais apurada.
402
eles partiram para olhar o painel que existe ao lado direito. Rodolfo veio para o meu lado e
perguntou se aqueles detalhes dourados e prateados eram preciosos também, como os da sala
dos oratórios, eu disse que achava que não, que era apenas para dar um efeito visual.
403
com que eu me lembrasse de dúvidas minhas em relação ao ensino das relações étnico-raciais
e sobre o processo histórico do negro na sociedade brasileira. Como tratar do tema do tráfico
negreiro e da escravidão no Brasil sem que isso diminua ainda mais a autoestima dos alunos
negros? Como falar da escravidão dosando a medida entre a experiência do sofrimento e a
vitimização? O que sobressai da fala de Kevin é que ele não consegue humanizar as pessoas
que foram escravizadas. Imagina que todas elas tenham vivido 24 horas dos seus dias
trabalhando e sendo exploradas. Como falar de cultura, de laços familiares, de herança
cultural se ele não compreende que havia vida na experiência dessas pessoas? E mais do que
isso, se ele não consegue desassociar a ideia do africano da ideia de escravo, e
consequentemente, da ideia de sofrimento?
404
uma escultura que simbolizava Iemanjá, declarou era aquela imagem mesmo que o avô tinha
em casa, ideia que ele já havia aventado no encontro anterior, mas não tinha certeza.
Pode parecer pouco, mas o que possibilitou todas essas observações e também as
outras discussões, foi o fato deles não terem fugido dos objetos. Eles não se recusaram a
sentar no banco em frente ao “Altar de Oxalá” e então puderam ver, prestar atenção e
comparar com objetos religiosos de outras matrizes; eles olharam para os objetos da coleção
“Polícia da Corte” e tentaram descobrir qual era a função daqueles objetos nos rituais
religiosos antes de terem sido arrancados à força de seus donos; eles visitaram toda a
exposição do “Tempo da Fé”, e assim, puderam ter a curiosidade de olhar o que havia dentro
do pano que cobria a mesa para perguntar quem estava sendo representado naquelas
esculturas. E parte disso foi conquistado a partir das conversas engendradas pela leitura do
material pedagógico antes das visitas, que os aproximou dos objetos e estimulou a
curiosidade.
405
designer para aprimorar o layout do livreto que surgiu como produto final da dissertação deste
Mestrado Profissional.
Apesar de toda experiência com um grupo focal ser única, pois os sentimentos e
conhecimento daqueles alunos que participaram não podem ser imitados ou repetidos por
outros, conservamos a esperança de que outros diálogos, questões e debates possam ser
engendrados a partir das questões que foram ali levantadas e, mais do que isso, que o material
também possa motivar professores e professoras a criar seus próprios materiais que deem
conta destas discussões tão necessárias nas escolas públicas e privadas de todo país.
Referências bibliográficas
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applied Research. Thousand Oaks: Sage Publications, 2000.
SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. Entre troncos e atabaques: Raça e Memória Nacional. In.
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SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão
racial no Brasil 1870 -1930. São Paulo, Companhia da Letras, 1993.
407
COLEÇÃO AMAZONIANA DE ARTE DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ,
DESAFIOS, PROCESSOS E SUBVERSÕES PARA UM CAMPO ALARGADO E
DECOLONIALISTA.
Orlando Maneschy*
*Universidade Federal do Pará
Resumo: Ao pensar a função social dos museus, dentro de uma instituição de ensino como uma
Universidade Federal, com suas perspectivas educacionais, calcadas no tripé Ensino, Pesquisa e
Extensão, buscamos refletir sobre as práticas, os exercícios poéticos e as proposições
políticas decoloniais, uma vez que, localizada fora do centro de poder do país, na Amazônia, com
características próprias, faz-se necessário conjecturar tanto acerca dos procedimentos de poder externo
e interno, estabelecidos dentro de processos coloniais e, mais do que isso, buscar evidenciar estratégias
e práticas decoloniais presentes nos processos de formação de uma Coleção, no caso a Coleção
Amazoniana de Arte da UFPA, bem como o envolvimento de atores sociais, como artistas,
pesquisadores, alunos e comunidade.
Abstract: When thinking about the social function of museums, within an educational institution like
a Federal University, with its educational perspectives, based on the tripod Teaching, Research and
Extension, we seek to reflect on practices, poetic exercises and decolonial political propositions, once
that, located outside the country's power center in the Amazon, with its own characteristics, it is
necessary to conjecture both about the procedures of external and internal power established within
colonial processes and, more than that, to seek strategies to constitute decolonial practices in the
processes of formation of a Collection, in this case the Amazonian Art Collection of UFPA, as well as
the involvement of social actors such as artists, researchers, students and community.
408
Introdução
Antecedentes
Nesse sentido, precisaremos nos reportar aos antecedentes dessa Coleção, como o
momento em que a pesquisa na Faculdade de Artes Visuais é estabelecida em consonância
com as diretrizes apontadas pela Pró-Reitoria de Pesquisa - por meio do documento
Resolução N.º 3.043, de 07 de maio de 2003, que estabelece normas para a realização da
atividade de pesquisa na UFPA -, com o recebimento da primeira bolsa para um discente de
iniciação científica – IC em Artes Visuais, em 2005, com a pesquisa A Relação da Imagem
409
nas Artes Visuais: mapeamento da produção imagética na arte contemporânea paraense,
com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Este projeto inicial gerou um levantamento de parte da produção fotográfica e videográfica
paraense executada nas últimas três décadas. Realizado junto com discentes, o projeto não
apenas mapeou a produção desses artistas da imagem, como favoreceu a elaboração de artigos
publicados em eventos nacionais e internacionais, bem como em livro e exposição
Seqüestros: Imagem na Arte Contemporânea Paraense, com o apoio, em 2007, da Sociedade
Brasileira para o Progresso da Ciência, durante o encontro em Belém, além da mostra
Encruzilhadas e seu respectivo catálogo, fruto do projeto de extensão, (que mais tarde viraria
programa) Processos Artísticos e Curatoriais Contemporâneos, que viabilizou diversas
práticas vinculadas à pesquisa, com exercícios poéticos, exposições, debates, etc; com o apoio
da Pró-Reitoria de Extensão da UFPA, servindo de plataforma para experimentações com
discentes e docentes, propiciando práticas artísticas, curatoriais e museográficas, debates e
experiências apresentadas por alunos e publicações, como o livro JÁ!Emergências
Contemporâneas, com debates, artigos e obras de artistas de várias faixas etárias e em
distintas condições de inserção no meio artístico e na sociedade.
Deste momento inicial de um assentamento de pesquisa, observamos a necessidade de
trabalhar com uma história da arte que não havia sido contada, por se constituir fora do
centro-sul do país. Ao constatarmos que boa parte da história da arte brasileira era pautada,
em sua maioria, em movimentos ocorridos entre Rio de Janeiro e São Paulo, (fato que começa
e se transformar nas últimas décadas), percebemos a emergência de focar em outra
perspectiva, trazendo à luz a produção e a voz de atores presentes na região, por meio de
pesquisa e de projetos extensivos, que davam visibilidade e espaço para trocas, diálogos e
circulação, fomentando, tanto a produção de artistas, quando de alunos que ampliaram suas
perspectivas, a partir de experiências estéticas, produção científica e diálogos com outros
elementos sociais.
410
Estas ações ultrapassaram o âmbito da pesquisa científica, indo para crítica de arte e
curadoria que estão intimamente relacionadas ao âmbito da inovação, principalmente nos
campos das artes visuais e do audiovisual a partir de mostras, ações de formação sequenciadas
como seminários, encontros, palestras e publicação de livros de caráter crítico-experimental,
muito afinados com a proposta da Coleção que aqui apresentamos, fomentando a produção e a
reflexão cultural na Amazônia.
411
bolsista de IC, que naquele momento era professor da Escola de Aplicação da UFPA, Danilo
Baraúna, que solicitou meu apoio e investimento na parceria de realização do projeto, a partir
do acervo constituído nas pesquisas. Destas ações resultou a produção de dois materiais
didáticos em DVD-ROM que versam sobre a produção de videoarte paraense em uma
perspectiva didática, distribuídos aos professores de arte da rede pública de ensino, na
perspectiva de uma formação continuada. Apresentar este breve antecedente intenciona
revelar um pouco de como os projetos foram sendo realizados, em dialogo com o ensino e as
ações extensivas e nos movimentaram a pensar processos de compartilhamento do
conhecimento de forma horizontal, calcada em trocas e parcerias, ora com alunos, ex-alunos,
ora com os artistas participantes que cederam suas obras para comporem livros, DVD-ROMs,
ou ainda tomando parte em debates, palestras, workshops e experiências em que a questão da
construção atravessava uma ideia de conduta que busca subverter estruturas de poder. Nesse
sentido, vale destacar a fala de Thais Luzia Colaço ao tratar de Colonialismo/ Decolonialismo,
“Deste modo quer salientar que a intenção não é desfazer o colonial ou revertê-lo, (...) A
intenção é provocar um posicionamento contínuo de transgredir e insurgir. O decolonial
implica, portanto, uma luta contínua” (COLAÇO, 2012, p.8) e cremos ser uma posição
necessária e que irá se estabelecer nos processos desenvolvidos ao longo dos processos
estabelecidos na Coleção.
412
que atravessaram a região, registrando e coletando objetos e espécimes, que hoje figuram em
acervos e museus seja no sudeste do Brasil, seja no exterior. Todavia, hoje contamos com
projetos e instituições que atuam localmente, permanecendo com seus acervos na região.
Entretanto, ao pensar sobre essas práticas coloniais, optamos por nos concentrar num outro
tipo de atuação, contemporânea, de artistas que detém ou possuíram uma relação vivencial de
experiência na Amazônia, gerando obras que revelam outros aspectos da região e trazem um
questionamento sobre o viver nesse território. Obras que refletem uma relação política com o
local. A despeito de Belém deter museus significativos, vários constituídos em prédios
históricos, e ainda por contar com um Sistema Integrado de Museus, o que no projeto
apontava para uma proposição de ação ativa, ainda vivemos na sombra do Modernismo, este,
com todas as suas idiossincrasias, em que a maior parte destes espaços históricos e de arte
detém maior relação com o turismo do que com a produção efetiva de conhecimento por meio
de pesquisa. Assim, a Coleção nasce como um ambiente de reflexão acerca do papel de uma
coleção, e mais, sobre os procedimentos possíveis de ser engendrados nessa constituição para
além das obras colecionadas, mas como uma sucessiva proposição de diálogos e fluxos de
ações.
Ao conjecturar sobre uma coleção, inicialmente pensamos nos diversos artistas que
vieram trabalhando na Amazônia e que detiveram uma ação de relação íntima. Discorremos
na necessidade de constituir documentos, articular obras que, na maioria das vezes, terminam
por compor acervos nos grandes centros e no exterior, mas que pouco permanece na região.
Nesse sentido, começamos a ponderar sobre nossa relação de subalternidade, buscando refletir
sobre formas de inclusão, reflexionando sobre a Modernidade enquanto processo de
dominação, como nos aponta Antonio Pinto Ribeiro: “não situam o nascimento da
modernidade que dá origem ao colonialismo ocidental no século XVIII, mas recuam ao século
XVI e à modernidade da conquista ibérica das Américas.” (RIBEIRO, 2016, p.107). E mais:
413
movimentos de ocupação de terra, novas cartografias das favelas, os autores
acompanham as experiências de constituição de projetos de museografia
local. (RIBEIRO, 2016, p.105)
Tal qual essa perspectiva apontada por Ribeiro, refletíamos sobre as inúmeras
coleções Brasilianas, que desenham-se Brasil afora, e conjecturamos sobre o que poderia vir a
ser uma coleção Amazoniana. Articulada localmente, e não fruto de mais outro processo de
apropriação e saque, mas de inflexão para um território mais sensível e perceptivo para lidar
criticamente com a colonização, buscando estratégias para, por meio de outra epistemologia
olhar a Amazônia e constituir proposições para esta. Assim, partimos do entendimento que:
Nesse desenho, foram elencados artistas para tomarem parte num primeiro momento
da Coleção, para a aquisição de obras de seis artistas que compunham um recorte temporal de
três décadas, conforme projeto original Amazônia, Lugar da Experiência. Para tanto, esse
primeiro projeto foi submetido a edital do Prêmio de Artes Plásticas Marcantonio Vilaça /
Prêmio Procultura de Estímulo às Artes Visuais 2010, da Fundação Nacional de Artes –
FUNARTE, sendo agraciado pelo prêmio.
Assim, em termos legais, foi a partir desse projeto de 2010 que a Coleção Amazoniana
de Arte da Universidade Federal do Pará, foi constituída, entretanto, entendemos que toda
uma série de empreendimentos anteriores foram extremamente necessários para esse ocorrido,
em especial as relações de confiança estabelecidas com artistas ao longo de projetos anteriores
e posteriores, que fomentam desdobramentos para a Coleção, que conseguiu reunir, nesse
414
primeiro momento, não apenas obras de seis artistas, mas de 30 artistas brasileiros, a partir da
doação e do estímulo a doação empreendida por parte da curadoria do projeto, em diálogos
diretos com os artistas, em um esforço coletivo para a constituição deste acervo.
Ao totalizarmos mais de trinta artistas naquele momento da Coleção, foi proposto uma
rede de ações, articuladas entre duas mostras, uma mostra de cinema, intervenções urbanas,
um site e um seminário. A primeira mostra, Amazônia, Lugar da Experiência, ocorreu entre
outubro de 2012 e janeiro de 2013, no Museu da Universidade Federal do Pará – MUFPA,
aonde viria a ser depositado esse acervo, além de, ainda, alguns outros lugares da cidade,
como o Cinema Olympia, no qual ocorreu a exibição do filme Invisíveis Prazeres Cotidianos,
de Jorane Castro, bem como intervenções urbanas de Lucas Gouvêa e Éder Oliveira. Esta
415
primeira mostra detinha diversos trabalhos que apontavam para um olhar aguçado, político em
relação ao viver e fazer arte na Amazônia, como na obra Hagakure.
A obra de Miguel Chikaoka, Hagakure6 (2003) – uma caixa de luz com três imagens
negativas em formato médio, revelam em cada película, um diferente ângulo de captura do
olho do artista, imagens estas transpassas pelo espinho da palmeira Tucumã – , abre a mostra.
Miguel Chikoka, Hagakure, 2003, Fotografia/objeto. Acervo: Coleção Amazoniana de arte da UFPA
16
Em Hagakure, o artista e educador que formou diversas gerações de fotógrafos na FotoAtiva, remete-
se a compilação filosófica organizada em 1716 pelo samurai Yamahoto Tsunetomo (1659-1719), em
queesteorganiza normas de conduta, indo de questões cotidianas a temas profundos da cultura oriental, como a
Cerimônia do Chá e o Zen Budismo.
416
Esta obra emblemática, aponta para uma necessidade especial de romper o olhar e
descortinar aquilo que estamos acostumados a ver, numa estrutura sedante, constituída ao
longo de anos de massacre pelas mídias e pelas estruturas neoliberais e ver mais além do
comum. Daí, a escolha desta obra para abrir a primeira mostra, como um convite ao visitante
de se permitir romper a membrana, a proteção e descobrir outras perspectivas sobre o que o
cerca. Nesta mostra, dezenove artista ocuparam as salas do museu, criando ambientes de
grande força e motivação para um aprofundamento no conhecimento da história da região e
da arte na região, como na obra de Roberto Evangelista, que nos conclama a um denso
processo de alteridade e descoberta de uma obra pouco conhecida pelas atuais gerações, com
o seu Matter Dolorosa - in Memoriam II (1978), filme em que vemos o artista abordas as
formas e conhecimentos milenares dos povos autóctones remanescentes. “Depois do
massacre, só restaram os restos, os riscos e restos da memória. Aí, onde guardamos as falas
dos velhos, para não esquecer do inicio, de boca a ouvido”. São falas e imagens de extrema
potência, em cenas de performance e partilha, em processos ritualísticos em que colonialismo,
cosmogonia e política são ativados, de forma a propor uma resistência aos massacres culturais
impostos aos povos da floresta.
417
Roberto Evangelista, Matter Dolorosa - in Memoriam II, 1978, filme. Acervo: Coleção Amazoniana de arte da
UFPA
Armando Queiroz, Aparelho para Escutar Sentimentos, 2008, fotografia e objeto. Acervo: Coleção Amazoniana
de arte da UFPA
418
pesquisadores Armando Queiroz, Jorane Castro e Rosangela Britto, bem como dos
pesquisadores Gil Vieira e Vânia Leal e no segundo momento, no dia 21 de dezembro de
2012, reuniu artistas e pesquisadores e em parceria com a Casa Fora do Eixo Amazônia e Pós
Tv, (que transmitiu o debate ao vivo), sendo os artistas Danielle Fonseca, Maria Christina e
Vicente Cecim, e os os teóricos Ernani Chaves e João de Jesus Paes Loureiro. Esses eventos
serviram não apenas para trazer mentes distintas que pensam e produzem na região, mas para
viabilizar a troca e o acesso a informação para o público em geral. Também, dentro dessa
perspectiva, foi constituído um site www.experienciamazonia.org, (lançado em 13 de
dezembro de 2012), em que a produção toda do acervo de artes visuais da Coleção está
acessível para ser assistida, bem como textos de curadores e dos próprios artistas estão
disponíveis para leitura e download, reiterando a perspectiva de compartilhamento e
circulação de informações de maneira livre e acessível.
Amazônia, Lugar da Experiência, site publicado em 2012. Acervo: Coleção Amazoniana de arte da UFPA
419
Somou-se ainda o livro Amazônia, Lugar da Experiência: Processos Artísticos na
Região Norte dentro da Coleção Amazoniana de Arte da UFPA, lançado em 2013, a partir da
premiação do edital Conexões Artes Visuais – Minc Funarte Petrobrás, que viabilizou, em
parceria com a UFPA a realização de um livro documento em que obras, mostras e textos de
pesquisadores somam-se no pensar a região.
Referências bibliográficas
420
Disponível em < https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/99625/VD-Novas-
Perspectivas-FINAL-02-08-2012.pdf?sequence=1&isAllowed=y >
p.7-8 (nota de rodapé)
421
O SAMBA DE RODA COMO DIÁLOGO UNIFICADOR ENTRE O CORPO E A
PALAVRA
422
O corpo, o Samba e a Herança Ancestral.
O ato de transmitir o conhecimento de fatos, ritos, lendas e costumes através da
oralidade é característico dos povos tradicionais africanos. Quem expressa a palavra é aquele
que tem o conhecimento e o poder de proferi-la, quem a diz é responsável pelo poder de
energia que a palavra carrega, sustenta o mundo. A palavra ganha vida no corpo, pela boca e o
ouvido, tanto do mestre quanto do discípulo. A palavra não é um jogo efêmero sem potência
ativa, ela sustenta a materialidade dos acontecimentos. Corta, aduba, floresce e renova as
coisas do mundo. Através dela podem-se erguer e destruir nações. A palavra estabelece ciclos,
temporalidades e territorialidades.
423
virgem “os prazeres misteriosos do casamento” . Embora se afirme que esta
forma jamais foi evidente no batuque ou no samba brasileiros, a verdade é o
samba, ainda hoje dançado em festas populares ou rodas (não-religiosas)
realizadas em terreiros da Bahia, conserva traços do que poderia ser
mimodrama : gestos das mãos, paradas , aceleradas, caídas bruscas,
sugestivos requebrados dos quadris , constituem uma espécie de
significantes mimétricos para um significado (já recalcado) que tanto pode
ser a história de uma aproximação ou um contato quanto qualquer outro fato,
em que o corpo seja dominante. (SODRÉ,1998, p. 29 e 30)
No corpo e pelo ritmo a palavra toma movimento: torna-se dança. Aqui ela manifesta-
se em samba de roda:
Figura 8: Vivência do Coletivo na Pça Marechal Deodoro, conhecida como Praça das Mãos, Salvador - BA
Foto: Coletivo A Corda Samba de Roda, 2015.
.
O diálogo dos corpos no sistema de valores de matriz africana é um fenômeno
constante entre o cotidiano e o sagrado. Dança-se em coletivo de modo improvisado, e não
apenas em pares ou unidades. É comum nas sociedades tradicionais as danças em círculos ou
rodas, como que reproduzindo o movimento da vida, de forma cíclica, a coletividade
prevalece. Esse processo nos permite analisar de forma singular tais manifestações como o
samba de roda, que ao ritmo da percussão, que é a “palavra do tambor” e não apenas
onomatopeias aleatórias, onde o rito também é presente e evoca-se a presença da força
424
ancestral dentro dos contextos afrodiásporicos. A polirritmia do movimento corporal africano
é sagrada, a dança é celebração de nascimento, de morte, do plantio e colheita. O ritual do
samba de roda é preservado na oralidade e vivência. A palavra que ali é proferida, ecoa como
canto tanto quanto louvor, ganha vida e do efêmero no corpo nasce movimentos improváveis,
por repetição (tal como um mantra), interação territorial e diálogo corporal, elementos que
livros (eurocêntricos) não poderão ensinar, pois o ciclo onde o saber popular transita é a
partilha social. Também não é comportado neste aprendizado a ideia de um “samba certo ou
errado”, haverá de fato o samba, com variações de um território para o outro.
“O samba é a vida, é a alma, é a alegria da gente (...) lhe digo, eu estou com as pernas
travadas de reumatismo, a pressão circulando, a coluna também, mas quando toca o pinicado
do samba eu acho que eu fico boa, eu sambo, pareço uma menina de 15 anos.” (D. Dalva
Damiana de FREITAS17.)
Que corpo é esse que se movimenta junto á palavra? O corpo é a palavra? Que corpo é
esse que pra além de “corpo físico” emite um saber do agora e do passado, ancestralidade
herdada de uma matriz, ancestralidade e passado comum partilhado.
Como todo ritmo já é uma síntese (de tempos), o ritmo negro é uma síntese
de sínteses (sonoras) que atesta a integração do elemento humano na
temporalidade mítica. Todo som que o indivíduo humano emite reafirma sua
17
http://sambadedalva.blogspot.com.br/2015/11/samba-de-dona-dalva-convida-para.html
425
condição de ser singular, todo ritmo a que ele adere leva-o a reviver o saber
coletivo sobre o tempo, onde não lugar para angústia, pois o que advém é a
alegria transbordante da atividade, do movimento induzido. (SODRÉ, 1998,
p.21)
O exercício da liberdade proporcionado pelo samba suplanta o aprisionamento mental
e a palavra reforça o poder, o esquecer do mundo para lembrar de si e dos seus e suas, da sua
identidade pessoal-coletiva e pertencimento a uma comunhão afrodiásporica e africana sem
misticismos irreais.
Por esse motivo a maior parte das sociedades orais tradicionais considera a mentira
uma verdadeira lepra moral. Na África tradicional, aquele que falta à palavra mata sua pessoa
civil, religiosa e oculta. Ele se separa de si mesmo e da sociedade. Seria preferível que
morresse, tanto para si próprio como para os seus.
Como patrimônio a ser vivenciado, o samba de roda destaca-se por ser patrimônio
vivo. A natureza da sua imaterialidade preenche todos os espaços, todos os vazios interiores e
exteriores no espaço, territorializando-os em comunidade que partilha em uníssono a sua
identidade exercida através da liberdade de dizer a palavra cantada e se libertar os gestos sem
travas sociais externas à sua lógica.
Figura 2: Debate com mulheres do Samba de Roda Suerdick, em Paripe/Tubarão Salvador-Ba Foto:
Acervo coletivo A Corda Samba de Roda, 2015.
426
Como forma de preservação do patrimônio imaterial, as vivências da tradição são um
caminho de musealização descolonizada e estratégias de preservação que impactam as novas
gerações e reforçam a valorização e a reprodução dos saberes pelos detentores da memória.
Assim como as mestras e mestres do samba de roda,onde atualmente se preocupam com a
salvaguarda do samba, cosmovisionando desde já a continuidade do processo cultural e
patrimonial, para que a história possa ser contada com fundamentos precisos e reais.
Este potencial pode ser verificado na Oficina Patrimônio e Cultura com a Mestra Ana
Olga que ocorreu em Tubarão, no ano de 2015, onde os integrantes do coletivo “ A Corda
Samba de Roda”(sambadeiras, sambadores, tocadoras(es)) puderam compartilhar junto á
comunidade do subúrbio ferroviário ,independente do grau de vínculo, seja ele direto ou
indireto, uma experiência única onde o registro dessa memória se perpetua até hoje em vossas
cabeças e corpos, não era mais o nome do coletivo que atuava, e sim o corpo imaterial do
samba, que sem dúvidas é maior, Mestra Ana Olga nos diz que “O Samba de Roda é uma
roda só” uma vez que estamos falando de povo, território e identidade, onde crianças ,adultos
e idosos comungam de um diálogo corporal ímpar.
A vivência do samba de roda traz o aprendizado pela razão e pela emoção, pela
palavra, corpo e afeto característicos da experiência estética que implica a presença do ser em
sua totalidade. Na troca entre o novo e o antigo, o passado é renovado e o novo encontra seu
fundamento e projeto de futuro. Das trocas vividas nesta vivência observamos que “Se a fala é
força,é porque ela cria uma ligação de vaivém (yaa-warta,emfulfulde)que gera movimento e
ritmo, e portanto, vida e ação.”(HAMPATÉ BÂ, 2010), unificando diversos e diferentes
indivíduos através de um passado comum partilhado na palavra e no corpo.
427
Figura 3: Samba de Roda na praça de Tubarão
Foto: Acervo coletivo “A Corda Samba De Roda”
A importância desta prática e da sua reprodução é atestada pelo fato de que ainda hoje
a prática do samba de roda incomoda muita gente, inclusive muita gente negra que
desconhece sua herança, e estranha a presença do eco de um tambor em praça pública,
reproduzindo a presença do estigma que ainda recai sobre a herança africana. Uma mulher
trajando indumentária da saia de chita girando numa roda e de cabelo crespo ainda incomoda,
428
causa estranhamento, não como algo anacrônico, mas como uma manifestação deslocada do
cotidiano; um cotidiano que sempre foi reservado à espaços pequenos, privados e periféricos.
Figura 4: Roda de samba na praça de Tubarão com Mestra Ana Olga do Samba Suerdick
Foto: Coletivo A Corda Samba de Roda, 2015.
O samba não é "científico" nos moldes da modernidade, mas, não deixa de ser uma
ciência como modo legítimo do fazer. Uma roda de samba pode ser compreendida como um
processo de musealização descolonizado, na medida que preserva pela atualização, realização,
restaurando e preservando a prática, documenta pela palavra dos mais velhos registrando a
origem e o saber antigo, comunica a outros a presença e a realidade de um povo que é passada
429
através da sua tradição , do seu modo de existir e criar, e principalmente, forma e educa
porque quem possui a palavra é o mais velho, o detentor do conhecimento ancestral, e por fim
valoriza a experiência de uma tradição, de uma identidade. Falar de museologia é falar dos
valores que as civilizações transmitem através das gerações e nos confere humanidade e seu
legado.
430
No samba de roda a palavra então é carregada de experiências, sabedoria de uma
“magia museal” que transforma o ordinário em extraordinário, o comum em peculiar,
colocando a produção humana no ciclo da natureza, da vida e do território.
Projetos sociais sem apoios governamentais também são fontes potentes de educação e
ensino informal para as crianças e jovens, tratando-se do coletivo “ A Corda Samba De Roda”
podemos identificar os trabalhos desenvolvidos com muito empenho por Natureza França,
fundadora do coletivo, desde 2013 e sua trincheira que deriva de diversas outras adjacências
de Salvador afim de mobilizar os trabalhos voltados para o samba de roda , onde dentre tantas
coisas para além , se aprende a responder o couro, a elaborar músicas de samba (corridos ou
chulas), festa das caretas que já é tradição da própria comunidade, escuta de cd’s de samba ou
da cultura popular como jongos e cocos , e desde quando se inicia o trabalho , encontra-se
obstáculos, pois não há apoio de recursos financeiros ou governamental, porém encontramos
431
mais caminhos e vontade do fazer do que a própria dificuldade, não que elas não existam ,
mas tendo a fundamentação do samba de roda da Bahia , as saias de chita que aos poucos
foram sendo compostas com recurso financeiro próprio, com muito esforço, tecidas por
costureiras da própria comunidade que auxiliaram bastante nesse processo.
“Desde que ingressei no “A Corda Samba de Roda”, tem sido muito aprendizado,pois
é um coletivo que busca estar em contato com os mestres e mestras do samba de roda, e desde
432
então participei de várias atividades, dentro da cidade de Salvador e fora da cidade também,
o que só enriquece a relação ancestral com samba, com meu corpo , minha história, minha
vida. Um dos momentos mais especiais que nós vivenciamos foram as idas pra festa da Boa
Morte onde a gente pode estar em contato com Dona Dalva Damiana que é uma grande
mestra do samba e que a gente pode participar junto com elas(Samba Suerdick) no cortejo
que elas saem na rua; E isso foi ver o quanto a gente não sabe ainda né?
Sobre a cultura popular, sobre o samba de roda, sobre toda essa magia, toda essa
ciência e é só aprendizado estar com elas, sambar com elas, compartilhar esses momentos e
poder valorizar e saber né? Como essas mestras pensam, como elas veem esse samba, como
elas veem nós , os mais jovens que estamos aqui pra fortalecer também , outro momento
muito importante acredito que pro “A Corda” também foi quando as sambadeiras do samba
de roda da Suerdick de Dona Dalva vieram(á Salvador) e fizeram uma vivência lá em
Tubarão, foi algo muito especial, e que a própria comunidade de Tubarão pode participar, e
conhecer Dona Aurinda também , é outro momento muito especial , que é uma senhora que
toca com prato né? E ela mora na ilha e ter essa relação com mar com a ilha que é uma
região tão forte né? E saber que ela resiste tocando o samba dela no prato e só aprendizado
mesmo né? Estar com Natureza que é uma mulher que realmente tem uma missão, máximo
respeito a ela e todas as companheiras do coletivo, e apesar de ser um coletivo que é liderado
por mulheres tem os homens que são companheiros-amigos e que fortalecem tocando também
e contribuindo pra essa construção da identidade mesmo do samba de roda , é isso .”
433
o samba ensina humildade, conquista , território, afirmação de identidade, com classe e
espontaneidade, ser quem é , e as portas que o coletivo “ A Corda Samba de Roda” me abriu
um caminho circular, eu agradeço demais por ter conhecido Natureza, que é uma mulher que
não para, que não desiste, ela nos diz que o samba é missão.”
Conclusão
Este texto propôs uma discussão sobre as possibilidades de transformação reais que o
samba de roda oferece enquanto patrimônio imaterial e, também, como os coletivos assim ao
modo de “A Corda Samba de Roda” atuam na sua salvaguarda, e na sua relevância dentro das
periferias soteropolitanas...
434
Referências bibliográficas
Entrevistas :
Diálogo com Natureza França, fundadora e coordenadora do coletivo A Corda Samba de
Roda.
Diálogos com sambadeiras do Coletivo A Corda Samba de Roda
435
ARTE E CULTURA: MUSEUS AUXILIANDO NO ENTENDIMENTO E NA
CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE
Resumo: Diante da importância do auto reconhecimento como produtor e promotor de cultura, parte
integrante e potencial da construção do pensamento e da sociedade, defendemos que estabelecer ponte
entre parcelas diversas da população, entre as quais aquelas com menos acesso a espaços de cultura e
de memória formais, seja uma ferramenta crítica de empoderamento sociocultural. Desenvolvemos, de
agosto a dezembro de 2016, um projeto de extensão para fomentar o contato da comunidade da
Baixada Fluminense, alunos do IFRJ e comunidade em geral, com espaços culturais e espaços de
memória da cidade do Rio de Janeiro, exercitando a reflexão crítica sobre as manifestações artísticas,
culturais e sociais ao longo do tempo e suas reverberações na contemporaneidade. O projeto se deu a
partir de um curso constituído de cinco encontros, sendo o primeiro em sala de aula para discutir
conceitos e problemáticas do campo da cultura, arte e memória, propondo reflexões em uma aula
dialógica; e os demais em visitas-aulas a quatro museus da cidade do Rio de Janeiro. É objetivo deste
trabalho analisar este projeto, sua pertinência e contribuições. Para tal, utilizamos uma abordagem
descritiva e exploratória, a partir de observações assistemáticas e participantes da aula inicial do curso
e das visitas-aulas aos museus da cidade do Rio de Janeiro.
Palavras-chave: acervos de museus; construções identitária e cidadã; disputas de poder; lugar de fala.
Key-words: museum collections; identity and citizen constructions; power disputes; speech place.
436
Introdução
Diante da importância do auto reconhecimento como produtor e promotor de cultura,
parte integrante e potencial da construção do pensamento e da sociedade, defendemos que
estabelecer uma ponte entre parcelas diversas da população, principalmente, entre as quais,
aquelas com menos acesso a espaços de cultura e de memória formais, seja uma ferramenta
crítica de empoderamento sociocultural.
Neste sentido, corroboramos com García Canclini (2015), que problematiza que ainda
que os bens e espaços culturais considerados patrimônio cultural sejam vistos como
representantes da memória e da cultura de uma nação, à medida que desce o nível de
escolaridade, que, no caso brasileiro, está relacionado à classe social com baixo poder
aquisitivo, esses valores são menos apreendidos e significativos. Conforme García Canclini,
“ainda que o patrimônio sirva para unificar cada nação, as desigualdades em sua formação e
apropriação exigem estudá-lo também como espaço de luta material e simbólica entre as
classes, as etnias e os grupos” (GARCÍA CANCLINI, 2015, p. 195).
Entre os motivos para essa diminuição da apreensão e significação, estão a desigual
oportunidade de acesso a tais bens, além do fato deles, geralmente, serem selecionados para
ocupar tal destaque na história, na cultura e, consequentemente, na memória de um povo por
uma elite que não seleciona objetos e espaços mais representativos das classes populares.
Com base nesse entendimento, desenvolvemos um projeto de extensão no IFRJ
(Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro), que buscou ponderar
esses assuntos junto à comunidade da Baixada Fluminense. Desenvolvido no período de
agosto a dezembro de 2016, o projeto objetivou fomentar o contato da comunidade da
Baixada Fluminense, alunos do IFRJ e comunidade em geral, com espaços culturais e de
memória da cidade do Rio de Janeiro, exercitando a reflexão crítica sobre as manifestações
artísticas, culturais e sociais ao longo do tempo e suas reverberações na contemporaneidade,
buscando problematizar suas relações com a sociedade e o cotidiano.
437
O direcionamento em especial aos moradores da Baixada Fluminense, região
periférica à capital e também localidade do campus em implantação do IFRJ, o campus
Belford Roxo, se deu pelo estigma sociocultural que as pessoas dessas cidades enfrentam.
A Baixada Fluminense é composta pelos municípios de Duque de Caxias, Nova
Iguaçu, São João de Meriti, Nilópolis, Belford Roxo, Queimados e Mesquita, todos ao norte
da cidade do Rio de Janeiro. Essas cidades são consideradas cidades-dormitório18, em que os
habitantes passam o dia inteiro fora desses locais para trabalhar e/ou estudar e regressam à
noite apenas para dormir e começar tudo novamente no dia seguinte. Essa característica
somada às condições urbanísticas precárias na região e à pouca oferta de equipamentos
culturais nesses municípios, levam a uma negação da cidade pela sua população. Em
contrapartida, quando pensamos na cidade do Rio de Janeiro, percebemos que moradores de
áreas periféricas mantém, predominantemente, uma relação de passagem com o centro do Rio
de Janeiro e seus logradouros histórico-culturais e, de muitas formas, são alijados dos espaços
culturais institucionalizados na capital.
Nos termos de Lefebvre (2010), percebemos que o direito à cidade não faz parte da
realidade de grande parte da população da Baixada Fluminense. Seja a cidade de moradia seja
a em que se trabalha e/ou estuda, as pessoas não são convidadas a vivenciar o cotidiano dessas
cidades e se apropriar dos espaços socioculturais que a compõem.
Assim, estimular a ocupação e a visão crítica dos moradores das áreas periféricas a
equipamentos culturais institucionalizados foram fatores decisivos para a escolha das visitas
na região central do Rio de Janeiro, sendo a região com maior concentração de espaços
culturais. Ademais, a região central é capaz de evidenciar processos históricos de alijamento,
apresentando uma ponte para muitas camadas sobrepostas de passado.
18
Figuerêdo (2004) explica que esse fenômeno predomina na Baixada Fluminense desde a década de 1950,
quando, após um período de prosperidade rural ligada, principalmente, à produção de laranja, os grandes
latifúndios são subdivididos em pequenos lotes de terra carentes de infraestrutura para moradia de baixo custo.
Esses lotes são ocupados por muitos imigrantes que, em busca de melhores condições de vida no Rio de Janeiro,
não conseguem pagar pela moradia na cidade e encontram na Baixada uma área de expansão da mesma. O que,
conforme o autor, contribui para que a Baixada Fluminense, desde a segunda metade do século XX, se consolide
como periferia e área de expansão em relação à cidade do Rio de Janeiro.
438
O curso propôs a reflexão sobre a construção da identidade e da memória coletiva, as
imposições, destruições e resistências nesses processos. O centro do Rio de Janeiro vem
apresentando um projeto político excludente em suas modernizações subsequentes, na
tentativa de justificar a destruição de seu patrimônio cultural material e imaterial, a mutilação
de sua geografia e a expulsão do povo com menos poder aquisitivo de territórios ocupados.
Exemplos mais conhecidos foram a demolição de moradias e construções coloniais junto à
higienização social a partir do desalojamento de então moradores para a construção de largas
avenidas como a Avenida Central, hoje Avenida Rio Branco e a Avenida Presidente Vargas
(ABREU, 1976). A geografia, relevante para a construção identitária carioca, foi varrida em
boa parte do centro do Rio de Janeiro, morros foram destruídos, como o Morro de Senado e o
Morro do Castelo e usados para aterrar um trecho da orla carioca do centro à zona sul,
conforme nos conta Abreu (1987, p. 76):
439
importava era possibilitar aos turistas, principalmente de fora do país, maior comodidade para
a visitação do local (GALIZA, 2015).
Desse modo, a peregrinação da Baixada Fluminense à região central da cidade do Rio
de Janeiro se configura em um campo muito além de uma proposta turística, mas de uma
reflexão histórica da construção de memória e apagamento de uma parcela da população que
já habitou os grandes centros, mas que hoje se reconhece como estrangeiro, não pertencente.
Um exemplo desse não reconhecimento é o uso da palavra cidade que, principalmente
moradores da periferia, mesmo os habitantes do município, usam para se referir ao centro do
Rio de Janeiro, como se não fizessem parte dessa organização chamada cidade. Defendemos
no projeto que a busca da ocupação da população periférica nos grandes centros, em especial
na cena cultural, produtora de sentido e memória, é uma ferramenta política de resistência.
Com base no exposto, questionamos: qual a efetividade construtiva na formação
cidadã de pessoas com pouco acesso a espaços de cultura e de memória institucionalizados
quando colocadas a problematizar esses espaços e seus acervos a partir de uma visão crítica,
para além do passeio turístico?
É objetivo deste artigo analisar o projeto de extensão desenvolvido, sua pertinência e
alcance, analisando em que medida as discussões realizadas a partir dos acervos de museus
visitados possibilitaram acionar nos discentes mecanismos de potencial discursivo para pensar
criticamente sua formação identitária e sua memória coletiva, consequentemente,
empoderando seu poder cidadão.
Para a construção deste trabalho, utilizamos uma abordagem descritiva e exploratória,
a partir de observações assistemáticas e participantes da aula inicial do curso e das visitas-
aulas a quatro museus da cidade do Rio de Janeiro. A aula inaugural consistiu num primeiro
encontro em sala de aula em que eram discutidos diversos conceitos e aspectos sobre arte,
cultura e cidadania para embasar a discussão crítica com base nos acervos dos museus. As
visitas-aulas se deram no Museu Histórico Nacional, Museu Nacional de Belas Artes, Museu
do Folclore Edson Carneiro e Museu de Arte do Rio de Janeiro.
440
Arte e cultura: os conceitos balizadores da discussão nos museus
Conforme Arantes (2012), um dos aspectos mais importantes da cultura é a
significação, que, juntamente com os valores, são a essência de sua organização. São os
valores da cultura que “moldam” a sociedade, sendo sentidos como intrínsecos, não como
meios. Realizamos, constantemente, operações mentais de codificação e decodificação de
mensagens que requerem o conhecimento desses significados implícitos nas ações e nos
objetos, e de suas regras tácitas. Os significados culturais não são compreendidos através da
contemplação passiva do objeto significante, mas como referência ao universo de significados
próprios de cada grupo social.
Essa referência ao universo de significados pertencentes a cada grupo social é o que
White (2009) chama de simbologização, sendo esta capacidade intrínseca à cultura.
Simbologizar é “a capacidade de originar, definir e atribuir significados, de forma livre e
arbitrária, a coisas e acontecimentos no mundo externo, bem como compreender esses
significados” (p. 9). Esses significados não podem ser percebidos e avaliados a partir dos
cinco sentidos humanos (tato, olfato, paladar, audição e visão). Não é, por exemplo, o gosto
da água que a faz ser considerada água benta ou o cheiro da flor que a faz ser considerada
oferenda para Iemanjá, mas os significados que os seres humanos atribuem a elas, envolvendo
o processo de aprendizado construído a partir da experiência de certa sociedade com tal
aspecto simbologizado, podendo ser um objeto, um espaço, um ato, uma crença.
“Simbologizar, portanto, envolve a possibilidade de criar, atribuir e compreender
significados” (p. 9). Entre suas várias formas (pensar, sentir, agir), o autor define quatro
produtos principais: ideias, atitudes, atos e objetos. Tendo em comum o processo de
simbologização, são, portanto, distinguidos de todas as outras classes de coisas e eventos que
não dependem desse processo. “ Um ato é um ato. Uma coisa é uma coisa, a importância de
uma coisa, para a ciência e para nós, não depende só de suas propriedades intrínsecas, mas do
contexto de análise” (WHITE, 2009, p. 55).
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Essa era uma discussão fundamental para os propósitos do curso, já que se buscava,
principalmente, problematizar aspectos de cultura, identidade e memória, a partir dos acervos
dos museus, para a construção identitária e cidadã dos alunos.
Antes de entrar em contato com esses acervos, era necessário discutir que há uma
intenção incutida na seleção dos objetos a serem apresentados e na forma de sua disposição
nos espaços de cultura e de memória. Para Ramos (2004, p. 14), “qualquer museu é o lugar
onde se expõem objetos, e isso compõe processos comunicativos que necessariamente se
constituem na seleção das peças que devem ir ao acervo e no modo de ordenar as exposições”.
Ele discute que “não há museu inocente”, já que as peças (as selecionadas para exposição e as
ocultadas do público) têm uma intencionalidade.
Essa intencionalidade diz respeito às disputas de poder inerentes em todos os aspectos
da vida social e cultural de uma população, que estão intrinsecamente ligadas à
simbologização de White (2009). Podemos questionar, então: quem simbologiza o que é ou
deixa de ser cultura? Quem simbologiza o que deve ser preservado e propagado como
representante da cultura material de um povo?
No que tange a espaços, edificações e bens culturais, García Canclini (2015) pondera
em que medida as relações de poder têm rebatimentos em várias esferas da vida pública e
social, refletindo, entre outros, na naturalização do que deve ser preservado e amplamente
propagado para constituir a identidade de um país. Avalia que alguns bens, como pirâmides
maias, palácios coloniais e coleções de cerâmicas indígenas seculares, são naturalizadas como
algo a ser preservado e multiplicado para as gerações futuras, por simbolizar prestígio do
passado que se liga às questões de identidade nacional. “A perenidade desses bens leva a
imaginar que seu valor é inquestionável e torna-os fontes de consenso coletivo, para além das
divisões de classes, etnias e grupos que cindem a sociedade e diferenciam os modos de
apropriar-se do patrimônio” (p. 160). Essa distinção reforça as diferenças entre classes sociais,
que determina quais bens devem ser representativos, aqueles que agradem a uma determinada
classe, geralmente, a de maior poder econômico e social, que façam parte de seu repertório de
gosto e de “valor cultural”; aos bens mais relacionados a “aspectos populares”, que de alguma
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forma lhes agradam, são dadas a alcunha de “folclore”, marcando a diferença entre si e os
“outros”.
Permeadas por relações de poder, essas distinções entre classes sociais fazem parte do
jogo entre identidade e diferença, interferindo na cultura. As denominações decorrentes das
várias classificações de cultura se estabelecem pela lógica da diferença.
Hall (2013) discute que a denominação cultura popular foi cunhada a partir da
necessidade de distinção entre elite e classes populares, ou seja, a distância entre a cultura
popular e a cultura erudita. A partir do desenvolvimento do capitalismo industrial, “mudanças
no equilíbrio e nas relações de forças sociais se revelavam, frequentemente, nas lutas em
torno da cultura, tradições e formas de vida das classes populares” (HALL, 2013, p. 273). O
capital tinha interesse nas formas de vida das classes populares. A partir do momento em que
a sociedade estava sendo organizada em torno desse capital, era necessário reeducar as
camadas populares, num sentido mais amplo, para que pudessem fazer parte da sociedade.
A tradição popular consistia num dos principais locais de resistência, em oposição ao
modo como queriam impor a nova ordem social. Motivo pelo qual, conforme o autor, a
cultura popular, até hoje, é relacionada às questões da tradição e formas tradicionais de vida e,
ao mesmo tempo, vista, equivocadamente, como algo arcaico e anacrônico.
No que tange aos acervos de espaços de cultura e memória, frequentemente, os
objetivos significativos para as classes populares, decorrentes de seu fazer e modo de vida,
têm pouco ou nenhum espaço nesses locais. Essa era uma preocupação no trabalho de
expografia de Lina Bo Bardi, arquiteta ítalo-brasileira, que, ao dar espaço aos fazeres da
população de baixa renda, principalmente, do Nordeste, defendia a importância de celebrar a
inventividade do povo brasileiro que, com tão poucos recursos, conseguia sobreviver e criar
estratégias para melhorar suas vidas (BO BARDI; FERRAZ, 1996).
No nosso entendimento, as visões de Lina Bo Bardi (BO BARDI; FERRAZ, 1996) e
de García Canclini (2015) se complementam para entendermos o motivo pelo qual há
dificuldades de apreensão do que é considerado patrimônio a ser preservado por toda as
camadas da população. Se os objetos, fazeres, ritos e patrimônios significativos às camadas de
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baixa renda não estão contempladas na grande parte dos espaços de memória e cultura
institucionalizados, como querer que essas pessoas se reconheçam no patrimônio
institucionalizado como de referência nacional?
É preciso entender que todos os objetos são repletos de significação. Conforme Ramos
(2004, p. 21), “se aprendemos a ler palavras, é preciso exercitar o ato de ler os objetos, de
observar a história que há na materialidade das coisas”. Corroboramos com o autor quando ele
afirma que o “objeto é tratado como indício de traços culturais que serão interpretados no
contexto” (p. 22) ao qual se insere. Ele exemplifica que tanto a partir de um relógio antigo
como de um copo descartável, e principalmente da relação entre os dois, podemos questionar
e entender, entre outros, aspectos relacionados à história do capitalismo e suas consequências
na nossa atualidade e no futuro.
Não necessariamente a memória está contida apenas em edificações consideradas
históricas e tombadas como patrimônio, como remanescentes materiais de arquiteturas de
séculos passados. O patrimônio é importante sim, mas, principalmente, no que diz respeito ao
que as pessoas atribuem como sendo esse patrimônio, aquilo que lhes signifique algo, que
lhes atribuam valor e faça com que se reconheçam nesse valor e nessa memória.
Corroboramos a abordagem que Sodré (2002, p. 52) faz sobre patrimônio e a
colocamos como fundamental às discussões sobre cultura, identidade, território e memória
coletiva:
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Na verdade, o patrimônio, qualquer patrimônio, pode mesmo ser concebido
como um território. (...) [Definindo] território como: 1) lugar pertinente –
localização, limites – da ação do sujeito; 2) especificidade de um espaço
social, que o distingue do resto da sociedade ou de outros territórios; 3) zona
de limites entre o social e o que não se define inteiramente em termos sociais
(o não-social): a biologia, a língua, a física das coisas etc.
445
relacionando o contexto histórico, autorias e técnicas. Atualmente, porém, temos cada vez
mais contato com a profissão do mediador, principalmente em centros culturais de arte
contemporânea. O mediador, trabalhando com um grupo de pessoas, escolhe uma trajetória
com algumas obras ou objetos de acordo com o público e desenvolve um trabalho de
sensibilização dos visitantes, geralmente a partir do diálogo, a fim de auxiliar na fruição.
A metodologia do curso relaciona-se mais diretamente com a perspectiva da mediação,
em um primeiro olhar. Porém, mais do que mediar obra e fruidor, convoca os participantes ao
questionamento do conjunto de intenções e discursos presentes nas exposições e nas escolhas
museológicas. O curso foi pensado para se desenvolver de forma processual, de modo que as
discussões fossem construídas ao longo do caminho e houvesse o resgate das visitas
anteriores. Tratando-se de um processo dialógico, os questionamentos eram enriquecidos pela
troca de experiências entre os participantes do projeto, com suas trajetórias diversas.
Afim de fomentar a discussão em torno de questões como o lugar de fala e diferenças
de discursos nas instituições, foram selecionados instituições com acervos e propostas
museológicas diversas entre si.
A primeira instituição visitada foi o Museu Histórico Nacional que, localizado na área
do Castelo, palco de demolições e apagamentos, conserva um pequeno resquício de sua
primeira edificação, nos primórdios do século XVII. De origem militar, desde sua construção
como Forte até o início do século XX, o museu é voltado para a história do Brasil e de sua
construção desde colônia até a contemporaneidade.
A curadoria da exposição permanente, que é dividida em períodos, é disposta na forma
histórica “tradicional”, linear. No início da nossa visita, observamos que o texto de abertura
do circuito iniciava a narrativa sobre o Brasil a partir da visão europeia e do possível
estranhamento português frente aos nativos do hoje chamado território brasileiro. A partir da
observação de pequenas escolhas no espaço expositivo, como o texto de abertura, fomos
confrontados a discutir um dos temas geradores do projeto, o lugar de fala, e pudemos
relacionar o estrangeirismo dos nativos em seu próprio território com as experiências
rotineiras dos moradores da Baixada Fluminense.
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Ao percorrer a sala destinada aos nativos do território brasileiro, os estudantes
encantaram-se com coloridos e detalhados adereços, utensílios e objetos ritualísticos.
Contudo, apesar da identificação de cada objeto, não saberíamos dizer quem era cada um
desses grupos, suas particularidades, se esses grupos ainda habitam o território brasileiro ou
não, quais suas vozes e rostos, quem são essas pessoas? O que os indígenas têm a dizer? A
descontextualização desses objetos, tão distantes de suas narrativas originárias, sublinhava a
conotação do exotismo, ao mesmo tempo em que construía uma sensação de um conjunto de
resquícios de povoados extintos há séculos. Continuamos o debate em torno da
representatividade e protagonismo, levantando a possibilidade do quanto seria enriquecedor se
pudéssemos reconhecer a diversidade cultural entre os povos indígenas, cujos objetos estavam
dispostos, ouvir sujeitos indígenas contemporâneos sobre sua própria cultura, seu cotidiano e,
porque não, suas lutas políticas hoje e ao longo dos anos.
Corroboramos com García Canclini (1994, p. 113) que nos diz que “o museu e
qualquer política patrimonial devem tratar os objetos, os ofícios de tal modo que, mais que
exibi-los, tornem inteligíveis as relações entre eles, proponham hipóteses sobre o que
significam para a gente que os vê e evoca”.
Tereza Cristina Scheiner (2012), evocando diversas matrizes de experiências museais,
defende uma nova concepção de museus, a partir de uma abordagem da museologia alinhada
a uma prática museológica voltada para o social.
447
classe dominante, desde os colonizadores, senhores de engenho, realeza, a Igreja Católica e
outros. Porém, diferente de um rígido passeio escolar, as distrações muitas vezes eram bem
vindas, como o fato de os estudantes começarem a observar repetidamente os outros
visitantes, em sua imensa maioria estrangeiros. Os estrangeiros eram para eles como grupos a
serem observados de forma antropológica e, assim, teciam comentários entre os diferentes
tipos que passavam ali e seu modo de agir. O curioso foi que, em um dado momento, os
próprios estudantes se sentiram investigados como estrangeiros, pequenos exóticos, em
consonância com o tom da exposição.
Ao final da exposição, uma das salas chamou a atenção de nosso grupo, onde pudemos
estabelecer uma experiência de maior pertencimento, a sala Entre Mundos, dedicada à
contribuição afro-brasileira na construção do país. Diferente dos ambientes anteriores, onde
algumas pequenas aparições da cultura popular fulguravam apenas como contextualização
histórica e não como objetos valorosos – à exemplo a obra Engenho de Açúcar, de Antônio de
Oliveira – a sala em questão apresentava um circuito sensível à construção cultural popular. A
exposição mesclava documentos históricos da resistência afro-brasileira – como os registros
fotográficos de mulheres negras do século XIX empunhando acessórios crioulos –, obras de
arte – como os Tipos das Ruas talhados em madeira por Erotides Américo e Araújo Lopes na
Bahia século XIX – e outros objetos importantes, embalados ao som da voz de Maria
Bethânia por entre músicas e versos.
Além dos relatos do grupo sobre a identificação com os personagens ali representados,
seja pela cor da pele ou pelo reconhecimento de alguns objetos e costumes, a forma como os
elementos foram dispostos e apresentados levou o grupo a relatar uma experiência mais
próxima e atenta à exposição. Tempos históricos diferentes em diálogo, junto à diferentes
categorias de objetos e estímulos sensoriais provocou uma maior interação de nós fruidores
com o espaço expositivo, à exemplo O Altar de Oxalá, obra de Emanuel Araújo que suscitava
a mitologia orixá e crenças afro-religiosas a partir de uma configuração instalatória, própria
da arte contemporânea. A obra de Emanuel Araújo deslocou os estudantes de um contínuo
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contemplativo e, como próprio de uma obra contemporânea, os convocou a construir
significados a partir dos signos ali dispostos.
A escolha do Museu Histórico Nacional como primeiro espaço a ser visitado foi
assertiva para o início do debate e das questões a serem trabalhadas ao longo do curso. Além
da localidade do Castelo ser um dos palcos históricos e mais emblemáticos de higienização
social, a exposição levou o grupo à reflexão de que a história tradicionalmente é contada do
ponto de vista da classe dominante, exploradora. A forma como uma exposição é montada,
assim como na história, é uma escolha desde o ponto de vista, a importância de cada
personagem, o protagonista até a forma de direcionamento ao interlocutor.
Ainda assim, sempre haverá a resistência das histórias paralelas, como a exposição
Entre Mundos e devemos caminhar para que as múltiplas vozes sejam ouvidas. Georges Didi-
Huberman, em Sobrevivência dos vaga-lumes, defende que ainda que o excesso de
espetacularização luminosa do discurso hegemônico ofusque as insurgências populares, há de
se mudar de ponto de vista para verificar que as vozes do povo ainda estão lá, sobrevivem, já
que “não há comunidade viva sem fenomenologia de sua apresentação: o gesto luminoso dos
vaga-lumes” (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 8).
Seguindo para a segunda visita do nosso curso, percorremos o Museu Nacional de
Belas Artes, localizado na Cinelândia, um dos pontos onde mais se pode enxergar o
afrancesamento compulsório da urbe carioca do início do século XX. O local é conhecido
pelo nome de Cinelândia devido ao número de salas de cinema que havia no entorno, só
restando, hoje, o Cine Odeon que, por pouco, não foi extinto nos últimos anos.
O Museu Nacional de Belas Artes, como o nome já sugere, se propõe a contemplar as
obras de arte no âmbito acadêmico e tem como destaque a Missão Artística Francesa no
Brasil, que é considerada um marco do ensino acadêmico no Brasil. Nesse sentido, os
estudantes puderam reconhecer importantes símbolos da cultura clássica, como as “peças
moldadas sobre os originais do período helenísticos, romano, e do greco clássico” (MNBA,
2017) que serviam como modelos para os primeiros estudantes da Escola de Belas Artes.
449
Em dado momento, o grupo se mostrou mais disperso do que na exposição anterior e
nas seguintes, relatando se tratar de um acervo extenso, com uma das salas com disposição de
quadros uns acima dos outros, dificultando a visualização. A partir dessa constatação dos
alunos, pudemos resgatar rapidamente a história do espaço expositivo, principalmente no que
se refere ao museu de arte. Foi interessante perceber que mesmo um grupo não tão habitual
nos museus de arte espera um espaço expositivo moderno como a caixa branca, com maior
respiro entre uma obra e outra. O Museu tem atualmente o maior acervo de arte brasileira do
século XIX (MNBA, 2017) e o desconforto ao avistar quadros reunidos dessa maneira
remonta ao espaço expositivo do século retrasado, conduzindo, de certa forma uma
experiência temporal de passado. De todo modo, a fadiga e o distanciamento dos alunos
também se justifica por se tratarem de obras acadêmicas com temáticas clássicas, encontrando
pouco espaço para o diálogo com suas referências.
A terceira visita foi destinada ao Museu de Folclore Edson Carneiro, situado no bairro
do Catete, bairro da zona sul carioca e vizinho ao centro da cidade. O Museu se conecta aos
jardins do Museu da República, antiga sede do governo federal. A nossa visita ocorreu no dia
de inauguração da nova configuração expositiva do espaço cultural. A interação dos
participantes do curso ao Museu foi muito fluida e, por certo, foi o espaço onde os estudantes
se sentiram melhor acolhidos ou mais à vontade. O primeiro andar da exposição proporcionou
uma experiência mais sinestésica, já que a sala era dividida em ambientes de acordo com os
elementos da natureza, conjugando sons, cores, luzes e, por vezes, elementos como a fumaça,
com as obras dispostas a partir do ar, da terra, da água e do fogo. A curadoria lúdica, sensível
aos temas folclóricos ali dispostos no conjunto de obras provocou um encantamento nos
estudantes que relataram ter sido transportados para os tempos de infância.
Também foi possível fazer a relação do Museu em si com a loja de artesanato acoplada
ao museu, desde as dimensões de ambos até o destaque que essa loja tinha frente às outras
lojas de museus. A partir dessas observações e da contextualização de García Canclini (1983)
de que o artesanato carrega aspectos sociológicos comunicadores da localidade em que ele é
450
feito, foi possível desenvolver uma problematização do artesanato como expressão de um
patrimônio material e imaterial frente à mercantilização da cultura.
O último museu visitado foi o Museu de Arte do Rio, o MAR, um dos símbolos da
revitalização e gentrificação da Zona Portuária carioca. Nesse Museu, para dar continuidade
lógica e experimentar diferentes linguagens e tempos ao longo do curso, escolhemos manter o
foco nas exposições voltadas à arte contemporânea. Ao contrário do discurso comum que
atribui dificuldade de compreensão à arte contemporânea, foi onde o grupo estabeleceu maior
diálogo com suas vivências e questionamentos. Desde as vanguardas da metade do século
passado, a arte busca o engendramento com o mundo e a vida comum, suas questões e
estética.
Nessa perspectiva da arte-vida, os alunos puderam conhecer o trabalho do artista
Alexandre Sequeira na exposição Meu Mundo Teu, em que o artista propõe, através da
fotografia e da sua manipulação, algumas relações interpessoais, interagindo ele próprio com
diversas pessoas e comunidades. O grupo compreendeu que a obra do artista não se tratava
apenas da fotografia, mas por vezes da própria memória que o suporte carregava, além do
processo, da interação entre as pessoas que o artista conheceu pelo caminho. O conjunto de
obras talvez mais conhecido do artista é a série Nazaré do Mocajuba, de 2005, em que o
artista passa um tempo no vilarejo como retratista das pessoas que ali habitam. Com o tempo,
Alexandre propõe a doação dos objetos pessoais dos retratados, imprimindo futuramente as
fotos de cada morador em suas respectivas cortinas e cobertores.
A partir de séries com delicada atenção ao outro, os estudantes relataram que se
sentiram emocionados e inclusive se enxergaram em alguns trabalhos. O grupo estabeleceu
uma relação íntima com a exposição e pôde perceber que a arte, assim como o espaço
museológico, não precisa se tratar apenas de um espaço de contemplação passiva, ao
contrário, pode propor construção de sentido e diálogo com o visitante. Dessa forma, uma
visita à uma exposição como a de Alexandre Sequeira não é mais uma apreensão de
referências e significados, o que já seria muito, é também uma quebra no tempo acelerado
cotidiano e uma proposição de afeto para repensar o olhar ao redor e o agir no mundo.
451
Considerações finais
Ponderamos que o projeto consegui atingir seus objetivos de estimular moradores da
Baixada Fluminense a ter um novo olhar sobre sua construção identitária e cidadã, por meio
da arte e cultura encontrada nos espaços institucionalizados de cultura e memória.
Dentre as dificuldades encontradas nesse percurso, o transporte foi um dos maiores
entraves para a realização do projeto. Sem ajuda de custo, era necessário contar com os
próprios alunos pagando suas despesas de transporte. Porém, quando se pensa que, para ir ao
centro do Rio de Janeiro, os moradores da Baixada gastam, em média R$15,00, o que totaliza,
em média, R$30,00 de transporte de ida e volta, ponderamos que essa é uma das formas de
segregar a população da Baixada dos espaços de poder do Rio de Janeiro, entre os quais estão
os espaços de cultura e memória.
É necessário, pois dar oportunidade de acesso de modo igualitário aos diversos
moradores da cidade, de modo que a consolidação de sua cultura e identidade possam auxiliar
no exercício da cidadania.
Ao considerar que vivemos em sociedade e a política, em seu campo ampliado, é peça
chave desse viver, a arte e a cultura, por sua vez, instauram terrenos movediços para
desestabilizar estruturas políticas cristalizadas e nos convocam a um olhar lúdico. Estudar a
política na arte e na cultura, ou ainda, como a arte e a cultura são políticas talvez seja uma das
contribuições mais potentes do legado educacional de uma instituição que se preocupa com a
construção de um mundo melhor. Dessa forma, os espaços culturais e de memória podem
contribuir para a construção dessa visão de mundo crítica, potencializando construções
culturais e identitárias que consolidem a noção e o empoderamento quanto a cidadania
individual e coletiva de ampla gama populacional fluminense.
Referências bibliográficas
ABREU, M. A. A Evolução Urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
IPLANRIO/ZAHAR, 1987.
452
ARANTES, A. A. O que é cultura popular. 14. ed. 10. reimp. São Paulo: Brasiliense, 2012.
BARDI, L. B. FERRAZ, M. C. (Coord.). Lina Bo Bardi. 2. ed. São Paulo: Instituto Lina Bo
e P. M. Bardi, 1996.
CANTON, K. Tempo e memória. São Paulo: Editora Wmf Martins Fontes, 2009.
LEFEBVRE, H. O direito à cidade. Tradução: Rubens Eduardo Frias. 5. ed. 2. reimp. São
Paulo: Centauro Editora, 2010.
453
MNBA – Museu Nacional de Belas Artes. Disponível em http://mnba.gov.br/portal/ Acesso
em 16/06/17 às 22h57min.
454
A MEMÓRIA SOCIAL DO CAMPO DE FUTEBOL DE VÁRZEA DO BAIRRO
DA VILA PROGRESSO: O ESTUDO DE CASO DO SETE DE SETEMBRO.
Resumo: O futebol de várzea é uma denominação de uma prática esportiva muito difundida
pelas periferias do Brasil. Na cidade de São Paulo, esta pratica é mais do que uma prática
esportiva e se torna um dos principais atrativos para bairros nas periferias dessa grande
cidade, seja por falta de lazer, ou, por uma tradição que acompanha o crescimento desses
bairros. A prática do futebol de várzea na Zona leste da Cidade de São Paulo é bem difundida
e esta região conta com diversos times tradicionais, dentre eles o Sete de Setembro.
Atualmente tem uma sede em terreno privado. Ao passar do tempo, teve quatro campos todos
dentro dos limites do bairro da Vila Progresso. Por isso o presente trabalho de conclusão de
curso pretende analisar a relação do Clube Sete de Setembro da Vila Progresso com seu
bairro. Buscando as memórias sociais em torno do campo utilizando-se como metodologia
entrevistas orais semiabertas com pessoas ligadas ao clube e ao bairro para que assim
possamos analisar essa relação e entender como o clube participa historicamente da vida desse
bairro e dessas pessoas. Iniciando um processo de busca por essa memória com o objetivo de
ampliação do olhar sobre o campo, para além de uso comum, consequentemente como um
possível espaço de memória.
Abstract: The várzea football is a denomination of a sports practice very widespread in the
peripheries of Brazil. In the city of São Paulo, this practice is more than a sports practice and becomes
one of the main attractions for neighborhoods in the peripheries of this great city, either for lack of
leisure, or, for a tradition that accompanies the growth of these neighborhoods. The practice of várzea
football in the East Zone of the City of São Paulo is very widespread and this region has several
traditional teams, among them Sete de Setembro. It currently has a headquarters on private land. Over
time, it had four camps all within the boundaries of the neighborhood of Vila Progresso. Therefore, the
present work of course completion intends to analyze the relationship of the Sete de Setembro Club of
Vila Progresso with its neighborhood. Seeking the social memories around the field using semi-open
oral interviews with people connected to the club and the neighborhood so that we can analyze this
relationship and understand how the club historically participates in the life of this neighborhood and
these people. Starting a process of searching for this memory with the purpose of expanding the look
on the field, beyond common use, consequently as a possible memory space.
455
Introdução
O Presente trabalho apresenta uma pesquisa que analisou a relação do futebol de várzea
com bairro da vila progresso. Tendo como estudo de caso o clube de futebol de várzea
denominado “Sete de Setembro da Vila Progresso”, com sede no bairro da Vila Progresso do
distrito de São Miguel Paulista na Zona leste da cidade de São Paulo. Com o foco na memoria
social do bairro em relação o campo. Utilizando-se de entrevistas orais semiabertas como
metodologia para obtenção desta memória, com pessoas que tenham algum tipo de relação
com o clube e também com o bairro. Buscando com os resultados dessa pesquisa, analisar
essa relação entre o Sete de Setembro e a Vila Progresso. Iniciando um processo de busca por
essa memória com o objetivo de ampliação do olhar sobre o campo para além de uso comum,
mas, também um possível espaço de memória. Partindo da compreensão da memória
enquanto faculdade individual, porém, com seu viés de construção social no que compreende
Joel Candau (2011) em sua analise sobre Memória, em seus três níveis em seu livro sobre
Memória e Identidade. Trazendo a interpretação da memoria social enquanto viés teórico
para analise do objeto de estudo, fugindo da interpretação da memória coletiva, compreendida
hoje como arbitraria e quase inalcançável em sua essência.
Antes de qualquer outro aspecto, cabe contextualizar o leitor a noção de “futebol de
Várzea” que será trabalhada. A nomenclatura dada ao futebol amador advém da origem do
futebol no Brasil. As primeiras práticas futebolísticas com o surgimento do esporte no país,
que no início do Século XX tem sua localidade em clubes esportivos da elite e com o
operariado, no caso, da prática nos horários em que os trabalhadores estavam de folga. O
nome “futebol de várzea” tem origem nos locais de suas práticas, nas várzeas dos rios, pois
eram perto das casas dos operários e locais desocupados até então, Vale ilustrar que na cidade
de São Paulo, essa prática se consolidou nas várzeas do rio Tietê (BEVERARI, 2009).
Com o desenvolvimento da capital paulista, houve a ocupação destes espaços por
parte de grandes avenidas, prédios, acarretando a mudança dessa população e dessa prática
esportiva para as periferias da cidade. Contudo, isso não é o diferencial entre o futebol de
várzea e o profissional, mas sim o modo de organização dos times. Em sua maioria possuindo
456
organização com caráter amador, como é no caso do Sete de Setembro, um clube que está
muito ligado a um grupo de amigos do bairro, a uma rua ou a uma determinada região. Que
decidem se juntar para jogar um futebol nos finais de semana livres e para isso organizam um
time, que pode ter diversos níveis de organização desde aquela mais amadora possível até a
semiprofissional. Nestes critérios se encaixa o Sete, com uma estrutura jurídica contando com
CNPJ, Diretoria, ata de fundação. Porém, sendo administrado por moradores do bairro.
Partindo deste tema, observando muito do que havia visto durante minha formação, a
relação de memória e poder (CHAGAS, 2000) poderia citá-lo, e como isso poderia ser
observado na relação da cidade de São Paulo com a sua memória, muito marcada também nos
diversos museus da maior cidade do Brasil. Faço aqui uma relação pelo fato do futebol de
várzea ser praticado, em sua plena maioria, nas periferias das grandes cidades. Talvez nesse
sentido, como outras tantas práticas das periferias, essa seja mais uma que passa despercebida
nessas relações de poder da memória. Como cita (BEVERARI, 2009) na apresentação da sua
tese mostrando o futebol de várzea enquanto espaço de resistência contra o poderio da elite.
Uma ação importante em torno da memória das periferias, com foco no futebol de várzea, foi
o tombamento do Parque do povo19, que logo posteriormente foi desfigurada em uma
requalificação do parque que destruiu a maior parte dos campos de futebol de várzea
tombados anteriormente (SCIFONI, 2013). Mostrando como essa memória mesmo que com a
força da lei tende a sofrer por relações de poder.
Justifica-se o trabalho pela reflexão sobre que tipo de memória que está sendo contada
nos museus e nas cidades. Através da busca pela memória do futebol de várzea, prática
difundida em grande parte das periferias da cidade de São Paulo, buscou-se sobre a memória
do Sete de Setembro, como meio de contar parte dessa história.
Para compreender a importância e dimensão dessa prática, seguem alguns números
sobre o futebol de várzea. Segundo a Liga paulistana de futebol amador (LPFA) em
19
SECRETARIA DE ESTADO DA CULTURA. CONDEPHAAT. Resolução SC no. 24 de 03 de
junho de 1995. Resolução de tombamento do Parque do Povo
457
reportagem a Folha de São Paulo em 03 de Abril de 2013, existiam cerca de 1.400 times de
futebol de várzea por toda a capital paulistana, contando somente os times filiados a esta liga.
Para suprir a demanda de espaços para esses times, não existe uma contagem oficial, mas,
segundo levantamento do site UOL feito em 2013, são cerca de 300 campos de futebol de
várzea espalhados pela capital paulista, sendo que 122 estão localizados na Zona Leste, quase
chegando à metade dos campos nesse levantamento. Ainda na reportagem cita que 200
campos estão em processo de reconhecimento. Mas, no caso estudado aqui, não entra na
contagem por não ser uma sede própria, e assim como o caso do Sete, existem diversos outros
campos espalhados pela cidade. A partir da mostra da prática do futebol de várzea, seguem os
dados dos Museus na cidade de São Paulo, que são os equipamentos Que simbolizam a
memória da cidade.
Segundo dados da prefeitura de São Paulo em 2013, nenhum dos 124 museus da
cidade de São Paulo, pertence ao distrito de São Miguel, ainda segundo o estudo a maioria
esmagadora dos museus se encontra longe das áreas periféricas. Observando os números
acima e todo cenário mostrado, o futebol de várzea e seu movimento enquanto prática, não só
esportiva, mas de sociabilidade, este trabalho justifica-se pela necessidade de pesquisa
acadêmica dessas práticas e memórias, por estarem se perdendo ao longo do tempo. Visto que
diversos campos vão dando espaço a prédios e mesmo clubes que tem uma tradição como o
Sete, pouco tem da sua memória salvaguardada.
Além da busca e analise dessa memória, que é uma pequena vertente da Museologia,
buscamos nesse trabalho a partir das novas práticas mais recentes da Museologia, mostrar a
relação de memória e poder (CHAGAS, 2011) questionando a falta de trabalhos e museus e
politicas de memórias nas periferias e das práticas que advém dessas minorias. Trazendo os
aspectos da museologia social que busca ampliar o olhar do estado para aquilo que é
considerado importante de ser preservado. Adaptando-se dos museus e da Museologia para as
novas necessidades da sociedade como aponta Mário Moutinho em um breve resumo sobre as
novas práticas da Museologia social:
458
A revolução museológica do nosso tempo - que se manifesta pela aparição
de museus comunitários, museus 'sansmurs', ecomuseus, museus itinerantes
ou museus que exploram as possibilidades aparentemente infinitas da
comunicação moderna - tem as suas raízes nesta nova tomada de consciência
orgânica e filosófica. (MOUTINHO, 2009, p.7)
459
com o bairro. Fizemos diversas entrevistas, visitas ao campo e ao clube, em diversos dias,
sendo eles de jogos ou não. Porém, durante a escrita e organização do trabalho, verificou-se a
viabilidade de utilização de duas entrevistas.21 Os outros diversos contatos feitos contribuíram
em muito para o trabalho a maneira de observar outras situações, reflexões e contatos que
poderiam trazer mais informações. O que não prejudicou o andamento e riqueza do trabalho,
só incentiva a posterior produção e aplicação da proposta.
Em sua entrevista, o Sr. Kaká trouxe 10 fotografias de sua própria escolha que ele
achou que tivesse alguma relação com a entrevista, dentre elas, fotos do bairro, fotos da sua
infância na escola do bairro, fotos em outros clubes e obviamente fotos do Sete. A primeira
entrevista utilizada para apresentação em citação é do Sr. Carlos Henrique da Silva, Kaká, 53
anos de idade, morador do bairro Vila Progresso e ex-jogador de futebol de várzea do clube
Sete, hoje é diretor do clube, sua atuação como jogador foi na década de 1990. Ele também
trabalha em uma associação que trata de crianças no bairro. Por ser membro da atual gestão
do clube, pôde nos dar um panorama atual sobre a situação do Sete, enquanto instituição,
como morador do bairro, pode nos traçar um panorama da relação do clube com o bairro,
inclusive historicamente (claro, sempre contando com sua atual posição de diretoria) e sua
longa história de relação com o Clube em diversas posições. Traz uma profundidade para
mostrar qual as relações históricas internas e externas contendo informações que se somam
com as apresentadas no site indicados pelas pessoas contatadas.
A Segunda entrevista foi realizada com o Sr. Sidnei Santos, 47 anos, morador da vila
progresso desde os cinco anos de idade, trabalha de mensageiro no centro de São Paulo no
banco de desenvolvimento de São Paulo. Ele ocupou a cadeira de conselheiro participativo de
São Paulo em 2015, atual presidente da associação comunidade esportiva da Vila Progresso.
21
A impossibilidade da utilização da entrevista do Sr. Diógenes, vulgo Gigante, foi pelo fato do arquivo
da entrevista ter corrompido e posteriormente por questão de agendas, a impossibilidade de uma nova entrevista.
Além do Sr. Valter de Almeida Costa que apesar de responder nossas perguntas, optou por indicar o Sr. Sidnei
para uma entrevista sobre o Bairro, por pensar que o Sidnei saberia responder melhor as questões acerca do
bairro.
460
Jogador de futebol de várzea. Ao entrevistar o Sidnei podemos trazer as memórias daqueles
que tem uma relação com o campo, mas, também, tem uma relação maior com o bairro. Por
ser uma liderança na Vila progresso, pode nos dar um panorama da relação do clube com o
bairro. Também, mostrando um pouco do bairro. São duas fotografias da quadra de esporte
que eles lutaram para conseguir e recortes de jornais retratando dessas conquistas, ao
perguntar sobre fotografias do campo, ele disse que possui apenas as suas memórias. Em sua
fala Sidnei fala da falta do costume de guardar objetos, embora tenha feito bastante coisa no
bairro e jogado bola no Sete diversas vezes, não guarda nenhuma fotografia. É difícil guardar,
tenho poucas fotos aqui, queria guardar mais. Mas, é muita coisa pra fazer. (entrevista
cedida pelo Sidnei)
Podemos relacionar as duas entrevistas dentro de diversas perspectivas que
mencionam o Clube enquanto objeto da memória que faz parte da vida de ambos. Uma delas é
relacionar o Sete enquanto espaço físico dentro de um bairro, a vila progresso. O
envolvimento das pessoas que ali vivem, seja das mais distantes como o Sidnei, quanto o
Kaká que é diretor do clube.
Considerações finais
O Sete de Setembro hoje é reflexo de 62 anos de trabalho, e ao analisarmos as
percepções do Sidnei e do Sr. Kaká sobre o campo podemos verificar sua importância, seja ao
tratar da relevância enquanto espaço de sociabilidade que falta no bairro, seja do ponto de
vista da memória do bairro. Pois, é o referencial de memória, que se tem quando se trata do
bairro. Pois a estação de trem foi desativada e ficaram fotografias, apesar da recente
desativação. Por isso, trazemos a conclusão de que, não apenas a permanência deste clube
com este campo no bairro é um ato de resistência de um bairro, que vai perdendo suas
memórias aos poucos, é um ato de lembrar a periferia que ela tem suas práticas e seus
costumes devem ser celebrados. Por isso a proposição, de uma pesquisa e continuidade da
busca por memórias do Sete e de outros clubes de futebol de várzea, para que futuramente
possam ser usados quem sabe para a criação de um Museu da várzea.
461
Referências bibliográficas
CANDAU, Joel. Memória e Identidade. Tradução: Maria Letícia Ferreira. São Paulo:
Contexto, 2012.
462
ENTRE TERRITÓRIOS: AS NARRATIVAS SOB PERSPECTIVAS DAS
COMUNIDADES DE SÃO LÁZARO
Sasha Morbeck Miranda*
Kananda Gomes De Jesus**
Lucas Mahacri Dos Santos De Oliveira***
Anna Paula Da Silva****
Abstract: This text presents an extension project that is currently being developed, Projeto de
educação patrimonial: preservação do campus de São Lázaro da Universidade Federal da Bahia
(UFBA). The project aims to promote dialogues between the internal community (São Lázaro campus´
community), and the external community (São Lázaro´s community) in order to develop educational,
dialogical, relational and cultural actions between them (heritage education) so as to preserve the
territory and the practices between these social groups that are involved. The project establishes the
mapping of communities throughout the analysis of surveys and interviews and the bimonthly
meetings where texts and the possibilities of actions within the communities are discussed. The
proposal dialogues about the perspective of the extensionist practice at university as an opportunity of
integration between the university and society leading to a social change and it also deals with
reflections on social museology. In this way, the project aims to create practices of integration
between both communities collectively.
Key-words: extension Project; heritage education; São Lázaro´s campus; university; social
museology.
463
Este texto é fruto do projeto de extensão, Projeto de educação patrimonial:
preservação do campus de São Lázaro da Universidade Federal da Bahia (UFBA), cujo
objetivo principal é estabelecer uma comunicação entre as comunidades internas e externas ao
campus citado em prol da preservação do território. A universidade tem como projeto político
o desenvolvimento de atividades relacionadas ao ensino, pesquisa e extensão, que por sua vez
são indissociáveis, tendo a extensão como uma forma de integração entre a universidade e a
sociedade.
Neste sentido, o projeto visa diálogos entre a comunidade interna da UFBA, Faculdade
de Filosofia e Ciências Humanas – campus de São Lázaro, e a comunidade externa,
especificamente a comunidade de São Lázaro, que se encontra ao lado da área federal da
supracitada instituição. A proposta foi criada por duas docentes do Departamento de
Museologia, Professora XXXXXXX e Professora XXXXXXX, que a partir do incômodo
sobre o desconhecimento do território do campus e da pouca proximidade e contato entre as
comunidades propuseram o referido projeto. A proposta também conta com cinco discentes
voluntários para o seu desenvolvimento.
464
indivíduos e os contextos sociais que os envolvem. Para Milton Santos (1998, p. 15) “É o uso
do território, e não o território em si mesmo, que faz dele objeto de análise social”. Neste
sentido, analisamos, a partir do projeto, as questões políticas, sociais, econômicas, culturais
que envolvem as comunidades e os seus (des)encontros, afinal o “território são formas, mas o
território usado são objetos e ações, sinônimo de espaço humano, espaço habitado”
(SANTOS, 1998, p. 16).
Até o momento o projeto reconheceu que as comunidades interna e externa têm pouca
proximidade, ambas conhecem pouco uma da outra, e o que conhecem é de cunho pejorativo,
principalmente a visão dos externos para com os internos. Temos percebido que os estudantes
do campus de São Lázaro, em sua grande maioria, desconhecem a existência da comunidade,
tendo o nome do campus como referência do próprio local.
465
Desse modo, a comunidade se sente excluída de algo que fica em seu próprio bairro e
que poderia ser utilizado não só como lazer para os moradores, mas como um lugar de
atividades de ensino para crianças, adolescentes e adultos. Neste sentido, o projeto pretende
estreitar laços e estabelecer diálogos entre as comunidades, na construção coletiva do campus
como um lugar acessível e enriquecedor para que a comunidade externa se sinta bem, assim
como os que estudam e trabalham na instituição. Para Hugues de Varine (1995, p. 26) “ [...]
qualquer processo de desenvolvimento precisa produzir mudanças positivas, estando ao
mesmo tempo ligado às raízes culturais e psicológicas da comunidade [...]”. Portanto, a
comunidade de São Lázaro precisa se sentir parte positivamente, culturalmente e
psicologicamente ao campus que recebe o seu nome.
Neste sentido, nos munimos de reflexões sobre a museologia social a partir das
informações coletadas, como forma de produzir interações entre os grupos que estão inseridos
nesta realidade, tornando possível a preservação e a exaltação do campus de São Lázaro, e o
reconhecimento e desenvolvimento da identidade do local e da comunidade como um todo
com vias à transformação da realidade desses grupos.
466
poder da memória, do patrimônio e do museu a favor das comunidades
populares, dos povos indígenas e quilombolas, dos movimentos sociais,
incluindo aí, o movimento LGBT, o MST e outros. Seria possível dizer que
toda museologia é social, se toda museologia, sem distinção, estivesse
comprometida do ponto de vista teórico e prático com as questões aqui
apresentadas; mas isso não acontece, não é verdade e sobre esse ponto não
devemos e não podemos ter ingenuidade (CHAGAS; GOUVEIA, 2014, p.
17).
467
detentoras das referências culturais onde convivem noções de patrimônio
cultural diversas22.
468
Referências
SANTOS, Milton. O retorno de território. In: SANTOS, Milton; SOUZA, Maria Adélia A.
de; SILVEIRA, Maria Laura. Território: globalização e fragmentação. 4 ed. São Paulo:
Editora Hucitec / Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento
Urbano e Regional, 1998, p. 15-20.
469
MAPEANDO CAMINHOS:DELINEAMENTOS SOBRE A PRESERVAÇÃO DO
CAMPUS DE SÃO LÁZARO
Abstract: This paper presents the activities developed in an extension project which main objective is
to understand and to preserve the São Lázaro da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Federal da Bahia (FFCH-UFBA) campus as patrimony, through the approximation
between the Academic and local communities in order to generate changes in their relation from
museological practices, using action research as one of the methodological procedures, based on
interviews and questionnaires. Studies and experiences of Hugues De Varine on Social Museology,
allied to the discussions and theoretical contextualization of Mário Chagas and Inês Gouveia, support
this research for patrimonialization of the locality, aiming the reciprocal knowledge among
communities and the strengthening of the identity.
470
O interesse da comunidade é o primeiro passo para iniciar-se o processo de
desenvolvimento da cultura local. Mas, como despertar tal interesse? Como contribuir para a
abertura de mais possibilidades de comunidades periféricas elegerem seus próprios
patrimônios? E o que dizer dos espaços no entorno dos campus universitários? Estes são
questionamentos que vem permeando discussões acadêmicas no curso de Museologia da
Universidade Federal da Bahia.
Essas indagações originaram um projeto de extensão objetivando a interpretação e
preservação do campus de São Lázaro da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Federal da Bahia (FFCH-UFBA), enquanto patrimônio, ressaltando-o como
ferramenta relevante no processo de desenvolvimento da cidadania dos indivíduos e grupos
sociais que se relacionam com o espaço e estão em seu entorno, utilizando como aporte
teórico os estudos relacionados a Museologia Social.
A primeira etapa do projeto, concluída recentemente, foi o mapeamento dos dois
públicos citados acima, a partir de entrevistas e aplicação de questionários. Apresenta-se aqui
o processo de trabalho e resultados obtidos com os frequentadores e os que desenvolvem
atividades laborais e estudantis no campus.
Da base teórica
Pensar em Museologia Social é ter em mente as complexidades em torno de um campo
que permite inúmeras abordagens teórico-metodológicas, mas, sobretudo, práticas. O termo
vem sendo usado23 para designar a construção de narrativas museológicas desenvolvidas a
partir dos próprios agentes da comunidade, permitindo-os eleger seus patrimônios. No
entanto, é preciso esclarecer que o que a caracteriza são “os compromissos sociais que assume
e com os quais se vincula” e portanto
23 No Brasil, o termo passa a ser usado, a partir dos anos 1990, para designar uma museologia
popular, comunitária, crítica e ativa, em detrimento do termo Nova Museologia. Reflexões de Hugues de
Varine, Mário Chagas e Inês Gouveia sobre o tema norteiam o uso do termo neste projeto.
471
[…] A museologia social, na perspectiva aqui apresentada, está
comprometida com a redução das injustiças e desigualdades sociais; com o
combate aos preconceitos; com a melhoria da qualidade de vida coletiva;
com o fortalecimento da dignidade e da coesão social; com a utilização do
poder da memória, do patrimônio e do museu a favor das comunidades
populares, dos povos indígenas e quilombolas, dos movimentos sociais,
incluindo aí, o movimento LGBT, o MST e outros. (CHAGAS, 2014, p.17)
Para trazer à luz a importância dessa tendência da museologia, Varine (2014) assinala
a principal diferença entre o museu dito normal e o comunitário: o primeiro, propaga o
conhecimento e a cultura, em grande parte eleitos pelas elites; enquanto o segundo serve à
comunidade, impulsionando seu desenvolvimento sociocultural.
Há mais de quarenta anos, a comunidade acadêmica e a local coexistem diariamente,
dividindo e disputando espaços na localidade. Docentes do curso de Museologia, inseridos na
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, localizada no bairro da Federação, precisamente,
dentro da comunidade conhecida por “São Lázaro”, criaram, em outubro de 2016, o projeto de
extensão Preservação do Campus de São Lázaro, cuja principal discussão é encontrar uma
prática museológica que contribua para a aproximação entre esses grupos e gere mudanças
dentro e fora do campus.
Durante quase um ano de atividades do projeto, vários discentes integraram a equipe e
junto com as coordenadoras realizaram atividades diversas: entrevistas, aplicação de
questionários, leitura e discussões de textos, visitas à comunidade externa, divulgação do
projeto e análise de dados, pesquisas, para citar apenas algumas.
Foram realizadas, concomitantemente, atividades de pesquisa com os dois públicos e a
apresentação dos dados e análises realizadas intramuros estão relacionados no próximo
tópico.
472
Desse modo, foram executadas entrevistas dentro do espaço interno buscando obter opiniões e
visões, a partir de alguns questionamentos: É possível estreitar o vínculo entre as
comunidades interna e externa? Em caso positivo, como? Qual é a responsabilidade individual
de integrantes da academia em participar nesse processo?
Com base na análise de dados gerados nessas entrevistas evidencia-se a preocupação
com a segurança do campus, e sobretudo, a distância que as duas comunidades estabelecem
uma da outra.
Apesar dos acadêmicos participarem de festas nas proximidades da comunidade, e
muitas vezes, fazerem uso dos bares da região como espaço de entretenimento e
confraternização, pouco conhecem sobre o entorno. Além disso, a maior parte dos
funcionários, sejam servidores públicos, terceirizados ou informais, desconhecem e não
estabelecem quaisquer relações com o espaço extramuros, a não ser de usá-lo como acesso ao
campus.
Por outro lado, é possível notar uma inquietação de frequentadores e ocupantes do
campus, apesar de não se perceberem como agentes de mudança, a partir das ideias
compartilhadas como soluções para os problemas apontados que sugerem uma aproximação
através de festas, feiras, palestras, fóruns, oficinas, cursos, projetos de extensão, eventos
culturais, disponibilizar a biblioteca também para a comunidade, criar um memorial da
comunidade, atividades audiovisuais, a FFCH disponibilizar serviços médicos, como por
exemplo, atendimento psicológico, criação de um parque, aulas esportivas, entre outros
A amostragem analisada gerou os resultados expostos no gráfico a seguir.
473
Tabela 1: Quantidade de entrevistados: 72. Respostas em múltipla escolha.
desenvolvidos
Projetos Sociais
Reforço na segurança
Biblioteca Autonoma
Projetos de extensão
Festas
Cursos 16
Ações Culturais 14
Feiras
Palestras 17
Atividades Comunitaria 14
Memorial/Museu
Não souberam 14
10 12 14 16 18
Fonte: Gráfico gerado por membros do projeto a partir da tabulação dos dados coletados em campo.
A partir dos dados recolhidos, a etapa seguinte propõe a divulgação dos resultados,
principalmente relacionados às atividades sugeridas para serem desenvolvidas, visando um
diálogo entre as duas comunidades, utilizando como ferramenta ações culturais e educativas
com o patrimônio. O interesse é convidar os públicos a conhecerem o projeto, em busca de
474
agentes desenvolvedores, que possam se inserir e contribuir com ações, propostas e sugestões,
mantendo-o em constante processo de transformação.
Apontamentos
Alguns aspectos da relação dos estudantes, professores e funcionários da FFCH com a
comunidade de São Lázaro foram expostos nas entrevistas realizadas. Grande parte dos
estudantes frequentam apenas a universidade, apresentando desinteresse pela localidade de
forma geral. Porém, também é amplo o número de entrevistados que sugeriram formas de
aproximação entre as comunidades.
Trazer a comunidade local para dentro do campus, através de oficinas de arte,
seminários, saraus, atividades de saúde e lazer são as formas de aproximação mais indicadas
pelo público interno. Mas, é preciso ouvir também a comunidade local, conhecer suas
demandas e dificuldades.
Conhecer é uma maneira de enraizar nas dimensões sociológica, étnica e antropológica
da cultura local e origina uma riqueza de informações, bem como a oportunidade de novos
enfoques norteadores da investigação acadêmica. A busca pela compreensão da comunidade
que nos cerca cotidianamente contribui para o entendimento da nossa identidade, de forma
ampla e intensa, a fim de preservá-la.
Referências bibliográficas
475
VARINE, Hugues De. O museu comunitário como processo continuado. Revista Cadernos
do Ceom, v. 27, n. 41, p. 25-35, 2014.
476
A favor dos museus
comunitários: reflexões
e prática
477
A MUSEALIZAÇÃO NA EDUCAÇÃO COM BASE NA IDENTIDADE SOCIAL
Resumo: Este artigo é um recorte do projeto “Cartografia do patrimônio do bairro do Guamá pela
memória de seus moradores”, que teve início nas discussões das aulas de Artes, na Escola Estadual de
Ensino Médio Governador Alexandre Zacharias de Assumpção, com a intenção de estabelecer relação
entre museu, sociedade e patrimônio. Pressupondo-se o diálogo entre saberes disciplinares
convergentes com a dimensão social, política, cultural e crítica nos processos formativos integrados às
práticas pedagógicas escolares, buscou-se identificar o conhecimento dos alunos sobre o patrimônio
do seu bairro, local de suas vivências. A execução do projeto consiste no mapeamento do bairro e sua
divisão em “Circuitos Culturais Interativos” delimitados, viabilizando o levantamento do patrimônio
material e imaterial da área, para elaboração de passeios guiados pelos alunos a esses locais, o que
possibilitou o cruzamento de olhares entre saberes disciplinares, saberes cotidianos e suas interfaces
com os múltiplos processos de patrimonialização e musealização, em prática pedagógica que se
aproxima da nova concepção de museologia.
Abstract: This article is a summary of the project “Heritage Cartography of the Guamá neighborhood
in memory of its residents”, which had its start in the discussions of the Arts classes, at the State
Preparatory High School Governador Alexandre Zacharias de Assumpção, with the intention of
establishing a relationship between museum, society and heritage. The assumption of the dialogue
between convergent disciplinary knowledge with the social, political, cultural dimension And critics
on the integrated training processes to the teaching practices, we sought to identify the students'
knowledge on the heritage of your neighborhood, place of their experiences. The execution of the
project consists of mapping the neighborhood and its division into “Interactive Cultural Circuits”
delimited, allowing the lifting of the tangible and intangible heritage of the area, in order to prepare
guided tours by the students to these places, which allowed the crossing of glances between
disciplinary knowledge, everyday knowledge and their interfaces with multiple heritage processes and
musealization, In pedagogical practice that approaches the new conception of museology.
478
Introdução
A relação entre museu, sociedade e patrimônio pressupõe o diálogo com outros
saberes disciplinares que convergem para a dimensão social, política, cultural e crítica nos
processos formativos integrados às práticas pedagógicas escolares. Foi a partir dessa
concepção crítica e reflexiva, numa compreensão ampla do conceito de patrimônio, que a
experiência dos “Circuitos Culturais Interativos”, desenvolvida com discentes do terceiro ano
do nível médio, na Escola Estadual de Ensino Médio Governador Alexandre Zacharias de
Assumpção, no bairro do Guamá, possibilitou o cruzamento de olhares entre os saberes
disciplinares e os saberes cotidianos, bem como suas interfaces com os múltiplos processos de
patrimonialização da nova museologia.
479
É nesse contexto que o cotidiano dos discentes trazidos até a escola aparece não
apenas como espaço para apreensão e produção de conhecimentos sistematizados, mas
principalmente como o lugar onde vivências são compartilhadas, experiências cotidianas estão
imersas em trocas culturais que trazem à tona identidades plasmadas na trama da vida social
ocorrida no próprio bairro.
480
museus comunitários, mas sim possibilitar uma educação museal para tolerar a diferença e
aceitar a pluralidade. Dessa forma, a consolidação do conceito de museu integral se dá por
meio da relação que os sujeitos representados estabelecem com o espaço, o tempo e as
memórias que revelam a identidade de determinado território, possibilitando a formação de
museus comunitários como alternativa para valorizar as dinâmicas sociais de comunidades
locais e suas formas específicas de interação com o patrimônio e (re)construção da identidade.
(Id, 2012).
uma museologia mais simples, que nada tem a ver com grandes ventos
culturais (...). Este tipo de museologia é composto por museus destinados a
coletar a evidência da cultura material e objetos utilizados no cotidiano, e
cuja importância e utilidade diminui gradualmente. Estes são museus
vinculados a uma área limitada, e que têm como objetivo contar pequenas
histórias locais, relembrando a pessoas de comunidades frequentemente não
maiores do que lugarejos, [quais são] as suas raízes (G. PINNA apud
MAGGI & FALLETTI, 2000, p. 2, tradução SCHEINER, T.).
481
evolutivos de seus sistemas de pensamento, uma vez que seu estudo emerge no interior das
múltiplas relações que ser o humano estabelece com o real, criando diferentes representações
e “formas de museus: museus tradicionais, baseados no objeto; museus de território,
relacionados ao patrimônio material e imaterial das sociedades do passado e do presente;
museus da natureza; museus virtuais/digitais” (SCHEINER apud SCHEINER, 2012, p.18).
1
Termo pensado a partir da concepção de “modernidade líquida”, proposta por Zygmunt Bauman, na qual as
experiências são construídas no cotidiano por meio de uma insegurança estrutural que, somada à exaltação da
liberdade consumidora individual, resulta em aparatos técnicos para proteção do sujeito. Ver: BAUMAN,
Zygmunt. O mal estar na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
482
Pela observação de uma seleção cultural escolar, Forquin (1992) apresenta a
função social da educação enquanto elemento essencial para transmissão, conservação e
perpetuação de traços culturais herdados do passado, mas que são reinterpretados e
reavaliados constantemente nas relações sociais cotidianas. Nesse sentido, a memória cultural
está imersa num intenso processo de reinvenção social, no qual os processos formativos são
integrados por meio das instituições educacionais formais que selecionam e incorporam
aspectos da memória coletiva aos programas de ensino.
Isso revela o conflito entre as transformações culturais necessárias e o que se
conserva, colocando em xeque tanto a memória escolar, quanto a memória coletiva que
transmite parte da experiência humana acumulada ao longo do tempo, pois as formas de
representação e os vínculos sociais que são estabelecidos com o passado revelam aspectos
políticos, sociais e ideológicos de determinada comunidade.
483
Entretanto, essas evidências materiais constituídas como bens incorporados ao
cotidiano permitem uma série de questionamentos relacionados aos laços de pertencimento
construídos socialmente, na medida em que reiteram ou excluem tais vestígios, contrapondo
as ideias de identidades compartilhadas e a ressignificação desses lugares de memória que
serão selecionados ou não para valorização e preservação.
484
Essa “espetacularização reificada” do espaço urbano, como denominou Ulpiano
de Meneses ao processo de transformação desse patrimônio em coisa, isto é, um objeto a ser
consumido pelas pessoas para produzir renda e gerar lucro na economia capitalista, na medida
em que o “marketing da memória” e o “resgate da cultura” transformam um espaço cultural
naturalizado em algo que não carece de explicação alguma para sua absorção. Dessa forma, o
autor aponta o museu como um lugar privilegiado para se tomar consciência de que o
patrimônio é um universo artificial que traduz valores, interesses, focos de conflitos e suportes
de dominação que adquirem significados em várias dimensões, sob o olhar atento do
observador, uma vez que a informação do conhecimento ali produzido estabelece vínculos de
subjetividade, inclusive identitários, que são criados ou reativados, de acordo com o exercício
da imaginação de cada sujeito (apud BITTENCOURT, 2012, 127-128).
485
dos sujeitos nela envolvidos, ocorrendo antes, durante e depois do processo formal,
constituindo-se em múltiplos espaços de reflexão para além da escola. Nesse percurso, ocorre
o processo de subjetivação da cultura e do conhecimento, por meio da reflexão crítica em
relação à realidade, no sentido de extrair dela substâncias e conteúdos significativos, ou seja,
situações didáticas que permitam a integração entre conhecimentos disciplinares e cotidianos,
conhecimentos teóricos e conhecimentos que emergem das tramas sociais que envolvem os
alunos (LIBÂNEO, 2013).
486
proposta de uma prática criativa intelectual, para autonomia do sujeito no interior de sua
própria cultura, na vida coletiva que se dá em meio às dinâmicas produtivas ligadas ao mundo
do trabalho. Nesse sentido, o objetivo da escola criativa proposto por Gramsci, não significa
restringir seu acesso aos prodigiosos inventores, mas sim estimular os sujeitos ao contato com
métodos de investigação e conhecimento, no qual a cultura aparece como elemento intrínseco
aos aspectos intelectuais e antropológicos que revelam saberes, fazeres, representações sociais
e formas de vida constituídas em modos de transmissão e aprendizagens (re)inventados
cotidianamente.
2
O processo de ocupação do bairro do Guamá está diretamente relacionado com a política de modernização e
embelezamento da cidade de Belém durante a Bélle Èpoque, transformando-o em lugar de segregação social para
higienizar a cidade de seus males. Ver SARGES, Maria de N. Riquezas produzindo a Belle Époque.
487
conferem o título de bairro popular, tendo em vista o considerável fluxo diário de pessoas
vindas de outras partes da cidade para a Universidade e entrepostos comerciais localizados em
suas adjacências (DIAS JR., 2009).
488
definem como “meu setor”, minha escola”, “minha rua” (RIBEIRO, 2011). Tais
movimentos revelam que há uma intensa vida cultural, social, política e econômica no bairro,
que é entrelaçada pelo sentimento de pertença de seus sujeitos que, a partir dos laços afetivos
estabelecidos com os lugares que integram a realidade e o cotidiano do bairro, interferem
efetitivamente, atribuindo significados à sua própria existência de seus habitantes.
Nesse sentido, as contribuições de Santos (1992), Harvey (1996), Abreu (1998) e
Magnoli (1999) enfatizam a importância da temporalidade para a análise da organização
espacial, ou seja, o espaço passa a ser concebido como um produto da história, na medida em
que sua materialização no tempo resulta de múltiplas formas construídas em diversas escalas
temporais. Assim, a história de determinado espaço urbano – no caso específico em questão o
bairro do Guamá – é revelada nas formas dinâmicas assumidas e (re)construídas ao longo dos
processos históricos vivenciados em temporalidades determinadas.
Nessa perspectiva, o espaço (bairro) deve ser analisado como o lugar da vida
social no qual o sujeito encontra-se inserido, onde ocorrem disputas práticas e simbólicas que
(re)significam a vida do indivíduo e das territorialidades construídas ao longo do tempo, a
partir da relação sujeito-sociedade, enquanto elemento constitutivo da identidade individual e
coletiva, num determinado tempo e espaço da história. Para Le Goff (1996), a memória é
intrínseca à identidade individual e coletiva, uma vez que tenta resguardar o passado para
direcionar o presente e nortear as perspectivas futuras.
489
Essa nova realidade urbana é traçada por ações humanas que recompõem o espaço
e, como “obra de uma sociedade que remodela, segundo suas necessidades, o solo em que
vive é, todos intuem isso, um fato eminentemente ‘histórico’” (BLOCH, 2001, p. 53). A
(re)construção do espaço determinado por diversas realidades sociais constituiu-se como
elemento intrínseco às formas de identificação com o lugar, delineando formas de vida
singulares em identidades compartilhadas, mas não dissociadas do cotidiano da cidade.
Isso permite a compreensão do espaço como elemento que constrói
territorialidades imersas em laços de pertencimento ao longo do tempo, considerando também
a cultura material e imaterial que o integra, aparecendo como o testemunho do passado que
chega ao tempo presente, ou seja, são rugosidades que possibilitam o “encontro com o
passado” (BLOCH, 2001). Nesse sentido, Hobsbawm (2013) afirma que a veracidade da
narrativa histórica está fundamentada nas evidências do passado.
490
Dessa forma, tanto os monumentos quanto o patrimônio edificado devem ser
compreendidos como elementos intrínsecos ao contexto urbano que, imbricados e
circunscritos na história da cidade, revelam não apenas os laços com a memória social, mas
também sua razão de existência nos modos de vida e nas redes de sociabilidade constituídas
cotidianamente entre os sujeitos integrados ao seu entorno, ou seja, “(...) para além de sua
condição de documentos, eles se transformam em objetos plenos de vitalidade, na medida em
que participam da vida das cidades” (CAMPELO, 2004, p. 6).
A partir desta definição, o bairro pode ser considerado um espaço vivo no qual se
estabelecem relações sociais, pois é difícil entender a organização desse espaço e suas formas
de utilização dissociadas de seus habitantes, visto que constitui-se como um lugar de
vivências, experiências, trocas sociais e culturais, ou seja, um espaço heterogêneo que, em
constantes permanências e transformações, revela a convivência entre o novo e o tradicional,
entre a identidade e a história de seus moradores (ZANIRATO, 2006).
Isso demonstra que a realidade cotidiana trazida pelos discentes até à escola
revelam a complexidade dos processos sociais emergentes na contemporaneidade,
possibilitando não apenas discussões críticas sobre os aspectos políticos, sociais, econômicos
e estruturais do bairro, mas principalmente perceber qual a concepção que os jovens da Escola
Estadual de Ensino Médio Governador Alexandre Zacharias de Assumpção têm em relação
aos elementos integrados às práticas sociais cotidianas e em que medida estas dão sentido ao
espaço urbano enquanto parte que constitui a identidade do bairro.
491
com a realidade, levantando-se questões como: Que lugares eles apontavam como patrimônio
e o que reconheciam como formas culturais expressivas da identidade do bairro? Que
reflexões eles faziam ou reconheciam em relação à realidade dos moradores, aproximando-os
da cultura vivenciada cotidianamente na experiência prática relacionada aos patrimônios
culturais identificados? Qual a percepção que estas pessoas têm acumulado sobre o legado
cultural que compõe a identidade cotidiana do espaço em que vivem?
492
desenvolver procedimentos atitudinais que estão direcionados à valorização e preservação da
cultura enquanto elemento intrínseco na relação com o espaço, cujo reconhecimento, como
parte de sua própria história e identidade, é condição para a compreensão de si enquanto
sujeito inserido num processo de ensino-aprendizagem para a cidadania, em busca de perceber
sua responsabilidade diante da valorização e preservação de seu respectivo patrimônio,
ratificando sua própria vivência cidadã, além de levá-lo ao entendimento de que é também
agente construtor que integra estes bens culturais.
Considerações finais
3
Ver a ideia de cultura na obra: WILLIAMS, R. Cultura e sociedade. : 1780-1950. Tradução de Leônidas H. B.
Hegenberg, Octanny Silveira da Mota e Anísio Teixeira. São Paulo: Editora Nacional, [1969].
493
saber escolar. Em que medida tais conhecimentos tem possibilitado aos seus sujeitos a
materialidade da consciência históricae a subjetivação da própria cultura? Que contribuições o
saber formal tem oferecido para estimular o desenvolvimento das seguintes competências:
experiência, interpretação, orientação, valorização e preservação da cultura enquanto
constructo social que constitui a identidade, produzindo a aprendizagem histórica para
compreensão da realidade?
494
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497
A PRODUÇÃO E APROPRIAÇÃO DOS ESPAÇOS: O PONTO DE MEMÓRIA
MUSEU DO TAQUARIL
Alexandra Nascimento*
Wania Maria De Araújo**
Resumo: Este trabalho tem como objetivo analisar a criação do Ponto de Memória Museu do
Taquaril, a partir da ampliação do conceito de patrimônio, da adoção de novas práticas museológicas,
da expressão de novos atores sociais, da cultura de mobilização e da participação dos moradores, bem
como das iniciativas do Estado e da sociedade em relação à democratização das políticas culturais. Tal
espaço de memória tem como objetivo reconhecer a memória dos lugares a partir das vivências,
memórias e representações de seus moradores. Este artigo consiste em um estudo elaborado a partir
dos relatos de moradores e da observação e toma como referência as reflexões acerca das políticas de
patrimônio, memória, identidade, território, e desenvolvimento local.
Abstract:
The aim of this paper is to analyze the creation of the Ponto de Memória Museu do Taquaril, based on
the expansion of the heritage concept, the adoption of new museological practices, the expression of
new social actors, the culture of mobilization and the participation of the residents, as well as the
initiatives of the State and society in relation to the democratization of cultural policies. Such memory
space aims to recognize the memory of places from the experiences, memories and representations of
its residents. This article consists of a study based on the reports of residents and observation and takes
as reference the reflections on patrimony, memory, identity, territory, and local development policies.
498
Memória, patrimônio e museus: construindo novas abordagens
499
Os museus constituem-se a partir da “materialização” das memórias coletivas
construídas por determinados grupos que constroem e reafirmam sua identidade. Estes se
instituem “lugares da memória” (NORA, 1995), uma vez que sua importância reside no fato
de se constituir instrumento de preservação e transmissão das identidades e tradições. A
memória possibilita a combinação entre o individual e o coletivo, uma vez que os fatos
registrados permitem uma leitura e apropriação pessoal, ainda que sempre apoiada em
referenciais coletivos. A conexão entre passado pessoal e memória coletiva determina uma
identidade, alimentada pela lembrança de tempos passados, a fatos que nem mesmo foram
presenciados, mas que, significam um vínculo comum aos grupos que compõe a sociedade
(PINTO, 1998).
As políticas voltadas para a preservação do patrimônio cultural em estreita relação
com as políticas museais vêm sendo tema de constantes discussões, atraindo a atenção não
somente do poder público, mas também da sociedade civil. O entendimento acerca do
patrimônio, assim como das práticas museais vem se alterando ao longo da história, fruto das
mudanças históricas e das maneiras de refletir sobre elas. Nesse sentido, para que se possa
compreender as novas interpretações acerca da preservação, se faz necessária uma abordagem
acerca da atuação do poder público no campo que envolve as políticas culturais.
A primeira manifestação jurídica do patrimônio histórico no Brasil está presente na
Constituição de 1934. Em 1937, o Decreto-lei 25 de 30 de novembro irá organizar a proteção
do patrimônio histórico e artístico nacional, tendo como principal instrumento de preservação
o tombamento. Neste período, somente algumas cidades consideradas históricas como Ouro
Preto, Olinda, Recife e Salvador, tiveram seus conjuntos urbanos tombados, enquanto nas
outras cidades privilegiou-se o tombamento de bens isolados, em um discurso orientado pela
ideia de excepcionalidade e universalidade. Nesse sentido, ainda que o termo patrimônio seja
tomado como expressão de um bem coletivo, cabe a sua definição ou escolha, a determinados
grupos: a coletividade, constituída por grupos diversos que possuem interesses distintos e em
grande parte das vezes conflitantes, passa representar uma “comunidade imaginada” a partir
de determinados bens materiais determinados como excepcionais, belos ou exemplares, que
500
não contemplam as memórias ou identidades dos grupos que a integram. O patrimônio se
constitui uma coleção simbólica e unificadora, que tem como objetivo construir referências
comuns a todos os cidadãos, o que possibilita entrever a sua importância política.
As políticas de preservação no Brasil, cuja matriz encontra raízes na concepção
instituída pela Revolução Francesa de nação, têm início a partir de um entendimento do
patrimônio como um bem material concreto que expressa valores compartilhados pelo “povo
brasileiro”, independentemente das culturas nas quais ele se percebe e se identifica. Para
tanto, são criadas as instituições patrimoniais, os serviços de proteção ao patrimônio,
responsáveis também pela administração dos museus, cuja burocracia se compõe por
profissionais de áreas diversas. Os critérios adotados para a seleção de tais bens estão
vinculados às características estéticas e a autenticidade. Tais instituições, vinculadas às esferas
de poder federal, reforçam o 1990 caráter nacionalista da preservação. Cabe destacar ainda o
caráter elitista das políticas de preservação, pautado pelo discurso positivista de exaltação dos
grandes feitos e heróis, cujos objetos e edificações contariam a “história oficial da nação”
branca e européia. Nesse sentido, a construção do patrimônio cultural está estritamente
vinculada às concepções que cada época tem a respeito do que, para quem e por que
preservar: o que sobrevive como memória coletiva de tempos passados não é o conjunto de
monumentos e documentos que existiram, mas os efeitos das escolhas de historiadores e pelas
forças que atuaram em cada período histórico (LE GOFF, 1990).
O período compreendido entre 1967 e 1979 demonstra algumas alterações nas
políticas de preservação no Brasil influenciadas por novas diretrizes internacionais. Essas
transformações visavam implementar medidas que incorporassem outras cidades. O conceito
de “sítio urbano” veio a substituir o de “cidade monumento”, que tratava as cidades ditas
“históricas” como espaços intocados, e o patrimônio passou a ser compreendido como parte
de transformações temporais. Desse modo, a preservação não mais visava exclusivamente à
manutenção do passado, mas a possibilidade de interação do tempo presente com o passado.
Cabe destacar que durante tal período, o regime ditatorial vigente no país, percebia na
preservação do patrimônio, principalmente em relação às cidades coloniais, uma possibilidade
501
de crescimento econômico a partir do turismo, o que ocasionou uma preocupação com a
conservação dos monumentos. A preservação faz parte das preocupações dos governos
ditatoriais cuja valorização turística do patrimônio possibilita a manipulação de um universo
simbólico que tem como objetivo o reforço do civismo e a construção da imagem de uma
nação com raízes históricas, tradição e grande potencial rumo ao futuro.
Data desse período, as discussões a respeito das características e funções tradicionais
dos museus, uma vez que estas não estavam em consonância com as novas práticas culturais
existentes nas sociedades contemporâneas. Tais discussões constituíram o movimento
intitulado nova museologia4, estreitamente vinculado aos movimentos de redemocratização na
América Latina. Nesse sentido, à luz das novas formas de se pensar a história e na esteira dos
movimentos sociais que buscavam a redemocratização do país e o efetivo exercício direito de
cidadania, abre-se novas possibilidades de pensar a preservação. As pressões pela participação
de grupos excluídos dos processos decisórios transformaram o universo das políticas públicas,
em estreita relação com os movimentos ocorridos no ano de 1968 em Paris. Os direitos
conquistados de participação direta na gestão pública possibilitaram maior envolvimento dos
atores em questões de ordens diversas, sejam elas sociais, políticas ou ambientais. Assim, a
Constituição de 1988, enfatiza o conceito de Patrimônio Cultural e estabelece a competência
comum da União, Estados e Municípios na proteção, além de assegurar o direito à cultura,
essa prática social tão abrangente que atravessa todas as demais. Para a
maioria dos brasileiros o direito à memória caminha junto com o despertar
político... A preservação de sítios e monumentos do passado, tornados
presentes pelo instrumento do tombamento, faz parte das reivindicações dos
movimentos sociais. O tombamento da Serra da Barriga nas Alagoas, e do
Ilê Ya Nassô Oká – o terreiro da Casa Branca – na Bahia, a demarcação dos
territórios indígenas, a criação de centro de documentação e a organização de
arquivos não governamentais atestam que a pluralidade cultural não se reduz
a um denominador comum capaz de indicar, documentar, proteger e
4
A denominada nova museologia, desde a sua origem abrigava diferentes denominações: museologia popular,
museologia ativa, ecomuseologia, museologia comunitária, museologia crítica, museologia dialógica e outras. A
perda de potência da expressão nova museologia contribuiu para o fortalecimento e a ascensão, especialmente
após os anos de 1990, da denominada museologia social ou sociomuseologia (CHAGAS; GOUVEIA, 2014, p.
16).
502
promover uma vasta gama de modos de criar, fazer e viver, o que demanda
estudos e pesquisas rigorosos capazes de propiciar outras leituras dos bens
culturais consagrados, como é o caso do patrimônio arquitetônico (MONTE
MÓR et al, 1995, p. 5).
O patrimônio, antes visto como um bem que expressava identidade nacional, passa a
ser reconhecido como expressão de identidades municipais. A proteção municipal se torna a
grande novidade, viabilizada pela maior autonomia dos municípios estabelecida pela
Constituição. A preservação do patrimônio histórico e cultural no âmbito municipal vem se
modificando a partir de novas concepções acerca do que deve ser entendido por patrimônio –
o conceito de patrimônio cultural ultrapassou a visão restrita e os aspectos de arquitetura, da
arte, da história, articula-se a outras áreas do conhecimento epistemológico e filosófico, bem
como às ciências sociais.
No campo da história, as análises macroeconômicas se associam às relações
interpessoais entre indivíduos, grupos e classes e tomam como referência as vivências,
memórias e representações. As pesquisas e temas passam a contemplar novos sujeitos
históricos a partir de diversas fontes a partir das quais se busca compreender as diversas
intencionalidades, discursos e representações. As ciências humanas procuram dar voz àqueles
que foram silenciados: a participação e as culturas de pessoas anônimas passaram a ser
registrados como história. A partir da década de 1980, as mudanças nos estudos históricos no
Brasil compreendem uma mudança que, para além das abordagens marxistas privilegia as
dimensões cotidianas, vivências sociais e culturais. A adoção da metodologia da história oral
permite trazer à luz as histórias de vida de sujeitos de distintas origens e culturas, que
atribuem diversos sentidos aos lugares e aos objetos. Essas novas interpretações constroem
uma nova visão acerca do patrimônio, que se constitui agora como lugar de memória social,
campo de conflito simbólico da sociedade, travado no jogo entre memória e esquecimento,
historicamente vencido pelos grupos que podem impor sua memória a toda uma sociedade. A
memória social é portadora de historicidade, uma vez que as condições de construí-la são
mutáveis: reflete as relações políticas, de possibilidades de exercício de direitos que cada
grupo exerce em determinado tempo. Nesse sentido, a memória social será tão mais
503
significativa quanto mais representar o que foi vivido pelos diversos grupos sociais e quanto
mais mobilizar as identidades dos indivíduos.
Nesse contexto, afloram as ações voltadas para a elaboração de novas práticas museais
que compreendem novas tipologias tais como ecomuseus, museus de território, museus locais,
museus comunitários. Verifica-se então um significativo aumento do número e da diversidade
de instituições museológicas em âmbito mundial: em uma sociedade dinâmica e multicultural,
os museus se convertem em espaços de múltiplas experiências:
5
A nova autarquia vinculada ao Ministério da Cultura (MinC) sucedeu o Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (Iphan) nos direitos, deveres e obrigações relacionados aos museus federais. O órgão é
responsável pela Política Nacional de Museus (PNM) e pela melhoria dos serviços do setor – aumento de
visitação e arrecadação dos museus, fomento de políticas de aquisição e preservação de acervos e criação de
ações integradas entre os museus brasileiros. Disponível em: http://www.museus.gov.br/acessoainformacao/o-
ibram/ acessado em 26.08.2017.
504
museais, uma resposta às reivindicações dos distintos grupos sociais, antes excluídos das
políticas culturais, bem como de grande parte dos processos decisórios. Nesse sentido, as lutas
pela cidadania, se consolidam em consonância com o reconhecimento do direito à memória e
constituem-se assim, uma dos objetos centrais da museologia social que
6
http://www.museus.gov.br/acessoainformacao/acoes-e-programas/pontos-de-memoria/programa-pontos-de-
memoria/ acessado em 26.08.2017.
505
tempo, o bairro não contou com comércio e serviços básicos que atendesse as necessidades
dos moradores.
A antiga Fazenda Taquaril foi loteada em 1983 e deu origem à Cidade Jardim
Taquaril. Para a ocupação da área estava previsto um condomínio de luxo, mas o relevo
bastante acidentado do terreno inviabilizou o projeto. Os movimentos sociais iniciaram a luta
para que a terra fosse destinada à população carente, o que marca o surgimento do bairro. A
Prefeitura realizou o assentamento de algumas famílias, mas não promoveu a urbanização
daquele espaço. Assim, diante da recusa do poder público de dotar o lugar de equipamentos
necessários para o estabelecimento dos moradores, estes assumiram para si a tarefa de
construir seus lugares, o que significou desde conformar os terrenos, erguer as paredes de suas
casas e dar nomes às ruas. As lutas travadas no bairro Taquaril, instituem memórias e
narrativas que constroem a identidade do lugar. A constituição dos espaços, não apenas em
sua materialidade, mas também no campo simbólico, estabelece uma relação de
pertencimento àquele território,
506
do entendimento da história dos lugares nos quais os sujeitos vivem e como se apropriam
dessa história como sua memória, lugar de identidade. Nesse sentido, a preservação deve
resultar da compreensão em melhoria da qualidade de vida dos grupos que vivenciam os
lugares: o sentido da preservação deve se orientar pelo significado que os sujeitos atribuem ao
território.
O Taquaril, cuja história é marcada pelas lutas para a construção do território, apesar
dos avanços, ainda carece de alguns serviços e principalmente de infraestrutura. No intuito de
melhorar as condições do bairro, a interlocução com o poder público e com as organizações
da sociedade civil é realizada pelas diversas associações instituídas no bairro ao longo do
tempo: estas mobilizam os moradores e buscam envolvê-los nas discussões que têm como
intuito a melhoria do lugar por meio das políticas públicas, grande parte delas relacionadas ao
Orçamento Participativo.
Atualmente o bairro conta com escolas, igrejas, uma praça, uma quadra poliesportiva,
o CRAS (Centro de Referência de Assistência Social) e vários projetos sociais. Entre eles,
pode-se destacar a Associação Projeto Providência, uma entidade não-governamental sem fins
lucrativos que surgiu em 1988 para lidar com problemas enfrentados por jovens. Em 1994, foi
criada uma unidade no Taquaril, que passou a atender as/ crianças, adolescentes e jovens da
área. Com o intuito de afastar esses jovens da marginalização, o grupo realiza atividades
culturais, esportivas e educativas.
A mobilização e a luta pela construção do território, parte inerente da história do
Taquaril, visa ampliar as conquistas mediante a garantia de direitos fundamentais e de
cidadania, responsabilidade que deve ser assumida pelo Estado, uma vez que,
507
Cabe destacar que em contextos sociais urbanos é possível apreender duas formas de
atribuição de sentido à identidade cultural de um bairro. Uma delas advém do exterior, em
especial, instituições como a mídia, e apresenta usualmente concepções reificantes, ou seja,
redutoras. Já a outra é produzida, sobretudo no interior do bairro, moldada a partir das
experiências de vida do cotidiano local. Ou seja, essa segunda forma de pensar a identidade
do bairro:
Em se tratando das relações entre os usuários7 Mayol (2005, p. 39) destaca o bairro
“[...] como o lugar onde se manifesta um “engajamento” social, ou noutros termos: uma arte
de conviver com parceiros (vizinho, comerciantes) que estão ligados a você pelo fato
concreto, mas essencial, da proximidade e da repetição”. De acordo com o autor, a
convivência tem relação com um compromisso que cada pessoa assume ao renunciar o que
ele define como “anarquia das pulsões individuais”, para contribuir na vida coletiva, é por
meio dela que ele se obriga a respeitar um “contrato social” existente para que a vida
cotidiana seja possível. Esse cotidiano torna-se possível porque há a certeza de que o usuário
será reconhecido, considerado, positiva ou negativamente, pelos outros e, dessa forma,
fundará em seu próprio benefício uma relação de forças em seus trajetos cotidianos.
Como o bairro é esse ambiente propício às relações sociais, Mayol (2005) ressalta que,
por definição, é possível dizer que o bairro condensa um domínio social que para o usuário é
uma parcela do espaço urbano na qual ele é reconhecido. Sendo assim, o bairro pode ser
apreendido como uma porção do espaço público que é geral, anônimo, pertence a todos, mas
7
Mayol (2005) define os habitantes do bairro como usuários.
508
uma porção diferente, pois se aproxima de um espaço que poderia ser definido como privado,
particularizado pelo seu uso quase cotidiano. Esclarecendo este ponto, Mayol (2005) assinala
que o bairro pensado como um espaço privado do espaço público e é resultado de uma
sucessão de passos em suas calçadas que são, então, significados pelo vínculo orgânico que
estabelecem com a residência. Essa privatização do espaço público realizada pelo bairro é
progressiva e, segundo o autor, é como se fosse um dispositivo prático que objetiva garantir
uma perspectiva de continuidade entre o que é mais íntimo (o espaço privado da residência) e
aquilo que é mais desconhecido (o conjunto da cidade ou mesmo o resto do mundo), é uma
espécie de relação de apreensão do dentro (a residência) e de apreensão do espaço urbano ao
qual a residência se liga (o fora). O bairro pode então ser pensado, de acordo com tais
assertivas, como um termo médio entre o dentro e o fora e por meio da tensão entre ambos vai
aos poucos se tornando um prolongamento de um dentro que se efetiva pela apropriação do
espaço.
Um bairro, poder-se-ia dizer, é assim uma ampliação do habitáculo, para o
usuário, ele se resume à soma das trajetórias inauguradas a partir de seu local
de habitação. Não é propriamente uma superfície urbana transparente para
todos ou estatisticamente mensurável, mas antes a possibilidade oferecida a
cada um de inscrever na cidade um sem-número de trajetórias cujo núcleo
irredutível continua sendo sempre a esfera do privado. (MAYOL, 2005, p.
42)
509
os limites entre público e privado tornam-se compreensíveis e podem ser considerados os
fundadores do bairro para a prática do usuário, a separação entre as duas esferas pode ser vista
como uma separação que une. É como se não houvesse oposição entre a moradia (espaço
privado, o dentro) e o bairro (espaço público, o fora), mais pertinente seria dizer de uma inter-
relação entre os espaços – moradia e bairro – que torna possível que eles façam parte de um
mesmo lugar no espaço da cidade, ou seja, o usuário se vale da moradia para se situar no
bairro, bem como se vale do bairro, a partir de seu pertencimento a ele, para se situar na
cidade. Isto implica dizer que o bairro seria o mais privado dos espaços públicos, lugar de
pertencimento e reconhecimento na cidade.
Em se tratando o bairro Taquaril para além do sentido de pertencimento de seus
usuários, utilizando a terminologia de Mayol (2005), sua imagem tal como produzida pela
imprensa e apropriada por grande parte da população da cidade é a da violência. A região na
qual se insere possui elevado índice de criminalidade e é, comumente, assunto de reportagens
policiais. Os moradores discordam dessa generalização e contra-argumentam que no bairro
residem pessoas honestas e trabalhadoras, destacando os grupos culturais reconhecidos na
região, que são em grande número e não obtém o mesmo destaque nos meios de
comunicação8.
Os moradores do Taquaril, ao longo das lutas por melhoria na qualidade de vida,
acumularam histórias e memórias ao longo dos tempos e, em função dessa trajetória, a
comunidade foi convidada a participar do Programa Ponto de Memória. De acordo com o
IBRAM, “os Pontos de Memória valorizam o protagonismo comunitário e concebe o museu
como instrumento de mudança social e desenvolvimento sustentável”. Estima-se que estes “são
capazes de promover a melhoria da qualidade de vida da população e fortalecer as tradições locais
8
Em estudo sobre associativismo cultural foram levantados os seguintes grupos: Associação de Capoeira e
Cultura Arte Nossa; Grupo de Capoeira Abolição; CDG - Comando dos Guerreiros; CIA ArtRua; CIA de Dança
Tsunamy; CIA Fascina; Corações Unidos; Kontratac do Rap; Crime Verbal; Davi e Luiz; Empat Batuque;
Gamet - Grupo de Mulheres Ecumênicas do Taquaril; HIG Stone (Alta tempestade); Negro B; Oficina Rodrigo
Ferreira Santos - PDC - Propriedade de Cristo cultural hip-hop; Projeto Cultural Calanga; Protetores do Rap;
Remanescentes; Ctor 9; Studio Zero; Vozes da Periferia (SAADALLAH, SANTOS E SOUZA, 2010)
510
e os laços de pertencimento, além de impulsionar o turismo e a economia local, contribuindo
positivamente na redução da pobreza e violência”.9
Nesse sentido, o desejo de manter viva a relação de cuidado e pertencimento
contribuiu para a realização de ações que narram outra história do bairro, diferente das
manchetes de jornais, que só noticiam violência e pobreza. De acordo com a diretora do
Museu
Esse é o desafio do Museu, desenvolver ações que cada vez mais consolidem
a ideia traduzida em seu slogan: Sua história faz parte dessa memória, para
que cada um se reconheça como patrimônio vivo, por meio de seus fazeres e
cotidiano. O Ponto de Memória hoje se consolida como uma importante
marca em nossa comunidade na maturidade de nossa organização social e
política. Mais do que sermos capazes da luta política na consolidação de
direitos, é importante que o agir, o construir, as conquistas e os desafios
sejam sempre rememorados para firmar o nosso pertencimento e a nossa
identidade junto à comunidade, garantindo às futuras gerações o direito à sua
memória política, de sua família, enfim à sua memória constitutiva” (Leila
Regina, diretora do Ponto de Memória Museu do Taquaril e moradora
local).10
9
http://www.museus.gov.br/acessoainformacao/acoes-e-programas/pontos-de-memoria/programa-pontos-
de-memoria/
10
http://rutmartins.wixsite.com/altoemmovimento/single-post/2015/05/24/Museu-do-Taquaril-sua-
hist%C3%B3ria-faz-parte-dessa-mem%C3%B3ria
511
A discussão acerca dos museus, tomando como referência o campo da memória social,
suscita pensar que as representações coletivas refletem processos de exclusão ou inclusão
social, relacionadas a um sistema de dominação ou de emancipação. A construção dos
discursos e narrativas museológicas no Brasil está historicamente relacionada à formação de
uma identidade nacional e à manutenção de tradições e legitimação de poderes instaurados. O
museu é um lugar de poder e, por extensão, de empoderamento. E justamente por isso, na
esteira dos processos de luta pela ampliação dos direitos de cidadania, determinados grupos
sociais, historicamente estigmatizados ou submetidos a processos de dominação, passaram a
reivindicar que suas memórias e identidades fossem expressas em espaços museais
(TOLENTINO, 2017).
Nesse sentido, os Pontos de Memória, têm como pressuposto a ideia de que o museu
deve estar a serviço da comunidade visando o desenvolvimento socioeconômico local. Para
tanto, a gestão do museu e o desenvolvimento local11 pressupõem a participação efetiva e
ativa da comunidade detentora do patrimônio cultural e dos atores locais, compreendendo-os
como sujeitos históricos. Dessa forma, novos atores e novas vozes emergem no campo dos
museus e utilizam esse instrumento como um importante mecanismo de empoderamento e
como arma política (TOLENTINO, 2017).
A criação dos Pontos de Memória, que integra as políticas públicas voltadas para os
direitos das minorias, é fruto das lutas e conquistas empreendidas pelos movimentos sociais,
que em um contexto de redemocratização, exerceram pressões pelo direito à participação em
diversas esferas da sociedade, transformada pela atuação dos movimentos. Nesse sentido, o
direito à memória traduz uma luta política: os indivíduos se transformam a partir da
transformação social que promovem.
11
Para esse trabalho compreende-se desenvolvimento local na perspectiva definida por Christofolli (2008) “como
espaço de luta pela transformação social, de articulação e disputa de hegemonia política num determinado
território; como espaço de construção, reconstrução e disputa de projetos com base na existência de interesses
antagônicos” (CHRISTOFOLLI, 2008, p.250).
512
Considerações finais
Inúmeros são os desafios e dilemas para a consolidação do Ponto de Memória Museu
do Taquaril: a memória social, tomada como forma de poder, não é construída sem conflitos.
Espaço de disputas, escolhas e negociações, as narrativas sobre o território como espaço
vivido, também refletem as relações políticas e as visões de mundo dos distintos sujeitos que
a ele atribuem diversos significados. Tais desafios podem ser percebidos a partir da existência
de vários grupos e associações locais, reveladores de distintas posturas em relação às
expectativas para o bairro. Tais conflitos são inerentes e necessários para a construção de uma
sociedade: é possível pensar que a memória social será tão mais expressiva quanto mais
representar os significados do vivido pelos distintos grupos. Nesse sentido, a partir da
ampliação do conceito,
513
Se cada um constrói a sua própria cidade imaginária, sempre um pouco diferente
daquela formada pelos outros, temos em comum o fato de estarmos todos em uma mesma
unidade e isto nos aproxima (AGIER, 2011). O desenvolvimento local com vistas à
emancipação depende da capacidade de ação coletiva de grupos que se reúnem para mudarem
seus próprios destinos.
Referências Bibliográficas
AGIER, Michel. Antropologia da Cidade: Lugares, Situações, Movimentos. São Paulo,
Editora Terceiro Nome, 2011.
CHRISTOFOLLI, P.I. A luta pela terra e o desenvolvimento local. In.: DOWBOR, L.;
POCHMANN,M.(Orgs.). Políticas para o desenvolvimento local. São Paulo: Editora Perseu
Abramo, 2008.
LE GOFF, Jacques [et al.] . História e memória. Campinas: Editora da UNICAMP, 1990.
MAYOL, Pierre. O Bairro. In: CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano 2: morar,
cozinhar. Petrópolis, RJ, 2005.
514
MONTE MOR, Roberto Luis de Melo. Encruzilhadas das Modernidades e Planejamento. In:
V Encontro Nacional da ANPUR, 1995, Belo Horizonte. Anais do V Encontro Nacional da
ANPUR, 1995.
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História. São
Paulo (10): EDUC, 1995.
PINTO, Júlio Pimentel. “Os muitos tempos da memória.” Projeto História. São Paulo (17):
EDUC, 1988.
RAFFESTIN, C. Por uma geografia do poder. São Paulo: Editora Ática, 1993.
SANTOS, Cecilia Rodrigues dos. Novas fronteiras e novos pactos para o patrimônio cultural.
São Paulo Perspec. [online]. 2001, vol.15, n.2, pp. 43-48.
515
DA EXPLOSÃO DE SENTIDOS A CONSCIÊNCIA IMEDIATA: DEFINIÇÕES
DA “TEORIA DA PRÁTICA” DE HUGUES DE VARINE- BOHAN NO BRASIL
Resumo: O presente artigo visa captar os indícios da construção de uma “teoria da prática” de Hugues
de Varine-Bohan, a partir das consultorias realizadas por ele em território brasileiro. Contudo, o
estudo do pensamento museológico contemporâneo é um convite para constante investigação, frente a
um pálido esboço na consolidação de uma ciência que aos poucos intenta traçar novos itinerários para
a solidificação no campo cientifico diante de um objeto fenomenológico. Para isso, o trabalho discute
sob o ponto de vista de alguns conceitos do sociólogo francês Pierre Bourdieu, a aplicação desse novo
modo de fazer ciência, empregado pela corrente da “Nova Museologia”. Frente ao percurso percorrido
pelo pesquisador francês Hugues de Varine, como pioneiro da corrente de pensamento ligada a esse
novo paradigma, como criador do conceito de “ecomuseu” e os impactos atribuídos ao seu
pensamento e prática na constituição de uma categoria voltada para o despontar de trabalhos voltados
para a função social do museu. Nesse aspecto, o artigo partirá de uma breve análise de uma entrevista
concedida pelo pensador francês para esse trabalho. Com fins de identificar especificidades da teoria
museológica e os trabalhos de consultoria que foram realizados por ele em parceria com instituições
brasileiras.
Palavras-chave: Hugues de Varine; Nova Museologia; Teoria da Prática.
Abstract: The present article aims to capture the evidence of the construction of a "theory of practice"
of Hugues de Varine-Bohan, based on the consultancies carried out by him in Brazilian territory.
However, the study of contemporary museological thought is an invitation to constant research, in the
face of a pale sketch of the consolidation of a science that gradually tries to trace new routes for
solidification in the scientific field before a phenomenological object. For this, the work discusses
from the point of view of some concepts of the French sociologist Pierre Bourdieu, the application of
this new way of doing science, used by the current of "New Museology". Facing the path taken by the
French researcher Hugues de Varine, as a pioneer of the current of thought linked to this new
paradigm, as creator of the concept of "ecomuseum" and the impacts attributed to his thought and
practice in the constitution of a category aimed at the emergence of Works aimed at the social function
of the museum. In this aspect, the article will start from a brief analysis of an interview granted by the
French thinker for this work. In order to identify specificities of the museological theory and the
consulting works that were carried out by him in partnership with Brazilian institutions.
Key-words: Hugues de Varine; New Museology; Theory of Practice.
516
Antes de me debruçar sobre alguns dos trabalhos desenvolvidos por Hugues de Varine-
Bohan no Brasil, visualizarei através de aspectos da bibliografia de Pierre Bourdieu o que
vem a ser considerado como uma “Teoria da Prática” no campo sociológico. Esse conceito
nos ajudará a entender a produção e as atividades realizadas por Varine a partir de um outro
viés de investigação. Portanto, o que temos como objeto para estudo neste artigo vem a ser a
aplicação da teoria museológica em caráter prático, em algumas experiências museais
gestadas sobre a consultoria de Hugues de Varine no Brasil. Além disso, farei uma breve
analise sobre uma entrevista que o pesquisado concedeu para este trabalho.
Tudo isso com base em inquietações do campo em relação a todo esse processo de
constituição conceitual do que é a Nova Museologia no campo dos museus e da Museologia,
em meio a uma série de conflitos e divergências em relação às terminologias ligadas a esse
novo ideal museológico (CERÁVOLO, 2004), onde posso aqui apresentar uma ausência clara
frente a uma definição do que viria ser o objeto de estudo da Museologia e as leis universais
que a delimitam enquanto corpus científicos estabelecido.
No estudo denominado Pierre Bourdieu: a teoria na prática (2006), do pesquisador
Hermano Roberto Thiry-Cherques, ele elenca os pontos referentes a esse pensamento de
Bourdieu de forma que haja um labiríntico nas ações que recorrem a esse ideal teórico-prático
que vai contra a uma ideia de linearidade. Assim, “Investigando sobre o terreno, ele verifica
que o trabalho científico não é uma operação linear. Que, ao longo da pesquisa, a
problemática pode ser alterada, a hipótese modificada, as variáveis reconsideradas.” Através
disso, elenca os seguintes tópicos:
517
Construção de uma matriz relacional corrigida da articulação entre as posições
(estrutura);
Síntese da problemática geral do campo.
Esses pontos contribuem para a percepção do quadro conceitual produzido por Bourdieu
que vai ao encontro do que vem a ser pregado por Hugues de Varine na sua ação prática.
Nesse aspecto, vale ressaltar que as proposições que envolvem a ideia de constituir um campo
de atuação através da “Nova Museologia” vão despontar num conjunto de estudos e práticas
sociais voltadas as mais diversas populações. Frente a essa prerrogativa, em seu trabalho
intitulado como Esboço de uma teoria da prática (1972), Bourdieu aponta para a ideia
voltada para os modos de conhecimento em consonância com o caráter fenomenológico das
implicações da aplicação da teoria de Varine no campo museológico:
518
complacência um pouco feiticista que os <<teóricos>> costumam ter para
com ela. (BOURDIEU, 1989, p.60)
Frente a isso, é agregada a demarcação desse campo que será estudado, diante de uma
análise para a formulação da teoria que será aplicada no próprio campo. Com isso, podemos
trazer aqui os exemplos expressos no livro As Raízes do Futuro: O Patrimônio a Serviço do
Desenvolvimento Local (2012) onde Varine traz uma série composta por seis “fichas práticas”
que servem de base para um estudo in loco, “[...] pois, formar um objeto teórico que será
submetido à prova empírica. A construção do fato social consiste em delimitar claramente um
segmento da realidade” (THIRY-CHERQUES, 2006, p. 44), para a execução de projetos de
implantação de museus comunitários ou ecomuseus. Na lógica enraizada do trabalho prático,
existe as aproximações e dissonâncias que apontam para as possíveis aproximações e
distanciamentos diante de uma confluência de saberes específicos e delineados, onde pode ser
expressada de forma profícua na realização aplicação de fichas práticas como ferramenta de
legitimação de uma polifonia do estudo e análise dessa teoria na prática. Pois segundo
Bourdieu em O poder simbólico (1989):
Compreender trabalhos científicos que, diferentemente dos textos teóricos,
exigem não a contemplação mas a aplicação prática, é fazer funcionar
praticamente, o respeito de um objeto diferente que nele se exprime, é
reativá-lo num novo acto de produção [...]. (BOURDIEU, 1989, p. 63-64)
Outro ponto a ser pensado em relação a essas fichas é a relação que as perguntas têm
em confluência com as questões inerentes a essa teoria da prática, Desse modo, trago aqui
uma dessas perguntas que são tratadas no texto de Varine no processo de construção do
inventário para uma instituição de desenvolvimento local “[...] “Classificar” segundo uma
ordem de prioridade justificável (quer dizer, tomar uma decisão em função do interesse geral,
familiar, comunitário, social...)” (VARINE, 2012, p. 82) . O processo de classificação visto
dessa forma engloba os estudos de teoria da prática quando ele aponta para escolhas a serem
tomadas em relação de que “classificadores” serão utilizados no processo, especialmente a
partir do momento em que se discute com a comunidade o que a mesma quer que seja
empreendido no seu plano de desenvolvimento comunitário e museológico. A comunidade
519
assume papel decisivo na função classificatória de delimitar pontos e espaços de estudo, visita
e diálogo. Na formulação e execução do que o autor apresenta como “inventário
participativo”.
Ele continua com essas perguntas provocações, onde na segunda ficha ele pergunta:
“O que queremos fazer ou não fazer do elemento do patrimônio em questão?”. Com isso
trazemos a segunda proposição em que ele coloca a comunidade como agente de escolha e
objetivação do que deve ser pensado e estudado nesse processo, onde se
520
Para dar continuidade ao estudo da bibliografia de Hugues de Varine é preciso retomar
a questões conceituais. Para isso, foi enviada uma entrevista por escrito com seis perguntas,
respondido em francês e traduzidas depois pelo Professor Dr. Clovis Carvalho Britto12,
abordando algumas dessas questões. Nela, Hugues de Varine explicou de forma resumida o
que seria a “Nova Museologia”, “Ecomuseologia” e “Sociomuseologia”, através da seguinte
pergunta: “No que tange os termos e conceitos da Nova Museologia. Qual a diferença entre
Ecomuseologia e Sociomuseologia?”.
12
Pós-Doutor em Estudos Culturais no Programa Avançado de Cultura Contemporânea da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB), Linha de Pesquisa Arte,
Cultura e Patrimônio. Doutorando em Museologia pela Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias
(ULHT), Portugal. Mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e Mestre em Museologia
pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professor Adjunto na Universidade Federal de Sergipe (UFS)
vinculado ao Departamento de Museologia e aos Programas de Pós-Graduação em Antropologia e em Culturas
Populares. Professor no Programa de Pós-Graduação em Museologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA)
e orientador da presente pesquisa. http://lattes.cnpq.br/7846212059366799
13
Comitê Internacional de Museus
521
Ecomuseologia. Ela analisa as experiências visando obsersar as
características comuns. VARINE-BOHAN, Hugues de. Entrevista concedida
a Roberto Fernandes dos Santos Junior. França, 22 jan. 2017.
No texto Ecomuseu (2000), Varine apresenta o que vem a ser essa tipologia museal que
constituiu um dos elementos que balisaram a Nova Museologia, apontando para alguns de
seus aspectos:
522
processo critico de avaliação e de correções contínuas (VARINE-BOHAN,
2000, p. 69).
No entanto, ainda devemos saber como foi que Hugues de Varine iniciou seu trabalho
de consultoria. Pois cada nuance desse trabalho está ligado diretamente com o trabalho de
consultoria que ele desenvolve desde a sua saida do ICOM. Ele trabalhou “em especial dos
auxílios para a criação de empresas e empregos, inclusão social e projetos de
desenvolvimento económico, cultural e social.”. Sendo que:
14
“[...] a nova museologia – ecomuseologia, museologia comunitária e todas as outras formas de museologia
ativa – interessa-se em primeiro lugar pelo desenvolvimento das populações, refletindo os princípios motores da
sua evolução ao mesmo tempo em que as associa aos projetos futuros.” (Declaração de Quebec, 1984)
523
trabalhei para o desenvolvimento das zonas de habitação social na França e
em 1990 eu criei a minha empresa de consultoria em desenvolvimento local
e comunitário (ASDIC) com a qual eu trabalhei na França e no estrangeiro
(especialmente em Portugal e no Brasil).Em seguida, em 2000, eu continuei
"free lance" e trabalhei principalmente em missões sobre o patrimônios e os
ecomuseus, no Brasil e na Itália. Eu finalizei essa atividade profissional em
2013 e desde esse momento estou me dedicando ao ensino e ao
acompanhamento de projetos, voluntários e gratuitos, especialmente na
Itália.VARINE-BOHAN, Hugues de. Entrevista concedida a Roberto
Fernandes dos Santos Junior. França, 22 jan. 2017.
Vemos um trabalho pelas lentes do próprio Varine que destaca a continuidade de sua
trajetória na Museologia, mesmo que hoje ele não tenha todo o suporte que ele tinha antes dos
anos 2000. Isso se dá pelo enfraquecimento do termo “Nova Museologia”, que, com o tempo,
foi se diluindo e se transformou em diversas terminologias ligadas à essa nova
contextualização museal (Museologia Social, Museologia Comunitária, Museologia Popular,
Sociomuseologia etc.), que acabou descentralizando os esforços para ideias de algum modo
dististas e ainda com contornos não muito claros.
524
Porém, a afinidade com o idioma não era só a responsável pela aproximação com o país.
Desde a década de 1980, Hugues desenvolve ações de consultoria no Brasil. Processo iniciado
com a tradução de um dos seus livros:
525
sítios do patrimônio de Ouro Preto e da Bacia do Ouro, criação de um parque
arqueológico.
Ecomuseu da Amazônia, Belém (PA) – 2009-2012 – Organização do Ecomuseu,
dinâmicas de micro-deselvolvimento e de micro-economia nos diversos territórios do
ecomuseu, preparação do IV EIEMC, método de inventário, aplicação de cursos de
capacitação, promoção do artesanato de bases tradicionais.
Rio Grande do Sul – 1992-2012 – visitas quase todos os anos para consulta em diversos
sites: Rio dos Sinos, Picada Café, Quarta Colônia, Porto Alegre (Orçamento Participativo e
Lomba do Pinheiro), São Miguel das Missões, Pelotas.
É válido ressaltar que “Todas estas ações foram objeto de notas e relatórios em francês,
o principal foi traduzido para o português. Mas estes documentos são propriedade dos
organismos que me contrataram”. Posto isso devemos pensar em como esse trabalho foi
realizado no Brasil de acordo com um recorte especifico em algumas das instituições que
passaram pela intervenção de Hugues de Varine-Bohan. Em uma parte da entrevista, ele traça
o panorama do que podemos ver na sua própria narrativa um exemplo claro do contexto das
suas consultorias.
526
locais que decidiriam o que queriam e poderiam fazer a partir deles mesmos.
Meus relatórios são realmente notas de visitas que contêm minhas reações
subjetivas e questões que eu observava a partir dessa experiência. Eu creio
que a minha presença ocasional lá e meu apoio permanente à distância
ajudou a abrir perspectivas diferentes para os líderes de projetos e programas
locais. Eu também estava trazendo experiência internacional e contatos
muitas vezes úteis, não como modelos, mas como referências. VARINE-
BOHAN, Hugues de. Entrevista concedida a Roberto Fernandes dos Santos
Junior. França, 22 jan. 2017.
527
Pedagogia15, ciência que se põe como base para a formulação da prerrogativa de libertação na
Museologia.
Nesse processo, a comunidade é o elemento a ser pensado antes de qualquer outra coisa,
até mesmo o patrimônio deve ser como um agente de segundo plano. Quando se pensa na
ideia dessa Nova Museologia, o patrimônio só tem sentido com a comunidade que o
compõem. Varine afirma que “[...] o patrimônio em segundo lugar, imediatamente após a
análise dos recursos humanos. Juntamente com estes, é o principal componente inicial de toda
estratégia de desenvolvimento sustentável”. (VARINE, 2012, p.79). Diante do trabalho de
valorização do ser nas práticas museológicas, no Congresso Anual das Associações de
Museus Italianos, realizado pelo Comitê do ICOM naquele país, Varine (2007) apresenta
essas pessoas como “os amigos do museus”, sendo elas as responsáveis pelo seguemento das
atividades em algumas unidades museológicas. Isso se assemelha ao que no Brasil é chamado
de Associação de Amigos do Museu.
15
Uma questão que será aprofundada em trabalhos futuros, consiste nos impactos do pensamento/teoria do
Pedagogo de Paulo Reglus Neves Freire na teoria da prática de Hugues de Varine.
528
podem ser de gestão, científicas ou saberes técnicos. Os meios podem ser
financeiros (cotizações, garantias de empréstimos, ou financiamentos diretos
de trabalhos ou de exposições, materiais (objetos ou documentos,
empréstimos de coleções para exposições), em tempo disponível (para
trabalhos obscuros mas necessários). A influência decorre das redes de
conhecimentos de amigos do museu e do peso que representam na
sociedade. Em troca desses aportes ao museu que podem ser consideráveis,
os amigos que são na realidade mecenas, recebem uma notoriedade social e
uma satisfação moral e intelectual. Mas os museus podem também lhes
trazer outras vantagens: um voluntário que quer ser eficaz deseja receber
uma (in)formação específica, no domínio científico ou cultural ao qual
pertence o museu, à ação cultural, ao conhecimento de públicos e das
diferentes funções do museu. Ele pode também se beneficiar de uma ajuda
para a gestão de seu próprio patrimônio (conservação preventiva,
constituição de coleções pessoais, conselhos científicos). Pode trazer
vantagens dos serviços do museu a seus familiares e amigos ou sua empresa.
(VARINE-BOHAN, 2007, p. 2-3).
Para esses agentes há uma urgência que surge frequentemente em relação a todo esse
panorama, pois “é preciso formá-los no que alguns na América chamam de museologia
popular (Québec) ou comunitária (México). É também o que forma o essencial da « nova
museologia » que agora se espalha por todos os continentes. (VARINE-BOHAN, 2007, p. 3).
Diante disso percebemos as dificuldades que permeiam o campo da Museologia Social nesse
aspecto de formação desses agentes locais de desenvolvimento, frente a uma demanda em que
há uma retração de partes que envolvem a construção da ideia de “museu”.
Com base nisso não são só os agentes de desenvolvimento (aqueles que estão agregados
a iniciativa de formação de um novo museu, mas que não tem formação especifica) que
529
precisam passar por um processo de discernimento da sua função no âmbito formativo da
Nova Museologia. Essa característica se constitui, também, com a proposição de
diferenciação dos moldes ligados a criação de novos museus. Pois tudo passa por um processo
de escolha entre a “normalidade” ou a “inovação”:
.
O museu « normal » é uma instituição que nasce de uma decisão político-
administrativa e que existe desde o dia de sua inauguração. Sua gestação se
faz no segredo dos trabalhos científicos e técnicos, dos projetos de
campanhas de comunicação, dos orçamentos plurianuais, dos procedimentos
de recrutamento etc. O novo museu e mais ainda o museu comunitário na
sua forma mais inovadora, não segue um procedimento, mas, como já se viu,
ele é um processo. Seu objetivo não é a instituição nem uma inauguração;
ele é a co-construção, na comunidade e sobre seu território pelos membros
da comunidade e as pessoas mais ou menos qualificadas que os ajudam, de
um instrumento de desenvolvimento a partir de um patrimônio global
identificado por seus detentores. (VARINE-BOHAN, 2005, p. 1).
Isso significa que não existe modelo organizacional próprio do novo museu.
Seus promotores devem, a cada desafio, inventar estatutos e modos de
funcionamento, de recrutamento, de financiamento, tendo em conta as
condições locais, pessoas disponíveis (ou a hostilidade de outras...) Os
administradores chevronnés (encabrestados) não podem compreendê-lo ou
bem, se eles aceitam uma inovação, eles a aplicarão sem discernimento.
(VARINE-BOHAN, 2005, p. 1).
Pensando a partir dessa ideia trazemos aqui uma breve análise frente à implantação do
Ecomuseu de Itaipu (PR) e de Santa Cruz (RJ) no Brasil, a partir da teoria de Hugues de
Varine. Pelo viés prático, essas duas instituições tomaram corpus e formas diferenciadas. O
que acaba nos ajudando a visualizar essa perspectiva de organizações que ditam um ritmo
próprio para poderem se constituir na sociedade:
530
de Foz do Iguaçu. Lá encontram-se materiais provenientes de estudos e
projetos desenvolvidos antes da formação do reservatório. O objetivo do
Ecomuseu é mostrar a área de 12 abrangência do reservatório de Itaipu,
englobando os bens de interesse científico, cultural e tecnológico. Traz a
história da região desde os caçadores e coletores, há aproximadamente 8.000
anos, até os principais fatos relativos à história da Itaipu e da região, a
moderna tecnologia existente para a produção de energia.
(MASCARENHAS E CASTANHA, 2009, p. 11-12).
531
Ligado diretamente as ações de educação ambiental, o Ecomuseu de Itaipu foi pensado
para atender aos anseios da comunidade local. Todavia, diferente de outras experiências, ele
não foi pensado pela comunidade local em detrimento de uma necessidade de preservação do
meio ambiente. Mesmo seguindo fora de um contexto visualizado em âmbitos teóricos,
Varine fala que “Itaipu foi um caso inovador, onde o fundador foi uma entidade pública ou
privada (município, empresa, fundação) que pretendia e pôde responder às necessidades da
comunidade e servir de instrumento de desenvolvimento.” (VARINE, 1989, p. 1). Com isso, a
comunidade passou a desfrutar do turismo e da preservação ambiental como atividades que
levaram desenvolvimento social através da economia.
Destacando a importância do estudo do primeiro ecomuseu do Brasil, e que apresenta
características distintas em relação ao modelo referenciado pelo próprio pesquisador.” Avaliar
a trajetória do Ecomuseu pioneiro, após duas décadas, certamente é um desafio aos que se
interessam sobre os estudos de impacto social que um empreendimento desse porte promove
na sociedade local.” (PRIOSTI, 2010, p. 51). Essa citação da autora nos traz a um incentivo a
reflexão em torno da instituição diante da comunidade que a constitui. Agregando ideias e
valores da real importância do museu em detrimento da construção da Usina de Itaipu.
Além dessa experiência, também é importante citar a construção do Ecomuseu
Comunitário de Santa Cruz à luz do NOPH-Núcleo de Orientação e Pesquisa Histórica, que
tem como objetivo a valorização da história do bairro. Fundado em 1995, o ecomuseu tem
uma extensão de 125 km² que corresponde a todo o bairro situado na zona oeste do Rio.
Priosti aponta que “Santa Cruz é um caso específico de comunidade que tenta aplicar
realmente princípios tão radicais e sem concessões, fiel à necessidade de libertação cultural e
ao direito de ela própria escolher o modo de criar e gerenciar esse museu.” (PRIOSTI, 2010,
p. 61).
Essa é a diferença primordial ao analisar a proposta de trabalho de Hugues de Varine,
onde dentro dessa perspectiva ele traça museus distintos e com conotações metodológicas
diferentes de acordo com cada caso. Onde vemos a aplicação da ideia de Ecomuseologia no
532
caso do museu de Itaipu, e o seu aprimoramento no caso de Santa Cruz com a aplicação de
uma Ecomuseologia Comunitária.
Referências bibliográficas
BOURDIEU, Pierre. Esboço de uma teoria da prática. Tradução das partes: "Les trois
modes de connaissance" e "Structures, habitus et pratiques". Traduzido por Paula Montero,
Geneve, Lib. Droz, 1972. p. 162-189.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Traduzido por Fernando Tomaz, Bertrand Brasil,
1989.
533
VARINE, Hugues de. As raízes do futuro: o patrimônio a serviço do desenvolvimento local.
trad. Maria de Lourdes Parreiras Horta. Porto Alegre. Medianiz, 2012.
VARINE-BOHAN, Hugues de. Entrevista concedida a Roberto Fernandes dos Santos
Junior. França, 22 jan. 2017.
VARINE-BOHAN, Hugues de. O museu comunitário é herético? In: Jornal Quarteirão- no.
67 - Maio/Junho 2006. Rio de Janeiro, NOPH: p. 12-15. Disponível em www.interactions-
online.com – março/abril-2005 Acesso em: 20 fev. 2017.
534
MEMÓRIA E SOCIABILIDADE EM PERCURSO INTERATIVO NA PERIFERIA
DE BELÉM: PROTAGONISMO SOCIAL E FORMAS ALTERNATIVAS DE
VALORIZAÇÃO DA IDENTIDADE
Resumo: O Bairro da Terra Firme localizado na periferia de Belém do Pará, foi o Lócus deste
trabalho. Este bairro teve sua ocupação a partir da evolução urbana da cidade de Belém principalmente
nas décadas de 1960 a 1970 e 1980. Como muitos bairros periféricos a Terra firme apresenta carência
de serviços públicos diversos, de infraestrutura, e de equipamentos de Lazer. Este trabalho tem como
objetivo destacar o Percurso interativo Paisagens e memória do Bairro da Terra Firme como uma
oferta de recurso alternativo para a valorização memória e identidade do Bairro. O intuito do roteiro é
proporcionar ao morador uma melhor percepção sobre o seu patrimônio local evidenciando a memória
social e o pertencimento ao lugar por meio de “outro olhar” sobre principais pontos de referência do
cotidiano do bairro. O percurso foi elaborado de forma participativa e colaborativa com o Ponto de
memória do Bairro da Terra Firme, por meio de encontro com diversos grupos de moradores que
contribuíram com seus conhecimentos e relatos sobre o bairro. A realização do percurso interativo é
uma tática para proporcionar uma alternativa de lazer para os diversos grupos sociais que vivem no
Bairro.
Palavras Chaves: cotidiano; memória; pertencimento; protagonismo grupos sociais; Terra Firme.
Abstrat: The neighborhood of Terra Firme, located on the outskirts of Belém do Pará, was the locus
of this work. This neighborhood had its occupation from the urban evolution of the city of Belém
mainly in the decades of 1960 to 1970 and 1980. Like many Peripheral neighborhood, the Terra Firme
lacking of diverse public services, infrastructure, and equipment of Leisure. This work aims to
highlight the Landscape and Memory Interactive Route of the Terra Firme Neighborhood as an
alternative resource for the memory and identity valorization of the Neighborhood. The purpose of the
script is to provide residents with a better perception of their local heritage by highlighting social
memory and belonging to the place through "another look" on the main points of reference of the daily
life of the neighborhood. The course was developed in a participatory and collaborative way with the
Memory Point of the Terra Firme Neighborhood, through a meeting with several groups of residents
who contributed their knowledge and reports about the neighborhood. The accomplishment of the
interactive course is a tactic to provide a leisure alternative for the various social groups that live in the
neighborhood.
Key-words: Memory; belonging; protagonism; social groups, route; Terra Firme
535
Introdução
A cidade com seus bairros, ruas, praças, igrejas, mercados, feiras, enfim espaços de
sociabilidades, tecidos por complexidades e singularidades, expressam na memória das
pessoas que deles se apropriam a ressignificação do vivido. O cotidiano dos moradores dos
bairros, sobretudo os periféricos se apresentam bastante propício para a construção de laços
de amizade e reciprocidade.
536
Este trabalho relaciona duas pesquisas desenvolvidas pelo Núcleo de Altos Estudos
Amazônicos no Bairro Terra Firme, uma de Doutorado16 e outra de iniciação cientifica17 que
analisam o bairro discutindo as seguintes categorias: memória coletiva/social, pertencimento,
Patrimônio Cultural e sociabilidades.
16
Pesquisa de Doutorado Memória, Sociabilidade e Pertencimento: estudo das interações e práticas sociais de
feirantes e moradores do bairro da terra firme em Belém –Pa, desenvolvido no Programa de PósGraduação de
Desenvolvimento Sustentável do Trópico úmido, linha de Pesquisa sociedade, urbanização e estudos
populacionais, sob a orientação do Prof. Dr. Sílvio Lima Figueiredo.
17
Plano de Trabalho: Campo de relações sociais através do programa ponto de Memória: experiências e
possibilidades de turismo cultural no bairro da Terra Firme parte do Projeto de Pesquisa: Turismo Cultural e
Patrimonialização: Campo de relações, referências culturais e gestão para visitação orientado pelo Prof. Dr.
Silvio Lima Figueiredo do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos/UFPA
537
principalmente a partir da década de 1940, quando a ocupação urbana da cidade estava mais
concentrada no Centro. Nas décadas de 60/70 e 80, a periferia de Belém começa a sofrer um
intenso processo de ocupação impulsionado por vários fatores entre eles o intenso êxodo
rural, pela crise econômica e pela valorização do centro que acabava expulsando a população
de baixa renda para as áreas da cidade sem estrutura urbana. (SANCHES & COUTO 2010,
p.3),
Ao mesmo tempo em que concentra boa parte da população de baixa renda da capital
o bairro da Terra Firme e sofre com a carência de serviços básicos (saneamento, em especial),
a Terra Firme concentram várias instituições de pesquisa e ensino, seus “vizinhos
intelectuais”, dentre as quais destacamos, A Universidade Federal Rural da
Amazônia(UFRA); EMBRAPA; Museu Emilio Goeldi, Universidade Federal do Pará,
Eletronorte entre outras.18
18
Estas Instituições se concentram ao longo da Avenida Tancredo Neves que é chamada Avenida Perimetral da
Ciência
538
Este é um fato que estar presente na memória do grupo como se pode percebe no
relato de seus moradores que mostram orgulho de morar ali apesar da imagem negativa do
bairro, eles afirmam que o bairro é bom de morar, pois apesar das dificuldades tem de tudo
inclusive a Universidade, Museu Goeldi, Embrapa. Estas impressões são declaradas nos
depoimentos dos moradores para o Inventário da memória do Bairro realizado pelo Ponto de
Memória do Bairro da Terra Firme19.
Este bairro é um dos mais populosos de Belém do Pará, tem um forte estigma de lugar
violento e de marginalidade, que é bastante disseminado pela mídia local. No entanto,
também tem uma relevante história de luta, resistência e fortes movimentos culturais atuantes
bem como um expressante movimento comunitário que foi relevante para as reivindicações de
melhorias na infraestrutura e direito de moradia. Tais fatores motivaram o Instituto Brasileiro
de Museus (IBRAM) a selecionar e incluir a Terra Firme no programa Pontos de Memória
lançado pelo instituto em 2009. O Ponto de Memória atua como elemento articulador da
memória no bairro da Terra Firme, a partir de várias ações, projetos e eventos sobre o
patrimônio histórico, social e cultural da Terra Firme como forma de apresentar suas
memórias e sua realidade política e social junto ao público
O Ponto de Memória do bairro da Terra Firme, tem como um dos anseios, exposto no
inventário, a elaboração de um Museu Comunitário, com a finalidade de “assegurar o direito à
memória das classes populares enquanto direito à cidadania e ao poder da comunidade de auto
reconhecer como sujeitos sociais que produzem história”. (INVENTÁRIO,2012). Dentre
essas práticas de musealização do bairro, projeta-se um roteiro de percurso pelas principais
ruas do bairro. Tal prática vem sendo realizada em outros pontos de memória como o Lomba
do Pinheiro, no Rio Grande do Sul e na favela da Maré e no Morro de Pavão/Pavãozinho, no
19
Em 2010 o Bairro da Terra Firme foi inserido no Programa Ponto de memória, coordenado Pelo Instituto
Brasileiro de Museus (IBRAM) que contemplou localidades consideradas como lugares de alta vulnerabilidade
social, e que desenvolviam ações afirmativas de memória social. Estes bairros receberam recursos para
viabilizarem seus projetos e estimularem as ações de valorização da memória. No caso da Terra Firme estas
ações são desenvolvidas em parceria com O Museu Paraense Emilio Goeldi (cf: www..museus.gov.br;
www.museu-goeldi.br)
539
Rio de Janeiro. Caracterizando uma prática de turismo que vem crescendo em bairros
periféricos e vem contribuindo para a sociabilidade nessas áreas. Empoderando os moradores,
a valorização do bairro e proporcionando novas alternativas econômicas.
540
bairro são quase nulos, mas segundo relatos de moradores um dia as crianças brincavam na
rua e no igarapé Tucunduba.
541
desta experiência. Em 2016, realizamos outra oficina na escola Brigadeiro Fontenele que
visavam o resgaste da memória do bairro a partir da vivencia dos jovens (Fig 3), e em
algumas dinâmicas utilizou-se da memória dos pais avós e pessoas mais velhas do bairro,
como mostra a imagem. Observou-se que os locais tidos como de representatividade do
histórico do bairro eram aqueles conquistados através de lutas e reivindicações para melhoria
de vida; como praça, escolas, espaços verdes (Fig4), mercado, entre outros.
20
542
comunitários ao participar de diversas ações de educação e ciências (DA SILVA BRITO,
2014). Além de ser local para reuniões e eventos promovidos pelo ponto de memória. O
campus de Pesquisa do Museu Goeldi é uma das instituições de pesquisa situadas no Bairro
fica situado na Av. Perimetral.
Nesta mesma avenida, está o segundo ponto do percurso, um jardim comunitário
localizado bem em frente ao Campus do Museu Goeldi, que é uma das atividades apoiada
pelo ponto de memória, e realizada por um grupo de mulheres moradoras do bairro, em prol
do saneamento, falta de coleta do lixo. Este grupo de moradoras propõem-se a criação de
jardins e espaços verdes no bairro e em locais em que há concentração de lixo e entulhos
despejados pelos próprios moradores da Terra Firme e bairros vizinhos, como forma de
sensibilizar estas pessoas para preservar aquela área com o cultivo de plantas ornamentais e
medicinais, frutas e hortaliças. Inicialmente o programa ponto de memória realizou eventos
nas escolas do bairro para a sensibilização quanto a questão do tratamento de resíduos sólidos
através da realização de cines clubes sobre temas ambientais utilizando o Espaço do Museu
Goeldi.
Saindo da Av. Perimetral entrando na Rua São Domingos, temos o terceiro ponto a
ser apresentado no percurso será a escola estadual Brigadeiro Fontenelle que está no bairro há
mais de quarenta anos, que é uma das representações de luta pela educação no bairro e,
referência em mobilização comunitária. A escola oferece uma programação à comunidade
com atividades culturais de cinema, dança e teatro.
Seguindo o trajeto, no final da rua São Domingos, encontra-se a Igreja de São
Domingos Gusmão, em frente a ela existe uma das únicas praças do bairro, a praça Olavo
Bilac (Fig 5), que foi cenário para diversas manifestações, luta e reivindicações. Este espaço
público é referência para os moradores, pois além das diversas manifestações culturais que
aconteceram e acontecem no bairro, pela parte da manhã funciona o chamado “shop chão”
onde são vendidas diversas mercadorias e serviços que são expostos no chão, por cima de
lonas e matérias improvisados de onde provem o seu sustento. Neste local percebe-se uma
confluência de pessoas que trabalham, batem papo, passeiam, ou seja, é um dos principais
543
espaços de sociabilidade do bairro, ponto de referência para quem não é do Bairro. Segundo
relato de antigo morador, a praça era um local totalmente diferente há alguns anos atrás, pois
era aberta e possuía bancos onde as pessoas sentavam para conversar, “uma pequena piscina”
onde as crianças tomavam banho e a venda no local ocorria livremente, com pessoas de fora
do bairro geralmente estudantes universitários em busca de recursos para viagens ou
formatura. Hoje a praça é gradeada, não existem mais bancos e para a venda no shop chão
paga-se uma taxa simbólica de R$ 1,00 (um real) para a Paróquia de São Domingos Gusmão.
Foto: Silva,2016
Fig.5 Pça Olavo Bilac – Shop Chão
O quarto ponto de parada, é a feira (Fig 6), que fica na rua Celso Malcher e é outro
local de muita representatividade no Bairro. A Feira da Terra Firme faz parte da identidade
cultural do bairro. Assim como em outras feiras, ela é local de sociabilidade entre os
moradores. Este é um espaço de intenso fluxo de pessoas. A maioria dos feirantes moram no
bairro e herdaram o ofício e saberes de seus pais, avós e familiares. Nesta feira existe uma
grande diversidade de produtos e segundo os moradores funciona inclusive a noite com venda
de pescado.
544
Foto:Ana Silva, 2012
Figura 3 - Imagem interna do Horto mercado Municipal
Para o próximo ponto de parada foi escolhida o Igarapé do Tucunduba, que era
utilizado como espaço de lazer onde as crianças brincavam e tomavam banho. Porém, devido
a expansão do bairro, as margens do Igarapé foram ocupadas e adotou-se uma nova dinâmica.
Hoje em dia existe nas margens do Tucunduba, uma das feiras do bairro, com a peculiaridade
que nela é possível comprar produtos diretamente com os ribeirinhos que vem das ilhas
próximas de Belém. O trajeto do percurso tem certa de 6,3 km, como apresentado no mapa
(Fig 4).
545
Fonte: Google Maps
Fig 7. Trajeto do Percurso Interativo no Bairro da Terra Firme, Belém/PA:
546
10 A 20 1 8,3
20 A 35 3 25,0
36 A 45 3 25,0
46 A 50 2 16,7
+ DE 50 ANOS 3 25,0
TOTAL 12 100
Fonte: Pesquisa de Campo/junho2016
Os participantes destacaram vários aspectos que lhes chamaram a atenção durante o
roteiro:
A diversidade e dinâmica social da feira da Terra Firme
O compartilhamento de memórias entre os moradores e os de fora do bairro
A luta histórica que os moradores travam cotidianamente
As maravilhas do bairro;
A escola Brigadeiro Fontenelle
O jardim construído em frente ao Museu Goeldi
A receptividade dos moradores
Dinâmica comercial do Bairro
O trabalho educativo com a comunidade
A fala dos moradores sobre a importância do Bairro
Quanto aos pontos visitados, os participantes disseram que foram lugares de grande
importância para a comunidade e que representam as peculiaridades do bairro e que poderiam
ser considerados estruturantes em relação a construção do lugar e de sua funcionalidade;
também acharam que o roteiro foi propositivo e educativo com foco nas memórias
compartilhadas com os moradores e que foram estrategicamente escolhidos levando em
consideração o histórico social e o acervo cultural e social do bairro. Por fim destacaram a
atitude dos moradores em “ não apenas querer melhorias, mas, fazerem estas melhorias por
meio de iniciativas criativas”.
547
Quanto as durações do roteiro, disseram que foi boa, mas foram feitas as seguintes
considerações:
Deveria ser mais preciso em cada parada;
Não foi cansativo;
Foi longo;
Houve pouco tempo para a saída;
Teve paradas não programadas;
Quanto ao que pode melhorar deram as seguintes sugestões:
Pontualidade para o início do Roteiro e cumprimento de Horário;
Definição de horário em cada parada;
Separar as pessoas em blocos para melhor audição e para não atrapalhar o
movimento dos lugares de paragem;
Não ter paradas extras;
Reduzir o tamanho do roteiro;
Inserir outros aspectos do bairro;
Enfatizar a história do Bairro;
Terminar o roteiro na ponte do Tuncunduba;
Organizar o tempo
Incentivar mais projetos deste tipo.
Considerações finais
O principal resultado foi a participação de 09 pessoas de fora do bairro (estudantes
universitários, professores), e moradores da Terra Firme, que tiveram um outro olhar sobre
o bairro da Terra Firme sendo ressaltada a importancia deste tipo de roteiro para a
valorização da identidade dos moradores a partir da noção de pertencimento que se evidencia
nos relatos dos moradores que conduziram o roteiro.
Houve a proposição de parcerias com os coletivos culturais do bairro afim de que eles
possam integrar-se ao roteiro e assim representar a cultura presente no bairro. Adaptações ao
548
roteiro auxiliarão na formatação para um possível produto turístico, bem como a inserção da
visita a ponte do Rio Tucunduba, ponte que faz limite com o bairro do Guamá e que tem
relevante representatividade como patrimônio do bairro.
Este roteiro está sendo realizado com estudantes de istituições de ensino de nivel
superior com a articulação do Ponto de Memória, mas há a necessidade de divulgação para as
escolas do bairro como uma estratégia de divulgação de potenciais lugares de memória dos
moradores. O roteiro precisa ser diversificado e agregado a ele o componente da cultura que é
tão presente no bairro através de diversos coletivos culturais.
Referências Bibliográficas
549
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SIMMEL, G. A metrópole e a vida mental. In: VELHO, O. G. O fenômeno urbano. Rio de
Janeiro: Zahar Editores, 1967.
550
MUSEOLOGIA INOVADORA E ARQUITETURA PARTICIPATIVA:
CONSTRUINDO NARRATIVAS SOCIAIS INCLUSIVAS E EMANCIPATÓRIAS
Resumo: O presente trabalho tem como escopo apresentar o projeto-ação associado ao Programa de
Pós-graduação em Artes, Patrimônio e Museologia - PPGAPM, Mestrado Profissional da
Universidade Federal do Piauí – UFPI, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre.
Trata-se de um relato de experiência, ainda em curso, de um Projeto Arquitetônico Participativo
desenvolvido para uma comunidade do município de Luís Correia – PI, nomeadamente Bairro
Coqueiro da Praia, distante 360 km, aproximadamente, da capital do estado, Teresina. Busca
apresentar a proposta como uma solução inovadora para o desenvolvimento do processo museológico
para o território em questão. Acredita-se que a museologia social contemporânea deve trabalhar no
campo na Inovação Social que trata os museus como espaço de conservação e proteção do patrimônio,
mas também como ambientes de construção de novos patrimônios, onde se sinta o pulsar do
quotidiano do lugar em que são inseridos.
Palavras-chave: Museologia Social, Arquitetura Participativa, Inovação Social.
Abstract: The presente work aims to present the action project associated with the Postgraduate
Program in Arts, Heritage and Museology – PPGAPM, Professional Master of the Federal University
of Piauí – UFPI, as a partial requirement to obtais the Master’s degree. This is an ongoing experience
of a Participative Architectural Project developed for a community of the municipality of Luís Correia
– PI, namely Bairro Coqueiro da Praia, about 360 km from the state capital, Teresina. It seeks to
presente the proposal as na innovative solution for the development of the museological process for
the territory in quesion. It’s is believed that contemporary social museology should work in the fields
of Social Inovation, which treats museums as a space for conservation and protecion os heritage, bus
also as environments for the construction of new patrimonies, where one feels the pulse of everyday
life in the place wherw they are inserted.
Key-words: Social Museology, Participatory Architecture, Social Inovation
551
Formação de novos protagonistas da Museologia Social
Inicialmente, apresentamos a proposta do Programa de Pós-graduação em Artes,
Patrimônio e Museologia – PPGAPM, mestrado profissional da Universidade Federal do
Piauí – UFPI que busca introduzir o mestrando na pesquisa interdisciplinar, a fim de que o
mesmo, por meio de experiências reais, possa ser capaz de diagnosticar problemas e propor
soluções, desenvolvendo produtos e/ou serviços em benefício da comunidade.
Acredita-se que o pesquisador-profissional, possa, por meio da investigação, extrair da
experiência vivenciada, o aprendizado necessário para o melhor exercício de seu trabalho
profissional.
Utilizando-se da metodologia da pesquisa-ação21, acredita-se que o sucesso de uma
pesquisa depende de um estudo articulado com análise integral do território 22 e sob uma
perspectiva multidimensional. A investigação deve buscar ultrapassar os muros da academia
de modo a romper com a perspectiva cartesiana da maioria das pesquisas tradicional,
assumindo um papel ativo no processo e, dessa forma, promover ações capazes de elucidar
problemas coletivos, onde os diversos atores envolvidos colaborem com o trabalho de forma
participativa, como sugere Michel Thiollent (2011).
Projetos dessa natureza adquirem relevância especial à medida que promovem
aproximações entre o pesquisador, a comunidade, o patrimônio cultural23 e natural24,
21
Segundo Michel Thiollent (2011, p. 20), a pesquisa-ação é um tipo de pesquisa social com base empírica que é
concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo e no
qual os pesquisadores e os participantes representativos da situação ou do problema estão envolvidos de modo
cooperativo ou participativo.
22
Conforme o pensamento de alguns autores como: Fala-se de território numa perspectiva multidimensional
baseada em diferentes relações sociais, onde, a partir de determinadas representações, seus atores configuram um
espaço geográfico dentro do contexto histórico em que estão inseridos, estabelecendo uma relação de
apropriação, pertencimento e poder, conforme reza a teoria de alguns autores: (RAFFESTIN, 1993) e
(HASBAERT, 2004).
23
Entende-se por Patrimônio Cultural todos os bens de natureza material e imaterial que nascem a partir das
referências que integra a história de determinado grupo e que são transmitidos de geração a geração. Segundo o
art. 216 da Constituição Federal, incluem-se como patrimônio cultural: as formas de expressão; os modos de
criar; as criações científicas, artísticas e tecnológicas; as obras, objetos, documentos, edificações e demais
espaços destinados às manifestações artístico-culturais; além de conjuntos urbanos e sítios de valor
histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
552
estabelecendo diálogos horizontais e troca de conhecimentos, tornando a investigação
científica e social solidária e participativa, como sugere Brandão e Streck (2006).
O PPGAPM com seu corpo de docentes e discentes formado por profissionais que
atuam em diversas áreas do conhecimento, assume a natureza multidisciplinar com o
propósito de construir um diagnóstico de realidade do território com a colaboração e
participação de diversos atores sociais, o que traduz a natureza do que entendemos por
Museologia Social25
O Mestrado, nessa especificação, é o pioneiro no Brasil e escolheu como sede para a
sua instalação a cidade de Parnaíba, reconhecidamente, Patrimônio Histórico Nacional pelo
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, situada no extremo norte do
Piauí, distante 339 km da capital do estado.
A cidade é a porta de entrada para a Área de Proteção Ambiental (APA) – o Delta do
Parnaíba, o único a desaguar em mar aberto das Américas. Quatro municípios formam a faixa
litorânea do estado: Ilha Grande, Parnaíba, Luís Correia e Cajueiro da Praia.
O cenário apresentado possui um rico e complexo patrimônio natural e cultural com
diversidade biológica e paisagística, apresentando, mangues, floresta de transição, espécies
ameaçadas de extinção, praias pouco habitadas e com a presença de comunidades ribeirinhas
e deltaicas detentoras de tradições ancestrais, que caracteriza a importância ambiental do
território e justifica a necessidade de preservação e conservação da diversidade ambiental e
cultural do país.
24
O Patrimônio Natural inclui as formas físicas, geológicas e biológicas, com áreas ocupadas por espécies
diversas de animais e vegetações, com valor científico e estético.
25
Desde 1972, em virtude das recomendações apresentadas à UNESCO pela Mesa Redonda de
Santiago do Chile, posteriormente afirmadas pela Declaração de Quebec, 1984, os museus, vistos
como instituições a serviço da sociedade, passaram a desempenhar sua função social, devendo intervir
de forma global, utilizando-se cada vez mais da interdisciplinariedade, a fim de integrar as populações
em suas ações, respondendo às necessidades das grandes massas populares que anseiam atingir
melhor qualidade de vida, através do conhecimento de seu patrimônio cultural e natural, reconhecendo
e fortalecendo as práticas sociais em diálogos compartilhados de saberes.
553
Assim, os mestrandos atuam nesse cenário desenvolvendo projetos-ação que se
adequem à proposta de dois “Projetos Matrizes”. O primeiro desenvolvido para proteção e
preservação do Centro Histórico de Parnaíba, intitulado: PARNAÍBA – PATRIMÔNIO
NACIONAL: Patrimônio Vivo, Cidade Viva; e o segundo, voltado para atender as
necessidades sociais, econômicas e culturais das comunidades26 que integram o território do
Meio Norte do Brasil: MUDE/ MUSEUS DO DELTA, com a intenção de criar uma rede de
museus de território. Ambos voltados para a concepção e implantação de equipamentos
culturais capazes de transferir conhecimentos, gerar emprego e renda para a sociedade.
A apresentação do PPGAPM se faz necessária para melhor compreender os motivos
fomentadores do presente projeto-ação, proposto dentro do Projeto Matriz acima referenciado.
Enquadrando-se ao contexto desse projeto matriz, o território de intervenção escolhido
para pesquisa foi o município de Luís Correia-PI, distante aproximadamente a 13 km de
Parnaíba
Esse território incorpora a maior extensão litorânea do Piauí, são 46 km dos 66 km
totais pertencente ao estado, dentro dessa faixa, encontra-se o bairro Coqueiro da Praia,
distante 11 km da sede do município de Luís Correia (Figura 04). Este foi o local escolhido
para o desenvolvimento de ações de caráter participativo e colaborativo, com o propósito de
envolver atores diversos numa rede de troca de saberes, estabelecendo diálogos e
compartilhando experiências entre pesquisadores e comunidade.
26
Apresenta-se aqui como comunidade um grupo de pessoas ligadas por afinidades ou por
necessidades, mas que compartilham as suas relações quotidianas e buscam interesses e objetivos em
comum. Diferente de sociedade, considerada como indivíduos aglutinados de forma impessoal que
compartilham de um conjunto de valores e regras normativas que servem para mediar as relações entre
as pessoas e resolver seus conflitos.
554
O Bairro do Coqueiro, reconhecido por seus moradores, como uma vila de pescadores,
é um vilarejo tranquilo que teve sua origem ligada à pesca artesanal27, formada por uma
comunidade simples que, na maior parte do ano, vive a calmaria peculiar do lugar. Os nativos
ali presentes detêm técnicas de saber-fazer ancestrais, com destaque para os diversos
utensílios ligado a atividade da pesca, guardados na memória e transmitido oralmente de
geração a geração.
Vale ressaltar que o lugarejo é uma região turística de beleza paradisíaca, bastante
procurado por ser propício para a prática de atividades voltadas ao segmento de sol e praia,
como: windsurf28 e kitesurf29. Em decorrência da influência do turismo instalado no lugar, é
possível perceber uma certa desconstrução do espaço originário dos protagonistas locais30.
Visualiza-se uma perda de referências, o rasgar de velas em alto mar que deixa o barco à
deriva, instaurando um sentimento de baixa autoestima e até mesmo de perda de identidade do
ser pescador e que reflete em toda a comunidade residente no bairro.
27
A pesca artesanal define-se como a atividade exercida por produtores autônomos ou com relações
de trabalho em parcerias, que utilizam pequenas quantias de capital e meios de produção simples,
com tecnologia e metodologia de captura não mecanizada e baseada em conhecimentos empíricos
(SEPAq, 2017).
28
É uma categoria de esporte aquático praticado por homens e mulheres em uma prancha à vela. Teve
sua origem na década de 70 na Califórnia. O espaço mais adequado para sua prática é um ambiente
aberto, tendo o mar como a melhor opção.
29
É um desporto aquático que utiliza uma pipa (comumente chamada pelos praticantes de kite) e
uma prancha com ou sem alças (uma estrutura de suporte para os pés).
30
Originariamente, o bairro Coqueiro foi habitado por moradores ligados à pesca artesanal, desta forma,
considera-se os pescadores como protagonistas do local.
555
monumentos remanescentes, conservar patrimônio, ou seja, criar ambientes diversos e
diferentes de memória.
O sistema capitalista e a sua consolidação no mundo proporcionaram considerável
integração entre as diferentes partes do globo, gerando uma diversidade partilhada de
identidades (HALL, 2002). Esses laços culturais entre diferentes grupos sociais estão cada dia
mais frágeis em decorrência das inúmeras influências culturais no mundo, isso faz com que
surjam novas identidades, identidades transculturais (SAYAD, 1998). No Brasil, por
apresentar grande diversidade de origens étnicas, esta miscigenação cultural é muito intensa, o
que provoca maior dinamismo ao nosso cotidiano e, consequentemente (do ponto de vista
mais tradicional), maior fragilidade aos aspectos identitários que unem a população.
Todavia, na visão mais contemporânea das políticas preservacionistas, essa
heterogeneidade é uma particularidade que deve ser respeitada e valorizada. Acredita-se que
as diversidades culturais coexistentes, não se anulam, pelo contrário, enriquecem-se
mutuamente, contribuindo com o processo de evolução, o que justifica, ainda mais, a
necessidade de se preservar as variadas manifestações do patrimônio cultural imaterial, a fim
de que estas não se percam.
Na percepção vigente, o patrimônio é considerado como um instrumento de
desenvolvimento local, é um processo voluntário enraizado na vida cotidiana da comunidade,
suscetível a mudança cultural, social e econômica. Assim, para que uma comunidade cresça e
se desenvolva, o seu “capital” – o patrimônio - deve ser bem administrado, e para que esse
capital seja enriquecido é preciso que a comunidade que o detém tenha consciência da sua
importância e do seu valor, participando ativamente de sua administração (VARINE, 2013).
Não obstante, as instituições museológicas, vistas como instrumento de proteção do
patrimônio, sofreram diretamente as influências dessa trajetória e debates em torno da
evolução do conceito de patrimônio cultural no Brasil e no mundo.
No final da Segunda Guerra Mundial passa-se a observar as renovações que passaram
a afetar a museologia. Os novos princípios e práticas da instituição caminhavam para a
concepção de um “museu integrado” a serviço do homem e do seu desenvolvimento, como
556
estabelecido na Mesa Redonda de Santiago do Chile, em 1972, estabelecendo a Nova
Museologia, que deve exercer uma função social.
Essa nova visão de uma Museologia Social busca firmar a museologia como
ferramenta para o desenvolvimento sustentável da humanidade, baseado nos princípios da
igualdade de oportunidades e na inclusão social e econômica. Deve trabalhar para reconhecer
e fortalecer as práticas sociais libertadores desenvolvidas por grupos sociais através de
diálogos solidários de saberes (SIQUEIRA, 2016).
Dentro desta perspectiva, entendemos que a museologia social trabalha no campo da
Inovação social que, segundo Luiz Bignetti (2011, p. ) “é o resultado do conhecimento
aplicado a necessidades sociais através da participação e da cooperação de todos os atores
envolvidos, gerando soluções novas e duradouras para grupos sociais, comunidades ou para a
sociedade em geral”.
Os projetos desenvolvidos no âmbito do Mestrado Profissional da UFPI, primando
pela interdisciplinariedade e multiprofissionalidade dos mesmos, buscam compreender as
necessidades do lugar onde os projetos são desenvolvidos, estabelecendo diálogos e
partilhando saberes de forma horizontal, com o intuito de integrar as populações em suas
ações. Dessa forma, conseguem responder às necessidades das comunidades com o intuito de
proporcionar melhor qualidade de vida aos seus moradores.
557
local, etc. a fim de que se mantenha uma relação de troca de conhecimentos entre os grupos
de forma horizontal e inclusiva. Cientes das demandas locais, os diversos atores, de forma
colaborativa e participativa, podem propor soluções eficazes para o lugar
Por meio dessa troca de conhecimento e consciência da realidade em que vivem,
intentamos colaborar, em conjunto com esses atores locais, considerados coautores da
pesquisa, pensando em projetos, ações e serviços voltados para a valorização dos patrimônios
vivos, das tradições, costumes, preservação e salvaguardados saberes e fazeres ancestrais,
bem como melhoria na qualidade de vida da comunidade.
Entende-se que o reconhecimento e o interesse pela salvaguarda do patrimônio
cultural, que traduz a identidade local, contribui para estimular o sentimento de pertencimento
desses atores, contribuindo para o fortalecimento do exercício de cidadania e melhoria da
qualidade de vida dessas pessoas, sensibilizando-as para a importância da construção de um
equipamento cultural ativo, a exemplo do museu de território31, capaz de recuperar a
autoconfiança e gerar emprego e renda para a comunidade do lugar.
Ante o exposto, o presente trabalho, inicialmente, surgiu com a proposta de
desenvolver um Inventário Participativo (IP) das Artes e Artefatos da Pesca Artesanal,
patrimônio cultural vivo da Vila de Pescadores do Coqueiro da Praia. Acredita-se que por
meio da construção de um IP é possível, identificar, relacionar, capturar, registrar e divulgar o
patrimônio cultural identitários de uma comunidade que, pela sua importância histórica,
merece ser salvaguardado pelos seus moradores e reconhecido pela sociedade. Foi com essa
31
O museu de território é a expressão do território, qualquer que seja a entidade que toma a iniciativa e
a autoridade que o controla: associação, mecenas, administração local, instituição científica, agência
de desenvolvimento, programa de turismo cultural, etc. Seu objetivo é a valorização desse território e,
sob esse ponto de vista, é realmente um instrumento do desenvolvimento em primeiro grau (VARINE,
2014, p. 185).
558
intenção que iniciamos a imersão no território e a aproximação com a comunidade através da
Associação de Moradores do Bairro do Coqueiro (AMBC)32.
Sabe-se que as condições favoráveis para se desenvolver uma pesquisa-ação é quando
o pesquisador não aceita conduzir suas investigações aos aspectos acadêmicos das pesquisas
cartesianas e busca desempenhar um papel ativo na realidade do território onde está inserido.
Papel semelhante, possuem os museus contemporâneos devem desempenhar enquanto
instituições a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento.
Ciente dessa missão, a aproximação com AMBC nos fez perceber que a mesma vivia
um período de baixa atuação, a diretoria vigente se encontrava com o mandato vencido, a
grande maioria dos associados há tempo não mais participavam das reuniões, mas a vontade
daquele pequeno grupo de mulheres que nunca deixou de sonhar e acreditar na importância do
associativismo, persistia.
Esses encontros nos fizeram perceber a vontade de seus atores em ver a comunidade
superar as problemáticas sociais de submissão e principalmente, destruição ambiental em
decorrência da economia e especulação imobiliária decorrentes da chegada do turismo e da
falta de planejamento urbano, trazendo como consequência o crescimento desordenado do
lugar. Por outro lado, percebe-se a falta de consciência da comunidade no que se refere ao
conhecimento dos seus direitos de cidadão e de seu papel como atores do desenvolvimento
inseridos num espaço de construção e controle social de políticas públicas em diferentes
níveis de gestão.
Não obstante, os atores locais são sensíveis às problemáticas atuais que acometem o
lugar e apontam, dentre eles: a substituição da pesca artesanal, antes tida como a principal
economia local e de base sustentável, por uma demanda de emprego doméstico, de homens e
mulheres, em restaurantes, bares e casas de veranistas “estrangeiros” à cultura do lugar; a
presença da pesca predatória desordenada e sem fiscalização dos órgão competentes,
32
Fundada em 15/10/1987, publicada no D.O.E, em 30/11/1992, reconhecida pela Lei nº 372/88 em
22/10/88, CNPJ nº 69.616.480/0001-16. Nasceu por iniciativa de um grupo de 9 (nove) mulheres
nativas preocupadas com os problemas locais,
559
agredindo o meio ambiente e comprometendo o sustento de muitas famílias que dependem da
pesca para sobreviver; desrespeito a cultura local com a construção de mansões ocupando
áreas de antigos cemitérios ou destruindo dunas para construção de jardins e áreas de lazer;
substituição da paisagem nativa, originalmente rica e bio-diversa com a presença de um mar
aberto de águas calmas e de poucas ondas que abraça uma comunidade cercada de coqueiros,
dunas, lagoas, riachos perenes, por um espaço agredido por despejos de efluentes domésticos,
resíduos sólidos de construções que interfere na saúde e qualidade de vida de seus moradores;
substituição de uma vida quotidiana formada por relações afetivas de amizades e parentescos,
por uma realidade de jovens e adolescentes com poucas oportunidades para educação, esporte
e lazer, tornando-se vulneráveis às drogas e alcoolismos precoce.
Frente a essa realidade. A associação tem como objetivo prioritário, construir a sua
sede própria para que possa desenvolver atividades e realizar seus eventos. Há mais de 20
(vinte) anos a associação recebeu em doação, um terreno destinado à construção de da tão
sonhada sede. Todavia, tal objetivo nunca foi alcançado e as justificativas dos seus associados
estava na ausência de um projeto arquitetônico e recursos públicos para a execução do
mesmo.
Atento a essas expectativas, ficou evidenciado que era preciso adequar as diretrizes
iniciais vislumbradas para o projeto, ao conjunto de anseios e solicitações da comunidade.
Seguindo as recomendações da metodologia da pesquisa-ação desenhada por Michel Thiollent
(2011), foi possível comprovar que a fase exploratória da pesquisa é importante para conhecer
o território, buscar envolver-se com os atores locais, reconhecer suas expectativas e
estabelecer um primeiro diagnóstico da situação e dos problemas mais urgentes, a fim de
propor eventuais soluções para os mesmos.
Perceber, após um bom tempo de pesquisa e imersão no território, que a “hipótese” de
construir um inventario participativo das artes e embarcações da pesca tradicional não seria a
diretriz mais apropriada para o momento, causou surpresa. Mais uma vez, a metodologia de
Michel Thiollent, aplicada no presente trabalho, trouxe respostas para as inquietações.
560
Segundo o autor, a pesquisa-ação segue instruções diferentes das aplicadas nas pesquisas
acadêmicas:
Muitos autores consideram que, na pesquisa-ação, não se aplica o tradicional
esquema: formulação de hipótese/coleta de dados/comprovação (ou
refutação) de hipóteses [...] podemos considerar que a pesquisa-ação opera a
partir de determinada instruções (ou diretrizes) relativas ao modo de encarar
os problemas identificados na situação investigada e relativa aos modos de
ação. Essas instruções possuem um caráter bem menos rígido do que as
hipóteses, porém desempenham uma função semelhante. Com os resultados
da pesquisa, essas instruções podem sair fortalecidas ou, caso contrário,
devem ser alteradas, abandonadas ou substituídas por outras. A nosso ver a
substituição das hipóteses por diretrizes não implica que a forma de
raciocínio hipotética seja dispensável no decorrer da pesquisa. Trata-se de
definir problemas de conhecimento ou de ação cujas possíveis soluções, num
primeiro momento, são consideradas como suposições (quase-hipóteses) e,
num segundo momento, objeto de verificação, discriminação e comprovação
em função das situações constatadas. (Thiollent, 2011, p. 40).
Diante das expectativas dos atores sociais local, aproveitando-se ainda das habilidades
profissionais de arquiteta-pesquisadora, optou-se por mudar o objeto da pesquisa.
Desenvolver um inventário participativo com atores sociais desmotivados, descrentes do seu
potencial como agentes de desenvolvimento, seria uma tarefa de difícil êxito. Para aquele
momento, o mais importante era levar para aquelas pessoas o conhecimento sobre os
princípios do associativismo. Para tanto, redirecionou-se o projeto e objeto passou a ser a
construção de um PROJETO ARQUITETÔNICO PARTICIPATIVO para a sede da AMBC.
Porém, o desafio estava lançado: Como transformar um projeto arquitetônico
participativo numa ferramenta capaz de provocar a motivação e a inclusão social dos atores
locais e, dessa forma, potencializar e contribuir para o fortalecimento das ações da AMBC,
envolvendo-os num processo hegemônico focado no exercício da cidadania e da participação
que ultrapassa o assistencialismo e busca a autossustentabilidade do lugar?
Inicialmente, acredita-se que tal equipamento comunitário, construído de maneira
colaborativa e participativa, além de trazer a união dos associados, pode se transformar em
um equipamento multifuncional, de sociabilidade, e ser utilizado como instrumento de
561
preservação e divulgação do patrimônio cultural do lugar e relatar narrativas da memória
social em constante construção, a exemplo do fazem os Museus de Território.
Com este objetivo, o presente projeto-ação também passa a se integra à proposta do
Mestrado em desenvolver a Rede de Museus do Delta do Parnaíba – MUDE.
A trajetória descrita até aqui, deixou claro que antes de iniciar qualquer processo de
reconhecimento do patrimônio cultural de determinado território, é preciso fortalecer as
relações de identidade e pertencimento ao lugar, é preciso que os atores locais reconheçam
valores ligados aos seus sentimentos e à sua identidade cultural capazes de recriar seu espaço
de vida e identificar-se com o mesmo (RAFFESTIN, 1981).
Segundo Varine (2013, p. 18), o desenvolvimento local não se faz “fora do solo” e
suas raízes são nutridas pelo patrimônio cultural do lugar, para o autor, falar de
desenvolvimento local é assunto de atores locais e de muitos outros protagonistas: políticos,
trabalhadores, organizações, instituições públicas e privadas, visitantes, veranistas, todos que
de alguma forma compartilham uma comunidade de vida e de cultura, aqui chamados de
comunidade de interesse.
562
Buscamos, ainda, informar sobre as intenções das proposições de projetos e ações a
serem desenvolvidas pelos profissionais do mestrado na busca pela valorização do patrimônio
vivo ali presente, suas tradições, seus costumes, saberes e fazeres ancestrais que representam
a identidade do lugar e que podem ser utilizados em prol do desenvolvimento local e da
qualidade de vida de seus moradores.
Apesar da luta constante dessas mulheres para manter a AMBC em pleno
funcionamento, ficou evidente que lhes faltavam conhecimentos básicos de associativismo.
Percebemos a fragilidade da relação entre a instituição e seus membros, descrentes com a
atuação da mesma, não participavam mais das reuniões, muito menos honravam com o
pagamento das mensalidades. Além disso, faltava-lhes também a consciência de que, o
sucesso de uma associação depende da união dos seus associados para identificação dos
problemas concretos que afetam os interesses comuns da coletividade e, assim, poder buscar
soluções para os mesmos.
Fundada em outubro de 1984, teve períodos de grandes atuações a ponte de conseguir
o título de utilidade pública conferido pela Prefeitura Municipal de Luís Correia-PI. Além
disso, adquiriu por doação, um terreno para que fosse construída a sua sede. No entanto,
nunca foram “contemplados” com recursos e nem se mobilizaram de maneira eficaz na busca
desse objetivo. A ausência do sonho, se torna hoje, o “vilão” pela atuação pouco eficiente da
instituição.
É preciso deixar claro que, a proposta do projeto, além da construção de um projeto
arquitetônico para a sede da AMBC, intenta-se buscar caminhos para desenvolver lideranças
locais e criar espaços economicamente relevantes, capazes de provocar a criatividade dos seus
atores locais em busca pela autossustentabilidade do lugar, afastando o pensamento
assistencialista presente na maioria das organizações associativistas. Acredita-se que a
articulações e alianças entre as associações e outros atores externos, devem se dar de forma
cooperativa, significando alianças entre as partes.
Por essa razão, comprometi-me, enquanto profissional da arquitetura e pesquisadora
do mestrado da UFPI, instituição colaboradora da AMBC, intervir nessa demanda de
563
construção de um projeto arquitetônico participativo para a sede da associação e, naquele
primeiro encontro, já marcamos a data para a segunda reunião para a apresentação do referido
projeto.
Importante ressaltar, que para o desenvolvimento de um projeto arquitetônico o
arquiteto deve guiar-se por algumas etapas preliminares que, naquela ocasião,
propositalmente não iam ser observadas. Primeiramente, seria necessário dialogar com a
comunidade no sentido de entender o programa de necessidade para o lugar, fazer um estudo
sobre os aspectos físicos do terreno, escolha do partido arquitetônico e justificativas das
soluções propostas para a edificação e o mais importante, compartilhar todas essas decisões
com os membros da comunidade, afinal, são eles que irão se apoderar e fazer o uso da mesma,
até se chegar num projeto executivo final.
Por outro lado, o “protótipo de projeto” desenvolvido, foi apenas um pretexto para
que, na reunião seguinte, pudéssemos iniciar um diálogo com aquele grupo sobre a temática
de associativismo. Ademais, esperava-se que a notícia de que seria apresentada na próxima
reunião ordinária da associação, um projeto arquitetônico para a tão sonhada sede, pudesse
repercutir e trazer para a mesmo o maior número de moradores.
Desta forma, conforme prometido, no segundo encontro, marcado para o dia 11 de
setembro de 2016, foi apresentado o “pré-projeto” para a associação.
Embora a planta do projeto apresentado tenha seguido um programa de necessidades
que os presentes na primeira reunião apontaram como prioridade, não houve nenhuma
preocupação técnica para elaboração do mesmo, mas serviu para explicar todo processo
construtivo de uma edificação - que se inicia com os alicerces e os pilares muito bem
pensados e dimensionados para suportar todas as cargas e as intempéries que irá sofrer ao
longo da sua existência, além de mostrar a importância de cada um dos insumos (cimento,
pedra, areia, tijolo, telha...) utilizados na construção para que ao final a mesma venha a
adquirir a forma e a desempenhar a função para a qual foi idealizada. A partir desses
conceitos, iniciou-se uma discussão sobre a temática do associativismo.
564
Metaforicamente, aproveitou-se desse discurso para mostrar que no caso de uma
associação de moradores, os alicerces poderiam ser equipado à necessidade da união dos seus
associados, os insumos seria o papel que cada um deve assumir para garantir o pleno e eficaz
funcionamento da instituição. A comunidade precisa estar ciente sobre “o que é” e “para que
serve” uma associação; compreender que o interesse da coletividade deve estar acima dos
interesses individuais; e que é preciso haver a união de todo seus membros para alcançar os
objetivos em comum. Esses são princípios básicos necessários para a gestão de uma
associação e uma tarefa conjunta, que deve ser desempenhada por todos os seus integrantes.
De acordo com Fontes (2003), as redes sociais nas quais os indivíduos estão inseridos
têm papel na determinação de sua trajetória de participação na estruturação de sociedade civil
e o seu sucesso é medido a partir do engajamento cívico em associação voluntária.
Outro tema abordado naquele momento, foi a questão autosustentabilidades, vista
como a capacidade dos moradores de se articularem, não como meros receptores de serviços
oferecidos pela associação, mas na condição de ativos participantes de sua gestão. Não se
trata de excluir as possibilidades de buscar apoio a outros atores, mas buscar o engajamento
da comunidade no sentido de promover ações que possam garantir a inclusão de seus agentes
locais e a emancipação da comunidade independente de apoio externo.
Não iremos descrever todas as ações colaborativas e participativa que foram realizadas
a partir dos diálogos e encontros que passaram a ser desenvolvido a partir daquele segundo
encontro. Todas essas narrativas serão apresentadas em forma de diário gráfico, memória
crítica e documentário na inauguração do primeiro núcleo da sede que está em fase de
execução. Porém, vale destacar, discutindo o projeto arquitetônico de forma participativa, foi
possível construir narrativas sociais a partir da realidade local e do quotidiano do lugar.
Comprova-se, desta maneira, que o desenrolar da pesquisa-ação exige uma relação
estruturante e participativa entre pesquisadores e os envolvidos na situação investigada. Cabe
ao pesquisador, no decurso da pesquisa, resolver qualquer problema de aceitação no território
pesquisado, a fim de que não perca a reciprocidade por parte do grupo envolvido na relação
de troca de saberes e partilha de conhecimentos.
565
As Etapas Para A Elaboração Do Projeto Arquitetônico Participativo
Como foi dito, a apresentação da primeira proposta de projeto para sede da AMBC,
constituiu-se apenas como pretexto para discutir questões inerentes ao associativismo,
buscando despertar o interesse da comunidade de, em conjunto, buscar soluções para
problemas coletivos inerentes ao território em que estão inseridos.
A estratégia começou a ganhar as proporções que se esperava. A associação já havia
conseguido, a partir de recursos conseguidos por meio de mobilização colaborativas da
própria comunidade (bingos, bazares, rifas, doações...), quantia suficiente para comprar o
material necessário do primeiro núcleo da sede da AMBC, uma área coberta, medindo 7m
(sete metros) de comprimento por 5m (cinco metros) de largura, espaço suficiente realizar os
encontros e reuniões mensais, oque provocou, ainda mais, a motivação dos associados, além
de aproximar outros atores locais, interessados em se associar. Isso exigiu a elaboração de um
projeto, observando todos os transmites necessário até a sua fase final.
A etapa inicial de todo projeto arquitetônico é estabelecer contato com a comunidade
com o intuito de compreender as problemáticas sociais e os desejos da coletividade. Após oito
meses participando das vivências e desenvolvendo ações sociais com e para a comunidade,
esta etapa já estava cumprida com excelência.
Inicialmente, na ocasião daquele primeiro encontro com a associação, os atores
presentes apresentaram um programa de necessidade simples. A sede precisaria ser composta
apenas por uma diretoria, um depósito, 2 (dois) banheiros, cozinha/refeitório e uma área
coberta que pudesse ser usada como auditório, espaço de lazer e encontros.
Ao longo do período de vivência e conhecendo toda a história da associação, percebeu
o interesse da mesma em construir na comunidade um museu do pescador (figura 6), o que
corroborava com a proposta do mestrado de criar uma rede de museus de território. Diante
deste desejo da comunidade passou-se a levar para as reuniões discursões sobre o patrimônio
566
cultural do lugar, a importância de se preservar e o papel dos museus como suportes da
memória e elementos de afirmação da identidade cultural de um grupo.
Assim, para atender todas essas demandas, avançamos em algumas etapas do projeto,
realizamos o estudo preliminar com levantamento de dados para analisar todas as
características do local de intervenção: análise dos condicionantes do local, como o clima, a
insolação, a paisagem natural, a paisagem urbana, a infraestrutura, os equipamentos
institucionais, as condições físicas e ambientais que interferem sobre o mesmo;
condicionantes legais necessárias; análise planialtimétrica do terreno, tudo sob a supervisão
técnica da arquiteta-mestranda, responsável pelo projeto.
Essa etapa serviu para discutirmos outras temáticas de ordem natural, cultural, social e
ambientais relativas ao lugar. Aproveitou-se o momento para apresentar o projeto aos gestores
municipais, solicitando o apoio no sentido de recolher entulhos de construções presentes no
bairro para servir de aterro necessário no terreno. Outra proposta que foi lançada à
comunidade, foi a construção do muro do terreno ser construído com o uso de garrafas pet,
contribuído, assim, com a diminuição do lixo na cidade. Com isso, iniciamos uma campanha
de arrecadação de garrafas, envolvendo os moradores, donos de bares e restaurantes para a
recolha desse material.
Por todo o exposto, confirmou-se que o pretexto de utilizar o projeto como estratégia
para conseguir o envolvendo da comunidade num processo hegemônico focado no exercício
da cidadania e da participação, ultrapassando o assistencialismo e buscando a
autossustentabilidade do lugar, realmente era possível.
O projeto segue o seu curso e já foi, de forma participativa, definido e aprovado pela
comunidade até a fase de anteprojeto, onde se discute questões referentes a implantação,
paisagismo, disposição, dimensionamento dos setores com seus compartimentos, estrutura,
funcionalidade, volumetria, viabilidade técnica, econômica e ambiental do edifício.
Entretanto, a definição dos detalhes técnicos construtivos a serem utilizadas na sua execução
podem sofrer alterações, em decorrência de fatores, principalmente de ordem financeira.
567
Como já mencionado, o objetivo do projeto é buscar a autosustentabilidade do lugar,
buscamos caminhos para promover lideranças locais e, assim, por meio de soluções
inovadoras, criativas e de resistência da comunidade, possamos garantir qualidade de vida a
seus habitantes. Dessa forma, não se pode estabelecer amarras para a criatividade e ideias
inovadoras que ainda poderá surgir até o final do percurso.
Considerações finais
A estratégia de desenvolver o Projeto Arquitetônico Participativo para a construção da
sede da Associação de Moradores do Bairro do Coqueiro, no âmbito de um mestrado de
museologia, tornou-se uma solução inovadora para o desenvolvimento de um processo
museológico para aquele território.
A museologia social contemporânea, para cumprir a sua função social, precisa buscar
soluções inovadoras e trabalhar como mediadores entre o mundo das comunidades, preservar
patrimônio, mas também, produzir patrimônio.
A partir do desejo de uma comunidade, o pesquisador consegue estabelecer uma
relação de troca de saberes entre os atores locais, sensibilizando-os para o conhecimento e
reconhecimento de seu patrimônio identitários, despertando nos mesmo o interesse pela
construção de um equipamento cultural que pode servir de base para implantação de um
museu de território.
A experiência que está sendo desenvolvida com e para a comunidade do Coqueiro,
vem construindo narrativas que integrarão ao patrimônio do lugar. Traduziu-se como uma
forma inovadora de, por meio das questões e demandas colocadas pela comunidade, oferecer
e construir soluções partilhadas e criativas para as mesmas. É preciso lembrar que o território
é o espaço onde acontece relações diversas e a comunidade é o protagonista social dessas
relações.
A participação e envolvimento direto da comunidade no planejamento de ações em seu
benefício é o caminho para enfrentar a dimensão social e política dos projetos de interesse
coletivo e estabelecer uma relação de igualdade e horizontalidade, pois leva em consideração
568
opiniões e desejos dos envolvidos e, nesse ínterim, garantem maior cidadania e democracia
aos seus participantes, proporcionando a autossutentabilidade do lugar.
Referências Bibliográficas
BIGNETTI, Luiz Paulo. As inovações sociais: uma incursão por ideias, tendências e focos de
pesquisa. In: Ciências Sociais Unisinos, São Leopoldo, Vol. 47, N. 1, p. 3-14, jan/abr 2011
RAFFESTIN, Claude. Por uma Geografia do Poder. França. São Paulo: Ática,
1993.
SIQUEIRA, Juliana Maria de. Museologia Social e Educação: o poder de memória para
descolonizar o ensino. In: Revista Fórum Identidade. Ano 10, v.22, nº 22, set.- dez. 2016.
THIOLLENT, Michel. Metodologia da pesquisa-ação. 18º ed. – São Paulo: Cortez, 2011.
569
MUSEOLOGIA, PARQUES, ECOMUSEUS, ASSOCIAÇÕES E INICIATIVAS
COMUNITÁRIAS EM DEFESA DO PATRIMÔNIO CULTURAL.
Abstract: The present text entitled “Museology, parks and associations – community initiatives in
defence of cultural heritage” aims to analyse historical aspects of The New Museology and of the
ecomuseums, showing how, originally, this typology was associated to the administrative model of
regional natural parks in France. The aim here is to exemplify this relationship between parks and
ecomuseums, through two case studies, carried out in the city of Salvador/Bahia/Brazil, involving
community initiatives, namely: the Metropolitan Parks of Abaeté and of São Bartolomeu. The study
demonstrates that the urban parks must be viewed from anthropological and museological perspectives
and need the support of public educational policies that seek the integration of the concepts and
practices of mediation involving the use of memory, history and heritage.
Keywords: Museology; ecomuseums; parks and participatory methodologies.
570
Nova Museologia, ecomuseus e parques: aspectos históricos
Atualmente, percebe-se cada vez mais o desenvolvimento de ações preservacionistas
organizadas por grupos ambientalistas e movimentos sociais que almejam a melhoria da
qualidade de vida das populações de forma integrada com as atividades de proteção
patrimonial. Nesse sentido, o debate em torno da Museologia permite a compreensão dos
museus comunitários e suas metodologias participativas, como fruto de uma construção
histórica, voltado para o reconhecimento da diversidade sociocultural, típica das sociedades
contemporâneas. Trata-se, de ampliar o olhar museológico, que permite também uma leitura
diversificada dos suportes materiais e imateriais da cultura e, ao mesmo tempo, incorpora os
sentidos atribuídos pelos grupos sociais, por meio de atividades científicas. Isso concorre
para a reflexão dos patrimônios vinculados a uma dada realidade, que também deve ser
levado em consideração pelos estudos museológicos contemporâneos, objetivando viabilizar
os processos de inclusão social e cultural.
Nessa perspectiva, vale destacar os debates em torno da Nova Museologia que
influenciaram a participação e os questionamentos de segmentos das populações, sobretudo
no que diz respeito à definição de cultura e às formas de proteção patrimonial. Almejava-se a
construção de um tipo de museu que pudesse dar conta das relações entre o homem e o objeto,
bem como de um modelo de museu comprometido com uma educação questionadora e
transformadora (RÚSSIO, 2010). Assim, de modo geral, o que marca o movimento da Nova
Museologia é a participação dos profissionais, estudiosos e militantes da sociedade civil,
preocupados com a preservação do patrimônio natural e cultural, em prol de uma sociedade
mais humanitária e comprometida com a construção de governos e instituições mais
democráticas. Isso, obviamente, estava atrelada a possibilidade de mudança do paradigma na
história dos museus, ou seja, de espaços da memória do poder para o desenvolvimento de
práticas museológicas, com o objetivo de explorar o poder da memória.
Para os defensores do movimento da Nova Museologia, o ecomuseu constituía-se
como um modelo apropriado de preservação e apropriação do patrimônio cultural, pois
viabilizava o trabalho com os bens culturais de forma global, incluindo o patrimônio natural e
571
cultural, além de proporcionar, por meio das atividades museológicas, a integração com as
comunidades de um determinado território. Com efeito, sobre a origem dos ecomuseus,
Hubert (1989) demonstra sua relação com os parques naturais regionais existentes na França.
Entende o autor que o desenvolvimento de uma política territorial articulada ao turismo criou
as condições favoráveis para a estruturação dos parques naturais regionais naquele país.
Vejamos sua reflexão a propósito dessa questão:
As zonas rurais “sensíveis”, por sua vez, se beneficiam da política de criação dos
parques naturais regionais em 1967. Localizados próximo das grandes cidades,
os parques funcionam como o “pulmão verde”, e oferecem uma renovação
econômica com base na recepção dos turistas. Os financiamentos
interministeriais vão favorecer aos parques e permitir a criação de estruturas
museográficas para atrair visitantes e melhorar o ambiente rural. São reunidas,
portanto, as condições para as realizações, sob a liderança de Georges Henri
Rivière, dos ecomuseus. (HUBERT, 1989, p. 146, tradução nossa)33.
O autor esclarece a articulação que Georges Henri Rivière fazia dos parques,
considerados como patrimônio, com a criação dos “museus de casa”, tendo em vista sua
preocupação com a preservação da arquitetura rural. Acrescenta ainda que, para Rivière, os
museus ao ar livre eram considerados museus de casa, produzidos em seu meio e explorados
museograficamente. Contudo, analisa Hubert (1989) que os museus ao ar livre não eram
simplesmente museus de casa, na medida em que se tratava das relações entre o homem e
seu meio ambiente. Nesse sentido, o enfoque de Rivièri procurava ampliar a análise entre
natureza e cultura.
Discutindo o papel de Rivièri para o delineamento do conceito de ecomuseologia,
Hubert (1989) afirma que significa muito mais do que a simples definição de uma nova
categoria de museu. Para ele, Rivièri inventou um sistema que colocou o museu na escuta de
33
“Les zones rurales ‘sensibles’ bénéficient à leur tour de cette politique avec la création em 1967 des parcs
naturels régionaux. Situés à proximité des grandes villes dont ils seront le ‘poumon vert’, ils proposent um
renouveau économique fondé sur l’accueil touristique. Les financements interministériels dont bénéficient les
parcs vont permettre la création de structures muséographiques susceptibles d’attirer les visiteurs et de valoriser
le milieu rural. Les conditions sont ainsi réunies pour des réalisations qui sous l’impulsion de Georges Henri
Rivière, deviendront les écomusées.”
572
seu tempo. Dessa forma, essa instituição opera com determinadas forças sociais que são
acionadas de acordo com o “espírito” do momento histórico.
Com efeito, foi no bojo das discussões sobre meio ambiente e a necessidade de
preservação dos recursos naturais mundiais que surgiu a noção de ecomuseu. O modelo
administrativo foi o dos parques naturais regionais, tendo sido elaborado, na França, com o
apoio do movimento pelo desenvolvimento territorial. Segundo Gestin (1989, p. 157,
tradução nossa):
Um seminário do ICOM, em setembro de 1972, sobre o tema museu e meio
ambiente, procurou analisar os fundamentos do que aparecia como uma nova
filosofia do museu. Era conveniente dar forma à instituição: os parques
naturais regionais eram o lugar ideal em que teoria e prática se confrontavam
no cotidiano34.
De acordo com Hubert (1989) e Gestin (1989), Georges Henri Rivière trabalhou em
algumas propostas de definição do ecomuseu que permitem uma análise da evolução desse
conceito. A primeira versão caracteriza o ecomuseu como um novo tipo de instituição,
vinculado a duas noções básicas: interdisciplinaridade, tendo como aspecto central a questão
do meio ambiente; e ligação com a comunidade, pela sua participação na construção e
funcionamento do museu. Rivière analisou também a definição de museu éclaté, composto
de um órgão primário de coordenação e de órgãos secundários, tendo como objetivo a
interpretação do meio ambiente natural e cultural no tempo e no espaço (aspecto intensivo),
com experiências comparativas fora da comunidade (aspecto extensivo). (HUBERT, 1989;
GESTIN, 1989).
Consensualmente, alguns autores, a exemplo de Varine (2012) e Weis et al. (1989),
estabelecem os seguintes elementos para a constituição dos ecomuseus: o território e seus
habitantes; uma comunidade e seu patrimônio. Já Bellaigue (1992) entende que as atividades
34
“Um colloque de l’ICOM, reuni em septembre 1972 sur le thème Musée et Environnement, s’attacha à
dégager les fondements de ce qui apparaissait déjà comme une nouvelle philosophie du musée. Mais Il convenait
de donner une forme à l’instituition: les Parcs naturels régionaux se trouvaient être le lieu ideal ou théorie et
pratique se confronteraient au quotidien.”
573
devem ser desenvolvidas com base nas necessidades e anseios do grupo social, de maneira
ativa e participativa, envolvendo técnicos e comunidade, procurando enfocar a relação entre o
passado e o presente por meio do patrimônio natural e cultural.
Em relação à experiência francesa e à vinculação dos ecomuseus aos parques,
observamos que houve uma dissidência, evidenciada pelo surgimento de questionamentos a
propósito de suas reais funções (HUBERT, 1989). No momento de elaboração de questões
específicas sobre os ecomuseus, houve uma concordância do Ministério da Cultura, mas uma
desvinculação do Ministério do Meio Ambiente, provocando, assim, uma espécie de “ataque”
ao trabalho de natureza interdisciplinar, que tinha sido iniciado e se desenvolvia com a
participação das comunidades. Contudo, como ressalta Hubert (1989), os ecomuseus dessa
geração foram obrigados a rever seus objetivos, pois passaram a contar com menos verbas do
que seus predecessores, dificultando o progresso de algumas funções, tais como: as científicas
e as voltadas para o desenvolvimento social.
Isso contribuiu para que os profissionais que atuavam nos ecomuseus fossem
incorporando, como princípio de organização e gestão, o modelo de associação. Destaca-se,
nesse campo, o ecomuseu do Creusot-Montceau-Les-Mines, o qual serviu como referência
para a criação de alguns ecomuseus no Brasil, como o ecomuseu de Itaipu, em Foz do
Iguaçu, no estado do Paraná. Ademais, as reflexões sobre a Museologia e os museus, a
relação museu-educação e os avanços em torno das metodologias utilizadas nas experiências
dos ecomuseus constituíram o apoio fundamental para a construção de processos
museológicos aplicados em diversos museus, a exemplo do Museu Didático Comunitário de
Itapuã/BA/Brasil, que se caracterizava como um museu escolar, atuando de forma abrangente
e envolvendo a comunidade, o bairro e a cidade.
574
considerar os mais diversos patrimônios. Além disso, enfatizam a importância da valorização
de aspectos ligados à vida cotidiana, a fim de preservarmos, de maneira mais ampla e fiel, os
elementos do nosso passado. Para esses autores, a concepção de preservação deve ser
atualizada, dinâmica e interativa. Também ressaltam a pertinência do trabalho científico com
o patrimônio, caracterizando-o como uma fase na evolução dos estudos nesse campo.
Ressaltam, pois, a necessidade de interpretações científicas e afirmam: “[...] a ciência pode
contribuir para despertar a atenção que faltava, estimulando a curiosidade em relação ao
detalhe e a descoberta dos conjuntos”35 (BABELON; CHASTEL, 1994, p. 102, tradução
nossa). Além disso, discutem que essa estratégia é necessária, tendo em vista a complexidade
do patrimônio e o fato de que, até hoje, ele ainda é pouco explorado.
Na mesma linha de pensamento, Béghain (1998) coloca que ingressamos num
momento histórico diferenciado em relação ao patrimônio cultural e suas articulações com a
memória. Os questionamentos em relação ao conceito de patrimônio e a integração entre
algumas disciplinas, como história, teoria da arte, antropologia e sociologia, permitiram
conhecer melhor os objetos que compõem o patrimônio cultural, contribuindo para a
“maioridade” do patrimônio. Esclarece ainda que estamos no início da era moderna do
patrimônio, mas que esse novo momento histórico permite recusar seu uso como afirmação
das origens. Dessa forma, para Béghain (1998), o patrimônio está inscrito na história e, como
tal, sujeito a revisão.
Com efeito, a discussão e a análise do autor citado apontam-nos a importância do
trabalho técnico e científico desenvolvido por profissionais especializados para zelar pela
natureza e qualidade da produção do conhecimento, assim como a mediação social com o
patrimônio cultural nas sociedades ditas democráticas. Ele defende a ideia de que alguns
princípios deveriam ser considerados para a execução das políticas públicas de proteção
patrimonial, citando: liberdade nas práticas de pesquisa e publicação; respeito à diversidade
35
L’appareil scientifique peut d’ailleurs susciter dans les esprits l’attention qui manquait, en favorisant la
curiosité du detail et la découverte des ensembles.
575
patrimonial; implantação de meios para assegurar a preservação, transmissão e difusão do
patrimônio; articulação entre cultura e educação, entre outros aspectos. Essas proposições
supõem a participação ativa do Estado no processo de proteção, estudo e divulgação do
patrimônio cultural. De mais a mais, elas partem do pressuposto de que é fundamental o
desenvolvimento de uma política educacional comprometida com a realidade sociocultural
das populações e que possa também contribuir para o processo de reflexão da memória,
história e patrimônio dos diversos grupos que compõem as sociedades industriais
contemporâneas. Acredita esse autor que o patrimônio pode deixar de ser utilizado como
instrumento da ordem, tornando-se um pensamento sensível da memória, inscrito num espaço
crítico e afetivo, apoiado nas ciências que contribuem para interpretá-lo e de ações que
permitam sua apropriação.
Trabalhando na mesma linha de Béghain (1998), Guillaume (1990) elenca alguns
princípios para o desenvolvimento de trabalhos no campo da preservação da memória:
articulação entre memória individual e coletiva ou memória popular e memória artificializada
para conservação; trabalho de luto por meio da análise dos traços conservados e de
observações etnológicas; e, finalmente, a mediação.
Por sua vez, a argumentação de Babelon e Chastel (1994) explora a necessidade de se
estimular os processos de preservação mais integrados com as comunidades. Já Béghain
(1998) preocupa-se com a formação dos profissionais que atuam no campo patrimonial; sua
análise em torno dos princípios que norteiam as políticas públicas de preservação reforça a
responsabilidade do Estado com os bens culturais, sobretudo no que se refere ao uso do
patrimônio como instrumento de educação e cidadania.
Assim, corroboramos o que dizem os autores sobre a necessidade de investigações
científicas sobre os patrimônios culturais. Entendemos ainda que a análise de Béghain (1998)
sobre a importância da criação de um espaço crítico, no campo da preservação, contribui para
refletirmos sobre o papel das instituições museais nas áreas de proteção, estudo e divulgação
dos bens culturais. Dessa maneira, tornam-se oportunas as discussões sobre a Museologia na
576
contemporaneidade, constituindo-se, em linhas gerais, por uma mudança de olhar em relação
aos bens culturais, vistos, agora, com base na sua historicidade e em interação com o presente.
36
O movimento pela preservação da lagoa do Abaeté tinha o slogan “Abaeternizar”, que quer dizer “Eternizar o
Abaeté”. As pessoas envolvidas utilizaram diversas estratégias de difusão e sensibilização da população como,
por exemplo, espetáculos com canções conhecidas, exposições, folders com normas para a proteção da lagoa,
entre outras.
37
Órgão colegiado da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia, de caráter normativo e consultivo, ligado
diretamente ao Gabinete do Secretário, que tem por finalidade contribuir para a formulação da política estadual
de cultura. O Conselho é composto por 30 Conselheiros (20 titulares e 10 suplentes) indicados pelo Governador
após consulta a entidades representativas da cultura na Bahia. Criado pela Lei 2.464, de 13 de setembro de 1967,
no governo Luiz Viana Filho, o CEC-BA só começou a funcionar a partir de 9 de março de 1968. Ao longo dos
seus quarenta anos de existência, passou por quatro alterações regimentais (CONSELHO ESTADUAL DE
CULTURA DA BAHIA, 2005).
577
projeto de tombamento, reclamando análise e aprovação para, em seguida, enviar ao Governo
do Estado, a fim de tomar as medidas finais. Dentre os elementos elencados que justificam o
processo de tombamento, estão: importância ecológica; valor cultural da área, tributária das
tradições de origem africanas; questão de ordem socioeconômica relativa à população da área;
importância turística da lagoa do Abaeté cuja magia e beleza representam um cartão postal da
cidade do Salvador. O Parque Metropolitano do Abaeté foi estruturado como espaço de
preservação, lazer e cultura (COMPANHIA DE DESENVOLVIMENTO URBANO DO ESTADO
DA BAHIA, 2010).
Nesse sentido, a ausência de valorização das memórias locais pelo processo de
patrimonialização provocou, de certa maneira, a necessidade de transmissão desse patrimônio,
enfatizada pelo grupo local definido como Nativo de Itapuã, principalmente junto aos mais
jovens38. A ONG Nativo de Itapuã tem sede no Parque Metropolitano do Abaeté. As ações
caracterizam-se, principalmente, pela recepção dos visitantes, com o objetivo de fazer a
mediação do território.
Pode-se afirmar que o Parque de São Bartolomeu também teve seu movimento de
proteção e defesa iniciado na década de 1980. É importante ressaltar que, já no início desse
período, tendo em vista as reflexões produzidas por intelectuais brasileiros preocupados com a
questão da preservação da diversidade cultural brasileira, brotavam, com a participação da
sociedade civil, reflexões sobre a natureza do patrimônio cultural brasileiro e a necessidade de
preservação de aspectos culturais associados a outras etnias que não apenas a etnia branca e
aristocrática brasileira.
38
Existem outros grupos no bairro de Itapuã, como, por exemplo, “As Ganhadeiras de Itapuã” que desenvolvem
trabalhos voltados para a valorização da memória local. Entretanto, estamos considerando, no presente estudo,
principalmente as associações que atuam no Parque Metropolitano do Abaeté. A Associação Carnavalesca Malê
DeBalê localiza-se no referido parque. Entretanto, suas funções e objetivos não estão exclusivamente atrelados
ao Parque Metropolitano do Abaeté. Não obstante, será analisada mais adiante como exemplo de resistência
étnica negra.
578
Mesmo com a ausência de uma ação permanente do poder público e com os problemas
que foram mencionados, esse parque ainda é objeto de atenção de várias pessoas com
interesses diversos. Em 2004, no Parque Metropolitano de São Bartolomeu, existiam quatro
ONGs, a saber: a Associação de Amigos do Parque de São Bartolomeu (AASB), o Centro de
Educação Ambiental de São Bartolomeu (Ceasb), o Centro de Estudos Socioambientais
(Pangea) e o Bagunçaço39. Cada um desses grupos ocupa e trabalha em uma área específica
do parque, desenvolvendo atividades próprias. O diálogo ocorre em momentos específicos,
por exemplo, em reuniões oficiais nas instituições públicas ou promovidas pelos agentes
financiadores de projetos. Apesar disso, existe uma preocupação em relação ao trabalho de
cada um e há um consenso sobre o principal problema do Parque de São Bartolomeu, que é de
ordem social, ou seja, a população do seu entorno situa-se n perfil de vulnerabilidade
socioeconômica.
39
Os responsáveis por essas associações as intitulam como organizações não governamentais. Então, no presente
texto, respeitaremos essa denominação.
40
Entendemos que a Museologia Social é sinônimo da Nova Museologia.
41
Ou seja, agregam diversos valores como por exemplo: ecológico, religioso e urbano.
579
O desdobramento da patrimonialização permitiu a estruturação de organizações locais.
No caso do Parque Metropolitano do Abaeté, a ONG Nativo de Itapuã estabelece um vínculo
de pertencimento ao território, sendo enfatizada a categoria nativo, embora a composição do
grupo assim caracterizado seja heterogênea. No caso do Parque de São Bartolomeu, a
formação das organizações também é diversa, incluindo, por exemplo, uma associação
coordenada por um estrangeiro. Não se percebe, em relação a esse parque, uma ênfase ao fato
de as pessoas terem nascido nesse território ou nas suas imediações.
A patrimonialização dos parques acima citados permitiu uma atualização da memória
e um processo de afirmação identitária que proporcionou a construção de um sentido de vida,
principalmente para os responsáveis pelas ONGs. Verificamos, dessa forma, nos dois estudos
de caso, que as pessoas envolvidas no referido processo viveram transformações sociais e
existenciais. Isso se manifesta, principalmente, na adesão permanente de seus participantes as
atividades de proteção, de preservação e de mediação. Não obstante, observamos que isso não
está diretamente vinculado ao fato de as pessoas terem necessariamente nascido nesses locais,
tampouco conservado de maneira integral as mesmas práticas e atividades nesses territórios.
Nesse sentido, os conceitos de população e patrimônio manifestam-se de forma ampla,
diversificada e dinâmica.
Ademais, o movimento pela patrimonialização não foi interrompido com a saída dos
grupos externos ao bairro de Itapuã e do Subúrbio Ferroviário, mas, ao contrário, definiu a
necessidade de apropriação dos Parques Metropolitanos do Abaeté e de São Bartolomeu por
ONGs constituídas por pessoas dos bairros, algumas nascidas nesses lugares, outras não, mas
todas comprometidas com a proteção e a valorização desses territórios.
Nos dois casos, observamos que as comunidades do entorno dos parques não são
homogêneas. Os conjuntos populacionais são diversos nas suas origens, histórias e condições
socioeconômicas, mas, mesmo assim, a patrimonialização permitiu a manifestação de
memórias próprias, particulares e diversas que, convencionalmente, não faziam parte dos
processos preservacionistas brasileiros, de maneira geral. Memórias capazes de fazer aflorar
nos participantes dessas organizações uma nova posição social, definida pela sua relação com
580
os parques. Em alguns momentos, a identidade do sujeito constrói-se em intermediação com
esse espaço, que funciona como um símbolo do que eles são. É por isso que essas associações
agrupam pessoas interessadas na preservação desses espaços, ocupando-se deles e afirmando
uma posição política, para ratificarem que esses patrimônios pertencem, principalmente, às
populações locais.
Assim, admitem a realização de atividades eventuais ou o desenvolvimento de
atividades turísticas, como forma de divulgar os parques, mas entendem que é necessária uma
atenção permanente por parte dos poderes públicos. Dessa maneira, reforçam a importância
da realização de projetos contínuos que possam contemplar o desenvolvimento local, por
meio da formação educacional e da constituição de cooperativas que possam estimular o
desenvolvimento profissional e a geração de renda para as comunidades carentes. Nesse
sentido, a concepção de preservação é de cunho social e econômico.
Nos parques analisados, observamos a ausência da implementação de políticas
públicas condizentes com a realidade local, principalmente uma política museológica, que
possa trabalhar de forma adequada esses patrimônios, valorizando seus aspectos históricos,
ecológicos e religiosos. Neste sentido, não há a construção de discursos que possam
contemplar as memórias, que fizeram desses espaços objetos de referências para vários grupos
sociais. No caso do Parque Metropolitano do Abaeté, percebemos que também faz aflorar
memórias do universo feminino, que ilustram o cotidiano doméstico, o trabalho, o cuidado e,
ao mesmo tempo, as lutas e dificuldades das mulheres.
Nesse sentido, o desenvolvimento da museologia e das tipologias museais permite-nos
considerar que é possível atender às demandas de coletividades em prol da compreensão das
suas identidades, se adotarmos uma museologia crítica, participativa e comprometida com o
desenvolvimento social.
Entretanto, precisamos ainda de ousadia e determinação em campos específicos, como
o dos museus comunitários. A Museologia, ou melhor, a atuação de profissionais museólogos
nesses contextos, significa muito pouco, se não houver um projeto conjunto, envolvendo
várias instituições para estruturar e contemplar necessidades básicas das populações locais.
581
Do ponto de vista da museografia, os parques metropolitanos podem ser tratados com
base no conceito de patrimônio ambiental, urbano e religioso. Essa diversidade de sentidos é
própria e ilustrativa da heterogeneidade sociocultural da realidade brasileira. Portanto, a ideia
de patrimônio puro, único, com apenas um sentido, não se aplica aos contextos dos Parques
Metropolitanos do Abaeté e de São Bartolomeu e isto deve ser respeitado na construção do
discurso museológico. Dessa forma, é preciso desenvolver práticas de pesquisa museológica
adequadas, que contemplem o estudo dessas realidades locais. Para tanto, um plano de
pesquisa adequado e estruturado, com a definição dos conteúdos a serem analisados em
relação ao patrimônio e à população local, auxilia na compreensão desses universos, bem
como na construção de categorias que possibilitem a análise dos dados coletados. Nesse sentido,
como campo interdisciplinar, a Museologia pode adotar as práticas de investigação sociológica
e antropológica. Recorrer a dados estatísticos, relativos à visitação dos espaços, obtidos com a
aplicação de questionários, para conhecer aspectos socioeconômicos e políticos das
comunidades, é muito importante.
Por outro lado, entendemos que as populações locais devem ser concebidas como
núcleos heterogêneos, cujas origens, histórias e desenvolvimento são particulares. Entretanto,
a definição de alguns limites territoriais é importante, como, por exemplo, regiões
administrativas, ruas antigas, entorno ao patrimônio ou outras categorias estabelecidas pelas
populações locais, que extrapolam os limites dos bairros, por exemplo. Sobre esta questão,
afirma Sanchis (1996, p. 32):
Contudo, tendo em vista que sujeitos diversos podem desenvolver uma relação com
determinado patrimônio, a categoria de território não deve ser determinante. Talvez seja
582
possível falar em territorialidades. Entendemos que, nesse caso, devem-se privilegiar pessoas
que possuam relações afetivas e históricas com os bens culturais considerados.
Essa leitura e essa interpretação mais geral proporcionam a construção de uma visão
sobre processos amplos que interferem e moldam a vida das pessoas, mas é necessário
estarmos atentos a essas questões para não produzirmos o que Canclini (1998) denominou de
“fechamento” e visão parcial e isolada das comunidades.
A produção dos dados sugerida acima, apoiada em uma perspectiva metodológica que
possa contemplar o estudo de realidades patrimoniais e suas relações com as populações,
estimula também a inserção em práticas cotidianas, políticas, festivas, religiosas e outras,
além de permitir o estabelecimento de vínculos de confiança entre as pessoas do lugar e o
profissional museólogo, proporcionando o acesso a informações significativas. Nesse caso,
são extremamente importantes as entrevistas realizadas com idosos, por exemplo, como
discute Bosi (1994, p. 63):
Haveria, portanto, para o velho, uma espécie singular de obrigação social,
que não pesa sobre os homens de outras idades: a obrigação de lembrar, e
lembrar bem [...] O que se poderia verificar, no entanto, na sociedade em que
vivemos, é a hipótese mais geral de que o homem ativo (independentemente
de sua idade) se ocupa menos em lembrar, exerce menos frequentemente a
atividade da memória, ao passo que o homem já afastado dos afazeres mais
prementes do cotidiano se dá mais habitualmente à refacção do seu passado.
583
Uns nos mostram como as condições da pesquisa, que envolve o processo de
interação social entre o pesquisador e os sujeitos de sua pesquisa bem como
o contexto mais amplo em que esse processo se insere, afetam os resultados
da pesquisa. Outros nos advertem que é necessário ao pesquisador refletir
sobre suas próprias ideias, sobre a validade relativa à sua cultura e ao
momento histórico, que elas têm. Muito longe ficamos da ideia presente em
Malinowsky e outros de que essa relação é imediata e que o conhecimento
resulta da simples identificação, porquanto são homens, do pesquisador com
as pessoas que estuda.
Com efeito, o debate sobre os parques, por parte dos grupos sociais que integraram o
movimento da patrimonialização, e as ideias apresentadas sobre os espaços aproximam-se da
concepção de ecomuseu. Nesse sentido, os ecomuseus e os museus comunitários necessitam
do apoio estatal, pois as populações locais e/ou os grupos que fazem uso regular dos parques
metropolitanos são comunidades carentes. As organizações desenvolvem projetos de
42
Ne plus parler d’intelellectuel, spécifique ou non, collectif ou non, organique ou non, ne plus s’interroger sur
les conditions de l’engagement ou du dégagement, faire son deuil de la prise de distance et de l’universalité: tel
me semble être l’effort collectif que nous devons entreprendre. Tous ces mot sont impuissants pour décrire les
pratiques réelles des sociologues et la contribution des sciences sociales à la performation toujours locale,
toujours recommencée des collectives hybrids dans lesquels nous vivons.
584
formação educacional e investem na formação de cooperativas, mas são ações esporádicas. É
fundamental que o Estado responsabilize-se também por esses espaços. Assim, desenvolver
mecanismos de gestão participativa, incluindo os órgãos públicos, as ONGs que já atuam nos
parques e membros da população local, por meio de uma administração colegiada, pode ser
um caminho a ser trilhado, inclusive como prática de inserção social e exercício cotidiano da
cidadania.
Além dos museólogos, os parques carecem da participação de profissionais
especializados em diversas áreas, principalmente arqueólogos, biólogos, geólogos e
historiadores cujo trabalho é fundamental para o estudo e a classificação das espécies nativas,
a exploração de aspectos históricos relacionados ao contexto dos parques etc. Essas
atividades, desenvolvidas de forma integrada com os profissionais museólogos, viabilizam o
desenvolvimento de sistemas de documentação museológica voltados para a produção de
conhecimentos. As atividades de documentação, por exemplo, devem ser vistas como forma
de estimular a participação das pessoas, permitindo uma compreensão mais ampla desses
patrimônios por parte do público em geral e dos educadores de maneira particular,
possibilitando sua utilização também com fins de qualificação profissional e recurso didático.
Ademais, consideramos ainda importante nesse campo o registro das memórias
individuais e coletivas, que não devem ser tratadas apenas como estratégia de manutenção das
histórias locais. Entendemos que essas memórias devem ser exploradas e confrontadas, e os
recursos no campo da informática, por exemplo, contribuem de maneira significativa para o
desenvolvimento dessa atividade. Essas informações são igualmente fundamentais para a
construção do discurso museológico que, no caso dos parques mencionados, deve contemplar,
essencialmente, as histórias indígenas e africanas, contribuindo para a construção de uma
expografia no parque, que servirá de referência para o estudo dessas populações e sua
valorização. Estamos falando de uma expografia própria, respeitando as características dos
parques, mas, ao mesmo tempo, informe sobre os aspectos históricos, naturais, urbanos e
religiosos e possa ser apropriada pelos visitantes de forma sensorial e crítica. Isso significa
585
uma construção expográfica aprofundada em bases científicas, informativa e de cunho
interativo.
Por fim, mas não menos importante, entendemos que as visitas guiadas devem
continuar, todavia os conteúdos devem ser retrabalhados numa perspectiva científica. Isso
significa recorrer aos estudiosos de diversas áreas, para estimular e viabilizar a continuidade
da formação dos que já estão desenvolvendo esse tipo de trabalho nos parques. Os cursos de
capacitação com o oferecimento de bolsas de estudos para esses agentes seriam muito
proveitosos.
Não podemos esquecer que as populações mais jovens, principalmente as do Subúrbio
Ferroviário, conhecem muito pouco esses patrimônios. A interlocução contínua e permanente
com as Secretarias de Educação e Cultura, com o propósito de demonstrar a importância desses
espaços como recursos didáticos para a aplicação das leis que tornam obrigatório o estudo das
culturas indígenas e afro-brasileiras nas escolas e também na formação dos professores é
fundamental. Políticas eventuais podem ser importantes, como forma de valorizar e divulgar os
parques, como afirma Barré (2000, p. X, tradução nossa), quando discute a etnologia dos
monumentos históricos: “Repentinas ‘emoções patrimoniais’ que surgem ao redor de um
monumento, admitimos que nos esclarecem sobre a relação com o passado e, de forma mais
ampla, com o tempo e o espaço vivido.43” Contudo, não são suficientes, daí a necessidade de
construção de uma política pública que integre, de forma ampla e contínua, educação e cultura.
Essa deve levar em consideração a inclusão de práticas artísticas, lúdicas e sensoriais que
estimulem o conhecimento da história dos grupos sociais que fazem parte dos espaços e
também daqueles que fizeram a patrimonialização, contribuindo para a construção de processos
de identificação e valorização das diversidades socioculturais na sua complexidade. Como dito
anteriormente, a experiência nos parques, adquirida pelas ONGs, mostra o quanto são
importantes os trabalhos com os patrimônios que fazem parte das realidades locais, inclusive
43
Des soudaines “émotions patrimoniales” qui surgissent autour du traitement d’um monument on peut admettre
qu’elles nous éclairent sur le rapport au passé et plus largement, au temps et à l’espace vécu.
586
como mecanismo de transformação social, permitindo aos sujeitos a construção de sentidos e de
laços de fortalecimento em relação a sua história e a suas identidades. Finalmente, trata-se de
reinserções identitárias por meio de patrimônios culturais trabalhados museologicamente em
uma perspectiva social.
Nesse caso, é preciso explorar o conjunto de relações que existem entre natureza e
cultura, não de maneira excludente, mas de forma integrada. Portanto, os parques incorporam
contextos sociais, pois a natureza não pode ser vista como algo intocável. É necessário
desenvolver ações que estimulem sua continuidade, como o replantio, por exemplo, ou a
criação de um horto, como apresentado pelos membros da ONG Nativo de Itapuã, com o
objetivo de comercializar orquídeas típicas da região do Parque Metropolitano do Abaeté.
Essas atividades auxiliam no equacionamento da preservação do meio ambiente e na
manutenção de práticas tradicionais de grupos sociais.
Por outro lado, como afirma Santos (2003), os projetos preservacionistas, no Brasil,
devem ser concebidos com base em políticas inclusivas. De fato, entendemos que, diante da
realidade apresentada, o discurso sobre preservação do patrimônio ambiental, urbano e
religioso torna-se completamente inócuo se não for contextualizado, com base em medidas
que envolvam a população local e consigam oferecer ou viabilizar oportunidades de
participação e inserção social.
No caso específico dos parques, não é possível musealizar um discurso e o patrimônio
ecológico se não houver a participação das ONGs locais e não considerarmos todos os valores
estabelecidos de maneira adicional ao processo de patrimonialização. Os projetos devem
buscar a interação entre os diversos agentes partícipes da história, entendendo o papel de cada
ator social. Além disso, as organizações auxiliam no processo de inserção nas comunidades.
Por esta razão, articular preservação ao desenvolvimento local é um desafio necessário nas
sociedades democráticas.
587
Considerações Finais
O presente trabalho discutiu sobre os aspectos históricos relativos a Museologia, os
ecomuseus e suas articulações iniciais com os parques naturais regionais na França. Assim,
ficou demonstrado que o modelo administrativo inicial dos ecomuseus era o dos parques.
Registrou-se ainda a importância das ações interdisciplinares e o apoio das políticas de
proteção do meio ambiente. O debate em torno das ideias dos teóricos que abordam a
importância do patrimônio e da preservação e dos casos estudados apontam para a
necessidade de conhecimento, estudo e interpretação dos bens culturais. Analisou-se ainda
que as associações que se ocupam dos espaços patrimonializados defendem a necessidade de
um projeto museológico permanente, envolvendo a definição e implementação de políticas
públicas que valorizem a integração entre memória, história, patrimônio e os processos de
mediação numa perspectiva de inclusão e participação dos agentes preservacionistas.
Referências Bibliográficas
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1994.
BÉGHAIN, Patrice. Le patrimoine: culture et lien social. Paris: Presses de Sciences Po, 1998.
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 3. ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 1994.
CANCLINI, Néstor García. Culturas hibridas: estratégias para entrar e sair da modernidade.
São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1998.
588
CARTA do Abaeté. Jornal da Bahia, Salvador, 16 jan. 1983. Especial, p. 6.
RUSSIO, Waldisa. Museu: uma organização em face das expectativas do mundo atual. 1974.
In: BRUNO, Maria Cristina Oliveira (Coord. Editorial). Waldisa Rússio Camargo Guarnieri:
textos e contextos de uma trajetória profissional. São Paulo: Pinacoteca do Estado; Secretaria
de Estado da Cultura; Comitê Brasileiro do Conselho Internacional de Museus, 2010. p. 45-56.
v. 1.
SANCHIS, Pierre. A crise dos paradigmas em Antropologia. In: DAYRELL, Juarez (Org.).
Múltiplos olhares sobre educação e cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1996. p. 23-38.
SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. Museu Imperial: a construção do Império pela República.
In: ABREU, Regina; CHAGAS, Mário (Org.). Memória e patrimônio: ensaios
contemporâneos. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. p.111-131.
WEIS, Hélène et al. La museologie selon Georges Henri Rivière. Paris: Dunod, 1989.
ZALUAR, Alba. Desvendado máscaras sociais. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990.
589
TRABALHO DE REDES COMUNITÁRIAS: A EDUCAÇÃO AMBIENTAL COMO
FERRAMENTA DE TRANSFORMAÇÃO SOCIAL, EM BAIRROS PERIFÉRICOS
DE BELÉM, PORTO ALEGRE E GRAVATAÍ.
Camila Alves Quadros*
*Ponto de Memória da Terra Firme
Kelly Cristine Souza Dahm**
**EMEF Presidente Getulio Vargas.
Márcia Isabel Teixeira de Vargas***
***Rede de Educadores em Museus do RS
Teresinha Beatriz Medeiros****
****Ponto de Memória Lomba do Pinheiro
Resumo: O texto relata as atividades ambientais e culturais realizadas, no período de 2015 a 2017, a
partir das parcerias entre Redes de Cooperação Comunitárias, nos bairros da Terra Firme, em Belém
(PA), Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre e na EMEF Presidente Getulio Vargas, Morada do Vale I,
em Gravataí (RS). Revela o desafio e o desejo de promover o diálogo e o desenvolvimento de ações
compartilhadas, em comunidades e escolas, como os principais caminhos para uma atuação efetiva,
seja na preservação do patrimônio natural ou na promoção e proteção do patrimônio histórico, seja na
responsabilidade social e na promoção do respeito à diversidade cultural.
Palavras-Chave: Comunidades; Redes Comunitárias; Ação Educativa; Meio Ambiente.
Abstract: The text reports on the environmental and cultural activities carried out between 2015 and
2017, starting from the partnerships between Community Cooperation Networks, in the neighborhoods
of Terra Firme, Belém (PA), Lomba do Pinheiro, Porto Alegre and EMEF. Getulio Vargas, Address of
the Vale I, in Gravataí (RS). It reveals the challenge and the desire to promote dialogue and the
development of shared actions in communities and schools as the main paths for effective action,
either in the preservation of natural heritage or in the promotion and protection of historical heritage,
or in social responsibility And in promoting respect for cultural diversity.
Keywords: Communities; Community Networks; Educational Action; Environment.
590
Introdução
O ano de 2015 foi um ano muito especial para o fortalecimento na articulação em
Rede, do Ponto de Memória da Terra Firme, Belém (PA); do Ponto de Memória Lomba do
Pinheiro, Porto Alegre (RS); da Rede Brasileira de Jardins Botânicos (RBJB); e da Rede de
Educadores em Museus do RS (REMRS).
Foram momentos fundamentais para a troca de experiências e para o debate
democrático no desenvolvimento de projetos que resultaram em ações educativas e culturais,
em prol do patrimônio ambiental e em ações de sustentabilidade nos territórios da Terra Firme
em Belém (PA), no bairro Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre (RS) e na Escola Municipal
de Ensino Fundamental Presidente Getulio Vargas, em Gravataí (RS).
A III Reunião Norte de Jardins Botânicos e Pontos de Memória, no período de 17 a
21 de agosto, foi o momento inicial dessas ações, que com o objetivo de integrar a Rede
Brasileira de Jardins Botânicos e a Rede Norte de Memória e Iniciativas Comunitárias,
estabeleceu como marco inicial de ações conjuntas em um projeto piloto para ser
desenvolvido pelos moradores do bairro da Terra Firme (PA). Mais adiante na reunião das
Iniciativas Comunitárias, por ocasião do II SEBRAMUS, realizada na cidade do Recife, entre
16 e 20 de novembro, destacou-se a importância em ampliar essas atividades e experiências
para o estado do Rio Grande do Sul.
Nesses dois momentos buscou-se a participação popular no que diz respeito à
compreensão e a valorização de experiências, que destacam o papel participativo de
lideranças das comunidades junto ao seu patrimônio natural e a memória viva de seus sujeitos
em ações positivas nos territórios onde estão inseridos. Do mesmo modo, os participantes
desses encontros puderam perceber o papel dos Jardins Botânicos na conservação e
preservação da biodiversidade brasileira, sensibilizados pela importância dos Jardins na
promoção da sustentabilidade socioambiental.
No encontro de agosto/2015, na conferência presidida por João Toledo, Presidente da
RBJB, sob o tema Patrimônio Natural, Memória Viva e Conhecimento das Iniciativas
Comunitárias: uma conexão entre os Jardins Botânicos e os Pontos de Memória, constatou-
591
se a necessidade da união de forças entre as organizações civis na proteção do patrimônio
cultural e natural das comunidades pela inter-relação do homem com seus semelhantes e tudo
o que os envolve no seu cotidiano. Desse modo, reafirma-se a importância do trabalho
integrado no proteger, preservar e assegurar os bens naturais de comunidades
compromissadas com seu patrimônio de forma integral.
Em novembro de 2015, consolidou-se o trabalho em rede das iniciativas
comunitárias, haja vista que o trabalho integrado auxilia no fortalecimento, na união das
instituições culturais, na programação e organização de ações concretas nos territórios onde
estão vinculadas.
As pesquisas, análises e avaliações foram adensadas, durante a sétima edição do
Fórum Nacional de Museus (FNM), que ocorreu entre os dias 31 de maio e 1º de Junho de
2017, em Porto Alegre/RS. Em reuniões presenciais conseguimos compartilhar das ideias e
ações desenvolvidas e dialogar com outros grupos de trabalho nas áreas da Educação em
Museus, Museologia, Memória e Patrimônio. Despertando o interesse de profissionais que
atuam em outras comunidades em diferentes estados do Brasil, abrindo-se espaços para
difusão do projeto tanto em Sustentabilidade, quanto em Inclusão Social e na Preservação e
Conservação Ambiental.
Em discussões virtuais, entre os anos de 2016 e 2017, essas Redes ampliaram o
diálogo em questões relativas à preservação, ao manejo, ao plantio de espécies ameaçadas de
extinção, assim como, na troca de experiências de cultivo, coleta e registro, na criação de
bancos de sementes para a conservação de espécies locais.
Da mesma forma, cada uma das instituições envolvidas firmaram parcerias com
outras instituições para por em prática um Plano de Conservação Preventiva e capacitação dos
Conselheiros dos Pontos de Memória e professores, visando nutrir e qualificá-los com os
conceitos, manutenção, manuseio, guarda e acondicionamento em relação às práticas
museológicas em seus acervos institucionais e as suas coleções, no armazenamento de
sementes, registro, classificação, difusão em banco de dados, plantio, cultivo de hortas e
compostagem.
592
Assim, as parcerias são com o Parque Zoobotânico do Museu Goeldi, com o
acompanhamento da Rede Brasileira de Jardins Botânicos (RBJB), em Belém do Pará. Na
EMEF Presidente Getúlio Vargas, em Gravataí/RS, somaram-se a extensão universitária da
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e a Rede de Educadores em
Museus do RS. Junto ao Ponto de Memória Lomba do Pinheiro está o Conselho Popular,
constituído por lideranças do bairro Lomba do Pinheiro e o Jardim Botânico, em Porto
Alegre/RS.
No presente texto descrevemos as ações relacionadas à conservação do Patrimônio
Natural e a metodologia aplicada. No Artigo, Jardins Botânicos e Pontos de Memória: um
encontro interdisciplinar a perspectiva museológica, Camila Alcântara e Marcia Vargas
(2015), elencaram as ações e os objetivos para implementação de um projeto visando a
preservação de espécies ex sito aos Jardins Botânicos.
Nesse processo inscrevem-se as atividades pelo manejo e plantio de coleções
vivas; na recuperação de áreas degradadas; fixação de plantio de espécies em
extinção; o cultivo de plantas em hortas comunitárias; e em ações educativas
de sustentabilidade de acordo com as possibilidades e limitações especificas
de cada território, pelo mapeamento da estrutura física disponível, bem
como, das dificuldades na efetivação das ações propostas no projeto-piloto,
em trabalhar a memória e o patrimônio cultural, material e imaterial local.
(ALCÂNTARA; VARGAS, 2015. p. 411/412)
593
das Redes de Jardins Botânicos (2015), constituindo-se num encontro das Redes Integradas
do Norte do Brasil, do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG) e o Ponto de Memória da
Terra Firme (PMTF), entre outras instituições com o mesmo segmento, garantindo a
participação comunitária e o diálogo sobre o papel dos Jardins Botânicos e da Museologia no
desenvolvimento de territórios e grupos de pessoas que estão à margem da sociedade.
No que diz respeito “à margem”, nos referimos às comunidades que estão “para lá”
do âmbito tradicional, setorial, de intervenção pública e nas dificuldades, do poder público,
em dar respostas aos problemas estruturais e sociais complexos das sociedades
contemporâneas.
Na Reunião, os presentes assumiram uma atitude interdisciplinar e integrada de áreas
afins, trazendo para o contexto contemporâneo em que cada vez mais os profissionais atuantes
nos museus preocupam-se com o desenvolvimento social local, por ações comunitárias de
memória e museologia social e que os Jardins Botânicos (JBs), reconhecidos enquanto
museus tem um papel fundamental na sustentabilidade, conservação e desenvolvimento da
humanidade. Como resultado da III Reunião, ocorrida em Belém, partiu-se com um projeto
piloto na Terra Firme, com o objetivo de implantar coleções externas dos Jardins Botânicos
nesse bairro da cidade de Belém do Pará. Um desafio que envolveu profissionais qualificados
em Museologia, Botânica, Arquitetura, Biologia, Turismo e Pedagogia.
Além disso, os representantes dos Pontos de Memória trouxeram seus conhecimentos
em Artes Visuais, Dança, Música, Teatro, nas culturas tradicionais, no cultivo de plantas
medicinais, e outras práticas que fazem parte da culinária tradicional local.
A difusão desse projeto ampliou-se aos demais territórios onde o Programa dos
Pontos de Memória está constituído, como é o caso do Ponto de Memória Lomba do Pinheiro
(2016), em Porto Alegre e no ano seguinte numa escola, em Gravataí no RS, por conta da
parceria das duas instituições com a Rede de Educadores em Museus do Rio Grande do Sul
(REMRS).
594
Foi necessário rever os objetivos: geral e específicos, a metodologia a ser aplicada e
o ritmo das ações a serem desenvolvidas visto que cada localidade guarda especificidades
ambientais, bem como, têm limitações e problemáticas de manejo com o meio ambiente.
Sobretudo, que nesses espaços urbanos evidenciaram-se terrenos degradados; a
poluição ambiental e contaminação do solo, prejudicados por significativos depósitos de lixo;
alterações climáticas; ausência do cultivo de espécies que fazem parte da culinária tradicional
e da rotação de culturas, mesmo em hortas caseiras. Essas problemáticas foram constatadas e
analisadas em projetos anteriormente trabalhados como, por exemplo, o Festival de
Gastronomia Inteligente, Museu Goeldi de Portas Abertas, Gincana do Meio Ambiente,
realizados pelo Museu Emilio Goeldi (PA) e a Horta Comunitária, do bairro Lomba do
Pinheiro (RS).
E. E. Vereador Aberlado Leão – Ação Educativa do MPEG Festival de Gastronomia Inteligente – MPEG
No Bairro Terra Firme em Belém (PA). - 18.09.2016 - Foto: Helena Quadros
595
Museu Goeldi de Portas Abertas – MPEG e PMTF Gincana do Meio Ambiente – E.E. Professor João
– 19 a 20.10.2016 – Foto: Helena Quadros Ludovico – MPEG e PMTF (PA) – 29.06.2017 –
Foto: Helena Quadros
596
Além disso, as construções e ocupações irregulares bloquearam ou desviaram o curso
das águas, como no caso da bacia do Arroio Dilúvio em Porto Alegre/RS. Os depósitos de
lixo e a retirada de mata ciliar, fatores que contribuíram para o aumento considerável de
sedimentos nos arroios, ocorrendo o assoreamento desses e consequentes inundações e
contaminação da água. Essas problemáticas foram evidenciadas para reconhecermos o
verdadeiro valor e significado das ações que envolveram as práticas de plantio, cultivo,
pesquisa e conservação.
Na Metodologia aplicada partimos de estudos, pesquisas, mapeamento e análise dos
dados das áreas disponíveis nos bairros em questão, assim como, da estrutura escolar da
EMEF Presidente Getúlio Vargas. Identificamos as características desses espaços, pontos
positivos, pontos negativos e os potenciais quanto à estrutura física e de pessoal disponível
para efetivação do projeto.
Para satisfazer e buscar resolver os problemas acima elencados estabeleceram-se
ações envolvendo várias forças de trabalho. Foi necessário realizar um diagnóstico ambiental
e estabelecer um cronograma de atividades. Ações realizadas em longo prazo e que precisam
ser revistas constantemente, tais como, a regeneração dos espaços degradados; a recuperação
e limpeza dos terrenos e áreas ociosas; a qualificação do meio ambiente pela arborização,
aspirando à refrigeração natural e oxigenação do ar; introdução e retomada das práticas de
plantio e dos hábitos alimentares tradicionais.
597
Mutirão de Limpeza e Plantio – “Espaço Verde” – Bairro
da Terra Firme – Belém (PA) – PMTF – 13.11.2016 –
Foto: Helena Quadros
598
alimentares tradicionais e mais saudáveis para todos. (MOURA; VARGAS,
2015, p. 412)
.
Mutirão de Limpeza e Plantio – “Espaço Verde” – Bairro da
Terra Firme – Belém (PA) – PMTF – 08.12.2016 –
Foto: Helena Quadros
599
fundamental se considerarmos que as mesmas operam no sentido de atender demandas
imediatas da população por trabalho, melhoria no consumo, educação, reafirmação da
dignidade humana das pessoas e do seu direito ao bem-viver. Além disso, elas combatem as
estruturas de exploração e dominação responsáveis pela pobreza e exclusão. “E, igualmente,
começam a implantar um novo modo de produzir, consumir e conviver em que a
solidariedade está no cerne da vida”. (MANCE, 2005, P. 4).
Sendo assim, a articulação em redes nos Pontos de Memória teve seu surgimento a
partir da expansão do programa, com o edital para novos Pontos, no ano de 2011. Essa
articulação foi utilizada como estratégia pelo Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), visando
facilitar o diálogo com os já existentes e os novos Pontos. Para tanto, relata Cinthia Maria
Rodrigues Oliveira Coordenadora de Museologia Social e Educação
(COMUSE/DPMUS/IBRAM), esclarece que:
600
sociedade desenvolve uma cultura específica; por isso, cada sociedade
percebe e define museu à sua maneira. (ALCÂNTARA, 2016, p. 13).
Desse modo, teoria e prática devem ser vividas como militância, não somente nas
ações denominadas de Museologia Social, mas em qualquer ação museológica,
independentemente da tipologia de museu. O que está em jogo, em nossa compreensão, é o
sentido que estamos dando à Museologia. Entendemos que a Museologia propriamente dita
implica ação social. Os conhecimentos científicos devem se voltar para uma situação concreta
em que quem aplica está “existencial, ética e socialmente comprometido com o impacto da
aplicação”. (SANTOS, 1996, p. 20)
E nessa chave interpretativa, apresentamos os pressupostos teóricos deste trabalho, o
qual tendo como sujeitos, os “museus a céu aberto” - como são majoritariamente
compreendidos os Pontos de Memória – intrinsecamente, discute a ideia de museu integral, ao
qual consideramos uma das categorias de discussão, atrelados as ações educativas e culturais
realizadas nesses museus.
Nesse sentido, Vargas e Alcântara (2015) refletem, a partir dos ensinamentos de
Scheiner (2010), o entendimento de museu integral:
Dessa forma, tendo em vista que atuar em comunidade – nesse artigo, discutindo
quanto ao papel dos museus advindos com a nova museologia e a museologia social – implica
maior atenção ao processo de ação educativa e cultural supracitada e imbuída no trabalho em
comunidade, cabe explicitarmos que, de acordo com Santos (2002):
601
ampliação do conceito de patrimônio, na medida em que o conceitua como a
relação do homem com o meio, ou seja, o real, na sua totalidade: material,
imaterial, natural e cultural, em suas dimensões de tempo e de espaço.
(SANTOS, 2002, p. 4)
602
Históricos em 1987, documento conhecido como Carta de Petrópolis; da 2ª
Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento
(CNUMAD), a ECO-92, no Brasil; e a Declaração de Caracas na Venezuela,
ICOM em 1992. É no momento que o fazer museológico é tido como agente
que se insere e se adapta a cada meio, igualmente reconhecido no fazer
tradicional e nas formas de: coleta, conservação, investigação científica,
restituição, difusão e criação, para que seja instrumento adaptado a cada
região e proposta específica (ICOM, 1984). Desse modo, entendemos que o
papel da Museologia e do fazer dos profissionais envolvidos na gestão,
está em reconhecer nas pessoas as suas formas de identificação e
pertencimento, visando atingir e estimular os indivíduos o valor
específico de cada um, assim como a riqueza do meio onde estão
inseridos. (grifo nosso) (ALCÂNTARA; VARGAS, 2015, p. 413-414).
603
Destaca-se que escola e comunidade estão envolvidas nas ações, desde o diagnóstico
às fases de pesquisa, análise e desenvolvimento das atividades práticas, que se subdividem em
eixos temáticos: água, energia, resíduos, fornecedores, matéria prima, área escolar e educação
e extensão comunitária.
Contudo, mesmo como subdivisões esses eixos fazem parte do conjunto de ações que
devem ser observadas constantemente e de forma simultânea, as quais abaixo encontram-se as
especificidades para cada um:
No eixo Água buscamos a valoração do recurso hídrico e a otimização do recurso
através de melhorias na infraestrutura escolar;
No eixo Energia buscamos a discussão sobre aos vários recursos energéticos e seus
usos através de adaptações na infraestrutura escolar;
Quanto à Matéria-prima buscamos a identificação dos principais materiais adquiridos
na rotina escolar, a busca por alternativas sustentáveis e a excelência na utilização,
propondo mudanças na rotina administrativa;
No eixo fornecedor ressaltamos a importância da escolha das fontes de compra mais
sustentáveis (empresas locais, certificadas e ligadas à economia solidária...);
No eixo que denominamos Resíduos auxiliamos na identificação dos principais
resíduos produzidos, e na definição da segregação e descarte correto;
No eixo que envolve a Área Escolar realizamos a avaliação das possibilidades de
inserção de nichos sustentáveis no ambiente escolar; e
No eixo Ensino e Extensão auxiliamos na Identificação de atividades pedagógicas e
de extensão relativas à sustentabilidade ambiental (palestras, oficinas, gincanas,
filmes...).
A revitalização do espaço escolar com estruturas sustentáveis é uma das principais
temáticas do Projeto Escola Sustentável que oportuniza aos professores o desenvolvimento
contínuo de atividades de ensino e extensão e aos alunos e demais indivíduos vivências que
auxiliem a entender a complexidade dos problemas ambientais e seus reflexos sociais.
604
Inicialmente os alunos da Escola Presidente Getulio Vargas foram envolvidos, nas
aulas de Ciências, pelo Projeto Água. Aprenderam sobre Mapa Conceitual utilizando-o como
a demonstração das várias possibilidades que estão inseridas nessa temática, em pesquisas
dentro e fora da escola. Durante esse estudo visitaram a Escola Estadual Padre Nunes, que se
localiza em Gravataí/RS.
A partir da visita dos estudantes de extensão universitária da PUCRS, realizada em
17 de abril do ano de 2017, foi realizado o diagnóstico ambiental relativo às dependências da
escola, nesta oportunidade foram observados aspectos do uso e condições do espaço, sendo
estes registrados em planilha por escrito e em fotos.
605
O Município de Gravatai pertence à região metropolitana de Porto Alegre, capital do
estado, localizando-se ao norte, distando desta cerca de 20 km. Ocupa uma área de
463,758 km², sendo 121,37 km² em perímetro urbano, e com significativa área rural. Com
mais de 250.000 habitantes, conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2010),
é classificada como a sexta cidade mais populosa do estado. Conta com mais de setenta
bairros dentre ele está o bairro Morada do Vale I, onde se localiza a EMEF Presidente Getulio
Vargas.
Os coordenadores do projeto e os bolsistas de extensão realizaram uma coletânea de
atividades com projetos organizados para aplicação em sala de aula com o apoio da PUCRS,
lançado em junho de 2017, com ações voltadas ao estudo da água e da sustentabilidade para
outros professores que desejarem explorar tais temáticas em suas aulas.
606
Tabela 1: Estruturas Educadoras Sustentáveis
Embora seja de interesse construir junto aos professores atividades que utilizem as estruturas
educadoras sustentáveis implementadas, aqui seguem (tabela 3) sugestões de atividades das
quais podemos contribuir utilizando as estruturas a serem implementadas e/ou materiais
pedagógicos disponíveis.
607
Cinema nosso: Sequência de Empréstimo de DVD Água Vidas Gravatahy (8 vídeos)
vídeos em torno da temática Exibição do documentário No caminho de uma escola
ambiental seguido de Sustentável
atividades tais como discussão Exibição de documentário a História das coisas
e/ou produção audiovisual
Atividades sobre o tema Aula: Caderno do Educador (15 planos de aula)
Água Revista Coquetel sobre o tema água
Reciclando no Jardim Protocolo da atividade com séries iniciais utilizando a composteira
e a horta.
44
Disponível em:
https://www.facebook.com/concursofmma/photos/a.1862529397330577.1073741826.1862226027360914/1
865962633653920/?type=3&theater.
608
Considerações
A Educação Ambiental e a sustentabilidade estão ligadas e viabilizam o
desenvolvimento econômico e social, além de ser uma ferramenta transformadora
comunitária. Compartilhar de ações sustentáveis pode auxiliar pessoas e comunidades a
encontrar soluções criativas para as questões ambientais.
O Núcleo de Visitas Orientadas (NUVOP), que integra o Serviço de Educação e
Extensão do Museu Paraense Emílio Goeldi, desempenha junto à sociedade paraense um
eficiente papel educacional com diversas atividades pedagógicas. Nesse processo convida o
público e comunidades do em torno a compartilhar da preservação do patrimônio cultural e
ambiental. O Ponto de Memória da Terra Firme participa desse movimento e contribui com
projetos de mediação como a visita guiada, num percurso acompanhado por moradores do
bairro que percorrem as ruas conhecendo escolas, praças, a fauna e a flora que acompanham o
rio Tucunduba.
As tarefas que estão sob a coordenação dos conselheiros do Ponto de Memória
transformaram o espaço do bairro da Terra Firme, e propõe à cidade que outras comunidades
trabalhem nesse sentido, foram os Mutirões de Limpeza em áreas ociosas e a construção de
hortas e jardins.
Os Jardins Botânicos e a Museologia em seu trabalho de Educação Ambiental
considerando o Patrimônio Integral e o trabalho da memória, diversidade cultural e a história
local como temáticas cumprem integram a sociedade com o meio onde estão inseridos em
suas moradas, locais de trabalho e educação, de tal forma que estes espaços tornam-se locais
de convivência e bem estar.
A parceria entre a Rede Brasileira de Jardins Botânicos, o PMTF, o Ponto de
Memória Lomba do Pinheiro e o Museu Paraense Emilio Goeldi trabalham na criação de
projetos e a aplicação de atividades de conservação e preservação de acervos vivos, na
coletividade.
609
No ambiente escolar é possível trabalhar com coleções ex situ, amparados pela
pesquisa e conhecimento oferecidos pelos Jardins Botânicos e da mesma forma, pelo saber
popular de moradores das comunidades, na promoção da educação e conscientização da
comunidade pelo potencial de sensibilização e ferramenta que prepara os educandos para os
desafios do futuro.
Utiliza-se de atividades culturais que aproximam o museu da comunidade, visando à
valorização e a identificação dos sujeitos envolvidos com os projetos, tornando-os agentes e
multiplicadores de acordo com as necessidades primárias e essenciais aos seus locais de
vivência, reforçando a sustentabilidade para a satisfação e consciência do desenvolvimento
local.
A parceria em extensão universitária nas escolas legitimam as alternativas de
pesquisa e as possibilidades de salvaguarda desses acervos. Agregam valores aos saberes
populares, pelo conhecimento científico, que se renovam pelas práticas e experiências que
envolvem o meio ambiente e as sociedades. A Educação Ambiental deve ser trabalhada de
forma interdisciplinar, envolvendo várias áreas do conhecimento.
Para concluir destacamos o trabalho em Redes de cooperação um meio oportuno de
comunicação e engajamento de instituições preocupadas com a reconstrução da memória e os
modos de vida digna nas comunidades que se encontram à margem de condições apropriadas
e justas, ao direito a educação e ao meio ambiente, que sejam favoráveis ao seu bem estar.
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etnográficas no museu diferente de Terra Firme, Belém-Pa. Tese (Dissertação de
Mestrado). Universidade Federal do Pará (UFPA), Programa de Pós-Graduação em
Antropologia. Belém, 2016, p. 188.
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museológica. In: Anais 2º Seminário Brasileiro de Museologia, Vol. 3. Museu do Homem
610
do Nordeste. Recife, PE 2015. Disponível em:
<https://www.dropbox.com/s/bri1g0ovx1t9391/VOLUME%203.pdf?dl=0>. Acesso em:
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JUNIOR. José do Nascimento. TRAMPE, Alan. SANTOS, Paula Assunção dos. (Org). Mesa
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611
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OLIVEIRA, Cinthia Maria Rodrigues. In: Pontos de memória: metodologia e práticas em
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americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura. – Brasília (DF): Phábrica, 2016. p. 8-10.
PEREIRA, Tânia Sampaio (Org.). Plano de ação para jardins botânicos brasileiros. Rio de
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PEREIRA, Tânia Sampaio; COSTA, Maria Lúcia M. Nova. Ciência e Cultura. Os jardins
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612
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Reconstrução curricular: novos mapas culturais, novas perspectivas educacionais. Porto
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%20ref%C3%BAgios%20de%20uma%20Natureza%20em%20crise.pdf>.Acesso em: agosto
2015.
613
PATRIMÔNIOS (IN)VISIVEIS: DA EXPOSIÇAO À CRIAÇÃO DE UM MUSEU
COMUNITÁRIO NA ILHA DE MAIANDEUA/PA
614
dialogues and exchanges of knowledge with the residents about cultural heritage and the
identification of cultural heritage was made by the community itself according to its cultural
references (knowledge, living, memories, Daily life), thus constituting a cultural repertoire
liable to musealization and patrimonialization. Photography was a visual recording tool,
helping to produce knowledge about the cultural diversity of the village and helping to create
an imaginary documentary collection of the elected patrimony, and consequently of the
memories and histories of the place, thus contributing to its safeguard and diffusion. However,
after the exhibition, there were some instigations: what to do with all this knowledge
generated about the community and its cultural heritage? How to move this created
collection? In what way can museological actions and practices contribute to the cultural
assets identified by the inhabitants as vectors for the social-economic-cultural development of
that locality, not only of Fortalezinha, but of all the communities of Ilha de Maiandeua? A
Museum can be a good alternative, since it can be a fundamental instrument for culture,
education, social organization and the self-sustainable development of the communities that
own it.
Key-words: Cultural Heritage; Fortalezinha; Social Museology.
615
Introdução45
45
O texto adaptado é parte integrante do Trabalho de Conclusão de Curso intitulado “Patrimônios (In) Visíveis -
Experiências museológicas na comunidade de Fortalezinha/Pará”, apresentado para obtenção do grau Bacharel
em Museologia da Faculdade de Artes Visuais e Museologia da Universidade Federal do Pará, de minha autoria
e orientação do Prof. Dr. Hugo Menezes Neto, defendido em 27 de Outubro de 2016.
616
patrimônios selecionados e legitimados oficialmente abarcam todos àqueles reconhecidos
como tais por uma comunidade.
617
A fotografia também exerceu linguagem artística, num experimento de construção das
imagens a partir do conhecimento da realidade estudada, valendo-se da livre interpretação,
recriação e releitura após as análises das entrevistas com os comunitários para o
(re)conhecimento dos patrimônios locais, tornando-se ainda uma ferramenta eficaz para a
Museologia quanto à identificação, registro (coleta), documentação, salvaguarda,
comunicação e, consequentemente, valorização de tais patrimônios, cujo conteúdo criado
contribui para a realização das práticas museológicas dentro e fora do museu.
46
HORTA, Maria de Lourdes Parreiras. Guia Básico de Educação Patrimonial. Brasília: Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, Museu Imperial, 1999.
47
O grupo focal foi composto por nove moradores surdos da comunidade que participaram de uma roda de
conversa mediada pelos professores de libras do GETLS (Grupo de Estudo de Libras, da UFPA).
618
Durante a vigência do primeiro ano do Projeto PI48 na Ilha de Maiandeua (março de
2015 a março de 2016), foram três apresentações da exposição. A primeira e a terceira
ocorreram na própria comunidade de Fortalezinha no final do ano de 2015 e durante o
carnaval de 2016, respectivamente, atingindo um público de moradores e turistas que visitam
a Ilha nessas ocasiões. A segunda ocorreu na Universidade Federal do Pará no Hall da
Reitoria, atingindo um público de estudantes, corpo técnico e docente da instituição, além de
outras pessoas interessadas em visitá-la devido à divulgação nas redes sociais, inclusive na
página do projeto49.
Vale ressaltar que a pesquisa desenvolvida em Fortalezinha para o projeto PI foi a base
para o desenvolvimento do Trabalho de Conclusão de Curso intitulado “Patrimônios (In)
Visíveis - Experiências museológicas na comunidade de Fortalezinha/Pará”, que teve como
objeto de estudo a exposição e todos os processos museológicos que culminaram na sua
primeira apresentação.
48
Abreviatura de Patrimônios (In) Visíveis.
49
O projeto tem uma página no Facebook, criada em março de 2015 para divulgar todos os processos e
resultados do projeto, incluindo imagens. O endereço é Facebook/projetopatrimoniosinvisiveisfortalezinha.
619
Por ter sido contemplado com o V Prêmio Proex de Arte e Cultura 2016, novos
patrimônios culturais ainda estão sendo identificados, pois este ano as ações do projeto PI
estão se desenvolvendo nas comunidades de Camboinha e Mocooca, também situadas na Ilha
de Maiandeua. Sendo assim, o museu vislumbrado deve contemplar todas as comunidades da
Ilha e deve contribuir para a promoção do desenvolvimento sócio-econômico-cultural
(VARINE, 2013) de seus moradores como um todo, tanto para um turismo sustentável quanto
para a preservação de seus bens culturais.
Desde o dia 27 de novembro de 1990, data que foi criada a Lei Estadual nº 5.621, faz
parte da Área de Proteção Ambiental (APA) de Algodoal-Maiandeua (PARÁ, 2012, p.22)
sendo a única Unidade Conservação (UC) do Estado situada no litoral do nordeste paraense
pertencente à categoria APA. (PARÁ, 2014, p.7) administrada pela Secretaria de Estado do
Meio Ambiente (Sema) e que atrai muitos turistas o ano todo.
50
A região conhecida como Zona do Salgado, é integrada por dez municípios: Colares, Curuçá, Magalhães
Barata, Maracanã, Marapanim, Primavera, Salinópolis, Santarém Novo, São Caetano de Odivelas e Vigia. A área
possui cerca de 500 km de extensão e está situada entre a baía do Marajó e a baía do Gurupi. Ela compõe o
grande sistema de rias que se estende desde a margem direita do estuário amazônico (Vigia), no Estado do Pará,
até a baía de Tubarão (Ponta do Mangue), no Estado do Maranhão. A partir de sua salinidade, a Zona do Salgado
está subdividida em três áreas: O Baixo Salgado, onde predomina a Água doce; o Médio Salgado, onde ocorre a
mistura das águas do oceano com as águas do rio; e o Alto Salgado onde se concentra a água oceânica.
(QUARESMA, 2000, p. 102)
51
Mapeadas recentemente (2017) através do projeto Patrimônios (In) Visíveis no II.
620
Historicamente, a Região do Salgado é uma área de ocupação antiga. Estudos indicam
a existência de extensos sambaquis52 litorâneos e a datação arqueológica das ocupações
humanas nessa Região remonta à fase Mina53, 3.000 a 1.600 anos a.C (QUARESMA, 2000, p.
103). Estes Sambaquis estão quase todos destruídos uma vez que desde o período colonial tais
depositórios eram utilizados como matéria-prima para a produção de cal e hoje, mesmo
tombados como Patrimônio Histórico pela lei 3.924, de 26 de julho de 1961 de proteção dos
jazidos pré-históricos brasileiros, que inclui os monumentos arqueológicos e pré-histórico, a
destruição continua. Sobre as primeiras ocupações na região, Quaresma (2000) ainda fala:
52
Sítios arqueológicos construídos por depósitos artificiais de conchas acumuladas durante séculos por grupos
indígenas que dependiam da coleta de mariscos e que se ocupavam paralelamente da pesca, caça e cultivo de
raízes. Tais depósitos localizam-se em praias de mar, rios, baías e mangues. Quaresma (apud OLIVEIRA, 1983,
p.165).
53
Fase caracterizada por uma cerâmica utilitária e simples, de manufatura acordelada, temperada com conchas
moídas (Mina simples) e ocasionalmente areia (Tijuco simples). (QUARESMA, 2000, p. 103).
621
estuda, entre outras coisas, as relações entre o ser humano e o mundo que o cerca por meio
dos seus bens culturais” (COSTA, 2012, p. 92), fiquei instigada com a possibilidade de saber
o quê a própria comunidade consideraria os seus patrimônios e qual seria os bens culturais
que mais identificaria a comunidade, segundo os próprios moradores.
A Casa de Pedra é uma referência cultural de Fortalezinha e foi eleita pelos moradores
de Fortalezinha como um de seus patrimônios culturais. Por se tratar de uma arquitetura única
na Vila, tanto pelo seu formato físico quanto pelos simbolismos a que ela remete, essa
construção está na memória dos moradores desde os mais antigos aos mais jovens.
Contam alguns que essa construção foi feita a partir de retiradas de uma formação
natural de pedra que abeirava todo barranco onde ela está localizada. Este barranco tinha uma
cabeça de pedra gigante que parecia uma fortaleza e os antigos frades missionários que
habitaram o local, utilizaram-na como front de defesa do território. Manoel Teixeira
(Maneco), 44 anos, morador e nativo da Vila, contou-me assim:
54
A autora refere-se ao século XIX, pois sua pesquisa foi desenvolvida durante os anos de 1998 e 1999.
622
Figuras 1 e 2 – Casa de Pedra. Pode ser considerada um sítio histórico e/ou um sítio arqueológico. Sítios
históricos se caracterizam por vestígios que indicam a presença dos colonizadores europeus, por meio de
construções como igrejas, fortalezas, prédios coloniais, engenhos, etc.
Fonte: Flávia Souza/ 2015
623
identifica a Fortalezinha?” Para os mais velhos e para as crianças55, acrescentava: “o que é
que é a cara da Fortalezinha? O que é que mais gostas daqui da Vila?”, acrescentava ainda
que patrimônio é aquilo que nos pertence, aquilo que a gente se identifica e quer preservar, e
que é importante para todos.
624
chega-se a um resultado, cujo qual é a principal base para a construção da narrativa da
exposição.
57
Refiro-me seleção das imagens para a exposição. O termo “curadoria” remete-se a atividade do “curador”, e
dentre outros definições e sentidos para estes substantivos, no projeto o termo curadoria é entendido como “o
processo de organização e montagem de exposição” (BITTENCOURT, 2008, p.4). Para melhor compreensão
dos termos, ver: PORTUGAL, Academia das Ciências de Lisboa. Dicionário...Op. cit. Verbete “Curador”, vol. 1,
p. 1046. (apud, BITTENCOURT, 2008, p.4).
625
Figuras 3 e 4 – Painéis da Exposição Patrimônios (In) Visíveis – Fortalezinha
Fonte: Projeto Patrimônios (In) Visíveis
626
Não foram coletados objetos propriamente ditos, para que, na perspectiva da
museologia clássica, fossem desenvolvidos os devidos procedimentos de estudo,
documentação, conservação e armazenamento dos mesmos. Os patrimônios apresentados,
acrescento, não foram musealizados e nem oficialmente patrimonializados, logo, a exposição
pode representar uma forma de salvaguarda desse patrimônio local, pois, o conteúdo gerado a
partir das narrativas dos moradores em conjunto com as imagens, formam um documento
memorial da Vila relacionados à identificação e consequentemente valorização desse
repertório patrimonial.
Como forma de movimentar o acervo criado a partir da pesquisa, e que faz parte
do trabalho de um museólogo, outras formas de expor e de trabalhar com esse material
também podem ser concebidas, como recriar leituras para a narrativa expográfica em outros
espaços e com outros materiais, bem como também servir como premissa para a criação de
um museu comunitário na Ilha de Maiandeua onde se possam conhecer uma parte da história
e cultura local e, ao mesmo tempo, ser um lugar importante para a preservação das
identidades e referências culturais dos moradores, ajudando inclusive a movimentar a
economia com um turismo responsável e sustentável.
627
Um Museu para a Ilha de Maindeua
Nesse sentido, os museus, que são instituições que buscam representar a diversidade
cultural e natural de determinados grupos sociais e assumem um papel essencial na proteção,
preservação e transmissão do patrimônio, podem também ser instrumento fundamental para a
cultura, educação, organização social e o desenvolvimento autossustentável das comunidades
que o detém, assim como para estratégias de fomento do setor turístico, visto que museus são
atrações turísticas e o turismo é um meio eficaz de propagar a nossa cultura e movimentar a
economia de um dado local.
A Ilha de Maiandeua é um lugar que recebe muitos turistas, e este turismo pode
ganhar reforço com a criação de um museu que preserve sua cultura e conte as suas histórias.
A patrimonialização de seus bens, com o auxilio da Museologia, através de suas atribuições,
pode ajudar a salvaguardar elementos do cotidiano, memórias coletivas, fazeres, saberes e
outros elementos idiossincráticos tradicionais que formam os seus patrimônios culturais.
628
necessidades das pessoas. Portanto, as raízes deste desenvolvimento devem se nutrir nessa
terra fértil que é o patrimônio local.
629
sendo dialogado com os moradores das comunidades de Camboinha e Mocooca, faz-se
necessário para a salvaguarda e comunicação desses “corpus patrimoniais” (VARINE, 2013)
que está sendo identificado e documentado através da pesquisa em questão.
Considerações Finais
630
comunidades trabalhadas que me sensibilizaram a pensar num museu para a Ilha de
Maiandeua.
Vale ressaltar que a iniciativa do projeto não teve ou tem a intenção de servir de
instrumento de identificação, legitimação e/ou reconhecimento oficial de patrimônio, mas
pode auxiliar a comunidade a reivindicar políticas de proteção patrimonial que abranja às suas
especificidades e lhe garanta desenvolvimento sócio-econômico-cultural, ao mesmo tempo
que os seus resultados podem “contribuir para o aprimoramento do papel do Estado na
preservação e valorização das referências culturais brasileiras, assim como servir de fonte de
estudos e experiências no contínuo processo de aprendizado” (IPHAN, 2016, p. 07).
Referências Bibliográficas
631
IPHAN. Manual de aplicação do Inventário Nacional de Referências Culturais. Brasília –
DF, 2000.
KOSSOY, Boris. Fotografia & História. São Paulo: Ateliê Editorial, 2012.
632
BRASÍLIA SOB A ÓTICA DA MUSEOLOGIA SOCIAL: ESTUDO DE CASO DA
RESTAURAÇÃO DA IGREJINHA NOSSA SENHORA DE FÁTIMA
Resumo: Pensada durante um século e meio e, finalmente, construída por Juscelino Kubitscheck entre
1957 e 1960, Brasília é resultado de um projeto modernista ímpar no cenário mundial, sendo
considerada um museu a céu aberto. De autoria do arquiteto e urbanista Lucio Costa, com um conjunto
de obras consagradas do também arquiteto Oscar Niemeyer e de artistas que marcaram o movimento
modernista, a cidade reúne um singular conjunto arquitetônico e artístico, cuja originalidade e beleza
lhe rendeu o título de Patrimônio Cultural da Humanidade, concedido em 1987 pela Organização das
Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO). Entretanto, em 2008, a cidade se viu
sob o risco de perder tal status, passando a figurar na lista dos bens ameaçados, após denuncia do
Comitê Nacional do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (Icomos/Brasil) à UNESCO, por
meio do documento Ameaças à Brasília, Patrimônio Cultural da Humanidade. A preocupação é
compreensível, uma vez que são evidentes perdas e alterações, tanto no plano urbanístico, quanto em
monumentos e obras de arte pontuais espalhados pela cidade. Diante disso, é apresentado o
emblemático caso da restauração da Igrejinha Nossa Senhora de Fátima - aqui tratada como um objeto
museológico -, com a substituição de um afresco do italiano Alfredo Volpi (1869-1988), perdido em
circunstâncias controversas e não esclarecidas, e substituído por outro do artista local, Francisco
Galeno, fato que gerou conflitos entre o Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e a
comunidade. Tecendo reflexões acerca dos desafios das cidades musealizadas, considerando os
significados simbólicos que os monumentos e objetos detêm e dialogando com os conceitos e
perspectivas teóricas relacionados à Museologia Social, a proposta tem como objetivo geral o estudo
Brasília um museu a céu aberto, demonstrando que o patrimônio se insere na memória popular,
integrado-se à sociedade e promovendo processos de identidade e cidadania.
Palavras-chave: Brasília; Igrejinha Nossa Senhora de Fátima; Restauração; Museologia Social.
Abstract: Imagined for a century and a half and finally built by Juscelino Kubitschek between 1957
and 1960, Brasilia is the result of a modernist project that remains unique all over the world, also
considered an open air museum. Designed by architect and urbanist Lucio Costa, with a set of
renowned works by architect Oscar Niemeyer and other artists that have marked the modernist
movement, the city, the city brings together a remarkable architectural and artistical ensemble, which
originality and beauty has earned it the inclusion on the World Heritage List, granted in 1987 by the
United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (UNESCO). However, in 2008, the
city found itself at risk of losing such status after going to the list of World Heritage in Danger, after a
denunciation of the National Committee of the International Council of Monuments and Sites
(Icomos/Brazil) to UNESCO, by means of the document entitled Ameaças à Brasília, Patrimônio
Cultural da Humanidade. The concern is understandable, since the losses and changes are evident,
633
from its urbanistic design to monuments and works of art scattered throughout the city. In view of this,
this work presents the emblematic case of the restoration of the Igrejinha Nossa Senhora de Fátima -
treated here as a museological object -, with the replacement of a fresco by Italian artist Alfredo Volpi
(1869-1988), which got lost under controversial and unclarified circumstances, by another work by
local artist Francisco Galeno, a fact that generated conflicts between IPHAN (National Institute of
Historic and Artistic Heritage) and the population. Reflecting on the challenges of musealized cities,
considering the symbolic meanings that monuments and objects have, and dialoguing with the
concepts and theoretical perspectives related to Social Museology, the proposal has as its main general
objective the study of Brasilia as an open air museum, demonstrating that the heritage in inserted in
the popular memory, integrating itself with society and promoting processes of identity and
citizenship.
Keywords: Brasilia; Igrejinha Nossa Senhora de Fátima; Restoration; Social Museology.
634
De acordo com o historiador Laurent Vidal (2009), o projeto de uma cidade ideal
permeou o imaginário de muitos, sendo retomado em vários períodos da história do Brasil. As
justificativas giravam em torno de vários motivos, entre eles: a necessidade de utilização das
potencialidades econômicas e comerciais da região central do Brasil; a valorização e
integração do país por meio do povoamento; a criação de um sistema de comunicações
ligando os territórios; e a proteção do centro do poder, já que a proximidade com o litoral a
tornava vulnerável.
A construção da sonhada capital do Brasil, entretanto, só foi concretizada em 1960,
pelo presidente Juscelino Kubitschek. O projeto, de autoria do Arquiteto e urbanista Lucio
Costa, foi vencedor de um concurso internacional promovido para construção da cidade, em
1957. A definição da concepção idealizada por Lucio Costa foi criar uma cidade com dupla
dimensão material e discursiva, concebida com intenção política, social e artística, com
relações "filosóficas e simbólicas com a totalidade do mundo e do cosmos" (VIDAL, 2009, p.
15), um espaço de convivência social, pensado em todos os detalhes possíveis para garantir a
qualidade de vida de seus habitantes. Vidal (2009) destaca que a cidade surgiu por definição
de uma ideia que previa a construção de uma nação com memória e identidade, representada
por uma comunidade que se pretendia espacializar, um “projeto de sociedade” (VIDAL, 2009,
p. 18), segundo Costa, que permitisse a convivência de pessoas de padrões econômicos
diferentes sem que houvesse constrangimento por nenhuma das partes, por isso concebeu cada
área de vizinhança constituída por quatro superquadras, tendo cada quadra apenas moradores
de um determinado padrão. Assim, ele acreditava que as diferenças do status econômico não
seriam tão delimitadamente marcantes, já que a cidade não ficaria estratificada em áreas
rigidamente diferenciadas, apresentando, na prática, a possibilidade de coexistência urbana
das classes como solução para o regime capitalista.
635
A singularidade de suas formas arquitetônicas tornou-a única. O plano urbanístico
inovador e futurista de Oscar Niemeyer58 e Lúcio Costa, na sutil aparente leveza do concreto,
a organização das ruas, as imensas alamedas arborizadas, as obras de artistas modernistas
espalhadas pela cidade, destacando Marianne Peretti, Athos Bulcão, Volpi, Dante Croce,
Alfredo Ceschiatti, Di Cavalcanti, Fayga Ostrower, Carybé, Maria Bonomi, Bruno Giorgi,
Honório Peçanha, José Alves Pedroza, entre outros, conferiram a Brasília destaque no cenário
mundial, ao ser eleita, pela UNESCO59, como Patrimônio Cultural da Humanidade,
considerando seu “Valor Universal Excepcional”. O título, de acordo com o Grupo Urbanistas
por Brasília60, representou uma inédita e grande façanha por ter alterado os parâmetros de
avaliação da UNESCO, distinguindo-se como monumento contemporâneo. Até então, o
reconhecimento alcançava somente monumentos do passado como as Pirâmides do Egito, a
Grande Muralha da China, a Acrópole de Atenas (Grécia), o Centro Histórico de Roma
(Itália) e o Palácio de Versalhes (França).
58
Oscar Niemeyer, arquiteto e urbanista brasileiro, foi eleito o 9º maior gênio vivo e um dos nomes mais
importantes da arquitetura moderna mundial, tendo recebido os principais prêmios da arquitetura. O Brasil se
destacou na história da arquitetura internacional graças a Niemeyer. Seus projetos, considerados prédios-
esculturas, estão distribuídos em mais de 600 em países, entre eles, Estados Unidos, França, Espanha, Alemanha,
Argélia, Itália Israel. Foi responsável pelas principais obras de Brasília, agora tombadas pelo IPHAN. Ver Oscar
Niemeyer http://www.terra.com.br/noticias/infograficos/oscar-niemeyer/
59
A importância do título da Unesco é destacada pelo grupo Urbanistas por Brasília, formado por arquitetos e
urbanistas que se uniram em defesa do Conjunto Urbanístico, Arquitetônico e Paisagístico da Capital. O grupo se
organiza por meio das redes sociais, difundindo informações técnicas sobre temas sensíveis à cidade,
considerando sua importância como Patrimônio Cultural da Humanidade. Disponível em:
https://urbanistasporbrasilia.wordpress.com/2014/12/07/a-importancia-do-titulo-para-brasilia/. Acesso em: 18
mai. 2017.
60 Idem.
61
Ver Portaria Nº 166, de 11 de maio de 2016 (Republicada no DOU nº 91, de 13 de maio de 2016, seção 1, p.
31, com as retificações publicadas no DOU nº 96, de 20 de maio de 2016, seção 1, p. 13-14), que estabelece a
complementação e o detalhamento da Portaria nº 314/1992, assinada pela Presidenta do Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional - Iphan, Jurema de Sousa Machado.
636
que não há tombamento específico (individual) de prédios, à exceção de poucos edifícios
tombados individualmente, em sua maioria, aqueles projetados pelo arquiteto Oscar
Niemeyer. Assim, a proteção federal (tombamento histórico) abrange a concepção urbana da
cidade em suas quatro escalas urbanísticas – monumental, gregária, residencial e bucólica, de
forma que, conforme estabelece a Portaria nº 314/92, o que deve ser preservado em Brasília
são as características e a articulação dessas quatro escalas.
Em 2008, foram relatados problemas preocupantes para preservação do título,
levando os presidentes e membros dos comitês nacionais do Icomos a apresentarem à Unesco,
o documento Ameaças à Brasília, Patrimônio Cultural da Humanidade63. Os problemas mais
evidentes estão relacionados à fragilidade de políticas de preservação, crescimento
demográfico acelerado, especulação imobiliária, interferência de interesses políticos e
privados e falta de pessoal especializado.
62Nesse caso, ver Tombamento e Intervenções, disponível na página oficial do Iphan - Distrito
Federal http://portal.iphan.gov.br/df/pagina/detalhes/618
63
Ver Moção apresentada à Unesco pelos presidentes e membros dos comitês nacionais do Icomos, em
2008, no fórum internacional Icomos Américas, por meio do documento Ameaças à Brasília, Patrimônio
Cultural da Humanidade. Disponível em:
<http://www.icomos.org.br/outras_noticias/Ameacas_a_Brasilia_Patrimonio_Cultural_da_Humanidade.pdf>.
Acesso em: 30 jan. 2017
64
Athos Bulcão (1918 - 2008) , reconhecido como o “artista de Brasília”, por seus mais de 50 trabalhos
espalhados por lugares como escolas, mercados, órgãos públicos, praças, museus, templos e ruas ao alcance dos
passantes da cidade, tendo como público o cidadão, o passante, que se beneficia da estética, cor e simplicidade
de sua obra se destacando por sua capacidade de integração entre arte e arquitetura, conferindo leveza e
dinamismo aos espaços coloridos por seus trabalhos em azulejaria, com temáticas geométricas e cheias de cores.
Ver Carolina Grippa, em Athos Bulcão: a obra de arte no cotidiano. Disponível em:
<http://www.hacer.com.br/#!athos-bulcao/wpqu4>. Acesso em: 30 ago. 2017.
637
igreja teve tombamento federal e distrital instituído pelo IPHAN em 1982, incluindo os
jardins externos, mobiliário original, a fachada azulejada e demais bens integrados.
638
Figura 2 - Pintura de Volpi no interior da Igrejinha
65Pedro Mastrobuono, em matéria publicada no jornal O Estadão, em 18 Fevereiro 2017 :Descaso com o
patrimônio cultural vitima obras de Volpi. Afrescos destruídos, telas extraviadas ou adulteradas e obras
danificadas esperando restauro demonstram inércia do poder público no setor cultural.
639
Seja por considerar as bandeirinhas “profanas”; pela falta de pés na figura de
Nossa Senhora; ou ainda por entender que, na devoção mariana de Nossa
Senhora de Fátima, a Virgem não carregaria o Menino Jesus no colo; certo
padre, anos depois, incomodado, mandou simplesmente raspar os afrescos e
pintou as paredes de branco. Há apenas alguns poucos registros fotográficos
de tais no catálogo raisonné do artista. (MASTROBUONO, 2017)66
Durante a reforma, parte dos azulejos de Athos Bulcão foram trocados por réplicas, e
os painéis de Volpi substituídos porque a pintura anterior teria sido total e irremediavelmente
destruída, conforme declaração do superintendente do Instituto de Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional do Distrito Federal (Iphan-DF) à época, Alfredo Gastal, e do arquiteto
Rogério Carvalho67 publicada no jornal Correio Braziliense:
Com a tecnologia até agora disponível, a recuperação da obra do italiano seria
impossível. A destruição dos painéis coloridos e lúdicos de Alfredo Volpi foi
muito bem-feita, nas palavras de Alfredo Gastal. Antes de cobrir as imagens
com demãos de tinta, elas foram raspadas e lixadas. Não existe, segundo
Rogério Carvalho, um esboço colorido da obra. "Cheguei a pensar em
reproduzir as imagens do único registro fotográfico existente do esboço do
artista, o da revista Módulo, porém sabia que nunca conseguiria fazer com que
alguém conseguisse o ritmo das pinceladas de Volpi e nunca teria certeza das
cores que ele utilizou. Seria fake", diz o arquiteto (FREITAS, 2009)68
A pintura do artista Francisco Galeno, que retrata Nossa Senhora de Fátima sem
rosto e com uma pipa nas mãos, provocou insatisfação e revolta entre moradores,
comerciantes e fiéis que frequentavam a Igrejinha, que alegaram não gostar nem se sentir
representados pela nova pintura, de modo que recorreram ao Ministério Público Federal
(MPF) pedindo a paralisação da obra. O embargo foi atendido, mas posteriormente suspenso.
Gastal comemorou, afirmando: “A arte vai vencer o obscurantismo” (FREITAS, 2009), e a
obra foi retomada.
66
Idem.
67
Matéria publicada no jornal Correio Braziliense, em 27/06/2009: Polêmica na Igrejinha tem mobilização em
duas frentes. Por Conceição Freitas.
68
Idem.
640
Figura 04- Pintura de Francisco Galeno no interior da Igrejinha Nossa Senhora de Fátima
A mídia local, que deu ampla cobertura ao caso, destacou clamor geral entre os mais
antigos. Enquanto alguns não viram problema na restauração, outros reclamavam que a obra
tombada estaria sofrendo alterações, que deveriam ter buscado conservar o templo, não
mudar. De acordo com o Frei Odolir (MENEZES, 2010)69, a alteração teria sido uma
imposição, sem consulta à comunidade. Os fiéis ainda reclamaram do que interpretaram como
uma profanação do templo:
Gastal contesta que, apesar das pessoas de Brasília falarem em modernidade, alguns
grupos são formados por uma mentalidade medieval (FREITAS, 2009) e, se a princípio tinha
acatado a sugestão de suspender a obra, voltou atrás “Entendemos que, garantindo o término
da pintura, estamos cumprindo o nosso dever de proteger o patrimônio” (FREITAS, 2009). E
69 Matériapublicada no jornal Correio Braziliense, em 07/05/2010: Enfim, a paz reina na Igrejinha. Por
Leilane Menezes.
70
Idem.
641
apresentou uma segunda versão para a impossibilidade de recuperação dos afrescos de Volpi,
que teriam sido destruídos por um incidente ocorrido na década de 1960, quando três painéis
do artista, que nunca foram aceitos pelos fiéis, desapareceram.
71
Idem.
642
Conclusão
643
artefato, uma coleção, um fato museal ou mesmo um fato social" (DODEBEI; STORINO,
2007, p. 278). As autoras, que tratam as cidades como espaços imaginados pelo homem,
portanto, de memória, afirmam que suas representações simbólicas podem ser um problema
na preservação das cidades, podendo haver truncamentos, embates e conflitos entre os órgãos
responsáveis pela preservação e a comunidade, interferindo na configuração dos espaços
físicos e simbólicos e catalisando uma guerra urbana de representação e lugares.
Referências bibliográficas
644
BRASÍLIA, CAPITAL DOS BRASILEIROS, PATRIMÔNIO DA HUMANIDADE.
Igrejinha (Capela Nossa Senhora de Fátima). Disponível em:
<http://www.brasiliapatrimoniodahumanidade.df.gov.br/index.php?option=com_conten
t&view=article&id=34&Itemid=14>. Acesso em: 20 fev. 2017.
GRIPPA, Carolina Bouvie. Athos Bulcão: a obra de arte no cotidiano. HACER - História
da Arte e da Cultura: Estudos e reflexões, Porto Alegre, 2016. Disponível em:
<http://www.hacer.com.br/#!athos-bulcao/wpqu4>. Acesso em: 30 ago. 2017.
645
IPHAN.Tombamento e Intervenções. Disponível em:
<http://portal.iphan.gov.br/df/pagina/detalhes/618>. Acesso em 10 fev. 2017.
MENEZES, Leiliane. Enfim a paz reina na Igrejinha. Correio Braziliense. Disponível em:
<http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2010/05/07/interna_cidadesdf,191
062/index.shtml>. Acesso em: 10 jan 2016.
VIDAL, Laurent. De Nova Lisboa a Brasília. A invenção de uma capital (séculos XIX e
XX). Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2009.
646
O TEATRO DO OPRIMIDO COMO ESTRATÉGIA ÉTICA, ESTÉTICA E
POLÍTICA PARA A PROMOÇÃO DO MUSEU COMUNITÁRIO DA TERRA
FIRME.
Resumo: O presente artigo objetiva apresentar uma atividade de extensão, em parceria com o Ponto
de Memória da Terra Firme, que tem o intuito de aplicar as técnicas do Teatro do Oprimido na
periferia de Belém, a fim de possibilitar a reflexão e solução dos fatos sociais apresentados
cenicamente como poética acessível a qualquer espec-tator. Por meio de jogos e exercícios
fundamentados no Teatro do Oprimido de Augusto Boal será possível documentar as reflexões e
soluções encontradas teatralmente. Dessa maneira, a atividade buscará fomentar o autoconhecimento
coletivo da comunidade e a conscientização dos moradores da Terra Firme, mediante a elaboração de
um discurso próprio dos sujeitos como forma de reflexão sobre a realidade vivida em seu contexto
local. Inicialmente, abordaremos o Teatro do Oprimido como síntese dialética entre o teatro burguês e
o teatro brechtiano. Posteriormente, será abordado o Museu Comunitário como superação da visão
tradicional de Museu. Concluir-se-á com a ideia de que o Teatro do Oprimido, dando voz aos
oprimidos, promove a construção do Museu Comunitário da Terra Firme.
Palavras-chave: Teatro do Oprimido; Museu Comunitário; Cidadania; Memória.
Abstract: The present paper goals to show an extension activity in partnership with the Ponto de
Memória da Terra Firme, that aims to apply the technique of the Theatre of the Opressed into the
outlying areas of Belém to make possible reflection and problem-solves of social facts showed
scenically as an acessible poetic to any spect-ator. Through games and exercises created by Augusto
Boal’s Theatre of Opressed will be possible to document the reflections and solutions found
theatrically. That way, the activity will to encourage the collective self-knowledge of community and
the awareness of residents at the Terra Firme, through elaboration of self-speech force of subjects as
ways of thinking about the real-life experience at local context. At the beginning, we approach the
Theatre of Opressed as a dialetic synthesis between the bourgeois theater and the Brechtian Theater.
Then, we will approach the Community Museum as overcoming of traditional vision of Museum. We
will conclude with the idea that the Theater of Opressed, giving voice to the oppressed, promote the
construction of Community Museum of Terra Firme.
Key-words: Theatre of the Opressed; Community Museum; Citizenship; Memory
647
Introdução
A estética do Teatro do oprimido foi desenvolvida por Augusto Boal na década de
1970, a partir de experiências no Peru. As ações faziam parte de um projeto de alfabetização
promovido pelo governo revolucionário peruano.
O Teatro do Oprimido possui como premissa fundamental ser um veículo de
transformação social em que as ações realizadas em cena são consideradas como um ensaio
teatral das mudanças desejadas no campo social, por meio da concretização cênica dos fatos
da sociedade.
Neste artigo, objetivamos apresentar o projeto de extensão intitulado “ENSAIANDO A
CIDADANIA: o Teatro do Oprimido como estratégia ética, estética e política nos bairros da
periferia de Belém”, um dos vencedores do Prêmio Proex de Arte e Cultura/2017, na
modalidade “Teatro”, o qual, em parceria com o Ponto de Memória da Terra Firme, terá como
sujeito-participante o morador do bairro da Terra Firme.
Tal projeto possui como embasamento teórico a Estética do Oprimido, por isso, para
compreendê-lo, será necessário, inicialmente, discutir-se como o Teatro do Oprimido se
configura como uma superação (síntese dialética) do conflito existente entre duas concepções
distintas de teatro: a idealista e a materialista. Desta forma, imprescindível será revisitar a
obra de Augusto Boal, a fim de compreender a especificidade de seu pensamento sobre o
fenômeno teatral.
Posteriormente, discutir-se-á a concepção de Museu Comunitário, também
dialeticamente, como uma superação da tensão entre “museu tradicional” do Ocidente
Moderno e os movimentos de contestação em torno da instituição museológica que surgiram,
principalmente, a partir da segunda metade do século XX.
Por fim, se estabelecerá o profícuo diálogo entre Teatro do Oprimido e Museu
Comunitário, tendo como realidade concreta o espaço de execução da atividade de extensão
supracitada, em articulação com o Ponto de Memória da Terra Firme.
648
É importante ressaltar que o projeto de extensão está em fase de planejamento, não
oferecendo dados precisos sobre a experiência dos sujeitos envolvidos. Desta forma, pelo
menos por enquanto, teremos que nos contentar com uma discussão mais teórica em torno das
expectativas que existem em torno do projeto, expressando ainda os seus marcos teóricos e
não os seus resultados.
649
coercitivo, diz Boal (1991), continua sendo usado até os nossos dias (no cinema, na TV, etc.),
dado a sua eficácia.
A crítica mais contundente ao “sistema teatral coercitivo de Aristóteles” é o seu poder
pedagogizante, isto é, é a sua capacidade de “frear o indivíduo, de adaptá-lo ao que preexiste”
(BOAL, 1991, p. 64). Isso aconteceria porque as tragédias objetivam a purgação do elemento
dissonante, do personagem que, vivendo valores não aceitos socialmente, sofre uma perda
(um “golpe do destino”) e restabelece-se, tão somente, se se purificar do vício ou do erro que
o condena (elemento de conformação política). Em suma, o teatro aristotélico “é um
instrumento eficaz para a correção dos homens capazes de modificar a sociedade” (BOAL,
1991, p. 74).
Augusto Boal (1991), ao se referir ao teatro burguês do Renascimento, em
contraposição ao teatro feudal, usa a expressão “Poética da virtú”. Esta poética é uma
retomada dos valores clássicos gregos e se pauta pela centralidade do indivíduo
(antropocentrismo), capaz de romper com o próprio destino por meio de sua racionalidade.
Neste espetáculo, o espectador continua ser passivo de emoções impingidas pela ação cênica,
vivenciando-as por meio da empatia, tendo como tábua de valores a ser seguido, os valores da
classe burguesa em ascensão (individualismo, empreendedorismo, racionalidade, etc.)
Poderíamos sintetizar a concepção teatral burguesa assim:
650
público e ator (funcional), sendo que, nesta última cisão, “os espectadores veem e os atores se
fazem ver; estes são hiperativos e aqueles hiperpassivos” (ORTEGA Y GASSET, 2010, p. 48-
49).
Como antítese ao teatro burguês classista, alienador e passivo, Boal cita a Poética de
Bertolt Brecht, a partir da contribuição do pensamento marxista. Destaca assim a
contraposição entre a poética idealista, aqui representada pelo pensamento hegeliano, e a
poética brechtiana, no tocante à liberdade do personagem: “para Hegel, o personagem é
inteiramente livre que se trate da poesia lírica, épica ou dramática; para Brecht (e para Marx)
o personagem é objeto de forças sociais” (BOAL, 1991, p. 107).
Certamente esse contraste está fundado na contraposição ontológica entre a dialética
idealista e a dialética materialista, consubstanciada na seguinte pergunta: é a consciência dos
homens que determina o seu ser ou é o seu o ser social que determina a sua consciência?
(MARX, 2008).
Enquanto o teatro tradicional, burguês, idealista, transforma o espectador em um
receptáculo de emoções suscitadas pela encenação, Brecht intenta com a sua poética
transformar o espectador em um observador reflexivo, capaz de decidir, de conhecer para agir
(ROSENFELD, 2012).
Assim, Brecht tenta superar o espectador alienado que busca se identificar com o herói
teatral, transformando-o em espectador-observador da conjuntura social que se desenrola na
peça, utilizando-se da técnica do “distanciamento”.
Com Brecht, portanto, há uma superação do ideal burguês de teatro (e de arte), no qual
considerava-se o fazer teatral um exercício de genialidade, e o assistir ao espetáculo um mero
exercício de contemplação emocional, em prol de uma concepção político-ideológica de
651
teatro que desvele a exploração capitalista, o conflito de classes, o imperialismo, entre outras
temáticas que exsurgem da conjuntura socioeconômica, uma vez que a ação é determinada
pela função social que cumpre o personagem e o artista possui um compromisso com a
transformação da sociedade, com a formação das massas operárias, com o estímulo ao
inconformismo e à revolução, com a exposição das contradições inerentes a uma sociedade de
classes e a superação delas.
“É necessário insistir: o que Brecht não quer é que os espectadores continuem
pendurando o cérebro junto com o chapéu, antes de entrarem no teatro, como o fazem os
espectadores burgueses” (BOAL, 1991, p. 116).
Boal, em sua Poética do Oprimido, representa uma superação dialética da tensão
gerada pelo conflito entre o teatro burguês tradicional e o teatro brechtiano. O teatrólogo
brasileiro se apropriou dos efeitos teatrais de ambas correntes de pensamento, rompeu com as
suas estruturas e desenvolveu técnicas próprias para uma práxis teatral emancipatória.
De Brecht, Augusto Boal adotou a concepção de que o intelectual possui um
compromisso com a sociedade em um sentido pedagogizante: “o dever do artista não é o de
mostrar como são as coisas verdadeiras e sim o de mostrar como verdadeiramente são as
coisas” (BOAL, 1991, p. 128). Também da poética brechtiana, Boal incorporou a relevância
dada mais ao processo teatral – o devir dialético da realidade – do que ao desenlace da
história.
Augusto Boal, assim, discute em sua poética do oprimido a posição do espectador
como sujeito ativo, sugerindo a sua participação na cena em soluções de conflitos
representados por espectatores72 na dinâmica teatral, a partir da problematização da realidade
destes sujeitos, através da ação teatral.
Na estética do Teatro do Oprimido os temas escolhidos são teatralizados em torno de
situações cotidianas vividas pelo grupo social de participantes do local, em um tempo/espaço
delimitado pela aplicação das técnicas que constituem a Poética do Oprimido.
72
Espectador ativo, participativo, atuante, que reflete e soluciona cenicamente sua realidade ou fatos sociais por
meio das questões abordadas no momento da aplicação do Teatro do Oprimido.
652
Boal define assim a sua poética:
Para que se compreenda bem esta Poética do Oprimido deve-se ter sempre
presente seu principal objetivo: transformar o povo, “espectador”, ser
passivo no fenômeno teatral, em sujeito, em ator, em transformador da ação
dramática. Espero que as diferenças fiquem bem claras: Aristóteles propõe
uma poética em que os espectadores delegam poderes ao personagem para
que este atue e pense em seu lugar; Brecht propõe uma poética em que o
espectador delega poderes ao personagem para que este atue em seu lugar,
mas se reserva o direito de pensar por si mesmo, muitas vezes em oposição
ao personagem. No primeiro caso, produz-se uma “catar-se”; no segundo,
uma “conscientização”. O que a poética do oprimido propõe é a própria
ação! (BOAL, 1991, p. 138).
653
O que se preserva, como se preserva e como se expõem o que se preserva, no entanto,
não origina-se em um colecionismo neutro, ao contrário, revela os critérios de valor de uma
classe hegemônica da sociedade, variando de acordo com o contexto da época em que ocorre
(LARA FILHO, 2006).
Na Grécia antiga, o Mouseion (Musas, divindades associadas às artes e às ciências)
eram locais separados para os estudos artísticos, científicos e contemplativos. Durante o
Renascimento, os Museus transformaram-se em espaços de coleções, pois a visão
antropocêntrica começou a se destacar, tornando o mundo, o espaço natural, passível de
classificação, conhecimento e dominação (LARA FILHO, 2006).
654
científica, capaz de catalogar, discriminar, classificar e dispor da natureza e das culturas
humanas.
Essa modalidade de museu pode ser definida como uma instituição com
pesquisadores que produzem conhecimento, praticam o colecionamento,
divulgam o que é produzido e exibem suas coleções para um público amplo.
Sua função é também pedagógica. Desde então, os museus têm sido
importantes aliados nos processos civilizatórios nos diversos contextos
nacionais. (ABREU, 2007, p. 141)
655
se esgotaria nos objetos de sua coleção, mas existiria em função do indivíduo não abstrato:
sua educação, sua identificação, sua conscientização, historicamente determinadas.
Das inúmeras modalidades de práticas museológicas que surgiram, fomentadas pelas
críticas radicais da Nova Museologia (ecomuseus, museus de território, museus escolares,
museus locais, etc.) destacar-se-ia, no presente artigo, os chamados “Museus Comunitários”.
Os Museus Comunitários têm por base um grupamento humano, mais do que um
território, e poderia ser conceituado como “a expressão de uma comunidade humana, a qual se
caracteriza pelo compartilhamento de um território, de uma cultura viva, de modos de vida e
de atividades comuns” (VARINE, 2012, p. 189).
Segundo Teixeira Coelho:
O Museu Comunitário:
O Ponto de Memória da Terra Firme, atualmente, possibilita essa relação mais direta
com práticas sociais diferenciadas, como o teatro, possibilitando que a comunidade da Terra
Firme trabalhe com o poder da memória, narrando e expondo as suas próprias histórias,
dignas de serem contadas.
É sob esta interface – Teatro do Oprimido e Museu Comunitário – que se partirá para a
apresentação do projeto de extensão supracitado.
656
3º ato, ensaiando a cidadania: a promoção do museu comunitário da terra firme
No projeto de extensão aqui apresentado – “ENSAIANDO A CIDADANIA: o Teatro do
Oprimido como estratégia ética, estética e política nos bairros da periferia de Belém” –, o
espaço de execução terá como sujeitos imersos no processo de conscientização, os moradores
do bairro da Terra Firme.
A Terra Firme é um dos bairros mais populosos da capital, tendo ganhado esse apelido
por ser formado por terras firmes e altas próximas a áreas alagadas pelo rio Tucunduba, no
limite dos bairros de Canudos e Guamá. Concentração de boa parte da população de baixa
renda da Zona Central, o bairro sempre enfrentou problemas sérios como falta saneamento
básico, irregularidades fundiárias, desordenamento urbano, violência urbana, entre outros.
Penteado já descrevia o lugar como:
A Terra Firme, mesmo sendo uma área predominantemente alagável, tornou-se uma
favela com grande poder de atração migratória, uma vez que possibilita o rápido acesso – a pé
ou por bicicleta – de seus moradores ao centro da cidade. Tornou-se, assim, um dos bairros
mais populosos da capital, tendo ganhado esse apelido por ser formado por terras firmes e
altas próximas a áreas alagadas pelo rio Tucunduba, no limite dos bairros de Canudos e
Guamá.
Concentração de boa parte da população de baixa renda da Zona Central, o bairro
sempre enfrentou problemas sérios como falta saneamento básico, irregularidades fundiárias,
desordenamento urbano, violência urbana, tráfico de drogas, entre outros.
657
Ao invés de cidadãos com “desvio moral” ou com uma “inclinação patológica para o
crime” (SOUZA, 2005), na Terra Firme há uma racionalidade econômica marcada pela
desigualdade de oportunidades de inserção a bons empregos no setor formal da economia,
bem como a oferta de uma relação perversa com o tráfico de drogas, com suas promessas de
rentabilidade em curto prazo, principalmente aos jovens e adolescentes.
Essas múltiplas determinações de uma cidadania inconclusa (CARVALHO, 2005), na
qual predomina a concepção de que os direitos civis, políticos e sociais são “doados” pelo
Estado clientelista e não conquistados pela ação política e pela luta de classes, muitas vezes
obliteram a consciência do indivíduo, o qual passa a reconhecer a sua opressão com uma
realidade “quase natural” oriunda de uma “ideia fatalista, imobilizante” de que “a realidade é
assim mesmo, que podemos fazer? ” (FREIRE, 2011, p. 11).
Na tentativa de resgatar a consciência de que a realidade é histórica, construída pelas
ações – conscientes ou inconscientes – dos próprios indivíduos, o Teatro do Oprimido, como
práxis teórica deste projeto, proporciona um fazer pedagógico no qual os oprimidos se tornam
capazes de perceber o mundo, refletir sobre o mundo, e se expressar no mundo (TEIXEIRA,
2005)
O projeto justifica-se politicamente, eticamente e esteticamente, como uma ferramenta
capaz de fomentar as transformações sociais e a formação de lideranças em comunidades
diversas, mediante a relação dialógica entre os próprios moradores da Terra Firme que, junto
ao Ponto de Memória da Terra Firme, enquanto Museu Comunitário, poderão dizer o seu
próprio mundo e narrar a sua própria história, a partir da memória de seus sujeitos.
Acredita-se, como Canda, que “com arte, o povo pode construir meios de discussão
política, mas também de ampliação da capacidade da leitura de mundo e de meios de
intervenção sobre ele” (2012, p 191).
Deve-se ressaltar que, inicialmente, os moradores da Terra Firme travaram lutas contra
a própria Universidade Federal do Pará, que mantinha a posse dos terrenos ocupados.
Mobilizados pela luta por moradia digna, a “comunidade da Terra Firme adotou os centros
658
comunitários, associações e projetos socioeducativos como espaço de reivindicações de
direitos sociais” (MOURA, QUADROS & QUADROS, 2013).
Nesse sentido, pensamos que este projeto terá uma efetiva realização através da
parceria interinstitucional realizada com Ponto de Memória da Terra Firme (PMTF)
solucionando e problematizando, por meio de conflitos e soluções cênicas, os conflitos reais,
materiais, identificados na realização teatral.
Em poucas palavras, o Ponto de Memória da Terra Firme é:
73
São técnicas utilizadas como estratégias para a realização do Teatro do Oprimido. Para maiores informações
consultar Boal (1991).
659
possibilita a emergência da memória (e a construção da história) dos marginalizados, isto é,
daqueles cujos discursos estão ausentes do espaço museal.
Assim, o projeto pretende possibilitar o ensino e aprendizagem e uma formação para
a cidadania por meio da experimentação cênica do Teatro do Oprimido como linguagem ética,
estética e política de transformação social da comunidade da Terra Firme, elidindo-se a
distinção entre atores e espectadores no espaço teatral, ao mesmo tempo em que se suprime a
distinção entre curadores e espectadores, no espaço museal.
Desta forma, este projeto se desenvolve em três fases: (a) reuniões de planejamento da
equipe técnica do projeto e interessados, juntamente com a coordenação do Ponto de Memória
da Terra Firme; (b) aplicação do Teatro do Oprimido e suas modalidades no Ponto de
Memória da Terra Firme e (c) apresentação dos resultados do Projeto.
Por meio do Teatro do Oprimido pretende-se resgatar a memória e a história dos
sujeitos imersos na experiência cênica, bem como os processos de luta e conquistas de direitos
que mobilizaram gerações de moradores da Terra Firma, hoje esquecidos pelas novas
gerações. Desta maneira, os espectatores vivenciarão e intervirão sobre a sua própria cidade,
espaço por excelência de suas experiências cotidianas, de sua história comunitária, muitas
vezes invisibilizada.
660
que ascendera ao poder, no século XVIII. Tais rupturas se deram a partir da segunda metade
do século XX, fomentadas pelo movimento da “Nova Museologia”, o qual possibilitou o
surgimento de novas modalidades de Museus.
Os Museus Comunitário objetivam, semelhantemente ao Teatro do Oprimido, romper
com a separação estanque entre os objetos de sua coleção – dispostos, selecionados e
classificados por curadores hiperativos – e o público espectador hiperpassivo. Rompendo
com essa estrutura tradicional, o Museu Comunitário intenta criar um dinamismo entre espaço
museal e agrupamento humano, sendo um espaço de discursos, memórias e histórias ligadas à
existência da comunidade em que está inserido, trazendo a lume histórias invisibilizadas de
exploração, violência, emancipação e conscientização de seus moradores.
Através do Projeto de Extensão “ENSAIANDO A CIDADANIA: o Teatro do Oprimido
como estratégia ética, estética e política nos bairros da periferia de Belém” se buscará
articular as técnicas do Teatro do Oprimido com as propostas do Ponto de Memória da Terra
Firme a fim de se promover, dialogicamente com a comunidade da Terra Firme, a
possibilidade dela dizer o seu passado, reconhecer-se coletivamente, lutar pelo seu presente,
projetando-se um futuro mais digno de ser vivido.
Referências bibliográficas
ABREU, Regina. Tal Antropologia, qual museu?. In: ABREU, R.; CHAGAS, M. S.;
SANTOS, M. S. (Org.). Museus, Coleções e Patrimônios: narrativas polifônicas. Rio de
Janeiro: Garamond, 2007. p. 138-178.
BOAL, Augusto. Jogos para atores e não atores. São Paulo: Cosac Naify, 2015.
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Brasileira, 1991.
CANDA, Cilene Nascimento. Paulo freire e Augusto Boal: diálogos entre educação e teatro
Holos, [S.l.], v. 4, p. 188-198, set. 2012.
CARVALHO, José Murilo de. 2005 (2001). Cidadania no Brasil – o longo caminho. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira.
COELHO, Teixeira. Dicionário crítico de política cultural: cultura e imaginário. São Paulo,
FAPESP; Iluminuras, 1997.
LARA FILHO, Durval. Museu: de espelho do mundo a espaço relacional. 2006. 139 p.
Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação – Escola de
Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, 2006.
PENTEADO, Antônio Rocha. Estudo de Geografia Urbana. (Coleção Amazônia, Série José
Veríssimo). Belém: UFPA,1968.
662
ROSENFELD, Anatol. Brecht e o teatro épico. São Paulo: Perspectiva, 2012.
SUANO, Marlene. O Que é Museu. (Coleção Primeiros Passos). São Paulo: Brasiliense,
1986.
663
NARRATIVAS E MEMÓRIAS: CONSTITUINDO TERRITÓRIOS E
IDENTIDADES
Resumo: O presente estudo tem como objetivo analisar a trajetória do “Ponto de Memória Museu do
Taquaril”, localizado na cidade de Belo Horizonte, como um processo de intervenção social. A
proposta desse lugar de memória é contar a história do bairro a partir da trajetória de vida de seus
moradores, estreitamente vinculada à luta pela moradia e pelo território. Destaca, de que modo, a
relação entre os conceitos de identidade e território podem contribuir para a prática de intervenção
social resultando em processos de desenvolvimento local. Tendo como eixo metodológico a prática da
pesquisa qualitativa realizou-se levantamento bibliográfico, visitas, observação, entrevista com
moradores e lideranças locais. Verificou-se que os moradores privilegiam um modo de intervenção que
valoriza os aspectos políticos e culturais locais. Destaca-se, nesta perspectiva, o fortalecimento dos
laços indenitários, sejam eles de caráter material e imaterial, na manutenção de vínculos de
sociabilidade com o espaço/território. Governança local e participação social tornam-se, neste sentido,
atributos do desenvolvimento territorial local.
Palavras-chave: Museologia social; Intervenção Social; Território; Identidade; Bairro Taquaril.
Abstract: The present study aims to analyze the trajectory of the "Memory Point Taquaril Museum",
as a process of social intervention, in the city of Belo Horizonte,. The proposal of this memory point is
to tell the history of the neighborhood by life trajectory of its residents, closely linked to the struggle
for housing and territory. It highlights, in what way, the relationship between the concepts of identity
and territory can contribute to the practice of social intervention because of local development. The
methodology of the research is qualitative and was carried out by bibliographical survey, visits,
observation, and interview with residents and local leaders. It was verified that the residents choose a
mode of intervention that values local political and cultural aspects. In this perspective, it is important
to strengthen the bonds of identity within its material and immaterial nature, in the maintenance of
bonds of sociability with the space/territory. Local governance and social participation become, in this
sense, attributes of local territorial development.
Key-words: Social Museology. Social Intervention. Territory. Identity. Taquaril Neighborhood.
664
Bairro Taquaril: narrativas de um território
Com origem na década de 1980 o bairro Taquaril localiza-se na região leste de Belo
Horizonte, situado á cerda de seis quilômetros do centro comercial da cidade. De acordo com
registros e relatos de moradores locais o bairro surge com a repartição territorial da fazenda
Taquaril, existente na região á época, para atender demanda por moradia de um grupo de
“sem casa” que viva nas mediações. Seu processo de ocupação foi organizado politicamente
por lideranças do Centro de Ação Comunitária do Alto Vera Cruz, bairro circunvizinho. Com
a autorização da prefeitura, após várias ações de reivindicação na luta pró-moradia, os
próprios moradores iniciaram a construção das casas e soergueram o bairro.
Cerca de 30 anos depois de seu início, com mais de 11.210 domicílios particulares e
aproximadamente 30.204 habitantes (IBGE, 2010), o bairro é marcado pela coexistência de
diversas realidades sociais. Entre áreas planejadas e urbanizadas com infraestrutura básica de
saneamento, transporte e áreas precárias em estruturas urbanas. Seu adensamento é marcado
pela divisão e ocupação perene de lotes irregulares. Áreas de risco geológico, de acentuado
declive, e de preservação ambiental são constantemente ocupadas por moradias precárias.
Para fins deste estudo, assume-se a perspectiva conceitual de Hall (2011) e, aborda-se
a identidade como um processo contínuo e multifacetário, um construto social fragmentado e
74
Vulnerabilidade social é um resultado negativo da relação entre a disponibilidade dos recursos materiais ou
simbólicos dos atores, sejam eles indivíduos ou grupos, e o acesso à estrutura de oportunidades sociais,
econômicas e culturais que provêm do Estado, do mercado e da sociedade. Inclui situações de pobreza, mas não
se limita a ela. (CASTRO; ABRAMOVAY, 2004, p.05)
665
descentralizado que, por meio dos muitos discursos da vida, as pessoas vão construindo à
medida que se posicionam no mundo. Neste sentido a narrativa tem destaque como uma
prática social que permite a elaboração de experiências pessoais e coletivas, através de
diferentes interações em diversos espaços sociais. (BRUNER, 2002)
Sobre essa relação em contextos sociais urbanos, numa ótica analítica, Costa (2002)
assinala ser possível perceber duas formas de atribuição de sentido à identidade cultural de
um bairro. Uma delas advinda do exterior, em especial, instituições como a mídia, a qual
apresenta usualmente concepções reificantes, ou seja, redutoras. Já a outra produzida,
sobretudo, no interior do bairro, moldada a partir das experiências de vida do cotidiano local.
Ou seja, essa segunda forma de pensar a identidade do bairro:
A perspectiva proposta por Costa (2002) permite abordar território como apresentado
por Corrêa (1997) referenciado, implicitamente à noção de limite, o qual mesmo não estando
traçado, como em geral ocorre, exprime a relação que um grupo mantém com determinado
recorte espacial. O citado autor assinala existir, ainda, para além de uma vinculação do
conceito ao escopo das relações incorporando a questão dos fatos humanos, a dimensão do
espaço e acrescenta que outros temas como territorialidade e espacialidade são
imprescindíveis a uma compreensão global do conceito.
Nas entrevistas realizadas com moradores locais foi possível identificar que as
lideranças, desde a origem do bairro, se empenharam no estabelecimento de um processo de
constituição de identidade refletido nos princípios acima descritos. Evidenciam em suas
666
narrativas a territorialidade, o espaço das relações, dos sentidos, do sentimento de pertença e,
portanto, da cultura (SPOSITO, 2004). De tal modo, o espaço físico apropriado pelos sujeitos,
a partir de uma combinação entre ideologia, sentidos e práticas sociais, adquire uma
territorialidade que segundo HOLZER (1997) é um conjunto de lugares hierárquicos,
conectados por uma rede de itinerários, considerado de espaço-território onde os grupos e as
etnias vivem certa ligação, um enraizamento.
Uma das forças originárias na construção do bairro destacada pelas lideranças é a ação
das mulheres que se dedicaram a trabalhar o íngreme terreno, erguer as casas e liderar a
organização política na constituição das primeiras associações. Outra força foi a organização
dos jovens em torno de projetos e ações culturais, difundindo linguagens e estética próprias
através do RAP, de documentários, eventos e shows. Processos remorados e difundidos, pelo
667
Ponto de Memória Museu do Taquaril, não apenas como reconstituição do passado, mas no
delineamento do presente reconfigurando significados e valores. (GOFF, 2003).
668
que essa “passagem” sempre acontece no campo das relações.
(RAFFESTIN, 1993,p.143).
É no âmbito das relações que a memória é assumida pelos moradores como um campo
aberto, em constante disputa. A “memória coletiva como fenômeno construído consciente ou
inconsciente, como resultado do trabalho individual ou social, um trabalho sobre o tempo,
mas sobre o tempo vivido, conotado pela cultura e pelo indivíduo” (ECLEIA BOSI, 2003; p.
53) é assumida como ação política. As lideranças locais a têm como um elemento articulador
das ações do museu. Neste contexto, coloca-se em discussão o papel dos museus comunitários
como possibilidade de ação social transformadora implicada, entre outros, com aspectos como
a formação política, a ressignificação de territórios e comunidades por seus moradores
engajados no processo de forjar suas próprias narrativas.
669
geral. Estamos entrando na era da economia do conhecimento, e a cultura, passa a ser um dos
articuladores de novas identidades locais. (DOWBOR, 2011).
Referências bibliográficas
BAVA. Desenvolvimento Local: uma alternativa para a crise social? Revista São Paulo em
Perspectiva. São Paulo-SP, Fund. SEADE, v. 10, n. 03, jul-set, 1996.
BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. São Paulo: Ateliê,
2003. P.53.
BRUNER, Jerome. Making storie: law, literature, life. Cambridge: Harvard University
Press, 2002.
670
HAESBAERT, Rogério. Des-caminhos e perspectivas do território. In: RIBAS, Alexandre D.;
SPOSITO, Eliseu Savério; SAQUET, Marcos Aurélio. Território e desenvolvimento:
diferentes abordagens. Francisco Beltrão: Unioeste. 2004.
MOITA LOPES, Luiz Paulo. Práticas narrativas como espaço de construção de identidades
sociais: uma abordagem socioconstrucuionista. IN: RIBEIRO, Branca Telles; LIMA, Cristina
Costa; DANTAS, Maria Tereza Lopes (orgs.). Narrativa, Identidade e Clínica. Rio de
Janeiro: Edições IPUB, 2001.
RAFFESTIN, C. Por uma geografia do poder. São Paulo: editora Ática, 1993.
671
Conservação de bens
culturais móveis
672
A DOCUMENTAÇÃO COMO FERRAMENTA DE CONSERVAÇÃO: OS
ORNAMENTOS DE FERRO DA WALTER MACFARLANE’S EM BELÉM
Resumo: Com o impulso da primeira Revolução Industrial (metade do século XVIII), novos produtos
advindos das fábricas foram lançados no mercado europeu e, mais adiante, em outros demais
mercados pelo mundo. No caso da construção civil, quando se passou a perceber que sua utilização era
mais prática e até mesmo econômica, o ferro começou a ter uma significativa importância; edifícios e
ornamentos passaram a ser feitos de ferro e, para além de sua função, eles tinham também quer ser
belos, completando a decoração da edificação. Haviam fábricas famosas por seus modelos e
qualidades na produção de tais peças, como a Walter MacFarlane's, de Glasgow, que através da venda
de seus produtos em catálogos, exportou, entre o final do século XIX e início do XX, uma quantidade
considerável de edifícios inteiros e ornamentos para cidades do mundo, incluindo cidades brasileiras
que hoje detém um acervo em ferro importante. Belém, capital do estado do Pará, é uma destas
cidades que possui parte deste acervo e, nas construções mais antigas, há peças fabricadas pela
MacFarlane's; parte destas peças são as calhas, objetos de estudo deste trabalho, e que estão
distribuídas em edificações localizadas nos bairros mais antigos e históricos da cidade, onde foram os
primeiros a receberem edifícios modernos no início do século XX, no auge da Belle Époque. Passado
um pouco mais de um século após a vinda destas peças, o estado atual delas não é positivo, onde
muitas delas apresentam danos em sua estrutura, levando à descontinuidade do uso das mesmas. Sendo
assim, o objetivo desta pesquisa, partindo do estudo do histórico de importação e de observações in
loco das calhas, é demonstrar a importância dessas peças e como as ações do tempo e homens estão
destruindo um acervo rico e histórico.
673
Abstract: With the rise of the first Industrial Revolution (half of the eighteenth century), new products
from the factories were launched in the European market and, later, in other markets around the world.
In the case of civil construction, when it was realized that its use was more practical and even
economic, the iron began to have a significant importance; Buildings and ornaments were made of
iron and, besides its function, they had also wanted to be beautiful, completing the decoration of the
building. There were factories famous for their models and qualities in the production of such pieces,
like Walter MacFarlane's of Glasgow, who through the sale of its products in catalogs, exported,
between the end of the nineteenth century and the beginning of a considerable amount of whole
buildings and ornaments for cities in the world, including brazilian cities that today hold a significant
iron heritage. Belém, capital of Pará, is one of these cities that has part of this collection and, in the
oldest buildings, there are pieces manufactured by MacFarlane's; Part of these pieces are the rainwater
heads and railings, objects of study of this work, and are distributed in buildings located in the oldest
and historic districts of the city, where they were the first to receive modern buildings in the early
twentieth century at the height of Belle Époque. A little more than a century after the coming of these
pieces, their current state is not positive, where many of them present damages in its structure, leading
to the discontinuity of their use. Therefore, the objective of this research, starting with the study of
import history and in loco observations of the iron rails, is to demonstrate the importance of these
pieces and how the actions of time and men are destroying a rich and historical collection.
674
Introdução
675
sua estética, mas principalmente por sua funcionalidade, a de conduzir as águas das chuvas
dos prédios até o meio fio. As calhas eram indispensáveis nas casas, uma vez que a cidade
passava pelo processo de urbanização proposto por Antônio Lemos, que buscava alcançar
padrões europeus de modernidade através de obras de renovação estética e higienista na
cidade (BARRA, 2013).
676
informações sobre a importação de produtos de ferro para a cidade de Belém, através de
jornais da época, no intervalo temporal de 1885 a 1915.
Os levantamentos realizados servem como base para estudos sobre patrimônio urbano
e musealização destes espaços, uma vez que, por conta dos danos documentados, há a
descontinuidade de uso dos mesmos, descaracterizando as fachadas. A conservação das calhas
de ferro é importante, uma vez que, além de serem importantes testemunhos da história da
cidade, podem ser utilizados como ferramentas de reflexão e estudo sobre o desenvolvimento
dos bairros.
Observou-se que alguns destes materiais não somente serviriam à fábricas, mas
também poderiam servir em acabamentos e até mesmo em construções inteiras, porque uma
das características marcantes deste período de foi uma adaptação da construção aos processos
677
industriais, tornando a arquitetura um produto mais consumível com a sua venda através de
catálogos (DERENJI, 1993).
Um destes materiais, dos mais fabricados e usados, foi o ferro. Não seria à toa chama-
lo de símbolo desta revolução que tomava conta da sociedade, já que:
Assim o ferro passou a ser um material importante em grande parte do que era
fabricado, incluindo para peças de construção e de ornamentos. Algumas destas fábricas
estavam localizadas na Inglaterra, principal exportadora do ferro, mas outras também de igual
importância começaram a surgir na França, Alemanha e Bélgica.
O foco inicial dos empresários era o mercado europeu, contudo com o passar do tempo
a exportação passou a ser considerada pelas fábricas e colocada em prática, pois, o seu
mercado já não mais consumia seus produtos no mesmo ritmo em que eles eram produzidos.
Foi este um dos motivos que levou os fabricantes a verem seus produtos serem comprados e
levados para algumas colônias africanas e para o outro lado do atlântico como, por exemplo,
para o Brasil (BARRA, 2003), caracterizando assim as primeiras levas de produtos de ferro
para várias capitais brasileiras que, ainda no século XIX estava sob o poder de um imperador
e não possuía fábricas tal como se tinha no velho mundo.
678
um segundo fator, para além do interesse dos fabricantes em exportar para outros países, pois
a cidade estava entrando na sua famosa Belle Époque. A borracha, que à época das primeiras
importações estava começando a ser produzida na floresta e vendida para os países em
ascensão, trouxe para Belém uma época de prosperidade e crescimento.
A urbanização pela qual a cidade passou ocorreu de forma acelerada para atender a
uma sociedade que ansiava por querer estar em ambientes que pelo menos imitassem os ares
europeus e claro que não foi fácil, mas o trabalho feito pela intendência da época, com
comando de Antônio Lemos, ajudou a formar uma verdadeira “Paris na América” ao gosto
dos mais abastados da sociedade belenense. Foi por causa desta urbanização que se obteve
não somente a entrada de produtos perecíveis e objetos do dia-a-dia, mas também houve um
acréscimo de maquinas e de materiais para construções de edifícios e de ornamentos em ferro.
O pedido dos produtos era feito baseado no que se apresentava nos catálogos ou,
ainda, no que se apresentava nos anúncios de jornais. Os catálogos eram revistas
especializadas em mostrar todos os produtos que a fábrica tinha a disposição e cada peça era
vista com riqueza de detalhes; nos anúncios, como cada loja apenas dispunha de uma parcela
da folha de jornal para anunciar seus produtos importados o que apenas acabava-se por se ter
era: o nome da loja que estava revendendo as peças, a utilização (para calhas, para banheiros,
para maquinários, etc.) e o material (ferro, chumbo, etc.) das mesmas, isto tudo emoldurado
por letras que enfeitavam o nome da loja e alguns, que podiam pagar mais, enfeitavam com
ilustrações bem feitas. Estes anúncios costumavam ficar, dentre outras várias propagandas, na
página três ou quatro, dependendo do número de folhas que o jornal dispunha para as
mesmas.
Estes catálogos e revistas, entretanto, apenas nos dão uma pequena dimensão do que
era importado. Para compreender o quanto esta atividade foi forte durante esta época, com um
número alto de peças advindas da Europa, é preciso ir além dos anúncios. É na sessão que
679
fornecia, naquela época, a lista de entrada e saída dos produtos da cidade que iremos ter uma
real ideia do número de importação de produtos de todos os tipos, incluindo as peças de ferro.
Cada jornal, não incluindo todos os que circulavam em Belém, tinha em suas as
edições uma sessão reservada para deixar informados seus leitores o que estava entrando e
saindo dos portos da cidade. Em alguns jornais do final do século XIX, como por exemplo no
Diário de Belém (Figura 1), esta sessão tinha o nome de Importação, ficava logo na primeira
página e mostrava detalhadamente em qual embarcação e de onde haviam chegados
determinados produtos. Já em outros, ainda do mesmo período citado anteriormente, como no
jornal O Democrata, a sessão responsável por estas informações era a Comercial –
Manifestos, terceira página, seguindo a mesma ordem do primeiro exemplo: nome da
embarcação, local de saída e os produtos que havia sido encarregado de trazer.
Figura 1. Trecho da Sessão Importação com a carga advindo de Liverpool no ano de 1886;
é possível ver “ferragens” entre os produtos.
680
Estas listas com o nome dos locais de saída das embarcações incluem desde
municípios próximos a Belém, outras demais capitais brasileiras e chega até as principais
cidades importadoras: Cidade do Porto (ou por vezes apenas titulado Portugal), Nova York,
Havre, Hamburgo e Liverpool. É por estes principais portos correspondentes a Portugal,
Estados Unidos, França, Alemanha e Inglaterra que chegava os produtos do velho e novo
mundo tão almejados pelos mais ricos. Os produtos de ferro são sempre encontrados em sua
grande maioria nas listas de Hamburgo e Liverpool, cidades portuárias dos países que mais
importavam ferro naquele período. Os produtos em ferro podem ser encontrados sob os
seguintes nomes nas listas: “ferro”, “ferragens”, “ferramentas”, “peças de ferro”, etc., seguido
as vezes pelo nome do comprador ou somente pela quantidade que foi importada.
Mesmo que ainda haja uma atividade portuária ativa, hoje esta sessão caiu em desuso,
mas entre o final do século XVIII e na primeira metade do século XX era de suma
importância repassar tal informação, pois era assim que muitas das vezes um comprador
poderia saber se sua carga finalmente havia chegado a cidade, ou ainda o público, os futuros
compradores em potencial, saberiam quais novidades haviam chegando em Belém.
Derenji (1993), fala como todas estas mudanças pela qual a cidade estava passando se
apoio na importação de produtos que foram de suma importância para o crescimento de
Belém, já que mudança na virada do século XVIII para o XIX significava o uso de produtos
industrializados. E que “dentro dessa ótica, o ferro obteve grande destaque pela facilidade e
variantes de emprego na construção. As vantagens na importação tornavam até mesmo o seu
preço competitivo” (DERENJI, 1993, p.160) já que era mais fácil conseguir importar algo
vindo da Europa do que comprar um produto de uma cidade mais próxima.
681
ornamentos de ferro do Brasil (COSTA, 2001). Em sua grande maioria, estas peças são de
origem da fábrica Walter MacFarlane’s, uma das mais importantes no ramo de fabricação em
ferro.
Edifícios pré-fabricados inteiros poderiam ser exportados para outros países europeus
menos industrializados e também para as colônias. No Brasil existem vários exemplos:
682
Fragmentos de sonho ou produtos arquitetônicos industriais, foram
fabricados e enviados ao Brasil pela Saracen Foundry de Walter
MacFarlane’s & Co. alguns dos exemplos mais expressivos de edifícios de
ferro que ainda se encontram em uso no país, como os pavilhões do pátio do
Mercado da Carne, em Belém; o chamado pavilhão das Tartarugas, os dois
pavilhões laterais e os pequenos café e botequim do Mercado de Manaus; o
Teatro José de Alencar, em Fortaleza; a ornamentação da Estação da Luz em
São Paulo, assim como a de todas as estações da antiga São Paulo Railway;
peças como o peculiar relógio e os postes da Praça do Relógio de Belém; as
grades e o pavilhão de entrada do cemitério de Manaus; as grades do Açude
do Cedro, em Quixadá, no Ceará; Coretos como o da Praça da Abolição em
Olinda; mictórios, fontes, bebedouros, calhas, parapeitos, varandas e demais
acabamentos de obras que escaparam às demolições. (COSTA, 1994, p.16)
683
O ferro fundido prestava-se tão bem aos propósitos ornamentais que, de fato,
o ornamento passou a ser um fim em si mesmo. (SILVA, 1986, p. 27)
684
fascinação que advinha mais da beleza dos desenhos, da finura das gravações e, sobretudo, da
imensa variedade de objetos oferecidos do que das informações precisas que forneciam
quanto às dimensões e custos” (COSTA, 1994, p. 66).
Em países tropicais como o Brasil os componentes em ferro foram o que havia de mais
variado e em maior quantidade para caracterizar a arquitetura no século XIX. Esses
elementos, em geral extremamente ornamentados, significavam também a adesão ao
progresso da técnica. No entanto, os produtos industriais que eram consumidos e facilmente
aceitos no mercado brasileiro demonstravam o sistema de dominâncias cultural e econômica
europeia.
685
contingente populacional que só aumentava. Do mesmo modo, Belém enfrentava problemas
como frequentes epidemias advindas da concentração populacional associada a falta de
saneamento básico.
Desde então, a preocupação com a aquisição de artigos para equipar as moradias para
a canalização das águas ficou evidente. De acordo com a moda da época, eram escolhidos
objetos cada vez mais refinados para tal fim, como por exemplo as calhas ornamentadas que
tinham a função de coletar e transferir águas escoadas dos telhados.
A sexta edição do Catálogo da fábrica McFarlane’s & Co, contempla três volumes
com peças de ferro, como ornamentos arquitetônicos, peças sanitárias e equipamentos
urbanos. No Volume I (ver figura 3) existem cerca de seiscentos e cinquenta produtos
somente na seção de “Calhas”. Dentre Cabeças ornamentadas, condutores verticais e peças de
acabamento como braçadeiras e parafusos, pode-se encontrar também modelos de meio
686
círculo, círculos completos ou retangulares presos a parede. Ao final das seções eram
apresentadas várias possibilidades de modelos da montagem final das peças ornamentadas.
Em suma, os ornamentos eram o que enriquecia o estilo eclético na busca pelo apelo
da visualidade europeia nas construções. Assim, pode-se encontrar nos delineamentos das
calhas, diferentes padrões elaborados, que harmonizavam estilos e revivals que acabavam se
tornando obsoletos na Europa, mas bastante duráveis em países mais distantes. Nos catálogos,
a decoração das peças com ornatos, aparentavam inspirações francesas do barroco, rococó e
Art-nouveau. Também não faltavam referências ao gótico, renascimento e a estilística
vitoriana.
687
As Calhas MacFarlane’s nos dias atuais:
Nos bairros do centro histórico da Cidade Velha e Campina foram documentadas 168
calhas de ferro da Walter MacFarlane’s, número maior do que nos bairros adjacentes, Reduto
e Nazaré, onde foram documentadas 137 calhas nos dois bairros. O maior número destes itens
nos bairros do centro histórico se dá principalmente pela Lei Municipal 7709/94, que trata da
preservação e proteção do patrimônio histórico de Belém, que proíbe a alteração da fachada
dos prédios do centro histórico da cidade.
688
outros. Estes fatores contribuem diretamente para a degradação das ligas metálicas que
compõem as calhas históricas (PALÁCIOS, 2011). A exposição direta a estes fatores acarreta
na corrosão do metal e, consequentemente, em danos irreversíveis à estrutura das calhas.
689
Figura 4: Detalhe de uma braçadeira MacFarlane’s apresentando sinais de corrosão e destacamento da tinta.
Considerações Finais
690
As calhas de ferro MacFarlane’s ainda estão presentes em grandes bairros da cidade de
Belém, principalmente nos bairros do centro histórico. É possível encontrá-las em fachadas de
casarões residenciais, comerciais e até mesmo em galpões, cada uma com seu estilo e
modelos característicos da empresa MacFarlane’s.
Apesar de suas características estéticas ainda estarem intactas na maioria dos casos,
algumas peças apresentaram danos, como a corrosão da liga metálica, destacamento da
camada de tinta, manchas de sujidade, lacunas na estrutura da peça e outros. A falta de
cuidado e manutenção adequada destes danos é, possivelmente, o motivo da descontinuidade
do uso de algumas calhas, com a remoção completa ou parcial das calhas.
691
Referências Bibliográficas
ALMEIDA, Conceição Maria Rocha de. As águas e a Cidade de Belém do Pará: história,
natureza e cultura material no século XIX. São Paulo: Tese (Doutorado), Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, Programa de Pós-Graduação em História, 2010.
COSTA, Cacilda Teixeira da. O Sonho e a Técnica: a arquitetura de ferro no Brasil. São
Paulo: Ed. Universidade de São Paulo, 1994.
FABRIS, Annateresa (Org). Ecletismo na Arquitetura Brasileira. São Paulo: Nobel; Ed.
Universidade de São Paulo: 1987.
692
SILVA, Geraldo Gomes da. Arquitetura do Ferro no Brasil. São Paulo: Nobel, 1986.
693
AÇÃO DA LUZ NA PLUMÁRIA:A COR E OS EFEITOS FOTOQUÍMICOS
Bianca Vincente*
Resumo: A pena é matéria prima presente em diversas tipologias de acervos museológicos desde os
Etnográficos e de Artes aos de História Natural. Este material é um tegumento das aves que tem
colorações diversas formadas por dois processos que existem em conjunto, o estrutural e a presença de
corantes. Entretanto, a radiação presente na luz, através de efeitos fotoquímicos, pode causar o
desvanecimento da cor e a fragilização das penas. Sendo assim, destaca-se as peculiaridades da pena,
bem como a necessidade dos profissionais de museus conhecerem os acervos e suas fragilidades, ainda
mais considerando a especificidade dos acervos brasileiros e dos estudos incipientes acerca da
preservação de objetos compostos por penas no Brasil.
Abstract: The feather is a raw material presente in several typologies of museum collections from the
Ethnographic and the Arts to the Natural History. This material is a bird tegument that has several
colorations formed by two processes that exists together, the structural and the presence of colorants.
However, the radiation present at the light, through photochemical effects, can cause the color fading
and the embrittlement of the feathers. Therefore, the peculiarities of the feather, as well as the need of
the museum professionals to know the collections and their fragilities are highlighted, even more
considering the specificity of the Brazilian collections and the incipiente studies on the preservation of
objects composed by feathers in Brazil.
694
A pena, elemento obtido através de pássaros diversos, tem sido uma matéria prima
bastante utilizada para múltiplas finalidades ao longo da história. Seja com o uso em
utilitários, como em travesseiros, ferramenta para a escrita ou mesmo no vestuário como
enfeites de chapéus, armaduras e vestes cerimoniais, é possível encontrar a presença deste
material em diferentes aspectos da vida de variados grupos culturais. Apesar dessa
multiplicidade de usos e consequentemente a grande presença em diferentes tipologias de
acervos museológicos, como os ornitológicos, etnográficos, históricos e artísticos, ainda são
poucas as pesquisas na área da preservação deste tipo de material, em especial no Brasil.
695
Pena como matéria prima
Dentro dos museus as peças que são compostas por penas podem ser consideradas
como peças de risco, haja vista serem de grande fragilidade. As coleções que possuem são as
mais diversas pelo uso nas mais diversas esferas da vida humana. Durante toda a história
ocidental houve casos específicos acerca do uso de penas especialmente no vestuário. Há
registros desde a Antiguidade, onde romanos e gregos utilizavam penas de avestruz (Struthio
camelus), em trajes militares. Um fato muito conhecido foi o uso em escalas sem precedentes
de peles e penas de aves para a feitura de chapéus e leques que proliferou na indústria da
moda na Europa e na América durante o século XIX. Este uso exacerbado de pássaros foi
responsável por causar risco de extinção a diversas espécies de aves e posteriormente teve
como reação a mobilização de grupos que se reuniam em ações protetivas destes animais
(GRAEMER; KITE, 2006).
No Brasil o uso mais conhecido das penas é na arte plumária indígena proveniente de
várias etnias. As coleções de Etnografia de museus com acervos numerosos como o Museu
Nacional (RJ), o Museu Paraense Emílio Goeldi (PA), o Museu de Arqueologia e Etnologia
da USP (SP), o Museu do Índio (RJ), entre outros; reúnem significativas amostras da arte
plumária. Esta tipologia de peça geralmente tem a pena como matéria prima incorporada com
materiais como fibras, pelos, sementes, tecidos e outros que a partir das técnicas de
emplumação formam as peças plumárias. O próprio uso é muito variado, haja vista serem as
penas aplicadas a brinquedos, utensílios domésticos, adornos corporais de uso diário ou uso
cerimonial e mesmo aplicadas sobre o próprio corpo (NICOLA, DORTA, 1986). A plumária
indígena pode ser conceituada como:
696
tapiragem), largamente utilizadas para confeccionar adornos corporais.
(MOTTA, 2006, p.102)
697
Figura 1: Obra de arte contemporânea que faz uso de penas.
Fonte: http://obviousmag.org/archives/2010/03/esculturas_de_penas_como_fluxo_da_agua.html
Estes são apenas alguns exemplos que demonstram como a pena está presente em
diversos elementos da vida cotidiana e consequentemente inseridas nos mais diversos acervos
museológicos. Sendo assim, faz-se necessário que os profissionais de museu que trabalham
com a preservação, seja na área de conservação preventiva, conservação curativa ou restauro
desses acervos, estejam preparados para entender as demandas deste material e sejam
capacitados para tomarem as decisão que beneficiem o acervo. Portanto, o conhecimento
acerca da composição e estrutura, bem como das fragilidades deste material é essencial a sua
preservação.
As penas, utilizadas como matéria prima em todas estas funções, obras e acervos são
tegumentos complexos e bem estruturados das aves. Uma pena é composta basicamente 91%
de proteína que é a queratina, 8% de água e 1% de lipídios (BISHOP MUSEUM, 1996). No
698
tipo de pena conhecido como pena de contorno, é possível observar uma simetria bilateral e
tem aparência fusiforme. Como possível observar na figura 2 a estrutura da pena é composta
por uma haste central, tendo sua parte superior chamada de raque, e a parte inferior conhecida
como canhão ou cálamo. Esta raque é lateada por centenas de eixos menores chamados de
barbas, sobre as quais estão outros filamentos ainda menores chamados bárbulas. Nas
bárbulas é possível encontrar diminutos ganchos também chamados de barbicelas ou hámulos.
As bárbulas são quase invisíveis a olho nu, porém, ao entreabrir o segmento de barbas é
possível visualizar estas pequenas estruturas e perceber o efeito de Velcro causado pelas
barbicelas (PROCTOR; LYNCH, 1993).
A união das barbas é conhecida como vexilo que é composto por diferentes gradações
de aparência das barbas. Cada tipologia de pena irá apresentar características próprias em
relação à disposição do vexilo, nas penas de voo conhecidas como rêmiges, por exemplo, o
vexilo é assimétrico sendo seu lado externo estreito em relação ao lado interno para favorecer
a aerodinâmica. Entre as diferentes gradações que formam o vexilo nas penas de contorno
podemos observar três etapas, a mais próxima ao cálamo é mais macia e solta, podendo ser
chamada de porção plumácea, por ter aparência característica das plumas. A parte superior é
composta por uma área onde há maior interligação entre as barbas deixando um aspecto mais
denso, conhecida como porção penácea normal. Por fim, há o contorno externo da porção
penácea normal que é um pouco menos denso e sendo assim a porção penácea aberta
(PROCTOR; LYNCH, 1993).
699
Figura 2: Estrutura da pena
1
Técnica permite ao artífice obter uma pena de coloração diferente da originalmente apresentada pelo pássaro
através de uma descoloração artificial da plumagem feito através do arranque das penas, principalmente de
araras e papagaios sendo, posteriormente, passando no local ou fazendo os pássaros ingerirem substâncias de
700
As penas são diretamente relacionadas com a riqueza do colorido da plumária. Apesar
de não ser o único, a coloração das penas é muitas vezes um dos principais aspectos para a
manufatura das peças plumárias indíegnas, por exemplo, sendo explorada tanto por sua
estética quanto por seu significado.
Enxergamos as cores através da luz que é composta por todas as cores visíveis, mas ao
entrar em contato com as superfícies pode ter parte de suas frequências absorvidas, deixando
o restante ser refletido, sendo esta a parcela que nos é possível enxergar. Portanto, são os
processos e absorção e reflexão das ondas de luz que moldam as cores como vemos.
Entretanto, a forma como enxergamos pode se diferenciar por influência de diversos outros
fatores que vão desde os ângulos de visão e incidência da luz, forma e estrutura das
superfícies observadas e até mesmo a percepção.
Apesar de tal divisão ser feita de modo a facilitar o entendimento da formação da cor
nas penas, é importante destacar que ela se refere às predominâncias encontradas e não na
exclusividade de um modo de produção de cor. Portanto, as penas com coloração por corantes
também possuem influência da cor formada em sua estrutura, enquanto que as com
predominância de coloração estrutural geralmente estão associadas aos corantes. As únicas
penas que podem não ser consideradas uma mistura das duas formas são aquelas totalmente
brancas que consequentemente vem a ser apenas estruturais (RIEDLER et al. 2014).
origem vegetal ou animal, o que fazem com que a plumagem originalmente verde ou azul nasça de uma cor
amarela (DORTA, CURY, 2000).
701
A coloração das penas das aves é feita através do absorver e refletir da luz
diferentemente de acordo com os distintos corantes e suas abundâncias. As cores decorrentes
de corantes podem ser endógenas, que são metabolizados pelo organismo do animal, ou
exógenas, os quais são obtidos através da dieta alimentar (RIEDLER et al. 2014). Entre os
corantes exógenos podemos elencar os carotenoides, os quais estão entre os principais
corantes naturais, enquanto que entre os endógenos, podemos destacar a melatonina. É
possível conhecer melhor os corantes na tabela 1.
Outro corante é a melanina, um dos mais comuns nas penas. Diferente do carotenoide,
a melanina é um corante endógeno, ou seja, não depende de sua ingestão através da
alimentação. Este importante corante é responsável pela maioria das cores escuras como o
marrom, preto, castanho amarelado e alguns tons de marrom avermelhado que variam de
acordo com a quantidade, variedade e distribuição de melanina na pena. Diferentes tipos de
melaninas estão presentes em uma única pena, sendo que todas as penas melanizadas têm
grânulos tanto de eumelanina quanto de phaeomelanina e a proporção destes que irá
determinar a cor da estrutura. A melanina, além de contribuir para a coloração da pena
também auxilia na resistência da pena, fortalecendo sua estrutura, especialmente a eumelanina
(RIEDLER et al, 2014).
Além da melanina e dos carotenoides, que são os corantes mais conhecidos, há outros
como a porfirina e os psittacofulvins. Os psittacofulvins são corantes exclusivos da ordem dos
psitaciformes, que contém mais de 360 espécies das famílias Psittacidae, Strigopidae e
Cacatuidae, como os papagaios, cacatuas e araras. Estes corantes são responsáveis pela cor
702
vermelha, laranja e amarela, destas aves. São corantes endógenos, ao seja, não dependem da
alimentação do pássaro.
As porfirinas são responsáveis por diversas cores como rosa, marrom, vermelho e
verde. Existem duas classes de porfirinas nas penas, as naturais e as metaloporfirinas, sendo a
última diferente por conter ferro ou cobre, como por exemplo, alguns corantes presentes na
família do turacos como o turacin e o turacoverdin, responsáveis pelo vermelho e o verde,
respectivamente (RIEDLER, et al. 2014). As porfirinas geralmente são encontradas apenas
em novas penas, e é observada uma grande instabilidade fotoquímica nestes corantes, com
exceção do turacin que, é quimicamente estável.
703
Tabela 1: Corantes presentes nas penas e suas respectivas cores
Preto
Eumelanina Cinza
Marrom escuro
Melanina
Marrom claro
Amarelo opaco
Lutein (a
xanthophyll),
Amarelo brilhante
zeaxanthin, beta-
carotene
Carotenoides
Astaxanthin,
rhoxanthin, Vermelho brilhante
canthaxanthin
Turacoverdin Verde
Turacin Vermelho
Porfirinas
Marrom, marrom
Coproporfirina III
avermelhado
704
Fonte: Baseado em Proctor e Lynch (1993)
Por outro lado, a coloração estrutural, diferente da coloração com corantes, não é
obtida através da absorção de comprimentos de onda, mas de sua dispersão coerente ou
incoerente causada por questões estruturais da pena. A coloração estrutural também pode ser
subdivida em duas outras categorias a iridescente e a não iridescente, sendo classificada assim
por mudar ou não a cor em diferentes ângulos de visão ou iluminação (HUDON, 2005).
Algumas das cores e sua formação podem ser observadas na tabela 2. As cores não
iridescentes são produzidas na estrutura das barbas, e, não possuem uma estrutura altamente
organizada como no caso das iridescentes. Em geral, a coloração estrutural não iridescente
está associada aos corantes para gerar a tonalidade visível das penas.
705
corantes
Para entender a ação da luz nas peças de museus e neste caso em especial a pena, é
necessário conhecer alguns aspectos do espectro eletromagnético, haja vista que ao falarmos
da radiação como agente de degradação não é apenas se referindo a ação da luz visível, mas
também abarca outros níveis de radiação. Podemos classificar três principais faixas deste
espectro que são a radiação infravermelha (entre 100.000 nm e 700nm); a luz visível (entre
400nm e 700nm) e a radiação ultravioleta (entre 400nm e 10nm). Cada uma dessas faixas
afeta os bens materiais de uma forma específica de acordo com a interação com átomos e
moléculas que ocorre de acordo com as energias de radiação (SOUZA, 2008, p. 13). As
diferentes formas de radiação podem ser melhor observadas no espectro eletromagnético da
figura 3.
706
Figura 3: espectro eletromagnético
Quanto maior o comprimento de onda maior a energia da radiação e quanto maior essa
energia mais prejudicial é a radiação. A radiação ultravioleta pode ser vista como mais
prejudicial, assim como a radiação da luz visível, tudo dependendo dos níveis encontrados de
acordo com os comprimentos de onda. A radiação infravermelha, por outro lado, apesar de
não ser tão prejudicial diretamente sobre o objeto, causa o aumento de temperatura. A
presença de radiação UV afeta especialmente os materiais orgânicos e pode causar alterações
químicas e físicas (SOUZA, 2008). A medição do nível de UV na luz visível é calculada
através da medida de microwatts por lúmen (µW/lúmen), sendo que atualmente o nível
aceitável para bens patrimoniais é de 75 µW/lúmen (TEIXEIRA, GHIZONI, 2012).
707
madeira e gesso; aos mais frágeis, nos quais se enquadram objetos com plumas e penas, o
máximo indicado é de 50 lux (ALAMBERT et al. 1998)
Para entender a ação da luz sobre a cor das penas é preciso entender a formação de cor
na pena, que, conforme anteriormente explicado, é através de corantes e pela conformação
estrutural de nanoestruturas das penas. A principal forma ação da radiação sobre a cor é
através da energia contida nas ondas de luz que atinge as penas e começa a quebrar suas
ligações moleculares. Essa quebra resulta em desbotamento da cor ou alterações visuais do
objeto, e dependendo do elemento presente na pena pode ocorrer através das reações de
oxidação e isomerização. Estas são, por exemplo, as principais formas de degradação do
carotenoide, haja vista estes processos causar danos ao carotenoide e com isso podem levar a
mudanças na coloração das penas (RIEDLER et al. 2014).
Demostrando como as marcas da ação da luz se mantém nas peças de plumária um dos
testes utilizados no estudo desenvolvido pela University of California, Los Angeles (UCLA) e
o Getty Conservation Institute (GCI), utilizou o teste de fluorescência visível induzida por
UV2. Técnica utilizada em diversos tipos de materiais desde ossos, têxteis e pinturas, este
2
Conforme explicado com o espectro eletro magnético, a radiação ultravioleta não é visível a olho nu,
entretanto, quando é emitido por uma lâmpada de ultravioleta para a superfície de um objeto pode algumas vezes
se transformar em cores visíveis e são estas cores conhecidas como a fluorescência visível induzida por
ultravioleta e apesar dos danos já apontados pela ação da radiação de ultravioleta este teste não é considerado
708
teste, unido a outros exames, permite que se obtenha informações sobre identificação de
material e sobre as condições em que se encontra o artefato (CONSERVE O GRAM, 2000).
No estudo de UCLA/GCI foi possível constatar que a técnica, ao ser utilizada na plumária,
auxiliou na identificação de certos mecanismos de formação das cores nas penas e além disso
foi capaz de destacar evidências de danos causados por efeitos fotoquímicos.
Logo, é possível perceber que este desvanecimento da cor por exposição à luz é o dano
mais evidente, isso porque visualmente percebido, porém já está agindo sobre o objeto mesmo
antes de sua visualização a olho nu. Sendo que tais danos são graduais e irreversíveis, pois
como, explicitado anteriormente, os efeitos da luz sobre as superfícies são culmulativos.
Entretanto, como demosntrado na pesquisa supracitada a luz também pode causar outros tipos
de avarias como a fragilização das penas por danificar a queratina. Normalmente a primeira
indicação deste tipo de dano é o desprendimento de pequenos pedaços das barbas que se
quebram (BISHOP MUSEUM, 1996).
como destrutivo haja vista a quantidade absorvida pela peça durante o teste ser mínima (CONSERVE O GRAM,
2000).
709
Considerando que são acervos museológicos, a solução não é guardar as peças sem
nenhum acesso a iluminação, haja vista ser algo possível e indicado para objetos em reservas
técnicas, porém inviável em caso de exposição. Algumas medidas práticas são indicadas em
manuais de conservação preventiva como Teixeira e Ghizoni (2012) e Costa (2006). Entre as
principais medidas presentes em ambos casos podemos elencar o uso de filtros contra UV em
lâmpadas fluorescentes; evitar expor os objetos diretamente sob os raios solares podendo
fazer uso de cortinas e persianas; manter as luzes apagadas quando não houve visitação;
lâmpadas incandescentes devem ficar longe do acervo.
Referências Bibliográficas
ALAMBERT, Clara Correia d’; MONTEIRO, Marina Garrido; FERREIRA, Silvia Regina.
Conservação: Postura e Procedimentos. São Paulo: Secretaria de Estado de Cultura, 1998.
BISHOP MUSEUM. The care of Feathers. USA, 1996.
710
CONSERVE O GRAM. The Use Of Ultraviolet Induced Visible-Fluorescence In The
Examination Of Museum Objects, Part I. N 1/9. National Park Service. Dezembro, 2000.
DEVJACQUE, Dan. Kate MaccGwire – Esculturas de penas. Obvious. 2010. Disponível em:
<http://obviousmag.org/archives/2010/03/esculturas_de_penas_como_fluxo_da_agua.html>
Acesso em 26 de Ago de 2017.
GRAEMER, Rudi; KITE, Marion. The tanning, dressing and conservation of exotic, aquatic
and feathered skins. In: KITE, Marion; THOMSON, Roy. Conservation of leather and
related materials. Butterworth-Heinemann: Oxford, 2006.
MOTTA, Dilza Fonseca da. Tesauro de cultura material dos índios no Brasil. Rio de
Janeiro: Museu do Índio, 2006.
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Ciência Aplicada, Técnicas de Pesquisa e Levantamento. 2010. Disponível em:
<http://www.ib.usp.br/~lfsilveira/pdf/l_2010_coleta.pdf> Acesso em 26 de ago de 2017.
PROCTOR, Noble S.; LYNCH, Patrick J. Manual of ornithology: avian structure &function.
New Haven and London: Yale University, 1993.
SOUZA, Luiz Antônio Cruz. Conservação preventiva: controle ambiental. Belo Horizonte:
LACICOR-EBA-UFMG, 2008. (Tópicos em conservação preventiva; 5)
VOITKEVICH, A. A. The feathers and plumage of birds. New York: October House Inc.,
1966.
712
CRITÉRIOS E PROCEDIMENTOS DE HIGIENIZAÇÃO E MARCAÇÃO NAS
COLEÇÕES ARQUEOLÓGICAS DO LEPA/UFSM (2012-2016)
Abstract: This article presents the criteria and procedures related to hygiene and to mark of objects in
the collection of the Laboratório de Estudos e Pesquisas Arqueológicas da Universidade de Santa
Maria between 2012 and 2016, based on theoretical studies and experiences which had been done by
institution’s technicians and researchers.
713
Os objetos são testemunhos que preservam intrinsecamente informações que, de outra
maneira, não teríamos acesso. Através deles é possível adquirir referências históricas e
culturais e familiaridade com contextos que permitem compreender melhor a memória
preservada de grupos e sociedades que hoje não existem mais.
É importante frisar que o objeto precisa de cuidados ainda maiores para manter seu
estado de conservação no seu tempo de vida depois da entrada instituição, não apenas para a
714
realização de futuras pesquisas, mas também como fonte de memória, levando em conta que
“é necessário refletir sobre o fato de que o patrimônio cultural é não renovável e que as
gerações futuras têm o direito de conhecê-lo.” (CÂNDIDO, 2004, p. 22).
Dessa forma, é importante estabelecer, a partir do estudo dos materiais que compõem
os objetos, os procedimentos mais adequados para realizar a conservação preventiva,
considerando que
(...) enfoca todas as medidas que devem ser tomadas para se aumentar a vida
útil do objeto ou retardar seu envelhecimento. Para isto, deve-se, em
primeiro lugar, conhecer a estrutura física da peça, ou seja, a matéria e a
técnica empregadas na sua confecção, as quais, conjuntamente, irão definir
procedimentos básicos de conservação. (DRUMOND, 2002, p.108).
715
Na figura abaixo, observa-se um exemplar lítico do acervo do Laboratório
contaminado por fungos. Devido à inviabilidade financeira da instituição em adquirir
desumidificador e outros mecanismos que atenuassem os problemas causados, principalmente
pela umidade relativa alta que se apresenta no ambiente, optou-se por organizar o espaço de
maneira que as peças ocupassem partes do ambiente com menor umidade e afastados de
paredes e proceder a manutenção periódica da limpeza dos espaços onde as peças estavam
acondicionadas.
716
A Figura 2 apresenta um fragmento cerâmico em que foi detectado o ataque de insetos
a partir do monitoramento periódico do aparecimento de novos orifícios e micro-orifício nos
objetos.
Figura 2: Cerâmica atacada por fungos e com presença de micro-oríficios. Acervo LEPA.
717
No entanto, cada material possui necessidades diferentes quanto a realização de
limpeza, e estes devem ser adotados após análise não apenas da composição dos objetos, mas
também do estado de conservação do artefato.
Embora existam hoje técnicas mais avançadas de higienização, as mais usuais ainda
são: a limpeza física e a química. Cada peça deve ser avaliada individualmente para
verificação de qual(is) procedimento(s) deve(m) ser empregado(s).
O lítico, em geral, tem uma boa resistência aos procedimentos de limpeza física, por
isso, utilizou-se água e uma escova de roupa de cerdas macias. No caso de ataque de fungos,
os pesquisadores do LEPA têm utilizado com sucesso uma escova de dente com cerdas
macias umedecida com álcool a 96%.
718
objeto optou-se pelo uso da micro-retífica, Figura 4. Esse instrumento é semelhante à
miniberbequim sugerida por Queimado & Gomes (2007, p. 141) para polimento de metais.
719
Figura 4: Pesquisadora do LEPA aplicando procedimento de higienização em metais. Acervo LEPA.
Após a limpeza, adotou-se a prática de selar o material com cera, seguindo como
parâmetro o trabalho realizado pela equipe de conservação do Museu Nacional de Arte
Africana, vem utilizando o processo de aplicação da cera microcristalina, após o processo de
raspagem, conforme também proposto por Rodgers (2004, p. 20).
Para o vidro adotou-se como procedimento o uso de pincel ou escova de cerdas
macias, a seco, sem friccionar a peça, principalmente nas áreas frágeis ou que sofreram
processo de restauro.
720
Quanto ao material ósseo, o procedimento adotado para a remoção de sedimentos foi a
limpeza com álcool, por ser um líquido mais volátil e que minimiza os riscos de infiltração
nos ossos, sem exposição à luz solar, nem mesmo no processo de secagem.
721
Quando o vidro não era translúcido eram aplicados os mesmos procedimentos usados
para cerâmica. No entanto, para os translúcidos era utilizado o mesmo procedimento aplicado
em porcelanas: etiqueta de Papel Accid Free transparente marcada com caneta nanquim 0,1
mm e aplicação de camada de esmalte incolor após a secagem.
722
Figura 6: marcação em fragmento ósseo em que o estado de conservação não permitiu marcação diretamente na
peça. Acervo LEPA.
Considerações Finais
723
abrangente nortearam os trabalhos desenvolvidos no laboratório e o embasamento técnico
para colaborar com a área de preservação do patrimônio arqueológico.
No entanto, muitos outros procedimentos aqui relatados e que são utilizados no LEPA
foram descobertos a partir da experimentação de membros da equipe de pesquisa. E em
alguns casos, foram realizadas experimentações antes mesmo de encontrado um suporte
teórico, que posteriormente, após pesquisas, foram descobertos a partir de referências de
trabalhos desenvolvidos na mesma direção em outras instituições.
Referências Bibliográficas
CÂNDIDO, M. M. D. Cultura material: interfaces disciplinares da Arqueologia e da
Museologia. Revista Cadernos do Ceom, v. 18, n. 21, 2014, p. 75-90.
QUEIMADO, Paulo & GOMES, Nivalda. Conservação e restauro de arte sacra, escultura
e talha em suporte de madeira: manual técnico. Coimbra: CEARTE, 2007.
RODGERS, B. A. The Archaeologist’s Manual for Conservation. New York: Kluwer
Academic/Plenum Publishers, 2004.
724
MUSEU DA FORÇA EXPEDICIONÁRIA BRASILEIRA: UMA EXPERIÊNCIA EM
DOCUMENTAÇÃO MUSEOLÓGICA
Resumo: O presente artigo tem como objetivo discorrer acerca das atividades desenvolvidas no
Museu da Força Expedicionária Brasileira Regional Belo Horizonte (Museu da FEB-BH) que
privilegiou a área de documentação museológica, tendo como foco o acervo fotográfico doado pelo
Major John William Buyers à instituição. Parte-se, portanto, da importância da documentação
administrativa e museológica como ferramentas de salvaguarda de acervos. Ressaltando-se a
relevância em se estruturar nos museus sistemas de documentação que permitam que essas instituições
realizem a preservação e a gestão do seu acervo. Adentrando ao estudo de caso, pretende-se apresentar
os problemas encontrados na área de documentação museológica no Museu da FEB, bem como as
soluções imediatistas encontradas, apontando para ações futuras a serem desenvolvidas pelo museu.
Abstract: The purpose of this article is to discuss the activities developed in the Museu da Força
Expedicionária Brasileira Regional Belo Horizonte (FEB Museum), which privileged the
museological documentation area, focusing on the photographic collection donated by Major John
William Buyers to the institution. Therefore, the importance of administrative and museological
documentation as tools to safeguard collections is taken into account. Emphasis is placed on the need
to structure documentation systems in museums allowing these institutions to carry out the
preservation and management of their collections. In this case study, we intent to present the problems
found in the area of museological documentation in the FEB Museum as well as the immediacy
solutions found, pointing to future actions to be developed by the museum.
725
Documentação museológica: conceituação, função e importância
Considerando-se que as coleções e os acervos são, até hoje, um dos principais objetos
de investigação dentro dos museus, mas não mais o seu objeto exclusivo, como foi nos
séculos XVIII e XIX, JULIÃO (2006) aponta para dois vieses de pesquisa: a documentação
museológica e a pesquisa em si, investigações que tem por finalidade ser disseminada ao
público. Segundo a autora:
726
aos museus atestar a posse legal sobre o objeto, garantindo assim sua segurança contra
qualquer ameaça interna ou externa.
Is all the recorded information a museu hold about the items in its care. It
also describes the activity of gathering, storing, manipulating and retrieving
that information. It is not an end in itself. It is the means by which both
museums staff and visitors can find the information they need [...] the
information can be about objects, photographs, films, books, paper archives,
tape recording, etc. It can include physical descriptions, historical
background, details of acquisitions, storage locations, accounts of work done
to objects whilst they are in the care of the museum, and much more besides
(RODRIGUES; TEIXEIRA, 2012, p. 292, apud HOLM, 1991, p.2)
727
tem se debruçado sobre a área, buscando a construção de uma normativa padrão. Tais
iniciativas visam fornecer um conjunto de ações mínimas a serem efetuados pelos museus que
subsidiem uma gestão eficaz do seu acervo (SPECTRUM, 2014) e também padronizar os
metadados a serem utilizados nas fichas de catalogação (CIDOC, 2014).
(...) for executada de uma forma adequada poderá contribuir para uma
efetiva gestão das coleções, definição de políticas de incorporação, áreas
temáticas e limites das coleções, controlo de movimentos e segurança dos
objetos, conservação, acondicionamento em reserva ou exposição,
728
acessibilidade às coleções com vistas à investigação e comunicação com os
públicos (RODRIGUES; TEIXEIRA, 2012, p.292).
729
Seu acervo foi formado a partir de doações realizadas pelos membros da ANVFEB,
familiares dos pracinhas da FEB e colecionadores particulares, abarcando diferentes
materialidades e suportes, como por exemplo, jornais, uniformes, medalhas, cartões postais,
armamentos, fotografias. Contudo, o museu não consegue precisar quantos objetos compõe o
seu acervo atualmente, pois ainda não foi realizado um inventário sistemático com todo o seu
acervo.
Permanecendo com uma expografia desatualizada e defasada por mais de vinte anos, o
museu passou, em 2011 por uma reforma de sua infra-estrutura, ficando fechado ao seu
público por quatro meses. Tal reforma tinha como intuito modernizar as suas instalações
físicas, suas exposições, e os mobiliários onde ficavam expostos o seu acervo. Com uma
doação expressiva realizada pelo Major John William Buyers em 2014, no ano seguinte o
museu reorganizou sua expografia visando exibir ao público os objetos e fotografias doados
pelo Major, nomeando a sala em sua homenagem.
730
costa brasileira (CPDOC, 2017). Ressalta-se que como forma de compensação, foi concedido
ao Brasil recursos financeiros para industrializa-lo, fomentando as indústrias siderúrgicas no
país.
731
dos documentos utilizados pelo museu. Pôde-se constatar que as atividades de documentação
se encontravam bastante fragilizada, pois o museu não apresentava alguns dos principais
instrumentos utilizados em um “sistema” documental.
Outros problemas que pôde-se averiguar é o fato do museu não possuir em seu quadro
de funcionários uma equipe de profissionais que sejam responsáveis pela salvaguarda do
acervo, e a falta de um espaço adequado, como de uma reserva técnica, para a realização das
732
atividades de conservação preventiva do acervo, o que contribui para a não execução das
ações de documentação no museu.
No que tange ao acervo fotográfico doado pelo Major, constatou-se que este não foi
alvo de nenhuma atividade de registro, catalogação e quantificação. Outro problema
encontrado, e que também diz respeito à sua documentação, é a necessidade de digitalizá-lo,
devido ao fato da fragilidade do seu suporte.
Para tal, lançou-se mão de leituras bibliográficas que discutem o tema e da análise de
modelos já utilizados por outros museus. A partir desta metodologia, construiu-se os
seguintes termos: termos de abertura e de fechamento do livro de registro, o livro de registro,
o termo de empréstimo, doação, comodato, cessão de imagens, e de agradecimento de doação,
planilha de inventário em formato Excel, termo de devolução de acervo, termo de permuta e
relatório de estado de conservação. Foi produzido também uma ficha de catalogação que teve
como base o modelo proposto por CANDIDO (2006) ao Museu Mineiro, que inicialmente
seria utilizada tanto para os acervos bidimensionais - fotografias e documentos, como os
tridimensionais - armamentos, vestuários, equipamentos militares.
733
tridimensional, padronizando ambas às normativa do CIDOC (2014) e do SPECTRUM 4.0
(2014).
3
Criada dentro do projeto de digitalização e organização do seu acervo fotográfico, iniciado em 1993 e que ainda
se encontra em fase de desenvolvimento (SANTOS, 2007).
734
processo de elaboração do número de registro a ser utilizado pelo museu da FEB. Optou-se
pelo modelo bipartido, composto pela sigla do museu e cinco dígitos separado por ponto (.).
O acervo fotográfico doado pelo Major John William Buyers é composto de seis
álbuns fotográficos, na qual se encontram anexas 994 fotografias, uma fotografia autografada,
213 negativos de fotografias, 1 official filme, 3 filmes cine serviço 8mm, 2 filmes sony
recording tape 8 mm, 1 caixa com 212 slides, 4 rolos de filmes 16 mm, 15 slides kodak, 5
trechos de rolos de filmes 16 mm, 3 fitas de vídeos, 33 fotografias individuais, 2 fotografias
emolduradas e fotografias recentes e pessoais que não foram quantificadas no inventário. Tal
lista atesta a importância deste acervo como uma rica fonte documental para a história da
Força Expedicionária Brasileira e também para a história militar do Brasil.
735
Para além da sua difusão ao público do museu em escala globalizada, a digitalização
pode ser entendida como uma ferramenta de salvaguarda desse acervo, pois a fotografia é um
suporte autodestrutivo que ao iniciar o seu processo degradativo, liberam substâncias
químicas que aceleram a sua degradação (CALMON; ALVES, 2016), gerando assim, danos
irreversíveis. A digitalização das fotografias culminaria na diminuição do seu manuseio,
contribuindo para a sua preservação física, tendo em vista que o manuseio é um fator
degradante à essa tipologia de acervo. Pode-se citar também que o processo de digitalização
permitiria melhorar a qualidade da imagem através do tratamento de cor e saturação, sendo
um importante instrumento auxiliar do campo da restauração dessa tipologia de acervo
(RODRIGUES, 2010).
Adotou-se como amostra para a realização do teste piloto dez fotografias pertencentes
ao acervo do Major Buyers, na qual essas passaram pelo processo de digitalização,
catalogação e foram inseridas na planilha de arrolamento de inventário. Devido a ausência de
um ambiente adequado para a realização da atividade, como já pontuado, bem como de
equipamentos que permitam a digitalização em alta resolução, o teste piloto realizado se
encontra comprometido, pois o equipamento utilizado permitiu digitalizar a fotografia
somente em até 900 DPI - número de pixels por polegadas - e salvá-las somente no formato
PDF e JPEG, o que faz com que as fotografias digitalizadas não estejam em alta resolução e
bem definidas, o que a distanciam da matriz de cor da fotografia original.
Confrontando experiências:
736
Com intuito de subsidiar práticas futuras no que tange à organização, tratamento e
digitalização do acervo fotográfico doado pelo Major John William Buyers, buscou-se
referências de projetos já realizado em outros museus de cunho militar. Encontrou-se alguns
exemplos que permite refletir acerca de tal prática no acervo do Museu da FEB.
737
através da doação, compra e transferência no período de 1924 a 1960 de fotografias e outros
suportes documentais, sendo dividida em seguintes espécies documentais:
Conclusão:
O presente trabalho teve por finalidade discorrer acerca das atividades experimentais
desenvolvidas na área de documentação museológica no Museu da Força Expedicionária
Brasileira Regional Belo Horizonte. Concluiu-se que tais atividades encontravam-se
fragilizadas, pois o museu carecia dos instrumentos básicos de documentação e não executava
nenhuma ação nessa esfera. Através de ações pontuais de estruturação dos termos e manuais
de procedimento buscou-se, dentro do escopo da proposta de vivência dentro da instituição,
sistematizar e conscientizar a equipe do museu acerca da importância do uso da
documentação na salvaguarda física e jurídica do seu acervo, resguardando o museu
legalmente.
738
fértil, pois ainda se é necessário realizar o preenchimento da planilha de arrolamento com
todo o acervo pertencente ao museu da FEB, a marcação reversível do número de registro em
cada peça, a sua catalogação individual em um sistema computadorizado e físico, seu registro
fotográfico, a realização do diagnóstico do estado de conservação desses objetos, a criação de
um thesaurus museológico.
Pretendeu-se, por fim, fornecer subsídios para o desenvolvimento das ações internas
na área de documentação museológica no Museu da FEB, objetivo alcançado ao meu ver, pois
a instituição já utiliza os termos que foram criados. Contudo, a atividade experimental
desenvolvida na área de documentação não é estanque, e carece de novas reflexões
metodológicas que se intersecione com as discussões vigentes.
Referências Bibliográficas
739
CAFÉ, Lígia Maria Arruda. PADILHA, Renata Cardozo C. Organização de acervo
fotográfico histórico: proposta de descrição. InCID: Revista de Ciência da Informação e
Documentação, v. 5, p. 90-111, 2014.
LIMA, Rui Moreira. Senta a Pua! Rio de Janeiro, Biblioteca do Exército, p.451, 1980.
740
MUSEU DA FEB. Plano Museológico do Museu da FEB: Regional Belo Horizonte, Minas
Gerais. Belo Horizonte, 2013.
741
SPECTRUM. SPECTRUM 4.0: o padrão para gestão de coleções de museus do Reino
Unido / Collections Trust. São Paulo: Secretaria de Estado de Cultura; Associação de
Amigos do Museu do Café; Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2014. (Gestão e
documentação de acervos: textos de referência; v. 2). Tradução de: SPECTRUM 4.0: the UK
Museum Collections Management Standard”. 256 p.
742
PESQUISA, FORMAÇÃO E SALVAGUARDA: HISTÓRIAS DE VALORIZAÇÃO
DO PATRIMÔNIO DE BENS CULTURAIS MÓVEIS DO PIAUÍ
Abstract: In this article, we present the final results of activities developed in the action-research from a
professional Masters course in Arts, Patrimony and Museology at UFPI, Campus Parnaíba. The studies took
place both in Parnaiba and in Portugal. We attempted to focus on both creating and proposing safe-guard
measures to the patrimony of mobile heritage from Piauí, starting with the one and only restauration workshop
existing, which is a state preservation sector, currently in need of thorough improvements to keep functioning.
Actions have been carried out to create awareness on a new generation of restorers. They included training,
creation of documentaries, proposals for the creation of conservancy and restauration workshops in Parnaiba.
Key-Words: Contemporary conservation and restoration; Mobile Heritage; Restauration Workshop; Piauí.
INTRODUÇÃO
743
O Conselho Internacional de Museus – ICOM é uma instituição criada no seio da
UNESCO em 1946, por e para profissionais de museus, composta por 172 comitês, 35.000
membros e 20.000 museus cadastrados; congrega profissionais especialistas de 136 países e
territórios, para gerir as questões relacionadas à preservação do Patrimônio Cultural, com a
finalidade de manter diálogos e estabelecer normas para as boas práticas de gerenciamento
dos museus. É composto por 119 Comitês Nacionais e 30 Comitês Internacionais que, com
especialistas de diversas áreas afetas às atividades da museologia, trabalham para responder
aos desafios que os museus enfrentam diariamente em todos os continentes (ICOM, 2016).
Em cooperação com a UNESCO o ICOM tem como missão principal trabalhar para a
sociedade e seu desenvolvimento para garantir a conservação e a proteção dos bens culturais,
por meio cinco áreas de atividade: formação, informação, pesquisa, cooperação e advocacia.
Para isto reúne e trabalha com uma equipe interdisciplinar e multidisciplinar composta
por especialistas e instituições especializadas de todo o mundo; participa de campanhas
internacionais e organiza missões científicas para dar assistência aos Estados Membros, que
atualmente conta com cerca de 140 estados associados.
Para melhor disciplinar e difundir estas questões o ICOM junto aos comitês
desenvolveu um código de ética que estabelece normas mínimas para a prática profissional
das pessoas que atuam nos museus e a relação com os públicos envolvidos. Estes padrões
mínimos de conduta e atuação nele expressos fornecem ferramentas para a auto-
regulamentação a que os profissionais de museus no mundo todo podem aspirar e delimitam o
que a sociedade pode esperar dos museus (ICOM,2009). A partir daí cabe a cada estado
membro elaborar o seu código de ética, baseado nas diretrizes mundiais, para atender às
situações peculiares.
Dentro desta organização existem comitês específicos para atender a cada segmento da
Museologia, e o ICOM-CC, o maior dos Comitês Internacionais do ICOM é a comissão
responsável pela Conservação. Tem como objetivo promover a investigação, análise e
744
conservação de obras relevantes no contexto cultural e histórico dos museus, além de
promover os objetivos da profissão de conservador.
Tomamos o ICOM - CC como mote norteador deste artigo por se referir ao setor
majoritário, que trata especificamente de Conservação dentro dessa organização, responsável
pelas especificidades do nosso campo de atuação, para tratarmos do contexto da Conservação
e Restauro, suas tendências contemporâneas e desafios na preservação dos bens culturais
móveis no Piauí, e das ações realizadas para este fim dentro do projeto de Pesquisa-Ação do
Programa de Pós-graduação Mestrado Profissional em Artes, Patrimônio e Museologia da
UFPI (PPGAPM), Campus Parnaíba - Piauí.
745
Para analisarmos algumas posturas que influenciaram a maneira contemporânea de
conservar e restaurar o patrimônio móvel em contexto mundial, nacional e local adotamos a
Teoria Moderna de Cesare Brandi (1906-1988), lançada em 1962, e a Teoria Contemporânea
do espanhol Muñoz Viñas (1964), proposta em 2003 e publicada em 2004, por identificarmos
em pesquisas anteriores atitudes que se concatenam com esses pensamentos, no contexto da
Oficina de Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis do Piauí (OR).
Cada uma dessas teorias tem contribuído para mudanças que vem ocorrendo no
restauro contemporâneo. Analisamos a partir dos princípios das teorias e da vertente
sustentabilidade que permeia atualmente todas as atividades multidisciplinares.
Cesare Brandi, teórico, crítico de arte, autor da teoria crítica do restauro, considera
uma série de fatores nas obras de arte ou objetos, no momento de intervir para conservar ou
restaurar, além de considerar os aspectos estéticos e históricos ao decidir a dimensão da
intervenção. Suas propostas tiveram grande influência na Carta Italiana do Restauro de 1972
e, por consequência, na prática atual da conservação e restauro. Para as autoras, a restauração
no conceito de Brandi recomenda que:
746
práticos: a mínima intervenção, o estudo prévio detalhado (pesquisa histórica
e análises científicas), a distinguibilidade sem prejuízo ao conjunto (formal e
estilístico), documentação minuciosa, respeito à autenticidade da obra,
compatibilidade entre o original e a intervenção e a reversibilidade de
materiais (SANTOS; GONÇALVES, 2013, p.4).
Seu estudo indica que duas correntes dominantes orientaran grande parte das
intervenções nos bens culturais nos últimos cem anos: uma inclinada para
valores estéticos e outra para preceitos científicos. Sustenta que as teorias
clássicas apresentam-se limitadas para o escopo atual da cultura,
considerando que nem todos os objetos sujeitos ao restauro são obras de arte,
bem como os motivos que levam a restauração desses bens podem
relacionar-se a outros valores além do histórico e do artístico – sejam estes
ideológicos, afetivos, religiosos, etc. - não sendo, portanto, inerentes ao
próprio objeto nem, tampouco, cientificamente quantificáveis (CALDAS,
2013, p.2).
747
O ato de “musealizar” uma obra de arte contemporânea muitas vezes
contraria sua própria natureza que, freqüentemente, recorre a materiais
instáveis ou descartáveis, diferente do que se passava em momentos
anteriores, quando os materiais utilizados na arte eram escolhidos em função
da sua durabilidade.1 Na arte contemporânea o critério passa a ser a carga
semântica muito intensa e, assim, a relação entre o material e a técnica torna-
se, muitas vezes, complexa (SÁ; SOUSA, 2015).
Fora esses valores a serem respeitados, ocorrem mudanças não só na teoria, mas
também na prática da conservação e restauro, como na forma de trabalhar e na formação das
equipes:
748
Em função das carências surgidas e de problemas diversificados no contexto da
preservação desenvolveram-se também novos materiais e tecnologias antes inimagináveis,
com a ajuda de profissionais de outras áreas como da química, da engenharia, a da física. Por
muitas vezes procedimentos e materiais foram observados em experiências de outras áreas do
conhecimento e puderam ser testados com bons resultados na conservação e no restauro. Hoje
podemos perceber o interesse da participação interdisciplinar das áreas de conhecimento para
este fim nas apresentações de congressos, simpósios e nos resultados de pesquisas publicadas.
749
Para os autores, a Arte e a Ciência não parecem caminhar juntas ao longo dos séculos.
No entanto não impediu que se aliassem e aproveitassem uma o conhecimento da outra para
melhor exercercimento e articulação nas questões da preservação do Patrimônio.
O estudo dos materiais e suas reações com o auxílio da química e da física, o uso da
incidência da radiação de diferentes comprimentos de onda nas prospecções, a tecnologia
digital que permite a manipulação precisa da imagem, os estudos de biodeterioração que
auxiliam na identificação, diagnóstico e tratamento das patologias, o profissional conservador
que despertou para conhecer as várias possibilidades científicas de abordagem e tratamento
dos problemas, ocupam lugar de destaque nos últimos anos nesse desafio constante que é a
conservação do Patrimônio (IPHE, 2008).
750
horizontes e atualizar os conhecimentos há muito tempo defasados, e também a missão de
promover em 2016, por meio da Pesquisa-ação do Programa de Mestrado em Artes,
Patrimônio e Museologia, capacitações para dar início à sensibilização e formação inicial de
uma nova geração de conservadores para o Piauí.
Todas as etapas tiveram acompanhamento dos profissionais de cada setor, sendo dada
à aluna autonomia para intervir e questionar todos os processos, para melhor entender e
desenvolver posteriormente escritas críticas e mais seguras sobre a experiência.
751
Figura 01: Coleta em Laboratório de Ciências da Conservação - LACICOR/UFMG.
752
artístico vinculada à arte e ao design contemporâneos, cursos de graduação e de pós-
graduação em Ciências da Arte e do Patrimônio e Ciências da Conservação e Restauro e
Produção de arte Contemporânea (ULISBOA, 2017).
Outra etapa que compôs este estágio resultou em Visita Técnica feita ao Instituto José
de Figueiredo – IJF em Portugal, nos dias 23 e 28.11.2016, com acesso integral aos
departamentos de restauro em pintura sobre madeira, pintura mural, restauro em têxteis,
papel, laboratório de química e de física, visita guiada pela Diretora Maria Gabriela Carvalho
e pelos coordenadores de cada setor visitado (Laboratórios, ateliês e arquivos), para
conhecimento dos métodos de trabalho e tipos de acervos atendidos.
Nesta fase do estágio, com atividade intensiva de aulas teóricas e em maior parte
práticas, aprendemos métodos e técnicas de procedimentos em conservação e restauro de
pinturas de cavalete (telas), utilizando acervo do Museu de Setúbal. A escolha deste setor
pautou-se na deficiência da OR que há mais de dez anos pesquisa e realiza algumas
intervenções nesta tipologia.
Todas estas enriquecedoras experiências resultaram num total de 300 horas de estágio
(160 horas no CECOR e 140 horas FBAUL) de atividades acadêmicas em Minas Gerais e em
Portugal, de cunho teórico-práticas, orientação e consultoria, tanto para as questões amplas
753
como o acesso a referências e tecnologias atualizadas, quanto pontuais para a consultoria e
composição do Laboratório de Conservação em Parnaíba.
754
A ausência dos pré-requisitos citados e as influências de ofertas fáceis de cursos de
curta duração em conservação e restauro obtidos na internet, têm contribuído para a forma de
decisão nos processos de trabalho e até mesmo descaracterização de algumas peças de acervos
públicos e particulares.
755
A criação de uma Oficina de Conservação e Restauro exige um alto investimento
financeiro e de agentes locais: UFPI, do IFPI, do SESC, da SECULT e de outros agentes
públicos e privados, de forma a permitir a continuidade do trabalho pioneiro da OR iniciado
há três décadas na cidade de Teresina. Há agora a oportunidade de formação e renovação de
equipes, há muito saber-fazer a ser transmitido pelos membros da OR.
Para concretizar nossas propostas será feito um restart (reinício) do que ocorrera em
1987 com a criação da OR em Teresina, mas em nível superior, envolvendo comunidade,
agentes públicos e privados. Uma experiência que pode servir de apoio à OR de Teresina, que
na época de sua criação propunha a trabalhar com aporte científico, adotando métodos
comprovados, oriundos das Teorias Modernas do Restauro.
756
Este conjunto de ações constitui uma tentativa de salvaguardar o Patrimônio Cultural
de bens culturais móveis do Piauí, na medida em que planeja, mapeia, forma e desperta para
tomadas de atitudes individuais e coletivas, particulares e institucionais, para aplicação em
breve, médio e longo prazo, e dessa forma contribui sistematicamente para a salvaguarda do
patrimônio cultural do Piauí.
Considerações Finais
Insere-se, portanto, no conceito deste trabalho que tem como foco a sensibilização, a
atualização e a formação de agentes públicos e privados para a importância da preservação do
patrimônio cultural, sobretudo, àqueles sob a guarda do poder público, o que justifica o
investimento na continuidade da OR e criação de outro setor análogo, mas preparado para
enfrentar os desafios da conservação e restauro contemporâneos.
A experiência adquirida nos estágios nos permitiu uma aproximação maior com a
restauração científica, jamais experimentada na OR, tanto em termos de materiais e
equipamentos, como de procedimentos mais recentes, e além do mais, poder vê-los sendo
executados em acervos com relevante valor artístico e histórico, nos contextos vivenciados.
757
Além das soluções de sustentabilidade, as parcerias técnicas são de mais valia, em um
trabalho que integre equipes de conservadores-restauradores de várias instituições: CECOR,
IJF, Universidade de Lisboa etc. É preciso integrar nessas parcerias os equipamentos culturais
do Piauí sob a gestão do Estado e Prefeituras, diagnosticar os acervos, conhecer, aproximar-se
e trabalhar em parceria, atitude vital quando se trata de Patrimônio Cultural e Museologia.
Vale ressaltar a importância das articulações feitas a partir dos estágios e viagens aos
centros de restauração, museus, universidades e outras instituições envolvidas por este
processo, que, certamente, cada uma delas contribuiu com uma parcela de conhecimento e
qualificação profissional, além de mantermos o diálogo entre as instituições e inovações.
758
Referências
BRANDI, Cesare. Teoria da restauração. Trad. Beatriz Mugayar Kühl. Cotia: Ateliê
Editorial, 2004.
PEREIRA, Fernando António Baptista, DIAS, Fernando Paulo Rosa. Ciências da Arte e
Criação Artística: Solidariedades para uma Investigação em Arte, in Investigação em
Arte e Design, Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2011, p. 214-
228.
759
SANTOS, Bilhalba dos; GONÇALVES, V. y de Freitas, M.: "A proposta da teoria
contemporânea da restauração aos profissionais de restauro no século XXI", en
Contribuciones a las Ciencias Sociales, Agosto 2013. Disponível
em:<www.eumed.net/rev/cccss/25/restaurazao.html>. Acesso em 12 de fev de 2017.
SOUZA, Geisa Alchorne; SÁ, Ivan Coelho de. Arte Contemporânea e sua Conservação:
revisitando Brandi e Viñas. Revista Mosaico, volume 6, número 9, 2015. Disponível
em:<http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/mosaico/article/view/64409>. Acesso em
jan. de 2017.
760
PRAGAS NO MUSEU: ANÁLISE DA PRESENÇA DE PRAGAS NO MUSEU
CASA DAS ONZE JANELAS E NO MUSEU DE ARTE DE BELÉM
Tayná Castro*
Sue Anne Regina Ferreira da Costa*
*Universidade Federal do Pará*
Resumo: As pragas são agentes de degradação prejudiciais para os acervos museológicos, portanto os
acervos salvaguardados por instituições museológicas requerem cuidados específicos de conservação,
por isso a Conservação Preventiva, responsável pela desaceleração dos efeitos causados por agentes de
deterioração em acervos museológicos, é essencial para que o patrimônio salvaguardado perdure mais.
Com o objetivo de aumentar o conhecimento no que concerne a conservação de acervos, este artigo
analisa a presença de pragas na área expositiva do Museu Casa das Janelas e do Museu de Arte de
Belém. Foi feito o levantamento geral das salas e dos acervos, considerando as características
relevantes da área interna e externa do edifício, e a coleta das pragas existentes nas salas analisadas,
para posterior análise das mesmas. Nas salas analisadas, foram encontrados diversos insetos mortos,
que causam diferentes tipos de degradação, por isso é necessária a consciência da instituição, acerca
dos potenciais riscos a que um acervo pode ser submetido, para assim realizar medidas eficazes de
salvaguarda.
Palavras-chave: Conservação Preventiva; Pragas; Museu Casa das Onze Janelas; Museu de Arte de
Belém; Patrimônio
Abstract: Pests are harmful degradation agents for museological collections, so collections protected
by museological institutions require specific conservation precautions, therefore the Preventive
Conservation, responsible for decelerating the effects caused by agents of deterioration in museum
collections, is essential for the patrimony safeguarded lasts longer. With the aim of increasing
knowledge regarding conservation of collections, this article analyzes the presence of pests in the
exhibition area of the Casa das Janelas Museum and the Museum of Art of Belém. A general survey in
the rooms and in the collections was done, considering the relevant characteristics of the internal and
external area of the building and the collection, and the collect of the existing pests in the analyzed
rooms, for later analysis of the same. In the rooms analyzed, several dead insects were found, which
cause different types of degradation. Therefore, the institution's awareness of the potential risks to a
collection is necessary, in order to carry out effective safeguard measures.
Key-words: Preventive Conservation; Pests; Museu Casa das Onze Janelas; Museu de Arte de Belém;
Patrimony
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INTRODUÇÃO
Os objetos que estão em instituições museológicas possuem aspectos artísticos,
históricos e culturais considerados importantes para as sociedades onde estão inseridos, e por
isso devem ser conservados. Entre as diversas práticas nas instituições museológicas, destaca-
se a Conservação Preventiva, que engloba áreas como o transporte, embalagem, o manuseio
dos bens patrimoniais, o controle do ambiente das áreas de exposição e reserva, os materiais
de construção dos edifícios e equipamentos, ou seja, todas as ações que visam a diminuição
dos impactos de deterioração que atuam sobre os materiais que constituem os objetos
(ALARCÃO, 2007).
Esses impactos são causados pelos agentes de deterioração, que podem ser
classificados como: força física direta, fogo, água, radiação, temperatura e umidade relativa
incorretas (COSTAIN, 2001), e principalmente, as pragas, e dentre elas encontram-se os
insetos que podem ser atraídos pela disponibilidade de comida, proteção e temperatura
favorável para sua sobrevivência. Os ataques podem ser sazonais e estar relacionados às
condições ambientais. A presença de um organismo morto, excremento, ou produtos
metabolizados podem servir de comida e atrair outros (ALLSOPP; SEAL; GAYLARDE,
2004).
Por isso, a Conservação Preventiva atua através de intervenções conscientes e
controladas no ambiente que o acervo está inserido visando a diminuição dos impactos de
degradação que naturalmente atuam sobre os materiais que constituem os objetos.
Portanto, o reconhecimento dos materiais que compõem as coleções, é fundamental
para quem trabalha em museus (Souza; Froner, 2008), pois só então é possível serem
pensadas medidas de conservação adequadas a realidade de cada acervo. Como, por exemplo,
os acervos orgânicos e inorgânicos que são sensíveis em graus distintos aos fatores externos e
às predisposições internas de degradação (SOUZA; FRONER, 2008).
Em ambos os casos, ou seja, fatores externos ou internos, estes serão acelerados pelas
condições às quais o museu mantém seu acervo, e no caso das instituições que fazem parte do
Centro Histórico de Belém, os acervos encontram-se ou dispostos nas áreas expositivas, ou
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em reserva técnica, com exceção do Museu Casa das Onze Janelas, pois neste há um espaço
idealizado como reserva técnica visitável, pois possui o caráter de salvaguarda e exposição
simultaneamente de objetos (FRONER, 2008).
O objetivo deste trabalho é analisar a presença de pragas em áreas expositivas, no
Museu Casa das Onze Janelas e no Museu de Arte de Belém, com o intuito de aumentar o
conhecimento no que concerne aos cuidados com acervos, para auxílio na elaboração de
ferramentas necessárias para ações de conservação preventiva em acervos museológicos.
O Museu Casa das Onze Janelas é um espaço de salvaguarda do patrimônio
museológico localizado no Centro Histórico de Belém do Pará, o acervo presente no Museu é
composto de obras de arte moderna e contemporânea de artistas nacionais e internacionais,
como por exemplo, Tarsila do Amaral, Babinski, Amilcar de Castro, Franz Weissmann,
Adriana Varejão, além de artistas paraenses como Emmanuel Nassar, Osmar Pinheiro e Ruy
Meira (MOKARZEL, 2013).
O Museu de Arte de Belém, assim como o Museu Casa das Onze Janelas, é um
importante espaço de salvaguarda e exposição da arte paraense, este possui, em sua maioria,
acervos compostos de mobiliário em madeira e pinturas que remetem ao período da “Belle
Époque”. Devido ao valor simbólico, artístico e histórico do patrimônio salvaguardado por
ambos os museus (Britto, 2009), são necessárias pesquisas em conservação preventiva, para
que haja subsídios para o desenvolvimento de práticas de preservação, que possam ser mais
eficazes.
A metodologia se dividiu em duas etapas, a primeira foi o Levantamento geral da sala e do
acervo, este considerou as características relevantes da área externa do edifício, bem como da
parte interna, a segunda etapa foi a coleta das pragas existentes nas salas analisadas, para
posterior análise das mesmas.
Considerando o clima natural da Amazônia, este pode ser considerado nocivo para a
conservação de objetos museológicos, de acordo com as bibliografias internacionais, e isso
reforça a necessidade de se construir ferramentas que possibilitem a durabilidade máxima dos
objetos, pois caso contrário os mesmos estarão em condições de temperatura e umidade
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relativa altas durante o ano todo (BASTOS, et al 2002), condição está considerada inadequada
para a conservação, pois pode ajudar na atração e proliferação de pragas.
RESULTADOS
O Museu Casa das onze janelas está localizado de frente para a baía do Guajará e
possui o entorno arborizado. A proximidade com a baía e áreas arborizadas pode gerar um
ambiente úmido no entorno, que tende a penetrar no interior da edificação através dos
materiais construtivos e assim aumentar a temperatura interna do museu, (GONÇALVES;
SOUZA; FRONER, 2008) o que pode contribuir para o ataque biológico, pois este costuma
estar associado à umidade relativa acima de 70% (SOUZA, 2008).
A sala analisada do museu Casa das Onze Janelas é intitulada “Ruy Meira” (Fig. 1C),
localizada no térreo, com 484 m³ e nela está a exposição de longa duração “Traços e
transições revisitada: Arte Moderna e Contemporânea Brasileira” que se propõe a traçar um
panorama da arte contemporânea brasileira (BRITTO, 2006). Em geral, as obras apresentam
tipologias e técnicas diferenciadas tais como pinturas, aquarelas, xilogravuras, serigrafias,
calcogravuras,litogravuras, pastel e esculturas de diferentes materiais como: ferro, argila,
acrílico e madeira.
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Figura 1: Área de estudo 1, Museu Casa das Onze Janelas, A – Posição Geográfica do Prédio, B – Fachada do
Prédio, com destaque para a localização da sala Ruy Meira, C – Visão geral da sala Ruy Meira.
Com relação a estrutura da sala, esta possui o piso de pedra, paredes de alvenaria de
pedra e uma porta de entrada de vidro não vedado que em geral fica semiaberta. As janelas
também são de vidro e embora fiquem fechadas, também não são vedadas, favorecendo assim
trocas com o ambiente externo, que por sua vez dificulta o desempenho dos aparelhos de
climatização, o que ocasionará em alterações químicas e possível proliferação das infestações
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biológicas (SOARES, 2012). Além disso, pode favorecer também a entrada de agentes
biológicos, pois estes geralmente são introduzidos nos museus através do ambiente externo
(FRONER; SOUZA, 2008), portanto é essencial a vedação das janelas e portas.
Portanto, a sala analisada possui todos os atrativos para insetos, o clima é favorável e
os objetos são fonte de nutrientes, por isso eles procuram abrigo na sala, e isso permite que
estes se reproduzam provocando diversos danos ao acervo exposto (FRONER; SOUZA,
2008). Na sala de exposição em questão, foram encontrados insetos mortos (Fig. 2), como
barata, mariposa, grilo e formiga, coletados e fotografados para análises, pois a identificação e
o mapeamento das pragas encontradas são extremamente necessários, sendo que uma das
principais causas de atração dos insetos, ou outros tipos de pragas é a sujidade, que foi
bastante encontrada na sala.
A barata (Fig. 2A) é do tipo doméstica, da espécie Periplaneta americana, este tipo de
inseto é mais adaptado ao clima quente de lugares tropicais e subtropicais, como por exemplo
o da Amazônia. Como a maioria das baratas, a doméstica desenvolve hábitos noturnos,
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preferindo locais quentes e úmidos, ricos em matéria orgânica, como restos de alimentos, por
serem onívoras não possuem uma alimentação restritiva (FRONER; SOUZA, 2008).
A mariposa (Fig. 2B), do gênero Lepidóptera, ainda estava no período de larva, que
também é conhecida como traça de parede, as larvas alimentam-se logo após seu nascimento,
pois elas necessitam de vitamina B e sais, geralmente atacam materiais confeccionados com
fibras têxteis, como tapeçaria, vestuário e telas (FRONER;SOUZA, 2008) , há telas na sala
que não estão emolduradas ou no passe-partout, portanto as traças podem atacar esses objetos
com mais facilidade, causando prejuízos de diferentes ordens (material e simbólica) a
instituição.
O inseto da ordem Ortóptera e da família Grillidae (Fig. 2C) é possivelmente um
grilo, os danos causados por este inseto referem-se ao comportamento alimentar, pois também
é onívoro (KLEIN, 2008). A formiga alada da ordem Hyminoptera (Fig. 2D) estava em
período reprodutivo, e assim como os outros insetos encontrados, pode provocar lacunas,
galerias, e alterações superficiais ou profundas, dependendo da espécie (LOPES, 2011).
Os insetos atacam, em geral, os materiais orgânicos, que é o principal material
presente no acervo do Museu Casa das Onze Janelas, portanto é necessário um
monitoramento constante das salas de guarda, exposição e pesquisa a partir de um plano de
inspeção periódica e de um treinamento de pessoal de limpeza, que devem ser treinados para
identificar ocorrências de evidências de ataques biológicos, em locais como: nos peitoris das
janelas; atrás das portas; nas paredes, pisos e forros; ao redor do mobiliário. Pois apenas
retirar tais evidências pode mascarar uma situação de infestação, na medida em que remove os
vestígios de um ataque biológico (FRONER; SOUZA, 2008).
Quanto às medidas de prevenção contra pragas, de acordo com os funcionários do
Museu Casa das Onze Janelas, a instituição faz limpeza das áreas expositivas, entretanto
percebeu-se que não é uma limpeza sistemática, pois foi encontrado sujidades no chão, dentro
dos expositores e alta ocorrência de pragas, apesar disso a maior parte do acervo está em bom
estado de conservação devido ao armazenamento adequado. Porém a durabilidade dos
materiais fora do armazenamento, neste caso, é menor. O problema com relação a
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sistematização da limpeza deve-se pelo número reduzido de funcionários para as atividades
diárias de conservação do museu, desse modo é necessário mais recursos para a limpeza do
acervo, pois a limpeza do ambiente de exposição e do acervo também é uma medida essencial
de prevenção contra pragas, pois diversos organismos são atraídos pela sujidade, que em geral
serve de alimentação para os mesmos (FRONER, 2008).
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Figura 3: Área de estudo 2, Museu de Arte de Belém, A – Posição Geográfica do Prédio, B – Fachada do
Prédio, com destaque para a localização da sala Ismael Nery, C – Visão geral da sala Ismael Nery.
A sala analisada é intitulada “ Ismael Nery” e também é conhecida como “Salão dourado”,
fica localizada no andar superior (Fig. 3B), nela a exposição é composta de diversos
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mobiliários referentes a Belle Époque. O piso é de madeira, as paredes revestidas de chapas
metálicas, o forro de gesso, e possui uma porta de entrada de madeira, que por ficar aberta
constantemente não isola a área do meio externo. E assim como no museu anterior pode
atrapalhar o desempenho do aparelho de climatização. As janelas possuem abertura dupla,
sendo que a que dá acesso direto a área externa fica fechada, e como medida de Conservação
Preventiva possui filtros contra radiação solar (Fig. 3C), pois apesar destes é possível
aproveitar a luz natural para a exposição. Porém é importante ressaltar que os filtros precisam
de manutenção regular, pois possuem validade (Fraser; Winsor; Ball, 2005).
Considerações Finais
O ataque biológico à acervos museais é um enorme problema para as instituições
museológicas, pois o seu aparecimento é prejudicial devido a degradação que é causada aos
objetos. Os fatores de atração muitas vezes são sinérgicos, como por exemplo, as fezes da
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barata encontrada que produz uma substância capaz de atrair insetos da mesma espécie, pois é
comum uma vida em grupo. Portanto, o controle ambiental, com temperatura e umidade
adequadas, limpeza periódica são medidas que ajudam a prevenir e repelir as pragas. Por isso
é necessária a consciência da instituição, acerca dos riscos potenciais de degradação, a que um
acervo pode ser submetido, para assim realizar medidas eficazes de salvaguarda.
Os dois museus possuem em sua maioria acervos orgânicos, que pela sua composição
química, constituem o maior fator de risco, podendo ser atacados por diversos agentes
biológicos (Alarcão, 2010), porém apesar das irregularidades encontradas nas salas de
exposição, o acervo salvaguardado por eles encontra-se em um bom estado de conservação.
Enquanto instituições museológicas, é dever do Museu Casa das Onze Janelas e do
Museu de Arte de Belém zelar pelo acervo sob sua guarda, pois a conservação é uma das
missões do Museu, de acordo com sua definição elaborada pelo Conselho Internacional de
Museus (ICOM) (DESVALLÉES; MAIRESSE, 2013).
Referências bibliográficas
ALARCÃO, Catarina. Prevenir para Preservar o Patrimônio Museológico. Revista do
Museu Municipal de Faro. n.2, p.08-34, 2007.
BASTOS, Therezinha Xavier; PACHECO, Nilza Araújo; NECHET, Dimitrie; SÁ, Tatiana
Deane de Abreu. Aspectos climáticos de Belém nos últimos cem anos. Belém: Embrapa
Amazônia Oriental, 2002. 31p.
771
DESVALLÉES, André; MAIRESSE, François. Conceitos-chave de Museologia. Comitê
Internacional de Museus. São Paulo: Pinacoteca. 2013. 100 p.
FRONER, Yacy-Ara. Reserva Técnica. Belo Horizonte: LACICOR; EBA; UFMG, 2008.
(Tópicos em conservação preventiva; 8).
GONÇALVES, Willi de Barros. SOUZA, Luiz Antônio Cruz. FRONER, Yacy- Ara.
Edifícios que abrigam coleções. Belo Horizonte: LACICOR − EBA − UFMG, 2008.
43 p.
MOKARZEL, Marisa. Três coleções do espaço Cultural casa das onze Janelas: doação e
editais no fortalecimento de um acervo In: Museologia & interdisciplinaridade vol.i1, nº4,
maio/junho de 2013.
772
SOUZA, Luiz Antônio Cruz. Conservação Preventiva: Controle Ambiental. Belo
Horizonte: LACICOR − EBA − UFMG, 2008.
773
UM APASA NO MUSEU: SE CORRER ELE PEGA, SE FICAR ELE COME
Abstract: I present three ethnographic objects belonging to the Anthropological Museum of the
Federal University of Goiás in four circumstances, from a museological perspective. From the point of
view of anthropology, ethnography and conservation and restoration, they refer to their original
landscapes and interact in favour of the conservation and preservation of their materiality as museum
objects. The presented approach seeks the comprehensive understanding and the sensitive perception
of the unveiled aspects of the indigenous material culture subsisting strongly as the life in the
museum’s Storage.
Keywords: Material culture in museums; Xingu ethnographic objects; preservation; conservation and
museum exhibitions.
774
Introdução
O mundo material só pode ser trazido de volta à vida nos sonhos dos
teoristas conjurando-se um pó mágico que, aspergido entre seus
componentes, deve colocá-los fisicamente em movimento. Veio a ser
conhecido na literatura como agência, e grandes expectativas foram aí
depositadas. Trazer coisas à vida, portanto, não é uma questão de acrescentar
a elas uma pitada de agência, mas de restaurá-las aos fluxos geradores do
mundo de materiais no qual elas vieram à existência e continuam a subsistir
(INGOLD, 2015, p. 62-63).
775
qualificando-me uma profissional que atua em museus, trago toda a experiência e
sensibilidade agregada em meu ser por todos os percursos já traçados e explorados enquanto
aprendiz.
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e o animou a discorrer mais detalhadamente a sua materialidade foi uma canoa confeccionada
a partir da casca do tronco da árvore originária do Xingu, posicionada no centro do circuito
expográfico, como mostra a imagem da foto (ilustração 1).
Figura 1: Exposição “Museu: Expressão de Vida”, suporte expondo duas canoas, confeccionadas a partir do
tronco de árvores, sendo a posicionada superior originária do Xingu, e a inferior, dos índios Karajá, Goiás.
Cacique Jacalo fez uma atuação quase teatral, alinhando os seus movimentos e gestos
à representação do objeto que ali, simplesmente exposto, quase nada o sinalizava como índice
da importância vital que é a canoa para os povos indígenas. Até os dias de hoje, eles a
mantêm na tradição como o meio de transporte de um tudo que para eles é necessário às suas
sobrevivências nas aldeias, bem como visitando e transportando parentes e amigos das aldeias
vizinhas, pelo curso do Rio Xingu. A sua demonstração foi de cunho dinâmico, com vigor e
vitalidade, de como eles utilizam a canoa e de como ela poderia ali estar representada ou
abordada de forma mais plástica e expograficamente apresentada ao público, que muito pouco
sabe dessa paisagem tão importante de nosso país. Na oportunidade de meu trabalho de
campo no Xingu, pude vivenciar o que cacique Jacalo havia encenado há dezenove anos, em
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nosso primeiro encontro no museu, porque experienciei ‘a viagem’ de barco, assim como
apresentada na imagem (Ilustração 2), com os índios do Xingu, rumo à aldeia Ipatsé.
Foto: A autora
Chamo a atenção para a importância desse objeto para a vida dessas pessoas. Nos dias
atuais, mesmo que em algumas aldeias substituam a canoa confeccionada a partir da madeira
pelo barco a motor, ainda preservam o ritual da viagem como fosse a canoa tradicionalmente
usada por seus ancestrais. No entanto, a canoa Karajá, que também foi abordada na narrativa
de cacique Jacalo, encontra-se atualmente exposta na exposição de longa duração do museu
“Lavras e Louvores”, apenas disposta num design expográfico, como mostrada na ilustração
3. Atentei-me às palavras de Ulpiano Menezes:
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comportamentos humanos produzem e utilizam coisas com as quais eles
próprios se explicam (1993, p. 212).
Foto: A autora
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There are myths around indigenous material that have to some extent
become ingrained. One such myth is that all indigenous materials come from
the earth, have a natural cycle and therefore must return to the earth. The
implication is that indigenous people do not want their material to be
preserved in museums (BLOOMFIELD, 2008, p. 148).
Noutra situação por mim vivida, embora tragicômico, porém muito importante para
meu aprendizado, pude solidarizar com os índios do Xingu que visitavam o Laboratório de
Conservação e Restauro e Reserva Técnica Etnográfica do Museu, os nossos ingênuos desejos
de repatriamento de um objeto etnoarqueológico ao seu local de origem. Eles desejavam
conhecer os objetos que compõem as coleções representativas das etnias xinguana ali
salvaguardados. Eu os recebi prontamente, apresentei toda a cultura material por eles
solicitada, não propositadamente, mas por puro despreparo e desconhecimento do código de
ética internacional para os museus, que atentam para o
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Figura 4: Fragmento arqueológico cerâmico, dimensões: 8,8 cm x 12,2 cm, originário da Lagoa Miararré, Xingu
Muito emocionados e surpresos eles ficaram ao depararem com o objeto que, segundo
eles, é um objeto de importância sagrada para a região da Lagoa de Miararré. Disseram ainda
que, depois que tiraram essa cerâmica da lagoa, nunca mais houve peixe para alimentar a
aldeia. Conseguintemente, eles reuniram a conversar na língua deles e decidiram me pedir
para que eu levasse o caso para a direção do museu e que o objeto fosse devolvido ao local de
origem, ou seja, pediram a reapropriação do objeto sagrado para o uso não museológico do
mesmo. Assim o fiz em respeito à situação, conversei com a diretora e, contrariamente àquilo
que esperávamos como resultado, a direção proibiu-me de mostrar determinados objetos,
como, por exemplo, esta coleção, sem que antes tivessem a anuência para que pudessem
realizar a visita técnica em reservas técnicas e laboratórios do museu. Somente então pude
entender o que acontecera e o quão delicada tornou-se a situação, principalmente quando eles
retornaram no dia seguinte para saber se conseguiriam levar com eles o objeto de volta para o
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seu local de origem. Eu sequer pude recebê-los na reserva técnica etnográfica para que eles
apreciassem o ‘objeto sagrado’ uma vez mais.
Ainda em 1994, tive a oportunidade, juntamente com alguns Kuikuro, que hoje moram
na aldeia Lahatuá, no alto Xingu, de realizar uma importante atividade em Goiânia, no Museu
Antropológico da Universidade Federal de Goiás, relacionada à conservação dos artefatos da
cultura material xinguana, armazenada em Reserva Técnica, voltada aos aspectos da coleta e
do processamento de matéria-prima para a construção desses objetos (CARVALHO, 2014, p.
84). Ter improvisado na cidade e participar do processo de construção de uma máscara
xinguana, como a apresentada na ilustração 5, foi um aprendizado muito rico, que se
converteu em amizade, respeito e conhecimento.
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Figura 5: Confecção da máscara xinguana, Casa do Índio, FUNAI, Goiânia, 1994.
Foto: A autora
Essa experiência despertou em mim uma crescente admiração pela cultura material
dos índios Kuikuro, com especial carinho, naturalmente cultivado e mantido pelas lembranças
dos momentos que compartilhamos juntos nessa ocasião. Pela cultura material, aproximei-me
dessas pessoas que estavam bem distantes das minhas atividades sociais e daquilo que eu
entendia por tradição. Encontrar com os Kuikuro, naquele momento de minha trajetória
profissional em processo de formação, como assim ainda me considero, foi um acontecimento
que o qualifico de natureza geoestético, e por geoestético eu percebo a paisagem das coisas
refletidas pela superfície do objeto.
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momentos por mim percebidos na singularidade de cada fenômeno de meu envolvimento, a
minha percepção poética na forma de apreender a cultura material e aos seus produtores.
“A growing respect for the knowledge of traditional owners as well as the increase in
museums that have policies on working with traditional owners, show that most conservators
desire a relationship of respect and understanding with indigenous people” (BLOOMFIELD,
2006, p. 144).
A superfície da materialidade
Da mesma forma como aconteceu com os outros objetos já abordados, Apasa também
foi identificado por alguns índios xinguanos que estavam visitando a Reserva Técnica
784
Etnográfica do museu. Assim sendo, eles me contaram a história da máscara no contexto da
sua aldeia de origem, falaram da essência da máscara, de sua atuação e do medo que ela causa
nas pessoas, principalmente quando corre atrás das crianças, assustando-as e levando-as para
o interior de suas ocas. Mas que, apesar de tudo, ela espalha alegria e euforia durante a sua
atuação por toda a área da aldeia. Essa foi, então, uma das variadas versões contadas pelos
representantes das diversas aldeias do Xingu ali presentes. Durante a visita, eles observaram
cuidadosamente cada detalhe da fatura da máscara, inclusive o estado de conservação da
mesma. Até discutiram entre eles algumas das possibilidades de recuperação do material,
esboçando técnicas de fatura e de reaproveitamento de matérias-primas utilizadas, o que
tornou a visita rica em informações e possibilidades para intervenções de conservação do
objeto em processo de degradação.
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Esta máscara Apasa encontra-se exposta na atual exposição de longa duração do
Museu: “Lavras e Louvores”, com a seguinte informação ao público visitante: “Máscara de
cabeça de cabaça – indumentária de ritual de dança confeccionada em cabaça e palha de
buriti. Índios Yawalapiti” (Ilustração 6).
Foto: A autora
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demais elementos expostos neste circuito expográfico. Contudo, pouco se informa a respeito
dos objetos expostos.
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elementos do desejo da sua própria paisagem. Aqui, a superfície do artefato não é apenas a do
material em particular a partir do qual é feito, mas a da própria materialidade, uma vez que
confronta a imaginação humana criativa (INGOLD, 2000b, p. 53 apud INGOLD, 2015, p.
54). Assim sendo, quando a imagem está realizada no material, matéria-prima se transforma
em materialidade?
Muitos desses objetos que foram coletados por Prof. Acary de Passos Oliveira e que
constituem coleções em Reserva Técnica Etnográfica já perderam parte da história e da
experiência etnográfica por ele vivida, mas ainda preservam na sutileza de sua materialidade
amostras de aromas, cores, tramas e textualidades, que nos transporta à paisagem de origem
dessas matérias, em formas.
Irene Emery nos desperta para algo que vislumbra a vida em sua tridimensionalidade
material, no seu trabalho sobre as estruturas primárias do tecido:
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independentemente de sua natureza ou origem, do interesse particular do
pesquisador, ou do objeto de seu estudo. A estrutura nunca está ausente; ela
é, com exceções negligenciáveis, determinantes; ela pode ser observada
objetivamente; e é suficientemente variável para agrupamentos e
subagrupamentos significativos. Embora os detalhes da estrutura (e da
composição de um elemento) não ofereçam, em si mesmos, uma visão
completa de um objeto, eles provêm bases factuais para uma descrição
compreensiva e, por serem determinantes, permitem classificar e fazer
estudos comparativos (EMERY, 1966, XI apud RIBEIRO, 1985, p. 23).
E como tão bem tratada aqui a importância da construção estrutural para o produto e
para os estudos de objetos manufaturados, trago uma visão parcial da fatura da indumentária
Apasa, fruto de minhas experiências vivenciadas com os indígenas nos momentos de nossos
encontros. Ela é composta de duas peças, sendo uma máscara presa a uma roupa inteiriça de
blusa com mangas compridas e calça, trançadas em palha torcida de palmeira de buriti, com a
trama em sentido vertical da composição da mesma. A urdidura costurada por cordinhas
confeccionadas a partir da seda extraída do broto da palmeira de buriti é disposta
horizontalmente em intervalos do suporte tecido. A trama da calça, na região dos órgãos
genitais, apresenta o trançado xadrezado e, tanto as bordas dos braços como as das pernas,
apresentam acabamento em franjas confeccionadas a partir da própria estrutura da trama
vertical da mesma, como se percebe na imagem a seguir (Ilustração 7).
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Figura 7: Apasa – Máscara Xinguana pertencente ao acervo etnográfico do MA/UFG, 1994.
Foto: A autora
Assim sendo, como num passe de encantamento, Apasa convida o espectador a juntar
aquilo que traduzido no sopro da imaginação, e que em seu tecido, na
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premissa de que, como as encarnações de representações mentais, ou como
elementos estáveis em sistemas de significação, os objetos já se
solidificaram ou se precipitaram dos fluxos geradores do meio que lhes deu à
luz (INGOLD, 2015, p. 54).
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seu mundo cosmológico, subsistindo fortemente a vida em Reserva Técnica do museu. O
material constituinte da máscara passou por intervenções de conservação, para que pudesse ter
a sua estrutura em condições de ser exposta por período determinado de tempo sem que
colocasse em sofrimento o seu suporte; e intervenções de restauro, a fim de prover o impacto
visual originariamente intuído por seus criadores.
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conceiving of it not as final and definitive, but as no more than a moment in the life of the
object, with the aim of ensuring its survival” (YOURCENAR, 1996, p. 207)
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Considerações Finais
Referências
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CARVALHO, M. L. Práticas de intervenção em acervos etnográficos em fibra de buriti:
artefatos xinguanos e sua natureza simbólica, imagética e material. Novas Edições
Acadêmicas, Omni Scriptum GmbH & Co. KG, Stuttgart, 2014.
MILLER, D. Materility. Edited by Daneiel Miller. Duke University Pres, Durham and
London, 2005.
NETO, A. B. A Arte dos Sonhos: uma iconografia ameríndia. Museu Nacional de Etnologia.
Lisboa: Assírio & Alvim, edição 665, novembro de 2002.
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OS TROFÉUS METÁLICOS DA TUNA LUSO BRASILEIRA:
DOCUMENTAÇÃO COMO SUBSÍDIO DA CONSERVAÇÃO
RESUMO: O presente artigo trata da pesquisa realizada na agremiação paraense Tuna Luso
Brasileira, durante o segundo semestre do ano de 2016 e o primeiro semestre do ano 2017. Seu
principal objetivo foi aprimorar a documentação realizada por Silva Junior em 2014, visando
promover a preservação das informações encontradas na coleção de troféus metálicos da agremiação
centenária e também realizar levantamentos dos danos encontrados nos troféus do clube. A pesquisa se
fez necessária porque a Tuna é uma das mais antigas agremiações do estado do Pará e seu acervo de
troféus metálicos se apresenta como uma grande fonte documental que serve como testemunho da
história do esporte na capital paraense. Apesar da grande contribuição desses artefatos para a história
da cidade, estes sofrem com a falta de práticas de conservação tanto do material, quanto do imaterial,
que fazem parte deles, posto isso, realizar a documentação foi a medida encontrada para dar inicio a
uma série de práticas ligadas a preservação dos troféus. Como forma de aprimorar a documentação
realizada anteriormente, na tentativa de promover a preservação desses bens, foi pensada o
desenvolvimento de uma ficha catalográfica, que objetivou a extração de informações intrínsecas e
extrínsecas encontradas nos objetos, como as possíveis patologias encontradas nos troféus, os
materiais que compõe o acervo e o estado de conservação dos mesmos, compreendendo que estes se
apresentam como documentos da história do esporte paraense e com isso contribuem na construção da
história da cidade de Belém. No período de aproximadamente um ano foram documentados 156
troféus metálicos, onde a grande maioria apresentou danos como corrosão, manchas, alteração de cor e
danos à estrutura. Apesar dos significativos resultados obtidos a partir da pesquisa, compreende-se que
há ainda muito a se fazer se tratando desta temática, com isso faz-se necessário o desenvolvimento de
novos estudos que tratem desta linha de pesquisa.
796
ABSTRACT: The present article aims to discuss the research done in Tuna Luso Brasileira Club, in
the second semester of 2016 and the first half of 2017. Its main objective is to improve the
documentation made by Silva Junior (2014), aiming to promote the preservation of the information
found in the collection of metallic trophies of the centenary association and also to carry out surveys
of the damages found in the trophies. The research was necessary because Tuna is one of the oldest
associations of Pará and its collection of metallic trophies is presented as a great documentary source
that serves as a testimony of the history of sport in Belém. Despite the great contribution of these
artifacts to the history of the city, they suffer from the lack of both material and immaterial
conservation practices, and the documentation was the measure found to initiate a series of practices
related to the preservation of the trophies. As a way to improve the documentation previously made, in
an attempt to promote the preservation of these trophies, was the development of a documentation file,
which aimed at extracting intrinsic and extrinsic information found in the objects, such as alterations
found in the trophies, the materials that compose the collection and their conservation status
understanding that these are presented as historical documents, and contribute to the construction of
the history of Belém. In about one year, 156 metal trophies were documented, where the great
majority presented damages like corrosion, stains, change of color and damage to the structure of the
trophies. Despite the significant results of the research, it is understood that there is still a lot to be
done when dealing with this subject, with which it is necessary to develop new studies that deals with
this line of research.
797
Introdução
O uso do metal está presente em nosso cotidiano desde o período Pré-Histórico quando os
primeiros indivíduos desenvolveram ferramentas e utensílios que auxiliavam nos seus
afazeres diários. Segundo Silva & Homem (2008), o uso de metais pode ser encarado como
um “marco significativo na inovação tecnológica”, já que a utilização destes colaborou de
forma significativa para a criação de materiais que contribuíram para o desenvolvimento de
diversas civilizações. Algumas características próprias dos metais (maior resistência a
tensões, deformações, compressão; elasticidade; flexibilidade; durabilidade; cor; textura; entre
outros) podem ter sido o ponto crucial para que eles ganhassem destaque no desenvolvimento
de materiais, que iam desde armas utilizadas para a caça e cultivo (VIEIRA, 200-?) até,
posteriormente, edifícios totalmente metálicos (PALÁCIOS, 2011). Os metais mais usados
eram aqueles comumente encontrados na superfície terrestre como o cobre – um dos
primeiros a serem descobertos pelo homem –; o ouro e a prata, conhecidos como metais
nobres. Ao longo do tempo a grande procura, para as mais variadas finalidades, acabou
contribuindo para a escassez desses minérios, que acabaram sendo substituídos por materiais
como bronze e latão.
No Brasil o uso de metais teve destaque durante a época conhecida como Ciclo da
Borracha, período na qual o país encontrava-se no auge da exportação de matérias
provenientes da extração do látex. Durante esse período ocorreram grandes mudanças
urbanísticas nas cidades brasileiras e houve uma enorme demanda pela importação de
materiais produzidos em países europeus, especialmente os metálicos, de intensa produção na
época. Ainda hoje podemos encontrar em diversas cidades brasileiras construções que contam
a história desse período, tais como: edifícios, elementos decorativos, objetos simbólicos,
elementos urbanísticos, entre outros.
Durante essa época surge na capital paraense o que seria hoje a Tuna Luso Brasileira,
uma agremiação esportiva fundada por caixeiros portugueses como forma de amenizar a
saudade da mãe pátria. Ao longo dos seus 114 anos a Tuna conquistou diversas premiações
798
em diferentes modalidades esportivas que acarretaram em uma enorme coleção de medalhas,
troféus, faixas, entre outros. Dentre as diversas premiações do clube o que chama muita
atenção são os seus troféus metálicos, tanto pela beleza, quanto pelo potencial museológico
que estes apresentam, visto que, como dizem Lima & Granato (2016), “os diversos
significados e usos atribuídos aos objetos metálicos documentam recursos, maestrias
profissionais, modas e requintes, permitindo visualizar o modo de vida das elites e dos
cidadãos comuns”, sendo assim, compreende-se que o estudar e documentar esses artefatos
pode contribuir diretamente para a compreensão do passado (LIMA & GRANATO, 2016).
799
desenvolvido, durante um período de aproximadamente um ano, a documentação de 156
troféus metálicos da agremiação e medidas de conservação preventiva em curto prazo, sendo
um dos primeiros passos para a preservação desse acervo. Com isso, foi possível obter
resultados relevantes que constataram a necessidade de se pensarem medidas mais
aprofundadas de conservação preventiva para a preservação desses bens, e surgiram também,
reflexões sobre o patrimônio histórico material da cidade de Belém. Diante disso, este artigo
visa apresentar o desenvolvimento da pesquisa e seus resultados.
O clube esportivo Tuna Luso Brasileira surge no ano de 1902, quando comerciantes
portugueses – conhecidos como caixeiros – embarcaram na capital do Pará. A princípio a
agremiação era apenas um grupo de músicos que promoviam reuniões como forma de
amenizar a saudade da saudosa pátria. Durante alguns anos as atividades do grupo foram
inteiramente dedicadas a reuniões beneficentes que tinham como finalidade promover a
socialização entre os conterrâneos portugueses residentes em Belém. Ao longo do tempo o
clube fez usos de diversas nomenclaturas como: Tuna Luso Caixeiral, Tuna Luso Comercial e
por fim Tuna Luso Brasileira nome que perdura até os dias de hoje (COSTA, 2012; SILVA
JUNIOR, 2015).
Durante os seus 114 anos, a agremiação promoveu diversas modalidades esportivas bem
como: hipismo, futebol, voleibol e natação. Com isso o clube arrecadou em sua história uma
enorme coleção de premiações (COSTA, 2012) dentre as quais se destaca o seu acervo de
troféus metálicos (Figura 2), que apresentam uma gama de informações intrínsecas e
extrínsecas que colaboram para a construção da história do clube e do esporte paraense.
800
Figura 2: Alguns troféus metálicos que compõem o acervo da Tuna Luso Brasileira.
801
como uma grande contribuinte da história da cidade, a agremiação serviu como base de estudo
para a pesquisa realizada por Silva Junior que se iniciou a partir do ano de 2014.
A pesquisa teve como objetivo a aplicação de práticas de documentação museológica como
a seleção, o registro, a catalogação e a divulgação, com o intuito recuperar e promover a
salvaguarda das informações intrínsecas e extrínsecas do acervo (FERREZ, 1991). Contudo a
pesquisa apresentou algumas lacunas no âmbito da documentação, como por exemplo:
informações mais aprofundadas sobre os danos encontrados nos troféus, e diante disso foi
desenvolvida uma nova pesquisa iniciada durante o segundo semestre do ano de 2016 que
objetivou aprimorar as informações encontradas na documentação realizada a priori.
A pesquisa se fez necessária porque a Tuna Luso é uma das agremiações esportivas mais
antigas encontradas na capital paraense e seu acervo de troféus metálicos se apresenta como
uma grande fonte documental que testifica a trajetória da cidade no esporte paraense.
Contudo, esses troféus acabam sofrendo com as ações de degradação naturais dos objetos e,
principalmente com a falta de ações de preservação voltadas para os mesmos. Diante disso
compreende-se que há uma necessidade de se pensar medidas de preservação deles.
A documentação destes bens foi o meio encontrado para salvaguardar as informações que
fazem parte dos objetos, posto que se pretenda desenvolver futuramente práticas que
preservem diretamente não só as informações, mas também a materialidade dos troféus.
Seguindo a linha de pensamento encontrada em Silva & Homem (2008) de que:
802
trabalhos acadêmicos que podem beneficiar desde o meio cientifico em geral até o meio
tecnológico. A documentação dos troféus foi a forma mais adequada e mais próxima
encontrada para a preservação desses bens.
Como resultados preliminares a pesquisa gerou o desenvolvimento de uma ficha
catalográfica (Figura 3) baseada em diretrizes de Padilha (2014) e Costa (2006) que foram
adaptadas para as necessidades do acervo de troféus metálicos da Tuna Luso Brasileira. A
ficha conta com campos voltados para informações sobre os danos antrópicos (ranhuras,
amassados, fraturas, entre outros) e danos causados por ações do intemperismo (corrosão,
alteração de cor) no acervo.
803
Figura 3: Ficha catalográfica
● Identificação
● Dimensões
● Descrição intrínseca
● Descrição extrínseca
● Estado de conservação
● Observações
● Imagens
A ficha serviu como auxilio para a coleta de informações encontradas nos troféus e
posteriormente foi usada para o desenvolvimento da catalogação dos 156 troféus
documentados durante o período em que se realizou a pesquisa in loco (Figura 4).
804
Figura 4: Preenchimento manual das fichas catalográficas.
805
Figura 5: Dano localizado na sala de armazenamento dos troféus usados na pesquisa realizada entre 2016 e
2017.
806
A partir dos parâmetros definidos para a pesquisa se chegou à conclusão de que a maioria
dos troféus está em um estado de conservação ruim, já que a maioria tem mais da metade da
estrutura comprometida por patologias como corrosão, alteração de cor, manchas e danos à
estrutura do objeto (Figura 6).
Figura 6: (A) Corrosão no troféu ATT.020.2017, (B) Alteração de cor no troféu ATT.151.2017, (C) Manchas
esbranquiçadas no troféu ATT.135.2017, (D) Dano à estrutura do troféu ATT.150.2017.
807
Sabendo da falta de práticas que visam a conservação desse acervo, foi pensado o
armazenamento provisório dos troféus como uma medida de conservação, em curto prazo, da
materialidade desse acervo. Para isso foram usadas caixas de papelão que com etiquetas
indicando a numeração dos troféus armazenados, organizando assim o acervo (Figura 7).
Apesar de compreendermos que a história da Tuna Luso Brasileira não se faz apensas
pelos seus bens matérias, preservar a estrutura desses troféus é uma das formas de levar
808
adiante a história desse clube centenário que é um dos pioneiros no esporte paraense. Os
troféus metálicos da agremiação são testemunhos de uma trajetória de conquistas realizadas
pelo clube e diante disso compreendesse que nada mais justo do que buscar medidas para
preservá-los.
A capital paraense é uma grande detentora de bens culturais que vão desde seus edifícios
históricos até seus contos populares. Esses bens compõem o rico patrimônio arquitetônico,
artístico, histórico, entre outros, sejam eles materiais ou imateriais. O Forte do Castelo e o
Mercado do Ver-O-Peso são de longe, grandes símbolos da capital e juntamente com outros
edifícios como igrejas, casarões e palacetes, constroem o patrimônio arquitetônico da cidade.
Há também os museus que contam um pouco da história da cidade através de acervos que vão
desde imagens de santos católicos encontrados no Museu de Arte Sacra até obras de arte
contemporânea expostas no museu localizado na Casa das Onze Janelas.
Posto isso, compreendemos que Belém é uma cidade permeada de artefatos históricos que,
apesar das problemáticas, contam uma parte da sua história. No entanto, podemos levantar
uma reflexão acerca da localização de boa parte desse rico acervo. Entre os bens patrimoniais
mais aclamados da cidade das mangueiras, podemos notar que, em sua maioria, estes se
encontram localizados no Centro Histórico que para Queirós (2007), de uma forma geral,
pode ser entendido como “um livro de memórias materiais e imateriais, que possui
importantes referências e indicações de identidades dos povos que aí habitam e habitaram ao
longo do tempo”.
Acontece que, assim como em diversas outras cidades brasileiras, uma grande parcela da
população apresenta certa tendência a afirmar como patrimônio tudo àquilo que está
localizado no Centro Histórico, mesmo que essa população não apresente a menor relação de
identificação com esse patrimônio. Diante disso, podemos levantar uma reflexão acerca dos
809
diversos patrimônios que apesar de não estarem localizados nos grandes centros históricos
apresentam um forte potencial para a construção da história e da identidade de uma sociedade.
Durante a realização de pesquisa in loco entre os anos de 2016 e 2017, foi possível
constatar que o clube Tuna Luso Brasileira apresenta um enorme potencial patrimonial por ser
um dos mais antigos clubes do estado e pela sua rica coleção de acervos, que dentre estas se
destaca a coleção de troféus metálicos que foram o objeto de estudo de pesquisas iniciadas a
partir do ano de dois mil e quatorze. A partir das práticas de documentação realizadas pela
pesquisa, foi possível constatar a importância das informações que fazem parte desses troféus
por apresentarem valor histórico e afetivo não somente para os sócios e torcedores do clube,
mas também para a sociedade paraense em geral, considerando que a agremiação é uma das
mais antigas do estado do Pará. No entanto, apesar do enorme potencial patrimonial
apresentado por essa coleção, grande parte da população não tem conhecimento algum acerca
desses objetos e da sua potencial contribuição para a construção das identidades belenenses.
Com a pesquisa realizada no clube luso-brasileiro surgiram ainda reflexões acerca do
patrimônio privado, já que apesar de a Tuna ser uma agremiação paraense, ela é uma
instituição fechada. Diante disso há certa dificuldade de todos os grupos de pessoas
encontradas em Belém terem acesso a esse acervo. Sendo assim, compreende-se que a
agremiação, juntamente com profissionais especializados, deve buscar medidas de divulgação
que alcancem os diferenciados públicos da cidade, tendo em vista que, se a população não
conhece os acervos do clube, as chances destes se identificarem com ele acabam se tornando
mínimas.
Posto isso podemos retornar a reflexão sobre a localização do patrimônio da cidade de
Belém e nos questionarmos sobre o fato de a grande maioria dos “holofotes do patrimônio” se
voltar para os centros históricos. O patrimônio de Belém é somente aquele que se encontra
disposto no centro histórico? Somente os edifícios históricos, museus e as igrejas constroem a
cultura belenense e a identidade de todas as classes dessa população? Essas são algumas
perguntas, ainda sem respostas, que podem nos instigar a refletir sobre a situação em que o
patrimônio, em todos os âmbitos, da cidade das mangueiras está fincado. Mesmo que ainda
810
não tenhamos encontrado respostas para os questionamentos podemos refletir acerca disso
visando futuramente apresentar formas de conseguir voltar nossas visões para os patrimônios
desconhecidos de Belém.
Considerações Finais
Desde os primeiros passos dados por Paul Otlet ao final do século XIX, pode-se dizer que
a documentação é uma forma eficiente e acessível de preservar as informações de um objeto,
um momento, entre outros. Com o surgimento dessa área de estudo começariam as primeiras
especulações sobre o que seria o documento e durante um considerável tempo a noção de
documento aceita pelos especialistas da documentação era a ampla visão “otletiana” de que
documento poderia ser tudo poderia ser considerado um documento, inclusive o que é
encontrado na natureza, porque para ele o documento não estava necessariamente ligado à
materialidade e sim a função que ele representaria (OTLET, 1934 apud SMIT, 2008).
Contudo, no decorrer do tempo surgiram novas teorias que beberam na fonte do “pai da
documentação”, mas passaram a afunilar a definição do que de fato poderia ser tido como
documento. Com isso, Suzanne Briet (1951) propôs em seu manifesto “O que é a
documentação?” afirma que documento será todo registro que afirma um fato. Para a teórica o
objeto por si só não seria documento, mas a relevância das informações encontradas nele
indicaria se este seria ou não um documento (BRIET, 1951 apud SMIT, 2008).
Seguindo a lógica de Briet, podemos compreender que as informações encontradas nos
troféus metálicos da Tuna Luso Brasileira apresentam enorme relevância para que estes sejam
considerados uma fonte documental que registram os primeiros passos da construção do
esporte paraense. Mediante a isso tornasse necessário se pensar medidas que visem conservar
tanto o material, quanto o imaterial desses bens. Algumas medidas já foram iniciadas para que
se preservem estes bens, mas entendemos que os primeiros passos para promover essa
preservação é pensar de forma conjunta formas de deixar esse acervo mais próximo dos
diferentes grupos sociais encontrados na cidade porque se compreende que quando “uma
811
sociedade atribui valor a um objeto, imediatamente a sua conservação se torna necessária” (LIMA &
GRANATO, 2016) e se a própria população não encontra formas de se identificar com estes bens,
tampouco se importará com a sua preservação.
Contudo, para que se possam pensar medidas de preservação voltadas para o acervo da
Tuna Luso Brasileira, é de suma importância compreender também, que o patrimônio
artístico, histórico, arquitetônico, entre outros, localizados na capital paraense, sejam eles
materiais ou imateriais, devem ser pensados para além das áreas aclamadas pelos órgãos
públicos e por algumas parcelas da população. É necessário compreender que a capital
paraense é rica em todos os seus aspectos e que a sua história foi construída a partir dos
grandes centros, mas não somente neles.
Referências
LIMA, Jéssica Tarine Moitinho de; GRANATO, Marcus. Entre a ciência e o patrimônio: a
aplicação de procedimentos analíticos na preservação de acervos metálicos. IV Seminário
Internacional Cultura Material e Patrimônio de C&T. Rio de Janeiro, 2016.
SILVA, Armando Coellho Ferreira da; HOMEM, Paula Menino. Ligas Metálicas:
Investigação e Conservação. 1ª ed.Portugal: U.Porto, 2008.
812
SMIT, Johanna Wilhelmina. A documentação e suas diversas abordagens. MAST
Colloquia – Vol. 10: Rio de Janeiro, 2008.
813
CONSERVAÇÃO: ALIADA PESSOAL DOS MUSEUS LEVANTAMENTO DE
PRAGAS NO MUSEU DA POLÍCIA MILITAR
Valéria Silva*
Lívia Souza Guimarães*
Resumo: A conservação se estabelece como principal fator quando se está dentro de um espaço
museal, justamente pelo seu caráter indispensável na manutenção dos bens culturais, portanto,
medidas de proteção devem ser tomadas para a manutenção desse patrimônio. Nesse trabalho será
abordada uma análise sobre a proliferação de pragas dentro do Museu da Polícia Militar, onde serão
descritos os processos de obtenção de material, as análises feitas relacionando os vestígios encontrados
com as tipologias existentes no Museu, bem como seus potenciais riscos as peças, e como isso se
relaciona com a composição do espaço, no sentido da proximidade com locais de “risco”, e os
componentes do espaço que facilitam a hospedagem das mesmas.
Abstract: Conservation is established as the main factor when it is within a museum space, precisely
because of its indispensability in the maintenance of cultural assets, therefore, protective measures
must be taken to maintain this patrimony. In this work, an analysis of the proliferation of pests inside
the Museum of the Military Police will be discussed, where the processes of obtaining material will be
described, the analyzes made relating the traces found with the typologies existing in the Museum, as
well as their potential risks. Pieces, and how this relates to the composition of space, in the sense of
proximity to "risk" locations, and the space components that facilitate the hosting of them.
814
O presente trabalho trata sobre a análise de pragas, realizada durante três meses, com
métodos de observação e coleta, realizados de maneira periódica e semanal, dos vestígios
encontrados no espaço em questão. O museu está localizado no salão nobre, dentro do Quartel
do Comando Geral da Polícia Militar, que está situado nas mediações da Avenida Augusto
Montenegro com a entrada de Icoaraci. O quartel tem formato quadrangular, com o centro
vazado, onde possui um jardim e uma “mureta” de flores que contorna os corredores,
separando o jardim do corredor de passagem das pessoas, sendo o salão nobre localizado no
meio do corredor noroeste.
CONTEXTUALIZAÇÃO
O salão possui mais ou menos 600 m², com três portas de madeira, que estão localizadas na
porção sul, sendo uma situada no meio do salão, que dá acesso a uma segunda sala que possui
dois banheiros; a segunda na parte norte que dá acesso ao corredor onde ficam as salas da área
administrativa e uma mini copa, e no final possui uma copa e dois banheiros; a terceira porta
está localizada no início do salão e dá acesso a copa do comando geral, que é utilizada todos
os dias cinco vezes por semana.
A entrada do salão nobre é feita por uma porta na direção leste, que fica de frente para o
jardim, na qual o material é vidro, e não possui vedação ou filtros UV. Essa porta faz parte da
parede leste, que é inteiriça de vidro com armação de madeira, que vai do teto até o chão
composta por pedaços de vidro, que não são vedados.
815
Dados coletados
Dia 18/02 foi realizada uma limpeza com aspirador de pó, nos mostruários, pela parte de
dentro e por cima com a ajuda de uma trincha, a fim de não levantar a poeira para o ambiente
e não contaminar as peças, além da aspiração de algumas fardas.
Dia 09/01 a barata encontrada foi utilizada como “isca” para verificação de animais maiores,
pois foram encontradas fezes, indicativas de roedores. Após uma semana, foi constatada a
inexistência de estabelecimento de pragas maiores no museu, levantando a hipótese de que o
local pode ser de passagem, por conta dos seguintes fatores: a existência de um jardim na
frente, uma área verde atrás e três copas numa distância curta do espaço.
816
Tipologias
O acervo do Museu da Polícia Militar está em sua maioria (90%) exposto no salão nobre,
onde são encontradas diversas tipologias, assim como objetos que possuem várias ao mesmo
tempo, mas em síntese temos as seguintes:
1. Têxteis;
2. Couro;
3. Metais e ligas metálicas;
4. Madeira;
5. Vidro;
6. Borracha;
7. Plásticos;
8. Papel;
9. Mármore;
Os mostruários são as maiores peças do museu, onde seu material constituinte já foi citado
mais a cima, e dentro ficam os objetos de pequeno porte, ou por ser o jeito mais seguro de
expô-los.
Nos mostruários localizados ao fundo do salão no lado direito, temos as seguintes tipologias:
ligas metálicas, têxtil (algodão e sintético), metais e plástico (acrílico).
Além disso, a exposição conta com 16 manequins fardados com uniformes da corporação,
variando de trajes simples para os mais elaborados como o da cavalaria.
817
Também existem três bustos, sendo dois de ferro e um de mármore; uma estatueta, um relógio
antigo, um cofre e uma réplica de canhão em ferro, sendo esse último com o cano em
madeira, e as rodas em ferro.
Na área religiosa, temos um altar com os instrumentos utilizados na realização das missas,
uma estatueta de Nossa Senhora com manto e alguns terços, sendo assim as tipologias ali
presentes são: metal, plástico, têxtil, papel e gesso.
1. BESOUROS
1.1. “Percevejo-verde do mato”, se alimenta de sementes como milho e soja, trazendo
consequências para o meio agrícola.
1.2. “Passalidae”, suas larvas subterrâneas que sempre se encontram em se alimentam
das raízes das plantas, causando prejuízo aos agricultores. Outras larvas se
alimentam de material em decomposição. Alguns adultos são importantes
polinizadores, enquanto outros se alimentam de fezes de animais.
2. O grilo sai em busca de alimento durante a noite, pois fica entocado durante o dia. Sua
alimentação pode conter cereais, plantas, fungos, alimentos humanos tecidos de lã e
restos de outros insetos. O quadro de umidade e temperatura da nossa região é ideal
para seu desenvolvimento.
3. MOSCAS
3.1. Doméstica: Se alimenta de restos de corpos putrefatos, sendo animais ou corpos
humanos, também de comida e frutas.
3.2. Varejeira azulada: Possui a mesma dieta da mosca doméstica, porém prefere se
alimentar de frutas.
818
4. As libélulas possuem estágio larval que são aquáticas, carnívoras e extremamente
agressivas, podendo alimentar-se não só de insetos, mas também
de girinos e peixes juvenis. Dentro do seu ecossistema, são bastante úteis no controlo
das populações de mosquitos e das suas outras presas, prestando assim um serviço
importante ao Homem. As libélulas são predadoras e alimentam-se de outros insetos,
nomeadamente mosquitos e moscas têm preferência por habitats nas imediações de
corpos de água estagnada (poças ou lagos temporários), zonas pantanosas ou perto
de ribeiros e riachos.
5. As aranhas de parede se alimentam de pequenos insetos, como moscas, outras aranhas,
traças, pequenas mariposas e borboletas e todo tipo de inseto que apareça em sua teia.
Gostam de lugares escondidos, escuros e úmidos para se desenvolverem.
6. MARIPOSAS:
6.1. FASE LARVAL: TINEA PELLIONELLA É a traça da lã, das peles e dos panos,
pertencentes à família dos Tineidae. A dieta das suas larvas é constituída de
queratina, substância que encontram sob os substratos orgânicos: peles, plumas,
pelos de ovelhas, alpacas, lã com uma particular preferência pelo cashmere, mas
também seda e, às vezes, fibras vegetais como o algodão, também se alimenta de
cabelos caídos pela casa, pele e restos de animais mortos.
A temperatura ótima para o desenvolvimento das traças é de 25°C e uma umidade
de 75%, e em um ano podem desenvolver-se 2 ou 3 gerações.
6.2. FASE ADULTA: TINEA PELLIONELLA As partes bucais reduzidas sugerem que
esta espécie não se alimenta como um adulto.
7. As baratas têm alimentação variada, pois são insetos onívoros, ou seja, comem
qualquer coisa, tendo principal atração por doces, alimentos gordurosos e de origem
animal.
819
Como panorama de associação entre as tipologias da exposição e as pragas
encontradas, pode-se verificar que a maioria delas não constitui perigo iminente, no que diz
respeito à alimentação. Entretanto, constituem perigo quanto as suas fezes e reprodução, pois
mesmo com aquelas que não possuem estágio larval, os restos desses ovos ou casulos ficaram
presos as peças, podendo servir de alimento para outras, como baratas e traças.
No que diz respeito à mariposa tinea pellionella, no qual constitui fase larval que se
alimenta de materiais presentes na exposição, como têxteis e papel, é um fator de risco e
possível perigo de infestação, haja vista que nesse período do ano, ela é encontrada de
maneira frequente, além de não ser fácil seu extermínio, principalmente por conta do
ambiente que ainda não possui regulação de temperatura e umidade, portanto, no momento o
cenário climático do local se encontra em condições perfeitas de estabelecimento para as
mesmas.
Além do mais, pôde ser constatado, que várias espécies de animais tem o salão nobre
como local de passagem, provavelmente para a copa que fica ao lado e não possui vedação,
como ratos, baratas, moscas e alguns besouros que supostamente se perderam do se habitat, o
jardim que fica em frente ao salão.
Considerações Finais
O presente trabalho teve a finalidade de avaliar a incidência de pragas existentes no
local em questão, assim como avaliar suas espécies e modos de vida para então associar com
as tipologias presentes na exposição, verificando se as mesmas constituíam perigos iminentes
de deterioração, ou se cuidados básicos como a limpeza, impediriam sua proliferação
causando perda de material museológico.
A julgar pelas análises feitas anteriormente, tanto de classificação das tipologias,
pragas e seus ciclos de vida, e suas ligações, tal como a relação estabelecida e confirmada
com a limpeza e a construção de isca para detectar a presença de animais maiores.
820
Foram de extrema importância para o entendimento da dinâmica do espaço, como
constituição de local de passagem e estabelecimento de alguns indivíduos, contribuindo para a
elaboração de um plano de limpeza e manejo de pragas, que está em construção, e visa a
prevenção contra algumas espécies, além de impedir o início de uma possível atividade
alimentícia dentro do local.
Referências Bibliográficas
<http://dedetizadorasimoes.blogspot.com.br/2015/09/aranha-perna-longa-saiba-como-
evitar.html>. Acesso em: mar. 2017.
821
PROBLEMÁTICAS NA CONSERVAÇÃO E PRESERVAÇÃO DE ACERVOS EM
INSTITUIÇÕES SECULARES: ESTUDO DE CASO DO MUSEU DE ARTE
SACRA DE PERNAMBUCO
Resumo: O trabalho presente tem por objetivo fazer uma análise das condições de instituições
museólogicas de caráter secular, tomando como base o estudo de um diagnóstico feito no Museu de
Arte Sacra de Pernambuco, cuja construção foi feita no séc XVII, localizada no Sítio Histórico da
Cidade de Olinda. No diagnóstico desse museu, são abordados diversos aspectos que influenciam a
sua gerência, tais como: seu macroambiente (vegetação, arredores, instalações, condições climáticas,
estado de degradação do acervo), médio ambiente (reserva técnica, segurança e roubo), microambiente
(agentes de deterioração), para que se possa apontar com eficiência as problemáticas e, assim,
possíveis soluções nos métodos de conservação da própria instituição e também do seu acervo. Além
disso, cabe ressaltar que geralmente os prédios que abrigam os atuais museus nem sempre foram
pensados com essa finalidade e, portanto, adaptados para isso, implicando em uma série de limitações
prediais, de conservação e de manutenção dos mesmos, que afetam a aplicação dos métodos
preventivos. Assim, a priori, é realizado um estudo histórico geográfico da estrutura e do contexto ao
qual o museu está inserido, para que se possa entender com segurança todas as modificações
realizadas e as que, por ventura, poderão existir. Em seguida são abordadas as características vizinhas,
como por exemplo, a vegetação predominante, a qualidade do ar atmosférico, o índice de umidade
relativa do ar, dentre outros fatores que influenciam diretamente no estado de conservação do museu,
seja em relação à estrutura física do prédio, como no que ele abriga. Ademais, ainda é apontado como
é feito atualmente o procedimento preventivo de conservação utilizado pela instituição em comento,
assim como quais as soluções encontradas para diminuir os impactos dos fatores externos no acervo e
no prédio e, por fim, comparação e proposta de melhorias adaptado ao caso e ao museu avaliado.
822
Abstract: The present work aims to make an analysis of the conditions of museological institutions of
a secular character, based on the study of a diagnosis made in the Museu de Arte Sacra de
Pernambuco whose construction was done in the 17th century, located in the Historic Site of the
Olinda City. In the diagnosis of this museum, several aspects that influence its management are
discussed, such as: its macroenvironment (vegetation, surroundings, facilities, climatic conditions,
degraded state of the collection), environment (technical reserve, security and theft),
microenvironment (agents of deterioration), so that the problems can be identified efficiently and,
thus, possible solutions in the conservation methods of the institution itself and also its collection.
In addition, it should be emphasize that generally the buildings that house the present museums have
not always been thought for this purpose and therefore adapted for this, implying in a series of
limitations of land, conservation and maintenance of the same, that affect the application of the
preventive methods. Thus, a priori, a historical geographic study of the structure and context to which
the museum is inserted is carried out, so that one can safely understand all the modifications made and
those that may exist. Next, the neighboring characteristics, such as predominant vegetation,
atmospheric air quality, relative air humidity index, and other factors that directly influence the
conservation status of the museum, either in relation to the physical structure of the museum. building,
as in what it houses. Besides, it is still pointed out how the conservation preventive procedure used by
the institution in question is currently done, as well as what solutions are found to reduce the impacts
of external factors on the collection and the building, and, finally, comparison and proposed
improvements adapted to the case and to the museum evaluated.
823
Introdução
O prédio onde hoje abriga o MASPE se localiza no Alto da Sé, cidade de Olinda do
estado de Pernambuco e foi construído no século XVII, e é resultado de uma adaptação de três
prédios anteriores: um correspondente a altura, ao trecho dos dois torreões, o segundo, que já
foi uma residência térrea, e por fim o terceiro que funcionava a Casa de Câmara (MENEZES,
1974, n.p). A instituição também já abrigou o Palácio Episcopal e um Quartel do Exército.
824
Museu de Arte Sacra de Pernambuco para proteger e preservar o acervo, assim como formas
mais acessíveis de métodos para uma melhor conservação preventiva.
Metodologia
Para dar início a esse trabalho, inicialmente foi necessária uma carta de solicitação da
Universidade para que a responsável pelo museu, a Anazuleide Ferreira4 concedesse as visitas
técnicas necessárias para a realização do trabalho. Assim que concedida, foram feitas as
devidas visitas com fins de análise do prédio, acervo e arredores da instituição, registro de
fotografias e demais observações fundamentais. Foram também realizadas visitas técnicas ao
Museu da Abolição
4
Anazuleide Ferreira é uma Historiadora com especialização em conservação do papel. É a arquidiocesana
responsável pelo Museu de Arte Sacra de Pernambuco.
825
Resultados
826
Gráfico 1: Tabela climática da cidade de Olinda.
Um fato alarmante é que o museu não conta com nenhum equipamento para calcular a
variação de temperatura, tampouco para medir ou regular a umidade, ou seja, não há uma
tabela de dados sobre as temperaturas e níveis de umidade medidos diariamente, da forma
como deveria ser.
De acordo com Luiz Antônio Cruz Souza e Yacy-Ara Froner: “Uma temperatura
média elevada limita as oportunidades de resfriamento. E uma umidade relativa elevada limita
as oportunidades de secagem e aumenta a probabilidade de formação de mofo, ataque por
insetos e corrosão de metais”. (SOUZA; FRONER, 2008, p.15)
827
ocorre de acordo com as necessidades do museu e tudo relacionado a isso é encaminhado
através de solicitação para a FUNDARPE, que é a responsável pela manutenção do prédio.
Simone Mesquita acredita que: “Na conservação e restauro deveriam haver registros
de todos os procedimentos com fotografias e atualizados os bancos de dados, estando estes
vinculados ao programa principal de catalogação e documentação institucionais.’’
(MESQUITA, 2012, p.75). No caso concreto do MASPE, são notadas diversas dificuldades
estruturais, contudo, a Reserva Técnica, diante dos esforços pessoais dos empregados,
apresenta um razoável funcionamento e respeito às regras já expostas. O museu conta com
duas reservas técnicas: uma de Arte Sacra e outra de Arte Popular e quatro salas expositivas,
todas no primeiro andar, com aproximadamente 80 peças para exposição.
Nas reservas há 53 livros, dentre eles bíblias, livros direcionados a rituais funerários e
partituras que vieram dos conventos e os paramentos: vestes e acessórios, linhos e guarnições.
Ou seja, bastante papel suscetível ao ataque de insetos e traças.
828
assemelha à estrutura do MAB - Museu da Abolição5, por exemplo, que possui esse mesmo
perfil, exceto pelo piso. No MAB a situação é ainda mais delicada, pois as portas já estão
entrando em estado de decomposição, inclusive há espaçamentos enormes nas bordas, o que
abre possibilidade para vários invasores da natureza. E o museu não conta com câmeras, nem
brigada de incêndio, além de um sistema de segurança precário. O MASPE está bem próximo
dessa realidade, pois apesar de agora possuir câmeras, nem sempre foi assim, inclusive, há o
histórico de duas peças roubadas do museu, que nunca foram localizadas.
Há a parte da pinacoteca, com pinturas de óleo sobre tela, com uma vasta coleção de
Albert Simões. As cômodas são do estilo colonial. A coleção do mobiliário confere peças do
século XVII. O uso da coleção em sua maior parte é para exposição. É muito raro um
pesquisador da área sacra então não há muita oportunidade para pesquisas. Contudo, as peças
saem para empréstimos. Geralmente para rituais litúrgicos. Na semana santa a freqüência é
5
O Museu da Abolição é uma instituição federal vinculada ao IBRAM, criada por decreto federal no ano de
1954, em homenagem a Joaquim Nabuco e João Alfredo, ambos abolicionistas. Foi construído também no
século XVII, possuindo problemas de estrutura semelhantes ao MASPE.
829
maior, mas no geral no museu mais entra peças do que sai. O museu também atua como
guardião.
Por ser uma área cercada de vegetação, o museu está bem propenso à ataques de
pragas, e não há nenhum método de intervenção de insetos. Só o que existe é uma detetização
sistemática, para ratos, baratas e cupins, feita a cada 15 dias, cuja FUNDARPE é a
responsável, mas não há controle sobre as traças, por exemplo, que são fortes inimigos do
papel. Essa detetização geralmente ocorre nas segundas feiras, já que o museu é aberto ao
público e ninguém vai trabalhar por motivos de segurança.
As janelas não possuem telas então isso facilita ainda mais o acesso dos insetos ao
museu, incluindo os maruins, que podem chegar a atrapalhar significantemente no dia a dia
de trabalho. E a vegetação é tão presente que chega fica bem próxima de algumas janelas do
museu. A estrutura que diz respeito à madeira também atrai agentes de deterioração, inclusive
deixa o ambiente bem propenso a infiltrações e mofo, como também foi encontrado no MAB.
Considerações Finais
Em consonância com o dito acima, deve-se ressaltar que um dos fatores negativos se
dá ao fato de que diversos museus estão alocados em prédios antigos, onde muitos destes
830
precisam de manutenção específica e quando não ocorre, agrava-se o processo de deterioração
e todo o custo envolvido em um possível restauro é muito alto, por isso, uma das máximas
levantadas por estudiosos é que precisamos cuidar e conservar, para não restaurar. Contudo,
quando se fala em conservação e restauro, ele se alastra para os bens internos possuídos pela
instituição, visto que muitos deles são doações, material de estudo, entre outros e chegam aos
museus nas mais diversas condições físicas, por isso cada peça tem sua particularidade e
manejo, devendo ser estudada, catalogada e conservada antes da exposição.
Deste modo, pôde ser observado que os devidos Planos Museólogicos de instituições
desse calibre não entram em vigor, fazendo com que vários déficits entrem em pauta, tais
como: a ausência de uma ventilação apropriada, condições climáticas fora de controle, insetos
e roedores sem grandes dificuldades de adentrar, devido a ausência de telas, e incidência solar
castigando o prédio e seu interior. Então é preciso não só planejar, mas também agir. Executar
os Planos Diretores que não saem do papel. Cobrar das instituições responsáveis por esses
museus providências cabíveis e urgentes. Aprofundar os estudos acerca da preservação dos
bens culturais. Porque uma vez que esses patrimônios forem perdidos, não haverá mais volta.
O patrimônio é de todos. E é dever de todos preservá-lo.
Referências Bibliográficas
831
FRONER, Yacy-Ara; SOUZA, Luiz Antonio Cruz. Tópicos em Conservação Preventiva.
Vol. 1. Belo Horizonte: LACICOR - UFMG, 2008.
MENEZES, José Luiz Mota. Resultado das prospecções realizadas no prédio do antigo
Palácio dos Bispos em Olinda, 1974.
MEUNIER, I.M.J; SILVA, Horivani Conceição Gomes da. Horto D’el Rey de Olinda,
Pernambuco: História, estado atual e potencialidades da cobertura vegetal de uma área
verde urbana (quase) esquecida. REVSBAU: Piracicaba, 2009.
832
VAMOS PUBLICAR SOBRE CONSERVAÇÃO PREVENTIVA? A PRODUÇÃO
ELETRÔNICA SOBRE CONSERVAÇÃO PREVENTIVA DE ESCULTRAS
DEVOCIONAIS EM MADEIRA – UMA BREVE ANÁLISE
833
Abstract: The devotional objects, considering that the sculptures made of wood, became part of the
museum collections when they were perceived as memory possessign objetcs, which transcended its
functional value. All the museological institution patrimony needs actions aimed at the extension of its
useful life, and Preventive Conservation has been current practice in these institutions quite discussed
as a way for the preservation of museological heritage. Understanding that the significance of these
patrimonial assets and the care that they need for their permanence, it is very important that the
production and diffusion of literatures that support the work of conservation of these objects, whether
by public or private institutions. In the contemporaneity, the search for bibliographic reference mainly
comes from the electronic means, research sites, due to the ease of access. Considering this, this work
sought to make a survey through portuguese text search sites that addressed the issue of Preventive
Conservation of wooden devotional sculptures, trying to establish a current panorama of
bibliographies available for research. It was then based on the premise that search sites provide a
bibliographic reference that addresses the Preventive Conservation of devotional sculptures in wood
and that allow the study of such objects.
834
A Conservação Preventiva de Esculturas Devocionais em Madeira
835
Figura SEQ Figura \* ARABIC 1: Escultura de Santa Luzia,
madeira policromada datada do século XVIII.
836
Segundo o Código Deontológico aprovado pelo ICOM em 2009, acerca dos objetos
devocionais em museus
As imagens devocionais acabam por criar um elo de ligação entre o produtor e seu
tempo e o expectador e seu tempo, afinal “palavras e imagens são formas de representação do
mundo que constituem o imaginário” (PESAVENTO, 2003, p86 apud SOUSA, 2005, p.3).
Entendendo então a significância de tais bens patrimoniais e os cuidados que os mesmos
necessitam para a sua permanência, é de grande importância a produção e difusão de
literaturas que fundamentem e auxiliem o trabalho de conservação destes objetos, sejam por
instituições públicas ou privadas.
Na tabela a seguir podemos ver alguns textos disponíveis que estão voltados a
discussão sobre as esculturas em madeira (Tabela 1).
Tabela 1: Listagem de textos disponíveis em plataforma eletrônica que abordam questões relativas a
preservação de escultura em madeira.
837
Título Autor(es) Ano Obs.
838
Restauração de uma escultura sacra em madeira policromada,
Ana Carolina Rodrigues 2013 *CP
com ênfase no processo de limpeza
839
restauro em detrimento da conservação preventiva – apenas os textos com o item *CP trazem
uma preocupação com tal prática de conservação.
Referências Bibliográficas
840
DOMINGUES SILVA, William Cléber. A Construção Do Patrimônio Cultural E Sua Relação
Com Os Museus: Uma Análise Introdutória. In: Patrimônio: Lazer & Turismo, v.7, n. 10,
abr.-mai.-jun./2010, p.39-53.
FAVRET, C.; CUMMINGS, K.S.; MCGINLEY, R.J.; HESKE, E.; JOHNSON, K.P.;
PHILIPS, C.A.; PHILLIPPE, L.R.; RETZER, M.E.; TAYLOR, C.A.; WETZEL, M.J. 76
Profiling Natural History Collections: Amethod for Quantitative and Comparative Health
Assessment. Colletion Forum. Vol. 22 No. 1–2, 2007. p. 55.
FRONER, Yaci-Ara. Roteiro de avaliação e diagnóstico de conservação preventiva.
Belo Horizonte: LACICOR − EBA − UFMG, 2008. 43 p.: 30 cm. − (Tópicos
em conservação preventiva; 1).
GHIRARDELLO, Nilson; SPISSO, Beatriz. (org.). Patrimônio histórico: como e por que
preservar. Bauru, SP: Canal 6, 2008.
GONÇALVES, José R. S. Antropologia dos objetos: coleções, museus e patrimônios. Rio
de Janeiro, 2007. 256p
MEDEIROS, Gilka Flores de. Por que preservar, conservar e restaurar?. BeloHorizonte:
Superintendência de Museus do Estado de Minas Gerais, 2005.
841
PAULA, Teresa Cristina Toledo de. De Plenderleith a Al Gore: o ideário vigente na
conservação de bens culturais móveis no século XXI. An. mus. paul., São Paulo, v. 16, n. 2,
2008.
842
ZANATTA, Eliani Marchesini. Museu Imperial, metodologias de conservação e
restauração aplicadas às coleções: uma narrativa. 2011. Dissertação (Mestrado) - Pós-
Graduação em Museologia e Patrimônio, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro.
ZANON, Sandra Buth. Gestão e segurança da informação eletrônica: Exigências para uma
gestão documental eficaz no Brasil. In: Biblios, n. 56, pp. 69-79. 2014. Disponível em:
http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/gestao_e_seguranca_da_informacao_eletroni
ca.pdf
843
SALVAGUARDA NO MUSEU DA MEDICINA DE PERNAMBUCO – MMP
PRESERVAÇÃO DA COLEÇÃO DR. OCTÁVIO DE FREITAS
Resumo: O trabalho apresenta a ação de salvaguarda da Coleção Dr. Octávio de Freitas, localizada no
acervo do Museu da Medicina de Pernambuco – MMP, que vem sendo realizada por docentes,
técnicos e discentes de cursos da UFPE (Museologia e Ciências Sociais). O Museu faz parte do
complexo educativo-cultural “Memorial da Medicina de Pernambuco”, situado em sítio histórico no
bairro do Derby, Recife-PE, pertencente e coordenado pela Universidade Federal de Pernambuco –
UFPE, que acolhe, ainda, a Sociedade Brasileira de Médicos Escritores - Regional de Pernambuco, a
Associação dos ex-Alunos da Faculdade de Medicina do Recife, o Instituto Pernambucano de História
da Medicina, o Instituto de Pesquisas e Estudos da 3ª Idade, a Academia de Artes e Letras de
Pernambuco, e a Academia Pernambucana de Medicina, entidades cujos funcionamentos ocorrem
administrativamente de forma autônoma. O Museu da Medicina é oriundo do estatuto, datado
em 1953, do referido Instituto Pernambucano, e somente instalado em 1987, no Hospital D.
Pedro II; passando a funcionar no Memorial, em 1999, após anos fechado. O processo de
Salvaguarda teve início com a retirada de 102 itens da coleção que se encontravam na exposição de
longa duração, há mais de 10 anos, no interior de uma estante de madeira e vidro, também componente
da coleção, cujo procedimento ocorreu nos dias 25 de julho, 2, 3, 5 e 8 de agosto de 2016, e executou
uma higienização elementar, acondicionamento e documentação básicas, em virtude da fragilidade do
acervo e limitação de recursos, decidindo-se, a seguir, pelo encaminhamento da problemática a
especialista em conservação e restauração, e cuja análise da questão resultou na elaboração e envio de
projeto para a recuperação de 82 itens de suporte papel, à seleção do Programa de Fomento
FUNCULTURA, patrocinado pelo Governo do Estado de Pernambuco. A ação também promove
atualização da documentação e pesquisa da coleção.
Palavras-chave: Patrimônio C&T; História da Medicina; Conservação de Bens Culturais; Dr. Octávio
de Freitas; UFPE.
844
ABSTRACT: This work presents an act to protect the Collection of Dr. Octávio de Freitas, located in
the Museu da Medicina de Pernambuco (MMP), that has been used by professors, experts and students
of the Museology and Social Science course of the University Federal of Pernambuco (UFPE). The
museum is part of the Memorial da Medicina de Pernambuco, placed on the historical site of Derby
neighborhood, located in Recife-PE, belonging and coordinated by UFPE. The museum also houses
the Sociedade Brasileira de Médicos Escritores - Regional de Pernambuco, the Associação dos ex-
Alunos da Faculdade de Medicina do Recife, the Instituto Pernambucano de História da Medicina, the
Instituto de Pesquisas e Estudos da 3ª Idade, the Academia de Artes e Letras de Pernambuco, and the
Academia Pernambucana de Medicina, which each one of them work autonomously. The Museu da
Medicina is derived from the statute, dated 1953, of the aforementioned Instituto Pernambucano, and
just found a place in 1978, in Hospital Dom Pedro II; it moved to Memorial, in 1999, after long years
closed. The Safeguard process began with a recall of 102 items from the collection that is found in the
long-standing exhibition, more than 10 years ago, inside a shelf composed by wood and glass, also
part of the collection. The Safeguard happened on the 25th of July, and on the 2nd, 3rd, 5th and 8th of
August, 2016, and carried out basic hygiene, basic packaging and documentation. Due to the fragility
of the collection and limitation of resources it was decided to refer the problem to a specialist in
conservation and restoration, whose analysis of the issue resulted in the preparation and submission of
a project for the recovery of 82 paper support items, to the selection of the FUNCULTURA
Development Program, sponsored by the Government of the State of Pernambuco. The action also
promotes updated documentation and collection research.
Key-words: Science and technology heritage; History of medicine; Conservation of cultural heritage;
Dr. Octávio de Freitas; UFPE.
845
Introdução
6
O Museu está registrado no Cadastro Nacional de Museus, do IBRAM - Instituto Brasileiro de Museus, como
uma instituição privada. Ver:
http://sistemas.museus.gov.br/cnm/pesquisa/listarPorMunicipio?coMunicipio=1595.
846
práticas de estágio supervisionado (não obrigatório e curricular)7, diante de ações relacionadas
com as seguintes funções museológicas: gestão de museus (plano museológico),
documentação e pesquisa, conservação e exposição. E, entre os primeiros projetos de
extensão, aponta-se: Memória Social da Medicina: preservação e divulgação do Museu da
Medicina de Pernambuco, de autoria da Profa. Dra. Emanuela de Sousa Ribeiro, que trata,
entre outras questões, da documentação museológica. Enquanto discente do Curso de
Museologia, a museóloga Manoela Lima, protagonizou uma das primeiras ações dirigida ao
processo de musealização, quando em 2013 apresentou em seu Trabalho de Conclusão de
Curso, um estudo sobre a história do museu e um arrolamento do acervo composto por 1576
itens.
Seus acervos são originários de doações levantadas e enviadas, no geral, por profissionais da
área da saúde, em especial, médicos e seus familiares, contando, ainda, com aquisições
advindas de entidades referentes locais, como a Santa Casa da Misericórdia e a UFPE.
A Coleção Octávio de Freitas é abordada no projeto Objeto, Ciência e Pessoa: aspectos sócio
antropológicos do acervo de Octávio de Freitas no Museu da Medicina de Pernambuco,
elaborado por professoras do Departamento de Antropologia e Museologia da UFPE, e tratada
como referência que diz respeito a história da Medicina, detendo-se em Pernambuco e a
biografia do médico Octávio de Freitas; informando que a Coleção encontra-se em precárias
condições de conservação e praticamente desconhecida do público.
7
Ver: FREITAS GOMES, Maria Cristina de (org.). Programa de Estágio Supervisionado do Museu da Medicina
de Pernambuco – MMP para discentes do curso de bacharelado em museologia da Universidade Federal de
Pernambuco, 2014-2017.
847
A Importância de Octávio de Freitas para o MMP e a Medicina
A existência do casarão que abriga o MMP é fruto do esforço do Dr. Octávio de Freitas,
personagem histórico muito importante ao desenvolvimento do ensino médico em
Pernambuco e sanitarista reconhecido nacionalmente. Ele nasceu na cidade de Teresina,
Estado do Piauí, no dia 24 de fevereiro de 1871, filho do desembargador José Manuel de
Freitas. Ao longo de sua existência morou em diversas cidades, residindo no Recife, onde
permaneceu até os últimos dias de sua vida, falecendo em 1949. Ingressou na Faculdade de
Medicina da Bahia e posteriormente na do Rio de Janeiro, atuando como médico no Hospital
São João Batista, em Niterói e posteriormente na Policlínica desta cidade; participou de
missão para combater a febre amarela na cidade de Pirassununga, no Estado de São Paulo,
onde a epidemia assolava a população. Participou de algumas causas abolicionistas e foi um
dos fundadores do Clube Republicano da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. No
Recife ocupou diversos cargos: Ajudante da Superintendência da Higiene Municipal, diretor-
fundador do Instituto Vacinogênico, Inspetor geral de higiene do Estado (1899), Diretor e
organizador do Instituto Pasteur de Pernambuco (1901/1930), Diretor Geral de Higiene
848
(1918/1919) - período em que dirigiu e organizou a campanha de combate à epidemia de
influenza, Diretor do Departamento de Saúde Pública (1937/39); fundou a Liga
Pernambucana contra Tuberculose; além de participar da organização de eventos médicos,
sanitários e acadêmicos. Autor de significativos estudos, em 1895 publicou “Estatísticas
Demográfico-Sanitárias” e “Anuário de Estatística Demográfico-Sanitário da cidade do
Recife”, levantamentos de extrema relevância. Bastante engajado em causas sociais, Octávio
de Freitas viu a necessidade urgente de criar uma Faculdade de Medicina no Recife e sua
atuação foi fundamental para a criação da instituição, articulando-se com docentes do Curso
de Farmácia. Em 16 de junho de 1920 fundou-se a Faculdade de Medicina, resultado do
esforço de Octávio e seus companheiros, sendo ele o primeiro diretor.
Metodologia de trabalho
As atividades e estudos provenientes das ações que vem sendo realizadas pela estrutura
oferecida pela UFPE junto ao processo de musealização do MMP, revelaram situações de
carência à manutenção do Museu durante sua existência, após dezoito anos de sua reabertura
ao público. Entre as problemáticas encontradas, a ação de salvaguarda iniciada e realizada nos
dias 25 de julho, 2, 3, 5 e 8 de agosto de 2016, por meio da atuação de estagiários e
supervisão museológica em itens da Coleção Dr. Octávio de Freitas que encontravam-se em
mostra lacrada no interior de uma estante de madeira e vidro, objeto também pertencente a
Coleção, após passar mais de dez anos na exposição de longa duração. A ação resgatou
documentos/objetos relativos a acervos da Museologia, Arquivologia e Biblioteconomia para
fins de conservação, documentação e pesquisa. O acontecimento trouxe uma grande
preocupação aos que lidam com a questão, em virtude da precária condição de preservação
encontrada.
849
1 – Realização de Inventário e Registro Fotográfico. Registro de 102 itens (fotografias,
documentos, livros, revistas, objetos médicos e pessoais) em formulário criado com campos
informativos que abordam: numeração, tipo de acervo, autoria/fabricante, nome do objeto,
data e origem, material e técnica, dimensão, modo de aquisição, estado de conservação,
localização, observação; adotando-se numeração provisória, em virtude desses itens não
estarem listados no arrolamento existente, visando posterior inserção no inventário geral do
MMP. Utilização de recomendações da “Cartilha de Orientações Gerais para Preservação do
Patrimônio Cultural de Ciência e Tecnologia”, publicada pelo MAST e CNPq.
850
controlado a - 18º, por 20 dias; 2) Higienização de todo acervo, com trinchas de pelo macio,
em mesas específicas para higienização; 3) Pequenos reparos nos documentos, caso
necessário, com materiais apropriados a conservação de acervos; 4) Acondicionamento do
acervo, em caixas e pastas, confeccionadas com Synt paper.
APRESENTAÇÃO DE PARTE DA
DOCUMENTAÇÃO FOTOGRÁFICA
REALIZADA8
8
Documentação fotográfica por: Cristina de Freitas, Paulo de Tarso e Suzana Omena.
851
Estagiários participando da ação de salvaguarda
Documentos com perda de suporte, rasgos, acidez, fitas adesivas ácidas, manchas, oxidação
por grampos e tachas, sujidades, lombadas danificadas. Diplomas fixados por tachas no
interior da estante foram encontrados e retirados.
852
853
Considerações finais
854
colaborar com o desenrolar da função social do Museu. A Coleção é considerada Patrimônio
Histórico de Ciência e Tecnologia e sua recuperação é urgente.
Referências bibliográficas
BARRETO, Luiz. Museu da Medicina de Pernambuco. Estudos Universitários, Revista de
Cultura da Universidade Federal de Pernambuco, v. 27, n. 8, p.133-140, 2011.
855
MUSEU ITINERANTE DO ATLETISMO PARAENSE: A CONCRETIZAÇÃO DO
FAZER MUSEOLÓGICO
Resumo: O presente trabalho apresenta uma pesquisa realizada entre os anos de 2016 e 2017 por
discentes do curso de Bacharelado em Museologia da Universidade Federal do Pará. A pesquisa
consiste em documentar o acervo esportivo do atletismo paraense referente às décadas de 1970 ao ano
2000. Esta necessidade surge em função de haver uma salvaguarda deste patrimônio - o qual possui
uma memória afetiva e uma historicidade para com a sociedade. Desse modo, compreendemos que
essa coleção apresenta um valor histórico e simbólico tanto para os proprietários, quanto para os
amantes do atletismo. Assim, ações de documentação foram pensadas como forma de resgatar as
informações destes artefatos visando posteriormente o desenvolvimento de ações de conservação
preventivas mais aprofundadas que auxiliem na preservação tanto das informações, quanto da
materialidade desse acervo, pois a coleção encontra-se suscetível às diversas ações de degradação - por
não haverem medidas de conservação preventiva que visem minimizar estes processos – e também por
não possuir um local de guarda definitiva do museu. Portanto, iremos apresentar os resultados obtidos
durante a realização da documentação e da conservação; bem como apresentaremos as discussões
acerca das memórias individuais e coletivas que fazem parte desses objetos.
Palavras-chave: Memória; Atletismo; MIAPA; Documentação; Conservação.
Abstract: The present paper shows a research fulfilled during the years of 2016 and 2017 by the
Museology’s bachelor degree students from the Universidade Federal do Pará. The research consists in
to document the sporting collection of paraense athletism, it refers to the decades of 70’s until the
2000 year. This lack arises depending on there is a safeguard of this heritage – which that has an
affective memory, and a historicity towards the society. Thereby, we comprehend that this collection
shows a historic and symbolic value as well the owners as the athletics lovers. So, documentation’s
actions were preserved as a way to rescue the reports of these artifacts seeking subsequently the
development of deeper preventive conservation actions which help in the preservation both
information and materially of this collection, because it is susceptible to many actions of degradation –
because there isn’t a place of definitive safety at the museum. Therefore, we are going to present the
reached results during the development of the documentation and the conservation; as well we are
going to show the discussions about the individual and collective memories that are part of those
objects.
Key-words: Memory; Athletics; MIAPA; Documentation; Conservation.
856
Introdução
Desse modo, o projeto foi levado para além da disciplina e está sendo aperfeiçoado,
dando continuidade ao que foi iniciado em sala de aula. Assim, o MIAPA é formado pelo
acervo pessoal da ex atleta Suzete Montalvão e demais atletas do circuito. Até o presente
momento foram inventariados 156 objetos, referente à Coleção Suzete Montalvão, dentre eles
encontramos indumentárias, troféus, medalhas, placas comemorativas, documentos e
fotografias que estão sendo catalogadas pelos integrantes da equipe.
857
material e o imaterial, decorrente de sua vasta tipologia e das memórias que circundam cada
objeto junto ao seu contexto de criação.
Segundo Ferrez (1991), todo objeto é detentor de informação logo eles possuem um
conjunto de sentidos que são fundamentais para os mais diversos públicos tais como
estudantes, pesquisadores, professores, etc. Portanto, a documentação museológica realizada
no acervo do MIAPA busca, através das práticas documentais, o detalhamento das
informações intrínsecas - as deduzidas do próprio objeto, através da análise das suas
propriedades físicas - e extrínsecas - aquelas obtidas de outras fontes que não o objeto e que
só muito recentemente vêm recebendo mais atenção por parte dos encarregados de
administrar coleções museológicas - para em seguida dar continuidade ao processo de análise
de patologias.
858
Tabela 1: Organização do Inventario do Museu Itinerante do Atletismo Paraense.
859
O acervo e a conservação como processo de preservação do objeto
[...] podemos inferir que não somente os objetos ou as coisas, mas suas
representações imagéticas e simbólicas circulam nas entranhas das memórias
dos sujeitos sociais, em meio a sentimentos e vivências que resistem ao
ocaso e se mantêm devotadas a sustentar vínculos com os seus lugares de
pertencimento, historicamente construídos. (PELEGRINI, 2007:5)
Um bom acondicionamento das peças é essencial para prolongar a vida útil dos
objetos, além do mais, os objetos usados para esta pesquisa, fazem parte de uma história que
foi vivida por milhares de pessoas, que prestigiaram as competições estaduais, nacionais e
internacionais em que esses atletas paraenses estiveram presentes afirmando, deste modo, que
a materialização da memória através dos objetos, auxilia na reminiscência e esquecimento de
determinadas lembranças (PELEGRINI, 2007). São estas vivências que, consequentemente,
nos permitiram poder dar continuidade ao trabalho de criação do MIAPA e, logo, estudar
mais a fundo os modos adequados referentes à Conservação Preventiva para que pudéssemos
realizar ações sobre os diversos tipos de materiais que o acervo nos ofereceu ao longo das
análises.
860
deste material pode conter alguns resíduos que “reagem e destroem aos poucos as cadeias
moleculares da celulose” e/ou devido à influência do ambiente externo como calor, umidade,
poeira, microrganismos, etc. Assim como o papel, os têxteis sofrem externamente devido as
suas fibras – orgânicas, inorgânicas e sintéticas – entrarem em contato com agentes externos
como a luz e assim, afetar a pigmentação e coloração das fibras juntamente com a
desestruturação dessas tramas. Além desses, ainda podemos citar a degradação por radiação,
gases atmosféricos, catástrofes, vandalismo, entre outros. Mediante as condições climáticas
amazônicas em que, a temperatura é 30ºC e a umidade fica cerca de 70% (COSTA;
PALÁCIOS; CASTRO, 2015), acervos metálicos requerem um cuidado especial, pois suas
condições de climatização devem ser ideais para este tipo de material, ou seja, a umidade deve
ser baixa e a temperatura relativa a esta coleção, o que é difícil quando se tem um acervo
misto.
As outras tipologias do acervo aqui trabalhado não fogem muito da realidade desses
materiais citados acima, portanto, para dar início aos procedimentos de conservação
preventiva, foi analisada a quantidade de materiais que compõe o acervo – que totaliza 156
objetos – e dividida por seu material de constituição predominante: metais (99), têxteis (19),
papeis (24), plásticos (1), cristal (1), madeira (1), mistos (11). Sendo assim, as práticas foram
pensadas de maneira que suprissem a necessidade de cada tipologia, levando em consideração
a região onde nos situamos: a Região Amazônica.
861
É importante ressaltar que à medida que vamos conhecendo mais sobre a composição
deste acervo assim, também, realizamos melhorias mais rentáveis, que estejam dentro de
nossas possibilidades, e, sobretudo, que estejam acessíveis e comunicáveis tanto para os
grupos de pesquisas quanto para o público em geral que possa desejar conhecer o acervo e sua
sistematização tanto de informações quanto as ações em conservação preventiva.
Considerações finais
Podemos dizer que esses objetos, em seus processos de fabricação, trazem consigo um
valor simbólico o qual, posteriormente, se transforma em valor histórico. Compreendendo que
estes objetos podem apresentar uma potencialidade para representarem memórias e
identidades, pensamos a documentação e conservação desta coleção de ex-atletas paraenses a
partir da compreensão de que estas podem contribuir para a construção das histórias, de
identidades e das memórias de variados grupos de moradores da capital paraense.
862
De modo geral, o MIAPA se apresenta como um museu que atualmente está em
formação e que, unindo esforços colaborativos, nasce de uma necessidade de pôr em prática o
aprendizado e as trocas de conhecimentos experenciadas tanto em sala de aula quanto em
laboratórios. Desta forma, compreendemos a importância que ele tem para grupos presentes e
futuros de discente/pesquisadores e, posteriormente, para todas as pessoas que desejarem
conhecer esta história ligada ao atletismo paraense e, assim, concretizarem conjuntamente as
validações essenciais de um museu: proporcionar vivências e expansão de saberes
considerando o poder simbólico do acervo, sua polissemia e, também, os espaços que ele irá
se estabelecer.
Referências bibliográficas
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863
Museologia e
patrimônio: discussões
sobre as relações de
preservação pelas
chaves da colonialidade
ou do póscolonialismo –
Museus e cultura
política
864
ATRIBUIÇÃO DE AUTORIA PELA TRADIÇÃO: COLEÇÕES EM MARFIM
Isis Molinari*
*Universidade Federal do Pará
Abstract: The terms commonly found in some museums and repeated in scientific studies are that
ivory artifacts originating from the contact between the colonizing and the colonized peoples (15th to
19th century) have a denomination in relation to their origin, which is double, representing the style by
their places (production / order or vice versa), namely: Sino-Portuguese; Japanese-Portuguese; Luso-
African; Spanish-Filipino; Sapi-Portuguese; Cingalo-Portuguese; Indo-Portuguese. The attribution of
authorship by tradition is an approach suggested in this paper to establish a new nomenclature
criterion for this production, originating in the modern age, either for a revision of the cataloging terms
in museums or for the reassessment of the concepts underlying the current connotation. Considering
the identitarian traits and the style elements arising from the millennial traditions, as the Chinese,
Japanese and African, this paper questions whether such nomenclature, which assumes the shared
authorship between Portugal and Spain and their respective colonies, is still important to be
perpetuated. In order to discuss the use of ivory, examples from the Chinese, Japanese and African
traditions prior to the age of the great navigations will be described, to conclude that the shared
authorship presupposes a certain empowerment of one society over another. The theoretical references
of this article come from the field of Art, but advance the limits of Museology when discussing
another nomenclature for use in museums and collections.
Keywords: tradition; shared authorship; ivory; terminology, collection.
865
Introdução
São poucos os museus brasileiros1 que têm uma coleção eminentemente em marfim2 e
as destacam isoladamente pelo critério da materialidade. Muitas vezes, as coleções
etnográficas ou as coleções dos museus de Arte Sacra têm peças de marfim ou de objetos que
possuem uma incrustação desse material sobre um suporte de madeira ou de metal, no
entanto, as que são exclusivamente entalhadas em marfim, quando se apresentam em
proporção reduzida não estão isoladas, mas agrupadas a outros materiais pela temática, e,
consequentemente, expondo o material a um ambiente híbrido composto pela presença de
outros materiais.
Há também, evidente falta de protocolos de conservação preventiva das peças em
marfim nos museus brasileiros. Ao manusear os inventários de tombamento dos bens
materiais, tanto do Museu de Arte Sacra de Belém quanto do Museu de Arte Sacra de São
Luís, lócus de minha pesquisa atual3, é explícito que as informações sobre as peças em
marfim são escassas, tanto no que diz respeito à datação como a sua procedência.
O código de ética dos museus4 estabelecido pelo Comitê Internacional de Museus
(ICOM) deve ser o instrumento que permeie tanto a aquisição de novos exemplares em
1
A maior coleção de objetos de marfim, denominada de marfins religiosos foi organizada por José Luiz de
Souza Lima, composta por 572 peças que foram recolhidas e adquiridas pelo colecionador em diversos estados
do Brasil, aproximadamente entre 1919-1930 e hoje fazem parte do acervo do Museu Histórico Nacional. Outro
acervo importante que abriga objetos em marfim é o de Mario de Andrade do Instituto de Estudos Brasileiros da
Universidade de São Paulo. Com aproximadamente 8000 peças, a coleção de Artes Visuais abriga uma sessão de
Religião e Magia em que estão catalogadas 12 esculturas religiosas em marfim e 1 em madeira com face e mãos
em marfim (BATISTA, 2004, pp. 94-293).
2
Quando se adota o termo “marfim” indiscriminadamente é bom ficar atento a essa classificação generalista,
pois os artefatos elaborados com ossos, presas, dentes de variados animais confundem o observador e somente
um exame técnico minucioso poderá dar realmente a procedência desse material orgânico.
3
Tema relacionados à escrita da tese: Estudos imagéticos de esculturas em marfim presentes em Museus de Arte
Sacra do Norte do país. Atualmente faço parte do grupo de investigadores do projeto Marfins Africanos no
Mundo Atlântico: uma reavaliação dos marfins luso-africanos, do Centro de História da Universidade de Lisboa
conveniado à Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Departamento de História e Escola de Belas
Artes. Meus estudos atuais estão relacionados ao Inventário das Igrejas e Capelas dos Jesuítas no Estado do
Maranhão e Grão-Pará no ano de 1760, com destaque para os crucificados em marfim e outros achados dessa
materialidade.
4
O Código de Ética do ICOM foi adotado por unanimidade pela 15ª Assembleia Geral do ICOM realizada em
Buenos Aires (Argentina) em 4 de novembro de 1986, modificado na 20ª Assembleia Geral em Barcelona
866
marfim, como a salvaguarda do acervo já constituído, tendo como parâmetros as formas éticas
de aquisição de coleções e de conservação5.
Este artigo, tem como objetivo principal apresentar, do ponto de vista da conservação
do patrimônio cultural material, um meio de resguardar a história dos estilos da escultura em
marfim pela tradição de produção. A partir de uma concisa e ilustrativa amostragem de
objetos dos mais variados marfins encontrados em diferentes sociedades, é notório a marca
identitária de uma ou outra tradição. Esse apanhado de exemplos, retirados das culturas
Chinesa, Japonesa e Africana em que são simbolizados os seus deuses, santos ou objetos
utilitários e populares só reafirmam a necessidade de dar os créditos de autoria6 a quem de
direito exerceu por mais tempo o ofício. E para além dessa questão, entender que mesmo que
(Espanha) em 6 de julho de 2001 sob o título Código de Ética do ICOM para os museus e revisado pela 21ª
Assembleia Geral realizada em Seul, Coreia do Sul, a 8 de outubro de 2004.
5
Consultar no documento acima citado principalmente os itens 2.3. Procedência e diligência obrigatório; 2.4.
Bens e espécimes provenientes de trabalhos não científicos ou não autorizados; 2.5. Materiais culturais sensíveis;
2.6. Peças biológicas ou geológicas protegidas, e no que concerne às questões de salvaguarda, os itens 2.20.
Documentação dos acervos; 2.23. Conservação Preventiva; 2.24 Conservação e restauração de acervos.
6
*O conceito de autoria, para as esculturas em marfim produzidos em decorrência das grandes navegações, e
entalhados para fins religiosos, independentemente da sua motivação, ou seja, se por encomenda ou por razões
culturais autóctones deve ser concedida àquele que produziu a obra. Tendo em vista que a assinatura é que indica
a sua autoria, e sabendo-se de antemão que a maioria das imagens sacras, seja em marfim ou outra materialidade
não era assinada pelos artesãos, a atribuição deve ser dada, sob o meu ponto de vista à tradição escultórica
nominando o grupo étnico que a confeccionou.
* O conceito de autoria na História da Arte está intimamente relacionado ao momento da liberalização das artes
plásticas, que ocorreu no Renascimento. Nesse contexto, os artistas por volta do século XVI intensificaram o seu
relacionamento autoral com os mecenas e surgiram as academias em substituição a um trabalho oficinal e
coletivo desenvolvido conjuntamente entre mestres e aprendizes sem autoria; tais modelos eram comumente
usuais na Idade Média. A História da Arte clássica nasce, portanto, quando os artistas são vistos como
intelectuais, interessando-se pela filosofia e ciência, e acabam, por essa razão, transformando o status das artes
plásticas, até então consideradas como mecânicas e inferiores desde a antiguidade, em artes liberais. (PEREIRA,
2106, 21-26).
*O conceito de autoria sob o ponto de vista jurídico, relaciona-se ao direito autoral cuja Lei nº 9610, de 19 de
fevereiro de 1998 regula esse direito (BRASIL, 1998). Sob a questão levantada neste artigo é necessário reunir
mais caracterizações para tal proteção. A Constituição Brasileira de 1986 deixa evidente, no Artigo 215 a
proteção às manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos
participantes do processo civilizatório (BRASIL, 1988). No âmbito internacional, a Convenção n° 169 da
Organização Internacional do Trabalho (2004) sobre Povos Indígenas e Tribais, da Organização Internacional do
Trabalho (OIT), órgão da Organização das Nações Unidas (ONU), foi adotada em Genebra, em 27 de junho de
1989, e entrou em vigor internacional em 5 de setembro de 1991 e sob Decreto Nº 5.051, de 19 de abril de 2004
foi promulgada no Brasil (BRASIL, 2004).
867
tenha havido encomenda sob a lei dos cânones copiados de gravuras europeias, ainda assim, o
autor é aquele que entalhou a obra.
868
chamavam de poiésis) e a atividade ética e política (ou o que os gregos chamavam
de práxis). A primeira é considerada uma rotina mecânica, em que um trabalhador é
uma causa eficiente que introduz uma forma numa matéria e fabrica um objeto para
alguém. A práxis, porém, é a atividade própria dos homens livres, dotados de razão
e de vontade para deliberar e escolher uma ação. Na práxis, o agente, a ação e a
finalidade são idênticos e dependem apenas da força interior ou mental daquele que
age. Por isso, a práxis (ética e política) é superior à poiésis (o trabalho) (CHAUÍ,
2008, p.11).
Contrariando qualquer pensamento que rebaixe tais objetos (utilitários, populares, de
culto e devoção) a uma categoria inferior quando pensados e comparados a objetos de arte7, e
sem desenvolver essa questão aqui, ou seja - o que é arte e o que não é - e suas concepções
moventes, é certo de que impregnado no contexto histórico, existe uma certa tecnologia que
não se desassocia de simbologias, significados e de uma estética própria.
O autor em que iremos nos apoiar nesta seção é Huon Mallalieu que em seu livro
História ilustrada das antiguidades (MALLALIEU, 1999, pp. 232-237) estabelece uma
divisão entre os marfins orientais, destacando os de origem chinesa e japonesa e os de origem
europeia que não iremos abordar neste texto.
Tradição Chinesa
Os cinco mil anos através dos quais se desenrola a história chinesa parecem quase
perderem-se no mito. O sistema de domínio e o registro de eventos dinásticos
representam uma espécie de rede sobre a qual a China tece a própria história
divulgando as suas expressões artísticas e culturais mais características. Na trama
das dinastias (de Shang 1500-1050 a.C a Sui 581 -618 d.C.), vai ganhando forma
uma arte prática e refinada, num intercâmbio constante e profícuo entre expressões
7
O termo ”arte”, sob a ótica do ocidente, remonta os conceitos elaborados pelos filósofos clássicos. E a arte
daquele tempo relacionava-se ao ofício e não a “obra de arte” em sua concepção moderna que possuía uma aura
e uma autoria. A arte começa a tomar corpo autônomo com o Renascimento. Um marcador dessa mudança de
pensamento para um estado de autonomia da arte foi a obra do historiador e arquiteto Giorgio Vasari (1511-
1574). As vidas dos mais excelentes pintores, escultores e arquitetos, 1550. E, dando a esta História da Arte o
contributo filosófico, Baungarten (1714-1762) arquiteta a Estética como uma ciência da sensível. Consultar
Medeiros (2012 e 2017).
869
da corte e expressões populares, sem ignorar o mundo exterior (VECCHIA, 2010,
p.7).
870
Figura 1: Imortal taoísta com flauta.
Fonte: Vecchia (2010, p.81). Autor desconhecido. Ca 1550-1644. Marfim. Museum of East Asian Art, Bath.
Sob o reinado de K’ang Hsi (1662-1722) foram reunidos artesãos habilidosos de toda
a parte do império para criar uma grande variedade de manufaturas, incluindo aí artefatos de
marfim para adornar os limites de seu palácio em Pequim, perdurando por mais de um século
essas atividades.
Finalmente, a produção em série, instaurada no século XIX em Cantão, para fins de
exportação, priorizou um alto grau de acabamento técnico e um detalhado figurativismo que
acabou deixando para trás a originalidade dos trabalhos iniciais (MALLALIEU, 1999).
Tradição japonesa
Terra por tradição criada pelos deuses, o Japão apresenta desde o início da sua
história características de destacada individualidade. Fé, arte e sociedade são
influenciadas pela força dos acontecimentos naturais que plasmam ainda hoje o
território e a arte japonesa reflecte esta realidade. A partir da primeira tradição
consolidada, a chamada Cultura Yayoi no século III a. C., o uso de materiais
naturais, a introdução da paisagem, o equilíbrio das manifestações artísticas, são
871
fruto de uma estética aplicada tanto às artes cultivadas como à vida quotidiana
(VECCHIA, 2010, p. 121).
O marfim japonês é assim organizado, por Mallalieu (1999), para fins de estudo:
esculturas pequenas de uso cotidiano; esculturas com as contaminações ocidentais.
Após o fim das esculturas de templos monumentais dos períodos Muromachi (1392-
1573) e Momoyama (1573-1615), os escultores se detiveram em confeccionar esculturas
menores de marfim, como nos netsuke (Figura 03) que eram objetos de uso cotidiano usados
para prender sagemono - objetos pendurados (MELLALIEU 1999, p. 235):
8
Kyoto School, Circa 18th Century, Signed: Okatomo D:1 1/2. “This is a good example of Manju netsuke as a
form and function which is typical Japanese style. Provenance: Ex. Bushell’s Collection” (NETSUKE ONLINE
RESEARCH CENTER, s/d, s/p). Disponível em http://netsukeonline.org/htm/antique_netsuke_rabbit.html.
Acesso em 30 jul. 2017.
9
“A contribuição do Bushidô de Nitobe na criação do estado moderno japonês. Segundo o autor “Com a
abertura dos portos japoneses em 1853, após a chegada da esquadra estadunidense liderada pelo comandante
Perry, ficou evidente que o Japão enfrentaria problemas com os novos paradigmas inseridos pelo contato com as
nações europeias” (NUNES, 2012, p.17-34).
872
(objetos em pé) que eram versões maiores dos netsuke foram itens produzidos para enfeites de
mesa, no entanto a qualidade era inferior em função do objetivo ser eminentemente comercial.
Com a proibição da exportação do marfim no final da década de 1980 este tipo de
escultura extinguiu-se.
10
A Produção, circulação e utilização de marfins africanos no espaço Atlântico entre os séculos XV e XIX foi o
título do projeto inicial que iniciou em 2013, fruto de parceria entre a Universidade Federal de Minas Gerais e a
Universidade de Lisboa (UL) sob coordenação dos professores Vanicléia Silva Santos (Departamento de História
da Universidade Federal de Minas Gerais) para a equipe brasileira e José da Silva Horta (Centro de História da
Universidade de Lisboa) para a equipe portuguesa. No ano de 2015, foi aprovado o projeto Marfins Africanos no
Mundo Atlântico – uma reavaliação do marfins luso-africanos. Projeto PTDC/EPHPAT/1810/2014. E, em 2016,
foi aprovado o projeto Marfins Africanos no Mundo Atlântico com unidades de investigação adicionais: ARTIS
– instituto de História da Arte da Universidade de Lisboa; LACICOR – Laboratório de Ciência da Conservação –
UFMG do Centro de Conservação e Restauração da Escola de Belas Artes da UFMG e Laboratório Hercules
(Universidade de Évora).
11
No âmbito desse projeto maior, outros se desenvolvem, como o projeto de pesquisa aprovado em 2014 e
coordenado pela professora Yacy Ara-Froner, intitulado: O Acervo Luso-afro-oriental no Brasil: pesquisa
introdutória nos acervos de Minas Gerais. Bem se vê, que mesmo que tais projetos sejam recentes, há um
esforço acadêmico de revisão desses marfins africanos no espaço Atlântico.
873
tem como objetivo a reavaliação dos marfins africanos no espaço atlântico. Conforme pontua
Santos (2017), coordenadora do lado brasileiro,
o projeto pretende inaugurar um novo campo de estudos no Brasil, a partir
de três aspectos: (1) reavaliar os conceitos para estudo dos marfins (o que
significa marfim africano, marfim luso-africano); (II) investigar a produção e
circulação de marfins e matérias-primas africanas esculpidas no mundo
Atlântico, entre os séculos XV e XIX; e (III) construir um banco de dados
sobre os marfins que chegaram ao Brasil colonial, de modo a identificar os
tipos de objetos de marfim que circularam no Brasil. Do lado Português, o
projeto tem semelhantes objetivos (SANTOS, 2017, p.7).
874
guardiões da tradição oral – é de grande importância para as sociedades africanas. Segundo
Mattos (2014), “alguns ofícios existentes nas sociedades africanas estão relacionados à
tradição oral, a um conhecimento sagrado, a serem revelado e transmitido para as futuras
gerações [...] e conclui “Os mestres que realizam essas atividades fazem-no ao mesmo tempo
em que entoam cantos ou palavras ritmadas e gestos que representam o ato da criação”
(MATTOS, 2014, p. 19).
Quando, na época das grandes navegações que ocorreram a partir do século XVI,
estendendo-se até o início do século XVII, os portugueses iniciam aquilo que chamariam de a
primeira globalização, um novo modelo de produção surge a partir da encomenda dirigida
aos artesãos das mais diversas localidades geográficas do processo colonizador. Para essa
constatação muitos autores relatam a importância das gravuras europeias que circulavam entre
os mercadores para tal atividade:
Na Costa do Marfim, na Serra Leoa e no Benim foram impressionantes as
criações em marfim, fazendo-se belas obras para exportação para a clientela
portuguesa, com motivos tirados das gravuras que então começavam a surgir
e também com heráldica portuguesa. Temos que destacar as fantásticas
trompas de caça, as píxides, os saleiros, as caixas, as colheres, tudo com
funcionalidades europeias, mas uma técnica local que é distinguível de sub-
região para sub-região. [...] São muito interessantes as pequenas imagens de
santos em marfim e os crucifixos, que se começaram a fazer logo no início
do século XVI (AGUIAR BRANCO, ROQUETTE, s/d, p. 10).
875
Figura 9: Three Males
12
“Date: 18th–20th century. Geography: Democratic Republic of the Congo, Loango Region. Culture: Kongo
peoples. Medium: Ivory. Dimensions: H. 3 1/4 x W. 1 3/8 x D. 15/16 in. (8.3 x 3.5 x 2.4 cm). Classification:
Bone/Ivory-Sculpture. Credit Line: The Michael C. Rockefeller Memorial Collection, Gift of Nelson A.
Rockefeller, 1964. Accession Number: 1978.412.348”. Disponível em: <
http://www.metmuseum.org/toah/works-of-art/1978.412.348/>. Acesso em: 20 ago. 2017.
13
“Date: 16th century. Geography: Nigeria, Court of Benin. Culture: Edo peoples. Medium: Ivory, iron, copper
(?). Dimensions: H. 9 3/8 x W. 5 x D. 3 1/4 in. (23.8 x 12.7 x 8.3 cm). Classification: Bone/Ivory-Sculpture.
Credit Line: The Michael C. Rockefeller Memorial Collection, Gift of Nelson A. Rockefeller, 1972.Accession
876
Com esses exemplos é possível de se concluir que o traço identitário na talha do
marfim denuncia a sua autoria. É certo que em se tratando do Continente Africano é
necessário um minucioso e rigoroso estudo dos grupos étnicos das inúmeras sociedades
tradicionais, pois há diferenciação clara entre elas, em função dos usos, dos materiais
utilizados e de sua estética. Mas, como diz Salum (2005), há em comum entre esses povos um
pensamento voltado à ancestralidade e a uma filosofia de vida complexa:
Uma estátua não representa, normalmente, um Homem, mas um Ser
Humano integral, que tem uma parte física e espiritual - do passado e do
futuro. Tem, por isso, um lado sagrado, ligado às forças da Natureza e do
Universo. Uma máscara ou uma estátua concentram forças inerentes do
próprio material de que são constituídas, ou que comportam em seu interior
ou superfície, além de sua própria força estética. Elas não têm, portanto, uma
função meramente formal (SALUM, 2005, p. 7).
877
colonizados. O Capital, o Cristianismo - como ferramental de catequese, e a ocupação
territorial - pela força militar - são alguns acontecimentos que transformariam essas relações
culturais pelo contato entre sociedades.
Nesse âmbito, a autoria é uma questão que deve ser revista e reavaliada. O conceito de
autoria no pensamento ocidental, nasceu na Idade Moderna, com o iluminismo atribuindo ao
homem europeu o poder do saber absoluto e central. Os artistas renascentistas são os
primeiros a assinar suas telas, e Giorgio Vasari (1511-1574) em seus escritos sobre “As vidas
dos mais excelentes pintores, escultores e arquitetos, 1550” - inaugura a história dos artistas,
dando a estes um empoderamento.
Tendo em vista as necessidades de afirmação de autoria e de domínio estético, seja
pelos cânones ocidentais relativos aos estilos vigentes, primordialmente clássicos, e pelos
ditames do cristianismo, há pelas sociedades ocidentais uma grande demanda da encomenda
do exótico e do estrangeiro.
Surge nesse contexto a encomenda por dois vieses: do mecenato europeu local, a partir
de financiamento de obras pictóricas ou escultóricas a grandes nomes de artistas em voga que
atuaram sob o mando de mecenas em palácios e espaços cristãos e, as encomendas à artífices
estrangeiros sob a égide de gravuras (que já eram cópias).
Os gabinetes de curiosidade que desde o século XV existiram, demonstraram essa
necessidade de exibir o exótico como um troféu, um tributo à conquista ou um testemunho da
submissão.
Pensando sobre esse aspecto, a repetição dos termos Sino-Português, Nipo-Português e
Luso-Africano, seria ainda apropriado? E essa reavaliação não deve se encerrar nesse embate,
devemos refletir para os outros grupos de autoria conjunta não autorizadas pelos detentores
dos saberes tradicionais, como os marfins Hispano-Filipinos, os Indo-Portugueses, os
Cíngalo-Portugueses etc.
878
Considerações Finais
Com as grandes navegações que ocorreram a partir do século XVI, estendendo-se até
o início do século XVII, as encomendas de imagens cristãs são dirigidas aos povos em que a
colonização se estabeleceu, seja por conquista dos seus territórios, seja pelas feitorias
instaladas para a mercantilização de produtos diversos.
No que se referem às imagens sacras, do ponto de vista ocidental, ao serem
encomendadas às sociedades estrangeiras, possuidoras de outra concepção em relação à
divindade, há algumas possibilidades relativas à produção final: artefatos vazios de
significado por parte de quem as produziu e uma produção com imposição de significados
embutidos, disfarçados e presentes na imaginária criada.
Mas, para além, da resistência dessas sociedades, somente pela manipulação,
conhecimento técnico, interpretação das gravuras (que eram cópias) ou da transposição de
leitura do bidimensional para o tridimensional, é lícito afirmar que a autoria dessas peças é
Chinesa, Japonesa ou de grupos étnicos africanos. Devemos repensar, nesses casos a
denominação de autoria conjunta com àqueles que a encomendaram. Dar os créditos aos seus
artífices anônimos, ou às suas tradições, especificamente em se tratando das imagens sacras, é
reconhecer a grande contribuição dada pelas culturas estrangeiras às europeias. Uma
alternativa seria dar a autoria àqueles que comumente trabalhavam com essa materialidade e
dominavam a técnica do entalhe.
Há, portanto em todos os casos expostos, das culturas tradicionais, chinesa, japonesa e
dos grupos étnicos africanos, um fenômeno de transposição da cultura originária pelos
modelos impostos pelo mundo ocidental, que inegavelmente exerceram grande influência na
cultura material dessas sociedades e nos seus costumes tradicionais, mas, retirar a autoria
dessas encomendas é ainda assumir as relações de poder existentes em tempos passados.
879
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(Preservação do Patrimônio Cultural) sob orientação da Prof.ª Drª Maria Regina Emery Quites e
coorientação da Profª Drª Yacy-Ara Froner. Atualmente é Professora lotada no Instituto de Ciências da
Arte (UFPA- FAV), e investigadora do projeto “Marfins Africanos no Mundo Atlântico: uma
reavaliação dos marfins luso-africanos”, do Centro de História da Universidade de Lisboa conveniado
à Universidade Federal de Minas Gerais, Departamento de História e Escola de Belas Artes. Tema
relacionados à escrita da tese: Estudos imagéticos de esculturas em marfim presentes em Museus de
Arte Sacra do Norte do país.
881
DIAGRAMAS DA SEGREGAÇÃO URBANA: O PATRIMÔNIO CULTURAL
COMO RECURSO
Francisco Sá Barreto*
Izabella Medeiros**
Resumo: É difícil pensar um replanejamento das grandes cidades dos países do Ocidente do
globo depois da Segunda Guerra Mundial sem que isso seja efetivamente atravessado por um
debate sobre uma necessária relação entre Estado (gestão) e Cultura. Esse imperativo seria
montado para atender a duas demandas estruturais: a) administrar as insatisfações ligadas à
injusta distribuição de capital nos ditos países desenvolvidos, refletidas, por sua vez, em
zoneamentos culturais nas crescentes metrópoles; e b) reforçar políticas de compensação pela
cultura, fortemente vigentes até os nossos dias. Como resultado direto do primeiro eixo, seria
possível falar em um sofisticado dispositivo disciplinar que se utiliza da memória cultural
como recurso para a ordem pública. O produto imediato do segundo eixo estaria configurado
nas políticas de financiamento cultural, responsáveis por alinhar os interesses dos gestores
com o produto cultural das organizações-produtores-objetos das políticas culturais. A cultura
como recurso não diz respeito somente à produção de divisas a partir da mercadoria cultural –
o que, está claro, não é pouco. Versa sobre a cultura como dispositivo de gestão. Notadamente
a partir dos anos 1990, em grandes cidades brasileiras, os programas de requalificação urbana
foram intensamente atravessados pela mercadoria cultural, sofisticando políticas de
segregação urbana a partir do dispositivo cultural. É exatamente o esforço para visualizar e
entender essa dinâmica que justifica este trabalho. Em primeiro lugar, por destacar a
centralidade da questão urbana para uma reflexão sobre desigualdades contemporâneas e
políticas de exclusão. Em um segundo lugar, por investigar o patrimônio, entendido como
mercadoria cultural, funcionando enquanto dispositivo de reforço das políticas de segregação
urbana na cidade brasileira contemporânea.
882
Delimitando uma questão
883
Recife durante aquela década, processo que culminou com o curioso tombamento do bairro
pelo IPHAN em 1998. A região que circunda a antiga Igreja do Pilar foi, naquela ocasião,
ainda mais isolada e teve aprofundada a sua invisibilidade no bairro, cuja população de
moradores além da comunidade é praticamente nula.
A ocasião do leilão do terreno da RFFSA deveria funcionar como marco para uma
política de gestão da cidade que ratifica a regulação enquanto parte do interesse de uma
iniciativa privada comprometida com um sentido sofisticado de desenvolvimento. Este
deveria ser fortemente vinculado ao reforço político-institucional de específicas identidades
culturais e ao estímulo do mercado do turismo global, tendência anotada já a partir dos anos
1970, mas com fôlego intensamente mais evidente a partir da década de 1990. Edifícios
destoantes da paisagem da região e voltados para as elites locais e investidores ratificariam,
portanto, importante virada nas políticas de planejamento e gestão da cidade de Recife no
século XXI.
De que maneiras, no entanto, grandes investimentos em edificações de luxo e forte
especulação imobiliária podem representar qualquer nível de desenvolvimento cultural? A
aporia sinaliza importante enigma do tempo. Ela diz respeito à sofisticação das políticas de
segregação urbana que, notadamente, a partir dos anos 1990, incluem a “requalificação” ao
rol de dispositivos de produção de uma nova experiência de cidade, cujo enclave fortificado
(CALDEIRA, 2000) não é mais aquele diante do qual habita a população “indesejável” das
grandes cidades. Um novo tipo de enclave que se confunde com a própria cidade – ou regiões
inteiras dela –, da qual parte significativa não toma qualquer parte.
Nesse sentido, edifícios de luxo produzem desenvolvimento em movimento semelhante
ao que poderíamos chamar de “dubaização”, mas isso ainda diz pouco, haja vista que a
estética pastiche de Dubai se esforça para produzi-la enquanto lugar de todos os lugares e, ao
mesmo tempo, lugar nenhum. Uma nova fase para a gentrificação em cidades como Recife
não diz respeito somente à reconstrução de zonas “degradadas” da cidade e seus fins
especulativos e voltados a grandes estímulos ao mercado imobiliário, mas a um discurso de
ganhos culturais fortemente vinculado ao empreendimento (LEITE, 2007). Isso explica o
884
Projeto Recife Olinda como um programa para páginas de cultura dos jornais, razão para um
discurso orgulhoso sobre a cidade, cuja complexa pauta é uma simbiose entre tradição e
modernidade, identidade e desenvolvimento enquanto marcadores para a Recife do século
XXI.
Dois importantes sentidos de cultura como dispositivo são mobilizados para tanto
(YUDICE, 2004). Em primeiro lugar, a gestão do Estado sobre a memória cultural remonta
aos esforços desenvolvidos pelas grandes cidades globais a fim de administrar os traumas
políticos produzidos pelas duas grandes guerras do século XX e o colapso de um modelo de
colonialismo. Gerir a memória cultural configurou-se questão central para centros
cosmopolitas comprometidos com uma economia dos lugares, haja vista as complexas formas
que essas grandes cidades tomaram depois das políticas de reconhecimento e as imigrações
pós-45. A cidade em que todos devem ter seus lugares passou a ser a cidade em que os
espaços calculados de poder – ou mesmo as paisagens de poder de Zukin (2000) – traduziram
lugares diagramados para todos.
Em segundo lugar, mas não menos importante, trata-se da compreensão de cultura
enquanto recurso econômico, linguagem para novos mercados, em um contexto de colapso de
um sem-número de empreendimentos em setores mais tradicionais. Notadamente com a queda
do Muro de Berlim, grandes investimentos no mercado do consumo cultural foram feitos,
como veremos mais adiante, para viabilizar novos usos da tradição e a explosão do turismo
global. Em Recife, é exemplar o conjunto de intervenções às quais as regiões centrais da
cidade foram (e são) submetidas para se adaptar às demandas do tempo, fundamentalmente o
conjunto de investimentos do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), por meio do
programa Monumenta, que observou grandes cidades brasileiras enquanto importantes objetos
culturais comercializáveis.
Nos termos de Hall (2003), o multiculturalismo é o mais destacado dispositivo para
gestão do cruzamento desses dois sentidos contemporâneos de cultura. Trata-se das políticas
de Estado para uma economia de nações multiculturais – essas ainda mais complexas a partir
de uma nova geopolítica dos lugares no mundo contemporâneo. O multiculturalismo – ou a
885
lógica cultural do capitalismo multinacional (ŽIŽEK, 2005) – converte a dimensão étnica da
cultura em bem-acabado produto ora dos equipamentos culturais que compartilham a gestão
do Estado e da iniciativa privada, ora das próprias políticas de planejamento e gestão urbanas
a partir das quais toda tensão social precisa e deve ser transformada em peculiaridade da
cultura local. Marcadores das complexas desigualdades contemporâneas, portanto, a partir dos
anos 1970, vão sendo emulados como parte da riqueza cultural do lugar, objetos (quase)
museológicos de uma mercadoria cultural economicamente extremamente bem-sucedida.
É o que se pode observar, por exemplo, com o projeto Nordestes Emergentes, da
Fundação Joaquim Nabuco (Pernambuco), mais especificamente desenvolvido pelo Museu do
Homem do Nordeste (MUHNE), paradigmaticamente resumido pela passagem do Jornal do
Commercio do dia 13 de outubro de 2013, matéria intitulada “Pesquisa da Fundaj [sic]
apresenta um Nordeste Emergente”:
Na orla de Fortaleza o Nordeste parece Miami. Fortalezas verticais
inundam a beira mar. Espigões de vidros reluzentes espelham o desejo
de exibir uma riqueza emergente. A antropóloga carioca Ciema Mello
batizou de “miamização” esse fenômeno de transformações no estilo
de vida na capital cearense. O cenário é parte de um Nordeste que se
opõe aos estereótipos de uma região engessada, há séculos, na
condição de “primo pobre da nacionalidade”. Com proposta de
desfazer esse mito, a Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) realizou a
pesquisa Nordestes Emergentes.
886
como razões fundamentais para tal compreensão, descartando, para tanto, as cada vez mais
complexas camuflagens das tensões sociais estruturantes de cidades complexas, tais como a
própria Miami – uma encruzilhada de razões culturais e políticas de segregação que produzem
como americanos “menores” o estrato latino da população.
Não por acaso, os investimentos giram em torno da produção de uma sofisticada
mercadoria cultural que tem o turismo global como mais destacado dispositivo, tal como
podemos observar em mais um trecho da reportagem:
A empresária Ivana Bezerra de Menezes representa essa nova geração.
Filha de Ivan Bezerra de Menezes (dono da Têxtil Bezerra de
Menezes, uma das maiores companhias da América Latina), ela
migrou para a indústria do turismo. O grupo investiu cerca de R$ 10
milhões na construção do Hotel Sonata de Iracema. “Esse era um
desejo do meu pai, que realizei. O hotel completou 8 anos e vamos
investir em outros dois, que devem entrar em operação até 2016”,
adianta.
887
desenvolvimento como mais importante indicador. O conjunto de fotografias produzido por
duplas de fotógrafos em cada um dos estados da região deveria traduzir uma paisagem
política diferente daquela projetada como traço identitário regular para os nove estados
brasileiros em questão. A alternativa a uma tradição de pobreza e aridez, contudo,
efetivamente se daria a partir de uma leitura bem específica de desenvolvimento que, não por
acaso, tinha na verticalização das principais cidades e na monumentalização do progresso
econômico seus mais destacados ícones gráficos. Nordestes emergentes – em o “abissal”
desacordo com a noção de emergência em Boaventura de Sousa Santos – são, portanto, um
renovado produto de um novo milagre brasileiro: crescimento econômico entendido como
desenvolvimento cultural.
Nesse estágio, não parece difícil compreender os sentidos de cidade atribuídos pelas
políticas de Estado no início do século XXI. Apresentar um conjunto de edifícios de luxo
como eixo em prol de uma virada no planejamento urbano para a cidade do novo século não
nos deve causar estranhamentos. Discutir esse movimento a partir de iniciativas que se
apresentaram como políticas de cultura para a cidade do Recife no início do século XXI é,
assim, principal objetivo deste trabalho. O exercício adiante se dividirá em três novas partes:
a) a compreensão política da ambivalência da cultura como recurso, seção onde pretendemos
desenvolver a dupla face da cultura enquanto dispositivo político contemporâneo; b) a
gentrificação como linguagem de produção de cidade e sua tradução em Recife nos anos 1990
e 2000; e c) as políticas de cultura na cidade do Recife no século XXI como traço de um
mercado cultural que tem a cidade como principal objeto.
“O patrimônio compensa”. Parece ser essa a máxima de dupla face que orienta as
políticas de Estado para gestão urbana de grandes cidades a partir dos anos 1970. Esse
empreendimento traduz movimentos que se produziram notadamente no pós-1945 para darem
conta de uma série de compensações pela guerra extremamente violenta que o mundo
888
ocidental tinha conhecido nos anos anteriores. O desenvolvimento de novas políticas e de
fortes ajustes econômicos transformou planos/modelos de gestão política em normativas para
um mundo que, de um lado, deveria evitar, a qualquer custo, um novo evento de efeitos
catastróficos como uma guerra mundial sem que, de outro lado, a população esquecesse os
maiores horrores da experiência contemporânea da guerra: as mortes, o campo de
concentração, o Holocausto (HUYSSEN, 2000; AGAMBEN, 2002, 2004). Essas políticas de
gestão (política e econômica) deveriam ser acompanhadas por um novo projeto de Estado-
Nação pretensamente forte em suas economias, como seus antecessores, e, ao mesmo tempo,
disposto para lidar com o diferente como problema político contemporâneo fundamental. A
emergência das políticas de reconhecimento está diretamente ligada a esse desafio. Esse
exercício somente foi possível porque aquilo que pretendeu ser o nascimento de um novo
paradigma político seria traduzido por forte convergência ao campo da cultura.
Nesse cenário, os equipamentos culturais ocupariam lugar de destaque para realização
de uma tripla tarefa. Em primeiro lugar, seriam o mais destacado recurso discursivo para uma
inclusão administrada do diferente. O desenvolvimento de novas tipologias de museus que,
por um lado, seriam apresentadas como importante solução política para uma instituição em
progressivo desgaste produziu, por outro lado, importante sofisticação das retóricas de
inclusão dos novos Estados-Nação, todos mobilizados pelo desafio de uma “nova política”,
construção de zonas de reconhecimento da diferença cultural e a realização material de uma
fala para/do subalterno, indicando um sorridente “sim” como resposta à questão-problema de
Spivak (2010). A cultura demonstrou ser, dessa maneira, importante recurso para um novo
modelo de gestão urbana, tendo, como fundamento, o imperativo da inclusão do outro.
Em segundo lugar, os equipamentos culturais traduzem a cultura como recurso à medida
que compreendemos a noção de recurso enquanto dispositivo de gestão estatal. Como política
de governo, o elemento cultural precisaria ser materializado em aparelhos que transformassem
a indisposição para lidar com o Outro em memoriais, centros culturais, monumentos
dedicados à memória de um tempo que não deveria ser esquecida. Como Huyssen (2014)
destacou, a emergência de uma cultura do passado-presente está intimamente ligada a uma
889
força disciplinar que ordena funcionamentos políticos a partir da gestão de memória e
arquivos do social. O resultado desse empreendimento é diverso. O destaque que nos
interessa, aqui, é uma tomada instrumental da cultura pelo dispositivo político-institucional.
Por fim, em terceiro lugar, os usos políticos dos novos aparelhos culturais do pós-guerra
reforçam a cultura enquanto importante mercadoria, objeto de interesse de mercados que
estenderam à cultura seus campos de atuação, fazendo de chavões, como “economia cultural”
ou “desenvolvimento cultural”, elementos presentes nos discursos de políticos ou
empresários, todos “comprometidos” com o recurso à cultura como paradigma para
administração do Estado e para a boa gestão dos mercados. Esse movimento torna possível a
conclusão de que “... [n]a nova fase do crescimento econômico, a economia cultural, também
é uma economia política” (YÚDICE, 2004, p.35).
A complexa junção entre uma tomada político-institucional da cultura – cultura como
problema de Estado/governo – e uma inevitável economia da cultura – entendendo a noção de
economia, nesse estágio, em um sentido estrito – produz o jargão presente em dez entre dez
relatórios institucionais elaborados por equipes representantes dos gestores de aparelhos de
cultura – museus, centros culturais, cinemas, parques temáticos, galerias, memoriais etc. –: a
economia criativa.
Produto de políticas multiculturais e do uso instrumental da cultura, a economia criativa
atende um sem-número de editais e é a pauta do dia dos aparelhos de cultura que se mantêm a
partir de linhas de financiamento do Estado ou de instituições privadas que investem em
cultura como recurso para ampliação de mercados ou isenção fiscal. Nesse cenário, não é
difícil observar a interdependência entre as lógicas de gentrificação (LEITE, 2007) – projetos
de “requalificação” urbana intensamente ligados a um tipo sofisticado de exclusão – e uma
economia criativa como principal expoente capitalista do mundo contemporâneo.
Se Yúdice destaca essa característica para demonstrar de que maneiras a cultura deveria
ser mobilizada como conteúdo para uma sociedade em rede, nós podemos afirmar, além disso,
que o principal produto desse empreendimento é uma noção de cidadania fortemente
vinculada às políticas de acesso (via) cultural tão recorrentes nos produtos adjetivados com a
890
alcunha de multiculturais (HALL, 2003). A simbiose contemporânea entre cultura, política e
economia produziu a cidade como mais sofisticado equipamento cultural e, por isso, também
seu principal palco para as organizações de resistência.
A tríade foucaultiana (2008) de segurança, território e população, nesse contexto,
descreve bem os desafios postulados para o nosso tempo: entender os mecanismos que, a
partir da gestão política da cultura (segurança), estabilizam o espírito urbano (população) e se
materializam nas comunidades a partir do nascimento dos direitos culturais (território).
Nesse cenário, até mesmo os discursos de resistência, tais como os dos Movimentos
Sociais ou mesmo daqueles projetados como Novíssimos Movimentos Sociais –
recorrentemente ligados aos recentes levantes globais contra formas específicas do
capitalismo – incorrem no risco permanente de um tipo sofisticado de “adesionismo” político
bem constituído, por excelência, em instituições tais como o museu.
É o que ocorre, a título de exemplo, com o Movimento dos Sem Terra (MST),
transformado em objeto na exposição de longa duração do Museu do Homem do Nordeste,
em Recife. Nesse caso específico, o movimento é apresentado a partir de tomada estética que
o interdita completamente enquanto movimento, registrando-o apenas como objeto museal
despido de sua agenda política. No mesmo museu, o charme crítico – mas apenas isso –
também está presente em uma lápide cujo texto inscrito é maravilhosamente ambíguo: “Aqui
jaz nosso protesto contra todas as arbitrariedades da história!”. Não é o caso, neste trabalho,
de investigar o campo semântico do verbo “jazer”, mas sua compreensão mais corriqueira já é
suficiente para crítica que também não cabe aqui. Jazer é descansar em paz. A lápide gostaria
de dizer que descansam em paz ali todos os protestos contra as arbitrariedades a história?
Provavelmente não, mas essa passagem bem sugere o recurso da cultura como produto que
deve dar retornos políticos e econômicos para o social, sem os quais, por certo, sequer precisa
ser considerada cultura.
Se esse movimento de tomada política de uma economia da cultura pode ser observado
como programa de Estado fundamentalmente na experiência do pós-guerra – ainda que no
Brasil, possivelmente, esse recuo remonte aos anos 1930, quando da criação do SPHAN e do
891
grande esforço para a consolidação de um panorama de identidade nacional –, é bem nítido
que ele ganha cifras intensamente novas com a queda do Muro de Berlim, em 1989. As
políticas para o registro e a grande ampliação do número de patrimônios materiais mundiais
são paradigmáticas para essa compreensão.
É bem sabido o quanto o dispositivo patrimonial serviu à consolidação das políticas de
afirmação do poder do Estado (LEITE, 2007; YÚDICE & MILLER, 2004; PEIXOTO, 2009)
e o caso brasileiro demonstra esse movimento com grande clareza no recorte citado acima. A
criação da UNESCO (braço cultural da ONU) e do ICOM (Conselho Internacional de
Museus) sinaliza importante movimento para uma nova burocratização do patrimônio,
circunscrevendo-o economicamente e convertendo-o em objeto de central interesse aos
Estados do G7. A grande expansão do mercado do turismo cultural está intimamente
relacionada a esse movimento. Basta observar, segundo dados da própria UNESCO, que o
número de cidades patrimônio-mundial na Europa sobe de 66 em 1995 para 133 em 2008, ou
55,7% do total. No mesmo período, na América do Sul, Central e Caribe, às 19 cidades em
1995 juntaram-se apenas outras 10, ou 12,1% do total (PEIXOTO, 2010).
Produzir patrimônios mundiais passou a significar estimular o mercado do turismo
global. Ainda com dados de Peixoto, é possível observar que a Itália, em 1990, possuía 6 bens
inscritos na lista do patrimônio mundial. Em 2008, esse número é de 43 bens, o que levou
aquele país a sair de 18º colocado na lista em 1990 para 1º em 2008, garantindo-lhe a 5ª
colocação na hierarquia dos destinos turísticos globais. No mesmo período, a China passou de
7 a 37 o número de patrimônios na lista e isso representou elemento significativo no salto de
12º para 4º na hierarquia dos destinos turísticos. A Índia, por sua vez, ocupava a 1ª colocação
na lista de patrimônios mundiais em 1990, com 19 bens registrados. Em 2008, esse número
subiu apenas para 27, e o país passou a ocupar a 7ª colocação na lista. O Brasil, entre 2001 e
2008, não registrou nenhum novo bem na lista, passando de 7 em 1990 a 17 em 2008, o que
lhe rendeu apenas a 41ª colocação na hierarquia dos destinos turísticos globais. Basta observar
que a França recebeu 81,9 milhões de turistas em 2008, enquanto, no mesmo ano, o Brasil
recebeu 5 milhões.
892
Este fato permite-nos afirmar que não nos encontramos apenas perante
uma corrida ao estatuto de patrimônio mundial (...). Encontramo-nos,
na verdade, perante uma corrida que se intensificou fortemente à
medida que as cidades dos países que dispõem de conjuntos
patrimoniais mais valiosos ou mais valorizados pela indústria turística,
animadas pela retórica da concorrência e pela densificação dos fluxos
turísticos, se empenharam profundamente na transformação de sua
identidade simbólica (PEIXOTO, 2009, p.10).
893
A discussão fica ainda mais interessante quando levamos em consideração os registros
de patrimônios mundiais imateriais, categoria posteriormente criada para dar conta de uma
política de registros que, ora reforçaria o caráter étnico dos bens, ora atingira países ou regiões
que não estariam “habilitados” à primeira categoria de registro. A tese do patrimônio como
compensação ganha força quando quatro dos oito países membros do G8 sequer são
signatários da convenção de 2003, quando 127 países assinaram a lista. Entre os registros,
França (5), Itália (2) e Rússia (2) apresentam números desprezíveis diante de suas listas de
patrimônios mundiais materiais. Na lista de intangíveis, Ásia e Oceania detêm 44,4% dos
registros, enquanto Europa e América do Norte, apenas 12,9%. “As maiores potências
mundiais ocidentais, aparentemente, não têm interesse na preservação de tradições orais,
práticas, representações, expressões e conhecimentos diversos (PEIXOTO, 2009, p.18), o que,
novamente, sugere um uso político-econômico da cultura enquanto importante recurso para
produzir experiência de vida e consumo coletivos em grandes cidades globais, tendo o
mercado do turismo global como mais importante parâmetro. Nesse estágio, retornamos à
máxima que abre esta seção: o patrimônio compensa. Ele fica ainda mais complexo quando
cruzado pelas políticas de “requalificação” urbana numa cidade como Recife durante os anos
1990 e, fundamentalmente, a partir dos anos 2000, objeto de nosso interesse na seção que
segue.
894
por hábitos agrários, que efetivamente só superou a herança da tradição agrícola com a
experiência da vida urbana do século XX. Se, poucos concentrados na produção agrícola –
extremamente relevante ainda em nossos dias –, deslocamos o foco de observação para o
léxico do colonial, podemos inferir uma formação das grandes cidades brasileiras
intensamente pautada no traço da experiência política colonial em complexa atualização,
traduzida nos dispositivos de segregação urbana ao longo do século XX e início do XXI.
A cronologia de Teresa Caldeira (2000) para tais dispositivos é um forte indicativo
disso. Segundo a antropóloga, entre 1890 e 1940, a urbanização da cidade de São Paulo
descreve lugares compartilhados por moradias de populações de baixa renda e de grupos de
elite. Entre 1940 e 1980, essa característica foi sendo radicalmente transformada por uma
forte periferização das moradias populares, o que marcou geograficamente uma óbvia cisão
entre zonas ricas e pobres das grandes cidades – São Paulo, no caso da análise de Caldeira.
Por fim, entre 1980 e 2000, segundo a mesma divisão, observamos o nascimento dos enclaves
fortificados como novo paradigma urbano para a maior cidade do país, modelo facilmente
visualizável em cidades como Rio de Janeiro, Salvador ou Recife.
Nos três recortes em questão, as políticas de segregação urbana foram sendo
sofisticadas por uma narrativa do crime como razão, ao menos imaginária, fundamental para a
apartação das populações e progressiva elaboração de políticas agressivas de segurança que
visavam garantir a distinção entre as elites e as classes baixas nas grandes cidades. O
argumento de Caldeira é de que o crime é a razão formal para uma complexa política de
distinção que não estaria simplesmente traduzida no letramento, mas no acesso ao consumo
de bens específicos às classes.
Dessa forma, a tradução para o meio urbano elaborada por Freyre do protótipo da
sociedade brasileira – o par simbiótico estruturante da Casa Grande e Senzala convertido nos
citadinos Sobrados e Mocambos – pauta um modelo de urbanização que não pode ser
simplesmente resumido pela influência da cultura agrícola. Bem além disso, podemos
observar ao longo do século XX um grande esforço para consolidar um projeto colonial de
sociedade, até então irrelevante para o empreendimento de urbanização – como afirmamos,
895
restrito, no Brasil, basicamente ao século XX –, que tinha a conservação da simbiose entre
senhores e escravos como motor das novas experiências urbanas.
Já em 1902 é possível visualizar tal empreendimento já no discurso de posse do
presidente Rodrigues Alves, quando afirmou que seu simples plano de governo estava quase
que absolutamente restrito à reestruturação da zona portuária do Rio de Janeiro e ao
saneamento daquela cidade, bem como aos eventos que se seguiram à realização política de
tal empreendimento, descritos paradigmaticamente como a Revolta da Vacina (1904). Nesse
contexto, a lei da vacinação antivariólica obrigatória é apenas um elemento parcial – não
pouco importante, haja vista que descreve a gestão da vida pelo Estado, uma peça brilhante da
biopolítica como dispositivo urbanizante – do grande empreendimento de “requalificação” e
“reabilitação” de espaços na capital da República, que visavam, fundamentalmente: a)
adequar à cidade à lógica da eficiência mercantil que caracterizaria os governos paulistas na
primeira experiência republicana; b) levar a cabo um complexo empreendimento higienista,
seguindo o modelo haussmaniano, responsável por intensa periferização e formação das
grandes favelas da cidade, não por acaso habitadas majoritariamente por população negra,
advinda da mal (ou seria melhor “não”) finalizada sociedade colonial escravista.
Na divisão cronológica de Caldeira, a passagem do século XIX ao XX marca
exatamente os primeiros esforços para a construção de marcos regulatórios urbanos,
dispositivos suficientes para converter uma ocupação quase espontânea dos espaços em
lugares políticos estratégicos que precisavam ser objeto de “gestão cuidadosa” desde então.
Não por acaso, a distribuição das populações na região de centro de São Paulo passa a
obedecer a um empreendimento de verticalização e de sua exclusividade aos grupos de elite.
Em Recife, as gestões interventoras do Estado Novo, tanto no governo estadual quanto
municipal, reforçam o mesmo objetivo, com destaque para a criação da Liga Social Contra os
Mocambos, organização apoiada pelos governos de Agamenon Magalhães (no estado) e
Novais Filho (na prefeitura), comprometida com a “reabilitação” de espaços da cidade, que
possuía, em 1942, mocambos como 66% de suas edificações (PONTUAL, 2001). Que
espaços precisavam ser reabilitados? Como é possível investir em um planejamento urbano
896
que considera dois terços de edificações na cidade como zonas de degradação? “A prática da
reabilitação urbana é uma prática ideológica” (PEIXOTO, 2009, p.49). Essa conclusão faz ser
ainda mais complexa a cronologia de Caldeira quando tomamos como referências as soluções
políticas para continuidade do processo no início do século XXI.
Se, nas duas últimas décadas do século XX, a mancha de ocupação das zonas
ampliadas de centro da cidade significou a produção do enclave fortificado (edifício de luxo,
protegido da violência urbana) como linguagem urbana, já parece claro que ele é insuficiente
para compreender um empreendimento de desenvolvimento cultural que confunde zonas
inteiras da cidade com a noção de enclaves.
A gentrificação produz a cidade como enclave. No contexto de sua realização –
processo de, ao menos, duas etapas paradigmáticas –, as políticas de isolamento populacional
se confundem com a própria cidade, fazendo do dispositivo patrimonial o principal recurso,
como já visualizado nos anos 1930 e 1940, mas potencializado por uma empresa cultural, cuja
mercadoria, observamos na seção anterior, é extremamente lucrativa e politicamente eficiente.
Essa compreensão é o importante ponto de partida para a leitura a respeito da atuação do
programa Monumenta para a “revitalização” de centros históricos de grandes cidades
brasileiras na primeira década do século XXI.
O programa foi uma iniciativa do Ministério da Cultura com financiamento do BID
(Banco Interamericano de Desenvolvimento), que visava recuperar centros históricos de
algumas das principais cidades brasileiras – atuando em 25 cidades. O IPHAN seria a
instituição responsável pela regulação técnica do processo, produzindo pareceres para o que
devia, ou não, ser objeto das políticas de requalificação. Isso já parece ser suficientemente
complexo, como podemos observar na crítica ao conceito em Paulo Peixoto:
A extensa normatividade que tem suscitado o uso intenso do termo
nas operações de intervenção urbana e, sobretudo, a filosofia
patrimonial que a anima, conferem à reabilitação um sentido que a
liga intimamente à nostalgia de sociabilidades de tempos e de espaços
perdidos. Ao mesmo tempo, apoiada na ideia de requalificação
urbana, ela parece transportar e fazer-se transportar por inusitado
desejo de transformação da realidade no sentido de configurar um
897
futuro promissor. Balançando entre a paixão pelo passado, o
desencanto pelo presente e a confiança no futuro, a reabilitação e a
requalificação urbanas têm estado sujeitas a contingências que as
colocam entre ensejos de um preservacionismo rígido e ambições de
execução de uma política de tábua rasa (2009, p.49).
898
Como observamos no trecho de Peixoto, acima transcrito, o desenvolvimento cultural
produz não somente uma disposição para o futuro, mas, no caso específico da cidade de
Recife, é nítido o entendimento de que a perspectiva de financiamento do BID, por meio do
programa Monumenta, funcionou como linguagem para estabilização de um passado
compreendido como conveniente recurso político para complexas estratégias contemporâneas
de segregação urbana. Trata-se daquilo que, ainda na seção anterior, chamamos, como o fez
Huyssen (2014), de culturas do passado presente.
No caso específico da atuação do projeto do Ministério da Cultura na cidade de Recife,
devemos observar que ele procurava dar conta da gestão político-cultural de cerca de 800
edificações, onde habitavam pouco mais de 500 moradores. Segundo dados de relatórios do
próprio Monumenta, até 2008, cerca de 9,4 milhões seriam investidos na recuperação de
imóveis – 1,5 milhões para edifícios privados. Ainda que um discurso geral do projeto tenha
seu foco na integração entre as edificações e o que se convém chamar de reabilitação urbana,
fica nítido que o conjunto de intervenções estava intensamente voltado para o estímulo de
uma atividade comercial específica bem como ao incentivo para a criação de um novo perfil
de visitante do bairro, pautado em um conjunto de equipamentos de cultura e entretenimento:
livrarias, cafés, shopping, artesanatos, museus, cinemas e teatro. Todos esses equipamentos,
não por acaso, ficariam – e efetivamente ficam – concentrados no cone sul do istmo, zona
radicalmente oposta àquela onde se concentra quase a totalidade de moradores do bairro, a
saber, a comunidade do Pilar, ainda mais invisível desde os empreendimentos de gentrificação
do final da década de 1990 e dos projetos para a área no início do século XXI.
Os relatórios bem como os discursos de gestão apontam a comunidade do Pilar como
objeto de um tipo diferente de interesse, fazendo daquela região produto de programas de
“retomada” de desenvolvimento, como o PAC. O relatório fala em Programa de
Requalificação Urbanística e Inclusão Social como aquele que efetivamente seria responsável
por atuações na comunidade, o que chama atenção pelo dado implícito do não envolvimento
do Monumenta com a ideia de que a cidade seria construída por empreendimentos de inclusão
que, estes sim, justificariam projetos de requalificação/reabilitação. O dado é que a
899
comunidade recebeu a construção de um conjunto habitacional que serviu apenas à metade da
população local, aprofundando dispositivos de diferenciação social, haja vista que novos
conflitos surgiram entre moradores das zonas de mocambos e residentes nos cortiços
construídos pela gestão municipal (LIMA, 2017). Até 2017, a Igreja do Pilar, uma das mais
antigas da cidade, permanece fechada, com seus acessos lacrados por alvenaria.
À paisagem urbana destacada pelo Monumenta caberia quase exclusivamente uma
noção de documento – a qual, no caso de Recife, nem é exatamente verdadeiro – que produz a
cidade reabilitada basicamente como paisagem postal, condição fundamental para alinhar a
cidade numa corrida por bons lugares do mercado do turismo global e suas divisas. Mas não
somente. A segunda face do empreendimento de gentrificação é aquela que diz respeito, na
capital pernambucana, às políticas de expansão do produto requalificado além dos limites do
bairro, inclusive com novos projetos habitacionais. É o que basicamente descreve o Projeto
Novo Recife.
O ponto de partida do projeto é a imperativa necessidade de intervenção no que o
próprio texto chama de “uma das regiões mais degradadas da cidade”14. Parte-se do princípio
de que degradação – fenômeno muito recorrente com o conceito de gentrificação – é um
termo dado e que todos compreendem bem do que se trata. O que faz dos bairros de Santo
Antônio e São José regiões degradadas da cidade? Há um já consolidado volume de estudos a
respeito do decréscimo populacional na região, que se converteu nos últimos quarenta anos
em basicamente espaços compartilhados para comércio e burocracia municipal. A zona de
comércio popular, contudo, traduz intensa vitalidade na região, o que faz o léxico da
reabilitação parecer, no mínimo, cínico.
Segundo o projeto, a construção de 1042 unidades habitacionais, um polo cultural (junto
ao Forte das Cinco Pontas), uma praça gigante – que, aliás, separa a zona comercial da região
dos edifícios – e um polo de turismo e esportes, localizado ao lado da já existente marina da
região, seriam argumentos suficientes para reposicionar o debate sobre ocupação na região,
14
http://www.novorecife.com.br/o-projeto
900
“devolvendo” ao lugar uma atividade que ele não tem. Além disso, o projeto se conecta ao
desenvolvimento de um novo polo hoteleiro para a região, que prevê a instalação de mais de
600 leitos com a construção de novos hotéis conectados ao novo terminal náutico de
passageiros. Ainda segundo dados do próprio site do projeto, o esboço final das construções
respeita a linha do horizonte da cidade e da paisagem da região15, mas, ainda assim, prevê o
repasse de montante suficiente para a construção de 200 habitações populares como “recursos
de mitigação” para a gestão municipal, destinado a construções num raio de 300 metros das
torres do projeto. Por que mitigação se o projeto só traria benfeitorias?
Desde o leilão do terreno em 2008, citado ainda no início deste texto, uma série de
irregularidades foram anotadas. São problemas que vão desde a fraude de dados referentes ao
saneamento das edificações e da capacidade de tratamento de esgoto da unidade do Cabanga –
a mais próxima da região –, até a ilegitimidade do próprio leilão bem como a gestão
financeira dos grupos envolvidos para a formação do Consórcio Novo Recife, formado pelas
empresas Ara Empreendimentos, GL Empreendimentos, Moura Dubeux Engenharia e
Queiroz Galvão.
A despeito de todas elas, o que desejamos destacar é o movimento de intervenção
urbana, sustentado pelo discurso desenvolvimentista da requalificação, produzindo,
novamente, na história da cidade, complexas políticas de segregação. Nesse caso específico,
não se trata da construção de fortificados enclaves individuais, haja vista que os edifícios não
devem reproduzir o padrão de altos muros e sofisticados sistemas de vigilância tão
característicos da região de Boa Viagem – seguindo o modelo descrito por Caldeira na cidade
de São Paulo. O projeto prevê unidades comerciais nos andares térreos, voltadas para cafés,
um centro gastronômico e equipamentos culturais.
Toda a região gentrificada converte-se, ela mesma, em enclave fortificado, tendo o
aparelho policial do Estado como dispositivo de produção de segurança e isolamento das
populações mais pobres da cidade. O Novo Recife, tal qual o Recife de sua moderna
15
Uma leitura rápida das primeiras páginas da tese de doutoramento de Lúcia Veras (2014), Paisagens Postais, é
já suficiente para tecnicamente observar a fragilidade da apresentação.
901
urbanização, não é um projeto de cidade para toda sua população, como já era fácil observar
desde as intervenções da década de 1940. Pelo contrário, direcionou suas políticas de
modernização e desenvolvimento, mobilizando um recorrente discurso da tradição, para
aprofundamento dos deslocamentos populacionais e reforço das políticas de segregação. O
paradigmático elemento em questão, objeto deste trabalho, contudo, é o recurso das políticas
de cultura como sofisticado dispositivo para tanto, discussão que mobilizamos na quarta e
última seção deste texto.
A relação entre Estado e cultura no Brasil, está claro, não é algo novo. Ela remete, como
se pode verificar no próprio projeto de Estado moderno, a uma conexão estruturante que versa
sobre o complexo cruzamento entre três dimensões essenciais para a construção da sociedade
moderna.
Em primeiro lugar, a imperativa transição de uma esfera pública mobilizada pela corte
para uma dimensão de vida pública que deveria ser habilitada por um espírito cultural, uma
narrativa ficcional que desse corpo a um projeto de vida e consumo coletivos radicalmente
diferente: a nação. O clássico trabalho de Anderson (2008) e mesmo os diversos
questionamentos possíveis a ele (CHATTERJEE, 2008; BHABHA, 2010) sugerem a ideia de
nação como um esforço para emular um pertencimento nacional pré-moderno em uma
estrutura de vida coletiva em que, fundamentalmente, as pessoas investem numa experiência
compartilhada sem efetivamente se conhecerem. A nação como narrativa habilita o Estado
moderno à medida que dá à poderosa estrutura burocrática o corpo público que a família real
não mais pode fazê-lo.
Em segundo lugar, é a própria estrutura burocrática condição fundamental para a
constituição de uma experiência moderna de Estado e não é necessário voltar aos clássicos
para descrever esses processos. Nos interessa apenas ratificar que a burocracia regula a gestão
como dispositivo social fundamental. Cruzado pelo elemento cultural, burocracia e nação
902
habilitam um modelo de sociedade, regulando-o com leis e políticas que são, obviamente,
revistas de acordo com as tensões da vida pública e os usos desiguais dos poderes.
Por fim, em terceiro lugar, o complexo cruzamento entre Estado e cultura ainda
mobiliza politicamente uma dimensão biológica da vida, fazendo de uma condição “rasa” do
ser vivente uma implicação, necessariamente, política e cultural. Nascer na comunidade
imaginada, portanto, é “ser” culturalmente no Estado e, por isso, habilitar direitos vinculados
a uma estrutura burocrática. Não há, portanto, qualquer Estado moderno sem políticas para
gestão de vida e consumo coletivos na e para a cultura.
Isso não significa dizer que são claros e bem colocados os dispositivos de administração
da vida pública pela cultura bem como que isso sempre esteve traduzido em regulações e
controles sobre bens culturais, materialidades da maquinaria patrimonial. Num país como o
Brasil, as políticas de Estado para a cultura descrevem uma linha do tempo sinuosa e obscura,
vivendo sua fase de efetiva profissionalização apenas entre os anos 1980 e 2010. “O
menosprezo e a perseguição das culturas indígenas e africanas; a proibição de instalação de
imprensas; o controle da circulação de livros; a inexistência de ensino superior e
universidades...” (RUBIM, 2008, p.52) são traduções evidentes, ao mesmo tempo, de um
comportamento estratégico do Estado que flertou com estruturas modernas de funcionamento
sem prescindir dos poderes pré-modernos, e de um obscurantismo que, ainda segundo Rubim,
marca como ausência a condução do Estado colonial brasileiro sobre políticas de cultura até o
fim do século XIX. Não por acaso, as políticas de gestão cultural acompanham,
cronologicamente, a história da urbanização brasileira. O próprio Rubim resume esse traço
comportamental do Estado em relação ao desenvolvimento de políticas culturais:
A República também continuou a tradição de ausência do Império. As
esporádicas ações na área de patrimônio igualmente não podem ser
vistas como uma nova atitude do Estado no campo cultural. Do
mesmo modo, um momento privilegiado do desenvolvimento da
cultura no Brasil, acontecido entre os anos “democráticos” de 1945 a
1964, não foi caracterizado por uma maior intervenção do Estado na
área da cultura. O uso em 1953 da expressão cultura para designar
secundariamente um ministério, Educação e Cultura, e a criação do
903
Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), além de outras
medidas menores, não sugerem nenhuma mutação essencial a esta
persistente ausência de políticas culturais no Brasil (2008, p.53).
904
Afirmamos que a privatização não implicaria precarização não para defender o primeiro
processo de ser acusado do segundo. Entendemos que o movimento em questão produziu
ainda mais complexidade para as políticas de gestão de cultura no Brasil, mobilizando um
conjunto grande de investimentos e ratificando o mercado como fio de Ariadne para a questão
cultural brasileira. O resultado de tais políticas é um emaranhado de grandes debates
possíveis, que vão desde dispositivos multiculturalistas para regular discussões sobre uma
nova gestão para o “popular” – o que não está restrito ao caso brasileiro, como é possível
observar em Hall (2003) –, até as políticas de segregação urbana sob a forma complexa da
gentrificação, revitalização, reabilitação etc.
Em Recife, por exemplo, desde 1994, a lei municipal 15.906 regula a gestão de
equipamentos públicos urbanos por pessoas jurídicas. Trata-se basicamente de um programa
para adoção de praças por empresas, que ficavam responsáveis não somente pelos serviços de
limpeza como também por composição estética e políticas de uso do espaço. A ponte entre
um registro estético da cultura e uma gestão dos hábitos culturais (modos de vida), o que em
Miller e Yúdice (2004) constitui a própria noção de políticas culturais, consolida-se como
objeto de promissora gestão mercadológica, o que ratificaria a própria cidade como grande
produto da gestão de políticas culturais.
Os dois governos Lula – ministério de Gilberto Gil – são emblemáticos nesse aspecto.
Somente nos três primeiros anos de mandato, o orçamento do Ministério subiu de 289
milhões de reais para 513 milhões, além da transferência para políticas culturais de um
montante de recusa fiscal que em 2002 era de R$ 345 milhões e em 2005 já era de R$ 691
milhões. A consolidação de instituições de gestão é também um inegável avanço em relação
às gestões de FHC. A construção do Sistema Nacional de Cultura bem como a criação do
Instituto Brasileiro de Museus e de um Sistema Nacional de Museus com plano específico
traduzem a disposição do governo para consolidar uma estrutura burocrática para a gestão
cultural no Brasil, o que, no entanto, não significou uma reversão do conceito observado na
gestão Cardoso/Weffort. Dois importantes aspectos desse movimento precisam ser
destacados.
905
O primeiro é a gestão da criação. Em Pernambuco, o fomento de produtos culturais, a
partir de 2003, esteve voltado, de forma cada vez mais intensa, ao edital de financiamento
pelo Estado, o FUNCULTURA16. No primeiro ano de edital, o Estado destinou R$ 8,1
milhões a pouco mais de 100 projetos aprovados. A seleção é realizada em um conjunto de
etapas que compreende desde pareceres técnicos de especialistas em cada área específica de
atuação a rubricas institucionais que, ao final, decidem pelo produto a ser desenvolvido. Em
2013, o montante de R$ 33,5 milhões destinados a 400 projetos já demonstra, ao mesmo
tempo, o grande interesse do Estado em manter uma gestão sobre a produção cultural em
Pernambuco e, importante observar, uma progressiva dependência do edital ao qual se
vinculam os agentes de cultura, estes, por sua vez, cada vez mais profissionalizados pelas
demandas do campo. Desde sua implantação, o FUNCULTURA destinou R$ 159,1 milhões à
realização de projetos culturais, o que tem amarrado um campo de produção cultural no
Estado a uma “cultura dos editais”.
A construção e consolidação de dispositivos de regulação, marca da gestão que
pretendeu superar o modelo FHC/Weffort, produziu um complexo conjunto de
enquadramentos que deveriam representar uma cultura política do Estado e sua versão para a
produção cultural. Ao longo dos anos, é possível observar uma progressiva gestão da criação
fortemente ligada a um tipo de financiamento cultural que só faz ser possível a reprodução de
uma noção de cultura ligada aos interesses do Estado, lugar excelente para a reprodução da
cultura como parte do maquinário de consolidação e reforço identitário. Mas não é só.
O segundo aspecto a ser destacado é a política cultural para a gestão da diferença. Se os
ganhos com o Lulismo estão fortemente ligados à redução da miséria, com importante política
de distribuição de renda – ainda que isso não tenha afetado as grandes fortunas do país – e
redução efetiva do desemprego e seus males associados, as políticas de gestão cultural
serviram para consolidar e sustentar as teses de cultura como compensação. Os programas de
16
Com primeiro edital publicado ainda em 2003, no segundo mandato de Jarbas Vasconcelos e primeiro ano de
mandato presidencial de Lula. O fundo recolhe verbas do ICMS e transfere ao fomento de atividades culturais
em diversas linhas de atuação.
906
governo desenvolvidos em zonas pobres de cidades como Recife – Pontos de Cultura e Pontos
de Memória, por exemplo – funcionaram como importantes dispositivos de análise dos
funcionamentos comunitários, mas indicaram pouca possibilidade de gestão coordenada pelas
próprias comunidades. Ao final, o trabalho servia fundamentalmente para destacar o lugar da
pobreza enquanto traço patrimonial da comunidade, como pode ser observado no bairro do
Coque, em Recife, onde a construção do Museu da Beira da Linha do Coque – instituição por
si só com diversos problemas que não nos caberá aqui destacar – está ligada ao esforço dos
moradores para diminuir o impacto produzido pelo programa de gestão do ponto de memória
instalado naquele bairro (SANTANA, 2016). Vê-se sem grandes dificuldades, tal qual
observa Fanon (2005) ao estudar as políticas de violência do Estado moderno, o recurso do
bem cultural como dispositivo de pacificação, substituindo progressivamente a força policial.
A cultura como compensação, nesse contexto, é a cultura como atenuante das tensões
que revelam uma cidade erguida sobre lógicas cruéis de desigualdade. A política da cultura
para gerir diferença cultural também é uma importante ferramenta para “completar” a
experiência cultural das elites com o selo da diversidade cultural, máxima de uma razão
indolente que produz a meritocracia como estrutura para compreensão das desigualdades
sociais.
O desafio das estratégias de resistência parece se concentrar ainda mais na pauta de
superar uma política cultural como traço do paradigma da gestão eficiente por uma política
cultural que traduza mudança social. “En suma, se trata de una lucha entre concebir la
política cultural como una esfera transformadora frente a considerarla una esfera
funcionalista”17 (MILLER & YÚDICE, 2004, p.13).
Em Recife, nos primeiros anos do século XXI, esse embate tem se traduzido no choque
entre um esforço para a profissionalização de uma política de gestão cultural pautada em uma
perspectiva de desenvolvimento cultural e financeirização da cultura, materializada em
equipamentos voltados ao mercado do turismo global ou às técnicas de “requalificação”
17
Em suma, se trata de uma luta entre conceber a política cultural como uma esfera transformadora contra a
considerá-la uma esfera funcionalista (Tradução livre dos autores).
907
urbana, e, num outro lado, no imperativo de outras (ou novas) organizações sociais que têm
no reverso da sofisticação das políticas de segregação urbana seu principal objeto de atuação.
Até 2017, as torres do “Novo Recife” sequer começaram a ser levantadas. Do mesmo modo
que o projeto não representa sozinho um conjunto de reproduções de uma cidade cuja
desigualdade é paradigma urbano, as resistências se estendem da luta contra as torres no cais
às políticas cotidianas de denúncia e contra-silenciamento das lógicas de apartação na cidade
contemporânea. O momento, nesse aspecto, é promissor para a ambiguidade que estrutura a
noção de conveniência (recurso) da cultura em Yúdice (2004). Ele diz respeito à fertilidade
dos usos possíveis da cultura também enquanto instrumento de rasuras do social, cisões de
estruturas solidificadas pelo discurso do desenvolvimento e por um sentido sufocante e,
eventualmente, simulado de tradição. Investigar as formas dessas resistências e suas políticas
de ação, contudo, é um exercício que este trabalho não comporta.
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IN ARANTES, Antônio A. O Espaço da diferença. Campinas: Papirus, 2000.
910
DO DISPÊNDIO IMPRODUTIVO AO USO SUSTENTÁVEL: NOTAS SOBRE O
CONCEITO (GERAL) DE PATRIMÔNIO E SOBRE O PATRIMÔNIO
GENÉTICO
Resumo: Encontram-se urdidas nessa breve comunicação notas de pesquisa que o Grupo
Museo-lógica vem desenvolvendo sobre a experiência do ocidente com os bens culturais,
precisamente, daqueles que são consignados pela termo patrimônio. Aqui, o esforço segue em
duas direções. De um lado, procura-se traçar sua história desde o século XVIII até a
atualidade. Disto, não se saberá apenas sobre a trajetória desses bens culturais apenas; será
possível, também, dizer alguma coisa sobre o modo como o Estado age sobre os sujeitos. De
outro, em analisar a emergência do patrimônio genético: sobre o modo como ele coloca em
jogo natureza e cultura, e alinha saberes como a museologia e antropologia em torno do
conceito – também emergente – de comunidades tradicionais. Esse aspecto permitirá,
também, apontar a exigência de uma curadoria do conceito de conservação, na medida em que
essa nova qualidade de patrimônio encena uma relação outra com a economia.
Palavras-chave: Patrimônio; dispêndio improdutivo; sustentabilidade; consumo.
Abstract: This brief communication research presents results that the Museo-Logica Group
has been developing on the experience of the West with the cultural goods, precisely, those
that are consigned by the term patrimony. Here the effort goes in two directions. Firstly, we
try to draw the historical curve that has been designed since the eighteenth century until the
present time. In this perspective, we can understand aspects of the trajectory of these cultural
goods, as well as to spotlight the way the state acts on the subjects. On the other hand, the
second effort correspond to analyze the emergence of genetic patrimony. This means
discussing how it puts nature and culture into play and aligns knowledge such as museology
and anthropology around the concept - also emerging - of traditional communities. This issue
will also allow us to point out the need for a curation of the concept of conservation; since this
new quality of heritage represents a distinct relationship with the economy.
Key-words: Heritage; unproductive expenditure; sustainability; consumption.
911
Faz-se cada vez mais necessário dar conta, antes de qualquer qualificação que possa
delimitar seu sentido (neste caso, os delimitadores cultural e natural), desse conjunto de
coisas que se recolhe sob a denominação de patrimônio. Não há dúvidas de que o termo
experimenta, hoje, uma inflação, e é por isso mesmo que seu sentido se torna cada vez mais
etéreo; de outro modo, trata-se de um objeto que tem se prestado cada vez mais a política no
momento mesmo em que aumentam as dificuldades para pensá-lo. É necessário, desse modo,
submeter o patrimônio a uma curadoria: encontrar, na heterogeneidade das coisas que se
fazem reconhecer a partir de sua rubrica, um traço comum.
O pressuposto que conduz, aqui, o pensamento, afirma que este traço ou marca torna-
se mais ou menos legível na medida da disposição para pensar o patrimônio a partir de
perspectivas econômicas, a saber, de um ponto de vista que empenhe, de partida, os dados da
economia clássica, e que se desloque, por necessidade, à posição da economia geral
(BATAILLE, 2013). Para aquela primeira circunscrição (clássica) não passará desapercebido
que os novos objetos que o termo acolhe a partir do século dezenove – os monumentos; mais
tarde, a cultura e, atualmente, a biodiversidade e mesmo o âmbito anexo onde seu jogo passa
a se efetuar (no corpo das nações) – não altera sua dinâmica econômica: trata-se, em qualquer
dos casos e de diferentes maneiras, da produção de riquezas, de sua transferência e
conservação – e tudo isso encontra, como se verá, sua experiência mais ambivalente com a
emergência do patrimônio genético.
912
de resto, não é o mesmo que dizer coletivo. Essa diferença abre para uma primeira questão,
formulada aqui a partir da poderação de Françoise Choay (2006) sobre o que seja o
patrimônio histórico:
Sei que não é mais possível adiar uma crítica à ideia de comunitário e de comum que o
conceito de patrimônio recolhe e abriga, ou deixar de considerar os desdobramentos
miméticos que permitem afirmar sua dimensão planetária. Por ora, quero apenas marcar que
Choay não pôde definir a relação da comunidade com o patrimônio, a não ser recorrendo à
categoria jurídica do usofruto, ou seja, do “direito de usar e de gozar de coisa alheia,
respeitada a substância da coisa.” (JUSTINIANO I, 2005, p. 90). É uma pena, portanto, que
sua definição não tire daí suas últimas consequências: consoante ao sentido atual de
patrimônio, já seria possível pressentir a condição política que a impossibilidade de consumo
(da substância do que seja a coisa patrimonial) introduz na relação de um povo com aquilo
que supostamente faz sua herança, qual seja, a de uma minoridade que exige – e quase nunca
se trata de auto-exigência, mas de um exigir que vem de fora –, por necessidade, de uma ação
tutelar, de um estar sempre às vistas de um pai, assombroso, não por estar morto mas justo
porque, real ou simbolicamente, nunca morre. Deste ponto de vista, a história desses novos
patrimônios deverá traduzir a história de uma emancipação que se atrasa sempre e sempre18.
Entretanto, o conceito de usofruto faz algo ainda mais radical. Pois ele destrói
18
O artigo de Victor Hugo, intiulado Guerra aos demolidores e publicado na revista Dois mundos, é um dos
lugares onde a relação entre patrimônio e reconhecimento se esclarece.
913
qualquer ideia ou expectativa de emancipação e reconhecimento, posto que denuncia a ilusão
do patrimônio comum, quer dizer, da retórica sobre o comunitário que não se destinaria outra
função a não ser encobrir o exercício do Estado, a um só tempo como o pai de todos e dono
de tudo. Nesse sentido, se torna possível dizer que, em relação ao patrimônio, a experiência
comunitária – que é a de comunidade a cada vez imaginada – é sempre à maneira franciscana:
traduz sua altíssima pobreza.
Os dados de uma economia geral, por sua vez, deixa perceber que, se o ocidente
passou a desejar a produção de patrimônios perenes – e o que esse delimitador faz é apenas
deixa claro o elemento de conservação que é inerente a ideia mesma de patrimônio, ainda que
seja possível, no limite, atentar contra ele –, e de maneira tal que qualquer consumação de
uma parte sua fosse desde o início barrada19, isso ocorreu às custas de que estes mesmos
patrimônios passassem de partida a figurar, para sua preservação, como dispêndios
improdutivos (BATAILLE, op. cit.), ou, de outra maneira, exigia-se que sua produção e
conservação constituíssem atividades cujas finalidades residissem em si mesmas – que aqui é
o mesmo que dizer que se tratam de atividades que não se achavam submetidas ao princípio
da utilidade – e que o sentido último dessas atividades fosse manifesto, a cada vez, pelo maior
dispêndio que estas requeiram para si. O que os dados da economia geral deixa assim exposto
é o caráter suntuoso dos monumentos e dos bens culturais20. Essa sua relação com o
dispêndio – e isso diz necessariamente todo o bem cultural que se possa recolher sob o
conceito de patrimônio – compõe exemplo – insclusive sobre as dimensões do conceito:
914
arquitetônica, pela música e pela dança. Essa categoria comporta
dispêndios reais. Contudo, a escultura e a pintura, sem falar da
utilização dos locais para cerimônias ou para espetáculos, introduzem
na própria arquitetura o princípio da segunda categoria, o do dispêndio
simbólico (Idem, p. 23).
Partindo, portanto, dessa noção de dispêndio improdutivo, noção que pode dizer com
muita justeza o que se passou com o patrimônio até parte da primeira metade do século vinte,
seria preciso avançar para o que ocorreu aí depois dessa altura histórica, a saber, para o como,
em sua vida mais recente, o patrimônio se vê conformado cada vez mais ao princípio da
utilidade clássica, princípio que faz retornar a consumação com vistas à sua fruição. Essa
relação entre o consumo e a fruição que empurra o conceito e a prática de conservação para o
seu limite, pode muito bem fazer-se o sintoma da parcimônia dos estados modernos – e que é
a sua realidade pelo menos desde a segunda grande guerra –, e que hoje impõe ao patrimônio
solução pela via do desenvolvimento sustentável.
Se, de um lado, esses dados da economia geral fecham a análise sobre o que está em
jogo no conceito geral de patrimônio, de outro, um novo conjunto de fatos recolhidos sob essa
categoria (patrimônio genético) dará as condições de avaliar a consistência de sua
circunscrição para abarcar certo cruzamento entre natureza e cultura, a partir do conceito de
campo. Aqui, tal noção encontra em Pierre Bourdieu (2004) sua fiança. Pensado como espaço
de autonomia relativa, a projeção de sua sombra por sobre a experiência patrimonial permitirá
discriminar leis singulares que permitiriam sua dinâmica, e, também, demonstrar as traduções,
em termos próprios, das pressões chegadas do seu lado de fora. Deverá ser possível ainda, a
definição dos agentes e instituições – e de suas relações de poder e força – responsáveis por
produzir, reproduzir e difundir o patrimônio cultural e natural.
915
estados gerais (de natureza, de cultura) suas condições de possibilidade. Ao contrário: tudo o
que se quererá demonstrar é que o patrimônio natural e cultural – ou, pelo menos, este
segundo termo – não se deixa limitar radicalmente, posto se tratar, aí, respectivamente, da
vida e dos modos de existência. De outro modo, o que se configura como natureza ou
biodiversidade e, também, cultura, participa de um jogo cósmico: trata-se num e noutro caso
de produção de riquezas, que não é outra coisa senão a intervenção e apropriação da energia
que percorre o globo terrestre e que sustenta a vida e, no caso humano, sua existência
(existência como modo especifico que a vida assume em função da cultura). Pressente-se
desde já, que estes aspectos não estão separados (natureza e cultura), e que os modos de
existência são, em sua base, formas distintas de resolução das necessidades vitais (DELEUZE,
2004, 29).
916
desejo de conservação, posto que sua motivação se baseia em um traço narcísico. Em todo
caso, projetar-se-á, assim – e somente a partir de uma curadoria –, o êxito da conservação
atrelado às condições de possibilidade para uma mudança de perspectiva.
917
dos homens — a arte, a religião, a filosofia, a idéia de natureza, até
mesmo a política — retiraram-se, uma a uma, docilmente, para o
Museu. Museu não designa, nesse caso, um lugar ou um espaço físico
determinado, mas a dimensão separada para a qual se transfere o que
há um tempo era percebido como verdadeiro e decisivo, e agora já não
é. O museu pode coincidir, nesse sentido, com uma cidade inteira
(Évora, Veneza, declaradas por isso mesmo patrimônio da
humanidade), com uma região (declarada parque ou oásis natural), e
até mesmo com um grupo de indivíduos (enquanto representa uma
forma de vida que desapareceu). De forma mais geral, tudo hoje pode
tornar-se Museu, na medida em que esse termo indica simplesmente a
exposição de uma impossibilidade de usar, de habitar, de fazer
experiência (AGAMBEN, op. cit., p.73)
E, ainda que se detenha aí (no Museu), não será difícil dilatar essa conclusão para a
experiência patrimonial; por um lado, não existe diferença de intenção ou funcionalidade
entre processos de musealização e processos de patrimonialização22 – nenhuma
especificidade técnica responderá por uma dissolução dessa natureza comum; noutra via, o
próprio conceito em análise (desenvolvimento sustentável) dá evidência da orientação do
patrimônio cultural e natural para o mercado.
22
Sobre os sentidos dessa indistinção, vide Espelho das cidades (Jeudy, 2005), particularmente, sua primeira
parte (A maquinaria patrimonial).
918
coisas – mas não somente delas – que lhe é inerente.
Ora, por tudo que já se aponta aqui será necessário ter em mente o que se passou no
primeiro gesto curatorial, a saber, da resolução do patrimônio, seja qual for a sua espécie, a
partir do econômico: enxergar, no modo como se efetiva a condução capitalista, ou seja,
naquilo que, a um só tempo, estrutura e recobre tudo e todos – e o desvelamento desse aspecto
fecha o circuito dos desejos de totalidade, posto que já havia mostrado o absolutismo do
Estado, que é pai e dono –, o problema mesmo da conservação do patrimônio cultural e
natural. Será possível, então, compreender o que se acha em jogo na expectativa manifesta
por parte daqueles que se acham às voltas com as questões referentes à biodiversidade,
particularmente os cientistas sociais, de que sua função seja, literalmente, a de mediação de
conflitos.
Por isso mesmo, as ações de curadoria acima discriminadas, contribuem para a análise
de certo arranjo conservador com o qual a experiência brasileira tem marcado a relação entre
patrimônio cultural e natural. Trata-se da urdidura complexa estabelecida lá onde a
biodiversidade, as comunidades tradicionais e a intervenção antropológica se cruzam. Há, de
um ponto a outro desta série, respostas e responsabilidades: tudo se passa fazendo com que as
comunidades tradicionais respondam pela conservação da biodiversidade, assim como a ação
antropológica deve responder, a seu turno, pela cnservação daquelas comunidades.
Sobre esse aspecto, a mim parece fundamental esclarecer, de partida, que o que se está
a evidenciar aqui é um arranjo de Estado. Isso que se afirma tem valor de verdade tanto para
a relação entre biodiversidade e comunidades tradicionais, com para estas em sua relação com
a Antropologia. Por uma via, o lugar tópico dessa governamentalidade que faz funcionar
certas formas do cultural em benefício da biodiversidade, se encontra na Convenção sobre a
Diversidade Biológica – que constitui somente os Estados como partes contratantes de seu
acordo –, que tanto reconhece a estreita e tradicional dependência de recursos biológicos de
muitas comunidades locais com estilos de vida tradicionais, como supõe haver, nessas
mesmas comunidades, saberes e práticas relevantes para a conservação da diversidade
919
biológica. É evidente assim que trata-se, a um só tempo, de uma política de conservação e de
reconhecimento23. Noutra via, tem sido a Antropologia mesma, quem diz sobre a construção
de conjugação antropológica às políticas de reconhecimento levadas à cabo pelo Estado
brasileiro.
Ora, essa linha de força, na antropologia, atravessa e enforma sua fase recente,
esclarecidamente projetiva, na qual o seu saber assume para si a função de desenhar conceitos
e categorias – que não seria outra coisa senão a produção de tipos humanos e comunitários –
para serem in-corporados a posteriori, como demonstra a passagem explicativa sobre o
conceito de comunidades tradicionais:
23
Da Convenção da biodiversidadede para cá, parte das políticas públicas replicam esse reconhecimento. Dois
exemplos emblemáticos: a Política Nacional de Museus que elege o patrimônio cultural como dispositivo
estratégico de aprimoramento dos processos democráticos. Essa política parte do pressuposto que o patrimônio
cultural implica [...] a dimensão cultural pressuposta na relação dos diferentes grupos sociais e étnicos com os
diversos elementos da natureza [...]; a Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos, em sua
Apresentação por exemplo, ao afirmar o Brasil como país de maior biodiversidade do planeta que, associada a
uma rica diversidade étnica e cultural que detém um valioso conhecimento tradicional associado ao uso de
plantas medicinais.
920
É por isso que, do ponto de vista metodológico, a avaliação sobre o êxito dessa
urdidura em conservação dependerá de análises precedentes e mais ou menos isoladas de dois
dos elementos dessa tríade; eles serão necessárias para que se possa saber e dizer com alguma
consistência sobre os efeitos de seus cruzamentos. Esses elementos serão as comunidades
tradicionais e a operação antropológica. No caso da biodiversidade, seu sentido já se
encontrará submetido, à essa altura, aos dados da Economia Geral (ou Energética).
Essa categoria não se confunde, portanto, com sujeitos que, antes, poderiam aí se
recolher. Esse aspecto é demonstrável, dentre outros meios, a partir da natureza das políticas
públicas e das atitudes que se dirigem ao meio ambiente de remanescentes de quilombo. Por
isso mesmo, é possível asseverar que a experiência política opera nessas comunidades a partir
de uma disjunção entre o conjunto de seus enunciados sobre reconhecimento e suas práticas
de produção do tradicional. Reside nisso o sentido político para essas comunidades
imaginadas (ANDERSON, 2008); e o que está em jogo aí é sua propriedade conservadora.
A partir daí, importa avaliar a parte antropológica dessa imaginação. Será preciso
921
reelaborar a crítica da Antropologia. Já se terá sabido, então, que a operação antropológica
conserva as comunidades tradicionais a partir de sua imaginação e de seu arquivo. O que se
deve demonstrar, a partir daí, são os limites dessa conservação. E para que esses limites se
tornem evidentes, me parece necessário recorrer a duas lembranças sobre a operação
antropológica.
922
exemplar24.
Por outro lado, a própria consistência da antropologia deverá ser pensada, no mesmo
sentido apontado por Henri-Pierre Jeudy:
Referências bibliográficas
24
Eis uma de suas passagens mais emblemáticas: […] estes desastres não tiveram apenas consequências de um
tipo. Ao obrigar Malinowski a compartilhar da vida dos indígenas das ilhas Trobriand de maneira mais durável e
mais íntima do que ele teria, talvez, previsto, a primeira guerra mundial contribuiu indiretamente para fazer
entrar a antropologia numa era nova; uma consequência igualmente indireta da segunda, foi a de abrir à pesquisa
antropológica este mundo novo que é o interior da Nova Guiné, com uma população da ordem de 600.000 a
800.000 almas e cujas instituições colocam novos problemas aos antropólogos, e os obrigam a reconsiderar
algumas de suas ideias teóricas que eles acreditavam estarem bem assentadas. Igualmente, a transferência da
capital federal para o coração do Brasil, a construção de estradas e a aeródromos em regiões recônditas do país,
revelaram a existência de pequenas tribos isoladas exatamente onde se acreditava na ausência de toda e qualquer
vida indígena (LÉVI-STRAUSS, 2013, p. 66).
923
AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007.
BATAILLE, Georges. A parte maldita, precedida de “A noção de dispêndio”. 2a. Ed. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2013.
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JEUDY, Henry-Pierrre. Espelho das cidades. Rio de Janeiro: Casa da palavra, 2005.
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Espanhola (IV SIAM). Rio de Janeiro, 2013.
LÉVI-STAUSS, Claude. Antropologia estrutural Dois. São Paulo: Cosac Naify, 2013.
924
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: EXO
experimental org: Editora 34, 2005.
925
MUSEUS E AS CONVENIÊNCIAS DESCOVENIENTES DA CULTURA
POLÍTICA NO CENÁRIO CONTEMPORÂNEO
Resumo: Depois do século XX, o mercado da cultura se confunde com o próprio mercado, e a cidade
simboliza a conversão de um empreendimento da cultura em divisas: “não há nenhum espaço puro
fora da cultura da mercadoria, por mais que possamos desejar um tal espaço” (HUYSSEN, 2000, p
.21). Os equipamentos culturais são usados para produzir divisas, existe um uso conveniente da
cultura, um tipo de gerenciamento, em que a agenda das culturas políticas contemporâneas é
fortemente marcada por um “negócio da cultura”. Nesse contexto, os museus são significativos
equipamentos culturais, na composição de uma agenda de cultura política, e não escapam da
transformação de uma memória do passado em produto, ou seja, produto de mercado. A tomada da
cultura por um empreendimento “conveniente” atua como um importante recurso disciplinar e
político. Assim, discutir cultura é discutir gestão da cultura, e quem são seus “administradores”. Nesse
sentido, esse breve texto tem como objetivo pontuar algumas questões sobre os complexos
cruzamentos entre: os museus e a emergência da cultura enquanto produto da sociedade
contemporânea.
Palavras-chave: Museus; Cultura Política; Negócio da cultura; Epistemologia colonial; Construção de
Subjetividades.
Abstract: After the twentieth century, the market for culture merges with the market itself, and the
city symbolizes the conversion of a culture enterprise into foreign exchange: "there is no pure space
outside the commodity culture, however much we may desire such a space "(HUYSSEN, 2000, p. 21).
Cultural equipment is used to produce foreign exchange, there is a convenient use of culture, a type of
management, in which the agenda of contemporary political cultures is strongly marked by a "culture
business". In this context, museums are significant cultural equipment in the composition of an agenda
of political culture, and do not escape the transformation of a memory of the past into product, that is,
market product. The taking of culture by a "convenient" enterprise acts as an important disciplinary
and political resource. Thus, discussing culture is discussing culture management, and who are its
"managers". In this sense, this brief text aims to answer some questions about the complex
intersections between: museums and the emergence of culture as a product of contemporary society.
Key-words: Museums; Political Culture; Culture Business; Colonial Epistemology; Construction of
Subjectivities.
926
Os museus e a emergência da cultura enquanto produto da sociedade contemporânea
A grande cidade da atualidade emergiu como local estratégico para uma vari
edade de novos tipos de operações – políticas, econômicas, culturais e subjet
ivas.
Saskia Sassen, 2010, p. 91
Após a 2ª guerra mundial (1939-1945), existe uma ênfase nos aspectos culturais, e o
entendimento do que é cultura passou por diversas modificações. (HALL, 1997). Desde uma
divisão marcada pela noção de uma cultura superior e uma cultura inferior (que embora
criticada, e em muitos aspectos modificada, continua atual), passando pelo relativismo
cultural, com a concepção de convivência das diferentes culturas, até um funcionamento que
relaciona de modo direto cultura e economia, ou seja, o multiculturalismo, um investimento
mais administrativo que de produção cultural; o lugar de desenvolvimento de um tipo de
fomento- o utilitarismo da cultura.
Segundo George Yúdice depois do século XX o mercado da cultura se confunde com o
próprio mercado, e a cidade simboliza a conversão de um empreendimento da cultura em
divisas. Para Yúdice a cidade é um sistema de pensamentos, e é preciso discutir suas políticas
de uso e entender as novas formas de agenciamento da cultura. A ideia não é resgatar um
conceito de cultura de um traço original, mas perceber suas lógicas sofisticadas de
administração do diferente:
927
diretamente ao passado. No entanto, essa aparente contradição ganha novos contornos, pois o
museu não está mais relacionado só a uma memória do passado, existe uma transformação da
concepção de museu e desse passado em produto, ou seja, produto de mercado. “Semelhante à
imagem do escorpião por Baudelaire para expressar os efeitos do progresso, a modernidade é
impensável sem um projeto museológico”. (CASTILLO, 2008, p.237).
A compreensão do que seria um museu, passou por muitas alterações, desde os anos 80,
os museus experimentam um crescimento espetacular de tipologias, temas, e plataformas. No
cenário atual, existe um acalorado debate sobre as novas composições de museus, que, por um
lado, atuam enquanto instrumentos de representação dos grupos que derivam das praticas
sociais/econômicas/culturais não absorvidas pelo sistema e pretendem, em grande parte,
agregar os programas contemporâneos de fazer museu com as emergentes mobilizações
globais para extensões das políticas de reconhecimento, como os museus comunitários; e por
outro lado, os museus são pensados como negócios e geridos como modelos empresariais, em
uma lógica de entretenimento cultural: “o museu como cultura de massa, se aproximam do
mundo do espetáculo ou seja, como um espaço mise-en-scène espetaculares e de exuberância
operística” (HUYSSEN, 2001, p.35).
O “Boom dos museus”, que Castillo analisa está intimamente relacionado à indústria do
entretenimento, a vida que se traduz em produção. O laser/entretenimento, enquanto
imperativos da modernidade, estão extremamente ligado ao consumo, que transforma tudo em
mercadoria. De acordo com Castillo, o museu deve responder ao “novo mundo dos museus”,
uma instituição comprometida com o consumo, o mercado, uma relação de dependência com
a indústria midiática, existe um padrão de comercialização, um museu que tem grandes
públicos e gera lucros. “Isso acontece porque a finalidade dos novos museus não é tão-
somente exibir objetos, mas acima de tudo representar imagens. Daí, o tradicional museu dos
objetos ver-se substituído pelo museu de espectadores”. (CASTILLO, 2008, p.274)
O museu deixou de ser comprometido com o passado para ser comprometido com o
consumo, assim a museu mania, não oferece como produto só o passado, mas pode oferecer:
“a memória se tornou uma obsessão cultural de proporções monumentais em todos os pontos
928
do planeta” (HUYSSEN, 2000, p.16). O museu, nesse sentido, tem uma forte dimensão
empresarial, administrativa, que tem como elemento fundador a comunicação de massa.
Com o objetivo de pontuar algumas questões sobre os complexos cruzamentos entre a
emergência da cultura enquanto produto da sociedade contemporânea, e os museus, pode-se
destacar o consumo como um elemento fundante dessas interpelaçõe, e podemos dizer que a
agenda das culturas políticas contemporâneas produz divisas e predomina a concepção de
cultura enquanto recurso, pois mesmo com os outros usos para a cultura, como por exemplo:
os museus comunitários, que tem a cultura como elemento de resistência, instrumento de luta,
de mudança social; na maior parte dos casos, a cultura não é vista como potencia, mas como
administração do “comunitário”, em que é preciso produzir lugares para o diferente, os
indivíduos devem ficar “felizes” nos lugares criados para eles. A cultura como
reconhecimento, precisa ser legitimada, pelos menos grupos que a produziram.
929
Na intenção de atrair esse turista global, a cidade se transforma a partir de um padrão
internacional, que também influencia nas normas de patrimonialização, ditando um modelo de
gestão patrimonial (JEUDY, 2005). A atuação da UNESCO, com suas cartas e declarações
patrimoniais, além da titulação de “Cidades Patrimônio da Humanidade” são um exemplo
dessa globalização da gestão patrimonial no mundo. Além disso, o mundo contemporâneo
caracteriza-se pelo mundo de excessos.
Para Jeudy (2005), existe a universalização da visão europeia, uma reduplicação da
Europa. A cidade tem que ser a minha cidade, e o braço patrimonial é um recurso utilizado
para isso. Segundo Jeudy, o princípio da reflexividade é o motor da lógica patrimonial. É
como se olhar no espelho. O patrimônio é pensado de uma forma global e não local. Numa
sociedade em que tudo pode ser monumentalizado, a morte passa, também, a ser objeto da
“plasticidade museográfica”, numa tentativa de atualização do passado.
Dessa forma, Jeudy (2005) afirma a necessidade de observar o fluxo da cidade e refletir
sobre ela a partir dela. Reabilitar a estética do uso; ver a cidade como uma paisagem que se
move, que produz movimento, que costura; ver como a cidade se revela. A agenda das
culturas políticas contemporâneas é fortemente marcada por um “negócio da cultura” -
economia da memória monumentalista e patrimonializada. Essa agenda produz divisas e
predomina a concepção de cultura como reconhecimento, assim, precisa ser legitimada. A
cultura não é vista como potência, mas como administração do comunitário; a estética urbana
marginalizável, converte a periferia no aparelho administrado pela cidade.
O museu tem um lugar tópico na sociedade contemporânea. Andreas Huyssen descreve
uma musealisação das sociedades ocidentais, o advento de uma verdadeira obsessão
memorial, uma “cultura da memória”, uma valorização do passado como elemento que dá
coerência à nossa própria experiência, em oposição a um presente fraturado em instantes, que
não nos oferece nenhum vislumbre de um futuro promissor. Em um contexto social, que
promove uma imaginação “esterilizada”, guiado por uma lógica imperativa do consumo, que
captura e despontecializa a valorização da cultura, e diante da fragilidade e pobreza de narrar
nossas experiências.
930
Breves Considerações Finais
931
Subjetividade é construída em um nível individual e coletivo. É ao mesmo tempo fruto de
uma experiência singular, é um processo de interação com o “outro”, e com aspectos: sócio,
políticos, educacionais, culturais, emocionais. Para Félix Guattari (1993) a subjetividade não é
passível de totalização ou de centralização no indivíduo. A subjetividade entendida como algo
que é construído, individual e coletivamente. Frantz Fanon (2008) coloca que a colonialidade
provoca uma desvalorização constitutiva, um corpo de dominado, e que a desconstrução
dessas formações discursivas, só será possível a partir da construção de novas subjetividades.
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GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. Rio de Janeiro, Editora 34, 1993
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SASSEN, Saskia. A cidade global: recuperando o lugar e as práticas sociais. IN: Sociologia
da Globalização.Porto Alegre. Artmed. 2010. p. 85- 112.
932
O MUSEU DA BEIRA DA LINHA DO COQUE (PE) COMO CONTRAPÚBLICO
Resumo: O Museu da Beira da Linha do Coque é uma iniciativa comunitária, de articulação e difusão
de memórias. Criado em 2013, pelo Ponto de Cultura Espaço Livre do Coque, tem como objetivo
desmistificar os estereótipos sobre o bairro recifense, que figura entre os mais violentos, nas narrativas
e no imaginário da cidade. Estigma herdado ao longo de anos de exclusão e de políticas sociais no
local e que serviu de critério para entrada do Programa Pontos de Memória do Instituto Brasileiro de
Museus (IBRAM) no bairro. Nos interessa, com esta comunicação, analisar como as dissidências no
processo de criação do Museu do Mangue do Coque deu origem ao seu contrapúblico (FRASER,
1992; WARNER, 2016) – o Museu da Beira da Linha do Coque.
Palavras-chave: Museu; Pontos de Memória; Contrapúblicos;
933
As disputas do memória no bairro do Coque (Recife – PE)
No âmbito da ficção o filme Narradores de Javé (CAFFÉ, 2004) tem como enredo a
escrita da história de uma pequena cidade fictícia, que será submersa pelas águas de uma
represa, sem a notificação prévia, ou mesmo indenização dos seus habitantes, pois estes não
possuem documentos que comprovem seu direito às terras. Inconformados, descobrem que o
local poderia ser preservado se tivesse um patrimônio histórico de valor comprovado e
documentado.
Esta solução mobiliza os moradores na invenção de narrativas que insiram a cidade na
história. O projeto terá como primeiro obstáculo o analfabetismo dos habitantes, restando ao
único homem letrado de Javé, o carteiro Antônio Biá, a missão desta escrita. O filme se
sucede com a busca desses sujeitos por conciliar a urgência por uma história plausível e
relevante sobre a cidade e a vontade de cada pessoa por inserir seu nome na história a ser
contada.
Através de suas metáforas, o filme nos faz pensar sobre as negociações entre
memórias de sujeitos, memórias de grupos e também sobre memórias de sujeitos como
memórias de grupos. Neste sentido, cabe retomamos as contribuições de Maurice Halbwachs
(1990), para quem a memória é sempre uma construção social, erigida no presente, em
referência ao grupo social, pessoas, lugares, objetos e outros signos de nossa experiência,
jamais apenas uma faculdade individual, elucidando ainda que a construção de memórias é
sempre intencional.
934
No embate entre produções de memórias individuais e coletivas, não são poucas as
relações entre os moradores da fictícia Javé e alguns dos diferentes grupos de habitantes do
bairro do Coque25. Nas disputas cotidianas pela cidade, pela vida, por moradia e pelo direito a
outras representações, o bairro popularmente conhecido como o mais violento e um dos mais
pobres do Recife26 foi reconhecido em 2009 pelo Programa Pontos de Memória27 do Instituto
Brasileiro de Museus (IBRAM), não por critérios de herança cultural, ancestralidade ou
relevância para a história da cidade, mas por figurar entre os menores Índices de
Desenvolvimento Humano do Município (IDH-M), conforme metodologia deste programa.
25
Bairro que se desenvolveu nas margens da Ilha de Joana Bezerra, região central da cidade,
sendo cortado pela Avenida Agamenon Magalhães (ponto estratégico, pela conexão com o
Centro, o bairro litorâneo de Boa Viagem e o munícipio de Olinda. E pela vizinhança com os
polos médicos, hoteleiro, comercial e turístico. Razão pela qual enfrenta constantes processos
de gentrificação e especulação imobiliária, agravadas desde 2011, com o advento do projeto
Novo Recife.
26
O Coque é demarcado pelo município como Zona Especial de Interesse Social (ZEIS). Conceito que surgiu no
Recife, na década de 1980, para nomear áreas demarcadas no território da cidade, que de acordo com a lei
municipal, são áreas de assentamentos habitacionais de população de baixa renda, surgidos espontaneamente,
existentes, consolidados ou propostos pelo Poder Público, onde haja possibilidade de urbanização e
regularização fundiária. Conforme: http://www.recife.pe.gov.br/pr/leis/luos/soloZEIS.html Acesso em: 01 de
agosto de 2017.
27
O Programa Pontos de Memória foi criado em 2009 pelo Ministério da Cultura do Brasil
(MinC) em parceria com a Organização dos Estados Ibero–Americanos para a Educação, a
Ciência e a Cultura (OEI). Como uma das ações da Política Nacional de Museus, surgiu com
o pressuposto de “atender os diferentes grupos sociais do Brasil que não tiveram a
oportunidade de narrar e expor suas próprias histórias, memórias e patrimônios nos museus”
(PROGRAMA PONTOS DE MEMÓRIA). Tendo como objetivo favorecer a construção de
uma política pública que garanta o direito à memória, passou a atender diferentes
comunidades, em todas as regiões do Brasil, a partir do critério de vulnerabilidade social em
contextos urbanos. O projeto foi, a princípio, realizado em parceria com o Ministério da
Justiça do Brasil por meio do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania
(Pronasci). (INSTITUTO BRASILEIRO DE MUSEUS E ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS
IBERO-AMERICANOS; PROGRAMA PONTOS DE MEMÓRIA).
935
Além de narradores, os habitantes das duas espacialidades – Javé e Coque – estão
literalmente e simbolicamente às margens (margem do rio, margem da linha férrea, margem
da sociedade). Fato que os levam – diante de uma contexto de diversidade restrita e de um
regime de patrimonialização que comumente preza pela herança, pelo reconhecimento de um
passado comum, e que é geralmente pautado pela valorização do valor de ancianidade,
tradição e conservação – à busca pela comprovação de que o local onde habitam possui
história e que essa história é importante para a cidade. Sendo assim, recorrem à produção de
memórias, que lhes possibilitem existir.
28
Conhecimento e valorização da memória local; Fortalecimento das tradições locais, da
identidade e dos laços de pertencimento; Valorização do potencial local, impulso ao turismo e
à economia local; Desenvolvimento sustentável das localidades; Melhoria da qualidade de
vida, com redução da pobreza e da violência. (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS IBERO-
AMERICANOS)
29
Tais objetivos podem ser lidos e problematizados a partir das análises sobre a emergência da “ideologia do
desenvolvimento” (YÚDICE, 2013), vigente desde o início da década de 1970, com o advento da ideia de
“cultura como recurso” (YÚDICE, 2013) e elemento catalisador do desenvolvimento humano. Segundo Lima
(2014), esta perspectiva se tornou majoritária no campo dos museus, contribuindo significativamente na
determinação dos rumos das políticas para o setor no Brasil.
936
Se conforme Chaumier (2014, p. 275) os museus têm por função unir o corpo social
através da comunidade reunida em torno de tesouros em comum. Tendo como base território e
coleção, e mesmo quando rompem com sua versão tradicional, seus discursos demandam a
afirmação de conjuntos de objetos, práticas, afetos e/ou saberes destinados à coesão social. É
neste sentido que indagamos: como pensar um museu a partir de grupos que dividem o
mesmo espaço, sem impor ou forjar uma ideia homogênea de comunidade?
Ao dialogar com Halbwachs, mas indo além de suas perspectivas, Michel Pollack
(1989) amplia os debates sobre memória, compreendendo-a como resultante de disputas
sociais e culturais sobre os significados do passado. Para este autor, as “batalhas pela
memória”, são empreendidas através de lutas simbólicas contra o silenciamento, por
visibilidade e pela instituição de versões do passado. É neste sentido que ele reflete sobre a
coexistência de discursos oficiais, com outras narrativas e entendimentos sobre os fatos
transcorridos. Por esta perspectiva, as memórias que não aspiram [ou não logram] tornar-se
parte do discurso oficial passam a ser transmitidas e preservadas em circuitos privados, ou
seja, através de redes de sociabilidade afetivas, como amigos, vizinhos, famílias, pequenos
grupos, associações e partidos políticos.
937
Os criadores do Museu da Beira da Linha do Coque o definiram como um museu
audiovisual itinerante. Seu acervo – inventado juntamente com o museu – é composto por
vídeos e entrevistas coletadas entre moradores, que foram transformados em contadores de
histórias, com o objetivo de desmistificar os estereótipos herdados ao longo de anos de
exclusão e ausências no local. Sobretudo o de bairro violento. Segundo informações do
website:
938
sentido que, o discurso da diversidade é por vezes restrito e não se mostra poroso aquilo que
não é organizado segundo os critérios de um campo disciplinar e político.
A esfera pública tal qual proposta por Habermas – como um “espaço” onde a
participação política se dá por intermédio da fala; uma arena institucionalizada de interações
discursivas distinta do Estado e que possibilita a produção e a circulação de discursos livres
que podem, inclusive, ser críticos ao Estado – é analisada por Nancy Fraser (1992). A autora
pondera que o conceito, conforme formulado pelo filósofo, vislumbra um espaço aberto e
acessível para todos, afirmando ainda que a interação discursiva inerente à essa proposta de
esfera pública é marcada por protocolos de estilo definidos por diferenças de status social, por
barreiras informais que persistem e que mesmo quando todos estão formal e legalmente aptos
a participar do debate, a participação política de grupos minoritários não está garantida.
Por sua vez, os grupos minoritários podem não encontrar os meios necessários para
expressar suas idéias e demandas nos meios deliberativos, fazendo com que a opinião dos
grupos dominantes prevaleça de modo a parecer universal. Algo que ocorre devido à
existência de uma única esfera pública, que se pretende acessível a todos os grupos,
desconsiderando suas condições sociais. Neste sentido, os membros de grupos minoritários
939
são impelidos a constituir espaços alternativos de deliberação, arenas discursivas onde seja
possível inventar e circular contradiscursos.
Tais espaços foram nomeados por Fraser (1992) de “contrapúblicos subalternos”, uma
vez que permitiriam aos grupos formularem interpretações dos assuntos públicos levando em
consideração suas identidades, interesses, necessidades. Porém, conforme a autora, não é por
emergir de grupos minoritários que
30
I do not suggest that subaltern counterpublics are always necessarily virtuous. Some of them are explicitly
antidemocratic and antiegalitarian, and even those with democratic and egalitarian intentions are not always
above practicing their own modes of informal exclusion and marginalization. (Tradução nossa)
940
um simpatizante ou uma comunidade, são capazes de imaginar e
serem imaginados através de um modo de endereçamento específico.
É neste sentido que, mais do que aspirar aos traços formais e oficiais da ideia de
museu, o que está em questão no Museu da Beira da Linha do Coque é a perseguição do “[...]
941
rastro da possibilidade de um cruzamento de subjetividades individuais em um compartilhado
empreendimento de patrimonialização, de fabricação das memórias coletivas” (BARRETO,
2014, p. 15). O que torna este museu, com suas estratégias de apropriação de saberes, fazeres
e procedimentos, uma demonstração de que existe uma diversidade que não está pronta para
ser catalogada, pois é criada e experimentada cotidianamente, nas negociações pelos lugares.
Experiência que insinua ainda que ao piratear o termo ponto de cultura, ao se afirmar
como museu, ao recorrer a novas e antigas estratégias de financiamento de projetos, ao expor
através de práticas ligadas ao imaginário do camelô e ao improvisar um conjunto de
entrevistas, os protagonistas deste projeto fundam uma museologia que mesmo na sua
informalidade, possibilita que pessoas e coletividades – ancestrais ou temporárias – se
utilizem e refaçam a noção de museu e de patrimônio cultural não para se perpetuar, mas
como licença para existir. Práticas que podem tanto reafirmar o caráter legitimador dos
museus, como indicar o acionamento de munição nas negociações por representação e
diversidade. Mas, que sobretudo, são índice da extrema dificuldade de alguns agentes por
operar a gramática disciplinadora e normativa das políticas culturais no âmbito dos museus e
dos patrimônios, por não corresponderem à critérios essencialistas (YÚDICE, 2016, p.13). O
que torna evidente, no âmbito dos museus, as lacunas, os limites e as restrições na garantia de
diversidade cultural.
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agenda de comunicação e museus. In: MUSAS – Revista Brasileira de Museus e
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942
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Paradoxo do Discurso Emancipatório e Desenvolvimentista na (Nova) Museologia. In:
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Monografia de Graduação, Departamento de Antropologia e Museologia, Universidade
Federal de Pernambuco, 2016. 51p.
. Aos leitores. In: Revista Observatório Itaú Cultural – n.20 (jan/jun2016) São
Paulo: Itaú Cultural.
943
WARNER, Michel. Públicos e Contrapúblicos (versão abreviada). In: HONORATO, Cayo;
MORAES, Diogo (ed.). Periódico Permanente. nº 6 , Fevereiro de 2016.
944
REFLEXÕES SOBRE AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA OS MUSEUS NOS
GOVERNOS DEMOCRÁTICOS POPULARES DO SÉCULO XXI: ARGENTINA -
BRASIL - URUGUAI
Ana Ramos Rodrigues*
Resumo: Este texto aborda algumas reflexões sobre a construção das políticas culturais para a área
museológica no contexto do surgimento de três governos democráticos e populares na América do Sul
no século XXI (Argentina: governos de Néstor Kirchner – 2003/2006 e Cristina Fernández Kirchner –
2007/2015; Brasil: governos de Luís Inácio Lula da Silva– 2003/2010 e o primeiro mandato de Dilma
Rousseff – 2011/2014; Uruguai: governos de Tabaré Vasquez – 2005/2010 e José Mujica–2010/2015).
As políticas públicas voltadas para os museus nas últimas décadas tiveram muitos avanços e desafios.
Um dos avanços mais expressivos de políticas públicas para os museus foi iniciar uma política de
integração entre os países ibero-americanos, a partir da realização do “I Encontro Ibero-americano de
Museus” em Salvador, Bahia, em junho de 2007 registrada pela “Declaração de Salvador”, este
documento estabeleceu a necessidade de se criar um programa que fosse um espaço de diálogo entre
os museus e os países ibero-americanos, assim criando-se o Programa Ibermuseus, como espaço de
integração e articulação de uma política museológica ibero-americana. Com o Estado re-orientando
suas políticas culturais em um sentido mais amplo e abrangente, procurou-se compreender,
contextualizar e analisar o lugar dos museus nessa política cultural nos países Argentina, Brasil e
Uruguai.
Palavras-chave: governos democráticos; políticas públicas; museus.
Abstract: This text approaches some reflections on the construction of cultural policies for the
museological area in the context of the emergence of three democratic and popular governments in
South America in the 21st century (Argentina: governments of Néstor Kirchner - 2003/2006 and
Cristina Fernández Kirchner - 2007 / 2015: Brazil: governments of Luís Inácio Lula da Silva -
2003/2010 and the first term of Dilma Rousseff - 2011/2014; Uruguay: governments of Tabaré
Vasquez - 2005/2010 and José Mujica-2010/2015). Public policies for museums in recent decades
have seen many advances and challenges. One of the most significant advances of public policies for
museums was to initiate a policy of integration among Ibero-American countries, starting with the
"First Ibero-American Meeting of Museums" in Salvador, Bahia, in June 2007, registered by the "
Declaration of Salvador, "this document established the need to create a program that would be a space
for dialogue between museums and Ibero-American countries, thus creating the Ibermuseus Program
as an area for the integration and articulation of an Ibero -American. With the State re-orienting its
cultural policies in a broader and more broad sense, it was sought to understand, contextualize and
analyze the place of museums in this cultural policy in the countries Argentina, Brazil and Uruguay.
Key-words: Democratic governments; public policy; Museums
945
Introdução
O tema das políticas públicas para a cultura ingressou de forma mais significativa na
agenda de discussões dos países da América Latina no final dos anos 199031. Entendendo a
cultura como elemento fundamental para a integração regional, as nações do bloco do
Mercado Comum do Sul (MERCOSUL) criaram, em 1998, o MERCOSUL Cultural. Com o
objetivo de estimular o debate e fortalecer a área, os pontos destacados nesse encontro
visaram estimular o intercâmbio de políticas culturais, o desenvolvimento de estudos, a
integração de sistemas de informação e estatística, a promoção de intercâmbios técnicos e
artísticos, a gestão do patrimônio cultural e a valorização da memória social e da diversidade
cultural.
O Mercosul Cultural é constituído pela Reunião de Ministros da Cultura (RMC),
entidade máxima do setor, e conta com uma Secretaria, um Comitê Coordenador Regional
(CCR), onde se reúnem representantes dos Ministérios de Cultura para articular a agenda do
setor e três Comissões especializadas, entre elas, a de Patrimônio Cultural (CPC); a de
Diversidade Cultural (CDC); e a de Economia Criativa e Indústrias Culturais (CECIC).
Embora definidas as diretrizes gerais culturais do Mercosul, somente anos mais tarde
se discutiu um plano político para o setor museológico. Em 19 de setembro de 2005 em
Buenos Aires, Argentina, ocorreu a Jornada Los Museos y la Política de Mercosur, onde se
ressaltou a dimensão dada à política de museus dos países do bloco32. Com o objetivo de
aprovar uma agenda de trabalho para articular um plano estratégico para a integração dos
museus da região, a "Declaração de Buenos Aires para os Museus do Mercosul" apresentou os
aspectos essenciais a serem trabalhados: os museus do século XXI; Governabilidade e Gestão;
Interpretação e Proteção dos Bens Culturais: Prevenção contra o tráfego ilícito de Bens
31 31
Reunión de Ministros y Responsables de Cultura de los países iberoamericanos (Salvador de Bahía,
Brasil, 9 y 10 de julio de 1993); Reunión Informal de Ministros y de Responsables de las Políticas Culturales
en Iberoamérica (Madrid, España, 25 y 26 de junio de 1997); Encuentro Iberoamericano de Ministros de
Cultura (Isla Margarita, Venezuela, 20 y 21 de octubre de 1997) e
III Reunión de Ministros y Encargados de Políticas Culturales de Iberoamérica (La Habana, Cuba, 10 y 11 de
junio de 1999). Acesso em http://www.oei.es/historico/cumbres.htm
32
Além dos países membros, este encontro contou com a presença do Chile, país associado ao Mercosul.
946
Culturais; Circulação de Bens Culturais; Comunicação e Acessibilidade ao Patrimônio; e
Política(s) Nacional(ais) de Museus.
Estes encontros e acordos governamentais para a área da cultura e mais
especificamente no âmbito dos museus tiveram seus avanços mais expressivos nas últimas
décadas. A conjuntura política que acontecia nos primeiros quinze anos do século XXI na
América Latina foram caracterizados por um fenômeno marcante: a chegada ao poder de
partidos, movimentos e lideranças de esquerda. Trata-se de algo novo na história latino-
americana, marcada por regimes oligárquicos ou patrimonialistas, por ditaduras ou (no
máximo) por governos conservadores formados democraticamente (SILVA, 2015).
Em novembro de 2006 ocorreu a XVI Conferência Ibero-Americana de Chefes de
Estado e de Governo em Montevidéu, Uruguai. Este encontro resultou na redação da “Carta
Cultural Ibero-americana”, favorecendo uma maior articulação e melhor cooperação entre os
países da região ibero-americana. Um projeto político de grande proporção que teve como
objetivo promover a valorização da cultura como meio de relação e integração, como fator de
desenvolvimento e como estratégia para uma governança global equilibrada. Reconhecendo a
diversidade cultural como uma grande riqueza, este documento encontra-se em diálogo com a
Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade de Expressões Culturais (UNESCO,
2005).
As políticas públicas voltadas para os museus nas últimas décadas tiveram muitos
avanços e desafios. Um dos grandes progressos para as políticas públicas para os museus foi
iniciar uma política de integração entre os países ibero-americanos, no Brasil em junho de
2007 com a realização do I Encontro Ibero-americano de Museus (Salvador/Bahia) que
contou com a participação de representantes do campo da museologia e dos museus dos
países ibero-americanos33.
33
Países participantes: Andorra, Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, El Salvador,
equador, Espanha, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, Portugal, república
Dominicana, Uruguai e Venezuela.
947
Este encontro resultou na elaboração da “Declaração da Cidade do Salvador”,
documento que estabeleceu a necessidade de se criar o Programa Ibermuseus com um espaço
para o diálogo e o intercâmbio nos distintos âmbitos de atuação dos museus, visando o reforço
na relação entre as instituições públicas e privadas, entre os profissionais do setor
museológico ibero-americano, além de promover a proteção e a gestão do patrimônio, o
intercâmbio de experiências e do conhecimento produzido na área.
Para Mario chagas e Marcelo Lages (2016), a “Declaração de Salvador” em termos
conceituais e na forma como foi concebida tem como referencia a Mesa Redonda de Santiago
do Chile realizada em 1972, ainda sob o governo de Salvador Allende.
O Ibermuseus foi aprovado como iniciativa34 em julho de 2007, na X Conferência
Ibero-Americana de Ministros de Cultura em Valparaiso (Chile)35 e em novembro deste
mesmo ano, na XVII Cúpula Ibero-Americana de Chefes de Estado e de Governo de Santiago
do Chile, e somente como Programa, na XVIII Cúpula Ibero-Americana de Chefes de Estado
e de Governo, em outubro de 2008, na cidade de San Salvador, República de El Salvador36.
O Programa Ibermuseus foi criado a partir das propostas de linhas de ação da
“Declaração de Salvador”. Programa intergovernamental desenvolvido para o fortalecimento
das políticas públicas de museus na Ibero-América, o Ibermuseus é um mecanismo de
cooperação e integração dos países signatários por meio de intercâmbios, troca de
experiências e avanços na institucionalização de políticas públicas, incluindo grupos sociais
deslegitimados pelas narrativas tradicionais, promovendo o respeito aos direitos humanos, à
igualdade de gênero, entre outras questões da atualidade, abarcando desde questões locais até
problemáticas ibero-americanas e globalizadas.
No encontro de Salvador definiu-se o ano de 2008 como o Ano Ibero-americano de
Museus. Com o tema “Museus como agentes de mudança e desenvolvimento” neste
34
Estatuto da Iniciativa Ibermuseus – Documento anexo a Ata da Primeira Reunião do Conselho
Intergovernamental da Iniciativa Ibermuseus realizada em Brasília, Brasil, nos dias 28 e 29 de janeiro de 2008.
35
Declaração de Valparaíso - X Conferencia Iberoamericana de Cultura Valparaíso, Chile, 26 e 27 de julho de
2007.
36
Para saber mais ver: Relatório final: Conferência Ibero-Americana de Chefes de Estado e de Governo -
Reuniões Ministeriais Setoriais. Editado pela: Secretária-Geral Ibero-Americana (2008).
948
respectivo ano foram desenvolvidas atividades com o fim de promover uma agenda comum e
para a construção de ações mais efetivas dos 22 países ibero-americanos, indicando, assim, a
programação futura para os museus.
Neste mesmo ano de 2008, ocorreu o “II Encontro Ibero-americano de Museus”, com
o tema “Museus como agentes de transformação social e desenvolvimento” realizado entre 7 a
11 de julho em Florianópolis, SC, Brasil. Neste encontro foi apresentada a proposta de criar-
se um Portal Ibermuseus e também a Rede Ibero-americana de Museus.
A Declaração de Salvador e o Programa Ibermuseus são legatários de documentos
que resultaram de várias reuniões de trabalho realizadas durante as últimas décadas no âmbito
da cultura, do patrimônio, da memória e da museologia na Ibero-América: a Declaração da
Mesa Redonda de Santiago do Chile (1972), a Declaração de Oaxtepec (1984), a Declaração
de Caracas (Venezuela, 1992), a Convenção sobre a proteção e promoção da Diversidade das
Expressões Culturais (Unesco, 2005) e a Carta Cultural Ibero-Americana (2006).
O Programa Ibermuseus37 oficialmente iniciou suas atividades somente em 2009 e
desde então vem se consolidando como um importante espaço de fomento e articulação de
políticas públicas para os museus, além de servir de apoio para a realização de
diferentes projetos voltados à mobilização do campo museológico da região ibero-americana.
As linhas de ação do Programa Ibermuseus são: Ação Educativa; Apoio ao
Patrimônio Museológico em Situação de Risco; Programa de Apoio a Projetos de Curadoria;
Observatório Ibero-Americano de Museus; Programa de Formação e Capacitação e
Sustentabilidade das Instituições e Processos Museais Ibero-Americanos.
O Programa Ibermuseus encontra-se vinculado à Secretaria Geral Ibero-Americana
(Segib), é dirigido por um Comitê Intergovernamental integrado por representantes de doze
países membros38. Conta com a colaboração administrativa da Organização dos Estados
Ibero-Americanos (OEI), e do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), além do apoio
37
O Portal Ibermuseus foi criado como um espaço de difusão das ações realizadas entre os 22 países ibero-
americanos participantes do Programa Ibermuseus: Para saber mais acesse: http://www.ibermuseus.org/
38
Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, Espanha, México, Paraguai, Peru, Portugal e
Uruguai, e presidido pelo México, a partir de 2016.
949
financeiro da Agência Espanhola de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento
(AECID). Dentro desta estrutura encontra-se a sua Unidade Técnica, responsável pela
execução dos Planos Operacionais Anuais, e pelo funcionamento do Programa.
Dos países da América Latina que participam do Programa Ibermuseus, somente seis
dispõem de uma Política Nacional de Museus explícita (Brasil, Colômbia, Cuba, Equador,
República Dominicana e Uruguai)39. Nos demais países as políticas públicas para museus
estão inseridas dentro de um plano político cultural geral.
O Programa Ibermuseus apresenta um regulamento de funcionamento com dezoito
artigos, divididos em doze capítulos40 e apresenta com objetivo geral promover a integração, a
consolidação, a qualificação e o desenvolvimento dos museus ibero-americanos. Os objetivos
específicos do Programa Ibermuseus são:
39
Os Planos Nacionais de Museus dos países são documentos de elaboração recente, sendo o mais antigo o do
Brasil (2003), seguido pela Colômbia e por Cuba (2009), Equador e Uruguai (2012). Já a República Dominicana
criou seu plano estratégico para ser posto em prática entre os anos de 2012 e 2016.
40
Capítulo I – Definição do Programa Ibermuseus; Capítulo II – Objetivos do Programa Ibermuseus; Capítulo
III – Estrutura organizativa do Programa Ibermuseus; Capítulo IV – Da Secretaria Geral Ibero-Americana;
Capítulo V – Dos integrantes do Programa Ibermuseus; Capítulo VI – Dos representantes dos países no
Programa Ibermuseus; Capítulo VII – Da vigência do Programa Ibermuseus; Capítulo VIII – Do Fundo
Ibermuseus; Capítulo IX – Do destino dos recursos; Capítulo X – Funcionamento do Programa Ibermuseus;
Capítulo XI – Acompanhamento e avaliação do Programa Ibermuseus; Capítulo XII – Da vigência do
Regulamento e Considerações Finas.
950
Dos países da América Latina que participam do Programa Ibermuseus, somente seis
dispõem de uma Política Nacional de Museus explícita (Brasil, Colômbia, Cuba, Equador,
República Dominicana e Uruguai)41. Nos demais países as políticas públicas para museus
estão inseridas dentro de um plano político cultural geral.
Em setembro de 2009, em Santiago, Chile foi realizado o “III Encontro Ibero-
americano de Museus”, com o tema “Museus em um contexto de crise”. Este encontro
resultou na “Declaração de Santiago do Chile”. Diante aos contextos de crise econômica,
ecológica, sanitária, social e política presentes na sociedade, percebeu-se uma oportunidade
de reflexão, mudança e fortalecimento. Assim, definindo e criando políticas públicas para se
investir no setor de museus como fator de desenvolvimento cultural e social em momentos de
crise.
Em maio de 2010, em Toledo, Espanha, foi realizado o “IV Encontro I erro-
americano de Museus”, com o tema “A institucionalização das políticas públicas na área de
museus nos países da Ibero-Americanos”. O resultado deste encontro foi a “Declaração de
Toledo”, o qual se destaca como uma das propostas: a “criação, implementação e
fortalecimento de políticas de museus, buscando a aproximação baseada na cooperação”
(DECLARAÇÃO DE TOLEDO, 2010).
Em junho de 2011, ocorreu no México o “V Encontro Ibero-americano de Museus”
com o tema “Preservação do patrimônio museológico, repatriação de bens e cooperação
internacional”. Este encontro resultou na “Declaração do México”, destaca-se “a necessidade
de estabelecer e fortalecer as políticas públicas para a proteção, preservação e difusão do
patrimônio museológico no âmbito ibero-americano” (DECLARAÇÃO DO MÉXICO, 2011).
Em outubro de 201242, em Montevidéu-Uruguai ocorreu o “VI Encontro Ibero- Americano
de Museus”, com o tema “Museu: território de conflitos? Olhares a 40 anos da
41
Os Planos Nacionais de Museus dos países são documentos de elaboração recente, sendo o mais antigo o do
Brasil (2003), seguido pela Colômbia e por Cuba (2009), Equador e Uruguai (2012). Já a República Dominicana
criou seu plano estratégico para ser posto em prática entre os anos de 2012 e 2016.
42
Neste mesmo ano de 2012, foi realizado, em 23 de novembro em Brasília, a XXXV Reunião de Ministros de
Cultura do Mercosul. Nesta reunião foi apresentada a proposta da criação do Programa MercoMuseus, tendo
951
mesa redonda de Santiago do Chile”. Este encontro teve como resultado a “Declaração de
Montevidéu”, destaca-se “a importância do funcionamento das instituições democráticas para
a recuperação dos princípios e valores da Mesa Redonda do Santiago do Chile e sua aplicação
nas políticas públicas de museus” (DECLARAÇÃO DE MONTEVIDÉU, 2012).
Em outubro de 2013, ocorreu o “VII Encontro Ibero-americano de Museus” em
Barranquilla, Colômbia com o tema “Memórias e mudança social”. Este encontro resultou na
“Declaração de Barranquilla” o qual reconhece:
a luta pela manutenção das identidades locais e nacionais tem sido um
trabalho de muitos anos no contexto das democracias, nas quais a
cultura se identifica como fator de valorização da igualdade e da
coesão social, e em que o reconhecimento e o respeito à diversidade
de identidade contribui para equiparar os direitos e para minimizar a
superemacia de grupos e discursos hegemônicos (DECLARAÇÃO
DE BARRANQUILLA, 2013).
como fim reunir instituições e profissionais de museus dos países do Mercosul, em um esforço continuado para o
aperfeiçoamento de suas ações e o desenvolvimento de políticas públicas para a cultura, seguindo assim a
proposta de estimular a integração sul-americana por meio da aproximação entre culturas
Fonte:< file:///C:/Users/sem-sedac/Downloads/Presentacin_de_propuesta_MERCOMUSEOS%20(1).pdf>
Acesso em: 20/09/2015
952
Neste sentido, este texto pretende realizar algumas reflexões sobre as políticas
públicas para a área museológica dos países da Argentina, do Brasil e do Uruguai no contexto
do surgimento de governos democráticos e populares no século XXI. Re-orientando suas
políticas culturais em um sentido mais amplo, pretende-se compreender, contextualizar e
analisar o lugar dos museus nessa política cultural, tendo por eixo as legislações e a área
institucional na área dos museus presentes nestes governos democráticos por meio dos
acordos de cooperação internacional em relação às políticas públicas voltadas para os museus.
953
O aumento de diferentes tipologias de museus demonstra uma nova perspectiva
destes espaços museológico em reivindicar uma afirmação da diversidade cultural e fortalecer
a identidade cultural com a ideia de pertencimento a uma determinada coletividade. Neste
sentido, o campo das Políticas Públicas tem como desafio construir políticas voltadas para as
comunidades culturalmente marginalizadas.
Nesta perspectiva, é preciso contribuir na produção de novos dados e reflexões
através de um estudo comparativo sobre as políticas públicas para os museus e as ações e
programas realizados por estes países da América Latina.
Dessa forma, pretende-se visualizar a construção de uma articulação política do setor
cultural dos países Argentina, Brasil e Uruguai para fortalecer o papel dos museus como
instituições centrais para a promoção de políticas para a diversidade cultural e o direito à
memória.
43
Período de governos ditatoriais: Argentina entre 1976 a 1983; Brasil entre 1964 a 1985 e Uruguai entre 1973 a
1985.
954
Americanos de Museus, se verificará a importância dos três países na construção de uma nova
orientação museológica, que visa, entre outras coisas, atender as reivindicações da diversidade
cultural.
Neste sentido, será apresentado um panorama sobre a legislação dos museus para
conhecer em quais órgãos institucionais estes se encontram subordinados dentro das suas
políticas públicas para os museus nestes países com governos democráticos.
Na Argentina na década de 1930, os museus estavam sob tutela da Comisión
Nacional de Museos y de Monumentos y Lugares Históricos (CNMMyLH)44. Embora a
Argentina não possua uma legislação nacional específica, existe uma lei de patrimônio que
regulamenta o âmbito dos museus, denominado de Dirección Nacional de Patrimonio y
Museos45, vinculada à Secretaria de Cultura da Nação, criada no ano de 2002, passa a ser
Ministerio de la Cultura desde 2014 durante o governo de Cristina F. Kirchner. Trata-se de
uma Secretaria de Estado com status de ministério, subordinada diretamente à Secretaria
Geral da Presidência. Atualmente os museus nacionais estão vinculados ao órgão denominado
Dirección Nacional de Museos46. A República Argentina está organizada sob um sistema
federal que consiste em 24 jurisdições: 23 províncias e a Cidade Autônoma de Buenos Aires
sede do governo nacional. Existem duas províncias que possuem uma legislação própria para
seus museus: Chaco – Ley de Museos de la Provincia del Chaco (Ley 6.201 de 20/08/2008) e
Santa Fé - Ley Nº 12955 de Protección, Preservación y Conservación del Acervo Natural,
Histórico y Cultural de Los Museos de La Provincia de Santa Fe, Promulgada em 05/01/2009
- Decreto Nº 2789 Regulamentado da Lei 12.955 e 20/12/2010. A Argentina não possui uma
44
Lei nacional nº 12.665 sancionada em 30/09/1940. Em 20/01/2015, mediante a Lei n° 27.103, o órgão recebeu
o nome de Comisión Nacional de Monumentos, de Lugares y de Bienes Históricos.
45
Tem a responsabilidade de entender, conduzir e planejar estratégias para a investigação, promoção, resgate,
preservação, estímulo, melhoramento, acrescentamento e difusão, no âmbito nacional e internacional, do
patrimônio cultural da nação, tangível e intangível, imaterial e oral, em todos os campos em que se desenvolve.
46
Encontra-se submetida a Subsecretaría de Gestión Patrimonia e a Secretaría de Patrimonio Cultural a qual
se propõe a modernizar as políticas públicas dos museus nacionais, a gestão dos bens e sítios culturais, e a
investigação sobre o patrimônio com o fim de interagir com os hábitos culturais contemporâneos e construir
cidadania. Acesso em https://www.cultura.gob.ar/institucional/organismos/subsecretaria-de-gestion-patrimonial/
955
definição legal do termo museu, utilizando o conceito do Conselho Internacional de Museus
(ICOM):
O museu é uma instituição permanente, sem fins lucrativos, a serviço
da sociedade e do seu desenvolvimento, aberta ao público, que
adquire, conserva, estuda, expõe e transmite o patrimônio material e
imaterial da humanidade e do seu meio, com fins de estudo, educação
e deleite (ICOM, 2007).
47
Tem como objetivo geral promover a valorização e a fruição do patrimônio cultural brasileiro, considerado
como um dos dispositivos de inclusão social e cidadania, por meio do desenvolvimento e da revitalização das
instituições museológicas existentes e pelo fomento a criação de novos processos de produção e
institucionalização de memórias constitutivas da diversidade social, étnica e cultural do País.
48
Constituindo um marco na atuação das políticas públicas voltadas para o setor museológico. Tem como
proposta o aperfeiçoamento de instrumentos legais para o melhor desempenho e desenvolvimento das
instituições museológicas no Brasil Disponível em < http://www.museus.gov.br/sistemas/ >. Acesso em 15/07/
2016.
49
Este órgão foi um marco de uma política pública no setor. As ações propostas pelo IBRAM buscaram (e
buscam) qualificar e modernizar os espaços museológicos existentes, garantindo o processo de preservação da
memória nacional sob a guarda destas instituições.
956
(SNIIC), bem como os investimentos na área de Economia da Cultura em ação conjunta com
o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (IPEA), representando um avanço importante para a gestão da cultura, numa
perspectiva democrática e popular. Diferentemente da Argentina, o Brasil apresenta uma
definição legal de museu:
957
ou naturais considerados de interesse patrimonial, documentados,
estudados e expostos, com a finalidade de promover a produção e a
divulgação de conhecimentos, com fins educativos e de deleite da
população (URUGUAI, Lei Nº 19.037/2012).
Considerações Finais
As questões colocadas neste texto apresentam algumas reflexões importantes para
compreendermos como estes países estão trabalhando suas políticas culturais no campo dos
museus.
Sinteticamente, os primeiros desafios dos novos governos foram ampliar o
entendimento sobre as questões culturais e estabelecer o alcance pretendido pelas políticas
públicas para a área. Para isso, foram realizados encontros e reuniões criando grupos de
trabalho e debates entre especialistas com o fim de ampliar os horizontes e tornar a cultura
mais acessível e participativa, enfatizando, assim, a diversidade cultural de cada país. Como a
participação destes países nos Encontros Ibero-Americanos de Museus reuniões anuais
promovidas pelo Programa Ibermuseus, onde representantes do campo museal da região
ibero-americana se encontram para o intercâmbio de experiências, para discutir assuntos de
interesse mútuo, de cooperação, e para debater a respeito do estabelecimento de ações
conjuntas para o setor museológico.
O passo seguinte foi a criação e o aperfeiçoamento de legislações no campo dos
museus, no sentido de criar e fomentar políticas públicas para o setor. Neste ínterim, o museu
ficou entendido como uma ferramenta política e social utilizada para inclusão de identidade e
cidadania para garantir o direito à memória dos grupos e movimentos sociais.
Em relação à gestão cultural na área dos museus é importante identificarmos os
órgãos institucionais as quais se encontram vinculadas as políticas públicas para os museus,
nos países investigados, assim possibilitando diferentes reflexões sobre a gestão de museus
presentes nos países Argentina, Brasil e Uruguai em relação às políticas para os museus.
958
A gestão cultural é um dos desafios contemporâneos presentes na área da política
cultural, abordando as transformações contemporâneas associadas às novas dimensões
atribuídas ao campo da cultura, neste caso destacando a institucionalização da área dos
museus como um dos processos estratégicos e de planejamento gerais para as políticas
públicas para os museus.
O aumento de diferentes tipologias de museus, tais como comunitários, populares,
étnicos, temáticos, além dos museus tradicionais, e do crescente número de encontros de
cooperação internacional voltados para a área dos museus durante governos democráticos
populares do século XXI na América Latina demonstram um avanço destes espaços como
locais de afirmação de segmentos sociais e uma nova perspectiva dos museus dentro de uma
política cultural voltada para a diversidade cultural.
Referências bibliográficas
BRASIL. Lei nº 11.904 de 14 de janeiro de 2009. Institui o Estatuto de Museu. Brasília, DF,
14 de janeiro de 2009. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20072010/2009/Lei/L11904.htm>. Acesso em: 10
set. 2016.
959
NASCIMENTO JÚNIOR, José do; CHAGAS, Mário de Souza. Política Nacional de
Museus. Brasília: MinC, 2007.
SILVA, Fabrício Pereira da. Da onda rosa à era progressista: a hora do balanço. Revista
SURES: Ano: 2015, fev, Número: 5, p. 67-94
960
SOBRE POLÍTICA CULTURAL, CRIATIVIDADE E MUSEUS
Este trabalho corresponde a uma reflexão sobre como nas políticas culturais a
burocracia maneja as iniciativas de forma a formata-las segundo conveniências do Estado e do
Mercado. A partir do processo que deu origem ao Paço do Frevo em Recife – sob
financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento - BNDES, será apresentada aqui a
articulação entre financiamento e uma concepção neoliberal de Cultura, a qual materializou-se
a nos dispositivos burocráticos que disciplinaram um desejo de memória sobre o Frevo e
transformaram-no em um instrumento de desenvolvimento econômico.
No contexto atual, em que os usos da cultura são determinados a partir de uma lógica
da conveniência (YUDICE, 2006), a condição disciplinadora das politicas culturais é
certamente o elemento mais potente em favor de sua instrumentalização. Compreender a
dinâmica com a qual essas políticas operam, enseja produzir uma análise que conceda
centralidade aos dispositivos que normatizam as iniciativas culturais em favor de inseri-las na
ordem de sentido que atende aos interesses do establishment.
961
governo. Compreender esta dinâmica enseja por luz sobre os fluxos que regulam a dinâmica
da cultura.
Para tanto, torna-se importante olhar para as políticas culturais sob as lentes de uma
perspectiva que a perceba como um expediente de governamentalidade (Foucault: 1984). Em
outros termos, deve-se ter em vista uma análise que dê centralidade ao aparelho burocrático
como produtor de sentido (e não uma instância pré-discursiva e neutra), o que implica
considerar as políticas culturais como uma ferramenta à serviço do controle e da normatização
de corpos e subjetividades em favor de um projeto de sociedade e estado.
É este entendimento – associado a uma forte influência dos Estudos Culturais – que
está presente na concepção de política cultural de Toby Miller e George Yúdice (2002), e que
serve de importante referência para este trabalho. Nesta proposição, tais autores oferecem
uma potente crítica ao axioma que associa cultura e formação enquanto um imperativo em
favor do aprimoramento do indivíduo. Esta problematização se apresenta por meio da análise
de questões como gosto, critérios para financiamento, cidadania e incompletude, projetos de
identidade, e outros; e se volta para a transformação social enquanto um objetivo da discussão
realizada, tendo nos movimentos sociais, ao invés do Estado, seu alvo de interlocução
prioritário.
Sendo assim, é aqui a política cultural concebida muito mais como uma esfera potente
em produzir transformação social que uma esfera funcional na qual operam estavelmente
suportes de práticas culturais. São nossos pontos de partida muito mais questões de teoria
crítica e política que compromissos com efetividade, eficiência e descrição da dinâmica da
cultura. São nossos pontos de chegada a própria crítica desestabilizadora dessa dinâmica ao
invés de sua celebração e aprimoramento.
962
Em meio ao contexto contemporâneo das políticas culturais brasileiras tem emergido
com grande vigor o conceito de criatividade – associado aos termos economia, indústrias ou
cidades – enquanto um imperativo a ser adotado em meio às políticas culturais (mas não
apenas por elas), o qual se apresenta enquanto passível de produzir desenvolvimento
econômico e melhoria social a partir de performances econômicas criativas.
As tentativas de demarcar o que vem a ser a criatividade são aspecto relevante por si
só do debate por revelarem aspectos importantes em meio aos caminhos escolhidos para
construir tais definições. No que diz respeito as instituições internacionais, a Organização das
Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura - UNESCO, entende economia criativa
enquanto um conjunto de atividades definidas a partir do conteúdo que está sendo criado,
produzido e comercializado, sendo este intangível e cultural em sua natureza e sob a proteção
dos direitos de seu autor, e que, naturalmente, poderá tomar a forma de bens e serviços. São
estas atividades ainda intensivas em trabalho e conhecimento e com um potencial de estímulo
à criatividade e a inovação.
51
http://unctad.org/pt/docs/ditctab20103_pt.pdf
963
bens e serviços se fundamentam na propriedade intelectual, dentre eles arquitetura, artes
visuais e cênicas, artesanato, cinema, moda e videogames52.
52
https://publications.iadb.org/bitstream/handle/11319/3659/La%20economia%20naranja%3a%20Un
a%20oportunidad%20infinita.pdf?sequence=4
53
Discussao de Cuninghanm sobre o nome etc e etc
54
Este tipo de narrativa está presente em muitos textos brasileiros sobre economia criativa. Dois dos mais
importantes pesquisadores sobre o tema no Brasil, Ana Carla Fonseca (2008), e Paulo Miguez (2007)
narram esta gênese como forma de complementar o sentido do que viria a ser economia criativa.
55
Creative Nation foi um plano que se apresentou como sendo a primeira vez em que o
governo australiano desenvolvia formalmente o que seria uma política cultural e que semeou
as bases do seria a economia política da criatividade posta em prática em países do Reino
Unido.
964
Rapidamente, este discurso se alastra para diversos países, sendo resignificado e adequado às
peculiaridades das economias locais, inclusive no Brasil.
56
Instituições como o BID, UNCTAD, UNESCO e o British Council tem realizado esforços por meio de
estratégias (que vāo desde o financiamento de iniciativas à articulação de intelectuais) no sentido de
disseminar a criatividade enquanto saída inequívoca para o desenvolvimento no país.
57
A Secretaria passou por transformações a partir do ano de 2015 e atualmente é denominada Secretaria
de Economia da Cultura. No entanto, de acordo com o atual Ministro da Cultura, Sérgio Sá Leitão, em
entrevista publicada na Folha de São Paulo em 25/08/2017 (link disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2017/08/1912651-desenvolver-a-economia-criativa-sera-
prioridade-diz-ministro-da-cultura.shtml), tal mudança trata-se apenas de uma questão acadêmica, o
sentido permanece o mesmo.
58
Plano da Secretaria de Economia Criativa
965
que vem a ser cultura e criatividade; das diferenças existentes sobre os sentidos dessas
expressões em vários países; assim como da dependência política em definir tais categorias
em sintonia com as prioridades de cada governo. Consequentemente, o próprio sentido do que
vem a ser uma política cultural tem mudado em alguns países, já que esta acaba sendo
moldada a partir de uma agenda econômica do desenvolvimento, onde cultural e criatividade
ganham definições decorrentes das conveniências locais.
Toby Miller (2009) revisita ainda a historicidade em torno dos usos do discurso da
criatividade a fim de produzir uma narrativa que, ao invés de funcionar como um apoio ao seu
conceito, espelhe sua gênese conservadora. Para o autor, foi na década de 1960, na campanha
de Ronald Reagan para o governo da Califórnia, que, por meio da proposta de uma Creative
966
Society, surgiu um discurso que atribuiu papel central à tecnologia em desbloquear a
criatividade retida dos indivíduos, prometendo-os torná-los felizes e produtivos sem ter que se
submeter ao domínio do estado e desencorajando-o a se organizar coletivamente. Nas décadas
seguintes, o mercado de mídia, tecnologia e cultura cresceu exponencialmente colocando em
evidência o potencial econômico dos direitos autorais enquanto ativos. Nesse meio tempo, o
já referido novo trabalhismo inglês formulou uma proposição que colocou definitivamente
estas áreas sob o foco de politicas de desenvolvimento e reproduziu práticas comuns ao
conservadorismo, mas agora sob uma roupagem mais amena: As indústrias criativas. Por fim,
este processo chegou também ao campo das humanidades no mundo acadêmico anglo-saxão,
onde alguns intelectuais – já interessados por políticas culturais – ligados aos estudos
culturais são atraídos pelo prestígio de serem parte de uma agenda que, naquele momento,
estava conectada com o centro do poder, e pela disposição dos governos e das agencias em
financiar suas pesquisas.
967
formal, relações de trabalho flexíveis, entre outros efeitos que são atraentes à agenda do
mercado.
968
Em meio a esta participação, o BNDES elegeu a área do Patrimônio Cultural como
segmento prioritário de seus investimentos. Comparativamente, não são poucos os retornos
econômicos da “cadeira produtiva do Patrimônio”, como se refere a esta o BNDES, ao passo
que nestas se encaixam projetos conectados ao turismo e mercantilização de bens culturais.
Referências bibliográficas
969
BRASIL. Ministry of culture. National Museums Policy / organization and texts, José do
Nascimento Junior, Mário de Souza Chagas. – Brasília : MinC, 2007.
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MILLER, Toby. What it is and what isn’t: Introducing… cultural studies. A companion to
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REIS, Ana Carla Fonseca et al. Economia criativa como estratégia de desenvolvimento: uma
visão dos países em desenvolvimento. São Paulo: Itaú Cultural, p. 15-49, 2008.
970
DJA GUATA PORÃ: CONSTRUÇÃO EM DIÁLOGOS
Leandro Guedes*
Luciana Souza*
Bruno Brulon*
*Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)
Resumo: O presente trabalho tem por objetivo analisar a participação dos indígenas na curadoria da
exposição “Dja Guata Porã: Rio de Janeiro Indígena”, realizada no Museu de Arte do Rio, entre os
meses de maio de 2017 e março de 2018. Procuramos refletir sobre possíveis problemas e potências
nas negociações interculturais no desenvolvimento da montagem expositiva realizada por indígenas e
não-indígenas, e que se propunha a tratar do processo de silenciamento e apagamento da memória de
diferentes etnias nativas no Estado do Rio de Janeiro a partir do colonialismo. Este artigo toma como
base a participação de um dos agentes envolvidos no processo de pesquisa que fundamentou as
diferentes etapas do desenvolvimento expositivo envolvendo diretamente a relação com populações
indígenas existentes em diferentes regiões do estado. Dja Guata Porã se configurou como um projeto
inédito no Museu de Arte do Rio, esgarçando os limites e as potencialidades de um museu de arte
contemporânea no imenso desafio de abordar a complexidade das culturas indígenas de forma crítica e
colaborativa.
Palavras-chave: museu, colonialidade, povos indígenas
Abstract: The objective of this article is to analyze the participation of the indigineous people
in curating the exhibition "Dja Guata Porã: Rio de Janeiro Indígena", on May 2017 to March
2018 in Art Museum of Rio. We intend to bring reflections about the role played by the
indians on the curatorial process, the intercultural negotiations between indigenous and non-
indigenous, considering the historical silencing and extinguish of indigenous memories in the
state of Rio de Janeiro by the history of colonization. This article is based on the participation
of one of the agents involved on the creation of the exhibition and the different stages of
curation and research among the indigenous, which was an unprecedented project at the Art
Museum of Rio.
Keywords: museum, coloniality, indigineous people
971
Em diversas experiências espalhadas pelo país, indígenas de diferentes etnias
procuram, por meio da linguagem museal, questionar violências e reivindicar direitos. Nesse
processo, o museu por vezes desponta como ferramenta de resistência política desses sujeitos,
funcionando como espaço de memória da cultura material e de publicização de reivindicações
sociais e políticas. Contudo, a complexidade dessa ferramenta muitas vezes acaba por
configurar situações dúbias que vão desde a tentativa de combate a preconceitos culturais a
partir da evidenciação da diversidade de identidades étnicas, artes e cosmogonias, até mesmo
a própria reificação de uma identidade monolítica, fundamentada na interpretação de não-
indígenas.
Essas experiências museais surgem em museus etnográficos governamentais que
repensaram seus processos de musealização e propuseram a participação pontual dos
indígenas nos processos previstos na cadeia museológica. Sem entrar no mérito dos trabalhos
realizados pelas diferentes instituições atuantes no país, importa destacar a variedade de
iniciativas que se dedicam à memória indígena, organizada por membros de determinadas
etnias, com auxílio de antropólogos e museólogos, tais como o Museu Magüta dos Ticuna, no
município de Benjamin Constant (AM), o Museu Kuahí dos Povos do Oiapoque, no Oiapoque
(AP), que abrange quatro etnias: Galibi Kalinã, Galibi Marworno, Karipuna e Palikur, e no
Ceará o exemplo mais conhecido talvez seja o do Museu Kanindé organizado pelo cacique
Sotero, do povo Kanindé. Outros exemplos seriam o Memorial dos Povos Indígenas em
Brasília, o Museu Índia Vanuíre na cidade de Tupã, interior de São Paulo e o Museu do Índio,
no Rio de Janeiro, primeiro museu etnográfico do Brasil considerado por seu criador e
fundador Darcy Ribeiro (1998: 195) como “o primeiro museu do mundo criado,
especificamente, para combater o preconceito” contra os povos indígenas. Para este
antropólogo, os antigos museus de etnologia estavam entre os principais responsáveis pela
maneira com a qual o restante do povo brasileiro via os indígenas: atrasados, “fósseis vivos”.
Por essa razão, segundo ele, não havia nenhum interesse por parte do público em vê-los
humanizados, compreendendo-se a complexidade de suas criações artísticas, histórias e suas
realidades distintas. Para todos os efeitos, a criação do Museu do Índio representava uma
972
mudança no discurso político e social de como enxergar e retratar os povos indígenas dentro
dos museus, evidenciando-os como parte integrante da cultura nacional.
Tais experiências emblemáticas nos levam a refletir sobre a presença e a representação
indígena em outros museus do país e situar a discussão a que pretendemos desenvolver sobre
o caráter intercultural de elaboração da exposição Dja Guata Porã no Museu de Arte do Rio
(MAR), inaugurada em maio de 2017 e que teve como inspiração alguns destes modelos, mais
especificamente o sistema de parcerias estabelecido pelo Museu do Índio no início dos anos
2000. Em 2001, o Museu do Índio inaugurava a exposição “Tempo e Espaço no Amazonas:
os Wajãpi”, com curadoria da antropóloga Dominique Gallois, a primeira no sistema de
parcerias indígenas. Esta exposição estava ancorada em quatro metas norteadoras
estabelecidas pelo antropólogo e diretor do Museu, José Carlos Levinho
Em primeiro lugar, realizar exposições que focalizassem culturas indígenas
particulares, questionando a visão que perdurou por muito tempo dentro e fora da
instituição a respeito da representação de um índio brasileiro genérico. Em segundo
lugar, realizar exposições assinadas por antropólogos que trabalhassem com grupos
indígenas específicos, valorizando as curadorias, ou seja, valorizando a adoção de um
ponto de vista particular, nomeando o sujeito do conhecimento, a perspectiva a partir
da qual cada cultura é construída. Em terceiro lugar, estimular a participação dos
próprios grupos cujas culturas eram representadas no museu, de modo a favorecer o
intercâmbio entre esses grupos, os curadores da exposição e os técnicos do museu e de
modo que as exposições apresentassem resultados também para os índios. E, em
quarto lugar, inserir a exposição num contexto de modernização da instituição,
utilizando sofisticadas técnicas museográficas e visando conferir a essas culturas
particulares o mesmo status de outras exposições em museus das chamadas ‘altas
59
culturas .
973
comumente representados de forma inferiorizada como selvagens, com seus artefatos
coletados muitas vezes de forma discricionária, exibidos de maneira agrupada, colaborando
para formar no imaginário comum a ideia de “índio genérico” (BESSA FREIRE, 2016).
Nesse sentido, como levar em consideração perspectivas e olhares tão distintos entre
indígenas e não-indígenas, e materializar numa exposição – desde sua etapa de planejamento
e criação conceitual – dentro de um museu?
Se esses povos passam a expressar a própria cultura na chave da propriedade
intelectual coletiva com lógica interétnica (CUNHA, 2009), interessa refletir sobre a
(im)possibilidade de negociação e participações interculturais entre indígenas e não-
indígenas, com entendimentos da realidade museológica por vezes diametralmente opostas
aos saberes compartilhados por esses sujeitos. A museóloga Marilia Xavier Cury (2012) lança
algumas questões que refletem parte dos desafios dessa investigação, colocadas a partir do seu
trabalho de reformulação do Museu Índia Vanuíre: “onde entram as culturas indígenas nos
museus?”; “como ampliar o contato dos profissionais de museus com grupos indígenas e
quais metodologias poderiam ser aplicadas para essa aproximação?”; e, finalmente, “o que os
museus podem fazer pelas culturas e povos indígenas?”. Tais questões de ordem política e
também simbólica nos apontam para novas aplicabilidades do instrumento museu nas disputas
identitárias, nas lutas por demarcações de terras, e na representação social no mundo
contemporâneo.
A exposição “Dja Guata Porã: Rio de Janeiro Indígena” foi construída por diversos
atores a partir de um núcleo fixo de quatro curadores: Clarissa Diniz, Pablo Lafuente, José
Ribamar Bessa Freire e a guarani Sandra Benites. Esta última, indígena guarani, a única a se
identificar etnicamente como indígena entre os curadores. Em seu processo de
desenvolvimento a partir da concepção no MAR, a exposição contou com o esforço de
974
diversos atores indígenas e não-indígenas e analisaremos aqui como se deu a representação
indígena nos processos compartilhados de criação da referida exposição dentro da estrutura de
uma instituição cultural com hierarquias (e assimetrias) demarcadas pela institucionalidade
(jurídico-burocrática) e pelo mundo das artes. A partir da investigação deste processo de
comunicação museológica envolvendo a partilha de autoridades e a suposta relativização do
olhar qualificado sobre o patrimônio indígena, pontuamos os limites e a potência do museu
enquanto ferramenta criada no mundo ocidental para o desenvolvimento de um projeto
civilizatório. Para tanto a reflexão se pauta em autores e autoras voltados a uma crítica sobre
as heranças do colonialismo, os quais parecem ainda atravessar a intersubjetividade do mundo
de forma prolongada, envolvendo o controle do trabalho, do Estado e de suas instituições,
bem como da produção de conhecimento e a construção de valores.
O museu em análise – o MAR – foi inaugurado em 2013 como um equipamento da
Prefeitura do Rio de Janeiro a ser gerido por uma parceria público-privada, a qual envolveu
agenciamentos da Fundação Roberto Marinho e contratos com o Instituto Odeon. O
equipamento, desde então, concentra parte significativa do orçamento da Secretaria de Estado
da Cultura, contando ainda com parcerias privadas a partir de mecanismos diversos – como as
leis de incentivo. Sua criação se contextualiza no processo de requalificação da zona portuária
da cidade a partir de políticas urbanas direcionadas à realização de dois grandes eventos
internacionais: a Copa do Mundo, em 2014, e as Olimpíadas, em 2016. A referida região,
popularmente conhecida como “Pequena-África” por ter compreendido uma grande área de
circulação e comercialização de pessoas escravizadas, compreende espaços urbanos
monumentalizados, como o Cais da Imperatriz – um dos maiores portos de chegada, no
Brasil, da população negra traficada a partir do continente africano. A história de brutalidade
envolvendo os escravizados vem sendo trabalhada pela população da região e reivindicada
como foco de resistência política e cultural na cidade, atravessando direta e indiretamente as
atividades do museu – seja no plano conceitual das exposições e do acervo, seja nos
programas educativos em parceria com a vizinhança.
975
Nesse contexto, “Dja Guata Porã” se revela como um marco na história recente do
MAR, uma vez que o museu não havia realizado uma exposição inteiramente voltada à
temática indígena. Os índios até então apareciam retratados ocasionalmente em outras
exposições, com exibição de artefatos, mas nunca como colaboradores ou como tema
principal em uma abordagem focada nas complexidades étnicas. A mostra foi idealizada para
ocupar o terceiro andar do Museu, tradicionalmente dedicado à história do Rio de Janeiro,
servindo como alicerce para responder à missão pública do equipamento municipal em
promover “uma leitura transversal da história da cidade, seu tecido social, sua vida simbólica,
conflitos, contradições, desafios e expectativas sociais”60.
O interesse do museu sobre uma exposição com esta temática não era novo: o
responsável anterior pela curadoria do MAR, Paulo Herkenhoff, já havia articulado ideias
com o curador espanhol Pablo Lafuente. Mas a retomada do tema se deu com a atual curadora
da Instituição, Clarissa Diniz, que assumiu o diálogo com Lafuente convidando-o a uma
parceria na exposição. Com ocasiões propícias, surgiu, em molde diferente das conversas
iniciais com Herkenhoff, a exposição chamada primeiramente de “Guanabara antes dos
cariocas”.
O processo contou com o especialista sobre as questões indígenas nacionais e no Rio
de Janeiro, José Ribamar Bessa Freire, dedicado às práticas dos índios no campo da
museografia, ao papel educativo e mobilizador dos museus indígenas na organização da
memória e no fortalecimento da identidade étnica, e preocupado em refletir sobre a
redefinição do conceito de museu pelos indígenas. Com a temática indígena definida, o
professor Bessa levou a uma das reuniões entre os curadores a proposta de integrar a
educadora e mestranda em Antropologia Social pelo Museu Nacional, a guarani-nhandewa
Sandra Benites, à equipe curatorial. Sandra atuou como educadora indígena no município de
Aracruz (ES). Teve contato com o professor José Bessa em 2010, em uma turma de formação
60
Informação disponível em “http://www.museudeartedorio.org.br/pt-br/o-mar”.
976
intercultural de professores guarani na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), onde
fez sua graduação sobre a educação guarani.
Segundo a própria Sandra, em conversa com membros da equipe de pesquisa, ela mal
sabia o que significava ser curadora61 de uma exposição e que papel deveria desempenhar.
Para ela a função de curadora, importante para os museus, possui importância distinta para os
índios. No seu entendimento, o mais importante no seu papel na curadoria seria a
oportunidade de “dar visibilidade aos parentes, à causa indígena e ao combate ao preconceito
sofrido pelos indígenas”. O processo curatorial contou com uma dinâmica de participação
coletiva, mas devido à área de expertise de cada um dos curadores e aos trâmites
institucionais, Pablo e Clarissa atuaram mais diretamente em questões ligadas ao acervo, à
construção discursiva e mais especificamente nas demandas relacionadas ao intercâmbio de
informações e exigências entre a instituição e indígenas. José Bessa se tornou o responsável
pela pesquisa e história indígena e Sandra a principal articuladora entre os grupos indígenas
que participaram da exposição e também pela atuação como pesquisadora, fornecendo dados
especialmente sobre os guaranis, índios não-aldeados e mobilizações de movimentos
indígenas em busca de direitos. Após as primeiras reuniões, ficou evidente que os conflitos e
as negociações entre distintas visões sobre as vivências e o patrimônio indígena no Rio de
Janeiro marcariam o processo de trabalho em direção à uma visão adotada pelo museu.
Importa destacar que nos museus ocidentais comumente há a predominância dos
discursos e das representações de arte ocidentais, onde a arte indígena acaba sendo
subalternizada, retratada como artesanato e sem valor de mercado, ignorando-se o artista ou
povo ou, ainda, retratando determinada obra ou objeto como artefato etnográfico. O MAR,
61
A figura do curador de exposições surge nos anos 1980 em museus dos Estados Unidos e Europa, como um
novo tipo de intermediário cultural. Até então a organização de exposição era quase sempre realizada por um
conservador de museu que permanecia anônimo. Contentava-se em selecionar obras da coleção, emprestar outras
obras de diferentes museus, dirigir a colocação de quadros, e redigir as notas do catálogo, estas também
anônimas. Pouco a pouco os promotores passaram a assinar um ensaio introdutório ao catálogo, mesmo não
aparecendo como seu autor (HEINICH, 2008, p.90). O trabalho deles se torna complexo na medida em que os
temas de exposições revelam uma problemática mais pessoal e o sentido da autoria individual passa a ser
associado à curadoria. O curador, neste sentido, é o resultado de uma atribuição de autoridade do autor, o que
pode se complexificar particularmente quando os museus propõem curadorias coletivas.
977
inserido na lógica do mercado de arte, corria o risco de reproduzir as mesmas hierarquizações
em sua relação institucional de desigualdades nas subvenções e de prestígio que obedecem à
lógica do sistema arte-cultura dos museus de arte norte-americanos e europeus (CLIFFORD,
2003). Entretanto, segundo Clifford (idem), é possível derrubar certa lógica científico-política
dominante de coleções e práticas centralizadas - e centralizadoras - dos museus e tentar
superar a dificuldade destes em operarem fora da lógica estética ocidental, revertendo seus
procedimentos em direção a uma museologia cooperativa que se contrapõe à museologia
colonial. O museu, portanto, não deveria superar os discursos e narrativas do colonizador - o
ponto de vista colonial.
978
analisar e contemplar o genocídio dos povos indígenas no Brasil; os apagamentos e
silenciamentos da presença indígena no estado do Rio de Janeiro; as alianças criadas com os
invasores como estratégia de sobrevivência; os movimentos de luta e resistência e atuações
políticas dos povos indígenas; entre outros. Dentre os temas citados, alguns fatos foram
elencados e cronologicamente ordenados pela historiadora Ana Paula Silva em forma de uma
linha do tempo, com base em sua pesquisa para a tese de doutoramento voltada à presença dos
indígenas em contexto urbano no Rio de Janeiro do século XIX62. Tal trabalho acadêmico
auxiliou a organização dos acontecimentos e serviu como um organizador de dados que não
poderiam ser ignorados, pois confeririam à presença indígena uma historicidade em relação à
história conhecida do Rio de Janeiro.
A equipe de pesquisa se dividiu, portanto, por séculos: do século XVI ao XXI, do
primeiro contato com a chegada dos portugueses em 1500 até as políticas refratárias às
questões indígenas e ambientais promovidas pelo governo federal sob a gestão de Michel
Temer. O ponto de partida para se pensar a presença indígena no território fluminense em
uma perspectiva histórica tomou como base as alianças estabelecidas entre índios,
portugueses e franceses com a invasão francesa e a criação da França Antártica, discutindo a
relação destas nos conflitos e relações com o colonizador português. Assim, a pesquisa se
voltou aos aldeamentos indígenas do século XVI do que hoje conhecemos como território do
Rio de Janeiro e ao processo de dizimação dos povos promovido pelos portugueses através do
uso dos indígenas como força de trabalho escravo, das guerras justas e “resgates”, entre outros
instrumentos de violência física e simbólica. Aqui importou destacar a política de
catequização forçada que, ao logo dos séculos, colaborou com o desaparecimento de línguas e
saberes milenares, com o abandono de costumes e cosmogonias, e com mudanças na
organização social das aldeias.
62
Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Memória Social (PPGMS) da Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) em 2016, sob o título “O Rio de Janeiro continua índio: território
do protagonismo e da diplomacia indígena no século XIX”.
979
Ao longo do processo de pesquisa e discussão curatorial evidenciou-se que a
abordagem histórica com uso de iconografias conhecidas poderia incorrer no risco de repetir
modelos discursivos igualmente silenciadores e violentos. A questão dos apagamentos, ora
conduzidos forçosamente pelos colonizadores, através da transmissão de doenças pelo contato
e pela violência física, ou pela força da pena e da tinta, ou seja, pelo estabelecimento de
decretos e leis que faziam os índios deixarem de existir nos registros oficiais, serviram como
justificativa para massacres e usurpações de terras indígenas.
O Rio de Janeiro foi tratado como uma “zona de contato cosmopolita” entre os povos.
Temas como a presença do indígena no contexto urbano e as relações interétnicas
contemporâneas foram trazidos para a conversa pelas curadoras Clarissa Diniz e Sandra
Benites – indígena inserida no contexto urbano, na chamada Aldeia Vertical que atualmente
se constitui como moradia de famílias indígenas que compunham o movimento de ocupação
do antigo prédio do Museu do Índio no bairro Maracanã em 201363.
Considerando a diferença entre a percepção temporal indígena e a não-indígena,
lançou-se outro desafio pela equipe curatorial e de pesquisa. Dois povos foram levantados
como pontos de partida no diálogo entre um possível passado e presente da presença indígena
no Rio de Janeiro: os puris, dados como extintos no século XIX, mas em um importante
processo de etnogênese64; e os guarani, atualmente o povo aldeado em maior número no
estado. No sentido de compreender tais presenças, cabe destacar as contribuições fornecidas
pelo historiador Marcelo Lemos (2016) sobre os povos indígenas do século XIX que
ocupavam a região sul do estado – os coropós, coroados e puris, discutindo o processo
violento de extermínio dos indígenas do Vale do Paraíba, onde os barões do café dizimaram
populações inteiras e os que sobreviveram, tiveram suas identidades indígenas suprimidas,
muitas vezes por iniciativa própria, como estratégia de sobrevivência. Os puri enquadram-se
63
Resistência formada por indígenas de diversas etnias que ocuparam o antigo prédio do Museu do Índio em
2013 e fundaram a Aldeia Maracanã com a finalidade de evitar a demolição do prédio, prevista no conjunto de
obras do estádio Maracanã.
64
Conceito cunhado para dar conta do processo social e histórico de emergência ou reconfiguração de
coletividades étnicas como resultado de migrações, invasões, conquistas, fissões ou fusões. (BARTOLOME,
2004)
980
na definição de Miguel Bartolomé (2006) de ressurgência étnica de “[grupos] considerados
extintos, totalmente ‘miscigenados’ e que, de repente, reaparecem no cenário social,
demandando seu reconhecimento e lutando pela obtenção de direitos ou recursos (Rossens
1989; Pérez 2001; Bartolomé 2004)” (pp.39-40).
Os guaranis, por ser o povo indígena aldeado mais numeroso do estado do Rio de
Janeiro. Atualmente podemos identificar sete aldeias dessa etnia no estado do Rio de Janeiro,
localizadas nos municípios de Paraty, Angra dos Reis e Maricá. Sendo assim, constituem uma
presença que não poderia passar despercebida, especialmente pelo fato de a curadora Sandra
Benites também pertencer a esta etnia. Sandra constituiu a principal referência de consulta nas
pesquisas realizadas e foi a principal articuladora entre os guaranis para inclui-los na
exposição.
Estas três fortes “presenças” indígenas contemporâneas – dos puris, dos guaranis e dos
índios em contexto urbano – estavam definidas para serem discutidos, debatidos e estarem
presentes de algum modo na exposição que tomava forma: com os três grupos indígenas e
com uma linha do tempo -– ainda sem formato definido -– que desse conta de tratar de fatos e
de contextualizações históricas da causa indígena em âmbito nacional. Esta forma foi
modificada futuramente com a inclusão dos Pataxós, que surgiram nas discussões um pouco
mais tarde que os demais povos, acontecimento que será abordado posteriormente. A ausência
de uma terminologia mais adequada levou também a equipe de pesquisadores e curadores a
adotar a categoria de “índios urbanos”, emprestada dos próprios indígenas residentes na
Aldeia Vertical que assim se reconhecem. Entretanto, importa destacar os riscos que tal
terminologia oferece em induzir à noção de “índio genérico”, uma vez que não dá conta de
demonstrar a vasta heterogeneidade cultural indígena que vive nas cidades, sendo capaz de
incentivar julgamentos hierárquicos em relação ao índio aldeado.
Ainda havia a questão não solucionada pela curadoria a respeito do formato que a
exposição deveria adquirir, tal como a participação dos indígenas nesse processo, e tampouco
os acervos e objetos a serem expostos. A curadora Clarissa Diniz propôs duas frentes de
atuação para a equipe atuar e se aproximar dos indígenas: estabeleceu junto a Pablo Lafuente
981
a ideia de criar colóquios com a participação de indígenas cuja lógica colaborativa
possibilitasse aos poucos definir rumos, caminhos e possibilidades em diálogos que
funcionariam mais como um fórum de debates de questões indígenas de um modo geral e não
como um processo de preparação público da exposição e de acordo com a necessidade,
reuniões privadas com os núcleos e atores envolvidos, separadamente, realizadas no museu ou
em campo. Surgia assim os “Dja Guata Porã”; que em guarani significa algo como “um
caminho bonito a ser percorrido junto”. A segunda frente constituiu no trabalho de campo
realizado nas aldeias com a finalidade de se ter contato com as realidades dos povos que
seriam retratados na exposição e de convidá-los a fazer parte dos processos expositivos.
Os “Dja Guata Porã” ocorreram em quatro oportunidades; o primeiro encontro,
realizado no dia 04 de novembro de 2016 foi mediado por Pablo Lafuente e dividido em duas
partes: pela manhã foram realizadas falas dos curadores Sandra Benites e José Bessa e do
convidado indígena Edson Kayapó, historiador e doutor em educação, professor do Instituto
Federal da Bahia (IFBA). A segunda parte do encontro, no período da tarde, revelou-se como
uma conversa mais aberta entre a plateia, formada por indígenas, dentre os quais destacam-se
os moradores da chamada Aldeia Vertical, moradores das remoções da Aldeia Maracanã do
bairro do Estácio no Rio de Janeiro, incluindo seu cacique, Carlos Tukano e alguns puris que
vivem em contexto urbano – alguns moradores da Aldeia. Com o sucesso deste primeiro
encontro, um segundo foi marcado para o dia 25 do mesmo mês, o terceiro no dia 09 de
dezembro de 2016 e o último dia 12 de fevereiro de 2017, sendo este último inteiramente
dedicado à questão da mulher indígena.
No primeiro encontro enfatizou-se a abordagem da arte indígena no mundo ocidental,
incluindo sua entrada e representação nos museus, sua inserção dentro do sistema denominado
arte-cultura (CLIFFORD, 1994) e a insuficiência de dados dos acervos indígenas catalogados
nos museus do mundo todo. Outros aspectos práticos do cotidiano indígena foram trazidos
para debate: a necessidade da produção de sua arte para venda e como ela se transforma na
maioria dos casos na principal fonte de renda destes grupos; a substituição de materiais
naturais usados pelos indígenas, motivada pelo desmatamento; a expulsão de suas terras; ou a
982
vida em contexto urbano; elementos que levam a adaptações materiais para as miçangas, por
exemplo. O encontro abarcou o debate sobre as artes indígenas enquanto expressões de
universos que ligam os humanos e outros seres (VAN VELTHEM, 2012) e também
contemplou a discussão sobre a apropriação indígena de novas tecnologias como instrumento
de resistência – aqui destacou-se seu protagonismo nas áreas do audiovisual, produzindo
materiais que salvaguardam suas culturas.
Estes debates se tornam ainda mais relevantes dentro de um museu de arte que se
propõe a fazer um exercício de descolonização da representação do indígena, possibilitando
aos funcionários, que de um modo ou de outro trabalhariam na exposição, tivessem contato
pela primeira vez com índios e suas perspectivas sobre o modo de fazer museu e se fazer no
museu. Ao possibilitar o acesso a estas dimensões culturais e simbólicas colocando indígenas
em evidência, o museu auxiliaria numa possível desestigmatização dos povos dentre seus
próprios funcionários. Ainda não é comum para uma parcela considerável da população
brasileira – o que se percebia mesmo dentro do museu -– conceber um indígena como
professor universitário, conforme o caso de Edson Kayapó, ou mesmo uma mulher indígena
que desempenhasse a função de curadora de uma exposição, como Sandra. Sendo assim, para
além da troca de informações e da expressão da representação indígena no interior do museu,
a experiência de compartilhamento de saberes e fazeres museais indígenas e especializados
levou à relativização da própria noção de “expertise cultural” (TORNATORE, 1998) que
comumente fundamenta as práticas e hierarquias em instituições marcadas pela lógica
jurídico-burocrática ocidental – traço de um colonialismo evidente.
983
à possibilidade ou não de os museus estarem preparados para lidar com as múltiplas e
complexas relações dos objetos indígenas dentro da Instituição, respeitando as dimensões
sagradas e obedecendo as regras dos povos indígenas sobre aquilo que poderia ou não ser
exibido e quanto ao respeito às tradições culturais no processo expositivo. Segundo Josué
Carvalho (2012), o museu deveria funcionar como um “espelho refletor de memórias” para os
indígenas. Um local onde depositam seus objetos não apenas com intuito de salvaguarda, mas
também pela possibilidade de reviver memórias.
O terceiro encontro, realizado em dezembro no próprio museu, revelou maior
quantitativo na participação de indígenas: índios guarani de Paraty, Angra dos Reis e Maricá,
e puris além de diversas etnias que vivem em contexto urbano. Estes últimos conduziram as
conversas da manhã com os moradores da Aldeia Maracanã, representados por Carlos
Tukano, Salissa Rosa e a curadora Sandra, e Afonso Aporinã – que participou desde o início
do movimento de resistência do Museu do Índio no Maracanã, mas que não reside na Aldeia
Vertical. Neste encontro, foram abordados temas como a responsabilidade do museu em
assumir um compromisso em mostrar a realidade dos povos indígenas na atualidade, a
capacidade de organização e mobilização indígena, a questão da demarcação de terras, a
dinâmica do índio na cidade, os preconceitos sofridos e o apagamento e diluição de suas
identidades quando chegam na cidade, forçados a viver sob outras dinâmicas e estruturas
sociais. A segunda parte do encontro dedicou-se aos guarani, sendo conduzida quase que
integralmente em idioma guarani. Uma experiência singular para os não-indígenas envolvidos
no processo expositivo, considerando que os guarani têm como segundo idioma o português.
Nessa situação, a equipe envolvida experienciou a incompreensão linguística e a breve perda
do protagonismo político e simbólico na arena de debate65.
Nesse momento os guarani questionaram o objetivo e a proposta da exposição,
manifestando preocupação, dentre outras coisas, com relação à sua capacidade de produzir
65
Sobre esse tema, interessa mencionar a discussão de Ortiz (2004) e Maia (2011) a respeito da hegemonia
linguística e seus efeitos cognitivos e epistemológico produzidos pelas línguas hegemônicas em disciplinas
dedicadas à teoria social. Para eles, essa hegemonia refere-se ao poder de pautar debates e organizar a agenda
intelectual em função de problemas geolocalizados em países europeus ou da América do Norte.
984
material suficiente para a demanda do museu. Vale observar a postura de alguns indígenas
que se mostrava atravessada por uma desconfiança sobre o que esperar da Instituição. Nesse
sentido, o papel do museu e sua utilidade foram constantemente questionados pelos indígenas
nos encontros, duvidando de sua validade, na medida em que compartilhavam da crença de
que a Instituição só reforçaria estereótipos preconceituosos. O receio era de que se abordasse
o indígena a partir de uma historicidade ocidentalizada, reproduzindo a imagem convencional
da identidade indígena monolítica construída na perspectiva moderno/colonial. Cabe
mencionar o posicionamento de lideranças e jovens guarani sobre a legitimidade do museu na
construção dessas representações66. Os “juruá”67 respeitariam suas danças, sua reza, sua
língua?
Os trabalhos de campo e reuniões conduzidas dentro do museu em 2016 com os
grupos em separado foram desdobramentos das questões apresentadas dentro dos contextos
dos colóquios “Dja Guata Porã”. Foram realizadas visitas às aldeias Vertical, à Paraty-Mirim
e Sapukai e a Ho’ovy Porã em Maricá. A última visita aos guaranis ocorreu em janeiro de
2017, em um encontro de dois dias na aldeia de Rio Pequeno, visando definir o acervo que os
guaranis gostariam de produzir para se verem representados na exposição. Iniciativas
idênticas foram realizadas com os puri e o grupo de indígenas em contexto urbano. Por fim, a
visita à Rio Pequeno também foi marcada pela chegada de um quarto grupo à exposição: os
pataxós, instalados na Costa Verde. A abordagem foi a mesma: apresentação da exposição e
seu propósito pela curadora Clarissa Diniz, reforçando o caráter participativo e educativo,
demonstrando realidades indígenas contemporâneas, garantindo espaços de autonarrativas e
66
Aqui importa destacar a discussão desenvolvida por Márcia Kersten e Anamaria Bonin no artigo “Para pensar
os museus ou quem deve controlar a representação do significado dos outros?” referente a coleções etnográficas
e a relação com a antropologia na construção de representações sobre o “outro”. Ver: KERSTEN & BONIN,
2007. Outro artigo que interessa mencionar nessa mesma perspectiva é “Escolha seu menu no Museu Canibal”,
publicado na revista eletrônica Público. O artigo trata de uma exposição realizada por Jacques Hainard em 2002
no Museu de Etnografia de Neuchâtel, Suiça, e se propunha a problematizar o poder de legitimação dos
discursos dos museus e suas orientações políticas e teóricas na construção de representações sobre outras
culturas. Disponível em: <https://www.publico.pt/temas/jornal/escolha-o-seu-menu--no-museu-canibal-286646>
Acesso em: 20 de maio 2017.
67
“Homem branco” em guarani.
985
estendendo a eles um convite, prontamente atendido, de visitar o museu em fevereiro de 2017
para prosseguir às conversas relacionadas à participação indígena na exposição.
Considerações
“Dja Guata Porã: Rio de Janeiro Indígena” seguiu um formato inédito no MAR, desde
a sua concepção, enquanto resultado de pensamentos de vários atores, saberes e visões de
mundo até sua execução museográfica. A questão que pensamos ser necessária de ser
colocada sobre tal processo, então, diz respeito aos limites que a instituição museu possui na
efetivação de uma curadoria participativa. Precisamos nos perguntar em que medida o museu
se fundamenta em conhecimentos provenientes do projeto civilizatório moderno responsável,
entre outras coisas, pela histórica dizimação e silenciamento indígena dos quais os museus
também tomaram parte. Poderia o museu, com suas rotinas financeiras, jurídicas, burocráticas
e disciplinares – provenientes de uma racionalidade ocidental – e com a relação que
estabelecem, por exemplo, com o mercado de arte, operar de fato em colaboração com saberes
e culturas outras? Por outro lado, seria possível pensar na reinvenção dessa instituição e sua
instrumentalização em benefício de alguma justiça social?
Para fomentar o debate sobre a relação de um museu de arte contemporânea e a
produção de uma exposição do porte da “Dja Guata Porã: Rio de Janeiro Indígena”, é
interessante recorrer a Walter Mignolo e Pedro Pablo Gomez (2012) e seus debates
decoloniais no âmbito da arte e da estética. Para os autores, a subjetividade, ou a libertação da
subjetividade latino-americana – que inclui os diversos povos indígenas existentes em toda a
região – seria possível a partir de uma crítica decolonial a afetar os sentidos, as emoções e o
intelecto, “[...] trabajando em el plano de la descolonización del conocer, del sentir, del pensar
y del ser” (MIGNOLO & PABLO GOMEZ, 2012, p.6). Segundo os autores, a arte e a estética
foram instrumentos de colonização das subjetividades contribuindo na expansão da matriz
colonial da Modernidade em seus modos de representação, em seus corpos discursivos, em
suas instituições, em seus modos de distinguir e produzir sujeitos e subjetividades (idem,
986
p.15). Nesse sentido, é possível perceber a existência de uma hegemonia de narrativas
museais que atribuem caráter evolutivo na abordagem de diferentes povos que não
compartilham com esquemas de pensamento e ação ocidentais ou ocidentalizados,
categorizando-os enquanto organizações primitivas em processo inexorável de modernização.
Por essa perspectiva, será possível, a partir de casos como o da exposição aqui
analisada, pensar as relações de poder que envolvem a noção (universalizada) de “arte” e
sobre a própria estrutura “museu” que muitas vezes escamoteia dinâmicas de colaboração
forçada. Importa pensar em que medida os esquemas de representação aparentemente
colaborativos não esclarecem as disputas de classe, as diferenças jurídicas, as hierarquias
discursivas e linguísticas, as assimetrias decisórias, enfim, os esquemas político-burocráticos
que envolvem necessariamente a existência e manutenção de uma Instituição.
Mas vale destacar também a importância de uma exposição nesses moldes em um
contexto em que o Museu do Índio no Rio de Janeiro – um museu federal – encontra-se
fechado. Numa conjuntura de fragilidade democrática que desde 2016 tem propiciado a
retomada com afinco de questões prejudiciais aos povos indígenas, como o marco temporal68,
a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da FUNAI69 e do INCRA70, a nomeação de um
General do Exército à presidência da FUNAI, o enxugamento e precarização das atividades
deste órgão, e a tramitação da PEC 21571.
Outra questão possível de ser levantada a partir desta exposição é a representação
indígena convencionalmente construída por um considerável número de museus históricos em
diferentes lugares do mundo. Aqui cabe mencionar, por exemplo, que o termo
“descobrimento” ainda é utilizado largamente por instituições de ensino e equipamentos
culturais no Brasil e em outros países como Portugal, por exemplo. Pesquisadoras da
Universidade de Coimbra têm se dedicado ao tema e relacionado a postura historiográfica
68
O Marco Temporal impõe a data da Constituição Federal de 1988 como referência para a constituição de
direito às terras, direito esse que, para os indígenas, seria originário – não se limitando à década de 1980.
69
Fundação Nacional do Índio (FUNAI)
70
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA)
71
Retira do Executivo a atribuição sobre a demarcação de terras, delegando ao Poder Legislativo.
987
portuguesa – largamente reproduzida por museus e institutos de patrimônio – à constituição
de um imaginário português sobre uma colonização “boa” e “benevolente”. A conquista, a
escravização, as chacinas e a expropriação material, na narrativa dos “descobrimentos”, são
neutralizados pela ideia de um expansionismo que “deu novos mundos ao Mundo”,
largamente divulgada em museus tradicionais e museus tratados como “parques temáticos”
(MAESO, 2016).
As gramáticas museais no mundo pós-colonial se beneficiam das linguagens e visões
de mundo não-eurocêntricas que desafiam, a partir de lógicas de poder outras, as hierarquias
herdadas do colonialismo. Por meio de diálogos culturais e negociações patrimoniais,
relativiza-se a autoridade das próprias instituições como instâncias produtoras de verdades
excludentes a partir de ausências e silenciamentos historicamente fundados. Assim, o
“caminho percorrido junto” em Dja Guata Porã, nem sempre harmonioso ou desprovido de
embates culturais, longe de representar um modelo de participação ou de compartilhamento
curatorial, pode servir de inspiração para novas e futuras empreitadas das pontes menos
assimétricas que ainda restam se abrir sobre a diversidade dos patrimônios e museus. Nesse
sentido, a provocação que fica é sobre a possibilidade de olhar para o museu e fazer o museu a
partir ferramentas e reflexões que coloquem à prova estruturas marcadas pelo capitalismo e
pelo eurocentrismo no mundo ocidental e ocidentalizado.
Referências bibliográficas
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contemporâneos. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2003. p.254-305.
988
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FREIRE, José Ribamar Bessa. “A descoberta dos museus pelos índios”. In: ABREU, Regina;
CHAGAS, Mario (Org.) Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro:
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KERSTEN, Márcia Scholz de Andrade & BONIN, Anamaria Aimoré. Para pensar os museus,
ou “Quem deve controlar a representação do significado dos outros?”. Musas – Revista
Brasileira de Museus e Museologia, Rio de Janeiro, Instituto do Patrimônio Histórico e
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989
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brasileiro. Revista Soc. Estado, Brasília, v. 26, n. 2, p. 71-94, Aug. 2011.
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RIBEIRO, Darcy. Confissões. 2ª Edição, São Paulo: Companhia das Letras. 1998.
VAN VELTHEM, Lucia Hussak. As artes indígenas: O cotidiano na ordem cósmica. In:
Textos do Brasil. Brasília: Ministério das Relações Exteriores, 2012, v.19 p.36-57.
990
MUSEALIZAÇÃO DE OBJETOS ARQUEOLÓGICOS: ESTUDO DE CASO
SOBRE AS LOUÇAS DO SÍTIO ENGENHO DO MURUTUCU EM BELÉM-PA
Abstract: Historical Archaeology and Museology work together to improve the historical heritage
through a different musealization of archaeological objects. This article aims to study concepts from
the teory of Museology applied to the archaeological contexto. We will have a case study about
tablewares excavated in the Sítio Escola Engenho do Murutucu/ Brazil. From the tablewares of this
site we can observe the possible musealization of these objects in the Amazon territory.
991
Introdução
A base para nosso estudo de caso encontra-se ancorada em uma produção de iniciação
científica (PIBIC/CNPq) o qual foi produzido durante o período de 2013 a 2016, referente
especificamente às louças exumadas do Sítio Histórico e Arqueológico Engenho do
Murutucu. Esta produção científica está vinculada ao Projeto Sítio Escola Engenho do
992
Murutucu: Uma Arqueologia dos Subalternos.
O processo de musealização destes objetos será tratado por meio de uma visão crítica.
Utilizaremos diversos autores que trabalham com o conceito de musealização para então
aplicá-los ao contexto arqueológico, levando em consideração o objetivo deste trabalho:
contribuir com o campo teórico e prático da Museologia no tocante a objetos arqueológicos
(BRUNO, 2014, p. 5 e LIMA, 2013, p. 381).
Por conseguinte, teremos um tópico intitulado o ciclo das louças, que abordará o objeto
material em si, por meio de um esquema didático e explicativo. Iremos explicar as etapas
deste processo e demonstraremos de que forma a musealização das louças do Sítio Engenho
do Murutucu pode ser efetivada.
993
inovador quando nos referimos a louças em solos amazônicos, sobretudo estudos acerca de
uma possível musealização diferenciada para objetos arqueológicos. As críticas produzidas
podem colaborar com os debates no campo da Museologia e da Arqueologia. Por essas
razões, este artigo torna-se importante para acadêmicos oriundos do campo da Museologia e
da Arqueologia.
994
O objeto não pode ser encarado apenas como algo material, físico e palpável. Quando
enxergamos as diversas etapas que aquele objeto passou, percebemos o porquê de ele ter sido
criado daquela forma, coma aquele aspecto físico e suas adaptações, analisando além de sua
aparência palpável.
Os objetos não são apenas apetrechos, constituem a cultura de cada sociedade que os
utiliza. Não são manipulados apenas para fins utilitários ou com funções pré-estabelecidas,
podem mudar de função com o passar do tempo e adaptarem-se à época em que vivem. O
significado os objetos é uma construção, porém, não podemos delimitá-lo apenas à uma
análise formal. Torna-se primordial pesquisar sobre “a vida social” dos objetos, do seu
processo social, envolvendo sua fabricação, uso, valorização, reaproveitamento, descarte ou
possível musealização (APPADURAI, 2008, p. 15).
995
Precisamos esclarecer que existem diversos autores que abordam o conceito de
musealização das mais variadas formas. Alguns cunham este termo para denominarem uma
gama de processos; outros o utilizam para elucidar que o objeto torna-se automaticamente
museológico, sem precisar passar por todos os processos. Portanto, ao utilizarmos o termo
“musealização”, estaremos utilizando especificamente os trabalhos de autores como: Diana
Lima, André Desvallées, François Mairesse, Martin Schärer e Maria Lúcia Loureiro.
Nas palavras de Diana Lima, a musealização: “diz respeito ao processo que abrange o
juízo/atitude – eivado de significações, de conteúdo simbólico – em facetas [...] capazes,
também, de ajustarem-se em movimentação permanente” (LIMA, 2013, p. 51). Portanto, esse
processo não está somente limitado às condições físicas do objeto (documentação,
conservação, seleção, aquisição), mas também adentra ao seu campo simbólico, cheio de
significados que podem ser modificados com o tempo e/ou a partir do olhar de interlocutores
diversos.
Os atores sociais atribuem ao objeto uma carga de valor simbólico (não estritamente
econômico), portanto, aquele objeto deve ser guardado, preservado, patrimonializado. Para
Diana Lima, o objeto sofre a musealização e:
996
valorização e à sistematização dos sentidos e significados extraídos das referências culturais
que são alvo da atenção museológica” (BRUNO, 2014: 7). Portanto, acreditamos que após a
exumação e pesquisa das peças encontradas nos trabalhos arqueológicos, podemos verificar
que esses objetos estão diretamente vinculados a uma catalogação a partir da função e forma
do objeto, advindos das pesquisas arqueológicas e posteriormente podem participar de um
processo de ressignificação, perpassando por uma possível musealização.
Quando citamos Martin Schärer abordando musealização, passamos por uma grande
problematização ao tratarmos objetos arqueológicos, pois, para este autor:
997
realidades antes de chegar efetivamente ao museu. Houve a perda de seu contexto anterior,
quando feita a sua fabricação, porém adquiriu-se um novo contexto, no caso, a museália.
Porém, entre a escavação do objeto até ele se tornar museália, neste interim, o material
arqueológico já é considerado, pela legislação, como patrimônio histórico. Daremos
continuidade ao nosso pensamento acerca do patrimônio com Desvallées e Mairesse em
Conceitos Chaves de Museologia:
998
Art. 2º Consideram-se monumentos arqueológicos ou pré-históricos:
c) os sítios identificados como cemitérios, sepulturas ou locais de pouso
prolongado ou de aldeamento “estações” e “cerâmios”, nos quais se
encontram vestígios humanos de interesse arqueológico ou paleoetnográfico,
A ideia de tratar a musealização de uma forma mais específica não acontece apenas no
contexto de objetos arqueológicos, podemos pensar em outros tipos de objetos que entram no
museu já patrimonializados, como por exemplo, os objetos paleontológicos ou os patrimônios
imateriais. Vale ressaltar que existe a imposição legislativa sobre o que é patrimônio, porém,
quem valora e escolhe o que considera patrimônio são as pessoas. Portanto, relações de poder
atravessam essa relação assimétrica, pois a legislação impõe os tipos de patrimônios que
devem ser considerados.
999
O sítio histórico e arqueológico Engenho do Murutucu localiza-se na Estrada do Ceasa,
no bairro do Curió Utinga em Belém do Pará, e foi um dos principais engenhos de açúcar e
água ardente da região amazônica desde meados do século XVII. (PINA 2016: 1).
Por ser um sítio de extrema importância para a região amazônica, diversas intervenções
arqueológicas já aconteceram ali. As intervenções anteriores aconteceram entre os anos de
1986 e 2000.
A partir de 2014 o Sítio Histórico Arqueológico recebeu o Projeto Sítio Escola Engenho
do Murutucu: Uma Arqueologia dos Subalternos que vem sendo coordenado pelo professor
Dr. Diogo Costa (PPGA/UFPA) e tem como objetivo a coleta de remanescentes da cultura
material de diversos grupos sociais que viveram no Engenho do Murutucu. O projeto teve, até
então, a duração de três anos (2014, 2015 e 2016), tendo a sua última escavação acontecido
em Julho de 2016. A base de todos os dados utilizados em nosso estudo de caso encontra-se
em uma produção de iniciação científica (PIBIC/CNPq) (PINA, 2016: 1) produzida durante o
período de 2013 - 2016, referente especificamente aos atributos morfológicos e tecnológicos
das louças exumadas do Sítio Histórico e Arqueológico Engenho do Murutucu.
1000
De forma específica, as louças são símbolos de um período intenso na produção de
artefatos voltados ao consumo de alimentos sólidos, consumos de alimentos líquidos, bibelôs,
dentre outros objetos que demonstravam certo status social, dando aos seus proprietários
algum diferencial no que tange à demonstração de poder econômico em meados do século
XVI, estendendo-se inclusive aos dias contemporâneos (LIMA, 1997: 131).
Quanto às formas das louças, percebemos que mais de 40% dos fragmentos de louça
exumados do Sítio Engenho do Murutucu têm relação com fragmentos de pratos. Vale
ressaltar que as louças não podem ser compreendidas apenas pelo seu papel funcional,
devemos considerar também o seu significado, intrínseco à matéria em si, lembrando que este
significado é dinâmico, sofre mudanças ao longo dos anos. A dinamicidade deste significado
está diretamente relacionada à ressignificação das louças que será tratada mais profundamente
no decorrer deste artigo (LIMA, 1995: 143).
1001
fina um aprimoramento da técnica de fabricação utilizada na produção da faiança simples,
portanto, torna-se importante observar que no período de ocupação do Sítio Engenho do
Murutucu não havia a produção nacional deste tipo de louça, por conseguinte, tanto a faiança
simples quanto a faiança fina eram importadas da Europa diretamente para o Brasil,
especificamente para Belém do Pará (PINA, 2016: 5).
Com a reprodução em grande escala, os grafismos presentes nas louças de faiança fina
disseminaram-se rapidamente por diversos locais, atravessando continentes e afetando
diretamente o dia a dia dos diversos consumidores que as adquiriam. Particularmente no
Brasil, a utilização das louças foi impulsionada a partir do momento que a família real
portuguesa se mudou para o Brasil, trazendo consigo novos modelos e padrões de
comportamento da elite europeia. O objeto não era mais apenas um objeto, simbolizava um
processo de urbanização, um estilo de vida, transmutava-se em signos de distinção social
(SYMANSKI, 2002: 48).
As louças, encaradas como objetos da cultura material podem ser consideradas agentes
materiais sobre os indivíduos que dela se utilizam. A agência de objetos está presente em
diversos campos, como por exemplo, no campo utilitário, estando estritamente ligado ao uso
do objeto. Ao perpassarmos pelo campo utilitário, podemos nos deparar com o campo
simbólico, analisando de que forma a utilização das louças no campo utilitário estaria
reverberando significados e significações aos seus usuários (MILLER, 2013: 66; LIMA,
2011: 12 e MENESES, 1983: 112).
1002
Ao falarmos de louças, devemos elucidar que o conceito de cultura material está
vinculado diretamente como correlato ao conceito de “Patrimônio” (DESVALLÉES e
MAIRESSE, 2010: 121). Levando em consideração os pensamentos de Maria Lucia Loureiro:
Elucidaremos a “vida social” da louça, desde a sua fabricação, venda e comércio, uso
primário (exercendo a função que foi designada), o seu descarte, sua recuperação/ativação
por meio do trabalho do arqueólogo e, por conseguinte, a sua possível musealização. Vale
ressaltar que não são todas as louças produzidas que passam por esse ciclo, o contingente de
material produzido não pode ser comparado ao número de peças que são encontradas nas
escavações e ressignificadas posteriormente. Iremos focar nas louças advindas do Engenho do
Murutucu, porém, este ciclo pode ser utilizado com as devidas ressalvas quando formos falar
de louças originadas de diferentes contextos.
1003
público, para concluirmos o processo infocomunicacional museológico (LOUREIRO, 2015:
121).
Produção Venda e
Comércio
1
2
Uso do
Musealização
objeto
7
3
Descarte
Ressignific /
ação
Recupera Desuso
6 ção/ 4
Reativaçã
o
5
Figura 1: Ciclo relativo às louças desde a sua produção até a sua musealização.
Houve então a venda progressiva, fomentando o comércio dessas louças para diversas
partes do mundo. Com o início da revolução industrial conseguimos perceber um grande
aumento no contingente de louças produzidas, portanto, os mercados ultramarinos puderam
1004
ser explorados de forma exponencial. Localidades além-mar europeu conseguiram receber
diversos tipos de louças (faianças, porcelanas e grês) fruto do comércio ultramarino. Uma
dessas localidades é o Brasil, por conseguinte, Belém do Pará.
O uso das louças estava ligado ao âmbito doméstico, elas eram utilizadas como
utensílios do cotidiano (as mais simples) ou para celebrações e ocasiões especiais (as mais
elaboradas). O posterior descarte das peças acontecia em virtude de impactos mecânicos que
faziam o material despedaçar-se, perdendo seu uso e função original. Ressaltamos que
existem diversas formas de abandono de objetos materiais registrados no âmbito
arqueológico. Falando especificamente das louças, podemos observar que seu descarte/desuso
pode acontecer por diversos fatores inerentes à peça em si (PINA, 2016: 15).
Por fim, as louças, também possuem uma vida social que remonta desde a sua produção,
perpassando por sua recuperação em escavações arqueológicas e, por fim, sua possível
ressignificação tanto dentro dos museus, adquirindo uma forma de “aura” museal
(perpassando pela musealização), quanto na sua possível ressignificação simbólica, por meio
de sua reprodução em acessórios como roupas, joias, sapatos, dentre outros diversos tipos de
suporte. Percebemos que com o passar do tempo, o objeto modifica seus significados.
1005
Temos um significado atrelado ao uso doméstico; de forma posterior, apresenta o
significado de artefato arqueológico, quando encontrado em contexto; após sua coleta e
pesquisa, “veste-se” de seu significado museal, tornando-se objeto museológico.
Partiremos agora para a análise da possível musealização das louças do Sítio Histórico
Engenho do Murutucu. As louças, como objeto arqueológico, pertencente ao conceito de
patrimônio cultural, consequentemente são consideradas bens culturais. De acordo com a Lei
11.906/2009:
Consideram-se bens culturais passíveis de musealização os bens
móveis e imóveis de interesse público, de natureza material ou
imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de
referência ao ambiente natural, à identidade, à cultura e à memória dos
diferentes grupos formadores da sociedade brasileira (BRASIL, Lei
11.906/2009 – IBRAM, 2009b).
A musealização dos artefatos em louça do Engenho do Murutucu aconteceria de acordo
com os processos já elencados da musealização, respeitando: a conservação, pesquisa,
documentação, preservação dos objetos e também incluiria uma exposição acerca desses
artefatos, um dos principais momentos da musealização, levando em consideração a
comunicação. Não podemos deixar de mencionar que os objetos arqueológicos já são
patrimônio protegido por legislação específica e não sofreram o processo de
patrimonialização apenas quando se tornaram objetos de museu, pois são patrimonializados a
partir do momento que são retirados do solo.
1006
Para pensarmos efetivamente na musealização das louças do Engenho do Murutucu,
devemos torná-la palpável e real. Vinculado ao projeto original, temos um Projeto de
Extensão chamado: Arqueologia e o Público no Engenho do Murutucu que visa estabelecer
visitas guiadas no próprio Sítio, para os diversos públicos (acadêmicos e não acadêmicos)
interagirem com o patrimônio cultural presente no espaço. A possível exposição das louças
estaria ligada ao projeto de extensão citado, podendo acontecer dentro das escolas, para o
público escolar ou até mesmo dentro do próprio complexo do Engenho do Murutucu, havendo
a musealização in situ e fazendo deste sítio, um museu. Transformar o Engenho em museu é
uma ideia que poderá ser executada futuramente.
Os museus existem para servir à sociedade, esta é a sua função social. “Assim como a
conquista da leitura de um texto se faz dispensar a figura alheia que leria para nós, a
exposição também mostra sua eficiência ao criar formas de comunicação e dispositivos de
reflexão sem tutela” (RAMOS, 2004: 5). Os museus têm uma:
Considerações finais
Tendo como base o que foi exposto neste artigo, aplicamos o conceito de musealização
no contexto arqueológico com o intuito de tratarmos de forma diferente o conceito de
musealização em relação aos objetos arqueológicos. Pensar nesse processo de forma crítica e
mais específica para diferentes contextos, tendo em vista que os artefatos já são patrimônio
1007
desde a sua exumação e não são objetos ditos “comuns”. Devemos voltar o nosso olhar para
objetos que adentram ao espaço museológico já patrimonializados, como por exemplo, os
objetos paleontológicos.
A discussão aqui exposta não se restringe apenas ao contexto arqueológico, ela é uma
discussão conceitual sobre o processo de musealização de objetos específicos. A partir do
estudo de caso das louças do Engenho do Murutucu, conseguimos esclarecer de que forma é
possível a musealização dos objetos arqueológicos, porém, não podemos nos fechar apenas ao
estudo de caso. O conceito base de pensar em uma musealização específica vai além do
contexto arqueológico. Precisamos expandir o conceito de musealização e pensá-lo a partir de
contextos específicos. Não podemos pensá-lo a partir de uma visão generalista, pois seus
processos dependerão do objeto, do conteúdo e consequentemente do contexto que estamos
lidando.
Referências
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Acesso em: 01 Mar. 2017.
1009
LIMA, Tania A. Pratos e mais pratos: louças domésticas, divisões culturais e limites sociais
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MENESES, Ulpiano. B. A Cultura Material no Estudo das Sociedades Antigas. In: Revista
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MILLER, Daniel. Teoria das Coisas. In: Trecos, Troços e Coisas: estudos antropológicos
sobre a cultura material. Tradução: Renato Aguiar. Rio de Janeiro, Zahar, 2010.
1010
VALORIZAÇÕES E MUSEALIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO MUNDIAL NO
BRASIL: ESTUDO DE CASO DO PLANO PILOTO DE BRASÍLIA E DO
COMPLEXO DE CONSERVAÇÃO DA AMAZÔNIA CENTRAL
Resumo: O desenvolvimento dos conceitos de patrimônio, natureza e museu, buscando perceber suas
tipologias e inter-relações através da história humana. Propõe um exercício analítico das múltiplas
valorações e da musealização presentes em dois territórios brasileiros eleitos pela Unesco como
Patrimônio Mundial, a saber, o Plano Piloto de Brasília e o Complexo de Conservação da Amazônia
Central. Reflete sobre as estratégias de conservação no contexto de sítios naturais e históricos na
qualidade de etapa do processo de musealização, avaliando seus desafios e especificidades. Discute os
conceitos contemporâneos de museu ao problematizar sua relação com o patrimônio integral,
requalificando-os na medida em que vê na Museologia a missão de congregar homem e natureza,
portanto, integrar geodiversidade, biodiversidade e cultura.
Palavras-chave: musealização; patrimônio; Brasília; Amazônia
Abstract: the development of the concept of heritage, nature and museum, analyzing their typologies
and interrelation throughout human history. The article proposes an analysis of the multiple valuations
and of the musealization present in two Brazilian territories elected by UNESCO as World Heritage:
Brasilia and Central Amazon Conservation Complex. This study discusses the conservation strategies
of the natural and historical sites as a stage of the musealization process, evaluating their challenges
and specificities. It also presents a discussion on contemporary museum concepts when questioning its
relation with the integral heritage, requalifying them by seeing in Museology the mission to
congregate human being and nature, therefore integrating geodiversity, biodiversity and culture.
Key-words: musealization; heritage; Unesco; Brasilia; Amazon.
1011
Introdução
72
SCHEINER, Teresa Cristina. Repensando o museu integral. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências
Humanas. Belém, v. 7, n. 1, p. 15-30, jan.-abr., 2012.
1012
natureza selvagem ou “intocada”, e, patrimônio cultural, espaços ou manifestações que
pareçam estar no extremo oposto, como representante de um produto totalmente humano.
Mas, se analisarmos de perto, ambos convivem com o casamento da Cultura e da Natureza de
forma mais harmônica possível. Isso ressalta como a separação do Patrimônio em Cultural e
Natural da Humanidade pela UNESCO representa, na realidade, determinados períodos da
história que sustentaram uma mentalidade de divórcio do ser humano com o meio ambiente,
colocando o primeiro numa superioridade em relação ao segundo, muito devido à sua
capacidade de pensar (a racionalidade) e isso, infelizmente, ainda continua até os nossos dias.
Por isso, o presente trabalho analisou a diversidade de valorizações atribuídas ao
Patrimônio Mundial no Brasil em dois casos específicos e suas estratégias de musealização,
como no Complexo de Conservação da Amazônia Central e no Plano Piloto de Brasília,
problematizando a relação entre patrimônio cultural e natural com vistas a defender a
unificação do conceito de patrimônio, assim como, discutindo as potencialidades de museu e
quais tipologias podem ser identificadas nesses dois patrimônios.
73
Há correspondência entre os critérios da UNESCO a determinadas áreas de conhecimento para identificar a presença de
múltiplas valorizações.
1013
Tabela 1 – Unidades de conservação do complexo
Unidades de conservação do Complexo
74
1) Parque Nacional do Jaú (1980)
Criado por iniciativa do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) a partir de estudos do Instituto de
Pesquisa da Amazônia (Inpa) e administrado pelo Instituto Chico Mendes para Conservação da
Biodiversidade – ICMBio e localizado ao norte do estado, entre os municípios de Novo Airão e
Barcelos. Inicialmente fora inscrito na Lista do Patrimônio Mundial somente o Parque Nacional do Jaú.
Mais tarde, em 2003, as demais áreas foram incorporadas à propriedade atual, classificada como
Complexo de Conservação da Amazônia.
2) Estação Ecológica Anavilhanas (1981) – Parque Nacional de Anavilhanas (2008)
É administrado pelo Instituto Chico Mendes para Conservação da Biodiversidade – ICMBio. Localizado
nos municípios de Manaus e Novo Airão, o parque foi criado com o objetivo de preservar o arquipélago
fluvial de Anavilhas e suas diversas formações florestais, além de estimular a produção de conhecimento
por meio da pesquisa científica e valorizar a conservação do bioma Amazônia com base em ações de
educação ambiental e turismo sustentável.
3) Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamairauá (1996)
É a primeira Reserva de Desenvolvimento Sustentável brasileira, criada por decreto do Governo do
Amazonas. Localizada a seiscentos quilômetros a oeste de Manaus, na região do curso médio do rio
Solimões. A área total de um milhão e duzentos mil hectares passa pelos municípios de Uarini, Fonte
Boa e Maraã e atualmente, funciona sob a gestão do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá
em parceria com o Governo do Estado.
4) Reserva de Desenvolvimento Sustentável Amanã (1998)
Instituída por decreto estadual em 4 de agosto de 1998, é administrada pelo Instituto de
Desenvolvimento Sustentável Mamirauá. Localizada na região do médio curso do rio Solimões, próximo
à confluência com o rio Japurá, a aproximadamente 650 quilômetros a oeste de Manaus e abrange os
municípios de Maraã, Barcelos e Coari.
74
O endereço da sede fica na Rua Ministro João Gonçalves de Souza, Rodovia BR 319, km 1, s/n, Distrito Industrial, CEP
69075-830 — Manaus — AM — Brasil.
75
Informações baseadas no Plano de Manejo do Parque Nacional do Jaú (1998, p. 47-53). As fontes consultadas pelo foram:
Guia Comercial de Manaus (1997) e Amazônia da conquista ao desenvolvimento (1988).
1014
arqueológica76; folclórica77; religiosa ou espiritual; turística78; linguística; artística;
arquitetônica; econômica; geográfica; geológica; paleontológica; biológica e científica ex situ
(PLANO DE MANEJO PNJ, 1998).
Como mencionado acima, apesar de ambos os Patrimônios da Humanidade serem em
categorias distintas, observa-se valorizações em um amplo espectro. No Caso do Plano Piloto
de Brasília, integra-se a sua própria concepção do design geral da cidade comparado à forma
de um pássaro durante o voo, assim como, cada obra de arte e literatura apresenta uma
delimitação com o meio ambiente, como no “poema da curva”:
“Não é o ângulo reto que me atrai.
Nem a linha reta, dura, inflexível,
criada pelo homem.
O que me atrai é a curva livre e
sensual. A curva que encontro nas
montanhas do meu país, no curso sinuoso
dos seus rios, nas nuvens do céu, no corpo
da mulher amada.
De curvas é feito todo o Universo.
O Universo curvo de Einstein.” (O poema da curva, Oscar Niemeyer)
Essa mesma perspectiva é encontrada no Complexo de Conservação da Amazônia,
onde se espera observar somente o meio ambiente como a essência patrimonial e defronta-se
com uma riqueza social, antropológica e mitológica, as quais não podem ser desassociadas do
meio ambiente. Um exemplo bem claro disso são as Reservas de Desenvolvimento
Sustentável Mamairauá e Amanã.
É dentro de uma perspectiva de patrimônio integral, pois acreditamos que apesar de
sua potência de se desdobrar em variadas tipologias, ele é um ente único e, filosoficamente,
indivisível. Temos bastante segurança em afirmar essa visão que, de modo nenhum, quer
restringir a força dessa palavra. Ao contrário, Patrimônio é um conceito, no qual está inserido
76
Informações baseadas no sítio eletrônico do Instituto Mamirauá. Disponível em: http://www.mamiraua.org.br/pt-
br/comunicacao/noticias/2015/2/26/pesquisas-arqueologicas-buscam-identificar-vestigios-da-ocupacao-humana-na-
amazonia/. Acesso em janeiro de 2017.
77
O mito do boto cor de rosa aqui apresentado foi baseado na descrição encontrada através do link: <http://www.lendas-do-
amazonas.noradar.com/a-lenda-do-boto-cor-de-rosa/> Acessado em janeiro de 2017.
78
Parte considerável dos dados aqui mencionados encontra-se disponível no link
http://www.icmbio.gov.br/parnaanavilhanas/guia-do-visitante.html. Acesso em janeiro de 2017.
1015
toda a riqueza de conhecimentos que podem compô-lo harmoniosa e holisticamente. Isto não
é privilegiar um saber em detrimento de outro; mas, sim, buscar incessantemente a
congregação entre todos os saberes no Patrimônio:
O processo de musealização implica (...) investigar que significados têm as
referências que se musealizam, nos distintos âmbitos do conhecimento:
Filosofia, História, Ciência e Arte. Articulam-se aqui os conhecimentos
específicos de um ou mais desses campos, visto que praticamente todo grupo
de referências culturais é submetido aos aportes conjuntos de pelo menos
dois desses âmbitos, ao longo dos processos de patrimonialização e
musealização. Teremos assim, no viés da cultura material, as coleções -
conjuntos articulados de objetos móveis, reconhecidos sob um ou mais
critérios de classificação, emprestados pelos campos que as qualificam:
Paleontologia, Botânica, Zoologia, Ciências Matemáticas, Engenharias,
Artes Contemporâneas, entre tantos outros. No caso da cultura não-material,
a contribuição desses saberes permanece, aliada a conhecimentos advindos
da História, da Sociologia, das Artes Plásticas e Cênicas, da Crítica da Arte
ou da Psicologia da Cultura. Cabe lembrar que tais processos não são novos,
e que integram as metodologias tradicionais de trabalho para a formação e o
trato de coleções. Nova é a percepção de que, na esfera patrimonial, há uma
instância (ou âmbito) de encontro de todos esses saberes - e essa instância,
nós a conhecemos como Museologia. (SCHEINER, 2015, p.12-13).
Ainda que se saiba que nem todo patrimônio é museu, mas que todo museu pelo
processo museológico resignifica seu acervo, tornando-o patrimônio e, consequentemente, se
concebendo como tal. Isto não inviabiliza que tentemos perceber em territórios
patrimonializados, uma potencialidade de ter musealização e de ser museu. Hoje, as tipologias
de museu são múltiplas; seus formatos, inúmeros; sua apropriação, alcance e reinvenção,
infinitos. O Conselho Internacional de Museus – ICOM na Declaração de Quebec (1992)
elaborada após a 16ª Assembleia Geral, entendeu que os museus não teriam quaisquer limites,
senão aqueles impostos pelas próprias pessoas e que podem vir a ser de ordem política,
socioeconômica, institucional ou cultural.79 O Conselho também propôs uma sistematização
mais clara para as diversas manifestações museais existentes no tempo e no espaço,
organizando-as em duas grandes categorias contendo subtipos cada uma (vide TABELA 2).
79
Disponível em: <http://icom.museum/the-governance/general-assembly/resolutions-adopted-by-icoms-general-assemblies-
1946-to-date/quebec-city-1992/> Acessado em janeiro de 2017.
1016
Tabela 2. Tipologias de museu (ICOM, 1992)
1. Museu tradicional 2. Museus de território
Museu tradicional ortodoxo (acadêmico) Museus comunitários e ecomuseus
Museu tradicional interativo (exploratório) Parques nacionais e sítios naturais musealizados
Museu tradicional com coleções vivas Cidades monumentos
- Museus virtuais
80
Modificado.
1017
Museum bus Estrutura criada em um carro, com mobilidade. Presencial
Para-museus Parques temáticos e zoológicos. Estruturas Presencial
possíveis de serem museus.
Consoante ao último exemplo citado, temos garantida a certeza de que não existem
limites no campo dos museus e que ele se constitui um celeiro fértil de atuação para os
museólogos. No caso do Complexo de Conservação da Amazônia Central, vimos quatro áreas
protegidas compondo o seu conjunto: o Parque Nacional do Jaú, o Parque Nacional de
Anavilhanas, a Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamairauá e a Reserva de
Desenvolvimento Sustentável Amanã. Conforme os pressupostos do ICOM (2001), essas
áreas de sítios e parques naturais são museus.
Para Oliveira (2007) são museus ao ar livre ou museus in situ. E mediante ao que fora
estabelecido pelo ICOM (1992) o Complexo é, todo ele, um museu de território; embora, no
caso do Complexo possamos reconhecer duas subcategorias, sendo a primeira delas a dos
‘parques nacionais ou sítios naturais musealizados’. Nos seus representantes, Parque Nacional
do Jaú e de Anavilhanas, é possível observar a musealização de um território cuja ênfase está
nas relações entre os diversos componentes dos ecossistemas (inclusive quando há presença
humana). Entre suas características figuram a valorização de processos naturais e culturais
somada às consequências desses processos e produtos fabricados; o tempo natural ou
biológico e podem ou não abrigar expografias com espécimes e objetos (no sentido clássico
da palavra).
Todavia, no interior da tipologia de ‘museu de território’, as duas Reservas de
Desenvolvimento Sustentável do Complexo (Mamairauá e Amanã) atendem perfeitamente ao
‘conceito ecomuseu81’ e nele podem ser definidas. Basta lembrarmos das ‘valorizações
econômica e artística’ presentes para perceber a forte relação que aquelas populações
tradicionais têm com o desenvolvimento local ao utilizarem dos recursos naturais de seu meio
pela ótica da sustentabilidade. Dentro da tipologia de ‘museus comunitários ou ecomuseus’
81
O ecomuseu foi considerado na época de sua criação o nec plus ultra da museologia moderna (Varine, 1970, p.62).
Nec plus ultra é uma locução latina que expressa a ideia de um limite que não pode ser ultrapassado. Ex.: aquele vinho
era um nec plus ultra. Do latim, nec (não), plus (mais) e ultra ('além').
1018
(ICOM, 1992) haverá a musealização de um território com ênfase dada para as relações
culturais e sociais ser humano/território, apresentando como características: a valorização de
processos naturais e culturais e não dos objetos enquanto unicamente produtos da cultura; o
tempo social, ou seja, referem-se a populações tradicionais presentes no mundo
contemporâneo e, pode ou não conter expografias baseadas em objetos (sentido clássico do
termo)82.
A ideia de ecomuseu se originou na Europa no começo dos anos 1970 como forma de
responder as novas necessidades culturais da sociedade através de uma museologia
comunitária adaptada ao desenvolvimento sustentável. Seu idealizador foi o museólogo
Hugue de Varine, o qual empreendeu um esforço reflexivo na companhia de Georges Henri
Rivière, tendo este último redigido a seguinte definição:
O ecomuseu, [...] sobre um território, exprime as relações entre o homem e a
natureza através do tempo e através do espaço desse território; ele se compõe
de bens, de interesses científicos e culturais reconhecidos, representativos do
patrimônio da comunidade que serve: bens imóveis não construídos, espaços
naturais selvagens, espaços naturais humanizados; bens imóveis construídos;
bens móveis; e bens integrados. Ele compreende um centro de gestão, onde
estão localizadas as suas estruturas principais: recepção, centros de pesquisa,
conservação, exposição, ação cultural, administração, abrangendo ainda os
seus laboratórios de campo, outros órgãos de conservação, salas de reunião,
um ateliê sociocultural, moradias, etc., percursos e estações para a
observação do território que ele compreende, diferentes elementos
arquitetônicos, arqueológicos, geológicos, etc., assinalados e explicados.
(VARINE; RIVIÈRE, 1978 apud DESVALLEÉS, MAIRESSE, 2013, P.66).
82
O que é museu? Definições e tipologias. Disponível em: <http://www.unifal-
mg.edu.br/museumpunifal/sites/default/files/museumpunifal/eventos/VI-semana-nacional-de-museus/Curso-
introducao-museus/AULA%2001%20-
%20O%20QUE%20E%20MUSEU%20E%20TIPOLOGIA%20DE%20MUSEUS.pdf> Acessado em janeiro de 2017.
1019
fazer com que a comunidade apreenda, analise, critique e domine de maneira livre e
responsável os problemas que se apresentam a ela em todos os domínios da vida. Ele utiliza
essencialmente a ‘linguagem do objeto’: do quadro real da vida cotidiana, das situações
concretas e assim que criado correspondeu, acima de tudo, como um fator almejado de
mudança83.
Uma vez que o Complexo pode ser visto como museu, ele obrigatoriamente convive
com os processos de musealização: a seleção (coleta), interpretação (pesquisa), documentação
(registro, classificação, catalogação e indexação), conservação (preventiva, curativa e
restauração), preservação (física e informacional) e comunicação (exposição, educação
patrimonial ou ambiental, publicações etc.).
Para existirem, por exemplo, Parques Nacionais (PARNAs) e Reservas de
Desenvolvimento Sustentável (RDSs), estes sofrem exaustivo trabalho de inventariado,
pesquisa, exploração científica, desenhos cartográficos, documentação fotográfica,
legislaturas... o que já se perfaria numa primeira musealização. E, não só por isso, pode-se
dizer que o Complexo como um todo seja musealizado, pois além de ser institucionalizado,
também apresenta instrumentos que o documentam para fins de preservação e conservação,
como os Planos de Manejo (no caso dos parques nacionais) e os Planos de Gestão (no caso
das reservas de desenvolvimento sustentável). Na maior parte desse patrimônio se opera a
conservação in situ, com desafios84 que lhe muito próprios; mas, além dela, podemos citar que
haja uma efetiva comunicação com o público no Complexo, haja vista a valorização turística
da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamairauá, o Centro de Visitantes localizado no
Parque Nacional do Jaú, a disponibilização de informações (textuais, audiovisuais e
fotográficas) acerca dele nos sites da UNESCO, da Representação da UNESCO no Brasil e no
do Iphan, por exemplo. Quase todas as áreas protegidas do Complexo desenvolvem atividades
de educação patrimonial (ou ambiental) e estão abrigando instituições de pesquisa
relacionadas ao seu universo (conforme mencionamos na ‘valorização científica ex situ’).
84
Ver Ponciano et al., 2011.
1020
O Parque Nacional do Jaú está vinculado ao Projeto de Parques e Reservas do ICMBio
(Projeto Corredores Ecológicos), criado para unir diferentes espaços protegidos e unidades de
conservação da região biogeográfica em um imenso corredor verde. Além da consolidação
dessas unidades, o objetivo é fomentar planos para o desenvolvimento sustentável da região.
O conceito de corredores ecológicos surgiu a partir da biologia da conservação de uma região,
onde corredores naturais ligam fragmentos de florestas, permitindo a integridade biológica e
genética das populações da fauna. O Parque Nacional do Jaú é o centro geográfico do
Corredor Ecológico da Amazônia e o primeiro a ser implantado.
Por conseguinte, a conservação das áreas protegidas é certificada por planos de
proteção implementados pelos vários órgãos responsáveis. Já a investigação científica e
atividades de educação ambiental, segundo a UNESCO, têm sido estimuladas e desenvolvidas
no Complexo e todas as áreas protegidas da propriedade também fazem parte da Reserva da
Biosfera, a qual compreende, com outras áreas, o Mosaico de Áreas Protegidas do Baixo Rio
Negro. Por fim, o conjunto é integrado a um amplo programa de corredor ecológico regional,
no quadro de programas e políticas destinadas a garantir a reunião entre gestão e conservação
desta vasta porção do bioma amazônico.
Direcionando-nos para o caso de Brasília, temos mais uma vez o ICOM (2001)
reafirmando sua condição de museu, quando considera dentro desse conceito os sítios
históricos. Já segundo Oliveira (2007), ela é também um ‘museu ao ar livre’ e, remetendo ao
que preconizou o ICOM (1992), Brasília se encaixa na tipologia de ‘museu de território’, mais
especificamente a de ‘cidade-monumento’. Tal conceituação se orienta na musealização de
um território em que a ‘exposição’ signifique, na verdade, todo o conjunto arquitetônico
construído pelo ser humano. As cidades-monumento evidenciam as relações entre os diversos
componentes do ecossistema, priorizando o aspecto antrópico. As características facilmente
identificáveis ensejam na valorização aos resultados da presença humana sobre o território,
onde predomina o ‘tempo social’ (e o ‘tempo geo-humano’, quando se tratar de sítios
arqueológicos. As cidades-monumento podem ou não conter expografias com espécimes e
1021
objetos (no sentido clássico da palavra). Mas, acima disso, elas podem conter todas as
tipologias de museus. (ICOM, 1992).
No que concerne à sua musealização, antes de qualquer coisa é imprescindível apontar
que Brasília, em sua gênese, foi projetada para ser patrimônio, e porque não para ser um
grande museu a céu aberto?! Mencionamos que pouco antes de sua inauguração nos anos
1960 promulgou-se a Lei Orgânica do Distrito Federal responsável por controlar qualquer
intervenção que se proponha ao Plano Piloto, submetendo-as ao Senado Federal para votação;
além do tombamento pelo Iphan.
Em Brasília, outras incontáveis etapas de musealização podem ser identificadas, afinal
são inúmeros os registros de documentos históricos, fotográficos, audiovisuais, sonoros que se
referem a ela, salvaguardados por instituições de referência como a Câmara dos Deputados, o
Senado Federal, Arquivo Nacional, Biblioteca Nacional etc. etc. e, certamente, eles contam
com uma organização museológica e/ou arquivística e, sua grande maioria é disponível para
consulta pública. Parques nacionais dentro da cidade, tais como o Parque Nacional de
Brasília, possuem plano de manejo, pesquisa, comunicação de seu acervo in situ e ex situ.
Seria interminável detalhar as instituições culturais abrigadas por Brasília, afinal ela é um
“museu de museus” - vide as modernas construções85 (monumentos por si mesmas) que lhe
fazem parte, como o Museu Nacional de Brasília (integrante do Conjunto Cultural da
República); o Museu da Cidade de Brasília86 (que integra o Conjunto Cultural Três Poderes);
o Memorial Juscelino Kubistchek; o Museu Vivo da Memória Candanga e o Memorial dos
Povos Indígenas, por exemplo. Todos eles são detentores de preciosas exposições, eventos e
ações educativas com linguagem adaptada para diversos segmentos de público (inclusive
85
Mais informações disponíveis em: http://www.soubrasilia.com/brasilia/museus-brasilia/. Acesso em janeiro de 2017.
86
“O Museu da Cidade foi projetado por Oscar Niemeyer com o objetivo de preservar os trabalhos relativos à história da
construção de Brasília. É o museu mais antigo da capital, foi inaugurado no dia 21 de abril de 1960 – mesmo dia da
inauguração da cidade e representa um marco histórico, pois a inauguração representou a transferência oficial da Capital do
RJ para Brasília. Possui uma exposição permanente com inscrições históricas também transcritas em Braille. (...) Na
fachada leste [do edifício] existe incrustada uma grande cabeça de Juscelino, de autoria de José Alves Pedroza, e está inscrita
a célebre frase do presidente: deste Planalto Central, desta solidão que em breve se transformará em cérebro das altas
decisões nacionais, lanço os olhos mais uma vez sobre o amanhã do meu país e antevejo esta alvorada, com fé
inquebrantável e uma confiança sem limites no seu grande destino.” [grifo nosso] Extraído de:
http://www.soubrasilia.com/brasilia/museu-da-cidade-de-brasilia/. Acesso em janeiro de 2017.
1022
adaptando os espaços e conteúdos expostos para pessoas com necessidades especiais). Os três
embasamentos teóricos utilizados até aqui para discutir as tipologias de museu, culminaram
na conceituação máxima do museu integral de acordo com a museóloga Teresa Scheiner
(SCHEINER, 2012, p.19).
Pensando aspectos culturais da História da Humanidade, tão caros aos museus, ao
processo de musealização e a Museologia, propomos refletir nas palavras de Carvalho (1991)
quando argumenta a respeito da distinção dos lugares e em como a produção de artifícios, por
sinal cada vez maior, passou a nortear as relações de poder entre os homens. Com respeito a
isso, sabemos que quanto maior a quantidade de artifícios (cultura), tanto mais evidente a
natureza se tornou, pois o ser humano no exercício de modificar os elementos naturais passou
a se perceber como ente destacado da Natureza. Daí as dicotomias entre primitivismo e
civilização, entre o progresso das metrópoles e o ‘atraso’ as áreas rurais.
Atualmente, o campo patrimonial possui muitas adjetivações, pois inúmeras esferas de
conhecimento têm se apropriado dele para valorizar os seus bens. Falando mais propriamente
com respeito a UNESCO e ao Iphan encontramos, dentro do conceito de ‘patrimônio
mundial’ (como vimos), as subcategorias87 ‘patrimônio cultural’, ‘patrimônio natural’ e
‘patrimônio misto’. Scifoni (2008) analisa as duas primeiras subcategorias, respectivamente:
“O conceito de patrimônio cultural e o seu derivado, o patrimônio natural,
pressupõe duas perspectivas de entendimento. Na primeira, [...] o patrimônio
firma-se como expressão de grandiosidade e beleza que, por sua vez advém
do sentido de monumentalidade e ‘pressupõe’ a intocabilidade, ou seja, os
grandes testemunhos da natureza que foram poupados da intervenção
humana. Assim, o patrimônio guarda uma legitimidade dada pelo discurso
técnico-científico. Nesta dimensão, o reconhecimento público [seria] direto e
inquestionável.” (SCIFONI, 2008).
87
Inclui-se também, no âmbito da UNESCO, a subcategoria da paisagem cultural (que no tocante à nossa análise não
convém tratar).
1023
proporção que faz parte da memória social, o patrimônio natural amalgamaria quaisquer
paisagens que fossem os objetos das atividades culturais onde a vida humana se processa.
Desse modo, áreas protegidas e monumentos naturais estariam proporcionalmente passíveis
de regulamentação jurídica para estabelecerem um convívio harmonioso com as populações
que abrigam.
Choay (2001) vem complementar esta reflexão dizendo-nos que “a tripla extensão -
tipológica, cronológica e geográfica - dos bens patrimoniais foi acompanhada pelo
crescimento exponencial de seu público” (CHOAY 2001, p.15). E nós acrescentamos que
esse público não se refere apenas ao turista que emigra (imigra ou migra), mas também às
pessoas que circundam, moram, trabalham e vivem no interior dessas ‘zonas
patrimonializadas’ de conservação do meio ambiente, conforme vimos no caso do Complexo
de Conservação da Amazônia.
No seio do movimento ecológico do século XX, não cabia mais compreender natureza
e cultura de maneira fragmentada, dissociada. Senão enquanto inter-relacionais na construção
da identidade e da reafirmação da memória do povo e foi nesse exato momento que o conceito
de Patrimônio Integral abriu o seu caminho (SCHENEIR, 2004).
Através do cenário acima descrito, no século XXI a natureza passou a ser olhada pela
ótica do desenvolvimento sustentável. Entrou em voga a sustentabilidade não só nas
preocupações de ordem econômica, mas também em outros campos, como no das políticas
públicas, no judiciário, legislativo, administrativo, social, bem como no universo da cultura,
das artes, da arquitetura etc., pois um discurso em defesa da ‘conservação da natureza’
decorria inflamado, alimentado pela consciência de que os recursos naturais fossem ‘bens não
renováveis’. Tal conscientização entrou nos debates da época, e se propagavam pela mídia e
meios de comunicação de massa. Encontros internacionais foram organizados em prol desse
objetivo, como a ECO-92, a Campanha contra o desmatamento da Amazônia e, mais
recentemente, a RIO+2088.
88
Acerca desses eventos e do tema da sustentabilidade.
1024
A partir do conceito de patrimônio integral percebemos que “se a natureza é bem
patrimonial e pode ser herdada, o mesmo pode acontecer com tudo aquilo que ela abarca ou
representa, incluindo o humano e sua cultura - o que vem justificando os jogos de conquista e
pertencimento operados pelas diferentes sociedades, ao longo da história. A relação
fragmentária entre patrimônio natural e patrimônio cultural [costuma desencadear na]
percepção de que o patrimônio pode apresentar-se sob um modo tangível e um modo
intangível. O primeiro institui-se pela separação entre o que se pode conquistar pela herança,
pelo jogo ou pela guerra; o segundo, pela sutileza dos processos imateriais de transmissão
biológica e/ou cultural. Aqui, mais que o bem material, o que importa ao homem é a sua
relação de pertencimento, é o domínio sutil da ideia, da fala, crença, da música e do gesto
sobre a sua própria natureza - seu território emocional, aquilo que o define para si mesmo e
para o mundo.” (SCHEINER, 2004, p.62-63).
O pensamento patrimonial do Ocidente foi como que, ecumenicamente, globalizado;
seus valores, mundializados. Podemos considerar a Convenção relativa à proteção do
patrimônio mundial cultural e natural, adotada em 1972 pela Assembleia Geral da UNESCO
como a pedra fundamental dessa efeméride. O texto da convenção baseava o conceito de
patrimônio cultural universal no de monumento histórico - monumentos, conjuntos de
edifícios, sítios arqueológicos ou conjuntos - que apresente “um valor universal excepcional
do ponto de vista da história da arte ou da ciência”: proclamava-se a universalidade do
sistema ocidental de pensamento e de valores quanto a esse tema.
Esse pensamento tem gerado diversas discussões e instigado cada vez mais qual o
significado de “valor universal”. Outra problemática nos critérios da UNESCO tem sido a
tentativa de acabar com o divórcio imposto historicamente às suas duas categorias (Cultural e
Natural), criando o conceito de ‘patrimônio misto’. Todavia, a operação deste conceito não
tem sido fidedigna ao conceito de ‘patrimônio integral’. Parece que a primeira acepção seja de
ordem mais política, administrativa e, portanto, relacionada a uma gestão de cunho prático;
enquanto a segunda, por problematizar a ‘essência’ da ideia, seja mais teórica e tanto mais
afim de um exercício filosófico. Mas ainda no campo da prática fica a pergunta: continua
1025
valendo apena separar o patrimônio cultural do natural se todo complexo que envolve o Real
carrega o tripé geodiversidade-biodiversidade-cultura? Fica o convite de pensar mais a
respeito.
Conclusão
Em razão das ‘dimensões de valor’ exploradas, o andamento metodológico da
pesquisa desencadeou na elaboração do seguinte gráfico que buscou interpretar os critérios da
UNESCO (2011) tentando perceber as áreas de conhecimento inerentes a cada um deles e
convertê-las ao entendimento das ‘valorizações’ do patrimônio:
1026
Critério (i):
valorização
artística
Critério (x): Critério (ii):
valorização valorização
ecológica, arquitetônica
museológica e
educação
patrimonial
Critério (ix):
Critério (iii):
valorização valorização
ecológica, antropológica
biológica e
paleontoógica
Patrimônio
Integral
Critério (viii): Critério (iv):
valorização valorização
geológica e histórica
geográfica
Gráfico
1. Interpretação dos critérios por valorizações ou áreas de conhecimento. Autoral.
1027
natural e de preservação de bens culturais; isto seja, por haver se mostrado uma feliz
alternativa de casamento entre cultura e natureza no campo patrimonial.
Todavia, há um contraponto: nesse combinar sente-se uma parcialidade, pois o
conceito de Patrimônio pela UNESCO, na prática, ainda não se encontra unificado no instante
em que ele é subdividido nas três categorias já mencionadas. Disto decorre uma discrepância
percentual considerável, como é possível constatar no gráfico a seguir. Nele percebemos que
77,3% dos bens são de orem cultural (correspondendo a mais da metade), enquanto uma
parcela de 19,5% são naturais e apenas 3,07% são de ordem mista. O agravante é que este
último seria aquele - por excelência - que mais coaduna-se com o conceito de Patrimônio
Integral que aqui apresentaremos: justamente ele encontra-se tão irrisoriamente representado,
embora razões de ordem histórico-cronológica89 possam justificar tal discrepância, pois esta
categoria é surgida apenas de 1990 enquanto as demais se enquadram nas décadas de 1940 e
1970 respectivamente.
Nossas conclusões compreendem que o conceito de Patrimônio Integral é uma
proposta de Pensamento (no sentido mais rico que essa palavra pode ter). Este conceito é
intimamente atravessado pelos de Natureza, Cultura e Ecologia (estando neles subentendida a
geo/biodiversidade). Por isso concordamos com Castro e Machado (s/d) quando conceituam
as múltiplas valorizações inerentes a todo patrimônio:
“o patrimônio (...) pode ser entendido de forma integral ou fragmentada. A
primeira contempla conjuntamente os fenômenos culturais e naturais de
forma indivisível, única, e sem pertencer exclusivamente a uma área do
conhecimento. A segunda é capaz de receber adjetivações para especificar a
sua área de importância, permitindo a concepção de um patrimônio natural e
outro cultural, por exemplo. Essas concepções também podem ser cada vez
89
É válido relatarmos que haja uma concentração de patrimônios mundiais nos continentes da Europa (detentora do maior
número de bens inscritos) e da Ásia (mais propriamente na China) e, a África (o maior de todos os continentes em extensão
geográfica e berço da história da humanidade) é aquele que menos possui bens inscritos. É possível que pensemos juntamente
com Choay (2001) se o patrimônio também não serve como meio de segregação entre culturas, cuja demonstração de poder e
dominação perpetua a preconceituosa dicotomia entre primitivos e civilizados, conquistadores e conquistados e um lantente
eurocentrismo em pleno século XXI. Chagas também ajuda-nos a pensar na potência ambígua do campo do patrimônio que,
tanto pode expressar-se positivamente por meio do “poder da memória” quanto coercitivamente através da “memória do
poder” (in Memória e Poder: contribuição para a teoria e prática nos ecomuseus). Disto, resta-nos uma intrigante questão:
porque a grande maioria dos Patrimônios da Humanidade se concentra na Europa e China?
1028
mais específicas acompanhando as áreas do conhecimento, onde o
patrimônio natural contemplaria, entre outros, o patrimônio geológico,
biológico, genético, ambiental, e o patrimônio cultural abarcaria o histórico,
arquitetônico, artístico, arqueológico, entre outros. Esses são exemplos das
múltiplas facetas (desdobramentos) que se atribui ao patrimônio.” (CASTRO
E MACHADO, s/d, p.2)
Dialogando com as contribuições anteriores, vemos como positivo o encaminhamento
que a relação ser humano-natureza (ou cultura-natureza-ecologia) vem desenvolvendo em
nosso tempo, pois parece andar cada vez pra mais perto do que o antropólogo Damata (2000)
define como a razão de ser do humano: “reconhecer-se a si mesmo em todos os desafios que
enfrenta e em todos os instrumentos que fabrica”90. Não ver-se como diferente do meio
natural, mas dentro dele como ser biológico que é; como uma espécie animal composta de
elementos químicos, sujeita às leis da física... O homem, para que admire o patrimônio de seu
entorno e de outros territórios - os próprios Patrimônios da Humanidade! - e seja reverente à
apropriação de todas as culturas, precisa criar a empatia com o seu semelhante. Quando as
relações do patrimônio forem mais em direção do “poder da memória” do que da “memória
do poder”, sem dúvida o mundo há de ser uma casa melhor para se viver e a Vida - esse
Museu de tudo, Museu fenômeno - ganhará, com toda a potência, seu sentido máximo de
patrimônio!
Findamos a tessitura da pesquisa indicando que toda a riqueza de valorizações que
conseguimos identificar e analisar com o auxílio dos referenciais teórico-metodológicos
escolhidos e critérios da UNESCO (2011), se mostrou bem maior do que as valorizações
reconhecidas durante o processo de interpretação dos dados. Pelo escasso tempo que tivemos,
não houve possibilidade de investigar exaustivamente o maior número de dados possíveis,
num exercício de inventário, propriamente dito. Assim, não conseguimos redigir as
valorizações turística, arqueológica, econômica e paleontológica de Brasília, tampouco
acrescentar outras valorizações como a gastronômica, por exemplo.
90
Nossa epígrafe.
1029
Acreditamos que, com um tempo maior para a realização deste inventário e com a
possibilidade de visitar presencialmente os dois espaços, alcançaríamos resultados mais
satisfatórios mais com relação à musealização deles.
Referências bibliográficas
CASTRO, Aline Rocha de Souza Ferreira de; MACHADO, Deusana Maria da Costa.
Múltiplos olhares para um patrimônio: o estudo de caso do Parque Paleontológico de São
José de Itaboraí. 2009. Disponível em:
https://www.researchgate.net/publication/281649892_MULTIPLOS_OLHARES_PARA_UM
_PATRIMONIO_o_estudo_de_caso_do_Parque_Paleontologico_de_Sao_Jose_de_Itaborai.
Acesso em janeiro de 2017.
GRAY, Murray. 2004. Geodiversity: valuing and conserving abiotic nature. Chichester,
Wiley, 434 p.
1030
OLIVEIRA, Ana Maria Soares de. Relação Homem/Natureza no modo de produção
capitalista. Revista Pegada, vol.3, número especial, 2002, São Paulo, 9p. (disponível
http://revista.fct.unesp.br/index.php/pegada/article/view/793/816).
1031
A MUSEALIZAÇÃO COMO PROCESSO DE SACRALIZAÇÃO DOS OBJETOS
Jennifer Monteiro*
Resumo: O autor Zbyněk Stránský em “Museologia – ciência ou apenas trabalho prático?¹ (1980),
disserta sobre a desvantagem da Museologia em relação as exigências científicas de sua época. Um
dos aspectos abordados pelo autor compreende-se como a defasagem de publicações referentes a
reflexão teórica da área. Diante desse quadro, este trabalho tem como objetivo somar conteúdo a área
de forma a produzir indagações sobre o método musealização apresentado por Waldissa Rússio em sua
definição de museu e fato museal, relacionando-o a teoria da Profanação concebida pelo filósofo
italiano GiorgioAgamben. Para Rússio, um dos termos significativos para a área Museal se apresenta
como “Processo de Musealização”, método este que pode ser compreendido como a retirada um objeto
da sua concepção primordial de forma a atribuir-lhe um novo significado com valor de bem cultural.
Ao se compreender a teoria de Agamben, a musealização do objeto torna-se um processo de
sacralização onde se interrompe o seu uso comum e lhe atribuído status. Para o filosofo, profanar
significa interromper a sua aura sagrada da coisa, sendo sagrado tudo aquilo que, real ou
figurativamente, pertence aos Deuses e torna-se aquilo que não deve ser tocado pelo homem. Ao se
profanar um objeto, interrompesse seu status sagrado e restituindo ao uso comum. Conclui-se que, ao
refletir o ponto de vista de Agamben sobre a profanação, tal concepção se faz presente na museologia
diante do método adotado pela área ao transformar um objeto de uso comum em acervo de museu.
Esse processo, que exige sua interdição à todo uso possível, nada mais é que a sacralização de seu
novo status.
Palavras-chave: musealização; sacralização; objeto.
Abstract: The author Zbyněk Stránský in "Museology - science or just practical work?" (1980),
discusses the disadvantage of Museology in relation to the scientific demands of its time. One of the
aspects addressed by the author is understood as the lag of publications referring to the theoretical
reflection of the area. In view of this, this work aims to add content to the area in order to produce
inquiries about the musealization method presented by Waldissa Rússio in its definition of museum
and museum fact, relating it to the theory of Profanation conceived by the Italian philosopher
GiorgioAgamben. For Rússio, one of the significant terms for the Muse area is presented as a
"Musealization Process", a method that can be understood as the withdrawal of an object from its
primordial conception in order to give it a new meaning with a cultural value. By understanding
Agamben's theory, the musealization of the object becomes a process of sacralization where its
common use is interrupted and assigned status. For the philosopher, to desecrate means to interrupt his
sacred aura of the thing, being sacred everything that, real or figuratively, belongs to the Gods and
becomes that which is not to be touched by the man. In profaning an object, interrupt its sacred status
and restore it to common use. It is concluded that, in reflecting Agamben's point of view on
profanation, such a conception is present in museology in the face of the method adopted by the area
in transforming an object of common use into a museum's collection. This process, which requires its
ban on all possible use, is nothing more than the sacralization of its new status.
Key-words: musealization; sacralization; object.
¹ Tradução publicada pela Revista Eletrônica do PPGMus (Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio.) da
UNIRIO.
1032
Como área de conhecimento em ascensão, a Museologia vem galgando passo a passo
sua qualificação como campo capaz de produzir conhecimento. Em 1980, Stránsky, ao
considerar a literatura disponível na área, debruçou-se sobre a teoria e a prática dentro do
fenômeno museu. Após anos de dedicação, o autor chegou à conclusão de que existe uma
infinidade de trabalhos que buscam apresentar descrições de atividades relativas a museus,
porém pouquíssimos trabalhos se preocupam em discutir criticamente a abordagem teórica da
Museologia. Stránsky (1980) argumenta que embora existam outros fatores dificultando o
reconhecimento da área como ciência, a inconsistência de sua base teórica pode ser
configurada como um dos aspectos mais importantes dessa instabilidade.
O estudo de Museologia tem como objetivo a compreensão da importância de
salvaguardar o patrimônio histórico, natural ou cultural para além de instituições estruturadas
e leis governamentais. Como método de ensino, os cursos universitários costumam optar por
um caminho metodológico que perpassa por vias teóricas e práticas. Tal abordagem visa
formar um profissional proficiente em todos os campos museais. Contudo, diante do quadro
de publicações referentes ao campo museológico, é perceptível o déficit referente a produções
de cunho teórico. Grande parte dos autores da área dedicam-se a produção de conhecimentos
e métodos práticos, tal déficit apresentado por Stránsky (1980), reflete na estabilidade da
museologia como campo científico. Sem uma de base teoria satisfatoriamente consolidada, o
campo museal se torna instável e sujeito a constantes críticas negativas referentes a sua
construção acadêmica.
Como um esforço para sanar tal problemática do campo, Waldisa Rússio Camargo
Guarnieri, uma importante teórica brasileira do campo da museologia, dedicou grande parte
da sua carreira acadêmica a definição do objeto de estudo da Museologia. Após anos de
pesquisa a autora chegou à conclusão de que o Fato Museal, “relação profunda entre o
Homem, sujeito que conhece, e Objeto, parte da realidade à qual o homem pertence” define-se
como o objeto de estudo da área (RUSSIO, 1990, p.7).
Para Carvalho, Doutora em Museologia pela Universidade Federal do Estado do Rio
de Janeiro, um dos melhores caminhos para uma total compreensão do Fato Museal de Rússio
1033
perpassa pela construção teórica de outra ciência humana, a Sociológica. Segundo Carvalho, o
Fato Social apresentado por David Émile Dürkheim, representa parte do caminho teórico
optado por Rússio na construção de seu argumento. Fato, por excelência é considerado como
aquilo que acontece, para Dürkheim, o Fato Social refere-se a:
1034
visa transformar o objeto em um documento como uma forma de valorização. Para Desvallées
e Mairesse a musealização é uma “operação destinada a extrair, física e conceitualmente, uma
coisa de seu meio natural ou cultural de origem e a lhe dar um estatuto museal, transformá-lo
em musealium ou museália(...) ou seja, parte do museu. (Desvallées e Mairesse, 2010, p. 48-
50).
Esse processo apresentado por Russio, Desvallées e Mairesse também pode ser
compreendido como um processo de interdição do uso do objeto, tendo em vista que a
musealização atribui ao objeto uma aura sagrada que impossibilita a sua violação,
impossibilitado sua função no mundo das coisas. Essa concepção permite a apresentação da
teoria da profanação do sagrado apresentar por Giorgio Agamben (2007).
A premissa do pensamento atribuído ao sociólogo italiano dedica-se a apresentar o
significado do sagrado assim como os métodos e meios para sua profanação. Segundo o autor,
o significado básico de sagrado representa todas as coisas que, em alguma instância,
pertenciam aos deuses. Sendo assim, um objeto ou coisa que é atribuído o sentido de sagrado,
passa automaticamente a uma esfera superior onde é impossível a violação e comercio
humano. Aplicando a teoria de Agamben ao museu, percebe-se que quando um objeto é
submetido a um processo de musealização, ele torna-se sagrado, visto que lhe é atribuído uma
série de características e impossibilidades automaticamente anexadas a sua existência.
Um objeto sagrado não pode ser levado à esfera mundana sob nenhuma circunstância,
sua integridade física precisa ser mantida e seu valor de comércio é extinto. Desta forma,
pode-se ver a exata compatibilidade das características sagradas com os parâmetros e
finalidades adotadas no processo de musealização, onde o processo se fundamenta na
interdição do uso do acervo com a finalidade de salvaguardar os objetos de museu.
Concluindo assim que, por mais que o Museu se dedique diariamente ao esforço de
garantir seu status de instituição capaz de produzir conhecimento cientifico, seus processos
reafirmam sua definição ancestral, o museu para além de uma instituição, permanece um
templo dedicado a consagração da cultura, arte e ciência.
1035
Referências bibliográficas
CARVALHO, Luciana Menezes de. Waldisa Rússio e Tereza Scheiner - dois caminhos,
um único objetivo: discutir museu e Museologia. Revista Eletrônica do Programa de Pós-
Graduação em Museologia e Patrimônio – PPG-PMUS Unirio | MAST - vol. 4 no 2 – 2011.
GOMES. Carla Renata. O Pensamento de Waldisa Rússio sobre a Museologia. Inf. &
Soc.:Est., João Pessoa, v.25, n.3, p. 21-35, set./dez. 2015
ROSARIO, Cláudia Cerqueira do. O lugar lítico da memória. Morpheus - Revista Eletrôni ca
em Ciências Humanas - Ano 01, número 01, 2002
1036
A PROBLEMÁTICA DOS PROCESSOS DE CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES
COLETIVAS: REFLEXÕES A RESPEITO DAS RELAÇÕES ENTRE OS
PROCESSOS DE CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES COLETIVAS, E A
UTILIZAÇÃO DOS PATRIMÔNIOS CULTURAIS COMO RECURSO DE
MANUTENÇÃO DAS IDENTIDADES.
Resumo: O trabalho a seguir é o início de um projeto de pesquisa que sugere uma reflexão a respeito
dos processos de construções identitárias e da utilização dos processos de patrimonialização como
recurso de afirmação e manutenção destas identidades, abordaremos, portanto, conceitos que
interligam e colaboram na produção destes sistemas, como o dever de memória, e os bens culturais
que permeiam o processo construtivo destas identidades e as relações pouco questionadas entre os
agentes que compõem este cenário.
Palavras-chave: Identidade, patrimônio, memória.
Abstract: This work is a research project that suggests a reflection about the processes of identity
constructions and the use of patrimonialization processes as a resource for affirmation and
maintenance of these identities. Therefore, the work will aproach concepts that interconnect and
collaborate in the production of these systems, as the duty of memory, the cultural goods that permeate
the constructive process of these identities as well as the little questioned relations among the
stakeholders that compose this scenario.
Key-words: Identity, patrimony, memory.
1037
Introdução
Quando as práticas, os valores e os costumes de determinado grupo de indivíduos
passam a ser reconhecidos pelo próprio grupo como um movimento relevante, é possível
que essa tomada de consciência gere nos indivíduos que protagonizam as vivências, a ideia de
uma identidade coletiva.
Ao terem consciência de sua condição os integrantes do grupo, induzidos pelo dever
de memória, certamente necessitaram de recursos que garantam a manutenção dessa
identidade cultural coletiva que surge. Este resumo é o início de um projeto de pesquisa que
sugere uma reflexão a respeito dos processos de construções identitárias e da utilização dos
processos de patrimonialização como recurso de afirmação e manutenção destas identidades,
abordaremos, portanto, conceitos que interligam e colaboram na produção
destes sistemas, como o dever de memória, e os bens culturais que permeiam o processo
construtivo destas identidades.
Tomando como referência os textos de teóricos como Michel Argier, Paulo
Peixoto, e Stuart Hal, que produziram estudos que nos fornecem estrutura para nortear
pesquisas no campo, contribuem nesta ocasião para uma reflexão crítica a respeito da criação
destas identidades na área da museologia que é um campo que lida de forma direta com
abordadas neste trabalho.
1038
Os processos que desencadeiam
nas construções de identidades coletivas, são moldados por valores e costumes de uma cultura
pré-existente e que geralmente são acrescentadas de velhos e novos esquemas dos grupos de
indivíduos que tomando consciência da relevância de sua cultura, passam a reclamar o
reconhecimento dessas identidades. Assim, as identidades coletivas surgem a partir da soma
dos costumes, hábitos, valores e experiências absorvidos como a realidade social
de grupos que compartilham dos mesmos sentimentos relacionados a sistemas específicos,
experimentados em um meio comum, onde se faz possível que um povo ou um grupo
possa ser considerado singular, e assim se diferenciar entre os outros.
As propostas museológicas e as políticas dos bens culturais sugerem a estes grupos a
necessidade da preservação de seus hábitos para evitar o desaparecimento de sua cultura,
assim, a construção e o fortalecimento de identidades coletivas se apoiando no dever de
memória, utilizam como estratégia para a resistência dessa cultura a identidade cultural
coletiva, que por sua vez se apoia nos processos da indústria de bens culturais
para garantir sua manutenção.
A respeito da concepção de identidades culturais coletivas, o texto
Distúrbios identitários em tempos de globalização, de Michel Agier nos ajuda
a compreender a dinâmica desse conceito e então ter condições de relacionar com os demais
conceitos elencados, o autor explica que toda identidade individual ou coletiva é
inacabada, instável e ao relacionar-se com outras identidades distintas modificam os
pertencimentos originais referentes a regiões e etnias, ocasionando a problemática
e a transformação da cultura ( Agier, 2001) Diante disso, reconhecemos rapidamente a
fragilidade das estruturas que alicerçam os processos de patrimonialização que se apoiam nas
performances identitárias.
Para pensarmos a problemática das relações Inter identitárias ou as possibilidades de
construção, entendendo neste caso o termo construção como edificação ou mesmo criação de
algo novo, algo que não existia anteriormente - ainda no texto de Agier temos o exemplo de
sua pesquisa relacionada à fundação do Grupo carnavalesco Ilê Aiyê da Bahia, onde podemos
1039
experimentar de fato um processo de construção identitária e as consequências que
movimentos como estes podem causar na cultura, seria talvez este tipo de problema e
transformação a qual Agier se referia, onde a cultura poderia ser acometida por danos
causados pelos processos de construção de identidades culturais coletivas.
Dever de memória
O modo de vida das sociedades contemporâneas motiva os indivíduos dos
grupos sociais a aderir a prática do registro de seus hábitos e vivências, sentimo-nos por
vezes, obrigados a manter vivas, memórias dos mais diversos aspectos da nossa existência,
essa prática sai do reduto pessoal e individual, se estende ao âmbito familiar e chega na
camada coletiva onde os grupos sociais "organizados", reivindicam seu direito a memória.
Quando chegam às camadas coletivas, os problemas que estas questões envolvem
podem ocasionar transformações importantes e graves em diversos âmbitos das relações
sociais. Importantes escolhas são feitas e como em todos os casos e por mais que seja real o
desejo de manter viva toda a memória que permeia nossa existência, sem nos darmos
conta, por diversas vezes estamos fazendo um importante exercício de curadoria, costurando
assim, a narrativa que contará a história de nossas vidas. Ao acolher equipamentos culturais
como objetos representantes de uma identidade ou cultura, os indivíduos devem estar atentos
se estes equipamentos realmente estão sendo utilizados a favor do grupo representado, e
lembrar que existem os casos em que o patrimônio cultural não estará a serviço das
identidades culturais. (PEIXOTO, 2004)
Processos de patrimonialização
Desde que o conceito da palavra patrimônio se expandiu deixando
de corresponder apenas a um conjunto de bens transmitidos de uma geração a outra, a
expressão passa a ter usos diversos e entre eles designa a noção de "patrimônio
cultural", este conceito permite que qualquer indivíduo que se reconhece pertencente a uma
cultura, se veja representado por determinados bens culturais. O que acontece é que nem
1040
todos os casos em que patrimônios são nomeados ou elegidos com bens culturais de
grupos específicos dentro de uma sociedade, nem todos os indivíduos pertencentes a um
mesmo núcleo cultural se sentirão representados ou nutrirão um sentimento de pertencimento
por esse bem, isso se deve ao fator da possibilidade de que um único indivíduo possua mais
de uma identidade. (HALL,2002)
Quando se trata, então, de relacionar os bens culturais aos processos que se dá durante
a construção das identidades culturais coletivas, esta é uma das problemáticas que traz
consigo a noção do patrimônio cultural. Outra situação de conflito é a forma de produção
destes patrimônios e das identidades, pois quando determinada prática, costume ou até mesmo
bem material é acrescentado de signos, valores e memórias, é possível que isto suscite em
grupos sociais a identificação este ou aquele bem fazendo com que estes grupos se apoiem em
torno do patrimônio, o reconhecendo como patrimônio cultural representante de suas culturas
e identidades coletivas, no entanto o percurso feito tanto pelas identidades coletivas
quanto pelos patrimônios culturais é uma via de mão dupla, pois na mesma medida em que o
patrimônio servirá aos integrantes dos grupos identitários como garantia de reconhecimento e
afirmação de suas identidades no meio social, por outro lado possa também as identidades ser
utilizadas como ferramentas a serviço do surgimento de novos bens culturais. A
terceira possibilidade é à proposta por Paulo Peixoto em seu texto A identidade como recurso
metonímico dos processos de patrimonialização, onde ele diz o seguinte:
"Patrimônio e identidade aparecem frequentemente como termos de uma mesma
equação. Um patrimônio faz prova da existência de uma determinada identidade. Uma
identidade insinua-se e justifica-se na medida em que se revela caucionada por um
patrimônio." (PEIXOTO,2004, p. 183)
A partir dessas considerações compreendemos que mesmo sendo estreita a relação
entre patrimônio e identidade, os processos de patrimonialização nem sempre irão assegurar
que a identidade será representada da forma esperada, tanto como as construções identitárias
algumas vezes também não darão conta de socorrer os patrimônios. Sabendo que o patrimônio
e a identidade apoiam-se um no outro para alcançar seus objetivos como objetos do campo
1041
dos bens culturais que são, observamos que nem todas as práticas que produzem identidades
são abraçadas pelos patrimônios, pois o mesmo geralmente pretende alcançar espaços
distantes dos alvos dos processos identitários.
Sendo assim, o trabalho sugere investigações empíricas sobre as relações entre os
patrimônios culturais e os grupos sociais que são representados por estes
equipamentos na cidade, para testar as referências teóricas utilizadas neste trabalho no campo
museológico da cidade do Recife.
Referências bibliográficas
AGIER, Michell. DISTÚRBIOS IDENTITÁRIOS EM TEMPOS DE
GLOBALIZAÇÃO. Mana [online]. 2001, vol.7, n.2, pp.7-33. ISSN 0104-9313.
1042
COMUNICAR É PRESERVAR: ANALISANDO VIA WEB A MUSEALIZAÇÃO
DA COLEÇÃO PALEONTOLÓGICA DO MUSEU PARAENSE EMÍLIO
GOELDI.
Leonardo De Souza Silva*
Sue Anne Regina Ferreira Da Costa*
*Universidade Federal do Pará
Resumo: Compreender os museus para além do depósito de objetos é crucial para desenvolver o
potencial social e educativo da instituição. A sociedade carece e depende de informações para se
apropriar de forma comprometida do patrimônio que a rodeia. Em torno disso, analisamos o site do
Museu Paraense Emílio Goeldi em busca de informações sobre exposições realizadas pelo museu,
envolvendo os fósseis da Formação Pirabas, haja vista que trás consigo grandes pesquisas e
salvaguarda uma considerável coleção de fósseis do estado. No site não há conteúdos expositivos
sobre tal acervo, nos levando a questionar se há o processo de Musealização no museu, haja vista que
tal procedimento requer a propagação de informações sobre o que está sendo salvaguardado, pois
preservar não envolve apenas proteger fisicamente o objeto, mas produzir e expor conhecimento para
quem pode contribuir incisivamente para a continuidade desse bem: A sociedade. Conclui-se que não
há a disponibilidade de catálogos expositivos envolvendo um considerável patrimônio paleontológico
do estado, nos levando a refletir o papel do museu. Informar o corpo social pode gerar consciências,
inclusive desconstruindo o museu como um mero celeiro de itens desconhecidos.
Palavras-chave91: Patrimônio; Fósseis; Museu; Musealização; Comunicação.
Abstract: Understanding museums beyond the storage of objects is crucial to developing the social
and educational potential of the institution. Society lacks and relies on information to appropriately
compromise the heritage surrounding it. Around this, we analyze the site of the Museu Paraense
Emílio Goeldi in search of information about exhibitions carried out by the museum, involving the
fossils of the Pirabas Formation, since it brings with it great researches and safeguards a considerable
collection of fossils of the state. On the site there is no expository content about such collection,
leading us to question whether there is a process of Musealization in the museum, given that such
procedure requires the propagation of information about what is being safeguarded, since preserving
does not only involve physically protecting the object, but to produce and expose knowledge to those
who can contribute incisively to the continuity of this good: the Society. We conclude that there is no
availability of exhibition catalogs involving a considerable paleontological heritage of the state,
leading us to reflect on the role of the museum. Informing the social body can generate awareness,
including deconstructing the museum as a mere barn of unknown items.
1043
Introdução
Museus são espaços abertos, atualizáveis e sem fins lucrativos, caracterizados por
comportar testemunhos materiais ou imateriais, móveis ou imóveis, produzidos ou não pelo
homem, dentro de ações de musealização institucional, tática de salvaguarda, que se inicia na
obtenção de um objeto, e depois perpassa por processos de pesquisa, conservação,
documentação e comunicação, que unidas irão potencializar um conhecimento, assim como o
valor educativo e social do museu (CASTRO et al, 2011; ISZLAJI & MARANDINO, 2013;
PÁSSARO et al, 2014; SOUZA, 2009).
Uma dessas instituições é o Museu Paraense Emílio Goeldi, que fundado em 1866, e
vinculado ao Ministério de Ciência e Tecnologia (MCT), possui cerca de 4.000 vestígios
fósseis de invertebrados, vertebrados, plantas e microfósseis coletados desde 1896, sendo
aproximadamente 2.500 provenientes da Formação Pirabas, unidade geológica reconhecida
por pesquisadores como o melhor reservatório paleontológico do Cenozóico marinho
brasileiro (OLIVEIRA JUNIOR, 2014; PÁSSARO et al, 2014; SANJAD, 2007; TÁVORA et
al, 2007).
1044
investigações, seja através do engajamento de seus pesquisadores, ou seu processo
comunicativo.
Contudo, para Beltrão (2013), a produção científica ainda não está inserida no
cotidiano de parte da sociedade, ou seja, não está sendo devidamente comunicada, uma vez
que depende da vontade e do interesse dos pesquisadores e meios midiáticos em repassá-la
como uma chave para uma melhor condição de bem-estar social.
É nesse sentido, e considerando que para Morais (2013), o Museu Paraense Emílio
Goeldi, entidade científica mais antiga da Amazônia, trás consigo o fim último de comunicar
o saber científico relacionado a seus acervos, sejam eles da área das ciências humanas ou das
ciências naturais, que é compreensível analisar se o museu tem usufruído de recursos digitais
como o próprio site, para disponibilizar conteúdos sobre seu acervo fossilífero, haja vista que
a internet, segundo Marin (2011), Martins (2016) e Anastacio (et al, 2011), é um meio
cotidiano barato, as vezes até gratuito, de amplo alcance e capacidade comunicacional, que
conecta até mesmo indivíduos geograficamente distantes, em prol de um fim comum, que no
caso desse artigo é o conhecimento.
Materiais e métodos
Resultados
Tendo em mente que por volta de 1970 a divulgação científica tem ampliado seu
potencial com a inclusão de novas tecnologias e meios de comunicação como a internet,
inclusive ganhando a aderência de meios acadêmicos como universidades, centros de pesquisa
e principalmente os museus que têm como fim último informar a sociedade, nossos dados
1045
foram adquiridos por meio do site eletrônico do Museu Paraense Emílio Goeldi, pois o
mesmo surge como meio de combate ao descaso e desconhecimento dado a determinados
temas científicos (CASSETTARI, 2011; CHELINI & LOPES, 2008). De sua página
eletrônica, analisamos a aba referente a exposições realizadas e informadas ao público a partir
de seus catálogos, uma vez que segundo Cavalcante (et al, 2012), as exposições são
indispensáveis para a comunicação de instituições museais.
A partir dessa análise virtual, tivemos como resultados apenas três (3) catálogos sobre
exposições, e nenhum abrangendo fósseis da Formação Pirabas (Tabela 1).
Catálogos expositivos encontrados Abrange os fósseis da Formação Pirabas
Sim Não
Nos catálogos encontrados, foram abordados temas como a arte rupestre do município
de Monte Alegre; a biodiversidade da reserva Gurupi, área de conservação da floresta
amazônica; e o histórico e revitalizações pelo qual passou o Parque Zoobotânico do Museu
Goeldi, dando razão a Castro (et al, 2015), que alerta para a precariedade da divulgação de
conteúdos relacionados as Geociências para um público que segundo Beltrão (2013), tem o
poder de se apoderar do conhecimento, para em seguida trabalhá-lo a seu favor, de maneira
comprometida, gerando então o que chamamos de cidadãos.
1046
salvaguardado, uma vez que preservar não envolve apenas reservar um espaço que proteja
fisicamente o objeto, mas sim, a produção e exposição de conteúdos para quem pode
contribuir incisivamente para a continuidade desse bem: A sociedade.
O próprio museu, com seu caráter institucional, conforme Cury (2005), a partir de seu
grupo profissional, torna-se um espaço de destaque quando formula e repassa um
conhecimento nele presente, capaz de criar uma aproximação e novas informações, ou seja,
novos olhares polissêmicos para o patrimônio (SANTOS & LOUREIRO, 2012).
Conclusão
Sendo assim, conclui-se que no site do Museu Paraense Emílio Goeldi não há a
disponibilidade de catálogos expositivos envolvendo um considerável patrimônio
paleontológico do estado, apesar da instituição possuir pesquisas pioneiras e uma considerável
coleção de fósseis provindos da Formação Pirabas, principal unidade geológica do Pará.
Essa ausência nos faz refletir sobre o papel do museu, sua seletividade de conteúdos
que devem ser ou não repassados, como a informação é trabalhada e os critérios para a
musealização do patrimônio. Salvaguardar envolve além da proteção física, mas o retorno
social do conhecimento, independente do meio em que se é disponibilizado, seja ele físico ou
virtual, informar o corpo social pode gerar consciências, inclusive desconstruindo o museu
como um mero celeiro de itens desconhecidos.
1047
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1050
Coleções e museus
universitários
1051
CRIAÇÃO E MANUTENÇÃO DO CENTRO DE MEMÓRIA DA FARMÁCIA DA
UFMG: UM TRABALHO INTERDISCIPLINAR E EM REDE
1052
Abstract: The main results of an interdisciplinary research project, developed in a network
environment, are presented. They are on the basis of the creation and maintenance experience of the
Center of History of the Pharmacy of UFMG (CEMEFAR/UFMG). The purpose of the
institution is to publicize the history of the Faculty of Pharmacy of UFMG, focusing on teaching,
research development and service rendering, as well as on the development aspects of the area as a
whole in Brazil. To do so, CEMEFAR seeks to value memories; preserves the collection that it holds
(bibliographical, documentary and museological); shows the participation of the pharmaceutical
professional in promoting the health of Brazilians and in the constitution of society in general;
publishes the history of the Faculty of Pharmacy of UFMG. Since its creation in 2011, CEMEFAR
seeks to consolidate itself as an internal and external reference, strengthening identities and the sense
of belonging of the Pharmacy community. It is an institution with strong characteristics of a museum
and, because it is located in the university sphere, is influenced by this medium in its form of
organization, from its constitution to its daily functioning. It is hoped, with this experience report, to
contribute to the discussions regarding the Brazilian university cultural heritage, as well as to
strengthen the debate around the former Permanent Forum of University Museums and the importance
of this type of association that in network promotes the exchange of knowledge and initiatives for the
preservation and dissemination of this field of cultural heritage
1053
Introdução
Da ideia à inauguração
1054
A ideia de se constituir uma coleção que pudesse ser exposta e, de alguma forma,
representar as atividades desenvolvidas pela Faculdade de Farmácia, principalmente na
formação profissional de farmacêuticos, foi fortalecida pela proximidade das comemorações
dos 100 anos de criação do Curso de Farmácia, iniciado em 1911. A Faculdade de
Odontologia e Farmácia, ao lado da Faculdade de Medicina, Faculdade de Engenharia e
Faculdade de Direito, compuseram, posteriormente, os quatro pilares sobre os quais se
constituiu a Universidade Federal de Minas Gerais, atual UFMG, em 1927.
A costumeira seleção de materiais, feita por ocasião de mudanças, foi a oportunidade
vista por profissionais professores e servidores técnico-administrativos de dar início a uma
coleção de objetos representativos da história centenária da instituição, quando a sede da
Faculdade, que funcionava na região central de Belo Horizonte, estava em vias de ser
transferida para o Campus da Pampulha, em 2004. Os objetos, documentos e livros salvos,
muitas vezes das lixeiras, começaram a compor este acervo que, em 2007, foi tratado e
inventariado por uma equipe do Departamento de História da Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas (FAFICH) da UFMG, coordenada pela Profa. Betânia Gonçalves
Figueiredo, que contou com alguns bolsistas de graduação para a tarefa. O Diretor da
Faculdade, à época, Prof. Gerson Antônio Pianetti e sua vice-diretora Professora Jane Maciel
Almeida Baptista, foram os grandes incentivadores da criação do Centro e os principais
coletores dos objetos e documentos raros ou antigos, que ajudariam a contar a história da
instituição por meio de uma exposição museológica, conforme imaginavam. O acervo acabou
sendo constituído com o recolhimento e também com doações feitas posteriormente,
principalmente pela comunidade da Faculdade. Esses objetos compõem, hoje, a exposição de
longa duração do CEMEFAR, inaugurado em 2011, como parte das comemorações do
Centenário da Faculdade.
Mas, o grande diferencial da história da criação do CEMEFAR foi a iniciativa de
submeter à CAPES um projeto de pós-doutorado, que contava com uma equipe
interdisciplinar reunindo pesquisadores da área da História e da Farmácia, que propunha
“Mais do que simplesmente narrar a história de uma instituição que completa seu jubileu, [...]
uma discussão, partindo do rico e singularmente abundante corpus documental que ela nos
oferece, sobre como se deram e o que representaram as transformações do conhecimento
1055
científico do curso de Farmácia da Universidade Federal de Minas Gerais”. Este projeto,
aprovado e implementado em 2012, propiciou ao Centro de Memória condições muito
favoráveis para que se desenvolvesse como uma instituição respaldada pelo conhecimento de
profissionais competentes e dedicados que acabaram por desenvolver também atividades de
extensão universitária e de administração do CEMEFAR/UFMG, até o ano de 2016, quando o
projeto foi concluído. Sólidas bases foram plantadas e o órgão tem seguido seu curso, em
ritmo próprio, fortemente influenciado pelas atividades de ensino, pesquisa e extensão
presentes no referido projeto, convencido de que tem um papel importante a cumprir.
Desde sua inauguração, a Faculdade de Farmácia tem apoiado as atividades do
CEMEFAR, que conta também com o apoio da Rede de Museus e Espaços de Ciências e
Cultura da UFMG, da qual é membro, e de outros órgãos da administração central da UFMG.
A Rede de Museus tem se mostrado um importante ambiente de trocas de experiências e
busca de solução de problemas mais ou menos comuns a todos os espaços.
O CEMEFAR, como outros centros de memória, possui uma estrutura híbrida que
permitiria classificá-lo como um museu, uma biblioteca ou um arquivo, entre outras
denominações, em função dos tipos de acervo que salvaguarda e comunica. O Centro tem
feito a comunicação de seus acervos de forma contínua, pela montagem de exposições
temporárias e de longa dura-ção, de postagens em mídias eletrônicas e de atualizações da
documentação de seu inventário, bem como por ações educativas voltadas a estudantes de
Ensino Médio e Fundamental.
Os relatos, a seguir, são referentes a essas experiências, bem-sucedidas ou fracassadas,
que têm conduzido o trabalho de equipe interdisciplinar, em busca dos objetivos da
instituição.
1056
na publicação de um trabalho em evento e de um artigo em periódico da área da saúde1. Da
segunda fase, de 2013 a 2016, deu-se continuidade à pesquisa e o desenvolvimento de vários
sub-projetos de pesquisa e de extensão voltados, também, para a gestão do órgão. Para tanto,
desenvolveu-se trabalho intenso para aumento da equipe, especialmente de estagiários
bolsistas, que obteve êxito e permitiu a continuidade de projetos já iniciados e abertura de
novas investigações e ações extensionistas. Os resultados foram divulgados em diversos
trabalhos apresentados em congressos (cinco trabalhos completos e 14 resumos), na
reorganização da exposição permanente, na montagem de três exposições temporárias e em
três artigos científicos em fase de redação. A equipe do CEMEFAR passou a contar com mais
cinco bolsistas de pesquisa e extensão, totalizando em média seis bolsistas, das áreas de
Farmácia, Museologia, Biblioteconomia, História, preferencialmente, e outros de áreas
específicas de projetos, como um bolsista de Letras, que atuou em projeto ligado à literatura e
à poesia. Dessa forma, o CEMEFAR/UFMG afirma-se como um órgão que privilegia a
interdisciplinaridade e atua de segundo seus princípios para a geração de conhecimentos e
para a solução de problemas.
O papel desempenhado na formação de pessoal tem grande importância, sendo é um
desafio coletivo e colaborativo. Cada membro da equipe disponibiliza seu conhecimento e
empenho e cada um se responsabiliza pelo todo ao mesmo tempo em que desempenha as
atividades próprias da área de sua formação. Desta maneira, há um aprendizado constante por
meio da troca de conhecimentos específicos e também pelas demandas comuns a todos, como
as questões relativas à gestão pública universitária, âmbito de atuação do CEMEFAR. O
exercício de sistematização do conhecimento nas áreas específicas de cada pessoa da equipe é
exigido para registro de protocolos, na produção de textos para publicação na fanpage ou em
relatórios, eventos e periódicos. Os textos são compartilhados e a versão final é, portanto,
avaliada e aprovada por todos.
As maiores dificuldades, neste setor, podem ser reduzidas basicamente a três aspectos
principais: a grande rotatividade de pessoal, uma vez que todos são estagiários bolsistas de
graduação ou em desenvolvimento de atividades obrigatórias; a falta de recursos para as
1
REZENDE, Irene Nogueira de. Literatura, História e Farmácia: um diálogo possível. História, Ciência e
Saúde: Manguinhos, v.22, n.3, jul./set. 2015. p. 813-828.
1057
demandas e iniciativas do órgão e até para sua manutenção; o reduzido espaço físico
destinado ao Centro, pois se destina tanto à exposição de longa duração como também às
atividades administrativas. Tal fato acaba constrangendo a entrada de muitos visitantes e, por
outro lado, dificulta o trabalho administrativo ou de pesquisa que precisa ser desenvolvido.
Preservação
A preservação do acervo é a principal função do Centro de Memória. Grande parte de
seu acervo é da cultura material, principalmente de ciência e tecnologia. Objetos que foram
utilizados na pesquisa e no ensino da Farmácia compõem a maior parte da exposição de longa
duração, sendo também, por isso, a sua parte de mais visível.
O inventário da exposição permanente está completo, com as fichas de inventário
preenchidas com informações e fotografias do acervo. A catalogação do acervo em reserva
técnica está sendo revisado e seu inventário já se encontra em andamento. Essas atividades
são registradas na forma de protocolos, considerando-se a grande rotatividade da equipe,
composta em sua totalidade por estagiários, a fim de preservar e facilitar a recuperação do
conhecimento produzido nas discussões, na apresentação das soluções para as dificuldades
encontradas, ou até mesmo, para amenizar o treinamento de novos membros da equipe.
O local onde se encontra a exposição de longa duração recebe grande quantidade de
poeira devido a sua localização, exigindo a limpeza constante das prateleiras e dos objetos. O
espaço utilizado como Reserva Técnica não apresenta condições adequadas para o manuseio e
acondicionamento dos objetos, sendo, ainda, insalubre devido à falta de iluminação artificial e
ao espaço muito reduzido. Um novo espaço para a reserva técnica já foi disponibilizado pela
Direção da Faculdade, devendo representar um grande avanço no tratamento do acervo.
Para as ações de conservação preventiva e recuperação do acervo bibliográfico o
Cemefar tem contado com a colaboração de profissionais da Biblioteca da Faculdade, bem
como da equipe do setor de Obras Raras da Biblioteca Universitária, que tem sido de grande
valia.
O acervo de documentos históricos encontra-se em boas condições de conservação por
ter passado por um projeto arquivístico, há cerca de 10 anos, que identificou e acondicionou
1058
adequadamente documentos e imagens adequadamente. O local ainda não é climatizado, mas
mesmo assim, não traz grandes riscos aos documentos.
Atividades de divulgação
Como forma de difundir a história da Faculdade, envolvendo a formação que oferece
em vários níveis, a pesquisa que desenvolve, as ações extensionistas e a participação de seus
membros em instâncias político-administrativas na Universidade e fora dela, o Cemefar atua
em várias frentes. As exposições têm sido muito utilizadas.
A primeira e mais importante – a exposição de longa duração de ciência e tecnologia –
foi montada em espaço desenhado para tal fim, estando próxima à entrada principal do prédio
da Faculdade e ao lado da entrada da Biblioteca, lugares de fluxo de pessoas da comunidade.
Esta configuração espacial tem confirmado o local como um lugar de encontro com o público.
Estão expostos, principalmente, objetos utilizados nas pesquisas e em aulas práticas do Curso
de Farmácia da UFMG. Por meio deste acervo, busca-se contar a história do desenvolvimento
da área e da participação da FAFAR nesse processo. O visitante reconhece suas histórias
pessoais em vários dos objetos expostos, e a comunidade da Farmácia mostra-se interessada
na sua manutenção e melhoria, o que pode ser observado pelo número de doações recebidas.
Foram montadas três exposições temporárias: em 2013, 2015 e 2016, reafirmando o
papel da exposição como principal meio de comunicação do museu com seu público e
corroborando os estudos que mostram a exposição também como um “espaço de construção
de valores” (CURY, 2005, p. 42). A primeira exposição de curta duração realizada teve como
título e tema “A essência da história da Farmácia” e como objetivo principal promover a
aproximação da comunidade da Faculdade de Farmácia com sua história, bem como o
reconhecimento do Centro de Memória, recém-inaugurado, como responsável pela sua
salvaguarda e divulgação. Desejava-se, como desdobramento, que o local fosse reconhecido
como apropriado à realização de ações destinadas ao aprimoramento e ao registro dessa
história e como um lugar de convivência da comunidade da FAFAR. Para tanto, a exposição
apresentou a história da Faculdade com imagens selecionadas em acervo de mais de 3.000
fotografias, divididas em cinco conjuntos temáticos: moradias, ou sedes que abrigaram a
Faculdade (26 imagens), eventos socioinstitucionais (60 imagens), formação acadêmico-
1059
profissional (73 imagens); memória pelos objetos (22 imagens) e memória pelos livros (19
imagens), utilizados para contar a história da instituição e da formação acadêmico-científica
oferecida por ela (BICALHO; PIANETTI; FIGUEIREDO, 2014). A partir desse momento, o
CEMEFAR passou a fazer parte, efetivamente, da história da instituição que representa e que
o mantém.
A segunda exposição, inaugurada em 2015, teve como tema o um dos mais famosos
farmacêuticos formados na UFMG: Carlos Drummond de Andrade, sob o título “Drummond,
alquimia poética” (Figura 1), e teve como objetivo mostrar a fase do poeta, antes de tornar-se
o Drummond conhecido mundialmente. A exposição mostrou imagens inéditas e,
principalmente, documentos inéditos produzidos por Drummond ao longo de sua vida
acadêmica, além de produções artísticas e cartas que mostram de que maneira o curso de
Farmácia fez parte de sua vida pessoal e de escritor. Esta exposição teve grande repercussão,
em nível local e nacional, tendo exigido extensa pesquisa e negociações políticas para sua
realização. Como resultado, acabou tornando o Centro de Memória da Farmácia conhecido,
seja pelo número de visitantes que atraiu, seja pela divulgação jornais, internet e em rádios
que atuam em nível regional e também em nível nacional. Um dos pontos importantes da
exposição foi a solenidade de sua abertura, da qual participou o Prof. Dr. Sérgio Alcides do
Amaral, proferindo palestra, e a Sra. Georgeta Amorim, viúva do amigo e colega de turma de
Drummond Antonio Martins Amorim, que cedeu fotografias, imagens e histórias inéditas
envolvendo o poeta, durante o evento.
Atendendo a demanda do público que não pode comparecer, a exposição teve uma
nova montagem, realizada em formato reduzido, com o título “Drummond: o poeta
farmacêutico”, em 2016, que apresentou principalmente a documentação do aluno, composta
de provas, requerimentos de matrícula e atestados pessoais para matrícula inicial no curso,
além de fotografias e cartas do poeta ao citado colega de turma.
Para exposição do acervo bibliográfico, criou-se, em espaço cedido pela Biblioteca da
FAFAR, em seu interior, que foi denominado “Biblioteca da Memória” e em cujas prateleiras
estão disponíveis, para consulta local, a parte do acervo que já tratado e catalogado.
As formas de comunicação com o público têm sido incentivadas e reforçadas pelo uso
da internet, com a criação de site para o CEMEFAR/UFMG, abrigado no portal eletrônico da
1060
FAFAR, e pela criação de fanpage no Facebook, onde são publicadas postagens periódicas
relacionadas à história e à memória da Faculdade e da área da Farmácia, bem como notícias
sobre o Cemefar, de interesse do público em geral.
Ações educativas
Como parte das atividades voltadas ao público oriundo do Ensino Fundamental e
Médio, o CEMEFAR organizou roteiro de visitas de grupos de estudantes, em parceria com
outros três espaços da Rede de Museus e Espaços de Ciência e Cultura da UFMG, que
coordenou projeto2. Durante as visitas ao CEMEFAR, apresenta-se a história e as atividades
da Faculdade, iniciando-se por vídeo institucional de curta duração (cerca de três minutos),
uma atividade lúdica sob forma de um jogo de tabuleiro, seguidos de exploração do acervo da
exposição de longa duração. Em todas as atividades são explorados temas relacionados à
história da Farmácia e da FAFAR/UFMG, tais como: disciplinas que compõem o curso;
2
Projeto aprovado pelo conselho nacional de desenvolvimento científico e tecnológico/cnpq, sob o título
“Aprimoramento do circuito de divulgação científica da rede de museus e espaços de ciência e cultura da
universidade federal de minas gerais: despertando vocações e incentivando a formação de jovens estudantes”.
1061
possibilidades de atuação do farmacêutico, história e curiosidades relacionadas à área,
farmacêuticos que ficaram famosos, etc. em uma linguagem lúdica e atraente. Os visitantes
participam, ainda, de atividade em que recebem informações sobre fitoterapia e um brinde
composto de um envelope transparente contendo sementes para plantar uma flor utilizada na
produção de medicamento (FIGURA 2), com a ilustração de sua apresentação na natureza e
informações sobre sua composição química, a fim de promover uma contiguidade com os
locais de origens dos visitantes.
A Rede de apoio
Não é possível descrever o trabalho desenvolvido no Cemefar/UFMG sem
mencionar a importância de que o órgão pertença à Rede de Museus e Espaços de Ciência e
Cultura (RMECC) da UFMG, desde sua criação. As trocas promovidas entre os membros são
muito importantes, como o é também o papel da Rede como catalisadora das demandas e
proponente de soluções institucionais envolvendo todos os espaços. Essa associação tem sido
fundamental para a sustentação do projeto político e para a continuidade das atividades de
cada espaço. A Rede de Museus da UFMG tem sido, ainda, porta-voz dos espaços junto à
administração central, buscando novas possibilidades para realização de atividades dos e nos
espaços. A abertura de edital de bolsa de iniciação científica específico para os espaços
membros da Rede de Museus, é um exemplo, permitindo o desenvolvimento de projetos de
pesquisa em nível de graduação que muito contribuem renovar e impor novas dinâmicas de
atuação dos espaços. Outra iniciativa que deverá solucionar um problema comum a todos os
1062
espaços da Rede é a documentação dos acervos em sistema eletrônico de documentação
museológica, a um custo possível, que possibilitará melhores condições de exploração dos
acervos para usos diversos.
Considerações finais
Os êxitos e as dificuldades são muitos e, em nossa avaliação, não muito diferentes da
maioria dos espaços que lidam com patrimônio cultural de diversos tipos. O Centro de
Memória da Farmácia, repetimos, não possui nenhum funcionário próprio, e nessas condições,
é mantida a visitação diária, de 8h às 12h e de 14h às 17h, o que não se verifica em muitos
espaços do país, e que é motivo de muita satisfação. Sua infraestrutura é sustentada pela
Faculdade de Farmácia. Os estagiários e bolsistas são mantidos pela UFMG por meio da
Fundação Universitária Mendes Pimentel-FUMP, da Pró-Reitoria de Pesquisa e da Pró-
Reitoria de Extensão, além de outra bolsa de estágio que tem sido patrocinada pelo Conselho
Regional de Farmácia. As atividades rotineiras e extraordinárias são sustentadas pela
Administração Central da Universidade, com aproximadamente 10 mil reais por ano, através
da Pró-Reitoria de Extensão, via projeto de extensão coordenado pela Rede de Museus.
Acreditamos que a organização em Rede, a exemplo do que ocorre na UFMG,
fortalece os espaços individualmente e abrem perspectivas que seriam impensáveis para
espaços pequenos como é o caso do CEMEFAR/UFMG. Além disso, reafirmamos nossa
convicção de que esses espaços devem priorizar a realização de trabalho interdisciplinar para
que obtenham êxito, com a participação de profissionais com formações de áreas distintas, em
que deve ser considerada a demanda por conhecimentos tecnológicos. Igualmente importante
a aliança entre teoria e prática museológica para enriquecimento mútuo da área e das
instituições.
O trabalho é diário, contínuo e em grupo, considerando-se sempre que o
museu/centro de memória é um sistema aberto que, como tal, influencia e é influenciado pelo
ambiente à sua volta, funcionando de acordo com a complexidade própria desse tipo de
organização. Esperamos que as ações que estão sendo empreendidas visando ao
fortalecimento dos museus universitários, nos moldes do que foi o Fórum Permanente de
Museus Universitários, seja, um sinal de que “novos apaixonados começam a se contagiar e
1063
os resultados prometem”, como expressou sua fundadora por ocasião de sua criação
(RIBEIRO, 2015, p. 98).
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1064
CULTURA MATERIAL, MUSEUS E SOCIEDADE: PASSADO E PRESENTE NA
COLEÇÃO DE ARQUEOLOGIA URBANA DO MUSEU DA UFPA EM BELÉM-
PA
Resumo: o presente artigo pretende abordar alguns pontos a respeito da cultura material,
correspondendo à relação entre objetos e sociedade, assim como sobre coleções e museus visando sua
relevância social. O foco principal é o estudo que tem sido desenvolvido sobre o Museu da
Universidade Federal do Pará- MUFPA e uma coleção de arqueologia urbana que se encontra sobre a
guarda desta instituição. Deste modo, o trabalho busca trazer contribuições acerca da importância do
tema dos museus universitários e suas coleções.
Abstract: the present paper intends to address some points regarding material culture, corresponding
to the relation between objects and society, as well as about collections and museums and aiming at
their social relevance. The main focus is the study that has been developed on the Federal University
of Pará Museum - MUFPA and a collection of urban archeology that is on the guard of this institution.
That way, the work seeks to bring contributions about the importance of the theme of university
museums and their collections.
1065
Introdução
Podemos começar este trabalho fazendo a seguinte pergunta: o que são os objetos
materiais em nossas vidas? Talvez o significado deles para nós esteja muito além do seu
sentido concreto, mas de certa forma, eles nos remetem as nossas memórias e lembranças de
momentos que vivemos no passado. Estes objetos podem constituir os segmentos mais
profundos de nossas memórias, desde os acontecimentos mais felizes a aqueles, que por
vezes, queremos esquecer. Uma peça de roupa, uma fotografia de família, um par de sapatos,
uma carta ou até velhos chinelos podem ser objetos significativos para nós, pois atribuímos a
eles algum valor, seja material, funcional, monetário ou mesmo um valor agregado aos
sentimentos, emoções, lugares e coisas que nos fazem lembrar pessoas amadas.
Esses objetos são materiais, físicos e efêmeros como nós. A memória é o que resta
quando a materialidade deixa de existir. Não existe máquina do tempo, porém é possível
“viajar” para o passado através desses objetos que nos tocam pela afetividade e ao mesmo
tempo nos formam no presente enquanto seres sociais. Diante disso, chama-se a atenção para
a importância da cultura material na vida das sociedades, assim como para a constituição das
coleções e do papel social dos museus.
1066
Cultura material: os objetos materiais e as pessoas
Existe uma moralidade das “coisas”, dos objetos em seus significados e usos
convencionais. Mesmo ferramentas não são tanto instrumentos utilitários
“funcionais” quanto uma espécie de propriedade humana ou cultural comum,
relíquias que constrangem seus usuários ao aprenderem a usá-los. Podemos
mesmo sugerir [...] que esses instrumentos “usam” os seres humanos, que
brinquedos “brincam” com as crianças, e que armas nos estimulam à luta.
[...] Assim, em nossa vida com esses brinquedos, ferramentas, instrumentos
e relíquias, desejando-os, colecionando-os, nós introduzimos em nossas
personalidades todo o conjunto de valores, atitudes e sentimentos – na
verdade a criatividade – daqueles que os inventaram, os usaram, os
conhecem e os desejam e os deram a nós. Ao aprendermos a usar esses
instrumentos nós estamos secretamente aprendendo a nos usar; enquanto
controles, esses instrumentos mediam essa relação, eles objetificam nossas
habilidades (WAGNER, 1981, p.76-77, apud GONÇALVES, 2007, p.26-
27).
1067
A citação acima aponta para a função simbólica dos objetos materiais no que diz
respeito aos processos da vida individual e coletiva dos seres humanos. Segundo José
Reginaldo Santos Gonçalves (2007) a ideia é que sem os objetos não existiríamos, pelo menos
enquanto pessoas socialmente constituídas, além disso, os objetos materiais sejam
considerados nos diferentes contextos sociais, simbólicos e rituais da vida cotidiana de
qualquer sociedade, sejam eles retirados de tal circulação cotidiana e deslocados para os
âmbitos institucionais, como os museus, integrando-os em suas coleções. O interessante é
notar que os objetos não apenas dizem respeito às funções identitárias, revelando de forma
simbólica nossas identidades individuais e sociais, mas também organizando na medida em
que os objetos são “categorias materializadas”, a percepção que temos de nós mesmos
individual e coletivamente.
1068
questões de vida ou morte, abordando como as coisas estão intimamente relacionadas com o
nascimento e a morte e os efeitos que causam nas pessoas. Em todo o seu trabalho Miller nos
deixa a mensagem que as coisas têm “um mana” e são cheias de subjetividades que nos
tocam de diferentes formas.
1069
Diferentemente da visão ocidental, podemos dizer que há sociedades como as
indígenas amazônicas, por exemplo, que possuem um olhar mais aberto sobre a materialidade
dos objetos ao agrupá-los do lado da produção cultural, presente nas ontologias e em suas
visões de mundo, nas quais os objetos são considerados como subjetividades que possuem
uma vida social, e que as esferas dentro das relações humanas podem incluir as plantas, os
animais e também os seres espirituais, convivendo e em constante interação uns com os outros
(SANTOS-GRANERO, 2012).
4
Capítulo I do livro “O Casaco de Marx; roupas, memória e dor” de Peter Stalybrass (versão traduzida e
publicada, 2008).
5
VAN VELTHEM, L. H. Farinha, casas de farinha e objetos familiares em Cruzeiro do Sul (Acre).
Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 50 (2), p.605-631, 2007.
1070
são mais do que utilitários, pois são humanizados na medida em que recebem nomes, são
classificados, possuem laços de parentesco, possuem distinções de gênero e são
hierarquizados. Para Van Velthem tanto os objetos quanto a própria casa de farinha
constituem um conjunto “dotado de valores que ultrapassam os valores de uso” (2007, p.607),
fazendo parte da vida cotidiana das pessoas estabelecendo um vínculo social com as mesmas,
além de exercerem o domínio dos procedimentos que transformam a mandioca em farinha, e
sem a agência deles nada seria feito.
Diante do que foi mencionado até aqui, a grande questão a ser chamada a atenção é
que os objetos, as coisas enquanto fenômenos que vão além do sentido material estão sempre
nos construindo, vão moldando e interagindo com as pessoas em tempos e espaços distintos,
isto é, acompanham o processo de vida coletiva dos seres humanos. Como discorre Miller:
[...] coisas, veja bem, não coisas individuais, mas todo o sistema de coisas,
com sua ordem interna, fazem de nós as pessoas que somos. Elas são
exemplares em sua humildade, sem nunca chamar atenção para o quanto
devemos a elas. Apenas seguem adiante em sua empreitada. Porém, a lição
da cultura material é que, quanto mais deixamos de notá-la, mais poderosa e
determinante ela se mostra. Isso propicia uma teoria da cultura material que
dá aos trecos muito mais significado do que se podia esperar. Acima de tudo,
a cultura vem dos trecos (MILLER, 2005, p.83).
Assim, se a cultura vem dos “trecos”, a importância dos objetos na vida das pessoas
gira entorno dessa invisibilidade das coisas que as constroem, mas que encontram-se no
cenário que constitui a vida humana. A partir disso, podemos pensar nos objetos do passado,
os objetos arqueológicos, por exemplo, artefatos estes que contam e remontam memórias,
marcam fatos e acontecimentos, bem como são registros das próprias pessoas a quem
pertenceram. Sobre isto, iremos focar a seguir nas coleções arqueológicas e sua relevância em
instituições como os museus.
1071
educacional, enquanto instituições culturais têm acompanhado os últimos séculos de história
da civilização ocidental, sendo encarregado de funções e significados diversos ao longo desse
tempo e em diferentes contextos socioculturais. Essa instituição tem traduzido ou
representado uma diversidade de concepções que abrangem a ordem presente no mundo
ocidental, no qual tem ocorrido desde os “gabinetes de curiosidades” às coleções privadas da
burguesia Renascentista, passando pelos “museus de história natural” e pelos “museus
nacionais” do século XIX e início do século XX, até os museus do final do século XX e início
do século XXI (GONÇALVES, 2007; JULIÃO, 2006; SCHWARCZ, 1993).
Uma gama de objetos materiais tem sido deslocada ao longo de sua existência para os
espaços de coleções privadas ou públicas e para os museus, constituindo uma diversidade de
coleções. No que tange as coleções arqueológicas, os objetos provindos de diferentes épocas e
sociedades, pressupõem de forma evidente a sua circulação anterior e posterior em outras
esferas, ou seja, “antes de chegarem à condição de objetos de coleção ou de objetos de museu,
foram objetos de uso cotidiano, foram mercadorias, dádivas ou objetos sagrados”
(GONÇALVES, 2007, p.24). Pois, na realidade conforme sugere Kopytoff (2008), cada
objeto material possui uma “biografia” assim como as pessoas, seja ela cultural, social ou
econômica. Podemos entender então, que:
6
Em especial os etnográficos como o Museu Nacional ou Museu Real (1808), o Museu Paraense Emílio Goeldi
(1866), o Museu Paranaense (1876), e o Museu Paulista (1894) estiveram vinculados aos parâmetros biológicos
de investigação e aos modelos evolucionistas de análise, desempenharam nessa época um papel de hierarquia e
inferioridades das raças. Nas coleções arqueológicas e etnográficas, os objetos coletados eram vistos como
mostras exóticas das sociedades das quais estes pertenciam (SCHWARCZ, 1993).
1072
Esse processo de deslocamento dos objetos materiais do cotidiano para o
espaço de museus e patrimônios pressupõe uma categoria fundamental: o
colecionamento. Na verdade, toda e qualquer coletividade humana dedica-se
a alguma atividade de colecionamento, embora nem todas o façam com os
mesmos propósitos e segundo os mesmos valores presentes nas modernas
sociedades ocidentais. Quem coleciona o quê, onde, segundo quais valores e
com quais objetivos? Basicamente, toda e qualquer “coleção” pressupõe
situações sociais, relações sociais de produção, circulação e consumo de
objetos, assim como diversos sistemas de ideias e valores e sistemas de
classificação que as norteiam [...] (GONÇALVES, 2007, p.24).
Dessa forma, pensar que cada objeto possui uma trajetória, uma vida social antes de
chegar às coleções de museus, sendo estes reclassificados e resignificados, inclui pensar
também os objetos arqueológicos, enquanto vestígios que foram deixados para trás pelas
sociedades passadas, no qual marcam suas histórias e seus traços constituidores. Pois, o
estudo do conjunto de objetos vistos como evidências das antigas sociedades, em meio à
paisagem, e os sítios arqueológicos, “possibilita compreender como eles viviam, que tipo de
alimentos preferiam e as formas que sepultavam os mortos, entre muitas outras atividades”
(PARELLADA, 2009, p. 5). Podemos pensar mais além nas ideias biográficas dos objetos, os
objetos não contam apenas histórias ou remetem memórias, eles possuem também suas
próprias histórias.
Diante disso, pensar nos estudos de cultura material e nas coleções, é perceber que
estudar os objetos e museus implica:
[...] também estudar essa relação dos homens com os artefatos, que, no
passado está muito ligada ao fenômeno do colecionismo, mas que nos dias
da contemporaneidade, tem os museus como espaço privilegiado desta
relação. Sem o entendimento que o colecionismo representa uma etapa no
desenvolvimento da relação homens-artefatos, ficaria vedada a possibilidade
de observação do sentido amplo que implica a visualização de uma obra,
notada a partir do viés de valorização do que a observação direta desta tem a
oferecer no concernente à apreensão de suas características e sequente
atribuição de seu valor de época (SILVA, 2008, p.37-38).
1073
A partir dessa breve abordagem, é necessário salientar que o entendimento sobre
museus e coleções na realidade é bastante amplo, considerando seu próprio histórico, bem
como as políticas patrimoniais que giram entorno deste assunto. Mas o enfoque principal aqui
é atentar para a importância deste tema, para as sociedades do passado assim como as
sociedades do presente, visto que o museu enquanto lugar de memória, de guarda,
preservação, conservação, pesquisa e comunicação, atua no pensar das representações dos
objetos que compõe suas coleções e como estes irão passar o conhecimento para o público
seja através de seus acervos, seja nas reflexões por meio das exposições e ações educativas.
1074
Os museus universitários, propriamente ditos, têm características específicas que faz
com que atravessem transversalmente a tipologia museológica. É essa especificidade que
provém da integração dos museus nas universidades e da participação ativa daqueles nas
atividades culturais (incluindo as científicas). Para além das outras missões atribuídas a um
museu universitário este deverá constituir uma “janela” através da qual, a Universidade se
abre à comunidade onde se insere (GIL, 2005).
1075
Emanuela Sousa Ribeiro (2013) analisa a gestão dos museus e acervos universitários, situados
na interface entre a gestão das instituições de ensino superior públicas, o campo
científico/acadêmico apontando para a complexa tarefa da gestão de museus, no qual acentua
criticamente os problemas relacionados à falta de atenção dada à importância dos museus
universitários no contexto da pesquisa, ensino e extensão.
No caso deste trabalho, dentro do que já foi referido sobre a cultura material e a
importância dos objetos na vida das sociedades, o foco principal é a pesquisa sobre uma
coleção arqueológica em um museu universitário, no qual a mesma se encontra
salvaguardada, o Museu da Universidade Federal do Pará- MUFPA.
1076
Conforme mencionado na introdução deste trabalho, o projeto de pesquisa “Arqueologia
Urbana: uma relação do passado e do presente no acervo arqueológico do Museu da UFPA”
partiu do estudo dos objetos arqueológicos encontrados no centro urbano da cidade de Belém,
no Museu da Universidade Federal do Pará- MUFPA, sendo que o mesmo não se encontra
situado no campus da Universidade e sim no bairro de Nazaré, entre as Avenidas Governador
José Malcher e Generalíssimo Deodoro. De início a pesquisa tomou como foco a coleção de
arqueologia urbana, mas com o desenvolvimento da mesma o Museu passou a ganhar mais
atenção como veremos mais adiante.
1077
O Museu da UFPA possui um acervo constituído por diversas tipologias como: o
acervo de artes visuais, formado por pinturas, desenhos, cartuns, fotografias, esculturas dos
séculos IX, XX e XXI, gravuras, adquiridos por meio de doações e permutas; o acervo
bibliográfico ou documental, formado pela Coleção Vicente Salles, com ênfase para cultura
popular, dança, teatro e presença do negro no Pará, e pela Coleção Marx Martins com seus
textos e diários ilustrados; e o acervo fotográfico. No acervo de artes visuais está
salvaguardada a coleção de Arqueologia Urbana.
No campo da Arqueologia urbana, sítios arqueológicos urbanos nas cidades têm sido
cada vez mais recorrentes, no qual estes são descobertos em decorrência de obras e
intervenções realizadas para construções de empreendimentos, como por exemplo, em obras
de metrôs, mercados, praças, prédios históricos, entre outros. Durante a execução destas,
vestígios arqueológicos são encontrados no subsolo, e estes por sua vez são registros do nosso
passado, pois fazem parte da história da formação urbana e marcam as mudanças ocorridas
em um território (TELLER & WARNOTTE, 2003; COSTA, 2014).
7
Geralmente se referem a espaços situados dentro de institutos da Universidade dedicados a alguma coleção
específica. Em sua maioria são atribuídos como museus, porém muitas vezes não funcionam e não são geridos
como tais.
1078
No caso da coleção de Arqueologia Urbana, sua coleta ocorreu durante as reformas do
Museu (2003-2006), no casarão e no jardim da instituição. Nesta pesquisa, o estudo se
concentrou no material encontrado no jardim do MUFPA, onde houve “escavações8” nessa
área, realizadas pelos operários responsáveis pela obra, na qual foram encontrados de forma
não intencional, diversas peças fragmentadas e inteiras de objetos arqueológicos como louças
decoradas (faianças, faianças finas e semi porcelanas), cerâmicas (vasilhas e jarros), vidros
(garrafas, e recipientes), metais (moedas), materiais de construção (fragmentos de piso,
azulejos), entre outros. De acordo com a diretora do museu, a professora Jussara Derenji, o
primeiro achado no jardim foi uma moeda antiga encontrada por um operário que trabalhava
no local da obra, e este pequeno objeto evocou o interesse e curiosidade em “escavar” e
“coletar” os outros vestígios materiais encontrados no jardim, formando então a coleção
(comunicação pessoal).
8
O termo refere-se a pequenos buracos “escavados” aleatoriamente no local, e não propriamente escavado como
em um trabalho de campo arqueológico.
1079
coleção e como este pode contribuir para o conhecimento sobre o passado trazendo
perspectivas para o Patrimônio Cultural amazônida em um contexto urbano contemporâneo.
1080
concluída, mas poderá ser relevante não só para o campo acadêmico, como também para a
sociedade e a preservação do patrimônio cultural da cidade.
Considerações Finais
Este artigo pretendeu refletir a respeito da Cultura material, dos objetos e das coleções
nos museus. Certamente este assunto é bastante amplo, mas através do estudo específico com
o Museu da UFPA e a coleção de arqueologia urbana podemos pensar em diferentes questões
relacionadas à temática. Diante disso, retornando a pergunta realizada na introdução deste
trabalho sobre o que são os objetos em nossas vidas, podemos partir para outras como: o que
eles querem de nós? O que eles nos evocam? Por que os guardamos e colecionamos? Na
realidade, não há respostas gerais para tais perguntas, mas algo certo em se dizer, baseado nas
acepções de Daniel Miller (2005), é que os objetos realmente não nos representam e sim nos
constituem enquanto seres sociais, e que essa relação não está separada, opondo sujeitos e
objetos, mas sim em constante dinamismo e interação. Contudo, a partir dos estudos da
cultura material, da coleção de Arqueologia e da importância do Museu da UFPA é possível
traçar um olhar para além da materialidade, pensando e refletindo em sua significância não só
para a memória e história da cidade ou para o museu/palacete, mas também para proporcionar
o conhecimento e a divulgação social, bem como servir para outras pesquisas que possam
surgir futuramente.
Referências bibliográficas
1081
COSTA, Diogo M. O Urbano e a Arqueologia: uma fronteira transdiciplinar. Vestígios-
Revista Latino-Americana de Arqueologia Histórica. Volume 8, número 2, julho-dezembro,
2014, p.45- 71.
1082
SILVA, A. S. N. F. da. Musealização da Arqueologia: diagnóstico do Patrimônio
Arqueológico em Museus Potiguares. Dissertação de Mestrado- Universidade de São Paulo,
Museu de Arqueologia e Etnologia, programa de pós-graduação em Arqueologia, São Paulo,
2008, 178 p.
SOUZA, P. Palacete Augusto Montenegro: a casa dos homens de ontem, para os homens
de hoje e de amanhã. Artigo publicado em versão HTML no site do Museu da Universidade
Federal do Pará, 2010. Disponível em: https://mufpa.wordpress.com/historico/. Acesso em:
jan. 2016.
STALLYBRAS, P. A vida social das coisas: roupas, memórias, dor. In: Stallybrass, P. – O
Cosaco de Marx: roupas, memória e dor. Tradução de Tomaz Tadeu. – 3 Ed. Belo
Horizonte: Autêntica, 2008, cap. 1, p. 7- 50.
1083
ESTUDO DA SISTEMATIZAÇÃO DA DOCUMENTAÇÃO MUSEOLÓGICA À
COLEÇÃO CARMEN SOUSA DO MUSEU DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO
PARÁ (MUFPA)
Resumo: Esta pesquisa teve por objetivo analisar e propor a sistematização da documentação
museológica à coleção da artista plástica Carmen Sousa (1908-1950), salvaguardada pelo Museu da
Universidade Federal do Pará (MUFPA). A coleção é composta dos acervos de arte visuais (pintura,
escultura e desenho) e de comunicação (cartas, diário, fotografias, recorte de jornais e outros). A
justificativa do estudo foi na intenção de expandir o entendimento da investigação da coleção,
interligando as obras artísticas e os documentos, de modo que promova a recuperação das informações
em relação à trajetória da vida e obra da referida artista. Como instrumento metodológico aplicado,
adotou-se a realização de estudos investigativo e exploratório dos objetos e documentos
acondicionados na reserva técnica do museu, alinhando-os com o filtro teórico-prático das ações e
procedimentos da documentação para acervos museológicos. Os resultados alcançados por este
trabalho visaram à criação de uma proposta para a classificação da coleção, a elaboração de fichas de
arrolamento e catalográfica do acervo de artes visuais e documental, no intuito de possibilitar aos
funcionários e pesquisadores interessados, o controle e a consulta da coleção associados à organização
informacional do acervo, ajustando nitidamente ao processo de recuperação e disseminação de
informações contidas nesses artefatos sob a guarda do MUFPA.
1084
Abstract: This research had the objective of analyzing and proposing the systematization of the
museological documentation to the collection of the plastic artist Carmen Sousa (1908-1950),
safeguarded by the Museum of the Federal University of Pará (MUFPA). The collection consists of
visual art collections (painting, sculpture and drawing) and communication (letters, diary,
photographs, newspaper clipping and others). The justification of the study was the intention to
expand the understanding of the investigation of the collection, interconnecting the artistic works and
the documents, to promote the retrieval of the information in relation to the trajectory of the artist's life
and work. As an applied methodological instrument, research and exploratory studies were carried out
on the objects and documents placed in the museum's technical reserve, aligning them with the
theoretical-practical filter of the actions and procedures of the documentation for museum collections.
The results achieved by this work aimed at the creation of a proposal for the classification of the
collection, the preparation of catalog and catalog files for the collection of visual and documentary
arts, in order to enable interested employees and researchers to control and consult the collection
associated to the informational organization of the collection, clearly adjusting to the process of
retrieval and dissemination of information contained in these artifacts under MUFPA custody.
1085
A Trajetória do Estudo da Coleção Carmen Sousa
A base de partida desta pesquisa foi o Edital 04/2015, do Programa Especial de Apoio a
Projetos de Pesquisa – Acervos da Universidade Federal do Pará (UFPA), da Pró-Reitoria de
Pesquisa e Pós-Graduação (PROPESP), quando foi selecionada a proposta do Projeto de
Pesquisa "Coleções e Artistas Plásticos e Visuais do Acervo do Museu da Universidade
Federal do Pará (MUFPA): pesquisa sobre arte e pesquisa em arte", da professora. Dra.
Rosangela Marques de Britto.
Em decorrência do referido edital a pesquisa teve dois planos de trabalho. O primeiro
"Coleção Carmen Sousa: Pesquisa das Coleções e Artistas Plásticos e Visuais do Acervo do
Museu da Universidade Federal do Pará (MUFPA)" desenvolvido pelo discente do Curso de
Licenciatura e Bacharelado em Artes Visuais da Faculdade de Artes Visuais (FAV), Dávison
Cirilo Queiroz Miranda, bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica
(PIBIC/PROPESP), de agosto de 2015 a agosto de 2016. Enquanto, o segundo plano
relacionado a pesquisa foi intitulado “Coleção Carmen Sousa: coleção de artes visuais e
documentos de arquivos", desenvolvido pela discente a época do Curso de Bacharelado em
Museologia da UFPA, Sandra Regina Coelho da Rosa, no PIBIC/PROPESP, agosto de 2016 a
agosto de 2017, como parte do estudo direcionado, também, para a elaboração do Trabalho de
Conclusão de Curso intitulado "Coleção Carmen Sousa do Museu da Universidade Federal do
Pará (MUFPA): uma análise do acervo pelo processo de documentação museológica",
defendido em abril de 2017.
O MUFPA foi fundado em 1982, mas sua implantação foi em 1984, sediado nas
dependências do “Palacete Augusto Montenegro9”, em um bairro nobre da capital paraense.
Em relação às tipologias de museus no âmbito da museologia, o MUFPA classifica-se como
um museu tradicional, em decorrência da ligação com os três elementos: o Edifício (casa-
palacete), que é o ambiente arquitetônico que se representa como um panorama museológico;
9
O prédio é uma construção do início do século XX, precisamente de 1903, conhecido como palacete Augusto
Montenegro. Foi projetado pelo arquiteto italiano Filinto Santoro, para residência do então Governador do estado
do Pará, Augusto Montenegro. Este arquiteto era formado pela Academia de Nápoles e viveu em Belém no
início do século XX. Neste projeto, Santoro buscou informações no estilo arquitetônico renascentista italiano; e
Lugui Bisi foi o mestre de obras e construtor do prédio, tendo a sua mão de obra e grande parte do material
utilizado na obra oriundos da Itália. Fonte: Museu da UFPA. Disponível em:
<https://mufpa.wordpress.com/historico/>. Acesso em: 18 abr. 2017.
1086
a Coleção, que está vinculada aos artefatos pesquisados e adquiridos, salvaguardados pela
instituição; e o Público, os usuários do museu (BRITTO, 2014). Na sua história como museu
tradicional, o MUFPA dedica-se à salvaguarda e a comunicação de seus acervos de artes
visuais.
Esse trabalho tem como objeto de estudo uma Coleção específica do MUFPA: A
Coleção Carmen Sousa, cuja relevância justifica-se pela pesquisa dos objetos/documentos
acondicionados na reserva técnica do MUFPA, na intenção de ampliar o entendimento da
investigação, interligando as obras artísticas e os documentos, de modo que promovam a
recuperação de informações referentes à trajetória de vida e obra da referida artista por meio
da documentação de acervos museológicos em relação aos artefatos/objetos artísticos.
A documentação de acervos museológicos segundo Helena Dodd Ferrez (1994) é o:
[...] conjunto de informações sobre cada um dos seus itens e, por conseguinte, a representação desses
por meio da palavra e da imagem (fotografia). Ao mesmo tempo, é um
sistema de recuperação de informação capaz de transformar as coleções dos
museus de fontes de informações em fontes de pesquisa científica ou em
instrumentos de transmissão de conhecimento (FERREZ, 1994, p. 66, grifo
nosso).
1087
uma proposta de catalogação das peças, com campos de registros definidos para gerar novas
informações e produção de conhecimento, pois, mediante a sua estrutura organizacional, os
museus estão ligados diretamente aos métodos de salvaguarda e ao processo de comunicação
dos bens culturais para com o seu público.
Para ter conhecimento e entendimento dos objetos e documentos em referência à
coleção, fez-se necessário o estudo sobre a trajetória artística de Carmen da Gama de Oliveira
e Sousa, nascida em 24 de abril de 1908, em Portugal, na cidade de Lisboa. Em 1925, na sua
terra natal, fez seus primeiros estudos de desenho com o professor Espírito Santo de Oliveira,
baseados em esculturas greco-romanas clássicas, um exercício típico da escola academicista.
Posteriormente, a artista plástica teve outros mestres ao longo de sua carreira artística e filia-
se de certa maneira à escola acadêmica, mas a sua produção também tem evidente influência
moderna, em especial nas suas pinturas de paisagem, em que expressa a base do movimento
impressionista (BRITTO, 2017).
Em 9 de abril de 1942, a artista plástica se naturalizou brasileira, tornando-se assim
representante oficial do Estado do Pará nos grandes eventos promovidos no cenário artístico
nacional na década de 40 do século XX, com participação em diversos Salões de Arte
Nacionais e Regionais, nos quais recebeu prêmios e menções honrosas pelo reconhecimento
de seus trabalhos (BRITTO; MIRANDA, 2016).
O “olhar museológico”, segundo Mário Chagas (1996, p.56) versa sobre o campo de
atuação da Museologia, como ciência, que “transforma os mais diferentes espaços/cenários
em museu” (CHAGAS, 1996, p.57), assim como é, ao mesmo lance, um olhar “que sem
eliminar definitivamente a função primeira dos objetos/bens culturais, acrescenta-lhes novas
funções, transformando-os em representações, em documentos ou suportes de informação”
(CHAGAS, 1996, p.57). Nestas veredas abertas pelo campo da Museologia que a metodologia
adotada nesta pesquisa consistiu em lançar esse filtro de conhecimento, como um olhar
museológico sob a Coleção Carmen Sousa.
Nesta perspectiva de análise no âmbito da Museologia, em especial da Documentação
Museológica voltada para acervos, no intuito de compreender a Coleção Carmen Sousa em
dois arranjos das peças, sendo estes o acervo de artes visuais e o acervo de comunicação. A
ênfase da pesquisa pauta-se nos estudos destes artefatos, ou seja, as obras (pinturas, esculturas
1088
e desenhos) e nos documentos da artista (fotografias, recortes de jornais, cartas, convites,
agendas, diário, carteiras identificação e outros). A partir deles, e ao encontro do filtro do
olhar museológico lançado sobre a Coleção, foi aprofundada a investigação no âmbito teórico
da Museologia, conforme a necessidade demandada no objeto de estudo, sendo também
acionadas outras áreas do conhecimento, como, por exemplo, as teorias da Arquivologia,
Biblioteconomia e da Ciência da Informação, a fim de obter respostas para discussão sobre o
conjunto de acervos e posterior sistematização de informações das etapas da documentação
museológica.
As Discussões e os Resultados
Segundo Ulpiano Meneses (1998), a transformação do artefato em documento é
possível pelas ações da musealização, constituída e compreendida em diversos processos para
assumir a função documental. Ampliando o entendimento, Waldisa Rússio (1990) assegura
que o ato de musealizar pondera a informação trazida pelos objetos em termos de
“documentalidade, testemunhalidade e fidelidade” (RÚSSIO, 1990, p. 8). Esses
procedimentos são mais bem interpretados por Marília Cury (2005), sobre os caminhos
percorridos pelos objetos almejando a musealização. Esses caminhos iniciam-se na aquisição,
depois passam pelos processos de pesquisa, conservação e documentação e finalizando com a
comunicação, como mostra a representação gráfica do processo de musealização dos objetos
no Diagrama 1.
1089
tratamento do objeto em meio às ações específicas que integram o processo de musealização.
No caso deste trabalho atenta-se para a documentação como forma de sistematizar a
informação sobre objeto a partir do processo investigativo de sua materialidade patrimonial.
Maria Inez Cândido (2006), afirma que o papel dos museus é criar métodos e
mecanismos que permitam o levantamento e o acesso às informações das quais
objetos/documentos são suportes, estabelecendo a intermediação institucionalizada entre o
indivíduo e o acervo preservado. Diante dessa afirmação, podemos perceber a necessidade da
documentação museológica como meio de recuperar as informações intrínsecas e extrínsecas
ao objeto museológico (MENSCH, 1987), como ação de suma importância para potencializar
a mediação/comunicação entre a Coleção e o público. Segundo a explicação de Cândido
(2006), sobre as informações acerca dos objetos:
[...] As informações intrínsecas são deduzidas do próprio objeto, a partir da descrição e análise das
suas propriedades físicas (discurso do objeto); as extrínsecas, denominadas
de informações de natureza documental e contextual, são aquelas obtidas de
outras fontes que não o objeto (discurso sobre o objeto). Essas últimas nos
permitem conhecer a conjuntura na qual o objeto existiu, funcionou e
adquiriu significado e, geralmente, são fornecidas durante a sua entrada no
museu e/ou por meio de fontes arquivísticas e bibliográficas (CÂNDIDO,
2006, p. 33, grifo nosso).
1090
recuperação da informação contida no acervo, gerando novos conhecimentos para as próprias
ações desenvolvidas na instituição, tais como curadoria, pesquisa científica, ações culturais e
educativas, publicações diversas, entre outras (PADILHA, 2014, p. 35).
Na visão de Heloisa Barbuy (2008), o objetivo da documentação museológica consiste
em:
[...] constituir uma base ampla de informações, que alimente pesquisas e ações de curadoria, tanto da
própria instituição como externas, e se alimente, por sua vez, das pesquisas
realizadas sobre o acervo institucional ou em torno dele (BARBUY, 2008, p.
37).
1091
menos vasto, seja esta uma coleção pública ou privada (DESVALLÉES;
MAIRESSE, 2013, p. 33).
Segundo Sônia Gomes Pereira (2008), o desenho não apresenta uma ruptura radical,
permanecendo a existência de traços em comum ao lado das diferenças e influências dos
movimentos modernos no âmbito das artes plásticas na Europa. Nesses termos, a autora
reporta-se aos “conflitos artísticos” (PEREIRA 2008, p.103), assim expressos:
[...] os conflitos artísticos não podem ser reduzidos a uma visão reducionista, que separa rigidamente
acadêmicos de um lado e modernos do outro. Se dentro da Academia
Imperial de Belas Artes fazia-se predominante uma arte oficial, a serviço do
Estado, muitos dos seus artistas refletiram e empregaram muitas das ideias
plásticas dos movimentos, que na Europa eram considerados dissidentes e
seus artistas independentes (PEREIRA, 2008, p.103).
Rosangela Britto (2017), a partir da sua pesquisa voltada à coleção de artes visuais da
artista, apresenta-nos uma análise da obra de Carmen Sousa, incluindo referências artísticas
de sua formação acadêmica e realista, com obras nos gêneros considerados tradicionais, como
o retrato, paisagem, figura humana, pintura histórica e sacra e, ao mesmo tempo, aberta a
alguns ensejos expressivos modernistas. Como exemplo, a pintura da paisagem urbana de
Belém, de 1949 (Figura 2), apresenta uma vigorosa pincelada da artista sobre a tela,
1092
representa outro momento da artista, com algumas influências dos impressionistas de pintura
de paisagens ao ar livre (BRITTO, 2017), que em Belém nesse período teve o Grupo do
Utinga10, formado por artistas como Ruy Meira11, Benedicto Mello, João Pinto, Arthur
Frazão, dentre outros (MEIRA, 2008).
Maria Angélica Meira (2008) no estudo sobre Ruy Meira e o período da arte paraense
entre os anos de 1940 e 1980, enfatiza Carmen Sousa entre outros ligados a uma geração de
artistas que produziam substancialmente na década de 1940. Nas palavras da autora:
Muitos outros artistas, entre os quais João Pinto, Geraldo Correa, Carmen Sousa, Antonieta Santos
Feio, Veiga Santos e Augusto Morbach, já produziam sistematicamente,
constituindo uma geração que se consolidaria na década de 1940, como
participantes e premiados nas várias versões dos Salões Oficiais de Belas
Artes, patrocinados pelo Governo do Estado (MEIRA, 2008, p.36, grifo
nosso).
10
“Grupo do Utinga”, segundo Maria Angélica Meira (2008), o grupo de artistas reunia-se a partir de Ruy
Meira, figura influente no meio artístico em “meados da década de 1940, produzindo inicialmente paisagens
acadêmicas, chega ao ano de 1960 inaugurando a primeira exposição de arte abstrata do Pará” (MEIRA, 2008,
p.89).
11
Ruy Meira manteve amizade com vários artistas na década de 1940, incluindo Carmen Sousa (MEIRA, 2008,
p.72).
1093
dividido em duas categorias: Arte Geral ou Clássica e Arte Moderna (FERNANDES, 2013).
Carmen participou no 1º Salão, com uma pintura e sete esculturas; em 1943 participa da 3º
edição do salão oficial com três esculturas e oito pinturas, das quais paisagens da praia de
Mosqueiro; em 1944 também participa do 4º salão, com duas pinturas e três esculturas, entre
estas os “Três Risos”; em 1947 participa do 8º Salão de Belas Artes, com cinco esculturas. As
Figuras 3 e 4 apresentam, respectivamente, o jornal do acervo documental da artista (Figuras
3), que enfoca a notícia de premiação da escultura Cabeça de Negra Paula, que recebeu
medalha de bronze no Salão Nacional de Belas artes do Rio de Janeiro, em 1949 (Figura 4).
1094
Entre as facetas da Coleção observa-se, respectivamente, o recorte de jornal divulgando
a premiação da artista no salão, o desenho de sua fase de formação em Portugal e a escultura
premiada fundida em bronze.
Uma das ações para mapear os objetos dentro dos museus são os Inventários. Fernanda
Camargo-Moro (1986) define este procedimento:
Para ter uma ideia da dimensão e abrangência da coleção foi realizado um mapeamento
dos objetos e documentos do acervo da Coleção Carmen Sousa a partir dos mecanismos e
ferramentas de controle disponibilizadas pelo museu, tanto na reserva técnica quanto nos
arquivos administrativos.
O primeiro Inventário consultado foi realizado pelo MUFPA em 2011. Com base nas
informações obtidas sobre quantitativo das peças existentes agrupadas de acordo com a
tipologia: 215 (duzentos e quinze) desenhos; 43 (quarenta e três) esculturas; e 33 (trinta e três)
pinturas. Esses quantitativos e qualitativos do acervo estão contidos no referido inventário do
museu.
Outro mecanismo de controle e consulta disponibilizado pelo MUFPA para pesquisa
exploratória e investigativa foi o Catálogo das Obras da Coleção Carmen Sousa, organizado
em 2005. O qual deu ênfase às pinturas, desenhos e as esculturas salvaguardas pela
instituição. Essas informações estão sistematizadas e agrupadas em três cadernos impressos.
Para Nicolas Ladkin (2004), o controle do inventário e catalogação faz parte do sistema
de documentação de um museu, pois essa atividade promove a disseminação das informações
sobre a individualidade dos objetos do acervo, visto que os registros dos dados nessas
ferramentas de consulta permitem a sua utilização como base de investigação, acesso ao
público, exposição, educação, desenvolvimento do acervo, gestão e segurança do acervo.
Entretanto, foi citado antes do processo exploratório e investigativo do
“reconhecimento” das peças da coleção sendo constatado um acervo de documentos
localizados na mapoteca da reserva técnica (carteiras de identificação, recortes de jornais,
1095
cartas, fotografias, cadernos e outros). Essas informações constam em uma listagem simples,
ora digitalizada ora manuscrita, sem data ou assinatura do responsável pelo arrolamento.
Mediante as informações obtidas nos arquivos do MUFPA, tanto no Inventário quanto
nos Catálogos, e, também na listagem não oficial dos documentos pessoais, foi possível
elaborar uma planilha com três campos de registro (número de ordem, termo (nome do objeto)
e quantidade de artefatos), visando quantificar e qualificar os objetos e documentos da
Coleção Carmen Sousa de forma geral, abrangendo o mapeamento de todas as peças que
fazem parte do acervo, conforme representado no Quadro 1.
Nº TERMO/OBJETO QUANTIDADE
01 Desenho 215
02 Escultura 43
03 Pintura 33
04 Documento 881
TOTAL 1.172
Fonte: Catálogo da Coleção Carmen Sousa, (2005); Inventário do MUFPA (2011) e Mapoteca do MUFPA,
(2017).
Nessa etapa da pesquisa ficou claro que existe dois tipos de acervos dentro da coleção,
um de artes visuais e outro de comunicação. Diante disso, para melhor entendimento do
assunto em relação a categorização dos objetos e documentos desenvolveu os estudos acerca
da classificação desse acervo.
A classificação do acervo museológico é o campo pertinente à identificação do objeto,
de acordo com seu vínculo cultural e/ou sua origem e/ou modo de confecção e/ou de como foi
congregado socialmente, além da sua colaboração para a coleção museológica pela qual é
percebido. Portanto, um objeto museológico é capaz de ser classificado de diversas formas, ou
seja, a classificação é uma área que necessita de pesquisa para evitar a subjetividade. Em
outros termos, a classificação deve ser impessoal, mas precisa ser entendida de uma forma
cultural mais extensa, ou seja, resultante de uma compreensão pela qual o papel daquele
objeto se desenvolve no acervo (DOCUMENTAÇÃO..., 2010, p. 74).
1096
Para Helena Ferrez e Maria Helena Bianchini (1987), a classificação ou categorização
de acervo trata especificamente da complexidade do objeto, ou seja, são os fragmentos da
peça em relação às partes e acessórios, visando associá-los no propósito da própria
classificação da peça tanto por semelhanças estruturais quanto pela sua funcionalidade.
No esquema classificatório Thesaurus, elaborado por Ferrez e Bianchini (1987), com
uma estrutura de camadas hierárquicas que se dividem em três níveis básicos de terminologia,
bem como a classificação (gênero), que são as estruturas de referência, que considera o
universo dos objetos coletados; a subclassificação (espécie), que são as subdivisões das
classificações principais, pois os objetos estão reunidos por conjuntos funcionais concisos; e
os termos (nomes de objetos) são expressões usadas para identificar os objetos específicos,
que são as subdivisões da subclassificação.
Assim compreendido, segundo aplicação adaptada ao Plano Geral de Classificação pelo
Thesaurus para Acervos Museológicos, o qual adota um sistema de classificação para os
objetos, que reconhece conceitos — termos, classes e subclasses — do referido manual
(FERREZ; BIANCHINI, 1987, p.60-61), como exemplificado no Quadro 2.
1097
Quadro 2: Modelo de esquema classificatório para acervos museológicos.
O acervo de Artes Visuais corresponde aos objetos criados, geralmente com finalidade estética ou
demonstração de criatividade e que integram as artes gráficas, plásticas e
cinematográficas, enquanto o de Comunicação são os objetos usados pra
transmitir informações aos seres humanos (FERREZ; BIANCHINI, 1987, p.
3; 7-8).
Essa fase classificatória dos objetos e/ou documentos da Coleção Carmen Sousa
proporcionou um entendimento geral sobre o acervo, contribuindo para o avanço da
investigação da sistematização da informação, visto que a primeira etapa da verificação do
acervo, dentro dos parâmetros do MUFPA, utilizou também a classificação definida em seu
inventário de obras de Artes Visuais, acrescentando a identificação dos documentos inseridos
na categoria de comunicação, assim como a sua inserção no referido inventário institucional.
Na etapa anterior mostrou o processo de categorização e inventário dos objetos e
documentos da Coleção Carmen Sousa, os quais contribuíram para análise da sistematização
da informação referente à classe, subclasse e os termos do acervo. Essa definição será de
1098
suma importância para a identificação desses objetos no desenvolvimento da proposta de
arrolamento para referida coleção.
Renata Padilha (2014) apresenta a definição arrolamento:
É o ato por meio do qual se realiza a contagem de todos os objetos que fazem parte do museu, sendo
criada uma lista numerada para controle e identificação geral do acervo
museológico. Refere-se a um primeiro reconhecimento detalhado. Dessa
forma, recomenda-se que o profissional numere provisoriamente a peça com
o número de inventário e que faça isso a lápis ou com etiquetas em material
neutro amarradas por um barbante ou cordão de algodão cru que envolva o
objeto. Além disso, é imprescindível o registro em um livro ou caderno,
especificamente para essa função, do que foi arrolado. Para essa atividade, o
registro do número e do nome do objeto é suficiente para uma identificação
inicial (PADILHA, 2014, p. 41).
1099
A planilha de arrolamento desenvolvida para o controle da Coleção Carmen Sousa foi
do aplicativo Excel12 empregado para realizar uma infinidade de tarefas (cálculos simples e
complexos, criação de lista de dados, elaboração de relatórios e gráficos, etc.). Neste caso,
elaborou-se uma planilha bem simples, com comandos de filtro para localização dos objetos
e/ou documentos dentro da reserva técnica, facilitando assim as atividades de consulta tanto
dos agentes do museu quanto dos pesquisadores e/ou público em geral.
O MUFPA dispõe dessa ferramenta em suas aplicações mais comuns nas rotinas
administrativas, por isso não acarretará investimento financeiro para treinamento dos
profissionais responsáveis pela gestão do acervo.
A etapa anterior enfatizou os caminhos do processo de arrolamento quantitativo
realizados no acervo da Coleção Carmen Sousa, como parte das atividades desta pesquisa, da
qual resultou em uma planilha com dados específicos referentes à identificação dos objetos e
documentos, com objetivo de disponibilizar uma ferramenta de busca/consulta capaz de
facilitar o acesso às fontes de pesquisa. Essas informações também dão suporte à elaboração
da ficha catalográfica proposta para esta Coleção.
Para Heloisa Barbuy (2008), a ficha de catalogação permite organizar o máximo de
informações que o museu dispõe sobre cada objeto. A autora explica que a catalogação vai
muito além da descrição da peça, pois trata as informações de forma consistente a partir da
documentação textual e icnográfica, com descrição total do objeto desde a ornamentação até a
função. Desse modo, promove uma narrativa tanto da relação de continuidade e
interdependência entre as partes quanto da hierarquia simbólica que o objeto possa conter.
A ficha de catalogação pode ser entendida como a codificação das informações mais
relevantes por meio da descrição sistemática dos objetos da coleção, objetivando a
organização desses dados para formalizar um arquivo catalográfico dos objetos e/ou
documentos da Coleção Carmen Sousa. Nesse caso, a utilização de campos que contenham
informações especificamente definidas no intuito de sistematizá-las dentro das normas
estabelecidas para o preenchimento da ficha catalográfica, como mostrado na Figura 5.
12
Excel é o software desenvolvido para empresas. As planilhas são constituídas por células organizadas em
linhas e colunas. É um programa dinâmico, com interface atrativa e muitos recursos para o usuário. A primeira
versão do Excel para o sistema Macintosh foi lançada em 1985 e para o Microsoft Windows em 1987.
Disponível em: <https://www.significados.com.br/excel/>. Acesso em: 3 fev. 2017.
1100
Figura 5: Modelo de Ficha Catalográfica proposta para a Coleção Carmen Sousa.
Considerações Finais
Considerando que a Coleção Carmen Sousa encontra-se acondicionada na reserva
técnica do MUFPA, é importante destacar que apenas o acervo de artes visuais passou por um
tratamento da informação com a realização de inventário, arrolamento e catálogo, enquanto o
acervo de comunicação necessita de tratamento da informação nessa mesma metodologia da
documentação realizada nas obras, por isso a proposta de documentação museológica
1101
contempla os dois acervos, a fim de proporcionar a sistematização da informação sobre a
artista plástica, associando os documentos e os objetos da sua trajetória artística.
Neste sentido, a documentação museológica é primordial, pois orientará na organização
das informações sobre o acervo no museu. Esta ação vai muito além de recuperação de dados,
consiste em uma base referencial para fonte de pesquisa em relação ao contexto social e
cultural da artista plástica Carmen Sousa no cenário artístico paraense no período de 1940 a
1949, ou seja, salvaguardando e disseminando as informações sobre o cenário artístico
naquele contexto e atualizando as informações sobre os novos olhares lançados pela pesquisa
sobre arte brasileira local e nacional produzida nesse período.
Referências Bibliográficas
ASSOCIAÇÃO CULTURAL DE AMIGOS DO MUSEU CASA PORTINARI.
Documentação e Conservação de Acervos Museológicos: diretrizes. São Paulo: Secretaria
de Estado de Cultura de São Paulo, 2010.
BRITTO, Rosangela Marques de. Os usos do espaço urbano das ruas e do patrimônio
cultural musealizado na "esquina" da "José Malcher" com a "Generalíssimo":
itinerários de uma antropóloga com uma rede de interlocutores no Bairro de Nazaré (Belém-
PA). 2014. Tese (Doutorado em Antropologia) - Universidade Federal do Pará, Belém, 2014.
. Coleções e Artistas Plásticos e Visuais do Acervo do Museu da Universidade
Federal do Pará (MUFPA): pesquisa sobre arte e pesquisa em arte. Projeto de Pesquisa.
Programa Especial de Apoio a Projetos de Pesquisa – Acervos da UFPA (PE- Acervos).
Belém: PROPESP/UFPA, 2015.
1102
CATALAGO do Acervo de Pintura, Desenho e Escultura da Coleção Carmen Sousa, Belém:
MUFPA, 2005.
FERREZ, Helena Dodd; BIANCHINI, Maria Helena Santos. Thesaurus para acervos
museológicos. Rio de Janeiro: Ministério da Cultura, 1987.
FERREZ, Helena Dodd. Documentação museológica: teoria para uma boa prática. In:
Cadernos de ensaios, n. 2. Estudos de museologia. Rio de Janeiro: Minc/Iphan, p. 64- 67,
1994.
LADKIN, Nicolas. Gestão do Acervo. In: Como Gerir um Museu: Manual Prático. [s.l.]:
ICOM, p. 17-54, 2004.
MEIRA, Maria Angélica Almeida de. A arte do fazer: o artista Ruy Meira e as artes
plásticas no Pará dos anos 1940 a 1980. 2008. Dissertação (Mestrado em Bens Culturais e
Projetos Sociais.) – Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 2008.
1103
PEREIRA, Sonia Gomes. Arte Brasileira no Século XIX. Belo Horizonte: C/Arte, 2008.
Disponível em: http://www.poiesis.uff.br/PDF/poiesis11/Poiesis_11_artebrasileiraXIX.pdf.>
Acesso em: 12 fev. 2017.
1104
UM OLHAR MUSEOLÓGICO PARA OS MUSEUS UNIVERSITÁRIOS DE
CIÊNCIAS DA UFPA
Abstract: The university museums emerged in Brazil with the creation of the Universities,
predominantly in the 1950’s of the 20th century. In their majority, these locations were formed by
museums that already exist and that were attached to the university space or with the donation of
private collections for the institutions. From the science museums came the science centers. This
happens because the denomination museum remains the old, static and other synonyms. These spaces
show themselves as places that transform their collection and the scientific principles into an
accessible language and easier to comprehend. Seen that, we noticed that the museums and university
science centers inserted at UFPA have this interactive character, acting especially, in the basic
education network. After the investigation, we classified them in: museum of sciences, center of
sciences and university collection. Although there are a considerable number of spaces, there is not so
much knowledge about them on campus. We relate this to the strong idea of Traditional Museum, but
we point out how this picture is changing due to the approximation between Museology and university
museums.
Key-words: University Museums; Science Museums; Science Centers; Museology.
1105
Os museus universitários surgiram, no Brasil, com a criação das Universidades, em sua
maioria nos anos 50 do século XX. Nessa época existiam museus – fomentando ensino e
pesquisa – e escolas de nível superior, mas a aglutinação das escolas em único centro e a
criação de universidades veio como resposta às necessidades da sociedade moderna. Com essa
junção, vários museus foram agregados às instituições, como o caso do Museu Nacional do
Rio de Janeiro. Criado em 1818, como Museu Real, o Museu foi um espaço de grandes
pesquisas e ensino, até que no século XX, com a criação de centros de pesquisas e escolas
superiores, o Museu passou por crises e, em 1946, foi integrado à Universidade Federal do
Rio de Janeiro (ALMEIDA, 2001).
Visto isso, por museus universitários podemos considerar como sendo a criação ou
incorporação de um recinto, a partir de uma coleção sob domínio, parcial ou total, e
relacionada a uma Universidade; dependendo da instituição para o espaço, a salvaguarda do
acervo e quadro de pessoal (ALMEIDA, 2001; GIL, 2005). Em sua maioria, esses locais
formaram-se a partir museus já existentes que, posteriormente, foram agregados às
universidades ou por consequência de doações de grandes coleções particulares feitas às
instituições. Também podemos considerar a aquisição de objetos e coleções através de doação
ou compra, pesquisa de campo e coleta, e a mistura de todos esses fatores (ALMEIDA, 2001).
1106
Centros de Ciências não são museus?
Com base nas considerações de Gil e Lourenço (1999 apud CURY et al, 2000) podemos
definir os centros de ciências como espaços que transformam seu acervo e os princípios
científicos em uma linguagem mais acessível e de fácil compreensão ao público, o uso de
modelos e a interatividade, ao permitir o manuseio dos modelos – este último é considerado
como decisivo para o alcance da experiência museal nos centros. Apesar dos autores
considerarem centros de ciências como museus, eles diferenciam a prática de estudar e expor
coleções com relevância histórica e documental, com a criação de modelos para maior
compreensão do público. Ademais, esses lugares tendem a noticiar questões atuais e
perspectivas para o futuro (GASPAR, 1993).
Cury et al (2000, p. 9), em seu “Estudo de museus e centros de ciências”, elaborou uma
tabela mostrando as diferenças e dinâmicas de ambos os espaços, como exposto a seguir:
1107
Aquisição de acervo/formação de coleções Fabricação de “acervo” de modelos
1108
Laboratório/Museu de Anatomia Humana e Funcional
Laboratório Museu de Zoologia
13
NÚCLEO DE ASTRONOMIA. Histórico: Breve Histórico do Núcleo de Astronomia da UFPA.
<http://nastro.ufpa.br/index.php/historico.html>.
14
CALDAS, Jocasta; FRANCA, Rodrigo R. de; CRISPINO, Luís C. B. Astronomy Communication and
Popularization in the Brazilian Amazonia: The Astronomy Nucleus of the Federal University of Pará. Rev. Bras.
Ensino Fís., São Paulo, v. 39, n. 4.
1109
2. Museu Interativo da Física (MINF): O MINF foi criado em 2008 e, assim como o
Nastro, atua através de projeto de extensão. A criação surgiu por meio de um grupo de
professores e estudantes do curso de Física que visavam o ensino, divulgação e popularização
da Ciência, além da aquisição de equipamentos interativos baseados em experimentos
históricos, o que instigou a fundação do Museu. O MINF tem como proposta a contribuição
no ensino informal de ciência e tecnologia, particularmente na Física, atrelando a evolução da
ciência aos acontecimentos históricos para melhor compreensão, além de se utilizar de
experimentações e instrumentos interativos. O espaço se considera tanto como museu de
ciências, quanto centro de ciências15 16.
3. Laboratório de Demonstrações (Labdemon): Criado em 2004, o Labdemon atua
como um centro de ciências, difundindo e popularizando a ciência e tecnologia, tanto em
estudantes de ensino fundamental e médio, quanto em universitários. Inicialmente tinha como
propósito auxiliar a prática nos cursos de graduação da universidade, porém, com as
ampliações, o projeto se estendeu a rede de ensino básico. O Laboratório conta com 3 (três)
salas no pavilhão do ICEN, possui acervo fabricado pela equipe e adquirido de empresas
especializadas17 18.
4. Museu de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI): Criado em 2013 pelo
professor Antonio Maia e iniciado em 2014 por meio do Programa Integrado de Apoio ao
Ensino, Pesquisa e Extensão – PROINT, o MCTI propunha aproximar a comunidade com a
Universidade através da interação, visando contar a história do ser humano e as
transformações da Terra, além de executar experimentos e seminários, relatando o passado,
presente e futuro. Com desenvolvimento do projeto, o MCTI atua na união da aula com a
tecnologia, levando ao ensino básico o melhor entendimento das Ciências Exatas e Humanas.
O espaço divulga as ações do Laboratório de Preparação e Computação de Nanomateriais
15
MUSEU INTERATIVO DA FÍSICA. Histórico: Início das Atividades.
<http://www.minf.ufpa.br/index.php/inicio/historico/inicio-das-atividades>.
16
CALDAS, Jocasta; LIMA, Marcelo C. de; CRISPINO, Luís C. B. Explorando História da Ciência na
Amazônia: O Museu Interativo da Física. Rev. Bras. Ensino Fís., São Paulo, v. 38, n. 4.
17
LABORATÓRIO DE DEMONSTRAÇÕES. Pagina Inicial. <http://labdemon.ufpa.br/>.
18
CALDAS, Jocasta; CRISPINO, Luís C. B. Divulgação científica na Amazônia: O Laboratório de
Demonstrações da UFPA. Rev. Bras. Ensino Fís., São Paulo, v. 39, n. 2.
1110
(LPCN) e de assuntos de história natural, contando com filmes, documentários e réplicas de
animais pré-históricos. O Museu também trabalha questões sobre energias renováveis e meio
ambiente19 20.
5. Museu de Geociências (MUGEO): Fundado em 1984, o MUGEO é, desses
espaços, o mais antigo. Possui uma coleção predominantemente de minerais, rochas, gemas e
outros materiais como fósseis, oriundos de várias partes do mundo, porém focando na região
Amazônica; o acervo conta com mais de 2 (duas) mil peças. O Museu tem como propósito a
divulgação, ensino e pesquisa da geociência no território amazônico, através de exposições,
oficinas e por meio do Boletim do Museu de Geociências da Amazônia (BOMGEAM). Além
disso, é o único espaço museal da universidade a participar da Semana Nacional de Museus21
22
.
6. Laboratório/Museu de Anatomia Humana Funcional: O Museu de Anatomia foi
reinaugurado em 2016, após diversas reformas e aprimoramentos no Laboratório. Com dois
espaços expositivos, o Museu integra as peças do acervo a tecnologia para difusão da
informação. O acervo é composto por modelos anatômicos em 3D, peças em meio úmido,
previamente retiradas de matéria morta, e aparelhos audiovisuais. Além de ser recurso para
aulas práticas de vários cursos na área da saúde, o Museu é aberto para escolas e público
geral, divulgando e facilitando o entendimento de anatomia. Também possui uma plataforma
virtual disponibilizando materiais explicativos e atlas interativo dos sistemas presentes no
corpo humano23 24.
7. Laboratório Museu de Zoologia (MZUFPA): Criado em 2010, o Museu de
Zoologia detém espécimes da fauna, adquiridos a partir de coletas do grupo de zoologia. Até
2012, o Museu possuía cerca de três mil exemplares, os quais são registrados pelo museu e
19
NETO, Antonio M.J.C. Currículo do sistema currículo Lattes. <http://lattes.cnpq.br/3507474637884699>.
20
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ. Professor da UFPA cria museu e busca apaixonar visitantes
pela ciência. <https://ww2.ufpa.br/imprensa/noticia.php?cod=10564>.
21
INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS. Geociências: Estrutura Complementar: MUGEO – Museu de
Geociências. <http://www.ig.ufpa.br>.
22
COSTA, Marcondes; SANTOS, Pabllo. Relatório de Atividades do Museu de Geociências – Ano 2016.
23
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ. UFPA inaugura Museu de Anatomia Humana e Funcional.
<https://ww2.ufpa.br/imprensa/noticia.php?cod=11969>.
24
MUSEU VIRTUAL ANATOMIA HUMANA E FUNCIONAL. Sobre: O Museu.
<http://museuvirtual.wixsite.com/ufpa/em-branco>.
1111
auxiliam no estudo e pesquisa de cursos superiores, inclusive é possível o empréstimo do
material para feiras de ciências, sendo esta a ação de extensão. A exposição e visita ao acervo
não é feita devido à falta de espaço, mas está em vista pelos responsáveis25 26.
Visto isso, surgiram as questões problema: Como estes espaços se enxergam e o que
realmente são? Para respondê-las, utilizaremos a classificação de museu de ciências, centro de
ciências e coleção universitária.
O Núcleo de Astronomia se designa como centro de ciências e ao observar as práticas
realizadas, como fabricação do acervo e atenção para o público escolar, percebemos que ele
se encaixa na categoria de centro. Assim como Nastro, o Laboratório de Demonstrações segue
o mesmo caminho, e se diz e entra no conceito de centro. Apesar de possuir uma linha
histórica e ter adquirido a maior parte do acervo, além de se denominar tanto como museu
quanto centro, percebemos que os traços de centro de ciências são predominantes no Museu
Interativo da Física – como fabricação de modelos, interatividade –, por isso o qualificamos
como centro. Agregando a esses espaços, o Museu de Ciências, Tecnologia e Inovação
também entraria como centro, pois há a proposta de ensino de ciências através da
experimentação, como forma de aproximar a comunidade da universidade. Desse modo, esses
são os quatro espaços considerados como centros de ciências.
O Museu de Geociências e o Museu de Anatomia são espaços que se denominam
museus e se encaixam na definição, pois há a formação de coleção, preservação, as atividades
são elaboradas a partir do acervo e a exposição se mostra como principal meio de
comunicação. Assim, esses são os dois espaços considerados como museus de ciências.
Por fim, o Museu de Zoologia apesar de levar o nome, se caracteriza como uma
coleção universitária, mesmo realizando as atividades pertinentes a museus como aquisição,
conservação, documentação, mas é uma coleção por que não há comunicação do acervo.
25
INSTITUTO DE CIÊNCIAS BIOLÓGICAS. Laboratórios: Laboratório Museu de Zoologia – MZUFPA.
<http://www.ufpa.br/icb/sobre/laboratorios/>.
26
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ. Conheça o Museu de Zoologia e Museu Interativo da Física.
<https://ww2.ufpa.br/imprensa/noticia.php?cod=6040>.
1112
Núcleo de Astronomia
Laboratório de Demonstrações
Museu Interativo da Física
Museu de Ciências, Tecnologia e Inovação
● Museus de Ciências (2):
Museu de Geociências
Laboratório/Museu de Anatomia Humana e Funcional
● Coleção Universitária (1):
Laboratório Museu de Zoologia
Apesar de existir um número considerável de espaços, não há tanto conhecimento
sobre eles no campus. Percebemos durante o mapeamento, ao perguntar nas secretarias se
havia algum espaço museológico e recebermos respostas como: “não”, “não sei”, ou “museus
são aqueles históricos, certo?”. Infelizmente, essa concepção é comum, visto que a ideia do
Museu Tradicional, exaltando as edificações e coleções, esteve em voga por séculos (SOTO,
2014).
Somando-se a isso, consultamos o banco de dados do Comitê Internacional para
Acervos e Museus Universitários (UMAC), subcomitê do Conselho Internacional de Museus
(ICOM), e a publicação “Guia dos Museus Brasileiros” (2011) do Cadastro Nacional de
Museus (CNM), uma plataforma criada em 2006 pelo Sistema Brasileiro de Museus (SBM).
Como parâmetro, usamos as pesquisas de Almeida (2001) e Marques e Silva (2011).
Em sua pesquisa Almeida (2001) encontrou 129 museus universitários no Brasil. Após uma
década, Marques e Silva (2011) identificaram, através do CNM, 162 museus universitários
brasileiros. Desses últimos, a região Norte representa 5% do total, do qual pertencente ao
campus UFPA/Belém, apenas consta o Museu de Geociências da UFPA, além do Museu da
UFPA (MUFPA). Em busca no banco de dados do UMAC, há somente o MUFPA –
identificado como “Museu da Universidade” – e o Centro de Ciências e Planetário do Pará,
referente à Universidade do Estado do Pará (UEPA).
Conclusão
1113
Talvez esse quadro pudesse ser outro se houvesse o trabalho interdisciplinar nesses
espaços, não somente na área das ciências afins, mas inclusive com a área museológica. Os
museus universitários se constituem como cenários ideais para a experimentação teórico-
metodológica da museologia, pois possuem coleções onde é possível exercer atividades
curatoriais, salvaguarda (conservação e documentação) e “comunicação do conhecimento
através da exposição, atividades pedagógicas e de ação cultural” (BRUNO, 1992, p.30).
Por se tratar de um campo novo na região Norte – o curso de Museologia da UFPA foi
criado em 200927 e é o único da região – ainda há certo desconhecimento sobre a sua
existência. Porém, a aproximação da Museologia com os museus universitários já vem se
realizando. Nota-se isto em matérias presentes no portal da UFPA (https://portal.ufpa.br/)
como “Conheça o Museu de Zoologia e Museu Interativo da Física”28, onde o Museu de
Zoologia relata que está em parceira com o curso de Museologia. Além de ações do Centro
Acadêmico de Museologia, que em 2017 integrou os museus universitários na programação
da Semana do Calouro, onde podemos ver no Boletim do Museu de Geociências ano 4, n.229.
A concretização e fortalecimento da parceria entre esses espaços e o curso pode, no
futuro, proporcionar otimização de suas práticas, seja com a adequação das suas atividades ao
que se refere a tipologia, seja ela museu, centro ou coleção. Assim como na incorporação de
alunos de museologia no planejamento e execução de tais atividades, garantindo a estes o
aprimoramento de práticas profissionais. Sem esquecer que estes são espaços pertencentes a
institutos de ciências exatas, o que os torna um ponto importante de exercício da
interdisciplinaridade, com o convívio entre estagiários de diferentes áreas, tornando-o um
excelente local de contato e troca entre áreas consideradas distantes, reforçando, assim, o
exercício do diálogo.
Referências
27
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ. Resolução n. 3.843 de 19 de março de 2009.
<http://www.ica.ufpa.br/images/download/cursosdegraduacao/res_cursomuseologia.PDF>.
28
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ. Conheça o Museu de Zoologia e Museu Interativo da Física.
<https://ww2.ufpa.br/imprensa/noticia.php?cod=6040>.
29
MUSEU DE GEOCIÊNCIAS. BOMGEAM Ano 4 – n. 02 – junho 2017.
<http://ineditasolucoes.com.br/ig/novo2/wp-content/uploads/2015/05/19-BOMGEAM-Ano-4-N02-junho-de-
2017.pdf>.
1114
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1115
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em: 24 nov. 2016.
1116
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ. Professor da UFPA cria museu e busca
apaixonar visitantes pela ciência. Disponível em:
<https://ww2.ufpa.br/imprensa/noticia.php?cod=10564>. Acesso em: 13 jul. 2016.
1117
ESTUDO DE PÚBLICO DO MUSEU DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO
PARÁ: DIAGNÓSTICO PARA CONSTRUÇÃO DO PLANO MUSEOLÓGICO
1118
Abstract: We will present the results of the study of Public held at the Museum of the Federal
University of Pará – MUFPA, panoramic approach based on a quantitative and qualitative research
possible for realization of the project of extension: Museum of the MUFPA Plan. The study of
audience is a practice of making the Museum institution Museum learn more effectively your public
and assess the quality of the relationship public/museum, since many decisions regarding the
management of the Museum are based on that evaluation. In this research the general objective was to
subsidize the construction of the Museum of the MUFPA Plan, and specific was up and analyze data
for the construction of a Public diagnosis. The methodology and the method employed was the
quantitative study of visitors, from the book of signatures of the exhibitions of the year 2014 and 2015.
The quality was performed through Semistructured interviews with some of the surrounding public
categories (formal and informal workers and residents), in addition to questionnaire, applied to a group
of University students from the Institute of higher education of the Amazon. The qualitative oriented
approach was possible by the Ethnography of the handicraft market of the MUFPA, initiated in March
2016. The results of the quantitative study of audience generated graphs that indicate the
characteristics of the audience of the Museum as: featuring more often are students, followed by the
teachers, which involved profession; regarding gender category, most of the audience is female;
origin, comes from Bethlehem. In summary of qualitative analysis we found that some of these
audiences know the Museum that stands out in the landscape of corner in the neighborhood of
Nazareth, but never visited any exposure, citing various reasons. However, it is observed that the
MUFPA has sought rapprochement strategies of this Pub.
1119
Introdução
1120
A estrutura usada para organizar este trabalho pretende chamar a atenção do leitor para
o Museu da Universidade Federal do Pará em seu aspecto institucional e histórico, como um
museu Universitário que tem uma função específica. Para isso no primeiro tópico trago um
breve histórico da instituição no tocante a sua missão enquanto unidade de pedagógica; no
segundo faço apontamentos históricos sobre a relevante edificação que o abriga; no terceiro
trago os dados e resultados da pesquisa de público e no quarto as considerações finais.
30
O órgão responsável em prover e disseminar informação à comunidade universitária de modo presencial e em
meio à rede, contribuir para a formação profissional e para o espírito de cidadania, coordenando tecnicamente as
bibliotecas que compõem o Sistema de Bibliotecas da UFPA – SIBI.
31
É o órgão suplementar cujo principal objetivo é preservar a memória social, favorecer pesquisas, além de
aproximar esses conhecimentos às redes de ensino fundamental, médio e superior.
1121
instrumental de apoio à extensão das unidades de ensino e pesquisa de vários cursos da
universidade federal do Pará, como explicitado no documento citado.
Nesse sentido, ainda que tenha autonomia administrativa a gestão do MUFPA não deve
perder esta diretriz de vista, antes deve primar por tornar esta missão acessível aos atores
envolvidos nos processos educativos que dependem de sua estrutura para acontecerem, como
é o caso dos projetos de pesquisa, estágios obrigatórios e pesquisas das áreas afins. Para
Emanuela Ribeiro (2013) obviamente, o Museu universitário carrega a responsabilidade de
uma atuação mais ampla por ter que incluir suas obrigações como órgão suplementar mas isso
no fim torna sua atuação ainda mais rica pois inclui um terceiro elemento ao conjunto cultura-
museu, a comunidade acadêmica, no caso abordado a comunidade acadêmica do curso de
Graduação em Museologia que prevê em seu Projeto Pedagógico a Política de Extensão,
realizada preferencialmente em “Museus Universitários”, por visar uma colaboração mutua de
trocas de informações nas áreas de ensino-pesquisa e extensão.
1122
Joseph Leon Righini, Theodoro José da Silva Braga, Antonieta Santos Feio, Ruy Meira, Antar
Rohit, dentre outros. Além de artistas contemporâneos, como a Coleção de Artistas
Contemporâneos Paraenses, como Ruma, Geraldo Teixeira, Aramando Queiroz, e outros.
1123
Fonte: livro de assinaturas 18 do MUFPA
Gráfico 2. Estudo de Público por Profissão, detalha a visitação dessa categoria. Aponta
que o público que efetivamente visita as exposições do MUFPA é heterogêneo no tocante a
profissão, e por conseguinte, sujeitos de variadas classes sociais. Aparecem com maior
frequentes os Estudantes e Professores. As demais classes, embora em menor quantidade, se
analisadas juntas, somam quase a metade do público.
1124
Fonte: livro de assinaturas n.18 do MUFPA.
1125
em outro idioma, uma vez que, o MUFPA, mesmo estando fora do circuito dos museus que
integram o Sistema Integrado de Museus – SIM32, de Belém, e relativamente longe do centro
histórico da cidade, local mais procurado por turistas que procuram na cidade os pontos
históricos, recebe número constante de visitantes de outras nacionalidades. Essa foi uma
preocupação de um dos entrevistados da sessão a seguir, o Sr. Carlos:
A categoria de trabalhadores escolhidas foi para essa fase pelo fato de que estão
diariamente no entorno do MUFPA. Nosso intuito foi perceber se estas pessoas costumam
visitar o museu. São no geral funcionários de estabelecimentos comerciais diversos
localizados à Avenida Generalíssima Deodoro e Governador José Malcher, no bairro de
Nazaré em Belém. Iniciamos o período das entrevistas no mês de junho de 2016.
A abordagem foi com um gravador de voz, ao percebermos a reticencia das pessoas
abordadas, optávamos por explicar que se tratava de uma pesquisa oriunda do MUFPA, o que
os deixava bastantes solícitos em responder aos questionamentos e propensos a fazer suas
observações críticas. Isso evidencia o desejo de participar de alguma forma das decisões do
32
O Sistema Integrado de Museus e Memoriais – SIM, é um órgão ligado à Secretaria de Estado de Cultura do
Pará, criada em 1999.
1126
museu, como exemplo disso temos a resposta da Suzana, que atua como comerciante quando
inquerida se seus conhecidos do entorno costumam visitar o MUFPA:
1127
Tabela 2: Questionário semiestruturado com estudantes universitários da Instituição de ensino superior IESAM,
atual Estácio.
Homens 12 5 8 4 17
Mulheres 11 2 7 4 13
1128
Etnografia da “feirinha do MUFPA”
A Feirinha do MUFPA é um evento que acontece uma vez por mês, aos domingos,
nos jardins do museu. Criada em março de 2016, foi uma iniciativa da Associação Amigos do
Museu33, com a intenção de aproveitar o espaço dos jardins e assim estabelecer um vínculo
com a comunidade local.
Nossa investigação procurou compreender o evento para poder pensar nas relações
sociais que, a partir dele, podem acontecer nos jardins do MUFPA e como elas podem refletir
nas em uma maior interação público/museu/espaço expositivo.
A dinâmica da Feirinha: Logo cedo os vendedores chegam para organizar seus stands
em lugar pré-definido no momento da inscrição para que cada stand mantenha a mesma
posição por todas as demais edições.
A organização é primorosa e sempre supervisionada por algum funcionário do museu
e da liderança dos expositores34. Há sempre alguns funcionários, do museu, presentes,
participando da supervisão. Dois mediadores da exposição vez por outra convidam os
visitantes para ir ver as exposições. Segundo relatos de uma funcionária, houve crescimento
de número de visitas nas exposições nos dias que que acontece a feirinha. “A quantidade de
pessoas que normalmente visitam o Museu girava em torno de 5 a 10 pessoas por dia e depois
da criação da feirinha, esse número subiu para 60 pessoas por edição, que acontece sempre
aos domingos” (DANTAS, 2017).
Na etnografia é possível perceber que o público presente é formado por moradores do
entorno do museu, por amigos e familiares dos expositores. As chamadas nas redes sociais
promovem visibilidade ao evento e fomentam reencontros de pessoas. Outra ação que
acontece é a distribuição de convites impressos com informações da feirinha para vizinhança.
A Feira só acaba ao entardecer por isso há venda de alimentos variados, que podem ser
típicos, como foi o caso da edição visitada em junho, quando a configuração ganhou ares de
arraial junino.
33
AAMUFPA, criada em 2003. Disponível em< http://www.ufpa.br/museufpa/index.php?link=4>.Acesso em
07.03.17.
34
Nome adotado pela organização do evento para se referir ao comerciante que expõe na feirinha.
1129
O movimento se intensifica no período da tarde quando acaba a missa das igrejas
próximas e as pessoas passam ali pelo museu, no caminho de casa. Eles entram mesmo sem a
intenção de comprar, assim, a feirinha vai sendo propagada e ficando conhecida no bairro.
As aproximações são inevitáveis. Pessoas passam a se familiarizar com o espaço,
outras, impelidas pela necessidade ou apenas pelo desejo de comprar um artigo que necessite,
encontram um tempo para entrar. Se essa experiência ficar em suas memorias, certamente
serão repassadas a um parente ou amigo, de maneira que possa causar no ouvinte o desejo de
visitar o museu, os jardins ou a Feirinha, tornando a informação sobre o espaço mais
dinâmico.
A Feirinha por si só não constitui um elemento de aproximação do público com o
museu, mas quando agregadas ações com esse objetivo pode se tornar uma ação efetiva de
interação com o público. A ação de abrir os jardins da instituição torna o lugar mais atrativo, o
aglomerado de pessoas demonstra que o lugar é acessível.
Considerações finais
A avaliação museológica é uma prática que visa lançar olhar para a forma como o
público se relaciona com o museu. Sua aplicação iniciou-se de maneira empírica e foi se
intensificando nos anos de 1970 a partir de metodologias extraídas de áreas transversais 35 do
conhecimento (CURY, 2009, p.153). A avaliação proporciona ao museu a possibilidade
perceber suas fragilidades e seus pontos fortes, segundo Cury (2008, p.124) traz o
aperfeiçoamento das atividades institucionais a fim de aprofundar a própria compreensão que
ela tem de si mesmo e de seu trabalho.
A avaliação de público do MUFPA já constitui um ato de aproximação do museu com
a sociedade. A pesquisa quantificou o público real e analisou as categorias de público
potencial. Para o quantitativo verificou-se a constância do público, sua variedade e perfil. Para
o qualitativo verificou-se que existem categorias no entorno do museu que não estão sendo
alcançada por nenhuma das ações que o MUFPA proporciona. Nesse caso o planejamento
museológico necessita pensar em como reverter este quadro.
35
Dos Estudos Culturais, da Psicologia, e por fim da Etnografia, Comunicação e Pesquisa de Recepção.
1130
Referências bibliográficas
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metodológica para a pesquisa de Recepção em Museus. Ed. Fiocruz. Rio de Janeiro. 2009. p
153.
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Editora da Universidade de São Paulo; Fundação Vitae. (Série Museologia 1), 2001.
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2009.
MUSEUDAUFPA. Disponível em:
https://www.portal.ufpa.br/imprensa/noticia.php?cod=11403> Acesso em 07.03.2017
1131
RIBEIRO, Sousa Emanuela. Museus em Universidades Públicas: entre o campo científico, o
ensino, a pesquisa e a extensão. In: MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE
Vol.I1, nº4, maio/junho de 2013.
1132
MUSEU DA UFRGS: HISTÓRIA E TRAJETÓRIA DE UM MUSEU
UNIVERSITÁRIO
Resumo: Este trabalho tem como foco a trajetória de um museu universitário, Museu da UFRGS,
refletindo sobre sua construção institucional, analisando as práticas museológicas desenvolvidas em
sua historicidade, enfatizando suas características específicas, o papel ocupado e as relações
desenvolvidas com a comunidade universitária em relação à construção de uma política de gestão de
acervos e museus na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Abstract: This work focuses on the trajectory of a university museum, Museum of UFRGS, reflecting
on its institutional construction, analyzing the museological practices developed in its historicity,
emphasizing its specific characteristics, the role occupied and the relations developed with the
university community in relation to Construction of a collection and museum management policy at
the Federal University of Rio Grande do Sul.
1133
Em torno dos Museus Universitários
Este trabalho pretende investigar um museu universitário, Museu da UFRGS,
refletindo sobre sua construção institucional, analisando suas práticas museológicas em sua
historicidade, enfatizando suas características específicas, o papel ocupado e as relações com
a comunidade universitária no sentido de construção de uma política de gestão de acervos e
museus na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Os museus universitários são museus presentes e atuantes em muitas universidades,
com tamanhos, acervos e trabalhos variados. Este trabalho pretende analisar a história, a
biografia deste museu universitário, buscando as intenções, escolhas, caminhos e grupos
sociais diretamente envolvidos em sua constituição nos anos 1980, inicialmente sem acervo e
espaço expositivo próprio, centralizado junto a administração central.
Entendemos que a investigação científica das instituições museológicas, de sua
origem, elaboração de missão e objetivos, formação e constituição de acervos, processos de
escolhas de exposições, e, no caso dos museus universitários, sua relação com a comunidade
universitária e sua inserção dentro da mesma, constituem-se em importantes objetos de estudo
e reflexão. Abordar os Museu, suas práticas e competências como objeto central de estudos
pode intensificar e potencializar o papel e o lugar ocupado por eles na sociedade, assim como
aprofundar e contribuir para estudos no campo dos museus, da museologia, do patrimônio
cultural, da história, da memória, da educação entre outros. Contribuem também para
explicitar para o público as escolhas feitas pelos museus no presente, estabelecendo com os
mesmos diálogos e conexões. De acordo com Ramos “Além de expor o resultado de
pesquisas sobre a história que há nos objetos, o museu deve se expor ao conhecimento
histórico, tornando-se tema de estudo e perdendo ares de sacralidade.” (RAMOS, 2004:48)
De acordo com Chagas podemos “(...) considerar o museu como ponte entre tempos,
espaços, indivíduos, grupos sociais e culturas diferentes” (CHAGAS, 2005:18). Mas, o autor
nos adverte que devemos ultrapassar o encantamento que os museus nos provocam e entende-
los como espaços de poder em constante conflito. “Assim os museus são a um só tempo:
lugares de memória e de poder. Esses dois conceitos estão permanentemente articulados em
toda e qualquer instituição museológica”. (CHAGAS, 2006:31)
1134
Em nosso entendimento os museus são fenômenos sociais que devem estar envolvidos
com o humano em todas as suas dimensões, podendo ser ferramentas para a inclusão, para a
formação de uma sociedade justa e igualitária. Nem todos os museus buscam os mesmos
caminhos e o reconhecimento dos mesmos como espaços de poder e conflito potencializa suas
possibilidades.
Em nosso caso, os museus universitários, componentes das estruturas das
universidades, trazem para a discussão o compromisso das mesmas com o processo de
transformação da sociedade. E aqui vamos tratar de um museu universitário de uma
universidade federal pública que, como tal, tem responsabilidade de participar ativamente no
processo de desenvolvimento social, buscando a livre expressão e construção de
conhecimentos e saberes, o reconhecimento da diversidade cultural, e o exercício de
ferramentas de igualdade, democracia e ética.
Os museus universitários são muitos e variados em sua origem, relações com suas
universidades e tipologias de acervos. Diversidade que, de acordo com Cristina Bruno (1997),
abrange desde temáticas diferentes, muitas específicas dentro de algumas áreas da ciência ou
específicas quanto a aspectos regionais do conhecimento a, principalmente, estruturas de
organização diversas. Em comum, tem a configuração institucional de estarem abrigados e
responderem a gestão de instituições de ensino superior - universidades. São encontrados nas
universidades federais, estaduais e particulares, grandes e pequenos, localizados junto aos
campi universitários ou descolados dos mesmos envolvidos nas cidades. Sua diversidade
temática também é muito ampla, existindo museus universitários em todas as áreas de
conhecimento. No geral, aparecem dividindo ou disputando seus espaços com salas de aula,
laboratórios de pesquisa, espaços burocráticos, bibliotecas, apresentando uma estrutura física
adaptada ou totalmente inadequada para as atividades desenvolvidas. Uma grande parcela
ainda está desconhecida dentro das instituições que os abrigam. Suas coleções, organização,
funcionamento, mesmo que precário são resultado da iniciativa pessoal e trabalho abnegado
de professores, técnicos e alunos, resultando em uma fragilidade institucional.
Segundo Hernandez (1994) os museus universitários têm algumas especificidades em
relação aos outros museus quanto as motivações para sua criação que, em sua maioria,
remetem ao fomento à pesquisa, o estudo e aprendizagem entre professores, alunos e técnicos.
1135
Em decorrência, apesar de se autodeclararem como museus, muitos estão distantes das
características necessárias para tal. Destaca-se também a falta ou a descontinuidade de
recursos técnicos, de infraestrutura e financeiros que permitam um trabalho contínuo e seguro
por parte destes museus. A terceira característica, esta não exclusividade dos museus
universitários, é que a maior parte deles foi constituída por doações de particulares, muitas
vezes acrescidos de coletas de campo por parte de pesquisadores.
De acordo com Gil (2005) “os museus universitários têm características especificas
que fazem com que atravessem transversalmente a tipologia museológica” (GIL, 2005:45).
No caso, o autor está se referindo a origem das coleções e bem como seu uso após a
musealização. Ribeiro (2013) aborda que as coleções constituídas no âmbito universitário
têm características diferentes das coleções de museus fora das universidades, diferenças
quanto a classificação das peças, uso dos acervos e sistemas de documentação. Ainda
segundo a autora, o sistema de valores, modos de vida e função social das universidades e,
consequentemente do seu patrimônio e dos seus museus é, portanto, um dos principais
elementos que constituem o acervo dos museus universitários. Este patrimônio imaterial
explica características e questões comuns dos museus universitários e que independem de
suas coleções e tipologias.
Os museus universitários, de acordo com Adriana Mortara de Almeida (2001), para
além das funções de um museu (de acordo com o ICOM), devem estar comprometidos com o
tripé formado por pesquisa, ensino e extensão.
Maria das Graças Ribeiro (2007) aborda os museus universitários dentro de um
contexto transmuseal, com produção de conhecimento, formação profissional, exercício da
interdisciplinaridade e atuação significativa em programas de extensão que possibilitam a
inclusão social.
Maria Celia Santos (2006) destaca a importância de uma política nas universidades
que englobe e envolva os museus universitários, definindo sua atuação e inserindo-os dentro
de um planejamento estratégico nas instituições.
Para além das atribuições comuns a todos os museus, os museus universitários devem
atender a demandas específicas dos órgãos universitários, ligadas a atividades de pesquisa,
ensino e extensão, tripé indissociável contemplado nos estatutos das universidades. Nesse
1136
sentido os museus universitários realizam e propiciam pesquisas acadêmicas, são espaços de
ensino de disciplinas, cursos e estágios acadêmicos, participam e atuam em diversos projetos
de extensão e devem desenvolver projetos educativos abrangentes voltados ao público
externo, não vinculado diretamente as universidades. Por seu lado, as universidades, em sua
maioria, não possuem políticas especificas de gestão de seus espaços museológicos e coleções
universitárias, na medida em que os mesmos não constituem suas atividades fins, situação que
gera problemas ao deixar os museus e coleções desprotegidos de salvaguardas institucionais.
1137
cidade e o estado. O Centro Cultural consistia, resumidamente, em recuperar os prédios
históricos, recuperar seus entornos com ajardinamentos e espaços de convívio e destiná-los a
atividades diversas relativas a um centro cultural. Dentre as atividades estava a criação de
vários museus. Ainda, de acordo com o Reitor, ao contrário de outras grandes cidades do
mundo, Porto Alegre não possuía equipamentos culturais suficientes e “(...)nem instituições
com acervos bem cuidados, recolhidos a dezenas ou centenas de anos, todos beneficiados pela
prática já longeva do mecenato.” (FERRAZ, 2004: 110). Seguindo, argumenta que em outros
países o ensino dos jovens é suplementado pela visita a instituições culturais e cita como
exemplos La Villette, Beaubourg, Invalides, Musée de L’homme, Musée D’histoire Naturel,
Britsh Museum, Museum of Natural History, Smithsonian, National Gallery, segundo ele
referencias internacionais de cultura. Continuando, fala da importância dos acervos
universitários e destaca a universidade como instituição que forma acervos e coleções para
fins científicos e culturais. Cita os acervos de paleontologia, mineralogia, botânica, zoologia,
máquinas e equipamentos, mobiliário, livros, pinacoteca, manuscritos, fotografias enfatizando
que a universidade possuía “autoridade científica e cultural” para conseguir expor acervos
próprios e acervos que não lhe pertenciam, o que já demonstra o interesse por exposições e
intercâmbios e finaliza falando da criação do Museu Universitário.
1138
No discurso de posse, como coordenadora do Projeto Especial de Implantação e
organização do Museu Universitário a Professora da Faculdade de Arquitetura, Maria Helena
Bered fala do desafio que só será possível através de um trabalho de equipe, capaz de
“alicerçar sólidos sustentáculos, base indispensável para caracterizar a expressão viva da
história desta universidade”. De acordo com ela,
37
BERED, Maria Helena. Discurso de Posse como coordenadora do Projeto Especial Implantação Museu
Universitário. 29/agosto/1984. Museu da UFRGS – Arquivo Caixa 01.
1139
Divulgar, informar e documentar todo o acervo universitário e os eventos a
serem realizados;
Estimular trabalhos de pesquisa e intercâmbio a nível local, nacional e
internacional. (BERED, 1984:7).
1140
expositivo, utilizando para tal o salão de Festas da Reitoria e a Sala Fahrion38 que até 1988
aparece referida nos relatórios do Museus com espaço Museu Universitário. A partir de 1989
passa a ser chamada de Sala Fahrion novamente.
Outra questão que podemos destacar em relação ao Museu é a relativa ao nome.
Muitos museus universitários têm nome vinculado a sua tipologia de acervo, vinculado a sua
área de conhecimento ou no nome prestam homenagem a alguma personalidade importante
para sua história. Museus universitários de arqueologia e etnologia, museus universitários de
arte, museus universitários de ciências, museus universitários de mineralogia, etc. O Museu
denominava-se Museu Universitário, denominação que muda para Museu da UFRGS no ano
2002 quando das festividades para ocupação de um prédio próprio. Continua mantendo no
nome a mesma ideia: é um museu de toda a universidade, não pertence a nenhum curso,
departamento ou instituto e não é definido e ou identificado por nenhum acervo. Até
hoje manteve a centralidade na questão de exposições e eventos de caráter cultural. O final da
gestão do Reitor Francisco Ferraz, com os problemas de vinculação do Centro Cultural com a
personalidade do reitor, em 1988 aliados a falta de financiamento federal modifica o Projeto
na gestão seguinte. Outro grande entrave para o Projeto do Centro Cultural foi a necessidade
de tombamento dos prédios históricos do Campus Central, sua desocupação pelos cursos
(principalmente a Engenharia e a Medicina) e a concomitante construção dos novos prédios
no Campus do Vale e no Campus Saúde para onde os cursos seriam transferidos. A carência
de recursos compromete as obras que seriam realizadas com recursos da universidade e, ao
mesmo tempo, a universidade continua crescendo e com exigências de recursos e espaços
cada vez maior.
Em 1988 assume a Reitoria o Prof. Gerhard Jacob, vice-reitor na gestão anterior que
fica apenas dois anos como reitor, convidado a assumir a direção CNPq. O cargo de reitor é
assumido pelo seu vice e a gestão se caracteriza por muita polêmica e resistências por parte da
comunidade acadêmica. A troca de comando significa uma continuidade do grupo que está
no poder e de seus projetos, passando os mesmos apenas por reacomodações administrativas.
Os projetos especiais continuam existindo, mas pouco a pouco vão passando para a Pró-
38
O Salão de Festas e a sala Fahrion são espaços nobres da universidade para eventos em geral. O museu
precisava dividir a agenda dos mesmos com a administração central.
1141
reitoria de Extensão. A Prof.ª Sandra Jatahy Pesavento foi convidada a coordenar o Projeto
Especial de Recuperação do Acervo que logo amplia sua atuação em parceria sempre muito
próximo do Museu Universitário.
No início do ano de 1989, coordenados pelo Museu Universitário e pelo Projeto
Recuperação do Acervo é montado na UFRGS um grupo de Trabalho para Implantação dos
Museus da Universidade. O Projeto final é encaminhado ao Conselho Universitário e ao
Reitor em agosto de 1989 e, após sua aprovação é enviado ao CNPq, que aprova o mérito,
mas nega o financiamento na medida em que envolveria obras físicas. O CNPq se
compromete com verbas para ampliação dos acervos, após a instalação dos museus. Mais uma
vez, a equação de necessidade de verbas para obras nos prédios históricos, desocupação dos
mesmos, verbas para ampliação do Campus do Vale e a transferência dos cursos foi um
grande entrave.
O Projeto de Implantação dos Museus é uma retomada do anterior projeto de Centro
Cultural da gestão Ferraz, agora incorporando claramente a questão dos Museus e acervos, e
transformando a proposta de Museu Histórico em Museu de Memória Social. A justificativa
para um museu de Memória Social e não mais um Museu de História da universidade,
conforme o Projeto anterior fica a cargo da Prof.ª Sandra Pesavento e do Projeto Recuperação
do Acervo por ela coordenado.39 O conceito era preservar a memória social com a criação de
um centro de documentação centralizado que preservasse os documentos impressos (acervo
que já existia da Comissão de História) e a incorporação de outra documentação como fontes
orais e fotográficas no sentido de buscar a incorporação de novos temas e preocupações que
resgatariam fontes até então desconsideradas pela história.
O referido Projeto destacava que o restauro dos prédios históricos e sua transformação
em Museus e Parque da Ciência Criação dotaria a UFRGS de museus em áreas especificas,
com características modernas e inspiradas em experiências consagradas nos EUA e Europa,
fugindo do “(...) estereótipo via de regra aceito para as instituições deste gênero e que,
lamentavelmente ainda predominam no país.” Segue falando em fugir da concepção de Museu
39
O Projeto Especial Recuperação do Acervo é um dos Projetos Especiais de 1984. Tem por objetivo gerenciar o
acervo Histórico da UFRGS e incorpora a Comissão de História, criada em 1977 como embrião de um museu
histórico. Sob coordenação da Prof. Sandra Pesavento o Projeto Especial Recuperação do Acervo se transforma
em Núcleo de Documentação e Memória Social. Em 1993 é dissolvido administrativamente e o acervo e
funcionários são incorporados ao Museu Universitário.
1142
como depósito de coisas velhas e como galeria de objetos apresentados de forma estanque. A
concepção teórica aqui era no sentido de redimensionar a dimensão temporal associando a
sucessão cronológica os conceitos de processo e espaço e, a partir deles, estabelecer as
relações possíveis. Identificamos no discurso os conceitos da história e memória social e a
preocupação com uma nova forma de museus, dinâmicos, vivos, onde a pesquisa científica, as
perspectivas didáticas e lúdicas estabelecessem um diálogo e levassem o conhecimento
acadêmico para o público.
O documento segue ressaltando que a UFRGS já possui um museu assim, o Museu
Universitário. Falava de sua história, objetivos e destacava as principais exposições realizadas
entre 1984/1989 e das suas atividades educativas, mostrando aqui, mais uma vez, a
centralidade e o papel de articulador do mesmo. Aqui percebemos um alinhamento com as
questões do cenário museológico internacional e nacional. A UFRGS seria dotada de um
moderno Centro de Ciências, baseado em experiências internacionais e nacionais, como as
recém-criadas Estação Ciência em São Paulo e o recente MAST, no Rio de Janeiro.
A etapa inicial do Projeto previa a criação do Museu de Ciência e Tecnologia e do
Museu de Memória Social.
1143
desenvolvimento cientifico e tecnológico do estado, possibilitando uma visão do atual estágio
em que se encontra o Rio Grande”. (Projeto de Implantação dos Museus da UFRGS. 1989)
Os acervos de Paleontologia, Física e do Museu de Mineralogia estavam todos
descritos, assim como a história dos cursos. Em relação ao Parque da Ciência, os
equipamentos que seriam construídos já estavam definidos e suas justificativas detalhadas.
Uma das questões que aqui se colocam é do papel do Museu Universitário após a instalação
do Projeto dos Museus da UFRGS. Parece-nos que o Museu Universitário seria o articulador
e gerenciador dos Museus da área de Ciência e Tecnologia, bem como do Parque da Ciência.
Quanto ao Projeto Especial Recuperação do Acervo, coordenado pela historiadora
Sandra Pesavento, seria transformado no final do ano de 1989 em Núcleo de Documentação e
Memória Social, e constituiria o Museu de Memória Social composto pelo acervo existente de
História da UFRGS, de Porto Alegre e do RS integraria o Museu. As exposições temporárias
produzidas pelo Museu de Ciência e Tecnologia também integrariam o acervo do Museu de
Memória Social após sua apresentação, o que mostra uma forte ideia de retroalimentação e
trabalho integrado entre os museus. O acervo seria integrado ainda por doações de conjuntos
documentais relativos à Memória Social da Universidade e da cidade de Porto Alegre e por
um banco de dados relativos a coleções e conjuntos documentais existentes em outros locais
do RGS.
O projeto justificava a necessidade de dar nova dimensão aos recursos materiais e
humanos já existentes na universidade, iniciando a descrição dos mesmos recursos pelo
Museu Universitário, destacando seu papel de articulador e o levantamento e descrição de
acervos feito pelo mesmo, do conjunto dos prédios históricos do Campus Central que
deveriam ter uma utilização cultural para a universidade e comunidade e apontava ainda a
presença de um corpo técnico e acadêmico especializado. Como objetivos gerais colocava a
necessidade de implantar, de forma permanente, com os Museus da Universidade, um centro
de divulgação do conhecimento científico produzido no âmbito acadêmico. Destacava que
Museus oportunizarão experiências vivas de conhecimento a estudantes e ao público em geral
com suas atividades temporárias, divulgação e ampliação dos seus acervos, criando um
“centro dinâmico e um laboratório vivo da socialização do conhecimento científico”.
1144
Destacamos aqui que os dois Projetos analisados em que o Museu Universitário teve
papel central, o Centro Cultural e o seguinte Projeto de Implantação de Museus, colocavam
como ponto central a Recuperação do Patrimônio cultural e material edificado – conjunto dos
prédios históricos e sua transformação em espaços museológicos e culturais. As dificuldades
desses empreendimentos sempre foram grandes. Envolviam financiamentos e recursos
externos para restauro e recuperação de patrimônio histórico edificado; recursos internos e
externos para edificação de prédios que substituíssem as funções de aulas e laboratórios ainda
desenvolvidas nos prédios históricos e que, ao mesmo tempo, atendessem as demandas de
crescimento das universidades federais no Brasil. Para além destas questões, encontramos
demandas internas de negociação política dentro da universidade no sentido de que os cursos
desocupassem seus antigos prédios (que faziam parte importante de sua história) para que os
mesmos fossem ressignificados como espaços de memória e de conhecimento para toda a
sociedade. Os desafios eram grandes e não foram superados, ficando o Projeto de Implantação
de Museus da UFRGS desconhecido da comunidade acadêmica e abandonado pelas
administrações seguintes.
Entre 1992 e 1996 assume a reitoria o Prof. Hélgio Trindade. Cientista político tem
uma proposta de “universidade por inteiro” e assume com um grupo preocupado em
modernizar e ampliar o papel da universidade frente a comunidade. Neste período são criadas
várias instâncias importantes de discussão acadêmica e ocorre uma ampliação da ideia de
extensão destacando-se os projetos de atuação junto com as comunidades. No entanto, o
Núcleo de Documentação e Memória Social e o Museu Universitário passam por
questionamentos em relação ao seu papel frente a universidade, finalizando com a extinção do
referido Núcleo e com a incorporação do acervo e funcionários do Núcleo ao Museu
Universitário. Em 1994 o Museu Universitário adquire um novo perfil, incorpora um acervo e
o trabalho de suporte de ações documentais em que o Núcleo de Documentação e Memória
Social era referência como veículo de divulgação e informação de sua produção de pesquisa
no âmbito da memória da cidade de Porto Alegre, território cuja história é atravessada pela
fundação da UFRGS. Por outro lado, fica com a incumbência de atender prioritariamente as
demandas internas do público universitário em relação a eventos e exposições. O trabalho
suporte de ações documentais e museológicas aos diversos núcleos de pesquisa e museus
1145
setoriais da UFRGS, que já vinha sendo realizado, aparece agora como diretriz de trabalho do
Museu Universitário que assumiu um papel de espaço cultural responsável pela memória e
priorizando as atividades da instituição, atendendo também as demandas de eventos culturais
da universidade. A direção do Museu Universitário fica a cargo da Prof.ª Luiza Klieman,
vinculada ao Depto de História da UFRGS e com forte atuação em arquivos de pesquisa e
Museus em Porto Alegre. Segundo relatório de 1995, a equipe após discutir as prioridades e
finalidades do Museu, apresentou como proposta, trabalhar com a História e memória social
da UFRGS, interligada com a memória da cidade e do estado.
Em relação ao trabalho de suporte e assessoria aos outros Museus e Núcleos de
Documentação, o documento destaca a criação de um Sistema Integrado de Museus da
UFRGS. Aqui devemos ressaltar que o Rio Grande do Sul já possuía um organizado e
combativo Sistema Estadual de Museus, em atuação desde 1990, mas criado oficialmente em
21/01/1991, pelo decreto estadual n. 33.791. O Museu Universitário passa a frequentar as
reuniões da 1ª Região de Museus, localizada em Porto Alegre e dessa organização
museológica parece vir a ideia de Sistema Integrado de Museus da UFRGS, que passa a ser
uma das metas do Museu.
A partir de 1996, na gestão da então Reitora Wrana Panizzi (1996 – 2004), a questão
dos prédios Históricos da UFRGS é retomada, através do Programa Resgate do Patrimônio
Histórico. O Programa foi aprovado pelo PRONAC – Programa Nacional de Apoio á Cultura,
contando com financiamento baseado nas leis de incentivo fiscal com doações de recursos por
pessoas físicas e jurídicas.
Em 1997, o Museu Universitário agora tendo como diretor o Professor Francisco
Marshall do departamento de História, novamente tem o protagonismo frente a questão da
Memória, do Patrimônio Cultural universitário e da organização dos espaços de memória da
UFRGS através do Projeto de implantação do Centro de Memória e Documentação da
UFRGS – CEMEDOC. Elaborado em conjunto com grupo de estudos do Departamento de
História da UFRGS e professores do curso de arquivologia que ainda estava em fase de
implantação, da Faculdade de Ciências da Informação.
Através de projetos de pesquisa financiados pela FAPERGS – Fundação de Apoio à
Pesquisa do Rio Grande do Sul, o projeto foi responsável pelo levantamento preliminar da
1146
documentação de caráter histórico em situação de risco existente na universidade. Destacava a
importância do trabalho desenvolvido até então pelo Museu Universitário e pela Biblioteca
Central e alertava para a inexistência de uma política de preservação da memória
institucional. Segundo o Projeto os recursos desses dois setores eram limitados frente ao
montante da documentação em situação de risco pela precariedade de seu armazenamento ou
por estar em mãos de particulares.
Sobre a Memória, o projeto retomava e ampliava a discussão da memória social,
enfatizando que o trabalho seria com um horizonte de heterogeneidade documental e citava
como fundos documentais que seriam recuperados e produzidos coleções fotográficas,
correspondências administrativas ou oficiais, projetos e publicações de origens diversas.
Destacava a necessidade de registrar as memórias dos indivíduos e grupos que fizeram a
história da instituição. Aqui o projeto destaca a necessidade de um espaço de coleta e
disponibilização de depoimentos, com recursos adequados de áudio e vídeo e citava como
exemplo de trabalho o Museu da Pessoa, destacando o formato como um recurso com um
potencial ainda de todo não explorado.
O CEMEDOC ficaria localizado no prédio da Engenharia conhecido como Parobé,
integrante do conjunto dos prédios históricos e que no Projeto de Implantação de Museus
estava destinado a Biblioteca Central. Mais uma vez, com coordenação e protagonismo do
Museu se elabora um projeto visando recuperar e disponibilizar para o público em geral, a
memória e a produção científica da universidade retomando a questão da disponibilização dos
prédios históricos. Como metodologia salientava a iniciativa como inter e multidisciplinar,
delimitando as áreas da história e da museologia como curadoria, a biblioteconomia no
registro e tombamento, a arquivologia para o arquivamento e a informática para as necessárias
digitalizações e sistemas necessários. Propunha que a UFRGS implementasse a criação de um
Sistema de Arquivo e o CEMEDOC teria as atribuições de definição da política documental
da universidade. Indicava como fontes de financiamento as políticas em implementação na
época pela UNESCO e pelo ICOM. A desocupação do prédio pela faculdade de Engenharia
encontra uma série de resistências por parte da Escola e mais uma vez questões de
direcionamento de poder impedem o avanço do projeto e inviabilizam o projeto do
CEMEDOC. Mas um dos prédios priorizados na primeira parte da campanha de Recuperação
1147
dos prédios históricos é do “Curtume e Tanantes”40, localizado no Campus Central. O prédio
estava abandonado e interditado desde 1996 e, após o restauro e adaptação foi designado para
ser a sede do Museu Universitário.
Em agosto de 2002 três prédios históricos são reinaugurados e entregues para a
comunidade universitária e sociedade em geral em um grande evento amplamente noticiado
na mídia. A Rádio da Universidade, o Observatório Astronômico e um novo Museu para a
comunidade gaúcha, agora renomeado de Museu da UFRGS. A solenidade contou com a
presença de autoridades federais, estaduais e municipais, além da presença da comunidade
universitária e de Porto Alegre. Simbolizando a importância da relação da universidade com a
cidade, a solenidade aconteceu na frente do Museu, destacando a importância deste para a
universidade que o oferecia a comunidade como um todo. Simbolicamente as portas do
Museu foram abertas por todas as autoridades presentes e o Museu da UFRGS foi oferecido
oficialmente como um equipamento cultural novo, ressignificado para a sociedade.
O Museu da UFRGS abre suas portas em novo prédio com a mesma proposta de
trabalhar com a Memória social da UFRGS e a exposição elaborada pela equipe é com o
acervo Histórico da Pinacoteca Barão de Santo Ângelo do Instituto de Artes. O acervo é
documentado, são restauradas as obras que precisavam de cuidados e é providenciado o
seguro das obras mais significativas da Pinacoteca. Um catálogo é elaborado e lançado com
toda a documentação.
Em relação as exposições, o Museu da UFRGS nunca contou com uma exposição de
longa duração de seu acervo. Desde sua origem já realizou aproximadamente 154 exposições
(levantamento de dados de agosto de 1984 a março 2017), que abordaram diversas temáticas e
articularam acervos oriundos de coleções de unidades acadêmicas, institutos, núcleos de
pesquisa, laboratórios de ensino, bibliotecas, herbário e demais museus universitários da
UFRGS. Destacamos que, ao integrarem uma exposição em um Museu centralizado, com
projeto educativo amplo, os acervos são ressignificados, articulados e ampliados em suas
possibilidades de pesquisa, ensino e extensão, e estabelecem relações com a comunidade
40
Prédio em construído em 1910/1914 para ser o Laboratório de Resistencia de Materiais da Escola de
Engenharia. Ocupado desde 1980 pela Engenharia Química com o laboratório de couros, conhecido como
Curtume e Tanantes.
1148
interna e externa a universidade, que passa a buscar e solicitar informações, demandas e
visitas a seus museus e coleções.
Os projetos para as exposições são construídos em parceria e diálogo entre a equipe de
pesquisadores/curadores e a equipe do Museu, resultando assim em exposições elaboradas e
realizadas dentro da universidade, envolvendo diversas áreas acadêmicas, utilizando os seus
recursos intelectuais, materiais e profissionais/técnicos disponíveis na UFRGS. A equipe do
Museu sempre integra a curadoria no sentido de construir exposições e projetos educativos de
caráter interdisciplinar e intercultural onde diferentes áreas do conhecimento possam compor
uma narrativa museológica acessível a variados públicos, visando difusão do conhecimento
científico, o acesso, conhecimento e proteção do patrimônio cultural, a educação continuada,
a inclusão social, a construção da cidadania e o lazer.
Destacamos o protagonismo do Museu da UFRGS nas diversas ações de articulação,
gestão e preservação de acervos, memória e patrimônio cultural da universidade. Os acervos
ressignificados e articulados nas exposições e projetos educativos possibilitaram a
organização, a reorganização e o estabelecimento de novas perspectivas museológicas para os
outros museus e acervos da UFRGS. Ao estabelecer diálogos, projetos e conexões entre os
espaços de memória, o Museu da UFRGS torna-se o articulador da REMAM – Rede de
Museus e Acervos da UFRGS, oficialmente criada e institucionalizada em 2011.
1149
A adoção de sistemas em rede tem como objetivo fortalecer e valorizar as práticas, as
ações de pesquisa, documentação, preservação e socialização do patrimônio. Considera-se que
uma rede é mais do que o somatório de seus membros, pois se constitui num sistema sinérgico
que potencializa o conjunto de suas ações.
Nessa perspectiva a REMAM visa incentivar e qualificar a atuação museológica,
ressaltando a valorização do patrimônio da UFRGS, atuando como aglutinadora dos
diferentes espaços de memória da universidade, fomentando a articulação entre os mesmos,
de modo a favorecer a mediação, a parceria, o intercâmbio de informações e a formação
profissional de seus membros. Tem a coordenação do Museu da UFRGS que, como
procuramos demonstrar, desde sua criação em 1984 vem articulando os acervos e a memória
da universidade. Entretanto, de acordo com as características de uma rede, o que se busca é a
atuação integrada dos membros, sem hierarquização. Assim, as decisões são tomadas de
forma democrática no Fórum REMAM, caracterizado por encontros mensais nos quais todos
os membros são convidados a participar. Além disso a metodologia de organização em grupos
de trabalho, busca potencializar a agilidade das ações e favorecer o caráter cooperativo.
Finalizando, entendemos que os museus, arquivos, bibliotecas, núcleos de pesquisa e
demais espaços de memória, membros da REMAM, expõem e guardam em seus acervos além
de artefatos materiais, os projetos, as ideias, os sonhos e as decepções de docentes, discentes e
técnicos, constituindo uma parte da história da universidade e do conhecimento científico
preservado para não ser esquecido, e, desta forma, gerar mais conhecimento. Como lugares
memória por excelência, são também lugares de pesquisa, lazer e fruição, encontros, debates,
resistências, discordâncias e aprendizagens.
Referências bibliográficas:
ALMEIDA, Adriana Mortara. Museus e Coleções universitários: Por que Museus de Arte
na Universidade de São Paulo? Tese de Doutorado apresentada à Escola de Comunicação e
Artes da USP, 2001. Disponível em: http://www.teses.usp.br. Acesso em 27/06/2011.
1150
CHAGAS, Mário de Souza. Museus: antropofagia da memória e do patrimônio. In:
CHAGAS, Mário de Souza (org.) Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. n.
31.2005.
FERRAZ, Francisco. Memória de uma gestão. In: UFRGS: 70 anos. Org.: Carmem Regina
de Oliveira,
Flavia Boni Licht. UFRGS, Porto Alegre, 2004. Depoimento escrito publicado por ocasião
das comemorações dos 70 Anos da UFRGS.
1151
MUSEUS E COLEÇÕES EM REDE: A REMAM/UFRGS
1152
Abstract: The Federal University of Rio Grande do Sul institutionalized the Network of Museums and
Museological Collections of UFRGS - REMAM, on December 7, 2011. Defined as an "articulated
meeting between collective spaces of memory, housing tangible and intangible cultural assets, in a
relationship of cooperation and solidarity, "this Network, coordinated by the Museum of UFRGS,
aims to consolidate a policy of management of scientific and cultural collections and the integration of
memory spaces of UFRGS as a way to enhance the value of this patrimony. REMAM is the result of
several initiatives for articulating UFRGS memory spaces over time. It is born, therefore, in a
consistent way and at a propitious moment for the area, with the commitment to face challenges of
construction and consolidation of a policy of museum collections in UFRGS. The adhesion of the
spaces of memory of the UFRGS to the Network of Museums and Museological Collections is
voluntary. To date, REMAM has 29 members. They are very different spaces between them, both by
the areas of knowledge they cover as well as by their origin, current configuration and needs. This
work presents the process of building this relationship between the different and the implications of
this collective doing, allowing constant exchanges between colleagues, whether teachers or
technicians, and a complementary field of action in the training of students in different areas of
knowledge. The results, even partial ones, already indicate that we are on the right track: the network
articulation brings complementary contributions and brings benefits to all.
1153
INTRODUÇÃO
A epígrafe acima, de certa forma, nos inspira para a realização deste artigo, bem como
para reforçar a ideia de que a Rede de Museus e Acervos Museológicos da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (REMAM/UFRGS) é uma instância de trocas, de
estabelecimentos de parcerias, de mudanças, de novas inserções. Inspira, também, para
continuarmos nos dedicando para o êxito destes projetos em rede de nós, cuja interconexão
está relacionada à horizontalidade, propiciando a dinamicidade das ações desenvolvidas.
Manuel Castells (2006) propõe um modelo cultural de relações sociais embasados em
redes, cuja estrutura básica é constituída por nós conectores, incentivando desta maneira, o
fluxo de mensagens e imagens. Estas relações sociais acabam por interferir na profunda
modificação da sociedade a partir do início do século XX. Percebe-se uma mudança para
além da parte operacional, ou seja, ocorrem transformações, também, nos processos de
produção, poder e cultura.
Os Museus e espaços de acervos e memórias não poderiam ficar alheios a estas
mudanças. Além disso, a articulação em rede acaba beneficiando as diferentes instituições
e/ou setores envolvidos quer seja na captação de recursos, como na divulgação e, também,
para o fortalecimento do poder de barganhar por causas inerentes a estas organizações
museais.
Não podemos deixar de mencionar que nos últimos anos passou-se a desenhar um
novo cenário para o setor museal em nosso país, e, consequentemente, para o patrimônio e a
memória. As principais iniciativas nesse sentido foram: a Lei nº 11.904/200941, que institui o
41
BRASIL. Lei n. 11.904, de 14 de janeiro de 2009a. Institui o Estatuto de Museus e dá outras providências.
Disponível em: <http://www.museus.gov.br/IBRAM>. Acesso em: 04 de novembro de 2011
1154
Estatuto de Museus; a Lei 11.906/2009b42, que cria o Instituto Brasileiro de Museus –
IBRAM; e o Decreto n° 5.264/200443, que institui o Sistema Brasileiro de Museus – SBM.
Todas estas iniciativas são decorrentes da Política Nacional de Museus44 lançada pelo
Ministério da Cultura em maio de 2003, que estabelece as bases políticas do governo federal
para o setor. Esse processo culmina com o Plano Nacional Setorial de Museus (PNSM) 45, que
organiza, estrutura e viabiliza tais políticas para a década de 2010-2020.
Uma das principais consequências dessa política pode ser sentida pela adoção de
novas formas de fomento voltadas para as práticas museais através de editais lançados por
órgãos públicos e de fomento. Outro resultado fundamental foi o surgimento de novos cursos
de graduação em Museologia nas universidades públicas federais, inclusive na UFRGS.
A ideia de “rede” foi gestada pelo Museu da UFRGS em diferentes momentos com
vistas ao enfrentamento dos problemas relativos à memória e patrimônio na UFRGS e, com a
criação do Curso de Museologia em 2008, ganhou mais um forte aliado. A REMAM, com a
atual configuração, nasce em 2011 de forma consistente e em meio a esse contexto, com o
compromisso de enfrentar enormes desafios de articulação e consolidação de uma política de
acervos museológicos na UFRGS. O Curso de Museologia integra a REMAM junto com os
demais representantes dos espaços membros.
Outras experiências de articulação em rede, inclusive em universidades, já haviam
sido implementadas com características diversas. Por outro lado, inspiradas nas iniciativas
anteriores, diferentes propostas de atuação coletiva vêm sendo adotadas.
Nossa intenção com este artigo é compartilhar as experiências vivenciadas na UFRGS
com a criação da REMAM.
42
BRASIL. Lei n. 11.906, de 20 de janeiro de 2009b. Cria o Instituto Brasileiro de Museus – IBRAM.
Disponível em: <http://www.museus.gov.br/legislacao/lei-n-11-906-de-20-de-janeiro-de-2009-2/>. Acesso em:
04 de novembro de 2011.
43
BRASIL. Decreto n. 5.264, de 5 de novembro de 2004. Institui o Sistema Brasileiro de Museus e dá outras
providências. Disponível em: <http://www.museus.gov.br/sbm/sbm_decreto.htm>. Acesso em: 04 de novembro
de 2011.
44
MINISTÉRIO DA CULTURA. Política Nacional de Museus: Memória e cidadania. Brasília: 2003.
Disponível em: <http://www.museus.gov.br/publicacoes-e-documentos/politica-nacional-dos-museus/> Acesso
em: 04 de novembro de 2011.
45
MINISTÉRIO DA CULTURA. Instituto Brasileiro de Museus. Plano Nacional Setorial de Museus (PNSM).
Brasília: 2010. Disponível em: <http://www.museus.gov.br/wp-content/uploads/2011/05/pnsm2.pdf>. Acesso
em: 04 de novembro de 2011.
1155
CRIAÇÃO, TRAJETÓRIAS, CONSTITUIÇÃO E OBJETIVOS DA REMAM-UFRGS
A elaboração do Programa “Rede de Museus da UFRGS”, proposto pelo Museu da
UFRGS, fomentando a criação da REMAM, é resultado de diversas iniciativas de articulação
dos espaços de memória da UFRGS ao longo do tempo. Assim, após ampla discussão, a
REMAM nasce com o compromisso de enfrentar os desafios de construção e consolidação de
uma política de acervos museológicos nesta universidade.
Conforme a Portaria de sua criação, a REMAM é coordenada pelo Museu da UFRGS,
chamado anteriormente de “Museu Universitário”. Entretanto, de acordo com as
características de uma rede, o que se tem almejado é a atuação integrada dos membros, sem
hierarquização. Dessa forma, as decisões da REMAM são tomadas de forma democrática em
encontros periódicos, a que todos os membros são convidados a participar. A metodologia de
atuação por meio de grupos de trabalho busca potencializar a agilidade das ações e favorecer
o caráter cooperativo, próprio do sistema de organização em rede. Dessa forma, todo o
processo de elaboração, criação e efetivação da Rede de Museus e Acervos Museológicos da
UFRGS tem propiciado ricas experiências a todos os envolvidos.
1156
Em 2017, a REMAM já se encontra estruturada com 29 espaços cadastrados.
Observamos que, passada a fase inicial de cadastramento, organização e articulação dos
espaços já existentes, outras demandas vêm aparecendo. Ao longo de 2016 tivemos o
cadastramento e organização de três novos espaços, envolvendo o reconhecimento de seus
acervos, a participação nas reuniões e a demanda por organização dos acervos.
Entre 2011 e 2016 a REMAM foi organizada em três grupos de trabalho (GTs) – GT
Projetos; GT Educação e Comunicação e GT Convênios – que, em funcionamento, foram
responsáveis por propor e realizar diferentes ações no sentido de estruturação e fortalecimento
da ideia de trabalho em rede.
O GT Projetos discutiu, elaborou e submeteu um projeto ao Prêmio Modernização de
Museus – Microprojetos 2012, do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), com execução em
2013-2014, onde foi aprovado e contemplado com financiamento, obtendo pontuação
máxima. Esse projeto privilegiava a divulgação dos espaços membros da REMAM através de
placas de sinalização para colocação nos campi com a localização dos espaços possuidores de
acervos, placas para indicação do próprio espaço pertencente à Rede e impressão do “Guia
REMAM 2012-2014” disponível até então somente no formato virtual.
As contribuições do GT Educação e Comunicação, conforme prioridades estabelecidas
pela Rede, foram direcionadas para as questões de visibilidade da REMAM. Nesse sentido, o
GT propôs e coordenou a criação do logotipo da rede, que foi elaborado pelo estagiário do
Museu da UFRGS, Carlos Eduardo Galón, arquiteto e estudante de artes visuais. A proposta
foi apresentada em 30 de novembro de 2012 aos membros da Rede, explicitando os conceitos
que originaram a figura da mandala. Muito elogiada, a proposta foi aprovada por todos os
participantes, passando a ser adotada no início de 2013. Além disto, o GT coordenou a
elaboração e disponibilização virtual de um informativo da REMAM, reunindo dados e ações
dos diferentes espaços membros. Esse material, com projeto gráfico de Frederico Lisboa,
aluno do curso de Publicidade e Propaganda e estagiário de Comunicação do Museu da
UFRGS, está disponível na internet através do link
http://issuu.com/ufrgsmuseu/docs/remamcatalogo.
1157
Figura 2: Logotipo da REMAM.
Uma das principais ações do GT Convênios foi propor discutir e elaborar, junto com a
Coordenação, a ampliação e adequação para renovação do termo de cooperação entre
REMAM e Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST), anteriormente restrito, no
âmbito da UFRGS, ao Observatório Astronômico.
Não obstante, a busca pela institucionalização e formalização, o caráter pretendido
para esta forma de organização articulada é o da democratização, cooperação e
horizontalidade, não visando à fiscalização e nem a normatização engessada. Nesse sentido, a
adesão dos espaços de memória da UFRGS à Rede é voluntária. A solicitação deve ser feita
mediante envio de formulário específico à Coordenação da Rede, responsável por analisar sua
pertinência. Até o presente momento, integram a REMAM vinte e nove membros. São
espaços muito diferentes entre si, tanto pelas áreas de conhecimento que abrangem quanto por
sua origem, configuração atual e necessidades. São museus, inclusive virtuais; memoriais;
planetário; observatório astronômico; herbário; arquivo histórico; centro de memória; acervo
constituído por núcleo de pesquisa; acervo constituído pelas experiências de ensino; acervo
constituído a partir dos fluxos organizacionais de setores da administração central da
Universidade; entre outros.
Alguns membros contam com o reconhecimento e o apoio das direções e comunidades
acadêmicas de suas unidades. No entanto, a maioria se mantém pela dedicação abnegada de
alguns docentes ou técnicos, mesmo que de forma voluntária. Outros acervos, em que pese
sua importância histórica ou científica, ainda correm o risco de desaparecimento. O quadro
abaixo é um demonstrativo dos espaços que aderiram a REMAM. Mostra, ainda, a Unidade a
qual pertence cada um dos espaços:
1158
Museu da UFRGS Pró-Reitoria de Extensão
Planetário Professor José Batista Pereira Pró-Reitoria de Extensão
Museu da Informática Instituto de Informática
Museu de Topografia Prof. Laureano Ibrahim Instituto de Geociências
Chaffe
Museu de Mineralogia e Petrologia Luiz Englert Instituto de Geociências
Museu de Paleontologia Instituto de Geociências
Observatório Astronômico da UFRGS Instituto de Física
Acervo Museológico dos Laboratórios de Instituto de Física
Ensino de Física
Arquivo Histórico do Instituto de Artes Instituto de Artes
Setor de Acervo Artístico da Pinacoteca Barão Instituto de Artes
de Santo Angelo
Pinacoteca Barão de Santo Angelo Instituto de Artes
Museu Virtual do Sintetizador Instituto de Artes
Museu Moda & Têxtil Instituto de Artes
Centro de Memória do Esporte Escola de Educação Física
Herbário ICN Instituto de Biociências
Museu de Ciências Naturais do CECLIMAR Instituto de Biociências
Museu da Genética Instituto de Biociências
Memorial da Imigração e Cultura Japonesa da Instituto de Letras
UFRGS
Museu Claudio Job Faculdade de Odontologia
Acervo Histórico da SUINFRA SUINFRA
Setor de Patrimônio Histórico SUINFRA
Museu do Motor Escola de Engenharia
Arquivo Setorial da Faculdade de Farmácia Faculdade de Farmácia
Museu Universitário de Arqueologia e Etnologia Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Núcleo de Pesquisa em História Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
1159
Memorial da Faculdade de Agronomia Faculdade de Agronomia
Coleção Ornitológica de Rudolf Gliesch Faculdade de Veterinária
Memorial Medicina Faculdade de Medicina
Museu do Instituto de Química Instituto de Química
FÓRUM DA REMAM
O principal mecanismo de funcionamento da Rede é o Fórum. Esse Fórum realiza
reuniões ordinárias periódicas, às quais são convidados todos os espaços membros e, em
algumas ocasiões, convidados ou parceiros externos que tenham relação com a pauta
discutida naquele dia. Essa estrutura de organização e deliberação garante à Rede seu caráter
democrático e colaborativo. A proposta de pauta de cada encontro é elaborada pela
coordenação, considerando necessidades comuns e sugestões enviadas pelos diferentes
membros. A coordenação também se responsabiliza pelo envio do convite e pela articulação
da estrutura necessária à reunião.
Com o intuito de conhecer efetivamente todos os espaços que se disponibilizaram a
atuar conjuntamente, a coordenação da Rede organizava visitas técnicas nomeadas de
“Museus visitam Museus”. Nessas ocasiões, membros dos espaços da REMAM visitavam um
dos espaços, onde eram recebidos pelos seus responsáveis e/ou equipe, que apresentava o
acervo, os objetivos e o cotidiano de trabalho. As visitas permitiram o conhecimento e
reconhecimento dos espaços de memória da UFRGS e uma integração entre as equipes de
trabalho dos mesmos.
O Fórum reunia-se mensalmente em um lugar central. No entanto, devido às muitas
tarefas a serem desempenhadas pelos agentes dos diferentes espaços, não estava sendo
possível agendar as visitas técnicas aos espaços, tão elogiadas e imprescindíveis. Na busca de
uma solução, foi elaborada uma proposta que levasse em conta:
a) o conhecimento das realidades específicas de cada espaço membro, como forma de
fortalecer vínculos e potencializar ações de interação e colaboração;
b) a necessidade de divulgação da Rede e dos espaços de memória que a compõem, inclusive
em suas próprias unidades gestoras e comunidade acadêmica;
1160
c) a criação de estratégias que fomentassem a valorização da REMAM, dos espaços membros,
suas ações e acervos, com o reconhecimento de seu papel para a preservação, pesquisa e
disponibilização do patrimônio científico-cultural da Universidade e sua memória;
d) a otimização do tempo dispensado pelos agentes dos espaços às atividades da Rede.
Propusemos, então, que as reuniões mensais do Fórum fossem realizadas nos próprios
espaços membros em sistema de rodízio, articulando a reunião com a visita técnica. Um ponto
fixo da pauta de cada encontro seria a apresentação do espaço anfitrião aos demais
participantes. Além disso, sugerimos que a coordenação enviasse a cada reunião um convite
aos gestores das unidades em que se localizava o espaço anfitrião. A proposta foi aceita e
implementada, já tendo realizado encontros em diferentes espaços. Todas as visitas foram
com a participação dos diretores e equipe dos espaços membros.
1161
Figura 3: Roda de Conversa com museólogo Mário Chagas
1162
quando foi celebrado o acordo entre a REMAM e o MAST, que abordaremos a seguir. Na
ocasião, para além do encontro com os membros da REMAM e da visita técnica ao
Observatório, ele ministrou a palestra “As Coleções de Ciência e Tecnologia no Mundo
Contemporâneo”.
1163
publicação do inventário realizado. O inventário e sua metodologia foram brevemente
apresentados aos demais espaços membros na última reunião da REMAM no ano de 2016.
1164
Figura 7: Cerimônia de lançamento dos produtos do Edital no gabinete do Reitor da UFRGS.
A sinalização interna dos espaços, indicando que naquele local existe um setor ligado
à REMAM e, portanto, um espaço de preservação e guarda de patrimônio cultural, científico e
tecnológico, foi imediatamente implementada, ou seja, afixada em local visível na entrada ou
nas dependências de cada setor em questão. Posteriormente, em acordo com a Prefeitura
Universitária, foram colocadas as placas de sinalização nos campi, facilitando o acesso e a
informação ao público.
1165
quando a universidade recebe a comunidade tendo como prioridade os alunos, professores e
demais integrantes de escolas de ensino médio do estado. Foi igualmente distribuído entre
todos os espaços membros da REMAM, para o corpo docente e discente do curso de
Museologia, para as bibliotecas setoriais da UFRGS, bem como para outras instituições,
públicas ou privadas, que atuam na área do patrimônio. Parte da tiragem foi também enviada
às Coordenadorias Regionais de Educação do Rio Grande do Sul. Os exemplares restantes
ficaram no museu para serem distribuídos entre os visitantes e em eventos.
Ações diversas
Considerando os resultados positivos da atuação da REMAM, a coordenação da
mesma tem sido convidada a relatar a experiência de constituição desta forma de organização
por disciplinas e instituições universitárias ou não que desejam dar coesão e estabelecer
conexões cooperativas e colaborativas entre espaços de preservação e reafirmação das
memórias.
A Coordenação da Rede também centraliza as demandas por estagiários ou bolsistas
em cada um dos espaços membros, direcionando as vagas em consonância com a
programação do semestre dos cursos de Museologia, Pedagogia e História da UFRGS.
Portanto, a REMAM e cada um dos espaços que a constitui são também espaços de
aprendizagem teórica e técnica, objeto de pesquisa e de estudos de caso para diversas áreas do
conhecimento.
A UFRGS em 2014 comemorou seus 80 anos. Com este intuito, de apresentar, dar a
conhecer, refletir, discutir sobre as coleções existentes na UFRGS e destacar sua importância
ao longo da trajetória 80 anos, o Museu da UFRGS elaborou a exposição Coleções de
saberes: trajetórias de conhecimentos na UFRGS com os acervos dos membros da REMAM.
1166
Teve como objetivo refletir sobre essas coleções e o quanto, em sua diversidade,
formam um conjunto de artefatos, documentos e histórias que nos contam a origem, a
consolidação e a atualidade da Universidade tanto quanto como as ciências foram percorrendo
os “recantos” dessa instituição, por meio de seus artefatos científicos tecnológicos e/ou por
meio de sua produção teórica e institucional.
Apesar do Museu da UFRGS, ao longo de sua trajetória, ter concebido, sob a forma de
curadorias compartilhadas, exposições sobre os mais variados temas de todas as áreas do
conhecimento, foi a primeira vez que conseguiu envolver quase todos os setores que guardam
acervos da história da universidade em suas diversas Unidades Acadêmicas ou Setores da
Administração - de uma só vez - em uma única exposição.
1167
Figura 10: Exposição Coleção de Saberes – Entrada.
1168
sentido de pertencimento a uma comunidade e a uma história comum que ultrapassa a guarda
e preservação de objetos e prédios.
Considerações finais
Procuramos até aqui expor as atividades desenvolvidas e as implicações deste fazer
coletivo, permitindo constantes trocas entre colegas servidores, sejam docentes ou técnicos,
bem como a atuação qualificada dos estudantes da UFRGS, em diferentes áreas do
conhecimento.
Além destas ações internas, os membros da REMAM têm elaborado produções e
reflexões escritas sobre a atuação em rede que resultam em publicações e apresentações de
trabalhos em fóruns acadêmicos ou profissionais. As discussões internas no Fórum REMAM,
tem sido espaço de aprofundamento de temas como a preservação e a comunicação dos
acervos sob a guarda de tais espaços. Os resultados, mesmo parciais, já indicam que estamos
no caminho certo: a articulação em rede congrega contribuições complementares e traz
benefícios a todos.
Referências bibliográficas:
1169
CASTELLS, Manuel. A era da informação: economia, sociedade e cultura. A sociedade em
rede. São Paulo: Paz e Terra. 1999.
1170
O HERBÁRIO PROFª DRª MARLENE FREITAS DA SILVA (MFS) DA
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO PARÁ: DIÁLOGOS ENTRE CIÊNCIA,
UNIVERSIDADE E MUSEU
Resumo: É intrínseca a relação entre as origens dos museus e das coleções botânicas, que vieram a se
tornar os herbários contemporâneos. As origens da história natural e das suas disciplinas derivadas,
compondo a própria história da ciência, tem relação direta com a história dos museus e dos herbários.
Os museus universitários, mesmo contendo coleções memoráveis, algumas das mais antigas do Brasil
e do Mundo, padecem pela falta de valorização, visibilização e suporte das universidades às quais
estão vinculados. Herbários são espaços de preservação de espécimes vegetais reconhecidos no meio
científico por salvaguardar, pesquisar e comunicar o patrimônio natural botânico. O Herbário MFS
Profª Drª Marlene Freitas da Silva, da Universidade do Estado do Pará é constituído pela coleção de
exsicatas (e as coleções associadas de flores, frutos e sementes, e plântulas), fungos, briófitas e
biocultural. Relatam-se as atividades de conservação, documentação, pesquisa e comunicação do
acervo. O Herbário MFS é comprometido com ações de ensino, pesquisa e extensão. Herbários
abrigam o patrimônio científico brasileiro e devem se enxergar como espaços museológicos e lócus da
atuação teórica e prática dos profissionais de museu.
Abstract: The origins of museums and herbaria are intertwined. Similarly, the evolution of natural
history and its derivatives, and thus of history of science itself, is also connected with the history of
museums and herbaria. University museums, which include some of the oldest museums in Brazil and
in the world, are institutions that in general lack valorization, visibility and support from their parent
universities. Herbaria are scientific institutions that safeguard, research and communicate the botanic
heritage. The Profª Drª Marlene Freitas da Silva (MFS) Herbarium of the State University of Pará is a
university herbaria formed by its dried plants collection (and the ancillary collections of flowers,
plants and seeds and seedlings) and the Fungi, Bryophytes and Biocultural collections. The curatorial,
research and communication activities of the collections are described. The MFS Herbarium is
committed to its educational, research and outreach missions. Herbaria are important agents of the
scientific heritage and must expand its self-identification as museum and culture spaces, and as such
locations of theory and practice of the field of museums and its workers.
Key-words: Botanical collections; museum; university museum; museum studies; culture; heritage.
1171
Coleções botânicas, herbários, jardins botânicos e museus: conceitos, origens,
aproximações e distanciamentos
1172
herbários distribuídos ao redor do globo preservam mais de 380 milhões de espécimes
botânicos (THIERS, 2017).
Pode-se observar uma intrínseca relação entre as origens dos museus e das coleções
botânicas, que vieram a se tornar os herbários contemporâneos. Da mesma maneira, as
origens da história natural e das suas disciplinas derivadas, compondo a própria história da
ciência, tem relação direta com a história dos museus e dos herbários.
1173
Museus e coleções universitárias
Essas características únicas, que trazem amplas possibilidades, como a própria missão
e razão de ser do museu, a integração com uma comunidade produtora de conhecimento, o
compartilhamento de infraestrutura e equipe, também trazem apreensões e desafios. Como
menciona Michelon (2014), é como se houvesse um “manto silencioso” que oculta esses
museus, resultado da majoritária inexistência de uma política das universidades para com os
seus patrimônios. Procurando uma resposta, a autora se pergunta: “Carecem os acadêmicos da
compreensão dos valores deste equipamento cultural? Carece a universidade, como
1174
instituição, de visão suficiente para ver as largas portas para o conhecimento que podem ter os
museus?”
Os Herbários no Brasil
1175
como espaços científicos completos. Funk (2003) lista 72 possíveis usos para herbários,
adicionado aos usos básicos: história, saúde, usos educacionais e informativos, genética,
biogeografia, pesquisas a partir de dados de ocorrência, alterações de uso/cobertura vegetal,
descoberta de novas espécies (BEBBER, 2010), padrões de expansão de espécies invasivas,
conservação e áreas prioritárias e etnobiologia. CULLEY (2013) enfatiza a necessidade de
citar os vouchers nos artigos científicos sempre que possível, de forma a confirmar o valor
prático das coleções.
1176
O Herbário Profª Drª Marlene Freitas da Silva da Universidade do Estado do
Pará: entre a salvaguarda, a pesquisa e a comunicação e o ensino, a pesquisa e a
extensão
O Herbário Profª Drª Marlene Freitas da Silva (MFS) foi criado no ano de 2011 na
Universidade do Estado do Pará (UEPA) a partir dos resultados obtidos com o projeto de
pesquisa “Coleção de frutos, sementes e plântulas amazônicas: conhecimento e valorização do
patrimônio genético natural”. A equipe de trabalho é formada pela sua criadora e curadora,
Profa. Dra. Flávia Araújo Lucas, Profa. Adjunto IV e vinculada ao Departamento de Ciências
Naturais do Centro de Ciências Sociais e Educação da universidade, um biólogo, discentes de
graduação e pós-graduação e diversos colaboradores.
O Herbário Profª Drª Marlene Freitas da Silva é indexado no Index Herbariorum com
o acrônimo MFS, homenagem à Drª. Marlene Freitas da Silva (1937-2005), importante
taxonomista da Amazônia especializada na família botânica Leguminosae (Fabaceae Lindl) e
fundadora do Departamento de Botânica do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia
(INPA), em Manaus.
1177
cerca de 11.500 imagens também foi organizado. Nos parágrafos seguintes apresentamos as
coleções do Herbário MFS e suas práticas curatoriais. COSTA et al. (2014) destacam aspectos
das coleções associadas do Herbário MFS.
A coleção de exsicatas, tal qual como na quase totalidade dos herbários do mundo,
constitui o cerne do acervo. No herbário MFS as exsicatas são desidratadas em estufa e
coladas em papel cartonado (30 cm x 45 cm), possuindo uma etiqueta com todos os dados de
identificação do espécime e do ambiente em que foi realizada a coleta (Figs. 1A e 1B). O
armazenamento é realizado em armários compactadores especiais e controle ambiental
realizado através de controle da temperatura por refrigeração permanente e da umidade
através do uso de desumidificadores (Fig. 1C).
1178
Figura 1: Coleção de exsicatas. 1A. Exsicata de Brugmansia suaveolens. 2B. Detalhe da etiqueta de
identificação, repare que a informação "Extinta na natureza", está anexada. 2C. Condicionamento das exsicatas
em pastas de gênero, separação de família em papel pardo e armazenamento em compactador.
As flores, como órgãos reprodutivos vegetais, são fundamentais para identificação das
espécies e fornecem maiores informações sobre os seus aspectos reprodutivos.
Frequentemente, por suas características e delicadeza, devem ser mantidas em meio líquido,
formando uma coleção associada/auxiliar à coleção de exsicatas, como ocorre no Herbário
MFS (Fig. 2C).
1179
A coleção associada/auxiliar de plântulas (Fig. 2D) é constituída de plantas colocadas
para crescer em diferentes estados de germinação, que é então interrompido e preservado,
com os exemplares mantidos em meio líquido (álcool 70% e glicerina). O seu estudo é
importante por combinar características da semente e do indivíduo adulto, fornecendo
numerosos indícios para a identificação das espécies no campo. O estudo morfológico de
plântulas também contribui em pesquisas morfoanatômicas e ecofisiológicas, com intuito de
ampliar o conhecimento sobre determinada espécie ou grupo taxonômico.
Figura 2. Coleções associadas ou auxiliares. 2A e 2B, coleções de frutos e sementes. 2C, coleção de flores. 2D,
coleção de plântulas.
1180
acompanhadas de etiquetas com as informações taxonômicas, micológicas e os respectivos
dados ecológicos.
1181
Exemplares etnobiológicos, artefatos, documentos e informações associadas
(vegetais, animais e culturais) que representam as relações dinâmicas entre
comunidades, biota e os ambientes. Nesse campo dinâmico, as
transformações e associações são centrais. Falando de outra maneira,
coleções bioculturais são repositórios de plantas e animais usados pelo ser
humano, os produtos resultantes e/ou as informações e objetos culturais
relacionados. Incluem qualquer objeto feito de material biológico,
especialmente aqueles com conotações culturais específicas; objetos não
biológicos, mas usados no processamento desses materiais (por exemplo,
ferramentas); objetos usados em rituais espirituais ou religiosos associados à
processos biológicos; suas representações artísticas e artesanais; dados de
informações ou arquivos relacionados à cultura, linguagem, criação,
processamento e uso de um objeto biocultural (SALICK; KONCHAR;
NESBITT, 2014, p. 1).
1182
Figura 4: Coleção biocultural do Herbário MFS da UEPA. 4C. Infraestrutura da coleção. 4B. Exemplares de
farinhas e exemplares medicinais. 4C. Exemplares de cuias com grafismos.
1183
Integrada com sua concepção e seio universitários, suas atividades de ensino são
realizadas através da interação permanente com os cursos de graduação da universidade, da
capital e do interior e de outras instituições de ensino superior, atuando como um espaço
formativo durante as disciplinas e de atuação via estágio. Alunos de pós-graduação são
orientados através dos Programas de Pós-Graduação em Ciências Ambientais do Centro de
Ciências Naturais e Tecnologia (CCNT) da UEPA, do Programa de Pós-Graduação em
Ciências da Religião do CCSE da universidade e do Doutorado em Biodiversidade e
Biotecnologia do Programa BIONORTE.
1184
periódico com o tema “Botânica e Sociedade – a Herbários e a divulgação científica”,
detalham e divulgam as diversas atividades de extensão exercidas pelo Herbário MFS.
As ações educativas, para além das práticas de mediação durante as visitas ao acervo
ou à exposição permanente no CCPP, compreendem eventos, oficinas ou minicursos que
oportunizam um maior contato entre a universidade e sociedade, disponibilizando materiais
biológicos do acervo para conhecimento e valorização de patrimônios naturais. A oficina
“Coleções Botânicas: Conhecimento e Valorização da Biodiversidade Amazônica” (Fig. 5C),
além de formação teórica, inclui a prática curatorial (incluindo a preparação de exsicatas e
documentação), gerenciamento e prática de campo. Além disso, são elaborados recursos
didáticos e informativos sobre a biodiversidade, que auxiliam as aulas de botânica na
educação básica e na graduação (programa Herbário Itinerante). Estes momentos promovem
intercâmbios com diversos públicos em diferentes idades: professores e alunos de escolas,
comunitários, acadêmicos da graduação e pós-graduação, técnicos, agricultores e
comunitários.
1185
expedições podem ser observados através das coleções do acervo do herbário, seus bancos de
dados e produções técnico-científicas. Estes dados são coletados durante excursões de campo
a comunidades, ambientes naturais, feiras livres, mercados, quintais e parques públicos.
Abaetetuba (Ilhas e Quintais), Ilha do Combu em Belém, Capanema, Salvaterra, Soure,
Ourém, Altamira, Paragominas, Bujaru, Marituba, dentre outras regiões, são núcleos dessas
ações (Fig. 5D).
1186
estrutura e equipamentos, escassez de editais, necessidade de profissionais especializados em
sistemática e taxonomia, e ausência de recursos para as expedições de campo. Esses desafios,
compartilhados por outros herbários, museus e coleções ao redor do mundo em nada
diminuem a vontade da equipe em atravessá-los.
Conclusão
Referências bibliográficas
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1187
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1190
ANÁLISE DE CONSERVAÇÃO PREVENTIVA EM ACERVO DIDÁTICO: UM
ESTUDO DE CASO NA SALA DO ACERVO DE FIGURINO DA ESCOLA DE
TEATRO E DANÇA DA UFPA
Resumo: O presente trabalho é resultado da análise da sala onde está atualmente armazenado o acervo
de figurino da Escola de Teatro e Dança da Universidade Federal do Pará, atualmente coordenado pela
profª drª Ezia Neves. Utilizando métodos à luz da conservação preventiva, buscaremos apontar
soluções que viabilizem a prolongação da vida útil deste acervo.
Abstract: The present work is the result of the analysis of the room where the collection of costumes
of the School of Theater and Dance of the Federal University of Pará is currently stored, currently
coordinated by Prof. Ézia Neves. Using methods in the light of preventive conservation, we will seek
to point out solutions that allow the prolongation of the useful life of this collection.
1191
Um breve histórico
Traje de cena dá uma perspectiva muito maior ao traje usado nas artes
cênicas em geral, que podem envolver teatro, mímica, pantomima, circo,
cinema, teatro pós-moderno ou pós dramático, balé, performance, enfim,
todo e qualquer evento que contenha cena ou suas variantes. No Brasil tem-
se usado o termo figurino. (VIANA, 2015, p. 17.)
46
Sub-unidade do ICA- Instituto de Ciências da Arte da Universidade Federal do Pará, sediada atualmente na
Av. Jerônimo Pimentel, esquina com Tv. Dom Romualdo de Seixas – bairro Umarizal.
47
Trabalho de transformar madeira em um objeto útil ou decorativo. Atividade desenvolvida em algumas
disciplinas do curso técnico em cenografia.
1192
O acervo
- Portas de acesso.
1193
cabides por toda a extensão das paredes, ou em prateleiras de aço inox que ocupam o centro
da sala. Algumas peças estão protegidas por sacos plásticos ou guardadas em caixas de
papelão.
O espaço conta com uma central de ar condicionado. Este só é ligado no período em
que a professora responsável se encontra na instituição (manhãs de segunda a sexta), ou
quando alguém entra no acervo para pegar alguma peça, desligando-o logo em seguida. A
decisão de manter a central desligada ocorreu em decorrência de um curto circuito, e do risco
deste curto ocorrer novamente. Portanto, os altos índices, bem como as variações de
temperatura também são significativas. A iluminação da sala se dá por lâmpadas fluorescentes
sem filtro, que incidem diretamente sobre as peças. O acesso ao espaço se dá sob coordenação
da prof.ª Ézia, e por vezes, de algum outro professor, que necessite de alguma peça do acervo,
na ausência da professora.
Ao falar de um possível diagnóstico deste acerto, esses fatores não devem ser
ignorados e é necessário ressaltar que: 1. A sala, no qual este acervo se encontra, não foi
construída pra ser uma reserva técnica. Porém isso não impede que adaptações sejam feitas
para que este se torne um espaço mais apropriado para a armazenagem do acervo. Esta possui
poucas entradas de acesso (apenas uma porta é utilizada no momento), o que facilita no
controle das condições térmicas e dificulta o acesso de pragas provenientes do ambiente
externo, como roedores, insetos, etc. e 2. O acervo foi idealizado pra ser como uma coleção
didática. Este atende demandas distintas dos alunos. O circuito de empréstimos funciona
diariamente.
Para verificar as condições do espaço, foram feitas tiragens de temperatura e umidade
relativa, com um termo higrômetro48 no acervo e nas salas ao redor deste. No acervo foram
feitas tiragens de incidência de raios infravermelhos, sendo as fontes, as lâmpadas
fluorescentes. Para esta tiragem, foi utilizado um termômetro infravermelho.
48
O termo-higrômetro digital é um instrumento de medição das temperaturas interna, externa e da umidade
relativa do ar no ambiente onde trabalha. Possui também a capacidade de armazenar os respectivos valores de
máximos e mínimos alcançados ao longo de um período de tempo das temperaturas.
1194
AMBIENTE TEMPERATUR UMIDAD INSCIDÊNCIA DE
A INFRAVERMELH
E
RELATIV O
As medições foram feitas nos seguintes horários: Acervo – Próximo à porta, centro da
sala e fundo da sala: às 16 horas; Sala de lavagem: A primeira medição foi feita às 13 horas, a
segunda, às 16h30min; Sala 21: às 13h40min; Camarim e banheiro do camarim: às 12horas.
A Umidade Relativa do ar indica a porcentagem da quantidade máxima de vapor de
água que o ar pode reter nesse momento. Por exemplo, se o ar retém apenas metade da sua
capacidade máxima, então a umidade relativa do ar é de 50%. A quantidade máxima de vapor
de água que o ar pode reter depende da temperatura e da pressão atmosférica do mesmo.
Desta forma, considerando a pressão atmosférica do ar constante, quanto mais quente o ar
estiver, mais água este será capaz de reter. Se a Umidade Relativa do ar for de 100% significa
que o ar está completamente saturado, não conseguindo reter mais água.
1195
A umidade absoluta do ar é quantidade de vapor existente no ar em massa de água por
massa de ar seco e contrariamente à humidade relativa não varia com a temperatura e pressão
atmosférica do ar. Os problemas causados pela umidade excessiva são vários. A umidade
pode causar o apodrecimento de materiais orgânicos (madeiras, papel, tecidos, couros, etc.), a
proliferação de microrganismos, curto-circuitos nos sistemas elétricos, ferrugem nas tubagens
e outros componentes metálicos, aglomeração de poeira, etc.
O bolor (mofo) e respetiva decomposição (putrefação) ocorrem em ambientes
húmidos, e podem resultar em danos significativos para os edifícios e materiais orgânicos
(papel, tecidos, quadros, madeiras, couros, etc.). Existe também o risco para a saúde das
pessoas que frequentam ambientes afetados pelo bolor. Se a humidade relativa exceder os
70%, o risco de aparecimento e crescimento de fungos torna-se elevado.
Os problemas de umidade surgem frequentemente quando o ar quente é arrefecido
bruscamente – como, por exemplo, no contato do ar quente com uma superfície fria
(envidraçado exterior ou ponte térmica). A diferença térmica existente entre o ar e essa
superfície pode originar condensações, que por sua vez, cria condições ideais para a formação
de fungos. A alta temperatura, as constantes variações de temperatura e umidade, e a
incidência direta de raios infravermelhos são fatores prejudiciais e proporcionam riscos à
acervos têxteis, como deterioração das fibras. Deve se dar atenção também ao método de
armazenagem. Plásticos costumam ser quimicamente instáveis e o papelão, por ser orgânico,
atrai pragas. Ambos são agentes de deterioração, seja física ou química, das fibras têxteis.
Algumas considerações
A partir de uma análise dos dados, o espaço não demanda de recursos viáveis para a
durabilidade do acervo. Porém, a quase 10 anos o acervo vem cumprindo a sua função,
servindo de suporte pra atividades práticas dos alunos e da comunidade da Etdufpa, seja para
atividades acadêmicas ou criações artísticas particulares dos alunos e professores.
Como possibilidades para melhorar as condições do espaço, sugere-se a criação de um
plano gestor (Indicações de medidas para prolongar a vida útil do acervo) que vise a
adaptação do espaço e dos procedimentos para empréstimos das peças do acervo. Estas
1196
indicações podem/ devem ser atendidas de acordo com a disponibilidade de recursos da
instituição:
- Reverter as paredes para evitar o contato direto das peças dispostas nos cabides com a
parede.
- Trocar as lâmpadas fluorescentes por lâmpadas de LED. A luz emitida pelos LEDs é fria
devido a não presença de infravermelho no feixe luminoso. Também não libera
radiação ultravioleta. Não utiliza mercúrio ou qualquer outro elemento que cause dano
à natureza. Se não for possível trocar as lâmpadas, criar filtros para evitar a incidência
direta dos feixes luminosos nas peças.
-Quanto à temperatura, deve se buscar estabilidade. Regular o horário de
funcionamento do aparelho de ar condicionado.
- Reduzir os índices de umidade fazendo a utilização de materiais como sílica gel em
todo o espaço do acervo. A sílica pode ser encontrada em várias versões, inclusive
reutilizáveis, e são matérias de baixo custo. Havendo a possibilidade da compra de
equipamento, a prioridade deve ser dada para um desumidificador.
- Trocar embalagens plásticas por embalagens de TNT branco. O TNT é um material
de ph neutro e na cor branca, possui menos adição de corantes.
- Realizar inventariação de todas as peças, criar uma numeração especifica pra cada
peça. O número de cada peça deve ser gravado de forma permanente na mesma,
para viabilizar o reconhecimento das peças, quando estiverem fora do acervo.
- Criar uma ficha de empréstimo para cada peça, contendo no mínimo os campos:
Número (Numero de inventário da peça), Condições da peça (Um breve laudo sobre
as condições físicas da peça, se há rasgos, perda da cor, algum dano na peça. Caso
não haja, deve estar descrito na ficha); Solicitante (Nome de quem está emprestando
a peça); Data do empréstimo/ data de devolução (No formato dd/mm/aaaa);
1197
Observações (Descrever as condições que a peça está no momento do retorno). É
importante que as informações sejam mantidas, para poder haver um controle de
entradas e saídas das peças.
Nota
A dois anos, por iniciativa da profª Ezia, iniciou-se um processo de documentação
deste acervo. O objetivo principal é a seleção de peças para compor a coleção histórica do
acervo. As peças selecionadas (prioritariamente, as mais antigas e com maior relevância para
a história dos espetáculos criados pela escola) irão ser redirecionadas para outra sala e sairão
do circuito de empréstimos. Esta medida possibilitará que o acervo cumpra sua função
primária, bem como garanta maior segurança às suas peças históricas.
Referências bibliográficas
VIANA, Fausto; NEIRA, Luz García. Princípios gerais de conservação têxtil. Revista CPC,
São Paulo, n. 10, p. 206-233, maio/out 2010. Disponível em:
<http://www.usp.br/cpc/v1/imagem/conteudo_revista_conservacao_arquivo_pdf/09_10r18.pd
f>. Acesso em: abr. 2015.
VIANA, Fausto. O traje de cena como documento. São Paulo: Estação das letras e cores,
2015. 284 p.
1198
COLEÇÃO QUADROS DE FORMATURA DO MUSEU DA UNIVERSIDADE
FEDERAL DO PARÁ (MUFPA): UM ESTUDO PELO PROCESSO DA
DOCUMENTAÇÃO PARA ACERVOS MUSEOLÓGICOS
Resumo: O trabalho de pesquisa da coleção dos quadros de formatura (períodos de 1906 a 1958), os
quais pertencem ao acervo do Museu da Universidade Federal do Pará (MUFPA) e do Instituto
Histórico Geográfico do Pará (IHGP), trata-se de uma coleção de construção artística que compõem a
cultura material da instituição. Sua materialidade transcende a presença física, pois fizeram e fazem
parte da história da Faculdade de Medicina e Cirurgia do Pará e da Faculdade de Direito do Pará.
Entretanto, o museu denomina estas peças de “placas” e esta atribuição de “Quadros de Formatura”,
assim como o seu tratamento com a Coleção, é uma atribuição do estudo. Este acervo composto de 17
(dezessete) quadros configura-se como objeto de sondagem desta pesquisa, visto que as obras ainda
não foram estudadas no contexto acadêmico paraense. Como instrumento metodológico da pesquisa
qualitativa, os procedimentos adotados a partir das teorias da documentação museológica gerou uma
Ficha de Arrolamento contendo número de ordem, termo/título, a classe e a subclasse de cada objeto.
Na sequência, a construção da Ficha Catalográfica, que dentre outras ações realizamos uma ampla
pesquisa sobre o acervo, a partir de uma abordagem individual de cada objeto. Essas informações
foram organizadas em: identificação do objeto; análise do objeto; conservação do objeto; notas;
reprodução fotográfica; e dados de preenchimento. O resultado da análise dos quadros de formatura
produzidos pelos desenhistas Manuel de Oliveira Pastana, Antonieta Santos Feio, Ernesto Lohse,
fotografias produzidas pelos ateliers Photographia Fidanza, Oliveira Pará e outros, proporcionaram
uma constatação de elos harmoniosos: de um lado, a fotográfica e a arte pictórica; do outro, a
ostentação por meio de elaborados quadros de formatura da renomada faculdade em relação à
sociedade paraense no cenário educacional.
1199
Abstract: The research work of the collection of graduation cadres (periods from 1906 to 1958),
which belong to the collection of the Museum of the Federal University of Pará - MUFPA and the
Historical Geographic Institute of Pará - IHGP. It is a collection of artistic construction that make up
the material culture of the institution. Their materiality transcends the physical presence, as they have
been and are part of the history of the Faculty of Medicine and Surgery of Pará and the Faculty of Law
of Pará. However, the museum calls these pieces of "plaques", this attribution of "Graduation
Pictures", As well as, its treatment with the Collection is an assignment of the study. This collection of
17 (seventeen) paintings is the object of this research, since the works have not yet been studied in the
academic context of Pará. As a methodological instrument of qualitative research, the procedures
adopted from the theories of museological documentation generated a Record of Record containing
number of order, term / title, class and subclass of each object. In the sequence, the construction of the
Catalog, which among other actions we carry out an extensive research on the collection, from an
individual approach of each object. This information was organized in: identification of the object;
analysis of the object; conservation of the object; grades; photographic reproduction; and registration
data. The result of the analysis of the graduation frames produced by the designers Manuel de Oliveira
Pastana, Antonieta Santos Feio, Ernesto Lohse, photographs produced by the Photographia Fidanza,
Oliveira Pará, and others ateliers provided a finding of harmonious links: side, photographic and
pictorial art; On the other, the ostentation by means of elaborate cadres of graduation of the renowned
faculty in relation to the Parana society in the educational scene.
1200
Museu da Universidade Federal do Pará (MUFPA) e o estudo da documentação
museológica à coleção de quadros de formatura
O Museu da Universidade Federal do Pará (MUFPA) foi fundado no ano de 1982, na
administração do reitor Daniel Coelho de Souza, mas a implantação se constituiu em 1984,
sediado nas dependências do “Palacete Augusto Montenegro49”, em um bairro nobre da
capital paraense. No âmbito da museologia, em relação às tipologias de museus, o MUFPA é
classificado como um museu tradicional, em decorrência da ligação com os três elementos: o
Edifício (casa-palacete), que é o ambiente arquitetônico que se representa como um panorama
museológico; a Coleção, que está vinculada aos artefatos pesquisados e adquiridos,
salvaguardados pela instituição; e o Público, os usuários do museu. A instituição reúne
coleções de artistas entre os séculos XIX ao XXI: Joseph Leon Righini (Turim, Itália, 1820-
Belém, 1884), Theodoro José da Silva Braga, Antonieta Santos Feio, Ruy Meira, Antar Rohit,
entre outros, as quais estão listadas no último inventário do acervo do museu, realizado em
2011 pela pesquisadora Sra. Magalene Gaspar com registro em cartório da capital, o que é
constituído em 831 peças, sendo divididas em: 246 pinturas, 303 desenhos, 178 gravuras, 79
esculturas, 25 fotografias e 11 objetos criados por artistas visuais paraenses, nacionais e
internacionais (BRITTO, 2014).
Para esse estudo, o recorte foi realizado a partir de 17 (dezessete) peças da Coleção de
Quadros de Formatura da Faculdade de Medicina e Cirurgia do Pará e da Faculdade de
Direito do Pará (1906 a 1958), constituídos plasticamente com a linguagem fotográfica,
gráfica e pictórica. Foram produzidos por diversos artistas plásticos, bem como os desenhistas
Manoel Pastana, Antonieta Santos Feio, Ernesto Lohse e ateliers fotográficos Photographia
Fidanza, Oliveira Pará e Photo Stúdio. É válido mencionar que o setor técnico do MUFPA
denomina estas peças de “placas”, a atribuição de “Quadros de Formatura”, assim como, o seu
tratamento como “Coleção” é uma valorização desta pesquisa. Os objetos estão
49
O prédio é uma construção do início do século XX, mais precisamente de 1903, conhecido como palacete
Augusto Montenegro, foi projetado pelo arquiteto italiano Filinto Santoro para ser a residência particular do
então Governador do Estado do Pará, Augusto Montenegro. Este arquiteto que viveu no início do século XX em
Belém era formado pela Academia de Nápoles. Para o projeto, Santoro buscou informações no estilo
arquitetônico renascentista italiano, bem como parte dos materiais utilizados na construção do prédio e sua mão
de obra era oriunda da Itália. Lugui Bisi foi o mestre de obras e construtor do prédio. Fonte: Museu da UFPA.
Disponível em:<https://mufpa.wordpress.com/historico/>. Acesso em: 18 abr. 2016.
1201
acondicionados na Reserva Técnica do MUFPA e no Instituto Histórico e Geográfico do Pará
(IHGP)50 (BRITTO, 2014).
O método da pesquisa foi realizado com base na reflexão das Teorias da Museologia
quanto à estruturação do esquema classificatório baseado no Thesaurus para Acervos
Museológicos51 e as ações e os procedimentos para construção da classificação do acervo, do
arrolamento para esses quadros, objetivando organizar uma planilha com número de registro
(provisório), nome do termo/objeto, entre outros campos de registro, dessa maneira sugerir
uma ferramenta de controle/consulta do acervo dessa coleção. E, também, a elaboração da
ficha de catalogação para o acervo visando à padronização da documentação da mesma.
A documentação de acervos museológicos segundo Helena Dodd Ferrez (1994) é o:
50
Portaria nº 1702/77, assinada pelo reitor Aracy Amazonas Barreto, foi nomeada a funcionária técnica em
assuntos culturais, Sra. Raimunda de Paula Vilhena Portela, para “tornar-se responsável pelos acervos
históricos e artísticos”, assim como “desempenhar o papel de assessoramento na instalação e funcionamento
dos museus dessa universidade”, “enquanto não forem criados os museus de história e de Arte”, as peças
seriam acondicionadas temporariamente no edifício do Instituto Histórico e Geográfico do Pará (IHGP) por
conta de um convênio (não formalizado) entre as duas instituições acordados pelo reitor da UFPA e o
presidente do IHGP, naquela época era o Sr. José Rodrigues da Silveira Netto.
51
É um conjunto de conceitos ordenados, de modo claro e livre de ambiguidade, a partir do estabelecimento de
relações entre os mesmos e que pode ser definido segundo sua função ou estrutura”. Com o propósito de
minimizar as dificuldades que os museus apresentam para se organizar como sistemas de informação, a obra
busca atender aos acervos museológicos, seja sua documentação manual ou informatizada, ao apresentar um
sistema consistente para classificação e denominação de artefatos que compõem as coleções brasileiras
(FERREZ; BIANCHINI (1987, p. XV).
1202
deles, quando organizados tanto em uma planilha de arrolamento quanto na ficha de
catalogação, dessa maneira promovendo novas informações e produção de conhecimento.
1203
Quadro 2: Levantamento documental no acervo do IHGP.
Nº OBJETO/TITULO QNT. PROCEDÊNCIA ANO/TURMA
Quadro de Formatura/ Faculdade de Medicina e
01 33 Vários anos
Doutorandos Cirurgia do Pará
Faculdade de Medicina e Turma de 1960
02 Placas de Doutorandos 02
Cirurgia do Pará Turma de 1961
1906; 1912; 1925; 1948;
03 Quadros de Bacharéis 09 Faculdade de Direito 1950; 1951; 1954; 1955;
1958
Faculdade Sócio –
04 Quadro de Formatura 10 Vários anos
Econômico Centro
TOTAL 54
Fonte: Acervo Documental do IHGPA/Por Carmélio de Souza Ferreira, em 1999.
Com base nos resultados apresentados nos Quadros 1 e 2 foi possível identificar por
meio do cruzamento das informações obtidas nas pesquisas documentais um montante de 17
(dezessete) quadros, sendo 08 (oito) da Faculdade de Medicina e Cirurgia do Pará, localizados
na Reserva Técnica do MUFPA, e 09 (nove) da Faculdade de Direito do Pará, localizados na
Reserva Técnica do IHGP, conforme o Quadro 3 a seguir:
1204
16 Quadro de Formatura dos Bacharelados - ano 1955
17 Quadro de Formatura dos Bacharéis - ano 1958
Fonte: MUFPA e IHGP (2016).
1205
Quadro 4: Modelo de Esquema Classificatório para Acervos Museológicos.
CLASSE SUBCLASSE TERMO (OBJETOS)
Construção pictórica, colagem,
ARTES VISUAIS Construção Artística
construção escultórica, etc.
Fonte: FERREZ; BIANCHINI, 1987 e CÂNDIDO, 2008.
1206
Quadro de Formatura da Faculdade Livre - Direito - Construção
010 Artes Visuais
Pará - ano 1912 Artística
Construção
011 Quadro de Formatura dos Bacharéis - ano 1925 Artes Visuais
Artística
Construção
012 Quadro de Formatura dos Bacharéis - ano 1948 Artes Visuais
Artística
Construção
013 Quadro de Formatura dos Bacharéis - ano 1950 Artes Visuais
Artística
Construção
014 Quadro de Formatura dos Bacharéis - ano 1951 Artes Visuais
Artística
Construção
015 Quadro de Formatura dos Bacharéis - ano 1954 Artes Visuais
Artística
Construção
016 Quadro de Formatura dos Bacharelados - ano 1955 Artes Visuais
Artística
Construção
017 Quadro de Formatura dos Bacharéis - ano 1958 Artes Visuais
Artística
Neste contexto, a construção da proposta de planilha de arrolamento que faz parte deste
instrumento de pesquisa da proposta de documentação à referida coleção, permitiu estabelecer
um quadro geral, compreendidos nos campos de ordem crescente, imagem, termo/título,
autoria, data, dimensão, material técnico, estado de conservação e localização, conforme
explicitado no Quadro 6 a seguir:
1207
Quadro 6: Proposta de Planilha de Arrolamento à Coleção de Quadros de Formatura.
1208
2ª parte – análise do objeto: O conteúdo desta parte da planilha, sistematizado em 03
(três) campos, contém informações históricas sobre a peça, obtidas a partir de pesquisas
arquivísticas/bibliográficas e de sua análise formal.
3ª parte – conservação do objeto: Esta parte da planilha deve ser preenchida por um
profissional especializado em conservação e restauração de bens culturais. Seus campos
detalham informações sobre aspectos estruturais e formais da peça, relacionados à sua
integridade e conservação: condições físicas, riscos potenciais, intervenções anteriores,
recomendações técnicas, etc.
4ª parte – reprodução fotográfica: Registrar o número de arquivamento interno da
imagem digitalizada, seguido do nome do autor e data da reprodução fotográfica do objeto.
5ª parte – dados de preenchimento: Registrar o nome do técnico responsável pela
digitação da planilha, seguindo os mesmos procedimentos indicados no campo.
1209
Fonte: Acervo do MUFPA/ Foto: Patrick Pardini (2010).
1210
Quadro 7: Proposta de Ficha Catalográfica à Coleção Quadro de Formatura.
1211
documental e contextual (discurso sobre os objetos/documentos), expandindo o entendimento
sobre esses campos de preenchimento a partir das definições atribuídas a cada dado a ser
registrado.
Considerações Finais
A análise dos quadros de formatura da Faculdade de Medicina e Cirurgia do Pará de
Direito, produzidos pelos desenhistas Manoel Pastana, Antonieta Santos Feio, Ernesto Lohse,
L. Prazeres, A. Souza, Germano Souza, Lotzes e L. X. Falcão e fotografias dos ateliers
Photographia Fidanza, Oliveira Pará, Phot Allema Pará e Photo Stúdio proporcionaram uma
constatação de elos harmoniosos: de um lado, a fotográfica e a arte pictórica; do outro, a
ostentação por meio de elaborados quadros de formatura da renomada faculdade em relação à
sociedade paraense no cenário educacional nacional.
Trata-se de uma coleção de construção artística que pertencem à coleção de objetos do
acervo do Museu da Universidade Federal do Pará (MUFPA) que compõem a cultura material
da instituição. Sua materialidade transcende a presença física, pois fizeram e fazem parte da
história da Faculdade de Medicina e Direito e as relações com seus professores e alunos que,
em contato com eles, de alguma maneira deram sentido mútuo às suas existências no universo
acadêmico.
Registro e testemunhos de um momento de celebração, reconhecimento e consolidação,
os quadros de formatura guardam em suas molduras, recortes de uma instituição pulsante de
saberes e práticas vividas, sentidas e reproduzidas na sociedade acadêmica (COELHO
JUNIOR, 2015).
1212
Referências Bibliográficas
ANTEPROJETO para Criação do Museu Histórico e Artístico. Belém: UFPA, 1981. 59p.
BRITTO, Rosangela Marques de. Os usos do espaço urbano das ruas e do patrimônio
cultural musealizado na “esquina” da “Jose Malcher” com a “Generalíssimo”:
itinerários de uma antropóloga com uma rede de interlocutores no Bairro de Nazaré
(Belém-PA). 2014. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Universidade Federal do
Pará, Belém, 2014.
COELHO JUNIOR, Nelson Maurílio. O elo de veneração: o velho e o novo nos quadros de
formatura. Revista Linhas. Florianópolis, v. 16, n. 30, p. 122 – 151, jan./abr. 2015.
Disponível em: <http://www.revistas.udesc.br/index.php/linhas/article/view/19847238163020
15122>. Acesso em: 16 out. 2015.
FERREZ, Helena Dodd; BIANCHINI, Maria Helena Santos. Thesaurus para acervos
museológicos. Rio de Janeiro: Ministério da Cultura, 1987.
FERREZ, Helena Dodd. Documentação museológica: teoria para uma boa prática. In:
CADERNOS de ensaios, nº 2. Estudos de museologia. Rio de Janeiro, Minc/ Iphan, p. 64- 67,
1994.
1213
MUSEALIZAÇÃO E PALEONTOLOGIA: UMA REFLEXÃO SOBRE A
FORMAÇÃO DA COLEÇÃO PALEONTOLÓGICA DO CURSO DE
MUSEOLOGIA DA UFPA
Resumo: Este trabalho apresenta uma reflexão sobre a as etapas inicias do processo de Musealização
da coleção de fósseis da Reserva Técnica do Curso de Bacharelado em Museologia da UFPA.
Traçamos uma abordagem destes enquanto objeto\documento e discutimos como a musealização pode
ser uma forma de preservação e comunicação deste material que de outra forma estaria inacessível.
Abstract: This work presents a reflection on the initial stages of the Musealization process of the
fossils collection of the Technical Reserve of the Bachelor’s Course in Museology at UFPA. We draw
an approach to these as an object \ document and we discuss how musealization can be a way of
preserving and communicating this material that would otherwise be inaccessible.
1214
A coleção sobre a qual nos debruçamos nesta pesquisa provém de uma lavra a céu
aberto localizada no município de Primavera no nordeste Paraense, na qual se explora calcário
para produção de cimento. A empresa, que preferimos não divulgar, possui os direitos de
lavra e pesquisa na área e por lei precisa salvaguardar o material fóssil presente na área. Esta
está situada em uma zona pertencente à Formação Pirabas, uma unidade geológica do
Eomioceno que data entre 23 – 25 m.a e ocorre descontinuamente entre os estados do Piauí,
Maranhão e mais expressivamente no Pará, visto que das 27 localidades fossilíferas da
Formação, 21 estão situadas no mesmo. Representando um momento transgressivo em que o
mar avançou o continente e recobria grande parte do litoral paraense (TÁVORA ET AL,
2010, P. 01).
Os fósseis foram doados pela empresa para serem armazenados e tratados na reserva
técnica do curso, e servirem como acervo científico/didático. A proposta inicial da empresa
era de que o material ficasse no município, e juntamente com o acervo arqueológico, seria
exposto no museu mantido pela empresa, mas por impossibilidades estruturais foram trazidos
à Universidade como parte do programa de salvamento exigido pela legislação e órgãos
competentes, tais como o Conselho Nacional Do Meio Ambiente (CONAMA) e o
Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM).
A resolução 001/86 do CONAMA para licenciamento ambiental estabelece que o
licenciamento de quaisquer atividades modificadoras do meio ambiente depende da
elaboração de um estudo de impacto e respectivo relatório de impacto ambiental – RIMA.
Neste documento se apresentam os possíveis danos e as contrapartidas sociais das quais a
empresa responsável pela atividade deve se comprometer a realizar para mitigar os danos
causados a comunidade. O estudo de impacto realizado em Primavera previa a alteração ou
destruição do patrimônio arqueológico e paleontológico. Com atenção ao material
paleontológico, nosso objeto de estudo, este se encontra amparado legalmente por várias
normativas que garantem sua preservação como, por exemplo, o Decreto-Lei 4.146 de
04/03/1942 que dispõe sobre a proteção de depósitos fossilíferos, bem como os artigos 20, 23
e 24 da Constituição do Brasil de 1988 que os define como bens da União e que, portanto, há
a responsabilidade dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios na sua defesa. Dessa
forma estes passam a constituir legalmente parte do patrimônio natural e cultural nacional,
1215
tendo sua preservação justificada pela sua importância científica, educativa e cultural,
relevante ao conhecimento científico ou a memória paleontológica. Devendo ser preservado
para futuras gerações.
Cury (2005, p, 26) sintetiza o processo de musealização em uma série de ações sobre o
objeto, são elas a aquisição, pesquisa, conservação, documentação e comunicação. Quanto à
Documentação, especificamente a museológica, esta é uma prática essencial ás necessidades
de um espaço que contém objetos a serem salvaguardados. Paul Otlet e Suzanne Briet
contribuíram, pioneiramente, de forma significativa para a formulação do conceito de
Documentação. E este possibilita, por fim, a comunicação entre o público e o objeto/acervo,
assim sendo a documentação pode ser entendida como:
1216
são aglomerados de fósseis fragmentados de origem carbonática, fragmentos de vertebrados,
tais como sirênios, quelônios e peixes, assim como invertebrados, com destaques para
bivalves, gastrópodes e equinodermos. Todos os grupos considerados comuns entre o material
fossilífero da unidade geológica, segundo as bibliografias especializadas.
Estes Objetos que foram retirados do local onde estavam inicialmente e foram levados
a um novo contexto, um contexto museológico, um lugar de fala, de criação de discurso, que
traz consigo várias implicações importantes para a salvaguarda, e após a breve documentação,
as primeiras medidas de conservação foram tomadas para garantir a durabilidade do objeto
(MENSCH, 1994). Entre as ações possíveis neste estágio do processo, foi a troca das
embalagens para sacos de polietileno, material estável que garantirá que o carbonato de
cálcio, presente nas amostras não sofrerá com ação de poluentes externos, comuns no
ambiente urbano, tais como o dióxido de enxofre.
Referências bibliográficas
1217
CHAGAS, Mário De Souza. NO MUSEU COM A TURMA DO CHARLIE BROWN.
Cadernos de Sociomuseologia, [S.l.], v. 2, n. 2, maio 2009. ISSN 1646-3714. Disponível
em: <http://revistas.ulusofona.pt/index.php/cadernosociomuseologia/article/view/535>.
Acesso em: 23 ago. 2017.
FERREZ, Helena Dodd. Documentação museológica: Teoria para uma boa prática. Caderno
de ensaios: Estudos de Museologia, n. 2. Rio de janeiro, Minc/Iphan, 1994 p. 64-73.
SMIT, Johanna. O Que é Documentação? Coleção Primeiros Passos. São Paulo. 1986.
1218
Museologia, museus e
gênero
1219
DESRECALQUES DE GÊNERO? O HEROISMO POÉTICO NAS EXPOSIÇÕES
SOBRE CORA CORALINA E MARIA BONITA
Resumo: Este artigo analisa aspectos do heroísmo poético nas trajetórias de mulheres que tiveram sua
atuação (ou parte dela) esquecida na “política da história” e cujas memórias em falsete são
problematizadas nas exposições dos Museus-Casas de Cora Coralina, em Goiás-GO, e de Maria
Bonita, em Paulo Afonso-BA. Para tanto, evidencia o modo como as exposições potencializam
desrecalques de gênero ao conceber centralidade na fabricação de narrativas épicas de e sobre
“heroínas populares”, personagens historicamente destinadas aos silêncios da história dos museus.
Abstract: This paper analyzes aspects of poetic heroism in the trajectories of women who have had
their works (or part of it) forgotten in "politics of history" and whose falsetto memories are
problematized in the exhibitions of the Museu-Casa de Cora Coralina in Goiás-GO, and of the Museu-
Casa de Maria Bonita, in Paulo Afonso-BA. In order to do so, it highlights the way in which the
exhibitions potentiate gender inequalities by conceiving centrality in the production of epic narratives
of and about "popular heroines," characters historically destined for the silences of museum history.
1220
A tessitura poética empreendida pelas exposições dos museus-casas pode ser
compreendida como um texto “biográfico”, resultado de um empreendimento coletivo, que,
diferente de outras construções memorialísticas, substitui “a linearidade sequencial pela
justaposição dos traços do vivido, a univocidade pelo coro não-hierarquizado de múltiplas
subjetividades encenadas, o pacto da autenticidade típico das autobiografias pelas
ambivalências do discurso ficcional” (CUNHA, 2003, p. 123). Torna-se, assim, uma
construção simbólica que não prescinde dos “atos de fingir”, “das operações que selecionam
ou recalcam, combinam, condensam ou deslocam as inscrições fragmentárias do vivido, para
reencená-las em um outro lugar” (p. 126).
Ao apresentar uma determinada vertente de leitura da vida e do legado do anfitrião do
espaço, os museus-casas reforçam as narrativas autobiográficas promovidas pelos
protagonistas e herdeiros desses mesmos espaços, se transformando em instâncias onde as
escritas de si – combinadas com outras escritas sobre o personagem – ganham visibilidade. Os
museus-casas, por meio da “narrativa poética das coisas”, materializam narrativas que, muitas
vezes, o homenageado ajudou a construir na trama de “arquivamento” da própria vida
(ARTIÈRES, 1998).
De acordo com Philippe Artières (1998), passamos nossa trajetória elaborando imagens
sobre nossas vidas (para nós mesmos e para os outros), por meio de minúsculas triagens
(arrumações, desarrumações, reclassificações). Nesse sentido, podemos conceber as
exposições museológicas como um dos artifícios responsáveis pelo “arquivamento de vidas”
na utilização de repertórios sobre determinados fatos ou personagens, a partir de objetos
biográficos. As exposições museológicas escrevem e reescrevem essas narrativas sobre os
agentes tendo o público como observador e espécie de confidente e, no caso de enredos sobre
“arquivos de vida”, realizam uma reorganização interna dos acontecimentos, fabricando um
destino para o homenageado no intuito de “mostrar a perfeita coerência da própria existência
em vista dos episódios que a compõem” (p. 28). Essas orientações são fundamentais para
problematizarmos os destinatários e as condições de produção do “arquivamento”, isso
porque é composta de um atravessamento entre o íntimo e a função pública, forma de publicar
1221
determinados aspectos de trajetórias para que essas versões sobrevivam ao tempo e à morte.
Situação que não escapa as injunções de gênero.
As narrativas construídas pelos museus-casas (e em especial os de personalidades)
podem ser visualizadas como uma tessitura poética e política. Talvez porque, conforme dispôs
Begoña Torres González (2013a), nos museus-casas a história da intimidade se mescle com as
configurações de uma história política do cotidiano. É por isso que Mario Chagas (2007)
reconhece que os museus são devoradores e, do ponto de vista museológico, preservar
também pode implicar uma ação contra a vida. Sublinha a incômoda observação de Theodor
Adorno “para quem museal, ‘[...] museu e mausoléu são palavras conectadas por algo mais
que a associação fonética’”. Desse modo, não bastaria preservar contra a ação do tempo “é
preciso também garantir a prerrogativa do interesse público sobre o privado, mesmo
reconhecendo que sob essa designação (interesse público) ocultam-se diversos grupos de
interesse, interesses diferentes e até mesmo conflitantes” (p. 213).
Essas orientações contribuem para que visualizemos as narrativas formuladas pelos
museus-casas de personalidades como resultantes de um conjunto de tensões em torno de
interesses que extrapolam as intenções e projetos dos próprios patronos. Constantemente
reelaboradas, essas narrativas evidenciam uma multiplicidade de “eus” presentes em cada
trajetória, discursos fabricados de acordo com as necessidades de ressaltar ou silenciar
determinadas experiências desses personagens. As exposições museológicas, em certa
medida, evidenciam esse “eu multiplicado” ao produzirem narrativas ficcionais sobre
diferentes facetas da trajetória do indivíduo homenageado e, ao mesmo tempo, contribuem
para que analisemos as transformações no campo dos museus, da Museologia e das relações
de gênero.
Isso porque, ao empreenderem uma ação ficcional, os museus fingem. O verbo fingir,
assim aplicado, remete ao sentido etimológico de criação: “Fingo/fingere (fingir), donde teria
vindo a palavra latina fictionem, inicialmente tinha o significado de tocar com a mão, modelar
na argila. Na Bíblia em latim, o verbo usado para dizer que Deus criou o homem é o verbo
Fingo/fingere” (YOKOZAWA, 2009, p. 196). Sob essa interpretação, a “biografia” ou os
1222
discursos “(auto) biográficos” empreendidos pelos museus-casas de personalidades são
exemplares desse fingimento.
Reforça esse entendimento a própria nomenclatura museus-casas de “personalidades”,
visto que etimologicamente “personagem” e “personalidade” se originaram das palavras
personare, persona (ressoar, máscara). Tidos como pessoas ilustres por simbolizarem
determinados atributos, tornaram-se referências no campo de produção simbólico. Por isso
mesmo, suas casas e objetos foram musealizados e, sob essa condição, contribuem para
produzir crenças que atestam e reforçam esses atributos ao ponto de reverberar um tom
heróico ou épico. Nesse sentido, os museus-casas contribuem para a fabricação de heróis
tendo como estratégia a construção de uma poética do olhar, olhar através do privado (ou na
abertura pública do privado) aquilo que os tornam próximos e aquilo que os singularizam:
Quando a gente abre uma casa, começa a observar e a olhar – ou através de museus
ou de outras coisas como as biografias – que estava ali um homem em tudo
semelhante a nós e que, no entanto, era absolutamente diferente. (...) Com a ideia de
mostrar como ele é tão próximo, como ele come, como ele dorme, como ele tem
todas as atividades, como ele fez tal coisa com tal caneta, com tal objeto, com tal
comida, foi aqui que estudou, tal livro manuseou, qual presente recebeu – isso
reativa ou ritualmente faz com que os propósitos, os valores de igualdade sejam
automaticamente reativados. (...) Por outro lado, quando você mostra a diferença
dele para nós outros, nós vemos então, a partir do mesmo privado, não
necessariamente o que ele fez publicamente. Nós buscamos ver aquilo que pode,
num dado momento diferenciar alguém, aquilo que pode torná-lo peculiar, singular e
que fez com que a trajetória dele fosse uma trajetória que através de feitos,
discursos, ações ou palavras o tornasse distinto, fez com que ele excelenciasse, fosse
considerado alguém à parte, digno de ser homenageado (COSTA, 1997, p. 78).
1223
esta llegue a alcanzar valores universales y válidos para todos”1 (GONZÁLEZ, 2013b, p.
220).
Realizam, assim, o “arquivamento” de trajetórias e a seleção de determinadas memórias.
Como operações de poder, consistem em lugares de se imaginar a nação e de construção de
identidades nacionais. Por isso, Reinaldo Marques (2008) destaca que essa operação de
“arquivamento” também pode se expressar como resistência ao discurso homogêneo da
nação: “os elementos descartados, as memórias dos grupos subalternos, das minorias, que
foram alijados do processo de enunciação do relato legitimador da nação, costumam se
insinuar pelo vazio e pelo fragmento, como resíduo inclassificável, no arquivo das memórias
oficiais da comunidade nacional” (p. 107). A criação de museus-casas em homenagem a
personagens que tradicionalmente não compunham o cânone dos “heróis nacionais” se torna,
nesse sentido, estratégia para exercitar uma nova imaginação museal (CHAGAS, 2013).
Seguindo esse raciocínio, os museus-casas de “heróis populares” (CHAGAS, 2013)
podem ser vislumbrados como um esboço, uma tentativa da apresentação dessas vozes em
falsete, de valorização de memórias até então silenciadas e, historicamente, esquecidas, a
exemplo da Casa da Flor, em São Pedro da Aldeia-RJ, da Casa de Mestre Vitalino, em
Caruaru-PE, e da Casa de Chico Mendes, em Xapuri-AC. A partir desse entendimento,
podemos concluir - em analogia com a tradição poética moderna e modernista - que os
museus, ao conferirem dignidade lírica a esses personagens, auxiliam na construção de um
heroísmo poético que reabilita o que até então estava clandestino, oculto, periférico,
reorganizando não apenas a História oficial, mas o heroísmo do canto épico (YOKOZAWA,
2009).
No caso dos museus-casas de mulheres, empreendem um duplo desrecalque. Eles
colocam em xeque o discurso de homogeneidade da nação ao apresentarem outras
perspectivas discursivas que problematizam limites e possibilidades a partir das intersecções
1
“O herói é aquele digno de imitação por suas virtudes ou por ter realizado algum fato marcante em favor da
comunidade. (...) Como um escolhido, tendo realizado um empreendimento individual, conseguiu que ele
alcançasse valores universais e válidos para todos” (GONZÁLEZ, 2013b, p. 220) (Tradução nossa).
1224
entre o constructo histórico-social de gênero e o constructo da região e da nação. Para tanto,
concordamos com Kátia da Costa Bezerra (2007) quando destacou as estratégias de algumas
mulheres para romper com práticas discursivas opressivas e alcançar um lugar de fala no
século XX. Tais ações visaram distanciar de leituras hegemônicas do passado, apresentando
outras vozes que reafirmam diferenças, instituidoras de uma memória em falsete. Nesse
aspecto, também contribuem para a problematização das fronteiras e das fissuras nas relações
entre homens e mulheres, público e privado, centro e margem. Inserem, nos debates do campo
de produção simbólico, personagens que até então permaneciam na esfera do “inenarrável”.
Situações mais evidentes no caso das trajetórias de mulheres que tiveram sua atuação (ou
parte dela) esquecida na “política da história”, compreendida como jogos de poder nos
exercícios de registro/escrita da História (Cf. SCOTT, 2002).
1225
privilegiados da elite brasileira. Inserção marginal alimentada pelo fato de residir no interior
brasileiro e não ter concluído a educação formal, tornando-se autodidata.
No caso de Cora Coralina, a conquista de independência financeira e de visibilidade
profissional na velhice superando dificuldades de variadas ordens contribuiu para
potencializar a construção de um canto épico relacionado à sua trajetória de vida. Nesse
aspecto e com as devidas proporções, podemos nos aproximar da análise sobre o
envelhecimento feminino em narrativas brasileiras empreendida por Susana Moreira de Lima
(2008). A pesquisadora identificou o lugar da mulher velha, a partir das intersecções entre
visibilidade, espaço físico e espaço enunciativo (na intimidade e na vida social), além dos
preconceitos relacionados ao corpo degradado. Considerada como uma figura marginal
observa seu silenciamento na literatura e, quando comparece literariamente, reconhece que
tem sido narrada por um outro. Identifica, ainda, uma escassa presença de personagens velhas
nas obras, especialmente como protagonistas. Constata que muitas vezes a velhice está
associada à perda de prestígio e ao afastamento do convívio social e que sua imagem é
geralmente permeada pelas representações de inutilidade (personificada nos aspectos
corporais) e de sabedoria (relacionada à experiência). A pesquisadora conclui que a velhice
feminina é sub-representada nas obras contemporâneas do campo literário.
Quando visualizamos que uma das personagens centrais na obra de Cora Coralina é uma
narradora-escritora de cabelos brancos, essas considerações sobre a velhice feminina
assumem centralidade. Além disso, outra personagem reincidente é Aninha, sua máscara lírica
da infância. Dar vez e voz a essas duas personagens marca “a retórica de sua poesia, são um
modo de licença poética que aponta para a consciência reflexiva da autora, subjacente aos
seus poemas” (CAMARGO, 2002, p. 79). São duas instâncias de criação que constituem
espaço de permissibilidade poética e, portanto, a escolha desse artifício não foi aleatória:
“pois sendo elas ocupantes de posições sociais periféricas, as suas vozes, apenas consideradas
nos limites da tolerância, representam, ainda no nosso contexto histórico-cultural, papéis
pouco ou nada relevantes” (p. 79).
1226
A escritora enfrentou preconceitos em decorrência de sua idade, quando publicou
Poemas dos becos de Goiás e estórias mais, seu primeiro livro, aos 76 anos. Talvez por sentir
na própria pele, Cora Coralina optou por construir um projeto criador cuja narradora fosse
uma mulher idosa que privilegiou recontar a vida e a intimidade de outras mulheres ou, como
afirma em seus versos, “a vida mera das obscuras”, construindo o que denominamos de
protagonismo poético das margens. Sua poética é povoada de diferentes mulheres, da cidade e
do campo, escravas e sinhás, analfabetas e professoras, mães e filhas, donas-de-casa,
prostitutas, lavadeiras, crianças e idosas, enfim, um inventário da vida e do espaço ocupado
pelas mulheres no interior brasileiro.
Segundo analisa Goiandira Camargo (2006), a mulher é apresentada na perspectiva do
“canto solidário” na poética de Cora Coralina, o sujeito poético se irmana com as obscuras
mulheres pelos vínculos da condição feminina. Entretanto, destaca que, apesar de figurar
diversas mulheres em sua poética, optou por iluminar a experiência daquelas imersas no
prosaico, no ordinário da existência. Nesse aspecto, Solange Yokozawa (2009) sublinha que
esse heroísmo poético dialoga com a tradição lírica moderna e modernista. Portanto, ao
privilegiar uma poesia que reabilita a marginalidade, reconhece que Cora Coralina se
conectou com autores que desentranharam o heroísmo poético da periferia, da
clandestinidade, das memórias ocultas.
Nesse aspecto, a exposição do Museu-Casa de Cora Coralina reverbera esse heroísmo
empreendido pelo projeto estético da autora marcado pela poetização do considerado
apoético, especialmente pela valorização das “vidas obscuras”. Exemplar, nesse sentido, é a
musealização de Maria Grampinho e Seu Vicente. Esses personagens reais foram
ficcionalizados na poesia e na prosa da autora. Seus objetos biográficos, fotografias,
documentação pessoal e os respectivos excertos literários, por sua vez, foram ficcionalizados
na narrativa museológica.
Maria da Purificação (1904-1985), apelidada de Maria Grampinho, era uma andarilha,
negra, pobre e que possuía problemas mentais. Quando Cora Coralina regressou para Goiás,
em 1956, encontrou Maria no quintal da Casa Velha da Ponte. Durante o dia, caminhava pelas
1227
ruas e becos da cidade e, às 18 horas, regressava para a Casa da Ponte onde dormia nas
proximidades do porão da casa. Pouco se sabe sobre seu passado e os motivos causadores de
suas excentricidades. Maria carregava uma trouxa com roupas, onde costurava retalhos e
botões. Além disso, o costume de vestir várias saias e inserir muitos grampos no cabelo
contribuiu para as alcunhas de Maria Sete Saias e Maria Grampinho, conforme registrado por
Coralina no poema “Coisas de Goiás: Maria”, de Vintém de cobre:
1228
cidade”. Seu heroísmo poético evidencia as qualidades de Maria e sua trouxa, vista por muitos
como um conjunto de inutilidades, é classificada como arte, ficção, inventividade.
Os bordados de Maria são uma criação, ficcionalizados pela literatura de Coralina e,
objetos e literatura, são transformados em ficção pelo discurso museológico. São os
“inutensílios”, fragmentos e escombros que, no dizer do poeta Manoel de Barros, servem para
a poesia. Até 2001, a trouxa e outros pertences da personagem eram expostos na entrada do
porão do museu-casa. As exposições de 2002 e 2009 destinaram uma sala na Casa Velha da
Ponte, musealizando sua trajetória juntamente com a de Seu Vicente, outro personagem que
habitou a casa-memória.
Em 1941, Cora Coralina adquiriu um sítio em Andradina-SP. Costumava contratar
bóias-frias nordestinos para o plantio e a colheita de algodão. Em 1944, um desses bóias-frias
decidiu permanecer no sítio para auxiliá-la nos serviços diários. Seu Vicente, apelido de Tomé
Pereira da Silva (1895-1989), era pernambucano de Correntes. Teve uma vida marcada por
deslocamentos até se fixar definitivamente na Casa Velha da Ponte, acompanhando Cora
Coralina. Seu Vicente trabalhava como jardineiro, responsável por manter com esmero a horta
e, principalmente, o pomar cujos frutos eram transformados nos famosos doces glacerados por
Cora Coralina (Cf. BRITTO; SEDA, 2009). Vicente se transformou em metáfora do jardim e,
por extensão, da casa e da vida da poeta. Imortalizado pelo discurso poético, tornou-se
personagem de diversas peças literárias, a exemplo do poema “A flor”, de Meu livro de
cordel, e do livro Os meninos verdes. Os trechos desses textos foram musealizados
juntamente com fotografias do jardineiro, com cópias de seus documentos pessoais e a sua
bengala.
A criação de um espaço no Museu-Casa de Cora Coralina destinado a esses dois
personagens consistiu em ideia materializada nas exposições de 2002 e 2009. A musealização
dialogou, em certa medida, com a estratégia poética da autora que inseriu uma multiplicidade
de eus em sua obra: “todas as vidas dentro de mim: na minha vida - a vida mera das obscuras”
(CORALINA, 2001, p. 33). Conforme destacou Célia Corsino, coordenadora da equipe
1229
responsável pelas exposições, a presença desses dois personagens consistiu em uma forma de
romper preconceitos e de compreender melhor o ideário da anfitriã do espaço:
Como mostrar quem era Cora sem falar de Maria Grampinho e seu Vicente?
Trazê-los para a exposição foi demonstrar como a poeta relacionava-se com
personagens da cidade. Não podemos nos esquecer de que a volta de Cora
para Goiás não foi tão tranquila. O preconceito ainda reinava3.
3
Entrevista realizada com Célia Maria Corsino, em 18 mar. 2015.
1230
essa organização das fotos de seu pai, de Padre Cícero4 e de Lampião, Maria Bonita e seu
bando5 foi planejada em vida por Cora Coralina e recorrentemente citada em seus poemas e
entrevistas:
Conforme destacou Andrea Delgado (2003), uma informação relevante que é suprimida
na exposição museológica é o fato da própria Cora ter emoldurado esses objetos, arranjando-
os cuidadosamente e colocando-os ao olhar público: “a combinação da fotografia do pai, com
a imagem de Padre Cícero, a fotografia de Lampião e seu bando e o arranjo de flores
artificiais confere, ao mesmo tempo, ‘valor de culto’ e ‘valor de exposição’ ao conjunto
4
A gravura de Padre Cícero Romão Batista pertence à classe “interiores” e a subclasse “acessório de interiores”.
É registrada com o número 05-1-8, localizada na “varanda”. A gravura colocada em um medalhão oval em
madeira e vidro possui estado de conservação regular com pequenas lascas, trincados, e medidas 30 cm X 35 cm.
Fonte: Ficha de identificação do Museu-Casa de Cora Coralina.
5
A reprodução da fotografia de Lampião, Maria Bonita e cangaceiros pertence à classe “interiores” e a subclasse
“acessório de interiores”. É registrada com o número 05-1-9, localizada na “varanda”. O pôster consiste em
fotografia colocada em madeira e possui estado de conservação regular e medidas 29,7 cm X 40 cm. A ficha
ainda informa que a foto foi tirada por Adhemar Albuquerque e cedida por seu filho Luis Albuquerque morador
de Brasília para a cearense Ivany que a doou para Cora Coralina em 23 out. 1977. Fonte: Ficha de identificação
do Museu-Casa de Cora Coralina. Entretanto, trabalhos sobre a fotografia do Cangaço atribuem a fotografia a
Benjamin Abrahão (sócio de Ademar Albuquerque, proprietário da ABA-FILM), datando-a de 1936 (Cf.
FERREIRA; ARAÚJO, 2011).
1231
iconográfico” (p. 97), tornando-se, nesse aspecto, espécie de altar doméstico6, evocativo de
uma memória ancestral nordestina.
Na tessitura poética empreendida por Cora Coralina (Fig. 1) e mantida nas exposições
museológicas, as figuras de Lampião, Maria Bonita e cangaceiros7, aliadas a imagem de Padre
Cícero, se tornam suportes para recuperar uma memória paterna. Na narrativa da escritora, o
bando de Lampião representaria todos os nordestinos entendidos como “gente forte, corajosa,
(...) convivendo com a seca, asselvajada” (CORALINA, 2007, p. 8).
6
Andrea Delgado (2003) é quem desenvolve essa idéia transcrevendo um depoimento de Cora Coralina gravado
na sessão da Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás, em 10 de junho de 1980: “Na minha casa eu tenho
um pôster de Lampião e a turma de Lampião, inclusive Maria Bonita, e tenho Padre Cícero. E digo: ‘porque eu
tenho Lampião, por quê?’ Muita gente pergunta: ‘a senhora conheceu?’ Eu digo: ‘não. Ele nunca veio a Goiás e
eu nunca fui ao Nordeste’. Mas digo a vocês, faço as minhas orações pela alma de Lampião e dos seus
companheiros. Faço por honra de Maria Bonita e já não rezo pelo Padrinho Cícero. Representa-me dentro de
mim que ele não carece de orações, já é santificado” (p. 97).
7
A correspondência de Ivany para Cora Coralina relata a doação do quadro: “Brasília, 23 de outubro de 77. D.
Cora, Aí estão eles: Lampião, Maria Bonita e mais o bando, vindo do tempo e da distância para escolhê-la como
nova coiteira no Centro Oeste. Retrato antigo, negativo guardado com cuidado, em Fortaleza, pelos filhos de
quem fotografou, o Adhemar Albuquerque, naquelas máquinas de fole e chapa de vidro. O Luís Albuquerque,
filho dele que mora em Brasília, quando soube que era D. Cora quem gostaria de ter a fotografia, fez tudo para
trazê-la e assinou pelo pai. Pena que na hora de fazer o painel, a tinta manchou. (...) Ivany”. Acervo do Museu-
Casa de Cora Coralina.
1232
FIGURA 1: QUADROS ORGANIZADOS POR CORA CORALINA.
Tanto o poema, quanto a exposição do quadro na sala principal de sua casa, consistem
em estratégias que evidenciam o heroísmo poético empreendido por Cora Coralina. Ao invés
de sublinhar a violência comumente associada ao cangaço, preferiu destacar sua faceta
revolucionária, reforçando uma atuação ambígua. Talvez, por isso, Cora Coralina, quando
discorreu em entrevista sobre os mecanismos da inspiração e da loucura, afirmou: “Dizem que
há uma linha muito estreita entre a loucura e o gênio. Eu tenho na minha parede, com muito
agrado, um pôster do Lampião, Maria Bonita e os cangaceiros. Espiritualmente, eu estou no
meio daqueles cangaceiros. Eu também sou uma cangaceira” (In: BRITTO; SEDA, 2009, p.
181).
1233
Nas entrevistas em que citou o cangaço e no título do poema de Vintém de cobre, Cora
Coralina inseriu o nome de Maria Bonita, em uma clara intenção de sublinhar sua
importância, negando, assim, a ideia de que era apenas uma coadjuvante, sombra de Lampião.
Prova disso, é que no acervo pessoal da escritora, na reserva-técnica do museu-casa, existem
fotografias de Lampião sozinho.
A poeta poderia ter escolhido uma dessas fotos, presenteadas por admiradores. Todavia,
fazia questão de se identificar como uma cangaceira, no feminino, fato possível graças à
atuação pioneira de Maria Bonita, vista como exemplo de mulher forte e corajosa
(CORALINA, 2007). Desse modo, ao eleger uma fotografia dos cangaceiros em que Maria
Bonita ocupa centralidade e estampá-la na sala de visitas (Fig. 2), ao lado da foto paterna,
Cora Coralina instituiu um “arquivamento” que reescreve o lugar da mulher ao produzir
crenças a respeito de Maria Bonita e, consequentemente, sobre si mesma.
1234
Maria Bonita: uma heroína povoada
Situação que ganha força no Museu-Casa de Maria Bonita. A própria criação do museu
em sua homenagem contribui para estabelecer o protagonismo da cangaceira, visto que o
equipara a outros museus-casas de personalidades, a exemplo do Museu-Casa de Lampião,
em Serra Talhada-PE. Diferentemente de outras mulheres que foram transformadas em
presença silenciosa ou secundária nas casas-museus de seus maridos, a cangaceira conquistou
no campo museológico “um teto todo seu” (WOOLF, 2004).
Nesse sentido, podemos conceber Maria Bonita como uma “heroína popular” ou,
conforme sublinha a narrativa fundadora do museu-casa, como “uma guerreira e rainha do
cangaço”. Na verdade, Maria Bonita consiste em uma personagem múltipla. Segundo a
expressão de Maria Lúcia Dal Farra (2011), é uma mulher povoada, envolvida por um
conjunto de narrativas marcado pela contradição e pela complexidade: “Desgarrada das
amarras sociais, mulher bandoleira, forte e livre, valente, desafiadora. Subalterna, sombra do
amante. Mulher corajosa, comandante forte e segura de si. Figura autônoma e bem informada.
Vaidosa e dengosa. Brava e voluptuosa. Formosa vivandeira” (p. 17-18). Seguindo essa
interpretação, Jailma Moreira (2011) sublinha que encontrou diversas Marias Bonitas:
Percebi várias Marias Bonitas ali se esboçando, ainda que como um traço
apagado em folhas não descritas sobre ela ou no traço destacado, como
adjetivo ativo ou reativo, construindo seu perfil coletivo. Nessa
historiografia, encontrei o retrato de uma Maria Bonita vista como uma
mulher ‘vulgar’ do sertão, como tantas outras. (...) Um foco, sobre mulheres,
comum a tantos outros olhares patriarcais que a visualizam somente como
objetos sexuais. Nessa historiografia também encontrei, e foi o que mais vi,
ou o que mais se ressaltou, a mitificação da figura de Maria Bonita. Assim
como Lampião, era também desenhada, ainda que em bem menos páginas,
como a ‘Rainha do Cangaço’. Um mito que, por vezes, ocultava o seu
caráter humano (p. 109-110).
1235
seu tempo e, consequentemente, das demandas daquele ambiente: “se desfez de uma lei da
escritura feminina que, nos moldes de um aprisionamento, destinava a mulher somente para
uma tríplice função: ser mãe, esposa e dona de casa. (...) Mas também não se encaixou na
escritura masculina fora da lei que regia o cangaço” (MOREIRA, 2011, p. 113).
Algumas narrativas sobre Maria Bonita seguem essa perspectiva de fronteira,
reconhecendo a personagem como síntese da força das mulheres sertanejas: “a possibilidade
de resistir, de construir seu destino, de questionar os termos, de abrir janelas nos cotidianos,
de fazer revoluções moleculares” (p. 117). Conforme destacou João de Sousa Lima, um dos
idealizadores do Museu-Casa de Maria Bonita, tornou-se necessário eleger qual dessas
narrativas orientariam a exposição museológica:
Quando pensamos o museu nós decidimos que das muitas histórias sobre
Maria Bonita ele passaria a história da entrada da mulher no cangaço, a
participação da mulher no cangaço. Maria Bonita como a primeira mulher e
que é de Paulo Afonso, então nada mais justo do que Paulo Afonso abraçar
essa causa e poder divulgar para que se conheça a história. (...) Os critérios
de seleção de quais as fotos comporiam a exposição foram as fotos em que
Maria Bonita estava presente. O museu é sobre Maria Bonita, então temos
que colocar imagens dela. Mas tem fotos de Maria Bonita com Lampião,
com Juriti, essa relação com outros cangaceiros. Mas dando o foco principal
para ela8.
Esse depoimento é relevante na medida em que informa alguns dos critérios para a
construção da narrativa museológica. Além do pioneirismo da personagem e da saga de sua
trajetória, sublinha que a partir de Maria Bonita é possível recuperar a trajetória de outros
cangaceiros e cangaceiras. Do mesmo modo, também possibilita imaginar a vida de homens e
mulheres no sertão brasileiro, no início do século XX. Por fim, o depoimento toca
indiretamente em um ponto crucial da exposição: a prevalência de quadros com fotografias da
cangaceira espalhados pelo museu-casa, constituindo na maioria dos objetos que naquele
espaço representa a vida de Maria Bonita.
8
Entrevista realizada com João de Sousa Lima em 27 jan. 2015.
1236
Sob essa perspectiva, devemos reconhecer que enquanto Cora Coralina utilizou seus
poemas e crônicas na promoção do “arquivamento de si”, Maria Bonita construiu narrativas
autobiográficas através da fotografia. Nesse aspecto, concordamos com as reflexões de
Germana Araújo (2011) quando analisou as imagens do cangaço construídas a partir das fotos
do libanês Benjamim Abrahão, em 1936. De acordo com suas interpretações, o fotógrafo teria
construído uma cena e, portanto, capturando poses de cangaceiros: “o tema, a perspectiva e a
estética constituintes da fotografia são frutos da relação de interesses entre o retratista
(fotógrafo) e o retratado (fotografado)”, concluindo que a motivação para o referido ensaio
“pode ser encontrada em, pelo menos, dois lados: o de Benjamim e o da cangaceira, cada qual
com a sua própria perspectiva de desdobramento” (p. 141-142). Para a autora, as fotos
representam uma mulher segura ao lado do companheiro, ocultando a sua relação com o
território e reconhecendo que Maria Bonita pareceu preferir sua imagem idealizada em função
de um padrão de beleza: “a imagem de Maria passa do imaginário de dilacerada [no
imaginário popular como vítima ou bandoleira perversa] a uma foto de mulher bem vestida e
preocupada com a sua presença [afável, sorridente e bem informada, segurando revistas e
jornais]” (p. 148).
A narrativa museológica ao se sustentar nessas fotografias realiza uma operação
metalingüística que reforça o “arquivamento” empreendido pela cangaceira. Do mesmo
modo, empreende uma seleção desse conjunto discursivo ao priorizar fotos em que Maria
Bonita aparece sem armas e em atividades cotidianas, sorrindo, portanto jóias, brincando com
cachorros, distanciando dos discursos sobre a violência associados comumente ao cangaço.
Na verdade, nenhuma das fotografias expostas remete ao período em que Maria Bonita residiu
na casa em Malhada da Caiçara, Paulo Afonso-BA. As diversas imagens contribuem para
reforçar a presença da anfitriã naquele espaço, visto que devido à especificidade do cangaço,
viviam como andarilhos, tendo a caatinga como morada. Além disso, ao apresentar fotografias
povoadas por outros cangaceiros e cangaceiras, o museu também realiza um heroísmo poético
que reabilita personagens até então destinados ao esquecimento poético e social.
1237
Essas questões evidenciam as múltiplas possibilidades entreabertas pela poética do
espaço nas casas-museus, associadas à fabricação de um heroísmo que reabilita memórias
silenciadas e promove desrecalques de gênero. A partir de um alinhavo de objetos, tempos e
espaços, as exposições produzem crenças e, como uma costura, moldam, tecem, marcam
pontos, estão sujeitas a cortes, acréscimos e refazimentos. Entre a herança lírica e a expressão
épica surgem tessituras empreendidas por meio da “linguagem poética das coisas” que
proporcionam, muitas vezes, o exercício de novas dramaturgias da memória, redimensionando
o lugar ocupado pelas mulheres a partir de um heroísmo poético.
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1240
MULHERES INDÍGENAS NAS MISSÕES: PROBLEMAS ETNO- HISTÓRICOS,
ARQUEOLÓGICOS E MUSEOLÓGICOS NA HISTÓRIA, SÍTIOS
ARQUEOLÓGICOS E MUSEUS DEDICADOS ÀS MISSÕES MERIDIONAIS
Jean Baptista*
Camila Moraes Wichers*
Tony Boita*
Resumo: Ao problematizar a história das Missões na América Meridional a partir de uma abordagem
de gênero e etno-histórica, o presente artigo pretende discutir: a) as representações femininas presente
na documentação histórica gerada pelos jesuítas; b) a ressignificação dos espaços femininos em sítios
arqueológicos atualmente abertos à visitação para o público; c) as questões que a abordagem de gênero
aliada à etno-história podem sugerir ao se analisar os acervos dos museus dedicados às Missões.
Abstract: When question the history of Missions in Southern America from an approach of gender
and ethno historical, the present article intends to discuss: a) the feminine representations present in
the historical documentation generated by the Jesuits; b) the re-signification of the feminine spaces in
archaeological sites currently open for public visitation; c) the questions that the approach of gender
allied to the ethno history can suggest when analyzing the collections of the museums dedicated to the
Missions.
1241
Embora tema fundamental da documentação produzida na América Meridional
durante a experiência das Missões, as mulheres indígenas daquele contexto carecem de
estudos que contemplem sua história de forma específica. Tal fenômeno afeta diretamente a
aplicação da Lei 11.645/2008, que versa sobre a obrigatoriedade do ensino de história e
cultura indígena na rede de ensino, geralmente amparada por subsídios historiográficos
relacionados apenas à história das lideranças indígenas masculinas. Conhecemos Tibiriçá ou
Sepé Tiarajú, mas pouco se sabe sobre as mulheres que compartilhavam e construíam o novo
mundo que se configurava. Tal ausência também afeta diretamente as visitações aos
remanescentes arquitetônicos dos povoados missionais, onde os territórios femininos são
desconsiderados ou tratados como espaços de submissão feminina. Já as exposições dos
museus dedicados à história das Missões, tal qual o Museu Júlio de Castilhos, Museu de
Santiago e o Museu das Missões, onde não apenas as representações femininas repousam em
estado coadjuvante, como também são tratadas a partir da hagiografia ocidental, colaboram na
redução da história das mulheres à submissão ou domínio do patriarcado9 e da cultura
ocidental. Com isto, uma importante página da história e memória indígena nas Américas
mergulha em um silêncio historiográfico e museológico secular, perdendo-se a oportunidade
pedagógica que o protagonismo feminino tem a oferecer.
Esforços para superar esta lacuna têm sido realizados. A V Primavera dos Museus
(2011), promovido pelo Instituto Brasileiro de Museus, contou com o tema Mulheres, Museus
e Memórias, oportunidade em que o Museu das Missões propôs um debate onde a memória
das mulheres indígenas pudesse ser contemplada. Pesquisadoras como Maria Cristina dos
Santos (1993), Eliane Fleck (1999) e Cristina Bohn Martins (1999), as primeiras mulheres
historiadoras a se dedicarem à história das Missões no Brasil, injetaram novos conteúdos que
9
Sobre o conceito de patriarcado podemos destacar duas visões antagônicas acerca de sua existência: para um
grupo onde se insere a antropóloga Rita Segato (2012), nas sociedades indígenas existia, antes da colonização,
um patriarcado de baixa intensidade, marcado por uma dualidade hierárquica, que apesar de desigual, tinha
plenitude ontológica e política, a qual teria sido substituída com a colonização por uma estrutura binária; para
outro grupo, onde se insere Maria Lugones (2008), assim como a colonialidade trouxe a invenção do conceito de
raça, também teria significado a criação do conceito de gênero para essas sociedades, pois não existiria nesses
contextos um princípio organizador parecido com o de gênero do ocidente antes do “contato” e da colonização,
postura com a qual também concorda Breny Mendoza (2010/2017).
1242
trouxeram aspectos relevantes e transformadores. As próprias mulheres indígenas estão em
um novo contexto, surgindo, por exemplo, na aldeia Tekoa Koenju, localizada no mesmo
município onde está o Museu das Missões, a professora Patrícia Ferreira, mulher Guarani que
se torna a primeira cineasta indígena a abordar o tema de suas antepassadas e
contemporâneas. Embora tais aspectos configurem-se como passos importantes, nota-se que
há, ainda, um imenso caminho a se percorrer.
O presente artigo pretende reunir as informações obtidas até o momento sobre a
presença feminina nas Missões empreendidas na América Meridional, especificamente
aquelas elaboradas entre a Companhia de Jesus e distintas sociedades indígenas durante os
anos de 1609-1750, no que ficou conhecido como os 30 Povos das Missões distribuídos entre
o atual território do Brasil (Mato Grosso, Paraná e Rio Grande do Sul), do Paraguai e do norte
da Argentina. Tais informações documentais que aqui serão apresentadas procuram indicar
possibilidades sobre a história daquelas mulheres, bem como fornecer subsídios para o ensino
de história indígena na rede escolar e abordagens possíveis para a visitação em sítios
arqueológicos e exposições em museus dedicados ao tema. Em conjunto, procura-se superar o
não-lugar destinado às mulheres quando o tema é Missões, bem como propor uma análise
onde a museologia e a etno-história possam dialogar e propor reflexões sobre demandas
contemporâneas.
1243
As diversas atividades femininas e suas restrições foram tema recorrente no século XX
em estudos sobre os Guarani. Responsáveis pelos alimentos cultiváveis ou coletados em
cestos, cuidado e educação das crianças, produtoras de cerâmica, manifestações de
fecundidade, representadas por deusas múltiplas no mundo espiritual e embaixatrizes por se
casarem mediante acordos entre famílias, entre outras funções, as mulheres indígenas são
representadas como peças fundamentais na organização social de seus grupos. Nesses estudos,
averiguou-se que as mulheres indígenas não estão submetidas à sociedade masculina. Em
função disso, não foram poucos os pesquisadores a retratarem “um Guarani feminista”,
conforme Santos (1997, p. 25), por ventura valendo-se das mulheres indígenas para elaborar
críticas à sociedade ocidental (Chaves: 1941, p. 106-107; Schaden: 1974, p. 76). Podemos
mencionar ainda o trabalho de Beatriz Landa “A mulher Guarani: atividades e cultura
material” (Landa, 1995) que buscou compreender as atividades realizadas pelas mulheres
indígenas na sociedade Guarani, abordando o gênero feminino e a mulher como sujeito de
estudo. Sabe-se que a produção cerâmica, por exemplo, era marcadamente feminina.
Entretanto, a colonização, ao mudar radicalmente a organização social dos povos indígenas,
teria feito com que a produção cerâmica passasse a ser dedicada também ao comércio,
afastando as mulheres dessa esfera produtiva. Silvana Suze (2009), por exemplo, ao estudar a
confecção da cerâmica guarani nas reduções jesuíticas aponta que a presença do torno teria
sido um elemento definidor para que a produção passasse a ser masculina. Se a inserção do
torno no âmbito do processo colonizador significou isso mesmo - questão que requer mais
estudos10, temos aí um efeito da colonização na perda de um espaço de expressão das
mulheres indígenas. Por outro lado, como se verá, a documentação histórica indica que muitas
mulheres cobraram dos inacianos um mapeamento de suas singularidades, ao mesmo tempo
em que propuseram novas etapas para o mundo que se abria mediante o fenômeno colonial,
criando novos espaços, novas práticas e crenças, produzindo-se em pleno contexto colonial.
10
Em contextos recentes, Daniela Magri Amaral (2012) aponta o uso do torno em contextos onde os
homens controlariam mais a produção, isso para o contexto da cerâmica histórica pernambucana,
enquanto Luiz Antônio Pacheco de Queiroz (2015) registrou, por sua vez, para o Cariri Cearense que
algumas mulheres utilizam o torno, embora predomine a técnica modelada.
1244
De partida, os padres são alertados pelos nativos sobre as variantes étnicas que
caracterizam as mulheres indígenas de povos diferentes. O padre Antônio Ruiz de Montoya,
emblemático jesuíta ativo na instalação do projeto missional, distinguiu costumes femininos
dos grupos Guarani e Jê da região do Guairá (atual Paraná brasileiro): os Gualacho (Jê)
“possuem todos uma só língua e uma só mulher, embora seja emprestada, porque não são
fixos os matrimônios como entre os Guarani, além de serem esses menos estáveis. Pois
enquanto o Guarani tem a mulher em sujeição para repreendê-la ou despedi-la, o gualacho
não, e sim a mulher, a qual por coisas mui leves se afasta do marido e se vai a outro. Assim as
deixam andar a seus quereres”. No esforço comparativo, Ruiz de Montoya ainda aponta que
as mulheres Gualacho “cuidam mui pouco de seus maridos, ao contrário dos Guarani, não
lhes preparando comida nem outra coisa além de criar seus filhos e fabricar um pouco de
chicha” (MCA, 1951, p. 296). Considerada “indócil” por Montoya, a mulher Gualacho é
incompatível com o ideal feminino ocidental e, apesar dos elogios, a mulher Guarani não é
necessariamente um exemplo de conduta aos demais jesuítas. Para esses, são um exemplo de
lascívia.
Nas primeiras décadas do processo missional, os grupos indígenas que se conectam
com os jesuítas apresentam-lhes jovens mulheres para que se casassem. Esse convite ao
pecado é, ao que parece, o resultado de uma pressão tanto feminina quanto de suas famílias
voltada ao bem do estabelecimento de uma aliança segura com jesuítas. Ao passo que os
colonos espanhóis utilizaram amplamente essa instituição (Melià, 1997, p. 20; Santos, 1993,
p. 230; Felippe, 2007, p. 2), os padres procuraram combatê-la. Para Montoya, por exemplo, “o
demônio” o tentava se valendo das ofertas de mulheres por parte dos caciques “sob alegação
de que eles consideravam como coisa contrária à natureza a circunstância de homens se
ocuparem em trabalhos domésticos, quais os de cozinhar, varrer e outros deste tipo”
(Montoya, 1985, p. 56). “Certo missionário”, conforme conta Montoya sem revelar o nome do
colega, teria sido despertado pelo seu Anjo da Guarda para precavê-lo de duas mulheres,
escondidas no interior do claustro, prontas para “dar o bote” no “corpo santo” —
impulsionado pelo afã de quem guarda o sagrado, o anônimo padre as expulsa do aposento,
1245
enobrecendo seus votos de castidade ([1639]1997, p. 153). O próprio Montoya cerca seu
claustro “com paus para impedir a entrada de mulheres em nossa casa” ([1639] 1997, p. 56).
A preocupação é tanta que os superiores recomendam que as casas dos padres e seus demais
aposentos devam ser mantidos guarnecidos tanto por homens quanto por “altas paredes em
torno da casa” (MCA-CPH. Cx. 14. Doc. 14). Uma recomendação — em verdade, uma
compilação de ordens anteriores — do Provincial Lupércio Zurbano aos demais padres, ainda
em 1643, insiste que o trato com criaturas femininas jamais se dê sem companhia: “Se alguma
Índia vier sozinha à Igreja, tanto para se confessar quanto para conversar, caso não haja
ninguém na Igreja, chame-se algum fiscal ou muchacho grandinho da casa que esteja
presente” (MCA: 1952, p. 66). Ao final da presença jesuítica em solo missional, o padre
Cardiel confirma as recomendações: “Guarda-se clausura nas casas [dos padres] como nos
Colégios, de maneira que jamais entrou mulher alguma, nem mesmo ao princípio dos pátios”
([1771]1989, p. 108).
Mediante este cenário, muitos são os esforços jesuíticos que procuram explicar aos
nativos conceitos sobre castidade sacerdotal e pureza espiritual, incluindo em suas
denominações o substantivo Abaré (castidade para os jesuítas). Com o desenrolar da
experiência, não poucos indígenas parecem apreciar a postura casta e a denominam de
distintas maneiras: “geralmente o que os índios mais se espantam”, diz o padre Diogo Ferrer
no Itatim (atual Mato Grosso, Brasil), em 1633, “é que os padres não deixam entrar mulher
nem muchacha em sua casa, [...] pelo qual não chamam os padres senão pelo nome de
Tupamboyaeté, que quer dizer verdadeiros servos de Deus” (MCA, 1952, p. 38). No caso de
algum colono espanhol, se “não o veem envolvidos com impurezas ou luxúrias com as
índias”, analisa Cardiel no século XVIII, “vendo-o devoto e casto, logo dizem: caray
marangatu, o espanhol virtuoso” ([1758]1900, p. 303).11
11
Durante a década de 1940, o antropólogo León Cadogan construiu um conjunto de análises onde os
Guarani paraguaios são representados como verdadeiros monges da floresta. Nesse sentido, chamava-lhe
bastante atenção o esforço para o desprendimento do corpo engendrado por alguns líderes espirituais,
então dispostos a abandonar o consumo da carne vermelha e, especialmente, as práticas sexuais, situações
1246
A mesma exclusão se nota nas festividades, danças e demais cultos de exposição
física: “Nunca entra em dança mulher alguma nem muchacha, nem há nela coisa que não seja
honesta e mui cristã” (Cardiel, [1771]1989, p. 118). Mediante esse dia a dia excludente,
somado à crescente clausura dos jesuítas no interior de seu complexo, pode-se sugerir que o
distanciamento entre eles e as mulheres dos povoados missionais acabou por se transformar
em um profundo abismo.
Enquanto os missionários poderiam se distanciar das mulheres no interior de seu
complexo, o mesmo não se dá com freqüentadores do claustro, sobretudo os jovens. Desse
perigo padeceu um exemplar indígena membro do coral missional: “uma mulherzinha
pretendia roubar-lhe a honestidade e pureza enviando-lhe outra terceira pessoa, [...] mas o
bom muchacho resistiu de forma viril e não deu ouvidos aos silvos de semelhante serpente
[...]. Assim vive com tal recato que quando sai da Igreja com os demais cantores sempre vai
com os olhos vazios e cravados no chão para não ver mulher alguma” (MCA-CPH. Cx. 28.
Doc. 28). Para outros, os convites femininos são tormentos difíceis de esquecer, provocando
não raros desejos penitentes. Esse é o caso de Alonso Tari: com aproximadamente vinte anos,
assíduo frequentador da casa dos padres, deseja ardentemente se castrar para evitar o pecado
— o pedido é negado, mas enche os inacianos de admiração (MCA, 1970, p. 152). Outro
jovem, por sua vez, não perde tempo: fere os próprios olhos. Repreendido pelo padre, o jovem
responde: “Oxalá perdesse eu ambos os olhos antes que ofenda a Deus!” (Montoya,
[1639]1985, p. 205). De uma maneira ou outra, este gênero de caso edificante retrata o
tratamento dado pelos jesuítas à temática sexual, assim como a difusão e geração de uma crise
a partir da inserção de representações femininas ocidentais entre alguns nativos congregados.
Foi o demônio ocidental, contudo, o melhor pilar narrativo jesuítico para demonstrar
aos nativos o preço da feminilidade desprovida de cuidados cristãos. Alvos por excelência das
investidas dos demônios, as mulheres dos povoados, especialmente as castas ou em princípios
que melhor qualificariam sua liderança espiritual e o seu próprio desenlace da vida terrena (Cadogan,
2003, p. 96).
1247
da puberdade, possuem seu próprio verdugo ao longo da história missional.12 Uma vez que o
padre Diego Altamirano possui particular interesse sobre o tema da virgem mártir indígena —
representação, portanto, condizente à imagem do bom-selvagem —, lega a sua
correspondência uma série de casos que comprovariam a possibilidade de conversão
feminina. Diz ele que em 1635, Francisca, uma “doncellita” de doze anos, “delicados
membros” e convicta seguidora da palavra congregada, foi “enlaçada na garganta” até a morte
por um homem que a cobiçava sem sucesso (MCA: 1952, p. 252). Altamirano também conta
que uma jovem moradora de Nossa Senhora da Encarnação, já na década de 1650, conhece
esse tipo de criatura: alguns dias antes de comungar na festa de Maria, ela se vê atacada por
um demônio ansioso para violar sua castidade, a quem a garota responde com firmeza: “Pois
havendo de comungar em breve havia de entregar a outro meu corpo, manchando minha alma,
que somente a Deus reservo? Em vão te cansas, se presume vencer-me, pois antes perderei a
vida” (MCA: 1952, p. 243). No mesmo povoado, outra índia de idêntica convicção é
violentamente atacada: mesmo com “força de golpes, paus e açoites”, a mulher persevera
“esmaltada com seu próprio sangue” (MCA: 1952, p. 243). Em São Ignácio de 1661, uma
mulher casada põe-se a correr de sua chácara ao ser perseguida por um misterioso “moço
lascivo”; repudiado e “tomado pela luxúria”, o demônio apedreja-a até a morte (MCA: 1970,
p. 191). Por volta de 1687, uma virgem indígena é feita em “pequenos pedaços” ao resistir a
uma tentativa de estupro, recebendo o “despedaçado cadáver” uma “sepultura especial dentro
da igreja para que sirva de exemplo a todos os próximos” (Jarque; Altamirano: [1687]2008, p.
105). Na Santos Mártires de 1690, uma dessas valorosas mulheres defende sua castidade de
um “moço que a solicitava”: “sacou esse tal certo pó, esfregando-o nela, dizendo que aquele
12
Schaden destaca entre as situações de crise enfrentadas pelos Guarani o estado de akú ou adjékóaku, quando o
indivíduo, mediante uma situação específica da vida (nascimento de um filho, períodos de maturação biológica,
irrupções de doenças, entre outras), torna-se alvo das potências da natureza. Nesse estado, recomenda-se evitar
saídas à mata mediante o “perigo de encantamento sexual, a que se denomina adjépotá”; os mbuiá falam também
em Karaguá. O conjunto das medidas que a pessoa deve tomar chama-se “resguardo” em português; em Guarani
se diz simplesmente que fulano está akú”. As mulheres, em especial as menstruadas, são alvo fácil das investidas
desse estado. “Quem dá o adjepotá à mocinha”, disse um informante Guarani a Schaden, “é o Karugua” que
“aparece como gente para desatendê-la; depois ela vai ficando amarelinha, amarelinha, até morrer” (Schaden:
1974, p. 79, 83 e 87).
1248
pó lhe daria uma morte prolongada, o qual sucedeu assim” (MCA-CPH. Cx. 30. Doc. 5). Ao
que parece, as mulheres missionais presenciam uma conjuntura de violência. O melhor,
conforme admirado relato jesuítico de 1730, é seguir o exemplo de boas congregantes: “no
povoado de Nossa Senhora da Fé duas mulheres se deixaram açoitar, uma duas vezes, outra
uma, para não consentir ao Verdugo que as ameaçava” (MCA-CPH. Cx. 30. Doc. 44).13
De “mancebas auxiliares do demônio” a “devotas congregantes”, conforme aponta
Fleck (2006), as mulheres nas missões encontraram caminhos para ressignificar seus próprios
papéis, construindo, com isto, uma alternativa viável ao violento mundo colonial que se
constituíra.
Cotiguaçu
Em boa parte dos remanescentes arquitetônicos dos povoados missionais encontra-se
uma estrutura estranha ao modelo monasterial inicialmente sonhados pelos jesuítas: trata-se
de uma edificação ampla, geralmente ao lado do cemitério ou da igreja central, historicamente
reconhecida como uma casa destinada às mulheres. Novidade colonial, resultante das
acomodações que as mulheres construíram naquele contexto, esta espacialidade é o espaço
com maior vocação daquelas ruínas para se tratar da história das mulheres nas missões em
uma visitação, por exemplo, ao mesmo tempo que os dramas que ali se desenrolaram revelam
profundos aspectos da vivência e lutas femininas missionais.
No Sítio Arqueológico São Miguel Arcanjo, no Rio Grande do Sul, esta espacialidade
é tratada, por meio de uma placa, como uma espécie de presídio feminino interessado em
punir e guardar a castidade das mulheres. Em poucas palavras, a visitação ao sítio já
transforma as mulheres indígenas em indivíduos submetidos a ordem missional, reduzindo
importantes sentidos que ao longo da história construíram-se naquele espaço.
Não restam dúvidas de que tal espacialidade nasce conectada ao período de
remodelação de sensibilidades proposto pelos missionais, onde a instituição da poligamia ou a
13
Segundo Fleck (2006), “O controle do corpo e de suas sensações foi tomado pelos missionários como
indicativo de uma vivência virtuosa e da derrota da ação nociva do demônio”.
1249
“instabilidade das uniões patrimoniais”, nos termos dos padres, foi alvo objetivo da catequese
missional. Muitas mulheres tornam-se impossibilitadas de ingressar em novas famílias
durante a repressão à poligamia, prática usualmente responsável pela solução de viúvas, órfãs
e desamparadas nas tradições indígenas. Da mesma forma, jovens “amancebadas” são
apartadas de seus homens. Soma-se a isso o fato da população feminina ser teoricamente mais
poupada mediante circunstâncias históricas, como as guerras e trabalhos prestados aos
coloniais, ambas atividades exercidas com peso pelos homens. Justificam-se, com isso, os
períodos em que elas configuraram a maioria da população dos povoados missionais. Não se
pode esquecer, ainda, da chamada inconstância das uniões matrimoniais — prática nunca
regulada — responsável pela geração de uma série de mulheres sem homens, ainda que por
um curto espaço de tempo. E, por fim, sempre há aquelas que, por livre decisão, escolhem
viver ao lado dos jesuítas aparentemente em troca de proteção, bem como muitas são
resgatadas pelos próprios missionários em incursões pelas matas quando buscam indígenas
sequestradas por colonos. Em outras palavras, as urgências femininas pressionaram os jesuítas
a seguir contra os seus desejos: tiveram de incluí-las, à força da situação colonial, em sua
própria área.
Como se percebe, o recorrente vínculo assistencial das lideranças indígenas para com
as mulheres (Santos, 1993, p. 283; Souza, 2002, p. 229) é duramente cobrado dos jesuítas.
Acolher velhos e órfãos, por exemplo, foi uma das primeiras medidas implantadas pelo padre
Cristóvão de Mendonza em todos povoados inaugurados: “Fundava em cada redução uma
espécie de asilo para crianças e velhos inutilizados, aos quais alimentava e vestia” (DHA:
1929, p. 572). É esta, em verdade, uma medida prática: parece preferível tê-los aos olhos do
que soltos pela povoação. Contudo, um espaço originalmente criado para abrigar homens,
mulheres e crianças desamparados, ganha no desenrolar da experiência uma função específica
de gênero, indício claro da mobilidade funcional recorrente a boa parte dos prédios
missionais.
As primeiras notícias do feito estão registradas na documentação jesuítica do final do
século XVII. Em 1699, no povoado de São Cosme e Damião e de sua vizinha Candelária,
1250
“puseram-se as muchachas órfãs em casa separada vivendo em comunidade. E [ali] estão as
mulheres cujos maridos fugiram, tendo-se especial cuidado delas, para evitar ocasiões de
ofensas ao Nosso Senhor” (MCA-CPH. Cx. 30. Doc. 12). Em 1700, o povoamento de São
Carlos comemora: “o recolhimento das órfãs está em seu vigor” (MCA. Cx. 30. Doc. 13). Daí
por diante, este importante espaço se torna elemento fixo das plantas baixas dos povoados.
Assim, ao menos, deixa bem claro o padre Cardiel: “Existe em cada povoado a Casa das
Recolhidas, cujos maridos estão por muito tempo ausentes ou que se fugiram e não se sabe
deles. E com elas estão as viúvas, especialmente se são moças e não possuem pai, mãe ou
algum parente de confiança que possa delas cuidar” ([1771]1989, p.58).
Os dados populacionais de mulheres em situação de risco, ou seja, aptas a ingressar o
cotiguaçu, são absolutamente variáveis nas duas primeiras décadas de instalação da Casa das
Recolhidas.14 Alguns povoados apresentam decréscimos: São Carlos conta com 140 mulheres
em 1695, após cinco anos contabiliza 135 — sendo “onze as que têm seus maridos fugidos”—
e alcança 118 em 1716. A maioria dos processos de formação do cotiguaçu, entretanto,
apresenta dados crescentes. Em 1695, Nossa Senhora da Fé concentra 30 viúvas de uma
população de mais de cinco mil pessoas, chegando a 1715 com 80 inscritas. São Inácio Mini
recolhe 61 mulheres de uma população de mais de 2.300 pessoas em 1695, passando para 130
em 1715 e 145 um ano depois. Loreto, um dos maiores povoados, soma 33 mulheres em
1695, 83 em 1711, 113 em 1715 e 175 alguns anos depois. Os povoados futuramente
conhecidos como “Sete Povos”, no atual estado brasileiro do Rio Grande do Sul, também
alcançam o ano de 1716 com números consideráveis: São Nicolau e São João contabilizam
algo próximo de 150 mulheres desamparadas para cada, São Lorenzo apresenta 191 e São
Miguel soma 247. Já a São Luis cabe a maior cifra registrada, 506 mulheres vivendo sem
homens alojadas no cotiguaçu, num total próximo a 12% da população de 4.283 indivíduos.
14
Os registros analisados a seguir correspondem às cartas annuas dos anos de 1695 (MCA-CPH. Cx. 30. Doc. 9),
1700 (MCA-CPH. Cx. 30. Doc. 13), 1702 (MCA-CPH. Cx. 30. Doc. 16 e 17), 1711 (MCA-CPH. Cx. 30. Doc.
28), 1713 (MCA-CPH. Cx. 30. Doc. 30), 1715 (MCA-CPH. Cx. 30. Doc. 36) e 1716 (MCA-CPH. Cx. 30. Doc.
37).
1251
Tamanhos números levam a crer que as mulheres sem homens podiam viver em outros setores
dos povoados que não a Casa das Recolhidas.
A Casa das Recolhidas é usualmente chamada nos povoados de cotiguaçu. A saber, o
vocábulo em questão (koty, casa/quarto, guaçu, grande) lembra a ideia de “grande habitação”,
num claro neologismo jesuítico possivelmente familiar aos missionais por remeter às casas
comunais encabeçadas por um cacique (Souza, 2002, p. 224). Essas mulheres, de fato, estão
oficialmente sob a tutela dos missionários, percebendo-se indícios de ressignificação do
conteúdo poligâmico afetando a relação entre os missionários e as mulheres missionais.
Da mesma forma que os homens das oficinas e os meninos das escolas, para citar dois
importantes setores sociais surgidos nas Missões, as mulheres do cotiguaçu também exercem
práticas e regulamentos diferenciados dos demais moradores dos povoados. Para assegurar o
cumprimento das normativas, a uma das mulheres é confiado o cargo de diretora do
cotiguaçu, responsável pelo acompanhamento de suas tuteladas em qualquer saída pelo
povoado, além da garantir sua frequência obrigatória em todos ritos missionais (missas,
confissões, congregações, etc.). Elas ocupam um lugar especial na missa, entram na igreja
pela lateral, via cemitério, portando-se exemplarmente na avaliação dos missionários (Cardiel,
[1771]1989, p. 98). Não por poucos motivos, são elas que engrossam as congregações
marianas, ano a ano mais volumosas (MCA, 1969, p.43). Também são elas, ao lado dos
cabildantes e de determinadas crianças, os pilares das estratégias de controle do restante da
população e do envio de discursos da área jesuítica para o povoado. A elas pertencia a
produção de tecidos para vestir os desnudos, colaborando, com isso, na construção das
moralidades missionais. Vinculado ao sistema de punições implantado nos povoados, no
cotiguaçu também são recolhidas as “delinqüentes”, sem que sejam mantidas encarceradas,
embora quando vão ao povoado estejam com as mãos atadas, e não raro as desviadas são
açoitadas nas costas “pelas mãos da diretora ou de outra mulher” no sigilo do próprio local
(Cardiel: [1771]1991, p. 155). Dessa forma, as mulheres, importante elemento de uma
sociedade indígena e peça fundamental do exercício de lideranças e produção agrícola,
1252
passam a integrar de forma sólida a área encabeçada pelos jesuítas e, junto a eles, fazem parte
da produção de novas moralidades.
Ainda que o cotiguaçu permaneça controlado a chaves e que os missionários e a
diretora permaneçam atentos aos passos de suas tuteladas, nada garante disciplina e controle
absoluto nesse universo. Volta e meia surgem notícias sobre “visões de índias velhas que não
se faz caso” (MCA-CPH. Cx. 30. Doc. 9-921), “inimizades que as índias comumente têm
umas com as outras” em virtude dos “desmandes da língua” (MCA-CPH. Cx. 30. Doc. 5) e os
obscuros “contatos impudicos entre si” (Montoya: [1637] 1876, p. 298). Ainda, nada assegura
que aquela que escolheu o cotiguaçu como morada não possa vir a mudar de idéia: “Uma
Índia de Candelária saiu sem licença do Padre da Casa das Recolhidas e se foi para Santa
Ana”, relata uma carta de 1730, “de volta ao caminho, correndo com outra, sem que vissem
uma tormenta se formando, caiu um raio e somente a ela deixou morta” (MCA-CPH. Cx. 30.
Doc. 44).
1253
servir a uma Senhora que com tanta liberalidade se deu e rogou seu filho Santíssimo?”, teriam
explicado as índias (MCA, 1969, p. 73). 15
A associação da Maria bíblica a esposas de deuses, de imediato, parece evidente, uma
vez que ela também fora progenitora de um filho divino. Todavia, tratou-se de uma gravidez
resultante de um único encontro intermediado por um anjo, sem envolver contatos físicos,
conforme a narrativa bíblica. Atribuir o sufixo Sy ou Chy a Maria ampliava as possibilidades
desses encontros e dos filhos oriundos deles, fatos óbvios o suficiente para não causar a
mínima preocupação aos nativos, inicialmente tomados pelos clérigos coloniais como
heréticos. Futuros estudos indicarão o quanto essas percepções podem ter afetado as
representações e percepções sobre Jesus.
Na prática diária, os missionários se admiram mediante a versatilidade nominal da
santa entre os ameríndios de Concepción — “onde há diversas parcialidades” —, então
chamada de “Mi Madre, Santíssima, Mi Señora, Mi Reyna, etc.” (MCA-CPH. Cx 28. Doc
28). Considerando a tradução operada pelo missionário ao gerar o registro histórico referido,
vale especular quantas variantes de conteúdo poderiam ocorrer a cada uma dessas
denominações quando originalmente empregadas nos idiomas nativos. Com isso, percebe-se a
inviabilidade de atribuir apenas uma representação à Maria missional. Certamente, tal
situação é tolerada pelos jesuítas mediante o fato de pregarem diversas facetas da mesma
(Concepção, Guadalupe, Carmo, etc.). Contudo, como se percebe mediante as variações de
suas denominações e funções, as caracterizações da Maria missional são, por si só, capazes de
liquidar toda e qualquer orientação da hagiografia ocidental naquela experiência.
15
Ao adotar Tupã Sy como um dos nomes de Maria, os missionários paraguaios recorriam às estratégias de
colegas ativos em outros espaços e contextos, manifestando uma característica dos esforços de tradução jesuítica.
Sobre isso, diz Vainfas: “as manifestações prodigiosas da Virgem na América espanhola se multiplicaram à
farta, sedimentando uma tradição inaugurada no primeiro século da Conquista continental”, quando “a Virgem
marcava sua presença no cotidiano colonial” por meio da criação de “uma terceira esfera simbólica”, nem cristã,
nem indígena. “Nessa ‘mitologia paralela’, Nossa Senhora virou Tupansy, personagem de seu teatro para a
conversão dos índios” (Vainfas: 1999, p. 209). Para Gruzinski, objetos, divindades, práticas e crenças sofrem
com uma descontextualização: no México, também a Virgem foi um problema de tradução e denominada como
uma deusa asteca, fenômeno diretamente vinculado à formação das mestiçagens (2001, p. 89, 291-292).
1254
Se na análise lingüística os dados apontam para o fato que a Maria ocidental encontrou
outros significados quando entre os indígenas missionais, a análise estética indica alterações
de conteúdo e de forma significativos. Duas peças sobreviventes do processo, atualmente
integrantes de acervos de dois museus distintos, ofertam subsídios para o entendimento deste
fenômeno, ainda que suas atuais legendas as reduzam apenas a imagens marianas.
A primeira peça que aqui se analisa é a Virgem Maria (FIG. 1) existente no Museu
Júlio de Castilhos, em Porto Alegre. Trata-se de uma escultura em madeira policromada,
possivelmente nascida no século XVII. Embora a história da arte a tenha tratado como uma
representação mariana, aspecto que levou o Museu Júlio de Castilhos a assim apresentá-la ao
público, a escultura fala um tanto mais em seus traços. De olhos amendoados e longos cabelos
enegrecidos, a representação assemelha-se facialmente muito mais a uma mulher indígena do
que a Maria comumente representada na arte ocidental. Ao que parece, trata-se de um
fenômeno recorrente na história da Igreja, quando a versatilidade de Maria adéqua-se
formalmente às culturas onde se relaciona, propondo novas estéticas para a entidade
ocidental.
No Museu de Santiago, Paraguai, esconde-se amontado em uma sala os restos do
último altar dos povoados missionais. Nele se encontra um conjunto de pinturas que revelam
uma concepção do artista sobre as entidades maiores divinizadas nos povoados. Para fins
deste estudo, concentra-se a análise na representação mariana ali existente (FIG.2). O
primeiro aspecto que chama atenção nessa representação é a plumaria dos anjos e querubins.
Ao contrário da tradição ocidental, as plumas enchem-se de um vermelho encarnado, bastante
próximo daquele utilizado pelas lideranças espirituais indígenas. Os chamados mantos
xamânicos, confeccionados com plumas da ave guará, desfrutavam de tamanho prestígio entre
os indígenas que a Igreja procurou eliminar todos que encontrava, sobrevivendo apenas um
exemplar em perfeito estado aos dias atuais, hoje parte do acervo do Museu Etnográfico de
Viena. Do ponto de vista lingüístico, a ave guará, as lideranças espirituais Guarani e até
mesmo anjos e santos, são tratados no mundo missional como marangatu, palavra traduzida
pelos padres por “os bem-aventurados”. A Glória ocidental, com isto, passa a ser afetada, ao
1255
menos nesta pintura, pelo vermelho xamânico dos marangatu indígenas. Uma análise anterior
e mais detalhada sobre a questão dos Marangatu no mundo missional pode ser encontrada em
estudos anteriores dos autores (BAPTISTA, 2010, p. 117-151; BAPTISTA; BOITA, 2011, p.
264-279).
Os motivos florais da pintura também chamam atenção. Rodeada de lírios do campo, a
pintura parece propor um cruzamento com narrativas indígenas que no século XX as
etnografias relacionaram com Ñande Sy. Em determinado momento de sua trajetória, a
deidade conversa com seu filho, Kuaray, ainda no ventre, tendo os lírios como testemunha.
Não há como se saber se as narrativas coletadas no século XX relacionam-se com aquelas do
século XVII, mas a inserção do lírio na imagem deixa margens para se entender que temos ali
um cruzamento entre crenças indígenas que remetem para Ñande Sy.
Ao se cruzar os dados linguísticos com aspectos estéticos, pode-se inferir que as
representações marianas produzidas nas Missões da América Meridional representavam
entidades resultantes do processo colonial. Nessas Marias, não se vê entidades indígenas
anteriores ao contato, nem mesmo aquelas trazidas pelos inacianos. O que se vê são entidades
geradas no processo missional, representantes de uma moralidade e espiritualidade ali surgida.
Dito de outro modo, classificá-las como imagens marianas, conforme as legendas dos
museus costumam fazer, é um ato reducionista, capaz de sobrepujar a história das mulheres
que participaram daquela construção.
Considerações finais
Ao cruzar olhares acerca da documentação histórica dos espaços construídos no
âmbito das Missões – bem como acerca da sua musealização no contexto contemporâneo, e
das representações nos museus, buscamos traçar algumas abordagens possíveis dos processos
de silenciamento e de estereotipagem das mulheres indígenas Guarani. Ampliando nosso
campo de visão, constatamos que estudos históricos, arqueológicos e museológicos voltados à
questão da mulher Guarani, têm sido raros.
1256
Como apontam os estudos decoloniais, a invenção do conceito de raça, como
instrumento de dominação, insere uma diferença radical entre os povos, afetando também as
relações sexuais (SEGATO, 2012), onde as mulheres, sobretudo, as não-brancas (indígenas e
negras), são inseridas em espaços marcados por uma violência física, simbólica e epistêmica.
Quando pesquisas e instituições museológicas constroem narrativas impregnadas de
silenciamentos e de estereótipos das mulheres e outras minorias, acabam sujeitando-as a uma
violência epistêmica. Essa violência é uma forma de invisibilizar o outro, expropriando-o de
uma forma de representação.
Nesse sentido, a partir de nosso lugar de fala – no caso como pessoas não indígenas –
pensamos que esse debate deverá necessariamente ser protagonizado pelas mulheres
indígenas Guarani, no sentido de rastrear os processos de ocultamento e exclusão de suas
memórias. Dessa feita, esse esforço no âmbito das Missões poderá trazer novas análises e
propostas de musealização, seja das fontes textuais, dos vestígios arqueológicos, de locais
como o Cotiguaçu e das representações imagéticas. Para muitas autoras feministas, como a
historiadora Joan Scott (1988), mais que a inclusão das mulheres e da categoria gênero na
análise histórica, as abordagens feministas impõem um reexame crítico das premissas e dos
critérios de trabalho existentes. Esses estudos podem desvelar múltiplas construções daquilo
que denominados como sexo, gênero e sexualidade, no tempo e no espaço, evidenciando o
quanto a nossa categorização de gênero é moldada por um olhar moderno e europeu,
possibilitando “revisiter le mythe de la condition universelle des femmes”, como nos aponta
Azadeh Kian (2010, p.1).
1257
Embora ausente das narrativas expográficas dos museus que se dedicam à memória e
história da experiência missional, as mulheres indígenas envolvidas no processo constam em
distintos documentos históricos, indicando-se, com isto, que sua presença longe esteve de ser
insignificante naquele processo. O mesmo se dá com as divindades indígenas femininas,
comumente reduzidas à hagiografia ocidental. Mulheres e deusas, de fato, reconstruíram-se
mediante o contexto se apresentava, cruzando tradições e se recriando no mundo colonial.
Figura 1 Figura 2
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1261
MUSEALIZAÇÃO DA ARQUEOLOGIA: PROVOCAÇÕES E PROPOSIÇÕES
FEMINISTAS
Abstract: Historically, museums and archaeological heritage were born associated with the
construction of national identities, in which a form of full citizen emerged: man, white, heterosexual
and proprietary. In Western modernity, the collections and estates elected as worthy of being in a
national memory can be understood as another axis of oppression and subordination of women and
other 'minorities'. How have these assemblages occurred in the external subjects of oppression, as in
Latin America, and more specifically in Brazil? How did the coloniality of power operate in these
contexts? This research aims to construct strategies for the analysis of the representations of gender in
processes of Musealization of Archeology. In this way, it integrates the fields of Archeology and
Museology, aiming to build bridges between these fields, mapping new forms of representation.
Particularly relevant is a critical analysis of these constructions as part of a broad spectrum of
assemblages and standardizations, aiming at social cohesion and uniformity in the past and present.
1262
“a sua prática é feminista se as questões de pesquisa nas quais você se engaja
são animadas por compromissos ativistas. As questões que você escolhe para
trabalhar devem ser relevantes para a vida das mulheres e das minorias. São
questões sobre sistemas de desigualdade social que, se respondidas,
fornecerão as fontes necessárias para efetivamente lidar com a injustiça
social”.
Alison Wylie, 2014
1263
os vestígios materiais inseridos nos museus compõem um processo bem mais longo, estando
associados ao colecionismo, aos gabinetes de curiosidades e à própria gênese das instituições
museológicas.
1264
Sobre feminismos
Ainda que conte com antecedentes que chegam a cinco séculos, a chamada primeira
onda do movimento feminista pode ser situada no século XVIII, caracterizada por demandas
de igualdade, emancipação e luta pelo direito ao voto. Essa onda feminista não teve
repercussão direta na produção arqueológica e museológica, mas algumas de suas premissas
e, inclusive, posturas colonialistas fazem eco na produção arqueológica contemporânea.
Segundo Azadeh Kian (2010), obras como a de Mary Wollstonecraft, “Reivindicação dos
direitos da mulher” revelam olhares colonialistas que não deixam de marcar também as
mentalidades no presente. Devemos lembrar que a Arqueologia e os museus estiveram
estreitamente vinculados ao colonialismo e que o fato dos museus europeus estarem repletos
de objetos arqueológicos vindos do roubo e da pilhagem, por exemplo, não é neutro. No
Brasil, o século XIX, por exemplo, foi marcado por pesquisas arqueológicas associadas
diretamente ao controle dos territórios e dos povos indígenas, a esses eram dadas duas
alternativas: o controle do Estado Imperial ou o extermínio.
No que concerne aos museus, essa ‘primeira onda’ esteve associada a diversas ações
de protesto de mulheres sufragistas nos museus, como nos informa a obra de Carla
Zaccagnini. “Elementos de beleza” é uma obra e livro da artista, lançados em 2012, sobre as
sufragistas de Londres e Manchester, nos anos 1910. A publicação reúne material de arquivo,
fotografias, recortes de jornal e registros criminais a respeito da seção considerada mais
radical do movimento, que defendia o direito de voto para as mulheres nas eleições políticas.
A Women’s Social and Political Union (WSPU), organização de militância pelo voto
feminino, era adepta de táticas de ação não convencionais, que incluíam ataques a vitrines de
lojas, museus e pinturas, em especial aquelas que representavam nus femininos e retratos de
homens. Dessa forma, já na primeira onda do feminismo, os museus foram interpelados.
1265
Em 1935, Margareth Mead publica o livro “Sexo e temperamento em três sociedades
primitivas” (MEAD 1935/ 1979), um estudo comparativo entre sociedades a partir da seguinte
questão: seriam as diferenças entre o homem e a mulher meramente biológicas? Depois de ter
analisado três sociedades culturalmente diferentes, a resposta foi negativa. Décadas mais
tarde, a partir de 1970, os estudos antropológicos devotados à temática do gênero em diversas
sociedades se expandiram ao redor do mundo. No Brasil, o afastamento da prática
arqueológica do campo da Antropologia, apontado por Cristiana Barreto (1999/2000), pode
ser compreendido como uma das causas do tardio desenvolvimento de pesquisas
arqueológicas que envolvem explicitamente as questões de gênero. Insiro ainda nesse quadro,
o fato de que a Museologia também se aproximou tardiamente de perspectivas antropológicas
pautadas pela reflexividade, o que afetou também a produção museológica.
Esses trabalhos ainda que não utilizassem o termo gênero, partiam da ideia de um
“sexo social” que influenciaria o feminismo de "segunda onda" — aquela que se inicia no
final da década de 1960. Além das preocupações sociais e políticas, o feminismo irá se voltar
para as construções propriamente teóricas. No âmbito do debate que a partir de então se trava,
entre estudiosas e militantes de um lado e seus críticos de outro, será engendrado e
problematizado o conceito de gênero. Destaca-se o texto de Gayle Rubin “Tráfico de
mulheres: notas sobre a ‘economia política’ do sexo” (RUBIN, 1975/ 1993), texto seminal
onde a autora propõe que a divisão entre os sexos e a subordinação das mulheres são
resultantes do sistema de sexo/ gênero.
1266
“elaborado por pensadoras feministas precisamente para desmontar esse
duplo procedimento de naturalização mediante o qual as diferenças que se
atribuem a homens e mulheres são consideradas inatas, derivadas de
distinções naturais, e as desigualdades entre uns e outros são percebidas
como resultado dessas diferenças” (PISCITELLI, 2009, p.119).
1267
Algumas autoras compreendem que os feminismos desconstrutivistas seriam nas
realidade “pós-feminismos”, dando lugar a uma quarta onda. Na Arqueologia e na
Museologia Brasileira essas abordagens ainda são pontuais, sobretudo, porque esbarram no
desafio de uma prática feminista que nega a integridade ontológica do sujeito mulher, ao
mesmo tempo em que percorre um caminho de luta contra a invisibilidade e subordinação das
mulheres nas interpretações e práticas da Arqueologia e nas narrativas museológicas.
1268
última tem como especificidade o fazer lembrar a partir de pontos fixos, que representem um
gatilho para nossas memórias, como paisagens, objetos, livros, emblemas e monumentos
(SANTOS, 2013). Ora, as narrativas construídas a partir dos vestígios arqueológicos são
compreendidas aqui como parte da memória cultural e, desse ponto de vista, participam
ativamente nos processos de normatização de corpos e mentes.
Marilena Chauí, dialogando ainda com a obra seminal de Ecléa Bosi (1987), fala da
opressão da memória, cuja ação mais sinistra seria a da “história oficial celebrativa cujo
triunfalismo é a vitória do vencedor a pisotear a tradição dos vencidos” (CHAUÍ, 1987: XIX).
Diversos estudos têm denunciado a ausência das experiências e conquistas das mulheres nos
discursos arqueológicos, como um mecanismo por meio do qual uma ideologia patriarcal se
replica, privilegiando a experiência masculina, como salienta Barbara Voss (2000).
1269
do conceito de raça, também teria significado a criação do conceito de gênero para essas
sociedades, pois não existiria nesses contextos um princípio organizador parecido com o de
gênero do ocidente antes do “contato” e da colonização, postura com a qual também concorda
Breny Mendoza (2010/2017). Não pretendo aqui optar por uma ou outra interpretação, mas
salientar que esse é um debate extremamente profícuo para as questões aqui colocadas.
Para Stuart Hall (2016), as representações são atos criativos que atuam na construção
social da realidade, cujos significados não podem ser fixados. As representações estão
relacionadas ao que as pessoas pensam sobre o mundo e sobre o que ‘são’ nesse mundo,
guardando uma dimensão política. Assim, “não ter voz ou não se ver representado pode
significar nada menos que opressão existencial” (ITUASSU, 2016, p.13). Quando pesquisas
arqueológicas e instituições museológicas constroem narrativas impregnadas de
silenciamentos e de estereótipos das mulheres e outras minorias, acabam sujeitando-as a uma
violência epistêmica, conforme conceito elaborado por Gayatri Spivak. Essa violência é uma
forma de invisibilizar o outro, expropriando-o de uma forma de representação
Sobre narrativas
1270
enquanto prática de colecionamento, como práxis que constrói coleções, espaços e narrativas,
sem amarras cronológicas.
1271
os espaços de contestação das narrativas arqueológicas e de construção de narrativas
nativas e alternativas, inspiradas em outras epistemologias.
Considerações finais
De acordo com Rita Laura Segato (2012), as relações de gênero são uma cena ubíqua
e onipresente de toda a vida social. De uma forma ou de outra, as interpretações arqueológicas
e respetivas narrativas de musealização emitem discursos sobre gênero. Como memórias
exiladas e silenciadas, narrativas críticas acerca das normatizações e opressões de sexo,
gênero e sexualidade têm sido raras. A memória cultural construída a partir dos objetos
arqueológicos tem reforçado os estereótipos de gênero e a Arqueologia enquanto violência
epistêmica.
1272
Para muitas autoras, como a historiadora Joan Scott (1988), mais que a inclusão das
mulheres e da categoria gênero na análise histórica, as abordagens feministas impõem um
reexame crítico das premissas e dos critérios de trabalho existentes. Na Arqueologia, o papel
do feminismo evidencia que o registro arqueológico se forma através de um discurso de
gênero próprio da sociedade estudada e, a interpretação arqueológica, se forma através da
nossa própria, interiorizada e normalmente inconsciente, categorização de gênero
(BERROCAL, 2009). Dessa feita, as categorizações de gênero são diversas, no passado e no
presente, sendo necessário recusar interpretações homogeneizadoras.
Aqui vejo uma potencialidade dos estudos feministas de gênero na Arqueologia e na
Museologia, a partir de uma mirada pós-colonial, uma vez que tais estudos podem desvelar
múltiplas construções daquilo que denominados como sexo, gênero e sexualidade, no tempo e
no espaço, evidenciando o quanto a nossa categorização de gênero é moldada por um olhar
moderno e europeu, possibilitando “revisiter le mythe de la condition universelle des
femmes”, como nos aponta Azadeh Kian (2010, p.1).
Mais uma vez, como nos aponta Joan Scott (1988/ 1995), quando falamos sobre
gênero, estamos falando sobre relações de poder. Dessa forma, representações que em um
primeiro olhar aparecem como secundárias ou ingênuas, são situadas no que concerne à
marcação de diferenças e à construção de desigualdades.
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1277
PESQUISA PARA EXPOSIÇÕES EM MUSEUS: UMA ANÁLISE DA
EXPOSIÇÃO GÊNERO E JUDICIÁRIO: UM OLHAR SOBRE A
REPRESENTAÇÃO DA MULHER NO SÉCULO XX.
Resumo: Esta pesquisa tem por objetivo apresentar a exposição “Gênero e Judiciário: um olhar sobre
a representação da mulher do século XX”, que aconteceu no Memorial “Arthur Francisco Seixas dos
Anjos” fazendo um estudo de caso e analisando os pontos em que a exposição poderia ter sido
explorada, estabelecendo com isso uma relação com a importância da pesquisa em museus. São
abordadas as ações de musealização, apresentando o conceito e mostrando porque estas ações são
importantes em uma instituição museológica, bem como as ações de musealização feitas no Memorial
“Arthur Francisco Seixas dos Anjos”, apresentamos a Museologia como campo interdisciplinar, uma
vez que a História contribuiu na pesquisa sobre as mulheres e as reclamações trabalhistas feitas por
estas sujeitas junto ao TRT8, e por fim, trato do Museu como instituição de pesquisa, uma vez que o
presente trabalho tem como objetivo fazer uma análise da exposição do Memorial ressaltando a
importância da pesquisa em museus e por fim, uma síntese da análise da exposição.
Abstract: That research aims to present the exhibition "Gender and Judiciary: a look at the
representation of women of the twentieth century", which happened in the "Arthur Francisco Seixas
dos Anjos" Memorial, making a case study and analyzing the points in which the exhibition could
have been explored, thereby establishing a relationship with the importance of museum research. The
actions of musealization are presented, presenting the concept and showing why these actions are
important in a museological institution, as well as the musealization actions done in the "Arthur
Francisco Seixas dos Anjos" Memorial, we present Museology as an interdisciplinary field, since the
history contributed to the research on women and the labor claims made by these subjects at TRT16
(Labor Court), and finally, I treat the Museum as a research institution, since the present work aims to
make an analysis of the exhibition of the Memorial emphasizing the importance Of museum research
and, finally, a synthesis of the analysis of the exhibition.
16
TRT – Tribunal Regional do Trabalho, Portuguese.
1278
A presente pesquisa tem por objetivo apresentar a exposição “Gênero e Judiciário: um
olhar sobre a representação da mulher do século XX”, que aconteceu no Memorial “Arthur
Francisco Seixas dos Anjos” fazendo um estudo de caso e analisando os pontos em que a
exposição poderia ter sido explorada, estabelecendo com isso uma relação com a importância
da pesquisa em museus.
Através de análises bibliográficas nacionais e internacionais sobre Museus e
Museologia foi percebido que o conceito de Musealização é bem recente. No entanto é
entendido que o termo Musealização é a valorização dos objetos e a valorização é feita através
da transferência do objeto para dentro do Museu sendo que quando ocorre essa transferência o
objeto entra em outro contexto, que é o do Museu. (CURY, 2005. p,23).
1279
A exposição Gênero e Judiciário
Este evento foi realizado juntamente a 12ª Semana Nacional de Museus promovida
pelo Instituto Brasileiro de Museus-IBRAM em maio de 2014 com a exposição “Gênero e
Judiciário: Um olhar sobre a representação da mulher do século XX” realizada no Tribunal
Regional do Trabalho da 8ª região. A exposição partiu de uma pesquisa no arquivo do TRT8
com reclamações de mulheres do século XX contando a partir do ano de 1940 até 1990. Com
essa exposição buscou se mostrar a trajetória da mulher no trabalho e como ela foi adquirindo
seu espaço e conquistando seus direitos no trabalho.
Portanto dialogar com outras áreas para essa exposição foi importante utilizamos a área de
conhecimento da História e do Direito, haja visto, que trabalhamos com as memórias das
mulheres, falando de um tempo da história que foi o período de lutas delas no mercado de
trabalho, e o uso do conhecimento jurídico, pois, a documentação usada são reclamações
trabalhistas das mulheres, além de que a instituição onde o estudo de caso foi feito é um
ambiente da área do direito, pois se trata de memorial da justiça do trabalho, vinculado ao
Tribunal regional do trabalho TRT8.
Pesquisa em museus
Partindo da ideia de que o museu é lugar de reflexão e busca de conhecimento,
onde damos valores e significados, valores que vão de histórico, estético das coisas,
podemos afirmar que o museu é lugar de pesquisas, já que, podemos dizer que pesquisa
resulta em conhecimento e a prática da pesquisa se transforma em conhecimento,
conhecimento esse que não necessariamente seria original.
A pesquisa é uma função básica do Museu, ela faz parte da identidade do Museu.
Então um museu que não desenvolve pesquisa é um museu que está
perdendo a sua identidade. Ele poderá ser um mostruário, poderá ser uma
coleção poderá ser uma outra coisa qualquer, mas não será um Museu
(CHAGAS, 2005, p, 61).
1280
Para Mário Chagas as pesquisas são de extrema importância para o museu. Este
autor faz observações bastante relevantes, ao falar que os museus operam em dimensões
que vão além do espaço tridimensional das coisas, citando assim Stocking Jr., onde o este
fala a respeito de pelo menos quatro dimensões que é a dimensão do tempo, da história ou
da memória, dimensão do poder, dimensão da riqueza e a dimensão da estética. Já Mario
chagas acrescenta mais duas, que é a dimensão do conhecimento ou do saber e a dimensão
lúdico- educativa. Para ele os museus têm o desejo de ensinar e de funcionar como suporte
de conhecimento. Ele acredita que quando o museu reúne coisas de valor e “adjetivadas” a
intenção é que essas coisas não sejam esquecidas e que sejam representadas com um
valor.
Para Mário Chagas os museus operam com três funções que para ele são básicas
para o museu, são: a preservação, a comunicação e a investigação. No caso os museus são
“casas de preservação” como ele mesmo chama, ele quer dizer que o que os museus
preservam vai além das coisas, pois além de preservarem as coisas, eles usam essas coisas
preservadas para comunicar algo e no caso ele diz que os museus também são “casas de
comunicação” e de investigação para ele o museu só é completo quando ele consegue
preservar, comunicar e investigar e ai ele deixa claro a importância da pesquisa na função
do museu e de que museus são também “casas de pesquisa”.
O ato de colecionar abarca em sistematizar valores para a circulação dos objetos, pois
os objetos para serem reconhecidos como objetos de valor é preciso que haja um
reconhecimento por parte de referenciais, com isso o objeto será incluído em uma coleção e o
valor será agregado ou diminuído dependendo das transformações que ocorreram no uso do
objeto. Sendo assim esses objetos poderão servir como fonte de pesquisa. Para Köptcke
(2005) o acervo, que no caso ela chama de coleção funciona da seguinte forma, primeiro o
objeto saí do seu ambiente de origem e entra em outro universo que é do museu. Logo o
objeto passa por uma recontextualização, para fins de pesquisa, conservação passando a
comunicar através das exposições.
1281
[...] A coleção funciona como um jogo de recontextulizar dentro de um
mundo autônomo e hermético. A manipulação de tempos e espaços
diferentes são aspectos sinalizados por vários autores que analisam esta
prática. Eles evidenciam a arbitrariedade, em outras palavras, a construção
dessa lógica pra se considerar o arranjo de um conjunto de objetos como
uma recriação do mundo o ato de colecionar se refere, assim, ao desejo de se
apropriar o mundo, de classificar, que é um gesto de domínio, de poder sobre
a natureza e sobre a cultura, uma maneira de construir conhecimento.
(KÖPTCKE, 2005, p, 70).
No caso ela diz que a o acervo se recontextualiza a partir do momento em que ele
entra no museu e induzido pelo homem que o manipula, dessa forma o objeto do acervo passa
a ser um meio de conhecimento, principalmente de construção de saberes.
No entanto observamos que tudo funciona da seguinte forma, o museu é um campo de
pesquisa, pois ele é composto de conhecimentos diversos, o museu e tudo que ocorre dentro
do museu é através das pesquisas, abrindo uma série de práticas de pesquisas possíveis dentro
do museu, como a pesquisa documental, de acervos, de público, a pesquisa para exposições
etc. Para Mario Chagas não importa qual seja o entendimento que se tem por Museologia,
para ele é possível que se desenvolva um trabalho de pesquisa sério e criterioso, mesmo
compreendendo a Museologia no seu sentido mais tradicional, que é o estudo dos museus.
1282
Estudo de caso sobre a exposição “Gênero e Judiciário: Um olhar sobre a representação
da mulher do século XX”
A iniciativa de desenvolver este trabalho veio por conta da exposição que compõe o
título deste tópico, a qual participamos trabalhando em todo o processo, tanto de musealização
quanto de pesquisa, montagem, documentação e na própria mediação deste evento. Com base
nas discussões apresentadas anteriormente, sobre o conceito de museu e Museologia e,
principalmente sobre o papel das pesquisas nos museus, pretendo neste capítulo realizar uma
reflexão acerca do impacto da prática de exposição do acervo do Memorial da Justiça do
Trabalho da 8ª Região.
A exposição com o nome de “Gênero e Judiciário: Um olhar sobre a representação da
mulher do século XX” foi realizada no Memorial “Arthur Francisco Seixas dos Anjos” do
TRT8ª com parceria de mais dois Tribunais do estado, o Tribunal de Justiça do Pará TJ/PA e
o Tribunal Regional do Trabalho TRE, exposição exibiu as reclamações de mulheres
trabalhadoras paraenses. O evento que ocorreu entre os dias 19 a 23 de maio de 2014. Contou
com a participação dos servidores e estagiários dos referidos Tribunais envolvidos que
ficaram encarregados de receber e dialogar com os visitantes acerca do tema da exposição.
A pesquisa para a exposição começou quando enviamos para o arquivo do TRT8 uma
solicitação para que fossem disponibilizados para nós do Memorial os livros com reclamações
trabalhistas a partir do ano de 1940, visto que foi quando as leis trabalhistas foram
consolidadas de acordo com o decreto-lei n.º 5.452, de 1º de maio de 194317, sendo assim
criamos um instrumento de coleta de dados na forma de uma ficha para anotações dos pontos
mais relevantes pra que a exposição ocorresse. A ficha que produzimos seguia o padrão
exemplificado abaixo, devendo ser preenchido com as informações indicadas em itálico:
17
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm acessado no dia 23/02/2015.
1283
TABELA 1
LIVRO: número do livro que tiramos a informação.
PESQUISADOR: nome da pessoa responsável pela coleta dos dados.
Nº DO PROCESSO: número do processo do qual a reclamação está
vinculada.
Nº DO ARQUIVAMENTO: o número em que o processo está arquivado.
DATA: data que a reclamação foi feita.
FOLHA: folha do livro de reclamação em que a informação foi coletada.
RECLAMANTE: nome que se dá a pessoa que reclama pelo seu direito
podendo ser pessoa física ou jurídica, no caso para essa exposição foi
utilizado somente reclamações de pessoas físicas.
RECLAMADO: nome que se dá a pessoa que sofre a reclamação, podendo
ser pessoa física ou jurídica.
OBJETO: o objeto é a reclamação, o motivo do qual a pessoa reclama, por
exemplo: auxilio a maternidade ou demissão injusta.
1284
leis trabalho CLT (FARINHA. p, 35. 2005). Sendo assim as mulheres começaram a reclamar,
pois, a proteção de trabalho que era dada a elas eram somente por estar relacionada a sua
fragilidade física, contudo podemos ver o quanto as próprias leis que “beneficiavam” as
mulheres eram de cunho machista e preconceituoso.
O segundo período selecionado foi a década de 50. Levando em consideração que em
meados de 1950, várias organizações feministas surgiram então elas lutavam muito pela
igualdade de salário e seria interessante observar como era essa dinâmica fazendo comparação
com a década de 40, provavelmente as mulheres da década de 50 eram mais exigentes em
relação aos seus direitos.
A terceira década trabalhada foi 60, pois ante as pesquisas feitas para a exposição do
Memorial, houveram muitas reclamações, acreditamos que o motivo tenha sido a revolução
sexual que ocorreu em 1960 e as mulheres estavam se sentindo mais independentes, pois, no
final dos anos 60 tivemos no Brasil a chegada das pílulas anticoncepcionais, marcando o
início da “liberação sexual”. Está observação corrobora o que diz Del Prori (2011, p.194): “O
surgimento da pílula tornou a mulher livre para escolher sua vida: adquirir estudos superiores
ou participar do mercado de trabalho, sem ser interrompida por uma gravidez”. Portanto pode-
se dizer que as mulheres começaram a sair de seus lares para o mercado de trabalho e a lutar
com ainda mais força pelos seus direitos. Mais especificamente 1967, quando ocorreu uma
reestruturação política instaurada sequencialmente ao golpe militar de 1964 e uma nova
Constituição foi promulgada, acredito que o grande número de reclamações observadas neste
período foi influencia destes fatos. Daí vê-se a importância de preservar essa memória das
lutas femininas na Região Norte.
Em seguida, depois de delimitar as décadas a trabalhar, foi feita uma conferência do
número de reclamações disponíveis por década, levando em consideração apenas o material
utilizado na exposição. Depois, foram criadas planilhas em formato .xls, onde cada uma
corresponde a uma década. O levantamento partiu dos tipos de trabalho, se era doméstico ou
externo, já que não foi encontrado o trabalho rural dentre as reclamações analisadas, e
1285
também procedi ao levantamento do que era mais reclamado em cada década, conforme o
quadro abaixo:
TABELA 2
DÉCADA DE 40
RECLAMANTE RECLAMADO EXTERNO DOMÉSTICO OBJETO
Nome das Pessoa que sofre Trabalhos em Empregadas Tipo do
Mulheres acusação, empresas, domésticas. documento, no
trabalhadoras que podendo ser indústrias ou caso,
abriam a jurídica ou física. usinas. Reclamações.
reclamação junto
ao TRT 8.
Ademais, tudo que foi inserido na planilha serviu como dados a serem inseridos nas
tabelas. Primeiro foi realizada a conferência todas as reclamações da década de 40, depois
conferidos todos os trabalhos externos e domésticos, em seguida separadas as reclamações por
categoria, e tudo foi contabilizado para que fosse obtido o resultado do que era mais
pertinente, de modo a obter os resultados nas tabelas a baixo, seguidas de suas análises.
TABELA 3
VALORES REFERÊNCIAIS
DÉCADA RECLAMAÇOE EXTERNO DOMÉSTICO RECLAMAÇOES
S S MAIS
PERTINENTES
40 74 61 13 1. Aviso prévio;
2. Dispensa
injusta;
3. Férias.
50 31 28 03 1. Aviso prévio e
diferença
salarial;
2. Férias;
3. suspensão.
60 80 80 - 1. Aviso prévio;
2. Férias;
3. Gratificação
de natal.
1286
Analisando a tabela de nº 01, podemos verificar que a década de 60 foi a que mais
obteve reclamações, no entanto é percebida a ausência do trabalho doméstico, haja vista que
esses valores foram coletados somente do material cedido para a exposição. Assim, sabe-se
que foram muito mais reclamações, a supor pelo material que permaneceu no Arquivo.
É observada uma queda no trabalho doméstico entre as décadas de 40 e 60, todavia as
mulheres reclamavam quase sempre das mesmas coisas no período analisado, estando o aviso
prévio no topo das reclamações ao longo dos 30 anos.
Na década de 50 o aviso prévio empatou com a diferença de salário, uma vez que era
praxe as mulheres receberem um salário bem menor que o salário mínimo vigente a época.
Provavelmente as empresas não seguiam as leis estipuladas pela CLT (1946) que extinguia a
lei que se aplicava em 1940 que permitia que as mulheres recebessem 10% a menos do valor
do salário mínimo estabelecido para os homens, com isso podemos concluir que essas leis
começaram a vigorar tardiamente, já a categoria que fica em segundo lugar na década de 40 é
a dispensa injusta. Acredito que o motivo deva ser por conta do gênero, pois, a legislação
trabalhista estabelecia condições especiais para o trabalho feminino, principalmente a
gestantes, portanto muitas mulheres eram demitidas por estarem gestantes.
Continuando a análise, podemos ver que em segundo lugar ficaram as férias, tanto na
década de 50 quanto em 60, isso nos leva a refletir sob como as mulheres eram discriminadas,
onde nem o direito a férias elas tinham, em que muitas vezes trabalhavam horas a mais, já na
década de 40 era menor o número de mulheres que reclamavam por férias, o que foi
intensificando nas décadas de 50 e 60, no entanto o que fica em terceiro lugar na década de
50 foi a suspensão, que reflete também na questão da maternidade, muitas mulheres ficavam
suspensas de seus trabalhos por apresentarem sintomas de gravidez, ninguém queria as
grávidas em suas empresas, e muitas vezes essa suspensão gerava em demissão injusta. Já na
década de 60 começam a reclamar sobre a gratificação de Natal.
A gratificação de Natal era um salário a mais que as empresas davam aos funcionários
que prestaram um bom serviço durante o ano, e isso acabou tornando-se o décimo terceiro
1287
salário, que começou a ser obrigatório em 1962 quando foi instituída a lei de nº 4.090/196218
que garantia o dobro do salário no final do ano a todos os empregados amparados pela CLT.
Na tabela nº 02 podemos verificar quais eram as empresas que existiam nessas determinadas
décadas e quais foram as que mais receberam reclamações.
TABELA 4
DÉCADA 40 DÉCADA 50 DÉCADA 60
EMPRESA QUANT. EMPRESA QUANT. DE EMPRESA QUANT.
S DE VEZES S VEZES QUE S DE VEZES
QUE FORAM QUE
FORAM CITADAS. FORAM
CITADAS CITADAS.
Renda a priori 07 Clinica São 05 Indústria 15
e cia Vicente. Matias
Conforme a tabela da década de 40, a empresa mais reclamada foi a “Luiz Machado e
CIA”, na década de 50 a campeã de reclamações de acordo com os livros de reclamações
analisados, foi a “Usina Santo Amaro”, as reclamantes eram operárias, ademais na década de
60 a reclamações predominaram na “Indústria Matias”, também do setor secundário. Logo
concluímos que as reclamantes exerciam o trabalho como operárias em indústrias, devido ao
grande avanço das indústrias, muitas dessas as mulheres se submetiam a esses trabalhos para
garantirem sua independência ou para contribuir com a renda familiar, essa oferta de trabalho
nas indústrias se dava por conta da mão de obra das mulheres ser mais barata. Vale lembrar
que à época a mão de obra infantil também era explorada, durante as pesquisas foi possível
observar que existem algumas reclamações de menores, a exemplo da reclamação feita na
18
Lei disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4090.htm acessada no dia 23/02/2014.
1288
década de 40, uma mulher e mais sete pessoas (todas operárias) da empresa Brasil
Extrativista, incluindo menores, foram reclamar por aviso prévio. Isso é apenas um exemplo
do quanto a mão de obra feminina e infantil era explorada.
TABELA 5
TIPOS DE RECLAMAÇÕES
DÉCADA DE 40: QUANTIDADE:
Auxílio enfermidade; 01
Folga; 01
Horas extras; 03
Auxilio maternidade; 03
Desconto indevido; 03
Indenização; 05
Diferença salarial; 13
Pagamento de salário; 16
Férias; 23
Dispensa injusta; 25
Aviso prévio; 43
1289
Suspensão; 03
Repouso remunerado; 03
Homologação de dispensa; 01
Gratificação de natal; 36
Correção monetária; 01
Fundo de garantia FGTS; 09
Falta de assinatura na carteira profissional; 02
Salário família; 02
1290
fundo de garantia o FGTS, que foi instituído em 1967, para proteger os empregados demitidos
sem justa causa, é por isso que na década de 60 não se fala mais em dispensa injusta, e sim em
direito ao FGTS, esse direito era uma forma de acabar com a estabilidade do trabalhador, pois
a estabilidade era quando um trabalhador fazia dez anos na empresa, e se tornava estável não
poderia ser demitido, exceto por justa causa (Agencia Brasil, 2013), o FGTS foi instituído sob
a lei 4090/62 a mesma do décimo terceiro.
Outra categoria é falta da carteira assinada, muitas empresas nessa época não queriam
assinar as carteiras para não pagarem os devidos direitos às mulheres trabalhadoras. Também
temos a vinda do salário família que em 1963, por meio da lei nº 4.26619 que institui o salário
família no Brasil.
Haja vista, que essa exposição que conta a trajetórias das mulheres no mercado de
trabalho, é tão importante que no presente trabalho tornou-se objeto de pesquisa, e se tivesse
sido melhor trabalhada poderia ter tido maior alcance para a sociedade em geral, já que o
memorial é aberto ao público e não se limita apenas a comunidade jurídica.
19
Lei disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4266.htm acessado no dia 23/02/2014.
1291
mulheres são vistas como submissas, um exemplo disso é a grande quantidade de casos de
violência contra a mulher. A mulher tem seus direitos trabalhistas assegurados, mas muitas
vezes é negligenciado. Por isso trabalhar essa documentação é importante, não só para
mostrar essa trajetória de lutas, mas principalmente reconhecer que a luta foi árdua e o quanto
a mulher sofreu e sofre pra conseguir ser vista como um ser humano competente tanto quanto
o homem.
É muito importante para nós mulheres vermos essa conquista, mesmo que ainda haja
preconceitos e desigualdades, tivemos um grande avanço, só pra temos uma ideia durante a
história a mulher sempre foi vista como um ser submisso, pois no século XVII, o homem
judeu fazia as suas preces da manhã, agradecendo por não ter nascido mulher (FARINHA, p.
19, 2005) a oração era a seguinte “Bendito seja Deus nosso Senhor e Senhor de todos os
mundos por não ter me feito mulher” e as mulheres rezavam assim “Bendito seja o Senhor,
que me criou segundo a sua vontade”. (BOSSA, apud. FARINHA, 2005). Além de submissa
a mulher era resignada. O próprio Platão agradecia aos deuses, por ter sido criado livre não
escravo e por ter nascido homem e não mulher (BEAUVOIR, apud. FARINHA, 2005). Dessa
forma, concluímos que as mulheres o quanto essa luta foi importante, e poder ter a acesso a
essa informação é gratificante para nós mulheres, só assim conseguimos ver o quanto a
mulher sofreu para alcançar a posição dos dias atuais, sendo que a cada dia as mulheres vão
conquistando mais espaço e assumindo postos que antes só os homens podiam.
Considerações finais
Considerando-se que as coleções são as bases de sustentação dos museus, e estes
“locais de memória”, que têm como uma de suas principais características a diversidade e a
1292
heterogeneidade do acervo que os compõe, torna-se necessária a garantia de sua integridade,
para que possam cumprir seu papel de fonte de pesquisa, informação, produção e
disseminação de conhecimento (KÖPTCKE, 2005).
Mediante ao que foi dito acima, podemos dizer que um acervo bem organizado e
documentado, facilita muito na hora de organizar uma exposição. Isso é comprovado na
pressente pesquisa, pois é importante que se leve em consideração a importância da
conservação de acervos nestes espaços de salvaguarda da memória, já que ele possui caráter
de fonte de pesquisa.
O estudo aqui desenvolvido foi sedimentado na importância da prática da pesquisa em
museus, trazendo à tona, o quanto uma boa pesquisa, facilita na hora de pôr em prática
qualquer outro tipo de ação, seja de documentação ou conservação do acervo, de exposição e
de público. Vimos também de quantas formas poderia ter sido trabalhada essa documentação
de acervo expositivo, pois a exposição poderia contribuir mais e melhor para a disseminação
de conhecimento já que a função de uma exposição é comunicar, através da exibição tornando
as informações públicas.
O conteúdo da exposição é de grande relevância para a sociedade, uma vez que a
exposição estudada visava à preservação da memória de lutas pelas quais a mulher passou,
sendo que a exposição é um ato de seleção que busca salvaguardar com fins de estudo e
transmissão de conhecimento e dessa forma, difundir as informações de relevância para
sociedade, garantindo uma boa fonte de pesquisas e disseminação de conhecimento, através
da comunicação.
Dessa forma podemos concluir que ter uma organização e um mecanismo que facilite
essas buscas é fundamental para o trabalho de pesquisa. Não há como desenvolver nenhum
trabalho nos museus se a documentação do acervo e sua pesquisa não estiverem atualizadas e
consolidadas. Deste modo podemos buscar auxilio da ciência da informação também, com a
informatização, no caso a conversão digital da documentação dos acervos museológicos, seria
uma importante ferramenta para melhor gerenciamento das coleções.
1293
A preocupação com a documentação museológica é um grande aliado para que se faça
uma boa exposição, pois, a documentação organizada facilita o acesso aos registros,
possibilita intercâmbios entre culturas, além da própria expansão do debate da apresente
pesquisa sobre os percursos de uma construção da história do trabalho da mulher no norte do
Brasil.
Sendo assim, podemos dizer que fazer um bom trabalho de pesquisa nos museus
necessita de uma equipe multidisciplinar, pois uma exposição bem trabalhada é resultado de
uma pesquisa bem aprofundada e alcance um bom grau de aprofundamento é importante que
a documentação esteja bem organizada, porém isso quase nunca ocorre. Para que a exposição
tenha sucesso, é necessário ter sensibilidade e um olhar museológico.
Levando em consideração que através das exposições é possível ensinar e produzir
conhecimento, chego à conclusão de que a exposição é o meio pelo qual o museu alcança esse
objetivo, e o acervo é a fonte de conhecimento, porque o conteúdo da exposição é produzido
tendo como ponto de partida o acervo, que mediante a pesquisa, que precisa ser consciente e
responsável, alcançamos os resultados junto ao público. Deste modo, posso dizer que toda a
pesquisa desenvolvida no e pelo museu reflete no caráter da exposição.
Como podemos ver a presente pesquisa parte da análise dos Livros de Reclamação os
quais oferecem uma visão parcial de três décadas. Este material embora tenha grande
potencial informativo, na exposição analisada, observamos que não foi desenvolvida pesquisa
do conteúdo, implicando assim em uma exposição superficial, que apesar de possuir um
riquíssimo potencial, não alcançou o objetivo de comunicar ao público de forma eficiente, a
qual seria a promoção da reflexão sobre o itinerário percorrido pelas mulheres trabalhadoras
na luta por seus direitos, pois a função das exposições e gerar indagações e conhecimentos. As
exposições museológicas visam o potencial informativo e comunicacional, se elas não
atendem a esse requisito, provavelmente se trata de uma exposição superficial.
Sendo assim, é de extrema necessidade que a pesquisa, bem como o planejamento das
exposições, seja realizada com antecedência, pois uma exposição por mais simples que seja,
necessita de tempo e de uma pesquisa bem detalhada tanto para subsidiar os textos
1294
expositivos quanto para todo o material de divulgação e difusão. Isso não quer dizer que uma
exposição precise ser rica ou luxuosa, pois como diz Thereza Scheiner (2006), “isso é mito”,
uma exposição bem elaborada não precisa de tanta riqueza e sim de qualidade, que é
proporcionada pela pesquisa bem aprofundada. Além de ter auxílio de uma equipe de
profissionais com um conjunto de saberes para poder transformar um conteúdo em exposição.
No entanto a exposição é um conjunto de conteúdos com objetivo de comunicar, informar e
produzir conhecimento, logo a pesquisa é a principal responsável por essa organização de
conteúdo, para que a comunicação ocorra da melhor forma possível. Entretanto, a exposição
tratada no presente trabalho, pode ser aprofundada em trabalhos futuros, haja vista o material
que se tem, a disposição; o tema, que trata da memória das mulheres trabalhadoras, e compõe
a narrativa da sua trajetória de lutas e direitos, e a relevância do assunto, que traz a discussão
sobre questões trabalhistas vinculadas ao gênero e
minorias sociais.
Referências Bibliográficas
CHAGAS, Mário de Souza. Pesquisa Museológica. In: MAST Colloquia, 2005, Rio de
Janeiro. v. 7. p. 51-64.
DEL PRIORE, Mary. Histórias Íntimas/ Mary del Priore: sexualidade e erotismo na história
do Brasil/ Mary del Priore – São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2011.
1295
FARINHA, Emília de Fátima da Silva. A Mulher e a legislação trabalhista/ Emília de
Fátima da Silva Farinha – Belém: UNAMA, 2005.
KÖPTCKE, L. S.. Coleções que foram museus. Museus sem coleções, afinal que relações
possíveis?. In: MAST Colloquia, 2005, Rio de Janeiro. v. 7. p. 65-79.
1296
QUANDO A MEMÓRIA LGBT SAI DA RESERVA TÉCNICA: MAPEAMENTO
PRELIMINAR DOS MUSEUS, PATRIMÔNIOS E INICIATIVAS
COMUNITÁRIAS EM MEMÓRIA E MUSEOLOGIA SOCIAL
Tony Boita*
Camila Moraes Wichers*
Abstract: The present work aims to investigate museums, spaces of museological vocation, patrimony
and initiatives in memory that promote preservation, resignification and promotion of memories of
transvestites, transgenders, transsexuals, lesbians, bisexuals and gays. This research was developed in
two stages. In the first one, museums, heritage sites and reference memory spaces were mapped out,
with emphasis on those presenting elements of articulation with the social movements of their country,
an LGBT pro-memory mission or the promotion of at least two exhibitions in the last ten years.
Following these aspects, the project has so far identified 80 museums and / or spaces of museological
vocation and / or initiatives in memory on all continents. Already in the second stage of the project,
the mapped museums are contacted through correspondence, in an attempt to collect quantitative and
qualitative data, as well as generate a collection. The aim is to verify the mapped information and to
strengthen the communication with interested professionals in the memory of the LGBT community.
1297
Introdução
1298
pequeno acervo, verificar as informações mapeadas e estreitar a comunicação com
profissionais de museus interessados na memória da comunidade LGBT.
20
Termo utilizado na Bolívia e impulsionado pelo Colectivo TLGB Bolivia.
1299
Memória, Poder, Identidade, Cultura, Museus Comunitários e Sexualidades não
normativas: Uma Aproximação
As memórias oficiais são permeadas pelo poder (Foucault, 1977) (Chagas, 2006). Por
exemplo, podemos citar as casas de memórias, ou museus, espaços criados na modernidade
pelo ocidente para preservar a memória materializada, bem como, promover discursos e
narrativas oficiais. Neste exemplo é comum vermos as representações de um discurso que
visa a manutenção de um passado com sua tradição e conservadorismo, ou seja, o
protagonismo hegemônico do homem branco, ocidental e conquistador, uma representação
fiel na maioria dos museus e dos patrimônios culturais da humanidade, características do
poder masculino (RICH, 2010), afinal, manipular a memória é um “(…) dos métodos pelos
quais o poder masculino é manifestado e mantido.” (RICH, 2010, p.25). Curioso notar, que as
sexualidades e identidades humanas estão distante deste padrão museal. Como resposta, esses
espaços estimuladores da heterossexualidade compulsória (RICH, 2010) promovem uma
1300
única memória, negando todas as outras, ou então, estimulando o “(…) fechamento de
arquivos e da destruição de documentos relacionados com a existência lésbica” (RICH, 2010,
p.24), bem como, estimular propositalmente, o “apagamento da existência lésbica (...) na arte,
na literatura (...)”(RICH, 2010, p.26). Ressalta-se que estas ausências estimularam e
estimulam a perseguição e discriminação destes e outros grupos, em especial a memória das
pessoas que tinham relações entre o mesmo gênero. Por fim, a ausência da memória resulta a
longo e curto prazo em um profundo silenciamento social que perpassa pela memória e o
patrimônio cultural.
Segundo Mário Chagas o poder está em toda a parte, ele não é uma instituição, mas
está presente na sociedade (CHAGAS, 2009, p.63). Como exemplo desta tensa relação, temos
a formação dos acervos museológicos que tenta expressar à universalidade a partir da
memória de uma elite, tornando os museus espaços de uma memória forjada e que não
representa uma grande parcela da população, em especial a comunidade LGBT, de mulheres
ou de favela. Nota-se que estes espaços de memória podem ainda reverter essa situação
adotando um caminho capaz de “ampliar o acesso aos bens culturais acumulados, mas,
sobretudo, em socializar a própria produção de bens, serviços e informações culturais”
(CHAGAS, 2009, p.65). Portanto, a memória e o poder estão em constante tensão, cabem os
espaços de vocação museológica selecionarem a forma que irão se relacionar com o poder,
podendo ir além do óbvio e “estimular novas produções e abrir-se para a convivência com as
diversidades culturais” (CHAGAS, 2009, p.65) e sexuais.
1301
memórias, que são formadas e pré-estabelecidas através de normas e padrões (BUTLER,
2003) (BENTO, 2006).
Guarnieri tenta ainda em seus escritos, buscar outras definições, tais como o de
identidade cultural, memória e bens culturais, que serão respectivamente apresentados. Ao
definir a identidade cultural, ela afirma que ela não é exclusiva da memória coletiva, mas sim
de uma consciência coletiva dinâmica e que será exercida ao longo da vida do indivíduo,
afinal e segundo ela, “se o homem e a cultura são dinâmicos, móveis, cambiantes, por que
supor uma identidade estática, inerte, imutável?” (IBID, 177). No entanto, mesmo com uma
identidade cultural dinâmica, produzimos ou alteramos os bens culturais atribuindo novos
significados, no reconhecimento e alteração das paisagens naturais, rurais e urbanas, na
criação material dos bens móveis e imóveis, tudo isso a partir dos elementos afetivos, “A meu
ver, esses elementos – afetivos – são os maiores caracterizadores das culturas” (IBID, 178),
21
Waldisa Russio Camargo Guarnieri, em seu trabalho deteve-se em buscar teoricamente as bases científicas
para a Museologia, bem como, sua definição, objeto de estudo e metodologia. A partir da década de oitenta,
produz uma série de artigos, que em 2010 foram organizados por Maria Cristina de Oliveira Bruno e publicado
no livro “Waldisa Rússio Camargo Guarnieri: Textos e Contextos de uma Trajetória Profissional” em dois
volumes (2010).
1302
afinal, somos capazes de “criar significados e símbolos, de estabelecer valores, e que se
comunica por meio de diversas linguagens (oral, escrita, icônica, gestual), não poderemos
jamais esquecer a extensa e profunda gama de elementos afetivos (IBID, 178). Segundo ela,
1303
creado por la misma comunidad: es um museu “de” la comunidad, no elaborado
externamente “para” la comunidad.”, além de ser “una herramienta para que la comunidad
afirme la posesion física y simbólica de su patrimônio”, bem como, um espaço de
autoconhecimento, gerando “múltiples proyectos para mejorar la calidad de vida, ofreciendo
capacitación para engrentar diversas necesidades”, além de ser “um puente para el
intercambio cultural”. Desta forma, fica evidente que as memórias e bens culturais
representantes das sexualidades acompanharam estes novos formatos, uma vez, que os
espaços oficiais, produz um discurso conservador, hegemônico, autoritário e heteronormativo.
Nesta perspectiva, surgem novos anseios, angustias e inovações nos museus que
passam a perceber a heteronormatividade (RICH, 2010) como um problema tornando o
gênero e as sexualidades desnecessárias na prática museal. Segundo PINTO (2014, p.44),
“(…) há poucas mostras em museus que tratam especificamente de sexualidade humana, e
que dêem muita atenção aos temas ligados aos indivíduos ou grupos LGBT (…)”. Por outro
lado, alguns museus veem criando “políticas estas variaciones con respecto a la norma para
evitar sesgos androcéntricos y heterocentrados, y convertirse en un museo más inclusivo y
plural. (REVISTA DEL COMITÉ NACIONAL ESPAÑOL, 2013, p.5). Contudo, estes
espaços, devam rever sua cadeia operatória (Documentação; Conservação; Ação Educativa;
Expografia), afastando-se da heteronormatividade e aproximando-se de novas metodologias,
além da apropriação dos debates de gênero (SCOTT, 1995), (MOORE, 1991), (HARAWAY,
2004) e sexualidades (RUBIN, 1989) E (WEEKS, 2007) . No entanto, será possível encontrar
novas formas de preservação para as memórias marginalizadas e subalternizadas (SPIVAK,
2010). Desta forma, verifica-se que a invisibilização da memória, por vezes é proposital,
tornando-se necessário ocupar os espaços oficiais da memória que possuam uma narrativa
heteronormativa, além de, estimular a criação e/ou consolidação de novos equipamentos
culturais, capazes de possibilitar a ressignificação e positivação da memória de gays, lésbicas,
bissexuais, travestis e transexuais e de outras sexualidades.
1304
Por fim, chama a atenção o distanciamento dos museus ao tratar das memórias de
sexualidades não normativas, o que contribui para a promoção de normas culturais
hegemônicas e resulta nas fobias a diversidade sexual. Mesmo com os indícios, representados
nos acervos e coleções destes espaços, é raro ver ações que evidenciam as memórias da
comunidade LGBT. Ao que parece, os museus, patrimônios e iniciativas comunitárias em
memória e Museologia social, priorizam a heteronormatividade em detrimento de atos que
preservem e comuniquem o gênero e as sexualidades nos espaços de memória.
1305
Canadá, é criado em 1973 o The Canadian Lesbian and Gay Archives (CLGA), atualmente
um dos maiores arquivos que salvaguardam a memória LGBT, dotado de uma biblioteca,
arquivo e a promoção de diversas exposições museológicas. Em Melbourne, na Austrália, foi
criado em 1978 o Australian Lesbian and Gay Arquives durante a IV Conferência Nacional de
Homossexuais ( Fourth National Homosexual Conference), constituindo a primeira
instituição de memória comunitária na Austrália preocupada em preservar a memória de gays
e lésbicas e tendo em seu acervo objetos, documentos e fotografias disponível ao público para
consulta ou em exposições.
O que se percebe é que a década de 1970 foi fundamental para a organização dos
movimentos sociais e conseqüentemente o registro de suas memórias através da criação de
espaços dedicados a memória de grupos subalternizados. No entanto, ao final desta década
surgem diversas perseguições a homossexuais que vinham deste a década de quarenta,
segundo Rubin, (1986, p.170),
Por volta de 1977-78, houve uma repressão, para usar o termo da moda, em
Michigan, contra o sexo público de homossexuais masculinos. De repente,
os homens passaram a ser presos de forma muito agressiva por fazer sexo
em parques ou em salões de chá.
De maior impacto para os esforços pró-memória LGBT ocorre durante a década de 80,
sobretudo mediante a chegada de um novo elemento: o HIV, “una calamidad para la
comunidad gay” (RUBIN, 1989, p.169). Nos Estados Unidos, sob a presidência de Reagan, a
AIDS espalhou rapidamente. O vírus foi descoberto do início daquela década, mas o
presidente americano só se manifestou publicamente em 1987. Neste contexto foi criado em
1984, na cidade de Los Angeles, a instituição Tom of Finland Foundation, responsável por
preservar o acervo produzido pelo artista Tom Finland, além de abrigar obras homoeróticas de
outros artistas gay. Essa fundação disponibiliza seu acervo para diversas exposições no
1306
mundo e, sem dúvida, é um dos acervos mais difundidos no mundo. Em São Francisco, em
1985, o GLBT History Museum é criado com o objetivo de ser um museu histórico que
investiga, preserva e promove a memória GLBT. Em seu acervo possui documentos, áudio,
filmes e fotografias que retratam a história da AIDS, do movimento GLBT, bem como, o
ativista Harvey Milk que foi assassinado em 1978. Já no final da década, é criado em 1987 na
cidade de Nova York, o Leslie-Lohman Museum of Gay and Lesbian Art – guarda um acervo
com mais de 30 mil peças e desenvolve ações de preservação, bem como concentra pesquisas,
publicações e exposições museológicas. Possui ainda, uma importante base de dados
disponível na internet. Por fim, a década de 80, apesar da expansão de uma pandemia, viu o
nascimento de museus e uma fundação que preserva e expõe a arte homoerótica nos Estados
Unidos.
1307
nos campos de concentração do regime nazista. Inicialmente dedicado aos homossexuais e
lésbicas, posteriormente passou a incluir as pessoas travestis, transexuais, bissexuais.
Desta forma, percebemos que museus voltados para a comunidade LGBT são criados
nos anos de 60 a 90. No contexto pandêmico e de profusão do debate sobre os direitos civis
da população LGBT, nasceram a partir de iniciativa dos movimentos sociais, museus,
monumentos e espaços de memória que preservam e promovam a memória de sexualidades
não normativas em sete países. Ressalta-se, que os museus criados neste período, ainda ativos,
seguiram os passos políticos e burocráticos para o seu registro.
1308
Museus, Espaços de Memória LGBT e Patrimônios no Século XXI
Em 2003, na capital peruana é criado O Museu Travesti. Foi idealizado por Giusepe
Campuzano. Seu acervo é composto por fotografias, jornais e objetos. Um dos mais
importantes e pioneiros ao tratar da transexualidade e do travestismo no Peru, “possuía no
corpo do próprio diretor, pilares de seu acervo e na história do Peru os fundamentos da
vertente trans nos museus” (Baptista; Boita, 2014, p. 176). Após sua morte, seu acervo
circulou em diversas mostras, inclusive na Bienal de São Paulo. Este é o primeiro museu que
aborda memórias de sexualidades não normativas do século XXI e tem como fundador uma
pessoa travesti que faleceu em 2013, mas que contribuiu muito com o campo museológico.
1309
Em Londres, na Inglaterra o British Museum passou a desenvolver ações de
visibilidade sobre a memória LGBT a partir de 2006 com a exposição e catálogos. Neste ano
foi exposto por menos de quarenta dias a exposição The Warren Cup, que acompanhou um
catálogo do mesmo nome de autoria de Dyfri Willian, nela é apresentado um copo de prata
romana com cenas homoeróticas, inclusive um par de amantes homens. Essa peça ficou por
anos escondido em uma reserva técnica. Em 2013, é publicado A Little Gay History – Desire
and Diversity across the Word, que retrata peças da história e memória da comunidade LGBT
presentes no acervo da instituição. Estas são importantes contribuições de museus
convencionais que impulsionam e inspiram outros grandes museus.
Em 2007 na cidade de Nova York, nos Estados Unidos, inicia-se a criação do National
LGBT Museum que é mantido pela fundação Valvet. Tem como missão promover a história,
cultura da comunidade LGBT através de exposições, pesquisas, publicações e outros
programas voltados para diversos públicos. É vinculada a Associação Americana de Museus
que colaborou na consolidação das ações da instituição, tais como, a política de acervo e
descarte, missão e visão, bem como, a preservação e acondicionamento dos acervos que são
doados. Até o momento ainda não possui uma sede fixa, mas conforme a Fundação Valvet o
Museu Nacional LGBT de Nova York, será inaugurado em junho de 2019, em comemoração
ao 50º ano do aniversário de Stonewal.
22
Memorial dos Judeus da Europa Assassinados pelos Nazistas.
1310
Em Taiwan na China no ano de 2009, é inaugurado a Taiwan Tongzhi Hotline
Association e a Galería Gingins em Taipei, juntos, realizaram a exposição La mirada sobre
los otros sobra la historia de lésbicas e gays. Este é um dos poucos registros que encontramos
neste país. No entanto, a China foi um dos principais países a possuir museus voltados à
sexualidade humana, porém, hoje abandonados.
Por fim, os museus criados neste período, surgem na esperança do direito e da garantia
dos direitos civis. Enquanto, no fim do século passado, vimos uma pandemia matar os
homens homossexuais que favoreceu a criação de museus, utilizados estrategicamente a
visibilização, prevenção e promoção da saúde. A partir dos anos 2000, vemos surgir
iniciativas museológicas criadas para defender e garantir os direitos da comunidade LGBT
denunciando através de exposições a homolesbotransfobia. Ressalta-se que neste momento,
1311
museus convencionais passam a auxiliar, debater e ressignificar seu acervo, incluindo as
comunidades até então, invisibilizadas.
23
Em 26 de junho de 2017, a Câmara Legislativa do Distrito Federal, revogou a Lei 2615/2000 que determinava
sanções às práticas discriminatórias em razão da orientação sexual das pessoas.
1312
Nesta realidade, a partir de 2008, na cidade de Goiânia, o Museu Antropológico da
UFG passa a desenvolver ações que visibilizam a memória e a história de grupos excluídos,
inclusive a comunidade LGBT. A partir de 2013, o MA impulsionou ações, exposições,
eventos, palestras e mostras de cinema com a temática de gênero, sexualidade e identidade de
gênero. Possui sob sua guarda o a coleção da ONG Transas do Corpo e entre 2016 e 2017
apoiou as exposições Mulheres no Sertão Goiano, que narrava os ofícios e violências sofridas
pelas mulheres que viviam e vivem em Goiás, e a Transas no Ser-tão que homenageia os
grupos Transas do Corpo e o Grupo de Pesquisa em Gênero e Sexualidade Ser-Tão. Os
trabalhos foram concebidos e criados por estudantes do Curso de Museologia da UFG da
disciplina de Comunicação Patrimonial IV – Concepção e Montagem de Exposição, que
ministrei enquanto professor substituto da instituição.
1313
e objetivos alcançados, mas o que tange a articulações com o Instituto Brasileiro de Museus,
pouco se avançou, até o momento, nenhuma política pública ou ação explicita do órgão foi
desenvolvida. No entanto, após cinco anos de formação, a Rede LGBT, promoveu, estimulou
e apoiou muitas ações que transformaram a realidade museológica brasileira.
Na capital paulista o Museu da Pessoa foi um museu virtual criado em 1991. A partir
de 2014 passou a promover ações e projetos para a formação de acervos digitais sobre as
diversas sexualidades. Através das iniciativas, “Conte a Sua História” e “TransHistórias”
formaram uma coleção sobre a comunidade transexual, homossexual e lésbica no Brasil. Os
24
Decreto-Lei disponível em: http://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/decreto/2012/decreto-58075-
25.05.2012.html
1314
depoimentos estão disponíveis em sua plataforma virtual, podendo ser consultado em
qualquer lugar do mundo.
Em 2017, no Brasil, algumas ações merecem destaque: na cidade de Brasília foi criado
o Instituto Cultura, Arte e Memória LGBT. Ainda sem sede, objetiva ser um espaço para a
preservação e promoção da memória LGBT. Em Petrópolis, durante a Semana de Museus de
2017, o Museu de Artesanato do Estado do Rio de Janeiro, promoveu a exposição Isabelita
dos Patins – História de Transformação, Arte e Beleza.
Por fim, a realidade dos museus, patrimônios e espaços de memória voltados para a
comunidade LGBT no Brasil é promissora. Desde a década de 90, nove instituições foram
criadas, objetivando-se preservar e promover a memória, história e cultura da Comunidade
LGBT. No entanto, diferente de outras partes do mundo, poucas ações de Estado foram
empreendidas neste contexto, cabendo aos movimentos sociais a responsabilidade pela
maioria dos feitos.
25
Ana Muza Cipriano, Tainara Santos, João Victor Teodoro, Jonathan Martins, Jaqueline Alves, Sidney Silva e
Yonne Karr
1315
Considerações finais
1316
Ressalta-se que ações voltadas para a positivação da memória podem contribuir no
enfrentamento de demandas sociais apesar das invisibilizações forjadas pelo poder. De fato,
as primeiras instituições museológicas que promovem a memória de sexualidades não
normativas surgem com o advento da AIDS, em uma tentativa de se garantir o futuro de uma
comunidade que estava perdendo para uma epidemia. No entanto, estes casos são isolados e
presentes em países de primeiro mundo, privilegiados economicamente.
1317
Referências Bibliográficas
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abordagem afirmativa aplicada à identidade de gênero. Cadernos do Ceom. Chapecó, v. 27, n.
41, p.175-192, dez. 2014. Disponível em:
<http://bell.unochapeco.edu.br/revistas/index.php/rcc/article/view/2602>. Acesso em: 12 abr.
2016.
BENTO, Berenice. A reinvenção corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual.
Rio de Janeiro: Garamond, 2006.
1318
FERREIRA, Jerusa Pires. Cultura é Memória. Revista Usp, São Paulo, v. 24, n. 1, p.114-120,
dez. 1994. Disponível em: < https://goo.gl/tfQuyRAcesso em: 13 jun. 2017.
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade 1 – a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal,
1977.
PINTO, Renato. Museus e Diversidade Sexual: Reflexões sobre mostras LGBT e Queer.
Arqueologia Pública, Campinas, v. 1, n. 4, p.44-55, 2004.
RUBIN, Gayle. “El Tráfico de Mujeres: notas sobre la “economia política” del sexo”. In:
Revista Nueva Antropología(30, VIII). México: 1986.
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In: Vance, Carole (compiladora). Placer y peligro. Explorando la sexualidade feminina.
Madrid: Talasa Ediciones, 1989.
1319
SCOTT, Joan. “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”. Educação & Realidade, v.
20, n. 2. Porto Alegre: UFRGS, 1995.
SPIVAK, Gaiatry. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010.
1320
TESSITURAS SOBRE A INDUMENTÁRIA DE CANDOMBLÉ A PARTIR DA
COLEÇÃO DONA NÓLA
Abstract: Weaving about candomblé clothing in the collection of the Costume and Textile Museum
(Salvador, Ba), starting from the collection that belonged to Georgeta Pereira de Araújo (1911-2004),
known as Dona Nóla, Yá Dagã do Terreiro Of the White House. It has the possibility of articulating
curatorial discourses reconciled with the knowledge and practices related to the collection, as well as
the social and aesthetic experience of this costume in addition to the museological institution. Part of
the central hypothesis that museums manipulate the typology of their collections and hierarchize them
from a system of value attribution and according to their discourses shaped by institutional interest. In
order to make collections invisible or limit their possibilities of interpretation. The theoretical
contribution is drawn from the critical integrating method in Gilda de Mello and Sousa, which consists
of deepening the research based on an empirical object to understand its origin, use, circulation and
resonance in institutions and society.
1321
Esta pesquisa de doutoramento desenvolve-se na área de concentração da Teoria,
Crítica e História da Arte, do Programa de Pós Graduação em Artes do Instituto de Artes da
Universidade de Brasília – IDA/UNB e tem como objetivo geral analisar a indumentária
tradicional de candomblé presente na coleção do Museu do Traje e do Textil com foco nas
possibilidades de articulação de discursos curatoriais às narrativas, saberes e fazeres que
compõem a experiência social, estética e simbólica destes trajes. No percurso, interessa-nos
compreender o processo de musealização da coleção no âmbito do Museu do Traje e do Têxtil
de modo a problematizar a prática colecionista e a relação do sujeito colecionador conexo às
questões de gênero, raça e representação social. Os Estudos iconológicos partirão do universo
simbólico do orixá a que se refere a coleção: Oyá Igbalê, experiência social e estética do traje
com foco no sujeito e na alteridade.
Em O Espírito das Roupas, Mello e Sousa (1987: 29) define a moda como “expressão
artística de uma linguagem social ou psicológica” pois exprime idéias e sentimentos ao tempo
1322
que atende à estrutura social, na medida em que “reconcilia o conflito entre o impulso
individualizador de cada um de nós e o socializador”. De acordo com Pontes, Mello e Sousa
perpassa pela “ligação da moda com a divisão de classes”, mas “detém-se na ligação da moda
com a divisão entre os sexos, revira pelo avesso a cultura feminina”. (PONTE, 2004: 39-40)
A pesquisa iconográfica terá atenção neste trabalho, pois é a partir dela que
estabeleceremos padrões comparativos sobre o uso, apropriação, trânsito e agregações da
indumentária desde o final do século XIX. Este levantamento possibilitará a problematização
do objeto de arte transformado em registro documental (ou vice-versa) e fonte de pesquisa
como as aquarelas de artista Carybé, sobre a Iconografia dos deuses africanos do candomblé
da Bahia; e, as fotografias artistas de caráter etnográfico de Pierre Fatumbi Verger.
Georgeta Pereira de Araújo (1911 – 2004), mais conhecida como Dona Nóla, nasceu
em família tradicional do recôncavo baiano. Foi considerada a primeira filha de santo branca
de família abastada quando iniciada na religião dos orixás no tradicional Ylê Axé Yá Nassô
1323
Oká, Terreiro da Casa Branca26, Salvador, Bahia, aos 36 anos de idade. Dedicada ao
sacerdócio, foi intitulada Yá Dagã, cargo que corresponde à terceira mulher da hierarquia
sacerdotal do culto aos orixás da Casa. Além de “filha de santo”27, Nóla foi empresária bem-
sucedida, fundou e administrou um ateliê de costura a fim de garantir o sustento de seus
quatro filhos após o rompimento de uma união promissora arranjada pela família, bem ao
modo da época. Se destacou como escritora publicando livros, poesias crônicas e artigos em
revistas e jornais da época. Assumiu o candomblé como sua religião num momento em que
este sofreu fortes perseguições políticas e sociais por ser considerado fetichismo e culto de
negros primitivos.
Essa mulher em questão, não apenas utilizou a coleção de trajes de candomblé que ora
apresentamos, ela ofereceu forma, movimento e sentidos aos trajes ao vesti-los e fazê-los
atuar em cena/rito. A Coleção Dona Nóla foi doada em 2010 ao Museu do Traje e do Têxtil
que está integrado à Fundação Instituto Feminino da Bahia - FIFB28, pelo primeiro neto de
Nóla, Francisco Soares de Senna. É formada por: 7 conjuntos compostos por saia, bandê,
pano da costa, camizú e ojá (trajes do orixá Oyá Igbalê); 9 anáguas, 3 saias, 5 Batas, 8
Camizús, 11 Ojás, 5 panos da costa, 1 Bandê, 8 panos de obrigação ou panos de axé, (partes
avulsas do traje do orixá); 1 combinação e 2 toucas (partes da roupa de ração); 15 bonecas de
pano (para assentamento); 1 cinta com bonecos de pano (peça ritualística). Com isso, as 89
peças que formam a coleção podem se reagrupar internamente evidenciando três sub
26
“O Ilê Axé Iyá Nassô Oká, Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho, é tradicionalmente considerado, nos
meios populares, o mais antigo templo afro-brasileiro ainda em funcionamento. Os etnógrafos que se ocuparam
dele reconhecem que é impossível precisar a data de sua fundação (na Barroquinha), mas os cálculos baseados
na etnohistória e nos documentos disponíveis fazem-na remontar, no mínimo, à década de 1830 (COSTA LIMA,
1977; VERGER, 1992. BASTIDE, 1986), ou mesmo a inícios do século XIX, senão um pouco antes
(SILVEIRA, 2006)”. (SERRA: 2008) In: https://ordepserra.files.wordpress.com/2008/09/laudo-casa-branca.pdf .
27
Designação dada às iniciadas no culto ao orixá. SANTOS, Maria Stella de Azevedo. Meu Tempo é Agora. 1ª
Edição: Ed. Oduduwa: São Paulo, 1993.
28
A Fundação Instituto Feminino da Bahia (FIFB) é uma instituição privada declarada de utilidade pública,
deixada em testamento sob a salva guarda da Arquidiocese de Salvador, Ba. Inaugurada em 1923 para atender à
Escola Comercial Feminina para profissionalização de mulheres, transformou-se em Museu Henriqueta
Catharino em homenagem à sua fundadora após sua morte em 1969. O acervo FIFB é dividido em 3 coleções
distintas: Museu Henriqueta Catharino, de artes decorativas; Museu do Traje e do Têxtil, de indumentária
feminina; e, Museu de arte popular, coleção particular de Henriqueta. (QUEIROZ: 2016).
1324
coleções: indumentária do orixá, Oyá Igbalê; trajes (de ração) da filha de santo, Nóla; e,
objetos ritualísticos da sacerdotisa, Yá Dagã.
29
Carybé ou Hector Julio Páride Bernabó (Lanús, Argentina 1911 - Salvador, Bahia, 1997) é pintor, gravador,
desenhista, ilustrador, mosaicista, ceramista, entalhador e muralista. Em 1943 realiza sua primeira individual na
Galeria Nordiska Kompainiet, em Buenos Aires. Em 1944, vai a Salvador, e se interessa pela religiosidade e
cultura locais mudando-se pra esta cidade em 1950. Na Bahia, participa ativamente do movimento de renovação
das artes plásticas, ao lado de Mario Cravo Júnior (1923), Genaro (1926 – 1971) e Jenner Augusto (1924 -
2003). Em 1957, naturaliza-se brasileiro. Em 1981 publica Iconografia dos Deuses Africanos no Candomblé da
Bahia, com suas aquarelas produzidas a partir de sua vivencia e observação nos terreiros de candomblé de nação
Ketu. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa1199/carybe
1325
e documentais da exposição como, por exemplo, o convite que anunciava as comemorações
do “centenário da escritora cachoeirana Nóla Araújo”30 com uma Missa em Ação de Graças
antes da abertura da exposição.
Desde suas primeiras manifestações, no século XIX31, até o final da década de 1930 a
prática do candomblé foi violentamente combatida pelo Estado que promoveu invasões a
terreiros, invariavelmente seguidas da apreensão e destruição de seus objetos sagrados:
instrumentos musicais, ferramentas de orixás, assentamentos, cadeiras de autoridades do
culto, contas e vestimentas. Parte destes objetos, porém, foi levada a instituições de memória
para servir como evidência de crime (charlatanismo ou feitiçaria), de patologia mental ou do
estado cultural “primitivo” do negro no Brasil. Nesta abordagem, importa ressaltar que Nóla
fez suas confirmações iniciáticas no candomblé da Casa Branca em 1947, quando a prática do
Candomblé já não era oficialmente criminalizada. Entretanto, permaneceria o combate velado
na estrutura da sociedade nas décadas seguintes. Porque então uma mulher branca, de família
cristã e abastada se coligaria a uma religião marcadamente discriminada?
30
Convite de abertura da exposição Mulher, fé e poesia. Disponível em:
http://vapordecachoeira.blogspot.com.br/2011/01/o-centenario-da-escritora-cachoeirana.html
31
PRANDI, Reginaldo. O candomblé e o tempo: concepções de tempo, saber e autoridade da África para as
religiões afro-brasileiras. Revista Brasileira de Ciências Sociais, Vol. 16, nº 47, outubro/2001.
32
O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) é um órgão integrado ao Ministério da
Cultura que trata preservação dos patrimônios de natureza material e imaterial (incluindo o natural) brasileiro.
1326
Livro Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico”. O tombamento foi decidido em 31 de maio
de 1984 e homologado somente em 27 de junho de 1986 que identificou o “bem patrimonial”
em questão como “sítio de valor histórico e etnográfico do Ilê Axé Iyá Nassô Oká, Terreiro da
Casa Branca do Engenho Velho”, de acordo com Ordep Serra (2008: 1-2).
33
Referimos em especial: ao Museu Ohum Lai Lai, do Ilê Axé Opô Afonjá; ao Memorial Mãe Menininha, do
Terreiro do Gantois; e, do Memorial Lajoumim do Terreiro Pilão de Prata.
34
Gueledés é matricialmente uma forma de organização social feminina secreta dos povos Yorubás. Há indícios
de que esta sociedade tenha funcionado na Casa Branca até aproximadamente 1940, marco registrado pelo
falecimento de Tia Massi, considerada a última Yalorixá Gueledé da Casa Branca. Dispomos de poucas
pesquisas sistemáticas sobre as Gueledé da Casa Branca, de modo que esses rumores podem ser relevantes à
nossa pesquisa. (SILVEIRA, 2006).
1327
formal e formação profissional e espiritual, na perspectiva de emancipação feminina; pela
especificidade do olhar feminino sobre a sociedade que elegeu os itens a serem preservados.
Fica evidente a necessidade de traçar um paralelo entre mulher e mulher negra.
Numa definição mais genérica, o candomblé que aqui tratamos pode der entendido
como “a religião dos orixás formada na Bahia, no século XIX, a partir de tradições de povos
Iorubás, ou nagôs, com influências de costumes trazidos por grupos Fons, aqui denominados
Jejes, e residualmente por grupos africanos minoritários”, se tomarmos de empréstimo a
demarcação de Reginaldo Prandi (2001: 44). Em reconhecimento às particularidades de cada
terreiro, afunilaremos nossos estudos ao candomblé da Casa Branca35, pois, ainda que este
ocupe a posição de matriz do candomblé da Bahia (e do Brasil), nenhuma prática se reproduz
por igual. Os fundamentos religiosos de cada casa de candomblé, em especial desta, são
35
De acordo com o Laudo Antropológico da Casa Branca emitido por Serra, a comunidade de culto – o Egbé Iyá
Nassô – segue o rito nagô e se auto-identifica como um “candomblé Ketu”, ou “de nação Ketu”. “No contexto, o
designativo ‘nação Ketu’ remete, por contraste paradigmático, a denominações como [nação] ‘ijexá’, ‘angola’,
‘jeje’ etc. No caso do egbé em questão, existe clara consciência de que a “nação” corresponde a um indicador
étnico, refere-se a um lugar de origem dos (principais) fundadores do culto”. (SERRA, apud, COSTA LIMA,
2008)
1328
exclusivos, pois dependem de um conjunto de sistemas simbólicos associados às fundadoras e
a seus Eledás, como também ao lugar que estes ocupam no panteão dos deuses africanos.
Referências bibliográficas
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Campinas: Unicamp: Cadernos Pagu (22) 2004: pp.13-46.
SANTOS, Maria Stella de Azevedo. Meu Tempo é Agora. 1ª Edição: Ed. Oduduwa: São
Paulo, 1993.
1329
SERRA, Ordep. Ilê Axé Yá Nassô Oká, Terreiro da Casa Branca: Laudo antropológico.
IPHAN: Salvador 2008. In: https://ordepserra.files.wordpress.com/2008/09/laudo-casa-
branca.pdf .
1330
MUSEU DE CIÊNCIAS DA TERRA COMO MEIO DE COMUNICAÇÃO DO
CONHECIMENTO: GÊNERO NA PAISAGEM GEOLÓGICA BRASILEIRA
Resumo: Apresentação de um espaço de divulgação cientifica, que vem sendo desenvolvido nos
últimos anos no Museu de Ciências da Terra - MCTer, com reconhecimento da discussão do gênero
em Geociências, a partir do histórico, da titulação e da pesquisa cientifica, realizada por pesquisadoras
em Geociências, da Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais - CPRM, empresa pública, com as
atribuições de Serviço Geológico do Brasil, onde o MCTer está atualmente localizado. Através do
relato de suas vidas e dos problemas por que passaram, estas desbravadoras mulheres em suas
carreiras, problemas estes vencidos, ao longo dos anos como geocientistas, vimos construindo a
história do gênero na área de Geociências.
Abstract: Presentation of a space for scientific dissemination, which has been developed in recent
years in the Museum of Earth Sciences - MCTer, with recognition of the discussion of the genre in
Geosciences, from the history, degree and scientific research, carried out by women´s researchers in
Geosciences from the Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais - CPRM, a state-owned company
with attributions of Brazilian Geological Survey, where MCTer is currently located. Through the
account of their lives and the problems they have endured, these pioneering women in their careers,
problems that have been overcome, over the years as geoscientists, have been building the history of
the genre in the area of Geoscience.
1331
Museus, arquivos e bibliotecas são instituições muito antigas e com histórias diversas,
embora na linha do tempo, muitas vezes tenham convivido em relações de proximidade,
seja enquanto templos das musas, arkheion ou mesmo bibliothêkê, respectivamente. Na
Antiguidade essas instituições não ocupavam espaços claramente delimitados, tendo por
exemplo a Biblioteca de Alexandria, que inicialmente era apenas uma sala de leitura e foi
sofrendo ampliações, sendo dividida em duas partes, sendo que a primeira ficava num
museu e a segunda no templo de Serapis (ou Serapeum), em honra a Serapis, deus grego
introduzido no Egito no tempo dos Ptolomeus. (BAEZ, 2006, p.63). Desde as suas origens,
portanto, já poderíamos identificar traços de semelhança entre museus e bibliotecas - e as
suas funções de acumulação, de conservação e de memória do conhecimento e que, por
terem surgido a partir de iniciativas de soberanos, tiveram suas histórias marcadas pelo jogo
de poder, pela disputa do saber e do conhecimento.
A museologia vem há décadas, deslocando o seu objeto de estudo que são os museus e as
coleções para o universo das relações, como: a relação do homem e a realidade; do homem
e o objeto no museu; do homem e o patrimônio musealizado; do homem com o homem,
relação mediada pelo objeto. Esse universo de relações deve ser enfrentado na perspectiva
transdisciplinar dada a sua complexidade.
1332
Neste sentido, (RIBEIRO e CAL, 2016, p.98) mostram o desafio dos museus em adequar às
linguagens e aos métodos disponíveis as demandas sociais, haja vista que a atenção, antes
voltada para o objeto em exposição no processo informacional de comunicação dos museus,
volta-se aos atores envolvidos sob a ótica do paradigma relacional da comunicação. “O
modelo de museu da atualidade pauta-se nas múltiplas e complexas relações que cada
pessoa estabelece com o mundo real, sendo assim, [...] de modo a equacionar aos seus
objetivos e a valorização das experiências permitidas em seu espaço, enquanto ponto de
encontro e produtor de noções identitárias”.
Para introduzir a temática do gênero temos uma pesquisa da líder do assunto no mundo, a
Elsevier, que tem a responsabilidade de promover a igualdade de gênero no STEM (Ciência,
Tecnologia, Engenharia e Matemática) e avançar a compreensão do impacto do gênero, do
sexo e da diversidade na pesquisa. São aqui apresentadas algumas conclusões sobre o
desempenho da pesquisa através de uma lente de gênero, realizado pela Elsevier
(ELSEVIER, 2017), abrangendo os períodos de 1996-2000 e 2011-2015, 12 países
(incluindo a UE e Japão) e 27 disciplinas, quais sejam:
1333
pesquisa altamente interdisciplinar do que a dos homens.
Fazendo um recorte, para a discussão do gênero nas Geociências, foi selecionado o Curso
de Geologia, do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo - IGc/USP, que foi
criado em 1957, na antiga Faculdade de Filosofia Ciências e Letras (FFCL), com o nome de
Curso de Geologia da FFCL e sua primeira turma formou-se em 1959. A Tabela 1,
apresenta os dados obtidos (AGUSP), entre os alunos e alunas formados em Geologia, no
período de 1959 a 2003, num total de 1.408 formandos, numa tentativa de mostrar a
evolução da formação de pesquisadoras, ao longo de quase 50 anos, respectivamente 45
anos. O gráfico mostra o crescimento do número de mulheres formadas, divididos em 4
períodos, onde vimos o quadro de 12 mulheres formadas no período de 11 anos, passar a 38
no período seguinte, triplicando o total inicial (mais de 300%), um pouco mais que o dobro
no 3o. período com 80 mulheres e no 4o. periodo com 130 mulheres, acréscimo de 60% no
valor anterior.
Como empresa que emprega 31% de geólogos em seu quadro funcional, a Companhia de
Pesquisa de Recursos Minerais - CPRM, uma empresa pública, vinculada ao Ministério de
Minas e Energia, tem as atribuições de Serviço Geológico do Brasil. Tem como missão
gerar e difundir o conhecimento geológico e hidrológico básico necessário para o
desenvolvimento sustentável do Brasil. O quadro de pessoal dela é constituído por 1.731
funcionários celetistas, com hidrogeólogos, engenheiros hidrólogos, engenheiros de minas,
e 537 geólogos, - sendo 69,64% homens e 30,35% mulheres-, um valoroso patrimônio
técnico, com doutores, mestrandos e pessoal especializado, com excelência e conhecimento
1334
ímpar da geologia e da hidrologia brasileiras. As geólogas, pesquisadoras desta empresa são
os atores que iremos descortinar neste cenário do gênero, numa tentativa de divulgação do
gênero nas Geociências.
1335
Gráfico e Tabela de Geólogas Formadas no IGC/USP de 1959 a 2003 (AGUSP).
Total Mulheres
400
300
200
100
1336
Total Total Total de
Ano Mulheres Ano Mulheres Ano Mulheres
diplomados diplomados diplomados
no ano no ano no ano
1959 2 9 1981 15 76 2003 22 50
1960 2 24 1982 6 30
1961 0 25 1983 4 36
1962 0 46 1984 5 35
1963 0 29 1985 7 38
1964 1 30 1986 4 27
1965 1 32 1987 6 27
1966 1 29 1988 4 23
1967 2 31 1989 9 24
1968 2 22 1990 11 31
1969 1 40 1991 9 16
1970 3 27 1992 5 18
1971 4 35 1993 7 14
1972 1 47 1994 7 22
1973 4 52 1995 6 18
1974 2 33 1996 11 31
1975 0 55 1997 7 22
1976 5 42 1998 17 33
1977 2 43 1999 11 26
1978 8 38 2000 11 26
1979 1 16 2001 14 38
1980 1 6 2002 12 36
1337
Referências
RIBEIRO, Lucimery; CAL, Danila. Museu como medium: reflexões sobre as interfaces entre
comunicação e museologia. Revista Dispositiva, v.5, n.2, p. 85-102, mar. 2016. Disponível
em:<http://periodocos.pucminas.br/index.php/dispositiva/article/view/12692> Acesso em: 26
ago.2017.
1338
Patrimônio, educação e
museus
1339
AUDIOVISUAL COMO FERRAMENTA PARA A EDUCAÇÃO PATRIMONIAL
Fábio Estefanio Lustosa de Brito Lopes*
Rita de Cássia Moura Carvalho*
* Universidade Federal do Piauí
1340
Introdução
No primeiro semestre de 2017, como parte de um grupo de alunos do Mestrado
Profissional em Artes, Patrimônio e Museologia da Universidade Federal do Piauí, realizamos
um diagnóstico social, econômico e cultural com residentes do Centro Histórico da cidade de
Parnaíba, tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN
desde 2008.
Esse trabalho é parte das atividades do Projeto-Matriz “Parnaíba – Patrimônio vivo,
cidade viva”, projeto-ação concebido e coordenado pelo Mestrado Profissional para o Centro
Histórico de Parnaíba. O diagnóstico nos revelou que a comunidade residente não estabelece
laços afetivos com o patrimônio cultural protegido, não atribuem sentidos e significados ao
rico e complexo patrimônio cultural do lugar onde vivem, há um desconhecimento do que seja
patrimônio cultural e tombamento, o que dificulta a atribuição de sentidos e aproximações
com os órgãos públicos de proteção do patrimônio cultural, com agentes públicos e privados,
que devem ser sensibilizados para se tornarem agentes de proteção, preservação e salvaguarda
do patrimônio cultural do território, não só do conjunto tombado, mas do paisagem cultural na
qual se insere a arquitetura da cidade, o patrimônio cultural, ambiental, material, imaterial,
não só da urbe mas de seu entorno; cidade e entorno imersos em uma Área de Proteção
Ambiental – APA Delta do Rio Parnaíba.
Com essa percepção e a considerar a nossa função social como educador e
profissional, que atua no campo das artes visuais, propomos estudos e intervenções com o
objetivo de colaborar com a educação do olhar sobre o patrimônio cultural da cidade, de
forma a contribuir para reverter a situação atual, marcada pela falta de conhecimento e
reconhecimento da importância social, histórica, cultural e econômica desse rico e complexo
patrimônio cultural.
A salvaguarda patrimonial só ocorre quando há comunicação, nesse aspecto a
educação do olhar cria uma relação afetiva de cuidado e pertencimento. A pretensão desta
pesquisa-ação é realizar vivências e experiências mediadas com o uso do audiovisual,
1341
incluindo como públicos artistas, residentes do centro histórico da cidade de Parnaíba e
professores de arte da rede pública de ensino pública e privada, na busca por exercitar o olhar,
visitar, revisitar os espaços da cidade, produzindo singularidades e sentidos.
Usaremos os recursos audiovisuais ordinários, um simples aparelho celular, para
permitir que os participantes e colaboradores da pesquisa-ação possam compreender e
vivenciar um processo de captação de imagens em áudio e vídeo, entendendo esses recursos
como ferramentas de inclusão visual, construção de narrativas atravessadas pela percepção do
lugar, valorização das memórias e do patrimônio cultural ancestral, de forma comunitária,
marcada pela diversidade de percepções, de olhares.
A interpretação do patrimônio aliada aos recursos audiovisuais permite que as
populações residentes possam realizar um exercício de cidadania, de vivência, apropriação e
valorização da cultura local.
1342
O audiovisual é um desses instrumentos de comunicação, uma forma estratégica de
educar o olhar, de permitir que os residentes, professores e artistas descubram e atribuam
sentidos e significados aos lugares, às pessoas, às celebrações, modos de saber-fazer, formas
de expressão etc., construindo assim conexões, afetos, sentimento, pertencimento.
Buscamos exercitar com as pessoas a ampliação da noção de patrimônio cultural, em
consonância com uma literatura mais recente no campo das Artes, Patrimônio Cultural e
Museologia Social. O audiovisual, o mundo do som e da imagem, da comunicação digital é
uma realidade no tempo presente, cada vez mais fazem parte do mundo de jovens e adultos,
que têm acesso à esses recursos.
1343
Figura 1- Rio Igaraçu e comunidade ribeirinha. Foto: Chico Rasta
1344
relações afetivas entre residentes e centro histórico; indiferença, desconhecimento do
significado do patrimônio cultural tombado, de sua relevância histórica, social, econômica, o
que provoca indiferença, abandono, medo, estranhamento para um lugar poético, repleto de
memórias e histórias. O que justificaria esse estranhamento e indiferença?
É esse contexto que orienta as ações que planejamos com professores e estudantes,
artistas, residentes de Parnaíba, com o objetivo de compreender e reverter o cenário descrito.
Interpretar o patrimônio cultural de forma sensível e lúdica, nos valendo do interesse pelas
formas diversas de comunicação, nomeadamente, o audiovisual.
Trabalharemos igualmente com artistas locais, com diversas linguagens,
principalmente, os videomakers, criando diálogos artísticos, usando novas tecnologias, mídias
digitais, intervenções em projeções mapeadas na área protegida.
1345
Na busca de aproximações entre arte e patrimônio cultural, o nosso interesse está
centrado nos professores, estudantes, artistas, residentes, a nossa experiência com a cultura
visual, com os repertórios imagéticos nos estimula a olhar a cidade e seu patrimônio cultural.
Conhecer outras formas de olhar, registrar e comunicar.
Segundo Morin (1981) citado por Brandão e Streck (2006, p. 98):
Não há nem haverá jamais um observador puro (está sempre unido a uma
práxis transformadora); nem conhecimento absoluto[…]. Mas com a perda
do absoluto, ganhamos em comunicação e complexidade[…], pois todo
conhecimento, para um observador, é por sua vez subjetivo (autoreferente),
ao remetê-lo a sua própria organização interior (cerebral, intelectual,
cultural), e objetivo (autorreferente), ao remetê-lo ao mundo exterior.
Método
A pesquisa-ação orienta este trabalho. Trata-se de método de pesquisa social
aplicada, qualitativa e participativa, que nos permite mediar experiências no cotidiano da
cidade com a sala de aula, usando os recursos audiovisuais, na busca por exercitar o olhar e
praticar os espaços, produzir singularidades, afetividades e sentidos associados aos lugares
esquecidos ou mesmo desconhecidos.
Estudar e intervir no espaço com a colaboração de professores, alunos e artistas é
agir em uma perspectiva multidisciplinar, comunitária, participativa e colaborativa, em uma
relação dialógica de construção de conhecimento. Segundo Brandão e Streck (2006, p. 10),
1346
"[...] reinventando-se através de novas ideias, de novas metodologias, de novas experiências e
de antigos e novos esforços de colocar o conhecimento social, obtido através de
procedimentos científicos, a serviço de alguma forma de ação social transformadora."
A Pesquisa Participante “[...] deve ser compreendida como um repertório múltiplo e
diferenciado de experiências de criação coletiva de conhecimentos, destinados a superar a
oposição sujeito/objeto no interior de processos que geram saberes (BRANDÃO E STRECK,
2006, p. 12) “. É essa natureza de pesquisa que orienta o nosso caminho de estudos e
intervenções na cidade tombada – Parnaíba.
Para as ações com um grupo de professores de arte, notamos a possibilidade de um
diálogo com a metodologia de Pesquisa Educacional Baseada em Arte (PEBA), mais
especificamente com a prática A/r/tográfica, que em linhas gerais busca uma investigação
através de uma prática viva, onde todos os envolvidos são levados a criação artística, o que
traz uma percepção expandida sensível sobre a pesquisa. O A/r/tógrafo busca novos
entendimentos sobre o que pode levar a melhorias nas políticas educacionais ou práticas
educativas; neste trabalho, práticas de interpretação do patrimônio cultural.
1347
Figura 2 - Reunião com professores de arte - Foto - Cris Brandão
1348
Figura 3 - Reunião com artistas locais - Foto : Rosa Prado
1349
(territórios concretos, conceituais e virtuais misturados) com o objetivo de dar suporte a
processos relacionados à construção da memória afetiva social local.
O amadurecimento dessas discussões dará corpo a uma série de atividades
colaborativas a serem desenvolvidas por esse grupo de artistas e pesquisadores do Mestrado
Profissional na área tombada.
Considerações Finais
Pretendemos que a avaliação desse trabalho ocorra ao longo processo e sirva de
alimento para os novos encaminhamentos. Partindo de uma análise quantitativa, avaliamos
que esses primeiros encontros permitiram uma aproximação sensível com um número
bastante expressivo de colaboradores, com 27 professores e 20 artistas, com poder
multiplicador; um grupo engajado, participante ativo das reuniões e discussões conceituais,
além de intervenções no microcosmo a que pertencem - escolas e coletivos de arte.
Conseguirmos motivar, incluir os diálogos sobre produção de imagens e seu papel
legitimador e formador de memórias e identidades com a formação de agentes
transformadores capazes de produzirem uma representação artística de si mesmos, de sua
comunidade, da relação com o outro e o mundo através do desenvolvimento de artifícios
educacionais, que promovam outra relação com o espaço, além de trazer outras perspectivas
do exercício do olhar mais atento na renovação da percepção sobre o próprio cotidiano, seu
entorno e a cidade, até porque:
1350
amadurecimento do olhar, possibilita com mais concisão o entendimento dos valores culturais
e patrimoniais.
Engajamento social criativo e sensibilidade coletiva parecem ser as chaves de um
percurso que envolve a arte e a comunidade; as experiências realizadas, permitem
gradativamente o empoderamento social, a construção de sentidos, significados, afetos.
Referências bibliográficas
BRANDÃO, Carlos R; STRECK, Danilo R. (Org.). Pesquisa participante: O saber da
partilha. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2006.
1351
CULTURA ORGANIZACIONAL E POLÍTICAS PÚBLICAS: PROCESSOS
SOCIAIS QUE ENVOLVEM AS FIGURAÇÕES MUSEAIS
Resumo: Neste trabalho levantamos reflexões sobre a relação que se estabelece entre cultura
organizacional e a apropriação de políticas públicas. Concentramos nossa análise sobre as principais
mudanças pelas quais passaram o campo museal do Brasil e Portugal. Esses dois campos apresentam
pontos convergentes: ambos se situam em países que implementaram políticas de gestão democrática
após vivenciarem regimes autoritários. Diante disto, questionamos: a cultura organizacional
sedimentada nas organizações museais desses dois campos poderia constituir um fator de resistência
ao processo de implementação de políticas públicas? Entendemos que a implementação de políticas
públicas tem a sua viabilização diretamente ligada às formas como elas são apropriadas e dinamizadas
em cada cultura organizacional e que, dessa maneira, em Estados forjados por práticas autoritárias, o
recente processo de redemocratização pode não ter reverberado o suficiente na sociedade, fazendo a
maioria dos atores que reproduzem as determinações estatais não serem capazes de implementar
políticas de gestão democrática.
Palavras-chave: Cultura Organizacional; Políticas Públicas; Gestão de Museus; Teoria Sociológica
dos Processos.
Abstract: In this work we raise reflections on the relationship between organizational culture and the
appropriation of public policies. We concentrated our analysis on the main changes that have
undergone the field of museums in Brazil and Portugal. These two fields have convergent points: both
are located in countries that have implemented policies of democratic management after experiencing
authoritarian regimes. In view of this, we asked: could the organizational culture sedimented in the
museum organizations of these two fields constitute a factor of resistance to the process of
implementation of public policies? We understand that the implementation of public policies has its
viability directly linked to the ways in which they are appropriated and invigorated in each
organizational culture and that, in States that are forged by authoritarian practices, the recent process
of redemocratization may not have reverberated the enough in society, making most of the actors who
reproduce the state determinations not be able to implement democratic management policies.
Key-words: Organizational Culture; Public Policy; Management of Museums; Sociological Theory of
Processes.
1352
Introdução
Concentramos nossa análise sobre os processos sociais pelos quais passaram o Brasil e
Portugal, países que implementaram políticas de gestão democrática após vivenciarem
regimes autoritários. Nesse sentido, questionamos: a cultura organizacional sedimentada nos
museus desses dois países poderia constituir um fator de resistência ao processo de
implementação de políticas públicas?
Como este trabalho se propõe a levantar reflexões sobre a relação que se estabelece
entre a cultura organizacional dos museus e a apropriação de políticas públicas, paritremos
das observações e constatações obtidas em nossa tese de doutorado como uma alavanca que
impulsione reflexões e questionamentos: quais foram os processos sociais que levaram à
constituição dos espaços museais? Qual a visão de mundo dos atores responsáveis pelos
museus? O que eles entendem por certo ou errado? Como esses entendimentos se refletem na
constituição dos museus por eles organizados?
1353
Processos sociais que envolvem as políticas públicas e figurações escolares
1354
A Secretaria de Educação de Pernambuco foi uma das primeiras a se envolver nesse
processo. Seguindo diretrizes que primavam pela universalização da educação básica com
qualidade, a dignificação do trabalho do educador e a democratização da gestão educacional,
essa Secretaria submeteu a debate, já em 1987, a implantação desses procedimentos por meio
dos Fóruns Itinerantes de Educação: “canais de interlocução que permitiam apreender as
aspirações e interesses da comunidade escolar e dos setores organizados da população”
(AGUIAR, 2014, p. 214).
1355
pelas práticas anteriores. Os processos sociais que inicialmente se sucederam à
implementação da política de gestão democrática até que incentivavam o desenvolvimento
desse tipo de gestão. Focados em desenvolver uma maior autonomia escolar, esses primeiros
processos propunham mais descentralização das estruturas, maior participação de diferentes
atores sociais, elegibilidade e colegialidade.
Breve relato das observações que nos levaram a construção deste trabalho
Uma das principais constatações de nossa pesquisa foi perceber como sociedades que
foram governadas por regimes autoritários ainda tinham muitas das características desses
regimes presentes na cultura das organizações do campo educacional. Notamos que Brasil e
Portugal iniciaram seus processos de redemocratização recentemente (décadas de 1980 e
1970, respectivamente) e que os princípios propagados por esses processos passaram a ser
incorporados também pela área da educação.
Diante das realidades já sedimentadas nas organizações dos dois campos educacionais,
a política de gestão democrática da educação foi sendo gradativamente influenciada por
processos que deram margem à implementação da política de Lista Tríplice no sistema
1356
educacional do Brasil (Pernambuco) e à política de Agrupamento de Escolas no sistema
educacional português.
Com a política de lista tríplice temos a ruptura de um processo que vinha sendo
desenvolvido desde a redemocratização no Brasil. A política de gestão democrática, na
década de 2000, havia se fortalecido com a política de escolha do diretor escolar via eleição
direta, porém perdeu fôlego porque essa escolha agora está condicionada à aprovação do
candidato a diretor em cursos oferecidos exclusivamente pela Secretaria de Educação do
Estado e à escolha final por parte do governador.
1357
Como os dois campos educacionais ainda se encontram no início da segunda geração
influenciada pela implementação da política de gestão democrática da educação, percebemos
que a mudança social esperada a partir da sua implementação ainda não se manifesta nas
práticas socioprofissionais da maioria dos atores.
1358
Aporte teórico para o entendimento sobre as relações entre políticas públicas, cultura
organizacional e campo museológico
Segundo Elias, os seres humanos formam figurações uns com os outros, entre grupos
sociais pequenos ou grandes. Assim, a sociologia eliasiana nos orienta a considerar as
organizações escolares como figurações que possuem características socioculturais e
dinâmicas de funcionamento específicas, também resultantes dos processos sociais que ao
longo do tempo, influenciaram a constituição de seus indivíduos.
1359
No que denomina de Teoria Sociológica dos Processos, Elias destaca que os processos
sociais devem ser o viés de análise daquilo que classifica como abordagem sociológico-
processual, cabendo ao sociólogo captar a história e formação de cada contexto social e suas
particularidades. Assim, a análise sociológica deve identificar as conexões de relacionamentos
que se desenvolvem em rede pelos indivíduos, pois se elas se caracterizam pela influência de
regras pré-determinadas e rígidas, também são influenciadas por necessidades e escolhas
individuais.
Essa abordagem socioantropológica fez nossa atenção se voltar aos processos sociais
que envolvem as políticas de gestão democrática e demais políticas públicas que as
sucederam. Entendemos que uma política de gestão democrática procura provê o indivíduo de
poder quanto à tomada de decisões que envolvem as dimensões da gestão de museus. A partir
desse princípio, os processos de descentralização do sistema administrativo, democratização
do acesso aos museus e construção da autonomia são etapas a se desenvolverem por uma
gestão que se pretende democrática.
Na medida em que essas etapas vão sendo alcançadas, a gestão democrática tende a
proporcionar o desenvolvimento de um sistema de gestão, no qual todos os seus membros -
não só coordenadores, mas também instrutores, funcionários e todos os representantes da
comunidade - tenham a possibilidade de participar e contribuir com o empoderamento pessoal
e o da instituição.
1360
curto prazo, (ela) é uma política de longo prazo; envolve processos subsequentes após sua
decisão e proposição, ou seja, implica também a implementação, execução e avaliação”
(SOUZA, 2006, p. 37).
1361
que a sua implementação também deve levar em consideração as formas de apropriação e
viabilização dessas políticas por parte da cultura organizacional de cada museu onde elas são
implementadas. Questionamos, então, se as práticas de gestão dos museus se preocuparam em
reconhecer as características de cada cultura organizacional e se elas foram geridas em prol da
implementação de políticas públicas. Nas palavras de Moore (1998, p. 10) “la visión actual
que se tiene de la gestión permite cada vez más a los museos saber con mayor seguridad cual
és su razón de ser, cuáles son sus metas y cómo se pueden cumplir”
Edgar Schein (2004) entende que a cultura é um fator decisivo para o funcionamento
da organização e que ela se constitui a partir de características específicas. Para esse autor, a
cultura organizacional se define a partir de pressupostos básicos, padronizados, inventados,
descobertos ou desenvolvidos por um grupo, considerando o que o grupo aprendeu para lidar
com os seus problemas de adaptação externa e de integração interna, e o que funcionou de
forma que fosse considerado válido.
1362
nível (mais profundo e denso) seria o de assunções básicas, expressas em comportamentos
enraizados na cultura. Este último nível, muitas vezes, fica no inconsciente dos indivíduos e
por isso é mais difícil detectá-lo, o que não o impede, porém, de exercer bastante influência.
As assunções básicas são construídas por aquilo que os indivíduos entendem como o
que é certo e errado, ou como o que deve ser feito e evitado em suas visões de mundo. Assim,
é importante a identificação dessas assunções para a nossa análise. Quanto mais essas
assunções se mostram com caráter autoritário e estão enraizadas no comportamento dos
indivíduos que compõem as organizações museais (reflexo dos contextos sócio-históricos que
as forjaram e imperceptíveis em uma análise menos minuciosa), mais difícil a viabilidade de
políticas públicas como a de gestão democrática.
1363
Em sendo plenamente possível a existência desses valores, nos preocupamos em
analisar se a cultura organizacional dos museus estaria mais propensa à práticas que refletem
o colonialismo e práticas autoritárias ou ao desenvolvimento de uma ecologia dos saberes e
práticas democráticas (idem, ibid.). Até que ponto os indivíduos que forjam a cultura
organizacional dos museus refletem uma visão colonizada de mundo e, por isso, primam pela
cultura erudito-hegemônica ao invés da popular-subalterna?
Ciente das particularidades de cada museu devemos ter a preocupação de evitar uma
análise associada a um método comparativo pautado em oposição estrutural ou generalização
para fugirmos a uma comparação entre tipos hierárquicos que indiquem ser uma sociedade
mais avançada do que a outra em termos de políticas para gestão de museus. A pesquisa deve,
sobretudo, desenvolver uma interpretação compreensiva que faça emergirem semelhanças e
diferenças. Por interpretação compreensiva, Roberto Cardoso Oliveira (2006, p. 220) entende
ser essa uma concepção metodológica que privilegia “a compreensão do sentido (verstehen)
[...] e a experiência vivida (erlebnis) pelo pesquisador nos contextos socioculturais”.
1364
museu. Por isso, investigar organizações do campo museológico de sociedades e países
distintos se apresenta como uma forma de consolidar a nossa argumentação científica.
A abordagem qualitativa também deve realizar entrevistas com os atores sociais que
trabalham nos museus (diretores, instrutores, funcionários da administração e de serviços
gerais). Devemos observar como esses atores, imprescindíveis à formação da cultura
organizacional, dinamizam suas relações socioprofissionais dentro dos museus e com a
comunidade por eles atendida.
1365
A pesquisa empírica também foi importante para percebermos quanto a dinâmica de
funcionamento das organizações está orientada pelos documentos estatais e projetos de
gestão1 dos museus. Interessa-nos perceber se esses documentos refletem a implementação
das políticas públicas nos campos museais em observância às características de cada cultura
organizacional. Submeteremos esses documentos a uma análise de conteúdo, com a qual se
poderá perceber se há congruência entre o que está contido nos documentos dos órgãos
responsáveis pela gestão dos museus e as formas de (re)interpretação dos atores.
Referências bibliográficas
BRASIL, Ministério da Educação e Cultura. Estatuto dos Museus (Lei 11.904/09), 2009.
1
Ou Plano Museológico, tal qual sugere o Estatuto dos Museus, lei brasileira que rege a instituições
museológicas desde janeiro de 2009 (Lei 11.904/09).
1366
DUARTE CÂNDIDO, Manuelina. Diagnóstico museológico: estudos para uma metodologia.
Actas do I Seminário de Investigação em Museologia dos Países de Língua Portuguesa e
Espanhola, v. 3, 2010, p. 124-132.
SCHEIN, Edgar. Organizational Culture and Leadership. 3 ed. San Francisco: Jossey
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1367
ECOMUSEU DELTA DO PARNAÍBA (MUDE): ARQUITETURA DE MUSEUS E
RESTAURO A SERVIÇO DA VALORIZAÇÃO DE UMA RICA E COMPLEXA
PAISAGEM CULTURAL
Resumo: Neste trabalho se propõe a valorização da relação entre as pessoas e essa paisagem do delta,
por meio da transformação de um antigo galpão portuário de Parnaíba (PI) em um Ecomuseu dedicado
ao Delta do Parnaíba. A proposta é que as comunidades deltaicas e os moradores de Parnaíba se
reconheçam nesse equipamento cultural, apropriando-se do lugar, para que haja uma estreita relação
de afeto, e assim, serem igualmente gestores de seu patrimônio. O trabalho é produto da pesquisa
desenvolvida no mestrado em Artes, Patrimônio e Museologia, quando defendeu-se o projeto
arquitetônico da sede e centro de gestão deste Ecomuseu que deverá ter por princípio a valorização do
patrimônio edificado sob uma abordagem fenomenológica, adequando a ruína deste antigo galpão ao
novo uso e facilitando a fruição do público por meio de uma proposta arquitetônica na qual a
população possa se reconhecer.
Palavras-chave: Ecomuseu; Paisagem; Arquitetura; Patrimônio.
Abstract: This work proposes the valuation of the relationship between people and this
landscape of the Delta, through the transformation of a former port warehouse in Parnaíba
(PI) into an Ecomuseum dedicated to the Parnaíba Delta. The proposal is that deltaic
communities and residents of Parnaíba recognize themselves in this cultural equipment,
taking ownership of the place, so that there is a close relationship of affection, and thus, be
equally managers of their patrimony. The work is a product of the research developed in the
Masters in Arts, Heritage and Museology, when it defended the architectural design of the
headquarters and management center of this Ecomuseum that should have as principle the
valuation of the built heritage under a phenomenological approach, adjusting the ruin of this
Old shed to the new use and facilitating the enjoyment of the public through an architectural
proposal in which the population can recognize itself.
Key-words: Ecomuseum; Landscape; Architecture; Patrimony.
1368
Introdução
A cidade, que recebe o nome do mais importante rio do Piauí, possui íntima
relação com a água; a urbe é banhada pelo rio Igaraçu, 1º braço do delta do Parnaíba, o único
a desaguar em mar aberto das Américas - Oceano Atlântico. O delta do rio Parnaíba está
integrado à APA, o que se justifica por sua paisagem ser formada por dunas que chegam a
medir 40 metros de altura, florestas, manguezais, igarapés, ilhas e praias desertas; um rico e
complexo patrimônio.
1369
cultural e natural do território, reconhecerem a importância de manter relações sustentáveis
com o rio, mar e delta; com saberes e fazeres ancestrais. Assim, ganha sentido o conceito de
Ecomuseu, Para Rivière:
Museu e Território
O século XIX é considerado como o século dos museus, uma vez que vivenciou o
aumento quantitativo de museus pelo mundo, além da diversificação de tipologias e da
institucionalização desses, que passaram a ser símbolo e meio de construção da legitimação
de nacionalidades. A análise do percurso histórico de construção dos museus mundiais e
brasileiros evidencia a mudança de perspectiva em relação às propostas dessas instituições. O
colecionismo que marcava a proposta dos museus colocava em primeiro plano os objetos em
detrimento às pessoas. Deveriam ser selecionados e exibidos peças que fossem exemplares da
1370
cultura e da história de um grupo, povo ou nação. Em 1946, o Conselho Internacional de
Museus (International Council of Museums - ICOM) propôs a seguinte definição: “a palavra
museu inclui todas as coleções abertas ao público, de valor artístico, material, técnico,
científico, histórico ou arqueológico, incluindo zoológicos e jardins botânicos, mas excluindo
bibliotecas, exceto a medida que mantiverem salas de exposição permanentes.” (ICOM,
1946).
1371
espaço. A partir de então, compreende-se que mesmo que o ecomuseu tenha foco na
preservação da natureza, essa não deve ser compreendida de forma isolada, mas na relação
com o ser humano. Georges Henri Rivière propôs que:
1372
representaram e representam uma corrente de ar fresco dentro de um ambiente cujo ar
chegava a ser viciado pelas antigas práticas, guiadas por um patrimonialismo como fim em si"
(BARBUY, 1995, p.210). Outra especificidade do museu de comunidade apontado por Lersch
e Ocampo é que esse tem uma genealogia diferenciada, pois:
Se o ecomuseu deseja se manter fiel à missão que ele se deu na origem, ele
não deve se contentar em se abalar nostalgicamente pela perda de um
patrimônio natural, material e humano em vias de desaparecimento, ou já
desaparecido - e que necessita, sem dúvida, ser lembrado, como constitutivo
das raízes sem as quais nada se poderia construir. Imerso em todos os meios
ele deve, ainda, estar atento a escutar e compreender os feitos de cada dia;
ele deve, por seu conhecimento do passado, ao explicar as lições que tiramos
do mesmo, ajudar a construir o futuro; ele deve ser um dos instrumentos (ao
mesmo tempo, agente e lugar) de mudanças tanto tecnológicas quanto
sociais. Ele deve ser capaz de explicar o espirito de adaptação e de
engenhosidade dos ancestrais para que sirvam de exemplo àqueles que se
encontram atualmente confrontados com difíceis mudanças [...]"
(DESVALÉES, 2015. p. 25)
1373
Intervenção no patrimônio edificado sob uma abordagem fenomenológica
É importante entender que a arquitetura, como Bruno Zevi (1978) defendia, uma
experiência espacial e que ela se relaciona com as pessoas cotidianamente uma vez que a
existência é espacial. E mais, associada à experiência espacial, ela, a arquitetura, provoca uma
série de percepções, sensações, afetos, memórias, que extrapolam os limites da coisa concreta.
Afinal, "a experiência é constituída de sentimento e pensamento" (TUAN,1983). E é nesse
entendimento que se baseiam as interpretações das leituras feitas a respeito da arquitetura
enquanto patrimônio. Corroborando com essa análise, destaca-se que:
1374
pode despertar simultaneamente todos os sentidos, todas as complexidades
da percepção (ZAERA, 2003, p. 23).
1375
Gadamer (2003) afirmou que a arquitetura existe com uma função associada a
uma necessidade humana e, portanto, se ela não cumpre sua função destitui-se de significado,
significado este que só pode ser atribuído pelo Homem. E complementa que para sobreviver
as mudanças de gerações deve haver uma mediação entre passado e presente, onde o presente
não seja submisso ao passado. Assim, se arquitetura é uma arte que só alcança sua plenitude
com a presença/experiência humana, as intervenções feitas no patrimônio edificado, buscam
trazê-lo para o presente, tornando-o ativo, adaptado para fruição das pessoas e sua cultura em
determinado tempo e lugar. A pessoa toma lugar no espaço e o espaço toma lugar na pessoa, é
esta a ‘aura’ da obra artística ressaltada por Walter Benjamin (PALLASMAA apud WELLS,
2016). Elliott (2002) completa esse raciocínio afirmando que:
1376
não significa que a cultura seja imutável e que a identidade seja fixa” (CARSALADE, 2011.
p.01).
Diferente da prática de restauro de uma obra de arte visual, como uma escultura,
por exemplo, que busca trazer fidelidade aos materiais e técnicas usados, ponderando sempre
a autenticidade da obra; a restauração de uma obra arquitetônica não deve considerar apenas
uma conservação estilística, mas sua adequação à vida moderna, caso contrário pode causar
efeito reverso, provocando sua deterioração por perda de uso e, consequentemente, de
significado, já que a identidade de um bem arquitetônico está diretamente ligada à sua função.
De acordo com Carsalade (2014), não se deve entender o bem patrimonial tal
como era e qual seu uso no contexto em que surgiu, mas sim como ele se apresenta hoje; ou
seja, se seu uso e seus significados foram reinventados ao longo do tempo, devem ser
respeitados. Não há como desassociar o bem material do seu valor imaterial; reconhecer estas
transformações não lhe provoca perda do significado, mas o reforçam. Como afirma o autor:
1377
necessariamente se relaciona com o quão importante o lugar é para
indivíduos ou grupo de pessoas. (WELLS, 2016. p. 12)
A revisão de literatura ora apresentada é base para pensar a prática desse trabalho,
materializado no projeto arquitetônico do Ecomuseu Delta do Parnaíba. Dessa forma, ao
pensar o projeto de intervenção apresentado adiante, leva-se em consideração sobretudo a
relação que se tem e que se poderá ter entre as pessoas e essa edificação que receberá um
novo uso. Françoise Choay afirma que “arquiteturas e espaços não devem ser fixados por uma
ideia de conservação intransigente, mas manter sua dinâmica” (2008). Sendo a cidade um
espaço múltiplo de transformações constantes, ganham sentido as referências exploradas aqui.
1378
relacionadas à navegabilidade do rio, diminuiu o reconhecimento do mesmo como elemento
de identidade.
1379
Para se pensar este restauro leva-se em consideração o estudo da teoria do restauro
e aspectos ligados a fenomenologia, sobretudo no que tangem a intervenções em edificações
em estado de ruínas. A clássica teoria de Ruskin, mesmo que muito criticada pelos
extremismos cometidos, é uma base para se pensar a intervenção em uma edificação em
estado de ruína. Para ele, o elevado estado de degradação em prédios antigos provocava um
"sentimento de melancolia mista", "uma profunda sensação de expressividade, de uma
vigilância original, de misteriosa simpatia" (RUSKIN, 1877 apud WELLS, 2016. p.06). São
falas que instigam a uma investigação fenomenológica, mesmo não sendo considerado um
autor que trabalhe com essa abordagem.
1380
luz como raios de luar e então afundam atrás das sombras de muros primitivos. Estremecer
com deleite”.
Com base nas referências teóricas estudadas foram-se definidas diretrizes capazes
de nortear todas as intervenções feitas, criando uma linha de ações que se repetem e se tornam
facilmente reconhecíveis, tornando este projeto didático, visto que os padrões que se seguirão
para intervenção remetem à discussões a cerca do tema restauração, sobretudo de prédios em
ruínas.
1381
Diretrizes adotadas no projeto arquitetônico
Piso:
Os pisos novos são suspensos a 50 centímetros do piso existente (que por sua vez,
estão a 30 cm do nível externo) e soltos das alvenarias internas em média 20
centímetros e 150 centímetros das fachadas Noroeste e Nordeste (Figura 02). Esta
diretriz se justifica pela possibilidade de enchente do Rio Igaraçu e para que se deixe
visível o máximo possível do piso atual da ruína, podendo ser trabalhadas pesquisas
sobre arqueologia industrial nessa área;
Esse piso terá estruturação metálica completamente independente e será, em quase
totalidade do bloco antigo, em concreto pré-moldado. A opção pelos pré-moldados
proporciona uma construção seca, com menor chance de prejudicar a manutenção do
piso original;
Ainda no bloco antigo, parte da recepção e todo piso da loja e suas passarelas de
acesso terão piso em vidro laminado (de três camadas) antiderrapante e antirriscos,
permitindo transparência de forma a valorizar o piso da ruína consolidada (Figura 02);
O pátio de alimentação e o bloco novo em anexo também estarão suspensos, desta vez
a 80 cm do piso externo, para que a circulação entre essas três áreas (bloco antigo,
pátio de alimentação e bloco novo) seja acessível e mais confortável (Figura 03).
1382
Estrutura:
Toda e qualquer estruturação nova, para ambos os blocos, deverá ser do tipo metálica,
pintada na cor branca, para que, além de ser reconhecível, seja reversível;
No bloco antigo essa estruturação metálica tem função também de consolidar a ruína
existente, não apoiando sobre ela qualquer força normal ou horizontal. Para isso, uma
nova modulação foi pensada para esse bloco, estruturando a nova cobertura de forma
independente das alvenarias existentes.
Alvenarias:
Nas alvenarias do bloco antigo, completar a remoção de todo o reboco (Figura 05),
que já se perdeu em partes, deixando visível a técnica construtiva em tijolo maciço,
com as deformações que o tempo lhe provocou, porém higienizando esta fachada e
dando-lhe unidade. Esta unidade foi buscada pensando sim na estética e imagem da
ruína, mas isso tendo base na relação entre os moradores da cidade, sobretudo do
bairro, que criam na degradação provocada pela ação humana que a edificação sofreu
(pichações, sujeira, mistura de materiais de forma aleatória, etc), uma forma de repulsa
devido a marginalização do uso feito nesse espaço atualmente. Assim, justificada pela
expectativa de experiência do espaço de forma mais afetiva, repete-se: completar a
remoção de todo o reboco nas alvenarias do bloco antigo;
O trecho da alvenaria da fachada que ruiu (fachada noroeste - Figura 04) terá vedação
interna, independente, com mesmo material da cobertura: Policarbonato alveolar.
Assim, deixa-se perceptível a edificação enquanto ruína.
1383
Figuras 04 e 05: Perspectiva externa da fachada noroeste e perspectiva externa do túnel de acesso.
Cobertura:
1384
Figura 06: Perspectiva externa da edificação em ruína restaurada.
Esquadrias
Todas as novas esquadrias deverão ser confeccionadas em aço corten ou vidro, para
que seja de fácil identificação como material novo.
Considerações finais
1385
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ZEVI, Bruno. Saber ver a arquitetura. São Paulo: Martins Fontes, 1978.
1387
REVITALIZAÇÃO DO CENTRO HISTÓRICO DE PARNAÍBA: A ESTRATÉGIA
DA IMPLANTAÇÃO DE CURSOS UNIVERSITÁRIOS
Abstract: In this article we present the proposal to be developed in the Postgraduate Program in Arts,
Patrimony and Museology, Professional Master's, of the Federal University of Piauí, Meio Norte do
Brasil. The proposal is about the rehabilitation of the Miranda Osório Building, whose objective goes
beyond the restoration of the property, but a process of sensitization of the local community and of the
public and private agents, through actions such as patrimony education. When we propose its
requalification to house the Faculty of Sciences of Art and Patrimony, Federal University of the Delta
of Parnaíba (UFDPar). We also propose a series of continuous actions, promoting conditions for its
sustainability, aiming at the maintenance of the building and its conservation. The methodology used
will be based mainly on action research, as well as historical, architectural and urban studies. As a
result, it is intended to revitalize the area of the historic center where the building is located, removing
as much as possible the risks inherent in the process of establishing a university nucleus.
1388
Introdução
Este trabalho faz parte das pesquisas desenvolvidas para o projeto de Pesquisa-ação
que está sendo desenvolvido no Programa de Pós-graduação em Artes, Patrimônio e
Museologia, Mestrado Profissional, da Universidade Federal do Piauí, Meio Norte do Brasil.
Pretende-se, através de várias estratégias como a educação patrimonial e a reabilitação de
vários edifícios de grande valor histórico para a cidade de Parnaíba, revitalizar o seu Centro
Histórico.
1389
[...] tipo de pesquisa social com base empírica que é concebida e realizada
em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema
coletivo e no qual os pesquisadores e os participantes representativos da
situação ou do problema estão envolvidos de modo cooperativo ou
participativo. (THIOLLENT, 1947, p. 14)
Benévolo (1984) explica que a cidade comunica a forma física de uma sociedade, mais
durável que esta, e contém numerosas informações sobre as características da sociedade,
muitas das quais só podem ser conhecidas desta maneira e as únicas que podem ser
experimentadas. ”
1390
A pesquisa arquitetônica e urbanística nos ajuda a conhecer o edifício e o sitio onde
está inserido. A análise está focada na arquitetura, no edifício como documento, nas questões
projetuais e construtivas, como a estrutura, materiais, modulações, qualidade dos espaços
interiores, volumes e as relações entre eles, os critérios arquitetônicos.
São utilizadas nessa pesquisa todas as informações físicas e gráficas do edifício, desde
levantamentos físicos e métricos, pranchas do projeto arquitetônico, diagnóstico da edificação
feito pelo IPHAN, fotografias, etc.
Acreditamos que todos esses passos nos ajudarão a conseguir o objetivo pretendido de
forma satisfatória, afastando o máximo possível os riscos inerentes ao processo de
implantação de um núcleo universitário num centro histórico.
1391
Integrando esse Conjunto Histórico e Paisagístico encontra-se um vasto conjunto
arquitetônico de estilo eclético do século XIX e início do século XX, ao longo da Avenida
Getúlio Vargas, e no entorno da Praça Santo Antônio, marcado pelos palacetes, chalés, alguns
exemplos do art déco e do modernismo.
A consequência maior desse fenômeno para o lugar é que ocorre “um desequilíbrio
entre a dinâmica diurna da superconcentração de pessoas e atividades e o esvaziamento
noturno, comprometendo ainda a utilização e manutenção dos espaços de lazer e cultura”
(PAIVA, 2003 APUD CUNHA, 2004, p. 29) Esse fator também gera problemas de segurança
pública, afastando ainda mais as pessoas do lugar, além do aumento de depredações aos
edifícios.
Um dos projetos pesquisa do mestrado acima citado, o “Projeto Pesquisa Matriz 01:
Parnaíba – Patrimônio Nacional”, tem como objetivo a revitalização desse Conjunto Histórico
e Paisagístico da Cidade, tombado a nível federal em 2011 após a apresentação do Dossiê
1392
“Cidades do Piauí, Testemunhas da ocupação do interior do país nos séculos XVIII e XIX”
pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
1393
ou habitações estudantis, hotéis, restaurantes, bares e serviços pessoais, destinados aos
estudantes, professores e funcionários, “o charme das cidades históricas as torna atraentes
como local de moradia, contribuindo para fixar professores e alunos junto aos campi.”
(BONDUKI, 2010, p. 238)
Além de estimular a habitação dos imóveis de interesse histórico com baixa ocupação,
e potencializar, assim, os ganhos econômicos da comunidade local, a presença da
universidade dinamiza também a vida cultural e intelectual do município:
Abre-se um leque de oportunidades, como projetos de pesquisa e de
extensão universitária, palestras, debates e seminários, onde antes nada
ocorria. Os equipamentos universitários, como auditórios, biblioteca,
laboratórios e centros de convenção, tornam-se espaços que podem ser
utilizados pelas entidades da cidade, ampliando as possibilidades de vida
pública e de realização de eventos culturais e acadêmicos. Esses eventos,
além de movimentar a vida local, podem oferecer novas perspectivas de
estudo e investigação sobre o próprio patrimônio material e imaterial dos
núcleos históricos, sobretudo quando os cursos instalados têm relação com
essa temática. (BONDUKI, 2010, p. 268).
A escolha da Requalificação do Edifício Miranda Osório para abrigar a Faculdade de
Ciências da Arte e do Patrimônio, da Universidade Federal do Delta do Parnaíba (UFDPar),
onde funcionariam cursos como Arquitetura e Urbanismo, Artes Plásticas, entre outros cujo
DNA seria a educação patrimonial e a salvaguarda do Patrimônio Histórico, como uma das
estratégias para a revitalização do Conjunto Histórico localizado no Conjunto da Avenida
Getúlio Vargas, centro da cidade de Parnaíba, se justifica por todos os fatores acima descritos
somados às questões de uma aceitação do empreendimento por parte da comunidade local,
que por diversas formas já manifestou o desejo de que seja restaurado (como na Figura 01
abaixo), e também por propormos uma requalificação que mantém o uso original da
edificação, ainda que com uma nova proposta de curso.
Outros benefícios importantes que pode trazer a implantação de cursos universitários
nos Centros Históricos é que as universidades, ainda que sejam instituições locais, estão
extremamente conectadas com outros centros a nível internacional, pois circulam
pesquisadores e estudantes vindos de diferentes partes do país e do mundo; além de funcionar
como um importante elemento de divulgação das cidades e de seus bens culturais,
potencializando o turismo.
É preciso, porém, estar atentos aos riscos incluídos nesse tipo de programa de
revitalização, principalmente os riscos de descaracterização dos imóveis protegidos devido ao
aumento da demanda imobiliária, através de reformas mal executadas e improvisadas, por
exemplo. Tal fato mostra, portanto, que o trabalho dos órgãos de preservação precisa ser
muito eficiente, ampliando a fiscalização e o controle, com o intuito de compatibilizar um
possível ciclo de expansão econômica e a proteção do patrimônio.
1394
Figura 01: Fachada do Ed. Miranda Osório, com faixa pedindo “Restauração Já”
Fonte: http://www.jornaldaparnaiba.com/2012_11_18_archive.html
1395
têm de mais profundo nas suas identidades e tradições – precisam construir uma relação
produtiva, sem imposições e preconceitos, para que a cidade ingresse num novo momento,
sem negar seu passado, incorporando a sua história cultural” (BONDUKI, 2010, p. 269).
Durante muitos anos foi o endereço da burguesia refinada, que construiu ali suas
moradias e comércios, e que “estruturou o crescimento urbano de Parnaíba desde o início até
por volta do século XX, quando o crescimento urbano ultrapassou os limites definidos pelo
rio e a ferrovia, localizados um em cada ponta da avenida. ” (PINHEIRO, Áurea et al., 2010,
p. 48).
Ao longo de sua extensão podemos encontrar edificações de várias épocas e estilos,
como o colonial, encontrado principalmente entre o trecho mais próximo ao rio até
aproximadamente a altura final da Praça da Graça, como o conjunto do Porto das Barcas,
1396
onde predomina uma arquitetura mais simples e de menor porte e, adiante, destacam-se as
edificações residenciais.
As edificações de estilo eclético também estão em grande número e por toda a
extensão da avenida, e muitas se destacam por seu grande porte, completamente soltas no
terreno e com dimensões maiores que as coloniais. Junto a essas edificações encontramos
também o estilo art déco, também muito comum na cidade. Por fim, encontramos também
exemplares do estilo moderno, surgidos a partir da metade do século XX, mas em estão em
pequeno número, pois após a década de 1950 a avenida já estava praticamente toda ocupada.
Fonte: http://divulgacaoparlamentar.blogspot.com.br/2009/08/
1397
extinto no ano de 1999, para dar lugar ao curso de Direito da UESPI. (SILVA
F, 2014, p. 12)
Atualmente este edifício, que está sob o domínio da UESPI (Universidade Estadual do
Piauí), encontra-se bastante deteriorado, tendo seu acesso interditado pelo Corpo de
Bombeiros. Segundo o diagnóstico feito por Silva F (2014), as partes afetadas são reversíveis,
mas exigirão um estudo mais preciso, já que muitos espaços estavam inacessíveis durante os
trabalhos de diagnóstico. O que fica evidente neste trabalho, porém, é a urgente necessidade
da restauração do edifício, para que a degradação causada pela falta de manutenção termine
por ocasionar danos irreversíveis ao edifício.
Propomos que nele seja implantada a Faculdade de Ciências da Arte e do Patrimônio,
da Universidade Federal do Delta do Parnaíba (UFDPar), onde funcionariam cursos como
Arquitetura e Urbanismo, Artes Plásticas. A concessão de uso para uma faculdade federal se
justifica pela transferência permanente de recursos federais, maiores que os recursos
estaduais, e pela facilidade de implantação em áreas que visam interesses públicos, já que sua
gratuidade não exige a implantação onde já existe grande densidade econômica, onde é mais
fácil atrair estudantes, podendo ser instrumento de desenvolvimento local.
Figura 04: Imagens do Projeto de Restauração do IPHAN mostrando o estado atual de degradação do
Ed. Miranda Osório
Fonte: http://divulgacaoparlamentar.blogspot.com.br/2009/08/
1398
A restauração, contudo, ainda que restabeleça a edificação, não é capaz sozinha de
promover futuras manutenções, se a este bem não for atribuído um uso sustentável. Para isso,
portanto, seria necessário requalificar o Edifício Miranda Osório, ou seja, “aumentar os níveis
de qualidade de um edifício, para atender a exigências funcionais mais severas do que aquelas
para as quais foi concebido, que deve ser adotado para adaptar o edifício a uma utilização
diferente daquela para a qual foi concebido ou apenas torná-lo utilizável de acordo com
padrões atuais. ” (CONFEA - DECISÃO NORMATIVA Nº 83, DE 26 DE SETEMBRO DE
2008, p. 03).
É preciso, portanto, deixarmos clara a definição do que pretendemos, e para isso
usamos Carta da Reabilitação Urbana Integrada - Carta de Lisboa, de 1995, fruto do 1º
Encontro Luso-Brasileiro de Reabilitação Urbana, define uma linguagem comum, cuja
definição e objeto de análise é aceito em ambos países, assim, a reabilitação de um edifício é
assim descrita:
Obras que têm por fim a recuperação e beneficiação de uma construção,
resolvendo as anomalias construtivas, funcionais, higiénicas e de segurança
acumuladas ao longo dos anos, procedendo a uma modernização que
melhore o seu desempenho até próximo dos actuais níveis de exigência.
(CARTA DE LISBOA, 1995, p. 2)
Esse conceito é essencial para entender nosso objetivo de não somente recuperar o
edifício em sua forma física, mas de modernizá-lo e atribuir-lhe um uso, assegurando assim
sua sustentabilidade e conservação. Portanto, não se trata apenas de um restauro, assim
entendido:
Obras especializadas, que têm por fi m a conservação e consolidação de uma
construção, assim como a preservação ou reposição da totalidade ou de parte
da sua concepção original ou correspondente aos momentos mais
significativos da sua história. (CARTA DE LISBOA, 1995, p. 2)
Esta prática, conforme Braga (2003) recebe ainda terminologias de adaptação a novo
uso, retrofit ou reciclagem. Baseia-se no resgate de espaços pré-existentes com o intuito de
abrigar vocações distintas as quais eles foram destinados anteriormente. Hoje, é bastante
utilizada devido à garantia de permanência das edificações, evitando o risco de tornarem-se
obsoletas e permanecendo preservadas na paisagem da cidade. É importante esclarecer que
este novo uso deve encontra-se em harmonia com o meio a qual foi integrado, o que suscita
uma maior preocupação quanto à vocação e limites que tais espaços possam oferecer, caso
contrário, a ausência desta relação harmônica pode fadar a edificação a um processo de
degradação acelerado.
Varine (2013) ao colocar o patrimônio como um recurso para o desenvolvimento
justifica ainda mais a requalificação pretendida, pois vemos o patrimônio como um bem para
a comunidade, na medida em que é um meio para transformá-la e desenvolvê-la e um fator de
consciência coletiva:
1399
Toda empresa deve se apoiar em um capital inicial, o mais importante e o
mais sólido possível, o mais independente também de influências externas e
das flutuações da conjuntura. O patrimônio é esse capital, presente, ao
menos implicitamente, em toda iniciativa e em todo programa de
desenvolvimento digno deste nome. Um espaço rural ou urbano, uma
paisagem agrícola ou industrial, uma fl ora ou fauna específica, tradições e
saberes, monumentos e arquivos, lembranças carregadas de significado,
modos de vida, tudo isso pertence ao capital da comunidade em
desenvolvimento. ” (VARINE, 2013, p. 37)
A reabilitação do edifício em si mesma, porém, ainda que tenha importância relevante
para preservação e manutenção desse patrimônio, não alcançará o objetivo primordial de
pertencimento se não vier acompanhada de outras ações, como, por exemplo, a educação
patrimonial sistemática, com o objetivo de promover conhecimento e reconhecimento da
comunidade local do rico patrimônio que lhes pertence, atribuindo, assim, sentido e
significado ao tombamento.
Considerações Finais
O projeto proposto prova sua importância ao contemplar objetivos múltiplos e
essenciais para a revitalização do Centro Histórico de Parnaíba, em especial, o Conjunto da
Avenida Getúlio Vargas, como a reabilitação de um de seus edifícios tombados, marco
importante para muitos parnaibanos que já demonstraram interesse em sua restauração, além
de propiciar a sustentabilidade do edifício com a implantação de novos cursos voltados para a
área do patrimônio.
A cessão de uso para uma universidade federal também se justifica pelo aporte de
recursos federais, maiores que os estaduais, e, portanto, facilitando a manutenção e
sustentabilidade do bem.
Porém, pela dimensão e complexidade da obra, a sua concretização exigirá um grande
aporte financeiro, que acreditamos só ser possível através dos programas a nível federal, como
O Programa de Preservação do Patrimônio Histórico Urbano – Monumenta, que renovou a
forma de reabilitar os núcleos históricos no país, enfatizando intervenções em espaços
públicos e imóveis privados, com importantes desdobramentos na formulação de uma política
nacional de preservação articulada com o desenvolvimento urbano, econômico e social. Além
do apoio de políticos locais, como senadores, governador, deputados, podem ajudar ao abrir
caminho para verbas federais.
Será necessário também, para a sensibilização e o envolvimento da comunidade,
estratégias para captação de recursos humanos, através de contatos com suas associações,
reuniões, feiras, palestras, etc. Por isso, nossa proposta é trabalhar com o maior número
possível de públicos, desde a comunidade parnaibana, principalmente aqueles que habitam o
Centro Histórico e os jovens estudantes, associações comunitárias e profissionais, assim como
os agentes públicos e provados.
1400
Referências bibliográficas
BENEVOLO, Leonardo. A cidade e o arquiteto: método e história na arquitetura. São Paulo:
Perspectiva, 2006.
FONSECA, Maria Cecília. O patrimônio em processo. 3. ed. rev. ampl. Rio de Janeiro:
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2001.
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vinculada às formas tradicionais e às inovações da segunda metade do século XIX e a
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Urbanismo). Instituto Camilo Filho - ICF, Teresina, 2007.
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na paisagem da cidade na primeira metade do século XX. Teresina: EDUFPI, 2012.
1402
‘MUSEU DE PORTAS ABERTAS’: AÇÃO EDUCATIVA DO MUSEU
PARAENSE EMÍLIO GOELDI PARA POPULARIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO
CIENTÍFICO
Resumo: O presente artigo é resultado de uma pesquisa realizada entre o período de 2015-2016 no
âmbito do curso de especialização em Planejamento e Gestão do Patrimônio Cultural, com o objetivo
de analisar o programa de ação educativa "Museu de Portas Abertas" do Museu Paraense Emílio
Goeldi, localizado em Belém. O programa, sob coordenação do Serviço de Educação e Extensão
Cultural, envolve diferentes setores da instituição, desde a Coordenação de Comunicação e Extensão
até a Coordenação de Pesquisa e Pós-graduação, tornando-se um dos principais eventos do Museu, que
ocorre em 4 dias durante a comemoração do aniversário da instituição. A ação consiste em promover o
acesso da comunidade às produções científicas e ao acervo museológico do Museu Goeldi, de modo a
engendrar a aproximação do público, principalmente das instituições escolares, com o patrimônio
amazônico. Em vista disto o texto busca abordar o desenvolvimento desta ação que tornou-se ao longo
do tempo um programa-chave deste Museu para o processo de popularização da ciência. Nesse
sentido, o texto discute a participação do público, de modo a refletir sobre as dinâmicas das atividades
desenvolvidas durante o evento, tendo como mote a relação entre museu de ciência e patrimônio.
Palavras-chave: Ciência; Patrimônio; Educação.
Abstract: This article is the result of a research carried out from 2015 to 2016 in the scope of the
specialization course in Planning and Management of Cultural Heritage, with the aim of analyzing the
educational action program "Museu de Portas Abertas" of the Paraense Museum Emílio Goeldi,
located in Belém. The program, coordinated by the Education and Cultural Extension Service,
involves different sectors of the institution, from Communication and Extension Coordination to
Research and Postgraduate Coordination, becoming one of the main events, which takes place in 4
days during the commemoration of the institution's anniversary. The action consists in promoting the
community's access to the scientific productions and museum collection of the Goeldi Museum, in
order to engender the approximation of the public, mainly of the school institutions, with the
Amazonian heritage. On the strength of it, the text seeks to address the development of this action that
has become over time a key program of this Museum for the process of popularization of science. In
this sense, the text discusses the participation of the public, in order to reflect on the dynamics of the
activities developed during the event, having as motto the relation between science museum and
heritage.
Keywords: Science; Heritage; Education.
1403
Ação educativa do Museu Paraense Emílio Goeldi: O desenvolvimento do Museu de
Portas Abertas
Os museus de ciência, assim como os espaços museológicos de forma geral, são
lugares de intercâmbios, encontros e socialização de identidades no contexto da
interculturalidade. Torna-se essencial refletir, como aponta Varine-Bohan (2008), sobre qual o
lugar que a sociedade ocupa nos museus. Atualmente, as instituições museológicas estão
buscando desmitificar a visão anacrônica que foi atribuída a elas ao longo da história, cuja
imagem corresponde basicamente a um templo de guarda e de exposição de objetos intocáveis
e preciosos, cujos sentidos e significados são intrínsecos a eles. A partir do século XX foram
suscitadas várias mudanças nos discursos e práticas das instituições museológicas.
O foco dos museus não está mais centrado nos objetos e nas coleções, mas, sim nas
relações entre os grupos sociais e o patrimônio, tornando-se um fórum de interpretações,
debates e negociações. Tal fato implica uma mudança na relação entre museu e coleção, bem
como museu e público. Varine-Bohan (2008) lembra que as três maiores categorias de museus
– arte, história e ciência – estão buscando nos últimos 20 anos desenvolver dinâmicas de
mediação em consonância com as culturas locais, com intuito de servir aos grupos sociais que
não compõem habitualmente o público visitante dessas instituições.
Os museus de ciência têm importante papel como espaços não-formais de debate sobre
a ciência, voltados para a valorização da importância da função desta área do conhecimento
para a sociedade. Essas instituições devem proporcionar experiências a partir da qual o
público compreenda o processo de construção do conhecimento científico, de modo a
perceber a implicação da ciência no cotidiano.
Marandino (2000) ao discutir o papel educacional dos museus de ciência na relação
museu-escola, cita o trabalho de Cazelli para evidenciar a relevância desta tipologia de museu
para a inovação na área museológica no século XX, marcada pelo caráter público. Os museus
de ciência e tecnologia e os de história natural foram fundamentais para a transformação da
relação entre museu e público, a partir dos quais foi promovida uma participação mais direta
dos visitantes por meio de ações educativas.
1404
A maioria das tipologias de museu está buscando formas de mediação que propicie aos
públicos a criação de novos significados, interpretações e compartilhamento do patrimônio.
Nessa linha está o programa institucional do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG),
denominado Museu de Portas Abertas (MPA). Esta ação, promovida pelo Serviço de
Educação e Extensão Cultural (SEC) do referido Museu, é realizada anualmente no mês de
outubro, fazendo parte de uma extensa programação de celebração do aniversário desta
instituição. As atividades deste programa ocorrem em dois espaços físicos em períodos
diferentes – são realizados dois dias de evento no Parque Zoobotânico, e posteriormente são
realizado mais dois dias no Campus de Pesquisa.
A Coordenação de Museologia (CMU) desta instituição tem como principal função a
socialização e difusão do conhecimento científico por meio de realização de ações educativas,
expositivas e programas de capacitação, abrangendo o Núcleo de Museografia e o Serviço de
Educação e extensão Cultural. Este último foi institucionalizado na década de 1980, tendo
como função desenvolver várias ações educativas conjuntamente com os projetos
interdisciplinares do Museu que contemplam estudos sobre biodiversidade e sociodiversidade
amazônica a partir das ciências naturais e humanas. As ações educativas se desdobram em
vários formatos de comunicação pública do conhecimento científico para atender diversos
públicos – escolar, comunitário, idoso, turista, pesquisador, visitante local, entre outros.
A partir dessas diferentes demandas o SEC desenvolve atividades como – cursos para
melhor idade, visitas orientadas para escolas, programa de encontros em família, disponibiliza
coleção didática da fauna, da flora e de objetos da cultura amazônica, dentre outros ações e
projetos. As metodologias de ações educativas deste setor incluem teatro, vivências, visitas
monitoradas, encontros, festivais, gincanas e rodas de conversas, cujo intuito é estimular a
memória, socialização e valorização do patrimônio.
Dentro deste contexto o Museu de Portas Abertas iniciou em 1985 como parte do
projeto “Museu Leva Educação e Ciência à Comunidade”, quando foi instalado o Campus de
Pesquisa do Museu Goeldi no bairro da Terra Firme. O então diretor, Guilherme de La Penha,
percebeu a necessidade de realizar ações para aproximar o Museu da comunidade do entorno.
1405
Dentre essas ações era realizada a visitação de grupos de crianças do bairro da Terra Firme ao
Campus de Pesquisa e posteriormente ao Parque Zoobotânico. A proposta da visita às
instalações do Museu Goeldi como ação educativa foi uma iniciativa da própria comunidade
que queria conhecer a realidade intramuros da instituição.
As primeiras coordenações a participar da ação foram a de Zoologia e Botânica,
seguida pela coordenação de Ciências da Terra e Ecologia, abrangendo, assim, o Parque
Zoobotânico, então local de instalação desta última. Em 1986 a Biblioteca do Campus de
Pesquisa também integrou o percurso de visitação da comunidade da Terra Firme ao MPEG.
Esta atividade educativa possibilitou o acesso da comunidade no espaço museológico
exclusivo de curadores e pesquisadores – os laboratórios e salas de pesquisa, bem como
reservas técnicas.
Ao longo da trajetória percebem-se as diversas transformações do formato deste
programa, principalmente em relação ao público, posto que as atividades realizadas durante o
MPA estão voltadas para o público jovem do ensino médio e graduação. Ressalta-se que o
Museu de Portas Abertas não está mais vinculado ao projeto “Museu Leva Educação e
Ciência à Comunidade”. Ele se institucionalizou como um programa do Museu Goeldi que
abrange as duas principais coordenações da instituição – a de Comunicação e Extensão e a de
Pesquisa e Pós-graduação – fortalecendo a integração entre elas. Desse modo, o MPA envolve
todos os departamentos da instituição – coordenações de pesquisa (Ciências Humanas,
Ciências da Terra e Ecologia, Zoologia e Botânica), bem como as coordenações de
Museologia, Comunicação e de Gestão. Além disso, o Museu de Portas Abertas tem apoio de
parceiros do bairro da Terra Firme, como moradores vinculados ao Ponto de Memória da
Terra Firme, instituições escolares e centros comunitários.
A partir de 2009 o programa passou a integrar a Semana Nacional de Ciência e
Tecnologia, coordenada pelo MCTI por meio do Departamento de Difusão e Popularização da
Ciência e Tecnologia, o qual tem apoio de várias instituições de pesquisas e ensino. Esta
Semana Nacional de C&T, que ocorre todo mês de outubro, fomenta eventos em várias partes
do Brasil com o objetivo de aproximar a Ciência e Tecnologia da sociedade, realizando
1406
atividades de divulgação científica com base em metodologias que possibilitem tornar a
linguagem científica acessível à população. O projeto do atual MCTI visa motivar discussões
sobre as implicações sociais da ciência, bem como o interesse do público sobre a ciência. O
MPA, fazendo parte da agenda deste evento nacional, busca promover uma relação entre
ciência, tecnologia e sociedade em consonância com a política nacional, cujo mote está no
caráter educacional do campo científico.
A ação educativa do Museu de Portas Abertas busca aproximar a comunidade às
pesquisas realizadas na instituição, de modo a motivar a população para temas do meio
científico. A programação está voltada para promover o contato direto entre visitantes e
pesquisadores. A partir desse processo, o MPA leva a cabo a principal missão da
Coordenação de Museologia – disseminação das pesquisas produzidas no Museu Goeldi.
Os diferentes formatos das atividades desenvolvidas pelos pesquisadores e bolsista de
cada coordenação são percebidos devido, principalmente, à estrutura dos dois espaços físicos:
no PZB as coordenações apresentam-se em stands que ficam distribuídos pelo Espaço
Raízes2; no Campus de Pesquisa as visitas são realizadas nas instalações de cada coordenação,
abrangendo laboratórios, reservas técnicas e salas de pesquisa.
2
O Espaço Raízes é uma área localizada no centro do Parque Zoobotânico, na qual são realizados a maioria dos
eventos que atingem o grande público que visita este Museu. Durante o MPA são expostos objetos das coleções
didáticas de cada coordenação de pesquisa, com os quais os pesquisadores, técnicos e bolsistas apresentam seus
trabalhos.
1407
Imagem 1: Laboratório no Campus de Pesquisa do Museu Paraense Emílio Goeldi.
1408
Imagem 2: Espaço Raízes do Parque Zoobotânico do Museu Paraense
Emílio Goeldi.
Os pesquisadores e bolsistas são educadores, pois sua função não se restringe somente
a transmitir informação, mas sim, busca comunicar o público sobre o conhecimento científico
desenvolvido pela instituição, de modo a possibilitar a construção de novos conhecimentos e
significados sobre o patrimônio. Percebe-se que os entrevistados buscam valorizar as relações
sociais, as quais propiciam trocas de conhecimentos. Por meio de um processo dialógico o
pesquisador/educador tem a possibilidade de conhecer novas abordagens, rompendo fronteiras
do próprio campo científico.
Para a realização do evento há uma mobilização que inicia com uma reunião da
coordenação do evento para apresentar a proposta à Coordenação de Museologia e à
Coordenação de Comunicação e Extensão. Posteriormente, a CCE convoca a Coordenação de
Pesquisa e Pós-graduação, esta, por sua vez, fica incumbida de transmitir a convocatória às
coordenações de pesquisa. Posto isso, é agendada uma reunião entre as coordenadoras do
MPA e os pesquisadores responsáveis para discutir a metodologia e as propostas do que será
apresentado no evento. Entretanto, percebe-se, a partir desta descrição do planejamento do
programa, que não há um momento para dialogar com as comunidades envolvidas na ação, de
modo a discutir em conjunto com elas os procedimentos metodológicos e as propostas de
apresentação.
O artigo apresenta a pesquisa realizada durante o edição de 2015 do programa do
Museu de Portas Abertas e foi embasada na importância da comunidade compreender a
produção científica como um processo de valorização do patrimônio sob o contexto histórico,
1409
social e econômico. E portanto compreende-se a missão dos espaços de educação não-
formais, como o caso dos museus, voltada para provocar o debate sobre a ciência, abordando
temas como conceito de ciência, processo de produção científica e implicações da ciência no
cotidiano (JACOBUCCI, 2008). Para tanto, o presente texto busca discutir uma parte da
pesquisa referente à popularização da ciência no âmbito do MPA e a relação entre museu e
público, a partir do contexto sobre museus de ciência e patrimônio.
1410
Em consequência, o olhar do pesquisador sobre os bens culturais dos diversos povos
representados na instituição era o olhar dominante, hegemônico. Os grupos culturais eram
tratados como objeto de pesquisa, a partir dos quais extraíam informações com intuito de
produzir conhecimento sobre diferentes povos. Santos (2002) afirma que o tratamento do
outro como objeto e não como sujeito é uma marca do conhecimento-regulação, pensamento
assentado na concepção do colonialismo, que não reconhece o outro como sujeito.
Nota-se nessa abordagem que o museu de ciência, assim como as demais tipologias de
museus, favorece o caráter de patrimônio institucionalizado descrito por Fonseca (2009) como
“pesado e mudo”, ao passo que ele é tomado apenas como símbolo abstrato e distante da
sociedade da qual deveria servir como signo de identidade. De acordo com a autora a forma
de proteção do patrimônio, que consiste no restrito acesso do grande público, contribui para
que a preservação deste bem seja entendida pela grande parte da população como atividade
destinada a pessoas ditas intelectuais3. Esse fato é consequência da noção de patrimônio
cultural construída historicamente no ocidente, desde o século XVIII, a qual está atrelada à
ideia de nação, fundamentada na homogeneização dos valores nacionais; como percebe
Saladino (2011, p. 97) “a ideia de nação moderna foi seguida da ideia de um conjunto de bens
culturais que a representam e que, por isso, deve ser preservado”.
A criação de museus no século XIX faz parte das mudanças sociais e políticas da
época, cujo objetivo estava centrado na consolidação do nacionalismo pela reapropriação e
ressemantização dos bens culturais, de modo a fazer emergir um sentimento de
pertencimento. A tônica da política do patrimônio está norteada pela ideia de posse coletiva,
cuja preservação tem fins pedagógicos e científicos (SALADINO, 2011). Desde a Revolução
Francesa foi destinado ao museu a função de depósito dos bens móveis, tendo objetivo de
difundi-los ao público, com o intuito de instruir a nação, a partir do espírito enciclopedista
(CHOAY, 2006).
3
Grifo nosso.
1411
A política de proteção do bem material reduzia-se às atividades realizadas pelos
técnicos (FONSECA, 2009). Não era considerado neste processo as interpretações dos
sujeitos sociais que vivenciavam o patrimônio cotidianamente. A formulação de política
pública de preservação do patrimônio precisa ir além da discussão sobre representatividade do
bem cultural em termos de diversidade de expressões culturais, assim como da participação da
sociedade na produção e gestão do patrimônio. É imprescindível que esta política considere as
diversas formas de apropriação por parte da sociedade do universo simbólico que permeia a
linguagem do patrimônio (ibid).
Saladino (2011) atenta para o fato de que mesmo com uma intenção inclusiva, a
preservação do patrimônio segue uma lógica hierárquica e excludente, evidenciando a
arbitrariedade da prática patrimonial. Isso fica evidente na política do patrimônio do Brasil,
cuja atuação tem o objetivo de “reforçar uma identidade coletiva”, atribuindo aos bens
culturais valor simbólico nacional (Fonseca, 2009, p. 21). Tal fato implica no engessamento
do patrimônio, em vista a forjar uma autenticidade.
O acervo museológico era constituído de forma autoritária, tendo como função
representar a “comunidade imaginada” para a “construção da memória social” (SALADINO,
2011, p. 102). Obras de artes; animais empalhados; instrumentos científicos e demais artefatos
representavam o poder da sociedade ocidental e, conseguintemente, garantia o
reconhecimento, o pertencimento e a continuidade social.
No século XX emergiu um novo discurso sobre a noção de bem cultural, impulsionado
pelo advento da industrialização. O patrimônio, enquanto categoria de pensamento começou a
refletir a diversidade sociocultural, possibilitando, como afirma Hartog (2006), a ampliação
das tipologias, incluindo a criação de novos bens patrimoniais nas últimas décadas. Nesse
contexto, a memória nacional hegemônica está sendo contestada pelos grupos sociais
marginalizados, com intuito alcançar o reconhecimento e valorização de memórias plurais,
construídas a partir da perspectiva dos próprios sujeitos silenciados.
O museu enquanto lugar de representação e legitimação da memória nacional forjada
pelos grupos hegemônicos também é contestado. Esta instituição começa a descentralizar-se e
1412
voltar-se para a sociedade de modo mais abrangente, buscando representar as diversas
culturas, do passado e do presente.
Isso implica em uma gestão do bem cultural musealizado que engendre a valorização e
a discussão a partir da sua representação e socialização. Nesse sentido, torna-se
imprescindível mudar o discurso científico dos museus que por muito tempo foi
homogeneizador e ancorado na visão colonialista de compreender o outro como objeto.
1413
pesquisa, assim como é fundamental superar a concepção dos agentes sociais de que a
instituição museológica é um espaço reservado ao deleite cultural da elite. O principal
objetivo do museu deve ser o de explorar o potencial dos bens culturais, estimulando os
visitantes a desenvolver reflexões e sentidos, de modo a (re)contextualizar e (re)valorizar o
patrimônio. Isto implica em um processo de construção de conhecimento que toma como
princípio as rupturas e descontinuidades da ação interpretativa (MENESES, 2002). É desse
modo que a interpretação do patrimônio proporciona a mudança no aspecto cognitivo, afetivo
e comportamental do cidadão. Para tanto, Meneses (2002) ressalta que o museu não pode se
tornar um espaço de respostas, ele é antes um espaço transformacional, permeado de
questionamentos e reflexões.
Cabe notar nesta discussão sobre popularização que o visitante é um agente
colaborador no processo de preservação do patrimônio. O público como participante ativo no
espaço museológico exerce uma prática de cidadania, estabelecida, inclusive, como uma das
principais premissas das políticas patrimoniais no âmbito do desenvolvimento social.
1414
processo de democratização do acesso aos bens e serviços culturais e para analisar a
frequência do público visitante.
No processo de pesquisa da monografia foi consultado o livro de registro de visitas
escolares do Núcleo de Visitas Orientadas ao Parque Zoobotânico (NUVOP), vinculado ao
SEC, para ter uma base do número de participantes da edição de 2015 do MPA no PZB,
sendo verificados os grupos que visitaram o Museu Goeldi nos dias do evento – 07 e 08 de
outubro. De acordo com a contagem desses grupos a ação recebeu cerca de 07 instituições de
ensino, perfazendo aproximadamente 660 visitantes na edição correspondente ao Parque. A
tabela a seguir demonstra esta contagem de grupos visitantes.
TABELA 1 - PÚBLICOS PARTICIPANTES DO MPA.
LOCAL: Parque Zoobotânico
Dia 07/10
Nº
Instituição Local de
Visitantes
Cesupa Belém 11
Centro Infantil “O Sorriso da
Belém 12
Criança
Centro Educacional Fada
Belém 65
Madrinha
EEM de Educação Infantil
Belém 33
Honorato Figueiras
Centro de Estudos Atitude Belém 67
Unidade de Edu. Infantil Catalina
Belém 72
I
Ananin
EE Rosa Mística 109
deua
TOTAL PARCIAL 369
Dia 08/10
Unidade Pedagógica João Paulo Belém 49
1415
II
Ananin
EMEF Clodomir de Lima Begot 110
deua
Ananin
Centro Educacional Belo Saber 33
deua
Santo
EMEF Tenente Manoel Cassiano
Antônio do 36
de Limor
Tauá
Santo
Centro Educacional Aquarela da
Antônio do 63
Criança
Tauá
TOTAL PARCIAL 291
TOTAL 660
Fonte - Livro de registro do Núcleo de Visitas Orientadas ao Parque Zoobotânico (NUVOP), 2015.
1416
TABELA 2 - PÚBLICOS PARTICIPANTES DO MPA.
Dia 28/10
Nº de
Instituição Local
Visitantes
Instituto Federal do
São
Maranhão 70
Luiz/MA
IFPA/MA
UNAMA Belém 20
TOTAL PARCIAL 50
TOTAL 170
Fonte: Agendamento do Núcleo de Visitas Orientadas ao Parque Zoobotânico (NUVOP), 2015.
Cabe enfatizar que a expressiva diferença entre o número de visitantes nas duas
instalações do Museu Goeldi está relacionada ao fato de a primeira – PZB – ser uma base
aberta à visitação pública, enquanto a segunda – Campus de Pesquisa – é destinada à guarda
de acervo.
Ademais, ressalta-se que o mês de outubro o Parque Zoobotânico apresenta o maior
índice de visitação de famílias e turistas, pois é comemorado o Círio de Nossa Senhora de
Nazaré e o dia da criança. No entanto, o registro do NUVOP leva em consideração apenas o
público escolar e comunidades, não sendo possível ter o registro quantitativo do público em
geral que participa das edições realizadas no Parque. Nota-se a importância, a partir da
1417
identificação da tipologia de público participante do Museu de Portas Abertas, de analisar as
dinâmicas realizadas no processo de mediação do patrimônio.
Durante cada edição do evento o Serviço de Educação e Extensão Cultural aplica
questionários para os principais públicos envolvidos nesta ação educativa –
pesquisadores/educadores, professores e alunos. A formulação das perguntas são diferentes
para cada tipo de público, de modo a identificar as diferentes percepções sobre o programa.
Entretanto, não foi identificada durante o tempo desta pesquisa uma análise sistemática desse
questionário. Tal fato é evidente na maioria das instituições museológicas brasileiras que
embora tenham estabelecido um campo próprio, permeado de práticas e discursos específicos,
ainda tem uma necessidade de sistematizar a avaliação dos programas e ações desenvolvidos
pelos profissionais de museus (SANTOS, 2004, p. 68). Para Marandino (2008) a avaliação
permanente é fundamental para a potencialização dos processos de comunicação e educação,
ao passo que estes levantamento e sistematização das informações possibilitam a tomada de
decisão, a adequação ao objetivo da instituição e a recepção do público.
Portanto, torna-se fundamental que a equipe responsável pela avaliação do MPA
realize análise e registro sistemáticos, embasando-se em uma discussão teórico-metodológica,
cujo mote seja o processo comunicacional da construção do conhecimento, no qual a relação
entre público e museu seja fundamentada no compartilhamento dialógico.
A análise e o registro do questionário são essenciais para comparação entre as edições
deste programa. Desse modo, pode-se identificar as transformações ocorridas ao longo da
trajetória da ação, bem como engendrar a articulação da relação entre o museu como uma
instituição cultural e o museu como um espaço de aprendizado. Esse processo é essencial para
que os profissionais do Museu Goeldi compreendam a importância do programa para o
processo de educação para patrimônio e, em conseguinte, debaterem a ampliação desta ação,
tomando como perspectiva a produção científica inserida no contexto cultural.
Percebe-se, ainda em relação ao público do MPA a necessidade de realizar uma
avaliação, cujo foco de investigação seja identificar os motivos da falta de escolas que
1418
agendaram a visita, mas não a concretizaram. Na edição de 2015 foi registrada a ausência de 3
escolas que marcaram previamente a visita ao Campus de Pesquisa.
Considerando que “aprender sobre ciência é diferente de aprender ciência” (SANTOS,
(2005, p. 145), a ação educativa não pode estar voltada para formação de cientistas, posto que
ela tem como objetivo contribuir para compreensão do sujeito sobre a realidade. Faz-se
necessário deixar de tratar a ciência sob uma ótica do presentismo, na qual a percepção
interfere na compreensão do conhecimento científico como um processo complexo ligado ao
contexto histórico-social (CHASSOT, 2003).
A interpretação patrimonial no contexto científico é compreendida, nesse prisma,
como um processo comunicacional, a partir do qual a experiência do sujeito é engendrada.
Portanto, a ação interpretativa está relacionada à produção de significados, envolvendo o
visitante na dimensão afetiva. O processo de interpretação do patrimônio no espaço
museológico não se encerra ao ato de visitação, visto que ele abarca não somente os objetos
do acervo do MPEG, mas também os saberes e fazeres dos sujeitos participantes.
Esse viés educacional deve estar ancorado na compreensão de bem patrimonial em
uma perspectiva ampla, que integra o patrimônio à vida cotidiana, por meio da experiência
sociocultural dos sujeitos. O processo de educação no âmbito patrimonial está voltado para a
sensibilização da comunidade, de modo que ela se reconheça como a principal responsável
pela preservação dos bens culturais, a partir da construção do conhecimento e da apropriação
destes bens.
O planejamento de atividades educativas no museu deve reconhecer o público como
ativo na experiência de interpretação patrimonial. Essas atividades precisam motivar e
provocar os sujeitos à construção de conhecimento, a partir da participação e inter-relações de
significados.
Nesse prisma, torna-se essencial tomar o processo de construção do conhecimento, em
uma perspectiva na qual o sujeito é protagonista da própria produção de sentido ao processo
de experiência de aprendizado. Cabe considerar a produção da ciência como uma forma de
compartilhamento, tendo como base o conhecimento solidário, cuja estrutura envolve
1419
observações empíricas e trocas de saberes e fazeres na vivência cotidiana. Compreendendo
que “todo conhecimento emancipatório é autoconhecimento. Ele não descobre, cria”
(SANTOS, 2002, p. 83), a educação do patrimônio relacionada à ciência precisa resistir à
colonização da racionalidade cognitivo-instrumental, tendo, para isso, o desenvolvimento de
uma crítica ao conhecimento.
Considerações Finais
O museu não pode estar somente interessado em democratizar o acesso aos bens
culturais, mas deve estar, sobretudo, voltado para a democratização da própria produção
cultural, que engendra experiências socioculturais e laços coletivos. As ações museológicas
devem suscitar a participação ativa da comunidade, possibilitando a expressão dos diferentes
grupos sociais e a reflexão crítica. Essas ações, voltadas para a prática da preservação do
patrimônio, precisam ser desenvolvidas a partir de um processo de planejamento e
compartilhamento de experiências entre o museu e o público. Por isso, é essencial considerar
o contexto social, político e econômico da região, de modo a inclinar-se para as discussões
sobre as necessidades básicas humanas e o direito de exercício da cultura. No cerne da relação
entre patrimônio, conhecimento, ciência e tecnologia é preciso que a sociedade questione o
uso político e social do conhecimento científico, bem como o sistema econômico da
tecnologia, de modo a garantir maior autonomia social.
Nesse prisma, a instituição museológica é essencial para o desenvolvimento de ações
transdisciplinares, cujo mote seja trabalhar a ciência de forma relacional com a sociedade.
Nota-se que o processo museológico não pode dissociar exposição e reserva técnica e
tampouco programa educativo e pesquisa de campo, uma vez que a produção de
conhecimento precisa de uma constante inter-relação e discussão.
Para tanto, essa instituição necessita romper com o discurso e a prática de um centro
único de irradiação de cultura, que forja uma narrativa heroica de única guardiã da herança
cultural da sociedade. Na realidade, ela deve se constituir enquanto fórum, voltada para
problemas atuais dos grupos sociais, tendo caráter social e inclinação para a negociação e
1420
promoção do reconhecimento das diferenças socioculturais. Torna-se essencial que o museu
acompanhe os processos dinâmicos e transformacionais da cidade, constituindo-se em um
espaço permanentemente em metamorfose, atual e vivo, na medida em que busca se adequar
às demandas da sociedade.
O MPA é uma ação democrática que possibilita trocas de conhecimento sobre o
patrimônio amazônico e, em conseguinte, a produção de novos significados, a partir da
relação do saber científico com outros saberes. Ressalta-se que há uma necessidade de
sistematização e ampliação das ações desenvolvidas para uma potencialização deste
programa, a qual não pode limitar-se a uma planejamento pré-estabelecido. Ela deve romper
os próprios paradigmas e ir além dos muros do Parque Zoobotânico e do Campus de Pesquisa,
com finalidade de integrar o Museu à cidade. A pesquisa propõe pensar um Museu de Portas
Abertas que interligue os diferentes patrimônios da cidade, perpassando pelas demais
instituições museológicas em um movimento intra e extra muro.
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1421
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dossier/117-cidadaniaconhecimento-ciencia-e-educacao-cts-rumo-a-novas-
dimensoesepistemologicas>. Acessado em: 26 mar. 2015.
1423
O MUSEU CONTEMPORÂNEO
Abstract: This work intends to address the context of the emergence and development of the
contemporary museum, its challenges and perspectives, in view of the new social and cultural relations
existing in the 21st century, that radically altered the form of communication and transmission of
knowledge, bringing some concrete cases of success. In addition, it addresses the urgent need for
changes in educational institutions and their methodologies, among them the museum, for its relevant
social commitment and educational role.
Key-words: museum; participation; communication; education; constructivism.
1424
Introdução
Este trabalho pretende abordar os novos desafios e perspectivas do museu
contemporâneo, que tem a criatividade e colaboração como elementos basilares de sua
formação.
A partir dos anos 90, como um reflexo da sociedade, passou a existir a necessidade de
se aplicar um modelo de transmissão cultural nos museus, através de uma perspectiva
etnográfica, a partir de dois elementos, o museu como meio e território e os emissores e
receptores como participantes ativos. Surgiu, portanto, o que chamamos de museu
participativo.
Dessa forma, e diante dessa mudança radical de paradigma quanto à relação do museu
com seus visitantes, pelo viés do construtivismo, as características e o contexto desse museu
participativo serão analisadas neste trabalho, além das novas perspectivas e desafios do museu
contemporâneo, frente às recentes metodologias educacionais a serem introduzidas, perante
um processo intenso de democratização da informação, em uma era digital do conhecimento.
1425
Este estudo foi elaborado através de uma revisão bibliográfica, em uma análise
qualitativa, de reflexões de estudiosos da temática do museu contemporâneo e os seus novos
desafios e paradigmas em diversos aspectos, como a gestão, o papel do público, a
comunicação, a educação, o espaço, a tecnologia, a multidisciplinaridade, entre outros. Entre
os estudiosos, apresentam-se Alderoqui (2008), Gardner (2007), Hein (1998), Roussou et al.
(2015), Rubiales (2014) e Simon (2010).
1426
Ao contrário de museus concebidos como templos, os museus como espaços
de comunicação ou fóruns são concebidos como lugares de encontro, onde
as pessoas podem sentar-se para desfrutar, compartilhar ideias e discutir.
(ALDEROQUI, 2008).
1427
conhecimento enfatiza a dimensão social e coletiva do saber no espaço museal, ampliando os
diálogos e conversações com o intuito de incluir, democratizar e aprofundar as relações com
os visitantes. O intercâmbio, portanto, é a chave para compreender o fazer museístico no
século XXI.
Estamos diante de uma terceira revolução industrial, uma era digital de conhecimento
sem precedentes. E, à vista disso, a sociedade de conhecimento é também uma sociedade de
aprendizagem, devido ao importante reflexo das transformações sociais no plano educativo e
pedagógico. Nesse sentido, é imprescindível que a educação transponha as metodologias
clássicas, através de uma reflexão teórica e filosófica, considerando os dois pilares da
sociedade de conhecimento que são o acesso universal à informação e a liberdade de
expressão. Assim, o elemento primordial deixa de ser o conteúdo e passa a ser as pessoas.
Do mesmo modo, Hein (1998) propõe que o desenvolvimento da ação pedagógica nos
museus possua uma estreita relação com a visão epistemológica e o processo curatorial. Dessa
maneira, a educação pode intervir nos processos afetivos, emocionais, sociais e morais de
forma ampla e extensa, ao mesmo tempo, transmitindo grandes quantidades de informação,
mas aprofundando o essencial através de múltiplas perspectivas.
Sabe-se que, nos últimos 25 anos, as instituições educacionais têm enfrentado desafios
para se adaptar a essa nova realidade. As universidades aos poucos passam a adequar-se o
conceito de universidade aberta, remodelando significativamente a sua maneira de produzir,
difundir e aplicar o conhecimento. Mas, são os museus, as instituições que apresentam a
maior resistência, muitos permanecendo inalterados mesmo diante das transformações
drásticas pelas quais passaram as empresas e organizações governamentais e sociais.
1428
É evidente, que essas mudanças também refletiram radicalmente no desenvolvimento
do pensamento científico. Na última década do século passado, havia ainda uma visão
fragmentada da ciência, separando-a em disciplinas apartadas e avulsas. Mas, com o
incremento acelerado das novas tecnologias, esse caminho tomou rumos distintos, não mais
lineares e paralelos. Assim, para Gardner (2007), a educação do pensamento científico deve
ser integral e transdisciplinar, considerando as perspectivas e os enfoques que integram o
contexto geral da experiência humana. Ainda, para ele, o âmago deste processo reside
essencialmente na diferença entre matéria e disciplina, onde o conhecimento de alguma
matéria permanece inerte até que se possa incluí-lo em um contexto que permita abordar a
informação desde uma ou várias perspectivas em relação a outros conceitos, criando uma
estrutura transdisciplinar. Assim, a capacidade mais valorizada no século XXI seria a de
sintetização, ou seja, dominar várias perspectivas, selecionando conhecimentos de diversas
disciplinas e reuni-los em narrações, taxonomia, metáforas e teorias.
1429
Destarte, os museus possuem o desafio de abordar os temas por diferentes concepções
e interpretações, identificando, dentro dos temas apresentados, sua importância no contexto da
vida cotidiana dos visitantes e nos problemas próprios de cada comunidade. É fundamental,
também, que os museus fortaleçam as ferramentas que facilitem a aprendizagem autodidata,
que fomentem as relações hipertextuais, promovendo um espaço de imaginação, investigação
e experimentação.
Museu do Brooklyn
O Museu do Brooklyn é referência quanto a utilizar a internet como ferramenta de
comunicação e interação com o público. O museu possui perfis online na maioria das redes
sociais como Facebook, Instagram, Youtube, Tumblr e Twitter.
1430
blogue, o BKM Tech "http://www.brooklynmuseum.org/community/blogosphere", que mostra
os esforços do museu na área de tecnologia. (BROOKLYN MUSEUM, 2017).
1431
sustentabilidade dos museus, que é o panorama nacional actual, e onde a
maioria dos museus não dispõem de páginas na internet, a criação de
espaços gratuitos parece-nos uma oportunidade que os museus não podem de
modo algum menosprezar. Esta ferramenta possibilita, com toda a liberdade
e rapidez, a disponibilização na internet de informação sobre os museus e
respectivas actividades, recorrendo a poucos recursos, tanto humanos como
financeiros e sem processos administrativos de maior. Por outro lado,
permitem uma maior proximidade com os seus públicos, humanizando, de
certo modo, a relação com o utilizador. Isto é, através da permissão de
comentários, que possibilitam que o utilizador interaja deixando as suas
opiniões e que por sua vez o museu responda, elimina-se de algum modo a
distância formal de um e-mail. A facilidade de concepção, flexibilidade na
sua construção, a autogestão e a rapidez de actualização dos conteúdos
constituem mais algumas valências para a sua implementação pelos museus.
(CARVALHO, 2008).
Para a “exposição”, o público foi convidado a enviar seus vídeos preferidos e cerca de
dez mil pessoas contribuíram com a “curadoria”. A instituição verificou que houve a presença
de visitantes de outras cidades, muitas famílias, pessoas vestidas com fantasias de gato e
milhares de pessoas que simplesmente estavam curiosas para observar a experiência.
(WALKER ART CENTER, 2013).
O evento foi realizado no Open Field, que é o jardim vizinho ao centro, que, há três
anos, é usado para projetos colaborativos entre artistas e a comunidade. Lá, há desde aulas de
ioga a um clube de desenho, com oficinas semanais em parceria com um artista. O programa,
que tem estrutura muito simples, custa pouco ao museu, mas, ao mesmo tempo, é capaz de
engajar e reunir um grande número de visitante.
1432
O “Internet Cat Video Festival” chamou a atenção do público local, nacional e
internacional e da mídia, incluindo o jornal New York Times. O Walker Art Center recebeu,
inclusive, parceiros das comunidades e sociedades de resgate e proteção aos animais, como a
Feline Rescue, Animal Humane Society e The Wildcat Sanctuary.
Após o evento inaugural, o festival saiu em turnê pelos Estados Unidos, com paradas
no Museu de Artes Fotográficas em San Diego e o Museu Brooks em Memphis. O festival foi,
também, incluído em festivais de cinema, como o Festival de Curtas Independentes em Viena,
Áustria e o Festival de Cinema de Jerusalém.
O Museu de Arte Moderna da cidade de Nova York queria uma maneira interativa de
capturar a experiência de arte com os três milhões de visitantes anuais do museu.
Desenvolveu-se uma espécie de livro aberto de visitantes e o material foi usado não só para
cobrir as paredes internas da instituição, mas também como cartaz publicitário nas ruas da
cidade. (MUSEUM OF MODERN ART, 2012).
Museu do Futebol
No Brasil, são raros os exemplos de sucesso. Entre eles, está o Museu do Futebol, em
São Paulo, que acolhe regularmente reuniões dos colecionadores de camisetas dos clubes.
1433
Dessa forma, o museu, ao invés de simplesmente ignorar tais encontros, realiza e dá suporte
às reuniões, ganhando, cada vez mais, adesão do público.
Conclusão
Assim, como resultado do processo de democratização da informação, é
essencial desenvolver a capacidade de examinar, discernir e selecionar aquilo que é útil dentro
de grandes blocos de informação. Logo, é crucial que os museus estimulem a reflexão sobre o
futuro da diversidade linguística e cultural, diante da ameaça da padronização e uniformidade
que são intrínsecas à revolução da informação. Isto posto, através da realização de uma gestão
flexível e móvel nas instituições atuais, o conhecimento deixará de ser um fator de exclusão,
como era no passado, para favorecer a plena participação de todos.
Referências bibliográficas
ALDEROQUI, S. Iluminaciones, Caminos y Laberintos. In: Actas I Encontro
Iberoamericano de Museos Pedagóxicos e museólogos da educación. [S.l.: s.n.], 2008. Pp.
387-390.
1434
CARVALHO, A. Os blogues como instrumentos de trabalho para a museologia.
Informação ICOM, Lisboa, n. 1, p. 3 – 7, 2008.
GARDNER, H. Cinco mentes para o futuro. Porto Alegre: Artmed, 2007. 160 p.
MUSEUM OF MODERN ART. (Nova Iorque). I Went to MoMA and. Disponível em:
<https://www.moma.org/explore/inside_out/category/i-went-to-moma/>. Acesso em: 10 jul.
2017.
1435
PARNAÍBA: PATRIMÔNIO VIVO, CIDADE VIVA
4
De três a cinco palavras-chave, separadas por ponto e vírgula, em fonte Times New Roman, tamanho 11,
espaçamento entre linhas simples.
1436
Abstract: We present in this communication work associated with the Postgraduate Program in Arts,
Heritage and Museology (PPGAPM), Professional Master's Degree, Federal University of Piauí,
Campus Ministro Reis Veloso (CMRV), City of Parnaíba, Mid-North Brazil. It is a Matrix Project
under the title "Parnaíba: Living Heritage, Living City ", whose substrate is based on a set of
subprojects and actions, based on technical-scientific research, for social, educational and cultural
interventions in the Set Historic and Landscaped of the City of Parnaíba, which has a rich and complex
cultural heritage which includes an architectural set with varied styles of construction, which refer to
different moments of its urban constitution and evidence the mark of periods of economic
development and wealth flow Of the territory during the final period of Portuguese colonization and
beyond. The Tomb of the Historic and Landscape Set of Parnaíba dates from 2008, conducted by the
Institute of National Historical and Artistic Heritage (Iphan), after analyzing the "Cidades do Piauí
Dossier, witnesses of the occupation of the interior of the country in the XVIII and XIX centuries", by
the Advisory Council, in an extraordinary meeting for this purpose. This was followed by the
provisions of the Rules of Procedure of the Institution, after documentation sent by the President of
Iphan. Today, the tipping is a reality, but there is still a new posture before the concept of a national
heritage city, with protected assets; Public and private agents do not realize the urgency of protecting
this cultural heritage. As public agents we need to create effective instruments to deal with the
protection and revitalization of the Historic Center of Parnaíba; There is a strangeness of the resident
population and an interference of the protection organs. The historical site of Parnaíba has a peculiar
characteristic, although with many modifications in the architecture and urbanism of the city, it
remains as administrative center, commercial and residential of the municipality, there are abandoned
buildings, related to the port area, now, deactivated. The Tombamento identifies seven areas of distinct
architectural features: (1) Set of Port of Barges and Port Warehouses; (2) Set of Santo Antônio Square;
(3) Set of Getúlio Vargas Avenue; (4) Train station assembly; (5) Set of Graça Square; (6) Traditional
folk architecture and (7) Surrounding Area; Areas defined according to architectural and urban
characteristics
5 Traduçãodas palavras-chave, em inglês acadêmico, separadas por ponto e vírgula, em fonte Times New
Roman, tamanho 11, espaçamento entre linhas simples.
1437
Considerando que os conjuntos históricos ou tradicionais fazem parte do
ambiente cotidiano dos seres humanos em todos os países, constituem a
presença viva do passado que lhes deu forma, asseguram ao quadro da vida a
variedade necessária para responder à diversidade da sociedade e, por isso,
adquirem um valor e uma dimensão humana suplementares,
Considerando que os conjuntos históricos ou tradicionais constituem através
das idades os testemunhos mais tangíveis da riqueza e da diversidade das
criações culturais, religiosas e sociais da humanidade e que sua salvaguarda
e integração na vida contemporânea são elementos fundamentais na
planificação das áreas urbanas e do planejamento físico-territorial,
Considerando que, diante dos perigos da uniformização e da
despersonalização que se manifestam constantemente em nossa época, esses
testemunhos vivos de épocas anteriores adquirem uma importância vital para
cada ser humano e para as nações que neles encontram a expressão de sua
cultura e, ao mesmo tempo, um dos fundamentos de sua identidade,
Considerando que, no mundo inteiro, sob pretexto de expansão ou de
modernização, destruições que ignoram o que destroem e reconstruções
irracionais e inadequadas ocasionam grave prejuízo a esse patrimônio
histórico,
Considerando que os conjuntos históricos ou tradicionais constituem um
patrimônio imobiliário cuja destruição provoca muitas vezes perturbações
sociais, mesmo quando não resulte em perdas econômicas,
Considerando que essa situação implica a responsabilidade de cada cidadão
e impõe aos poderes públicos obrigações que só eles podem assumir,
Considerando que, diante de tais perigos de deterioração e até de
desaparecimento total, todos os Estados devem agir para salvar esses valores
insubstituíveis, adoptando urgentemente uma política global e ativa de
proteção e de revitalização dos conjuntos históricos ou tradicionais e de sua
ambiência, como parte do planejamento nacional, regional ou local.
(Disponível em:
http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Recomendacao%20de%
20Nairobi%201976.pdf. Acesso em 27 ago. 2017)
1438
1. O Território
A cidade de Parnaíba está inserida na Área de Proteção Ambiental (APA) Delta do
Parnaíba, criada por Decreto Presidencial em 28 de agosto de 1996, com uma área de 313.809
hectares, distribuída nos municípios de: Barroquinha e Chaval (Ceará); Água Doce, Araióses,
Paulino Neves e Tutóia (Maranhão); Cajueiro da Praia, Ilha Grande, Luís Correta e Parnaíba
(Piauí). Não há ainda um Plano de Manejo para a APA, um dos fatores que haja transgressões
de toda ordem, que sejam desenvolvidas atividades potencialmente poluidoras, tais como, o
crescimento desordenado das cidades, os lixões, a carcinicultura, a salineira, os
desmatamentos e queimadas, o comprometimento dos recursos hídricos, a utilização
indiscriminada de agrotóxicos e o turismo não planejado; que devem ser sustados, controlados
e monitorados. Na APA há ambientes marinho-costeiros como manguezais, praias, restingas,
dunas fixas e móveis, planícies flúvio-marinhas e lacustres, caatinga e áreas de carnaubal. Há
comunidades que vivem da pesca artesanal e cata de caranguejo.
1439
O Instituto Tartarugas do Delta – ITD6, o IBAMA e a UFPI em ação conjunta
conseguiram que o Governador do Estado do Piauí assinasse o Decreto Lei nº 6.884 de 29 de
agosto de 2016, que criou o Dia Estadual da Conservação da Biodiversidade Marinha e
Costeira e declarou Patrimônio Natural do Estado do Piauí o Peixe-Boi Marinho, as
Tartarugas Marinhas e o Cavalo-Marinho, com o compromisso de promover “[...] ações e
atividades que divulguem o potencial socioeconômico e ambiental resultantes da proteção do
ambiente natural, da cultura e da história das comunidades e suas relações com a
biodiversidade marinha, que devem representar um dos pilares da sustentabilidade do turismo
na região.” (Disponível em:
http://servleg.al.pi.gov.br:9080/ALEPI/sapl_documentos/norma_juridica/3986_texto_integral.
Acesso em 27 ago. 2017).
6
O Instituto Tartarugas do Delta - ITD é uma ONG sem fins lucrativos, que atua no trabalho de manejo e
conservação de pequenos cetáceos e quelônios marinhos, comportamento reprodutivo de tartarugas marinhas e
educação ambiental na região da APA Delta do Parnaíba.
1440
Portanto, a cidade de Parnaíba, localizada no Meio Norte do Brasil, nomeadamente,
entre o rio Igaraçu e a Serra da Ibiapaba, além das características acima, abriga ainda um
Conjunto Histórico e Paisagístico Tombado em 2008 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional - Iphan. São cinco áreas protegidas: Porto das Barcas, Praça da Graça,
Praça Santo Antônio, Estação Ferroviária e Avenida Getúlio Vargas. A catedral Nossa
Senhora Mãe da Divina Graça é um dos monumentos mais importantes da cidade onde o altar
é decorado com cerâmicas portuguesas e as imagens datam da década de 1930. É nesta igreja
que está o túmulo Simplício Dias da Silva e de outros nomes da elite de Parnaíba da época.
Figura 01: Mapa de localização do Piauí no Brasil, seguida a localização do município de Parnaíba no Estado
do Piauí. Fonte: Pamela Franco, 2016.
1441
desaguar em mar aberto das Américas. O urbanismo português, marca a natureza histórica da
cidade portuária com saída costeira, o que permitiu a adoção de modelos arquitetônicos de
litoral. Para alguns estudiosos a denominação Parnaíba é uma homenagem ao distrito Paulista
de Parnaíba, para outros é uma referência à palavra tupi que significa “grande rio não
navegável”.
A segunda metade do século XVIII marcou o início do desenvolvimento econômico
nos moldes do capitalismo colonial europeu, associado diretamente à economia do charque
trazida pelo comerciante português Domingos Dias da Silva, fundador do Porto das Barcas,
antigo Porto Salgado, ancoradouro de embarcações que levavam e traziam produtos internos,
nacionais e estrangeiros.
Os Dias da Silva foram exploradores pioneiros da região às margens do rio Igaraçu,
sobretudo nos ramos comercial e agrícola. Simplício Dias da Silva, seu filho, tornou-se rico
fazendeiro que dominou a cena política e econômica da Vila de São João da Parnaíba, chegou
a Presidente da Província do Piauí, destacou-se como maçon. Poderoso proprietário de terras e
de escravos, construiu um complexo patrimônio, dentre eles um casarão em estilo português
onde residiu com sua família. Hoje, a edificação, do século XVIII, o Casarão Simplício Dias,
é um dos imóveis tombados e restaurados com recursos federais (2010-2012) e entregue à
Prefeitura de Parnaíba (2013).
A obra foi possível em virtude de convênio entre o Iphan, Ministério da Cultura
(MinC), Prefeitura de Parnaíba, com recursos do Plano de Aceleração do Crescimento –
Cidades Históricas (PACH). A cidade de Parnaíba fora contemplada com ações do PACH,
mas não há uma política conjunta entre Município e Governo do Estado do Piauí; em 2015,
este último, anulou investimentos referentes à preservação do patrimônio histórico e cultural
da cidade; esses diálogos deveriam ser coordenados pelo Iphan, que tem inclusive um
Escritório Técnico na Cidade, nomeadamente no Casarão, e a considerar que Parnaíba é
Patrimônio Nacional; logo há responsabilidade do Iphan, vez que o Centro Histórico, abriga
mais de quinhentas edificações tombadas e praticamente todos esses imóveis estão sem uso,
abandonados, a espera de restauração, requalificação e revitalização.
1442
Em diagnóstico preliminar, percebemos que somente ações sistemáticas de natureza
educativas e socioculturais permitirão o conhecimento e reconhecimento dos residentes da
cidade do rico e complexo patrimônio cultural e natural que lhes pertencem; lhes permitirão
atribuir sentidos e significados ao tombamento.
O Projeto do Mestrado tem por objetivo permitir a formação profissional associada à
construção de projetos técnicos e sensíveis associados ao território, às pessoas, aos
patrimônios cultural e natural, elementos de fixação das populações, elementos de educação,
cultura, gerador de emprego e renda. Nesse sentido, os espaços de intervenção ligam-se
diretamente ao Conjunto Histórico e Paisagístico de Parnaíba.
O que propomos é dar a conhecer o patrimônio cultural e sensibilizar os residentes
para formas de uso e apropriação da rica e complexa paisagem cultural da cidade, do rio e
entorno, por meio de ações que possam modificar o olhar que têm sobre a cidade e a sua
lógica de crescimento. O trabalho se materializa em subprojetos e ações de intervenção direta
na cidade histórica de forma a permitir melhores condições de vida às populações residentes
por meio da valorização da cidade como Patrimônio Nacional.
O que se pretendemos é indicar possibilidades de uso dos espaços, a exemplo de boas
práticas em cidades brasileiras e estrangeiras; introduzir o conceito de centro como lugar de
moradia, educação, cultura, geração de emprego e renda; mudar a atual situação de
marginalidade das populações que habitam o Centro Histórico de Parnaíba, abandonadas a
própria sorte pelos poderes públicos, pessoas não conhecidas, invisíveis e, portanto, não
reconhecidas e não valorizadas.
Logo, indicar mudanças no que refere à preservação do patrimônio cultural é propor
qualidade de vida para as pessoas que residem e trabalham e podem vir a se divertir no Centro
da Cidade de Parnaíba, hoje, um espaço marcado pela presença do lixo (resíduos sólidos), da
insegurança e da marginalização. Devem ser implementadas ações concretas e sistemáticas,
de forma a indicar caminhos de requalificação, de revitalização da cidade tombada,
transformando-a em Cidade Viva, agradável para se viver e visitar.
1443
Esse é o conceito do Projeto do Mestrado Profissional da UFPI; revitalizar os espaços
públicos da cidade, preservar o patrimônio cultural, investir em sensibilização e formação de
gestores do patrimônio e museus, formar públicos, para que conheçam, reconheçam,
valorizem, apoiem e divulguem formas de intervenção urbana; citemos boas práticas em
cidades como Lisboa, nomeadamente no bairro Alfama, que tem atraído públicos e recursos,
agentes públicos e privados, jovens, estudantes, turistas, empreendedores, públicos que
procuram cultura, entretenimento, educação, turismo, hospedagem, habitação, comércio etc.
1444
Em resultado de um desenvolvimento mais ou menos espontâneo ou de um
projeto deliberado, todas as cidades do mundo são a expressão material da
diversidade das sociedades através da história, sendo, por esse fato,
históricas. A presente carta diz respeito, mais precisamente, às cidades
grandes ou pequenas e aos centros ou bairros históricos, com o seu ambiente
natural ou edificado, que, para além da sua qualidade como documento
histórico, expressam os valores próprios das civilizações urbanas
tradicionais. Ora, estas estão ameaçadas pela degradação, desestruturação ou
destruição, consequência de um tipo de urbanismo nascido na
industrialização e que atinge hoje universalmente todas as sociedades.
(Disponível em
<https://www.revistamuseu.com.br/site/br/legislacao/patrimonio/228-carta-
de-washington.html.> Acesso em 26 ago. 2017.)
1445
Internacional dos Monumentos e dos Sítios (ICOMOS) considerou
necessário redigir uma `Carta Internacional para a Salvaguarda das Cidades
Históricas`.
Completando a `Carta Internacional sobre a Conservação e o Restauro dos
Monumentos e Sítios` (Veneza 1964), este novo texto define os princípios e
os objetivos, os métodos e os instrumentos de ação adequados à salvaguarda
da qualidade das cidades históricas, no sentido de favorecer a harmonia da
vida individual e social, e perpetuar o conjunto de bens, mesmo modestos,
que constituem a memória da humanidade.
Como no texto da Recomendação da UNESCO `relativa à salvaguarda dos
conjuntos históricos ou tradicionais e ao seu papel na vida contemporânea´
(Varsóvia – Nairobi 1976), assim como noutros diferentes instrumentos
internacionais, entende-se por `salvaguarda das cidades históricas´ as
medidas necessárias à sua proteção, conservação e restauro, assim como ao
seu desenvolvimento coerente e à sua adaptação harmoniosa à vida
contemporânea. (Disponível em
<https://www.revistamuseu.com.br/site/br/legislacao/patrimonio/228-carta-
de-washington.html.> Acesso em 26 ago. 2017.)
1446
inclusivo, com a participação do maior número de pessoas residentes e não residentes, agentes
públicos e privados.
Evidente na Carta Internacional para a Salvaguarda das Cidades Históricas (ICOMOS
/1987), que:
A participação e o envolvimento dos habitantes da cidade são
imprescindíveis ao sucesso da salvaguarda. Devem ser procuradas e
favorecidas em todas as circunstâncias através da necessária conscientização
de todas as gerações. Não deve ser esquecido que a salvaguarda das cidades
e dos bairros históricos diz respeito, em primeiro lugar, aos seus habitantes.
As intervenções num bairro ou numa cidade histórica devem realizar-se com
prudência, método e rigor, evitando dogmatismos, mas tendo sempre em
conta os problemas específicos de cada caso particular. (Disponível em
<https://www.revistamuseu.com.br/site/br/legislacao/patrimonio/228-carta-
de-washington.html.> Acesso em 26 ago. 2017.)
Nesse sentido, este Projeto revela a nossa preocupação profunda com os destinos da
Cidade Histórica de Parnaíba, que precisa de mudanças radicais de atitude e concepção dos
residentes e demais atores sociais; daí a necessidade da organização de uma série de encontros
com representantes de diversos segmentos governamentais, entidades profissionais,
acadêmicos etc., com o apoio direto da Universidade Federal do Piauí por meio do Mestrado
Profissional.
Para assegurar a participação e a responsabilização dos habitantes, deve ser
implementado um programa de informação geral começando a sua
divulgação desde a idade escolar. A ação das associações de defesa do
patrimônio deve ser favorecida, e devem ser adotadas as medidas financeiras
apropriadas para assegurar a conservação e o restauro do parque edificado.
A salvaguarda exige que seja ministrada uma formação especializada a todos
os profissionais que nela participem. (Disponível em
<https://www.revistamuseu.com.br/site/br/legislacao/patrimonio/228-carta-
de-washington.html.> Acesso em 27 ago. 2017.)
1447
subutilizados sejam alvos de demolição, saída mais fácil para interesseiros e desavisados, mas
que coloca em risco as histórias locais, os valores, as tradições, os modos de vida.
Não desconsideramos as dinâmicas territoriais assentadas sobre o principio de que
todas as atividades econômicas um dia percam sua função de outrora; mas é preciso
ressignificar a vida urbana, a Paisagem Cultural de Parnaíba, oferecer usos aos espaços, hoje,
atravessados pelo medo, rejeição, marginalidade, uma paisagem urbana hostil a vida em
sociedade.
A UFPI por meio do Mestrado Profissional tem um papel da maior relevância, a
considerar o estranhamento e desconhecimento da comunidade no que se refere aos sentidos e
significados do tombamento; há defasagem dos técnicos do Iphan que lidam diretamente com
preservação e salvaguarda do patrimônio tombado, é preciso sair do gabinete, esclarecer e
justificar para a população a importância e natureza da salvaguarda do Conjunto Histórico e
Paisagístico de Parnaíba. Uma das ações que se pretende imediata é solicitar a aplicação da
Lei Municipal nº 1.908, de 11 de março de 2003, legislação vigente que institui o tombamento
municipal e cria o Conselho Consultivo Municipal do Patrimônio Cultural e Natural de
Parnaíba (CONSPAC); a avaliação do ponto da situação do Plano Diretor, aprovado em 05 de
janeiro de 2007, que prevê a recuperação e valorização dos patrimônios arquitetônicos,
urbanísticos e ambientais, particularmente aqueles do Centro Histórico da Cidade de Parnaíba.
O Plano Diretor delega ao Iphan a responsabilidade de elaborar normas para o Centro
Histórico da Cidade, especialmente para a área tombada, logo a municipalidade delegou ao
Iphan o papel de implantar ações necessárias à salvaguarda do patrimônio cultural.
O que propomos e estamos a realizar são subprojetos e ações que congreguem
população, poderes federais, estaduais, municipais e demais agentes públicos e privados na
gestão do patrimônio cultural tombado em benefício do interesse coletivo, acordos de
cooperação técnica entre as diversas esferas e agentes públicos e privados, pois juntos
podemos compatibilizar e distribuir os ônus e benefícios dos processos de revitalização do
Conjunto Histórico e Paisagístico de Parnaíba.
1448
Um dos subprojetos, que consideremos como uma boa prática de educação para o
patrimônio cultural, é a Feira do Patrimônio, finalista da 30ª Edição do Prêmio Rodrigo Melo
Franco de Andrade, 2017, na Categoria III – Iniciativas de excelência em promoção do
Patrimônio Cultural, promovido pelo Ministério da Cultura – MinC, por meio do Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan.
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A Feira do Patrimônio é uma ação de promoção do Patrimônio Cultural e destina-se a
diversos públicos, a agentes públicos e privadas que se interessam pelas matérias relacionadas
aos patrimônios, museus, turismo, empreendedorismos e outros negócios. Ocorre anualmente
desde 2016 no Centro Histórico de Parnaíba, Cidade Patrimônio Nacional desde 2008.
Revela-se como um espaço de sociabilidade para sensibilizar públicos variados no que refere
à responsabilidade para a preservação e proteção da paisagem cultural da cidade de Parnaíba e
das comunidades ribeirinhas e deltaicas que formam a APA Delta do Parnaíba, o único a
desaguar em mar aberto das Américas entre os Estados do Piauí e do Maranhão.
Em 2016, a 1ª edição da Feira do Patrimônio, contou com um público de mais de
3.000 (três mil) pessoas, o que permite afirmar com segurança que a Feira é capaz de
estabelecer conexões entre a Universidade, as Comunidades e Agentes Públicos e Privados,
de forma a permitir o conhecimento e reconhecimento da paisagem cultural, formar públicos
capazes de sensibilizarem-se para conhecer, reconhecer, divulgar e salvaguardar a diversidade
cultural e paisagística do Meio Norte do Brasil, sem desconsiderar o Estado do Piauí́.
Ao longo da Feira do Patrimônio ocorrem atividades de educação patrimonial e
ambiental, exposições, comércio de produtos artesanais, apresentação de projetos de
intervenção urbana, palestras, intervenções artísticas, conferências, rodas de conversa etc.
A Feira do Patrimônio tem o objetivo de realizar ações educativas, culturais, sociais
para formar uma comunidade de interesse que inclua agentes públicos e privados, residentes e
produtores culturais em defesa e salvaguarda da rica e complexa paisagem cultural do delta do
Parnaíba, Meio Norte do Brasil, nomeadamente da cidade de Parnaíba e entorno.
Temos realizado ações educativas e socioeconômicas de promoção do patrimônio
cultural; construído gradativamente uma economia da cultura, de sensibilização para a
preservação, salvaguarda e promoção da rica e complexa paisagem cultural do Delta do
Parnaíba, território vocacionado para um turismo cultural, que gere receitas e fomente
emprego e renda, de forma a fixar as populações no território ancestral.
1450
Desde a 1ª Edição da Feira em 2016, foi possível congregar agentes públicos e
privados; o que nos motiva a avançar com a integração de outros agentes, o que inclui
empresas, escritórios de arquitetura/design, operadores turísticos, projetos de base territorial,
empresas de conservação e restauro e de reabilitação urbana, universidades e centros de
formação especializada, artistas, artesãos, dentre outros.
A UFPI, o SESC, o ITD e o SEBRAE apoiam a Feira, oferecendo infraestrutura para
acolher residentes da cidade e de outros territórios que desenvolvam atividades diversas
associadas à gastronomia, música, dança, artes em palha de carnaúba, argila, linha madeira
etc.; portanto, comerciantes e consumidores, que oferecem o colorido do murmurinho e da
celebração do encontro característicos das feiras livres desde os tempos medievais. Por entre
“comes e bebes”, músicas, exposições, oficinas vivas das artes associadas à paisagem cultural
do Meio Norte, exercitamos a cidadania, a intervenção democrática na cidade de forma
educativa, encantadora e lúdica. A viabilidade da Feira do Patrimônio a cada ano requer
parcerias com agentes públicos e privados, o que inclui ONGs, Secretarias de Educação,
Cultura, Administração, Ação Social do Estado e municípios do entorno, dentre outros. Esses
parceiros têm as suas marcas associadas à Feira de Patrimônio, o que lhes confere uma
imagem de reconhecimento da sociedade pela valorização e preservação do rico e complexo
patrimônio cultural do Meio Norte do Brasil, contribuindo sobremaneira para o incremento de
produtos e serviços que disponibilizam e prestam à sociedade.
Nos dias que correm, o turismo cultural se afirma como elemento de sustentabilidade,
gerador de emprego e renda, sensibilização de turistas e comunidades residentes para o
conhecimento de produtos culturais singulares, a exemplo, aqueles associados ao Delta do
Parnaíba.
A construção sistemática de um trabalho de educação para o patrimônio, envolvendo a
sociedade em sentido amplo na preservação e salvaguarda do patrimônio cultural, material e
imaterial, é uma forma crítica, constituindo, assim, uma rede de relações diretas com as
comunidades residentes.
1451
Referências bibliográficas
PINHEIRO, Áurea da Paz. Patrimônio cultural e museus: por uma educação dos sentidos.
Educ. rev. [online]. 2015, n.58, pp.55-67. ISSN 0104-4060. http://dx.doi.org/10.1590/0104-
4060.44084.
PELEGRINI, Sandra C.A., NAGABE, Fabiane e PINHEIRO, Áurea da Paz. (Org.). Turismo
e Patrimônio em tempos de globalização. Campo Mourão: FECILCAM, 2010.
PINHEIRO, Áurea; MOURA, Cássia. Senhores de seu ofício: a arte santeira do Piauí́.
Teresina: Iphan, 2009.
1452
A FUNÇÃO EDUCATIVA DO MUSEU E SUA RELAÇÃO COM A ESCOLA
Resumo: Este trabalho trata a respeito da função educativa do museu e da importância do mesmo
estabelecer uma parceria com a escola para proporcionar uma educação integral, principalmente no
aspecto cultural. Tem-se como objetivo, discutir, de maneira geral, a função educativa dos museus e
apontar possíveis contribuições dos mesmos, em parceria com a escola, no processo de educação
patrimonial dos indivíduos através de seus acervos e de suas ações educativas. Para realização deste
estudo foi realizada uma vasta pesquisa bibliográfica em diversas fontes acerca do tema. Ao longo dos
séculos, depois de passarem por muitas transformações, os museus se tornaram importantes espaços de
educação da sociedade, principalmente com relação ao aspecto cultural e patrimonial. Estes,
desempenham importante papel no sentido de fazer com que a sociedade reconheça, apreenda, valorize
e preserve o patrimônio cultural herdado ao longo de sua história. Para que ocorra esse processo de
educação cultural, é necessário que museus e escolas estabeleçam uma parceria educacional,
respeitando suas particularidades institucionais, para proporcionar a toda sociedade meios efetivos de
acesso à cultura. A educação deve proporcionar o pleno desenvolvimento de todos os aspectos do ser
humano e garantir a oportunidade destes poderem usufruir do patrimônio cultural historicamente
herdado e reconhecê-los como sendo seus por direito.
Palavras-chave: Educação; Museu; Escola; Patrimônio; Cultura.
Abstract: This work deals with the educational function of the museum and the importance of
establishing a partnership with the school to provide a comprehensive education, especially in the
cultural aspect. The objective is to discuss, in a general way, the educational function of the museums
and to point out their possible contributions, in partnership with the school, in the process of heritage
education of the individuals through their collections and their educational actions. For the
accomplishment of this study a vast bibliographical research was carried out in diverse sources on the
subject. Over the centuries, after undergoing many transformations, museums have become important
spaces for the education of society, especially in relation to cultural and heritage aspects. They play an
important role in ensuring that society recognizes, seizes, values and preserves the inherited cultural
heritage throughout its history. In order for this process of cultural education to occur, it is necessary
for museums and schools to establish an educational partnership, respecting their institutional
characteristics, to provide effective access to culture to all society. Education must provide for the full
development of all aspects of the human being and ensure the opportunity for them to enjoy
historically inherited cultural heritage and recognize them as theirs by right.
Keywords: Education; Museum; School; Patrimony; Culture.
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Introdução
A educação sempre foi tema de muitos debates ao longo de sua história, sua
evolução foi marcada por muitas incertezas, e talvez a questão mais difícil de solucionar
girasse em torno de se definir claramente qual a função social da educação.
Especificamente no Brasil, após um longo processo de debates educacionais na
busca da solução destas questões, a Constituição Federal de 1988 veio para definir em seu
Art. 6º a educação como um “direito social” do cidadão e especificar ainda em seu Art. 205
que:
A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida
e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno
desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho. (BRASIL, 2012, p. 121).
1454
processo de educação cultural deva ocorrer, pode-se pressupor que a escola deva apresentar-se
como primeira instituição social a assumir essa responsabilidade. Porém, atualmente, sabe-se
que a educação se processa através de uma vasta rede de instituições sociais e culturais e pode
ocorrer nos mais variados espaços. A educação, nesse sentido, não se restringe mais
unicamente ao espaço da escola, embora esta, ocupe ainda, lugar de destaque dentro desse
processo.
Dessa maneira, tratando-se dos lugares fora do ambiente escolar onde o aspecto
cultural da educação possa ocorrer, os museus, por serem instituições com privilegiada
relação com o patrimônio cultural, podem se apresentar como ótima alternativa para se
trabalhar com qualidade a educação voltada para a apreensão do patrimônio cultural. O
museu, entre tantos outros conceitos, pode ser definido como:
Uma instituição sem fins lucrativos, permanente, a serviço da sociedade e
de seu desenvolvimento, e aberta ao público, que adquire, conserva, estuda,
expõe e transmite o patrimônio material e imaterial da humanidade e do
seu meio, com fins de estudo, educação e deleite. (ICOM, 2007 apud
SOARES; CURY, 2013, p. 64).
Os museus são considerados locais de educação não formal, pois mesmo não
apresentando as características da educação formal, o seu trabalho educativo apresenta um
planejamento definido, além de possuir objetivos claros de aprendizagem. Os museus podem
realizar parcerias com instituições formais de ensino e se tornarem locais permanentemente
integrantes do processo de educação. Essa parceria é de extrema importância para o
cumprimento dos seus objetivos educacionais enquanto instituição cultural de destaque. A
educação é um processo contínuo e integrado, então quanto maior aproximação existir entre
educação formal e não formal, melhores serão os resultados na busca de uma educação
integral.
Nesta discussão, o debate gira em torno da função educativa do museu e sobre
como este, em parceria com a escola, pode apresentar-se como um espaço privilegiado de
educação e cultura da sociedade por meio da promoção da educação patrimonial. Desse modo,
em um primeiro momento, a partir de conceitos de cultura e educação, será discutida a relação
1455
entre patrimônio cultural, educação patrimonial e museus. Posteriormente será abordada de
modo resumido sobre a função educativa e social dos museus. Para finalizar, será discutida a
necessidade de uma estreita relação entre museu e escola para a concretização da educação
patrimonial e acesso dos indivíduos aos bens culturais. O objetivo maior é discutir, de
maneira geral, a função educativa dos museus e apontar possíveis contribuições dos mesmos,
em parceria com a escola, no processo de educação patrimonial dos indivíduos através de seus
acervos e de suas ações educativas.
Este trabalho se caracteriza como uma pesquisa bibliográfica e documental. Para
embasar a discussão foi realizada uma vasta busca em diversas fontes acerca do tema, foram
consultados artigos, periódicos, livros, dissertações, teses de doutorado, documentos legais e
sites na internet. A relevância do estudo se apresenta no sentido de tentar contribuir no debate
e investigação a respeito da função educativa dos museus, e ainda, no esforço de suscitar
futuras discussões sobre as possíveis responsabilidades que estas instituições podem assumir
no sentido de contribuir para a democratização da cultura e permitir a toda sociedade o acesso
aos bens culturais.
Patrimônio cultural, educação patrimonial e museus
A cultura pode ser entendida como todas as ações por meio das quais os povos
expressam suas maneiras específicas de ser e de viver, e que ao longo do tempo podem
adquirir representações diferentes. A cultura é um processo eminentemente dinâmico,
transmitido através das gerações que se aprende com os ancestrais e se recria no presente.
(HORTA; GRUBERG; MONTEIRO, 1999).
Pressupõe-se que todo processo de transmissão de conhecimento entre as gerações
ocorra por meio da educação, nesse aspecto, a cultura, seria também passada de geração para
geração através do processo de educacional. Nesse sentido, “educar é construir, é libertar o
homem do determinismo, passando a reconhecer o papel da História e a questão da identidade
cultural, tanto em sua dimensão individual, como na prática pedagógica...” (VIANA 2006, p.
133 apud FREIRE, 2001). Assim, a questão cultural é considerada como um importante
aspecto no processo de educação do indivíduo, destacando-se a construção de sua identidade
1456
cultural. Sobre isto, acrescenta-se ainda que este processo dinâmico de sociabilização da
cultura, através da educação, em que se aprende a fazer parte de um grupo social, possibilita
ao indivíduo a construção de sua própria identidade (HORTA; GRUBERG; MONTEIRO,
1999).
Como visto, a cultura é transmitida de geração para geração através do processo
educacional, onde uma geração educa a seguinte e passa adiante os conhecimentos adquiridos
ao longo do tempo. Nesse caso, ocorre a transmissão de um legado que passa a se constituir
em patrimônio das gerações futuras. O termo Patrimônio vem do latim e deriva de pater, que
significa pai. Neste sentido, adquire o significado de legado, herança transmitida de pai para
filhos. (OLIVEIRA; OLIVEIRA, 2011).
Nessa perspectiva, pode-se pressupor a existência de um patrimônio cultural
passado de geração em geração, responsável pela construção da identidade cultural de um
povo. Nesse sentido, o conceito de patrimônio se amplia passando a se referir a:
Um conjunto de bens produzidos por outras gerações resultantes das
experiências coletivas ou individuais que se tornam significativas para a
história da humanidade e/ou se configuram de tamanha importância para um
grupo de habitantes de uma localidade no que diz respeito a história do lugar
e de seus sujeitos. (OLIVEIRA; OLIVEIRA, 2011, p. 40).
Dessa maneira, todo bem que for produzido por uma geração e que for
considerado de grande relevância cultural para sua identidade e para sua memória será
transmitido à geração seguinte para que esta também tenha referências culturais para a
construção e o reconhecimento de sua identidade.
Nesse sentido, todos os bens produzidos por uma geração considerados
importantes para a sua história e identidade cultural se constituirão no patrimônio cultural
deste povo e serão passados às gerações futuras. Nessa perspectiva, entende-se que
patrimônio cultural refere-se a:
Toda produção humana, de ordem emocional, intelectual, material e
imaterial, independentemente de sua origem, época, natureza ou aspecto
formal, que propicie o conhecimento e a consciência do homem sobre si
mesmo e sobre o mundo que o rodeia. (RODRIGUES, 1999 apud MELO,
2010, p.7).
1457
No Brasil, a Constituição Federal de 1988 trata a respeito do patrimônio cultural
brasileiro em seu artigo 216:
Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e
imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência
à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da
sociedade brasileira, nos quais se incluem: I –as formas de expressão; II–os
modos de criar, fazer e viver; III – as criações científicas, artísticas e
tecnológicas; IV– as obras, objetos, documentos, edificações e demais
espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V– os conjuntos
urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico,
paleontológico, ecológico e científico. (BRASIL, 2012, p. 124).
1458
A Educação Patrimonial pode ser entendida como um processo permanente e
sistemático de trabalho educacional focado no Patrimônio Cultural, tendo-o como fonte
primária de conhecimento e enriquecimento individual e coletivo. (HORTA; GRUNBERG;
MONTEIRO, 1999). Outro entendimento acrescenta que nessa educação encontra-se a fonte
primária de atuação que visa enriquecer e fortalecer o conhecimento individual e coletivo de
uma nação sobre a sua cultura, memória e identidade (MELO, 2010). A Educação
Patrimonial, por meio de ações voltadas à preservação e compreensão do Patrimônio Cultural,
transforma-se em um meio de aprendizagem, interatividade, e identidade de todos os
indivíduos pertencentes a uma mesma comunidade. Fazendo com que esses se reconheçam,
valorizem e se apropriem de toda herança cultural pertencentes a eles mesmos. (MELO,
2010).
A Educação Patrimonial pode ocorrer tanto pela educação formal quanto pela não
formal, abrangendo não só a escola, mas também diversos lugares detentores de bens culturais
que possuam objetivos educacionais baseados no patrimônio cultural. O IPHAN aponta que a
educação patrimonial esta presente em diversos lugares e atividades: em nossas casas, em
nossas danças e músicas, nas artes, nos museus, escolas e igrejas. (BRASIL, 2012)
Nesse contexto, para se trabalhar com questões patrimoniais, podem-se
desenvolver atividades de visitas a diversos locais, e entre estes, um local de destaque é o
museu, pelo fato da educação que acorre nesse local consistir em um processo de formação
integral com o patrimônio (AZEVEDO, 2010). Acrescenta-se que o museu, como uma
instituição de memória, desenvolve várias ações como coletar, registrar, catalogar, classificar,
registrar e salvaguardar objetos que apresentam testemunhos históricos que contextualizam
uma época, fatos, vidas e cotidianos, refletindo, assim, a sociedade do período
(RODRIGUES, 2010).
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própria identidade por meio da apreensão de representações de grande relevância histórica
para o seu povo, as quais foram herdadas através do tempo.
1460
[...] pela progressiva entrada de um público mais amplo, e de classes sociais
diferenciadas, nos recintos museológicos. Foi como parte de um projeto de
nação, em um esforço de modernização da sociedade, que em fins do século
XVIII o museu passou a ser considerado como um lugar do saber e da
invenção artística, de progresso do conhecimento e das artes, onde o público
poderia formar seu gosto por meio da admiração das exposições. (ALLARD;
BOUCHER, 1991 apud MARANDINO, 2008, p. 8).
É nesta fase que a preocupação com a função educativa dos museus adquire maior
relevância e provoca debates acerca da qualidade do serviço voltado para o atendimento desse
novo público que começa, a partir de então, a ter o direito de acesso aos museus. “Tais
preocupações desembocaram, na Europa, em projetos governamentais nos quais a instrução
formal obrigatória tinha como complemento “natural” as visitas a museus.” (MARANDINO,
2008, p. 9). A partir desse contexto de exaltação e reconhecimento das vantagens pedagógicas
atribuídas às visitas de escolares a museus é que surgem, dentro dessas instituições, os
chamados serviços educativos (MARANDINO, 2008). Porém, é importante ressaltar que:
1461
sendo substituídas por seleções representativas de cada temática abordada. (MARANDINO,
2008). “Apesar dessas várias modificações na forma de expor os objetos e de estabelecer um
relacionamento com o público, foi só a partir da segunda metade do século XX que os museus
passaram a ser reconhecidos formalmente como instituições intrinsecamente educativas”.
(MARANDINO, 2008, p. 10). “Essa faceta dos museus surgiu quando os serviços educativos
iniciaram o atendimento específico para os diversos públicos a partir da definição de objetivos
pedagógicos precisos” (KOPTKE, 2003 apud MARANDINO, 2008, p. 10).
No final da primeira metade do século XX, surge um novo movimento no que diz
respeito à atuação dos museus chamado de Nova Museologia. A partir desse novo
movimento, “[...] as ações educativo-culturais ganharam uma dimensão ampliada, na busca
por novos métodos e estratégias de engajar os diversos grupos sociais de forma a torná-los
corresponsáveis pela preservação de seu próprio patrimônio”. (MARANDINO, 2008, p. 10).
Com essa nova ideologia em mente, os museus deveriam se tornar locais onde o público e a
sociedade são sensibilizados e capacitados para atuar em conjunto na preservação e
valorização do seu próprio patrimônio cultural, tornando-se, assim, também, responsáveis
pela salvaguarda do legado patrimonial e cultural historicamente herdado.
Na evolução dos museus, observa-se que “o foco de atuação dos museus passou
por intensas transformações, nas quais os olhares e as práticas dos profissionais dessas
instituições foram se transferindo, paulatinamente, do cuidado exclusivo com as coleções para
a atenção com o público.” (RIVIÉRE, 1989 apud MARTINS, 2006, p.17). Nesse sentido, o
trabalho educacional dos museus deve se concentrar no esforço de conseguir tornar a
exposição acessível ao público, de maneira que este a compreenda, tornando-a significativa. É
preciso que o visitante seja ativo e engajado intelectualmente nas ações que realiza no museu
e que as visitas promovam situações de diálogo entre o público e a exposição apresentada.
(MARANDINO, 2008). Nessa perspectiva, é no momento da visita a um museu, através da
organização da exposição e da cultura material apresentada, que a instituição comunica ao seu
público que história está sendo apresentada, e essa história deve possuir “o objetivo de
1462
reconstruir e explicar a organização, funcionamento e transformação das sociedades”
(MENEZES, 1992 apud RODRIGUES 2010, p. 216).
Em sua longa trajetória histórica, “desde que o museu tornou-se público no século
XVIII é a sua função social que tem sido motivo para justificar sua existência” (BARBOSA;
OLIVEIRA; TICLE, 2010, p. 7). Nesse sentido, é importante ressaltar que:
Denota-se assim, que atualmente a função educativa deve ser parte integrante da
atuação do museu e ação indispensável a ele no cumprimento de sua função social. Nessa
perspectiva, pode-se afirmar que “O museu que não tem compromisso educativo transforma-
se em depósito de objetos, ou vitrines de um shopping center cultural” (RAMOS, 2004, p.
134) . O museu não deve se apresentar como uma instituição neutra, pois o visitante deve ser
despertado para consciência de que toda exposição possui um objetivo específico e é dotada
de sentido próprio, pois “o museu não apresenta apenas os objetos, mas o trabalho das inter-
relações dos homens com seu meio e com o fato cultural, num espaço-tempo histórico
determinado, sendo assim um agente de ação cultural e educativa” (RODRIGUES, 2010, p.
216).
Nesse sentido, a função educativa do museu deve ocorrer por meio de ações
conscientes e planejadas do seu trabalho educacional para mediar satisfatoriamente o contato
do público com a exposição apresentada, nesse contexto, o acervo do museu é o meio pelo
1463
qual essa instituição mantém uma relação com a sociedade e expressa qual é a sua missão. Em
geral, essas ações que visam proporcionar ao público a apreensão e assimilação de conceitos e
ideias presentes na exposição gerando assim um processo de educação no museu são
chamadas de ações educativas. Nessa perspectiva, as ações educativas podem ser entendidas
como:
Elementos fundamentais no processo de comunicação que, juntamente com a
preservação e a investigação, formam o pilar de sustentação de todo museu,
qualquer que seja sua tipologia. Entendidas como formas de mediação entre
o sujeito e o bem cultural, as ações educativas facilitam sua apreensão pelo
público, gerando respeito e valorização pelo patrimônio cultural.
(SUPERINTENDÊNCIA DE MUSEUS E ARTES VISUAIS DE MINAS
GERAIS apud BARBOSA; OLIVEIRA; TICLE, 2010, p. 8).
1464
suas possibilidades e/ou oportunidades de atualizar o acervo cultural.
(CAZELLI; FRANCO, 2006, p. 69)
[...] os museus vêm sendo caracterizados como locais que possuem uma
forma própria de desenvolver sua dimensão educativa. Identificados como
espaços de educação não formal, essa caracterização busca diferenciá-los das
experiências formais de educação, como aquelas desenvolvidas na escola, e
das experiências informais, geralmente associadas ao âmbito da família.
(MARANDINO, 2008, p. 12).
1465
Nesse contexto, “é importante ter a noção de que as educações não formal e
informal, em conjunto com a educação formal, devem ser vistas como um continuum e não
como categorias estanques”. (ROGERS, 2004 apud MARANDINO, 2008, p. 14). Nessa
perspectiva, é necessário que o processo educacional aconteça de maneira cíclica, englobando
os mais variados espaços e instituições a fim de proporcionar oportunidades variadas de
conhecimento ao indivíduo, para que este tenha chances de se desenvolver integralmente.
Para se planejar uma ação educativa nos museus é preciso refletir sobre o tempo
de duração da visita, o espaço disponível no museu a ser utilizado durante a mediação e os
objetos que serão apresentados durante a visita no sentido de criar possibilidades para que os
visitantes consigam analisá-los em seus aspectos materiais, históricos e simbólicos.
(BARBOSA; OLIVEIRA; TICLE, 2010).
Ainda que o museu e escola sejam formados por pessoas com culturas
institucionais e profissionais distintas, como os educadores dos museus e os professores das
1466
escolas, é necessário que se construa uma parceria educativa entre estas instituições. Para se
construir uma sólida parceria educativa entre o museu e a escola “é necessário que além dos
objetivos comuns, as identidades das instituições sejam conhecidas e preservadas pelos atores
envolvidos nessa parceria” (BARBOSA; OLIVEIRA; TICLE, 2010, p. 13).
Nesse contexto, o professor precisa ser visto como parceiro, agente
multiplicador, e não como mero receptor de produtos culturais. Por isso,
canais de comunicação e de troca de programas educativos necessitam ser
abertos. Um exemplo importante é a criação de encontros onde o museu
pode apresentar as particularidades de suas AÇÕES EDUCATIVAS, a
temática das exposições em cartaz e a rotina de seu funcionamento e os
professores falem de suas expectativas para a visita, objetivos, temas que
pretendem abordar, perfil de seus alunos, etc. Assim, em diálogo, uma real
parceria entre o museu e a escola pode ser construída. (BARBOSA;
OLIVEIRA; TICLE, 2010, p. 14).
Estima-se que no Brasil as visitas escolares representam de 50% a 90% das visitas
aos museus (KÖPTCHE, 2002), esses números demonstram o quanto esse público é
expressivo e importante para essas instituições em seus trabalhos educativos.
[...] para atingir o objetivo das atividades dos museus, isto é, adquirir,
preservar, documentar, pesquisar e comunicar para fins de educação e lazer,
interessa que o museu e a escola estabeleçam uma parceria educativa,
partilhando do poder e da responsabilidade de formar e educar. (BARBOSA;
OLIVEIRA; TICLE, 2010, p. 13).
1467
Um estudante preparado e dotado de uma “necessidade cultural” instigada pela escola terá a
possibilidade de realizar uma leitura crítica e questionadora sobre a exposição da instituição
visitada. “Os objetos presentes nos museus estão carregados de historicidade, e isto deve ser
colocado ao estudante que irá participar da visita guiada, fazendo com que ele tenha
consciência que esta atividade tem um propósito na construção de um saber histórico”.
(RODRIGUES, 2010, p. 217-218).
Espera-se, que da parceria entre museus e escolas, surja a possibilidade dos alunos
criarem uma prática autônoma de visita a museus (MARANDINO, 2008). Para isso, os
professores, por serem profundos conhecedores dos seus alunos, devem participar
efetivamente na estruturação do processo pedagógico da visita por meio da explicitação e
concordância a partir de objetivos comuns. Para que a execução da visita ocorra de maneira
satisfatória e consiga atingir os seus objetivos, ela deve se dividir em três fases: antes, durante
e depois da visita ao museu. (MARANDINO, 2008).
1468
Dando continuidade à atividade de investigação proposta em sala de aula,
deve-se entender a visita como um momento de coleta de informações. [...] é
necessário selecionar o que deve ser visto, tendo em vista o programa escolar
estabelecido, por um lado, e as coleções do museu, por outro.
(MARANDINO, 2008, p. 26).
É de grande importância ressaltar que:
No Brasil, onde pesquisas têm apontado que, na grande maioria das vezes, é
somente por meio da escola que crianças e jovens das classes econômicas menos favorecidas
têm a possibilidade de visitarem as instituições culturais (CAZELLI, 2005), essa parceria se
torna indispensável. Isto demonstra, no caso da escola, o quanto o seu papel se torna
importante na tarefa de permitir o acesso dos alunos ao patrimônio cultural e, no caso dos
1469
museus, essa informação aponta para a necessidade de proporcionar de forma qualitativa o
acesso aos bens culturais para uma maior parcela da população que não tem ou não teve
oportunidade durante sua educação formal.
Considerações Finais
Referências Bibliográficas
AZEVEDO, C. B. Educação patrimonial, ação educativa em museu e ensino-aprendizagem
em história. Akrópolis Umuarama, v. 18, n. 4, p.299-314, out./dez. 2010.
1470
BOURDIEU, P. O amor pela arte: os museus de arte na Europa e seu público. Tradução:
Guilherme João de Freitas Teixeira. São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 2003.
CAZELLI, S. FRANCO, C. O perfil das escolas que promovem o acesso dos jovens a
museus. Revista Brasileira de Museus e Museologia. n. 2, a. 2, 2006. p. 69-79.
1471
MARTINS, L. C. A relação museu/escola: teoria e prática educacionais nas visitas escolares
ao Museu de Zoologia da USP. Dissertação de mestrado. USP. 2006.
1472
REDE DE MUSEUS DELTA DO PARNAÍBA
Cassia Moura*
Ana Rita Antunes**
Werlanne Magalhães***
1473
A assinatura de um Termo de Cooperação Técnica entre esses agentes públicos e
privados permite a realização de projetos e ações sistemáticos por docentes e discentes do
Mestrado Profissional da UFPI e comunidades locais, o que inclui diretamente a Associação
de Moradores do Bairro Coqueiro da Praia, no município de Luís Correia.
1474
A missão e vocação de um museu, nesse caso de um Ecomuseu, é desenvolver
programas, ações e projetos de preservação, salvaguarda, documentação, pesquisas, educação,
comunicação etc., da paisagem cultural, o que inclui os patrimônios cultural e natural de um
dado território, neste caso da APA Delta do Parnaíba, para conhecimento, reconhecimento e
valorização, promovendo a atribuição de sentidos e significados das histórias e memórias
pelas comunidades ribeirinhas, praieiras e deltaicas, com estímulo às reflexões sobre formas
de se garantir a sustentabilidade social, ambiental e econômica, com o envolvimento das
populações residentes na constituição de uma Rede de Museu, nomeadamente, Ecomuseu,
uma natureza de museu que necessariamente deve servir como instrumento de educação às
populações, para que possam vir a participar ativamente da gestão de seus patrimônios,
entenderem e valorizarem o espaço modificado cotidianamente pelas relações que
estabelecem com o meio ambiente.
Concordamos com Varine (2013) para quem a gestão dos patrimônios deve ser feita o
mais próxima dos criadores e detentores dos patrimônios, o que justifica a nossa opção pela
Museologia e Inovação Social, que valorizam as ações socioeducativas nos museus,
entendidos como espaços de educação não-formal, de ações culturais e de comunicação,
geradores de conhecimento, reconhecimento individual e coletivo, de valorização de culturas
e identidades, de estímulo à consciência crítica, afirmando olhares e reflexões que permitem
desconstruir os discursos oficiais, que negam as memórias de grupos minoritários e/ou
marginalizados.
O Conselho Internacional de Museus (ICOM) define museu como “[...] uma
instituição permanente sem fins lucrativos, ao serviço da sociedade e do seu desenvolvimento,
aberta ao público, que adquire, conserva, investiga, comunica e expõe o património material e
imaterial da humanidade e do seu meio envolvente com fins de educação, estudo e deleite”. O
conceito de Ecomuseu remonta aos anos 1960 e associa-se ao interesse de se refletir sobre
novos tipos de museus, concebidos em oposição ao modelo clássico e à posição central que
ocupavam as coleções naqueles museus; portanto os conceitos de Ecomuseus, museus de
sociedade, Centros de Cultura Científica e Técnica, de maneira geral, presentes na maior parte
1475
das novas proposições de museus visam colocar os patrimônios sob a gestão de agentes
públicos e privados locais, de forma a garantir o desenvolvimento sustentável.
Esse conceito de museu está atravessado pela relação entre o ser humano e sua
realidade, pela apreensão direta e sensível dos patrimônios, portanto, os objetos museais
devem permanecer em seus locais de origem, logo, os museus locais, de território, de
comunidades, ecomuseus e museus integral ou integrado, que tenham sob sua gestão coleções
do patrimônio cultural local devem representar uma tendência atual, qual seja: de participação
das comunidades nos processos de gestão.
Nesse sentido, é possível afirmar que o termo ´museu´ pode designar tanto uma
instituição localizada em uma edificação ou mesmo abrangendo um imenso território, lugares
que devem ter em suas concepções o interesse por realizar seleção, estudo e apresentação de
testemunhos materiais e imateriais do ser humano e seu ambiente de vida. A forma e as
funções de um museu variaram ao longo do tempo, desde a década de 1970, presenciamos
uma virada paradigmática nas funções dos museus, sobretudo no que refere às suas funções
sociais e relacionamentos com os públicos.
Os primeiros núcleos museológicos da Rede de Museus de Território são o Museu
Delta do Parnaíba (MUDE) e o Museu Tartarugas do Delta, que iniciarão os processos de
desenvolvimento e sustentabilidade ambiental e cultural, com a colaboração ativa das
comunidades e de agentes públicos e privados locais e regionais; com vocação e missão de
ampliar os trabalhos já desenvolvidos no território para a conservação e preservação da
biodiversidade e diversidade cultural encontrada na APA Delta do Parnaíba.
Uma Rede de Museus precisa de recursos humanos, um corpo técnico-científico
especializado para que cumpra a sua missão e vocação; um conjunto de profissionais a formar
outros profissionais para realização de pesquisas e boas práticas nas áreas de: ação educativa e
cultural; comunicação e públicos; gestão da informação: documentação e acervos etc.
Uma Rede dessa natureza define-se por um trabalho colaborativo e participativo dos
Núcleos Museológicos (Museus) para as funções básicas de equipamentos dessa natureza,
com funções de coleta, conservação, formação de coleções, pesquisa-científica, culturais-
1476
educacionais etc., nas quais a preservação e salvaguarda dos patrimônios se efetivem e
garantam a integridade física e informacional dos patrimônios integrados, frutos de uma
interação ser humano-território.
O Museu-sede – MUDE e o Ecomuseu Tartarugas do Delta (um dos Núcleos)
desenvolverão atividades associadas à um desenvolvimento sustentável, que garanta a
harmonia da paisagem cultural do Delta do Parnaíba, no contexto da Área de Proteção
Ambiental, com a colaboração ativa e sistemática das comunidades e de agentes públicos e
privados locais e regionais. Esses equipamentos têm como vocação ampliar os trabalhos já
desenvolvidos no território pelo SESC, ITD, Universidade Federal do Piauí (por meio do
PPGAPM) e a Associação de Moradores do Bairro Coqueiro da Praia (Município de Luís
Correia), na conservação, preservação, salvaguarda da biodiversidade e diversidade cultural.
A Rede de Museus de Território envolverá as comunidades residentes nos processos museais,
sobretudo, aquelas comunidades inseridas nos municípios que integram encontrada na APA
Delta do Parnaíba.
Como parte dos serviços de Educação a Ação Cultural, a Rede fará uso, dentre outras
ferramentas, de campanhas de educação ambiental e patrimônio cultural, de forma a envolver
públicos diversos, dentre eles o escolar e não escolar, associações de moradores, pescadores
etc. Portanto, a missão e vocação da Rede é desenvolver ações de registro, salvaguarda e
comunicação de acervos do patrimônio natural e cultural do território, para o conhecimento,
salvaguarda e valorização, de forma a registrar o trabalho de histórias e memórias de
comunidade ribeirinhas, praieiras e deltaicas, com estímulo às reflexões sobre a importância
dos patrimônios cultural e natural, de ações a serviço da sustentabilidade social, ambiental e
econômica, com o envolvimento das populações residentes nas ações museais e de
preservação e salvaguarda dos patrimônios.
A Rede deverá ser formada por equipamentos que visam instruir e incentivar as
populações a participarem da gestão dos seus próprios patrimônios, a entenderem e
valorizarem os espaços modificados cotidianamente por suas vivências que determinam
relações como o meio ambiente.
1477
O MUDE, na condição de Rede, adota o conceito de polinuclear, no qual cada Núcleo
(Museu) estará vocacionado para um trabalho colaborativo de reunir, conservar, investigar e
divulgar a rica e complexa paisagem cultural do Delta do Rio Parnaíba, o único a desaguar em
mar aberto das Américas, região de fronteira entre os Estados do Piauí e Maranhão.
Referências
PINHEIRO, Áurea da Paz. Patrimônio cultural e museus: por uma educação dos sentidos.
Educ. rev. [on-line]. 2015, n.58, p.55-67. ISSN 0104-4060. http://dx.doi.org/10.1590/0104-
4060.44084. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S0104-
40602015000400055&lng=pt&nrm=isso. Acesso em 30 ago. 2017.
1478
PRODUÇÃO CIENTÍFICA NA MUSEOLOGIA DA UFPA: MAPEAMENTO DOS
TEMAS DOS TCC’S DE 2013 A 2016
Abstract: The present work, based on the interdisciplinary relationship between museology
and scientometry, has the role of bringing data and reflections about the mapping carried out
in the scientific production of museology at UFPA (Federal University of Pará) through the
analysis of the TCCs from the years 2013 to 2016. The starting point for the realization of this
came from the initial idea of disseminating what was being produced in the Paraense state of
scientific knowledge in relation to Museology to the rest of the country, to scholars and
interested. Besides the possibility of bringing knowledge to the formation and to the areas of
performance available to the museologists in Pará and consequently in Brazil. Stipulating
discussions and dialogues on the importance of this knowledge.
Key-words : Museology; Teaching; Search; Scientometry.
1479
Introdução
Os primeiros debates sobre museus no Brasil teve início com a criação do Museu
Histórico Nacional (MHN) pelo decreto nº 15.596, instituição que promoveu o primeiro curso
de museus em 1932 (TANUS, 2013). A partir desse momento, cursos que visavam o ensino
da museologia ampliaram-se, alcançando e estabelecendo-se em universidades de todo País.
Dentre os cursos de graduação em museologia existentes, o da UFPA, no estado do Pará,
destaca-se por ser o único na região Norte7, tendo por base as especificidades locais como
matéria-prima e ponto de partida para a produção de conhecimento museológico diverso a
estabelecer, assim, grande importância para a produção de conhecimento científico em
museologia na universidade.
Objetivos
Metodologia
7
Lista dos estados e universidades que possuem o curso de museologia disponível em
http://cofem.org.br/?page_id=14.
8
Segundo Macias-chapula (1998: p.134) a cienciometria é um segmento da sociologia da ciência responsável por
estudar a ciência por métodos quantitativos aplicados as próprias atividades científicas incluindo a publicação,
1480
referências utilizadas em cada macrotema e conexão com estudos semelhantes em outras
regiões, além da produção de tabelas e gráficos feitas no Microsoft Office Excel para a
melhor dinamização e visualização do trabalho. Todos os TCC’s da Museologia da UFPA
estão disponibilizados na Sala de Pesquisa para os Alunos de Museologia (SPAM), local da
realização desse trabalho.
Resultados
ou seja, é um estudo feito em cima da produção científica. Sua metodologia se baseia em analises de conjunto e
de correspondência (a técnica de análise exploratória de dados).
1481
Museologia e educação - 2 1 1
Mediação 1 1 - -
Marketing em museus - - 1 -
Patrimônio 1 4 - 3
Segurança museal - 1 - -
Tabela. Macrotemas e a sua presença nos trabalhos entre os anos de 2013 a 2016-Fonte:
Arquivo Pessoal.
Marketing em
museus; 2%; 2% museal; 2%; 2%
Museologia e arqueologia
Série1;
Museologi Documentação;
Mediação
ae 13%; 13%
políticas; Museologia e Educação
4%; 4% Série1; Marketing em museus
Série1;
Estudo dePatrimônio
Museologia e
Série1; público;
arqueologia; 6%;
Museologia; 9%; 9% Segurança museal
6%
13%; 13%
Série1;
Museologia e
memória; 8%;
Gráfico 1.Macrotemas encontrados nos TCC’s de Museologia de 2013 a 2016-Fonte: Arquivo Pessoal.
1482
Feita análise em cima deste mapeamento, assim também como a análise de gráficos e
tabelas (decorrentes neste trabalho) foi possível perceber que alguns macrotemas são menos
explorados em relação aos outros. Não que estes outros que são mais frequentes não sejam
necessários, eles são fundamentais para o conhecimento museológico, principalmente se
levarmos para o contexto da região (haja vista que esses trabalhos abordam várias áreas), mas
estes que não são tão explorados, não são tão abordados quanto deveriam mediante,também, a
sua importância.Contudo,percebe-se que estes macrotemas tem ganhado espaço no decorrer
do curso,viabilizando uma valorização dos alunos em relação a estes.
Tendo em vista este panorama a importância destes macrotemas, a valorização deles
para a formação do museólogo (em que área estudar e seguir) e para diálogos museológicos
no país se faz extremamente interessante e inovador em vista dos conhecimentos e abordagens
que podem ser obtidos.
Considerações Finais
1483
Referências bibliográficas
INTERNET
http://www.ica.ufpa.br/index. php?option=com_content&view=article&id=453
http://www.fav.ufpa.br/index.php/graduacao/museologia.
http://cofem.org.br/?page_id=14.
1484
ESPAÇO PASÁRGADA: UM MUSEU-CASA SEM “BANDEIRA”?
Resumo: O Museu Casa Histórica ou Museu-Casa, entendido como um tipo de museu que pressupõe
a existência de uma tríade: edificação, coleção e um patrono; remete-nos a uma definição tradicional
desta tipologia museológica. A reflexão sobre os caminhos desejáveis na contemporaneidade para a
implementação de ações museológicas em Museus-Casas, alimenta a discussão proposta neste
trabalho. Para o desenvolvimento do tema, propõe-se a análise do Museu-casa Espaço Pasárgada,
localizado na cidade do Recife-PE. Os questionamentos levantados tendo esta instituição como
referencial, devem-se ao fato de que este Museu-casa possui um frágil e escasso acervo institucional.
Diante desta constatação, entende-se como necessária a viabilização da produção de conhecimento e o
desenvolvimento de um acervo operacional, que juntos poderiam fechar lacunas percebidas na
instituição e potencializariam as ações museológicas neste Museu-casa dedicado à memória do poeta
Manuel Bandeira. Assim, o Espaço Pasárgada enquanto um Museu-casa histórica deve se questionar
sobre como, institucionalmente, vem trabalhando o patrimônio cultural seja na obra e biografia de
Manuel Bandeira, enquanto espaço de memória, seja como um lugar simbólico na cidade e para o
imaginário coletivo objetificado na poesia produzida por seu patrono. Onde está Manuel Bandeira no
Espaço Pasárgada? E onde estamos nós, sujeitos do tempo presente, nesta instituição?
Abstract: The Historic House Museum, or Memory Museum, is understood as a type of museum
which entails the existence of a triad of building, collection and patron, and brings us a traditional
definition of this museological typology. The reflection on contemporaneous desirable pathways to
implement museological actions in memory museums fuels the discussion proposed in this study. To
develop the topic, this research suggests the analysis of the Memory Museum Espaço Pasárgada,
located in the city of Recife, Brazil. The issues brought up while using this institution as reference
concern the fact that this memory museum has a fragile and scarce institutional collection. Due to this
fact, the need for a viable knowledge production and the development of an operational collection is
made clear, as these elements could, together, fulfil gaps on the institution’s role and would strengthen
museological actions in this memory museum dedicated to the life of the poet Manuel Bandeira. Thus,
as a Historical House Museum, Espaço Pasárgada must examine, institutionally, how it has been
working with the cultural heritage of the work and biography of Manuel Bandeira, being it as a space
of memory or as a symbolic place in the city and in the collective imagination reflected on the poetry
created by its patron. Where is Manuel Bandeira at Espaço Pasárgada? And where are we, subjects of
present times, in this institution?
1485
Introdução
1486
que aqui se supõe que poderiam ser vencidas com o foco em uma tipologia de acervo, que a
autora identifica como acervo operacional. “Como acervo operacional, podemos trabalhar
com o jardim que está ao redor, o bairro no qual o Museu está inserido, a vida que está
palpitando ao redor do Museu...” (SANTOS, 1998, p.24). Essa tipologia de acervo ainda
enfrenta algumas resistências em ser incorporada e transformada em objeto de trabalho pelas
instituições denominadas tradicionais, principalmente por museus-casas históricas, porém, a
autora complementa ainda “que essa não é uma caracterização de acervo, específica a um
museu comunitário; qualquer museu pode trabalhar com um acervo institucional e com um
acervo operacional.” (SANTOS, 1998, p.24).
Diante desta constatação, tem-se a percepção de que seria fundamental para o Espaço
Pasárgada transformar a sua realidade, por meio de uma atuação conjunta desses dois tipos de
acervos; de modo a favorecer a supressão das lacunas identificadas na forma com que
instituição vem lidando com as suas ativividades-fins de museu-casa e ainda potencializando
as ações museológicas que hoje deixam de ser realizadas na instituição que é dedicada à
memória do poeta Manuel Bandeira.
Metodologia
1487
Resultados e Discussões
1488
Não estão incluídos na coleção do Espaço Pasárgada, objetos originais pertencentes ao
poeta ou aos seus avós maternos, tais como: mobiliário, quadros, livros ou outros objetos e
vestígios materiais, que geralmente são percebidos nos Museus-Casa. Tal fato contribui para
que a gestão do museu passe a enaltecer o viés institucional que se predispõe à linguagem da
literatura, abraçando pautas diversas desse segmento. Assim, a atividade museológica no
Espaço Pasárgada tem dado lugar às atividades que se dedicam à literatura, como saraus e
lançamento de publicações.
Comprova-se, assim, a permanência de um fetiche pelas musealia, ou seja, da
necessidade da posse de objetos de museu como propulsores de ações museológicas, pois
ainda se entende que:
o museu dá testemunho dos vestígios deixados por outras coleções –
precedentes ou recorrentes - , por outras encenações ou por outras
apropriações, privadas ou públicas, nas quais os objetos ressoavam de uma
forma diferente: é a partir dessa distância que se constrói ideologias do
objeto. (POULOT, 2013, p.131).
Dessa forma, tanto a gestão do museu quanto o seu público deixam de experimentar e
reformular suas memórias em torno do patrimônio cultural em sua materialidade e
imaterialidade, bem como não são persuadidos a revisitar Manuel Bandeira na história, à
refletir sobre como o patrono pensava o patrimônio em seu tempo ou ainda sobre quais
relações podemos estabelecer entre a sua obra e a contemporaneidade.
A partir da identificação de um acervo institucional que tem inviabilizado a realização
da preservação, documentação e comunicação do patrimônio (casa e patrono); e considerando
a prerrogativa do desenvolvimento de um acervo operacional que venha a permitir a criação e
o desenvolvimento de processos museológicos, que resultem em uma atitude questionadora
diante das ausências percebidas no Espaço Pasárgada, entende-se que:
1489
apenas um local destinado a abrigar objetos, mas também um local cuja
função principal é a de transformar as coisas em objetos. (DESVALLÉES,
2013, p.68)
A demanda por uma inclusão de acervo operacional evidencia que o Espaço Pasárgada
existiu antes que o Processo Museológico pudesse ocorrer, ou seja, antes que fossem
elaborados signos para além das suas obras literárias, que sejam reconhecíveis como bens
culturais associados à memória do poeta (que memórias e que bens culturais estabelecem
relação entre sujeitos e Manuel Bandeira?).
Uma outra lacuna identificada na instituição é referente à ausência de uma narrativa
sobre o edifício histórico, que na verdade se configura como o próprio bem patrimonializado e
incorporado oficialmente à memória do escritor. Essa articulação entre edifício e a biografia
de seu patrono poderia estar demarcada, por exemplo, através da inserção de fotografias
antigas, desenhos e plantas baixas do sobrado (com o mapeamento dos seus espaços de uso e
os seus correlatos simbólicos), projeção de vídeos com representações do Recife e do
contexto urbano situados na obra do poeta que, mesmo de longe da cidade, mantinha-o vivo
em suas memórias.
Como resultados da análise apresentada, mais que certezas, surgem questionamentos
que só poderiam ser elucidados após uma experimentação dos conceitos trazidos para essa
discussão. Assim, o Espaço Pasárgada enquanto um Museu-casa histórica deve se questionar
sobre como vem trabalhando o patrimônio cultural seja na obra e biografia de Manuel
Bandeira, enquanto espaço de memória, seja como um lugar simbólico na cidade e para o
imaginário coletivo objetificado na poesia produzida por Bandeira. Onde está Manuel
Bandeira no Espaço Pasárgada? E onde estamos nós, sujeitos do tempo presente, nesta
instituição?
1490
Considerações finais
Referências bibliográficas
DESVALLÉES, André; MAIRESSE, François. Conceitos-chave de Museologia. Tradução:
Bruno Brulon Soares, Marília Xavier Cury. ICOM: São Paulo, 2013. Disponível em:
<http://icom.museum/fileadmin/user_upload/pdf/Key_Concepts_of_Museology/Conceitos-
ChavedeMuseologia_pt.pdf>. Acesso em: abr. 2015.
SANTOS, Maria Célia Teixeira Moura. Museu-Casa: Comunicação e Educação. In: Anais
do II Seminário sobre Museus-Casas: Comunicação e educação. Rio de Janeiro: Fundação
Casa de Rui Barbosa, 1998, p.15-40.
1491
MUSEU PARQUE SERINGAL E A SALVAGUARDA DO PATRIMÔNIO
IMATERIAL
Mailane Maíra Messias Sampaio*
Débora Cristiane Blois Nascimento**
Resumo: Este artigo apresenta um estudo de caso sobre o Museu Parque Seringal, analisando a
legislação deste e a importância da preservação do patrimônio cultural imaterial na sociedade
contemporânea assim como dos saberes que contribuem para a formação das gerações futuras. Nossa
investigação embasa-se na contribuição de autores que discorrem sobre esses assuntos como Antônio
Augusto Arantes (2001), quando trata da dinâmica cultural e política que abrange o patrimônio
imaterial; Maria Cecília Londres Fonseca (2003) ao refletir sobre a diversidade que tange a produção
cultural brasileira, sobretudo a do passado; Ulpiano T. Bezerra de Meneses (1993), ao fomentar a
problemática da identidade cultural nos museus; dentre outros. Apoiada em sua interdisciplinaridade a
Museologia discute sobre essas questões de forma reflexiva contribuindo para a criação de novas
concepções acerca do patrimônio imaterial e de sua salvaguarda.
Palavras-chave: Museu Seringal; Patrimônio Ambiental; Patrimônio Cultural Imaterial.
Abstract: This article presents a case study about the Seringal Park Museum, analyzing his legislation
and the importance of the preservation of intangible cultural heritage in contemporary society as well
the knowledge that contribute to the formation of future generations. Our research is based on the
contribution of authors who discuss such subjects as Antônio Augusto Arantes (2001), when it
addresses the cultural and political dynamics that encompasses intangible heritage; Maria Cecilia
Londres Fonseca (2003) when reflecting on the diversity that affects the Brazilian cultural production,
especially that of the past; Ulpiano T. Bezerra de Meneses (1993), by fostering the issue of cultural
identity in museums; among others. Based on its interdisciplinarity, Museology discusses these issues
in a reflexive way, contributing to the creation of new conceptions about intangible heritage and its
safeguard.
Key-words: Seringal Museum; Environmental Patrimony; Intangible Cultural Heritage.
1492
Introdução
Ao analisar o Museu Seringal, o primeiro museu de Ananindeua, e sua contribuição
para a salvaguarda do patrimônio imaterial em território amazônico descobrimos sua
importância em ações centradas para a comunidade. O museu tem por objetivo preservar o
patrimônio histórico e cultural do ciclo da borracha na Amazônia através da divulgação dos
saberes e de visitas monitoradas para escolas e usuários em geral. Desde sua inauguração em
04 de abril de 2012 o parque, no qual está inserido o museu, abriga espaços de lazer para os
visitantes com trilhas para caminhada por entre as seringueiras, equipamentos para a prática
de atividades físicas ao ar livre, praça de alimentação, anfiteatro, viveiro, dentre outros. Sua
investigação acerca da cultura do seringueiro e seus modos de extrair o látex para a fabricação
da borracha são ensinados no Museu do Seringueiro, na Casa do Seringueiro, na Casa do
aviamento e na Casa do Senhor da Borracha, essas exposições são abertas ao público e
voltadas para a comunidade contribuindo assim para a preservação da memória na maneira de
contar e de manter a identidade cultural do município o que faz desse museu um cumpridor do
seu papel social. Para Ulpiano Meneses (1993) a construção dessa identidade cultural deve
estar vinculada obrigatoriamente a uma postura crítica dos museus:
1493
Figura 1: Entrada do Museu Parque Seringal Figura 2: Interior do Memorial do Seringal
Fonte: Adrielson Furtado Fonte: Gabriele Martins
Objetivos
Metodologia
1494
Resultados
1495
A diversidade cultural brasileira para Maria Cecília Londres Fonseca (2003) “sofre
limitações, pois há mais de sessenta anos a noção de “preservação” só reforça a preferência
por políticas de patrimônio conservadoras e elitistas”, politicas essas que estariam longe de
abarcar os grupos de tradição não europeia, como é o caso do seringueiro, no entanto ainda
segundo a autora, essa problemática já é assunto de discussão na UNESCO sendo o próprio
Parque Museu Seringal um reflexo disso com o reconhecimento de formas mais variadas de
manifestações representativas. Diversos estados, cada um com suas particularidades, visam
reconhecimento do seu patrimônio intangível como elemento constitutivo de patrimônio da
humanidade. Não apenas esse reconhecimento como também investimento para a divulgação
e a salvaguarda dessa memória, através das normas de uso público da ARIE9, é afirmado o
compromisso com o fomento e a prioridade do espaço à atividades ligadas a preservação e uso
cultural. Antônio Augusto Arantes (2001) concorda em parte com essa política
preservacionista, para ele:
No entanto para Arantes essas práticas devem ser ampliadas, ou nas palavras do autor,
“alargadas” para que assim pudesse ser abarcada a pluralidade étnica. Essa dinâmica cultural
que abrange: as danças, as festas, a música, os saberes tradicionais, dentre outros; para o autor
“revalorizam os sentidos de identidade”. Com relação à identidade traçamos um estudo de
público que mostra como a comunidade se relaciona com o Museu Seringal. No gráfico
abaixo (Fig. 3) temos as opiniões coletadas do Portal TripAdvisor no período de outubro de
9
BRASIL. PORTARIA Nº 017, DE 23 DE ABRIL DE 2012. Diário Oficial do Município de Ananindeua.
Ananindeua, 24 abr, 2012. P. 8.
1496
2013 a fevereiro de 2017, nesse recorte pudemos analisar as opiniões de 48 visitantes que
buscaram seu local de fala no ciberespaço.
Podemos perceber no gráfico que as opiniões positivas acerca do Museu Parque Seringal são
a grande maioria, os usuários relatam suas experiências durante a visitação e em especial
destacam o espaço do parquinho para as crianças, o restaurante e a tranquilidade encontrada
no Museu, além das exposições e concertos musicais; dentre as opiniões negativas estão a
questão da segurança e do abandono que para alguns usuários deve ser revista; o público que
se manifestou de forma híbrida aprova e desaprova algumas questões já citadas; e o público
neutro apenas contribui com informações sobre a localização do Parque, sem manifestar sua
opinião com relação a suas experiências.
1497
Para Andrade (2010) “Estes atores sociais ao praticarem o compartilhamento de uma
‘epistemologia comum’, contribuem para a pesquisa quotidiana e para uma rede de
conhecimentos em forma de ‘teia’ ”. Essa disseminação do conhecimento fomenta discussões
acerca do Museu Seringal e salvaguarda sua memória na rede mundial de computadores. Essa
investigação se faz necessária a partir da importância da preservação do patrimônio cultural
imaterial na contemporaneidade.
Conclusões
O Museu Parque Seringal abarca em seu perímetro um patrimônio multifacetado, mas que
consegue se conectar a partir do patrimônio imaterial (modo de fazer dos seringueiros); o
potencial do museu é explorado integralmente quando há o diálogo entre esses bens públicos.
Sendo um exemplar fruto das novas políticas patrimoniais, não volta seu olhar unicamente
para a excepcionalidade do objeto e para coleção, a ênfase do museu é a identidade e
educação voltadas à comunidade, sendo uma “boa prática” das teorias museológicas. A
maioria dos visitantes corrobora, como se pode constatar através da pesquisa de público
apresentada neste trabalho.
Referências bibliográficas
ANANINDEUA. LEI Nº 2.560, DE 29 DE MARÇO DE 2012. Acesso em:
<http://www.ananindeua.pa.gov.br/public/arquivos/legislacao/LEI_No._2.560_DE_29_DE_
MARCO_DE_2012..pdf>
1498
FONSECA, Maria Cecília Londres. Para além da pedra e cal: por uma concepção ampla de
patrimônio cultural. In: ABREU, R; CHAGAS, M. (Orgs.). Memória e patrimônio. Ensaios
contemporâneos. Rio de Janeiro: Lamparina, 2009.
1499
Museologia e
patrimônio em espaços
expandidos - Entre
cenas e narrativas: o
uso de novas
tecnologias na
comunicação museal
1500
A CONCEPÇÃO DE MUSEUS EM ESPAÇOS DIGITAIS: SOBRE AS
POSSIBILIDADES DE MUSEALIZAÇÃO ONLINE
Rita de Cassia Maia da Silva*
* Universidade Federal da Bahia
1501
As TIC para musealização: um mesmo objeto em novos suportes
As investigações da Museologia no âmbito da criação de museus digitais está se
consolidando como um campo em franco florescimento de saberes. Os avanços das Tecnologias
da Informação e Comunicação (TIC) e da cultura digital oferecem inúmeros recursos e impõem
um desafio que impulsiona instituições e comunidades de diversos tipos a projetarem suas ações
através de dispositivos e ferramentas digitais como forma de ocupação do ciberespaço.
No âmbito dos museus, pode-se facilmente observar os vários tipos de ações que
utilizam estas tecnologias: São páginas web de museus, mobiliário expositivos integrados com
tecnologia digital e inteligência artificial, realidade aumentada, bancos de dados via internet,
visitas virtuais 3D. No campo mais específico do nosso trabalho temos: exposições online,
cibermuseus, museus digitais, museus virtuais, museus on-line, etc. Por conta da explosão e
pouca definição de nomenclaturas optamos pela simplicidade e amplitude da denominação
museu digital, reconhecendo que o aspecto central do nosso trabalho serão os processos de
digitalização e comunicação online para a criação de um espaço interativo de museu que serão
acessíveis online. Para isso, assumimos o desafio de investigar e explorar as ferramentas digitais
para os processos de aquisição-recuperação, exposição, documentação, conservação da memória
da Associação Cultural Bloco Carnavalesco Ilê Aiyê, sediada na cidade de Salvador, no bairro
da Liberdade, na ladeira do Curuzú.
1502
de pensar objetos de conhecimento que devem ser encaixados, forçosamente, em
métodos pré-constituídos em narrativas bem delineadas, ou melhor, redutoras das
possibilidades de manifestação e existência como também das camadas interpretativas
de realidade.
1503
A fala social não é mais percebida como substância independente da instância
autorizada de origem, ou como uma verdade evidente, ela é multifacetada nos discursos
compostos através de diversas mídias, como uma realidade que abarca diversos
desdobramentos.
1
Optamos por não estabelecer uma arqueologia do conhecimento museológico em relação aos
termos ou tendências da museologia. A saber: museologia social, nova museologia, sociomuseologia,
museologia contemporâneas, museologia pós-moderna, visto que implicaria em discussões
complexas que não cabem neste texto. Tomamos, de uma forma genérica estes termos como
determinando uma mesma tendência.
2
Movimento Internacional pela Nova Museologia.
1504
As consequências destas mudanças acarretaram o aperfeiçoamento de
parâmetros científicos para perceber os processos de musealização enquanto atividades
de intervenção na sociedade, readequando e atualizando as atividades específicas da
cadeia operatória do museu como aquisição, documentação conservação, exposição,
pesquisa e educação à realidade contemporânea.
1505
e contemplativos, tendo em vista quer emerge a figura do público enquanto prosumer, o
usuário-protagonista. Para isso consideramos uma arquitetura informacional que
concentrasse seus esforços na produção de módulos digitais (espaços) “interativos”
como “setores do museu” seguindo uma forma de design: “Que permitiria que os
consumidores participassem do processo de produção e design para alinhar os produtos
às suas necessidades em um mercado extremamente saturado...”3(FOIS, 2015, p. 291) o
que seria característica prevista como uma decorrência dos avanços das TIC por
A concepção de espaços museológicos conflui cada vez mais para uma demanda
que não se alinha com ditames exclusivamente formalistas, tecnicistas e de imbuídos de
esteticismo autoritário ou movidos por uma lógica instrumental e controladora. Emerge
a supremacia do recurso às de políticas públicas e ferramentas de planejamento
organizacional amalgamadas com estratégias de design emocional e marketing afetivo,
associando a função material do objeto aos seus significados imateriais, nutrindo um
saber cultural de convergência que associa tecnologia, consumo e humanização.
Nenhum de nós pode saber tudo; cada um de nós sabe alguma coisa; e
podemos juntar as peças, se associarmos nossos recursos e unirmos
nossas habilidades. A inteligência coletiva pode ser vista como uma
fonte alternativa de poder midiático. Estamos aprendendo a usar esse
poder em nossas interações diárias dentro da cultura da convergência.
Neste momento, estamos usando esse poder coletivo principalmente
para fins recreativos, mas em breve estaremos aplicando essas
habilidades a propósitos mais “sérios” (JENKINS, 2015)
Na busca de um método qualitativo que ofereça recursos para a definição de
categorias, conceitos e teorias de caráter substantivo, ou seja, “representativa da
3 “thatwould allow the consumers to participate in the production and design process in order to
fine-tune products to their needs in an extremely saturated marketplace...”
1506
realidade dos sujeitos e situações estudadas” (MARTINS; THEOPHILO, 2009, p. 76) a
Grounded Theory (GT), oferece a base para que seja assumido um papel interpretativo
do museólogo diante dos atores e outros elementos implicados no fenômeno estudado.
Sendo “uma perspectiva teórica que possibilita a compreensão do modo como os
indivíduos interpretam os objetos e as outras pessoas com as quais interagem e como tal
processo de interpretação conduz o comportamento individual em situações específicas”
(CARVALHO; BORGES; REGO, 2010, p. 148). Assim, o nosso trabalho parte desde
observação e a interpretação das relações entre os envolvidos, à aplicação de métodos
quantitativos característicos das pesquisas de público aplicados presencialmente quanto
através de meio digital.
1507
para que estas instituições ganhem uma forma que se alinhe com o mundo das trocas e
das experiências humanas.
1508
troca de informações, com resultados semelhantes àqueles que são criados pelos museus
tradicionais. Segundo AGNER, (2009) a aplicação de recursos midiáticos e
tecnológicos sem considerar à lógica e o interesse dos usuários pode concorrer para
aquilo que ele denomina “arquitetura de desinformação”.
1509
esforço para solucionar as demandas da museologia contemporânea com formato
inovador de museu digital. O desafio crucial deste trabalho é a construção de uma forma
poética de pensar que entrelace o conjunto de programas museológicos à natureza dos
espaços expandidos através das TIC.
1510
O museu deve avaliar as necessidades de seus usuários e [...] prestar
serviços adaptados a diferentes categorias de usuários, como
pesquisadores, professores e estudantes, aprendizes e público em
geral. Esses serviços devem incluir uma área de pesquisa onde os
visitantes podem consultar registros [...] que dão acesso a registros de
catálogo, imagens, informações contextuais e outros recursos.
(CIDOC-ICOM, 2012)5
Adotamos este princípio e vamos mais além, buscando soluções para que o
usuário contribua com novas aquisições de acervo para museu e com a interpretação do
mesmo. Assim, a aquisição será desenvolvida através de canais/ferramentas para
doação e/ou empréstimo por parte dos usuários, com protocolos e condutas
padronizando esta atividade. Sabemos que estas atividades implicam questões relativas
aos direitos autorais e de imagem permeiam que foram inspiradas nas preocupações
sobre garantia de procedência do acervo em museus presenciais. Do mesmo modo, as
condutas para o uso de dados e imagens do museu exigem uma nova forma de projetar o
nível de pertencimento e categorias (perfis) do público–usuário de modo a pensar,
conscientizar e permitir concessão e difusão de seus interesses e dos interesses
institucionais. Ainda neste aspecto, os levantamentos realizados identificaram o
potencial enriquecedor da folksonomia nos processos de registro de acervo, adequando
os elementos de indexação do acervo para a identificação do linguajar da comunidade
envolvida. As ações colaborativas nas práticas de registro podem transformar a
documentação museológica em uma experiência de autorepresentação ao fazer aparecer
através da linguagem as categorias de valoração vigentes no ambiente da comunidade.
Além disso, o uso das categorias utilizadas pelos usuários mostrou-se um recurso que
contribui para o enriquecimento do ambiente em que o acervo é gerado ou
5
The museum should evaluate the needs of its users and where appropriate provide services
tailored to different categories of user, such as researchers, teachers and students, learners and the
general public. These services should include a research area where visitors can consult paper
records and files, together with manual or online search facilities giving access to catalogue records,
images, contextual information and other resources. (CIDOC-ICOM, 2012)
1511
compartilhado. O tagging social tornou-se um modo lúdico e inovador para promover
curadoria compartilhada e demostrou este potencial (ver caso do Brooklin Museum6).
Percebemos, também, que no meio digital existe uma correlação muito mais
estreita entre os procedimentos de documentação, conservação e segurança. Pensar a
conservação em um museu digital, implica tanto na proteção à integridade das
informações, quanto na prevenção ataques ao sistema ou servidor. Sabemos que é
necessário estabelecer, tal como em um museu presencial, rotinas de manutenção da
qualidade dos equipamentos e sistemas, prevenindo a obsolescência tecnológica e nos
aprofundando sobre os processos de avaliação de segurança dos servidores e outros
recursos de salvaguarda de acervo demandam formação contínua.
Acreditamos que uma das ações fundamentais na criação deste museu será a
recuperação digital do acervo do Ilê Aiyê disperso e degradado. Para isso, é um
procedimento comum a opção por um formato de arquivo que seja adequado às
necessidades e realidade institucional, como também serão necessárias condutas para
digitalização e guarda de originais. Apesar da facilidade em ser produzido e
comunicado, os acervos digitais demandam cuidados específicos. Atualmente existe um
comitê do CIDOC – ICOM que estuda soluções para a preservação nos processos de
documentação e acervos digitais.7
6
Este projeto foi suspenso parcialmente pelo baixo número de acesso e participação do público, mas
se tornou uma interessante experiencia e ainda pode ser acessado. Ver
https://www.brooklynmuseum.org/community/blogosphere/2014/07/22/clear-choices-in-
tagging/
7
http://network.icom.museum/cidoc/arbetsgrupper/digitalt-bevarande/L/11/
1512
É interessante ressaltar que o bloco afro Ilê Aiyê, além do desfile carnavalesco,
possui uma escola fundamental em suas instalações e desenvolve atividades variadas
como festivais, festas, seminários e cursos, em um trabalho consolidado de
ressignificação e valorização da imagem do negro e da sua herança africana, atuando no
combate ao racismo de um modo que corresponderia aos processos de musealização (ou
folkmusealização8), na medida em que adquire, conserva, comunica e educa através do
seu patrimônio, transfigurando a história em memória cuja estratégia primordial é a
criação de “sistema estético” de significação (SHANKS;TILEY, 1992, p. 68 ) podendo
ser interpretada como uma forma de imaginação museal em todos os aspectos aqui
elencados.
Apesar de não ser ou ter um museu em sua sede, o Ilê Aiyê já desenvolve visitas
guiadas, cursos, exposições, palestras e festas. Levando em consideração este aspecto,
selecionamos buscamos projetar ações que correspondam a atuação do bloco e a
demanda do público transpondo-as para o meio digital, tais como visitações virtuais à
sede do bloco, transmissão online de eventos festivos e educativos. Explorando mais
ainda as possibilidades relativas ao design interativo/colaborativo serão oferecidos
modelos (templates) para que o público construa de exposições digitais a partir dos seus
perfis, utilizando e acrescentando imagens, sons e vídeos em experiências de curadoria
compartilhada.
1513
O aspecto educativo que o público demanda também se mostrou prioritário, é
fundamental uma ferramenta para acesso à bibliografia já produzida pelo bloco
oferecendo fontes de informação e pesquisa sobre os temas de interesse dos usuários,
agregando aspectos relativos à documentação e educação. Além disso, foi detectada a
necessidade de ações educativas presenciais para o museu digital, com oficinas de
capacitação e inclusão digital para usuários e reuniões periódicas entre os gestores,
principalmente para os associados e diretores mais antigos, aqueles que mais tem a
compartilhar e em sua maioria possuem pouca familiaridade e pouco interesse em
relação a cultura digital.
9
“Segundo a lógica da economia afetiva, o consumidor ideal é ativo, comprometido emocionalmente
e parte de uma rede social. Ver o anúncio ou comprar o produto já não basta; a empresa convida o
público para entrar na comunidade da marca. No entanto, se tais afiliações incentivam um consumo
mais ativo, essas mesmas comunidades podem também tornar-se protetoras da integridade das
marcas e, portanto, críticas das empresas que solicitam sua fidelidade”.
1514
Limites e horizontes
Acreditamos que os processos de musealização digitais tem, em última instância,
o objetivo de favorecer o desenvolvimento social. No entanto, vivenciamos o fato de
que a ampliação do território simbólico e dos valores relativos à um grupo humano, uma
comunidade pela via digital demanda um alto grau de especialização e
interdisciplinaridade
Esta situação atesta que ainda existem muitas questões que este trabalho tem por
solucionar. A acessibilidade e a tecnologia inclusiva, em franco desenvolvimento ainda
demandam um investimento considerável, tanto intelectual quanto material.
1515
O fato é que este trabalho e a maioria das experiências autônomas no campo da
musealização arcam com as consequências de uma estrutura de poder engessada não só
no plano da posse e controle das narrativas, mas também na posse dos instrumentos e
aparatos materiais da tecnologia que denotam poder travestido de competência
administrativa e qualidade de produção; tanto socioeconômico, quanto político; em suas
várias esferas de reprodução de realidade.
Referências bibliográficas
1516
CIDOC – ICOM. Statement of principles of museum documentation CIDOC,
Documentation Standards Working Group. 6 June 2012
FOIS, Valentina. The Prosumer: The Key Player of the Museum of the Future.
Electronic Visualisation and the Arts (EVA 2015), London, UK, 7 - 9 July 2015.
http://dx.doi.org/10.14236/ewic/eva2015.32. P. 291-297
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 3. Ed. São Paulo: Vozes, 1989. Parte I
JENKINS, Paul. A cultura da convergência, São Paulo: Aleph, 2015. (kindle ebook)
1517
MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. São
Paulo: Cultrix, 1969
MORIN, Edgar . Ciência com consciência. 8 ed. - Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2005.
WORTS, Douglas; MORRISSEY Kristine. A Place for the Muses?: Negotiating the
Role of Technology in Museums. In: MINTZ, A; THOMAS, S (Eds.). The Virtual and
the Real: Media and the Museum Whashington,DC: AAM, 1998. p. 147-171.
Disponível em http://worldviewsconsulting.ca/wp-content/uploads/2017/06/Place-for-
the-Muses.pdf. Acesso em 15 de agosto de 2017.
1518
A CRIAÇÃO DE MUSEUS ATRAVÉS DAS TIC ENQUANTO OBJETO DE
ESTUDO DA MUSEOLOGIA
Resumo: Este trabalho versa sobre a função dos museus no mundo contemporâneo tendo em
vista dois elementos fundamentais: os avanços das tecnologias da informação e comunicação e
o objeto de estudo da museologia. Apresentamos um panorama que demanda o cumprimento do
papel dos museus como agentes de transformação social e a necessidade de atrair e agregar o
público nas ações museológicas fazendo com que ele se identifique com a instituição e os seus
acervos. Nesta perspectiva e utilizando o exemplo da arte urbana, desenvolvemos uma breve
análise que ponta os processos de musealização e a sua relevância no bom aproveitamento dos
potenciais para a criações de museus no ciberespaço.
Abstract: This work deals with the role of museums in the contemporary world in view of two
fundamental elements: the advances of information and communication technologies and the
object of study of museology. We present a panorama that demands the fulfillment of the role of
museums as agents of social transformation and the need to attract and aggregate the public in
museological actions, making it identify with the institution and its collections. In this
perspective and using the example of urban art, we have developed a brief analysis that
highlights musealization processes and their relevance to the good use of potential for museum
creations in cyberspace.
1519
O objetivo dos museus contemporâneos
1520
Neste aspecto enfatizamos o objeto de estudo da museologia como um fazer que
integra o planejamento dos museus, os cuidados com as coleções, mais acima de tudo a
criação de condições para que ocorra e seja potencializado em intensidade, o fenômeno
humano do desejo de preservação das memórias ancoradas em objetos (materiais ou
imateriais) que se tornam referenciais de sua identidade (pessoal ou coletiva), valores e
projetos.
1521
pauta, ou seja, percebemos que o museu é espaço para utopia. Uma das considerações
da Mesa Redonda de Santiago do Chile (1972) é o fato de que o museu é uma
instituição a serviço da sociedade, da qual é parte integrante e que possui em si os
elementos que lhe permitem participar na formação da consciência das comunidades as
quais deve servir, contribuindo para o engajamento destas comunidades em
intervenções na realidade, situando-as em um quadro histórico que permita esclarecer os
problemas atuais, ligando o passado ao presente, contribuindo para as mudanças de
estrutura e de suas respectivas realidades. (MESA REDONDA DE SANTIAGO DO
CHILE, 1972, p.106)
No entanto, a imagem mental mais difundida sobre o que vem a ser museu ainda
está estigmatizados, rotulando esta instituição como um “espaço para coisas antigas” ,
isto por que ainda são muitas são as instituições que se encontram em um fazer
1522
museológico conservador, cujas ações são feitas de modo unilateral e hierarquizado em
relação ao público e as comunidades. Existe obviamente uma demanda pela mudança
desta imagem. Maria Célia T. Moura Santos (1996) afirma que “[...] é importante
considerar que, na ânsia de buscar uma pratica mais participativa, comprometida com o
desenvolvimento social e com a transformação, é preciso evitar o perigo de usar a
comunidade como cobaia para simples coleta de informação e para a pesquisa que se
esgota em si mesma. ” (SANTOS, 1996, p.18).
1523
são utilizadas em um meio acadêmico, cuja maioria é composta por homens brancos. O
mesmo acontece em muitos espaços institucionalizados de valoração e reprodução
social, porém o conhecimento acumulado nos últimos anos sobre a teoria museológica
permite-nos vislumbrar o potencial dos museus para a mudança social
1524
O primeiro é o "folheto eletrônico", essencialmente um formato de
folha de publicidade como um folheto ou apostila utilizada pelos sites
para ou para explicar aos visitantes como chegar aos locais. O
segundo foi "O Museu no Mundo Virtual", pela qual o museu real foi
projetado na web por meio de mapas, plantas baixas, imagens,
coleções on-line ou exposições, reais e virtuais. [...] Maria Piacente
identifica um terço da abordagem de páginas web museu, ‘os
verdadeiros interativos’, aqui, as páginas podem ter alguma relação
com verdadeiro museu, mas eles também podem adicionar ou
reinventar o museu e até mesmo convidar o público a fazê-lo. Muitas
vezes, esses sites se diferenciam na web a partir de museu pelo seu
nome, especialmente os dos centros de ciência. (PIACENTE apud
Teather, 1996. Tradução nossa10)
Ao analisarmos a utilização do ciberespaço pelos museus, podemos citar alguns
que se adequam a estas definições, como o Museu da Escrita (figura 1), localizado em
Fortaleza, que possui página na rede social Facebook (figura 2), e posta fotos das suas
visitas guiadas, sejam elas feitas para grupos ou para visitantes avulsos, enquanto ocorre
ou ao seu término. Na visita feita ao espaço fomos questionados sobre a postagem das
imagens na rede social, com resposta positiva, o registro foi publicado.
Propomos a criação de um Museu para a Arte Urbana feita por Mulheres. Neste
espaço, assim como em outros que utilizam da internet para difusão de informação, será
possível a previsão e planejamento colaborativo de atividades por sujeitos os mais
variados que vivem, produzem e possuem interesses em torno do tema.
10
"The first was the "Electronic Brochure", essentially an advertising sheet format like the brochure or
handout used at sites or to get visitors to come to sites. The second was "The Museum in the Virtual
World" whereby the actual museum was projected onto the web by means of maps, floorplans, images,
online collections or exhibits, both real and virtual. […]Maria Piacente identifies a third of approach to
museum web pages, ‘The True Interactives’. Here, the pages may have some relation to real museum but
they also add or reinvent the museum and even invite the audience to do so. Often these sites differentiate
the web from museum by its name, especially those of the science centres.
1525
Figura 1 - Página do Facebook do Museu da Escrita
Link: www.facebook.com/museuda.escrita.9
1526
Figura 3 - Site do Museu Geológico. Link: http://www.mgb.ba.gov.br/
1527
A terceira categoria, pode ser exemplificada, com o Museu da Pessoa (figura 5),
neste sentido, o museu não existe no mundo físico, porém seu acervo existe, são as
pessoas e suas memórias, como afirma Oliveira (2010) sobre o contexto do Museu da
Pessoa que, “A história é uma construção de narrativas, feita de vários pontos de vista.
Quanto mais pessoas tiverem suas experiências preservadas, mais se garante a
preservação da memória histórica. ” (OLIVEIRA, 2010, p.3) Através de vídeos,
imagens e textos, o visitante tem a possibilidade de dialogar com este museu, criando
um vínculo seu com esta instituição.
1528
vídeos com performances, eventos culturais, produções de graffiti, entre outras. Sobre
isto, Lemos, (2003), comenta que
A arte efêmera, que muitas vezes é uma arte pública, se potencializa ao ser
veiculada pela internet, visto que através do ciberespaço ela atinge públicos cada vez
mais amplos e diversos. Neste sentido ela deixa de ser a arte em si, e passa a ser a
reprodução através de imagens, sons ou vídeos, passa a ser a representação da arte,
mudando a sua natureza, o que é muito comum quando um objeto de museu é retirado
do seu contexto e colocado no espaço do museu, mudando, por isso, o seu estatuto,
sendo-lhe agregados valores de sentido,
1529
O ciberespaço contribui com a dinamização das informações auxiliando na
busca pelo conhecimento, onde afirma Pierre Levy, (1996) que, “O ciberespaço oferece
objetos que rolam entre os grupos, memórias compartilhadas, hipertextos comunitários
para a constituição de coletivos inteligentes.”(LEVY, 1996, p.89). Neste processo de
interação, o indivíduo que utiliza o ciberespaço tem a possibilidade de expandir o seu
universo de busca, possibilitando outros indivíduos obterem conhecimentos
diversificados, construindo uma rede de comunicação.
1530
física e conceitual, de uma coisa de seu meio natural ou cultural de origem, conferindo a
ela um estatuto museal – isto é, transformando-a em musealium ou musealia, em um
‘objeto de museu’ que se integre no campo museal.” (DESVALLÉES; MAIRESSE,
p.57, 2013) compreendemos, portanto, que o processo de musealização é aquele que
seleciona, preserva e comunica determinados objetos no museu, a partir de princípios
que levem em consideração o olhar específico do museólogo sobre o fenômeno da
preservação da memória e do tratamento de uma cadeia operatória que busca otimizar a
sua comunicação, ou melhor dizendo, sua transmissão enquanto herança, de modo à
atender as necessidades do público, e também considerando que esta ação só será
verdadeira enquanto levar em consideração as categorias de valor dos grupos
representados, os verdadeiros donos desta memória.
Referências bibliográficas
1531
CHAGAS, Mário. A radiosa aventura dos museus. In E o patrimônio. Vera Dodebei e
Regina Abreu (orgs). Rio de Janeiro: Contra Capa/Programa de Pós-Graduação em
Memória Social da Universidade Federal do Estado do Riio de Janeiro, 2008;
LEMOS, André; Cunha, Paulo (orgs). Cibercultura. Alguns pontos para compre-ender a
nossa época. In Olhares sobre a Cibercultura. Sulina, Porto Alegre, 2003; pp. 11-23;
LEVY, Pierre. O que é virtual. São Paulo: Ed. 34, 110 p., 1996;
TEATHER, Lynne. Surfs Up_: Museums and the World Wide Web, MA Research
Paper, Museum Studies Program, University of Toronto, 1996. Disponível em:
http://www.archimuse.com/mw98/papers/teather/teather_paper.html> Acessado em:
01/11/2016
1532
TECNOLOGIA E EXPOGRAFIA NA CONTEMPORANEIDADE. OS MUSEUM
MAKERS E A SEDUÇÃO DO OLHAR
Abstract: In Brazil the success of several museums on the use of technological resources
brought about the consolidation of the "museum maker" (pie-museums) that do not necessarily
have training in Museology, but has an excellent knowledge of the curatorship of exhibitions
and technological projects applied to expographic. More specifically, the term was used to
designate the curator Marcello Dantas, responsible for projects of the Museum of the
Portuguese Language in São Paulo (SP), and the Museum of the People of Sergipe, Aracaju
(SE). In Italy, the MUMA-Indian Missionary Museum in Assisi – which dates back to 1973, as
the Museum's heritage of the Indians of the Amazon designed by Fr. Luciano Matarazzi, after
recasting your digital was reopened on February 4 2011. Riccardo Mazza, the museum's
contemporary MUMA maker founded the Interactive Sound Studio in Turin, a visual and sound
research laboratory specializing in artistic design for exhibitions. Consecrated as curator and
consultant for creative use of technology, multimedia and real objects in museums. So, this
article presents a brief reflection on the role of the museum makers and your way to erect digital
expografias.
Key-words: technology; expographic; Museum maker; Museology.
Doutora em História Social (UFRJ); Professora Adjunta da Universidade Federal de Sergipe (UFS), ganhadora do
Prêmio Samuel Benchimol e Banco da Amazônia de Empreendedorismo Consciente na categoria Economia Criativa,
em 2016, com projeto de Museu de Território.
1533
Introdução
A atração dos olhos na contemporaneidade move-se do smartphone para os
grandes painéis tecnológicos nas grandes cidades do mundo. Cada vez mais, instituições
culturais aprendem o valor do uso das Novas Tecnologias da Informação e
Comunicação (NTICs) no processo de concepção, montagem e divulgação de suas
exposições.
O uso dinâmico de ideias que seduzem seus usuários, trazendo uma linguagem
cada vez mais familiar e necessária no cotidiano, ressignifica o museu da tradicional
apreensão do senso comum de “lugar de coisas velhas” para um “espaço de
experimentação digital e sensorial”. São projeções de filmes, jogos de luzes e sombras,
sensores que fazem funcionar determinado elemento da exposição conforme a
aproximação do visitante, hologramas, música ambiente e mesas digitais interativas que
aprofundam o conhecimento comunicado na exposição.
1534
em design artístico para exposições. Consagrou-se como curador e consultor de uso
criativo da tecnologia, multimídia e objetos reais em museus.
Assim, esse artigo apresenta uma breve reflexão sobre o papel dos museums
makers e seu modo de erigir expografias digitais.
1535
corporativismo da área, observa-se que nas capitais do país – com exceção do Rio de
Janeiro e Salvador – ainda são os “não museólogos de formação de base” que atuam nas
instituições museais e na maioria dos estados, mesmo com o crescimento dos cursos de
Museologia na modalidade graduação, não houve concursos locais para o cargo,
excetuando-se aqueles realizados pelo governo federal para suas universidades.
Sofrendo com ausência de verbas para equipar seus laboratórios, com cursos
onde muitas vezes há uma predominância de “não-museólogos” ministrando disciplinas
formadoras dos futuros museólogos, além dos altos índices de evasão de alunos e de um
mercado de trabalho muito incipiente a aguardar seus egressos, os museums makers
encontraram um nicho de trabalho em plena expansão para seus serviços.
1536
Mais uma vez, a excelência no planejamento e criação de tecnologias aplicadas
diferencia os primeiros dos demais na maioria das vezes.
1537
A ideia do Museu da Língua Portuguesa nasceu dos sonhos de Ralph
Appelbaum, responsável pelos projetos do Museu do Holocausto em Washington e da
sala de fósseis do Museu de História Natural em New York. O projeto arquitetônico
teve a autoria dos brasileiros Paulo e Pedro Mendes da Rocha (pai e filho). A direção do
museu coube a socióloga Isa Grispun Ferraz, também responsável pela coordenação de
uma equipe composta por trinta especialistas no idioma. Marcello Dantas, um museum
maker, articulou o discurso e a linguagem da instituição, considerando o espaço físico, a
disposição das obras e a aplicação da tecnologia em cada peça de cada módulo
(CALSAVARA, 2007).
Entrevistado pela Revista Clarín (2012), por ocasião de sua participação nas
Jornadas sobre “Museos y Cultura participativa”, Marcello Dantas afirmou “Hay que
crear nuevos museos para una sociedad atravesada por la revolución digital, convertir
la inmaterialidad de la cultura en nuevos lenguajes expressivos”.
1538
virtual, dentro de um projeto orgânico e coerente. A consultoria curatorial, atenta à
definição e ao desenvolvimento do projeto, também faz a atividade do estudo autônomo
e propositivo no plano da ideia, enquanto o conjunto de tecnologias especialmente
realizadas e os serviços oferecidos permitem gerenciar projetos complexos (MAZZA,
2017).
1539
maiores empresas culturais do país, um lugar de escolha para o seu conhecimento
histórico e o armazenamento de memórias, segredos, sonhos da Itália no século XX e
além. A exposição concebida e realizada pelo Instituto Luce-Cinecittà, recebeu o Alto
Patrocínio do Presidente da República, com o patrocínio do Ministério do Patrimônio
Cultural e Turismo e da Região do Lácio, e em colaboração com a capital de Roma.
Imiscuindo tradição e tecnologia, o caminho se move em duas faixas ideais: como a
Itália foi representada ao longo das décadas através das imagens da Luz, e como a Itália
revelou, confessou, revelou e apesar das imagens de suas representações oficiais
(MAZZA, 2017).
1540
dos vídeos. Um caminho visual e auditivo de impacto considerável, que faz com que
cada visitante se confronte com uma imagem diferente, e cada vídeo diálogos com
aqueles próximos a ele por analogia e diferenças. Uma série de palavras-chave liga o
itinerário (MAZZA, 2017). As pesquisas sobre smart museum têm demonstrado a
importância da interatividade e autonomia provida pela tecnologia, onde a narrativa
expográfica privilegia as escolhas do próprio visitante, assim
11
“Um sistema autoguia interativo é projetado para fornecer informações relevantes para cada
antiguidade de acordo com o perfil e seleções do visitante. Isto faz os turistas se divertirem e
aproveitarem as histórias por trás de cada antiguidade, deixando-os imaginar e gostar de viver essa era do
tempo” (Tradução Livre).
1541
mapeamento grande em superfícies irregulares e reconstruções de objetos por
fotogrametria (MAZZA, 2017).
12
O comportamento de uma pessoa/visitante, quando imerso dentro de um espaço e consequentemente
entre vários objetos, deve ser analisado para projetar o mais apropriado a arquitetura e estabelecer a
relação entre pessoas e ferramentas tecnológicas que não precisam ser invasivas. Por esta razão e para
melhor avaliar e promover a Cultura Patrimônio, deve ser preferível fornecer objetos culturais com a
capacidade de interagir com pessoas, ambientes, outros objetos e transmissão dos conhecimentos
relacionados aos usuários através de instalações multimídia (Tradução Livre).
1542
Tabela 1: Particularização de um Plano Museológico Multimídia
Níveis de som ambiente, distintos em cada sala, locução mixada que
acompanha o visitante conferindo à cada objeto do acervo sua
ambientação correta. Pode incluir sons de florestas, mangues, minas,
Projeto Sonoro escavações ou músicas gravadas em shows, acústicos ou em
estúdios.
1543
livrarias, espaços de patrimônio cultural onde o digital e o eletrônico, de forma
interdisciplinar, evocando a “cultura criadora” (GONZALEZ, 2015).
Mas essa preocupação nos EUA advém de um tempo mais tardio se considerar-
se o papel desempenhado pela Museums Computer Network (MCN), uma rede fundada
em 1967, dedicada a “apoiar os profissionais dos museus para que eles possam capacitar
suas instituições para abraçar o mundo digital” (MURPHY, 2015).
Nos últimos anos a ideia dos Maker spaces em livrarias e museus tem sido
difundida como uma nova possibilidade de ação educativa onde as pessoas se reúnem
para criar, inventar e aprender, capacitando-se para se tornarem criadores. Os museus
deixam de ser meros reprodutores de objetos alvos de contemplação e instigam seu
próprio público a tornar-se proativo.
O Be A Maker Space (BAM) é o espaço de produção da Betty Brinn Children’s
Museu de Milwaukee, Wisconsin (EUA). Como um Museu infantil, Betty Brinn
procura para fornecer experiências interativas e recursos educacionais principalmente
dos recém-nascidos às crianças de até 10 anos de idade. Iniciado em 2014, o BAM
articula o antigo e o novo, a tecnologia e antigos elementos da cultura material do bairro
que o abriga (IMLS, 2014). A promoção de uma vivência comunitária, valorizando a
solidariedade entre os visitantes, a troca de conhecimento e a sensibilidade estimulada
por sistemas digitais que se ambientam à proposta apresenta um novo horizonte de
significação tanto para a instituição quanto para quem a visita. Relações de afeto e
memória são constituídas de modo quase natural.
Considerações Finais
1544
tragam de forma irreversível para a sociedade da informação sustentada pelas
tecnologias em profunda aceleração de suportes e designs.
Grande parte dos museólogos não está preparada para lidar com o
desenvolvimento das linguagens tecnológicas dos novos ou renovados museus em sua
expografia. E entende-se “desenvolvimento” pela criação dos projetos com recursos
necessários. A maioria sequer está apta para dialogar com um desenvolvedor de App e
isso termina por limitar ainda mais seu mercado de trabalho e conferir a outros
profissionais um espaço privilegiado na produção da cultura contemporânea e gerador
de um alto valor de renda por serviços prestados.
Não adianta mais usar a desculpa de que são os outros que devem se ocupar
dessas funções, mas sim buscar a apropriação dessas ferramentas digitais para que seu
ofício não se torne superado e rapidamente substituído por aqueles que demonstrem
maior domínio nas habilidades tecnológicas cada vez mais requisitadas.
Referências bibliográficas
ALI, Ahmed Salah EL-Din. The Narrator: A Smart Data Offloading System for
Interactive Navigation in Museums. 2014 10th International Computer Engineering
Conference (ICENCO). 2014.
1545
FORUM PERMANENTE. Verbete Marcello Dantas. Disponível em:
<http://www.forumpermanente.org/convidados/marcello-dantas>. Acesso em ago. 2017.
MELLO, Janaina Cardoso de. O Museu da Língua Portuguesa como espaço de ensino-
aprendizagem. Interdisciplinar, Ano 5, v. 12, jul-dez de 2010, p. 127-138. Disponível
em: <https://seer.ufs.br/index.php/interdisciplinar/article/viewFile/1212/1050>. Acesso
em ago. 2017.
MURPHY, Adrian. Technology in Museums: making the latest advances work for our
cultural institutions. Disponível em:
<http://advisor.museumsandheritage.com/features/technology-in-museums-making-the-
latest-advances-work-for-our-cultural-institutions/>. Acesso em nov. 2017.
REINOSO, Suzana. Entrevista com Marcello Dantas. Revista Clarín, 2012. Disponível
em: <https://www.clarin.com/arte/marcello-dantas-museos-revolucion-
digital_0_HkdlgiFnvme.html>. Acesso em ago. 2017.
1546
AS INTERAÇÕES TECNOLÓGICAS E AS VIVÊNCIAS NO MUSEU CASA DE
CORA CORALINA: A EXPERIÊNCIA DE EDUCAÇÃO NÃO FORMAL PARA
ALÉM DA EXPOSIÇÃO EXPOGRÁFICA.
Resumo: Esta pesquisa visa ir além do ato de contemplação nos museus, investigando as
múltiplas possibilidades de fruição da arte e das aprendizagens, em especial o Museu Casa de
Cora Coralina; promovendo a geração de conhecimento científico, tecnológico e cultural
relevante para o Estado de Goiás. Procura identificar o impacto dos recursos tecnológicos e das
vivências incorporadas às práticas pedagógicas para além da exposição expográfica permanente
no Museu Casa de Cora Coralina, na Cidade de Goiás – GO, além de examinar e discutir as
conseqüências econômicas e políticas deste objeto de estudo em função da capilaridade cultural,
pois está inserido na Cidade de Goiás, Patrimônio Histórico da Humanidade cujo tombamento
do centro histórico ocorreu em 1978 pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional) culminando no reconhecimento da Cidade de Goiás como Patrimônio da Humanidade
em 2001 pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura). O principal mote dessa investigação está relacionado à nossa experiência enquanto
pesquisador e participante voluntário do grupo de trabalho que está realizando a segunda etapa
das aplicações do projeto de mídias interativas expográficas no ano de 2017, no Museu Casa de
Cora Coralina, na Cidade de Goiás – GO. As intervenções desenvolvidas pelo Media Lab BR
(Laboratório de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação em Mídias Interativas da Universidade
Federal de Goiás) tem por objetivo propiciar novas formas de interação com as poesias e com a
Casa de Cora, de modo que os visitantes vivenciem uma nova experiência, complementar
àquela que Cora já propõe através de suas obras e da sua história de vida.
Palavras-chave: Tecnologia. Memória. Ação Educativa.
Abstract: This research aims to go beyond the act of contemplation in museums, investigating
the multiple possibilities of enjoyment of art and learning, especially the Casa de Cora Coralina
Museum; promoting the generation of scientific, technological and cultural knowledge relevant
to the State of Goiás. It seeks to identify the impact of technological resources and experiences
incorporated into pedagogical practices in addition to the permanent exposition exhibition at the
Casa de Cora Coralina Museum, in the city of Goiás - GO, besides examining and discussing
the economic and political consequences of this object of study in function cultural capillarity,
since it is inserted in the City of Goiás. Historical Heritage of Humanity, whose historical center
was discovered in 1978 by the IPHAN (Institute of National Historical and Artistic Heritage),
culminating in the recognition of the City of Goiás as a World Heritage Site in 2001 by
UNESCO (United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization). the culture). The
1547
main motto of this investigation is related to our experience as a researcher and volunteer
participant of the work group that is carrying out the second stage of the applications of the
interactive expiative media project in the year 2017 at the Casa de Cora Coralina Museum in the
City of Goiás - GO. The interventions developed by Media Lab BR (Laboratory of Research,
Development and Innovation in Interactive Media of the Federal University of Goiás) aim to
provide new forms of interaction with poetry and Casa de Cora, so that visitors experience a
new experience, complementary to the one that Cora already proposes through his works and
his life history.
Key Words: Technology. Memory. Educational Action.
1548
A proposta desta pesquisa consiste em analisar as discussões a respeito das
concepções tradicionais nos ambientes museológicos e o diálogo com as inovações
interativas contemporâneas. É uma investigação compatível com os estudos realizados
na Linha de Pesquisa “Práticas Educacionais na Sociedade Contemporânea”, pois se
encaixa nos estudos de experiências em educação não formal cotejada e analisada pelos
professores pertencentes ao quadro do Programa de Pós-Graduação, nível Mestrado em
Sociologia da Universidade Federal de Goiás (PPGS/UFG).
O principal mote dessa investigação está relacionado à nossa experiência
enquanto pesquisadores e participantes voluntários do grupo de trabalho que está
realizando a segunda etapa das aplicações do projeto de mídias interativas expográficas
no ano de 2017, no Museu Casa de Cora Coralina, na Cidade de Goiás – GO.
As intervenções desenvolvidas pelo Media Lab BR (Laboratório de Pesquisa,
Desenvolvimento e Inovação em Mídias Interativas da Universidade Federal de Goiás)
tem por objetivo propiciar novas formas de interação com as poesias e com a Casa de
Cora, de modo que os visitantes vivenciem uma nova experiência, complementar àquela
que Cora já propõe através de suas obras e da sua história de vida.
O modelo de educação formal no Brasil estabelecido nas Escolas, enquanto
instituições regulamentares de ensino, obedecendo à hierarquização dos órgãos
reguladores desde as instâncias federal, estadual e municipal, centralizado na figura do
professor, que se posiciona como o detentor do conhecimento, a quem cabe a
transmissão para o educando através da comunicação oral e escrita, combinando às
vezes com imagens e reproduções para demonstrar os conteúdos expositivos, sem muito
aprofundamento, conforme SOUZA observa:
O ensino no Brasil tem sido pautado, quase que exclusivamente, na
linguagem oral, quando sabemos que o ensino verbalístico é
caracterizado pelo fato de que apenas o professor, ou nem mesmo ele,
teve contato prévio com o objeto de ensino, o qual, por ocasião da
aula, ele descreve verbalmente (SANTOS, 1987, p. 85).
1549
A distinção entre educação formal e a educação informal está assim expressa
em LIBEDINSK:
A educação formal é sinônimo de sistema escolar ou sistema
educacional, e abrange desde o maternal jardim e até o quarto nível ou
pós-graduação universitária. A educação não formal inclui as
atividades que se organizam fora do sistema educacional, e é dirigida
a um público determinado com fins específicos de aprendizagem.
Aqui incluímos desde um curso de sapateado americano até um de
computação. Podem ou não se dar diplomas e seu valor é
extremamente variável. A educação informal é o processo pelo qual
todos os indivíduos ao longo da vida adquirem atitudes, valores,
aptidões e conhecimentos a partir da experiência cotidiana e das
influências que procedem do meio social: a família, o trabalho, os
museus, as bibliotecas, os meios de comunicação ( LIBEDINSK,
1997, p.173)
1550
devem estar unidas na percepção. Essa relação é o que confere
significado; apreendê-lo é o objeto de toda compreensão. O âmbito e o
conteúdo das relações medem o conteúdo significativo de uma
experiência (DEWEY, 2010, p. 122).
1551
ambiente de constante produção e agenciamento. Um espaço dinâmico
e apropriado para a arte e para os elementos de uma cultura que se faz
viva a cada arfar, inspirando, diante das leituras possíveis, os
propósitos desses ambientes culturais no presente. No exercício típico
da respiração contínua, os museus mantêm sua faceta de reinvenção,
adaptando-se ao contexto exposto e alinhando-se aos conceitos
hodiernos de redes, de distribuição e da sociedade contemporânea,
pulmão do seu fazer. Como expressa Frieling (2014), “o museu
tornou-se de facto um local produtivo de re-visão das condições e dos
contextos mutáveis de cada trabalho que envolva variáveis” (p. 164).
Uma atualização constante com práticas discursivas, colaborativas,
cooperativas, críticas em comutação com práticas contemplativas,
históricas e de análises. (RODRIGUES e ROCHA, 2016, pg. 137-146)
1552
o público. Os museus têm se caracterizando cada vez mais como espaços de educação
não-formal e considerados como lugares de memória, os quais despertam o interesse das
comunidades nas quais estão inseridos pelo potencial que possuem de estabelecer um
permanente diálogo entre educação e cultura. A cadeia museológica que se desenvolve
nas instituições museológicas e consistem na coleta, organização e preservação de seus
acervos, tem como principal função contribuir para o ensino, pesquisa e extensão
oferecendo suporte à pesquisa para os diversos setores, das ciências humanas ou não,
voltadas para uma perspectiva histórica e sociológica dos fatos, no contexto brasileiro,
regional e local.
14
É importante destacar que o ensaio “O Narrador – considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, foi
publicado em 1936, sob influência da guerra de trincheiras e com a possibilidade de ascensão do
totalitarismo na Europa. Entretanto, consideramos a atualidade dos escritos de Benjamin, principalmente
quando aborda o "empobrecimento" da narrativa, cujo declínio foi influenciado pela difusão da
informação que nos possibilita a recepção de notícias do mundo todo em um brevíssimo espaço de tempo
(BENJAMIN, 1994, p. 203).
1553
Preservar a memória é, sem dúvida alguma, uma das formas de garantir o direito
à história dos vencedores e dos vencidos. “A memória regula posições existenciais e
políticas, fazendo buscar no passado seiva e inspiração para as apostas ativas de futuro”.
Acreditamos que a escrita da história não necessita apenas de documentos oficiais, mas
sim, pode contar também com qualquer fonte não escrita que a habilidade do historiador
permita, ou seja, tudo aquilo “que pertencendo ao homem, depende do homem, serve o
homem, exprime o homem, demonstra a actividade, os gostos e as maneiras de ser do
homem”15. Contudo, Le Goff salienta que, por trás de todo documento existe a
intencionalidade das pessoas, portanto, ele trás a lógica de quem o produz, pois é fruto
dos sujeitos sociais que vivenciam um determinado período histórico e querem
preservá-lo. Nenhum documento abarca a totalidade da verdade, ou a realidade, e os
significados que ela tem para os sujeitos vivenciados. Desse modo, o campo da
memória está passivo de ser compreendido, não como história, mas sim como o que se
pensa a respeito de história.
Tendo como base as premissas aludidas acima, o objetivo desse estudo consistiu,
principalmente, em compreender as formas de interação entre museus, comunidade, e
fontes diversificadas de aprendizagens. Pretendeu-se, por meio da pesquisa documental,
desvelar saberes e fazeres peculiares de uma determinada cultura, um período histórico
15
LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In: Enciclopédia Einaldi, São Paulo: V. l, p. 98.
16
Ibdem, p. 102
1554
específico, e, além disso, refletir sobre a representatividade dos acervos, objetos,
coleções que “falam” e por meio dos quais se pode “decifrar” muitos fatos e versões de
uma mesma história. Buscou-se compreender ainda, o processo de consolidação do
Museu Antropológico da UFG, a concepção dos seus espaços educativos, refletir sobre
o que vem sendo chamado de educação museal e até que ponto, uma educação que
extrapola os muros da escola e interage com a cidade em suas múltiplas dimensões,
beneficia a comunidade à qual pertence.
Por meio das ações educativas, a democratização do acesso aos bens e espaços
culturais se amplia e o exercício da cidadania se efetiva. E, para que o público possa ter
uma experiência completa e transformadora no momento da sua experiência museal,
professores, pesquisadores da área, equipes educativas e pessoas que atuam como
mediadores em espaços culturais são, cada vez mais importantes e cada vez mais
precisam realizar o processo museológico de forma a promover o diálogo e a interação
constante entre os membros da comunidade.
Por fim, cabe-nos destacar que todo museu tem algo histórico. Não somente a
natureza de suas coleções se relaciona com a história, entendida no sentido mais
habitual/acadêmico do termo; mas, seus modos de atuação e, sobretudo, suas maneira de
se fazer conhecer seguem os parâmetros e mantém uma união estreita com metodologias
próprias da história (BALERDI, 2008,p. 99-105).
Conforme nos diz Balerdi17, todos os objetos que se exibem em um museu são
parte da historia, testemunhos múltiplos de um devir a partir dos quais cabe resgatar a
memória de um determinado momento. Inclusive no momento de exibir um
experimento científico ou uma taxonomia biológica ocorre esse processo: o que se vê, o
que se guarda, o que se expõe começou a existir para o homem no momento em que foi
17
Para saber mais: BALERDI, Inácio Díaz. Paradojas del sujeito. In: La Memória Fragmentada: el museo
e SUS paradojas. Gijón, Asturias: Ediciones Trea, 2008.
1555
descoberto; até então pertencia ao campo do ignorado, das sombras, do mistério: era
algo à margem da história. Quando o objeto vem a luz, quando se lhe atribui um
significado, ele recebe um valor e é inserido em coordenadas históricas. Por isso
também, o museu, além de ser uma metáfora da história, é um paradigma das conquistas
humanas. Paradigma que se desdobra em duas vias principais: a da sensibilidade e do
conhecimento.
1556
É importante destacar a importância da "personagem" Cora Coralina no que diz
respeito ao ato de transformar o “valioso patrimônio histórico cultural e as nobres
tradições de Goiás”. Nossa proposta caminha na direção de analisar a importância do
Museu Cora Coralina para a narrativa histórica da cidade e de que forma o projeto de
Mídias Interativas Expográficas, cuja implementação se encontra em andamento no
Museu Casa de Cora Coralina, na Cidade de Goiás – GO, contribui para o desempenho
satisfatório das ações educativas que ali ocorrem.
Sabemos que na atualidade, as Tecnologias da Informação podem contribuir de
modo sistemático para ampliar o processo de ensino aprendizagem, especialmente no
museus. Museus e instituições culturais têm investido nas novas tecnologias da
informação como meio seguro, fácil, econômico e de grande impacto, para a difusão das
suas coleções e das várias atividades comunicativas que desenvolvem. Nesse processo
complexo, as tecnologias da informação e comunicação (TIC) podem desempenhar um
importante papel quanto ao desempenho das funções de documentar, valorizar,
interpretar e divulgar o bem cultural e os seus diversos significados.
Deve-se considerar ainda que as oportunidades de aprendizagem oferecidas
pelos museus “podem ser mediadas ou não pelas tecnologias digitais”, entretanto, é
preciso ressaltar que a utilização de recursos interativos voltados para as práticas
educativas pode estimular uma maior autonomia de aprendizagem desde que
estabeleçam vinculações entre os objetos e o conhecimento, oferecendo ao visitante
oportunidades de aprendizagem por meio do estabelecimento de um diálogo interativo
entre o observador e a coleção observada.
Acreditamos que a função educativa dos museus pode contribuir para facilitar
o desenvolvimento de atividades interativas a partir dos objetos expostos possibilitando
uma ação física do visitante sobre a exibição do acervo e, desse modo, amplia os
caminhos para a aprendizagem uma vez que as tecnologias digitais, como por exemplo,
internet, multimídia, comunicação por computador, simulações, games, dentre outras,
1557
permitem que o acesso às informações sobre os museus cheguem até os usuários. E que
as TIs podem se apresentar como um instrumento de grande eficácia quando se trata de
ampliar a interatividade entre a comunicação desenvolvida pelo museu Cora Coralina e
o público que para lá se dirige em busca de conhecimento.
Metodologias
1558
pelo grau de seu controle relativo ao conjunto dos instrumentos da
apropriação da obra de arte, disponíveis em determinado momento do
tempo, ou seja, os esquemas de interpretação que são a condição da
apropriação do capital artístico, ou, em outros termos, a condição da
decifração das obras de arte oferecidas a determinada sociedade, em
determinado momento do tempo.
O que esperamos?
1559
acadêmica goiana, dada a relevância científica, cultural, política e econômica do projeto
expográfico permanente e de suas intersecções que promoverão impacto social de
abrangência regional com reverberações nacionais e internacionais, levando o nome do
Estado de Goiás e de nossa cultura para além de nossas fronteiras.
Referências bibliográficas
BALERDI, Inácio Díaz. Paradojas del sujeito. In: La Memória Fragmentada: el museo e
SUS paradojas. Gijón, Asturias: Ediciones Trea, 2008
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da cultura. (Obras escolhidas - vol. 1.). São Paulo: Brasiliense, 1985.
BOURDIEU, Pierre; DARBEL, Alain. O amor pela arte: os museus de arte na Europa
e seu público. São Paulo: Edusp: Zouk, 2003.
1560
COSTA, Lygia Martins. Os Museus do Brasil e perspectivas de adaptação ao mundo
contemporâneo. In: De Museologia, Arte e Políticas de Patrimônio. Rio de Janeiro:
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FENELON, Déa Ribeiro. Cultura e história social. Projeto História, n. 10, São Paulo,
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1561
. O museu e o problema do conhecimento. Disponível em:
http://www.casaruibarbosa.gov.br. Acessado em 29/08/2011.
NORA, Pierre. Nora, Pierre. Os lugares de Memória: a problemática dos lugares. In:
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PAOLI, Maria Célia. Memória, história e cidadania: o direito ao passado. In: Direito à
memória: patrimônio histórico e cidadania. São Paulo: Departamento do Patrimônio
Histórico, 1992.
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SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. Museus Brasileiros e Política Cultural. In: Revista
Brasileira de Ciências Sociais, v. 19, n. 55.
1562
ENTRE REALIDADES: USO DE NOVAS MÍDIAS NA COMUNICAÇÃO
MUSEAL
Abstract: The present article consists of the first reflections of the research project in
development on the use of the new media within the exhibition spaces and their
communicational and educational character. It is aimed, through the survey of the possibilities
of new media that are used within the exhibition spaces, to highlight its potentialities and
characteristics, as well as to present a project under development by one of the authors, which
consists in the creation of a game 2D and the resources available for use of this technology
within museum environments.
Key-words: Communication; Game; Mediation; Museum; New Media.
1563
A concepção de exposições consiste em um processo longo, complexo e criativo,
no qual curador ou equipe expositiva criará um ambiente instigante, informativo e capaz
de transmitir em seu circuito, uma mensagem pré-determinada, a narrativa expositiva. A
construção da narrativa expositiva parte de um processo de seleção do objeto e daquilo
que se deseja transmitir, no qual se criará uma mensagem e um circuito por meio de
objetos pré-determinados que juntos, transmitem ao público a informação desejada.
Nesse processo o museu age como um mediador entre as obras e o público visitante. É
importante ressaltar que o teor da mensagem e como será construída essa relação objeto-
visitante, serão determinadas pela missão e objetivos do museu presentes no
planejamento museológico, em caso de exposições de longa duração, e também a
proposta da equipe de curadoria ou editais, caso se aplique, no caso de exposições
temporárias.
Nesse processo criativo o uso de recursos cada vez mais tecnológicos, ou novas
mídias, são implementados nos espaços expositivos, como o uso de realidade virtual,
games e mecanismos interativos que aproximem, entretenham e informem o visitante do
museu. O uso de recursos com o próprio smartphone do visitante como uma extensão da
visita, colocando o museu nessa nova realidade cultural e social, na qual o uso de
aparelhos como celulares cada vez mais completos e cheios de recursos adquire um
espaço significativo no dia a dia de todos, sejam jovens ou adultos.
1564
[...] nos permiten compartir las experiencias, las ideas y los deseos
más íntimos. Sin embargo, esta realidade se traduce en el mundo del
patrimonio y de los museos com infinidade de imágenes que surcan el
ciberespacio procedente de museos u de entornos patrimoniales; las
grandes reservas reservas naturales del mundo son colonizadas por
turistasarmados con estos microaparatos, y com ellos son divulgadas y
sus más secretos rincones llegan a cualquer parte del mundo. (p. 15-
16)
1565
El vasto campo constituido por las respuestas formuladas a la cuestión
de “mostrar” y de “comunicar” permite el esbozo de una historia y una
tipología de exposiciones que podemos concebir a partir de los medios
utilizados (objetos, textos, imágenes en movimiento, entorno,
elementos electrónicos; exposiciones “monomediáticas” y
“multimediáticas”); a partir del carácter lucrativo o no de la
exposición (investigación, blockbuster, exposición espectáculo,
exposición comercial); de la concepción general del museógrafo
(expografía del objeto, de la idea o del punto de vista),
etc. (p. 38).
A utilização das novas mídias nos espaços expositivos tem crescido de forma
exponencial dentro dos museus, sobretudo por sua relação cada vez mais íntima e
dissociável do dia a dia das pessoas. É importante que as instituições dialoguem e façam
uso dessas ferramentas, tanto no setor cultural e no educativo, levando em consideração
1566
o tipo da narrativa que se pretende construir e as possibilidades orçamentárias da
instituição para implementação e posterior manutenção. Faz-se necessário frisar essa
questão, uma vez que com o crescimento das novas mídias tecnológicas os museus
passaram a desejar estes suportes nos seus espaços, mas um estudo de viabilidade
econômica de manutenção a longo prazo desses recursos, muitas vezes não são feitos.
Assim, no presente texto traremos algumas possibilidades, sobretudo de baixo custo,
mas que trazem informação e interatividade com o público visitante.
No rol das tecnologias que fazem uso de aparelhos celulares para sua interação
destaca-se os QR Codes, que consiste em um código de barras em duas dimensões que
possibilita o visitante acessar mais informações sobre o acervo. Pode ser considerada
uma tecnologia de baixo custo, uma vez que não precisa de profissionais específicos
1567
para a sua geração e manutenção, como no caso da realidade aumentada e da realidade
virtual, que é necessário um rol de profissionais que vão de programadores,
modeladores, direção de arte, entre outros.
Assim, seus usos e possibilidades podem ser dos mais simples, disponibilizar
informações adicionais sobre o que está sendo exposto como uma forma de diminuir os
textos da exposição, bem como a possibilidade de possibilitar uma imersão na
exposição com uma linguagem e layout diferenciado, ou seja, apresentar uma exposição
em forma de quadrinhos ou jogos para o público infanto-juvenil.
Seguindo o conceito de tecnologias midiáticas que tem como por foco o uso de
smartphones, existe também a Realidade aumentada (RA), surgida na década de 1960 e
sua criação atribuída a Ivan Sutherland, como o primeiro a criar um sistema que se
pensava uma realidade aumentada, embora muito distante do que se utiliza nos tempos
atuais. É possível definir a realidade aumentada em:
1568
A realidade aumentada, assim, produz imagens e efeitos em três dimensões a
partir de superfícies ou locais. Nesse universo, seria como uma sobreposição de um
objeto ou imagem virtual tridimensional, que foram geradas por um computador a partir
da modelagem da mesma, no plano real, por meio de smarthponhes, tablets, e outros.
Comparado ao QR Code, a realidade aumentada se diferencia pois projeta na tela uma
imagem que não é real, mas dialoga com o que está no seu entorno. Pode trazer
possibilidades educativas e comunicacionais variadas, sobretudo no campo museal, ao
recriar ambientes e objetos que não estejam na sua totalidade, dando ao visitante de
poder ver como ele era anteriormente.
1569
Desenvolvendo Games
O jogo é composto de duas fases nas quais o jogador deve coletar o maior
número possível de relíquias, que ao serem coletadas, geram pontos. No caso, fez-se um
story-board do que se queria com o game. O story-board foi usado para coreografar
ações espaciais e temporais, ordenando por meio de desenhos momentos chaves da
narração do jogo.
1570
Foram utilizados os sprites disponibilizados pelo jogo, além de alguns baixados
na internet, embora seja possível criar seus próprios sprites (itens) que apareçam ao
longo do jogo por meio de corel draw.
1571
Espada que leva para a
primeira fase secreta
1572
O room 4 é a Fase secreta 1 (v. Figura 03), para acessar essa fase o jogador deve
coletar a espada disponível na fase 1 que o levará ao jardim do palácio, onde deve
recolher moedas, gemas e diamantes, mas deve se desviar dos fogos explosivos que
retiram moedas. Como se trata de uma sala secreta o inimigo não retira a vida do
jogador, apenas diminui o seu score.
A Fase secreta 2 corresponde ao room 5 (v. Figura 04), para acessar essa fase o
jogador deve coletar a chave disponível na fase dois que o levará ao porão do palácio,
onde deve recolher moedas, gemas e diamantes, mas deve se desviar dos fogos
explosivos que retiram moedas, como se trata de uma sala secreta o inimigo não retira a
vida do jogador, apenas diminui o seu score, como na fase secreta 1.
1573
Figura 04 – Fase Secreta 2
O sexto room é a tela final do jogo, onde se parabeniza o jogador por ter
completado o jogo e oferece as opções play (jogar novamente) e quit (sair do jogo). E o
room 7 é o Game over (Figura 05), tela que aparece quando os jogadores perdem todas
as vidas e não completam o jogo, nessa tela há o botão back (reiniciar) no qual o
jogador retorna ao primeiro nível do jogo e quit (sair do jogo).
1574
Cabe ressaltar, mais uma vez, que o projeto do jogo foi construído e elaborado
por apenas uma pessoa, a museóloga Priscila de Jesus, com o intuito de a partir do jogo
sejam trabalhadas questões do curso de Museologia como o profissional museólogo, os
tipos de museus, o acervo de museu entre outros, uma vez que o jogo trabalha com
noções tradicionais do que é um museu e a partir de então abrir para discussões com o
público jovem.
Considerações Finais
1575
As novas mídias não irão resolver todos os problemas dos museus, nem existem
para isso, mas sim perceber a partir de suas potencialidades e limitações que são
encontradas nos usos de mídias tecnológicas, possibilitar um discurso interpretativo das
narrativas expositivas diferenciado, bem como lançar um novo olhar sobre e para os
patrimônios, nos trazendo novas reflexões, novos conhecimentos e uma diversidade de
interpretações que são possíveis com os seus diferentes usos.
Referências bibliográficas
1576
CARTOGRAFIAS NA INTERNET: MUSEUS, PÚBLICO E PATRIMÔNIO NA
REDE
Resumo: Este artigo apresenta os resultados das atividades desenvolvidas no âmbito do plano
de trabalho atrelado ao projeto de pesquisa Cartografias na Internet: Entre Memórias e
Patrimônio que analisa a interlocução entre memória, patrimônio, virtualização e configuração
de ambiências na internet. Por meio da coleta de dados e do mapeamento do ciberespaço, estão
sendo realizadas atividades de investigação voltadas à identificação dos ambientes de fala na
rede em que os museus são discutidos, assim como a análise do conteúdo destas discussões.
Nesta fase, são apresentados os resultados das análises feitas sobre as falas do público do Museu
de Arte Sacra de Belém do Pará (MAS) no portal TripAdvisor, selecionado por apresentar
grande número de manifestações de visitantes de instituições museológicas. Falas estas que
revelam o protagonismo do “ciber-público” de museus, o que colabora para redefinição de
espaços de opinião. A pesquisa objetiva estudar, por um lado, como o público recorre a este
espaço como local de troca de experiências, diálogos, e novas vivências sobre museus, e, por
outro, como a internet se configura como um ambiente de salvaguarda da memória e do
patrimônio, acessível planetariamente. Para refletir sobre estas ações investigativas, recorremos
às contribuições de autores como Francisco Rüdiger (2011), que dialoga com esse trabalho
quando trata da questão das transformações tecnológicas que a sociedade sofreu a partir do final
do século XX. Pedro de Andrade (2010), ao tratar da comunicação e de seus significados no
espaço interdimensional do museu. Além de Marília Xavier Cury (2005), sobre estudos de
público em espaços museológicos, dentre outros. A Museologia e a Comunicação, ao refletir
sobre essa nova sociedade, são vias para pensar a expansão sócioespacial da memória e do
patrimônio, o que exige uma abertura reflexiva e interdisciplinar diante da complexidade desses
estudos.
Palavras-chave: museologia e comunicação; memória; patrimônio; estudo de público; internet.
Abstract: This article presents the results of the activities developed in the work plan linked to
the Internet Cartographies research project: Between Memories and Heritage which analyze the
interlocution between memory, patrimony, virtualization and configuration of ambiences on the
internet. Through data collection and mapping of cyberspace, research activities are being
conducted to identify the speech environments in the network in which museums are discussed,
as well as to analyze the content of these discussions. In this phase, the results of the analyzes of
the public speeches of the Museum of Sacred Art of Belém do Pará (MAS) on the TripAdvisor
portal, selected for presenting a large number of visitors' manifestations of museological
institutions. These speeches reveal the protagonism of the "cyber-public" of museums, which
1577
contributes to the redefinition of spaces of opinion. The research aims to study, on the one hand,
how the public uses this space as a place to exchange experiences, dialogues, and new
experiences about museums, and, on the other hand, how the internet is configured as an
environment to safeguard memory and Patrimony, accessible globally. To reflect on these
investigative actions, we use the contributions of authors such as Francisco Rüdiger (2011), who
dialogues with this work when dealing with the question of the technological transformations
that society suffered from the end of the twentieth century. Pedro de Andrade (2010) in dealing
with communication and its meanings in the interdimensional space of the museum. And
Marília Xavier Cury (2005), on studies of the public in museological spaces, among others.
Museology and Communication, when reflecting on this new society, are ways to think about
the spatial expansion of memory and heritage, which requires a reflexive and interdisciplinary
openness in view of the complexity of these studies.
Key-words: museology and communication; memory; heritage; public study; internet.
1578
Com o advento de novas tecnologias, se consolidam novas formas de se
relacionar com as artes, o patrimônio e os museus. Identificam-se novos conceitos e
novas interações nos espaços de compartilhamento na internet. O tema e seu debate são
de relevante caráter para a comunicação, as artes e a museologia. O uso da socialização
do conhecimento e de seus ambientes de fala perpassa por caminhos complexos,
sobretudo na contemporaneidade, diante dos avanços da tecnologia digital e de conexão
em rede. Identificar esses ambientes, no que diz respeito à interação sobre Museus e
Patrimônio e a forma com que se constituem é o objeto de estudo desse artigo. Para
isso, considera-se que a linguagem, a comunicação, a informação e a interação em rede
são aspectos importantes no processo de construção do conhecimento científico no
campo da museologia, diante de um novo paradigma afetado por estas transformações.
Vale ressaltar que a museologia é uma ciência que se consolida aceleradamente nos
séculos XX e XXI; e que a avaliação museológica, considerada segundo Cury (2005, p.
162) essencial para a vida dos museus, é pouco praticada no Brasil. A este aspecto,
soma-se o protagonismo crescente do público, que amplia sua voz e participação,
também sobre museus e patrimônio, em ambientes colaborativos na internet.
A falta de processos avaliativos nos museus do país reflete a ausência de
metodologias apropriadas ligadas a um quadro teórico referencial. Ainda segundo Cury
(2005, p. 162), a consciência da importância existe, porém não está sendo implantada de
forma eficiente. Talvez por falta de recursos humanos ou materiais, talvez por outros
motivos. Mas é sempre importante destacar que o processo avaliativo jamais termina,
pois há sempre necessidade de ajuste e de acompanhar as transformações na sociedade,
para quem se volta o papel social dos museus. É preciso ouvir o público para que as
atividades museológicas ocorram de forma produtiva. Essa prática sistemática requer
pessoal qualificado e disponível para esse fim.
A Internet criou um novo espaço para essa avaliação, para o pensamento, para
o conhecimento e para a comunicação. No ciberespaço, os ambientes de fala se
1579
constituem através de cada usuário conectado nessa imensa rede. Na
contemporaneidade pode-se considerar que:
1580
informação e por meio da análise de seu conteúdo nos pautamos numa investigação
ampla sobre como a discussão desses conteúdos é feito no ciberespaço. Para que os
museus cumpram o seu papel social, é de suma relevância que se ouça o seu público,
sua comunidade, seus visitantes. Enfim, que os estudos de público se tornem um hábito,
para que assim possamos captar com maior clareza suas percepções e, a partir dessas
percepções, possamos fomentar a discussão e o debate produtivos na melhoria dos
museus, das exposições, dos espaços de patrimônio e de toda sua concepção.
Na pesquisa utilizamos métodos de percepção do público no ciberespaço,
adequando-nos a métodos pautados na bibliografia existente sobre o assunto: avaliação
museológica. Utilizamos o método de categorias que ajudam a compreender melhor o
desenvolvimento dessa prática em museus. Uma dessas categorias refere-se ao “estudo
de visitantes” (visitor studies) ou “pesquisa de visitante de museus” (museum visitor
research). Esses estudos apontam as percepções do público, suas experiências,
vivências, aprendizados, atitudes e interações sociais. A partir dessa leitura associamos
ao espaço cibernético sobre o qual esse visitante tem acesso. O mapeamento dessas
avaliações será apresentado mais adiante nesse artigo.
Objetiva-se compreender por meio da investigação científica esses dados
mapeados que versam sobre a avaliação de museus e de como essa avaliação se expande
para a internet, através das conversações travadas pelo público dos museus, ativo ou em
potencial, em seus diversos locais de fala. O estudo de público visa também a
compreensão de como a Museologia e a Comunicação, em diálogos interdisciplinares
com outras áreas, como a Tecnologia da Informação, abarcam cientificamente essa nova
maneira de salvaguarda e vivência do patrimônio, de memórias e da cultura.
1581
maneira essas áreas diversas dialogam e colaboram para se pensar e se discutir a
expansão dos museus e patrimônios para a rede de computadores. Para Castells (2005,
p. 41), “nossas sociedades estão cada vez mais estruturadas em uma oposição bipolar
entre a Rede e o Ser”. Os meios de comunicação passam por processos de
horizontalização ao adquirirem ao mesmo tempo um caráter individual e global. Os
usuários estão se tornando produtores do conteúdo e influenciando essa mídia por meio
da recepção e do intercâmbio.
Nosso método avaliativo partiu da coleta de dados no ciberespaço em
ambientes de fala produzidos em portais de turismo como o portal TripAdvisor,. Na
busca pela comunicação e interatividade, os usuários encontram um meio de relatar suas
experiências, suas vivências e relações com os museus. Observamos que essa troca não
ocorre com o mesmo vigor nos portais dos próprios museus estudados – do Centro
Histórico de Belém (CHB) -, pois em muitos casos nem há esse espaço para o diálogo
com os visitantes e quando há é pouco produtivo, pois a resposta por parte da instituição
é escassa ou atemporal.
Após a análise desses dados, construímos tabelas e gráficos especificando cada
opinião sobre o Museu de Arte Sacra de Belém do Pará (MAS), o primeiro a ser
analisado nesta etapa, através de categorias como: acervo, exposição, arquitetura,
mediação, dentre outras. Obtivemos uma ampla visualização sobre o que o público quer
e o que o MAS tem a oferecer. Esse estudo de público abarca usuários/visitantes de todo
país e do exterior, com faixas etárias, educação formal e conhecimento de mundo
diferenciados, por isso sua relevância no campo museológico e nos estudos avaliativos.
Na aplicação dos conteúdos teóricos antes e durante a análise dos dados fomos
em busca de resultados relevantes na construção de um estudo de público sobre o MAS.
Através do portal TripAdvisor (figura 1), fizemos primeiramente um recorte na
busca dos ambientes de fala, realizando um mapeamento sobre a avaliação do MAS,
assim como da maioria dos museus do CHB: o museu do Espaço Cultural Casa das
1582
Onze Janelas, Museu do Estado do Pará (MEP), Museu de Arte de Belém (MABE), e o
Museu do Encontro, do Forte do Presépio. No entanto esse artigo tratará apenas do
Museu de Arte Sacra. À posteriori, em trabalhos futuros, os estudos sobre os outros
museus também serão abordados. Essa nova forma de interação em redes telemáticas
promove a socialização do conhecimento por meio do empirismo dos usuários, que
classificam a visitação ao museu e ao acervo físicos, em locais de fala no ciberespaço.
Essa expansão de informação espaço-temporal busca revitalizar o espaço público, a
interação, e a disseminação cultural dos museus. Segundo Cury (2005, p. 162), a
reflexão sobre a realidade gera o confronto entre a relação vivida – os dados de fato –
com a relação desejada – o ideal. A produção de juízo de valor na internet é realizada
através de uma referência e de um referido, ou seja, o quanto se aproximam e o quanto
se distanciam do objeto mencionado.
Figura 1: Ambiente de fala sobre o Museu de Arte Sacra do Pará no Portal TripAdvisor
1583
De acordo com essas relações verificamos semelhanças e discrepâncias entre o
que se quer e o que se tem. Esse distanciamento entre referente e referido que é em parte
minimizado pela internet é um elemento provocador de discussão e de análise.
Abaixo temos a imagem em print screen (figura 2) de duas opiniões e de como
esse ambiente de fala se organiza através do portal TripAdvisor.
1584
No ciberespaço essas relações comunicativas se dão por meio de portais não
necessariamente dos próprios museus, mas em especial através de portais que
incentivam a participação colaborativa entre os usuários, como os relacionados a
organizações voltadas para viagens e turismo. Nesse processo de busca pelos ambientes
de fala, encontramos uma sociedade cada vez mais ativa no compartilhamento de
vivências e também de suas memórias, expandindo ainda olhares sobre o patrimônio
cultural. Este compartilhamento resulta na colaboração direta entre os usuários, entre o
público visitante e o público em potencial, não sendo, portanto, mediada pelas
instituições museais, o que pode resultar na valorização do papel do público a partir da
própria valoração deste na rede.
Os arquivos socializados e também os ambientes de fala sobre museus e
patrimônio, os quais, hoje temos acesso e que outrora não tínhamos, foram analisados e
seus resultados serão apresentados de forma gráfica a seguir, assim como a forma com
que essas informações são socializadas nesses espaços. Diante dessa pesquisa traçam-se
estudos sobre como esses repositórios ampliam a discussão sobre os Museus, a
Memória e o Patrimônio.
Após a coleta de dados e a seleção dos museus partimos para um recorte
espaço-temporal dessas avaliações feitas pelos visitantes dos museus. Essa amostra
pode ser conferida nas imagens de planilha (figura 3) e dos gráficos (figuras 4-7):
1585
Figura 3: planilha criada para análise das falas manifestadas no portal TripAdvisor sobre o MAS de
Belém
As planilhas que foram criadas para análise das falas de usuários no portal
TripAdvisor estão divididas em opiniões positivas e negativas sobre o MAS, agrupadas
em subcategorias como: acervo, exposição, arquitetura, mediação, desejo, cidade,
divulgação, dicas e outros usos. Mapeando dessa maneira conseguimos conhecer
minuciosamente as falas dos usuários e sobre o que falam com relação a este museu.
As subcategorias foram pensadas da seguinte forma, sempre a partir do olhar
do público que se manifesta no portal:
1. Representação – Como esse espaço é visto pelos usuários, se mais como igreja ou
como museu? Na contemporaneidade, essa igreja é vista como feita para uma elite
ou para o público de forma geral? Se como museu, como esse museu é visto pelos
usuários?
2. Acervo – Como os usuários veem o acervo, qual a relação que têm com o mesmo?
Em questões de religiosidade, como veem os objetos sacros?
1586
3. Exposição – Como os usuários observam a exposição, o espaço em que é
ambientado, pensado para a mostra desses objetos?
4. Arquitetura – Qual a relação dos usuários no ambiente como um todo; prédio
histórico, igreja ou museu? Como essa arquitetura foi sendo preservada ao longo
dos séculos, segundo eles?
5. Mediação – Como os usuários veem a mediação, quais atividades lúdicas estão
inseridas no ambiente museal?
6. Desejo – O que mais deve estar inserido dentro do museu? Quais os desejos dos
visitantes para tornar o espaço mais completo e agradável?
7. Cidade – Qual a relação do museu com a cidade juntamente com seus usuários?
8. Divulgação – Quais as informações que são repassadas em outros ambientes?
Como as informações sobre exposição, horários, dias de funcionamento, dentre
outros, são divulgados aos visitantes?
9. Dicas – De acordo com suas experiências, como os usuários dão dicas sobre a
visitação ao museu?
10. Outros usos – Quais os outros usos que são dados aos espaços do museu e do
prédio onde este está, como: casamentos, concertos, encenações teatrais, dentre
outros?
Diante dessa análise pudemos criar gráficos para mostrar com maior clareza
quais as porcentagens dessas opiniões e como elas podem persuadir à visitação ao
MAS.
1587
Figura 4: gráfico de análise geral feito em colunas contendo as opiniões sobre o MAS de Belém
1588
centradas. Seu volume e conteúdo estão representados em gráficos de coluna, assim
como o geral para que a compreensão de sua porcentagem seja mais bem visualizada.
1589
deslocamento das peças, e por consequência também de vivências nestes ambientes,
agora expandidos ao se manifestarem em falas socializadas com outros usuários na
internet.
Com relação às obras de arte barroca datadas do século XIII e XIX que
compõem o acervo, os visitantes falaram sobre a riqueza, a variedade, a mão de obra
indígena, a raridade de algumas imagens, com destaque para Nossa Senhora do Leite.
Essas imagens foram quase totalmente destruídas durante a Santa Inquisição, pois o
julgamento por parte dos inquisidores era de que, no caso de Nossa Senhora do Leite, a
imagem era “indecente” ao representar Maria amamentando o Menino Jesus. No entanto
essa raridade ainda pode ser vista no acervo do MAS. Dentre as diversas opiniões sobre
essa imagem em questão há uma constante, a de que muitas mulheres que estão grávidas
ou que querem engravidar recorrem a ela para fazer promessas e pedidos de ajuda para
terem um bom parto ou para conseguirem conceber.
Outros visitantes deram bastante ênfase à questão da beleza das obras e de sua
conservação, comparando a arte barroca do acervo com a arte barroca exposta em
museus de arte sacra pelo mundo, concluindo que não perde em nada para esses
acervos. E ainda ressaltaram que foi o mais rico acervo em arte sacra que já viram.
1590
Figura 6: gráfico das opiniões sobre a subcategoria exposição no MAS de Belém
1591
Outro ponto relevante no que diz respeito à exposição pauta-se na questão do
percurso. Os visitantes através do portal TripAdvisor enfatizam a importância de se
começar o passeio pela Igreja de Santo Alexandre. Ressaltam o altar em estilo rococó
inúmeras vezes, destacando a riqueza e a beleza das imagens expostas. Para eles o
visitante precisa ir sem pressa para que possa assim desfrutar de toda a exposição no
museu e também na igreja.
É de suma relevância ainda deixar claro que o MAS, além de sua exposição
permanente, também possui as exposições temporárias. No ambiente da igreja, são
ainda realizados concertos de música clássica, casamentos, espetáculos teatrais,
palestras, dentre outros eventos. Muitos usuários ainda mencionaram a questão de seu
valor histórico para a cidade de Belém, afinal o MAS faz parte do centro cultural e
histórico da cidade. O prédio e muitas das obras que compõem o acervo datam dos
primeiros séculos após a fundação da própria cidade, em 1616.
1592
Quando se trata de arquitetura, a opinião do público é quase unânime.
Ressaltam a importância do MAS por seu valor histórico e cultural e como salvaguarda
da memória e da fundação da cidade de Belém. Algumas opiniões divergem quanto ao
espaço, com relação a sua preservação e ao restauro que impôs mudanças radicais no
ambiente como a retirada dos bancos de madeira, característicos nas igrejas de um modo
geral, e a fixação em seu lugar de poltronas acolchoadas, além da climatização ambiente
ser feita por meio de ar condicionado. Percebe-se nessas falas a relação que alguns
usuários têm com a igreja em oposição ao museu. Vale ressaltar que a Igreja de Santo
Alexandre não realiza mais missas, esse espaço abriga parte da exposição permanente e
outros eventos já mencionados. Porém para alguns visitantes essas mudanças
descaracterizaram a igreja.
A arquitetura externa e interna da igreja que abriga o MAS foi reformadas, e
ainda hoje revelam um deslumbre aos visitantes. Para alguns usuários as obras parecem
que saltam das paredes em pleno voo. A pouca iluminação foi pensada para realçar
apenas os objetos, o que talvez possa ser o motivo dessa sensação. Construída em pedra
no século XVII pelos primeiros padres jesuítas com mão de obra indígena, sua
arquitetura hipnotizante e rica em detalhes rococó revelam todo o estilo do período
barroco.
Para a maioria do público que avaliou através do portal TripAdvisor, esse
museu é um lugar para ser apreciado, revisitado, contemplado. Por fazer parte do centro
histórico de Belém e ficar próximo à baía do Guajará, sua visita torna-se aprazível
principalmente à tarde. Segundo o público, a visitação ao MAS se constitui em uma das
melhores opções para quem visita a cidade.
No estudo de público são apresentadas diante do pesquisador as diversas
identidades modeladas na internet. Sob esse prisma, no caso do ciber-público, podemos
ver hoje a redefinição desses espaços de opinião e de construção da memória e do
patrimônio. Esse fato social é discutido por Andrade (2010) “como a multiplicidade de
1593
personalidades de natureza prismática ou multifacetada na forma de ciberpersonagens”,
que o usuário de Internet pode construir e desconstruir. Apropriando-se desse
ciberespaço, o usuário da rede de computadores cria uma identidade que segundo
Andrade (2010) podemos chamar de aracnídea, ou seja, o usuário tece uma teia de
personalidades “logadas” entre si e também com outros usuários. Disseminando nos
diversos ambientes suas opiniões sobre os mais diferentes assuntos. No que diz respeito
ao que discutimos neste trabalho, suas opiniões sobre os museus. Cada um assume um
duplo papel, de produtor e receptor desse conhecimento, apropriando-se dessas
informações e compartilhando suas experiências.
Dessa maneira o cidadão comum exerce sua liberdade de expressão e assume o
protagonismo de opinar, orientar e compartilhar conhecimento, frequentemente
assumindo empiricamente o papel do especialista, muitas vezes ausente no processo de
comunicação que poderia ser favorecido pelas instituições. Torna-se o que Andrade
(2010, p. 48) chama de ‘lay-scientist’, ou seja:
1594
com a literacia18 quotidiana e a literacia científica. Estes atores sociais
ao praticarem o compartilhamento de uma ‘epistemologia comum’,
contribuem para a pesquisa quotidiana e para uma rede de
conhecimentos em forma de ‘teia’, que gera o comportamento
aracnídeo, refletindo as relações que se estabelecem entre o sujeito
indagativo e o objeto inerte.
18
Literacia: substantivo feminino, qualidade ou condição de quem é letrado. Ped. P m q.
LETRAMENTO.
Comunicação, em diálogo com a Tecnologia da Informação, abarcam cientificamente essa nova maneira
de salvaguarda e vivência da memória, do patrimônio e da cultura.
1595
tratadas pelo International Committee for Documentation (CIDOC), por meio de um
grupo específico para esse trabalho.
As questões que são levantadas aqui visam debater como a internet é utilizada
em um processo expandido de interação entre museus e o público. Mais do que um
meio de comunicação, a internet aproxima a opinião do “lay-scientist” e do especialista,
utiliza a visibilização de saberes e estabelece conexões com o promotor e instituições
afins, e, sobretudo, entre o próprio público, interessado na temática e em colaborar com
ela, compartilhando diretamente vivências sobre museus e patrimônio, em uma
sociedade cada vez mais conectada mundialmente. Estabelece interação e troca de
experiências mais rápida e eficiente com os envolvidos na trama, inclusive os
profissionais do museu, que dispõem de outras formas de ouvir o público, que se
manifesta espontaneamente na rede, em colaborações múltiplas de dimensões
planetárias.
A comunicação em museus se faz por meio da troca de informações, de
experiências, da interação com o público e principalmente com discussões num âmbito
museológico acerca dessa interatividade. Interação em rede e diálogo interdisciplinar
entre Museologia, a Comunicação e a Tecnologia da Informação, entre outras áreas, que
abarcam cientificamente essa nova maneira de salvaguarda e vivência da memória, do
patrimônio e da cultura.
A internet se torna esse espaço de “comunicação em rede” e de produção do
conhecimento coletivo. Essas mensagens (opiniões) refletem por meio dessa nova
acessibilidade o empirismo museológico do visitante que expõe e veicula a realidade do
museu contemporâneo através desse ambiente de novas vivências. Esse protagonismo
do participante (visitante) modifica a interação com o museu, estabelecendo uma
relação de troca com o outro e construindo uma apropriação cultural estabelecida em
rede. Ao visitar uma exposição deixa seu relato para assim permitir que o outro forme
juízo de valor acerca daquele determinado museu. Da mesma forma esse protagonismo
1596
está inserido no outro, formando “teias” de sentido e de memória coletiva. O patrimônio
cultural passa por mudanças, também tecnológicas, e é função do museu acompanhar
essa nova realidade, interagindo com seu público. Ignorar sua opinião, seu
protagonismo, não fará com que essas mudanças não ocorram nem no espaço físico,
nem no espaço cibernético.
Referências Bibliográficas
CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede. vol.1 Trad. Roneide Venancio Majer com
a colaboração de Klauss Brandini Gerhardt. 8 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2005.
LÉVY, Pierre. Cibercultura. Tradução de Carlos Irineu da Costa. . São Paulo: Ed. 34,
1999. Coleção TRANS, 264 p.
1597
VIRTUAL MUSEUM. In: ENCYCLOPAEDIA Britannica. 2008. Encyclopaedia
Britannica Online. Disponível em:
<http://www.britannica.com/EBchecked/topic/630177/virtual-museum>. Acesso em:
jan. 2017.
1598
MUSEUS E PATRIMÔNIOS VIRTUALIZADOS: A MUSEOLOGIA E AS
TECNOLOGIAS DIGITAIS PARA ALÉM DA CONEXÃO
Abstract: This paper presents experiences of cartography and virtualisation practices of the 3D
heritage of public art spaces made available on the Web. These experiments are carried out
within two transdisciplinary studies between the areas of Museology, Communication, Virtual
Reality and Visual Arts, which have among their goals collaborate with reflection on
communication and digital culture and socialized network memory. It is based on
understandings of cultural heritage and technologies, according to the concepts of the virtual
(FOUCAULT, AUGÉ), agency (MACHADO) and applications of social heritage theory
(CANCLINI). The objective of this work is not only to demonstrate how communication
technologies expand and connect spaces, but mainly, how they can offer to the society other
ways of experiencing cultural heritage and museums.
Key-words: Heritage; Public Art; Virtual; Technology; Agency.
1599
Das conexões
As tecnologias digitais de comunicação abriram muitas e novas janelas à
humanidade. Permitiram a integração entre mídias, tornaram a circulação de
informações muito mais rápida, desafiaram os limites do tempo e do espaço e,
principalmente, expandiram o ato comunicativo e interativo. Todavia, entre tantas e
infinitas possibilidades, uma delas nos instiga. Trata-se da capacidade imanente que
estas tecnologias possuem de permitir a produção e, ao mesmo tempo, a
disponibilização de memórias, dando, inclusive, acesso a informações esquecidas ou
desconhecidas por estarem circunscritas às barreiras físicas tradicionais. Fenômeno que
motiva a investigação realizada pelo projeto de pesquisa Cartografias na Internet –
Entre Memórias e Patrimônio, desenvolvido no âmbito Universidade Federal do Pará
(UFPA). Através deste projeto mapeamos e construímos cartografias de espaços na
Web, com o intuito de inferir como a internet vem possibilitando (re)construir ou
(re)descobrir o patrimônio cultural e as instituições museológicas. Buscamos
compreender esse processo em fluxo e, principalmente, responder como se
(re)configuram diante de novas possibilidades de pensar o virtual. Questionamento que
também se alimenta do debate entre o “fabricar esquecimento” do tempo em tela e a
“febre de memória”, na qual se inscreve o crescimento dos museus desde a segunda
metade do século XX, o que demanda pela necessidade de “investigar nossa
contraditória percepção das transformações da temporalidade, de modo que nos permita
‘pensar juntos a amnésia e o boom da memória” (MARTÍN-BARBERO, 2006, p. 71).
Investigação, por outro lado, norteada, pelo que foi visionado por Michel
Foucault que, mesmo ainda não se referindo à era da internet, já afirmava no final dos
anos 60 do século passado que estamos diante da “época do simultâneo, [...] da
justaposição, do próximo e do longínquo, do lado a lado, do disperso” (FOUCAULT,
2009, p. 411). Esta época, segundo Foucault (2009, p. 411), caracterizada por
experiências de mundo que se assemelham mais a uma rede que religa pontos e que
1600
entrecruza sua trama. Uma rede complexa que para estudá-la é preciso, como prescreve
Latour (2012), rastrear relações mais sólidas e descobrir padrões mais reveladores por
meio de vínculos entre quadros de referência instáveis e mutáveis.
Por meio do projeto Cartografias na Internet, buscamos, assim, juntar a “trama”
com os “pontos”, por acreditarmos que a rede tecida reúne nós, em reverso à
lineariedade em extremos, e deve ser considerada em sua complexidade. Almejamos a
compreensão integrada, ao invés da polarização dos estudos; a ação dos sujeitos, sem
desconsiderar os elementos de conexão. Para isso, utilizamos uma metodologia híbrida,
que envolve diversos softwares como de Web crawler e de construção dos grafos, para
obtenção de materiais que permitam observar e descrever espaços. Um trabalho
investigativo que, entre outros aspectos, mostra que vivenciar o patrimônio cultural ou
espaços museológicos, na contemporaneidade, representa uma experiência em processo
de expansão e de fortalecimento da conexão, entre espaços e tempos múltiplos, portanto
não excludentes. Como um deslocar-se do passado ao presente, diante do futuro,
através de ambientes e representações, sincréticos, que, como portais, convidam à
passagem pendular entre o esquecimento e a memória, entre a significação e a
ressignificação, entre o (des)conhecimento e o (re)conhecimento. Um movimento
processual e dinâmico, mas não-linear, que deixa exposta a complexidade desta era da
comunicação digital em rede quando se trata da expansão dos usos do patrimônio,
especialmente, na Web.
Constatação que, primeiro, exige considerar a união entre duas posições
antagônicas no campo dos estudos sobre o patrimônio, frequentemente postas em
choque. De um lado, a tradição que parte do ponto de vista de que o patrimônio,
material ou imaterial, é representação da herança cultural de um povo (LIMA, 2013, p.
49). Do outro, a aquela que clama pelo uso social do patrimônio (CANCLINI, 2006, p.
193-204), que só teria a ganhar com as novas tecnologias comunicacionais. Para nós, o
1601
ideal é que os estudos integrem e não polarizem estes pontos de vista, os enriquecendo
com a inserção de debates sobre a cultura digital e em rede.
Isso fica claro por meio dos dados da cartografia das tecnologias usadas pela
rede digital brasileira de museus, um dos estudos desenvolvidos pelo projeto
Cartografias na Internet. Ao observar a socialização do patrimônio e da memória na
internet, visualizamos que esta rede digital é formada predominantemente por websites
com finalidade institucional de divulgação de serviços. Há também a compreensão de
outros usos da tecnologia, como a indicada pelo conceito do Instituto Brasileiro de
Museus (IBRAM) de Museu Virtual:
1602
como o CIDADES PATRIMÔNIO. Com esta ação promovemos ainda
mais democratização, ainda mais acesso. [...] Não perca tempo, baixe
o aplicativo em seu smartphone, prepare sua viagem e aprenda mais
sobre esse Patrimônio da Humanidade. (ERA, 2016)
Criado em 2008, o Era Virtual permite as "visitas virtuais" a museus como Cora
Coralina, Imperial, da República, a exposições Biomas do Brasil, Cadê a Química,
Energia Nuclear, Carlos Chagas, Olhar Viajante, o Corpo na África e ao Teatro
Municipal do Rio de Janeiro e a Igreja da Pampulha.
Além do Era Virtual, observa-se crescente número de empresas na internet que
oferecem os serviços de 360°, especialmente, às igrejas e prefeituras. Como é o caso do
Museu Virtual de Brasília, que o site Portal Brasil do Governo Federal o exalta como
diferente dos demais por “empregar conceitos da museologia e do turismo para
contribuir com a educação patrimonial ao mesmo tempo em que promove a cidade,
estimulando entre os que não conhecem a capital federal o desejo de visitá-la”
(BRASIL, 2011b).
O próprio Google, em 2011, por meio da tecnologia Street View e de um veículo
exclusivamente desenvolvido para o projeto, o inicialmente denominado Google Art
Project, fotografou em 360 graus o interior de lugares como o MoMA, de Nova York, o
Museu Van Gogh, em Amsterdã, a Tate Britain e a National Gallery, de Londres, e
começou a disponibilizar, na internet, primeiramente, a visitação virtual de 17 museus e
a visualização das principais obras. Em agosto de 2017, no agora denominado Google
Arts & Culture, contabilizava-se 3.002 Museum Views19. Destas, 87 estão no Brasil.
Entretanto, com exceção do Era Virtual que agrega breves áudios apresentando
os espaços, alguns vídeos, e outras tecnologias, inclusive para utilização através de
aplicativos para smartphones e tablets, e o Google Arts & Culture, com a tecnologia
19
Esta quantidade foi retirada do próprio Google Arts & Culture, contudo nem todos os Museum Views
são referentes a museus, como indica o nome, apesar destes serem maioria. Nas novas inserções feitas em
2017, por exemplo, constam inclusive espaços de projetos de biodiversidade e conservação, como o
projeto Tamar.
1603
Street View, readequada aos Museum Views, as demais experiências, no Brasil, são
quase que exclusivamente visuais, grande parte estáticas.
O que de certa forma demostra o potencial ainda embrionário das redes digitais
de comunicação em relação aos Museus e o patrimônio cultural. Especialmente, no caso
dos museus brasileiros na internet, onde a ideia de museu virtual é recente e direcionada
a compreensão de inexistência de referentes físicos, como sinaliza o conceito do
IBRAM, ou de divulgação. Porque ao mesmo tempo que a Web abriga cada vez mais
acervos digitalizados para que possam ser visitados de forma desterritorializada e
atemporal, de modo a promover a universalização do acesso à cultura e arte,
grande parte das instituições museológicas utiliza a web para a divulgação de serviços e
acervos, ainda passando distante da capacidade de agenciamento.
Foi o que demonstrou outra cartografia concluída em fevereiro de 2017, que teve
como objeto de estudo a rede de instituições museológicas brasileiras representadas no
Google Arts & Culture, plataforma online do Google Cultural Institute pela qual o
público pode explorar virtualmente espaços expositivos, conhecer informações
técnicas sobre obras de arte e acessar imagens de alta resolução de trabalhos artísticos
abrigados pelos parceiros da iniciativa. O estudo dessa rede teve como objetivo,
especialmente, investigar como a museologia, a arte e a comunicação, em diálogos
com as tecnologias, têm expandido memórias e identidades, utilizando-se da
comunicação digital e em rede. Por conseguinte, suscitar um questionamento sobre a
percepção do patrimônio cultural Web e como a arte e cultura vêm se universalizando,
cada vez mais, por intermédio dela.
Nossa cartografia, realizada sobretudo no segundo semestre de 2016, mapeou 31
parceiros brasileiros do Google cadastrados. Porém, o escopo foi reduzido às
instituições que atendiam aos seguintes critérios: a) possuir espaço expositivo
(preferencialmente físico) e permanente; b) possuir site oficial; c) não deve ser parte de
outro domínio. Desse modo, a rede social resultante é composta por 15 atores, incluindo
1604
o site da iniciativa do Google. Assim, a rede social resultante é composta pelas
seguintes instituições (quadro 1): Casa Guilherme de Almeida, Fundação Iberê
Camargo, Instituto Inhotim, Instituto Moreira Salles, Instituto Vladimir Herzog,
Museu Afro Brasil, Museu da Imagem e do Som de São Paulo, Museu da
Língua Portuguesa, Museu de Arte Moderna de São Paulo, Museu do Café, Museu do
Futebol, Pinacoteca do Estado de São Paulo, Museu do Amanhã e Museu de
Arte Moderna do Rio de Janeiro.
Certos softwares foram necessários para a elaboração dos sociogramas. O
crawling Visual Web Spider foi usado para identificação de conexões e o UCINET 6, de
análise de redes, para a obtenção de métricas referentes a centralidade, densidade, e
identificação de hubs e autoridades. A interpretação dessas métricas é fundamentada
em conceitos da Teoria dos Grafos, área da Ciência da Computação e Matemática,
e oferece um retrato mais preciso e qualitativo do objeto de estudo. Para a
visualização do sociograma da rede foi usada a plataforma Gephi, um software que cria
grafos a partir de matrizes organizadas com as informações coletadas do processo
anterior. Entre outros softwares utilizados, podemos citar ainda o de criação de
diagramas Edraw Mind Map para elaboração do mapa mental apresentando os
principais recursos encontrados nos sites analisados.
A partir do domínio Google Cultural Institute, a observação deste segmento da
rede permitiu outras perspectivas acerca da ambiência e de como a memória e o
patrimônio difundem-se na Web através de fluxos informacionais. Isto é, como a
sociedade vem vivenciando e compartilhando a memória e o patrimônio em conexões
no ciberespaço. De forma mais ampla, verifica-se que isto ainda se dá visando informar
sobre serviços, missão institucional e apresentar acervos. Ocorre basicamente por meio:
1) da venda de ingressos online, 2) de informações sobre rotas de acessos (quase sempre
o Google Maps), 3) de divulgação de exposições e programações vinculada as redes
sociais - Facebook. Google+, Twitter, Instagram -, sites avaliativos e de viagens e
1605
turismo; 4) da exploração de acervos online basicamente através do street view e fotos
panorâmicas em 360º, além de alguns caso de realidade aumentada. Há ainda alguns
que disponibilizam recursos midiáticos, como o vídeo, galeria de fotos, podcast e game,
além do multilinguismo.
Outra característica desta rede brasileira diz respeito à falta de acessibilidade e
de inclusão digital. A conexão na web é usada mais como um meio de informação sobre
localização de rampas para cadeirantes no espaço físico dos museus. Menos da metade
dos sites oferecem a possibilidade de alternar o tamanho da fonte. A opção de alto-
contraste, assim como a disponibilização de plug-ins de tradução em Libras (Língua
Brasileira de Sinais) foram encontradas em apenas 13% dos sites. Nenhum dos sites
analisados dispõe da opção de visualização de páginas em versões monocromáticas,
recurso necessário para pessoas com daltonismo. A possibilidade de navegação via
teclado é de extrema importância para pessoas com dificuldades motoras. Proporciona-
se melhor qualidade de acesso se a navegação não for dependente do mouse, podendo
ser realizada com alguns comandos do teclado ou com periféricos especiais. Contudo
46.67% dos sites não oferecem esse recurso. Por isso, para além da conexão, as redes
precisam e devem pensar na acessibilidade digital, o que é, sem dúvida, um desafio para
universalização da cultura.
Ao agenciamento
Para além dessas formas que vêm sendo utilizadas para expansão do patrimônio e
da memória, é que apresentamos outra via, a partir de experiências realizadas no âmbito
do projeto Transcodificações Urbanas, desenvolvido também na UFPA. Visamos
experienciar a socialização do patrimônio, na Web, tendo em vista princípios
integradores que norteiam os estudos e atividades. Isto quer dizer que partimos da
premissa de que é necessário não se circunscrever somente na busca de “objetos
‘autênticos” de uma sociedade, mas também rumar para o desafio de considerar o
1606
processo de reconstrução de sua “representatividade sociocultural” (CANCLINI, 2006,
p. 202). Uma representatividade que se expande para o ciberespaço. Nossos estudos
levam em conta ainda como se mobilizam estas reapropriações, na atualidade, afetadas
pelo paradigma sociotécnico (CASTELLS, 2003, p. 287). Em uma perspectiva que
considera que a existência de vários tempos e espaços, já identificada por Foucault
(2009, p. 411-422)20, se expande por ambientes cada vez mais conectados, os
entrelaçando, fazendo com que não se possa mais fragmentá-los, mas pensa-los juntos,
em conexão. Dito de outra forma, já não é mais possível pensar em preservação do
patrimônio sem a urgência de se refletir sobre a transformação que o atravessa, sob os
usos sociais das tecnologias emergentes e, ao mesmo tempo, se apropriar dessas
tecnologias.
O Transcodificações Urbanas, iniciado em 2011, faz esses dois movimentos.
Na prática trabalha com a coleta de informações sobre monumentos históricos e de Arte
Pública de Belém do Pará, e, sobretudo, as disponibiliza através do uso de novas
tecnologias. O faz por meio do site www.monumentosdebelem.ufpa.br em pelo menos
duas frentes.
A primeira desvelando no que se vê o que não se percebe, ou fazendo enxergar o
que antes era “invisível” em relação à história dos monumentos e da Arte Pública. Faz
isso por meio de pesquisas de materiais e documentos restritos a Bibliotecas e Arquivos
20
Para refletir sobre espaços e tempos múltiplos, Foucault (2009, p. 411-422) traz os conceitos de
heterotopias e heterocronias. O primeiro princípio fundamental da heterotopia, apontado por Foucault, é
que todas as culturas criam algum tipo de heterotopia e que elas são uma constante em todos os grupos
humanos. À época, apontou a existência de reminiscências desses lugares: colégios internos, o serviço
militar para jovens. O segundo princípio trata dos diferentes usos que a sociedade pode fazer de
determinada heterotopia, à medida que se desenvolve, tornando-a inclusive diferente da função original.
Outro princípio trata do funcionamento das heterotopias. Elas só ocorreriam plenamente quando os
homens se encontram em um tipo de ruptura absoluta com a tradição temporal. Neste caso, o cemitério
seria um lugar altamente heterotópico. Uma heterotopia que para o indivíduo tem início na heterocronia,
que pode ser percebida através da morte, da dissolução até o desaparecimento. O conceito de heterocronia
trata da acumulação de vários tempos em um único espaço, cujo recorte temporal a liga à heterotopia.
Como heterotopias do tempo, cita os museus e as bibliotecas, “nas quais o tempo não cessa de se
acumular e de se encarapitar no cume de si mesmo” (FOUCAULT, 2009, p. 419).
1607
Públicos, que, portanto, requerem a visita presencial e compreensão técnica. Uma
atividade que nem sempre é acessível à maioria da população. São analisados
documentos públicos, de gestão, leis, termos de lançamento, estudos para restauração e
conservação, entre outros, além de textos de jornais de época e livros que integram o
acervo de órgãos públicos do Pará, como a Biblioteca Pública Arthur Vianna, Arquivo
Público, o Departamento de Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural (DPHAC),
Museu do Estado do Pará (MEP), Biblioteca do Museu de Arte de Belém (MABE) e
Fundação Cultural de Belém (FUMBEL), e ainda da representação do Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), entre outros. No site é possível
encontrar atualmente informações sobre 13 monumentos, que dizem respeito à origem
destes (quem solicitou, quando e por que), o orçamento (quanto custou aos cofres
públicos), datas do início e entrega da obra, material utilizado, dimensões, motivo da
escolha do local para erguê-los, informações sobre o artista (nome, local e data de
nascimento e biografia).
A segunda frente vai em direção de disponibilizar esses mesmos dados de maneira
interativa, permitindo a navegação no ambiente virtual, a partir de cenários, que
representem os monumentos, de acordo com o espaço público em que foram erguidos.
Para isso, desenvolve ações interdisciplinares integradas entre as áreas de Comunicação
e Museologia com os campos da Arte e da Tecnologia, por meio da parceria com o
Laboratório de Realidade Virtual (LARV) do Curso de Engenharia da Computação da
UFPA. Inicia com a seleção do monumento a ser virtualizado em 3D a partir da
pesquisa documental e bibliográfica. Em seguida, após a escolha, é recolhido no espaço
urbano onde se encontram estes monumentos material imagético, fotografias e vídeos,
que ajudarão na modelagem dos ambientes, sobretudo na definição dos objetos a serem
recriados e nas dimensões dos mesmos e do espaço. Também é coletado o áudio do
local, que é inserido nas virtualizações para favorecer a imersão, já que traz o som do
1608
ambiente urbano, apresentando, por exemplo, ruídos de trafego, canto de pássaros, entre
outros.
De posse desses materiais, inicia-se o processo de criação de ambientes virtuais
para simulação da visitação dos monumentos existentes na capital paraense. É feita,
portanto, a reprodução dos cenários e a construção das réplicas tridimensionais das
obras de Arte Pública, geralmente esculturas ou conjuntos escultóricos, através de
softwares, também utilizados na criação do sistema de interações com o visitante, que
inclusive possibilita o deslocamento deste pelo ambiente, em ação em primeira pessoa,
como em um game. Depois destas etapas, é inserido o áudio do local, após serem
editados e reduzidos os ruídos, e as informações sobre os monumentos, divididas em
blocos espalhados em diversas partes do ambiente, que podem ser acionados para leitura
através de um clique no mouse. Com redação simples e direta, já que podem ser
consultados por diferentes tipos de público, os textos trazem informações históricas e
artísticas sobre os monumentos, obtidas na pesquisa, em muitos casos inéditas. A última
etapa do processo é a disponibilização da visita no site do projeto, o que permite que o
conhecimento sobre as obras possa ser socializado não só para a população do Estado,
mas também em todo o mundo.
Nessas visitas virtuais de espaços de patrimônio, são utilizados diversos
softwares, para construção dos objetos tridimensionais usados no ambiente, para
manipulação de imagens, texturização de todos os cenários e objetos, entre outras ações.
Para atribuir uma aparência mais realista aos elementos do cenário são comumente
usadas fotos reais do lugar. A superfície de alguns objetos pode ser diretamente pintada
com ferramentas dos programas. A figura a seguir (figura 1) mostra um fragmento de
uma das visitações criadas em ambiente com modelagem 3D, e disponibilizadas no site
do projeto.
1609
Figura 1 – Fragmento da visitação 3D ao Monumento Gama Malcher
Fonte: UFPA/Monumentos de Belém/Transcodificações Urbanas
Essas duas frentes do projeto Transcodificações Urbanas são norteadas por dois
conceitos: o de virtual e o de agenciamento. O primeiro inscreve-se no próprio nome do
projeto, que traz a “virtualização” como proposta, procurando tornar acessíveis na Web
novas formas das pessoas vivenciarem o patrimônio cultural de uma maneira mais
dinâmica, mais viva, do que a proposta pelas tecnologias de visualização em 360°.
Augé (2006, p. 112) nos coloca diante da necessidade de precisar a compreensão
de virtual quando afirma que o termo “virtual” é utilizado hoje de maneira pouco clara.
Afirma que as imagens chamadas virtuais não o são em qualidade de imagens. Por esse
motivo, pondera que estas imagens:
1610
possibilidade de se fazerem ‘atuais’ ou de se realizarem, enquanto não
forem realidades ‘em potencial’ [...]. (AUGÉ 2006, p. 112)
Mesmo afirmando que não tem nenhuma intenção de dissertar contra a imagem e
as tecnologias da comunicação, já que ‘isso não teria sentido’, Augé (2006, p. 113) diz
que precisa sublinhar os perigos que “comportam a alienação progressiva a uma
tecnologia” e lembra que a imagem, por mais sofisticada que possa ser, só é uma
imagem, ou seja, um meio de ilustração, algumas vezes de exploração, frequentemente
de comunicação e distração (AUGÉ, 2006, p. 112-113).
Com base nisso, Augé (2006, p. 113) também enumera o que chama de algumas
ambiguidades de nossa relação com a imagem, antes de propor em que condições pode
não ser a imagem um obstáculo à livre construção de nossas identidades coletivas e
individuais. Cita por exemplo as imagens percebidas ou recebidas pelos televisores que
têm como características: igualar acontecimentos e pessoas e tornar incerta a distinção
entre o real e a ficção. Para Augé (2006, p. 114), o grande problema hoje é que com
frequência “a imagem já não representa um papel de mediação com o outro, mas sim de
identificação com ele”. O incômodo, na observação do autor, se instala “quando a ficção
faz às vezes de real, quando tudo acontece como se não houvesse outra realidade além
da imagem” (AUGÉ, 2006, p. 114).
Ao propor a palavra virtualização no título do projeto Transcodificações
Urbanas nos inclinamos a pensar o virtual, inicialmente, como Levy (1999) propõe ao
afirmar que “é virtual toda entidade ‘desterritorializada’, capaz de gerar diversas
manifestações concretas em diferentes momentos e locais determinados, sem contudo
estar ela mesma presa a um lugar ou tempo em particular” (LEVY, 1999, p. 47). Em
outras palavras se apropriar do virtual de acordo com a origem da palavra. Aquela que
vem do latim medieval, virtualis, derivado por sua vez de virtus, força, potência.
1611
Na filosofia escolástica, é virtual o que existe em potência, e não
em ato. O virtual tende a atualizar-se, sem ter passado, no entanto, à
concretização efetiva ou formal. A árvore, por exemplo, está
virtualmente presente na semente. Em termos rigorosamente
filosóficos, o virtual não se opõe ao real, mas, sim, ao atual:
virtualidade e atualidade são apenas duas maneiras de ser, diferentes
(LEVY, 1996, p. 15).
1612
deslocamento, passagem pelo “ponto virtual”, ser potência pela possibilidade de
tornarem atuais. Os ambientes imersivos do projeto objetivam, desta forma, propiciar ao
visitante a possibilidade de passar pelo “ponto virtual”, de vivenciar um ambiente que
existe em potencia justamente por ser possível “realizá-lo”. Mas esta passagem, em
pêndulo, requer dois movimentos. O primeiro que o ambiente modelado e socializado
em rede, como potência, seja lugar de usos outros, emergentes. O segundo, atrelado ao
primeiro, é que exige interação, participação do visitante, permitindo novas vivências.
Sem esses dois movimentos não seria possível exercitar a virtualização,
inclusive de museus e patrimônio. Portanto, a simples reprodução de imagens e dados
em Websites, tenham ou não referentes físicos em acervos organizados em instituições,
se aproxima mais da linearidade da difusão, que os torna conteúdo para ser recebido ou
percebido, portanto “atuais”. Da mesma forma, se estabelecem em igual patamar as
tentativas de “substituição da realidade pela imagem” (AUGÉ, 2006, p. 115), onde a
interação é limitada, ou inexistente, criando uma ilusória sensação de participação,
centrada em eixos perceptivos. É preciso, portanto, lançar-se ao desafio da
contemporaneidade, já que:
1613
Os povos de língua inglesa chamam de agenciamento (agency) a
sensação experimentada por um interator de que uma ação significante
é resultado de sua decisão ou escolha (Murray, 1997: 126).
Normalmente, quando lemos um romance ou assistimos a um filme,
não esperamos que qualquer de nossas ações possam interferir na
evolução da história, ou seja, não experimentamos nenhum sentimento
de agenciamento. Por mais grave ou perigosa que seja a situação
apresentada em um filme, sabemos que nada podemos fazer, enquanto
espectadores, para ajudar as personagens. Já nos meios digitais, nós
nos defrontamos o tempo todo com um mundo que é dinamicamente
alterado pela nossa participação (MACHADO, 2007, p. 212).
1614
O patrimônio nas cidades está envolto a dinâmicas e transformações típicos da
contemporaneidade. Mais especificamente, Canclini (2006, p. 300-301) trata dos
monumentos em ambiente urbanos, e defende que na atualidade a observação destes
deve considerar que estão envoltos em tensões entre a memória histórica e a trama
visual das cidades modernas. Uma mudança de enfoque que os desloca do prisma de
que eram inscritos, junto com as escolas e os museus, como um “cenário legitimador do
culto tradicional”, onde eram considerados quase sempre como obras com que o poder
político consagrara pessoas e acontecimentos fundadores do Estado. Na
contemporaneidade e na urbanidade, ocorrem transgressões destes cenários a partir de
novos usos. Por estarem em local de circulação pública, os monumentos – mais que os
museus e as escolas - “estão abertos à dinâmica urbana, facilitam que a memória
interaja com a mudança, que os heróis nacionais se revitalizem graças à propaganda ou
ao trânsito [...]” ou que sejam atualizados pelas “irreverências’ dos cidadãos”
(CANCLINI, 2006, p. 301).
Expostos à vida contemporânea, sem as barreiras físicas que circundam as
instituições culturais, os monumentos mobilizam diferentes formas de apropriação,
articuladas por cidadãos de origens ou grupos sociais diversos. Remetem ao passado,
mas são vivenciados no presente, estabelecendo ligações entre tempos múltiplos,
ativadas pela relação que se dinamiza entre o indivíduo e o objeto, em cenário público.
Dinamismo que permite o surgimento de interferências variadas: da pichação à
publicidade, do nexo arquitetônico com o entorno a locais contemporâneos de lazer, de
expressão artística ou de se fazer política. Firmam-se como portais simbólicos, que
aludem ao passado, mas são ressignificados no presente.
Apesar de ser profícua, como pontua Canclini (2006), nos estudos e debates
sobre a modernidade latino-americana, a questão dos usos sociais do patrimônio
continua ausente e, diante da magnificência de certos bens, “não ocorre a quase
ninguém pensar nas contradições que expressam” (CANCLINI, 2006, p. 160).
1615
Por isso, questiona com que recursos teóricos "podemos repensar os usos sociais
contraditórios do patrimônio, dissimulado sob o idealismo que o vê como expressão do
gênio criador coletivo" (CANCLINI, 2006, p. 193). Propõe estudar o patrimônio como
espaço de luta material e simbólica entre classes, as etnias e os grupos. Afirma que esse
princípio metodológico corresponde ao caráter complexo da sociedade contemporânea.
A partir dessa linha de raciocínio traz os estudos de Raymond Williams para propor as
bases de uma política cultural e de pesquisa capaz de superar a oposição entre o
"tradicional" e o "moderno". Para isso, deve considerar a diferença entre o arcaico, o
residual e o emergente, proposta por Raymond Williams.
Não observar essa construção proposta por Raymond Williams é apontada por
Canclini (2006, p. 198) como uma causa das políticas culturais menos eficazes porque
ao se agarrarem ao arcaico ignoram o emergente, uma vez que não conseguem articular
a recuperação da densidade histórica com os significadores recentes gerados pelas
práticas inovadoras na produção e no reconhecimento. Canclini (2006, p. 202) é
enfático em afirmar que uma política de pesquisa relacionada ao patrimônio não deve se
reduzir à tarefa da busca por objetos “autênticos” de uma sociedade. Defende que
devemos nos importar mais com os processos que com os objetos, e não na sua
capacidade de permanecer “puros”, iguais a si mesmos, mas por sua representatividade
social.
Quando se trata dos usos sociais do patrimônio através das tecnologias
comunicacionais também se torna indispensável considerar o arcaico, o residual e o
1616
emergente para se opor ao dualismo entre o presente e o passado. Mais do que
apresentar o patrimônio como um objeto “autêntico” da sociedade (o arcaico), as
tecnologias comunicacionais podem nos permitir enxergar novos horizontes daquilo que
permanece (o residual) para trazer outras formas de apropriação, novos significados (o
emergente).
Um exemplo é o caso do Chafariz das Sereias, um dos monumentos mais
instigadores da Amazônia, do início do século XX (o arcaico). A pesquisa desenvolvida
pelo projeto Transcodificações Urbanas a partir do residual, o monumento que localiza-
se na Praça da República, na área central de Belém do Pará, o revelou envolto na
história da política de abastecimento de água da cidade, precária no final do século XIX
e começo do século XX, o que teria justificado a construção de vários chafarizes na
capital, entre os quais o das Sereias, para atender à demanda da população na época.
Por outro lado, ao apresentarmos a virtualização do Chafariz, que podemos observar em
um fragmento na figura 2, a propomos como opção rumo ao emergente, o que inclui
desvelar uma história que até então existia sem estar presente.
1617
A partir de um relato de um professor de Matemática, durante uma das
apresentações da experiência em escolas públicas da capital paraense, destinadas a
docentes e discentes, foi possível ainda observar que disponibilizar as modelagens do
monumento, em ambiente de rede, abre novas possibilidades para o ensino. Pode ser,
inclusive, uma forma de revisitar a história da cidade ou até mesmo de ser usado como
um exercício de cálculo acerca das dimensões de um monumento. Inferências que
fortalecem o emergente, a partir de novas práticas, sem deixar de estabelecer ligações
com o arcaico e o residual.
Nessa perspectiva, o recurso à tecnologia pode de fato apresentar novos usos
sociais do patrimônio. Devem, como propõe Canclini (2006, p. 202), as áreas
investigação, de estudos do patrimônio, romper com a finalidade centralizada em
almejar a autenticidade ou restabelecê-la, mas sim reconstruir a verossimilhança
histórica e estabelecer bases comuns para uma reelaboração de acordo com a
necessidade do presente. Abertura epistemológica na qual se baseiam as experiências e
a pesquisa em torno da virtualização de monumentos, propondo-se a expandir o
patrimônio em ambiente imersivo que facilite a interação, como forma de levar em
conta seus usos sociais, inclusive em ambiente sociotécnico, como nova estratégia que
considera também o emergente, inserido no processo de preservação, valorização e
vivência dos espaços de patrimônio pelo público.
Referências bibliográficas
AUGÉ, Marc. Sobremodernidade: do mundo tecnológico de hoje ao desafio essencial
do amanhã. In: MORAES, Denis. Sociedade Midiatizada. Rio de Janeiro, Mauad,
2006.
1618
. Portal Brasil. Disponível em:
<http://www.brasil.gov.br/cultura/2011/05/museu-virtual-divulga-historia-e-atrativos-
de-brasilia-na-internet>. 2011b. Acesso em: 14 fev. 2016.
CASTELLS, Manuel. Internet e sociedade em rede. In: MORAES, Denis de (Org.). Por
uma outra comunicação. Rio de Janeiro: Record, 2003.
GOOGLE cria ferramenta para visitação virtual de museus em 360 graus. Globo.com.
Disponível em: <http://oglobo.globo.com/economia/tecnologia/google-cria-ferramenta-
para-visitacao-virtual-de-museus-em-360-graus-2902679>. Acesso em: 18 set. 2014.
1619
<http://periodicos.unb.br/index.php/museologia/article/view/9627/7117>. Acesso em:
10 jul. 2014.
1620
AS NOVAS TECNOLOGIAS A SERVIÇO DA COMUNICAÇÃO MUSEAL
Resumo: O presente trabalho consiste no plano de trabalho intitulado “As Novas tecnologias à
serviço da comunicação Museal”, que faz parte do projeto de Iniciação científica ano 2017-8
coordenado pela professora Priscila Maria de Jesus, com o título de “Gamificação nos
museus: o uso de novas tecnologias na comunicação museal”. Abordarei o que consiste
minhas atividades de voluntária na pesquisa, bem como as leituras em andamento.
Palavras-chave: Novas tecnologias; comunicação museal; Gamificação.
Abstract: The present work consists of the work plan titled "The New Technologies at the
service of the Museal communication", that is part of the project of Scientific initiation year
2017-8 coordinated by the teacher Priscila Maria de Jesus, with the title “Gamification in the
museums: the use of new technologies in museum communication ". I will discuss what my
volunteer research activities consist of, as well as the readings in progress.
Key-words: New technologies; museum communication; Gamification.
1621
O percurso dentro da Academia parte da busca pelo alinhamento de pesquisas e
teorias com os anseios pessoais. Assim, a participação em projetos de Iniciação
Científica, Tecnológica e/ou de Extensão são motivados e almejados pelos discentes ao
longo de sua formação acadêmica.
1622
O plano de trabalho conta com seis etapas para serem desenvolvidas ao longo de
um ano de pesquisa, que vão desde do levantamento bibliográfico, mapeamento dos
museus, apresentações de relatórios, cruzamento dos dados, entre outros.
Revisando literatura
1623
O que é Gamificação?
1624
Realidade Aumentada
Pode-se salientar que as novas mídias servirão como estímulo para ampliar e
potencializar a dinâmica do processo ensino/aprendizagem dentro e fora dos espaços
dos museus. Essa estratégia estimula e motiva o indivíduo para construir o seu próprio
conhecimento, a partir da sua interação e decodificação da informação passada. No
entanto, como em qualquer ação de comunicação o resultado pode ser positivo ou
negativo, sendo necessário a realização de estudos de impacto para precisar essas
informações.
1625
sem o uso das novas tecnologias não poderíamos executá-las ou serem apreendidas.
Mas, a partir das experimentações, seja com realidade aumentada ou virtual passamos a
aceitar de forma mais positiva o que nos é informado. No entanto os games solicitam do
usuário um retorno para saber se aconteceu a aprendizagem e a compreensão das
informações passadas, sendo necessário e importante nesse momento os questionários
de sondagem e avaliação de público para saber até onde as estratégias utilizadas
realmente alcançaram seus objetivos.
Considerações Finais
1626
Existe possibilidades de encontrar a prática da gamificação nos espaços
museológicos sergipanos?
Referências bibliográficas
1627
CULTURA MATERIAL AMAZÔNICA NO AMAZONIAN MUSEUM NETWORK
EXPOSIÇÃO DIGITAL SOB OLHAR PROCESSUALISTA
Resumo: Este trabalho resulta de uma análise expográfica, a partir do cibermuseu Amazonian
Museum Network. Realizamos uma breve análise da exposição a partir das linhas teóricas da
arqueologia, empregadas como formas de compreender a cultura material em relação com seu
contexto. À luz dessas linhas de pensamento, identificamos uma maior aproximação dessa
narrativa expográfica às proposições da arqueologia processualista. A partir das implicações
disto, apresentamos por fim algumas considerações sobre a exposição digital como forma de
acesso ao patrimônio cultural etnográfico.
Palavras-chave: análise expográfica; processualismo; Amazônia guianense.
Abstract: This work results from an expographic analysis of the virtual museum Amazonian
Museum Network. We present a brief analysis about the exposition based on archaeological
theoretical lines, used as understanding tools of the material culture in relation to its context. On
this base, we identified proximity of the expographic narrative with the processual archaeology
propositions. From this implications, we finish with some considerations about the virtual
exhibition as way of access to the ethnographic cultural heritage.
Key-words: expographic analysis; processual archaeology; Amazonian Guyana.
1628
O Amazonian Museum Network – Coleções do Planalto das Guianas é um museu
digital, ou cibermuseu, que agrega diversas coleções, de cunho principalmente
etnográfico. Tais coleções são oriundas de lugares e tempos diferentes, mas atreladas
por uma lógica que dá norte à exposição “Patrimônio Conjunto”, referente aos acervos
de cultura material de povos dessa região. Com base nas informações oferecidas pelo
site, e percebidas pela consulta ao mesmo, apresentamos no primeiro tópico uma
descrição do projeto e sua proposta. O segundo tópico consiste de uma breve análise da
exposição buscando correlações possíveis com as linhas teóricas do pensamento
arqueológico, histórico-culturalismo, processualismo e pós-processualismo.
Considerando essas linhas teóricas da arqueologia de forma ampla, como ferramentas de
interpretação dos vestígios da cultura material em relação com seu contexto,
experimentamos aqui situar uma proposta expositiva de acervo etnográfico e sua
narrativa a partir destas bases teóricas. Apresentamos assim algumas considerações
sobre a exposição digital do Amazonian Museum Network à luz dessas linhas de
pensamento, onde identificamos a preponderância de uma ótica mais próxima ao
processualismo, mas evitando delimitações estanques.
1629
países: uma parte da Venezuela, a Guiana, o Suriname, a Guiana Francesa e uma parte
do Brasil, principalmente os estados do Amapá e do Pará.
O catálogo agrupa coleções etnográficas de povos ameríndios e marrons (termo
mais utilizado pelo AMN para se referir a comunidades quilombolas) instalados nos
dois lados das fronteiras guianense, brasileira e surinamense: Wayãpi, Wayana,
Parikwene, Kali'na, Lokono, Teko, Tiriyó, Aparai, Ndjuka, Saamaka, Paamaka,
Matawai. Existem planos futuros para a sua ampliação através da integração gradativa
de outras peças, registradas no inventário dos museus da região, objetos provenientes de
outros grupos culturais, mas também de coleções que abrangem outros domínios como a
arqueologia, que já se faz presente nas coleções dos museus. Cada ficha de objeto
contém as habituais informações de um inventário museal, apresenta fotografias e
permite acrescentar comentários.
A criação do catálogo das coleções ameríndias e marrons dos museus, acessível
online, e a implementação de ações para a formação de pessoas e a organização de
encontros transfronteiriços estava entre os primeiros objetivos do programa. O catálogo
e exposições apresentadas pelo site intentam, entre outros objetivos, uma forma de dar
acesso às populações da região às coleções que confeccionaram e que ofertaram,
trocaram ou venderam, e assim estão na origem da constituição dos acervos desses
museus, por vezes depositados em reservas técnicas e com dificuldade de serem
expostos. A iniciativa visa também uma “melhor consideração da natureza
transfronteiriça das populações e do seu patrimônio, e para acompanhar a origem de
produções culturais comuns” (AMN), bem como a cooperação entre as instituições
patrimoniais do Planalto das Guianas. Busca oferecer aos pesquisadores a oportunidade
de usá-lo como ferramenta de referência, como subsídio em seus trabalhos. Para todos
os internautas, ele constitui igualmente uma primeira abordagem das culturas existentes
no Planalto das Guianas.
1630
Museus da Amazônia em Rede na ótica processualista
O projeto Amazonian Museum Network é, portanto, constituído pela agregação
digital de itens dos acervos físicos de diferentes museus da região amazônica. Desse
modo, constitui-se um acervo digital diverso, transfronteiriço, onde é possível ao
visitante do site visualizar na mesma exposição objetos depositados em museus de
países diferentes. Em alguns casos, objetos provenientes de uma mesma etnia
encontram-se em dois ou três museus diferentes, mas através do site podem ser
consultados e vistos em conjunto, por meio do catálogo online que possibilita a consulta
por grupo de origem.
Muito embora haja raros exemplares arqueológicos, e a maior parte do acervo
digitalizado seja fruto de pesquisa etnográfica e populações históricas, como já foi dito,
o projeto se propõe a ser tanto etnográfico quanto arqueológico no futuro, possibilitando
então pensar no vínculo analítico e expográfico entre passado e presente. Pela proposta
ser organizada em torno da cultura material, e de sua relação com um determinado
território, questões pertinentes à arqueologia, buscamos aqui compreender o projeto
Museus da Amazônia em Rede (AMN) sob uma ótica processualista a partir da
correlação com alguns aspectos pertinentes de suas exposições virtuais e organização de
seu acervo.
A arqueologia processual, ou nova arqueologia, não veio romper totalmente com
os preceitos já realizados pela arqueologia histórico-cultural, porém, propôs um novo
modelo de pesquisa no qual tentava entender a cultura de povos primitivos e como se
dava esse funcionamento. O histórico culturalismo é um trabalho extremamente
importante, estabelecendo uma orientação geográfica de onde esses objetos encontrados
vieram, buscando entender a origem da cultura dos povos. O processualismo buscou
através de novas ideias uma compreensão mais ampla. Como cita Lewis Binford,
teórico da nova arqueologia, “cultura deveria ser analisada de forma sistêmica e
1631
processual na qual o processo se refere às relações dinâmicas de causas e efeitos que
operam entre os componentes do sistema e o meio ambiente” (BINFORD, 1968, p. 269,
apud Di BACCO, 2009). Busca-se aplicar um rigor científico na análise e interpretação
dos vestígios da cultura material, com ênfase em modelos que possam ser aplicados a
diferentes contextos e culturas, mas sem pressupor linearidades, aculturação ou difusão
cultural, valorizando questões propostas a partir dos próprios vestígios.
Sobre o processualismo a fala de Flanery tenta iluminar de maneira simples e
clara:
[...] busca entender e explicar o sistema que está por trás de ambos os
indivíduos e materiais de uma cultura. Esse sistema é constituído por
partes que se interagem e que estão em constante relação com o meio
ambiente natural. A estratégia é isolar cada sistema e estudar cada
uma de suas variáveis separadamente. O objetivo final é a
reconstituição completa do padrão de articulação, ao longo de todos os
sistemas relatados (FLANERY, 1973, p 105, apud Di BACCO, 2009).
Assim busca entender mecanismos que regulem esses processos. O processo que
visa a relação do homem com o meio ambiente, algo bastante abordado pelo
processualismo, tem grande importância no acervo digitalizado no AMN, que remonta a
sua importância, expondo como o próprio site cita uma coleção de “Braceletes, colares,
cintas de contas, e também peças de cerâmica, bancos, pentes... As representações de
animais dos povos do Planalto das Guianas podem ser vistas em inúmeros e diversos
objetos.” (AMN, 2017). Enfatizando o vínculo cultural desses povos com seu meio.
Elementos comuns entre os povos ameríndios e maroons aparecem, por exemplo,
em diferentes aspectos de sua cultura material, como desenhos de seus utensílios
fazendo alusão a animais que eram presentes em ambos os territórios, até por conta de
sua proximidade. Segundo Schaan: “A prática pré-colombiana de esculpir e pintar
símbolos da cobra grande na cerâmica, que indicou a grande importância desse animal
na mitologia indígena marajoara, aparece na cosmologia dos quilombolas do Rio
Gurupá, na mesma região” (2014, 29). A autora ressalta, porém, que devido
1632
principalmente os grandes impactos da colonização não é possível traçar uma
continuidade histórica linear entre as populações do passado e do presente.
Correlacionando com o AMN, há uma grande área geográfica de referência, o
planalto amazônico guianense. Engloba etnias diversas, mas que têm em comum esse
meio ambiente e território amazônico. Segundo o site, o museus da rede conservam e
valorizam ricas coleções de bens culturais que são muito próximas devido a sua origem
cultural, pelos seus materiais e também seus usos.
Como dito acima, não se rompe de todo com o histórico-cultural, pois a ênfase
sobre as culturas, como funcionam, suas particularidades, não é abandonada. O acervo é
organizado a partir de grupos culturais: a cultura material como meio de representar a
diversidade de povos que ocupam ou ocuparam a região. Mas as exposições, temáticas,
enfatizam as características compartilhadas entre eles.
As diversas etnias são então como delimitação das coleções, mas aparecem
associadas nas exposições, de modo que não são compreendidas de forma isolada, mas a
partir de características em comum. Dentre essas características se destaca, como já
apontado, o vínculo com o meio em que vivem, identificado pelas representações da
natureza, sobretudo de animais, inscritas em diversos suportes, na exposição
“Representações de Animais”.
Uma segunda exposição é titulada “As Representações Humanas”. Enfatiza que
essas diversas culturas valorizam várias formas de representação do corpo humano, ou
mesmo representações destinadas a se inscrever sobre o corpo de alguma forma, embora
cada povo o faça a sua maneira. Engloba maneiras como o corpo humano era retratado,
seus marcadores sociais de identidade, e suas atribuições masculinas e femininas.
Remete a ideia de estilos pan-amazônicos, presente já desde Lathrap:
1633
presente. Pode-se falar assim de uma arte indígena amazônica geral,
com variações regionais, ou estilos regionais. (BARRETO, 2005, p. 6)
Temos então exposições que enfatizam o trânsito entre as culturas e sua relação
simbólica e material com o meio em que vivem, sem incorrer, no entanto em uma lógica
difusionista uniformizante, ou de um evolucionismo linear, mais ligada a uma fase
ultrapassada do histórico-culturalismo (embora este não seja ultrapassado no geral).
Sanches aponta a força desse tipo de pensamento nos museus do mundo, incluindo os
brasileiros:
Shaan resume bem a influência que essa escola teve e tem para arqueologia
amazônica, desde o trabalho de Betty Meggers, que ainda se valeu, sobretudo de seus
métodos, embora já fosse pertinente em sua análise a relação ecológica entre cultura e
1634
meio, ainda que de modo determinista. Essa relação ecológica entre a cultura material e
o meio continua sendo marcante na arqueologia amazônica, adotando novas formas, e
reconhecendo uma maior agência dos grupos humanos, tal como já se deu nas pesquisas
posteriores de Anna Roosevelt, já decididamente processualista (2014, 20).
Então, além da correlação entre cultura material e meio, lógica pela qual se
organizam as coleções digitais do AMN, a arqueologia processualista incorpora também
métodos e modelos provenientes da etnologia. Nesse sentido também é que
compreendemos a possibilidade de uma ótica processualista mesmo em uma exposição
majoritariamente etnográfica, por se tratar de um olhar possível sobre uma exposição de
cultura material.
Por fim, a exposição geral, chamada “Patrimônio Conjunto”, pela qual é possível
navegar todo o acervo. Refletimos aqui que a ênfase nestas características
compartilhadas tem implicações quanto à questão da guarda dos objetos. A lógica do
patrimônio comum implica as instituições na ampliação do acesso. Ao mesmo tempo,
não necessariamente fortalece demandas particulares de grupos, muitos ainda existentes,
1635
no sentido de reaver suas próprias peças, já que tem acesso online a elas, tanto quanto
pesquisadores ou outros “visitantes”. Fica a questão de que em medida o formato de
cibermuseu pode ser solução ou obstáculo nessas disputas. Menezes reflete criticamente
sobre os museus virtuais no contexto de uma tendência cada vez maior da nossa
sociedade à desmaterialização, em certa medida indesejável, pois capaz de produzir no
ciberespaço um simulacro de mundo configurável (2007, p. 57-58). Em que medida
então poderia satisfazer a essas comunidades o acesso ao patrimônio material
desmaterializado? Por outro lado a disponibilização online da informação parece ser um
grande passo na democratização do acesso. Pode até permitir a aproximação das
comunidades de origem a seus bens, se os acervos físicos forem mantidos próximos, ou
houver esforço das instituições. Segundo as redes sociais do AMN, identificamos a
realização de ao menos um evento onde uma delegação indígena teve contato direto
com objetos de sua etnia.
Sobre a acessibilidade do acervo em geral cumpre mencionar, por exemplo, que a
característica multilíngue (português, francês, inglês e holandês) do projeto impõe
alguma dificuldade, já que nem todas as seções são traduzidas automaticamente com
sucesso, e eventualmente encontramos a ficha de um objeto nas línguas maternas dos
museus, sem tradução disponível. O que pode não ser um problema para pesquisadores,
mas dificultar o acesso do público em geral e talvez ainda mais das comunidades ligadas
aos itens dos acervos. O site apresenta a possibilidade de interação por meio de
comentários, para tirar dúvidas ou partilhar informações. No entanto a resposta aos
comentários parece não ser muito expressiva, dependendo é claro da disponibilidade de
equipe e da continuidade do projeto.
Considerações finais
Enfatizamos aqui a correlação possível entre a exposição da cultura material
amazônica do Amazonian Museum Network e a análise da cultura material em uma ótica
1636
da arqueologia processualista. Isso não exclui a possibilidade de observarmos outras
correlações, como a histórico-culturalista. Sobretudo pela condição se tratar de coleções
etnográficas, nos remetem à importante aproximação entre arqueologia e etnologia. Não
se excluem também as correlações as correntes pós-processualistas. Vimos que as
exposições do AMN exploram bastante o simbolismo expresso na cultura material. As
culturas podem ser vistas também de forma particular, mas consideramos que a proposta
principal do museu é a dos temas transculturais, delineados através de características
comuns.
Por fim, ressaltamos a proposta do projeto em si, que visa romper a elitização,
por assim dizer, do acesso aos bens culturais, por meio da acessibilidade do próprio
acervo digital, e da promoção de projetos, debates e capacitação conjunta entre os
museus participantes e as comunidades relacionadas aos itens do acervo. Trata-se de
uma organização que não se assenta sobre a tipologia de artefatos exóticos e raridades.
E embora haja uma narrativa de questões compartilhadas, também é possível, através da
busca pelo catálogo online, acessar o conjunto de objetos de cada grupo em particular.
Referências bibliográficas
BARRETO, C. Arte e Arqueologia na Amazônia Antiga. Centre for Brazilian Studies,
University of Oxford, Working Paper 66. 2005. Disponível em:
http://www.lac.ox.ac.uk/sites/sias/files/documents/Cristiana%2520Barreto%252066.pdf
DI BACO, Hiuri M., FACCIO, Neide B. & LUZ, Juliana R. Das raízes da pesquisa
arqueológica a Arqueologia Processual: um esboço geral. Tópos. v. 3, n. 1, p. 206-233,
2009.
MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Os museus na era do virtual. In: Bittencourt, José
Neves; Granato, Marcus & Benchetrit, Sarah Fassa. (Org.). Museus, ciência e
tecnologia. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2007, p. 48-70.
1637
SCHAAN, Denise Pahl. Arqueologia para Etnólogos: Colaborações entre Arqueologia e
Antropologia na Amazônia. Anuário Antropológico, Dossiê: "Aprofundando a
Amazônia: Contribuições da Arqueologia à Etnologia", 2014.
Internet:
AMN. Amazonian Museum Network. (http://amazonian-museum-network.org/pt-br).
1638
O JOGO 3D COMO RECURSO PEDAGÓGICO PARA A APRENDIZAGEM
SOBRE ARTE PÚBLICA
Mônica de Nazaré da Costa Pereira*
Dávison Cirilo Queiroz Miranda**
Rian Araújo Moraes***
Ubiraélcio da Silva Malheiros****
Resumo: O presente trabalho aborda a relação entre arte e cidade, especificamente o estudo da
arte pública ̶ monumentos, espaços culturais e intervenções instalados nos espaços urbanos –
fomentando a leitura do lugar ao qual pertencemos, criando-se assim um recurso pedagógico
para ser usado em sala de aula de forma didática e lúdica. A partir disso, o Grupo de Estudos
sobre Arte Pública - Belém, por meio do projeto “Arte pública como recurso pedagógico: a
cidade conta sua história”, projetou um aplicativo de jogo eletrônico para ser utilizado por
professores e alunos, aliando o lúdico à tecnologia, ampliando as possibilidades de
aprendizagem sobre o ensino de Artes e a história da cidade. Busca-se que o jogo possa levar ao
aluno a conhecer um pouco da cultura e patrimônios do espaço em que vive, utilizando-se como
roteiro inicial a Praça da República, Belém. Este projeto tem reunido discussões acerca do tema
fundamentados por SILVA (2005), FERRARA (1988), KISHIMOTO(2011), LIBANÊO (1994),
COSME e MALHEIROS (2015). Quanto aos procedimentos metodológicos trata-se de uma
pesquisa bibliográfica e de campo. A primeira deve possibilitar estreitar as relações entre o
estudo da arte, cultura e sociedade, com a educação, buscando teóricos que norteiem a discussão
sobre os principais temas, afirmando a importância do lúdico no processo de ensino e
aprendizagem na disciplina de artes, assim como ampliar as possibilidades de
interdisciplinaridade, haja vista que esse estudo da cidade e seus patrimônios também fazem
parte de conteúdos em outras disciplinas como história e geografia. A pesquisa de campo dentro
dos próprios espaços urbanos deve mapear onde estão instalados os objetos artísticos. Sendo
assim, propõe-se pensar sobre a importância do teor dessa pesquisa, incorporada a criação de
um recurso pedagógico, que alie educação à tecnologia, propondo um novo olhar e atitudes do
transeunte ao seu próprio lugar de convivência.
Palavras-chave: arte pública; lúdico; educação.
Abstract: The present work deals with the relationship between art and city, specifically the
study of public art ̶ monuments, cultural spaces and interventions installed in urban spaces -
encouraging the reading of the place to which we belong, thus creating a pedagogical resource
to be used in the room classroom in a didactic and playful way. From this, the Study Group on
Public Art - Belém, through the project "Public Art as a pedagogical resource: the city tells its
story", designed an electronic game application to be used by teachers and students, combining
the playfulness with technology, expanding the possibilities of learning about the teaching of
Arts and the history of the city. It is intended that the game can lead the student to know a little
about the culture and patrimony of the space in which they live, using as an initial script the
1639
Praça da República, Belém. This project has gathered discussions about the theme based on
SILVA (2005 ), FERRARA (1988), KISHIMOTO (2011), LIBANÊO (1994), COSME and
MALHEIROS (2015). As for the methodological procedures, it is a bibliographical and field
research. The first should make it possible to strengthen the relations between the study of art,
culture and society, and education, seeking theorists to guide the discussion of the main themes,
affirming the importance of the playful in the teaching and learning process in the arts
discipline, as well as expand the possibilities of interdisciplinarity, since this study of the city
and its patrimony are also part of contents in other disciplines such as history and geography.
Field research within the urban spaces themselves should map where the artistic objects are
installed. Thus, it is proposed to think about the importance of the content of this research,
incorporating the creation of a pedagogical resource, which alies education to technology,
proposing a new look and attitudes of the passer-by to their own place of coexistence.
Keywords: Public Art; Playful; Education.
1640
Desvendando a cidade por meio da arte pública e do lúdico
Toda cidade carrega consigo sua memória e parte dessa memória é apresentada
visualmente por meio de suas características na infraestrutura, organização ambiental,
transformações urbanas, políticas e também, por meio da arte e intervenções artísticas
presentes nela.
Para Ferrara (1988) os elementos perceptíveis dentro de um espaço urbano são
os subsídios que compõe, como prática e compreensão, um conceito sobre cidade,
entretanto, por se tratar de um espaço já homogêneo e comum, muitas vezes, aos olhos
do transeunte, ela acaba deixando-se passar despercebida. Logo, é preciso reeducar a
percepção, aprimorando o conhecimento a partir de novas informações sobre a leitura
dos signos presentes na cidade, desvendando sua história.
A Arte Pública, objeto principal neste artigo, não é um termo novo, ela vem
sendo discutida desde os anos 60 e na década de 70 ficou conhecida como site specific,
1641
para a pesquisa final a que se pretende, tem-se, como objetivo, neste grupo de estudos, o
desenvolvimento de um jogo em 3D, que será utilizado, também, como recurso
pedagógico para ampliar e tornar mais presente nas aulas de artes a questão da arte
pública e o patrimônio histórico existentes na cidade.
O jogo terá como espaço principal a Praça da República, de Belém-Pa, local
muito frequentando, principalmente por jovens de todas as esferas sociais. Nele se
apresentarão as esculturas existentes nesse ambiente, as intervenções, os contextos
sociais e culturais presentes nela, entre outras práticas artísticas que acontecem durante
a semana e principalmente aos finais de semana, momento em que a praça é muito
frequentada. Todos esses aspectos serão demonstrados no desenvolvimento do jogo, o
qual será melhor descrito no decorrer deste artigo.
O jogo, ainda em fase de desenvolvimento, estará disponível gratuitamente para
smartphones, facilitando sua distribuição. Logo, o fácil acesso possibilitará fortalecer os
debates sobre o assunto, assim como ampliar a percepção do indivíduo, fazendo-o
observar sua cidade e as esculturas presentes nela.
Infelizmente, a dinâmica acelerada dos tempos atuais faz com que muitas
intervenções e obras artísticas públicas – algumas já tão comuns aos olhos dos
moradores locais – não sejam notadas, ou então tidas como abandonadas, por conta do
descuido dos governantes e, algumas vezes, por conta dos próprios moradores da
cidade. O jogo, portanto, seria uma proposta que auxiliaria na criação desse alerta para a
valorização dos patrimônios históricos da cidade e resgatar a história do lugar já
esquecida por muitos.
É possível observar que o cenário urbano ao qual pertencemos se desenvolve,
mas mantém, de uma forma ou outra, suas esculturas históricas e junto a elas novas
intervenções feitas por artistas anônimos ou não, questionando suas condições na
sociedade ou até mesmo, significando e ressignificando o local, ou obra no espaço
público.
1642
É interessante observar que dentro desse novo contexto a arte pública
compreenderá a cidade sob novas perspectivas, ou seja, a ela discutirá
1643
em Belém-Pa, onde está presente o monumento à República, que tem como objeto
principal em sua composição a figura de uma mulher.
A metodologia a ser utilizada para melhor integrar a importância do tema arte
pública e os patrimônios históricos, dentro de um jogo eletrônico, será a de,
primeiramente, fundamenta-lo por meio de uma pesquisa bibliográfica consistente, na
qual serão levantadas referências dos autores que teorizam conceitos sobre leitura da
cidade, cultura e arte pública, além de autores que dissertam sobre a cidade de Belém,
principalmente, a Praça da República, local onde o jogo se passará.
Além disso, para que melhor possa haver a inserção da perspectiva do jogador
dentro da plataforma, todos os envolvidos na realização do projeto realizaram visitas
técnicas em grupo para mapeamento e registros das obras que se enquadram como arte
pública dentro da Praça da República, assim como realizar registros fotográficos que
serviram de base para a modelagem dos personagens dentro do jogo 3D.
As modelagens para o jogo foram criadas em low poly, que é um tipo de
modelagem feita com baixo número de polígonos, por meio de um programa chamado
3dsmax, ganhando assim um aspecto mais lúdico para se trabalhar com crianças. A
programação do jogo ficou a cargo do programa Unity, até a versão Beta, que após
aprovada pelo coordenador do projeto, será complementada e finalizada.
O roteiro do jogo se inicia a partir de um pequeno incidente envolvendo a
escultura central na praça, o monumento À República, que tem como figura destacada
em sua composição Marianne. Após o acontecimento ela solicita a personagem
principal do jogo, uma garotinha que passeava pelo local, ajuda para resolver a questão.
Para tanto, a jovem personagem deverá desvendar os mistérios e enigmas presentes no
território e assim ir descobrindo a história da cidade, os costumes do local, os
patrimônios ali existentes, além de contemplar o objetivo final do jogo, que é ajudar a
escultura a manter a história local viva, para que ninguém nunca esqueça as memórias
da cidade.
1644
Para Campagne (1989 apud KISHIMOTO, 2011) o jogo como recurso na
educação possui atualmente uma relação entre dois fatores, que seriam como função
lúdica, a qual se tem diversão e prazer, ou até mesmo desprazer pelo que se está
fazendo, e a função educativa, na qual o jogo repassa um novo conhecimento ou instiga
novas questões sobre o mundo.
As duas funções juntas, formam, portanto, um jogo educativo, pois como
apresenta Kishimoto (2011) quando elas são apresentadas independentes entre si, ou
seja, o lúdico pelo lúdico, ou o educativo pelo educativo, o jogo perderia seu valor
como recurso pedagógico, logo não seria significativo para uma metodologia
consistente. Seria utilizado apenas pelo prazer, ou valeria apenas como disciplina, um
conteúdo apenas ministrado e obrigatório.
Acredita-se que esta proposta aliada ao lúdico e mediada por um professor de
Artes pode contribuir para ampliar a discussão sobre arte pública, cultura, assim como
também explorar mais sobre a importância da preservação do patrimônio público, além
disso, acredita-se que esse método contribui para potencializar as competências de
percepção dos alunos, despertando-os para a realização da leitura da sua cidade.
Esse novo recurso em construção contemplaria ludicamente questionamentos
ligadas ao tipo de arte de interesse nesse projeto, reconhecendo que “um dos principais
objetivos da arte pública é estabelecer o diálogo com a diversidade” (SILVA, 2005, p.
25.).
Isso será possível no jogo por meio de puzzles, que são quebra-cabeças e
enigmas, que envolveriam tanto curiosidades sobre as esculturas, quanto aos grupos
sociais que frequentam a praça, tribos urbanas, questões de meio ambiente, intervenções
recorrentes no espaço, trabalhadores do lugar, entre outros muitos aspectos presentes no
local, que é um dos mais frequentados de Belém.
Acredita-se que esse tipo de direcionamento na educação é interessante, pois
1645
trabalhar o lúdico e a mídia digital no projeto em tela é justamente
obter a participação ativa do aluno no caso a troca de conhecimento,
facilitando a aprendizagem e a sensibilidade artística e estética perante
as obras de arte e monumentos. (COSME; MALHEIROS, 2015, p.
7139.).
Para tanto os professores devem estar preparados para interagir com o recurso,
pois são eles que farão o papel de apresentar esse mundo ao aluno e juntos intervir nesse
espaço virtual. Esse recurso pedagógico se caracteriza em um modelo de educação
definido por Libâneo (1994, p. 17.) como “educação intencional” a qual acontece por
objetivos, finalidades, intenções e a partir dessa experiência ampliar discussões e ideias,
o que podem causar posteriormente atividades externas com os alunos e até mesmo
intervenções fora do mundo virtual.
A maneira não tão convencional de se trabalhar o conteúdo de artes por meio de
um jogo virtual demonstra o quanto a arte é ampla e se renova diante das novas
necessidades pós-modernas. É preciso compreender e acompanhar o mundo o qual o
aluno está inserido e junto a isso criar métodos e práticas que melhor possam beneficiar
a todos, de forma dinâmica e atualizada.
O processo para criação de um jogo 3D e toda a pesquisa que se necessita para
isso requer tempo e cautela para que os conteúdos e propostas sejam melhores
apresentados, para enfim ter-se um teste. Após esse processo, o aplicativo ficará
disponível na internet de forma gratuita para que se tenha fácil acesso de download, não
só para alunos, mas também professores e demais interessados.
Além disso, compreende-se que é imprescindível para se alcançar o objetivo
pedagógico do jogo, a realização de palestras e treinamentos nas escolas para seu devido
uso, contribuindo também para fomentar possíveis metodologias que poderão vir a ser
aplicadas pelos professores em sala de aula, para tanto, essas capacitações serão
realizadas por pessoas selecionadas pelo coordenador do projeto, que estejam aptas a
discorrer sobre o assunto, e que melhor apresentem essa nova ferramenta tecnológica,
1646
aliando a ela os conhecimentos sobre arte pública, cultura e patrimônio público da
cidade.
Referências bibliográficas
FERRARA, Lucrécia d’Aléssio. Ver a cidade: cidade, imagem, leitura. São Paulo:
Nobel, 1988.
1647
ESTUDO DA ACESSIBILIDADE NOS MUSEUS DE ARACAJU E
LARANJEIRAS-SE: EDUCAÇÃO E USO DAS TECNOLOGIAS ASSISTIVAS
Cristina Valença*
Resumo: O estudo de acessibilidade nos museus de Aracaju e Laranjeiras tem como foco
principal identificar os principais problemas e barreiras para a promoção da inclusão social nos
museus. A proposta centra-se em identificar as possíveis barreiras físicas e comunicacionais
dessas instituições e propor alternativas viáveis sugeridas pelas tecnologias assistivas. Essa
pesquisa está sendo desenvolvida em três etapas: primeira definindo-se pelo levantamento e
análise de fontes bibliográficas, na segunda está sendo aplicado um formulário criado
especificamente para esta pesquisa com a finalidade de construir um diagnóstico de
acessibilidade das instituições culturais de Aracaju e de Laranjeiras. Este formulário tem como
base o modelo utilizado por AmandaTojal(2007) em sua tese de doutoramento intitulada
"Políticas Públicas Culturais Inclusão de Público Especiais em Museus". Num terceiro
momento, serão realizadas entrevistas com funcionários, estagiários, fundadores da instituição e
o público visitantes, em especial, visitantes com deficiência ou mobilidade reduzida. Ao
discutirmos sobre o processo de inclusão social nos museus pensamos na possibilidade de usos
que devem ser realizados dentro dessa instituição cultural, pensamos no acolhimento e nas
melhores formas de proporcionar a comunicação do patrimônio extrovertido nas exposições.
Palavras-chave: Museus; Inclusão social; Acessibilidade; Tecnologias Assistivas; Educação.
Abstract: The study of accessibility in the museums of Aracaju and Laranjeiras has as main
focus to identify the main problems and barriers for the promotion of social inclusion in
museums. The proposal focuses on identifying the possible physical and communication
barriers of these institutions and proposing viable alternatives suggested by assistive
technologies. This research will be developed in three stages: first, by means of the survey and
analysis of bibliographic sources, the second will be applied a form created specifically for this
research with the purpose of constructing a diagnosis of accessibility of the cultural institutions
of Aracaju and Laranjeiras. This form will be based on the model used by AmandaTojal (2007)
in his PhD thesis entitled "Cultural Public Policies Inclusion of Special Audiences in Museums".
In a third moment, interviews with officials, trainees, founders of the institution and the public
will be carried out, in particular, visitors with disabilities or reduced mobility. When discussing
the process of social inclusion in museums we think about the possibility of uses that must be
made within this cultural institution, we think about the reception and the best ways to provide
the communication of the extroverted heritage in the exhibitions.
Key-words: Museums; Social inclusion; Accessibility; Assistive Technologies; Education.
1648
O estudo de acessibilidade nos museus de Laranjeiras tem como foco principal
identificar os principais problemas e barreiras para a promoção da inclusão social nos
museus21. Trata-se de um estudo inicial, aprovado em agosto de 2017 pelo Edital n.
02/2017 PROSGRAP/COPES/UFS que se propõe a investigar a acessibilidade nos
museus de Aracaju e Laranjeiras22. Esse estudo aqui apresentado centra-se em
identificar as possíveis barreiras físicas e comunicacionais das instituições de
Laranjeiras e propor alternativas viáveis sugeridas pelas tecnologias assistivas. O estudo
da acessibilidade dos museus tem como objetivo principal compreender o processo de
inclusão social das instituições culturais de Laranjeiras. Para o presente artigo
discutiremos especificamente os primeiros passos relacionados aos museus de
Laranjeiras. Assim é possível averiguar:
21
Edital nº 02/2017 POSGRAP/COPES/UFS - PIBIC/PICVOL 2017. O projeto tem como bolsistas
Lorena Santos e Dayane Andrade.
22
Errata em relação ao texto: Memorial Histórico Acioli Sobral em Japaratuba/SE: uma análise publicado
nos anais do Sebramus 2014. Na pagina do referindo texto, onde se lê:"O prédio onde comporta o museu
é uma antiga residência que pertenceu a Caio Tavares que deixou a casa para os filhos. Estes a
venderam para o prefeito Helio Sobral que fez a cessão para o funcionamento do Memorial como forma
de promover o incentivo a democratização da cultura e consolidação da identidade do povo da região”.
Leia-se: “ O prédio onde comporta o museu é uma antiga residência que pertenceu a Caio Tavares,
posteriormente passou por outros proprietários que fizeram a cessão para o funcionamento do memorial
como forma de promover o incentivo a democratização da cultura e consolidação da identidade do povo
da região."
1649
5. Qual a relação entre a frequência de visitas do público especial nos museus e o
desenvolvimento de propostas, programas, projetos de atendimento às pessoas com
deficiência ou mobilidade reduzida?
Dessa forma, a ideia é fazer uma averiguação das propostas de inclusão social
desses museus para que seja possível entender a realidade e as particularidades de cada
um e, posteriormente, criar mecanismos de orientação para a recepção, acolhimento e
inclusão do público especial nos museus de Laranjeiras. Nessa direção, os museus que
estão sendo estudados são: O Museu de Arte Sacra de Laranjeiras, o Museu Afro
brasileiro de Laranjeiras, a Casa de Folclore Zé Candunga e a Casa de Cultura João
Ribeiro.
Essa pesquisa está programada para ser desenvolvida em três etapas: primeira
definindo-se pelo levantamento e análise de fontes bibliográficas, na segunda será
aplicado um formulário criado especificamente para esta pesquisa com a finalidade de
construir um diagnóstico de acessibilidade das instituições culturais de Laranjeiras. Este
formulário tem como base o modelo utilizado por AmandaTojal(2007) em sua tese de
doutoramento intitulada "Políticas Públicas Culturais Inclusão de Público Especiais em
Museus". Num terceiro momento, serão realizadas entrevistas com funcionários,
estagiários, gestores das instituições e o público visitantes, em especial, visitantes com
deficiência ou mobilidade reduzida.
1650
setor de Documentação Sergipana. Além dessas leituras, a legislação também será uma
maneira importante para compreender o processo de acessibilidade e inclusão social nos
museus de Laranjeiras. Assim, dentre as legislações que serão estudadas estão a
Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, a Constituição Federal de 1988, o
Programa Nacional dos Direitos Humanos de 1996 e a Lei de Acessibilidade, a NBR
9050 e outros.
1651
transformações profundas” para efetivar o processo de inclusão. Assegura que: “no
processo de inclusão, as limitações as diferenças são vistas como reais e as pessoas
merecem que sejam feitas adequações ambientais e curriculares para que possam
aprender” (NAKAYAMA, 2007, p.25).
23
http://www.geografos.com.br/distancia-entre-cidades/distancia-entre-aracaju-e-
laranjeiras.php
1652
Folclore Zé Candunga. Todos localizados no centro da cidade de Laranjeiras. Dentro de
uma avaliação inicial, foi possível verificar que todas essas instituições foram alocadas
em casas do centro histórico e como tal não foram projetadas para serem museus. Dessa
forma, muitos problemas de acessibilidade e mobilidade urbana podem ser
identificados. Então pergunta-se: como pensar acessibilidade em centros históricos?
Como tornar os museus de Laranjeiras o mais acessível possível? Como promover o
acesso às informações presentes no museu? Como facilitar a comunicação e a
aprendizagem?
Certos cuidados são razoáveis e dar um passo de cada vez talvez seja a medida
mais plausível. Muito tem sido realizado, as discussões acadêmicas, as publicações, a
utilização das tecnologias assistivas, as oficinas, as políticas públicas, as
normatizações... todos são exemplos de caminhos viáveis que formalizam as estratégias
de inclusão social.
A autora Amanda Tojal (2007) responde essa questão afirmando que ao se levar
em conta o papel social dos museus e as possibilidades de inclusão dentro dos espaços
museológicos, a inclusão só será realmente efetivada se houver “uma política cultural de
caráter interdisciplinar...” (TOJAL,2007, p.31-32). Ou seja, acredita a autora que ao
tentar garantir a acessibilidade à cultura, os museus devem refletir sobre suas práticas
museológicas e, principalmente, perceber a importância da área da ação educativa nesse
processo, afirma:
1653
Nessa direção, é possível então perceber que para garantir “as melhores
condições de compreensão” é necessário diminuir as distancias, as barreiras físicas,
comunicacionais e atitudinais dentro das instituições culturais. Elaborar propostas de
atendimento, projetos, programas culturais e educativos que possam colaborar com o
acesso e o uso que o público possa fazer dos museus. Identificar os problemas e
reconhece-los talvez seja o primeiro passo, depois criar propostas simples e que possam
ser executadas pelos museus também é um passo importante a ser realizado para a
promoção da inclusão social e cultural dos museus de Laranjeiras.
Referências bibliográficas
1654
MUSEU INTERATIVO E A LÍNGUA PORTUGUESA: ATIVIDADE
PEDAGÓGICA NO MUSEU DA LÍNGUA PORTUGUESA
Resumo: O museu interativo, com uso de diversas mídias digitais tem sido atrativo tendo em
vista o contexto da era das informações. Nesse neste é apresentado alguns elementos sobre
atividades pedagógicas no museu interativo, a partir de um relato de experiência sobre visita em
museus com estudantes, sobre a importância de preservar e conhecer os patrimônios históricos e
o conteúdo oferecido pelos museus, mais especificamente o Museu da Língua Portuguesa. A
ida ao museu proporcionou aos jovens estudantes a oportunidade se deslocarem na cidade a fim
de localizarem o patrimônio e ter contato com um conteúdo interativo, no qual se torna atrativo
para os jovens.
Palavras-chaves: museu, patrimônio, estudantes.
Abstract: The interactive museum, using various digital media has been attractive in view of
the context of the information. In this, some elements about pedagogical activities are presented
in the interactive museum, based on an experience report about visiting museums with students,
about the importance of preserving and knowing the historical heritage and the content offered
by museums, specifically the Museum of the Portuguese Language. The visit to the museum
gave the students the opportunity to visit the city in order to locate the heritage and to have
contact with an interactive content, in which it becomes attractive for the young people.
Key-words: museum, heritage, students.
1655
Apresentação
1656
Sobre a organização e estrutura do Museu da Língua Portuguesa
1657
A primeira exposição no museu foi no ano de 2006 sobre João Guimarães Rosa.
Em 2007 o tema da exposição foi sobre a vida e obras de Clarice Lispector, pelos 30
anos da morte da escritora. Clarice nasceu em Tchetchelnik, na Ucrânia, no dia 10 de
dezembro de 1920, posteriormente naturalizando-se brasileira em 1943. Viveu em
Maceió e Recife, e Rio de Janeiro. No Rio de Janeiros formou-se em direito, iniciou a
carreira como jornalista, tradutora e escritora. A exposição ficou em cartaz do dia 24 de
abril de 2007 e até o dia 02/09/07.
Essa atividade de visita ao museu foi feita dentro de uma atividade pedagógica
maior, de uma visita cultural da cidade, em que havia outros espaços para visita, este era
um no qual o estudante deveria se locomover e se informar sobre as informações
trabalhadas no museu.
1658
foram responsáveis por planejar o trajeto até o local e a busca de informações sobre o
conteúdo oferecido no museu.
1659
Como avaliação da atividade realizada, o deslocamento foi realizado de maneira
satisfatória, porém, alguns estudantes não fizeram a pesquisa sobre o conteúdo do texto,
por isso, deveria haver um momento de troca das informações recolhidas sobre a
exposição.
Conclusão
1660
Uma atividade pedagógica significativa necessita de direcionamentos em todo
seu processo, assim como em qualquer espaço, não somente em museus. O museu da
Língua Portuguesa por seu caráter interativo faz despertar nos estudantes que já fazem
parte de uma geração que é cada vez mais imersa nas diversas mídias digitais.
Nesse sentido, o museu também deveria ter um espaço específico para falar do
prédio enquanto patrimônio público, que deve ser valorizado e um espaço para falar do
falecimento de um bombeiro, na tentativa de conter o incêndio, não há como reparar
uma vida, mas há como preservar sua memória. Portanto, deveria ter espaço fixo para
contar sua história, que inclui desde a criação do prédio da Estação da Luz até a
instalação do Museu da Língua Portuguesa, já que o museu já comporta instalações
fixas, além das exposições temporária.
1661
Referências bibliográficas
1662
História e memória dos
museus e da
museologia no Brasil -
Museologia e trabalho
em museus:
trajetórias, tendências,
modelos, formação e
papel social
1663
A DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA NO MUSEU DE CIÊNCIAS DA TERRA -
MCTer: ASPECTOS HISTÓRICOS E DIMENSÕES EDUCATIVAS
Nathalia Roitberg*
Ildeu de Castro Moreira**
Resumo: O trabalho apresenta um breve panorama histórico do surgimento do Museu de Ciências da Terra –
MCTer no Rio de Janeiro e reflexões voltadas à cientifização das práticas museológicas, sua institucionalização
e a popularização da geologia. Realizaremos uma análise institucional sob a perspectiva das trajetórias
individuais. Os museus constituem espaços de conhecimento ou lazer, onde a educação não-formal emerge do
diálogo com o visitante. Observa-se uma crescente exigência social em prol de políticas públicas pela
acessibilidade nesses espaços. De certo, é necessário o aumento de estratégias de integração com o público
visitante, por consequência da sua função educativa. As reflexões sobre a divulgação geocientífica no MCTer
apontam para a importância da RECENTE IMPLEMENTAÇÃO DO PROGRAMA DE mediação. A mediação possibilitou a
melhoria da inclusão nas visitas de pessoas com deficiências através de uma linguagem multissensorial e
criativa, sob a perspectiva da propriocepção, como por exemplo, contação de mitos geopaleontológicos nas
visitas de pessoas com transtorno cognitivo e/ou psíquico, ou explorando as propriedades organolépticas dos
minerais e fósseis, através do convite ao toque àqueles que tem deficiência visual. Esse Museu, sob a gestão da
COMPANHIA DE PESQUISA DE RECURSOS MINERAIS (CPRM), RESPONSÁVEL PELO SERVIÇO GEOLÓGICO DO BRASIL
POSSUI GRANDE IMPORTÂNCIA NA EDUCAÇÃO E DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA DAS GEOCIÊNCIAS DESDE 1908. As
Exposições Nacionais no Brasil se constituíram em verdadeiros movimentos de divulgação científica nos quais
os estados afirmavam seu potencial exibindo o seu desenvolvimento tecnológico, econômico, industrial e
arquitetônico. A criação do MCTer ocorreu na Exposição Nacional de 1908 em comemoração ao centenário da
abertura dos portos. Conquanto o Museu afastasse o visitante devido a sua grandiosidade, ao longo do tempo,
constituiu-se verdadeiramente em um espaço público, um lugar de inclusão social através da educação
geocientífica.
1664
Abstract: This work presents a brief historical of the emergence of Museum of Earth Sciences - MCTer in Rio
de Janeiro and reflections on the scientification of museological practices and their institutionalization, and the
popularization of geology. We will take an institutional analysis approach from the perspective of individual
trajectories. Museums are spaces of knowledge or leisure, where non-formal education emerges from dialogue
with the visitor. There is a growing social demand for public policies for accessibility in these spaces. Of course,
it is necessary to increase integration strategies with the visiting public, because of their educational function.
The reflections on geoscientific disclosure in MCTer point to the importance of the recent implementation of the
mediation program. Mediation made it possible to improve inclusion in the visits of people with disabilities
through a multisensory and creative language, from the perspective of proprioception, such as the counting of
geopaleontological myths in the visits of people with cognitive and / or psychic disorders, or exploring the
Organoleptic properties of minerals and fossils, through the invitation to the touch to those who have visual
deficiency. This Museum, under the management of the Research Company of Mineral Resources (CPRM),
responsible for the Brazilian Geological Survey, has been of great importance in the Education and Scientific
Divulgation of Geosciences since 1908. The National Exhibitions in Brazil have been constituted in real
movements of scientific dissemination in the states affirmed their potential by exhibiting their technological,
economic, industrial, and architectural development. The creation of the MCTer took place in the National
Exhibition of 1908 in commemoration of the centenary of the opening of the ports although the Museum took
away the visitor due to its grandeur, over time, it has truly constituted itself in a public space, a place of social
inclusion through geoscientific education.
1665
O estudo da História das instituições e sua interdisciplinaridade com a museologia
merecem um enfoque nas relações individuais. São os indivíduos que mobilizam a Política
Científica, a Educação e a divulgação científica evidenciando níveis de aceitação, resistência,
silenciamento e mensagens nas entrelinhas. A interpretação dessas ações nos desloca para
além do condicionamento do texto de documentos oficiais e nos apresentam intencionalidades
estabelecidas dentro das instituições.
O edifício estilo neoclássico tardio do MCTer “fala por si”, traduz uma vontade de
memória da recente República à época de sua construção, na qual o acesso às instituições de
saber era um privilégio de poucos. Interpretando Paul Ricoeur (2007), o edifício traduz uma
moral pactuada, uma intenção de memória e transparece uma memória impedida. As
exposições abrigam o que deve ser lembrado; o conhecimento não musealizado, isto é, a
produção cultural dos múltiplos personagens que ali produziram significados culturais muitas
vezes é silenciada e negligenciada como patrimônio. Daí a importância da
interdisciplinaridade no estudo da História das Instituições.
1666
forte influência dos ideais republicanos, quando a rotina dos habitantes foi marcada por novas
formas de conduta embasadas nos costumes europeus (FREYRE, 2003, p. 27).
1667
Voltados para a vista exuberante do Pão de Açúcar, o portal de entrada da Exposição
de 1908, inspirado na última Exposição Universal de Paris, ambientava os visitantes na cidade
da Era das Luzes “A iluminação é profusa e inteligentemente distribuída por 8.000 lâmpadas
incandescentes” (Jornal da Exposição, 11/09/1908 p.02).
Entende-se que o estudo dos marcos na história das instituições auxilia o pesquisador
da História da ciência a situar as transformações vivenciadas pela compreensão pública da
ciência (WYNNE, 2005). Destacamos a criação, em 1916, da Sociedade Brasileira de
Ciências, intitulada posteriormente de Academia Brasileira de Ciências.
Neste cenário ganha importância nas primeiras décadas do século XX, o aumento do
número de universidades no Brasil tais como: a Universidade Federal do Paraná em 1912, a
Universidade do Rio de Janeiro (criada em 1920) que passou a se chamar Universidade do
Brasil, em 1937, e a criação da Universidade de São Paulo. Constatadas as necessidades de
saneamento urbano (CHALHOUB, 2006), houve a consolidação da pesquisa na área
biomédica e a criação do Instituto Soroterápico Federal, mais tarde conhecido como Instituto
Oswaldo Cruz e em São Paulo o Instituto Biológico e o Instituto Butantã.
No período pós-Segunda Guerra, o fomento à ciência se justificava pela sua percepção como
um instrumento de poder (HOBSBAWM, 2003). Nesse contexto em 1948 foi constituída a
Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) que viria a se tornar, principalmente
a partir dos anos 1970, a principal entidade a promover eventos relacionados à divulgação
científica. Em 1951 foi criado um dos primeiros fundos universitários de pesquisa, o Conselho
Nacional de Pesquisa - CNPq, hoje denominado Conselho Nacional do Desenvolvimento
1668
Científico e Tecnológico e no mesmo ano a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior - CAPES.
Em 1960 foi criado o Ministério das Minas e Energia. Fundada em 1969, a CPRM
passou a se intitular Serviço Geológico do Brasil – SGB e em 1974 o DNPM foi transferido
para Brasília.
À CPRM cabe, pela legislação vigente, ser depositário oficial dos dados e
informações sobre geologia, recursos minerais e hídricos. Desde 2012 a CPRM assumiu a
gestão do MCTer e seu acervo foi cedido à responsabilidade deste órgão através de acordo de
cooperação com o DNPM.
No dia 23 de maio de 1973, ocorreu um grande incêndio no edifício do Museu que foi
amplamente divulgado, gerando grande comoção pública e mobilizando a comunidade
científica e do entorno. O estrago fora tamanho que o incêndio consumiu mais de cento e
sessenta mil livros, comprometendo grande parte da memória e da estrutura física do prédio e,
consequentemente, todo o espaço para exposição e acervo. O projeto de restauração é orçado
hoje na ordem de grandeza de sessenta milhões de reais. Por meio do Decreto Nº 13.275, de
11 de outubro de 1994, foi efetivado o processo de tombamento (nº 12/002286/92) do
edifício.
1669
tombado de estilo neoclássico, inaugurado em 1908 é um lugar de memória. Guardamos nos
museus aquilo que merece ser preservado. Guardamos as memórias, a história guardamos os
afetos. As exposições de um museu abrigam o que deve ser lembrado; o conhecimento não
musealizado é silenciado e desconsiderado como patrimônio, isto é, produção cultural dos
múltiplos grupos identitários.
O museu não deve ver o visitante desta forma, ou seja, como uma tábula rasa, mas
sim, considerar e valorizar os conhecimentos prévios trazidos pelo mesmo para que a
aprendizagem neste espaço educativo seja significativa.
O destaque que as Ciências da Terra obtêm na mídia aproxima o assunto das pessoas,
através do enfoque, por exemplo, em fenômenos naturais catastróficos, fósseis de dinossauros,
mudanças climáticas. Tudo isso precisa ter uma explicação lógica, e próxima a realidade do
aluno dos alunos. A insuficiente aplicação do tema nas escolas, a carência de formação de
professores na área - como os programas não exigem licenciados em Ciências da Terra a
disciplina é lecionada por professores de outras áreas do conhecimento como: Geografia,
Ciências Físicas ou Naturais (CAMPOS, 1997 p.45), e a grande quantidade de termos
complexos e não usuais, são obstáculos que dificultam a popularização das geociências.
1670
interdisciplinares entre Filosofia, História, Sociologia e Antropologia. Nesse sentido a
História da Ciência, e no caso estudado, a divulgação museal das geociências a partir do
estudo de caso do MCTer assume um caráter de disciplina problematizadora da sua
institucionalização, sob uma perspectiva sociocultural.
Desde a década de 1980 até 2015 a equipe do museu desenvolveu ações para
divulgação do museu, criação da biblioteca geocientífica e atividades inerentes a um setor
educativo. Em 2006 foi iniciado um sólido projeto de divulgação científica, que podemos
relacionar a um modelo contextual, ultrapassando o chamado “modelo déficit”1, ao apresentar
algumas dimensões de engajamento público. Podemos destacar ainda a participação do museu
1
Modelo de divulgação científica no qual os cientistas são considerados como os detentores do conhecimento
que deve ser transmitido ao público visando preencher uma lacuna. LEWENSTEIN, B.; BROSSARD, In:
KAHLOR, L.; STOUT, 2003.
1671
no projeto “ABC na educação científica – mão na massa RJ” coordenado por Diógenes, com
capacitação para professores brasileiros e estrangeiros, e jogos e experimentos geocientíficos.
1672
Recentemente o museu aumentou sua preocupação com a identidade visual elaborando
desde o ano passado uma logo, materiais de divulgação, criando páginas eletrônicas e perfis
nas mídias sociais, e aumentando a divulgação na imprensa2.
O Museu de Ciências da Terra possui uma equipe restrita, composta sumariamente por
estagiários e terceirizados em número insuficiente para a sua extensa área de
aproximadamente três mil e quinhentos metros quadrados. As suas exposições são
relacionadas a uma comunicação unidirecional baseadas no chamado “modelo déficit”
(STILGOE, J.; LOCK, S. J., 2014 p. 9-14) de divulgação de conhecimento. Tais exposições
podem ser relacionadas àquelas abrigadas pelos museus de primeira geração que procuram
valorizar o produto da Ciência, enquanto o papel dos educadores é funcionar como um guia,
explicando e orientando os visitantes sobre as localizações e informação técnica das
exposições (VALENTE, CAZELLI & Alves 2005, p. 189)
2
O museu vive hoje um momento de intensa divulgação, especialmente após o grande sucesso obtido na coletiva
de imprensa em outubro de 2016 sobre a descoberta do “Maior Dinossauro do Brasil : Austroposeidon
Magnificus”, tendo a matéria repercutido no mesmo dia em 12 jornais brasileiros de mídia impressa, 7 emissoras
da TV aberta, 5 emissoras de TV internacionais e dezenas de matérias veiculadas nos canais da internet. Fonte:
ASSCOM/CPRM.
1673
É necessário compreender as individualidades e a profundidade dos participantes (nas
relações do museu com o espaço urbano e a sociedade), observando as políticas
governamentais na popularização das ciências, motivadas por instituições públicas e as
dimensões do acesso institucional, focados no impacto social que elas provocam3.
Referências bibliográficas
BOURDIEU, F. P. A Economia das Trocas Simbólicas, São Paulo, Editora Perspectiva S.A.,
2003
CAMPOS, D. A. Ensino das Ciências da Terra In: Educação e Ciência. Rio de Janeiro,
Academia Brasileira de Ciências, 1997
3
A administração pública no país historicamente pouco se preocupava com a transparência, para além da
legislação obrigatória, o verdadeiro acesso a cidadania. Ao longo dos últimos anos, o MCTer se consolidou
como uma importante vitrine de divulgação da CPRM. No contexto atual, é consenso que o museu é o espaço
para abrir o canal com a sociedade e que diante das riquezas naturais do país deve-se buscar soluções efetivas
para a mineração sustentável
1674
CARVALHO, J. M. A Escola de Minas de Ouro Preto: o peso da glória. E-book do Centro
Edelstein de Pesquisas Sociais, 2010. Acesso em Jun. 2016
CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996.
GINZBURG, Carlo. Micro-história, duas ou três coisas que sei a respeito. In: O fio e os
rastros. Verdadeiro, falso, fictício, tradução de Rosa Freire d’aguiar e Eduardo Brandão. São
Paulo, Companhia das Letras. 2007.
HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: o Breve Século XX. (1914-1991). São Paulo,
Companhia das Letras, 2003, 598 p.
KUHN, T. A estrutura das revoluções científicas, São Paulo: ed. Perspectivas, 3ª edição,
1675
1992.
RAMOS, J.R.. Cursos de geologia completam 30 anos (CAGE: 1957). Anu. Inst. Geo
cienc.[online].1987,vol.11p.07-14.<http://ppegeo.igc.usp.br/scielo.php?pid=S0101-
97591987000100002> Acesso em jul. 2017.
RICOEUR, Paul, A memória, a História, o Esquecimento / tradução: Alain François [et al.].
Campinas, Ed. UNICAMP, 2007
WYNNE, Brian. Saberes em contexto. In Massarani, Luisa, Turney, Jon, Moreira, Ildeu.
Terra Incógnita – a interface entre ciência e público. Rio de Janeiro: Casa da Ciência, Museu
da Vida e Vieira & Lent, 2005. p. 27-40.
1676
LEWENSTEIN, B.; BROSSARD, D. A Critical Appraisal of Models of Public
Understanding of Science: Using Practice to Inform Theory. In: KAHLOR, L.; STOUT,
P. (orgs.).
Periódicos:
Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional (http://bndigital.bn.br/hemeroteca-digital/) último
Acesso em Jul. 2017
Jornal da Exposição, 11/09/1908. Acesso em Dez. 2016.
1677
MUSEU EM REVISTA: A SEÇÃO ‘RELÍQUIAS BRASILEIRAS’ DA REVISTA
SELECTA (1930)
Resumo: O artigo pretende identificar a imagem do Museu Histórico Nacional que foi construída na
década de 1930, quando o mesmo ocupou a seção "Relíquias Brasileiras" da Revista Selecta. Está em
jogo conhecer a importância do periódico na época, bem como a da seção na qual foram publicadas
reportagens do o MHN e seu acervo. Interessa-nos saber quais aspectos da instituição foram
salientados de modo a atrair o interesse do público leitor. O trabalho integra um projeto de pesquisa
dedicado à presença do MHN na imprensa a partir do acervo da Hemeroteca Gustavo Barroso,
constituída pelo próprio intelectual cearense que dirigiu o Museu por 35 anos e pela museóloga Nair
de Moraes Carvalho. O principal propósito do projeto é compreender a contribuição da imprensa na
construção de memórias sobre a instituição. Ou seja, de que maneira, notícias, citações reportagens
sobre o MHN tiveram responsabilidade sobre um imaginário a respeito do Museu.
Palavras-chave: Museu Histórico Nacional; Imprensa; Revista Selecta; Gustavo Barroso; Memórias.
Abstract: This article aims to identify the press' role in the building of the image of National
Historical Museum, during the 1930s. We analyse the "Reliquias Brasileiras" section of Selecta
Magazine, where was publiched news about the Museum. We are interested to know the importance of
the Magazine at the time and what aspects of the institution have been highlighted in order to attract
the interest of the readership. The work is part of a research project dedicated to the presence of the
MHN in the press based in the collection of the Gustavo Barroso, made up by own Barroso who have
directed the Museum for 35 years and by the museologist Nair de Moraes Carvalho. The main purpose
of the project is to understand the contribution of the press in building of memories about the Museum
That is, in what way, news, reports about the MHN took responsibility for an imaginary about the
Museum.
Key-words: Museu Histórico Nacional; Press, Selecta Magazine, Gustavo Barroso, Memories.
1678
Hemeroteca Gustavo Barroso
1679
dedicado a organizá-las de forma sistemática e sequencial. Trabalho que parece ter realizado
nas décadas de 1940 e 1950.
O segundo grupo da coleção conta 33 maços de recortes soltos, ganhou novo formato
e não foi mais realizado pelas mãos do colecionador. O trabalho de recolher recortes de
periódicos relacionados a Barroso passou a ser feito por empresas especializadas em clipping,
que apenas enviava notícias e artigos colados em folhas avulsas, tamanho padrão A5, com a
sua logo no cabeçalho e o nome de Barroso sublinhado com lápis vermelho na matéria
selecionada. Essa metodologia de seleção das matérias de jornais e revistas, focada apenas no
nome da pessoa, fez com que se acumulasse na coleção de Barroso reportagens onde seu
nome saíra de forma equivocada. Foi o que aconteceu, por exemplo, com uma notícia sobre a
peça de teatro Dominó, publicada na Gazeta de Notícias atribuiu a autoria da obra a Gustavo
Barroso e a Paulo Magalhães. O recorte foi recolhido pela empresa Lux Jornal, vindo o nome
de Barroso sublinhado com lápis vermelho. Com o mesmo instrumento de escrita alguém
escreveu ao lado um ponto de interrogação e uma observação: "Deve ser Ari Barroso!" Na
folha seguinte há um recorte da Tribuna da Imprensa, colado no papel da mesma empresa,
onde a dúvida foi esclarecida à lápis: a parceria de Paulo Magalhães na escrita da peça teatral
"É de Gastão Barroso".
Da mesma maneira que recortes de periódicos foram agregados a esta parte da coleção
pela combinação de equívocos da imprensa com a terceirização dos serviços de recolhimento,
outros podem ter ficado de fora por terem sido assinadas com pseudônimos ou terem o seu
nome ocultado de alguma forma. Este grupo contém maços relativos ao período de 1940 a
1966, extrapolando o tempo de vida de Barroso.
O arquivo se estende até 1973, graças ao trabalho de Nair de Morais Carvalho, que
continuou recolhendo e guardando tudo de e sobre Barroso que saía na imprensa. Seu trabalho
deu origem ao terceiro grupo da coleção de recortes. Seus álbuns abarcam o período de 1942 a
1937 e somam 40. São mais organizados do que os do próprio Barroso. Todos são numerados,
contendo um recorte por página. Alguns possuem índice.
Colecionar recortes parecia ser uma prática comum entre os homens letrados. O
ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema, em seu "arquivamento de si", guardava
1680
álbuns de recortes junto às correspondências e outros documentos que serviriam ao seu
projeto autobiográfico (FRAIZ. 2007) Já Pedro Nava relatou em seu Baú de ossos:
O talentoso Deputado pelo Ceará, Sr. Gustavo Barroso [...] apresentou um projeto de
lei, que não sabemos como coadunar-se possa com a nossa Constituição. [...] Ora o
número dez do artigo em que, na nossa Constituição, se faz a declaração dos direitos
diz, insofismavelmente, que ‘em tempo de paz, qualquer pode entrar no território
nacional ou dele sair [...]’ Bastaria esse parágrafo do artigo 72 do nosso pacto
fundamental para que arrefecido ficasse o entusiasmo que o projeto provocou [...] O
próprio autor do projeto reconhece a sua impraticabilidade, quando, no artigo
seguinte, estabelece uma série de exceções que valem por outras tantas portas
abertas à livre entrada e que servem para demonstrar que difícil será uma execução
equitativa da lei em projeto. (JORNAL DO BRASIL, 1916)
1681
Por essas citações é possível perceber que Barroso não se preocupava apenas em
construir uma imagem positiva, como se não houvesse oposições às suas ideias e ações.
Talvez fosse propósito do escritor fazer um balanço geral entre elogios e críticas que saíram
na imprensa, de modo a identificar onde estaria sendo incompreendido ou injustiçado.
Olhando por outro prisma, seu arquivamento de si poderia estar mais preocupado com a
quantidade de notícias e produções publicadas do que propriamente com o conteúdo do que
foi publicado. Também é possível que houvesse o interesse em identificar o espaço que
ocupou na mídia impressa ao longo de sua vida. Quanto maior o espaço maior seria medida a
sua importância, a sua distinção... Caso consideremos este olhar para a coleção, veremos que
Barroso deveria se orgulhar por ter produzido um arquivamento de si tão volumoso, de ter
ocupado espaço significativo nas diferentes mídias impressas de várias partes do país e do
exterior, pois sua produção e seu prestígio aparecem na imprensa de países como México,
Venezuela, Portugal e Alemanha.
Não há comentários escritos sobre o que estava sendo guardado. Era como se os
recortes pudessem falar por si sobre uma trajetória individual. Teria ele a intenção de deixar
um arquivo completo de si para ser consultado após a sua morte, talvez com vistas à escrita de
uma biografia? Ou estaria passando o tempo organizando e revivendo um pretérito em
manchetes? Acreditamos que entre seus objetivos estavam as duas possibilidades, que
merecem ser mais aprofundadas em outra oportunidade. Um projeto autobiográfico
justificaria cabalmente a ânsia colecionista barroseana. Sabe-se que algumas das crônicas
reunidas nessa coleção foram atualizadas no período de escrita de suas memórias e publicadas
na sua trilogia. É o caso de “Os buscapés”, uma nova versão da crônica “Aos doze anos” e
“Aprendiz de Cenógrafo”, ambas do livro Liceu do Ceará, mas publicadas no Jornal do Brasil,
em 1910.
Vale destacar aqui a importância dessa hemeroteca como fonte de informação. Seja
para análise da escrita de si ou arquivamento do eu produzidos por Barroso, seja para
conhecimento e compreensão da sua trajetória pública. Afinal, a imprensa constitui uma
importante fonte de informações para a produção historiográfica. Entretanto, devemos ter
1682
cuidado com a metodologia de pesquisa dessas fontes, cuja autoridade de “verdade” deve ser
relativizada, conforme alerta a jornalista e historiadora Francine Grazziotin:
Harold Weinrich (2011), em seu estudo sobre o esquecimento, analisa como essa parte
constitutiva da memória se apresenta nas obras de diversos autores da literatura mundial. Ao
interpretar a Divina Comédia de Dante Alighieri, Weinrich identifica a escuridão do inferno
dantesco com o esquecimento. Nessa perspectiva, o esquecimento é visto como castigo dado
aos mortos que, em vida, tinham se esquecido de Deus. Assim, os mortos pecadores suplicam
aos vivos que se lembrem deles e as lembranças cheguem a Deus em forma de oração, e que,
1683
assim, Deus se compadeça diminuindo o sofrimento daqueles que se encontram nas sombras
do esquecimento.
O Ceará não se lembra mais de mim. O oficialismo honra-me com o seu desdém,
com a sua antipatia. Somente Matos Peixoto, quando Presidente do Estado, me
penhorou com as suas homenagens [...] À Pátria tudo se deve dar. À Pátria nada se
deve pedir, nem mesmo a compreensão [...] Tenho absoluta certeza que um dia,
quando se apagarem com o tempo as paixões de caráter pessoal e político, ser-me-á
feita a devida justiça. (GIRÃO, 1987/8:34)
1684
Quanto à hemeroteca, chama atenção o fato de ter se estendido por um período de 14
anos após a morte do autor/biografado. São notícias sobre homenagens póstumas, comentários
sobre obras do escritor e referências a iniciativas suas, como o Museu Histórico Nacional e o
Curso de Museu, por ele dirigidos até o final de sua vida.
Essa característica da coleção nos leva a refletir sobre sua potencialidade como fonte
para outros estudos além da produção autorreferencial de Gustavo Barroso. Uma
possibilidade de exploração da hemeroteca é para a reflexão e análise da presença do Museu
Histórico Nacional na imprensa. É muito presente a referência a essa instituição nos recortes
ao longo de todo o período de 66 anos. Integra a coleção toda a cobertura sobre a criação, em
1922, com críticas, comentários e notícias a respeito; reportagens sobre as atividades
realizadas ao longo do tempo, bem como informes sobre a política institucional durante o
período barroseano e após ele.
O Museu em revista
Para se ter uma ideia, nos primeiros 38 volumes da coleção, sendo os 26 produzidos
pelo próprio Barroso e os 10 formados por recortes de empresas de clippings, foram
encontrados 157 recortes diretamente relacionados com o Museu Histórico Nacional. Nos
cadernos confeccionados por d. Nair de Moraes Carvalho a presença do MHN na imprensa
permanece.
1685
exemplo um trabalho sobre a escrita da história barroseana publicada na seção "Segredos e
Revelações da História do Brasil" da Revista O Cruzeiro entre 1948 e 1960, segundo o qual
identificou-se a divulgação do Museu Histórico Nacional nos artigos, tanto a partir da
divulgação de acervos para ilustrar ou comprovar o argumento do autor quanto como objeto
de análise. (MAGALHÃES; BOJUNGA, 2014)
Ainda como parte do projeto, estamos analisando os escritos sobre história de Gustavo
Barroso na revista Fon-Fon da qual foi diretor de redação entre 1916 e 1947. Há indícios de
que na Seção Segredos e Revelações da História do Brasil, Barroso republicasse textos
lançados anteriormente, o que nos leva à hipótese de que as revistas que circulavam entre
1920 e 1930, nas quais Barroso atuava de alguma forma, seja como diretor, redator ou
colaborador, serviram como uma espécie de ensaio do projeto historiográfico que se lançará
na Revista O Cruzeiro entre 1948 e 1960. Um dos indícios é o artigo "Amor e Política: D.
Pedro I e a Marquesa de Santos" (BARROSO, 11 abr. 1925), publicado em Fon-Fon, na
década de 1920, voltando a público anos depois nas páginas de "Segredos e Revelações da
História do Brasil" sob o título "Amor e Política: as três fases da vida amorosa do imperador
d. Pedro I documentadas em três preciosas relíquias" (BARROSO, 13 nov. 1948). Um detalhe
interessante é que as fotografias publicadas são as mesmas do artigo de 1925, mas se percebe
o trabalho de restauração que foi feito no quadro da Marquesa de Santos, acervo do Museu
Histórico Nacional.
Aqui nos dedicaremos aos escritos de Barroso publicados na Selecta, que ao lado de
Fon-Fon e Para Todos foi criada no Rio de Janeiro — então Capital Federal — em princípio
do século XX. Segundo as autoras Cláudia de Oliveira, Mônica Pimenta Velloso e Vera Lins,
essas revistas "ocuparam lugar marcante na história editorial brasileira, ajudando a moldar as
percepções cotidianas e a nossa própria cultura política" (2010: 12). Barroso colaborou para
todas elas que, "desempenharam o papel de mediadoras de saberes, de práticas sociais e de
linguagens. Nem tão imediata quanto a matéria trazida pelos jornais, nem tão reflexiva quanto
a sugerida pelos livros" (Idem).
1686
Um veículo que, por meio de uma composição editorial adaptada ao seu próprio
tempo e às tendências internacionais, criavam modas e impunham comportamentos,
assumindo a estética burguesa como a forma fiel do mundo que representavam.
Janelas que se abriam para o mundo retratado na foto, tais revistas contribuíram, em
grande medida, para a generalização do mito da verdade fotográfica, na medida em
que, por meio de suas crônicas e notas sociais, impunham valores, normas e criavam
realidades, num processo que transformaria a cidade em cenário e as frações da
classe dominante, associadas às agências do Estado e às atividades urbanas, tais
como setor de serviços, comércio de exportação e capital financeiro, em seus atores
principais. Assim, foram importantes instrumentos, desse grupo social, no empenho
de naturalizar suas representações pela imposição de uma determinada forma de ver
e reproduzir o mundo, sobre todas as outras possíveis.
Consumidas por quem era o seu conteúdo principal, tais revistas auxiliaram também
a coesão interna do grupo em ascensão social. Com efeito, veiculavam
comportamentos tidos como necessários para se tornar um bom cidadão, atuando
como modelos a serem copiados e exemplos a serem seguidos. (MAUAD, 2005)
1687
Nesse escrito, além de procurar utilizar os objetos citados como prova de que a
atividade maçônica no Brasil do primeiro Reinado não foi pequena, informa sobre a ação
benemérita da Viscodessa de Cavalcanti como doadora, contribuindo para que o Museu possa
preservar objetos que "contam" sobre a história nacional.
Analisamos seis artigos publicados em 1930. Dos seis apenas um não cita o Museu
Histórico Nacional, porque dedicado a divulgar a ação do Governo do Ceará na preservação
do patrimônio ao adquirir e conservar "Casas Notáveis" para a história do estado. Entre as
casas citadas, há aquela onde nasceu José de Alencar, em Mecejana. (BARROSO, 19 mar
1930)
O artigo publicado no dia 26 de março, sobre "Os paramentos do Padre Feijó", cita o
Museu como instituição que procurou adquirir o acervo abordado, preservado na cidade de
Campanha, em Minas Gerais. Entretanto, a coluna publica foto da "casula, da estola e
manípulos com que o Padre Feijoó celebrou a missa na cidade, onde passou a funcionar a
Escola Normal Oficial" (Idem). Foto esta doada por Gastão Penalva ao Museu, o mesmo que
escreve sobre sua experiência ao contato com os objetos transcritas por Barroso no artigo.
Os últimos artigos aos quais nos dedicamos enaltecem os militares. O primeiro, "Da
nossa Marinha", divulga as salas dedicada às glórias militares no Museu Histórico Nacional,
especialmente a que guarda as "relíquias" da Guerra do Paraguai. Segundo Barroso, "As
tradições navais do Brasil são as mais gloriosas da América do Sul. Nenhum outro país do
continente escreveu páginas de heroísmo e triunfo sobre as águas, iguais às nossas"
(BARROSO, 14 mai 1930). Essas palavras não apenas demonstram o olhar de supremacia do
1688
Brasil na América Latina, que deveria ser motivo de orgulho dos brasileiros, como também
justifica o espaço que o tema ocupava no Museu.
No segundo artigo "El Cristiano", Barroso fala sobre a presença do canhão com este
nome no pátio do Museu Histórico Nacional: "Essa relíquia ensina aos brasileiros que seus
maiores venceram uma grande organização fanático-guerreira, vencendo o Paraguai. Ella
relembra as glórias do nosso passado militar. E impõe respeito à memória dos que
derramaram seu sangue para conquistá-la" (BARROSO, 02 de jul. 1930). Mais uma vez a
ênfase numa superioridade militar brasileira frente aos países latinoamericanos. Olhando a
história por esse ângulo, os leitores deveriam se orgulhar do passado militar nacional. Mais do
que isso, visitar o museu para conhecer as "relíquias" que contam essa história.
Referências bibliográficas
1689
FRAIZ, Priscila. A dimensão autobiográfica dos arquivos pessoais: o arquivo de Gustavo
Capanema. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, 1998. Disponível em:
<http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/237.pdf>. Acesso em 22 out. 2007.
GRAZZIOTIN, Francine. Imprensa: considerações para seu uso como fonte histórica.
Disponível em <www.semina.clio.pro.br/4-1-2006/Francine%20Grazziotin.pdf>. Último
acesso em 15 ago. 2007.
1690
CONSIDERAÇÕES SOBRE A CARREIRA DE OFICIAL DO MUSEU
HISTÓRICO NACIONAL NOS ANOS 1920
Resumo: O artigo pretende tratar da carreira de Oficial no Museu Histórico Nacional. Conforme o regulamento
do Museu, as principais atribuições dos Oficiais seriam: “fazer assinalar a propriedade do Museu nos objetos de
suas coleções e numera-los do modo que melhor se adaptar à natureza daqueles e nos casos em que nenhum dano
lhes possa daí resultar”; “ter em boas condições de segurança, ordem e conservação os objetos que constituírem
as coleções, assim como o mobiliário existente nas seções”; “catalogar e fazer catalogar tais objetos, procurando
trazer os catálogos em dia e enriquecê-los de notas elucidativas”; “proporcionar aos visitantes os esclarecimentos
que o Museu houver colhido a respeito dos objetos em exposição e lhes forem solicitados”; “encarregar-se, salvo
escusa justificada, do ensino das matérias do curso técnico que devem ser lecionadas no Museu, organizar os
programas e fazer parte das comissões julgadoras, não só dos exames, mas também dos concursos”; “ocupar-se
[...] com a boa disposição e instalação dos objetos e com a respectiva inventariação e classificação, esforçando-
se por obter informações que tornem mais interessantes os catálogos”. Na segunda parte, tratamos do concurso
para preenchimento de vaga na carreira de Oficial, realizado em 1927.
1691
Partindo da experiência do Museu Histórico Nacional (MHN), Luiz Marques Poliano,
Conservador e secretário do Museu, em artigo de outubro de 1939 no Jornal do Commercio,
identifica as transformações no perfil dos profissionais de museus.4 Quando da criação do
MHN em 1922, seus primeiros funcionários foram transferidos de outras repartições, entre
elas da Biblioteca Nacional, que “pela sua notória competência e tirocínio, garantiram o bom
funcionamento da repartição”. Posteriormente foram realizados concursos que trouxeram para
o quadro funcional do MHN “nomes de projeção nas letras históricas do país”. Todavia
iniciaram as dificuldades para o preenchimento de novas vagas que surgiam devido ao caráter
técnico específico da instituição. A solução encontrada foi a preparação, pelo próprio MHN,
“de uma reserva de pessoas dotadas de conhecimentos especiais, que lhes permitissem, desde
o ingresso, o consciente desempenho de suas funções”. Por isso a criação do Curso de Museus
em 1932, devido a esta demanda ser preenchida.
O uso da categoria eruditos está baseado no estudo de Jean Glénisson6, onde os define
como profissionais que se debruçaram sobre as ditas ciências auxiliares da história no século
XIX e às consolidaram através do ensino e publicação de tratados sobre as mesmas nos países
europeus.7 Entende-se por ciências auxiliares da história, conhecimentos e técnicas utilizadas
para identificação, classificação e catalogação de documentos (manuscritos e impressos) e
4
POLIANO, Luiz Marques. O Museu Histórico Nacional: seu 17º. aniversário. Jornal do Commercio, Rio de
Janeiro, 22 out. 1939, p. 6.
5
Idem, Ibdem.
6
GLÉNISSON, Jean. Iniciação aos estudos históricos. 2. ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 1977, p. 79-122. Capítulo
“A erudição e as ‘ciências auxiliares’ da História”.
7
Em alguns estudos, esses conhecimentos são denominados de “antiquariado”.
1692
objetos para a realização de sua crítica. Em diferentes contextos históricos saberes foram
categorizados como ciências auxiliares da história: numismática, sigilografia, diplomática,
epigrafia, são exemplos desses saberes. O que determinava esta categoria era sempre o objeto
de estudo. Com o tempo alguns saberes tomaram corpo de disciplina científica e ficaram
independente, como a arqueologia, por exemplo.
Colecionar é um prazer sensível, não somente para as crianças, mas também para os
adultos, sejam quais forem os objetos colecionados. Decifrar enigmas, resolver
pequenos problemas exatamente circunscritos, é uma ocupação atraente para muitos
bons espíritos. Todo achado proporciona um divertimento; ora, no domínio da
erudição, há inúmeros achados a se fazerem, seja à flor da terra, seja através de
quádruplos obstáculos, para os que gostem ou não gostem de brincar com
dificuldades.8
A virada do século XIX para o XX foi considerada por Glénisson como a “glória da
erudição”, quando são publicados os mais importantes trabalhos sobre os saberes dos eruditos
desde o século XVIII:
8
Cf. GLÉNISSON, Jean. Ibdem, p. 82.
9
Idem, Ibdem, p. 99-100.
1693
período medieval na Europa. O governo imperial austríaco criou, em 1854, o Institut für
Oesterreichische Geschichtsforschung, aos moldes da escola parisiense.10
10
Idem, Ibdem,, p. 102.
11
Cf. PIAZZA, Walter. Revisitando Raposo d’Almeida. Arquipélago: História, Açores, n. 2, p. 245-279, 1997.
12
Atual Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano.
13
D’ALMEIDA, Francisco Manoel Raposo. Breve memoria sobre o processo mais facil de investigar,
colleccionar e organizar os materiaes da historia. Revista do Instituto Archeologico e Geographico
Pernambucano, Recife, n. 11, p. 449-456, abr. 1866.
14
Idem, Ibdem, p. 450-451.
1694
classificar suas primeiras coleções. Como mencionado anteriormente, como exemplo o Museu
Histórico Nacional, seus primeiros profissionais foram selecionados, nos anos 1920, devido
suas aptidões em saberes da erudição histórica. Um exemplo desses profissionais foi Edgar de
Araújo Romero. Iniciou sua carreira na década de 1910 na Biblioteca Nacional, nas coleções
de moedas e medalhas da instituição. Com a criação do MHN em 1922 e a transferência das
coleções de numismática da Biblioteca para o Museu, Romero assumiu a chefia da seção do
MHN responsável por tais coleções e, desde a fundação em 1932, foi professor do Curso de
Museus, formando gerações de técnicos-eruditos que se especializaram no saber.
15
CALMON, Pedro. Memórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995, p. 144.
1695
Para o novo ministério foi nomeado ministro Francisco Campos, político mineiro, que
teve como chefe de gabinete, inicialmente, Rodrigo Mello Franco de Andrade. Entre as
mudanças, Gustavo Barroso foi exonerado do cargo de diretor do MHN, devido a desavenças
políticas187. Em 10 de dezembro foi nomeado Rodolfo Garcia.
Mesmo não tendo experiência com museus, Garcia realizou diversas ações
reformadoras durante sua gestão, que durou até novembro de 1932. Entre as novidades
incluíram, uma exposição temporária comemorando o centenário da abdicação de D. Pedro I,
a aquisição de algumas centenas de peças de arte e objetos históricos do extinto Museu Naval,
a transferência de uma coleção de pintura histórica da Escola Nacional de Belas Artes e a
criação do Curso de Museus.
Tais reformas tratavam de adaptar a educação a certas diretrizes, que foram sendo
definidas, tanto no campo político quanto no educacional, visando criar e desenvolver um
ensino mais adequado à “modernização” do país, com ênfase na formação de elites e na
capacitação para o trabalho. Um ensino que contribuísse para completar a obra revolucionária,
orientando e organizando a nacionalidade.
Foi nesse contexto que o Governo elaborou seu projeto universitário, articulando
medidas que se estendem desde a promulgação do Estatuto das Universidades Brasileiras até à
reorganização da Universidade do Rio de Janeiro, ocorridos em 1931.
1696
Também neste contexto ocorreu a estruturação da formação de profissionais de
bibliotecas. O Curso de Biblioteconomia da Biblioteca Nacional foi restabelecido pelo decreto
n. 20.673, de 17 de novembro de 1931. Possivelmente o gestor da BN aproveitou o momento
das reformas educacionais e a transferência da instituição ao Ministério da Educação e Saúde
Pública para propor a reestruturação do curso, tão desejado por Mario Behring, diretor da
instituição nos anos 1920, como demostrado no capítulo anterior.
Duas sugestões, Sr. Ministro, cabem aqui, como propostas que tenho a honra de
fazer, tanto para a maior eficiência administrativa, como para a consecução dos fins
culturais da nossa instituição, eminentemente educacional. Uma é referente ao
‘Curso de Museus’. Já apresentei a V. Ex.ª um projeto de decreto, que espero venha
a merecer a indispensável aprovação. Fundamentei-o nos objetivos de ordem
técnica, que justificaram a criação recente do “Curso de Biblioteconomia”, da
Biblioteca Nacional. O “Curso de Museus” habilitará esta Repartição com um
pessoal especializado, que futuramente fornecerá à administração os funcionários de
que necessitar, para os serviços deste Museu Histórico, ou dos congêneres institutos
estaduais. A outra proposta é a de uma Inspetoria de Monumentos.
Fica evidente que a proposta de criação do Curso de Museus não se destinava apenas a
formar profissionais para o MHN, mas também para outros museus existentes no Brasil e que
foi estimulada pela apresentação da proposta a reestruturação do Curso de Biblioteconomia da
BN.
1697
Segundo o artigo quarto do decreto, os professores do Curso de Museus seriam
designados por portaria do diretor do Museu, entre os funcionários da repartição. No artigo
décimo primeiro, ficou assegurado aos possuidores de certificado do Curso o direito de
preferência absoluta para o preenchimento do lugar de 3º Oficial do Museu Histórico, bem
como para promoção nos cargos do Museu.
1698
se orienta para o estudo dos problemas políticos e sociais, objeto de uma bibliografia
já abundante e que se incrementa de dia para dia.
A história, a etnologia e a arqueologia brasileiras preocupam um escol de
pesquisadores e pensadores que honrariam qualquer país estrangeiro. Graças ao
concurso desses eruditos, estamos em condições de colaborar com a ciência
internacional quando ela recorre ao nosso contingente para integrar o Brasil nos seus
quadros. A Museografia na Europa avança, por outro lado, a passos de gigante. O
Instituto Internacional de Museus dirige o movimento no sentido de coordenar as
atividades que asseguram, em cada nação, a preservação das relíquias que pertencem
fundamentalmente ao patrimônio da humanidade, considerada à revelia das
fronteiras.16
A carreira de Conservador
Outro termo que fez parte dos debates nas publicações do OIM era conservateur,
traduzido no Brasil por Conservador e adotado para designar os profissionais de museus a
partir dos anos 1930. A figura do conservateur, no contexto francês, consolidou-se no século
XIX como a primeira profissão museológica específica. Por muito tempo o conservateur era
aquele responsável por todas as funções diretamente relacionadas com os objetos de uma
coleção e sua formação foi primeiramente associada ao estudo de coleções (de história da arte,
ciências naturais, etnologia, etc.).17
16
Formação de technicos para os museus brasileiros (Communicado da Directoria Geral de Informações,
Estatistica e Divulgação do Ministério da Educação e Saude Publica). Diário da Manhã, Rio de Janeiro, 12 abr.
1935, p. 2.
17
DESVALLÉES, André; MAIRESSE, François (ed.). Conceitos-chave de Museologia. Tradução Bruno
Brulon Soares e Marília Xavier Cury. São Paulo: Comitê Brasileiro do ICOM, 2013, p. 82.
18
WAHRLICH, Beatriz M. de Souza. Reforma administrativa na era de Vargas. Rio de Janeiro: Fundação
Getúlio Vargas, 1983, p. 100.
19
Lei n. 284, de 28 de outubro de 1936. Coleção de Leis da República dos Estados Unidos do Brasil de 1936:
Atos do Poder Legislativo (2ª. Parte). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1938, p. 284-285.
1699
do uso de outras denominações para designar os profissionais de museus à época como
“técnicos para museus” e “museologistas”20, prevaleceu o termo Conservador.
Tais termos nada diriam aos especialistas da Europa e das Américas, enquanto que o
de Conservador abre a quem o usa todas as portas. Em Portugal, na França, na
Inglaterra e nos Estados Unidos, não se usa sequer o título de Diretor de Museu, mas
o Conservador, verbi gratia: Conservador do Museu dos Coches, Conservador do
Museu das Janelas Verdes, em Lisboa, e até Conservador da Biblioteca da Ajuda;
Conservateur du Musée du Louvre, Conservateur du Musée de Cluny, Curator of the
British Museum, Curator of the South Kensington Museum, em Londres; Curator of
the Metropolitam Museum em Nova Yorque.23
20
Cf. Formação de technicos para os museus brasileiros. Diário da Manhã, Rio de Janeiro, 12 abr. 1935, p. 2;
Novos museologistas brasileiros. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 21 jan. 1940, p. 11.
21
Como demonstram as diversas referências existentes em seu livro Introdução à Técnica de Museus (1946-
1947). Cf. SÁ, Ivan Coelho de. Subsídios para a história da preservação no Brasil: a formação em conservação-
restauração no Curso de Museologia da UNIRIO. Anais do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro, v. 42,
2012, p. 14.
22
BARROSO, Gustavo. A carreira de conservador. Anais do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro, v. 8,
1947 [1957], p. 229-234.
23
Idem, Ibidem, p. 231. Grifo do original.
1700
Qualquer léxico latino ensina que, na língua de Roma, o verbo transitivo – Conservo
– Conservas – Conservare, quer dizer: conservar, salvar, defender, observar,
guardar, respeitar e cumprir; o adjetivo Conservatus – Conservata – Conservatum,
filho do particípio passado, significa: conservado, mantido, salvo, defendido,
observado e guardado; e o substantivo Conservator – Conservatoris indica o que
conserva, salva, defende e mantem. Daí, a epigrafia latina, segundo se verifica do
Corpus Insciptionum Latinorum, ser Júpiter, o Deus Supremo, cognominado
Conservator, isto é, o Salvador. Com a mesma acepção Cícero emprega a palavra.
Como se vê, nenhuma mais nobre para todos quantos, com sua técnica, suas
pesquisas, seus estudos, sua experiência e seu saber, se dedicam a guardar,
conservar, defender, proteger, comentar e salvar, assim, da destruição, do descaso e
do esquecimento as obras de arte e as relíquias do passado. 24
Todavia, no serviço público federal era utilizado o termo Conservador para cargo de
profissional ligado a museus e coleções de arte desde meados do século 19. Na Academia
Imperial de Belas Artes existia uma coleção de obras de arte formada desde o período da
proposta de sua criação, no início do século 19, através de projeto do artista francês Joachin
LeBreton, que trouxe as primeiras obras para formar uma coleção de estudos e Pinacoteca no
Brasil.25 Para cuidar desta coleção que aumentava a cada ano devido a incorporação de obras
de arte de autoria dos alunos e professores, através de decreto autorizando a reforma na
Academia, foi criado o “lugar de Conservador e restaurador de Quadros”, em 1854. No ano
seguinte, em reforma promovida pelo novo diretor da Academia, Manuel de Araújo Porto
Alegre, foi criado o cargo de “Restaurador de quadros e Conservador da Pinacoteca”. No
período republicano a Academia passa a denominar-se Escola Nacional de Belas Artes, e nos
estatutos de 1890 cria o cargo de “Conservador”. Apenas em 1911 o cargo muda para
“Conservador-restaurador”26.
24
Idem, Ibidem, p. 231-232. Grifo do original.
25
Para um histórico da Pinacoteca da Academia, ver SQUEFF, Letícia. Uma galeria para o Império: a coleção
Escola Brasileira e as origens do Museu Nacional de Belas Artes. São Paulo: EDUSP, 2012.
26
CASTRO, Aloisio Arnaldo Nunes de. Do restaurador de quadros ao conservador-restaurador de bens culturais:
o corpus operandi na administração pública brasileira de 1855 a 1980. Tese (Doutorado em Artes) – Universidade
Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2013, p. 34; 40; 75.
27
Atual Fundação Oswaldo Cruz – FIOCRUZ.
1701
aprovados em maio de 1931, o Instituto possuía um museu28, sob os cuidados de um
“Conservador do museu”, que tinha como atribuições a guarda e a conservação do museu;
organização do catálogo das peças expostas; e escrituração do movimento de entrada e saída
de todo o material.29
Referências
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Civilização Brasileira, 2009.
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CUSHMAN, Karen. Museum Studies: the beginnings, 1900-1926. Museum Studies Journal,
São Francisco, v. 1, n. 3, 1984.
28
O museu do Instituto Oswaldo Cruz era destinado à guarda e à exposição das coleções científicas relativas à
botânica, à zoologia médica e à anatomia patológica e de outras que interessem aos trabalhos do Instituto. Cf.
Artigo 41 do Decreto n. 20.043, de 24 de maio de 1931. Diário Oficial, Rio de Janeiro, 20 jun. 1931, p. 10076.
29
Artigo 69 do Decreto n. 20.043, de 24 de maio de 1931. Diário Oficial, Rio de Janeiro, 20 jun. 1931, p.
10078.
1702
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1707
TRAJETÓRIAS CRUZADAS DOS NATURALISTAS DOMINGOS VANDELLI E
VIEIRA COUTO: PENSANDO UM ESTUDO DE PROTO-HISTÓRIA DAS
INSTITUIÇÕES DE SALVAGUARDA NA VIRADA DO SÉCULO XVIII PARA O
XIX.
Letícia Julião*
Marta Eloisa Melgaço Neves*
Aline Damasceno Santana*
Verona Campos Segantini*
*Universidade Federal de Minas Gerais
Resumo: O presente artigo é decorrente de uma pesquisa que busca compreender a proto-história das
instituições encarregadas da salvaguarda de documentos e coleções originárias no século XVIII e XIX
no contexto luso-brasileiro. Nesse movimento encontramos uma significativa produção de memórias e
instruções de naturalistas com repercussão no ambiente da administração portuguesa que possui como
centro de articulação a Universidade de Coimbra e sobretudo, a atuação do naturalista paduano
Domingos Vandelli. Este se envolveu tanto com a realização de viagens filosóficas quanto com uma
administração ilustrada, abarcando atividades de observações e escritas de memórias científico-
administrativas. Pretende-se aqui também, identificar a influência de Vandelli sobre um de seus alunos
da Universidade de Coimbra, José Vieira Couto, através da intercessão entre os seus escritos.
Palavras-chave: História natural; Colecionismo; Minas Gerais; Mineralogia; Memórias.
Abstract: This article is the result of a research that tries to understand the protohistory of the
institutions in charge of the safeguarding of documents and collections originating in the XVIII and
XIX century in the Portuguese - Brazilian context. In this movement we find a significant production
of memories and instructions of naturalists with repercussions in the environment of the Portuguese
administration that has as a center of articulation the University of Coimbra and above all, the
performance of the naturalist Padua Domingos Vandelli. This involved both the carrying out of
philosophical journeys and an enlightened administration, embracing activities of observations and
writings of scientific-administrative memories. It is also intended here to identify the influence of
Vandelli on one of his students of the University of Coimbra, José Vieira Couto, through the
intercession between his writings.
Key-words: Natural History; Collecting; Minas Gerais; Mineralogy, Memoirs.
1708
Introdução
30
Este texto se inscreve como fruto de discussões desenvolvidas em um grupo de pesquisa de caráter
interdisciplinar, envolvendo professores e estudantes da Escola de Belas Artes e da Escola de Ciência da
Informação.
31
O período pombalino vigorou de 1750 a 1777. Tornando-se Pombal, ministro de Negócios Estrangeiros em
1750 e Primeiro Ministro em 1755, sendo afastado do cargo em 1777. Foi um dos principais propulsores das
reformas políticas, administrativas e científicas levado a cabo em Portugal no século XVIII (RAMINELLI,
2008).
1709
A Reforma dos Estudos Maiores também repercutiria na conformação de espaços
privilegiados para o estudo sistemático da natureza, tal como os jardins botânicos, museus e
gabinetes de história natural criados em Coimbra e Lisboa. Além disso, organiza-se neste
contexto atividades e estratégias que repercutiram na realização de viagens filosóficas às
colônias, na escrita e circulação de instruções aos viajantes e curiosos e no trânsito de
amostras e na formação de coleções.
Destaca-se que embora este tema tenha sido explorado pela história da ciência32, ele é
pouco abordado por aqueles que buscam compreender os desdobramentos da atividade
naturalista na política administrativa portuguesa. Desse modo, é também objeto de pesquisa a
circulação e incorporação de amostras e espécimes, bem como escritos de naturalistas na
esfera da administração dos domínios ultramarinos. Ou seja, a pesquisa pretende analisar
criticamente documentos, na perspectiva dos contextos de produção e incorporação de objetos
à diferentes instituições.
32
Pataca (2011); Raminelli (2008); Figueirôa, Silva, Pataca (2004); Silva e Figueirôa (2004).
1710
Naturalistas e burocratas: escrita de memórias
33
Criada em 1779, a Academia Real de Ciências de Lisboa dedicava-se à investigação científica, linguística e
histórica e geográfica, promovendo a circulação do conhecimento científico e técnico que poderia ser de
utilidade cultural e econômico a Portugal. Dentre as atividades promovidas pela Academia ao longo dos anos,
evidencia-se a seleção e a publicação de memórias e pareceres. A academia publica em 1797 o Tomo I -
Memórias da Academia Real das Sciencias de Lisboa. Posteriormente a publicação em tomos da Academia é
desmembrada, dividindo-se em "Memórias de Mathematica e Phisica" "Memorias de Litteratura Portugueza" e
"Memorias Economicas". Nessas ultimas destacam-se ensaios e memórias de alguns naturalistas que
discorreram a cerca do Brasil, como Joaquim de Amorim e Castro, Manuel Arruda da Câmara e Domingos
Vandelli.
34
Acessou-se o manuscrito copiado por Frei Vicente Salgado em 1796 (BACL – Série Vermelha – Cota:
Vermelho 405) e a publicação "O gabinete de curiosidades de Domenico Vandelli" (2008).
35
As memórias foram publicadas aproximadamente em 1790, e se acessou aquelas que foram transcritas no livro
“Memórias de História Natural” (2002), a partir dos manuscritos pertencentes à Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro.
1711
conexões com a memória de Vieira Couto e outros naturalistas que também se envolveram
com essas questões.
No que tange à memória de José Vieira Couto optou-se por utilizar a “Memória sobre
a Capitania das Minas Gerais: seu território, clima e produções metálicas”.36 Ressalta-se que
essa memória é fruto da viagem filosófica realizada pelo naturalista na Comarca do Serro do
Frio em 1799, sendo escrita no mesmo ano e submetida à Rainha Dona Maria I.
O interesse em debruçar sobre tais documentos nos exige refletir sobre a trajetória
profissional, acadêmica e política de Domingos Vandelli, bem como pensar nas possíveis
articulações com José Vieira Couto, aluno no curso de Filosofia Natural na Universidade de
Coimbra. Busca-se destacar também como tais personagens nos ajudam compreender a proto-
história das instituições de salvaguarda no Brasil.
1712
Academia Real de Ciências de Lisboa, sendo um dos principais propulsores de sua vertente
econômica (BRIGOLA, 2003).
Sublinha-se nas proposições deste artigo, como Vandelli envolveu-se com a escrita de
Instruções, Memórias, Dissertações e Métodos. A análise de tais documentos, hoje dispersos
em diferentes instituições, precisa ser balizada por um conjunto de aspectos. Esses
documentos possuem como pano de fundo um projeto vinculado à aspectos pragmáticos de
sistematizar informações, que para além de um desejo de inventário, perspectivavam um uso
econômico dos recursos naturais ou ainda como sugere Boto, “o desenvolvimento da ciência
adquire nítida coloração política” (1996, p.170).
Esses textos também refletem o projeto das viagens philosóficas aos territórios
ultramarinos, uma vez que foram produzidos em um momento de preparação, subsequente à
formação dos primeiros naturalistas no curso de Filosofia Natural, nomeadamente Joaquim
Veloso Miranda, Alexandre Rodrigues Ferreira e João da Silva Feijó e José Viera Couto
(BRIGOLA, 2003). Usando de sua influência dentro do Estado Português, Vandelli estimulou
o envio de seus alunos recémformados em viagens em todo o território português,
principalmente aos seus domínios ultramarinos.
As memórias escritas por José Vieira Couto tem sido fontes recorrentes para a escrita
da História de Minas Gerais e também para o estudo da história da geologia, enquanto
37
Ressalta-se que posteriormente, foram criados jardins e hortos botânicos em várias localidades das capitanias
dos domínios brasileiros, sendo considerados espaços férteis para a realização do cultivo de diferentes mudas e
sementes provenientes de outras localidades, a fim de fomentar as práticas agronômicas portuguesas.
1713
disciplina científica. Os estudos sobre mineralogia e geologia desenvolvidos na Capitania de
Minas Gerais por Couto podem fornecer indícios de como a história da formação geológica e
da terra eram investigadas no século XVIII e XIX (SILVA, 1999)38. A importância dessa
memória se faz evidente pelo número de vezes em que esses trabalhos foram transcritos e
publicados.39
Ressalta-se assim que o contexto de produção que informa os seus vínculos com o
naturalismo vandelliano praticamente ainda não foram explorados pela historiografia. Tais
trabalhos evidenciam a sua atuação como agente burocrata e dão pouco relevo à sua formação
de naturalista, questão essa que poderia fundamentar sua trajetória em perspectiva mais
complexa.
Faz-se necessário discorrer brevemente sobre sua trajetória, ainda que apresentam
algumas lacunas devido a ausência de fontes documentais. José Vieira Couto nasceu no ano
de 1752 no Arraial do Tijuco, atual Diamantina, onde permaneceu por boa parte de sua vida.
38
SILVA (1999) ao analisar quatro memórias escritas por José Vieira Couto sob a perspectiva da geologia e
mineralogia, conclui que tais publicações podem fornecer indícios de como no final do século XVIII e início do
XIX tal ciência era investigada. Seus escritos evidenciam a influência dos estudos buffarianos sobre a
regularidade permanente da Terra, bem como dos estudos alemães do campo da mineralogia. O naturalista
também discute aspectos sobre a formação das montanhas, o tempo geológico do terreno e a conformação da
crosta terrestre.
39
Como apresentado por Furtado (1994): Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro de 1874, 2º
Edição, tomo XI, p. 189-334; Cópia da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, número 608 do Catálogo de
Exposição de História do Brasil, microfilme nº5,1,42; Cópia pertencente a Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro, coleção Benedicto Ottoni, microfilme 3,15,6 realizada pelo copista A. Pereira; e Cópia da Biblioteca
Nacional do Rio de Janeiro, número 11.933 do catálogo, microfilme 1,15.
1714
Filhos de pais portugueses que residiam no Brasil e que ocupavam cargos de prestígio na elite
tijucana, sua trajetória foi marcada por esforços pela manutenção dos privilégios sociais de
sua classe, que gozavam de altos cargos administrativos no governo da Capitania de Minas
Gerais (FURTADO, 1994).
40
Pode-se entrever nos estudos realizados com base na análise do inventário de sua biblioteca, que Vieira Couto
possuía exemplares que discorriam acerca da prática da medicina. De formação humanista e naturalista, não se
pode afirmar com concretude a sua participação no movimento da Inconfidência Mineira. Contudo Silva (1999)
pontua que o seu irmão, o Cadete Joaquim José Vieira Couto, personalidade que realizou diversas viagens
filosóficas como auxiliar de José Vieira Couto, sofreu perseguição por sua participação no intento mineiro.
1715
podem resultar”(1801). Tais publicações evidenciam a potencialidade de verticalização de
pesquisas que cotejem a prática naturalista de um agente burocrático atuando neste período.
Já o tijucano José Vieira Couto estrutura sua memória em três partes e um apêndice
sobre os diamantes e o nitro, adotando subtópicos e texto corrido com parágrafos longos. Na
primeira parte, Couto aborda questões gerais sobre o território, clima e as produções
metálicas, descrevendo-os minuciosamente. Na segunda parte, o tijucano adentra no estado
atual e decadente que se encontra a mineração no Brasil, principalmente na Capitania de
1716
Minas Gerais, apontando para as possíveis causas desse declínio e suas soluções. Na terceira e
última parte da memória é abordada a questão do comércio e escoamento dos minérios
encontrados no interior das Capitanias. Pontua também a necessidade da Coroa em diminuir
os impostos cobrados aos mineiros, sugerindo ainda o fornecimento de subsídios e incentivos
à prática mineradora.
Apesar da diferença apresentada na estrutura dos dois escritos, pode-se perceber uma
conformação dos escritos coutianos com as instruções vandelliana no que tange ao seu
conteúdo. Pode-se pontuar que a escrita da Memória estava informada por aquelas
prescrições, orientações e interesses delineados por Vandelli.
A análise por ele realizada foca inicialmente, sobre o estado geral em que se encontra
o território mineiro, para posteriormente se debruçar sobre as especificidades do campo
mineralógico, conforme a sistematização sugerida pelo botânico paduano. José Vieira Couto
descreve a longitude e a latitude em que se situa a Capitania de Minas Gerais, suas fronteiras
com outras capitanias e sua divisão territorial e administrativa em quatro Comarcas: Rio das
Mortes, Vila Rica, Sabará e do Serro do Frio. Assinala também as diferentes características do
relevo e da vegetação que reveste este território. Diferencia-os pela qualidade da terra, na qual
segundo ele os habitantes que compunham a Comarca do Serro do Frio se consistiriam em sua
maioria de mineiros, devido à qualidade “agra, fragosa e estéril do terreno”, não sendo um
local fértil para agricultura, em distinção às outras comarcas da capitania mineira.
1717
(...) não basta que o naturalista conheça os produtos da natureza, é também
necessário que ele assine os diversos lugares do seu nascimento, os
caminhos e jornadas que fez nas suas peregrinações, e outras muitas
circunstâncias que bem mostram essa necessidade. (VANDELLI, 2010, p.
93)
1718
Já Vieira Couto, em sua memória, apresenta suas observações sobre a formação do
terreno da Comarca do Serro do Frio, dando indícios sobre a sua composição. Ao abordar as
características das montanhas e serras encontradas na Comarca, assinala:
Adentrando aos resultados obtidos nos exames mineralógicos realizados, José Vieira
Couto lista as produções metálicas encontradas nas minas, montanhas, rios e veios da
Comarca do Serro do Frio, descrevendo as suas matrizes, pureza, espécies e as quantidades
que se podem obter da sua extração. Esta abrange dez tipologias: ouro, prata, ferro, cobre,
chumbo, estanho, enxofre, caparrosa, nitro e diamantes.41 Tal descrição entra em consonância
com as instruções vandellianas de que o naturalista deveria observar e indagar se há minas e
montanhas com outras “produções metálicas” valiosas e úteis à Portugal, bem como calcular
a quantidade e indicar as possibilidades econômicas que delas se poderiam obter, passos
seguidos por Couto. Como justificativa de tal interseção de pensamento e prática dos exames
coutianos com as instruções vandellianas, pode-se citar a seguinte passagem sobre as minas
41
No que tange ao diamante e o nitro natural encontrado na Capitania de Minas Gerais, Vieira Couto tece um
comentário aprofundado em apêndice à sua memória. Ressalta-se que ao abordar outras produções metálicas
encontradas na Comarca do Serro do Frio, este descreve somente as espécies e o seu peso em libras e quintais.
1719
de prata encontradas na comarca, na qual se faz evidente a necessidade de se diversificar a
exploração da produção metálica nos domínios ultramarinos portugueses:
É crível que aí também existam as próprias minas de prata, visto que estas
sempre acompanham as de chumbo e as deste, muitas vezes, se convertem
nas de prata. O lugar é totalmente ermo e deserto e podendo-se fazer nele
maiores exames e indagações, talvez virá a ser um novo manancial de
riquezas para o Estado. (COUTO, 1994, p. 58)
Couto também sugere que é dever do Estado Português instruir os mineiros na arte da
mineração através da construção de um corpo de conhecimentos e doutrinas. Tal corpo
deveria ser fundado em experiências realizadas no próprio território apoiada por estudos já
desenvolvidos no exterior. Esse empreendimento deveria ser levado a cabo por um
1720
especialista que deveria observar com seus próprios olhos o funcionamento das minas da
Saxônia, Hungria, Transilvânia e Áustria (COUTO, 1994, p. 72).
Ainda que não seja possível precisar as datas de algumas das memórias que tratam
desse tema, chama atenção o fato de Vieira Couto e Domingos Vandelli escreverem as suas
memórias pontuando a necessidade de uma arte metalúrgica nacional. Vandelli também
escreve a “Memória sobre as minas de ouro do Brasil” e a “Memória sobre os diamantes do
Brasil”, inclusive com base nos trabalhos de Joaquim Veloso de Miranda e na análise das
amostras provenientes do território brasileiro das quais ele teve oportunidade de analisar.
1721
Portugal. A instrução dada por Vandelli sobre a necessidade do naturalista registrar
detalhadamente as redes hidrográficas que cortam o território, bem como dos percursos a pé
realizados no decurso da viagem filosófica indicavam a importância dessa questão. Couto em
sua memória, também reafirma a grande utilidade dessas informações ao Estado na execução
de aberturas de estradas e criação de rotas navegáveis dentro das diferentes capitanias.
Descreve de forma minuciosa de como se apresentava a situação dos rios e canais, além de
sugerir outras formas de transporte42 para o escoamento da produção mineradora.
Uma última confrontação entre as memórias de Vandelli e Viera Couto remete aos
procedimentos que se deveria ter em relação à recolha e envio de amostras coletadas na
viagem filosófica. Sobre esse aspecto Vandelli prescreve sobre a necessidade de amostras
para a realização de exames à campo e análises posteriores:
1722
quando houver comodidade, não se esquecendo de lhe notar o lugar, o seu
calor e frio no termômetro, o seu peso específico e o seu gosto, cheiro, ar
fixo, incrustações, sedimentos, etc. (VANDELLI, 2008, p. 122).
Há indícios nas memórias de Couto que este se preocupa também com a remessa de
amostras mineralógicas, como se revela na dedicatória à D. Maria I:
Ainda a ser melhor investigado é o fluxo de remessas realizado por Couto. Alguns
levantamentos preliminares indicam a existência de envios periódicos acompanhados de notas
e observações, tal como recomendado por Vandelli em suas instruções. Ainda que incipiente,
a pesquisa identifica documentos datados, sobretudo, de 1799, 1806 e 1810 que assinalam o
envolvimento de Couto no envio de remessas, predominantemente de amostras de
mineralogia. Além da documentação referente a Vieira Couto, o mesmo levantamento
preliminar indica que, entre fins do século XVIII e início do século XIX, correspondências
circularam no âmbito da administração, tratando das atividades de coleta e remessa de
amostras naturais da Capitania de Minas Gerais para Portugal. Algumas, inclusive,
endereçadas ao Museu Real.
Conclusão
1723
da história natural entre a necessidade de observar, reconhecer, inventariar, reunir, classificar
e dispor as produções da natureza. A reunião dessas produções justificava a formação dos
gabinetes para que nesses pudessem se estabelecer e verificar as relações complexas e
necessárias para o conhecimento da natureza. A formação de gabinetes e a prática colecionista
almejavam legar às gerações futuras o conhecimento cumulativo do espectro do que é a
natureza. Este projeto delineado pela Encyclopedie reforça a utilidade da história natural não
só para a interpretação da natureza, mas sobretudo para subsidiar aspectos que perpassam a
economia e a administração.
As fontes coletadas até o momento nos ajudam a desenvolver uma reflexão de que o
fazer naturalista, aliado à política econômica e administrativa, repercutiu no incentivo de
ações de cunho colecionista e para isso, tornou-se fundamental a criação de espaços para tal
fim. Pretende-se encontrar outras conexões que possibilitem dar continuidade às pesquisas
sobre a proto-história das instituições de salvaguarda. Nesta direção importa perceber como a
conformação dessas no século XVIII e XIX esteve imbricada às ações de cariz científico e
administrativo. Continua a busca por fontes que evidenciem as práticas de recolhimento e
envio de amostras fundamentais na constituição dos espaços de colecionamento.
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1725
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(1770-1807). In: FONSECA, Thais Nivea de Lima e. (Org.). As reformas pombalinas no
Brasil. 1ªed.Belo Horizonte: Mazza Edições, 2011.p. 157-202.
1727
UMA MIRADA PARA O PASSADO: PROJETOS EDUCATIVOS NO MUSEU
HISTÓRICO NACIONAL (1922-1960)
Abstract: The article intends to historicize pedagogical experiences developed by conservatives, historians and
museologists in the National Historical Museum in the period of 1922-1960. It will seek to explore issues crucial
to museum education, such as the concepts of History, time, object and subject; the relations between memory
projects, education and citizenship and, finally, the conceptions of teaching-learning. The article will present the
specificities of education in historical museums from different research and practice. Thus, it intends to
contribute to the construction of a historical panorama on the history of education in Brazilian museums. The
research was developed in the institutional archives of the National Historical Museum and in the Nucleus of
Memory of Museology in Brazil (UNIRIO).
1728
Uma Mirada Para O Passado: Projetos Educativos No Museu Histórico Nacional (1922-
1960)
1729
esforço de síntese e de disciplinarização do campo museal, que repercutiu na trajetória dessas
instituições.
1730
“Destronar” o Império envolvia bem mais do que proclamar a República. Implicava
um projeto político do novo regime, no campo cultural e educacional. Contudo, as complexas
relações entre memória, história e identidade não indicam a possibilidade de rupturas
profundas e rápidas. São relações delicadas, que exigem rearranjos, negociações e
mobilização dos atores. Isso porque os processos de construção de identidade são contínuos,
lentos e envolvem esforços de divulgação, imposição e adesão de um grupo, não importando,
nesse caso, seu tamanho. Sem dúvida, esse foi um momento crucial na conformação do
campo de estudos de História do Brasil, que, durante o Segundo Reinado, esteve atrelado
principalmente ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), sob os auspícios do
imperador D. Pedro II. Portanto, muitos historiadores têm investigado a construção de novos
heróis e narrativas nesse contexto de ressignificação do passado nacional (Gomes, 1996;
Carvalho, 1990). Angela de Castro Gomes, ao investigar o campo historiográfico no período
que se estende da Primeira República às décadas de 30-40, salienta que a República
demandou alterações nos cânones do “fazer história”, “não só porque (...) evidenciava uma
politização da disputa pelo que devia ser narrado (...), como, principalmente, pela forma
como a narrativa dessa “nova” história do Brasil e do mundo seria feita (...)” (Gomes, 2008: 3,
grifos da autora).
O iletrado brasileiro ainda há pouco 84 por cento da população, nada encontrou que
impressionando seus sentidos lhe falasse da pátria e a seu modo fosse também um
fator da sua educação. Não há museus, não há monumentos, não há festas nacionais.
1731
O que freqüentou a escola onde lha não fizeram conhecer e amar, desadorando a
leitura e o estudo, não procurou fazer-se a si próprio uma educação patriótica. (sic) 43
A retórica da decadência, nos termos de Joaquim Pintassilgo (1998), não foi exclusiva
ao cenário nacional, posto que, em Portugal, a República enfrentou igualmente os chamados
males sociais, que, no caso, eram o analfabetismo e as más condições sanitárias e higiênicas.
O remédio, em ambos os casos, era a educação, que deveria ser aplicada em doses cavalares
no intuito de possibilitar a consolidação da política republicana no início do século XX.
a realidade é que uma nação moderna sem Museus é uma nação sem os recursos
básicos da educação. Neles é que se encontram as matrizes da cultura. Por eles é que
o homem se emancipa do seu provincianismo e se faz, no espaço e no tempo, o
43
Disponível em: <http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=203>. Acesso em: 15 jul.
2009.
44
Entrevista de Anísio Teixeira para o jornal Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 2 out. 1956. CPDOC/ FGV.
1732
companheiro e o contemporâneo de todos os que o antecederam e que o irão
suceder... (Teixeira, 1956)
45
O conceito de cultura histórica, segundo o historiador francês Le Goff (1996), está diretamente atrelado à
concepção de tempo compartilhada por uma determinada sociedade. No sentido atribuído pelo autor, a cultura
histórica pode ser entendida como a maneira de valorizar o passado nessa sociedade, como “lugar” que esse
passado ocupa e, inclusive, como ele é definido e divulgado em operações político-culturais. É nesse sentido que
o conceito de cultura histórica contribui para analisar a educação histórica em um circuito mais amplo que o
escolar, e não só restrito a ele. O historiador alemão Jörn Rüsen (2001) aprofunda essa reflexão ao pensar a
noção de consciência histórica como fenômeno relacionado à vida prática dos homens, que envolve experiências
e interpretações do tempo. Para ele, a constituição do sentido da experiência do tempo envolve um processo no
qual “(...) as experiências do tempo são interpretadas com relação às intenções do agir e, enquanto interpretadas,
inserem-se na determinação do sentido do mundo e na auto-interpretação do homem, parâmetros de sua
orientação no agir e no sofrer” (Rüsen, 2001: 59).
1733
que o materializam - envolvia uma ruptura na consciência histórica do país, fortemente
referenciada ao Império, período considerado de glória nacional.
46
Letícia Julião (2008) aponta a dificuldade em conceitualizar o que é um museu histórico nacional pela própria
dinâmica de atribuição de sentidos ao que é ‘nacional’. Ainda assim, é possível assinalar a transformação
processada no âmbito do colecionismo ocidental que, a partir do século XVIII, busca apreender as
especificidades de uma nação, afastando-se da perspectiva universalista que predominava, até então, nos
gabinetes de curiosidade. Mas esse é um processo lento e a coexistência de ambas vertentes, a dos ‘teatros do
mundo’ e a dos ‘teatros da nação’, propiciou a construção de museus que, preocupados em apresentar uma
leitura da história nacional, ainda se utilizavam de categorias e estratégias universais.
1734
Os conservadores da memória e suas práticas
Um aspecto bastante destacado nas entrevistas com as museólogas, bem como nos
textos da época, é o caráter heróico da ação do conservador. Eram considerados profissionais
47
Sir. Henry Miers, report on the Public Museums of the British Isles, 1928, citação transcrita de manuscrito de
Maria Elisa Carrazzoni. CARRAZZONI, Maria Elisa. Que é um conservador de museu (p.32-33). Fundo MEC,
caixa 10. NUMMUS da Escola de Museologia/UNIRIO.
48
Um olhar sobre os intelectuais envolvidos na criação do Curso de Museus fornece um panorama do perfil do
conservador, com nomes como Gustavo Barroso, Pedro Calmon, Guy de Holanda, dentre outros. Importante
destacar que os dois primeiros eram sócios do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), importante
reduto legitimador da escrita da História brasileira, uma vez que os cursos de História e Geografia, das
Faculdades de Filosofia, então, apenas começavam.
1735
dedicados à tarefa de salvar os tesouros da perda, da ignorância e da destruição do tempo.
Mais do que uma profissão, era uma vocação assentada, inclusive, na não-remuneração para
algumas tarefas. O sentido nobre de missão é evocado e, a esse respeito, a fala de Barroso é
indiciária:
O Curso de Museus diplomou, até agora, uma única turma de alunos, que é a
primeira que sai dos seus bancos universitários. É uma turma de “doutores” em
museus! (…) Foi uma das poucas realizações apreciáveis do Ministério da
Educação. É um curso universitário, de extensão cultural especializada. Prepara
funcionários com a capacidade de servir em museus, garantindo-lhes a preferência
de nomeações para o quadro do funcionalismo daquela casa e dá aos seus alunos, ao
lado desta, outra vantagem maior: a de adquirirem uma série de conhecimentos que,
em nosso país, presentemente, somente ali são professadas49.
49
COMO se formam técnicos de museus no Brasil. O Jornal, Rio de Janeiro, ano 16, 13 abr. 1934, p. 5.
50
Gustavo Barroso (1945: 6) foi contundente: “Chama-se Museologia o estudo científico de tudo o que se refere
aos Museus (…)”.
1736
ministrada pelo próprio Barroso, que conduzia todo o restante do currículo51. De acordo com
Gustavo Barroso (1945), a parte mais difícil da Museologia seria a classificação dos objetos e,
por isso, ele prestigiou e enfatizou as chamadas ciências auxiliares da História. A história
parece ser apenas fonte de conhecimento para atestar a veracidade dos objetos, que “estão
frequentemente sujeitos a falsificações e imitações” (Barroso, 1945: 18). Ainda, segundo ele,
Há, em toda sua obra técnica, a valorização da erudição que, dosada com o amor à
pátria, constituiria a especificidade do conservador de museus. Um apelo que atende à
denominada sensibilidade antiquária, resistente a novas configurações da escrita da História
construídas a partir do século XIX (Ramos, 2010: 55). A influência desse pensamento
perpassou várias instituições identificadas como históricas e é fundamental para a
compreensão dos projetos educativos ensejados por elas. Percebe-se a noção de História na
tradição de um projeto escriturário, baseado na ideia da escrita como mimeses dos
acontecimentos transcorridos. Assim, o Curso de Museus enfatiza as disciplinas relacionadas
ao universo do antiquariato em detrimento daquelas relacionadas à construção do
conhecimento histórico. Em relação à educação, nenhuma disciplina é apresentada na grade
curricular, isso porque a noção de simples transposição de conteúdos e atitudes era
preponderante. Se o campo teórico da Museologia contribuiu para a consolidação de um
projeto de ensino de História calcado na transmissão de valores e informações e nas noções de
verdade e autenticidade, importa investigar, pois, como os profissionais dos museus
consolidaram suas práticas e reflexões sobre educação.
51
O currículo original era formado pelas disciplinas História Administrativa do Brasil, Numismática e
Sigilografia, História da Arte Brasileira, Técnica de Museus, Epigrafia e Cronologia e Arqueologia Brasileira.
Em 1966, o regimento do curso criou duas habilitações, a saber: Museus Históricos e Museus Artísticos (Cruz,
2007: 55).
1737
Assim, foi realizado um esforço de investigação para perceber diferentes e litigiosos
projetos de educação nos museus, particularmente os históricos. A primeira sondagem na
documentação institucional indicou a inexistência de atividades educativas. Os relatórios
oficiais apontavam para preocupações relacionadas ao funcionamento e infraestrutura, como
orçamento, instalações físicas, obras e funcionários, principalmente na primeira década (1922-
1932). Dessa forma, ao projetar o olhar somente para os relatórios, não foi possível consecutar
o objetivo da pesquisa. Foi necessário recorrer a outras fontes, ler nas entrelinhas, buscar a
dimensão da memória presente nas falas dos pioneiros museólogos e educadores. Foi
realizada uma ampla pesquisa no Núcleo de Memória da Museologia no Brasil sediado na
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (NUMMUS- UNIRIO)52, responsável pela custódia
de fundos documentais do Curso de Museus e de alguns de seus professores.
52
Fruto de um dedicado trabalho desenvolvido pelo Prof. Ivan Coelho de Sá, o NUMMUS foi criado em 2001.
53
A alocação dessas novas instituições no aparato público aponta para algumas movimentações no campo
museal, assim como para o crescimento de sua vinculação explícita a projetos educativos. Em sua constituição, o
Museu Histórico Nacional era subordinado ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Somente em 1930,
começou a ser gerido pelo Ministério da Educação e Saúde, momento em que seu prestígio e orçamento foram
reforçados. A partir daí, com o crescimento da importância política dos museus, tornou-se necessário, dentre
outras providências, formar seus funcionários.
54
Vale registrar que há no Arquivo Histórico do Museu Nacional um orçamento, datado em 1913, sobre a
instalação de vitrines de ferro para o Museu Escolar. Contudo, não foi possível encontrar mais informações sobre
essa iniciativa, que demonstra um esforço pedagógico da instituição bem anterior à gestão Roquette Pinto.
1738
então, o Museu Nacional era concebido como “(...) órgão do ensino público, em todos os
graus, sem prejuízo das suas funções de centro superior de pesquisas”55. Em relatório de
1929, o setor educativo é compreendido como mediador entre o Museu Nacional e a escola
“no desempenho destas funções procurou-se, como aliás deverá ser sempre, pôr a ciência ao
proveito da vida”56. Uma de suas principais atividades era a organização de atendimentos
escolares e havia uma forte preocupação com a apresentação de resultados e métodos,
ilustrada por um anexo com fotografias dos materiais pedagógicos produzidos, como slides e
maquetes. Enquanto o ensino nos museus de ciência natural no Brasil fortalecia a perspectiva
de diálogo com o professor e alunos, fundado na experimentação, os museus históricos
seguiam uma trilha própria. Mas, em ambos, a preocupação em “civilizar o povo” é
perceptível, embora particularmente destacada nos museus históricos que, além de oferecerem
conhecimentos, deveriam defender valores cívicos, orientando-se, sobretudo, pela emoção.
A relação com o público proposta pelo MHN também pode ser apreendida por uma
literatura, ainda pequena, que possibilita compreender algumas características do projeto
educativo. Inês Gouveia (2004) apresenta uma importante contribuição ao analisar a relação
55
Relatório da Seção de Assistência ao Ensino da História Natural, 1940. D56.MN. Diretoria. Classe 146.5.
Arquivo Histórico/Museu Nacional.
56
Relatório da Seção de Assistência ao Ensino da História Natural, 1929, p.5. D56.MN. Diretoria. Classe 146.5.
Arquivo Histórico/Museu Nacional.
1739
entre o Museu Histórico Nacional e o público no período de 1940 a 1975, por meio da leitura
dos Anais publicados pela instituição. A autora frisa que a importância concedida ao público é
uma construção da museologia atual, que não pode ser transposta para o passado.
57
Os relatórios anuais eram assinados pelo diretor Gustavo Barroso e possuíam, normalmente, a seguinte
estrutura: introdução, regulamento, estatística de visitantes, seções do museu, arrolamento de salas, biblioteca,
aquisição de acervo, conservação, funcionários e empregados, observações e conclusão. Seguiam-se a este
relatório geral os específicos de cada seção que eram, inicialmente, duas: a de História e a de Numismática,
Filatelia e Sigilografia. Os primeiros relatórios, remetidos ao então Ministério da Justiça e Negócios Interiores,
são eivados de críticas aos parcos recursos do MHN, buscando convencer os superiores de sua importância,
baseada nas funções de reunir e conservar objetos do passado nacional.
58
BARROSO, Gustavo. Relatório Administrativo. AI/MHN, 1925.
1740
relatórios, até a década de 30, é legitimar o projeto barrosiano, demonstrando os apoios
recebidos, sejam eles públicos ou particulares, expressos, neste último caso, pelas doações.
Era essa a forma de se medir o grau de atração do museu, ou seja, por meio dos
“oferecimentos de relíquias valiosas”, possíveis de serem feitas apenas por uma elite.
59
BARRROSO, Gustavo. Relatório Administrativo. AI/MHN, 1932.
1741
Além dos serviços já mencionados, sem levar em consideração a tarefa de
acompanhar visitantes e colégios através de nossas salas de exposição, trabalho
fastidioso e cansativo, que foi feita, indistintamente, por todos os conservadores da
Seção, devo registrar a contribuição individual de cada um60.
60
OLIVA, Menezes de. Relatório anual da Seção Histórica. AI/ MHN, 1942.
61
OLIVA, Menezes de. Relatório da Seção História. MHN/ AI, 1952.
62
Depoimento de Nair de Moraes Carvalho, concedido à pesquisadora no dia 15 de outubro de 2008.
63
OLIVA, Menezes de. Relatório da Seção História. MHN/ AI, 1952.
64
A revista pertence à Coleção Nair de Carvalho (NMC 2116). NUMMUS/ UNIRIO.
1742
Importa aqui analisar o longo artigo sobre o MHN, reconhecido como “a Casa do Brasil”, que
narra uma visita à instituição em primeira pessoa, entremeado de fotografias e descrições
minuciosas de objetos, etiquetas e salas. A linguagem do artigo é interessante, pois incorpora
os diálogos do autor com os funcionários do MHN, em uma estratégia de persuasão que
aproxima o museu do leitor. Em uma abordagem etnográfica, Adalberto Ribeiro guia o leitor
e o orienta sobre a importância da instituição e dos serviços educativos que ela
desempenhava.
65
A reportagem informa que a entrada era franca e o horário da visitação era de 12h às 16h durante toda a
semana, à exceção de segunda-feira. Assim, quatro horas diárias do expediente de seis eram destinadas à
1743
O jornalista aponta para a necessidade de realização de várias visitas para a elaboração
do artigo, para “fixá-las [as raridades] com mais vagar e melhor disposição de espírito”
(Ribeiro, 1945: 95). Assim, a visita ao museu é compreendida como exercício de fixação de
informações sobre raridades e relíquias, exercício cansativo, como reconhece o narrador em
diversos momentos. A importância das anotações é realçada em várias ocasiões, com o
repórter, “de caderno em punho, sempre a tomar notas”, reproduzindo informações,
adicionando comentários sobre sua ignorância, admiração ou mesmo rejeição a determinado
objeto. Ao final da reportagem, seu lápis já estava um “toquinho”, conforme sua própria
expressão.
(...) ouvindo-se a palavra erudita do Sr. Gustavo Barroso, ao lhes definir as partes
componentes, com minúcia e carinho todo especiais, o visitante mais indiferente às
velharias bélicas do passado chega a interessar-se pelos pesados canhões (...).
(Ribeiro, 1945: 95)
recepção do público. Por se tratar de entrada franca, seria possível esperar um afluxo significativo, mas tal não
ocorria, conforme pode ser percebido nos relatórios anuais.
66
A visita foi estruturada a partir da Portaria, com a explanação sobre a instalação do Museu no edifício e,
sobretudo, sobre as dificuldades de gestão. Segue-se o Pátio dos Canhões e as Salas Vice-Reis, Carlos Guinle,
Almirante Barroso, Otávio Guinle, Marquês de Tamandaré, Conde de Boradela, Conde de Porto Alegre,
Saldanha da Gama, Pátio Epitácio Pessoa (momento no qual Barroso se retira e incumbe Jenny Dreyfus e
Fortunée Levy para o prosseguimento da visita), Salas Smith de Vasconcelos, Arnaldo Guinle, Mendes Campos,
Getúlio Vargas, Guilhermina Guinle, Carlos Gomes, Otônis, General Osório, D. Pedro II, D. Pedro I, D. João VI,
Tiradentes, Duque de Caxias e, por fim, Salas da República e Deodoro (nesta ordem). A Seção de Numismática,
Sigilografia e Filatelia possuía uma exposição própria, organizada em três salas, “Zeferino de Oliveira”,
“Guilherme Guinle” e “Sotto Mayor”. Após a visita à seção de Numismática, a reportagem inclui a Sala Miguel
Calmon. O prof. Menezes de Oliva guia em algumas salas, mas a narrativa não demarca se a visita é a inicial ou
aquelas que foram realizadas posteriormente.
1744
conservadores. A função assumida pelo repórter/visitante é copiar, registrar e fixar todo este
conhecimento.
O estímulo à visitação é realizado tanto pela valorização das peças do acervo como
pela necessidade de conhecer a história do Brasil, sobre a qual o próprio autor, talvez, para
angariar apoio do leitor, reconhece desconhecimento: “(...) pudemos verificar a nossa santa
ignorância da história do Brasil”, afirmação decorrente do fato de não saber os nomes dos
vice-reis, que fez questão de copiar (Ribeiro, 1945: 98). A visita nos museus seria, então, uma
oportunidade para os visitantes sanarem esta ignorância, pois ele é “um grande livro aberto da
história do nosso passado”. A ação do museu seria guardar estes dados, não deixá-los cair no
esquecimento. Do mesmo modo, a forma de exposição das peças seria outro estímulo
importante pelos aspectos da sedução, da harmonia e da informação, “arranjos hábeis e
inteligentes da direção” (Ribeiro, 1945: 101).
A questão da educação pelo sentimento é interpretada pelo autor como uma resposta
àqueles tempos de pressa e à necessidade de sentir os objetos com “imaginação e doçura”
(Ribeiro, 1945: 99)67. Imaginar, por meio dos objetos, provocava a sensação de saudade do
passado, tema central no pensamento barrosiano. Decorre daí o sentido atribuído ao museu
como reconstrutor de tempos passados68. Os objetos, portanto, parecem ter maior apelo para a
67
Em outra passagem, Ribeiro retoma novamente a questão da imaginação, ao abordar as alabardas dos
arqueiros do Paço: “Agora, imaginem vê-los brandidos por homens altos, possantes e barbados, de caras de
poucos amigos, quem não fica assim meio esquisito (...) e não sente aquele calafrio torturante dos grandes
momentos?” (Ribeiro, 1945: 102).
68
Curiosamente, o papel das pinturas históricas na construção da visualidade do passado nacional não é
explorado pelo narrador. Ele aponta brevemente que, na Sala Almirante Barroso, “dois grandes quadros
1745
interpelação aos visitantes. Na observação de um conjunto de imagens de Jesus Cristo, o
repórter afirma que “o Cristo mongol e o italiano (...) denunciam esta influência [do meio],
mesmo às pessoas desprovidas de senso crítico ou pouco observadoras” (Ribeiro, 1945: 107).
Assim, nas entrelinhas, os objetos seriam o mais importante meio de educação de um povo
inculto ou desatento, no caso, o brasileiro.
Um dos aspectos bem expressivos da cultura brasileira nos nossos dias é a ação cada
vez mais ampla dos museus na simpatia e na curiosidade popular. O Brasileiro, o
simples homem da rua, é hoje uma creatura que visita museus, sentindo-se atraído e
dominado pelos ensinamentos ou pelas sugestões que se encerram nessas casas
veneráveis e silenciosas. Esse gosto do nosso público em visitar museus acentua-se e
propaga-se a todas as classes. Não é mais apenas o estudioso, o erudito ou o
pesquisador apaixonado que percorre as nossas galerias de arte ou de história. São
também os estudantes, o menino da escola, o jovem da academia, ou ainda o
operário, nas suas férias dominicais, que se demoram na contemplação das peças e
despertam logo a atenção do visitante”, referindo-se aos quadros “Batalha Naval do Riachuelo” e “Passagem do
Humaitá”, ambos de Victor Meirelles. Logo a seguir, descreve minuciosamente um típico objeto-relíquia - o
modelo da fragata Amazonas - feito com pedaços de madeira supostamente originais. Nas demais descrições, as
pinturas europeias são valorizadas como indício de civilidade dos colecionadores brasileiros, com foco em seu
valor artístico, e não tanto histórico. A única fotografia do artigo que valoriza as pinturas é a referente à Sala
Almirante Barroso, onde é possível visualizar as telas referidas acima, dispostas uma ao lado da outra, com um
separador para o visitante não ultrapassar determinado ponto de observação.
1746
relíquias, que enriquecem as coleções oficiais. (...). É um museu ainda jovem,
considerado no entanto um dos mais importantes do continente, por sua organização
e pela riqueza de suas secções. É o Museu histórico, justamente considerado a Casa
do Brasil” (sic) (...)69.
Desse modo, o trecho torna patente a nova situação política do MHN frente à
expansão do projeto político-pedagógico do MES, em particular àquele levado a cabo pelo
SPHAN por meio da criação de novos museus. Era um momento estratégico para demarcar o
papel do MHN como “o museu histórico”, “a Casa do Brasil”, em um contexto de
concorrência por público, prestígio, doações e, claro, orçamento estatal. Chamava-se atenção,
assim, para uma democratização do MHN, pois até mesmo o simples homem de rua, seria, à
época, “uma criatura que visita museus”. Entretanto, a justificativa da legitimidade
institucional reside ainda no saber técnico e na coleção.
No cenário mais geral, a década de 1950 foi marcada pelo reforço da tendência
educativa dos museus. Indícios de tal movimento foram a edição de livros, a realização de
estágios para professoras no MHN, a maior aproximação com as escolas e a promoção de
eventos. Importa perceber quais propostas pedagógicas essa literatura trazia para o campo.
69
Relatórios administrativos sem autoria. Tomo 1930-1944. AI/MHN.
1747
foi o processo de Independência, após as aulas teóricas em classe. Esta concepção seria
reforçada em todo o período, conforme exposto a seguir. Importa aqui, no entanto,
acompanhar a categorização dos públicos realizada pelo autor. Na chave interpretativa de que
cultura é conhecimento, Trigueiros confia no potencial do museu em receber diversos
públicos, “(…) indo do analfabeto cioso de conhecer alguma coisa, e daí, numa gradação de
conhecimento, até os indivíduos da mais elevada cultura” (Trigueiros, 1955: 8). Assim, a
instituição deveria oferecer, em migalhas ou grandes bocados, informação.
De acordo com Judite Primo (1999), o Seminário enfatizou alguns pontos, como a
ideia do museu como extensão da escola e o fortalecimento, portanto, da educação formal. O
Seminário, que durou ao menos uma semana e envolveu diferentes instituições museológicas,
embora sediado no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM- RJ), criou um
programa que incluía conferências, debates e visitas aos museus da capital. O relatório final
do Seminário, coordenado por George Henri-Rivière, então diretor do ICOM, aponta que:
O museu pode trazer muitos benefícios à educação. Esta importância não deixa de
crescer. Trata-se de dar à função educativa toda a importância que merece, sem
diminuir o nível da instituição, nem colocar em perigo o cumprimento das outras
finalidades, não menos essenciais: conservação física, investigação científica,
deleite, etc. (Ata do Seminário de 1958, apud Primo, 1999: 8)
1748
Percebe-se, aqui, uma sutil interlocução com o receio do campo da museologia de
perder sua especificidade enquanto conhecimento científico, nos moldes da época, qual seja, a
relação com o objeto museológico. Era preciso conciliar, “sem colocar em perigo”, as
atividades rotineiras dos conservadores com a educação.
Apesar do caráter auto-elogioso, cumpre apontar as premissas por meio das quais a
autora manifesta assentimento, certamente com repercussão no Curso de Museus, da qual era
coordenadora. O diagnóstico de Henri Fould era, segundo ela, o mais acertado, pois propunha
a criação de departamentos juvenis nos museus já existentes em contraposição à criação de
museus da criança. Criticava também o excessivo foco em exposições temporárias, que
seriam apenas aprovadas em museus de arte, além do emprego abusivo de material
explicativo. Por fim, o autor recomendava turmas pequenas para a visitação.
1749
No mesmo ano de realização do seminário, o Museu Histórico Nacional,
pioneiramente, cria cursos de formação para as professoras do Instituto Nacional de Ensino
Pedagógico (INEP). O convênio envolvia a realização de estágios com duração de seis meses,
com o objetivo de orientar nas visitas escolares aos museus e de auxiliar na organização de
museus escolares nos Estados de procedência, o que indica a preocupação com o efeito
multiplicador da formação. O MHN assume, a partir daí, não somente a formação técnica dos
conservadores, como também a pedagógica de uma boa parte do professorado. Entretanto, a
descrição das atividades realizadas, bem como a exigência de apresentação de uma
monografia ao final do estágio, aponta para uma formação técnica e erudita, pouco ou nada
referenciada na discussão de métodos de ensino-aprendizagem. Interessante observar que, não
coincidentemente, somente em 1959, já na gestão de Josué Montello, há explicitação da
existência do Serviço Educativo, alocado na Seção de História.
(…) as bolsistas primárias, de nenhum modo afeitas ao nosso curso, tiveram certa
dificuldade de apreensão apesar do mesmo ter sido elaborado de uma maneira
especial, em que procuramos tirar um pouco da sua parte técnica mais árida,
adequada às pesquisas do conservador de museus71.
70
OLIVEIRA, Octávia de Castro Côrrea. Relatório setorial da I Seção – História. AI/MHN, 1958.
71
Id. ibidem.
1750
Há, claramente, uma hierarquização dos saberes e das áreas de formação. As
professoras teriam dificuldade e pouco interesse nos museus, mesmo com o esforço em
facilitar o curso ao se retirar conteúdos mais áridos, dominados apenas pelos conservadores.
Na fala de Octávia, legitima-se, seguindo as pegadas de Barroso, o saber técnico e científico
do conservador. Portanto, a realização de eventos e a inclinação dos museus para a educação
devem ser percebidas como intencionalidades e indícios de um movimento maior, em grande
parte, externo ao campo dos museus, que demandava maior função social dos mesmos.
Uma clivagem fundamental no seio do MHN, ainda a ser aprofundada, diz respeito aos
impactos da criação da Divisão de História da República, em 196072. Nesse mesmo ano, o
MHN conquista autonomia no organograma federal, ao ser desvinculado do MEC, e
subordina-se diretamente ao Presidente da República. A criação do departamento foi realizada
para gerir o novo Museu da República, criado no governo de Juscelino Kubistchek e
gerenciado por duas conservadoras, Jenny Dreyfus e Terezinha Maria de Moraes Sarmento,
ambas formadas no Curso de Museus.
O interesse do público foi impactante desde o início, embora seja possível questionar
os dados estatísticos da visitação devido à ausência de fontes que sustentem o controle da
mesma. Ainda assim, o relatório do mesmo ano aponta que, em 20 dias, acorreram mais de
15.000 visitantes, número um pouco inferior à média anual do MHN. Tal fato, sucedido nos
demais relatórios, sem dúvida, traria incômodo e deslocamentos na relação com o público,
embora aqui não seja possível acompanhar estes desdobramentos.
Importa destacar, apenas, que, a partir de então, os relatórios do MHN apontam para a
criação de maior infraestrutura de recepção do público, a preocupação com o controle
estatístico, a incorporação de plano de atividades de cada seção (a partir de 1962), dentre
outros. O sucesso do Museu da República traria desafios para os conservadores repensarem a
atuação do próprio MHN, ainda que seja no relatório do primeiro que as inovações sejam
implementadas, como a realização de várias exposições temporárias, concursos escolares com
72
Ver a valiosa e pioneira contribuição de FREICHEIRAS, Kátia. Do Palácio ao Museu: a trajetória pedagógica
do Museu da República, do governo bossa nova à ditadura civil-militar (1960-1977). IBRAM: 2015.
1751
prêmios, instalação de música de época nas salas, publicação de catálogos–guias por sala,
dentre outras iniciativas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas: o imaginário da República no Brasil.
São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
GOMES, Angela de Castro. História e historiadores: a política cultural do Estado Novo. Rio de
Janeiro: Ed. FGV, 1996.
1752
.
MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Comentários XII. Visões, visualizações e usos do passado.
Anais do Museu Paulista. São Paulo: Nova Série, v.15, n.2.,117-123. jul.-dez. 2007.
RAMOS, Francisco Régis Lopes. As utilidades do passado na biografia dos objetos. In:
RAMOS, Francisco Régis Lopes; GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Futuro do
pretérito: escrita da História e História do Museu. Fortaleza: Instituto Frei Tito, 2010.
RÜSEN, Jörn. Razão histórica: teoria da história: fundamentos da ciência histórica. Brasília:
Editora UNB, 2001.
VERÍSSIMO, José. (1906) A educação nacional. Porto Alegre: Mercado Aberto Editora,
1985.
1753
TRILHANDO CAMINHOS: ITINERÁRIOS DA REDE DE EDUCADORES EM
MUSEUS DO RIO GRANDE DO SUL – REM-RS (2010 A 2015)
RESUMO: O presente artigo relata a trajetória de constituição da Rede de Educadores em Museus do Rio
Grande do Sul - REM-RS (2010-2015). Trata-se de um estudo de caso de abordagem quali-quantitativa,
descritiva e com aplicação de instrumentos de pesquisa como método de coleta de dados, aplicado aos parceiros
da REM-RS que assumiram coordenações durante o período delimitado nesta pesquisa e aos coordenadores das
REMs que atuam em outros estados. Este estudo apresenta referenciais teóricos que fortalecem os aspectos do
funcionamento em rede e denotam a criação de diversas Redes de Educadores em Museus a nível nacional. Esta
investigação também realizou um levantamento das formas de organização das Redes de Educadores em Museus
em outros estados, a fim de perceber as diferenças e semelhanças com a trajetória da REM-RS. Conclui com a
análise e a avaliação de como se dá a articulação da REM-RS, uma rede voltada para os educadores em museus,
com os trabalhadores dessas instituições do estado, abordando os problemas e potencialidades de se trabalhar em
rede.
ABSTRACT: The actual article is to evaluate the constitution trajectory of Rede de Educadores em Museus do
Rio Grande do Sul – REM-RS (2010-2015). This case study used methods of data collection as qualitative and
descriptive approach and questionnaires applied to REM-RS partners that who took over coordination positions
during the delimited period in this research and also to REMs’ coordinators that work in another states. This
study presents theoretical frameworks that strengthen research, that underlie aspects of networking and denote
the creation of several Educator’s Network in Museums nationally. This research also conducted a survey on the
forms of organization of Redes de Educadores em Museus in other states, in order to understand the differences
and similarities with the trajectory of REM-RS. Concludes with the analysis and evaluation of how is the
relationship of REM-RS, a network geared for educators in museums, with workers of state institutions,
addressing the problems and potential of working in network.
1754
INTRODUÇÃO
Para compor o histórico desta Rede, ainda em fase de projeto de pesquisa, do qual
iniciamos com a revisão das publicações que versam sobre a história das Redes de
Educadores em Museus, constituídas nas diversas regiões e estados que compõe o nosso país.
Nesta fase foram identificadas quinze Redes73, com informações em Blogs, páginas de
Facebook, artigos, monografias e teses, escritas e organizadas por profissionais que atuam no
campo da Educação em Museus, ou que vinculam as suas pesquisas à Museologia.
A realização desta pesquisa se justifica por se tratar de um enfoque inédito sobre este
tema no RS, e que poderá estimular novas abordagens e pesquisas no campo da Educação em
Museus em relação à REM-RS, poderá contribuir para os projetos e as formas de atuação da
REM-RS, auxiliando na ampliação do repertório com reformulações ou na criação de novas
ações e formas de comunicação em rede.
73
O termo Redes, com o uso da letra maiúscula refere-se à rede que funciona como espaço de troca e interação
entre educadores de museus do RS e rede escrita com letras minúsculas, refere-se à ferramenta utilizada para
agrupar pessoas em prol de algum objetivo, causa ou propósito.
1755
conceitos de rede, elencando os pressupostos teóricos para refletirmos as formas de
comunicação e as influências destas modalidades na criação e no funcionamento da REM-RS.
74
ICOM, 1972, I. MESA-REDONDA DE SANTIAGO DO CHILE - ICOM, 1972. Cadernos de
Sociomuseologia, América do Norte, 15, Jun. 2009. Disponível em:
1756
Assim encontramos, no texto Os objetivos do conhecimento museológico, o que
manifesta Waldisa Rússio (1983), em relação ao “tratamento interdisciplinar, sistemático e
interativo entre os diferentes campos do conhecimento museológico” (BRUNO, 2010, p. 133-
134), e a própria “ação museológica” (Ibidem, p. 134).
1757
relações entre o homem, o patrimônio e o território. Sobretudo, a partir do movimento da Nova Museologia 76
(CÂNDIDO, 2003; SOARES, 2008), com o surgimento dos museus comunitários e tipologias afins.
É necessário entender ao que nos adverte Félix Guattari (2009), na obra As três
ecologias, em relação à deterioração do mundo, e das relações sociais, alerta-nos que “As
formações políticas e as instâncias executivas parecem totalmente incapazes de apreender essa
problemática no conjunto de suas implicações” (GUATTARI, 2009, p. 8).
76
Nova Museologia: testemunhos materiais e imateriais serviriam a explicações e experimentações, mais que à
formação de coleções; destaque para a investigação social enquanto identificação de problemas e de soluções
possíveis; objetivo de desenvolvimento comunitário; o museu para além dos edifícios – inserção na sociedade;
interdisciplinaridade; a noção de público dando lugar à de colaborador; a exposição como espaço de formação
permanente ao invés de lugar de contemplação.
Movimento de cunho ideológico que surge na década de 1980, a Nova Museologia, incorpora em suas ideias
centrais a noção de um museu aberto, voltado para a vida humana e plenamente comprometido com os
problemas sociais das comunidades. (CÂNDIDO, 2003, p. 26).
1758
espaço virtual: “comunidade virtual é simplesmente um grupo de pessoas que estão em
relação por intermédio do ciberespaço.” (LEMOS; LÉVY, 2010, p. 101).
77
A Inteligência coletiva é uma inteligência distribuída por toda parte, incessantemente valorizada, coordenada
em tempo real, que resulta em uma mobilização efetiva das competências (LEMOS; LEVY, 2010, p. 87).
78
Em sua 6ª edição (Belém/PA), O Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), autarquia federal vinculada ao
Ministério da Cultura, responsável pelas políticas públicas para o setor museal no Brasil, realiza a cada dois anos
o Fórum Nacional de Museus (FNM). Evento de abrangência nacional, o fórum tem por objetivo refletir, avaliar
e delinear diretrizes para a Política Nacional de Museus (PNM), consolidando as bases para a implantação de um
modelo de gestão integrado dos museus brasileiros, por meio do Sistema Brasileiro de Museus (SBM).
Disponível em: ˂http://fnm.museus.gov.br/sobre-o-6o-fnm/˃. Acesso em maio/2016.
1759
Ano/Rede 2003 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015
REM-RJ x
REMIC-DF x
REM-CE x
REM- x
PARAÍBA
REM-SE x
REM-SC x
REM-RS x
REM-BA x
REM-MA x
REM-PA x
REMIC-MS x
REMIC-PE x
REM-GOIÁS x
REM-SP x
RIMC x x
1760
Rede Princípios Interno
e Vídeo
Institucional
1761
de Perfil
BA
1762
de como tudo começou e como foi nos anos dos quais estiveram à frente da gestão da REM-
RJ (doc. eletr., 2016). Estas contataram via messenger79 no Facebook e por e-mail para
relatar um pouco desta história.
Faz-se relevante mencionar que a ideia de rede, surgiu a partir dos contatos entre
Marcelle Pereira e Magaly Cabral, uma referência nacional em Educação em Museus, que
apresentou para um grupo de Educadores em Museus do Rio de Janeiro uma organização
americana chamada Group for Education in Museums (GEM)80. Conforme Marcelle Pereira,
uma das fundadoras da REM-RJ, para não se utilizar a designação “Grupo”, optou-se pela
palavra “Rede”. (FACEBOOK REM-RJ, 2016)81.
79
Programa de mensagens instantâneas, conhecido como "MSN Messenger" ou, simplesmente, "Messenger".
80
GEM é uma organização de caridade adesão voluntária mais de 65 anos de idade, com 2.000 membros em
todo o mundo, 90% dos quais são educadores património profissionais que trabalham no Reino Unido. GEM
atua como "a voz para a aprendizagem do património", defendendo a excelência em património e aprendizagem
cultural para melhorar a educação, a saúde eo bem-estar do público - de todas as idades, habilidades e
experiências. DISPONÍVEL EM: HTTP://WWW.GEM.ORG.UK/INDEX.PHP. Acesso em abril de 2016.
81
Disponível em: ˂http://remrj.blogspot.com.br/˃. Acesso em: junho/2016.
82
Disponível em: ˂https://issuu.com/sisem-sp/docs/fernanda_castro˃. Acesso em: março/2016 e Disponível em:
˂https://www.youtube.com/watch?v=g0puUukkDjE˃. Acesso em março/2016.
1763
um comitê gestor, com representantes de três âmbitos: Museu Público Estadual; Museu
Público Municipal; e Museu Privado.
E em relação a tipologia dos encontros, esclarecem que foi estipulado, desde de 2009,
modelos distintos, quais sejam: Encontros temáticos; Visitas técnicas; Conversa filosófica; e
Seminário.(RANGEL; HARDUIM; SEIBEL, 2009, p. 2)83.
A Rede de Educadores em Museus do Ceará (REM – CE) teve a sua primeira reunião
em abril de 2008 e conforme consta no Blog da REM – CE87, postado em 16 de novembro de
2008.
Em janeiro de 2013 foi anunciado, no Blog, o local e data para outra eleição de
coordenação:
83
(RANGEL; HARDUIM; SEIBEL, 2009, p. 2, grifos das autoras).
84
Disponível em: ˂http://remrj.blogspot.com.br/˃ Acesso em: agosto/2015.
85
fanpage ou página de fãs é uma página específica dentro do Facebook direcionada para empresas ou marcas.
Disponível em: ˂http://www.aldabra.com.br/artigo/o-que-e-uma-fanpage˃. Acesso em: agosto/2015.
86
Disponível em: ˂https://www.Facebook.com/REM-RJ-125006930912175/˃. Acesso em: agosto/2015.
87
Disponível em: <http://rem-ce.blogspot.com.br/search?updated-min=2013-01-01T00:00:00-08:00&updated-
max=2014-01-01T00:00:00-08:00&max-results=5˃. Acesso em janeiro/2016.
1764
A Rede de Educadores em Museus do Ceará - REM CE informa que o local da
Eleição para Coordenação da REM CE será no Miniauditório do Memorial da
Cultura Cearense, no Centro Cultural Dragão do Mar de Arte e Cultura, às 17h, dia
14 de janeiro, conforme data divulgada no Edital lançado na reunião do dia 03 de
dezembro de 2012 e divulgado por e-mail. (BLOG REM-CE, 2013)
Cristina destaca que, para a rem, instituições educativas não são somente colégios:
“toda e qualquer instituição com projetos educativos são prioridade nos nossos
planejamentos. ONG’s e projetos como AXÉ e OI KABUM, por exemplo, também
são educativas”, afirma. (Melo; Ramos, 2011, s.n.)
A Rede de Educadores em Museus do Estado da Bahia tem o seu Blog89. Existe uma
Fanpage no Facebook90.
88
Disponível em: ˂https://www.Facebook.com/rededeeducadores.remce?fref=ts˃. Acesso em março/2016.
89
Disponível em: ˂http://rem-bahia.blogspot.com.br/search?updated-min=2012-01-01T00:00:00-
02:00&updated-max=2013-01-01T00:00:00-03:00&max-results=4˃. Acesso em: janeiro/2016.
90
Disponível em: <https://www.Facebook.com/Rede-de-Educadores-em-Museus-da-Bahia-REM-BA-
440647269320954//>. Acesso em: janeiro/2016.
1765
Rede de Educadores em Museus e Instituições Culturais do Pernambuco
91
Disponível em: ˂http://remic-pe.blogspot.com.br/2008_08_01_archive.html˃. Acesso em: janeiro/2016.
92
Disponível em: ˂https://www.Facebook.com/remic.pernambuco>. Acesso em: janeiro/2016.
93
Disponível em: ˂http://remic-df.blogspot.com.br/search?updated-min=2009-01-01T00:00:00-02:00&updated-
max=2010-01-01T00:00:00-02:00&max-results=27˃. Acesso em janeiro/2016.
1766
A Rede de Educadores em Museus do estado da Paraíba (REM-Paraíba) teve início em
06 de outubro de 2009, que ocorreu no Museu de Arte Assis Chateaubriand de Campina
Grande e com o aporte da Fundação Universitária de Apoio ao Ensino, Pesquisa e Extensão.
As informações coletadas para a presente pesquisa têm origem no Blog94, na página do
Facebook95 e na Dissertação de Mestrado de Karlene Roberto Braga de Medeiros (2013),
intitulada Descortinando Bastidores: o olhar dos usuários internos dos museus paraibanos.
94
Disponível em: ˂http://remparaiba.blogspot.com.br/˃. Acesso em janeiro/2016.
95
Disponível em: ˂https://www.Facebook.com/rem.paraiba?fref=pb_friends˃. Acesso em:janeiro/2016.
96
Disponível em: ˂ http://remsc.blogspot.com.br/search?updated-min=2011-01-01T00:00:00-02:00&updated-
max=2012-01-01T00:00:00-02:00&max-results=27˃. Acesso em: janeiro/2016.
97
Disponível em: ˂http://remsc.blogspot.com.br/search?updated-min=2011-01-01T00:00:00-02:00&updated-
max=2012-01-01T00:00:00-02:00&max-results=27˃. Acesso em janeiro/2016.
98
Disponível em: ˂http://remsc.blogspot.com.br/p/avaliacao-remsc-gestao-20102011.html˃. Acesso em:
maio/2016.
1767
A Rede de Educadores em Museus de Santa Catarina tem uma página do Facebook e
observa-se que ambos os meios de comunicação mantêm-se atualizados.
99
Disponível em: ˂http://remic-ms.blogspot.com.br/2010/09/rede-de-educadores-de-museus-e.html˃. Acesso
em: maio/2016.
100
Disponível em: ˂http://remic-ms.blogspot.com.br/search?updated-min=2012-01-01T00:00:00-
08:00&updated-max=2013-01-01T00:00:00-08:00&max-results=2˃. Acesso em: maio/2016
101
Disponível em: ˂https://www.youtube.com/watch?v=a66oVazHrUE˃. Acesso em março/2016.
102
Disponível em: ˂http://remgoias.blogspot.com.br/˃. Acesso em março/2016.
103
Disponível em: ˂https://anaisdoseminariosremgoias.blogspot.com.br/˃. Acesso em março/2016.
1768
experiência de Josiane Kunzler e Vânia Dolores Estevam de Oliveira, com título A atuação da
Rede de Educadores em Museus de Goiás (Rem-Goiás) em prol da Educação não formal.
Nos Anais resta o artigo Mapeamento das Ações Educativas em Museus de Goiânia
Ação da REM-Goiás 2013-2014104, das autoras Thalita Lorrany Veleda dos Santos, Josiane
Kunzler e Manuelina Maria Duarte Cândido (Vol. 4 - Museu, Sociedade e Meio Ambiente,
2014).
104
Disponível em: ˂https://drive.google.com/open?id=0B0OBmRqV0eHCcWdubllDby1Ickk ˃. Acesso em
março/2016.
105
Disponível em: ˂http://remgoias.blogspot.com.br/˃. Acesso em: maio/2016.
106
Disponível em: ˂https://www.Facebook.com/remgoias/?fref=ts˃. Acesso em: maio/2016.
107
Disponível em: ˂http://rem-sergipe.blogspot.com.br/˃. Acesso em: maio/2016.
108
Disponível em: ˂ http://rem-sergipe.blogspot.com.br/˃. Acesso em: maio/2016.
1769
práticas sociais e educacionais. (VIEIRA; PORTUGAL; JESUS, 2015, s.n.). A REM-SE, tem
um Blog e Fanpage do Facebook109.
A REM-MA não tem uma Fanpage como as outras REMs, ela utiliza um grupo
fechado no Facebook110 com um público mais restrito e que necessita solicitar o aceite dos
administradores para que possam inserir a quem solicitar.
A Rede de educadores em Museus do estado de São Paulo, tem como a data da sua
instituição o dia 17 de novembro de 2014, conforme E-mail recebido de Adriana Mortara
Almeida; Ana Luiza Rocha do Vale; Isabela Ribeiro de Arruda; Luciana Conrado Martins;
Paola Maués e Joselaine Mendes Tojo. Ao solicitar informações da REM-SP para Marina
Toledo, coordenadora do Educativo do Museu da Língua Portuguesa (SP), esta gentilmente
organizou este grupo por E-mail, a fim de esclarecer as dúvidas sobre a estrutura e
funcionamento desta Rede.
Nas reuniões, no ano de 2015, foram definidas coordenações por Grupo de Trabalhos
tais como: Perfil do Educador, Políticas Públicas e de Comunicação. (doc. eletr., 2016).
109
Disponível em: ˂https://www.Facebook.com/rem.sergipe/?fref=ts˃. Acesso em: maio/2016.
110
Disponível em: ˂https://www.Facebook.com/groups/793739864050232/˃. Acesso em: maio/2016.
1770
Paulo, conforme esclareceu Bruno Marinho, que atualmente é o administrador da página do
Facebook111 da REM-SP. A Rede está organizada no Museu da Língua Portuguesa.
(FACEBOOK REM-SP, 2016).
111
Disponível em: ˂https://www.Facebook.com/redemuseussp/?ref=bookmarks˃. Acesso em: março/2016.
112
Disponível em: ˂https://www.youtube.com/watch?v=g0puUukkDjE˃. Acesso em março/2016.
113
Disponível em: ˂http://remsp.blogspot.com.br/search?updated-min=2015-01-01T00:00:00-02:00&updated-
max=2016-01-01T00:00:00-02:00&max-results=39˃. Acesso em março/2016
114
Ata da reunião de rede de educadores em museus ocorrida em durante. Disponível em>
˂https://www.Facebook.com/groups/1635943876632993/files/˃. Acesso em: maio/2016.
115
Idem, idem
1771
Rede Informal de Museus e Centros Culturais de Belo Horizonte e Região
Metropolitana
116
Disponível em: ˂http://www.ufmg.br/rededemuseus/crch/simposio-rimc-2014/˃. Acesso em: maio/2016.
1772
países Brasil e Argentina, ocorreu o Encontro Buenos Horizontes, com a temática: Museus
Comunitários e Ação em Redes.
Este grupo gestor elaborou e aprovou a Carta de Princípios, que traduz os anseios e
objetivos dos profissionais envolvidos neste processo e percebe-se a preocupação com a
formação acadêmica e continuada dos profissionais da Educação em Museus, o
fortalecimento do setor e o planejamento de ações para a inclusão dos mais variados públicos
e perfis pessoais e institucionais.
A REM-RS realizou o primeiro Seminário, no Centro Cultural CEEE nos dias 08, 09
e 10 de maio de 2014, ocorrendo 105 inscritos de profissionais do estado e fora dele. Com o
tema - Relações Possíveis: Museus, Educação para o Patrimônio e Comunidades.
1773
No Fórum Nacional de Petrópolis (2010) a coordenação da REM-RS fez parte do
grupo de articuladores do Plano Nacional de Educação em Museus. A Rede a realizou
encontros no Rio Grande do Sul de 2013 a 214: Reflexões sobre o Programa Nacional de
Educação Museal; Programa Nacional de Educação Museal (PNEM) – um debate
necessário, e foi possível articular sobre o PNEM, no encontro do Sistema Estadual de
Museus em Santo Angelo/RS, contando com a presença de Diego Vivian, representante do
IBRAM no Rio Grande do Sul.
Considerações finais
Para compor este relatório as coordenações das REMs auxiliaram com suas
narrativas conduzindo e permitindo que os questionamentos fossem satisfeitos. Além disso, a
análise documental, fez com que os registros das ações da REM-RS, seus documentos e
histórico tivessem um lugar de referência junto à UFRGS.
1774
coordenação com voto direto, e em propostas concretas e com representatividade do interior
do Estado.
Referências
ALMEIDA, Adriana Mortara de. Novas estratégias para comunicação em museus. In:
BRUNO, Maria Cristina Oliveira. (Org.). O ICOM/ Brasil e o pensamento museológico
brasileiro: documentos selecionados. V.1. São Paulo: Pinacoteca do Estado de Cultura;
Comitê Brasileiro do Conselho Internacional de Museus, 2010. p. 122-127.
1775
Código de Ética do ICOM para Museus Versão Lusófona, 2010. Brasília – Disponível em:
˂http://www.mp.usp.br/sites/default/files/arquivosanexos/codigo_de_etica_do_icom.pdf˃.
Acesso em: maio/2016.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São
Paulo: Paz e Terra, 1996 (Coleção Leitura). 148p.
. Ação cultural para a liberdade. São Paulo: Paz e Terra, 2007, 176p.
GUARNIERI, Waldisa Rússio Camargo. Bem e patrimônio cultural, s.d. In: BRUNO, Maria
Cristina Oliveira. (Org.). Waldisia Rússio Camargo Guarnieri: textos e contextos de uma
trajetória profissional. V.1. São Paulo: Pinacoteca do Estado de Cultura; Comitê Brasileiro
do Conselho Internacional de Museus, 2010, p. 119-122.
. Sistema da Museologia, 1983. In: BRUNO, Maria Cristina Oliveira. (Org.). Waldisia
Rússio Camargo Guarnieri: textos e contextos de uma trajetória profissional. V.1. São
Paulo: Pinacoteca do Estado de Cultura; Comitê Brasileiro do Conselho Internacional de
Museus, 2010, p. 127-136.
1776
LEMOS, André; LÉVY, Pierre. O futuro da internet: em direção a uma ciberdemocracia.
São Paulo: Paulus, 2010. 258p. (Coleção comunicação)
LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993, 208p.
1777
REM-GOIÁS Rede de Educadores em Museus de Goiás – Disponível em:
<http://remgoias.blogspot.com.br/>. Acesso em: Agosto de 2015.
1778
SANTANA, Cristiane Batista; CUNEGUNDES, Kelly Rizzo; Toledo. YAGUI, Mirian
Midori Peres. Conceitos-chave da Educação em Museus. Unidade de Preservação do
Patrimônio Museológico. SEC-SP. São Paulo, 2015. 14p.
Disponível em: <http://sisemsp.org.br/images/Vers%C3%A3o_final_Conceitos-
chave_da_Educa%C3%A7%C3%A3o_em_Museus_12-3.pdf>. Acesso em: março/2016.
STUDART, Denise C.. Conceitos que transformam o museu, suas ações e relações. In.
ICOM/Brasil e o pensamento museológico brasileiro: documentos selecionados. (Org).
Maria Cristina Oliveira Bruno. V. 1. São Paulo: Pinacoteca do Estado: Secretaria de Estado da
Cultura; Comitê Brasileiro do Conselho Internacional de Museus, 2010, p. 148-157.
1779
REFLEXÕES SOBRE O ENSINO DA GESTÃO E DO PLANEJAMENTO NOS
CURSOS DE BACHARELADO EM MUSEOLOGIA NO BRASIL
1780
Abstract: This communication brings some reflections presented in the research developed as part of
the Programa Interunidades em Museologia da Universidade de São Paulo (PPGmus USP), that had
the purpose of mapping the profile of the training offer that characterizes the bachelor courses in
Museology currently in operation and, more specifically, to verify how the ideas of management and
planning appear in the curricula of the same courses.
The protagonism achieved by the management and planning in the museological universe has made us
nowadays treat it as a function of the museum, in addition to the traditional functions of preservation,
research and communication (DESVALLÉES; MAIRESSE, 2013).
When investigating how the content related to the management and planning are covered in the
respective course curricula, we point out the importance of thinking about management from a
museological perspective, which dialogues with the theoretical and practical dimensions of the field,
contributing to its consolidation and to the conformation of what Maria Cristina Oliveira Bruno
identifies as a museological view (olhar museológico). Based on lucidity and reflection (BRUNO,
2015a), this wiew is based in opposition to the fragmented and technicist visions that tend to
understand the experiments in the field in a compartmentalized way, which makes it impossible to
understand its totality in a processual perspective.For the development of the study, we use the
pedagogical programs of the 13 bachelor's degrees courses currently active in the country, and the
respective courses of the disciplines.
1781
O campo da Museologia e dos museus foi marcado, ao longo dos últimos cinquenta
anos, pela crescente racionalização do gerenciamento dos museus (MENSCH, 1989). As
profundas transformações operadas conduziram à demanda de novas competências, dentre as
quais a habilidade em gestão. Podemos dizer que a relevância atribuída à gestão e ao
planejamento vincula-se à necessidade de assegurar a continuidade e sustentabilidade aos
distintos experimentos na área, e pode ser percebida por meio do incremento da produção
bibliográfica voltada a esta temática, e da própria formulação de diretrizes e recomendações
tanto em âmbito internacional quanto nacional.
Não por acaso, dentre os temas elencados como prioritários para serem discutidos ao
longo do evento estava aquele concernente à gestão. Após apresentar uma série de
considerações que versam sobre a conjuntura que então se delineava, o documento
recomenda:
1782
que os museus definam claramente a sua missão [...]; que o Museu defina a
estrutura organizativa de acordo com seus requerimentos funcionais,
delineada segundo as concepções gerenciais aplicáveis a casos particulares, e
que se estabeleçam mecanismos de avaliação permanente; que os planos e
programas elaborados com instrumentos de planejamento moderno estejam
baseados em um diagnóstico das necessidades do Museu e da sociedade a
qual está imerso, e que a realização de tais planos e programas leve em conta
as necessidades prioritárias do Museu e definam objetivos e metas a curto,
médio e longo prazos; que o Museu em sua necessidade de gerar recursos
determine políticas claras de autofinanciamento, e que também recorra a
organismos nacionais e internacionais, públicos e privados que lhe permitam
executar projetos; que se elaborem projetos atrativos para as empresas
privadas interessadas em investir no setor cultural, sem alterar a missão do
Museu; que se promovam políticas culturais coerentes e estáveis que
garantam a continuidade da gestão do Museu; que se consiga uma
comunicação com os setores do poder da sociedade, com a finalidade de
obter apoio para a gestão do Museu; que se utilizem estratégias tanto de
mercado – para conhecer o usuário – como de sensibilização da opinião
pública; que se implementem cursos internacionais de capacitação em gestão
de museus; que se tomem em conta os princípios éticos que devem guiar
sempre a gestão dos museu (BRUNO, 2010, p. 78-79).
As contribuições trazidas por Caracas acerca da relação entre “museus e gestão” vão
no sentido de alertar os museus para que, mesmo incorporando essa lógica de mercado,
trabalhem sempre a partir de suas respectivas missões institucionais. Outro ponto fundamental
1783
é o reconhecimento da necessidade do estabelecimento de mecanismos de avaliação
permanente117.
117
Necessidade esta de avaliação que, segundo Marcelo Araujo, “deve estar introjetada em toda a visão sobre o
processo museológico como uma maneira possível de avançarmos na formulação teórica e na prática do
exercício museológico” (ARAUJO apud BRUNO, 2010, p. 126).
118
“O Plano Museológico é compreendido como ferramenta básica de planejamento estratégico, de sentido
global e integrador, indispensável para a identificação da vocação da instituição museológica para a definição, o
ordenamento e a priorização dos objetivos e das ações de cada uma de suas áreas de funcionamento, bem como
fundamenta a criação ou a fusão de museus, constituindo instrumento fundamental para a sistematização do
trabalho interno e para a atuação dos museus na sociedade” (BRASIL, 2009).
119
Não obstante, corroboramos com a autora quando esta contesta o aparente ineditismo desta exigência legal,
como se antes do Estatuto de Museus, não fizesse parte das preocupações das instituições museológicas aspectos
ligados à gestão e ao planejamento. A Portaria nº 1, de 2006, do IPHAN, que dispõe sobre a elaboração do Plano
Museológico para os museus ligados àquela autarquia, e sobre a qual o texto do Estatuto se ancora, além dos
distintos processos levados a cabo por diferentes profissionais em contextos variados do país antes da
formalização da lei, permitem demonstrar o contrário.
1784
competência da formação profissional no campo, estando dentre as elas a gestão
(Manegement competencies).
Como observa Peter Van Mensch (2004), de fato a gestão é, na atualidade, um dos
desafios mais importantes colocados para a Teoria Museológica, o que a transforma em um
objeto de estudo essencial.
Para além da questão da presença ou não de disciplinas que versam sobre gestão e
planejamento, há que se atentar para quais entendimentos destes termos orientam as
disciplinas atualmente ofertadas nos diversos cursos em funcionamento no país. O
conhecimento construído fora do campo da Museologia colabora para o fortalecimento da
gestão de museus no sentido mais museológico? (DUARTE CÂNDIDO, 2013); de que
maneira o referencial teórico-metodológico da Museologia contribui para a organização
dessas disciplinas?
Tendo como ponto de partida esses questionamentos, nos propusemos a verificar como
esses temas vêm sendo abordados nos currículos dos referidos cursos. Em termos de
premissas conceituais, partimos do entendimento de que a gestão compreendida como
museológica é aquela que se volta à administração dos sistemas da memória por meio da
ativação da cadeia operatória museológica de modo equilibrado e em constante
retroalimentação, configurando-se, assim, como um processo intrínseco à Museologia. Sua
abrangência extrapola, portanto, as chamadas atividades-meio, o que a transforma, ao lado da
salvaguarda e da comunicação, em função inerente ao dizer e fazer museológicos.
1785
processo de capacitação dos estudantes e para a conformação daquilo que Cristina Bruno
chama de olhar museológico (BRUNO, 2015a). Este olhar compreende as atividades ligadas à
cadeia operatória da Museologia (documentação, conservação, exposição e ação educativo-
cultural) – dentro de uma perspectiva integrada, evitando assim, a conformação de olhares
fragmentados e tecnicistas sobre o campo. A seguir, apresentaremos algumas considerações
sobre a análise.
Para fins da análise, levamos em consideração as disciplinas dos cursos que trazem em
seu bojo aspectos relacionados à gestão e ao planejamento, tendo como parâmetro as
premissas conceituais anteriormente esboçadas. Ao consultarmos os ementários, nos
atentamos, pois, à presença destes temas em outras disciplinas que não apenas aquelas que
trazem em seus títulos a menção a termos como gestão, planejamento, administração e
organização.
120
Uma vez que ao longo do desenvolvimento da pesquisa não foi possível obter o ementário e o projeto
pedagógico que norteou o curso da UNBAVE até 2016, ano em que este foi desativado com o objetivo de passar
por um processo de reformulação, este curso não pôde ser considerado.
121
A única exceção nesse sentido é a disciplina do curso da UNIRIO que, embora apresente conteúdos relativos
a estes temas, é denominada Museologia IV.
1786
destes cursos122. O Quadro 1: apresentado a seguir, elenca alguns dados acerca dessas
disciplinas123:
Quadro 1: disciplinas obrigatórias e optativas com títulos que fazem menção aos termos gestão, administração,
organização e planejamento.
IES Natureza/ Título Ementa Pré-requisito
Período
UNIRIO Obrigatória Museologia IV Panorama da questão da ética na atividade Sem informação
museológica; análise dos códigos nacionais e
5º período
internacionais de ética profissional no campo
da atuação do museólogo, dentro e fora dos
museus. Conceitos e ações concernentes à
gestão de museus (Plano Museológico) e de
instituições afins, de natureza privada ou
pública, de constituição participativa e/ou
comunitária. Papel desempenhado pelas
associações de amigos; panorama das
agências de fomento brasileiras no campo da
museologia.
Optativa Administração I Apresentação dos movimentos e teorias de -
Administração. Análise e comparação dos
conceitos. Elaboração de novos conceitos
sobre o enfoque moderno da administração.
Aplicação dos conhecimentos administrativas
empresariais.
Optativa Administração A administração em perspectiva. O papel do -
II administrador. O comportamento humano nas
organizações. Mudanças na sociedade.
Administração contemporânea
UFBA Obrigatória Gestão Estudo e análise das diretrizes operacionais Exposição
Museológica para elaboração, organização e Museológica
6º semestre
gerenciamento do Plano Museológico.
Ação Cultural
Educativa com
Patrimônios
UFRB Obrigatória Gestão Domínio e análise dos códigos de ética de Introdução à
Museológica atuação do profissional a nível nacional e Museologia
7° semestre
internacional; política nacional de museus e
modelos de gestão; desenvolvimento do
plano museológico voltado para museus e
diversos processos de musealização.
UFPEL Obrigatória Gestão de Noções de gerenciamento de museus e de Documentação
Museus coleções museológicas; análise das Museológica I
6º semestre
legislações nacionais e internacionais que
regem as práticas museológicas de aquisição,
122
Na UFSC, até 2015, a disciplina era oferecida como optativa.
123
No caso específico do curso da UFOP, uma vez que não foi possível ter acesso ao ementário atualizado,
restringimo-nos a enunciar apenas aqueles componentes curriculares que contém esses termos em seus títulos, o
que, por certo, representou uma limitação na abordagem deste curso.
1787
salvaguarda e comunicação de acervos; os
códigos de conduta ética dos profissionais de
museus. Estudo e análise de “Planos e
Programas Museológicos” em instituições
com natureza de museu, públicas e privadas;
composição dos recursos humanos e
estruturação espacial das coleções, assim
como os procedimentos para efetuar os seus
deslocamentos internos e externos. Noções
básicas de adequação dos espaços para a
acessibilidade dos mais diversos públicos.
Princípios de segurança física e
informacional das coleções que compõem os
museus.
UFPE Obrigatória Gestão e Conceitos e ações concernentes à gestão de Sem informação
planejamento museus e de instituições afins, de natureza
6º período
em museus privada ou pública. Papel desempenhado
pelas associações de amigos; panorama das
agências de fomento brasileiras no campo da
museologia. Plano Museológico
UFG Obrigatória Gestão e Conceitos básicos de Administração. O Sem informação
Avaliação de comportamento humano nas organizações. A
5º período
Museus organização e a gestão em instituições
museológicas. A equipe administrativa e
técnica do museu e o seu treinamento.
Planejamento estratégico e gestão da
qualidade. Administração da imagem
institucional. O plano museológico em
diferentes modelos e processos de
musealização. A natureza pública ou privada
dos museus, as associações de amigos, as
agências de fomento, a gestão participativa.
A cultura da avaliação em museus. A
avaliação qualitativa.
UFSC Obrigatória Gestão de Noções de gerenciamento de museus e de Sem pré-requisito
Museus coleções museológicas; análise das
6ª fase
legislações nacionais e internacionais que
regem as práticas museológicas de aquisição,
salvaguarda e comunicação de acervos; os
códigos de conduta ética dos profissionais de
museus. Estudo e análise de “Planos e
Programas museológicos” em instituições
com natureza de museu, públicas e privadas;
composição dos recursos humanos e
estruturação espacial das coleções, assim
como os procedimentos para efetuar os seus
deslocamentos internos e externos. Noções
básicas de adequação dos espaços para a
acessibilidade dos mais diversos públicos.
Princípios de segurança física e
informacional das coleções que compõem os
museus.
Optativa Fomento e Ferramentas de gestão de instituições -
Projetos culturais. Natureza e particularidades de
Culturais projetos de fomento. A ética na gestão e
produção cultural. Leis de incentivo à cultura
e sua aplicação. Políticas públicas e impactos
no campo museológico.
1788
UFRGS Obrigatória Administração Conceitos básicos de Administração. Teoria Sem pré-requisito
aplicada às Geral da Administração (TGA). Movimentos
1ª etapa
ciências da da Administração.
informação
1789
de Coleções natureza privada ou pública, de constituição
Teorias da
participativa e/ou comunitária. Papel
Museologia
desempenhado pelas associações de amigos.
Panorama das agências de fomento
brasileiras no campo da museologia.
Desenvolvimento de plano museológico
voltado para museus e diversos processos de
musealização.
Optativa Teorias e Apresentação dos movimentos e teorias de -
Técnicas da Administração. Análise e comparação dos
Administração conceitos. Elaboração de novos conceitos
sobre o enfoque moderno da administração.
O papel do administrador. O comportamento
humano nas organizações. Mudanças na
sociedade. Administração contemporânea.
Fonte: a autora a partir de dados contidos nos projetos pedagógicos e sites institucionais.
Como podemos perceber a partir destes dados, os conteúdos das ementas abordam
tópicos relacionados à legislação, ética profissional, agências de fomento, associação de
amigos, natureza dos museus, gerenciamento de museus e de coleções/acervos museológicos,
planejamento estratégico, sistemas de qualidade, avaliação, administração de recursos
humanos, acessibilidade, segurança, Teoria da Administração, imagem institucional,
marketing, concepção de espaços museais, gestão e elaboração de projetos, gestão do
patrimônio, políticas públicas na área museológica e Plano Museológico.
O primeiro ponto a ser sinalizado sobre este panorama se refere à própria presença destes
conteúdos nas grades dos cursos, o que reforça o protagonismo alcançado pelo tema da gestão
junto ao universo museológico. O direcionamento dos componentes curriculares para questões
ligadas a este universo denota a preocupação que permeia o ensino superior em Museologia
hoje no país no sentido de buscar instrumentalizar os futuros profissionais com ferramentas
que os habilitem a lidar com o “[...] planejamento, gestão, execução e acompanhamento de
projetos e políticas culturais vinculados ao patrimônio natural e cultural, material e imaterial
[...]” (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2010a, p. 83).
1790
Dentre os assuntos tratados por estas disciplinas, é notório o protagonismo atribuído às
políticas públicas nas áreas de museus, com especial ênfase no Plano Museológico, o que
demonstra um alinhamento da oferta formativa com a legislação que rege atualmente o campo
museológico brasileiro. Podemos inclusive afirmar, a partir dos dados levantados, que a
referida legislação vem influenciando diretamente no formato adotado por estas disciplinas.
A ênfase dada a esses conhecimentos ligados à gestão stricto sensu pode ser
compreendida como um reflexo do momento que os museus e processos de musealização vêm
enfrentando na contemporaneidade. Frente ao cenário de incertezas e instabilidades, no qual
os Estados paulatinamente perdem protagonismo, incorporar procedimentos e técnicas desta
natureza, sempre pensados a partir das especificidades da Museologia, torna-se estratégico
para a consolidação e projeção das experiências operadas no campo. A intenção em formar
futuros profissionais aptos a lidarem com este tipo de cenário evidencia, a um só tempo, o
caráter interdisciplinar da Museologia e o entendimento dos museus como fenômenos
socioculturais.
Outro aspecto a ser observado diz respeito ao momento em que estas disciplinas
aparecem nos respectivos currículos. Ao consultarmos as matrizes, constatamos que, na maior
parte dos casos, estes componentes curriculares são ofertados da metade para o final dos
cursos, com maior concentração nos 6º e 7º períodos. Este dado demonstra uma escolha
formativa que prioriza, num primeiro momento, uma formação mais voltada a temas
específicos da Museologia – como documentação, expografia, aspectos teóricos, conservação,
entre outros – para somente depois tratar da questão da gestão propriamente dita. Tal
organização teoricamente possibilitaria aos estudantes uma compreensão de todos os
processos inerentes ao campo museológico de modo articulado e integrado.
1791
Um possível desdobramento para este ponto seria justamente o de averiguar junto ao
alunado dos diferentes cursos se tal intenção de fato se efetiva. O caso da graduação da UFBA
traz uma experiência interessante neste sentido. A disciplina Gestão Museológica, implantada
na reforma de 2011, originalmente foi ofertada no 6º semestre. No entanto, a vivência prática
levou os docentes e os discentes a constatarem, por meio da realização dos Seminários de
Avaliação do curso, que seria mais proveitoso para o desenvolvimento dos componentes
curriculares ofertá-la nos primeiros semestres da formação. Assim, a proposta de readequação
curricular ora em tramitação propõe, dentre outros aspectos, este ajuste124.
A partir dos dados consultados, foi possível constatar que somente em três cursos –
UFRGS, UFMG e UFOP – são oferecidas disciplinas obrigatórias dessa natureza ainda no
primeiro semestre. Na UFRGS é ofertada a disciplina Administração aplicada às ciências da
informação, na UFMG, a disciplina Teoria da Organização e, na UFOP, Organização de
Museus, sendo que os temas tratados nas disciplinas da UFRGS e da UFMG dizem respeito a
conteúdos do campo da gestão stricto sensu, como Teoria Geral da Administração, sem
estabelecer interface direta com o campo museológico. As próprias referências bibliográficas
recomendadas para estas disciplinas evidenciam esta orientação que, no nosso entendimento,
pode ser compreendida tendo em conta a vinculação institucional de ambos os cursos,
alocados em escolas e faculdades de Ciência da informação125.
Quanto ao curso da UFOP, este apresenta ainda quatro disciplinas obrigatórias que
trazem menção aos termos gestão e administração em seus títulos126, sendo que a disciplina
Organização e Administração I, oferecida no 7º período, é ministrada pelo Departamento de
124
Conforme informações disponibilizadas informalmente por alguns docentes do curso.
125
Os demais cursos que disponibilizam disciplinas diretamente atreladas ao que estamos chamando de gestão
stricto sensu as oferecem, na maior parte das situações, como disciplinas optativas. Este é o caso dos cursos da
UNIRIO (Administração I e II), da UnB (Introdução à Administração), da UFS (Teorias e Técnicas da
Administração) e da UFOP (Gerência de Recursos Humanos). Nesse sentido, ver Quadro 1.
126
São elas: Preservação e Gestão do Patrimônio Cultural (6º período), Elaboração e gestão de projetos
culturais (7º período) e Gestão e administração de museus (8º período).
1792
Engenharia de Produção, Administração e Economia da Universidade, o que aponta para uma
abertura em direção a outros campos disciplinares127.
127
Como não tivemos acesso ao ementário atualizado deste curso, não foi possível tecer uma reflexão mais
elaborada acerca do perfil destas disciplinas. De todas as formas, a contar pelos títulos, dentre o atual cenário da
oferta formativa, voltada para essa questão da gestão, vemos que o curso da UFOP é o que mais dispõe de
disciplinas associadas a essa temática. Por certo, quantidade não pressupõe necessariamente qualidade em termos
museológicos.
128
A contar pelas ementas, as disciplinas adotam quase que exclusivamente publicações do campo da
administração e de outros campos do conhecimento vinculados a Ciência da Informação (Biblioteconomia e
Arquivologia). Por certo, a prática docente pode vir a contrariar essa informação. No entanto, como não foi
possível realizar esse levantamento mais detalhado, nos limitamos à análise aos conteúdos presentes no
ementário consultado.
129
Tomamos como referência o Quadro Referencial da disciplina, que propõe a organização da Museologia da
seguinte maneira: MUSEOLOGIA GERAL: corresponde aos princípios e procedimentos gerais da disciplina e
1793
Partindo da cadeia operatória museológica, encontramos atreladas ao eixo da
salvaguarda a presença de disciplinas que fazem referência a tópicos como desenvolvimento
de diagnósticos e gerenciamento de acervos, planejamento de reservas técnicas, planos de
segurança, sistemas de gestão da informação, documentação. Já no que se refere ao eixo da
comunicação museológica, identificamos disciplinas que tratam de temas como concepção e
planejamento de exposições, processos educacionais em museus, avaliação e estudos de
público, programas e projetos de arquitetura para museus e espaços museais, entre outros.
Considerações Finais
Ao nos voltarmos para o modo como as ideias de gestão e planejamento vêm sendo
abordadas nos currículos dos cursos de graduação em Museologia ativos no país, a partir do
levantamento das ementas das disciplinas, evidenciamos a presença de duas dimensões que se
complementam e que contribuem para o fortalecimento da Museologia Aplicada.
que servem para qualquer universo de aplicação; MUSEOLOGIA ESPECIAL: diz respeito aos textos e
contextos específicos onde esses princípios são experimentados; MUSEOLOGIA APLICADA (Museografia): se
refere ao conjunto de procedimentos técnico-científicos acionados por meio da ativação da cadeia operatória
museológica (BRUNO, 1996; DUARTE CÂNDIDO, 2013).
130
Dados foram sistematizados apresentados no Apêndice C da dissertação “A formação em Museologia nas
universidades brasileiras: reflexões sobre o ensino da gestão e do planejamento sob a ótica da Museologia”
(ISOLAN, 2017, p. 201-211).
1794
permitem a viabilização das atividades finalísticas inerentes ao ciclo museológico. Nesse
sentido, fazemos referência a temas como gestão de recursos humanos, estratégias de
financiamento e fomento, comuns a qualquer tipo de gestão, mas que, quando aplicados ao
universo museológico, devem adequar-se às suas especificidades.
De outro lado, está a dimensão da gestão que colabora para o desenvolvimento dos
procedimentos técnico-científicos ligados à salvaguarda e comunicação, a qual identificamos
como gestão museológica. A partir das ementas, vimos que noções ligadas à gestão e ao
planejamento extrapolam as disciplinas que levam seu nome, e aparecem em componentes
curriculares que tratam de temas como diagnóstico de acervo, planejamento de exposição, etc.
De fato, esta presença nos faz compreender que a gestão hoje se configura, ao lado da
131
Por exemplo, as estratégias quanto a recursos humanos, de financiamento e fomento e estrutura
organizacional adotadas por um museu de grande porte localizado num determinado centro urbano certamente
serão bastante distintas daquelas empreendidas por um processo de musealização mobilizado por um grupo de
lideranças e atores que atuam frente a uma iniciativa de caráter comunitário. Com isto, buscamos evidenciar que
a gestão vinculada à dimensão aplicada da Museologia se molda às diferentes circunstâncias, não havendo
fórmulas (em outros termos, lojinha e café não é solução para todas as realidades).
1795
salvaguarda e da comunicação, como função intrínseca à Museologia e contribui para o
fortalecimento da dimensão aplicada deste campo.
Entretanto, ainda que estes conteúdos venham sendo trabalhados em menor ou maior
medida nos cursos, sua abordagem não garante, necessariamente, a dimensão processual que
lhes é inerente – ou, em outros termos, o olhar museológico ao qual Maria Cristina Bruno se
refere (BRUNO, 2015a).
Tais princípios estão, pois, associados à sua especificidade – entendida como sistema
de administração da memória que viabiliza, por meio do encadeamento de ações de
salvaguarda e comunicação, em constante equilíbrio, a transformação e projeção do
patrimônio em herança (BRUNO, 2006, 2000).
Referências bibliográficas
BOLAÑOS, María. La memória del Mundo: cien años de Museología – 1900-2000. Gijón:
Trea, 2002.
1796
BRUNO, Maria Cristina Oliveira. Apresentação: Cidade, gestão e sustentabilidade em museus
/ Museus e movimentos comunitários. In: ENCONTRO PAULISTA DE MUSEUS, 7.,
2015, São Paulo, 2015a. Disponível em: <https://issuu.com/sisem-sp/docs/7_encontro>.
Acesso em: 05 abr. 2016.
BRUNO, Maria Cristina Oliveira. Um ponto de vista sobre os cenários e articulações para
formação profissional em museologia: conquistas e perspectivas no Brasil. In. INSTITUTO
NACIONAL DE ANTROPOLOGIA E HISTÓRIA. Tendencias de la Museología en
América Latina. Articulaciones, horizontes, diseminaciones. México D. F.: ENCRyM:
INAH, 2015b p.104-108. Disponível em:
<https://revistas.inah.gob.mx/index.php/digitales/article/view/6066/6921>. Acesso em: 20
jun. 2017.
BRUNO, Maria Cristina Oliveira. A luta pela perseguição ao abandono. 2000. 238 f. Tese
(Livre Docência) – Museu de Arqueologia e Etnografia, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2000.
BRUNO, Maria Cristina Oliveira. Museologia: algumas ideias para a sua organização
disciplinar. Cadernos de Sociomuseologia, Lisboa, v. 9, n. 9, p. 9-33, 1996.
1797
DUARTE CÂNDIDO, Manuelina Maria. Cartas de Navegação: planejamento museológico
em mar revolto. Cadernos de Sociomuseologia, Lisboa, v. 48, n. 4, p. 35-56, 2014.
MENSCH, Peter Van. Museology and management: enemies or friends? Current tendencies
in theoretical museology and museum management in Europe. In: MIZUSHIMA, E. (Red.).
Museum management in the 21st century. Tokyo: Museum Management Academy, 2004.
P 3-19. Disponível em:
<http://www.icom-
portugal.org/multimedia/File/V%20Jornadas/rwa_publ_pvm_2004_1.pdf>.Acesso em: 04
mar. 2015.
MOORE, Kevin (Ed.). La Gestión del Museo. Gijón: Ediciones Trea, 1998.
1798
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Projeto de
reformulação curricular do curso de Museologia. Rio de Janeiro: UNIRIO, 2006.
1799
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL. Projeto pedagógico do curso de
Bacharelado em Museologia. Porto Alegre: UFRGS, 2015.
1800
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ. Instituto de Ciências da Arte. Faculdade de Artes
Visuais. Curso de Bacharelado e Museologia. Anexo III – Contabilidade Acadêmica _
Bacharelado em Museologia; Anexo VII – Ementas das Atividades Curriculares com
Bibliografia Básica e Complementar.
1801
CENTRO DE REFERÊNCIA DA ARTE DE PESCA: OS SABERES E FAZERES
DOS PESCADORES
Resumo: Este artigo faz parte do desenvolvimento e estudos associados ao projeto de pesquisa-ação
tem como proposta a intervenção arquitetônica no edifício da antiga Escola Estadual Deputado João
Pinto, localizada no bairro Coqueiro, no município de Luís Correia, Piauí, território integrante da Área
de Proteção Ambiental (APA) Delta do Parnaíba. A Escola está desativa, sem uso, suscetível a
depredações e degradações. O que se pretende é recuperar a edificação e oferecer uma opção de uso
social ao espaço, revitalizando-o para abrigar um dos núcleos do MUDE – Museu de Território do
Delta do Parnaíba, que se destinará a salvaguardar os saberes e fazeres da arte de pesca um território
que abriga uma rica e complexa paisagem cultural.
Abstract: This article is part of the development and studies associated with the action research
project has as a proposal architectural intervention in the building of the former State school Mr João
Pinto, located in the coconut tree, in the municipality of Luís Correia, Piauí, a member of the
Environmental protection area (APA) Delta do Parnaíba. The school is disables, the building without
use, susceptible to depredations and degradations. The intention is to retrieve the building and offer an
option of social use into space, revitalizing it to house one of the cores of the CHANGE – Museum of
territory of the Delta of Parnaíba, that will be dedicated to protecting the knowledge and practices of
the fishing gear a territory which is home to a rich and complex cultural landscape.
Key-words: Heritage. Territory. Architecture. Cultural Landscape. Delta of the Parnaíba River.
1802
Introdução
Trata-se neste texto de apresentar o projeto de pesquisa-ação Centro de Referência da
Arte de Pesca: Os saberes e fazeres dos Pescadores em fase de desenvolvimento e associado
ao Programa de Pós-graduação em Artes, Patrimônio e Museologia, Mestrado Profissional, da
Universidade Federal do Piauí, que iniciou suas atividades em abril de 2015 com ingresso da
primeira turma. Trata-se do único Mestrado Profissional do gênero no Brasil; tem como sede
Parnaíba, classificada como Patrimônio Nacional desde 2008.
Parnaíba é porta de entrada para o Delta do Parnaíba, único a desaguar em mar aberto
das Américas; abriga um rico e complexo patrimônio cultural e natural associado a uma das
mais significavas reservas de mangue do mundo, bem como comunidades ribeirinhas,
praieiras e deltaicas que mantém tradições seculares, uma cultura híbrida e remanescente de
populações autóctones, africanas e europeias.
1803
Mude, Rede de Museus do Delta do Parnaíba, cuja natureza é a participação das comunidades
locais e agentes públicos e privados
Para este trabalho, adotamos o conceito de Rede de Museus, que se firma na existência de
equipamentos culturais autônomos, mas que somam esforços e otimizam recursos humanos e
materiais de forma a permitir organicidade no planejamento e execução de programas,
projetos e ações conjuntos. As redes favorecem a existência sistemática e qualificada dos
equipamentos culturais – neste caso os museus de território, cuja natureza é a participação das
comunidades locais e agentes públicos e privados, que formarão “A REDE DE MUSEUS
DELTA DO PARNAÍBA | MUDE”.
1804
28.08.1996, coordenada pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
(ICMBio), CR5, cidade de Parnaíba, Piauí. Na APA Delta do Parnaíba estão inseridos os
municípios de Barroquinha e Chaval, no Estado do Ceará; Araioses, Água Doce, Tutóia e
Paulino Neves, no Maranhão; Cajueiro da Praia, Luís Correia, Parnaíba e Ilha Grande, no
Estdo do Piauí.
Concordando com Varine (2013) para quem a gestão dos patrimônios deve ser feita o
mais próxima dos criadores e detentores desses patrimônios, o que justifica a nossa opção pela
Museologia de cariz social, que valoriza as ações socioeducativa dos museus, entendidos
como espaços de educação não-formal, de ações culturais e de comunicação, gerador de
conhecimento, reconhecimento individual e coletivo, de valorização de culturas e identidades,
de estímulo à consciência crítica, afirmando olhares e reflexões que permitem desconstruir os
discursos oficiais, que negam as memórias de grupos minoritários e/ou marginalizados.
1805
O Conselho Internacional de Museus (ICOM) define museu como “uma instituição
permanente sem fins lucrativos, ao serviço da sociedade e do seu desenvolvimento, aberta ao
público, que adquire, conserva, investiga, comunica e expõe o património material e imaterial
da humanidade e do seu meio envolvente com fins de educação, estudo e deleite.” O conceito
de Ecomuseu remonta aos anos 1960 e associa-se ao interesse de se refletir sobre novos tipos
de museus, concebidos em oposição ao modelo clássico e à posição central que ocupavam as
coleções naqueles museus; portanto os conceitos de Ecomuseus, museus de sociedade,
Centros de Cultura Científica e Técnica, de maneira geral, presente na maior parte das novas
proposições de museus visam colocar os patrimônios sob a gestação de agentes públicos e
privados locais, de forma a garantir o desenvolvimento sustentável. Esse conceito de museu
está atravessado pela relação entre o ser humano e sua realidade, pela apreensão direta e
sensível dos patrimônios, portanto, os objetos museais devem permanecer em seus locais de
origem, logo, os museus locais, de território, de comunidades, ecomuseus e museus integral
ou integrado, que tenham sob sua gestão coleções do patrimônio cultural local devem
representar uma tendência atual, qual seja: de participação das comunidades nos processos de
gestão. Nesse sentido, segundo (citar conceitos chaves da museologia) o termo museu tanto
pode designar a instituição quanto o estabelecimento, ou o lugar geralmente concebido para
realizar a seleção, o estudo e a apresentação de testemunhos materiais e imateriais do Homem
e do seu meio. A forma e as funções do museu variaram sensível- mente ao longo dos séculos.
Seu conteúdo diversificou-se, tanto quanto a sua missão, seu modo de funcionamento ou sua
administração”.
1806
formar outros profissionais para realização de pesquisas e boas práticas nas áreas de: ação
educativa e cultural; comunicação e públicos; gestão da informação: documentação e acervos;
tratamento de acervos arquivísticos em suportes diversos, museológicos, bibliográficos etc.
Como parte dos serviços de Educação a Ação Cultural, a Rede fará uso, dentre outras
ferramentas, de campanhas de educação ambiental e patrimônio cultural, de forma a envolver
públicos diversos, dentre eles o escolar e não escolar, associações de moradores, pescadores
etc. Portanto, a missão e vocação da Rede é desenvolver ações de registro, salvaguarda e
comunicação de acervos do patrimônio natural e cultural do território, para o conhecimento e
valorização, de forma a promover o trabalho de histórias e memórias de comunidade
ribeirinhas e deltaicas, com estímulo às reflexões sobre a importância dos patrimônios cultural
e natural, de ações a serviço da sustentabilidade social, ambiental e econômica, com o
envolvimento das populações residentes nas ações museais e de preservação e salvaguarda
dos patrimônios.
1807
Uma Rede formada por equipamentos que devem instruir as populações a participarem
da gestão dos seus próprios patrimônios, a entenderem e valorizarem o espaço modificado
cotidianamente pelas pessoas em suas relações como o meio ambiente.
1808
umidade e salinidade, arborização, passarelas elevadas para pedestres, algumas ruas serão
asfaltadas e outras garanhão pavimentação poliédrica, o que faz do projeto uma intervenção
arrojada”, Outro ponto considerado importante no projeto é a implantação de estacionamentos
ao longo das praias e a criação de um calçadão que vai delimitar a linha de praia. Segundo
Carlos Antonio Moura Fé, Superintendente do Meio Ambiente da Semar, a proposta de
delimitação da linha de praia na região do Coqueiro representa uma inovação na gestão do
nosso turismo, uma vez que não havia uma preocupação em trabalhar essa dinâmica.
A Praia do Coqueiro é uma região turística bastante procurada por ser propício
desenvolver atividades voltadas ao segmento de sol e praia, localizada no município de Luiz
Correia. Segundo o Plano Diretor do Município de Luís Correia, Lei nº 695, a região do
Coqueiro da Praia está localizada, na porção leste do município, dentro da Macrozona Rural
de Interesse Ambiental e Turístico (MRIAT), abrangendo o trecho da Área de Proteção
Ambiental (APA), do Delta do Parnaíba que está em território municipal. Mas na medida em
que apresenta uma grande variedade de recursos naturais, a fragilidade da infraestrutura
urbana desqualifica a paisagem natural, colocando em risco a riqueza da fauna e da flora
local.
Sob esse rico substrato paisagístico, nasce essa vila de pescadores, comunidade sobre a
qual se constrói o presente trabalho, o bairro Coqueiro da Praia possui um fluxo de visitantes
que baixo, decorrente principalmente a pouca infraestrutura disponível para os visitantes.
Com problemas urbanos recorrentes as das grandes cidades costeiras, o bairro enfrenta
problemáticas urbanas relacionadas ao lixo, iluminação pública, acessibilidade, mobilidade,
pavimentação, dentre outras.
1809
Vale ressaltar a dificuldade de se encontrar bibliografia e/ou trabalhos acadêmicos que
tragam informações sobre o território em que se pretende trabalhar, entretanto, o que por um
lado pode ser um “problema”, por outro, pode-se considerar um ponto positivo para o projeto
que se pleiteia desenvolver, justificando a importância do mesmo e a necessidade da sua
execução.
A pesca predatória é proibida pela Lei nº 5.197, de 3 de janeiro de 1967, que dispõe
sobre a proteção à fauna, e dá outras providências. Alheio a esse dispositivo, essa prática é
facilmente percebida nos domínios dos litorais brasileiros e, neste caso, do litoral piauiense. O
que, mais uma vez, evidencia a ausência de políticas públicas, sobretudo de fiscalização dos
órgãos competentes, voltadas para preservação do meio ambiente e do patrimônio cultural
local
1810
patrimonial de uma comunidade. Aprimorar qualidade de vida a partir de pontos apresentados
anteriormente, e levando em consideração a região para a qual esta proposta está voltada.
E OPORTUNIDADES AMEAÇAS
X
- Revitalização de edifício sem uso; - A possibilidade de atraso na cessão do edifício
T
por parte do Governo do Estado;
- Núcleo do Museu de Território – MUDE -
E
REDE DE MUSEUS DELTA DO - A comunidade não se aproximar do CR;
R
PARNAÍBA;
N - Falta dos recursos para a reforma e revitalização
A - Atração de parceiros público-privados; do edifício.
S - Leis de Incentivos;
- Patrocínio direto;
IN FORÇAS FRAQUEZAS
T
- Presença da UFPI dentro do território; - Edificação sem usos, necessitando de ajustes ao
E
novo programa de necessidades.
- Localização do edifício no bairro Coqueiro;
R
- Aquisição e instalação de novos equipamentos e
N - As atividades a serem desenvolvidas no CR
com a comunidade e/ou a serviço desta. mobiliários.
A
S
Referencial Teórico
1811
Em se tratando de Patrimônio, Varine, 2013 relata que o patrimônio constitui as raízes
visíveis da comunidade em seu território. E essas raízes são variadas, correspondem a todas as
diversidades culturais dos componentes da população que vive no território ou dele se
beneficia.
Entendendo este território como reflexo de uma cultura o IPHAN,2012 que referências
culturais são edificações e são paisagens naturais. São também as artes, os ofícios, as formas
de expressão e os modos de fazer são as festas e os lugares a que a memória e a vida social
atribuem sentido diferenciado são as mais lembradas, as mais queridas. São fatos, atividades e
objetos que mobilizam a gente mais próxima e que reaproximam os que estão longe, para que
se reviva o sentido de participar e de pertencer a um grupo, de possuir um lugar. Em suma,
referências são objetos, práticas e lugares apropriados pela cultura na construção de sentidos
de identidade, são o que popularmente se chama de raiz de uma cultura.
1812
protagonizaram esta experiência inicial, são mencionados na publicação o conhecimento e
valorização das memórias locais; fortalecimento de tradições, identidades e laços de
pertencimento; valorização dos potenciais locais, com impulso ao turismo e economia nas
regiões envolvidas; desenvolvimento sustentável das localidades; e melhoria da qualidade de
vida, com redução da pobreza e violência. O Plano Museológico está sendo desenvolvido para
balizar as reformas e consecutivamente o programa de necessidades possa atender com
eficiência as propostas delimitadas no Plano.
MÉTODO
1813
PÚBLICOS
PARCEIROS E COLABORADORES
CAPTAÇÃO DE RECURSOS
CONCLUSÃO
Diante das condições atuais da edificação e para que ela possa desempenhar seus
futuros usos, se faz necessário de forma premente, a Revitalização do prédio. A opção de
revitalizar, conforme conceito proposto pelo Dicionário do Patrimônio Cultural, 2016, se
refere comumente à estratégia de valorização de áreas dotadas de patrimônio cultural que
passam por processos degradativos. Por meio de uma refuncionalização dirigida e estratégica,
o emprego de funções vinculadas ao capitalismo global, como o turismo, cultura, negócios,
comércios e residências, é incentivado nessas ações de planejamento. Para intervir na
edificação é mais acertado revitalizar para habilitar a edificação aos novos desafios.
1814
Referências bibliográficas
1815
ACERVO CULTURAL: CURADORIA DIGITAL E REUSO
Resumo: O presente texto discorre sobre como os museus trabalham tecnicamente com o aumento
contínuo dos objetos digitais culturais presentes nas instituições museológicas e que se tornam
também parte do seu patrimônio cultural. O objetivo é demonstrar que os museus podem dinamizar a
oferta de serviços informacionais integrada com as demais instituições culturais através da curadoria
digital deste material, incentivando o compartilhamento e o reuso destes objetos digitais culturais.
Espera-se a confirmação da curadoria digital como recurso para controle e manutenção do tratamento
técnico dos objetos digitais culturais, proporcionando o reuso dos mesmos em prol da expansão do
conhecimento e difusão da informação.
Palavras-chave: acervo digital; curadoria digital; museus; objeto digital cultural; reuso.
Abstract: The present text discusses how museums work technically with the continuous increase of
the digital cultural objects present in the museological institutions and that also become part of its
cultural patrimony. The objective is to demonstrate that museums can stimulate the supply of
information services integrated with other cultural institutions through the digital curation of this
material, encouraging the sharing and reuse of these cultural digital objects. The digital curatorship is
expected to be confirmed as a resource for the control and maintenance of the technical treatment of
cultural digital objects, allowing them to be reused in order to expand knowledge and disseminate
information.
Key-words: digital collection; digital curation; museums; digital cultural object; reuse.
1816
Museus (SMU), Secretaria de Estado de Cultura do Rio de Janeiro (SEC-RJ), equipe que
integro desde 2013.
A Rede também fornece aos seus membros uma ferramenta tecnológica de catalogação
de acervos, o Sistema de Gerenciamento de Acervos Museológicos (SISGAM), desenvolvida
em 2007, pela Fundação Anita Mantuano de Artes do Estado do Rio de Janeiro (FUNARJ)
em parceria com a SMU/SEC-RJ, que permite e promove a ampliação de acesso às coleções
nele catalogadas pelo acesso via internet, a oferta de serviços integrados e a presença online
das atuais vinte e cinco instituições participantes.
1817
sociedade, seja tecnicamente tratado e gerenciado, potencializando a gama de serviços
informacionais gerados a partir destes bens culturais.
Jamie McKenzie (1995)132, definiu os museus virtuais sugerindo que seriam coleções
de artefatos eletrônicos e recursos informacionais que possam conduzir o usuário pesquisador
a outros sítios virtuais, estabelecendo relações com outros recursos que também sejam de
interesse dos museus, englobando basicamente tudo que possa ser convertido para o meio
digital.
132
Tradução nossa.
1818
na web foram fluxos de trabalho naturais a serem seguidos nestes locais, tendo em vista as
vantagens acrescidas a diversos segmentos do museu e maior segurança da informação
referente aos itens, contribuindo com a preservação do patrimônio cultural.
Com uma formulação mais eloquente a respeito dos museus virtuais, podemos ver no
artigo “O que se pode designar como museu virtual segundo os museus que assim se
apresentam...”, com autoria da museóloga Diana Lima (2009), a partir de uma perspectiva da
consolidação das tecnologias da informação, os resultados de pesquisas acerca de termos e
conceitos técnicos do campo da museologia, dentre outros esclarecimentos e exposição de
133
International Council of Museums.
134
O documento original foi publicado em 1986, sua última revisão foi realizada em outubro de 2004, em Seul,
Coréia do Sul.
1819
termos associados ao âmbito dos museus virtuais, exemplifica três possíveis categorias
deduzidas deste tipo de museu.
A autora apresenta o Museu Virtual Original Digital, onde o museu e sua coleção não
possuem correspondentes no mundo físico e estão disponíveis para acesso e consulta somente
no ambiente digital da internet; o Museu Virtual Conversão Digital, onde o museu possui um
correspondente no mundo físico, com objetos físicos, mas também está disponível on-line por
meio de objetos digitais que foram convertidos dos objetos analógicos do museu; por fim,
expõe o tipo Museu Virtual Composição Mista, em que “O Museu é criado digitalmente e só
existe na web, mas a coleção que é exibida resulta de coleta e arranjo (imagens ou textos)
feitos por este Museu, procedendo de vários lugares, instituições, pessoas da vida real.”
(LIMA, 2009, p. 12).
Os recursos digitais foram tão incorporados pela sociedade que, atualmente, os objetos
digitais já compõem grande parte do nosso patrimônio cultural e intelectual, por englobarem
também objetos já elaborados e nascidos nestes formatos, que apenas existem virtualmente
com o apoio de programas e códigos binários, em detrimento de outros materiais físicos,
como diários digitais em blogs ou vídeos digitais que substituíram os filmes de acetato
(YOUNG, 2012, p. 2).
1820
de manutenção e preservação também estas coleções devem receber o tratamento necessário
e, por consequência, integram o patrimônio destas instituições.
Os objetos digitais culturais devem significar dentro de suas instituições mais do que
apenas representações digitais dos acervos físicos, pois suas possibilidades de uso e reuso são
extremamente flexíveis, desde que recebam os tratamentos técnicos e gerenciamentos
adequados, permitindo essa alta usabilidade, como vemos em “o acervo digital que está
paralelo ao acervo físico original, pode ir além de uma representação funcional deste,
ampliando o seu potencial informacional, comunicacional e de reinterpretação e
apresentação.” (SAYÃO, 2016b, p. 3).
1821
informacional no constantemente mutável ambiente digital”135 (NISO, 2009). A tecnologia e
suas possibilidades conduziram esta avaliação qualitativa a outros requisitos, e para tal, uma
boa coleção digital deve ser capaz de atender a demandas de diferentes tipos de comunidades
de usuários, incluindo diversos tipos de usabilidade, acessibilidade e readequação.
135
“[...] identifies, develops, maintains, and publishes technical Standards to manage information in today’s
continually changing digital environment” [tradução nossa].
1822
digitais foram criados. Informam sobre os relacionamentos e ordenação dos hardwares e
softwares necessários para a reprodução e decodificação do objeto digital.
No caso das coleções digitais, a ideia de preservação está atrelada a outros tipos de
demandas de ações em torno destes objetos digitais. Para manter o acesso contínuo a estes
objetos da maneira em que foram projetados em alguns casos é preciso manter sua estrutura
lógica em constante atualização e alteração, como a mudança de formatos, renovação de
mídias, hardwares e softwares.
136
“[...] actions required to maintain access to digital materials beyond the limits of media failure or
technological change.” [tradução nossa].
137
Este livro foi compilado primeiro por Neil Beagrie e Maggie Jones, atualmente é mantido e atualizado pelo
DPC [tradução nossa].
1823
Materiais digitais são especialmente vulneráveis a perda e destruição porque
eles são armazenados em mídia frágil magnética e opticamente que deteriora
rapidamente e que pode falhar inesperadamente devido à exposição ao calor,
umidade, ar contaminado, ou por falhas de dispositivos de leitura e gravação
(HEDSTROM, MONTGOMERY apud DPC, 2008, p. 36).
Deste modo, deduz-se que tão importante quanto a preservação do suporte da mídia, é
a preservação da tecnologia correspondente ao acesso daquela mídia e o gerenciamento passa
a ser norteada em função de algo invisível, “Preservação digital não é armazenamento
digital.” (SAYÃO, 2016a, slide 27).
1824
Os repositórios digitais confiáveis são centros de armazenamento para o depósito legal
dos documentos e objetos digitais produzidos ou mantidos por uma instituição e onde a gestão
ativa destes dados se desenvolve, “No intuito de por em prática soluções para o problema,
observa-se, no âmbito de várias disciplinas, um esforço em torno do desenvolvimento de
repositórios digitais orientados especialmente para uma gestão ativa de dados de pesquisa.”
(Idem, p. 49).
No Brasil, uma importante iniciativa neste campo partiu da Rede Cariniana, criada em
2002, pelo Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT), que é
vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Em 2013, a Rede, em parceria
com mais cinco instituições de ensino superior no Brasil, aderiu ao programa LOCKSS 138 da
Universidade de Stanford, na Califórnia (EUA), o qual “[...] fornece softwares livres de
preservação digital premiados [...], com vistas à preservação de conteúdos digitais
permanentes e originais, assim como à garantia de acesso a esses acervos.” (REDE
CARINIANA, 2016).
Curadoria digital
138
Lots of Copies Keep Stuff Safe; Muitas Cópias Mantém Coisas a Salvo [tradução nossa].
1825
exposição, por meio de conhecimento profundo sobre o tema e pesquisa e supervisionar a
montagem das exposições.
1826
O reuso dos objetos digitais é um dos maiores objetivos da curadoria digital. Através
de todo gerenciamento no processo da curadoria digital é possível obter serviços derivados
dos objetos tratados tecnicamente, promover a socialização e o compartilhamento destes
dados em outros contextos de modo que os objetos ou dados digitais não fiquem restritos às
análises de seu contexto original, alcançar novas audiências nestas instituições. O público
jovem é a comunidade de usuário mais ativo no ambiente virtual e as inovações que
promovem e difundem pelas redes da internet podem beneficiar os museus e seus acervos, e
principalmente, estes processos auxiliam na construção a análise da memória coletiva,
aproximando as coleções dos museus da sociedade sem riscos de danos ao patrimônio físico.
Nos museus os objetos digitais podem ir além das funções de gerenciamento como
documentação, apresentação e conservação dos objetos físicos, conforme já visto
anteriormente. Uma base de dados de imagens, que organize e recupere as especificidades
técnicas pode ampliar o domínio de interação entre estes objetos e aumentar seu grau de
usabilidade.
Considerações finais
1827
No cenário do reuso de objetos digitais culturais já há algumas instituições e
organizações pioneiras que se consolidaram como referências no uso e promoção destes
recursos como o projeto Europeana Space, cujo objetivo é contribuir com o crescimento e o
fomento da indústria criativa na Europa a partir dos recursos culturais digitais das instituições
que integram o projeto, oriundas de diversos países.
Conforme a ilustração abaixo, no caso da Rede Web de Museus, pode-se concluir que
a Rede vem estruturando um ambiente de objetos digitais culturais que em paralelo aos
objetos físicos também demandam um trabalho de gestão dinâmica destes arquivos com a
curadoria digital, de modo que eles possam ser tratados e preservados a fim de garantir o
acesso contínuo aos seus conteúdos e conservem seus potenciais para a geração de novos
serviços informacionais na área cultura, contribuindo com a indústria criativa e também
fomentando novas oportunidades de emprego.
1828
Figura 1: Ciclo da curadoria digital para o reuso de objetos e informações
Para que estes propósitos sejam alcançados efetivamente é necessário que a curadoria
dos objetos digitais seja planejada e realizada por equipes técnicas cada vez mais
especializadas e apoiadas em tecnologias e infra-estruturas adequadas, as instituições
precisam investir também nestes recursos a fim de manter o acesso à memória institucional
digital das mesmas. Além dos benefícios do reuso das coleções digitais para os acervos físicos
dos museus, a partir da curadoria digital destes materiais planejada em função de boas práticas
de criação dos objetos digitais, seleção, preservação digital, armazenamento entre outras, evita
1829
a duplicação de esforços institucionais nestas iniciativas e, principalmente, o retrabalho do
manuseio dos objetos de museus que também representa para o acervo físico um desgaste e
exposição a diversos riscos para sua integridade física.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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<https://www.era.lib.ed.ac.uk/bitstream/handle/1842/3362/Abbott?sequence=3>. Acesso em:
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BRASIL. Portaria n° 513, de 21 de maio de 2014. Dispõe sobre instituição da Rede Web de
Museus do Estado do Rio de Janeiro, no âmbito da Fundação Anita Mantuano de Artes do
Estado do Rio de Janeiro – FUNARJ. Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro, RJ, 23
maio 2014. Parte 1, p. 47. Disponível em:
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lusófona. Rio de Janeiro: Secretaria de Cultura do Estado do Rio de Janeiro: 2011. 45p.
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responsabilidade social da Ciência da Informação - ENANCIB 2009 (10) Encontro
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1830
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em: 25 ago. 2017.
SAYÃO, Luis Fernando. Aula de preservação digital. Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio
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. Uma outra face dos metadados: informações para a gestão da preservação digital. In:
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ISSN 1518-2924, Florianópolis, v. 15, n. 30, p. 1-31, 2010.
1831
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Preservation of Digital Heritage. Paris, 2003. Disponível em:
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YOUNG, Hilary. How can museums preserve out digital heritage? Wired. Reino Unido,
2012. Disponível em: <http://www.wired.co.uk/article/how-can-museums-preserve-our-
digital-heritage>. Acesso em: 20 ago. 2017.
1832
PRESENÇA KARAJÁ: IDENTIFICAÇÃO, PROTEÇÃO E PROMOÇÃO DE
COLEÇÕES E DO PATRIMÔNIO IMATERIAL
1833
Abstract: We will present the research project Presença karajá: cultura material, tramas e
trânsitos coloniais (karajá presence: material culture, plots and colonial transits), that has between it’s
goals mapping, identifying and analyzing karajá dolls (ritxoko) collections in Brazilian and foreign
museums with views to reconstitute the formation trajectory of the collections, the contacts between
researchers/ institutions and karajá indigenous groups, as well as studying body adornments and
clothing of the dolls.
In it development it will realize the collation between the objects and it’s museological documentation,
contributing, whenever possible, with the museological institution with the improvement of the
information recorded.
Besides that, it will contribute for the diffusion of the karajá doll’s collections presents in museums on
Brazil and abroad, stimulating the development of new researches and museological communication
projects (exhibitions and educational-cultural actions) from them.
We consider that this project contributes for the achievement of objectives of the Recommendation
about Protection and Promotion of Museums and Collections, document from UNESCO of 2015,
because highlights collections that are often seen as secondary in their source museums and takes over
some ones that have not been yet properly studied, producing knowledge that could substantiate
exhibitions, educational actions and other ways of extortions of the collections, apart from helping to
perceive for beyond the local scale, the patrimonialising interest about those material expressions of
the karajá identity.
1834
Introdução:
Apresentamos aqui resultados preliminares do projeto de pesquisa “Presença
karajá: cultura material, tramas e trânsitos coloniais”139, em especial relevando suas
potencialidades para a promoção de coleções e do patrimônio imaterial a elas relacionado.
139
Este projeto está sediado na Universidade Federal de Goiás (UFG) e conta com o apoio do Museu
Antropológico, do Núcleo de Estudo de Antropologia, Patrimônio, Memória e Expressões Museais (NEAP) e do
Grupo de Estudo e Pesquisa em Museologia a Interdisciplinaridade (GEMINTER). Integram sua equipe
pesquisadoras e estudantes de diferentes cursos da UFG, da Escola de Ciência da Informação da UFMG e da
Universidade de Évora, Portugal.
140
A pesquisa foi realizada nas aldeias Buridina e Bdè-Burè, em Aruanã, Goiás e Santa Isabel do Morro e
aldeias adjacentes, na Ilha do Bananal, no estado de Tocantins, com as ceramistas Karajá. Atualmente, parte da
equipe está envolvida com as ações de salvaguarda do bem cultural registrado, como apresentaremos a seguir.
1835
Já temos conhecimento de sua presença em pelo menos uma dezena de museus
brasileiros141:
141
Dados de quando o artigo foi submetido, em meados de 2017. No final do ano, ao revisar o artigo, optamos
por não enumerar uma a uma as novas descobertas, que elevam o número de museus no Brasil e no exterior a 48
instituições, em 12 países.
1836
- Museu Nacional Pigorini de Pré-História e Etnografia – Roma, Itália;
142
Bonecas do tempo antigo, denominadas hakana ritxoko. As de hoje são chamadas wijina bedè ritxoko (LIMA
et al, 2011)
1837
em cerâmica. São ritxoko as bonecas de cerâmica antropomorfas e iroduxumo as zoomorfas,
havendo ainda as kawa kawa, de madeira.
Quando de fala ritxoko já está subentendido que se tratam de bonecas figurativas
antropomorfas em cerâmica. As ceramistas mulheres são as responsáveis por sua produção e
pela das iroduxumo. As peças kawa kawa são feitas preferencialmente, mas não
exclusivamente, por homens.
Pelo menos desde o final do século XIX, as ritxoko, juntamente com outros
artefatos karajá, passaram a ser coletadas e levadas para acervos de museus, como o processo
que foi realizado nos anos 1930 por Claude Lévi-Strauss, recolhendo para o Museu do
Homem de Paris o conjunto hoje pertencente ao Museu do Quai Branly. A partir de meados
do século XX, elas passaram a ser fonte de renda das famílias, pois entraram no circuito
comercial de lojistas de artesanato, colecionadores privados e de museus e outros
interessados. Um dos resultados do seu registro como patrimônio imaterial brasileiro é a
recente valorização monetária das bonecas como mercadoria.
A presença de exemplares dessas bonecas em vários museus pelo mundo significa
que, de alguma forma, eram também comercializadas ou trocadas por bens industrializados
com colecionadores e pesquisadores que visitavam as aldeias e passaram a inseri-las no
mercado de bens artesanais: colecionadores, lojistas, pesquisadores ligados ou não a museus,
por meio de atravessadores, ou diretamente nas aldeias, encomendavam e adquiriam as
bonecas, fazendo com que as ceramistas encontrassem na venda das ritxoko uma fonte de
renda para a aquisição de bens dos torí (como denominam os brancos, os não-índios): as
ceramistas também afirmam que o dinheiro adquirido com a venda das bonecas serve, entre
outras coisas, “para comprar comida de torí, que é a comida que as crianças gostam”. Ou seja,
a motivação de sua existência derivada das crianças é sempre reiterada.
Da relação dos Karajá com segmentos da sociedade nacional podemos entrever
muitas e complexas trocas, como as decorrentes da entrada de dinheiro nas aldeias, com a
aquisição de vários bens, vestimentas, aparelhos elétrico-eletrônicos e alimentos
industrializados. Podemos também perceber as mudanças que esses produtos provocam nas
aldeias. Estas questões foram observadas em muitas situações no campo, que mostravam o
quanto a produção das bonecas dava autonomia às ceramistas para o acesso aos bens da
1838
sociedade envolvente, muito mais do que a produção de outros objetos artesanais feitos por
elas.
Toda a complexa e longa produção da boneca – desde a coleta e preparo do barro,
a queima do antiplástico e a modelagem das peças, as duas queimas, a decoração – era
transformada em dinheiro e em bens consumidos por toda a família (alimentos, roupas,
remédios, brinquedos). Para se referir ao potencial econômico da produção de bonecas pelas
ceramistas Karajá, Mahuederu, da aldeia Santa Isabel do Morro, na ilha do Bananal, diz:
“Ritxoko não é brincadeira não, ritxoko é ouro!”
No que tange aos contatos da população Karajá com a sociedade nacional (ou
sociedade abrangente), precisamos nos aprofundar para conhecer a maneira como as coleções
foram formadas: por quais pessoas e instituições, quais os interesses que determinaram a
formação das coleções, qual a época da coleta, como as bonecas foram (e se foram)
documentadas ou expostas, entre outros temas. Com essas informações será possível levantar
pequenas biografias dos objetos colecionados, das instituições e das ideias que motivaram a
constituição das coleções, a fim de poder elaborar reflexões sobre os trânsitos coloniais
experimentados por esses objetos.
De acordo com Resende:
1839
As referências às bonecas Karajá aparecem desde os primeiros contatos com
etnógrafos, conforme afirmação de Whan:
Percursos da pesquisa
Ao elaborar o projeto de pesquisa interdisciplinar “Presença Karajá: cultura
material, tramas e trânsitos coloniais”143, o interesse em investigar a função/utilidade das
peças nas aldeias, a formação das coleções, os contatos das instituições patrimoniais com os
grupos indígenas, os processos que levaram bonecas karajá, a se tornarem um bem simbólico
mundializado presente nos museus brasileiros e estrangeiros, juntou-se a outros, como a
investigação das indumentárias e dos adornos corporais das bonecas constituídos por incisões,
143
A equipe é formada hoje por 18 pesquisadores, dos quais registramos aqui os integrantes no momento da
escrita do artigo:
Profa. Dra. Nei Clara de Lima (Antropóloga, Professora aposentada da FCS/UFG e ex-Diretora do Museu
Antropológico da UFG)
Profa. Dra. Manuelina Maria Duarte Cândido (Curso de Museologia, FCS/UFG)
Profa. Dra. Ema Cláudia Ribeiro Pires (Profa. Auxiliar no Departamento de Sociologia, Universidade de Évora)
Profa. Dra. Rita Andrade (Curso de Design de Moda, FAV/UFG)
Dibexia Karajá – Ceramista e Discente do Curso de Licenciatura Intercultural Indígena da UFG
Milena de Souza (Discente de Museologia FCS/UFG)
Indyanelle Marçal Garcia di Calaça (Mestranda em Arte e Cultura Visual FAV/UFG)
Rejane de Lima Cordeiro (Discente de Museologia FCS/UFG)
Vinicius Santos da Silva (Discente de Museologia da UFMG em intercâmbio na Universidade de Évora)
Ana Cristina Santoro (Conservadora e Restauradora de Bens Culturais - Museu Antropológico/UFG)
Markus Garscha (Fotógrafo)
1840
pinturas, adição de fios, de entrecasca de árvores e de outros materiais. Pretendemos com ele
investigar as complexas “redes de agentes em contínua e dinâmica interação, formadas pelas
ceramistas, pelos compradores e, principalmente, pelos próprios objetos, na sua
materialidade” (WHAN, 2010, p. 03 e 04), incluindo aí os próprios pesquisadores e
instituições ligadas ao patrimônio que contribuem para ressignificação e difusão das bonecas
como patrimônio cultural.
Nossa metodologia envolve levantamento bibliográfico e em diversas fontes como
catálogos, sites e bancos de dados de museus; checagem da documentação museológica das
bonecas, contribuindo com o museu, quando possível, para cotejamento e complementação de
informações em interlocução com as próprias ceramistas; realização do registro fotográfico de
coleções que ainda não o possuem; descrição e análise das bonecas com vistas à identificação
de singularidades em sua indumentária (incluídos aí adornos e pinturas corporais); elaboração
de biografias dos conjuntos de artefatos que tracem seus percursos da aldeia aos museus,
buscando identificar os sujeitos e os processos envolvidos na circulação de saberes sobre as
bonecas karajá; elaboração de artigos e outras publicações para promover as coleções,
estimulando novas pesquisas e exposições.
O projeto ainda está sendo iniciado e não conta com recursos financeiros, por esta
razão, em virtude da facilidade logística, tem priorizado os acervos e instituições existentes
em Goiânia, além do Museu Nacional de Etnologia de Lisboa, e mesmo assim dentro das
possibilidades e limitações do trabalho voluntário. No último caso, conta com os integrantes
da equipe residentes em Portugal. Apesar da ausência de recursos financeiros próprios, já foi
possível um profícuo encontro com o setor de América do Museu do Quai Branly, onde foram
coletadas informações e fotografias (apenas frontais) das 114 peças em sua coleção com os
critérios indicados: bonecas karajá antropomorfas em cerâmica.
Em relação a esta instituição, a equipe do projeto, com auxílio de Rafael Andrade,
mestre em Antropologia, fez uma revisão do material de documentação museológica cedido
pela instituição, que está sendo preparado para devolução ao curador, sugerindo algumas
informações complementares e correções especialmente em atribuição de gênero às bonecas
(poupée femme ou poupée homme) e toponímia dos locais de coleta, mas também da
1841
reclassificação de um artefato tido como ritxoko que não o é (trata-se de um objeto ritual
utilizado para a realização de feitiço). Assim, o quantitativo dessa coleção cai para 113 peças.
O Museu Nacional de Etnologia (Lisboa, Portugal), possui uma reserva visitável
denominada “Galerias da Amazónia”, em que se encontram diversas ritxoko com
características das bonecas antigas: pequeno formato e cabelos elaborados em cera. Por meio
de consulta ao banco de dados MatrizNet144 soubemos da presença de 123 bonecas karajá no
acervo. Integrantes do projeto têm feito visitas sistemáticas desde março de 2017 para alcance
dos objetivos da pesquisa. No momento, a equipe se debruça sobre uma planilha em que
organiza os seguintes dados sobre cada peça: número de inventário, tipologia, representação,
origem, matéria-prima, autoria, forma de aquisição e link para o inventário daquela peça.
No Museu Antropológico da UFG obtivemos informação inicial de um total de 865
bonecas karajá no acervo, sendo 810 na Reserva Técnica Etnográfica e 55 na exposição de
Longa Duração Lavras e Louvores. Ao longo de algumas semanas, em virtude da ausência de
uma base de dados que permitisse buscas rápidas, trabalhamos com a documentação
museológica para distinguir as coleções formadas pelo professor Acary de Passos Oliveira
(fundador do museu e seu diretor até 1983) e pela profa. Edna Luísa de Melo Taveira
(museóloga e também ex-diretora), com o objetivo de priorizar a coleção desta pesquisadora,
visto a professora ter colaborado como informante da pesquisa. Em paralelo, conseguimos
agendar e realizar uma visita à professora em que obtivemos preciosas informações e mais
material para a pesquisa, que será detalhado mais adiante.
144
O MatrizNet é o catálogo on-line dos Museus do Estado Português, pertencentes à Direção-Geral do
Patrimônio Cultural (http://www.matriznet.dgpc.pt/MatrizNet/Home.aspx).
1842
UFG, vinculado ao antigo Instituto de Ciências Humanas e Letras (ICHL), atual Faculdade de
Ciências Sociais (FCS), quando no âmbito de uma pesquisa no Parque Indígena do Xingu, por
iniciativa dos professores que participaram de uma viagem de estudos, é formado o acervo da
primeira coleção etnográfica. Integraram esta viagem os professores Acary de Passos, Vivaldo
Vieira da Silva, Antônio Theodoro da Silva Neiva e o Pe. José Pereira de Maria, todos já
falecidos. No relatório dessa viagem os professores sugeriram “um plano de pesquisa com o
objetivo de estudar as populações do Xingu e criar um museu antropológico na UFG”145.
Os Karajá habitam o vale do rio Araguaia nos estados de Goiás, Tocantins, Mato
Grosso e Pará, somando cerca de 3.000 indivíduos, a maior parte vivendo na aldeia Hawalò,
ou Santa Isabel do Morro, Ilha do Bananal (TO). Nesta localidade, segundo a FUNASA,
encontram-se em torno de 670 habitantes (RESENDE, 2014, p. 21).
A “presença Karajá” no Museu Antropológico da UFG não se resume às ritxoko. Há
inúmeros outros tipos de artefatos como iroduxumo, kawa kawa, adornos corporais, objetos de
cestaria e cerâmicas utilitárias. O Museu realiza pesquisa e trabalhos com a comunidade
karajá desde o começo de sua atuação. Em 2010, como parte das atividades comemorativas
dos seus 40 anos, foi organizado um evento denominado “MUSEU ANTROPOLÓGICO: 40 ANOS
145
Fonte: https://www.museu.ufg.br/p/1333-historia
1843
de cerâmica karajá, que consistem em ações de valorização das pessoas, estímulo à produção
e reprodução do bem por meio da proteção, preservação e divulgação. Neste caso, as ações de
salvaguarda incluem oficinas, intercâmbio entre aldeias, e publicações bilíngues para
fortalecimento da língua karajá, o Inyribè146.
No decorrer de seus quase 50 anos de existência o Museu Antropológico recebeu
diversos conjuntos de bonecas karajá, desde os primeiros formados por pesquisadores como
Acary de Passos Oliveira, até a doação feita no âmbito do projeto Bonecas Karajá: arte,
memória e identidade indígena no Araguaia em 2011, atualmente em fase de processamento
para ingresso na Reserva Técnica Etnográfica.
Inicialmente tínhamos conhecimento destes dois conjuntos de ritxoko no acervo e de
um formado pela professora Edna Taveira nas décadas de 1980 e 1990, além de uma doação
sua recente ao Museu ainda em fase de incorporação. Decidimos priorizar a coleção formada
por ela por poder contar com a professora como informante da pesquisa e, em 13 de fevereiro
de 2017, realizamos uma visita em sua residência, juntamente com Milena de Souza,
assistente de pesquisa do projeto. Na ocasião, pudemos saber sobre as missões de pesquisa e
coleta de acervo, bem como de sua intenção de realizar uma nova doação ao Museu incluindo
fotografias da missão a Santa Isabel.
Nessa reunião, a professora rememorou aspectos de sua gestão no museu (1983-1993 e
1995-1997), fazendo referência ao trabalho massivo de catalogação do acervo realizado em
1983 para adaptar o sistema documental ao padrão de numeração trazido pelo museólogo
Aécio de Oliveira147, da Fundação Joaquim Nabuco. Este ano é uma data reconhecida pelas
equipes do museu como o de maior entrada de acervos, quando mesmo peças já depositadas
anteriormente na instituição tiveram o ingresso formalizado, justificando uma enorme
superioridade numérica em relação aos outros anos. Edna Taveira também fez um relato sobre
os trabalhos de campo em que as bonecas e outros artefatos indígenas eram trocados por
146
https://www.museu.ufg.br/up/121/o/Bonecas_Karaj%C3%A1_-_salvaguarda_-
_texto_de_divulga%C3%A7%C3%A3o_05-01.pdf?1453228414
147
Foi então introduzida a numeração tripartida, a mais comum na documentação museológica, em que o ano de
entrada é seguido por um número referente à coleção e por outro com a numeração da peça dentro da coleção,
separados por pontos. Esta numeração permite facilmente a identificação do ano de entrada da peça no acervo, o
que facilitou nossa pesquisa, mas como muitas peças ficam no museu anos sem que seja formalizado o ingresso
no acervo, o ano às vezes não corresponde ao da coleta, mas da documentação.
1844
miçangas, barraca de lona (os indígenas costumavam solicitar barracas para duas pessoas,
utilizadas para as atividades de pesca), mosquiteiro e leite em pó. Identificou como seus
principais interlocutores Terraluna e Karirama, e como datas das missões, o ano de 1974, em
que realizou pesquisa para seu mestrado, 1979/80 quando atuou como assistente de Heloísa
Fenelon, e 1990, já como diretora do Museu.
A visita resultou também da descoberta de uma informação, até então desconhecida
pela equipe, de que organizou pessoalmente um conjunto de peças para o Museu Pigorini de
Pré-História e Etnografia, de Roma, por intermédio de um padre de Bologna cujo nome não
lembrou, tendo inclusive elaborado e enviado junto um projeto expositivo para a coleção que,
entretanto, não chegou a ser realizado.
Para priorizar a coleção da professora Edna Taveira no acervo do Museu
Antropológico, em virtude da então ausência de uma base de dados informatizada, em que
pudéssemos fazer buscas rápidas, realizamos uma força-tarefa com quatro integrantes da
equipe durante algumas semanas, consultando as pastas com fichas de catalogação do acervo,
organizando uma planilha do projeto somente com bonecas de cerâmica karajá, por sua vez
identificadas pelo número de inventário, ano, coleção/doador e se, segundo a ficha, trata-se de
cerâmica zoomorfa ou antropomorfa. Decidimos listar todas, não somente as antropomorfas,
pensando em ajudar o museu com a entrega da lista, para futuras pesquisas, mas também
descobrimos ter sido muito útil porque as fichas usadas na instituição são muito sumárias e a
descrição às vezes não permitiria saber se eram zoomorfas ou antropomorfas, ficando as
dúvidas assinaladas para quando do contato direto com as peças. Assim, evitamos deixar de
lado, no momento de acesso à reserva técnica, algumas peças antropomorfas que poderiam
estar erroneamente associadas a figuras de animais. Todas as peças que incluem figuras
humanas nos interessam, e algumas delas possuem representação de pessoas juntamente com
animais.
Chegamos a uma listagem de 970 bonecas em cerâmica de origem karajá, número
superior ao inicialmente indicado pelo Museu. Por sua vez, esse número está em franco
crescimento, pois a equipe da instituição está realizando um imenso trabalho de checagem e
reorganização, que já localizou alguns conjuntos de artefatos não documentados e aos poucos,
após aprovação pela Comissão de Acervo, na medida das possibilidades e força de trabalho
1845
disponível, vai dando entrada, com a incorporação das peças ao sistema documental. A
presença de duas integrantes desta pesquisa na Comissão de Acervo do Museu148 permite uma
atualização constante. Na reunião de 31 de julho de 2017 a Comissão de Acervo aprovou a
incorporação de mais 19 diversos artefatos karajá (dos quais 10 são ritxoko) doados pela
professora Edna juntamente com 64 já incorporados em 2016.
Na elaboração da lista que permitiria quantificar nosso universo de pesquisa no Museu
Antropológico da UFG e chegar às bonecas, priorizando uma coleção específica (daí a
listagem incluir este dado, mesmo tendo informação de que só haveria duas coleções, Acary
de Passos e Edna Luísa de Melo Taveira), fomos surpreendidas pelo registro de diversas
outras coleções, associadas a nomes de indígenas como Kutaria Karajá, Marwel Tuilá Karajá,
Ijesebery Karajá, Daniel Coxini Karajá, Kueredji Karajá e Lenimar Silva da Cruz Werreria,
associados a dezenas de números de inventário. Estes nomes não são mencionados
comumente quando se fala dos responsáveis pelo ingresso de bonecas karajá no acervo do
Museu Antropológico e cabe investigar qual o seu papel e o que diferenciou no processo de
entrada, os conjuntos identificados como Acary Passos e Edna Taveira, e os registrados desta
forma, referentes a anos da gestão da professora Edna. Diante disso, uma nova entrevista com
a nossa informante seria necessária149.
Mas além desta primeira camada de invisibilidade dos indígenas nos discursos,
encontramos uma segunda. Em um primeiro momento identificamos a maior parte destes
nomes como sendo do gênero masculino, o que corroboraria o que se sabe sobre as relações
entre as populações karajá e a sociedade envolvente, sempre mediada pelos homens, que
assumem papel de liderança e em geral resistem menos ao uso do português. As marcadas
diferenças entre o gênero masculino e o feminino na cultura karajá já foram estudadas e
referenciadas por diversos autores (LIMA FILHO, 1994; RESENDE, 2014; ANDRADE,
148
Ana Santoro, como responsável pela Coordenação de Museologia do Museu, e Manuelina Duarte, como
Coordenadora de Integração entre o Curso de Museologia e o Museu Antropológico, funções que possuem
assentos na Comissão e também no Conselho do Museu.
149
Infelizmente esta continuidade do diálogo com a professora foi abruptamente interrompido entre o envio da 1 a
versão deste artigo e esta revisão, com o falecimento de Edna Taveira logo após a Primavera nos Museus,
quando era esperada no Museu Antropológico para atividade ligada a reconhecimento de acervos e de
documentos antigos da instituição e já não pode comparecer em razão de agravamento dos problemas de saúde.
1846
2016), sempre indicando a diferença nas funções150 e a própria expressão na língua Iny como
marcador da diferença de gênero, pois há um modo de falar das mulheres e um dos homens,
sendo o delas mais complexo e composto por mais elementos. Vários pesquisadores ressaltam
o papel das mulheres, sempre consultadas nas decisões do grupo familiar e do marido,
inclusive quando ele é uma liderança.
No caso específico do conjunto artefatual que nos interessa nesta pesquisa, todo o
protagonismo é feminino, pois são as ceramistas que produzem as ritxoko, da coleta do barro
à modelagem, queima e pintura (WHAN, 2010; FARIAS, 2014, entre outros) e que também
comercializam as bonecas151. Entretanto, aparentemente, na patrimonialização/musealização,
além do protagonismo ser dado a pesquisadores, quando os nomes indígenas aparecem, são
dos homens que possivelmente intermediaram a formação da coleção, e não das ceramistas,
autoras. Esta seria a segunda camada de invisibilização no museu: das mulheres indígenas
envolvidas na formação das coleções. Encontrar entre aqueles nomes na documentação
museológica o de Lenimar Silva da Cruz Werreria, abre um novo campo de possibilidades de
investigação.
Considerações finais
Esta pesquisa, com vigência prevista para até 2020, indica que cada museu
identificado vai abrir um grande leque de possibilidades e desdobramentos. De uma forma
ampla, pretendemos realizar um estudo exploratório e um mapeamento. Cada conjunto de
peças indica novas veredas e as biografias dos conjuntos de ritxoko nas diferentes instituições
são infinitas, especialmente porque não pensamos de uma maneira estanque até o momento da
entrada no museu, mas nos diferentes processos de apropriação, valorização, secundarização,
150
“(...) os homens cuidam da pesca, das roças, das construções das casas, assumindo também os papéis de
condutores das atividades rituais e festivas, de liderança, de representação política e de articulação com a
sociedade abrangente. As mulheres cuidam dos afazeres domésticos, dos filhos, da colheita, da pintura corporal.
Confeccionam enfeites rituais, artesanais. São responsáveis pelo preparo do alimento nos períodos festivos e pela
manutenção da memória afetiva de seu povo, expressa nos choros rituais.” (RESENDE, 2014, p. 23)
151
A estudante de Museologia da UFG Milena de Souza, assistente de pesquisa deste projeto, tem dedicado
especial atenção às questões de gênero no âmbito da pesquisa, ressaltando também o protagonismo feminino na
própria equipe, que conta majoritariamente com mulheres, o que se percebe ainda em outras pesquisas e na
equipe ligada ao registro das bonecas como bem cultural imaterial e às ações de salvaguarda que se desenvolvem
neste momento.
1847
esquecimento, retomada, ressignificação, uma dinâmica constante. Apresentamos aqui os
primeiros resultados com ênfase nas coleções de bonecas karajá do Museu Antropológico da
UFG, conjunto composto, até o momento, por 970 peças.
Com a elaboração da lista, distinguindo entre elas as zoomorfas e as antropomorfas, e
com o imprescindível apoio da equipe do Museu, partirmos para as fichas de localização para
separar as peças ritxoko, priorizando as coleções da professora Edna Taveira, para a
realização de algumas fotografias que servirão ao projeto, mas também ao Museu, que não as
possui e poderá recebê-las como doação152. Estão sendo realizadas fotos frontais e posteriores,
peça por peça, em um pequeno estúdio fotográfico montando dentro da própria reserva
técnica, com apoio de um fotógrafo profissional voluntário, Markus Garscha.
Cabe ressaltar que mesmo em museus estrangeiros, como é o caso do Museu do Quai
Branly, as fotos são somente frontais, não permitindo visualizar a peça tridimensional por
inteiro. As fotografias, feitas com fundo infinito e qualidade para ampliação e impressão, são
importantes para o museu e para etapas posteriores do nosso trabalho, visando à ampla
divulgação e à promoção das coleções153.
A Recomendação para a Proteção e Promoção de Museus e Coleções sua Diversidade
e seu Papel na Sociedade (UNESCO, 2015) parte do entendimento de que “A proteção e a
promoção da diversidade cultural e natural são desafios centrais do século XXI. Nesse
sentido, museus e coleções constituem meios primários pelos quais testemunhos tangíveis e
intangíveis da natureza e da cultura humanas são salvaguardados.” Consideramos que
contribuir para a proteção e promoção de coleções de bonecas karajá em museus no Brasil e
152
Como já registrado, o Museu Antropológico da UFG não contava, até o primeiro semestre de 2017, com um
banco de dados informatizado que permitisse uma busca simples por palavras-chave, e a busca das ritxoko em
seu acervo precisou ser feita ao longo de algumas semanas de trabalho consultando a documentação física do
museu e criando nossa própria lista por número de inventário. Ao longo do ano a Coordenação de Museologia da
instituição criou uma planilha digital que está sendo alimentada com o precioso auxílio de inúmeros estagiários
do Curso de Museologia, e em breve será possível realizar esta busca que nos tomou algumas semanas em
poucos minutos, por meio dos recursos da informática.
153
Na medida em que o projeto avança, descobrimos que vários museus brasileiros e estrangeiros possuem
inclusive toda coleção de ritxoko disponível em bases de dados online e as instituições que não têm online estão,
em geral, nos enviando a documentação museológica, inclusive fotografias, de uma maneira muito generosa e
aberta com o projeto. O Museu Antropológico da UFG, além de possuir uma das maiores coleções, é das poucas
instituições que ainda não havia passado por registro fotográfico sequer parcial. O trabalho de fotografias
permite que a divulgação do projeto ocorra concomitantemente à promoção deste Museu, pois, ao contrário, se
basearia somente da difusão de imagens provenientes de outros acervos.
1848
no mundo é uma forma de valorizar a diversidade cultural e especialmente as comunidades
detentoras deste rico patrimônio imaterial. Assim, traçaremos conexões entre processos
distintos de patrimonialização das bonecas karajá, seja a musealização dos objetos materiais
(e em que medida houve ou há interesse de vincular isto com aspectos intangíveis da cultura
karajá que elas representam), seja o que ocorreu para registro do bem como patrimônio
imaterial brasileiro. Podemos futuramente investigar como as coleções musealizadas no Brasil
e no exterior se prestam a uma potencialização das medidas de valorização da cultura viva e
das populações karajá, assim como supõem o registro e suas ações de salvaguarda.
Em relação aos objetivos do projeto “Presença Karajá: cultura material, tramas e
trânsitos coloniais” que dizem respeito à circulação das ritxoko da aldeia aos museus,
chegando a reflexões sobre os trânsitos coloniais experimentados por esses objetos, é
necessário pensar que
Nosso projeto, com uma grande maioria de integrantes que nunca trabalharam antes
diretamente com povos indígenas, está sendo bastante cauteloso em partir de estudos da
bibliografia e das coleções e fazer esta aproximação paulatinamente, mediada pela professora
1849
Nei Clara de Lima, especialista em cultura material karajá e em contato com os grupos há
muitos anos, notadamente no âmbito do processo que levou ao registro das bonecas como
patrimônio imaterial brasileiro e nas ações de salvaguarda. Mas já recebemos o aceite de uma
jovem ceramista, Dibexia Karajá, em participar da equipe e nos auxiliar neste estabelecimento
de relações com seu grupo para perceber, entre outras coisas, suas demandas em relação ao
patrimônio karajá musealizado.
Referências bibliográficas:
ANDRADE, Rafael Santana Gonçalves de. Os Huumari, o Obi e o Hyri: a circulação dos
entes no cosmo Karajá. Goiânia: Faculdade de Ciências Sociais, UFG, 2016. (Dissertação de
Mestrado em Antropologia Social)
DORTA, Sonia. “Coleções etnográficas: 1650-1955”. In: CUNHA, Manuela Carneiro da.
História dos índios no Brasil. p. 501-528.
FARIAS, Joana Silva de Araújo. Modelando parentes: sobre a rede de relações das ritxo(k)o
entre os Karajá. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2014 (Dissertação de mestrado em
Antropologia Social)
L’ESTOILE, Benoît. “Do Museu do Homem ao Quai Branly: as transformações dos museus
dos outros na França”. In: Duarte Cândido, Manuelina Maria e Ruoso, Carolina (orgs.).
Museus e patrimônio: experiências e devires. Recife: Editora Massangana, 2015. p. 103-120.
LIMA, Nei Clara de et al. Bonecas Karajá: arte, memória e identidade indígena no Araguaia.
Dossiê Descritivo do modo de fazer ritxoko. Goiânia: Museu Antropológico, Universidade
Federal de Goiás, IPHAN. 2011.
LIMA FILHO, Manuel F.. “O Fluxo das coisas Karajá e a coleção William Lipkind do Museu
Nacional: a construção de um diálogo intercultural”. In: Manuel Ferreira Lima Filho; Regina
Abreu; Renato Athias. (Org.). Museus e atores sociais: perspectivas antropológicas. 1ed.
Recife - Brasília: Editora da UFPE - ABA publicações, 2016, v. , p. 171-188.
1850
LIMA FILHO, Manuel Ferreira. Hetohoky: um rito Karajá. Goiânia: Editora UCG, 1994.
LIMA FILHO, Manuel F.; SILVA, T. C.. “A Arte de saber fazer grafismos nas bonecas
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LIMA, Nei Clara de; LEITÃO, Rosani Moreira. Bonecas Karajá como Patrimônio
Cultural do Brasil: da pesquisa à salvaguarda. Paper disponível online em
https://ndh.ufg.br/up/322/o/Artigo5.pdf?1453825313, acesso em 08 de outubro de 2016.
LIMA FILHO, Manuel F.; CAMARGO, Telma Ferreira. Bonecas Karajá. In: Horizontes
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sobre los procesos de dominación y las perspectivas actuales de los indigenas en Brasil (org.).
Rio de Janeiro / Lima: Contracapa / Centro Amazónico de Antropología y Aplicación
Práctica. 2006.
SILVEIRA, F. L. A.; LIMA FILHO, Manuel F.. “Por uma antropologia do objeto
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1851
UNESCO. Recomendação para a Proteção e Promoção de Museus e Coleções sua
Diversidade e seu Papel na Sociedade. Paris: UNESCO, 2015. Disponível online em
http://unesdoc.unesco.org/images/0024/002471/247152por.pdf acesso em 29 de julho de
2017.
WHAN, Chang. Ritxoko. A voz visual das ceramistas Karajá. Universidade Federal do Rio
de Janeiro. Escola de Belas Artes, 2010. (Tese de Doutorado)
Documentos não publicados
LIMA, Nei Clara de; DUARTE CÂNDIDO, Manuelina Maria. Projeto de pesquisa
Presença Karajá: cultura material, tramas e trânsitos coloniais. Goiânia: Museu
Antropológico da UFG, 2016. 10 páginas. (Manuscrito não publicado)
1852
ACESSIBILIDADE: UM DOS VIESES DA MUSEOLOGIA SOCIAL
RESUMO: O tema de acessibilidade vem sendo discutida com mais força no meado do século XX
quando o número das pessoas com deficiência aumenta com advento das guerras. Os movimentos
sociais pró-inclusão dessa parte da população foram aos poucos conquistando espaços seja no mercado
de trabalho, esporte, educação ou cultura. Foram anos de luta para que os governantes percebam a
importância da inclusão e o potencial desse público para criar políticas públicas voltadas para eles.
Os espaços museais são meios importantes na formação intelectual, porém ainda são poucas as
instituições que prezam pela acessibilidade informacional e espacial. A museologia social nasce
visando a importância de tomar a sua responsabilidade social para dialogar com toda a sociedade. O
presente trabalho procura mostrar os conceitos da acessibilidade e os seus tipos e o importante papel
da museologia social na prática da inclusão.
ABSCTRACT: The issue of accessibility has been discussed more strongly in the mid-twentieth
century when the number of people with disabilities increases with the advent of wars. The pro-
inclusion social movements of this part of the population were gradually conquering spaces whether in
the labor market, sports, education or culture. It was years of struggle for government officials to
realize the importance of inclusion and the potential of this public to create public policies aimed at
them.
Museums are important means in intellectual formation, but there are still few institutions that value
informational and spatial accessibility. Social museology is born aiming at the importance of taking its
social responsibility to dialogue the whole society. The present work seeks to show the concepts of
accessibility and its types and the important role of social museology in the practice of inclusion.
1853
Introdução
Criar infraestrutura acessível volta a ser discutida com o fim da II Guerra Mundial.
Nos Estados Unidos, começam a surgir Manifestações de Direito Civil (Civil Right
Movement) nos anos de 1960, as associações dos veteranos de guerra começam a se
mobilizar nacionalmente levantando a bandeira de “barrier-free” (livre das barreiras) para
que as pessoas com mobilidade reduzida consiga ter livre acesso em espaços públicos
(incluindo edifícios governamentais). Surge então a necessidade de criar espaços e
produtos que possam ser usufruídas polo máximo de pessoas possíveis, área de estudo
conhecida como Design for all/ Universal Design/ Design Universal. Desta forma através
dos movimentos sociais surge nos EUA “The Architectural Barriers Actof 1968” (Ato de
Barreiras da Arquitetura de 1968) como nova regulamentação exigindo infraestrutura
acessível nas novas construções e as existentes precisavam ser adaptadas154.
A deficiência, no começo, era vista como uma doença155 e era tratada como tal,
então não é de surpreender que as pessoas eram encaminhadas ou para hospitais ou para
hospícios. Porém havia dois tipos de deficiência que tiveram tratamento diferenciado no
Brasil: a cegueira e a surdes. As duas instituições que foram criados no Brasil Império,
154
A Brief History of Universal Design. Disponível em: <http://udinstitute.org/history.php>Acesso em 5 de
maio de 2017
155
A Cooperativa de Vida Independente de Estocolmo (Stil), que é o primeiro centro de vida independente da
Suécia, afirma que “uma das razões pelas quais as pessoas deficientes estão expostas à discriminação é que os
diferentes são frequentemente declarados doentes. Este modelo médico da deficiência nos designa o papel
desamparado e passivo de pacientes, no qual somos considerados dependentes do cuidado de outras pessoas,
incapazes de trabalhar, isentos dos deveres normais, levando vidas inúteis, como está evidenciado nas
palavras ainda comum inválido (“sem valor”, em latim).” (Stil, 1990, p.30). (SASAKI, 2010, p.28)
1854
ambos sediados em Rio de Janeiro, e que ainda existem nos dias atuais são: o Instituto
Benjamin Constant (antigo Imperial Instituto dos Meninos Cegos, modelo espelhado do
Instituto de Meninos Cegos de Paris) criado em 1854 e o Instituto Nacional de Educação de
Surdos (antigo Imperial Instituto dos Surdos-Mudos), criado em 1856. Ao longo da história
outras instituições de apoio e filantrópicas foram nascendo como Instituto Pestolazzi (Rio
Grande do Sul, 1926), Associação de Assistência à Criança Deficiente (São Paulo, 1950),
Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais – APAE (Rio de Janeiro 1954), Associação
Brasileira Beneficente de Reabilitação (1954) – este último inspirado nos centros de
reabilitação dos EUA e Europa que cuidam dos veteranos da guerra (LANNA JUNIOR,
2010).
As associações civis começaram a nascer por volta de 1950 voltadas para as mais
diversas deficiências. E o movimento tem o amadurecimento 30 anos depois com o 1º
Encontro Nacional de Entidades de Pessoas Deficientes realizado do dia 22 a 25 de outubro
de 1980 em Brasília com o intuito de dar visibilidade sobre o tema de acessibilidade e
pressionar o governo federal a criar políticas públicas mais assíduas para as pessoas com
deficiência (LANNA JUNIOR, 2010).
Diante de tantas reivindicações quem são, afinal, os cidadãos que precisam ser
reconhecidos e que necessitam de políticas públicas para alcançar os mesmos direitos de ir e
vir, da saúde, da educação, etc? Segundo o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei Nº
13.146) são classificadas as pessoas com deficiência:
1855
As barreiras e as soluções
Podemos observar, portanto, três tipos de barreiras. As barreiras físicas são mais fáceis
de lidar, pois um bom projeto arquitetônico e/ou de Design contemplaria a universalidade do
acesso por meio de rampas, elevadores, piso tátil, sinalização em contraste, entre outros, e um
num projeto expográfico contemplaria com informações em braile, áudio-descrição, fonte de
letras fáceis de ser lida, a altura das obras em que estão expostas, etc. Agora a barreira
atitudinal é mais complicada em trabalhar uma vez que depende do nível da educação e da
conscientização que os colaboradores do museu e dos demais espaços culturais têm em
relação às pessoas com deficiência. Segundo Lima, Guedes e Guedes:
1856
As barreiras atitudinais, portanto, partem de uma predisposição negativa, de
um julgamento depreciativo em relação às pessoas com deficiência, sendo
sua manifestação a grande responsável pela falta de acesso e à conseqüente
exclusão e marginalização social vivenciada por todos os grupos
vulneráveis, mais particularmente, por aquelas pessoas vulneráveis em
função da deficiência.
1857
há regulamentos de acessibilidade arquitetônica observa-se pelas cidades brasileiras a
dificuldade de mobilidade, como calçadas irregulares e a falta de manutenção dos ônibus para
transportar cadeirante por exemplo, acabam restringindo e minando a independência desse
grupo social o que demonstra a necessidade de reforçar o conceito do Design Universal e criar
políticas públicas que reforcem a importância de um espaço urbano acessível.
1858
Observa-se que a Norma Brasileira enfatiza a importância de acesso a informação e a
possibilidade de comunicação de forma segura e independente. Com o surgimento da internet
o acesso às informações se tornou mais fácil e rápido, mas não houve paralelamente o
desenvolvimento dos recursos de acessibilidade.
156
Informação extraída no <https://www.governoeletronico.gov.br/eixos-de-atuacao/governo>Acesso 23 de
maio de 2017.
157
Em 2007, a Portaria nº 3, de 7 de maio, institucionalizou o eMAG no âmbito do sistema de Administração
dos
Recursos de Informação e Informática – SISP, tornando sua observância obrigatória nos sítios e portais do
governo brasileiro. Disponível em: <http://emag.governoeletronico.gov.br/> Acesso 23 de maio de 2017.
1859
Na era da informação, provocada pela internet, o conteúdo virtual passou a ser de
grande importância no entretenimento e no desenvolvimento profissional e educacional
tornando a acessibilidade indispensável nesse ambiente virtual.
Por tanto estão expostos aqui os conceitos de acessibilidade que tende a continuar a
expandir conforme o surgimento das novas tecnologias. E com isso o conceito de deficiência
é também uma ideia em desenvolvimento segundo a Convenção da ONU em 2007,
promulgado com o Decreto Federal Nº 6949, que diz no Preâmbulo:
1860
importância de uma concepção global como um fenômeno de interação entre museu e a
sociedade. Para tal efeito importante, e necessário, segundo Moutinho (2007), ter uma equipe
multidisciplinar dentro do museu, ideia que foi reforçado nos encontros de Santiago e Quebec,
para que consiga estabelecer um bom nível de comunicação entre museu e a comunidade.
Segundo a resolução da Mesa Redonda de Santiago:
Apesar das questões que envolvam a acessibilidade não estejam explícitas podemos
partir do espírito da democratização do acesso e o empoderamento da comunidade na
formulação do museu, duas bandeiras importante da nova museologia, é imprescindível
convidar as pessoas com deficiência participe no planejamento de acessibilidade para que o
museu tenha a percepção dos pontos fortes e fracos e as melhorias que precisam ser
implementadas. Assim, como é importante que dentro da equipe multidisciplinar do museu
1861
tenham pessoas com deficiência como integrantes que pensem na acessibilidade e que
promovam pesquisa e que gere resultados sociais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
BIBLIOGRAFIA
IBRAM. Mesa Redonda de Santiago de Chile 1972. 1º edição, Brasília, 2012. Disponível em:
<http://www.ibermuseus.org/wp-
content/uploads/2014/09/Publicacion_Mesa_Redonda_VOL_I.pdf > Acesso em 12 de Junho
de 2017
1862
LANNA JUNIOR, Mário Cléber Martins. História do Movimento Político das Pessoas com
Deficiência no Brasil. - Brasília: Secretaria de Direitos Humanos. Secretaria Nacional de
Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, 2010. Disponível em:
<http://www.pessoacomdeficiencia.gov.br/app/sites/default/files/publicacoes/historia-do-
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LIMA, Francisco José de; GUEDES, Lívia C.; GUEDES, Marcelo C. ÁUDIO-
DESCRIÇÃO: ORIENTAÇÕES PARA UMA PRÁTICA SEM BARREIRAS
ATITUDINAIS. II Encontro Nacional de Áudio-descrição em Estudo, 2016. Disponível em:
<http://www.associadosdainclusao.com.br/enades2016/audio-descricao-pratica-sem-barreiras-
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SASSAKI, Romeu Kazumi. Inclusão: Construindo uma sociedade para todos. 8º ed. Rio de
Janeiro: WVA. 2010.
UNIVERSAL DESIGN INSTITUTE. A Brief History of Universal
Design. Disponível em:
<http://udinstitute.org/history.php> Acesso em 04 de maio de 2017.
1863
UMA LUZ SOB AS INSTITUIÇÕES HISTÓRICAS: O PROCESSO DE
SALVAGUARDA DO ACERVO DO MUSEU DO INSTITUTO HISTÓRICO E
GEOGRÁFICO DO PARÁ
Abstract: The safeguard process is a tool for the enhancement of a historical-museological institution,
functioning as a stage for the preservation and promotion of memory and various collections. This
process also contributes to the development of the role of the institution as a transforming agent in the
social environment. Thus, this study aims to present the process of safeguarding the Museum of the
Historical and Geographical Institute of Pará, portraying the main stages that make up this, such as the
formulation of techniques based on Museological Documentation and Preventive Conservation. This
study also aims to propose a reflection about the potential and fragilities of a historical institution, and
how a process of safeguarding collections can value the education, research, communication and
safeguard sectors
1864
Introdução
Este trabalho busca apresentar as principais ações de salvaguarda realizadas nos acervos
museológicos do Museu do Instituto Histórico e Geográfico do Pará (MIHGP), ações estas
executadas a partir da perspectiva do projeto de documentação do Museu, onde são
executadas técnicas de documentação museológica e conservação preventiva nas diversas
coleções do MIHGP. A partir da problemática de que grande parte das instituições históricas
não possuem um projeto de salvaguarda de suas peças, esta pesquisa também busca abrir para
debate a importância de um museu, ou instituição histórica, conter técnicas que possam
resguardar a integridade física e patrimonial de seus acervos.
A partir das afirmativas acima, esta pesquisa também busca dissertar sobre como o
processo de salvaguarda do MIHGP, proposto pelo projeto de extensão universitária em vigor,
potencializa os demais setores do Museu, como a pesquisa, educação e comunicação, assim
como o papel social da instituição.
1865
O objetivo deste trabalho, em uma perspectiva geral, é abordar o processo de
salvaguarda de acervos e seu papel como ferramenta que potencializa as funções primárias do
MIHGP, sendo estas as funções de preservação, pesquisa, educação e comunicação 158.
Abordando também a importância das instituições históricas para o reforço da memória
coletiva, assim como a principal problemática que as rodeia, o abandono das diversas peças e
coleções.
A metodologia deste estudo embasa-se nas experiências práticas realizadas nos acervos
museológicos da instituição, a partir da vigência do projeto de extensão em vigor no local.
Foram estudadas as etapas do processo de salvaguarda dos objetos do Museu, a partir da
observação e análise da documentação, por meio das fichas de arrolamento e catalogação das
peças, assim como as técnicas de conservação dos acervos e o procedimento de exposição das
coleções. Por fim, este trabalho busca propor uma reflexão sobre a importância da
preservação e pesquisa dos diversos acervos do Museu do Instituto Histórico e Geográfico do
Pará, a partir do processo de salvaguarda. Este também busca apresentar e analisar, de forma
específica, as etapas deste processo.
A partir de uma reflexão sobre o potencial destas instituições, podemos tomar como
afirmativa que estas são uma grande fonte de dados e informações referentes a vários períodos
históricos, assim dotadas de um imenso valor patrimonial. Para Cristina Bruno (1997), os
158
Funções primárias estabelecidas na Recomendação referente à Proteção e Promoção dos Museus e Coleções,
sua Diversidade e seu Papel na Sociedade, aprovada em 17 de novembro de 2015, pela Conferência Geral da
UNESCO em sua 38ª sessão.
1866
museus, assim como outros modelos institucionais, como arquivos e bibliotecas, herdaram a
ideia de preservação junto ao exercício humano ao elaborar um artefato. Desta forma, a
necessidade da preservação dos suportes destas informações é de grande importância,
suportes estes reconhecidos desde os documentos até as peças de acervos.
O Resguardo da Memória
1867
Deste modo, pode-se reconhecer o resguardo da memória como potencial de uma
instituição museológica e histórica, o ato de preservação de seus objetos está muito além do
intuito de salvaguardar apenas as características físicas do suporte, mas sim em manter o valor
da memória e das informações presentes no objeto, com o propósito de compreender as
diversas relações que constroem o meio social.
A Pesquisa
1868
O Papel Social
Após a apresentação dos tópicos acima, podemos afirmar que as instituições históricas
possuem valores que estimam o potencial destas, no entanto, como já fora introduzido, estas
instituições também possuem uma grande problemática que as cerca e as desestabiliza
veementemente, o abandono e o descaso com os seus acervos. Desta maneira, o processo de
salvaguarda é uma solução para estes possíveis fracassos, à vista disso, serão apresentados a
diante os métodos de salvaguarda em vigor no MIHGP, assim como os resultados obtidos na
aplicação destes.
1869
modo, o MIHGP atribui-se de diversas peças de outrora doadas a sua instituição regente. Vale
ressaltar também que o MIHGP fora fundado juntamente com a reinstalação do IHGP, em 06
de março de 1916, onde anteriormente era denominado como Instituto Histórico, Geográfico e
Etnográfico do Pará.
O edifício em que o Museu reside possui uma arquitetura eclética, contendo em sua
estrutura diversas tipologias arquitetônicas. Deste modo, o solar fora tombado, sendo “inscrito
nos livros de Tombo Nacional, conforme a notificação nº 514, de 5 de outubro de 1943”
(TRINDADE, 1995), do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN). Ao
ser adquirido pelo Instituto Histórico e Geográfico do Pará, o edifício fora inscrito no Livro
do Tombo nº 2 e 3, destarte, o Solar do Barão de Guajará fora valorizado, sendo resguardado
como “um bem histórico do Patrimônio Nacional” (TRINDADE, 1995).
1870
direção do MIHGP. Por consequência, foram inicialmente formulados métodos de registro das
informações das peças e técnicas para a conservação básica destas.
No quesito da conservação dos objetos, era de urgência que as peças entulhadas pelas
salas do Museu fossem imediatamente higienizadas e armazenadas em um local mais
apropriado. Sendo assim, uma reserva técnica foi concebida no intuito de abrigar grande parte
dos instrumentos que outrora estavam espalhados sem nenhuma proteção. Logo após esta
etapa inicial, buscavam-se estudos para um aprofundamento dos métodos de conservação dos
diversos materiais que formavam as peças, assim como no uso destas em pesquisas. Desta
maneira, fora adotado o uso de máscaras, luvas e aventais para o manuseio dos objetos,
impossibilitando o contato direto e proporcionando um alongamento da vida útil dos itens.
Destarte, podemos notar o quão eficiente são as etapas que compõem um processo de
salvaguarda, podendo preservar as memórias e características físicas presentes em um objeto.
O MIHGP, após a formulação de seu processo de salvaguarda, obteve como resultado um
aumento de pesquisas e parcerias em seu prédio e em seus acervos, além de obter
possibilidades para captação de recursos para o se desenvolvimento e atualização de seus
sistemas. Pode-se afirmar também que após a formulação destes procedimentos, fora notável
uma maior preocupação na conservação das coleções do Museu.
1871
Conclusão
Por fim, o processo de salvaguarda funciona como uma luz para as instituições que
necessitam de apoio, agindo como primeira etapa para a promoção da memória e patrimônio
de uma sociedade. Atuando também na potencialização do papel social do Museu e de suas
funções primárias, valorando os setores de pesquisa, educação, preservação e comunicação.
Referências bibliográficas
Recommendation concerning the protection and promotion of museums and collections, their
diversity and their role in society, adopted on 17 November 2015 by the General Conference
of UNESCO at its 38th session. Publicada em 2015 pela UNESCO, Paris.
1872
TRINDADE, Elna Maria Andersen. Solar Barão do Guajará. 1995. Levantamento para a
participação no curso de especialização em Preservação e Restauração do Patrimônio
Arquitetônico. Departamento de Arquitetura, Universidade Federal do Pará.
1873
APONTAMENTOS SOBRE AS AÇÕES DE MUSEALIZAÇÃO DOS CANHÕES
DO MIHGP
Resumo: O presente trabalho tem por objetivo apresentar a situação atual dos canhões que fazem parte do
acervo do Museu Instituto Histórico e Geográfico do Pará, buscando iniciar uma pesquisa sobre estes
objetos. Foca em pesquisas em busca de compreensão do uso desse mecanismo de armaria na história,
para que não haja desarmonia na construção desse patrimônio pelas sociedades passadas. Procura-se
compreender as motivações do processo de musealização segundo Cury (2005). Busca identificar e
propor melhorias relacionadas, principalmente, a essas ações presentes nesses objetos. Citam-se os
principais pontos do estado atual desses canhões em termos de aquisição, pesquisa, conservação,
documentação e comunicação. O estudo foi motivado pela falta de publicações relacionadas à canhões
musealizados. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, onde os procedimentos utilizados foram a análise
dos objetos e pesquisas relacionadas ao histórico local e contextual dos mesmos.
Abstract: The present work aims to present the current situation of the cannons that are part of the collection
of the Museum Historical and Geographical Institute of Pará, seeking to start a research on these
objects. It focuses on researches in search of an understanding of the use of this armory mechanism in
history, so that there is no disharmony in the construction of this heritage by past societies. It seeks to
understand the motivations of the process of musealization according to Cury (2005). It seeks to
identify and propose improvements related mainly to these actions present in these objects. The main
points of the current state of these cannons are quoted in terms of acquisition, research, conservation,
documentation and communication. The study was motivated by the lack of publications related to
museum cannons. This is a qualitative research, where the procedures used were the analysis of
objects and research related to the local and contextual history of the objects.
1874
Os canhões
Com o início do uso da pólvora para fins bélicos no Ocidente do século XIV, de
acordo com Filgueiras e Piva (2008), são criados os primeiros canhões, dado o crescimento
das guerras que demandaram um desenvolvimento das artilharias159 e armas utilizadas para
que essas tivessem maiores alcances e precisão. Esse tipo de arma desenvolveu-se com a
metalurgia e a arte de fundir chumbo para sinos. Segundo Lopes (2013), os canhões feitos de
ferro fundido eram carregados manualmente por pólvora e bala e possuíam o objetivo de
intimidar o inimigo e manter as fronteiras territoriais em constante defesa.
Dentre os tipos de canhões, podem-se destacar os canhões de alma lisa, onde o seu
interior é liso; e os canhões de alma raiada, onde seu interior possui algumas estrias
helicoidais160. Com o investimento e evolução da metalurgia e da artilharia bélica surge o
canhão de Gauss. Este é movido à energia eletromagnética, a qual a força dos imãs
impulsiona o projétil. Surge também o canhão elétrico, movido por um deslocamento de
cargas elétricas.
159
Conjunto de material para guerra.
160
Ondulações em espiral que conferem rotação, velocidade e precisão ao projétil.
1875
Os canhões do MIHGP
O canhão posicionado na entrada à direita possui uma inscrição com a sigla “DPII”,
indicando que seu uso foi no regime imperial de Dom. Pedro II. Possui 1,59 metros de
comprimento e 40 centímetros de largura. Está acompanhado de uma base original em
madeira, feita por um restaurador em 2010.
O canhão que não está exposto também não possui acompanhamento de base ou de
munições. Mede 39 centímetros de comprimento e 19 centímetros de largura. Foi encontrado
1876
no leito da Baía de Guajará, próximo do bairro Una. Foi doado ao MIHGP em 11 de fevereiro
de 1969 pelo Dr. Fernando José Leão Guilhon. Seu estado de conservação é bom.
● Aquisição
Não se têm a informação de como todos os canhões foram adquiridos pelo MIHGP.
Apenas que os dois da entrada foram doados pelo Major Joaquim de Magalhães Cardoso
1877
Barata em 1935 e que o canhão da reserva técnica foi doado pelo Dr. Fernando José Leão
Guilhon em 1969. Como proposta para o MIHGP, coloca-se a recomendação do Código de
Ética para Museus (2006), de que nenhum objeto adquirido pela instituição, por qualquer
meio, sem que seja feita uma pesquisa relacionada à validade do título de propriedade a ele
relativo.
● Pesquisa
Objetos de guerra como canhões são uma importante fonte de pesquisa para a
preservação cultural da memória. Quanto mais se pesquisa, mais se tem informação para a
melhora das demais etapas da musealização. Não haviam pesquisas específicas em cima dos
canhões do MIHGP. O presente estudo é o primeiro trabalho escrito sobre esse acervo.
Propõe-se ao MIHGP que o seu corpo de pesquisadores seja composto por profissionais de
distintas áreas.
● Conservação
Sendo os canhões portadores de informação, necessita-se de um cuidado com a
preservação desses objetos, que se torna consequentemente, preservação de informação. Ao
musealizar uma peça desse porte, se está preservando um pouco da memória das relações
humanas. No caso dos canhões do MIHGP, estão contidos de uma memória arqueológica,
histórica (referente à época imperial), social e bélica que deve ser preservada, uma vez que o
patrimônio é compreendido não somente como sistema de produção de valores, mas também
1878
como instrumento de produção e transmissão de conhecimentos ligados à cultura de
determinado grupo sobre maneiras de se fazer ciência, a serviço da pesquisa.
Para que a conservação seja adequada, segundo Assis (2014), são necessárias ações
conjuntas entre profissionais de diversas áreas. A conservação do acervo do MIHGP não está
regularizada, uma vez que os canhões não estão condicionados de maneira correta, e estão
sem observação e sem pesquisa direcionada aos mesmos. Os canhões da entrada e do pátio
estão em bases de madeira, expostos corretamente. No entanto, o canhão do pátio já apresenta
alguns sinais de corrosão. O canhão pequeno da reserva técnica encontra-se em uma estante
também em metal, o que pode causar uma reação de óxido-redução de acordo com Assis
(2014). Propõe-se para este canhão a presença de algo que impeça esse contato direto com o
metal da estante (espuma de polietileno ou papéis com Ph neutro), ou mudar seu
armazenamento para armários de madeira ou bancadas de cimento. O canhão de pior estado é
o canhão que está no jardim, que apresenta fortes sinais de corrosão devida sua constante
exposição. Propõe-se mudar sua localização para um lugar menos exposto aos agentes de
deterioração como raios de sol e chuva, e seu armazenamento em base de madeira como os
canhões da entrada e do pátio.
● Documentação
1879
● Comunicação
Os canhões são expostos de forma política como nos diversos fortes do litoral do
país. O Museu Histórico Nacional (RJ), por exemplo, apresenta um pátio com diversos
canhões usados pelo Brasil em guerras ou capturados de outras nações durante guerras.
Quanto mais canhões em espaços como esses, mais se tem a sensação de força e proteção. O
canhão dentro de um espaço museal é uma ação nacionalista, talvez seja por isso que a
musealização desse tipo de artilharia seja tão comum no Brasil, que é um país com fortes
símbolos patriotas.
Propõe-se que este acervo seja divulgado para o público através da mídia, exposições
e palestras. Como resultado a sociedade passará a ser informada sobre as atividades realizadas
pelo MIHGP. Este interesse pela sociedade auxiliaria a instituição na obtenção de mais
verbas, que, com recursos, poderá melhorar a sua estrutura geral de funcionamento e o nível
de serviços prestados para a própria sociedade, além de obter uma melhor possibilidade de
financiamento para a pesquisa que envolve coletas de campo, aumentando o acervo do museu.
Este, por sua vez, poderá servir de base para novas pesquisas e assim sucessivamente
(KELLNER, 2005).
Esses canhões não estão acessíveis ao público uma vez que o próprio espaço não está
aberto à visitação. Se estivesse aberto, somente quatro dos cinco canhões estariam expostos.
O canhão menor não se encontra exposto.
Considerações
Partindo da premissa de atuar-se para o progresso da comunidade, não para que não
se guarde somente a memória oficial, este trabalho visa contribuir com a compreensão da
história subterrânea que as armarias contam. No espaço do MIHGP, uma vez os canhões
revestidos de novos significados museográficos, propõe-se instigar jovens, estudantes,
visitantes, funcionários da instituição, técnicos e trabalhadores do entorno, por meio de
1880
tentativas, de desenvolver relações com estas questões museográficas, tendo o entendimento
de que todo conhecimento sociológico tem, como fundamento, um compromisso com valores.
Referências Bibliográficas
FERREZ, Helena Dodd. Documentação Museológica: Teoria para uma boa prática.1991.
FILGUEIRAS, Carlos A. L.; PIVA, Teresa C. C. O fabrico e uso da pólvora no Brasil
Colonial: O papel de alpoim na primeira metade do século XVIII. 2008.
1881
LOPES, Henrique Corrêa Lopes. O troar dos canhões: Fragmentos da poderosa artilharia.
2013.
1882
MUSEOLOGIA, MUSEU E SALVAGUARDA DO PATRIMÔNIO IMATERIAL:
UM ESTUDO DE CASO SOBRE OS MUSEUS DE BELÉM E A
REPRESENTATIVIDADE DO BREGA PARAENSE
Resumo: O presente trabalho visa apresentar reflexões que surgiram a partir de questionamentos
acerca da representatividade do ritmo Brega Paraense em instituições museológicas de Belém.
Compreendendo que o brega é um dos ritmos mais apreciados pelos paraenses, surgiram questões que
apontaram para a falta de representatividade deste ritmo dentro de ambientes museológicos em Belém.
A partir de análises feitas em dois importantes museus da cidade, constatou-se que não há espaços
reservados ao ritmo dentro deles e em nenhum espaço museal da capital paraense. Diante disso foi
desenvolvido um estudo de caso juntamente ao público para se ter uma noção básica sobre o
posicionamento dos moradores da cidade em relação a este gênero musical. A partir do
desenvolvimento de um questionário que foi aplicado através de ferramentas de comunicação social,
foi possível especular que a população sente a necessidade de ver esse ritmo representado e
apresentando dentro de instituições museológicas, e que se sentiria à vontade para visitar museus que
possuíssem o brega dentro de suas paredes. Assim, surgiram discussões sobre a necessidade de inserir
o brega nos museus de Belém e, futuramente, aprofundar a pesquisa com o intuito de promover a
divulgação e a preservação desse bem imaterial de Belém do Pará que se apresenta como um forte
símbolo da cultura paraense, e também como um forte patrimônio da população local, criadora do
ritmo.
1883
Abstract: The present work aims to present reflections that have arisen from questions about the
representativeness of the Brega Paraense rhythm in museological institutions of Belem. Understanding
that brega is one of the rhythms most appreciated by the Paraenses, questions arose that pointed to the
lack of representation of this rhythm within of museological environments in Belem. Based on
analyzes made in two important museums of the city, it was verified that there are no spaces reserved
to the rhythm inside them and in no museum space of the capital of Pará. In the light of this, a case
study was developed together with the public to have a basic notion about the position of the city's
residents in relation to this musical genre. From the development of a questionnaire that was applied
through social communication tools, it was possible to speculate that the population feels the need to
see this rhythm represented and presented within museological institutions, and that it would feel
comfortable to visit museums that had the tacky inside your walls. Thus, discussions arose about the
need to insert the brega in the museums of Belem and, in the future, to deepen the research in order to
promote the dissemination and preservation of this intangible asset of Belem do Pará, which presents
itself as a strong symbol of Pará culture, and also as a strong patrimony of the local population, creator
of the rhythm.
1884
Introdução
A cultura popular brasileira é uma grande vertente responsável pela estruturação dos
costumes e saberes populares de todas as regiões do Brasil. No entanto, apesar de haverem
manifestações que caracterizam o Brasil em geral, cada região e cada Estado brasileiro possui
sua peculiaridade com relação à cultura que o identifica. Para Azariel Silva (2010) a cultura
popular é um elemento de socialização que está em constante confronto com a cultura
tecnológica que ao longo dos anos tem influenciado diversas comunidades, transformando
seus hábitos de vida e de comunicação.
A partir disso, enfatizamos neste trabalho o ritmo musical “Brega Paraense” como um
dos maiores símbolos de identidade cultural no Pará. Segundo Lopes (2017), apesar do gênero
ter tido evolução em diferentes e longínquas cidades do Estado como Santarém, Paragominas,
São Geraldo do Araguaia e Altamira, que ocasionalmente abriram espaço para shows do
estilo, foi na capital Belém que ele mais se destacou, com a presença de rádios, gravadoras,
televisão, camelôs, etc. No Pará, o brega está ligado às sociabilidades locais e à identidade
regional do paraense.
Considerando que o brega apresenta forte potencial para somar com os patrimônios
encontrados no Estado, este trabalho tem como objetivo apresentar questionamentos e
reflexões acerca da representatividade deste ritmo em museus da capital paraense. Para isso,
realizou-se uma breve análise sobre a possível relação deste bem intangível com dois museus:
Museu de Arte de Belém (MABE) e Museu Histórico do Estado do Pará (MHEP), ambos
localizados na cidade de Belém. Houve também uma pesquisa para tentar compreender um
pouco da ideia de museus e patrimônio na ótica da população de Belém, sendo desenvolvido
um questionário com 06 (seis) perguntas e o mesmo sendo aplicado através de mecanismos da
1885
Internet em moradores de diversos bairros belenenses e, a partir disso foi possível pensar na
possibilidade de inserção do Brega Paraense nos museus salvaguardando-o como patrimônio
cultural imaterial, levando em conta a Convenção da Unesco para a Salvaguarda do
Patrimônio Cultural Imaterial (2003) que considera a necessidade de conscientização,
especialmente entre as novas gerações, da importância do patrimônio cultural imaterial e de
sua salvaguarda.
A partir dos anos 1990, o Brega Saudade dá lugar a uma nova geração de “bregueiros”
que viriam a difundir o Brega para o país inteiro, defendendo as raízes paraenses e chamando
1886
a atenção do público para o que a capital do Estado tinha a oferecer. Nesta nova fase, surgem
o “brega pop” e “brega calypso” no cenário do ritmo. Contudo, artistas e sonoridades desses
tipos de brega se mesclaram e, atualmente, a música produzida a partir da década de noventa
foi unificada pelo público paraense no termo “Brega Marcante”. A fórmula mostrou-se um
sucesso, e seria utilizada por quase uma década e aproveitada pelas tendências bregas
posteriores.
1887
Entende-se por “patrimônio cultural imaterial” as práticas, representações,
expressões, conhecimentos, e técnicas – junto com os instrumentos, objetos,
artefatos e lugares culturais que lhes são associados – que as comunidades,
os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte
integrante de seu patrimônio cultural. (UNESCO, 2003).
1888
gênero musical ignorando assim, a força que este exerce sobre toda a cultura do Estado. O
próprio carimbó enquanto PCI do Brasil, também não está presente em nenhum tipo de
exposição. Sobre esta análise, foi desenvolvido um questionário com 06 (seis) perguntas para
compreender a posição de uma parcela de entrevistados acerca da representatividade do Brega
Paraense em instituições museológicas de Belém e a partir dos resultados levantaram-se
questionamentos sobre a necessidade da representação deste gênero musical nos museus
acima citados.
Resultados e discussões
1889
5.1. Quando questionados sobre o que se entendia por museu, 48% afirmaram que é um lugar
onde se guarda algo, 40% que é um lugar onde se guarda coisas antigas, 4% um lugar que tem
animais e 4% outras funções.
5.2. Quando questionados se já tinham visitado algum museu na cidade de Belém: 75%
respondeu que sim e 25% que não.
5.3. Quando perguntado o que se entende por patrimônio: 50% afirmou que é algo de valor
que a gente deixa para os outros, 34,4% que é alguma coisa que conta a história de uma
cidade ou povo, 11,53% algum prédio ou pintura que foi feita a muitos anos atrás e 3,84% que
entende por outras funções.
Gráfico SEQ Gráfico \* ARABIC 1
5.5. Quando perguntado se o Brega Paraense deveria estar sendo representado em algum
museu de Belém: 80% respondeu que sim e 20% respondeu que não.
5.6. Quando perguntado se caso Belém tivesse um local onde é contada a história do Brega
Paraense, os entrevistados gostariam de visitá-lo: 95% respondeu que sim, e 5% respondeu
que não.
1890
Considerações finais
Apesar dos diversos avanços da Museologia se tratando de questões patrimoniais,
ainda hoje, muitas instituições museológicas apresentam dificuldades de inserir o Patrimônio
Imaterial em suas medidas de preservação (CARVALHO, 2009). O Pará não fica de fora
quando se trata dessa dificuldade de inserção do PCI em seus museus. Atualmente, a capital
paraense ainda apresenta um déficit na salvaguarda e representação das expressões culturais
advindas das comunidades periféricas em seus museus. Compreendemos que o processo de
adaptação ao novo é algo que não acontece “da noite para o dia”, no entanto, devemos voltar
nossos olhares para o desenvolvimento de medidas de preservação que englobem também os
bens imateriais já que estes são grandes colaboradores da história e da identidade cultural
dessa sociedade.
REFERÊNCIAS
CARVALHO, Ana. Os museus e o Patrimônio Cultural Imaterial. Algumas considerações.
Disponível em: < http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/8935.pdf >. Acesso em, 08 de abril
de 2017.
LOPES, Roberto. Brega e Tecnobrega paraense: uma viagem “pai d'égua” em 40 músicas.
Disponível em: <https://papodehomem.com.br/brega-e-tecnobrega-paraense-uma-viagem-pai-
d-egua-em-40-musicas/>. Acesso em, 06 de abril de 2017.
TAMASO, Izabela. A expansão do patrimônio: novos olhares sobre velhos objetos, outros
desafios... In: Sociedade e Cultura, v. 8, n. 2, Jul./Dez., 2005.
Tecnomelody é reconhecido como Patrimônio Artístico e Cultural do Pará. Disponível em: <
https://mundobrega.wordpress.com/2013/06/13/tecnomelody-e-reconhecido-como-
patrimonio-artistico-e-cultural-do-pa/ >. Acesso em, 08 de abril de 2017.
Sites
http://cultura-paraense.blogspot.com.br/ . Acesso em, 07 de abril de 2017.
1891
Museus e patrimônio
cultural universitários:
discutindo conceitos e
promovendo parcerias e
articulações
1892
ACERVO ARTÍSTICO DA UFMG: O PAPEL DA MUSEOLOGIA NA GESTÃO
DO PATRIMÔNIO UNIVERSITÁRIO
Abstract: The article presents and discusses alternatives for safeguarding and managing
UFMG's Art Collection (AAUFMG), considering the peculiarities and challenges of the
university heritage context. The 1500 works that compose the Collection are dispersed in
several units of the UFMG campuses, under the administrative tutelage of different university
bodies. The main actions developed by a museum documentation and collection management
project are described, which begins a process of valuing this heritage in the university context.
The theoretical implications in the delimitation of the boundaries of the AAUFMG are analyzed
and the assumptions, methodology and resources that guide and subsidize the documentation are
presented. Finally, a management model is discussed, based on the decentralized nature of the
AAUFMG.
Key-words: university heritage; collections management; museum documentation; art
collection.
1893
Um breve histórico
1894
momento, despontava como o principal espaço de manifestação das vanguardas, tendo à
frente a Escola de Belas Artes. (RIBEIRO, 2011).
Vale destacar dois projetos mais recentes que buscaram, em particular, fazer a
gestão e/ou estudar o acervo artístico ou parte dele. Nos anos de 1990, o prof. Marco
Elízio de Paiva, então diretor da Escola de Belas Artes, realizou um inventário e estudo
da Coleção Brasiliana (PAIVA, 1997). Em 2000, uma restauração no prédio do
Conservatório da UFMG, destinou um espaço para parte do acervo artístico -
basicamente, as coleções Brasiliana, Amigas da Cultura e Rodrigo Melo Franco de
Andrade – onde foi montada uma reserva técnica e pretendia-se criar um Museu, projeto
que não chegou a ser realizado, embora o Conservatório tenha mantido uma sala de
exposição do acervo artístico. Pouco tempo depois, ainda nos anos 2000, a reserva
técnica foi desmontada e o acervo foi transferido do Conservatório para o 4º andar da
Biblioteca Universitária, edificação central que sedia coleções raras e artísticas.
1895
(EBA). O trabalho resultou na publicação de um livro e na realização de exposições no
campus.
1896
Como um desdobramento desse mapeamento inicial do acervo, a Coordenação
do AAUFMG estabeleceu como uma de suas ações prioritárias a realização do
inventário e posterior catalogação de todas as obras, simultâneo à implantação de um
sistema de informação capaz de instrumentalizar e potencializar a gestão e o
monitoramento desse extenso patrimônio que se encontra disperso nas diversas
unidades da UFMG. O projeto de documentação se impôs, portanto, como primeiro
passo para se conhecer o acervo. Seus resultados, ainda que parciais, vão respaldar, com
suas informações seguras, as demais ações de salvaguarda e comunicação, fornecendo
subsídios, inclusive, para a formulação de uma política de gestão do AAUFMG.
1897
Não se pretende estabelecer uma definição de arte. Até porque é um conceito
ramificado, controverso e que tem merecido abordagens de distintos campos de
conhecimento, não havendo convergência quanto ao seus contornos. Apenas convém
lembrar que a ideia que se tem de arte hoje é, do ponto de vista da história, recente. Para
gregos e romanos a arte - thecné em grego e ars em latim – referia-se a ofício, a
qualquer atividade humana que implicasse uma habilidade, um saber fazer. A palavra
apresentava um sentido amplo, não se restringindo, portanto, ao que se compreende hoje
como atividade associada à estética. Na Idade Média persiste o paralelo entre os termos
arte e técnica, sendo a arte compreendida como um conjunto de regras ou a teoria de
uma técnica. A associação da arte à estética começa a se delinear no Renascimento, mas
somente no século XVIII se observa a distinção entre a arte e a técnica, quando também
o sentido estético confere um valor inédito à obra artística. A obra de arte sai de um
domínio indistinto para ganhar, portanto, autonomia. É nesse processo que atividades e
obras são reavaliadas e enquadradas nas chamadas “belas artes” – ou seja, concernentes
àquilo que “não produz nem um saber e nem um fazer, mas que, supõe-se, condiciona
ambos, tornando possível a experiência efetiva” (CUNIBERTO, 2007, p.44).
Embora não estejam no horizonte deste projeto enfrentar o debate a respeito das
fronteiras da arte, e nem justificaria estar, é preciso reconhecer que essa é uma questão
incisiva para a realização do inventário do AAUFMG. Ainda que o levantamento
realizado entre 2009-2011 tenha configurado um conjunto de objetos sob a chancela
Acervo Artístico da UFMG, o atual projeto de documentação pretende refazer esse
mapeamento, sob a orientação de conceitos e critérios explícitos e objetivos.
Ora, o que está posto como desafio é justamente arbitrar, com autoridade, o
domínio do acervo artístico para efeito da gestão institucional desse patrimônio, o que
implica produzir um discurso que irá operar inclusões/exclusões. Pode-se mesmo dizer,
acompanhando Cauquelin ao abordar a teoria da arte, que o AAUFMG se institui como
1898
um dos ‘sítios’ que concorrem para institucionalizar e legitimar esse acervo artístico,
uma vez que contribui para reatualizar os meios de desenvolvimento e permanência das
obras:
A obra ‘em si’ não existe realmente; ela se diz ‘obra’ por meio e com
a condição de ser posta em determinada forma, de ser posta ‘em sítio’.
Fora do sítio, que a teoria construiu e que as teorizações mantêm vivo,
ela não é nada. São necessárias essas mediações, todo esse trabalho
tecido incansavelmente pelo comentário, para que seja reconhecida
como obra. Pois nenhuma atividade – e a arte não escapa a essa
condição - pode ser exercida fora de um sítio que lhe dê seus limites,
determine os critérios de validade e regule os julgamentos que serão
tecidos a seu respeito. (CAUQUELIN, 2005, p.21)
Grande parte das obras pertencentes à UFMG, assim como muitos de seus
autores gozam de reconhecimento da crítica, não havendo, portanto, hesitação quanto ao
seu estatuto de arte. Mas mesmo nesses casos, em que o reconhecimento artístico está
selado, as operações levadas a cabo pela Coordenação do AAUFMG –
inventário/catalogação, conservação, manejo administrativo, curadoria de exposição,
etc. – ainda que não sejam da esfera estrita da crítica e da teorização, convergem para
(re) validar o estatuto artístico das obras, seja diante da própria comunidade
universitária ou fora dela.
1899
Ao adotar as Artes Visuais para delinear o seu recorte patrimonial, o AAUFMG
se alinha à perspectiva contemporânea, que busca abranger, sob o abrigo dessa
terminologia, expressões artísticas que passaram a se projetar, particularmente no pós 2ª
Guerra, em contextos que extrapolam os limites dados pelo o que convencionalmente se
denomina de Artes Plásticas. Segundo o Relatório da Câmara Setorial de Artes Visuais,
este é um campo, como o nome indica, que abrange categorias artísticas que têm como
centro a visualidade, que produzem, não importa com quais instrumentos ou técnicas,
imagens, objetos e ações apreensíveis pelo sentido da visão, podendo ampliar-se para
outros sentidos:
1900
processo continuo e vigoroso de produção de informação e conhecimento,
indispensáveis para a conservação, pesquisa, segurança, controle e extroversão do
patrimônio artístico. Se essa é uma ótica que deve prevalecer em qualquer procedimento
de inventário e/ou catalogação de acervos, no caso do AAUFMG parece imperativo
dispor desse instrumental eficiente e sempre atualizado, considerando o desafio que é
gerir um acervo tão extenso, heterogêneo e fisicamente disperso.
1
Versão original em inglês: International Guidelines Object Information: the CIDOC Information
Categories (CIDOC, 1995).
2
Versão original em inglês: SPECTRUM – Standard Procedures for Collections Recording Used in
Museums: The UK Museum Collections Management Standard, 4.0 (COLLECTIONS TRUST, 2011).
1901
No processo de planejamento e execução do inventário, vale ressaltar algumas
decisões e procedimentos adotados, que têm conferido maior eficiência ao trabalho. A
primeira decisão, de cunho metodológico-operacional, foi restringir, nesta primeira fase
do projeto, o inventário às obras de arte visual convencionalmente identificadas como
de artes plásticas – pintura, escultura, desenho, gravura, cerâmica, objeto. As demais
tipologias de obras, também categorizadas como artes visuais – fotografia, artes
decorativas/aplicadas, vídeo-arte, performance, instalação, arte e tecnologia, grafite, etc.
– serão apenas mapeadas, por meio de uma ficha simplificada de arrolamento. A
decisão apoiou-se na avaliação de que a extensão do acervo de artes visuais da
Universidade, as possíveis imprecisões na categorização de objetos e a necessidade de
se avaliar, em casos específicos, a pertinência de apenas de documentar a obra, sem
necessariamente incorporá-la à gestão do AAUFMG, conduziriam a questões de ordem
teórico-metodológica que, certamente, serão mais bem encaminhadas em momento
posterior do projeto, uma vez que poderão se beneficiar, inclusive, do acúmulo da
experiência e do conhecimento gerados pelo próprio processo de documentação.
Considerou-se também o impacto negativo de inclusão desses novos conjuntos de
obras, que não dispõem de qualquer registro anterior, para o processo de implantação de
uma rotina do trabalho do inventário. Optou-se, dessa maneira, em consolidar e
legitimar o projeto de documentação no âmbito da UFMG, assegurando agilidade a
apuração de seus resultados parciais, de modo que se possa credenciar sua continuidade.
De outra parte, o mapeamento de um universo abrangente de obras fornecerá
informações indispensáveis para que a equipe se prepare para a segunda etapa da
documentação, tanto do ponto de vista conceitual quanto operacional.
1902
término do trabalho de campo e de migração das informações para a base de dados,
quando serão desenvolvidas pesquisas sobre as obras em arquivos administrativos da
UFMG, no levantamento realizado anteriormente e em fontes secundárias.
Tendo também como pressuposto que todo acervo inventariado deve produzir
um documento que oriente o trabalho da documentação, tão logo foram estruturados os
dados e formulada a ficha de inventário, elaborou-se um Manual de Procedimentos de
Documentação, no qual são definidas e descritas as práticas e os procedimentos a serem
adotados, de forma a assegurar informações consistentes e sistemáticas. Composto por
uma série de instruções claras e objetivas, o Manual padroniza a captura, o registro, a
salvaguarda e uso de informações sobre o acervo.
1903
de arte e marcação de objetos para fins de inventário.
3
Participaram da Mesa Redonda Fernando Cabral, Diretor Geral da empresa Sistemas do Futuro, e
Gabriel Moore Forell Bevilacqua, vice-presidente do Comitê Internacional de Documentação do
Conselho Internacional de Museus (CIDOC/ICOM).
4
Ministraram aulas no curso os professores Ana Panisset (ECI/UFMG), Juliana Monteiro (ETEC Parque
da Juventude /SP), Alexandre Leão (EBA/UFMG) e Giulia Giovani (EBA/UFMG).
1904
parecer uma medida rotineira, esses contatos foram uma espécie de primeiro passo para
se construir uma gestão compartilhada do AAUFMG.
1905
foram estabelecidas duas categorias de acervo, correspondentes a níveis diferenciados
de monitoramento e administração. Em um plano, tem-se o acervo de tutela direta,
constituído, como o próprio nome diz, por obras e coleções que se encontram sob a
guarda imediata da DAC/Coordenação do AAUFMG. A princípio são as obras
armazenadas na Reserva Técnica ou aquelas que se encontram em outras unidades da
UFMG, sob o regime de empréstimo. A segunda categoria denomina-se acervo
operacional e compreende as demais obras de arte que estão sob a guarda de outras
unidades da UFMG, mas sobre as quais o AAUFMG opera, seja estendendo até esses
acervos as ações e diretrizes de salvaguarda e comunicação ou desenvolvendo projetos
e programas comuns.
Mas seria oportuno privar as unidades dos campi de fruir as obras de arte? O
impacto dessa medida seria subtrair a experiência artística do cotidiano da vida
1906
acadêmica. A alternativa de se proceder um recolhido a partir de uma seleção, de outra
parte, seria no mínimo complexa e discutível. E o mais certo é que se instauraria um
círculo vicioso, no qual as unidades providenciariam se guarnecer de novas obras de
arte as quais, por sua vez, seriam recolhidas à Reserva Técnica como medida de
salvaguarda. Nessa perspectiva, parece interessante observar as diretrizes propostas pela
Association of Art Museum Directors University/College Museums, em se tratando de
obras de arte no campus:
5
A instalação de obras de arte em locais públicos em todo o campus, de acordo com os objetivos de seu
museu universitário, pode ser parte integrante desta missão; As obras de arte de alta qualidade não só
aumentam a beleza de um campus para seus estudantes, corpo docente, funcionários e visitantes, mas
também transmitem o poder emocional e os valores espirituais da arte para todos os alunos,
independentemente do seu curso ou disciplina e, portanto, para esse aluno, aprimoram a noção de arte
com suas múltiplas definições e características. As obras públicas de arte no campus, portanto, se tornam
parte da educação de cada aluno e da sua capacidade de formular e articular. (EILAND, 2009, pág. 5-6).
1907
Quanto ao fluxo de informação, a opção por um modelo de curadoria digital – ou
gestão digital – combinada à curadoria convencional apresentou-se como uma
alternativa mais pertinente ao contexto de dispersão das obras e de atores envolvidos na
sua gestão. Foi realizada a compra de um software – Sistema de Gestão de acervos,
precedida de discussões abertas à comunidade acadêmica6, além de consultas a usuários
que haviam também desenvolvido extensa pesquisa de fornecedores7 e da utilização da
ferramenta de modelo de requisitos Collections Management Software Criteria Checklist
(CMSCC)8, desenvolvida pela Canadian Heritage Information Network9 (CHIN). Orientou a
aquisição a proposição de que o sistema não poderia limitar-se apenas a uma base de
dados, mas oferecer ferramentas ágeis e eficazes, que possibilitassem o registro e
administração de todas as funções de gestão em uma única base de dados. Além da
gestão propriamente, avaliou-se, também, a importância de uma plataforma digital que
atendesse, em um segundo momento, aos propósitos de comunicação. Ou seja, que
servisse como uma espécie de catálogo e exposição digitais, dando acesso ao público
interno e externo à Universidade ao AAUFMG10, função que ganha especial relevo em
se tratando de obras que não estão expostas permanentemente em museus ou galerias
abertas à visitação pública.
Conclusão
6
Mesa Redonda Desafios na Implantação de Sistemas Informatizados para Gestão de Acervos Culturais
Universitários.
7
Seguiu-se a metodologia de pesquisa e aquisição empregada pela Secretaria de Estado da Cultura de São
Paulo para a escolha do software, cujas demandas e procedimentos eram convergentes aos da UFMG.
8
Lista de verificação de critérios de software para gerenciamento de coleções. Disponível em:
<http://canada.pch.gc.ca/eng/1443120174242>. Acesso em 15 jul. 2017.
9
Rede de Informação do Patrimônio Canadense. Disponível em:
<http://canada.pch.gc.ca/eng/1454520330387>. Acesso em 15 jul. 2017.
10
O software adquirido é o In Arte Online da empresa Sistemas do Futuro. Disponível em:
<http://inarteonline.net/> . Acesso em 15 jul. 2017.
1908
Designar as obras espalhadas pelas salas de diretores, pró-reitores e reitores,
gabinetes de professores, congregações, bibliotecas com Acervo Artístico UFMG
significa reconhecê-las como um patrimônio universitário. Neste gesto está implícito
um esforço permanente de categorização, de formulação de critérios, intrínsecos e
extrínsecos, diacrônicos e sincrônicos, que conformam sentidos que se sobrepõem, não
importa se convergentes ou não, ao conjunto aparentemente díspar. Reconhecer esse
patrimônio é, acima de tudo, retirá-lo da sombra e trazê-lo cada vez mais para o lugar do
visível. Todos os protocolos e medidas de salvaguarda só se justificam se ao sentido da
palavra preservar - guardar, vigiar, salvar de antemão - se associar a ação de comunicar
– repartir, dividir, distribuir e compartilhar algo com o público.
1909
Há uma longa trajetória a ser percorrida até que se consolide esse papel do
AAUFMG, e se construa uma consciência de sua importância para a vida universitária.
Até lá, não basta executar ações, é preciso garantir a retaguarda de uma política cultural,
em particular, uma política patrimonial no âmbito da UFMG.
Referências bibliográficas
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Pintura I. Fortaleza: RDS, 2009.
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<http://www.getty.edu/research/publications/electronic_publications/cdwa/index.html>.
Acesso em: 11 mar. 2011
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2005.
1910
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Reino Unido. São Paulo: Secretaria de Estado de Cultura; Associação de Amigos do
Museu do Café; Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2014. (Gestão e documentação de
acervos: textos de referência, 2).
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Paulo: Martins Fontes, 2007.
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abordagem histórica dos museus de cidade. Revista Brasileira de História. São Paulo.
V.5, n.8/9.pp. 197-205. Set. 1984/abr. 1985.
RIBEIRO, Marília Andrés. O Acervo Artístico da UFMG. In: PAULA, João Antônio de
et al (Coord.). Acervo artístico da UFMG. Belo Horizonte: C/Arte, 2011. (Circuito
Colecionador). p. 15-48.
1911
CONSTITUIÇÃO DO FÓRUM PERMANENTE DE MUSEUS
UNIVERSITÁRIOS: TRAJETÓRIA, DESAFIOS E MOBILIZAÇÕES.
Resumo: Este trabalho tem por objetivo analisar aspectos que contribuiram a constituição do
Fórum Permanente de Museus Universitários. Para isso, recorre a um arquivo sob a guarda do
Museu de Ciências Morfológicas da UFMG que revela os processos de conformação do fórum,
bem como os debates e questões presentes dos Encontros Nacionais de Museus Universitários e
em reuniões que aconteceram nos interstícios do evento. A partir de uma perspectiva
cronológica, buscou-se destacar os atores que contribuíram com a criação do FPMU, bem como
as programações, debates e ações dos encontros ocorridos entre os anos de 1992 a 2006. Por
último, buscou-se analisar os debates referentes à necessidade de institucionalização e o
desdobramento deste intuito no estatuto que buscava regulamentar as ações e diretrizes do
FPMU.
Palavras-chave: Fórum; museus universitários, arquivo institucional.
Abstract: This work aims to analyze aspects that contributed to the constitution of the
Permanent Forum of University Museums. To do this, it uses a file located in the Museum of
Morphological Sciences of the UFMG that reveals the processes of conformation of the forum,
as well as the debates and issues present at the National Meetings of University Museums and
meetings that took place in the interstices of the event. From a chronological perspective, we
sought to highlight the actors who contributed to the creation of the FPMU, as well as the
schedules, debates and actions of the meetings that occurred between 1992 and 2006. Finally,
we sought to analyze the debates concerning the need for institutionalization and the
deployment of this intention in the statute that sought to regulate the actions and guidelines of
the FPMU.
Key-words: forum, university museums, institutional file.
1912
Introdução: arquivo institucional e a trajetória do FPMU
Este trabalho tem como proposta analisar as circunstâncias que permearam a
constituição e os processos de institucionalização do Fórum Permanente de Museus
Universitários. Para isso, busca refletir sobre a trajetória desse importante espaço de
discussão e mobilização que congrega, há aproximadamente vinte e cinco anos,
docentes, pesquisadores, profissionais e pesquisadores envolvidos com os museus
universitários no Brasil.
Esta reflexão parte de um levantamento sistemático do acervo institucional sob a
guarda do Museu de Ciências Morfológicas, instituição criada em 1997 por iniciativa da
Professora Maria das Graças Ribeiro. Tal arquivo reúne documentos de diferentes
tipologias, tais como projetos, atas de reuniões, estatutos, programações de eventos,
textos de estudos referentes a assuntos museológicos e políticas públicas, e abarca uma
temporalidade que perpassa o início da década de 1990 até o ano 2015. Este acervo
encontra-se organizado em diversas pastas com documentos referentes ao FPMU e ao
que tudo indica foi sendo organizado pelos presidentes e outros membros do fórum e
sobretudo, pela Professora Maria das Graças Ribeiro. Trata-se, portanto de um arquivo
acumulado que reflete aspectos da dinâmica de constituição do fórum e também
aspectos que permeiam a trajetória profissional da Professora Maria das Graças.
Sob este ângulo, encontrou-se documentos que tratam tanto de assuntos de
caráter institucional relativos à constituição e organização do FPMU e paralelamente,
indícios que apresentam uma rede de parcerias, trocas de conhecimento entre pessoas
representantes de órgãos institucionais. Desse modo, também se revela aspectos que
perpassam a sociabilidade e as redes que congregam aqueles envolvidos com o FPMU.
Nomeadamente as diversas correspondências e fotografias refletem esse aspecto.11
Consegue-se perceber que no arquivo estão presentes documentos que atestam a
realização dos Encontros organizados pelo FPMU que aconteceram no ano de 1992 em
11
Destacam-se as fotos de II Encontro Nacional de Museus.
1913
Goiânia,12 reuniões em São Paulo em 1995 e 1997, na cidade de Natal em 2001, e no
ano de 2006 em Belo Horizonte. Neste arquivo também podem ser analisados os
documentos referentes ao projeto para o V Fórum de Museus Universitários, previsto
para o ano de 2015, evento este que não foi realizado. Além desses, observa-se uma
documentação agregada que revela a organização de assembleias, reuniões
extraordinárias que aconteceram nos interstícios desses eventos.
No presente trabalho dedicou-se a uma análise, a partir de uma perspectiva
cronológica, diante dos documentos referentes à realização dos encontros e reuniões e
assembleias que aconteceram entre os anos de 1992 e 2015. Deste modo, não se esgota
todas as possibilidades de questões que possam vir a serem formuladas a partir deste
acervo. Destacando, portanto, a potencialidade em agregar a tais análises informações
complementares que sejam de conhecimento de outros atores envolvidos com a
constituição do FPMU. Neste sentido, organizou-se a narrativa deste texto a partir de
uma construção cronológica, enfatizando informações consideradas relevantes para esta
análise dedicada a perceber a constituição e trajetória do FPMU.
12
Há documentos que tratam da organização do II Fórum a ser realizado em Salvador com possível data para 1998,
mas não foram encontrados documentos sobre a realização deste Evento.
13
Ata do Seminário “Museu Universitário hoje”- I Encontro Nacional 1992 – Goiânia-GO.
1914
A reunião contou com a representação de 19 Estados e 29 Universidades, sendo
13 Federais, 10 Estaduais e 6 Privadas. Nos painéis e grupos de trabalho houve a
participação de 30 diretores e/ou coordenadores de Museus Universitários, 20 de outros
museus, 26 professores, 30 museólogos e técnicos e ainda estudantes e profissionais e
pesquisadores de várias áreas e assessores especiais de áreas culturais, totalizando um
público de 154 pessoas. Este Fórum também contou com a participação da representante
de Pró-reitores de Extensão, Ismênia de Lima Martins da Universidade Federal
Fluminense, moderadora do painel “Administração e Museus.”
A programação estruturava-se a partir dos seguintes eixos: “O museu na
estrutura da Universidade: acertos e erros”, “Ação Museológica: Educação e
Comunicação”, “A pesquisa nos Museus” e “Administração e Museus”. Após a
realização do Evento decidiu-se pelo encaminhamento das conclusões do Seminário a
todas as reitorias das universidades brasileiras, bem como ao CNPq (documento
específico relativo à pesquisa e recursos), Capes, Finep, Fórum dos pró-reitores de
Extensão, à Secretaria Nacional de Cultura e à Secretaria Nacional do Ensino Superior –
SENESU. Também seria enviado ao ICOM-Brasil, COFEM, ao ICOM-Paris e demais
Organizações da América Latina, revelando uma dimensão política que perpassava o
desejo de constituição de um fórum.
No documento “Conclusões Gerais do I Encontro Nacional de Museus
Universitários – 1992”, ressaltou-se que o objetivo do evento foi a constituição de “um
fórum de debates e reflexões sobre a realidade institucional dos museus universitários
brasileiros”,15 bem como as possíveis articulações dos museus universitários com as
áreas do ensino, pesquisa e com os
15
Conclusões Gerais do I Encontro Nacional de Museus Universitários- Ciências em Museus (1992).
1915
diversos segmentos da sociedade.16 Neste sentido, destacou-se a importância dos
museus como “...um espaço educativo não formal, responsável pela investigação,
conservação e difusão do patrimônio cultural, potencialmente musealizável.”
A partir das discussões e reflexões geradas neste Encontro, foram delineadas
neste documento três linhas temáticas em destaque: “Museus e sua relação com a
Universidade”, “Museu e Cidadania” e a “Pesquisa em Museus”, além do item
“recomendações especiais”. Com relação ao tema “O Museu e sua relação com a
Universidade”, definiu-se os Museus Universitários como “órgãos necessários ao
ensino, à pesquisa e à extensão devendo ser levados em conta em qualquer política
cultural e acadêmica que a Universidade venha a adotar”.17 Destacava-se que “a função
primordial dos museus é educativa e, nesse sentido, os Museus Universitários devem
democratizar o conhecimento, contribuindo para a formação da consciência social.”
Outros aspectos elencados dedicavam-se a reafirmar a importância da autonomia
de dotação orçamentária e a necessidade da constituição de quadro de funcionários
técnicos administrativos. Enfatizava-se ainda, a necessidade de uma estrutura
administrativa normatizada por regimento que garantiriam a institucionalização dos
museus. Ressaltava-se a necessidade da presença de museólogos e especialistas de áreas
afins “para atender à interdisciplinaridade” que caracterizava os museus universitários.
Para isso, frisava a importância de “implementação e organização de cursos em
museologia nas diversas regiões para suprir as necessidades nessa área” e a ampliação
do quadro de pessoal dos museus.
No tema “Museus e Cidadania”, reafirma as diretrizes presentes nos documentos
aprovados na Mesa Redonda de Santiago do Chile (1972) e na Declaração de Caracas
(1992), sendo o museu “reconhecido como um dos meios mais eficazes para a
16
Conclusões Gerais do I Encontro Nacional de Museus Universitários- Ciências em Museus (1992).
17
Conclusões Gerais do I Encontro Nacional de Museus Universitários- Ciências em Museus (1992).
1916
socialização do conhecimento produzido na Universidade, através dos meios de
comunicação museológicos, tendo como suporte básico as suas exposições”.18
Sobre “A pesquisa em Museus” apresentou-se a importância da “pesquisa
interdisciplinar” como suporte para as ações a serem desenvolvidas. Caracterizava as
pesquisas como aquelas “vinculada à temática do museu, que é geradora de
conhecimentos e de cultura” e a “pesquisa museológica propriamente dita” que envolvia
o cumprimento das normas relativas à organização, preservação e documentação de
acervo e sua comunicação em exposições e ação educativa. A respeito das
“Recomendações Especiais” pontuou-se a necessidade de elaboração do perfil dos
museus universitários brasileiros abordando tópicos como “histórico, acervo, quadro de
pessoal, dotação orçamentária, ações desenvolvidas com as comunidades onde estão
inseridas”. Tal levantamento, com apoio dos órgãos de pesquisa, deveria ser divulgado a
todas as universidades do país e demais órgãos ligados à educação e cultura, buscando
fomentar ações conjuntas. Buscava abrir canais junto às agências de financiamento, para
o financiamento de pesquisas e demais atividades desenvolvidas nos museus
universitários. Evidenciou-se também a necessidade da realização de convênios com os
Cursos de Museologia, a potencialidade das exposições itinerantes entre os diversos
museus universitários, visando ampliar as possibilidades de público e a necessidade de
promoção de seminários e organização de publicações sobre museus universitários.
Ainda consta no documento seis moções das quais destacamos, particularmente aquelas
referentes a institucionalização do FPMU:
3) O Fórum Permanente de profissionais de Museus Universitários,
constituídos pela Assembleia Final do I Encontro Nacional de Museus
Universitários deve organizar o II Encontro e, nos interstícios do
mesmo, diagnosticar, discutir e sugerir formas de solução a problemas
comuns á área.
4) O Encontro Nacional de Museus Universitários deve realizar-se a
cada dois anos em regiões diferentes.
18
Conclusões Gerais do I Encontro Nacional de Museus Universitários- Ciências em Museus (1992).
1917
5) O Intercâmbio entre Museus Universitários da América Latina,
Central e Caribe devem ser incentivados e viabilizados através do
GULERP e OUI (Organização Universitária Interamericana).
19
Ata do Fórum Permanente de Museus Universitários realizado no Museu de Arqueologia e Etnologia da
Universidade de São Paulo - reunião em 23 novembro de 1995.
1918
Patrimônio Cultural da USP. Neste levantamento, sessenta e seis museus responderam o
cadastro. Destes, nove se definiram como coleções, um como aquário e os outros como
museus. Cinco pertenciam a instituições privadas. Trinta e nove se definiam como
museus de ciência e técnica, vinte e três de ciências humanas, e oito de arte. Apenas seis
indicaram a presença de museólogos em seus quadros e grande parte dos museus
contava apenas com dois funcionários. Desses, quarenta e nove eram abertos ao público
em geral. Cristina Bruno ressaltava a necessidade e urgência em manter o cadastro e
atualização constante.
Questões sobre a estruturação e coordenação do Fórum também foram
abordadas. Cristina Bruno assumiu a coordenação do Fórum até a realização o próximo
encontro e Marília Xavier Cury a secretaria. Por sugestão de Maria Célia definiu-se que
o próximo encontro deveria ser sediado pela UFBA. É importante também ressaltar que
foi lida uma ata referente ao Encontro de 1994, contudo não encontramos documentos
referentes a este encontro.
Em maio de 1997 realizou-se uma reunião Extraordinária FPMU também no
Museu de Arqueologia e Etnologia – MAE/USP,20 com representação de participantes
de vários estados do país, com destaque para a presença de vários representantes dos
museus da região sul e nordeste. Foi feito um histórico do I Encontro e das Reuniões de
Trabalhos anteriores ocorridas. Nesta reunião foram apresentados os diferentes museus
universitários por seus respectivos representantes.
Após esta apresentação, a professora Regina Márcia apresentou conclusões
evidenciando que “foi possível constatar que os museus em geral se preocupam com seu
acervo e em como colocá-lo à serviço da comunidade universitária e externa,
proporcionando um espaço para reflexão acadêmica e que assim os museus
20
Ata da Reunião Extraordinária do Fórum Permanente de Museus Universitários – Reunião Extraordinário em 20-
05-97. Local: Museu de Arqueologia e Etnologia-Mae/USP.
1919
universitários estão oferecendo um espaço a ser utilizado em benefício da sociedade
contemporânea”.21
Também se discutiu amplamente na reunião sobre a programação da realização
do II Encontro que seria realizado na UFBA, apresentando-se propostas de temáticas e
os convidados a comporem o evento. Essa reunião extraordinária foi estruturada em
duas partes, sendo que a segunda parte foi coordenada pela professora Cristina Bruno.
A Professora Ana Maria apresentou o projeto para o II Encontro e novos temas foram
sugeridos para serem abordados tais como o turismo, o marketing cultural e a capitação
de recursos. Ao final definiu-se o título “Museus Universitários Rumo ao Século XXI”.
A coordenação do Fórum foi transferida para a professora Ana Maria Gantois da UFBA,
local da próxima edição do II Encontro.
Um elemento interessante registrado em ata foi a transferência, pela então
coordenadora Cristina Bruno, de uma nota de U$5022 bem como dos documentos do
FPMU, representando o fundo simbólico de caixa que já havia lhe sido passado.
Embora se tenha apresentado o projeto para a realização do II Encontro na
UFBA previsto para ocorrer no final de maio de 1998, localizou-se no acervo o
documento intitulado23 “Carta Circular aos Membros do Fórum Permanente de Museus
Universitários e Profissionais de Museus”, tendo como assunto “Considerações acerca
do adiamento do II Fórum.” Por meio desta Carta enviada aos membros do Fórum
Permanente de Museus e Profissionais de Museus, datada de 08 de maio de 1998 e
21
Ata da Reunião Extraordinária do Fórum Permanente de Museus Universitários – Reunião Extraordinário em 20-
05-97. Local: Museu de Arqueologia e Etnologia-Mae/USP.
22
Há um e-mail de Tarcísio A.C. Taborda para Regina Márcia Moura Tavares datado de 13 de janeiro de 1994
justificando não ter visto o comunicado dela para uma reunião a respeito da programação do II Encontro do FPMU, e
diz lamentar ter perdido a reunião, pois numa vez tendo se aposentado seria também o momento de ele se renunciar
oficialmente na então reunião já ocorrida. Então, ele informar de suas limitações quanto a decisões de sediar o II
Encontro em Bagé, e sugere que o pedido seja encaminhado a outro professor daquela instituição. Após se despedir,
deixa a observação estar uma “nota de cinquenta dólares que corresponde ao saldo da coleta” que lhe foi passada ao
final da reunião de Goiânia. Esta nota se encontra em uma das pastas deixadas pela professora Maria das Graças
Ribeiro e no momento da pesquisa estava no espaço físico da Rede de Museus UFMF.
23
Carta Circular aos membros do Fórum Permanente de Museus Universitários e Profissionais de Museus – Assunto:
Considerações acerca do adiamento do II Encontro de Museus Universitários. 08/maio/1998.
1920
assinada por Ana Maria Gantois24 e por Marcelo da Cunha da Comissão do CIMBA,25
são apresentados os argumentos que indicavam o cancelamento do II Encontro na
UFBA. Neste documento é abordado um breve histórico sobre a intenção da realização
do Encontro, que deveria ganhar uma amplitude internacional mas, de acordo com as
justificativas apresentadas, não houve robustez de recursos para abarcar tal projeto,
além de outros fatores.
A não realização de tal encontro, apesar do reconhecimento de sua
importância e pertinência, é sinal marcante da crise em que nos
encontramos. Faltam recursos, mas não podemos indicar esta carência
como fator principal. Falta principalmente uma política de cultura que
invista na qualidade a partir da reflexão e das ações coordenadas e
sistêmicas.26
24
Há um modelo de comunicado via e-mail assinado por Ana Maria Gantois datado de 7 de maio de 1998, em que
comunica o adiamento do II Encontro Nacional de Museus Universitários do Fórum Permanente de Museus
Universitários, e justifica que são por “vários motivos, inclusive o momento que as Universidades Federais estão
passando”. Deixa a observação que haverá em breve o envio de uma carta circular.
25
Previa-se que o encontro ocorreria em consonância com a Conferência Internacional de Museus na Bahia (CIMBA).
26
Conferência Internacional de Museus na Bahia (CIMBA). Sigla encontrada na programação do II Encontro “
Museus Rumo ao Terceiro Milênio para ser realizado em 1998.
27
Carta Circular aos membros do Fórum Permanente de Museus Universitários e Profissionais de Museus - Assunto:
Considerações acerca do adiamento do II Encontro de Museus Universitários. 08/maio/1998.
1921
Consolidação do II Encontro:
28
Ata do II Encontro Nacional de Museus Universitários: “Museus Desafios do Milênio”- 29 De Novembro a 01 de
Dezembro de 2001.
1922
Fonseca Nesi (IPHAN/RN) e os professores Luis Carlos Botas Dourado (UFBA),
Maria Michol (UFMA) e Raul Lody (FUNARTE/RJ).
Também consta nesta ata que aconteceu uma mesa redonda com o tema
“Concepções Pedagógicas: Abordagens e Perspectivas”, sob a Coordenação de Marta
Maria Castanho Pernambuco (UFRN). Os professores Maria Célia T. Moura Santos
(UFBA), Regina Márcia Moura Tavares (UNICAMP) e Mário Chagas (IPHAN/RJ)
também participaram desta sessão. A Mesa Redonda “Museu, Ecologia e Turismo
Cultural” foi Coordenada pelo Prof. Jerônimo Rafael Medeiros (MCC/UFRN) e teve
como conferencistas Hélio de Oliveira (FJA/RN), Henrique Spengler (MVT/MS),
Oldair Pena (Galinhos/RN) e Márcia Moura Tavares (UNICAMP).
Segundo este documento, ao final das atividades do II Encontro, conduzido pela
coordenadora, foram realizadas as reuniões do ICOM, ICOFOM e também a
Assembleia Geral do Fórum Permanente de Museus Universitários, presidida pela Profª
Ana Maira Gantois juntamente com Mário Chagas e Wani Fernandes. Nesta ocasião a
Professora Maria das Graças Ribeiro, diretora do Museu de Ciências
Morfológicas/UFMG, foi eleita como a nova presidente do FPMU.
De acordo com esta ata, a nova diretora se declarou disposta a assumir o trabalho
visando o crescimento do Fórum. Também destacou o importante desempenho de suas
antecessoras, e em especial a Profª Ana Maria Gantois. Na sequência, as Moções foram
encaminhadas e elaborado o Documento do II Encontro Nacional de Museus
Universitários, que por sua vez, iria ser anexado à Ata.29
Na análise da documentação começou-se a questionar sobre as datas, locais e
transcurso da realização dos Encontros Nacionais. Onde e quando teria sido o III
Fórum? Ao contrário da farta documentação referentes ao I, II e IV encontros, não
localizamos documentos referentes à realização do III Encontro. Levantou-se algumas
hipóteses, como a possibilidade de terem considerado o Encontro que deveria ter
29
Este documento não foi encontrado anexado junto ao presente documento em estudo.
1923
ocorrido em Salvador. É importante frisar que para as outras datas dos eventos
ocorridos, há geralmente, planejamento programação, relatórios e atas.
Após a leitura de vários documentos encontramos no “Texto sobre o Fórum
Permanente de Museus Universitários (para o site do FPMU)” alguns indícios que nos
ajudam esclarecer as informações sobre a realização da sequência dos encontros. Neste
documento expõe-se como objetivo do fórum “promover o debate e a análise
continuada de questões inerentes aos museus universitários, cujo papel é dar
cumprimento ás funções da Universidade de ensinar, pesquisar e comunicar”.30
Neste, é possível evidenciar um histórico mais preciso das fases consideradas
importantes na constituição do Fórum e de seus encontros. Neste documento
encontramos anexada uma folha manuscrita pela Professora Maria das Graças Ribeiro,
que esboça uma “Reconstituição Histórica do Fórum de Museus”31 elaborada a partir do
depoimento das museólogas Edna Taveira, Ana Maria Gantois, Cristina Bruno, Marília
Xavier Cury, Regina Marcia Tavares. Neste manuscrito observa-se que a professora
Maria das Graças considera como II Encontro a Reunião Extraordinária ocorrida no
MAE/USP em maio de 1997, documento já analisado neste texto. Ela também registra
que aconteceu uma reunião preparatória durante o I Seminário de Museologia na
UFMG, que aconteceu no Museu de Ciências Morfológicas, em março de 97. O III
encontro teria consequentemente, ocorrido em Natal no ano de 2001.
IV Fórum em 2006:
30
Documento Intitulado “Texto sobre o Fórum Permanente de Museus Universitários (para Site FPMU)”.
31
Folha manuscrita por Maria das Graças Ribeiro em jun/2005 com o título “Reconstituição do Fórum
de Museus Universitários - Pesquisa documentais e depoimentos das museólogas Edna Taveira, Ana
Maria Gantois, Cristina Bruno, Marília Xavier Cury, Regina Márcia Tavares- Acervo MCM”.
1924
A Ata32, datada de 28 de julho de 2006, nos traz detalhes sobre a realização do
IV Encontro do FPMU ocorrido na Universidade Federal de Minas Gerais. Este foi
presidido pela Profª Maria das Graças Ribeiro, tendo como Secretário o Prof. Cícero
Antônio Fonseca de Almeida. O texto registra que as atividades do evento foram
iniciadas com um relato sobre a história do Fórum.
A Assembleia que finaliza o evento traz a avaliação dos membros participantes.
A Presidente ressaltou que buscou acolher as considerações feitas no encontro anterior,
motivando a escolha pelos temas abordados. As avaliações ressaltaram a importância de
um novo formato de Encontro, privilegiando espaços de troca de experiências e debates
e a constituição de grupos de trabalho, além de ressaltarem a importância de análises
sobre a situação dos museus universitários e diagnósticos apresentados pelas diferentes
regiões do país.
A dimensão política do fórum foi ressaltada por vários dos presentes. Dentre
esses, o Prof. Ives Fontoura que o caracterizava como um importante “ato político” e
relatava “sentir falta de uma mobilização, uma prática política permanente, de que
facilitariam a realização de outros encontros e o fortalecimento do próprio Fórum.”
Também foi largamente debatido o aspecto da institucionalização do Fórum sob a forma
de uma sociedade ou associação. A professora Maria das Graças ressaltou que a
proposta da Associação já havia sido lançada desde o III Encontro e este aspecto ainda
foi corroborado pela convidada Marta Lourenço (Universidade de Lisboa), destacando o
fórum como instância representativa dos museus e coleções universitárias no Brasil.
Além do aspecto da institucionalização foram propostas várias ações que
visavam reafirmar uma dimensão política de atuação do Fórum. O envio do documento
final do IV Encontro aos Ministros da Educação, Cultura, Ciência e Tecnologia, tinha
32
Ata da Assembleia Geral do Fórum de Museus Universitários e de Seção de Encerramento do IV
encontro do Fórum Permanente de Museus Universitários, realizadas em Belo Horizonte (MG), 28 de
julho de 2006.
1925
em vista destacar o papel dos museus universitários e de ciências. Ainda se destacou a
necessidade do fórum ocupar outros espaços de visibilidade tais como a Reunião anual
da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e o ICOM Brasil.
Nesta ocasião foi apresentado o projeto do Estatuto da Associação do Fórum
Permanente de Museus Universitários, desenvolvido com a colaboração de diferentes
atores. A presidência do FPMU permaneceu com a Profª Maria das Graças Ribeiro.
Verificou-se que foram aprovadas quatro Moções, sendo que destas, três foram
direcionadas ao MEC, destacando-se a necessidade de maior atenção dos ministérios
aos museus universitários. Outro destaque foi dado à necessidade de criação de outros
cursos de museologia atendendo às demandas de profissionalização dos museus
universitários.
Uma moção simbólica para a cidade de Belo Horizonte, que passava naquele
momento por uma intensa transformação e que mobilizava discussões na área da
cultura, dizia respeito à remoção do Museu de Mineralogia da Praça da Liberdade.
Documentos e institucionalização:
33
Proposta para a estruturação do Fórum Permanente dos Museus Universitários Brasileiros.
1926
Destacava-se também quatro atividades que orientavam o propósito do Fórum:
“a) “intercâmbio de informações e experiências; b) Congressos, Conferências,
Seminários, reuniões, cursos e oficinas; c) Participação ativa unto às universidades e
agências financiadoras de projetos e à sociedade, visando o bom desempenho dos órgão
associados; d) Intercâmbio com entidades científicas culturais , nacionais e
internacionais”.
Também foi localizado o Estatuto34, que por sua vez, contempla quatro
capítulos, quais sejam:
O Estatuto apresenta ainda a lista dos sócios fundadores do FPMU, sendo eles
Ana Maria Gontois, Ednéa Mascarenhas Dias, Edna Luísa de Melo Taveira, Idevar José
Sardinha, Lídia Maria Meirelles, Maria Cristina Bruno, Petronila Rosa Costa Diniz
Neta, Regina Márcia Moura Tavares e Tarcísio Antônio Costa Taborda.
Ainda anexado a este documento supracitado, consta uma listagem com as metas
previstas para o ano 2005 e 2006.35 Além da meta de promover o V Encontro, vários
34
Estatuto Fórum Permanente de Museus Universitários- FPMU- Documento anexado a um texto sem
Título narrando a história da constituição do Fórum, juntamente ao texto consta as metas 2005/2006. Sem
data.
35
Metas 2005/2005- Documento anexado ao histórico da FPMU juntamente como estatuto.
1927
aspectos que foram debatidos nas assembleias e registrados em ata foram retomados nas
doze metas apresentadas. Dentre essas, destaca-se a necessidade de se “concluir as
pesquisas documentais e através de depoimentos, elaborar documento com a
reconstituição histórica do fórum”, além de “registrar o Estatuto do Fórum Permanente
de Museus Universitários, para torna-lo uma entidade civil, sem fins lucrativos,
podendo assim, apresentar propostas em editais”. Dessa forma, tais metas buscavam
alavancar e operacionalizar os objetivos e enquadramento do FPMU que foram sendo
construídos ao longo dos encontros e reuniões.
Além das metas também há tópico intitulado “Outras Ações”. Neste, destacava-
se o papel do Fórum como articulador ou rede, buscando reconhecer e mapear as
especificidades dos museus universitários buscando traçar as potencialidades,
localização, eixos temáticos e possiblidades de intercâmbio.
36
V Encontro do Fórum Permanente de Museus Universitários & III Simpósio de Museologia da UFMG: Promoção
FPMU. Realização: Museus de Ciências Morfológicas, Rede de Museus e Espaço de Ciência e Cultura da UFMG.
Apoio FAPEMIG-CNPQ.
37
V Encontro Fórum Permanente de museus Universitários, março/20015.
1928
(…) promover o encontro, o debate amplo e a proposição de
estratégias políticas e operacionais para a atuação dos museus, no
cumprimento de sua missão mediadora do desenvolvimento e
transformação social.38
38
V Encontro Fórum Permanente de museus Universitários, março/20015 e no documento: V Encontro do Fórum
Permanente de Museus Universitários & III Simpósio de Museologia da UFMG: Promoção FPMU. Realização:
Museus de Ciências Morfológicas, Rede de Museus e Espaço de Ciência e Cultura da UFMG. Apoio FAPEMIG-
CNPQ
39
Não estava identificado o nome da Coordenadora, mas, junto aos demais nomes, estava escrito “Coordenadora da
casa de Ciências”. V Encontro Fórum Permanente de museus Universitários, março/20015.
40
Esta apresentação é encontrada em ambas versões de programação já mencionadas.
1929
dos museus universitários”,41 além de outros tópicos relevantes relacionados à
integração interdisciplinar de profissionais “visando o intercâmbio de informações,
materiais, acervos e outros”.42
Não há registro exatos sobre as causas que impediram a consolidação deste
evento, mas novamente a falta de recursos financeiros parece ter sido preponderante
para a não realização.
41
Programação do V Encontro Fórum Permanente de museus Universitários, março/20015.Esta mesma citação
consta nos textos:” Texto Sobre o Fórum Permanente de Museus Universitários: para o site”, e no texto sobre o
histórico que contém anexadas as metas 2005/2006.
42
V Encontro Fórum Permanente de museus Universitários, março/20015.
1930
Referências bibliográficas:
1931
PROGRAMA DE INVENTÁRIO DO PATRIMÔNIO CULTURAL DA
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO: CAMINHOS PARA
CONHECIMENTO E PRESERVAÇÃO
Resumo: Este artigo analisa o papel dos inventários como ferramenta de proteção do
patrimônio cultural universitário, através do estudo de caso do programa de extensão
“Patrimônio Cultural universitário: conhecimento e divulgação do patrimônio cultural tangível
da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE”. O Programa está estruturado de modo a
articular uma rede de proteção institucional para o patrimônio cultural material da Universidade,
possibilitando seu conhecimento e socialização com a comunidade acadêmica e público em
geral. Acreditamos que a relação de pertencimento à comunidade da UFPE pode ser reforçada
através dos inventários, propiciando aos seus membros mecanismos de auto reconhecimento e
auto representação (MOTTA; SILVA, 1998; CHASTEL, 1990). Pensamos que os bens culturais
móveis possuem grande potencial para este tipo de ação, especialmente na medida em que
possibilitam que própria comunidade indique e faça salvaguarda dos seus bens culturais.
Palavras-chave: Inventários, Patrimônio Cultural, Patrimônio Universitário, Cultura Material
Abstract: This article analyzes the role of inventories as a tool for the protection of university
cultural heritage, through a case study of the outreach program "Cultural Heritage University:
knowledge and dissemination of the tangible cultural heritage of the Federal University of
Pernambuco – UFPE”. The Program is structured in order to articulate a network of institutional
protection for the tangible haritage of the University, enabling its knowledge and socialization
with the academic community and the public in general. We believe that the relationship of
belonging to the UFPE community can be strengthened through inventories, providing its
members with mechanisms of self-recognition and self-representation (MOTTA; SILVA, 1998;
CHASTEL, 1990). We think that movable cultural property have great potential for this type of
action, especially to the extent that allow the community enter and make preservation of its
cultural heritage.
Key-words: Inventory, Heritage, University Heritage, Material Culture
1932
O patrimônio Cultural nas universidades
Ainda que não sejam iguais, estas duas tipologias do patrimônio cultural
apresentam muitas similaridades e no ambiente universitário ambas podem ser
43
Definimos museu a partir do exposto na legislação específica sobre o tema no Brasil, o Estatuto dos Museus (Lei
11.904/2009): Art. 1º Consideram-se museus, para os efeitos desta Lei, as instituições sem fins lucrativos que
conservam, investigam, comunicam, interpretam e expõem, para fins de preservação, estudo, pesquisa, educação,
contemplação e turismo, conjuntos e coleções de valor histórico, artístico, científico, técnico ou de qualquer outra
natureza cultural, abertas ao público, a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento (BRASIL, 2009).
1933
encontradas em profusão. Tipicamente, os acervos dos museus de ciência e tecnologia
existentes nas universidades são constituídos por objetos que foram, originalmente, bens
móveis utilizados no dia-a-dia dos diversos setores da instituição.
Como a maioria dos bens do patrimônio de C&T, estes objetos seguem o ciclo
de vida identificado por Lourenço acerca das coleções universitárias europeias que
foram salvas do descarte indiscriminado:
Este é também o ciclo de vida padrão dos objetos científicos utilizados no século
XX, no Brasil, conforme já demonstrado nos estudos de Granato e colaboradores, os
quais também indicam que as universidades concentram a maior parte do patrimônio de
C&T já identificado:
1934
respeito às IES a pesquisa circunscreveu-se às instituições públicas (GRANATO,
MAIA e SANTOS, 2014, p. 16). Segundo o autor, os bens que estão melhor
salvaguardados encontram-se em grandes museus, sendo notáveis as dificuldades de
preservação de bens culturais que se encontram nos pequenos museus existentes em
universidades, assim como dos bens que não foram musealizados e se encontram em
coleções, ou proto-coleções, dispersas nas instituições de ensino superior, de pesquisa e
de ensino médio (GRANATO e SANTOS, 2015).
1935
Federal da Bahia (MARQUES e SILVA, 2011) e na Universidade Federal de
Pernambuco (SILVA FILHO, 2013 e OLIVEIRA, 2015).
Do ponto de vista jurídico realizamos pesquisa sobre esta temática (RIBEIRO, 2016),
que consideramos ser um desdobramento da falta de responsabilidade institucional das
autarquias de ensino sobre o seu patrimônio de C&T e universitário. Concluímos que,
do ponto de vista estritamente legal,
44
Financiado pelo CNPq – Edital Universal 2014, processo nº 461779/2014-5.
1936
seja, é razão patrimonial que atribui sentido, e propicia a preservação dos bens
culturais.
1937
Em um monumento, Riegl distingue três formas possíveis de valor
memorial: a forma intencional inicial, comemorativa; em seguida o
valor histórico, que surgiu com o Renascimento, tendo estabilizado no
século XIX com um aparato de conservação-restauração destinado à
manutenção do estado de origem; por último o valor de ancianidade,
que, por ironia, pode ser designado também por valor do futuro, e cuja
relação com a restauração é eminentemente problemática (POULOT,
2009, p. 216).
1938
Direito do Recife, fundada por lei em 11 de agosto de 1827; Escola de Engenharia de
Pernambuco, fundada no ano 1895; Faculdade de Medicina do Recife, e anexas de
Odontologia e Farmácia, fundada no ano de 1914; Escola de Belas Artes de
Pernambuco, fundada no ano de 1932; Faculdade de Filosofia do Recife, fundada no
ano 1939.
1939
No ano de 1965, a Universidade do Recife passou a integrar o Sistema Federal
de Educação do país, com a denominação de Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE), na condição de autarquia vinculada ao Ministério da Educação.
1940
Centro de Educação, Centro de Ciências Sociais Aplicadas, Centro de Ciências da
Saúde, Centro de Tecnologia, e Centro de Ciências Jurídicas.
Estamos falando de uma grande instituição, que a cada dia cresce, inova e se
renova. Seu crescimento é resultado das transformações da nossa sociedade. Nestes 70
anos, a UFPE buscou se reinventar com vistas a contribuir para o desenvolvimento
político, econômico e social da sociedade brasileira.
Inventariando a UFPE
1941
Cumpre registrar que existem aspectos legais que obrigam as instituições
públicas de ensino superior à salvaguarda do seu patrimônio cultural. Primeiramente é
importante lembrar que cabe ao Estado, assim como à sociedade, a preservação do seu
patrimônio cultural, e, para além desta obrigação genérica, existe a obrigação específica
dos bens que são tombados em nível federal ou estadual.
Além deste caso há outra situação relevante na UFPE, que diz respeito ao
inventário, realizado em 2003, pela “Comissão para avaliação das obras de arte
pertencentes à UFPE”. Esta comissão inventariou 1.477 bens com valor artístico,
realizando também a atribuição de valor econômico de cada uma das peças. Urge
retomar este trabalho e salvaguardar estas peças.
1942
culturais – que a UFPE não possui atualmente – como também lhes fazerem o controle
contábil, ou seja, identificarem e acompanharem o seu valor econômico.
O cuidado e a guarda dos bens públicos, com ou sem valor cultural são uma das
atribuições da Administração Pública e é expressamente prevista no §3º do art. 50º da
Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101, de 04/05/2000): “A
Administração Pública manterá sistema de custos que permita a avaliação e o
acompanhamento da gestão orçamentária, financeira e patrimonial” (BRASIL, 2000).
Ou seja, há dano ao patrimônio público quando tal cuidado não acontece e, neste
contexto, os bens com valor cultural são também objeto de dano patrimonial, pois o
dever de cuidado com o patrimônio público é um só, independente de se tratar de bens
com ou sem valor cultural agregado.
A preservação destes bens, para além de cumprir aspectos legais, possui um enorme
potencial de agregação de valor emocional e de reforço identitário e da autoestima
institucional. A UFPE, como instituição de ensino superior de grande porte, não possui
nenhum mecanismo sistemático de apresentação dos bens culturais sob sua guarda. Não
há praticamente nenhum tipo de website, publicação, postais, enfim, nenhum tipo de
material audiovisual destinado a divulgar os bens culturais pertencentes à UFPE. Nem
mesmo a comunidade universitária, e muito menos a sociedade, sabe da existência da
maior parte dos bens móveis que estão sob guarda da instituição.
1943
ação, especialmente na medida em que possibilita que própria comunidade indique e
faça salvaguarda dos seus bens culturais materiais móveis.
Por fim, chamamos atenção para o movimento que vem ocorrendo, nas
principais universidades públicas do país e do mundo, para a preservação do seu
patrimônio cultural. Em âmbito nacional podemos citar USP, UnB, UFMG, entre outras
instituições de ensino superior, vêm realizando ações no sentido de conhecer e preservar
o seu patrimônio cultural. Como maior universidade do Estado de Pernambuco, e uma
das maiores do país, a UFPE possui um rico patrimônio cultural a ser salvaguardado e,
no momento em que são comemorados os seus 70 anos, nada mais apropriado do que
lançar um Programa para a sua preservação.
1944
DIAGNÓSTICO MUSEOLÓGICO EM MUSEUS E ESPAÇOS UNIVERSITÁRIOS
DE MEMÓRIA E CIÊNCIA
Letícia Julião*
Paulo Roberto Sabino**
Eliane Cristina de Freitas Rocha***
Abstract: In its 90 years of existence, the Federal University of Minas Gerais (UFMG) has
gathered important scientific and cultural heritage, which is mostly managed by 20 units that
integrate the Network of Museums of UFMG. In 2015 and 2016 an evaluation survey of these
units was carried out pursuing the objective of producing systematic knowledge about the
management of this collection and the performance of these spaces from a museological point of
view. The aim is to subsidize the formulation of a UFMG policy that could promote skill in
processes of preservation, research and communication of its patrimony. Based on the National
Museum Register (IBRAM / Ministry of Culture), a data collection was developed following a
questionnaire structured in 13 survey areas (institutional, collection, research, accessibility,
public, exhibition, educational etc.). Focused on more than 400 variables data, the analyzes
identify potentialities and fragilities, pointing out the specificities of the university museological
reality. Above all, in those spaces, it is difficult to articulate the museological functions -
safeguard and communication - with the dynamics of university life, governed by the principle
of indissociability between teaching, research and extension. All these issues are emphasized in
analyzes of three specific areas: collection, accessibility and public.
Keywords: museology; university museum; collection; science; memory.
1945
Introdução45
As transformações experimentadas pelos museus nas últimas décadas, dentre
outros aspectos, têm contribuído para a incorporação de processos de avaliação e
planejamento na agenda dessas instituições. A tomada de decisões e a adoção de
condutas fundamentadas em diretrizes conceituais e procedimentais consagrados pelo
campo museológico têm se tornado cada vez mais comuns, em detrimento das ações de
caráter assistemático e casual, muitas vezes orientadas pelo capricho de gestores.
No Brasil, a formulação de uma política de museus, nos anos 2000, foi decisiva
para legitimar a avaliação museológica como procedimento indispensável à qualificação
dessas instituições. Dentre outras iniciativas46, a criação, em 2007, do Cadastro
Nacional de Museus, estruturou, no âmbito federal, informações de mais de 3,4 mil
museus brasileiros, constituindo-se em ferramenta estratégica para a formulação e
aprimoramento de planos e de políticas públicas para o setor. Em 2011, o Instituto
Brasileiro de Museus - IBRAM lançava o Guia dos Museus Brasileiros (BRASIL,
2011a) e Museus em Números (BRASIL, 2011b), publicações que divulgam dados e
estudos estatísticos do setor nos âmbitos federal e estadual, desenvolvidos a partir das
informações cadastrais.
45
Artigo apresentado no I Congreso Iberoamericano de Museos Universitarios, em La Plata, Argentina,
em maio de 2017 (não publicado).
46
A esse respeito vale mencionar a criação do Sistema Brasileiro de Museus, em 2004. o lançamento da
Política Nacional de Museus (BRASIL, 2007) na qual consta, como um dos eixos programáticos, a
Gestão e Configuração do Campo Museológico, em 2007 e o aperfeiçoamento da legislação para o setor,
especialmente com a criação do Estatutode Museus, em 2007.
1946
conhecer a realidade pouco visível dos museus e outros espaços que abrigam coleções
na Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG.
47
Integram a RMECC: Museu Casa Padre Toledo – MCPT; Museu da Escola de Arquitetura; Museu de
Ciências Morfológicas – MCM; Museu de História Natural e Jardim Botânico – MHNJB; Espaço do
Conhecimento UFMG; Acervo Curt Lange; Centro de Estudos Literários e Culturais - CELC/Acervos
Escritores Mineiros; Centro de Memória da Educação Física, do Esporte e do Lazer – CEMEF; Centro de
Memória da Enfermagem – CEMENF; Centro de Memória da Engenharia, Centro de Memória da
Farmácia – CEMEFAR; Centro de Memória da Medicina – CEMEMOR; Centro de Memória da
Odontologia; Centro de Memória da Veterinária; Centro de Referência em Cartografia Histórica - CRCH;
Espaço Memória do Cinema; Estação Ecológica UFMG; Centro de Pesquisa, Documentação e Memória
da Faculdade de Educação - CEPDOC e Centro Cultural UFMG. estes dois últimos recentemente
desvinculados da Rede. O Centro de Referência da Música de Minas - Museu Clube da Esquina, em fase
de criação, assim como o Centro de Coleções Taxonômicas, Acervos Artísticos UFMG e Acervo Curt
Lange incorporados há pouco tempo na REMCC não integraram o universo da pesquisa.
1947
A coleta de dados observou os seguintes passos: envio e preenchimento on line
do formulário; pesquisa in loco, para verificação e ampliação de informações e
tratamento de dados estatísticos em base de dados modelada no programa SPSS.
1948
seguiu até os anos 2000, quando surgiram 5 novos espaços, dos quais 4 eram centros de
memória ou de documentação de unidades acadêmicas.
Não por acaso ocorre esse salto quantitativo na criação desses espaços, nesse
momento. O surgimento da Rede de Museus justamente no ano de 2000 pode ter
funcionamento como fator gerador de tomada de consciência do valor do patrimônio
científico da Universidade, estimulando tais iniciativas. Mas também é preciso
considerar que nas décadas de 1990 e 2000 se observa um verdadeiro boom de abertura
de museus no país (BRASIL, 2011b), movimento que acompanha uma tendência
mundial de proliferação desses espaços, muitos dos quais dedicados à preservação de
memórias singulares, focalizando experiências históricas específicas, instituições,
indivíduos e, sobretudo, determinados grupos sociais, éticos ou culturais. Vale lembrar
que essa tendência à fragmentação ou individuação veio se delineando na contramão
dos museus com pretensões universalizantes, associados à memória/cultura nacional, e
em resposta o fenômeno de aceleração do processo de globalização (ABREU, 1996,
HUYSSEN, 2004).
1949
preservacionista é expressivo de uma disposição em se firmar identidades das unidades
acadêmicas, materializadas em indicadores da memória da docência e da pesquisa.
Patrimônio Universitário
A diversidade tipológica dos acervos sob a tutela dos espaços da Rede atesta a
própria natureza universitária dos processos que dão origem a essas coleções. Distintos
campos de conhecimento estão contemplados nos acervos, formando o que se pode
chamar de patrimônio científico e cultural da UFMG.
1950
De acordo com dados apurados no diagnóstico, 11 espaços pesquisados
dispõem de acervo bibliográfico/arquivístico, superando as demais tipologias de acervo.
Isso não significa necessariamente que seja este o acervo privilegiado nas ações das
unidades. Mais provável é que, talvez à exceção dos centros de documentação, sejam
acervos subsidiários da atividade fim na maioria desses espaços.
1951
entre os acervos e os processos de produção de conhecimento. Nesse cenário, no qual
33,3% dos espaços não estão engajados em pesquisas, há um comprometimento das
potencialidades de uso do patrimônio cultural e científico da UFMG, do ponto de vista
do ensino, pesquisa e extensão.
Público
Há grande heterogeneidade na característica do público dos museus da RMECC.
Há cinco instituições que declararam não realizar contagem de público, aspecto
sintomático quanto à sua extroversão, bem como é possível identificar quatro que abrem
somente com agendamento, devido a dificuldades relativas a recursos (seja humanos ou
financeiros) para manter abertura permanente ao público geral.
1952
MCM, com acervo sobre o corpo humano e com propostas de ações educativas voltadas
aos estudantes, especialmente os de ensino fundamental; Centro Cultural UFMG,
localizado no centro da cidade de Belo Horizonte, com atividades culturais abertas ao
público; MCPT, localizado na cidade de Tiradentes, instalado em um edifício de
importância histórica; e Estação Ecológica UFMG, uma área de preservação ambiental
que propõe atividades de educação ambiental especialmente voltadas para o público
escolar e de ensino fundamental. Outros espaços da rede, como os centros de memória e
documentação, não são tão vertidos ao público em geral, destacando-se alguns deles em
seu papel de pesquisa e recepção do público pesquisador (no momento em que a
pesquisa foi realizada, os espaços CEMEF, CEPDOC, CEMEFAR, CEMEMOR,
CRCH revelaram a existência de pesquisas científicas a partir de seus acervos).
1953
A atração de público para estas instituições requer melhoria de sua inserção
junto à comunidade extramuros. Alguns indicadores relativos a esta abertura é a
existência de associação de amigos ou fundações de apoio, bem como a realização de
atividades culturais e educativas. Quanto ao primeiro aspecto, apenas uma das
instituições afirmou ter associação de amigos.
Acessibilidade e inclusão
Pode-se considerar que a acessibilidade para pessoas com deficiência nos
espaços avaliados é muito precária, quando não, inexistente. Tal situação pode ser
motivada principalmente pela falta de conhecimento ou sensibilidade de gestores e
profissionais de instituições na área cultural sobre o tema, assim como o aspecto
financeiro. A universidade reflete a situação de grande parte dos museus brasileiros.
Segundo o IBRAM (BRASIL, 2011, p. 104), 49,3% dos museus indicaram não possuir
nenhum tipo de instalação para pessoas com deficiência. Dos que informaram possuir, a
grande maioria, 78,8% possuem rampas de acesso.
Outro fator importante a considerar é a legislação sobre o tema. Fica claro que
um dos principais problemas que atingem os museus universitários também é um
1954
reflexo da condição museológica nacional. A falta de uma política pública para fomento
e, consequentemente, fiscalização da aplicação de leis e normas.
1955
representa apenas 16% das instituições. Mesmo assim, dos seis serviços listados, as três
instituições alegam possuir somente metade. Apenas uma instituição possui tradutor em
Linguagem Brasileira de Sinais - LIBRAS, assim como apenas uma possui sinalização
em Braille.
Ao cruzar estas informações com outros dados pode-se perceber que o problema
da acessibilidade não é algo pontual. Diversos elementos irão corroborar para o
desenvolvimento do atual quadro de exclusão nos espaços.
O terceiro tema a ser analisado apresenta dados sobre a caracterização física dos
locais onde estão instalados as instituições. Um elemento importante é que a maioria
informou que ocupa imóvel próprio, 73%. O que significa que estes locais não estariam
a mercê de mudanças políticas ou financeiras, assim como possuem autonomia sobre
estes espaços, podendo executar obras e intervenções arquitetônicas visando adaptações
voltadas para a acessibilidade sem depender de aprovações de terceiros. Mas outro dado
pode explicar a dificuldade para que isso seja alcançado.
1956
Apenas 22% dos locais apontaram que foram criados para função museológica.
Os outros 78% estão em locais alternativos utilizados para outros fins. Este fator
apresenta-se como um complicador pois a adaptação desses locais para exercer uma
função museológica, entre elas, o atendimento ao público, pode ser um entrave
financeiro para estas instituições, dependendo da arquitetura desses ambientes e de suas
localizações.
Como resultado percebe-se que a falta de uma política inclusiva nos espaços
culturais da universidade em parte responde pelo quadro geral de inacessibilidade das
instituições. Com poucos recursos orçamentários e sem uma política que pudesse
oferecer alternativas de financiamento, os gestores pouco podem fazer para melhorar as
condições de acessibilidade nos espaços da RMECC. A implementação de uma política
de inclusão teria que estar alinhada com a própria universidade, pois questões como
rotas acessíveis e sinalização, por exemplo, extrapolam a autonomia dos centros de
memória localizados no interior do campus.
Considerações Finais
Os aspectos analisados do diagnóstico da Rede de Museus e Espaços de Ciência
e Cultura da UFMG indicam que os problemas e potencialidades apresentados
convergem com outros já discutidos na literatura sobre as especificidades e limitações
48
GUIMARÃES, Marcelo Pinto; SABINO, Paulo R. Análise de Condições Operacionais da
Acessibilidade e Design Universal nos Museus e Centros de Memória da UFMG: Estudos de Caso no
Campus da Pampulha. 2015. PAPIA/PROGRAD; Laboratório ADAPTSE, Escola de Arquitetura, UFMG.
(não publicada).
1957
dos museus e centros de memória universitários. Muitos impasses que esses espaços
experimentam decorrem de uma equação ainda não resolvida apropriadamente e que
exige equilibrar as funções museológicas de salvaguarda e comunicação ao princípio
que rege a vida universitária da indissociabilidade do ensino, pesquisa e extensão.
1958
Referências bibliográficas
HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória. 2. ed. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004.
MERRIMAN, Nick. The current state of Higher Education Museums, Galleries and
Collections in the UK. Museologia, 2 p. 71-80. Disponível em: <http://edoc.hu-
berlin.de/umacj/2001/merriman-71/PDF/merriman.pdf>. Acesso em mar. 2017.
SIMÕES, Solange; PEREIRA, Maria Aparecida Machado. A arte e a ciência de fazer
perguntas: Aspectos cognitivos da metodologia de survey e a construção do
questionário. In: AGUIAR, Neuma (ORG). Desigualdades sociais, redes de
sociabilidade e participação política. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.
1959
TOJAL, Amanda Fonseca. Políticas públicas culturais de inclusão de públicos especiais
em museus. 2007. 322 f. Tese (Cultura e Informação). ECA/USP. São Paulo.
1960
CENTRO DE ENSINO DE CIÊNCIAS DO NORDESTE E SUAS COLEÇÕES DE
ENSINO: ANÁLISE DA CULTURA MATERIAL DO COLÉGIO DE APLICAÇÃO
DO RECIFE (2017).
Nathaly Pereira*
Emanuela Sousa Ribeiro**
Abstract: The Center for the Teaching of Sciences of the Northeast, founded in 1965, has
worked to strengthen the teaching of science on Northeast and Brazil, since it began its activities
as a pilot experiment for the other Centers that were created later. CECINE and the other centers
of the country emerge, then, under the condition of a concern of the MEC with the teaching of
the sciences. In this context, the Center worked in the training of teachers and production of
didactic material, among other activities that they perform. The intention of this article is to
analyze the period of 1965-1980, moment of great performance of the Center. The CECINE,
aiming a modern methodology, which would provide teaching through experience by the
students, produced a range of didactic materials. Said so, we intend to understand the
distribution mechanisms of their didactic material for the Schools in Pernambuco. Through
research conducted at the School of Application of Recife linked to the Federal University of
Pernambuco, we identified collections of teaching donated by CECINE and, in this way, we
intend to analyze the material culture of this college, proving the distribution of didactic
material produced by the Center.
Key-words : School of Application; teaching collections; CECINE.
1961
A origem do CECINE remonta ao período da Guerra Fria. Após o lançamento
do Sputnik pela URSS, que lançou a primeira nave tripulada por um homem, Yuri
Gagarin. Diante deste fato, a comunidade acadêmica dos Estados Unidos da América
decidiu reformular a didática do ensino das ciências, a fim de não ficar para trás na
corrida espacial.
Diante deste quadro, que o MEC percebia a deficiência no ensino das ciências
no Brasil, ele vai investir na criação de Centros de Ensino que tinham por objetivo
capacitação dos professores do ensino fundamental e médio tendo como foco principal
os professores da rede pública.
1962
contribuíram para a instalação em Recife foram à existência da SUDENE
(Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste) e o papel fundamental do
professor Marcionílio de Barros Lins, então diretor do Instituto de Química da UFPE
(Diário de Pernambuco, 1965) .
De acordo com Borges, Dias e Silva (2012, p. 31) o objetivo do CECINE era
“promover a melhoria da qualificação de professores do Ensino Básico, sobretudo da
rede pública”, nesse âmbito o Centro atou de forma a capacitar os professores de rede
pública e privada do Nordeste, ainda em 1965 foram fundados os núcleos do Centro nos
outros sete estados nordestinos.
1963
Centro contava com seminários, capacitação, feiras de ciências (que eram regionais),
estágios, cursos de verão e de férias.
Junto com a produção dos livros, o CECINE passou a produzir Kits que tinham
por objetivo a experimentação por parte dos alunos. Silva (2012, p. 126) “os kits eram
testados nos laboratórios, pois, como informaram Arnaldo Rabelo de Castro e Adalberto
Francisco, as aulas eram preparadas em função da reação e das expectativas dos
alunos/professores”.
1964
com livros e kits para a experimentação nas Escolas, outra forma de aquisição do
material do Centro, era através da participação nas Feiras de Ciências, as escolas
vencedoras ganhavam kits.
1965
Castro, Adalberto F. S. Filho, Jurandy Soares Moraes e Elional P. de Castro. Da
primeira coleção identificamos dois exemplares e da segunda um exemplar.
1966
A participação nas Feiras de Ciências do CECINE teve uma grande adesão por
parte dos colégios de Pernambuco. Na primeira feira realizada em 1965, 35 colégios
participaram, entre eles o Colégio de Aplicação.
Referências Bibliográficas
1967
Interseções entre
museologia e arte
contemporânea
1968
A RELAÇÃO ENTRE O ARTISTA E O MUSEU: DOCUMENTAÇÃO
MUSEOLÓGICA DE PERFORMANCES NO MUSEU DE ARTE DO RIO
GRANDE DO SUL
Resumo: O presente estudo tem como objetivo discorrer sobre a relação do artista e do museu
na construção da documentação museológica de performances de arte contemporânea.
Analisando como esse vínculo tem impacto sobre os processos de aquisição, catalogação,
pesquisa e reexibição destas obras. Para tanto, buscou-se o acervo de performances do Museu de
Arte do Rio Grande do Sul (MARGS). A metodologia adotada inclui pesquisa documental, bem
como entrevistas com a instituição e os artistas destas obras.
Palavras-chave: Performance; Arte Contemporânea; Documentação Museológica; Preservação;
Museu de Arte do Rio Grande do Sul.
Abstract: The present study aims to discuss the relationship between the artist and the museum
in the elaboration of the museological documentation of contemporary art performances.
Analyzing how this bond has an impact on the processes of acquisition, cataloging, research and
reexhibition of these works. For that, the collection of performances of the Rio Grande do Sul
Museum of Art (MARGS) was chosen. The methodology adopted includes documental
research, as well as interviews with the institution and artists of these works.
Key-words: Performance; Contemporary Art; Museological Documentation; Preservation; Rio
Grande do Sul Museum of Art.
1
Museóloga e mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade de
Brasília. E-mail de contato: julianasalesmuseologia@gmail.com. Este texto é fruto de uma monografia do
curso de graduação em Museologia da Universidade de Brasília, intitulada “Documentação museológica
de performances de arte contemporânea: Museu de Arte do Rio Grande do Sul (1985-2016)” e pode ser
consultada no site: http://bdm.unb.br/.
2
Mestre em História da Arte e da Cultura pela Universidade Estadual de Campinas (1998) e doutor em
História Cultural pela Universidade de Brasília (2009). É professor de História da Arte no Departamento
de Artes Visuais e pesquisador nos Programas de Pós-Graduação em Arte (IdA/UnB) e de Ciência da
Informação (FCI/UnB), na Universidade de Brasília. E-mail para contato: dionisio@unb.br.
1969
Nas últimas décadas, a assimilação de performances em arte, como acervo
museológico de museus dedicados às artes visuais, se tornou cada vez mais frequente.
No ambiente brasileiro, destaca-se o Museu de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS),
pois, desde que a performance começou a surgir enquanto categoria artística no Brasil, a
instituição tem sido palco não só de diversas exibições, como também, acolheu uma
quantidade significativa de obras nos últimos anos.
Até o ano de 2016, o MARGS possuía em seu acervo oito performances e uma
videoperformance. Seis delas foram doadas pela artista Didonet Thomaz: “1982”
(1982), “Arte AE – aérea balões” (1983), “Abrolho” (1985), “Historieta de Truz”
(1987), “Ronco da Solidão” (1990), “Doninhas da Solidão” (2011). As outras duas
performances são de Hamilton Viana Galvão “Sem título”, (1985) e “Tacet” (2008-
2012) de Guilherme Dable. Além disso, em 2015, adquiriu também uma
videoperformance doada pela artista Élle de Bernadini “Lágrimas de Artista”.
A motivação inicial de nossa pesquisa era descobrir como o MARGS havia
catalogado essas performances, quais documentos o museu possuía sobre essas obras, e
se essa documentação permitia uma possível execução de reperformances. Para isso,
realizamos uma visita à instituição onde tivemos acesso à documentação museológica
dessa coleção, que se encontrava parte no Núcleo de Documentação e Pesquisa e parte
no Núcleo de Acervo. Contudo, após esse acesso, obtivemos o depoimento de todos os
artistas dessas obras, uma vez que as informações presentes na instituição se mostraram
insuficientes3.
Essa falta de maiores dados por parte da instituição nos alertou, ao mesmo
tempo, para a importância e a necessidade de uma maior aproximação entre o artista e o
museu na elaboração da documentação museológica de performances de arte
contemporânea. Fazendo com que nossa pesquisa avançasse para além dos objetivos
3
Com exceção de Hamilton Viana Galvão, pois não há muitas informações sobre este artista em bancos
digitais e nem mesmo o próprio Museu de Arte do Rio Grande do Sul possuía seu contato.
1970
iniciais citados, e buscasse mais informações sobre os próprios processos de aquisição,
documentação, pesquisa e reexibição deste acervo.
Inicialmente, percebemos que dois fatores foram predominantes para que
ocorressem essas aquisições: O primeiro, seria o fato de que essas performances (com
exceção de algumas obras de Didonet Thomaz) vieram a ser executadas dentro do
museu antes de sua aquisição. Sendo esse fator elencado por todos os artistas
entrevistados como crucial para houvesse a doação de suas obras à instituição. O
segundo seria o pedido pessoal feito pelo diretor à época, Gaudêncio Fidelis, de doação
dessas obras para a instituição.
Em 2011, este mesmo ex-diretor encabeçou durante sua gestão um projeto para
que o MARGS passasse a colecionar performances de arte contemporânea, bem como
objetos e peças relacionadas a essa modalidade artística. Como é possível compreender
pela própria instituição4, a ideia era seguir uma tendência internacional dos grandes
museus, como por exemplo, o Museu de Arte Moderna de Nova York (MOMA), que
possui hoje um acervo considerável de performances. Nesse sentido, em 2012, ano
seguinte a esse projeto, há a aquisição de seis performances da artista Didonet Thomaz
como acervo museológico.
Entretanto, nem todas as performances da instituição tiveram suas aquisições
restritas a esse enquadramento. É caso da obra “Sem título” do artista Hamilton Viana
Galvão. De acordo com o Núcleo de Acervo, apesar de constar tanto nos catálogos
como na documentação do museu, que o ano da aquisição dessa performance se deu em
1985, ela foi reconhecida como parte do acervo museológico pela instituição somente
recentemente. Essa complexidade pode ser explicada quando entendemos a história que
envolveu esta performance.
4
Disponível em:
<https://www.facebook.com/pg/margsmuseu/photos/?tab=album&album_id=604815902868411.>
Acessado em 20 de novembro de 2016.
1971
Em 1985 Hamilton Galvão apresentou uma performance, dentro dos âmbitos do
MARGS, onde ele nu, simulava beber tinta, a qual se derramava sobre seu corpo e se
acumulava no chão, onde havia sido estendido um retângulo de tela de pintura. Ao final
da performance, a tela de tinta acrílico acabou por ficar sob a guarda do museu (Figura
1).
Até onde sabemos, não houve formalmente um acordo realizado com o artista de
que esta obra foi doada ao MARGS. De acordo com o Núcleo de Acervo, o museu
somente se deu conta de que esta tela dizia respeito a uma performance, quando o então
ex-diretor do museu Gaudêncio Fidelis, que estava presente no momento da ação,
reconheceu a tela anos depois e decidiu por fim que esta faria parte da coleção.
Durante a visita ao museu, encontramos no setor de Pesquisa e Documentação,
junto a outros registros históricos do artista, um pôster com a imagem que mais se
assemelharia a esta performance (Figura 2). No entanto, esta imagem não diz respeito à
1972
performance que ocorreu no próprio MARGS, mas de outras vezes em que o artista
apresentou a obra.
1973
educativos e culturais) e pesquisa (todas as atividades do museu fundamentadas
cientificamente) (CÂNDIDO, 2006):
1974
Essa tentativa de se aplicar métodos convencionais para acervos de arte
contemporânea também é refletida na forma como as performances vieram a ser
adquiridas. Essas obras foram reconhecidas e inseridas no acervo museológico
prioritariamente por seus objetos. E sua preservação mais preocupada, como é possível
notar pelas fichas catalográficas da instituição, com a obra enquanto suporte material do
que pela sua poética. Dessa maneira, pouquíssimos documentos sobre esse acervo
vieram a ser adquiridos e esses poucos não permitem mais detalhes de como essas obras
foram desenvolvidas.
Na verdade, em diálogo com os artistas percebemos que grande parte da
documentação dessas performances está em suas posses. No entanto, não são por eles
considerados como relevantes para compor uma documentação museológica. Caso, por
exemplo, da performance “Tacet” (2008-2012).
1975
Essa obra, exibida no MARGS em 2012 durante a exposição “Alien:
Manifestações do disforme” foi realizada pelo artista Guilherme Dable e um grupo
formado por três músicos. Durante a ação, esses artistas se utilizam de diversos objetos
como baldes, latões de lixo, garrafas PET, panelas, papéis, entre outros, tendo como fim
produzir músicas improvisadas com esse material. A performance, ao mesmo tempo,
gera um conjunto de desenhos considerados pelo artista como “imagem-despojo”. Essas
formas gráficas se originaram das “marcas” deixadas pelos instrumentos por um papel
sobreposto no carbono.
Esses “desenhos” e sons5 produzidos por esses artistas foram os únicos
elementos da obra que vieram a ser adquirido pelo MARGS. No entanto, questionamos
se os objetos utilizados durante a performance não deveriam também fazer parte dessa
documentação museológica, visto que são considerados como “instrumentos musicais”
e originam tanto o som quanto os desenhos, tido pelo artista como elementos essenciais
para a poética dessa performance (Figura 3). De acordo com Dable, apesar dos
instrumentos se alternarem a cada apresentação, seria possível montar uma relação do
que veio a ser utilizado em cada performance, e inserir esses dados como parte da
documentação.
Dessa maneira, tendo em mente que a documentação museológica pode ser
entendida como “registro de toda a informação referente ao acervo museológico”
(PADILHA, 2014, p. 35), e que, sobretudo no caso de obras de arte contemporânea
“todas as fontes primárias e secundárias sobre os artistas são fontes de documentação
importantes para sua preservação” (SEHN, 2016, p. 105), qualquer registro, documento,
fotografia, vídeo, objeto que tenha feito parte destas performances ou sobre seus artista
pode ser entendido fonte de informação para esses acervos.
5
Até o momento da nossa visita, realizada em setembro de 2016, o artista ainda não havia cedido à
instituição o áudio contendo o som realizado durante a performance.
1976
Nesse seguimento, Sehn aborda que produções acadêmicas dos artistas podem
ser extraordinárias fontes de informação, tendo em vista que são mais objetivas e podem
abordar determinados aspectos que por vezes passam despercebidos mesmo em
entrevistas. De acordo com a autora, dissertações, teses e memoriais podem, por
exemplo, mostrar quais os referenciais teóricos utilizados, significados e critérios de
seleção, mudanças durante a produção, além de projetos que permitem observar o
processo de construção de algumas obras por meio de desenhos e croquis. Ressaltando
ainda a importância desses escritos para os conservadores e restauradores uma vez que a
tese de um artista pode ainda melhor elucidar quanto à preservação das obras. Assim:
Nesse sentido, para a autora, tais publicações que às vezes “nem contam nos
arquivos de museus como fontes primárias” (2016, p. 116) são essenciais no processo
de preservação de obras efêmeras, não podendo assim ser vistas como as últimas fontes
de informação da obra.
No caso do acervo de performances do MARGS, pode-se dizer que a instituição
é de certa maneira afortunada. Dentre os artistas que conseguimos contato, todos são
também pesquisadores. Todos escreveram artigos e até mesmo dissertações sobre suas
próprias obras como fonte de pesquisa científica. Entretanto, apesar de sabermos que o
museu tem conhecimento de algumas delas, só tivemos ciência e acesso a esses estudos
1977
por parte dos próprios artistas, que nos cederam suas publicações por acreditarem que
podiam auxiliar na compreensão de suas obras.
Guilherme Dable, por exemplo, baseou sua dissertação de mestrado em sua
performance “Tacet”. Em seu estudo intitulado “Tempo como matéria, tarefa como
possibilidade: música improvisada e imagens-despojo” (2012), o artista discorre
primeiramente sobre como surgiu à ideia de sua obra, quais foram às adaptações
realizadas a cada apresentação, os referenciais teóricos utilizados para pensar a poética
da obra, detalhes sobre materiais, projetos, locais onde a obra foi apresentada e até
mesmo sobre a reação do público durante estas ações.
Não é difícil perceber o quanto esta pesquisa é importante para essa obra, uma
vez que até mesmo o próprio museu utilizou como referência o estudo em seu catálogo
Alien: Manifestações do Disforme para explicar mais detalhes sobre a performance.
Entretanto, é valido ressaltar que apesar de catálogos serem também primordiais fontes
de informação, é importante que a instituição nunca pense que uma documentação anula
a importância de outra, pois ambas podem conter seus próprios discursos e possibilitar
diversas leituras.
1978
Outra publicação essencial é de Didonet Thomaz “Dizer e mostrar” = “designar
e significar”: intuições penetrantes em AE – área balões”. Esse artigo se dedica a
refletir e detalhar a performance “AE – área balões” realizada pela artista em 1983 nas
torres do próprio MARGS de onde soltou cerca de 5.000 balões (Figura 4). Durante o
texto, a autora explora como lhe surgiram algumas das ideias para o desenvolvimento de
sua performance, seus referenciais teóricos utilizados para pensar a obra, a reação do
público, bem como fotografias do acervo pessoal da artista sobre a ação. Expondo até
mesmo que as cores, tempo e local foram pensadas propositalmente e possuem
significados simbólicos:
Na verdade, tão essencial quanto esses escritos, o depoimento oral de artistas por
meio de entrevistas é visto hoje por muitos conservadores e restauradores de arte
contemporânea como um elemento basal para a preservação de obras de arte efêmeras.
De acordo com Rita Macedo e Cristina Oliveira (2009), o artista é uma fonte primordial
de informação para a atividade de documentação de obras de arte contemporânea, na
medida em que é detentor central dos dados para a reapresentação de seus trabalhos.
Nesse tocante, Alessandra Barbuto (2015), historiadora da arte e conservadora
do National Museum of 21 Century Arts, aconselha que museus conduzam ainda uma
pré-entrevista com os artistas, especialmente no momento da aquisição da obra, por ser
comum que muitos ao longo dos anos mudem de opinião. Devendo as questões
presentes nesse diálogo ter como fim compreender e estabelecer qual é a perspectiva do
1979
artista sobre um conjunto de questões básicas que têm a ver com a natureza do trabalho,
seu status e sua articulação conceituais e materiais.
De acordo com Macedo (2007), essa aproximação entre artista e museu poderá
permitir a reexibição dessas obras no futuro sem que haja prejuízo semântico ou sem
que seja criado um novo discurso poético não pretendido e não autorizado pelo artista.
Nessa perspectiva, instituições museológicas internacionais como, por exemplo, Museu
de Arte Moderna de Nova York (MOMA), atualmente têm se valido desse diálogo com
o artista para aplicar novas formas de documentação museológica que possibilitem a
reexibição dessas performances enquanto ação. Criando, para isso até mesmo um
departamento especializado dentro da instituição.
De fato, desde o início dos anos 2000, muitos museus têm deixado de colecionar
somente os objetos das performances e passaram a adquirir também o projeto e os
direitos de reapresentação da obra. Se tornando comum nos últimos anos, o fato de
outros performers realizarem a obra, ou seja, a reexibição da performance enquanto
ação, no lugar do artista.
No Brasil, as performances da artista Laura Lima presentes no acervo do Museu
de Arte Moderna de São Paulo (MAM SP) são hoje referência quando se trata de
reperformances em museus. A obra “Quadris de homem=carne/mulher=carne” foi
primeira obra adquirida e reconhecida em um acervo museológico como “performance”
no Brasil. Posteriormente a artista também cedeu ao MAMSP ainda outras duas obras
“Bala de homem = carne / mulher = carne” (1997) e “Palhaço com buzina reta - monte
de irônicos” (2007). Sendo válido ressaltar que, apesar de toda a efemeridade presente
nessa categoria artística, essas obras continuam sendo reexibidas constantemente pela
instituição. Ainda no ano passado, essas obras fizeram parte da exposição “Útero do
Mundo” sob a curadoria de Veronica Stigger.
1980
Entretanto, no caso do MARGS, a grande maioria das performances presentes no
acervo não possui documentação suficiente para reexposição, como é o caso da obra de
Hamilton Galvão “Sem título” (1985). Uma vez que sua reexibição não poderá ocultar
que a obra se originou de uma performance, ao mesmo tempo em que não há muitos
documentos e pesquisas sobre a mesma, o que cria desafios ao setor expositivo. Já em
“Tacet” (2008-2012), caso o museu atualmente queira reexpor a obra, somente terá os
desenhos e o áudio produzido durante a performance, e não a sua ação. No caso, das
obras de Didonet, poucas de suas performances foram relatadas de modo a se
compreender seu desenvolvimento, sendo urgente, a realização de entrevista com a
artista. Na verdade, essa problemática já chegou a ser apontada pelo ex-diretor:
1981
modos operantes não podem ser mais os mesmos. Para Sehn, é importante que o museu
estabeleça critérios diferenciados na própria decisão de aquisição de acervos de arte
contemporânea. Uma vez que diferente das obras tradicionais, em que se “gira em torno
do juízo de valor, considerando-se também a necessidade de suprir lacunas de
determinada coleção” (2012, p. 143-144), obras de arte efêmeras devem ser
questionadas sobre a sua real possibilidade de preservação e exposição.
1982
Referências bibliográficas
FIDELIS, Gaudêncio. A história da arte contada através de ausências: uma visão crítica
do colecionismo da obra de artistas mulheres no acervo do MARGS. In: O museu
sensível (Catálogo). Museu de Arte do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2014a.
SEHN, Magali Melleu. A preservação da arte contemporânea. In: Revista Poiésis, Rio
de Janeiro, n 20, p.137-148, 2012.
1983
. Teses de Artistas: relevância das informações como ferramenta para
preservação da arte contemporânea, Revista Museologia e Interdisciplinaridade,
vol.5, n.10, 2016.
1984
“A REVOLUÇÃO SOMOS NÓS”: JOSEPH BEUYS EM PERSPECTIVA
MUSEOLÓGICA
Luciana Moniz* 6
*Universidade Federal da Bahia
Abstract: This article contains some aspects of the master's research, developed in the Post-
Graduation Program in Museology of the Federal University of Bahia, which uses concepts
from the German artist and theorist Joseph Beuys as theoretical support, to be articulated with
museological theories, to reflect critically on the nature and dynamics of contemporary
museology and its methodological possibilities, especially in the context of museum practice.
The text highlights Beuys' tripartite metaphor – which involves past / tradition, present /
communication, future / creation – as a motto for thinking about the models and processes of
institutionalization of memory and cultural heritage in contemporary times, and their relations
with extra-cognitive apprehensions and other subjective perceptions, potentially capable of
extending museological concepts.
Key-words: Joseph Beuys; contemporary museology; art.
6
Museóloga, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Museologia da UFBA,
lumoniz.ufba@gmail.com
1985
Neste instante, sentimos que o artista está no meio de um modelo
desatualizado de arte e cultura, e que propõe (…) a urgência de abrir
os sentidos para uma nova ordem de percepções. Ele propõe – eu diria
de maneira beuysniana – ativismo em situações de crise, em vez de
acomodar-se a modelos caducos. (JUANPERE, 2003, p. 372.
Tradução nossa.)
Joseph Beuys foi um artista e teórico alemão que viveu entre 1921 e 1986.
Nasceu após a Primeira Guerra, cresceu durante a República de Weimar8 e tinha 18
anos de idade quando eclodiu a Segunda Guerra Mundial. Viveu, deste modo, o auge da
instabilidade política e social do seu país e presenciou a ascensão de Adolf Hitler. No
campo acadêmico e artístico Beuys estudou Escultura Monumental na Academia de
Artes de Düsseldorf, onde foi professor de Escultura entre 1963 e 1971; e na década de
1960 atuou no grupo Fluxus, cujas práticas tinham foco na comunicação com o público.
7
Segundo Luciana Ballestrin, "giro decolonial" é um termo cunhado por Nelson Maldonado-
Torres em 2005, que significa o movimento de resistência teórico, prático, político e epistemológico, à
lógica da modernidade/colonialidade.
8
República de Weimar é um termo historiográfico que designa um período de transição na
história alemã (1919-1933) em que o sistema de governo passou de monarquia a democracia, e que foi de
intensa instabilidade política e social, que culminou com a ascensão do Partido Nacional-socialista.
1986
Além disso, sua vida foi marcada pela atividade política, como, por exemplo, a
participação na criação do partido ambientalista alemão. Esta trajetória e este ambiente
político marcaram de maneira contundente sua obra.
9
Joseph Beuys. Disponível em: http://www.videobrasil.org.br/beuys/. Acesso em: ago. 2017.
1987
humanos, e Beuys aplicou essa metáfora tripartida à planta arquetípica da Teoria da
Plasticidade e à floresta como arquétipo da Escultura Social.
“Indizível”10
A matéria plástica utilizada pelo artista para moldar a Escultura Social era o
pensamento: “Para mim, a formação do pensamento já é escultura” (BEUYS, 1990, P.
91). Segundo Tisdall (1989), para Beuys o ato de pensar coletivamente produziria
fluxos de energia entre os indivíduos, “insights filosóficos” (LAUF, 1992), por isso ele
promovia discussões sobre temas como arte e política, em processos criativos e ações
artísticas.
10
Alusão ao verso de Manoel de Barros (apud BRITTO 2017, p. 199).
11
Estratégias de comunicação do regime nazista durante a 2ª Guerra, e das indústrias / mercado
pós-guerra.
1988
cartazes e cartões-postais teria o objetivo de difundir essas ideias e potencializar a
comunicação entre indivíduos e grupos.
1989
competitividade (...). Reconhecer, explorar e desenvolver esse potencial é a tarefa da
escola”.12
Zeitgeist13
Talvez esse seu desejo por um espaço institucionalizado transdisciplinar de
produção do sensível tenha vindo também de uma das principais influências de Beuys: o
filósofo e educador Rudolf Steiner, que viveu e atuou na transição entre os séculos XIX
e XX.
1990
crianças com base nos seus conceitos de Antroposofia, doutrina sistematizada por ele,
através da qual buscava reaproximar a fé e a ciência, separadas desde a Escolástica15.
Steiner entendia que a vivência deveria preceder a teoria, conduzindo o aluno a um
pensamento livre e autônomo, através de uma formação que envolvesse
desenvolvimento global: intelectual, artístico e social. Considerava que a arte estava
relacionada com dois aspectos fundamentais do ser humano: a sensibilidade e a
criatividade, esta última baseada na fantasia, na capacidade de desenvolver ideias
inéditas e concretizá-las no mundo real.
14
Pedagogia Waldorf é uma abordagem que procura integrar de maneira holística o
desenvolvimento físico, espiritual, intelectual e artístico dos alunos, para desenvolver indivíduos livres,
integrados socialmente, competentes e moralmente responsáveis. Existem mais de mil Escolas Waldorf
no mundo, além de quase dois mil jardins de infância, em mais de 64 países.
15
Em filosofia teológica, a Escolástica é o pensamento cristão da Idade Média, baseado na
tentativa de conciliação entre o ideal da racionalidade (platonismo e aristotelismo) e a “verdade revelada”
da fé cristã.
16
A Staatliches-Bauhaus foi uma escola de design, artes e arquitetura de vanguarda fundada na
Alemanha em 1919, tida como uma das maiores e mais importantes expressões do Modernismo no design
e na arquitetura.
1991
intelectuais na Europa. Alguns entre eles, por consequência, migraram para os Estados
Unidos e passaram a ensinar e/ou colaborar com a universidade, como o físico Albert
Einstein e Walter Gropius, arquiteto alemão, fundador da Bauhaus. O currículo de artes
da Black Mountain incorporava uma abordagem interdisciplinar, combinando belas
artes, artesanato, arquitetura, teatro e música. Além de matérias tradicionais, incluía
trabalho agrícola, projetos de construção e culinária. A escola também se baseava no
princípio de que a experiência pessoal, a sensibilização artística e as relações comunais
eram o caminho para a formação de indivíduos plenos.
Transvaloração17
Por muito tempo, experimentos educacionais e instituições educativas têm sido o
potencial espaço de resistência do espírito humano, contrapondo-se a estruturas
políticas, sociais e econômicas degradantes. Mas na contemporaneidade, no “mundo
líquido”18, quando as estruturas do pensamento moderno tem sido descontruídas, e as
instituições modernas estão em franca transição, talvez o museu, instituição que é
essencialmente território de memória e de criação, possa ser o laboratório, ou o ateliê,
onde se dará o ponto de inflexão de uma sociedade nova, a instituição híbrida e
desmaterializada, como pretendia ser a Universidade Livre Internacional de Joseph
Beuys.
17
Conceito criado pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche, que trata do processo, do modo como
os valores mudam ao longo do tempo.
18
Conceito de Zygmunt Bauman (1925-2017), cuja base de pensamento é a oposição entre o
mundo sólido e o mundo líquido, pós-moderno, que ignora barreiras, assume formas, ocupa espaços e
dilui certezas.
1992
o habitus é como uma segunda natureza, conhecimento sem consciência,
intencionalidade sem intenção; o campo, o espaço relacional entre indivíduos e grupos;
e o capital seria a força de cada agente em suas posições no campo. Assim a estrutura
simbólica do museu, lugar de pesquisa e comunicação, pode variar conforme a atuação
dos agentes no campo, e envolver processos compartilhados.
19
Entrevista realizada a 19/04/2013 na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade
Nova, Lisboa, publicada no site No Mundo dos Museus: Entrevistas, livros, conferências. Disponível em:
http://nomundodosmuseus.hypotheses.org/tag/paulo-freire. Acesso ago. 2017.
1993
mundo, através da troca de conhecimentos entre interlocutores, como também propunha
Beuys.
20
Partido ambientalista alemão.
1994
Como a maioria das pessoas pensam em termos materialistas, não
podem entender a minha obra. Esta é a razão pela qual não considero
necessário apresentar objetos, para fazer com que as pessoas entendam
que o homem não é um mero ser racional. (BEUYS apud KLÜSER,
2006).
Polinização cruzada
Segundo a metáfora tripartida da Teoria da Plasticidade de Beuys, toda
construção, toda escultura, é formada pelos três elementos da alquimia: sal, mercúrio e
enxofre. O conceito relaciona:
21
Referência a uma frase “para ser universal, pinta tua aldeia”, atribuída ao escritor russo Leon
Tolstói, e que resume a ideia central da obra “O que é a arte?” onde o escritor defende ideia de que a arte
universal é aquela acessível a todas as pessoas do mundo (2016, p. 226).
1995
SAL RAÍZES Rigidez, forma, estabilidade, resistência,
conhecimento e preservação do passado, tradição.
Nas plantas, a floração multiplica a vida. Através do pólen, a planta doa sua
vida, para multiplicá-la de maneira híbrida. O princípio vivo da planta é compartilhada
em polinização cruzada e não em autopolinização; por isso cria novas formas.
O sal
A dicotômica contraposição reproduzida pelo senso comum, entre as figuras
institucionalizadas do museólogo e do artista (agora também o curador, agente do
campo da arte), vê o primeiro, a priori, como guardião do passado, tradicional, datado,
caduco, ultrapassado, incapaz de criar; e o segundo, o futuro, profeta, etéreo, criativo,
inovador. Às vezes é justamente o contrário. Pensar rigidez, resistência, preservação do
passado como elementos chave do fazer museológico, pode resultar em um dilema que
deixa o museólogo em uma posição desconfortável.
22
Segundo Carolina Ruoso (UFC), em falas e entrevistas, a curadoria colaborativa é um método
curatorial, inserido na perspectiva de uma museologia crítica, que se caracteriza pela construção de um
projeto comum, em que todos os agentes contribuem, inclusive os frequentadores com experiência
prolongada com o museu; e se diferencia de outras metodologias, como a curadoria coletiva (vários
curadores), ou compartilhada (envolvendo a equipe).
1996
A lenda grega de Orfeu e Eurídice23 permite refletir um pouco sobre este dilema,
relacionado ao passado, à preservação do patrimônio. Orfeu, filho da musa Calíope24 e
de Apolo, vai até o reino dos mortos para resgatar sua amada Eurídice, que lhe é
devolvida, com a condição de que ele não olhasse para trás. Na dúvida, para certificar-
se que quem o seguia era Eurídice, Orfeu olha para trás e a transforma em estátua de sal.
Este “olhar para trás” de Orfeu, que transforma Eurídice em sal25, pode ser entendido
como a necessidade de racionalizar, de tentar ter controle daquilo que se vê quando se
olha para trás: o passado, as memórias, as referências patrimoniais.
23
Metáfora utilizada por autores da museologia, como por exemplo Marília Xavier Cury (2005, p.
58).
24
Primeira das nove musas da mitologia grega, filhas de Zeus e Mnemosine (personificação da
memória). Musa da ciência e da eloquência. Mais velha e sábia das musas, considerada por isso a rainha
das musas.
25
Raízes, rigidez, forma, estabilidade, resistência, preservação do passado, tradição, na metáfora
de Beuys.
1997
entendimento sobre os modelos metodológicos da museologia, modelos de museu, na
contemporaneidade.
Referências bibliográficas
BEUYS, Joseph. Joseph Beuys in America: energy plan for the western man.
Compiladed by Carin Kuoni. New York: Four Wals Eight Windows, 1990.
BOURDIEU, P.; DARBEL, A. O amor pela arte: os museus de arte na Europa e seu
público. Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira. São Paulo: Zouk, 2003.
BRITTO, Clovis Carvalho. “Serve para o desuso pessoal de cada um”: as louças de
Vovó, os cacos para um vitral e o indizível em museus e na Museologia. Revista
Eletrônica Ventilando Acervos, Florianópolis, v. especial, n. 1, p. 179-201, 2017.
1998
CERÁVOLO, Suely Moraes. Delineamentos para uma teoria da Museologia. In:
Anais do
Museu Paulista; história e cultura material. São Paulo: USP, v. 12, jan.-dez., 2004.
KLÜSER, Bernard. Joseph Beuys: ensayos y entrevistas. Ed. Síntesis. Madrid, 2006.
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LAUF, Cornelia. Joseph Beuys: the pedagogue as persona. Tese de Doutorado. Nova
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UNESCO. Mesa Redonda de Santiago do Chile. Museum, vol. XXV (3), 1973.
2000
ARTE PARÁ: VISUALIDADES LOCAIS E INTERCULTURAIS EM CIRCUITOS
AMAZÔNICOS
John Fletcher*
Agenor Sarraf*
Ernani Chaves*
*Universidade Federal do Pará
Resumo: O seguinte trabalho retoma uma discussão Crítica e Decolonial, dentro de uma leitura
antropológica interpretativista, das primeiras edições do Salão Arte Pará (1982-1997), evento
competitivo de artes visuais que ocorre na cidade de Belém, Estado do Pará. Desse modo, foi
analisada a base conceitual inicial do evento e como se deu seu desenvolvimento e maturação,
para refletir acerca do poder discursivo de circuitos expositivos de teor intercultural para uma
região Amazônica. Buscamos conversar, principalmente, com escritos de Clifford Geertz e de
Walter Mignolo, atravessados por outros focos de pensamentos advindos da orientação Pós-
Colonial/ Decolonial, com ênfase em autores como, Inge Valencia, Adolfo Albán, Nestor Garcia
Canclini, João de Jesus Paes Loureiro e Osmar Pinheiro Jr. Com o intuito de expor um olhar
mais crítico sobre nosso presente assimétrico, esta pesquisa, parte de análises de uma pesquisa
de doutorado, visa a conferir novas dimensões à dinâmica geral da experiência humana.
Palavras-chave: Artes Visuais; Arte Pará; Amazônia.
Abstract: The following paper resumes a critical and Decolonial discussion, inside an
interpretative and visual anthropological reading, of the first editions of the Salon Art Pará
(1982-1997), a competitive event of visual arts that takes place in Belém, State of Pará. In
this sense, we analyzed the initial conceptual basis of the event and how the development and
the maturation of its conceptual basis occurred, so we may reflect upon the discursive power of
intercultural exposition circuits for an Amazon region. We sought to talk directly with the
writings of Clifford Geertz and Walter Mignolo, transversed by other thoughts arising from the
Postcolonial/ Decolonial guidance, with emphasis on authors such as Walter Mignolo, Inge
Valencia, Adolfo Albán, Nestor Garcia Canclini, João de Jesus Paes Loureiro and Osmar
Pinheiro Jr. In order to expose a more critical look at our asymmetrical present, this research,
part of the analysis of a doctoral research, aims to provide new dimensions to the general
dynamics of human experience.
Key-words: Visual Arts; Art Pará; Amazon.
2001
Introdução
26
Estas reinscrições podem ocorrer, principalmente, sobre operações limitantes, algumas vezes retóricas,
sem um refinamento para se interpretar elementos relacionados a realidades irregulares e contextos
específicos (BHABHA, 2003).
27
Polifonia aqui usada nos termos do conceito estabelecido por Mikhail Bakhtin (2003), que reconhece o
diálogo e a criação artística como o encontro de diversas vozes, realidades e temporalidades,
interceptando-se em um ir e vir sem categorização. Nesse sentido, a polifonia pode continuamente ser
construída como estratégia discursiva de visibilidades, ao convergir diferentes vozes sociais para pôr em
destaque nuances variáveis ligadas à autoria e ao exercício de não falar sobre, mas falar com o outro (ver
também BAKHTIN e VOLOSHINOV, 1997).
28
Destaque para o debate em torno da apropriação sofrida pelas artes, a partir do século XVIII, quando o
pensamento imperial as transformaram em uma limitação conceitual e ocidental do que seriam
(BARRIENDOS, 2008; HALL, 2009; MIGNOLO, 2010; ALBÁN, 2011).
2002
De modo aproximável e posterior, Alfred Gell (1998) também percorreu um
roteiro análogo ao pensar as expressões artísticas sob uma abordagem antropológica.
Observado o fato do autor considerar estas supracitadas expressões por vozes sociais
alcunhadas sob princípios comunicacionais próprios, não seria muito dificultoso buscar
para a antropologia inspiração em outras disciplinas, principalmente as de cunho visual,
como a estética, semiótica, história da arte, dentre outras, de maneira a compreender
uma estrutura de pensamento próxima à da religiosidade, visto as artes apresentarem
quase um caráter substitutivo ante um possível vulto laico-ocidental nos limites do
contemporâneo29.
Um terceiro antropólogo, a título desta breve introdução, George E. Marcus
(2004), viu nesta convergência de campos uma aliança potencial para a Antropologia.
De acordo com o pesquisador, este diálogo não somente criticaria esta última por um
suposto não-esteticismo alocado em seu interior, como a chamaria para uma
reestruturação de antigas representações tradicionais e funções documentais, aspecto
este já estranhado e discutido pelo próprio ethnographic turn do Seminário de Santa
Fé30.
Frente a esses debates e interfaces inicialmente elencados, por conseguinte, é
significativo observar em que medida a Antropologia e, por extensão, as Ciências
Sociais, tem buscado novos limites e novas facetas interpretativas ao dialogar com o
campo das artes visuais. Estas facetas, acreditamos, podem propiciar rastros denotativos
e conotativos para se compreender a complexidade de relações sociais irregulares e
29
O contemporâneo, para além da problemática envolvendo sua terminologia, pode ser tomado por um
campo/ contexto de disputas pelo reconhecimento sociocultural, pelas autoafirmações étnicas e
indenitárias e pelo questionamento da concepção das histórias e dos dispositivos os quais construíram
narrativas excludentes ou silenciadas (ALBÁN, 2011).
30
O Seminário de Santa Fé ocorreu na Escola de Investigação Americana de Santa Fé, Nuevo México,
em 1984, e teve seu tema central em torno da redação do texto antropológico, da autoridade etnográfica e
da relação entre pesquisador e seus pesquisados (ROCHA e ECKERT, 1998).
2003
particulares, alocadas em um contemporâneo intercultural e sequioso de alternativas
outras de investigação, análise e compreensão para a pesquisa científica.
Em face aos argumentos expostos, portanto, o presente trabalho visa a reunir
uma faceta interpretativa e historiográfica do Salão Arte Pará, com um recorte a partir
da sua primeira edição, em 1982, até sua edição de 1997, período este de grande teor
Decolonial, com ênfase nas suas narrativas curatoriais. Em protocolos metodológicos, o
estudo foi configurado em uma frente diacrônica, a qual envolveu pesquisa documental
nos relacionados catálogos do Salão, tangenciada por análises de textos de artistas,
críticos, curadores, mais edições contextuais do jornal O Liberal sobre as atividades do
Arte Pará31. Este grupo de documentos, também tomado como parte de uma experiência
memorial e conceitual inter-relacionada discursivamente (PORTELLI, 1997;
THOMPSON, 1997; LE GOFF, 2010; BENJAMIN, 2011), ajudou a conferir um tiro de
largada para os entendimentos e representatividades capazes de fornecer um ângulo de
visão para uma interpretação antropológica elaborada a partir de uma alcunhada
periferia global.
Aliada a esta frente documental, entrevistas fechadas e abertas32 foram
realizadas com interlocutores previamente escolhidos, cujos papéis contribuíram para
estabelecer outros pontos de encontro entre as suas participações e o agora da pesquisa –
estes interlocutores, donos de posições simbólicas de destaque para este percurso do
Arte Pará, trataram de iluminar aspectos não encontrados nas narrativas oficiais sobre as
edições do evento. De certa forma, esta relação, otimizada para ser uma cooperação com
o outro (CRAPANZANO, 1986; CRAPANZANO, 1991; CLIFFORD, 1998), buscou se
31
Estes documentos puderam ser encontrados no site da Fundação Rômulo Maiorana e nos arquivos de
jornais do Centro Cultural Tancredo Neves, em Belém, PA. Destaque para a generosidade da curadora
Vânia Leal que nos concedeu inúmeros dos catálogos que também não tínhamos fisicamente.
32
Inicialmente, foi tomado por base um questionário com 07 perguntas para curadores, organizadores e
artistas, questionário este elaborado em parceria com o Prof. Dr. Orlando Maneschy. Frente à dificuldade
de receber as respostas de muitos destes atores envolvidos nas diversas edições do evento, passamos para
um método de entrevistas abertas, presenciais e gravadas, com suas posteriores transcrições, para dar mais
desenvoltura à dimensão intersubjetiva travada para a pesquisa sobre o Arte Pará.
2004
basear nos chamados efeitos da verificação coerente33 e do esclarecimento das
interpretações (GEERTZ, 2011), tipo de operação em que o tempo é interiorizado e
vivificado, de maneira a quebrar com as limitações do sujeito cognoscente, não mais
estático e intocável por uma realidade movente e não agenciável, porém capaz de
inaugurar uma investida em defesa direta da contextualização do conhecimento e da
consciência artístico-cultural (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2003; RAMIREZ, 2004;
MIGNOLO, 2010; LUCERO, 2011).
Para um aprofundamento destes aspectos metodológicos, certas exemplificações
com algumas das obras de arte que fizeram parte deste percurso do Arte Pará foram
estabelecidas, e que, por serem vozes sociais (GELL, 1998), rascunharam indicativos de
desenhos curatoriais pensados pelo Salão para construir um roteiro mais ou menos
coeso de relações culturais entre local e global. Estas exemplificações com obras
participantes, igualmente alicerçadas por diálogos entre a antropologia e o estudo da
imagem, conferiram um andamento em que as mesmas foram tidas como informantes
capazes de iluminar descrições inteligíveis para falar sobre a regularidade de tempos e
espaços, sem dirimir particularidades.
O Salão Arte Pará, mesmo ante à pequena quantidade de pesquisas acadêmicas,
é um marcador para as artes visuais feitas e apresentadas em Belém, Pará, com espaço
na mídia e referencial para artistas e curadores, não somente locais. E observado o fato
da própria pesquisa antropológica ter ainda discretas relações com práticas artísticas
institucionais e recentes, este evento aqui é tomado, em muitos aspectos de maneira
inaugural, como um campo fecundo para investigações e análises em torno de suas
narrativas conceituais e curatoriais, tecidas plurivocalmente, por meio de agenciamentos
transculturais, em uma metrópole e, por extensão, em circuitos da região amazônica.
33
Como observou James Clifford (1998: 58), uma pesquisa coerente “pressupõe um modo controlador de
autoridade”.
2005
Primeiros Anos
O Arte Pará, evento de artes visuais realizado em Belém, Pará, com moldes
competitivos, e que possui dimensões interculturais desde suas primeiras realizações,
teve sua primeira ocorrência no ano de 1982 e logo foi acordado para ter a abertura de
sua mostra expositiva na quinta-feira que antecede o Círio de Nazaré34. Delineado a
partir de uma reunião de artistas, a qual foi idealizada e capitaneada pelo jornalista e
Presidente do Grupo Liberal35, Rômulo Maiorana, este projeto de mostra visual
acompanhou o desenvolvimento, influenciou e deu visibilidade a parte de uma cena
artística local. Mesmo com seu início sem um eixo diretor estabelecido, manteve uma
recorrência anual até os dias de hoje, a qual lhe outorgou o título de um dos maiores e
mais longevos Salões privados de artes visuais do país (MACHADO, 2011).
Com 36 edições ininterruptas desde 1982 (com base em suas edições até o
presente momento, em 2017), este Salão é um marcador não somente para o cenário
artístico e conceitual belenense, mas para o próprio panorama nacional das artes visuais.
Organizado pela Fundação Rômulo Maiorana, com a primeira diretoria executiva a
cargo de Sônia Renda, sua mostra é alvo de um número muito significativo de
participantes não somente paraenses, sejam eles curadores, artistas selecionados,
convidados e membros de Júri36. Por conseguinte, destaca-se ao ser micro e contínuo
território simbólico de encontros e contatos; potencial célula de ação para se
34
O Círio de Nazaré ocorre em todo segundo domingo de outubro. Embora as primeiras edições do
evento não tenham ocorrido na quinta-feira que antecede o Círio, em pouco tempo esta data ficaria
tradicionalmente estabelecida para o vernissage do Salão.
35
O Grupo Liberal é um conglomerado de mídia brasileiro, fundado em 1966, e representa o maior grupo
em comunicação do Estado do Pará, sendo também um dos maiores do Brasil e grande afiliado à Rede
Globo através da Rede Liberal. Após a morte de seu fundador, Rômulo Maiorana, em 1986, passou a ser
chamado de Fundação Rômulo Maiorana. As Organizações Rômulo Maiorana são grandes rivais do
Grupo RBA de Comunicação, pertencente ao político Jáder Barbalho (PMDB), e possuem, no governo do
Estado, ligado ao partido do PSDB, o seu maior cliente (ver mais em PINTO, 2013).
36
O Júri de Seleção e, posteriormente, o Júri de Premiação buscavam congregar nomes de artistas, curadores, críticos
de arte e acadêmicos. Em cada edição do evento, novos jurados trabalhariam, mediante critérios objetivos e
subjetivos, para dar um caráter dinâmico, mais autêntico e negociável aos artistas selecionados e premiados do Arte
Pará.
2006
estabelecerem traduções culturais e visuais, sejam em operações endógenas, quanto
exógenas a seu organismo dialógico – aspecto este próximo ao que a antropóloga Elsje
Lagrou (2003) apontou, quando observou em circuitos de arte, um fluxo de visibilização
de culturas, de suas “autenticidades” e vitalidades.
As primeiras edições do evento foram chamadas de Salão Liberal e, mesmo
frente à ausência de um desenho curatorial, congregou uma série de nomes para compor
o inaugural Júri de Seleção, caso dos artistas Ruy Meira e Osmar Pinheiro Jr., e do
ensaísta e representante da cultura amazônica, neste contexto de recolocação cultural,
João de Jesus Paes Loureiro (O LIBERAL, 1982; MACHADO, 2011).
Segundo Alexandre Sequeira37, professor do curso de Graduação em Artes
Visuais/UFPA, artista e curador de diversos momentos do Salão:
37
A entrevista com Alexandre Sequeira foi realizada no dia 22/10/2014.
2007
produção fotográfica – o Salão de Artes Plásticas acontecia no prédio
de O Liberal [2º andar do antigo prédio do Hotel Baré, na Rua Gaspar
Viana], e o de Fotografia na Galeria da Residência Maiorana, situada
na Praça Batista Campos. Essa divisão deixou de existir a partir de
2004” (Alexandre Sequeira, Comunicação Pessoal).
2008
paralelamente ao 7º Salão Nacional de Artes Plásticas. O evento, organizado pelo
Instituto Nacional de Artes Plásticas (INAP), sob direção de Paulo Herkenhoff
(HERKENHOFF, 1985; MOKARZEL e MANESCHY, 2010), rendeu o livro As Artes
Visuais na Amazônia: Reflexões sobre uma Visualidade Regional, espécie de
compêndio com a transcrição das conferências apresentadas, caso das de Vicente
Cecim, Berta Ribeiro, Osmar Pinheiro Jr., Carlos Zílio, João de Jesus Paes Loureiro,
dentre outros, tornando-se um importante documento histórico para se acessar alguns
dos ideais que circundavam os ensejos de indivíduos ligados às artes visuais na região e,
por extensão, às do Salão Arte Pará nos seus primeiros anos.
Para melhor detalhar este contexto de reflexão conceitual e empírica, João de
Jesus Paes Loureiro38 destacou:
38
A entrevista com João de Jesus Paes Loureiro foi realizada no dia 12/05/2016.
2009
que são ligados a vários ângulos da questão aqui da Amazônia nessa
área. E eu escrevi aquele texto especificamente para ler na minha
conferência lá nesse seminário para depois ser incluído no livro. O
segundo seminário que seria no Pará já não ocorreu, por que houve
uma crise na Funarte e, pra te dizer um detalhe, a Funarte nem tinha
recursos mais, eu não sei por que motivo ou projeto para imprimir o
livro. E só fizeram toda a editoração. [...] Esse me parece que era o
mesmo espírito, do ponto de vista de Salão de arte, era o mesmo
espírito do Arte Pará, através do idealizador, que foi o Rômulo, e da
diretora que tinha toda e total condução do Salão, que era a Sônia
Renda. E a Sônia Renda é que me convidou para a participação dessa
primeira etapa. E, no meu entender, a grande expectativa e o grande
interesse do Rômulo àquela altura, e operacionalizado pela Sônia e
pelas pessoas que colaboraram, era dar condições e visibilidade para
as artes visuais aqui no Pará e na Amazônia, mas sobretudo no Pará. E
que através dessa exposição, os artistas pudessem ter uma repercussão
em nível nacional. Então, era esse o espírito do Arte Pará que, com o
passar do tempo e com a contratação posterior de curadores já de
experiência nacional, seja do Rio ou seja de São Paulo, o Salão foi se
transformando num Salão também de integração entre expositores
locais com abertura para expositores de fora do Estado também.
Suponho que a ideia era poder favorecer mais essa interligação entre a
arte visual local e a visualidade que se estava praticando no Brasil e
em outros lugares. Em suma, um desejo de dar maior propulsão” (João
de Jesus Paes Loureiro, Comunicação Pessoal).
Osmar Pinheiro Jr. (1985), a partir das informações concedidas por Paes
Loureiro, é um dos nomes que ganha, portanto, atenção por ser, neste supracitado livro,
As Artes Visuais na Amazônia, um relator de alguns dos elementos para se entender esta
tônica da visualidade em questão. Para ele, pelo fato da região apresentar a
“sobrevivência” de formas de cultura específicas, caso não semelhante ao que ocorreu
em outras regiões do país39, era destacável a produção artística deste período em foco,
pois, em seu conjunto, apresentava ruídos destas “sobrevivências” culturais, além de
uma mudança de ótica em relação a um quadro anterior de “reprodução tardia de ecos
39
Para Pinheiro Junior (1985), o processo de colonização no Nordeste, por exemplo, massacrou, em
grande medida, a cultura local, gerando um novo substrato cultural.
2010
distantes da arte moderna, bem como um desvencilhamento de parte de um isolamento
tornado em condição de prática por uma pequena elite, sequiosa de diferenciação
cultural” (PINHEIRO JUNIOR, 1985: 94-95).
Ainda segundo o texto do professor e artista visual, o qual foi selecionado e
premiado em variadas edições do Arte Pará, tal visualidade emergente e relevante para
ser valorizada dialogava com as “práticas de uma tecnologia de base em processo de
extinção, especialmente da cultura pesqueira, que envolveria a construção de barcos,
canoas, remos, instrumentos” (PINHEIRO JUNIOR, 1985: 96). Para o mesmo, neste
enredo, as organizações cromáticas de fachadas e de embarcações oriundas de uma
tradição mestiça, donas de admiráveis rigor e inteligência, eram também assimiladas
artisticamente e aliadas às geometrias de papel de seda dos papagaios e das rabiolas, a
ponto de revelar condições particulares de uma outra ordem, distinta da corriqueira do
mercado institucionalizado da arte. Nesta ordem diversa e contra hegemônica, portanto,
o suporte da obra poderia ser a casa, o barco, o boteco, o papagaio, o brinquedo, o
instrumento de trabalho, sem contar que os artistas seriam todos os sujeitos amazônicos,
para não falar dos próprios mestres, já reconhecidos pela população por seus nomes.
Os processos técnicos, celebrados por esta mudança paradigmática, pontuemos,
no território das artes visuais paraenses, envolveram “a construção de objetos, as
resinas, pigmentos, entrecascas de árvores que são papéis artesanais, variedades de
madeiras e cipós” (PINHEIRO JUNIOR, 1985: 97) e passaram a buscar uma
consciência crítica de um universo de referências entrecruzadas entre o utilitário e o
lúdico, o oficial e o não-oficial, e entre temporalidades diversas. Tal consciência, por
apontar uma continuidade dialógica com as tradições da cor oriundas das práticas da
arte plumária indígena; por também ser História Sensível, Cosmovisão, Ensinamento e
Ancestralidade, firmava-se, nesse caso, como estratégia silenciosa de resistência cultural
– ou o que o mencionado artista cunhou por estética do prazer.
2011
O breve texto de apresentação do primeiro catálogo do Arte Pará, escrito por
João de Jesus Paes Loureiro (1982), pode ser pensado como convergente com muitos
dos apontamentos de Pinheiro Júnior, uma vez que, igualmente, destacava a
importância, naquele recorte temporal, para a proposição de um espaço de liberdade
artística ante sua condição de reinscrição essencial e ancestral – e aqui podemos pensar
em uma ocasião de virada logística para a dimensão das artes visuais locais não somente
pela autocrítica quanto às abordagens empregadas no seu passado, como por sua
concretização sintomática em um presente mais dinâmico e cheio de transformações. De
certa forma, devemos acrescentar, esta erupção de um novo contexto de produção e
reflexão para as artes visuais ainda pôde ser lida pela ocorrência da Primeira Mostra
Paraense de Fotografia (FotoPará40), organizada pela emergente associação Fotoativa,
capitaneada por Miguel Chikaoka41, na extinta Galeria Ângelus42.
2012
que estava sendo feito na região, para ter uma visibilidade local e,
possivelmente, extra local. Então são duas situações que se
completam, por que o fato de ter, o que foi demonstrado pelo Arte
Pará, uma produção artística de alto nível entre nós fortalece aquela
visão crítica que nós tínhamos do isolamento que se vivia e, ao mesmo
tempo, de uma forma de marginalidade diante de uma compreensão
nacional de valor da questão das artes plásticas. Diria que, no caso do
Arte Pará, você tem a valorização da realização, no modo como ela
estava sendo realizada. E a Visualidade Amazônica é uma forma
crítica de ver a dependência cultural e a busca de fortalecer novas
visões, novos valores, que pudessem competir também com esse
contexto nacional, no mesmo plano de igualdade e com a mesma
atualidade estética e compreensão artística” (João de Jesus Paes
Loureiro, Comunicação Pessoal).
Paes Loureiro (1985), mesmo lido por seu texto para o livro As Artes Visuais na
Amazônia, demonstrou em que medida pensamentos-ações eram difusores, neste
momento, de um novo entendimento politizado para as artes visuais locais (reiteremos
que o mesmo era, então, o Secretário Municipal de Educação e Cultura de Belém).
Muito interessado, neste caso, em uma problematização sobre o binarismo existente e
separatista entre alta cultura e baixa cultura – e a atribuição corrente de alta cultura para
o que vinha de fora e baixa cultura para a produção local –, o ensaísta sintonizou-se com
alguns dos discursos decolonizadores em voga, os quais deveriam “servir a sujeitos
concretos, em especial às classes populares, aos homens da religião, aos seres dos rios e
dos campos, categorias de subalternos e marginalizados do processo controlado de
nosso desenvolvimento” (PAES LOUREIRO, 1985: 114) para possibilitar outro ritmo
de atenção e importância para a visualidade local (ver também PAES LOUREIRO,
2008).
Esta mesma tônica, a qual “questionava um conhecimento operacionalizado por
uma linguagem que calava nossa fala; uma linguagem que recusava a nossa diferença;
que plantava as sementes do silêncio em nossa voz” (Paes Loureiro, 1985: 117),
demarcou um posicionamento contra hegemônico e vivo, pois também tratou de
2013
declarar, como estratégia, a apropriação da herança do colonizador (capturar o
capturante) para romper com o círculo da cultura como prisão – algo que Bhabha
(2003), alguns anos mais tarde, marcaria como a reinscrição política do signo, de acordo
com novos lugares de enunciação (ver também SCHMIDT, 2011).
A antropóloga Inge Valencia (2011), quando de seu estudo sobre as genealogias
de um pensamento decolonial na América Latina, é passível aqui de ser tomada como
paralelo historiográfico para se aprofundar à noção de em que medida o local também
estava contaminado por uma lógica descentralizadora e crítica mais ampla e
interconectada. Nesse sentido, a mesma delineou três gerações importantes para se
estabelecer nexos temporais, os quais mostram como o solo teórico latino-americano foi
favorável, cheio de peculiaridades e, por que não, tantas vezes antecipatório aos debates
que vieram a ocorrer em outras geografias quanto aos efeitos de se valorizar epistemes
críticas e não hegemônicas – e aqui podemos aludir sobre como os intelectuais ligados à
Visualidade Amazônica possuíam muitas características simétricas e dialógicas, se
postos em paralelo com toda essa trajetória de pensamento insurgente, visto a Amazônia
ser um território continuamente tratado por olhares colonizadores nacionais e
estrangeiros (MIGNOLO, 2003).
A primeira geração, nesse caso, emergente no final do século XIX, manifestou
uma forte inquietação e debate sobre as culturas populares, as populações indígenas e
campesinas, sendo estas últimas ligadas a problemas de exclusão e discriminação por
conflitos alicerçados em pertencimento de terras. Ainda que, muitas dessas ações,
paralelas aos processos de independência de Estados da América Latina, não tenham
ganhado maior força – devido não à descolonização, mas por causa da substituição desta
descolonização por formas de colonialismo interno (ver também MIGNOLO, 2003) –,
tais chaves de entendimento já anunciavam a necessidade de emancipações Decoloniais.
A segunda geração, de acordo com a autora, marcada pelo começo da agroindústria e
pela proletarização rural em começos do século XX, trouxe discussões
2014
ligadas à emancipação de mulheres trabalhadoras e rurais, à convivência na diversidade
racial e o respeito à autodeterminação de sujeitos quanto aos seus territórios, além de
uma necessidade de redistribuição rural de acordo com objetivos de desenvolvimento
acordados mutuamente entre classes. A terceira geração, por fim, já relacionada ao
contexto interpretativo de construção da nação, dirigiu muitos dos seus debates para
compreender as causas do período de violência na Colômbia, as lutas por terras, além de
eixos relacionados à inclusão e à coexistência igualitária de etnias diversas. De certa
forma, esta geração foi responsável por toda uma rede de ideias retroalimentares para se
problematizar, mais à frente, condições geo-históricas na América Latina (VALENCIA,
2011).
As gerações mencionadas por Inge Valencia são importantes para se revelar
entendimentos constituintes e fundadores para os questionamentos sobre a colonialidade
e a libertação. Elas trouxeram não somente ativistas, como escritores, antropólogos,
filósofos, políticos, teóricos da literatura, entre outros intelectuais, de maneira a irrigar
um solo politizado, difuso e intenso para entendimentos perspectívicos de dilemas
empíricos e epistemológicos na América Latina, distinto em muitos aspectos do
pensamento Pós-Colonial desde suas genealogias43 histórico-epistemológicas
(VALENCIA, 2011; PINTO, 2012; BALLESTRIN, 2013) – e os debates dos primeiros
anos do Arte Pará também estiveram inscritos em uma ordem de pensamento-ação
alinhada contextualmente para se empoderar a Amazônia frente aos discursos
exploratórios e excludentes. Estes debates/ práticas, não obstante, também se fizeram
43
Para um maior entendimento dessa dissenção entre o pensamento Pós-Colonial e o pensamento
Decolonial, Walter Mignolo (2003), portanto, observou que o Pensamento Pós-Colonial possuía, como
fronteira cronológica da modernidade, o século XVIII do Iluminismo. Todavia, em virtude das
problemáticas de Mignolo serem ancoradas nas heranças coloniais dos impérios espanhol e português, o
autor, com a pretensão de não excluir a lógica colonialista da América Latina, optou pelo século XVI
como horizonte de um sistema mundial Colonial/ Moderno e, portanto, de primeira ordem, se comparado
aos efeitos posteriores do Iluminismo e da Revolução Industrial (ver também CASTRO-GÓMEZ e
MENDIETA, 1998).
2015
amplificados, já que foram, de alguma forma, aquecidos pela redemocratização nacional
do país – vivíamos, então, os últimos anos da ditadura militar – e por um novo juízo,
para além de suas inevitáveis e necessárias críticas, de conexão e tentativa de buscar
equidade, de maneira a apoiar e divulgar nomes locais como os de P. P. Condurú, Ruy
Meira (Figura 01), Dina Oliveira, Alexandre Sequeira, Acácio Sobral, Emmanuel
Nassar, Marinaldo Santos, Rosângela Britto, Luiz Braga, dentre tantos outros
(MEDEIROS, 2012).
A obra de Ruy Meira pode aqui ser tomada como um primeiro e possível
destaque a revelar, visualmente, alguns dos princípios estéticos encontrados sob a rede
de negociações e reflexões destes anos iniciais do Arte Pará. Também evidenciada pelo
fato de aparecer, no primeiro catálogo, com melhor qualidade de imagem, o de 1986 –
e, infelizmente, as obras das anteriores edições vinham em qualidade nula, muito
inferior ou em preto e branco para reprodução, além de pertencerem, atualmente, a
coleções particulares, muitas vezes, inacessíveis –, sua premiação igualmente marcou
2016
outro triunfo na trajetória do artista, iniciada nos anos 1940, com contornos relevantes
ainda para a década de 1980.
O artista paraense Acácio Sobral (2002) bem destacou que Meira primou por um
caminho pela arte abstrata a partir dos anos 1960. Já um pintor amadurecido naquele
momento do Arte Pará, com uma prolífica carreira marcada pela convivência com
renomados pintores que visitaram Belém – caso de Raul Deveza, Kaminagai e Armando
Balloni –, a escultura Forma, sugeriu um diálogo com esta sua própria percepção e
atuação pictórica abstrata, de maneira a sugerir um posicionamento alocado em meio ao
reconhecimento iconográfico da região e uma surpresa da forma como representação
liberta.
Passível de ser lida como uma alusão aos rios barrentos da região, com seus
igarapés e olhos d’água emoldurados por vegetação alquebrada, raízes respiratórias e
planícies de inundação, ou mesmo um semitotem ou urna indígena banhada por
cachoeiras de açaí, fruta típica da região amazônica, a escultura de Meira foi também
tributária de um diálogo com os grandes mestres do artesanato local em cerâmica, quer
sejam tapajônicas ou marajoaras. E observado o fato de sua premiação marcar uma
abertura de interesse do Arte Pará para outros tipos de arte mais vernaculares e,
portanto, de menor interesse institucionalizável, sua articulação conceitual reiterada
pelo evento, assinou, para aquele contexto, certo tipo de destituição de um comum
sistema dinâmico e sofisticado de exclusão e obediência44, capaz de converter a
diversidade cromática, étnico-racial e os modos de vida de sociedades não hegemônicas
em uma narrativa reducionista e falsa de uma universalidade da arte (ALBÁN, 2011).
44
Diversos autores latino-americanos têm pensado em uma chamada cromática do poder, para
problematizar os antigos limites impostos, de forma exógena, às interpretações e fruições simbólico-
visuais. Nesse contexto, apontam, inclusive, como mesmo as chamadas vanguardas artísticas foram
tentativas de implementação, em outros territórios cosmológicos, de um papel subsidiário de tendências,
discursos e re-produções dos eixos europeus e norte-americanos. Esta espécie de colonialidade do ver, por
consequência, foi mantida indissociável até nas recentes tensões geopolíticas e nas dívidas econômico-
culturais da região eurolatinoamericana, isto é, nas consequências birregionais do capitalismo cultural
transatlântico no contexto da economia global (BARRIENDOS, 2008; ALBÁN, 2011).
2017
É oportuno mencionar, ademais, que naquele mesmo ano de 1986, exatamente
em abril, poucos meses antes da abertura da 5º edição do Arte Pará, o jornalista Rômulo
Maiorana faleceu, o que, definitivamente, representou que mudanças, de maneira
inevitável, estavam por vir. Ainda que com uma tônica em certo sentido política e
alinhada à ação cultural da Funarte para este contexto e para o momento de abertura do
país a um novo eixo democratizador, estas mudanças se fizeram observáveis na edição
de 1987, as quais trariam sua reconfiguração, desenvolvimento e maturação. Tais
alterações foram: a troca da diretoria executiva da Fundação Rômulo Maiorana, agora a
cargo de Roberta Maiorana, diretora que trouxe Daniela Sequeira como Assessora
Técnica (sai de cena, portanto, Sônia Renda); a convocatória da Fundação Nacional de
Arte (Funarte), para que o Arte Pará se tornasse polo de recepção para o X Salão
Nacional de Artes Plásticas; e um Júri de Seleção e Premiação formado por Luiz Paulo
Baravelli, Glauco Pinto de Moraes e Paulo Herkehhoff – a chegada deste último
oficializaria o início de uma trajetória relevante aos futuros desenhos curatoriais do
Salão, ainda que, neste momento, não houvesse tal definição, com um consequente
aumento do seu capital simbólico45. Herkenhoff, há algum tempo, já se tratava de um
nome de destaque no cenário das artes visuais brasileiras e ocupava, neste contexto, a
posição de direção no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (ARTE PARÁ, 1987).
45
O capital simbólico, de acordo com Bourdieu (2006), reflete um poder invisível, comumente chamado
de prestígio ou honra e que permite identificar os agentes no espaço social. Ligado a saberes e
conhecimentos reconhecidos por protocolos institucionalizados e hegemônicos, sua ocorrência é também
ligada ao pensamento marxista e revela todo recurso ou poder que se manifesta em uma atividade social.
2018
podemos pensar em como cada novo curador, em momentos posteriores, buscou
estabelecer novos limites para o alcance do Salão; trouxe, em seus diversos contextos,
nomes de outros centros de produção artística na forma de Júris, de selecionados ou de
convidados; articulou uma certa continuidade coerente com muitos dos ensejos
principiados por Paulo Herkenhoff; enriqueceu o evento e a cena cultural local com
novos panoramas e dilemas conceituais, muitos deles emblemáticos para se estabelecer
pontos de conexão e transformação de uma trajetória também pertencente à História da
Arte Paraense.
De acordo com Marisa Mokarzel46, curadora participante e membro de Júris do
Salão em diversas ocasiões,
46
A entrevista com Marisa Mokarzel foi realizada no dia 08/12/2014.
2019
último como assistente curatorial – firmou a continuidade de um projeto de Salão
competitivo, então repensado para adquirir uma ressonância de interesse maior para
outros artistas do país.
A primeira fase de Paulo Herkenhoff à frente da curadoria geral do Arte Pará se
prolongou até o ano de 1997, antes de assumir, entre os anos de 1997 e 1999, a
curadoria geral da XXIV Bienal de São Paulo, quando orquestrou um panorama das
artes visuais mundiais pelo prisma da Antropofagia. Seguido a este período, assumiu o
cargo de curador-adjunto no Departamento de Pintura e Escultura do Museu de Arte
Moderna de Nova York (MoMA), entre os anos de 1999 a 2002. Somente em 2005,
voltaria para a curadoria geral do Arte Pará (OLIVA, 1999). Claudio De La Rocque, por
outro lado, antigo curador assistente ao lado de Herkenhoff, assumiu a função de
curador geral do Arte Pará pelo breve período entre os anos de 1998 e 1999, ao passo
que Jussara Derenji permaneceu na curadoria geral para a edição do ano de 2000, sendo
substituída pela curadoria geral de Marcus Lontra47 entre os anos de 2001 a 2004.
A décima edição do Salão, em 1991, pode aqui ser tomada como um
significativo exemplo para se compreender a tônica desta segunda fase do Arte Pará.
Com Herkenhoff na curadoria principal e De La Rocque na assistência curatorial, esta
edição rascunhou o que seria um Salão interessado por refletir acerca de uma
contribuição paraense à formação da arte em Salões e exposições no Brasil –
contribuição esta exemplificada por três reconhecidos artistas nacionais convidados, os
quais compuseram a estreia de uma Sala Especial: Cildo Meireles (RJ), Flávio Shiró
(RJ) e Oswaldo Goeldi (RJ).
No caso desses três nomes, todos ligados, de certa forma, a memórias de
infâncias suas vivenciadas em terras amazônicas – seja com Cildo Meireles e as lutas de
47
Marcus Lontra ficou conhecido por ser um dos curadores, ao lado de Paulo Leal e de Sandra Magger,
da exposição “Como vai você, geração 80?”, realizada na Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Esta
exposição, ocorrida em 1984, período este final da ditadura militar, teve um caráter expressivo para as
artes visuais realizadas nos eixos Sul-Sudeste (LUZ, 2010).
2020
seu pai em Belém; Flávio Shiró e sua infância como migrante para a colônia japonesa
de Tomé Açú, no interior do Pará; e Oswaldo Goeldi, com sua formação em Belém
quando seu pai, Emílio Goeldi, veio para a cidade organizar, sob novas bases
científicas, o Museu Paraense Emílio Goeldi –, suas energias artísticas bem puderam
agregar rastros de um localismo paraense, rastros estes componentes para a construção
de poéticas as quais viriam a fortalecer uma variabilidade visual brasileira. Caso
semelhante ao de Mário de Andrade, de acordo com o texto curatorial, quando de sua
estadia de profundo envolvimento com Belém, estes três nomes puderam alimentar, em
termos factuais concretos, um fornecimento criativo para tantos outros artistas locais e
não locais, integrantes de um presente cada vez mais veloz e interculturalizado
(HERKENHOFF, 1991).
Uma premissa, de algum modo, difusionista, podemos adicionar, foi a faceta
conceitual desenhada nas entrelinhas desta narrativa curatorial. Muito análoga a
algumas concepções de um pensamento Culturalista boasiano, mais especificamente,
àquelas relacionadas a uma postura mais relativista para o caso da interpretação de
sociedades, com “o estudo de mudanças culturais aferidas através da análise de
processos de transformações, a serem acompanhadas muitas vezes passo a passo pela
via da construção histórica e pela observação comparada” (CARDOSO DE OLIVEIRA,
1988: 63), esta prerrogativa de uma contribuição paraense à formação da arte em Salões
e exposições no Brasil naquele ano de 1991 também destacou uma horizontalização do
fazer artístico nacional, ausente de hierarquias entre regiões, de forma que não seria
coerente aproximar e generalizar aspectos que fossem semelhantes somente em sua
aparência, uma vez que, em sua própria metafísica, poderiam se encontrar
heterogeneidades (DA MATTA, 1983; CARDOSO DE OLIVEIRA, 1988; CARDOSO
DE OLIVEIRA, 2003).
Ainda seguindo este contexto do pensamento boasiano, podemos enfatizar, sob
um ponto de vista metonímico para a primeira fase do Salão, uma possível paridade
2021
conceitual com o desenho curatorial do Arte Pará de 1991, por este último não ceder a
um “evolucionismo reducionista ou um difusionismo que negava a criatividade à maior
parte das culturas” (LAGROU, 2003: 107), o que desembocaria não somente em
representações de valores estéticos distintos a denotar uma comprovação fundamental
da cognição de populações diversas (uma unidade fundamental), mas também em
resultados atrelados a histórias e psicologias culturais irrepetíveis e complexas (uma
unidade cultural relativista) (BOAS, 1955). Longe de configurar elementos artísticos
objetificados e destituídos de contexto, os empreendimentos curatoriais deste Arte Pará
debruçaram-se em uma “busca de regularidades e generalidades em fenômenos
portadores de unidade objetiva e uma tentativa de compreender a singularidade de
fenômenos portadores de unidade apenas subjetiva” (ALMEIDA, 1998: 08) – elementos
estes que ratificam seu teor cultural e prenhe de debates a partir de distintas posições
valorativas.
Algumas análises levantadas por Almeida (1998), quando de suas pesquisas
sobre o Culturalismo, fizeram-se convergentes aos desenhos curatoriais de Paulo
Herkenhoff entre os anos de 1990 a 1997. Esta autora declarou que o Culturalismo
transpôs um antigo limite de separação valorativa existente entre as artes de diferentes
agrupamentos sociais e sobrepujou uma espécie de semântica superficial, implícita ao
ponto de vista hierarquizante. Não obstante, ela viu o quanto Boas fez do julgamento da
forma técnica um julgamento estético, de maneira a garantir uma autonomia da arte
enquanto sistema significativo, sistema constituído por princípios não somente visíveis,
mas que seriam agenciados e poderiam equivaler, inclusive, a uma dimensão além das
fronteiras concretas do objeto. Esta dimensão, além de fronteiras concretas,
reconheceria temporalidades variadas, estados de sentimento e de percepção não muito
diferentes dos discursos em torno das poéticas particulares praticadas nas artes visuais
da atualidade.
2022
De certa forma, o discorrer boasiano sobre as artes trouxe, para este momento,
alternativas aplicáveis de se ler experiências, práticas e significados (elementos os quais
atuam como símbolos) no e para além do estado emocional da vida cotidiana (BOAS,
1955). Aplicável, em grande medida, em torno do entendimento dos diversos contextos
de enunciação artísticos aliados pelo eixo curatorial do Arte Pará – o que também inclui
seus diversos processos e objetos –, a relevância destes debates puderam, ainda, trazer
nuances para um espaço discursivo de representações e de fenômenos que ultrapassaram
a dimensão visual e estabeleceram diálogos com significados antropológicos
(FELDMAN BIANCO e MOREIRA LEITE, 1998; PELLEGRINO, 2007).
Para exemplificar algumas dessas análises em questão, podemos elencar a obra
Ponta D’areia (Figura 02), do fotógrafo paraense Luiz Braga, ganhadora do Grande
Prêmio da edição de 1988, conferido pelo Júri de Seleção e Premiação então formado
pelo filósofo Benedito Nunes; pelo próprio curador Paulo Herkenhoff; pelo diretor do
Museu de Arte Brasileira da Fundação Álvares Penteado, Walter Domingues Álvares
Penteado; pelo jornalista e crítico de arte Alberto Beutenmüller; e pelo poeta paraense
Max Martins (ARTE PARÁ, 1988).
Figura 02. Ponta D’areia, de Luiz Braga. Fonte: arquivo do artista Luiz Braga.
2023
A fotografia de Luiz Braga, por destacar modos de vida e sujeitos amazônicos,
com destaque para a presença negra na região, com as consequentes apropriações
desiguais dos seus bens econômicos e culturais, bem evidenciou uma estética híbrida de
acordo com o que Garcia Caclini (1997) chamou de os princípios de compreensão,
reprodução e transformação das condições gerais e próprias de trabalho e de vida.
Paradigmática quanto à produção deste período do artista, Ponta D’areia empregou, à
luz de cores artificiais e frias a banhar um expressivo negro em primeiro plano, em
contraste com um pôr-do-sol pitoresco e romântico ao fundo, discursos visuais feitos
dentro de um determinado contexto, para si e suas alteridades.
De certa forma, podemos acrescentar que este projeto artístico de Braga, ainda
que passível de ser deslocado para outros locais de apresentação (exposições em outras
cidades, galerias, museus), revelou uma dimensão conotativa e capaz de iluminar um
conjunto de propostas visuais ensejadas pelo Salão, com contornos viventes e inter-
relacionados de grupos com relações específicas. Com um repertório declaradamente
polifônico em sua tessitura imagética, sua concretização pela fruição no Arte Pará tratou
de conjugar práticas visuais, acepções e valores sentidos ativamente, em uma espécie de
estrutura de sentimento vivenciada por atores de um campo com jogos de linguagens e
conflitos internos (WILLIAMS, 1973).
Estas estruturas de sentimentos, as quais envolvem, além dos valores e
significados vividos e sentidos, relações existentes entre estes significados e as crenças
de acento variável – e, aqui, inclui-se “a dimensão privada até interações mais
matizadas existentes entre as crenças selecionadas e interpretadas e as experiências
efetuadas e justificadas” (WILLIAMS, 1973: 155) –, igualmente demonstraram
elementos característicos e especificamente afetivos da consciência e das relações
etnicamente sociais. Não se trataria, portanto, de uma noção de sentimento contra
pensamento, mas de pensamento tal como seria sentido e de sentimento tal como seria
pensado (WILLIAMS, 1973).
2024
Possível representante de alguns dos ensejos com enredos Culturalistas, a
inserção de Ponta D’areia em meio ao recorte conceitual desta fase segunda do Arte
Pará bem se estabeleceu ativamente para a rearticulação de um novo mapa das artes no
Brasil, ainda mais, reiteremos outra vez, quando tomado este contexto sem as
facilitações de uma profunda acessibilidade e integração provida pela Internet e por uma
maior proximidade geoculturais. De certo modo, certo senso Culturalista, pensamos,
viabilizou um crescente contato com outros artistas e acadêmicos da arte, constituintes
para uma experiência local capaz de buscar novas referências para suas ações de
construção e de desconstrução criativa.
Algumas Considerações
Com o Arte Pará de 1986, encerrou-se uma primeira fase do evento, na qual as
diferentes Amazônias, com suas amplas formações assimétricas e “distanciadas” dos
maiores centros de produção artístico brasileiros, a exemplo de seus modos de ser e
viver, diferenciados e relacionais, ganharam um tratamento simbolicamente novo e
empoderador. Este tratamento, marcadamente político, mostrou-se deveras alinhado à
política cultural da Funarte para este contexto e ao momento de abertura do país a um
novo eixo democratizador. Por conseguinte, como bem pôde ser detectado no decurso
dos primeiros anos deste trabalho, o início do evento supracitado, em diálogo com a
cena artística de Belém nos anos 1980, alinhou grande sintonia, através de alguns de
seus pares, com pensamentos críticos e decolonizadores, sendo todos eles contextuais a
uma rede de simultaneidades conceituais praticadas no vasto território da América
Latina. Estes posicionamentos liminares, bem acreditamos, foram fundamentais para
reposicionar sujeitos mais críticos e atuantes ante uma contínua exploração predatista,
tanto em termos concretos quanto simbólicos, de maneira a (re)instaurar uma dignidade
ainda alquebrada e insegura na prática artística local.
2025
Um dado que não pode ser negligenciado sobre estes anos do Salão, por
conseguinte, é o referente à participação de artistas em suas edições de 1982 a 1986. Em
seus dois primeiros anos, o salão Arte Pará teve 59 e 74 artistas selecionados,
respectivamente, todos paraenses. A partir de 1984, houve a inserção de nomes de fora
do Estado – neste caso específico, ocorreu a escolha de três artistas do Nordeste, com
Bahia, Ceará e Pernambuco, e um artista do Sudeste, de São Paulo –, o que totalizou 20
selecionados, com um acentuamento ainda maior nos anos de 1985 e de 1986, com 44 e
74 artistas selecionados, mas não mais somente paraenses. Por meio desses dados, é
inevitável não pensar em como esse grande circuito de abertura à participação no Salão
ajudou para se aquecer um interesse por exposições de arte, digamos, contemporânea,
bem como, em face à crescente participação de outros Estados, proporcionou o
estabelecimento de uma rede dialógica, em vias de fato, com produções visuais de
outras localidades, ainda mais se pensarmos que não havia nenhuma facilitação pela
Internet neste período (GARCIA CANCLINI, 2009). O percentual massivo de 88% de
artistas nortistas, em sua quase totalidade paraense, foi capaz de denotar uma
inquietação para com uma movimentação local, desejosa de novos espaços e
oportunidades expositivas, pois, independente destas edições ainda permanecerem
centradas na pintura, no desenho, na escultura e na fotografia, eram tomadas como
expansões de um circuito deveras restrito.
Com o término do ano de 1997, encerrou-se um período extremamente
produtivo em que o Arte Pará saiu de uma condição ainda experimental, sem desenhos
curatoriais estabelecidos, para o desenvolvimento de uma própria narrativa, com difusão
e reconhecimento no restante do país. Frente a esse agrupamento de anos, o qual
remonta a 1987, quando Paulo Herkenhoff passou a trabalhar para a Fundação Rômulo
Maiorana, é detectável, portanto, um largo trabalho para que as bases conceituais do
Salão finalmente fossem estabelecidas, com uma sucessão de edições mais ou menos
coerentes e inter-relacionadas.
2026
Por mais que, em diversos casos, o Arte Pará se mostrasse discreto no que se
relaciona a maiores considerações políticas declaradas – e as nuances discursivas
capazes de abraçar públicos fruidores e conflitos de ordem social em vias de fato
poderiam ter sido mais efetivas, em um sentido crítico –, é inegável o grande volume de
encontros visuais e conceituais empreendidos por Herkenhoff e De La Rocque, em face
a um projeto de inclusão visual mais ostensivo à Amazônia, o que por si só já apresenta
uma faceta política alocada nos termos da execução.
A Região Norte, mais uma vez, apresentou uma concentração maior de
participantes, 76%, sensivelmente menor em comparação aos 88% de participação nos
primeiros anos do Salão, ao passo que outras regiões se mostraram mais reincidentes,
diferentes dos anos anteriores. Para muitos, estes dados podem não ser significativos.
Todavia, para o foco da pesquisa, denotam um aumento de popularidade no restante do
país, muito provavelmente ocasionado pela maturação do Salão, com a oficialização de
narrativas curatoriais, mais a presença de artistas e de membros para os Júris de Seleção
e de Premiação nacionalmente reconhecidos. Esta operação curatorial de integração do
Arte Pará com outros centros de produção e reflexão artísticas bem ilustram como a
recepção de um evento desta ordem no Pará passou a ultrapassar suas fronteiras e
temáticas locais.
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2031
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2032
CLARA-CLARA E PROMENADE: ARTE CONTEMPORÂNEA DE GRANDE
ESCALA E SUA RELAÇÃO COM O ESPAÇO URBANO
Abstract: The following paper discusses the installation of large-scale contemporary artworks
in public spaces. To this end, it analyses two artworks by the American artist Richard Serra,
exhibited simultaneously in Paris in 2008, with the intent of reflecting on two central issues.
The first one refers to the dynamics surrounding the artist's place, which changes with each
exhibition or re-presentation. The second is the establishment of an institutional space outside
the physical boundaries of the museum, in the urban environment, which highlights the artist's
position towards the importance of the artwork's location and its relation with the spectator.
48
Museóloga e mestranda no programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade
de Brasília (PPGCInf/UnB). E-mail para contato: fwerneck@gmail.com.
2033
A arte pública é a prática caracterizada, de modo geral, pela instalação de obras
de arte contemporânea – normalmente de grande porte – fora do ambiente convencional
do museu, em espaços abertos e de ampla circulação. Nas últimas décadas, tal prática
fora marcada pela variedade de projetos estéticos. Todavia, com frequência, essas obras
são instalações site-specific, que trabalham com a especificidade do local. Desse modo,
o processo de criação envolve o ambiente designado, e o contexto no qual a obra será
fruída passa a ser determinante, envolvendo necessariamente as categorias de espaço e
de tempo.
2034
A Monumenta é uma exposição de arte contemporânea que ocorre a cada dois
anos no Grand Palais, em Paris49. Iniciativa do Ministério de Cultura e Comunicação
francês, o evento apresenta somente um artista a cada edição, escolhido para conceber
uma obra especialmente para a ocasião e para o espaço da nave do Grand Palais, cuja
superfície é de 13500m² e a altura é de, no máximo, 35m.
49
Até o ano de 2014 a mostra ocorria anualmente. Entretanto, após este ano passou a ser realizada
somente em anos pares.
50
Apesar de em dicionários francês/português a palavra promenade ser usualmente traduzida apenas
como “passeio”, dicionários francês/francês apresentam que a palavra é derivada do verbo “promener”,
que imprime a ideia de prazer no ato de se locomover. Tal definição implica, ainda, que esse passeio seja
realizado a pé. Com isso, promenade também não significaria apenas andar, mas andar desfrutando da
caminhada.
2035
Fig. 1
Richard Serra, Promenade, 2008. Disponível em:
<http://www.nytimes.com/2008/05/07/arts/design/07serr.html>.
No mesmo período em que ocorria a Monumenta de 2008, um antigo trabalho de
Serra, denominado Clara-Clara, o qual pertence à prefeitura de Paris e permanecia na
reserva técnica desde 1993, foi reinstalado no Jardin des Tuileries, local em que havia
estado em 1983. A obra, apesar de ter sido concebida mais de duas décadas antes, segue
as mesmas características do estilo atual do artista (FOSTER, 2008).
Constituída por duas placas de aço curvadas, cada uma com 36m de
comprimento e 3,40m de altura, lembrando dois parênteses colocados não
paralelamente, mas em posições opostas, Clara-Clara foi uma obra concebida em 1983
para ocupar o Forum do Centre Pompidou, no térreo do edifício, em uma retrospectiva
do artista realizada pela instituição no mesmo ano. Entretanto, devido à incapacidade do
chão do local em resistir ao seu peso, foi sugerido que a obra fosse instalada no Jardin
des Tuileries, em frente à Place de la Concorde, onde permaneceu por alguns meses.
Após ser adquirida pela prefeitura de Paris, Clara-Clara ficou instalada por algum
tempo no Parc de Choisy, no 13º arrondissement, mas devido ao fato de obra estar
arranhada, coberta de grafites e servir como abrigo para moradores de rua, acabou por
ser removida do local e colocada na reserva técnica 51.
51
Ver ERLANGER, Steve. Serra’s Monumental Vision, Vertical Edition. In: The New York Times, 7 de
maio de 2008, p. E1. Disponível em:
<http://www.nytimes.com/2008/05/07/arts/design/07serr.html?pagewanted=all&_r=1&> Acesso em 25
ago. 2017.
2036
Fig. 2
Clara-Clara no Parc de Choisy. Disponível em:
<http://www.cronologiadourbanismo.ufba.br/apresentacao.php?idVerbete=1392#prettyPhoto>.
2037
Fig 3
Clara-Clara no Jardin des Tuileries em 1983.
Disponível em: <https://www.artsy.net/artwork/richard-serra-clara-clara-1983-signed>.
52
Cf. Nota 2 desse artigo.
2038
museus são incluídas na abrangente denominação de “Arte Pública”. Entretanto, apesar
dessa nomenclatura, muitas dessas obras continuam por operar dentro de um sistema
institucional, visto que muitas vezes são integradas a acervos e respondem a uma
determinada lógica expositiva.
2039
1980, a obra Tilted Arc foi instalada permanentemente na Federal Plaza, em Nova
Iorque, no verão de 1981.
Fig. 4
Richard Serra, Tilted Arc, 1981, Federal Plaza, Nova Iorque.
Disponível em: <http://www.tate.org.uk/context-comment/articles/gallery-lost-art-richard-serra>.
2040
Trabalhos site-specific lidam com componentes ambientais de
determinados lugares. Escala, tamanho, localização dos trabalhos site-
specific são determinados pela topografia do lugar, seja esse urbano
ou paisagístico ou clausura arquitetônica. Os trabalhos tornam-se parte
do lugar e reestruturam sua organização tanto conceitual quanto
perceptualmente. (Serra apud KWON, 2008, p. 168)
A respeito dessas novas possibilidades de ocupação do espaço e sua dimensão
criadora de significados, Douglas Crimp (2005, p. 137) coloca: “Tal reorientação da
experiência de percepção da arte fez, de fato, do observador o tema da obra”. De mesmo
modo, Miwon Kwon aponta para a presença física do espectador como determinante
para as obras site-specific, mas confere à localidade e à temporalidade igual participação
na obra: “O objeto de arte ou evento nesse contexto era para ser experimentado
singularmente no aqui-e-agora, pela presença corporal de cada espectador em
imediatidade sensorial da extensão espacial e duração temporal” (KWON, 2008, p.
167).
Clara-Clara não foi concebida para o Jardin des Tuileries, mas foi concebida
para um espaço aberto ao público, de forma que é possível supor que parte daquilo que
Serra pretendia suscitar com a obra permaneceu mesmo com a mudança da localidade.
O contexto no qual seria fruída, no entanto, tornou-se outro, o que modificou a relação
entre obra, local, observador e experiência tão cara às site-specifics.
2041
estruturais no espaço aberto dirige a atenção do espectador para a topografia do terreno
no momento em que se caminha por ele” (Serra apud BOIS, 2000, p. 60, tradução
nossa).
2042
Com isso, no caso da reinstalação de Clara-Clara em ocasião da Monumenta de
2008, foi produzido um quarto sentido à obra – aquele que mais nos interessa nessa
reflexão -, sentido esse determinado não somente pelo distanciamento temporal do
período de produção da obra e de sua primeira exposição, mas pelo observador que
realizava a promenade entre o Jardin de Tuileries e o Grand Palais e seu interior, como
sugerido por Hal Foster (2008).
Fig.5
Clara-Clara no Jardin des Tuileries em 2008.
Disponível em: <https://www.flickr.com/photos/tybo/2581286776/in/photostream/>.
2043
A especificidade do local para Promenade
Enquanto Clara-Clara foi reinstalada, inserindo-se em outro contexto e
integrando um novo discurso, Promenade foi pensada durante dois anos para ocupar o
espaço do Grand Palais, caracterizando-se, dessa forma, como uma site-specific. As
enormes placas verticais de aço bruto, cuja altura, a largura e a inclinação foram
definidas em relação ao Grand Palais, dialogam com a arquitetura do lugar, composta
de uma estrutura de aço trabalhado e vidro.
Fig. 6
Richard Serra, Promenade, 2008. Obra concebida para a Monumenta 2008, no Grand Palais, em Paris.
Disponível em: <http://www.grandpalais.fr/en/node/3750>.
Construído para a Feira Mundial de 1900, o Grand Palais possui uma fachada
de estilos variados, típica do ecletismo entre-séculos. Apesar disso, o seu interior é
limpo, composto apenas pela estrutura em aço verde e um teto de vidro, que permite
2044
uma iluminação natural ao espaço interno. Segundo Hal Foster (2008), ao longo das
margens do Rio Sena, a horizontalidade do Grand Palais é complementar à
verticalidade da Torre Eiffel. Dessa forma, com as cinco placas de Promenade, Serra se
utiliza desse contraste entre o horizontal e o vertical, mas dessa vez no interior do
edifício. Foster ressalta ainda para inevitabilidade de, ao observar a obra de Serra no
espaço do Grand Palais, fazer-se uma associação com itens estruturais, tal como
colunas, e isso promoveria um encontro entre dois monumentos da modernidade
industrial: a obra de Serra, concebida em aço, e o edifício (FOSTER, 2008).
Para Foster, a maneira como o artista dispôs as cinco placas, algumas no eixo
central da nave do Grand Palais, outras levemente deslocadas para os lados, conferiu
ritmo à obra: “Esses desvios criam, de maneira simples, uma grande tensão; o
espectador sente-se levado pela obra como que por um percurso de slalom” (FOSTER,
2008, tradução nossa). Foster nota ainda que essa disposição permite tanto que as placas
sejam observadas como conjunto – com o espectador no eixo da nave – quanto
separadamente – com o espectador nas laterais do espaço. Com isso, assim como em
Clara-Clara, Serra trabalha com a questão do eixo (FOSTER, 2008).
2045
participar de uma dinâmica institucional. Mesmo que Clara-Clara tenha sido
reapresentada concomitantemente à Promenade, de uma maneira que poderia levar a
sua compreensão como um conjunto, se tomados separadamente esses dois trabalhos de
Serra respondem a lógicas distintas de apreciação. Para o artista, ainda que de maneira
não-intencional, a obra exibida dentro da lógica museal se torna imediatamente
autorreferente, visto que a autoria não é deixada fora de questão nesses espaços.
Já a obra disposta em espaço público evidencia outros aspectos que não o artista
em si: “Uma vez que a obra entra no domínio público, o problema da autorreferência
não existe. O que importa é como a obra altera um determinado local, não a persona do
autor” (Serra apud CRIMP, 2005, p. 147). Essa afirmação de Serra evidencia uma
distinção crucial entre as duas obras: a maneira como serão interpretadas em relação ao
ambiente onde estão instaladas. Promenade só será vista caso haja a intenção de se
frequentar o Grand Palais em razão da mostra. Já Clara-Clara, ao estar instalada no
espaço urbano, atinge todo o tipo de público, mesmo aquele que não esperava se deparar
com a obra.
2046
Segundo Foster (2000, p. 178-179, tradução nossa), um dos aspectos da obra de
Serra é o aspecto fenomenológico, segundo o qual a obra está necessariamente
relacionada ao espectador: “(...) a escultura existe em uma relação primária com o
corpo, não como sua representação, mas sua ativação em todos os seus sentidos, todas
as suas apercepções de peso e medida, tamanho e escala". Outro princípio importante
para Serra que Foster destaca é o situacional, segundo o qual a escultura está
relacionada à particularidade de um local (FOSTER, 2000, p. 179).
53
Algumas fontes apontam que a obra foi concebida especialmente para o Jardin des Tuileries.
Entretanto, em texto escrito para o catálogo da mostra realizada no Centre Georges Pompidou e
publicado em 1985, Yve-Alain Bois (2000), afirma que a obra foi realizada para ocupar o Forum do
edifício.
54
Ver ERLANGER, Steve. Serra’s Monumental Vision, Vertical Edition. In: The New York Times, 7 de
maio de 2008, p. E1. Disponível em:
<http://www.nytimes.com/2008/05/07/arts/design/07serr.html?pagewanted=all&_r=1&> Acesso em 25
ago. 2017.
55
Ver o site do Museu do Louvre, que detém a administração do Jardin de Tuileries. Disponível em:
<http://www.louvre.fr/expositions/richard-serra-clara-clara-1983>. Acesso em: 27 de ago. 2017.
2047
Conforme aponta Jean-Marc Poinsot (2012), a exposição é um espaço de
enunciação que não se esgota nela mesma, podendo ser considerada como aquilo que
Jacques Rancière (2009) define como “partilha do sensível”56.
56
Rancière (2009, p. 15) denomina como partilha do sensível “o sistema de evidências sensíveis que
revela, ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele definem lugares e partes
respectivas”.
2048
dessas obras por parte do público está relacionada a dois aspectos. O primeiro deles
refere-se às circunstâncias de financiamento da obra, e o segundo, à alteração
permanente de um local ou monumento histórico. No caso de Clara-Clara, apenas o
segundo nos interessa aqui. Apresentada no contexto da Monumenta, fica claro para o
público o caráter temporário da instalação, facilitando a sua aceitação, assim como
Heinich (1997) demonstra ao contrapor o empacotamento da Pont-Neuf por Christo e
Jeanne-Claude, em 1985, às colunas de Daniel Buren no pátio do Palais Royal, ambos
também na cidade de Paris57.
57
Heinich (1997, p. 120) argumenta que uma das repostas possíveis ao fato de o empacotamento da Pont-
Neuf, obra de Christo e Jeanne-Claude realizada no outono de 1985, ter gerado menos comoção pública
que a obra site-specific de Daniel Buren instalada em 1986, Les Deux Plateaux, é o seu caráter não-
permanente, tendo permanecido instalada por apenas duas semanas. “Desse modo, o público poderia ficar
tranquilo quanto à proteção da Pont-Neuf, um grande marco do patrimônio histórico parisiense: o
empacotamento não causaria nenhum dano, nenhum desrespeito” (HEINICH, 1997, p. 120-122, tradução
nossa), ao contrário da obra de Buren, cujo foco das críticas recaiu sobre a alteração permanente de sítio
histórico público.
58
Heinich utiliza-se do termo “artificação”, definido por Roberta Shapiro (2007, p. 137) como o
“processo pelo qual os atores sociais passam a considerar como arte um objeto ou uma atividade que eles,
anteriormente, não consideravam como tal”; ou, simplesmente “a transformação da não-arte em arte”
(SHAPIRO, 2007, p. 135).
2049
Heinich (2013), “o patrimônio torna-se, assim, o estado no qual são mergulhados os
objetos na medida em que são submetidos a certos tipos de operação (semântica,
jurídica, cognitiva, gestual etc.)”. Trazendo a perspectiva de Heinich com relação ao
patrimônio para o âmbito do urbano como espaço expositivo, talvez pudéssemos falar
sobre um processo de “artificação” de um espaço, tal qual proposto por Roberta Shapiro
(2007); isto é, a obra, inserida no contexto de uma exposição, fundando um espaço
institucional extramuros.
Referências Bibliográficas
BOIS, Alain-Yve. A Picturesque Stroll around Clara-Clara. In: Richard Serra. Edited
by Hal Foster with Gordon Hughes. Cambridge: The MIT Press, 2000.
CRIMP, Douglas. Sobre as ruínas do museu. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
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Limited, vol.30, nº 10, p. 15, 2008. Disponível em: <http://www.lrb.co.uk/v30/n10/hal-
foster/at-the-grand-palais>. Acesso em 25 ago. 2017.
FOSTER, Hal. The Um/making of sculpture. In: Richard Serra. Edited by Hal Foster
with Gordon Hughes. Cambridge: The MIT Press, 2000.
2050
FUREGATTI, Sylvia Helena. Arte e Meio Urbano: Elementos de formação da Estética
Extramuros no Brasil. 2007. 248 f. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) –
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, USP, São Paulo, 2007. Disponível em:
<http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/16/16133/tde-12052010-
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KWON, Miwon. One place after another: site-specific art and locational identity.
Cambridge: MIT Press, 2002.
. Um lugar após o outro: anotações sobre Site Specificity. In: Arte &
Ensaios, 2008, nº 17, p. 166.
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. 2 ed. São Paulo: EXO
experimental org; Editora 34, 2009.
RIEGL, Alois. O culto moderno dos monumentos: a sua essência e origem. São
Paulo: Perspectiva, 2015.
2051
ARTE CONTEMPORÂNEA E INTERAÇÃO COM O PÚBLICO: EXPOSIÇÃO
AXIS
Resumo: A pesquisa analisa diversos aspectos do público visitante de uma exposição de arte
contemporânea – AXIS –, que disponibilizou obras do artista plástico Marco Túlio Resende, em
Belo Horizonte/MG, no período de 29/07 a 30/10/2016. O principal objetivo foi traçar um perfil
do público da exposição e compreender os motivos que levaram os visitantes a tocarem ou
deixarem de tocar nas obras expostas, considerando-se que não havia nenhuma informação
acerca da proibição ou permissão para isso em toda a exposição. Os resultados confirmaram
alguns aspectos levantados na literatura relativamente à caracterização do público de museus ou
exposições de arte, e, quanto à manipulação das obras, concluiu-se que a interatividade física do
público com as obras dependerá, em grande medida, da proximidade do visitante com o artista
ou suas obras, e da realização de satisfação pessoal de curiosidade ou impulso para conhecer
melhor a obra por meio da exploração do material utilizado em consonância com as formas
como os objetos são expostos. Concluiu-se, ainda, que a inibição ao toque dos objetos está
atrelada à cultura de “sacralização” das obras de arte, frequentemente encontrada em ambientes
de museus e de exposições. A importância social do círculo de produção artística contemporânea
(ou atual) e o status advindo de seu reconhecimento e valorização se confirmaram como valores
cultivados pelos “amigos do artista”.
Palavras-chave: Interação, Manipulação; Exposição de arte, Público de museu, Arte
contemporânea
Abstract: The research analyzes several aspects of the visiting public of a contemporary art
exhibition - AXIS -, which made available the works of the plastic artist Marco Túlio Resende,
in Belo Horizonte / MG, from July 29 to October 10, 2016. The main objective is to draw a
profile of the audience of the exhibition and to understand the reasons that led the visitors to
touch or not in the exhibited works, considering that there was no information about the
prohibition or permission for this throughout the exhibition. The results confirmed some aspects
raised in the literature regarding the characterization of the public of museums or art exhibitions
and, as far as the manipulation of the works, it was concluded that the physical interactivity of
the public with the works will depend to a great extent on how proxim the visitor is to the artist
2052
or his works, and, also, on the personal satisfaction of curiosity or impulse to know better the
work by means of the exploration of the material used, depending too on the ways objects are
exposed. It is also concluded that the inhibition to the touch of objects is closely linked to the
culture of "sacralization" of works of art, often found in museums and exhibitions. The social
importance of the circle of contemporary artistic production and the status of its recognition
have been confirmed as values cultivated by “artist's friends”.
Key-words: Interaction; Hands-on; Art Exhibition; Public of Museum; Contemporary art.
2053
Introdução
A intenção da presente pesquisa foi compreender o comportamento de público
visitante de uma exposição de arte contemporânea, com base em estudos anteriores
relacionados ao público de museus (BOURDIEU, 2003; ALMEIDA, 2004),
identificando os motivos que levam visitantes a tocarem ou deixarem de tocar em obras
expostas em locais onde não há informações acerca da proibição ou da permissão para
isso.
Para contextualização do ambiente e do artista, é importante informar que a referida
exposição de arte contemporânea – AXIS – do artista plástico Marco Túlio Resende, um dos
mais expressivos artistas contemporâneos mineiros foi montada no Palácio das Artes, um dos
mais importantes espaços públicos de promoção da cultura de Belo Horizonte, localizado no
centro da cidade. A exposição esteve aberta ao público no período de 29/07 a 30/10/2016, e, no
mesmo período houve exposições de outros três reconhecidos artistas mineiros, em galerias
distintas. A Galeria Genesco Murta (sala retangular de aproximadamente 300m2) foi
destinada à exposição objeto desta pesquisa. As obras expostas, não são peças de grande
vulnerabilidade devido ao material com que foram produzidas, sendo que algumas delas só
poderiam ser completamente observadas se fossem manipuladas, fazendo parte da novidade do
estilo inovador da arte contemporânea que disponibiliza seus produtos através de novos
materiais e novas formas de expressão e de produção artística. Suas características gerais
merecem ser mencionadas.
A arte contemporânea
Definir o que é a arte contemporânea é tarefa complexa que tem sido motivo de
muitos estudos, não sendo, por isso, pretendido fazê-lo, neste trabalho. É conveniente,
contudo, guiar a leitura pelos caminhos e entendimentos que se tem deste novo e
diversificado sistema de produção artística. Sua apreensão pelo público em geral
complexa e por isso também faz parte do desafio de se estudar e compreender como
ocorre todo o processo.
2054
Segundo Barbosa (2009), “Não dá para resumir a arte contemporânea numa só
característica, pois a pluralidade domina nosso tempo”. Para essa autora, é possível
apreender esse tipo de produção artística pela observação de uma série de aspectos que a
caracterizam, tais como:
- consciência da morte da autonomia da obra ou do campo de sentido
da arte em prol da contextualização;
- metalinguagem: reflexão sobre a própria arte;
- incorporação de matrizes populares na arte erudita;
- preocupação em instaurar um diálogo com o público e levá-lo a
pensar;
- tendência ao comentário social;
- ‘interritorialidade’ das diversas linguagens;
- tecnologias digitais substituindo a vanguarda (ITAÚ, 2009).
2055
“a arte da “globalização” da arte e de suas instituições” (tese 2), como forma de
resistência a uma nova forma capitalista pós-industrial, ou “uma arte sem transgressão”
(tese 3), que se baseia na afirmação de possibilidades exploradas por “conexões” ou
“grupos”. Neste ponto, estaria desprovida de teoria crítica, ou seja, “uma arte na qual o
crítico foi substituído pelo curador como novo “catalisador”do pensamento”. Embora o
autor ressalte que essas teses sejam limitadas em alguns pontos, ele discute cada uma e
ao final conclui “que, de uma maneira um tanto esquisita [...], a questão da arte
contemporânea é a questão de pensar a si mesma”.
O embrião da arte contemporânea tem origem na forma inovadora de produção
artística de Marcel Duchamp (1887-1968), Andy Warhol (1928-1987) e Leo Castelli
(1907-1999), segundo a filósofa francesa Ane Cauquelin (2005). Duchamp "faz notar
que apenas o lugar de exposição torna esses objetos obra de arte. Ele dá o valor estético
de um objeto, por menos estético que seja" (CAUQUELIN, 2005, p. 93-94). A ideia do
feito à mão é rompida com os ready-mades, industrializados, mostrando que tanto o
local quanto o artista podem dar às obras o status de arte.
2056
das obras, e é destacada, como a principal forma de interação, pois segundo esses
autores, possibilita a produção de conhecimento e sua ampliação pela compreensão de
processos e fenômenos. Além desse tipo de interação, o autor elenca o minds on
(mental) e heart on (emoção cultural). A interatividade do tipo mental “minds on”
desafia o visitante cognitiva e emocionalmente, fazendo com que ele se manifeste de
forma crítica. Ao optar por identidades presentes ao redor do museu, a exposição
desenvolve a interatividade cultural “heart on”, incentivando a identificação, com o
acervo, do visitante da comunidade local, e despertando o visitante de outro lugar para
uma nova cultura (WAGENSBERG, 2000 apud FARIAS, 2013).
Nóbrega (2008, p.1-2) busca mostrar a percepção, seu diálogo com a arte e com
a ciência, bem como configurar relações entre corpo, percepção e conhecimento,
concluindo que a percepção está relacionada à atitude corpórea, compreensão esta que
modifica a noção de percepção proposta pelo pensamento objetivo, fundado no
empirismo e no intelectualismo, cuja descrição ocorre através da causalidade linear
estímulo-resposta.
A forma como as obras são expostas e o material utilizado para sua exposição,
ou seja, a expografia de uma exposição interativa são itens que devem ser aqui
destacados. A este respeito Studart (2005), ao se referir à forma como as exposições
interativas devem ser projetadas, afirma que os aparatos técnicos ajudam a formar
memórias, lembranças e conhecimento, uma vez que se relacionam com os visitantes ao
serem acionados e utilizados. As exposições interativas, segundo a autora, devem ter
abordagens interpretativas e sua concepção (tema abordado, design, natureza da tarefa
do aparato interativo, tempo de duração da interação, uso individual ou em equipe etc.)
afeta substancialmente a dinâmica das visitas. Portanto, todos os aspectos devem ser
cuidadosamente considerados durante o seu desenvolvimento e avaliados, antes de sua
realização definitiva.
2057
Finalmente, salienta que a interatividade não é somente uma troca de
comunicação, mas também geração de conteúdo, não estando restrita a atributos da
tecnologia, devendo-se pensar também no design dos mobiliários e dos módulos
expográficos, ou seja, da comunicação de forma ampla e dos apelos digitais
(STUDART, 2005). Os ambientes de museus e exposições de arte são privilegiados
para promoção e êxito desta forma de interação e de aprendizagem.
2058
diferente, oferece diretrizes para estudo de público em outros meios, como o caso da
presente pesquisa. Bourdieu (2003) aponta, por exemplo, o caráter sagrado da obra de
arte que “se opõe ao mundo [profano] da vida cotidiana: a intocabilidade dos objetos, o
silêncio religioso imposto aos visitantes, o ascetismo puritano dos equipamentos” (p.
168). Como solução, o autor sugere que “Para existir, o objeto deve deixar-se
'saborear'”. Um museu deveria ser o espaço em que o visitante sonolento fosse intimado
a reagir em contato com as obras sublimes, ao invés de se perder em “procedimentos
educativos que pretendem transmitir conhecimentos, mais ou menos superficiais, por
meio de conceitos puramente intelectuais”, que não conseguem atingir o público em
profundidade (BOURDIEU; DARBEL, 2003, p. 20).
Especificamente, em relação à experiência estética dos menos cultos, a conduta
dos visitantes oriundos de classes populares, segundo a citada pesquisa, estes preferem
evitar perguntar aos mediadores (se existirem) e leem as tabuletas discretamente;
sentem-se inseguros e por isso se vigiam; dão preferência pela visita com parentes ou
colegas. Ao contrário, os visitantes da classe culta, preferem fazer visitas sozinhos, não
aceitam formas de ajuda escolares e utilizam guias ou catálogos, recusando com maior
frequência os subsídios institucionalizados e coletivos para se informarem.
Ao se referir à experiência estética, os autores afirmam que esta ocorre a partir
de diferentes percepções que se estabelecem dentro de um determinado contexto, e a
partir das relações que cada indivíduo é capaz de desenvolver em contato com a obra de
arte. Seria, portanto, uma experiência subjetiva, porém há também influência de um
conjunto de instrumentos para a apropriação estética que podem ser adquiridos em
função das oportunidades e instrumentos oferecidos pelas diferentes condições
econômicas e sociais vividas pelo indivíduo. Existem, pois, diferentes graus de
apreensão estética, através dos quais se dá a configuração da obra de arte no sentido de
uma interpretação mais plena, sob os moldes de um sistema de disposições a priori não
reveladas ao espectador comum.
2059
A experiência estética dos “amigos do artista” se manifesta, sobretudo pelo
reconhecimento das obras, e, à medida que se sobe na hierarquia social, fazem citações
a outros originais e manifestam sentimentos de participar de uma cultura livre que
valoriza artistas mais inovadores, criadores contemporâneos, demonstrando terem
conhecimento sobre maior número de autores (BOURDIEU; DARBEL, p.96).
Segundo pesquisa realizada no Brasil por Almeida (2004), que também servirá
de base para análise dos resultados desta investigação, o público visitante dos museus (e
exposições) de arte é mais especializados/escolarizados, preferem fazer suas visitas de
forma solitária ou na companhia de outro adulto e é composto por pessoas que têm o
hábito de visitar este tipo de museu com mais frequência.
Metodologia da pesquisa
Para responder à questão “o que motiva visitantes de uma exposição de arte a
tocar/manusear uma obra sem que tenham sido permitidos ou proibidos de fazê-lo?”,
buscou-se, como objetivo principal, identificar esses motivos, no âmbito de uma
exposição de arte contemporânea. Buscou-se, ainda, caracterizar o público visitante da
exposição (influências pessoais, culturais e sociais), compreender os motivos das visitas
e as reações dos visitantes diante da “possibilidade” de manusear as obras.
A exposição pesquisada – “AXIS” – apresentou, basicamente, quatro conjuntos
de obras de arte. O primeiro conjunto, disposto na parede lateral esquerda à entrada e na
parede fundo da galeria de arte, era composto de cinco pinturas no formato 2,40m x
2,00m cada e 01 (uma) pintura 4,00m x 2,00m, técnica tinta acrílica e carvão sobre lona.
No centro da sala foi exposta uma instalação de 40 (quarenta) peças tridimensionais em
cerâmica, com tamanhos que variaram entre 0,65m x 0,30m x 0,25m. Essa instalação
constitui-se de mobiliário expositivo, composta de 04 (quatro) mesas de ferro e tampo
de madeira na cor preta, com dimensões 0,80m x 2,10m x 0,45m cada. O terceiro
conjunto apresentou uma mesa-objeto composta de base de chapa de aço na cor preta,
2060
dimensões 2,10m x 0,90m x 0,80m. Sobre essa mesa, foi encaixada uma instalação com
120 (cento e vinte) pinturas na técnica tinta acrílica e carvão sobre lona, com dimensão
de 1,10m x 0,75m cada. O quarto e último conjunto apresentou uma instalação de
Livros/Desenhos suspensos, composta por 240 (duzentos e quarenta) desenhos,
distribuídos em 40 (quarenta) livros com seis páginas cada, no formato 0,75m x 0,65m.
Essas obras foram realizadas sobre suporte lona “tubox” e em técnica tinta acrílica e
grafite, encadernação manual e suporte de parede (Figura 1). Por determinação do
artista, não houve colocação de nenhuma instrução ou legenda com informações de
qualquer natureza sobre as obras, em toda a exposição. A ideia do artista e do
responsável pela expografia era de que os visitantes explorassem os objetos por meio da
manipulação dos mesmos, especialmente os livros.
A amostra dos visitantes foi definida de forma aleatória estratificada e se
concentrou nas categorias: tocou/não tocou nas obras expostas. A pesquisa foi
desenvolvida com duas técnicas principais: questionário e entrevista. A base de cálculo
do tamanho da amostra utilizou como parâmetro informações sobre o número de
visitantes diários da exposição computado por funcionários do próprio local, perfazendo
uma média de 120 pessoas por dia. Os questionários aplicados continham questões
envolvendo: idade, sexo, escolaridade, atuação profissional e frequência de visitação a
espaços museais/exposições, e os respondentes foram escolhidos de forma aleatória,
buscando-se certo grau de variedade possível nos estratos relativos a sexo e idade dos
visitantes. As questões eram fechadas ou abertas, de acordo com a ocorrência ou não de
interação física do visitante com as obras.
2061
Figura 1 – Imagens da Exposição “AXIS”
2062
Tratamento e análise dos dados coletados:
ESCOLARIDADE VOLUME %
CURSO
PROFISSIONALIZANTE 15 12,20%
ENSINO MEDIO 52 42,28%
ENSINO SUPERIOR 48 39,02%
MESTRADO/DOUTORADO 8 6,50%
TOTAL 108 100,00%
Tabela 1 – Escolaridade dos visitantes
2063
Em relação aos hábitos de visitação a museus/exposições, os dados estão
mostrados no gráfico 1.
2064
PROVENIÊNCIA (CIDADE) VOLUME %
OUTROS PAÍSES 1 0,81%
OUTROS ESTADOS 18 14,63%
OUTRAS CIDADES DE MG 11 8,94%
CIDADES DA REGIÃO
METROPOLITANA 17,07%
21
BELO HORIZONTE 72 58,54%
TOTAL 123 99,98%
Tabela 3 – Local de proveniência dos visitantes
59
As informações obtidas nas entrevistas com as 61 pessoas que tocaram as obras estão descritas
qualitativa e quantitativamente a seguir.
2065
ESCOLARIDADE x TOCOU/MANIPULOU AS OBRAS NÚMERO %
CURSO PROFISSIONALIZANTE 15 % relativo 12,20%
NÃO 12 80% 9,76%
SIM 3 20% 2,44%
ENSINO MEDIO 52 42,28%
NÃO 30 57,7% 24,39%
SIM 22 42,3% 17,89%
ENSINO SUPERIOR 48 39,02%
NÃO 19 39,5% 15,45%
SIM 29 60,5% 23,58%
MESTRADO/DOUTORADO 8 6,50%
NÃO 1 12,5% 0,81%
SIM 7 87,5% 5,69%
TOTAL 123
Tabela 5 – Escolaridade dos visitantes x interação com as obras
2066
Os motivos apresentados pelo grupo de 62 pessoas que não manipularam as
obras foram identificados, quantitativamente, e os resultados mostram que 27,62% (34
visitantes), não tocaram as obras por falta de informação ou de autorização para fazê-lo;
ainda neste grupo, 13,01% (16 pessoas) não marcaram nenhuma resposta e 9,76% (12
pessoas) relataram que não tocaram porque não queriam correr o risco de danificar a
obra exposta.
O número dos visitantes que tocaram pelo menos uma das obras expostas
corresponde a 49,59% da amostra de visitantes, o que equivale a 61 (sessenta e um)
visitantes. Os motivos que os levaram a tocar/manipular foram agrupados na Tabela 7, a
seguir.
MOTIVOS QUE LEVARAM AO TOQUE/MANIPULAÇÃO VOLUME %
CURIOSIDADE 27 21,95%
FALTA DE INFORMAÇÃO E AUTORIZAÇÃO 2 1,63%
MATERIAL UTILIZADO NA OBRA 13 10,57%
NÃO INFORMADO 7 5,69%
TENTAR ENTENDER A EXPOSIÇÃO E O PENSAMENTO DO
9,76%
ARTISTA 12
TOTAL 61 49,59%
Tabela 7 – Motivos que levaram a tocar/manipular as obras de arte
2067
Os principais motivos para a visitação foram a curiosidade sobre a exposição e a
proximidade com as obras do artista, por já ser conhecido.
Relativamente à proveniência dos visitantes, a maioria é morador da cidade de
Belo Horizonte e da Região Metropolitana (75,61%). Entre os moradores de Belo
Horizonte, mais da metade são provenientes da Região Centro-Sul, o que pode ser
explicado pela proximidade do local da exposição, e que também indica certa
associação à classe social mais alta, coincidente com a valorização dos bairros do
entorno. Por outro lado, a exposição foi visitada por moradores de todas as nove regiões
que dividem administrativamente a cidade, além de várias cidades da Região
Metropolitana, o que mostra que teve grande capilaridade local.
Em relação à questão do tocar ou não tocar as obras, os principais impedimentos
para que haja a interação física é a falta de informação ou autorização, seguido do
cuidado com a obra para evitar que ela seja danificada. Este aspecto confirma pesquisa
de Bourdieu sobre o efeito sacralizador exercido pelo museu. Este distanciamento
diminui à medida que a escolaridade aumenta, levando a uma relação positiva entre o
nível de formação intelectual e a plenitude da experiência subjetiva, calcada, também
nas oportunidades oferecidas pelas diferentes condições econômicas e sociais dos
indivíduos.
Os principais fatores que levaram o público a interagir com as obras expostas
foram a curiosidade sobre a obra e o material utilizado, bem como tentar entender a
mensagem do artista, utilizando o tato como complemento ao que foi percebido.
As respostas dadas pelo grupo das pessoas que interagiram com as obras foram
exploradas qualitativamente e a análise das informações obtidas é apresentada a seguir,
de forma a explicitar aspectos não perceptíveis pelos dados quantitativos da pesquisa.
2068
Parte Qualitativa da Pesquisa
A amostra qualitativa foi definida segundo critérios não probabilísticos, por
conveniência, para se tomar conhecimento dos motivos que levaram os visitantes a
interagirem fisicamente com as obras, possibilidade ainda pouco frequente em
exposições museológicas e artísticas. Assim, optou-se por incluir neste grupo todos os
visitantes da exposição que tocassem as obras. Foram utilizadas duas técnicas de
pesquisa: a observação em equipe e a entrevista semiestruturada, que previa a liberdade
de explorar mais amplamente uma dada situação, com aprofundamento de informações
de acordo com o interesse do pesquisador (LAKATOS; MARCONI, 1991). A técnica
da observação utiliza os sentidos na obtenção de determinados aspectos da realidade e
foi realizada no ambiente da exposição AXIS como instrumento para identificar os
visitantes que tiveram a iniciativa de tocar as obras, a partir do que, essas pessoas foram
acionadas para participarem de entrevista.
2069
livro”/tocando e desejou fazer o mesmo (6 menções); 3) Impulso/ convite ao toque (6
menções); 4) Oportunidade singular de interagir com a obra (5 menções). Partes dos
depoimentos ajudam a compreender melhor as razões que levaram ao ato de tocar a
obra.
A curiosidade aparece associada a outros motivos, como por exemplo, a
novidade e também uma oportunidade única, como se apreende pelos depoimentos a
seguir: “Toquei porque, normalmente, não se pode sentir com o toque um desenho”
(30)60; “Foi a primeira vez que isso aconteceu comigo em uma exposição” (45); “O que
me levou a tocar nas obras foi aproveitar a oportunidade dessa gentileza do artista...”
(87).
O caráter funcional ou exploração didática da interatividade da exposição foi
mencionado por duas pessoas: “Interagir com a obra através da manipulação é muito
especial e didático.” (18); “Realizei a visita a essa exposição com propósito didático e
gostei bastante do trabalho do artista.”(61).
Em muitos casos, o que provocou o ato de tocar foi o material utilizado ou o
formato em que as obras foram expostas: “O material utilizado é muito interessante,
sendo similar a um tecido encorpado, porém é sintético” (17); “Também sou artista e
fico procurando novos materiais. Além da beleza do exposto, o material me chamou a
atenção para tocar.” (55); “A forma exposta era um convite à manipulação.” (60);
“Queria saber como o artista imprimiu as imagens, depois percebi que eram desenhos.”
(62); “Toquei nos desenhos abertos e fiquei muito curioso com o material utilizado e a
forma que os desenhos foram expostos.” (69); “Toquei e mexi bastante, porém quero
voltar, pois estou muito curioso com o material e com o traço do artista.” (85); “...
curiosidade sobre a forma que foi pendurada na parede. Os livros abertos foi o que eu
toquei [...]. Dei uma passada de mão para sentir a textura e a queima [...] da cerâmica.”
(94); “Toquei na obra porque senti vontade de perceber a textura e ver os outros
60
Os números entre parênteses correspondem à identificação dos entrevistados na pesquisa.
2070
desenhos que estavam sem ser mostrados.” (106); “Eu toquei nas telas penduradas. Tive
curiosidade em ver como foi exposta sem as molduras. Muito bom!” (116); “Toquei
porque as obras nos convidavam a serem tocadas.”(121); “... a obra convida para ser
manipulada, pois é um objeto livro” (103); “Toquei por impulso, meio escondido, muita
curiosidade em ver mais a história dos livros descrita em forma de desenho.”(109).
A falta de informação explícita ou a “consciência” de que não deveria haver a
manipulação não impediu o toque: “Mesmo sem autorização, percebi que a obra
convida para ser manipulada...” (103); “Toquei nas obras que estavam em uma mesa em
forma de um grande livro. Sem autorização mesmo, pois não havia nenhuma forma de
impedimento”(118).
Alguns depoimentos revelam sensações diversas e níveis diferentes de satisfação,
cuidado e interesse resultante da interação: “Foi uma experiência maravilhosa, gostei
bastante de perceber o volume de desenhos e algumas características do artista que
somente percebe-se quando está com uma observação muito próxima. Adorei a
experiência”(49); “Emocionada com tudo o que foi apresentado. Uma alegria conhecer
o trabalho do artista Marco Tulio”(24); “Toquei por várias vezes, buscando as imagens
que mais estão presentes no trabalho do artista, como a asa, a escada, a faca e os
números e datas. A série “Diário” é muito linda”(61); “Manipular as obras foi
demais”(90); “Como poderia não tocar nessa maravilha?”(91); “To-quei por amor ao
trabalho do artista”(114); “Eu adorei tocar nos desenhos e sentir as texturas e as
marcações do artista”(102); “Toquei a obra com as mãos por muitas vezes. Quando vi
outros visitantes tocando nas obras de arte, eu também toquei e fiquei muito feliz” (57).
Em alguns casos, o toque foi realizado, porém com o devido cuidado e respeito, como
relatado em dois depoimentos: “Toquei na obra exposta com muita atenção e carinho”
(27); “Toquei por curiosidade, com muito respeito ao trabalho do artista” (121).
Um grupo de 11 (onze) entrevistados informou possuir alguma proximidade com
obras do artista ou com o próprio artista. Tal fato facilitou a compreensão de que as
2071
obras poderiam ser tocadas, mas é aqui mencionado por ser um fato significativo para
esta pesquisa. Representa um percentual de quase 20% dos visitantes. Entre outros
depoimentos: “Fui aluno e assistente de atelier do Marco Tulio...”(11); “Conheci os
trabalhos em Paris...”(15); “Já produzi uma exposição do Marco Túlio...”(19); “Estou
muito próxima à obra do Marco Tulio”(25); “Conheço o trabalho do artista...”(61).
A análise das declarações dos visitantes indicam, primeiramente, que a
realização do contato físico com as obras provoca reações e sensações nos visitantes que
intensificam a forma como os mesmos vivenciam a experiência da visita. Pode também
ser inferido que a possibilidade é uma novidade que agrada a quem participa dela,
mesmo para aqueles que já conhecem o artista ou sua obra. Pode-se afirmar que este
resultado confirma posição de Bourdieu (2003) de que “Para existir, o objeto deve
deixar-se 'saborear'”. Explicitamente, a possibilidade de tocar a obra é algo quase
“profano” que pode ser percebido pelos depoimentos de que o toque foi feito de maneira
respeitosa e com cuidado para não danificar, mostrando a presença de uma certa
“sacralidade” das obras..
O material e a forma utilizados para apresentar as obras também chamou a
atenção dos visitantes levando muitos ao “impulso incontrolável” de tocar as obras e
“sentir” sua textura, ou mesmo conferir como foram expostas.
A experiência estética do círculo de “amigos do artista” (BOURDIEU;
DARBEL, 2003) se mostrou na exposição de forma expressiva, confirmando valores do
mundo contemporâneo em relação à arte.
Considerações finais:
Pelos resultados é possível confirmar alguns aspectos de pesquisas anteriores,
em especial Almeida (2004) e Bourdieu (1999) sobre público de exposição de arte,
como a questão da alta escolaridade, o fato de que esse público ter o hábito de visitar
exposições com frequência e sua preferência por visitá-las na companhia de outro adulto
2072
ou sozinho. É composto principalmente por mulheres, com escolaridade dividida entre
Ensino Médio e Superior, com tendência a fazer seis ou mais visitas a museus por ano,
na companhia de amigos. Confirmou-se também a importância da experiência estética
dos “amigos do artista” identificado por Bourdieu, muito clara nos depoimentos.
O público é, em sua maioria, proveniente da Região Centro-Sul de Belo
Horizonte, o que indica o predomínio de classe socioeconômica alta, embora a
exposição tenha sido visitada por moradores de todas as regiões da cidade e de cidades
da região metropolitana (além de visitantes de outros Estados e cidades do interior),
Em relação à motivação para tocar ou não uma obra de arte, verificou-se que
quanto maior o grau de escolaridade e a frequência aos museus/exposições mais as
pessoas se sentem à vontade para tocar as obras. Este fato talvez possa ser explicado
pelo conhecimento de que obras de arte, especialmente da Arte Contemporânea, não
são, normalmente, “sacralizadas” como costumavam ser anteriormente.
Os motivos que levam as pessoas a tocarem as obras estão predominantemente
ligados à curiosidade e à vontade de compreender melhor a mensagem do artista. Os
sentidos são utilizados, nestes casos, para entender o processo criativo do artista e as
escolhas de materiais e suas composições físicas. Às vezes, a oportunidade de tocar as
obras representa uma distinção para o visitante, uma oportunidade de aprendizagem,
quase um prêmio, além de satisfazer motivações de cunho pessoal traduzidas como
desejo, impulso e maior proximidade com a obra e o artista.
Outro aspecto a ser destacado, e que não foi previsto nas duas pesquisas citadas
como referência, é o fato de que muitos visitantes tocaram as obras ou visitaram a
exposição para se fotografarem (selfies, principalmente) e publicarem as fotos em redes
sociais, numa clara indicação do valor atribuído à associação da pessoa a um ambiente
“culto” e de “alto nível” social, mesmo não fazendo parte de seu círculo de amizade.
É necessário mencionar dificuldades e limitações da pesquisa. Entende-se que
ela teria sido mais completa se o número de visitantes aos quais se aplicou a entrevista
2073
tivesse sido ampliado, abrangendo também as pessoas que não tocaram as obras, o que
ofereceria, possivelmente, respostas mais diretamente relacionadas às limitações do
processo como um todo, em relação aos visitantes. Não foi possível fazer análise
satisfatória das imagens captadas por vídeo, o que acabou inviabilizando seu uso e
inclusão nos resultados. Outra limitação foi a curta duração da exposição, fato que
impediu que fossem feitas revisões, reavaliações ou novas aplicações de questionários
ou novas observações no local.
Conclui-se que a oferta da possibilidade de interação física do público com as
obras expostas foi uma maneira muito bem sucedida de aproximação do artista com seu
público. Pelo lado dos visitantes, essa possibilidade propiciou aproximação, maior
compreensão das obras, a realização de desejos pessoais e de impulsos, bem como a
satisfação da curiosidade, que ao final, é o que leva a maioria dos visitantes a museus e
exposições.
Referências Bibliográficas
BOURDIEU, Pierre; DARBEL, Alain. O amor pela arte: os museus de arte na Europa e seu
público. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Porto Alegre: Zouk, 2003. 242p.
FARIAS, Sandra Martins. Museu Inimá de Paula: Ateliê do Artista- explorando formas de
interação entre público e exposição. Museologia e Patrimônio. UniRio/MAST, v.6, n.2, 2013.
Disponível em:
<http://revistamuseologiaepatrimonio.mast.br/index.php/ppgpmus/article/viewFile/245/237>.
Acesso em: 06/11/2016.
2074
ITAÚ CULTURAL, Afinal, o que é arte contemporânea?, 2009. Disponível em:
<http://www.itaucultural.org.br/materiacontinuum/marco-abril-2009-afinal-o-que-e-arte-
contemporanea>/. Acesso em: 16/01/2017.
Rodrigues, Bruno Cesar; Crippa, Giulia. Arte contemporânea: o quê e como organizar e
preservar? Anais... Encontro Nacional de Pesquisa em Ciência da Informação, 16. João Pessoa:
UFPB, 2015, s/p. Disponível em:
http://www.ufpb.br/evento/lti/ocs/index.php/enancib2015/enancib2015/paper/download/3123/1
280
VÁLIO, Luciana Benetti Marques. A exposição de arte como síntese do sistema da arte
contemporânea: um mapeamento das inter-relações dos elementos do sistema na exposição. In:
Simpósio Nacional de História-ANPUH, 26, Anais... São Paulo, jul.2011.
2075
MUSEOLOGIA E ARTE CONTEMPORÂNEA: CONEXÕES POSSÍVEIS ENTRE
A PERFORMANCE E A DOCUMENTAÇÃO
Resumo: O seguinte artigo traz reflexões sobre a Arte Contemporânea, especialmente sobre a
linguagem da Performance, pretendendo apresentar essa linguagem artística numa interseção
com o campo da Museologia, afim de trazer algumas discussões sobre documentação de obras
de arte contemporânea nos museus, apresentando alguns dos principais desafios encontrados na
área e alguns métodos que podem ser buscados para organizar acervos que tem como ênfase o
conceito e não o objeto. Como é sabido, as performances possuem uma complexidade, assim, e
ao pensá-las como acervo, institucionalizado, é possível perceber que a recuperação e
salvaguarda deste tipo de linguagem nem sempre é possível sem que seja feita a fragmentação
dos dispositivos utilizados para a transmissão do conceito da obra. O estudo de suas
especificidades garante que sejam compreendidas de maneira mais ampla a variação de
materiais, técnicas e propósitos que podem ser utilizadas tanto em seu tratamento, quanto em
seus diálogos, para que assim a potência da obra seja ampliada. Entretanto, a linguagem da
performance é algo que se mantém distante da maioria das instituições porque não é um acervo
físico que pode ficar em exposição, mas isso não impede que estas sejam inseridas nos acervos
das instituições museológicas. Este artigo, portanto, tenta problematizar sobre a documentação
das performances como espaço de experimentação, fazendo com que estas obras possam estar
em discussões e assim buscar novas formas de preservação dentro da área museográfica que
atenda uma maior variedade de coleções.
Palavras-chave: Performance; Arte Contemporânea; Documentação; Acervos.
Abstract: The following article reflects on Contemporary Art, especially on the language of
Performance, intending to present this artistic language in an intersection with the field of
Museology, in order to bring some discussions about documentation of contemporary works of
art in museums, presenting some of the main challenges Found in the area and some methods
that can be searched for to organize collections that have as an emphasis the concept and not the
object. As it is known, the performances have a complexity, so, to think them as a collection,
institutionalized, it is possible to perceive that the recovery and safeguarding of this type of
language is not always possible without the fragmentation of the devices used for the
transmission of the Concept of the work. The study of its specificities ensures that the variation
of materials, techniques and purposes that can be used both in its treatment and in its dialogues
are understood in a broader way, so that the potency of the work is amplified. However, the
language of performance is something that remains far from most institutions because it is not a
61
Discente do curso de Museologia da UFS
62
Docente do departamento de Museologia da UFS
2076
physical collection that can be exposed, but this does not prevent them from being inserted into
the collections of museological institutions. This article, therefore, tries to problematize on the
documentation of the performances, which usually have a script specifying how and where it
will occur and all the necessary details for its accomplishment, being able to be re-presented
when it is necessary or requested, what places it like space of Experimentation, ensuring that
these works can be in discussions and thus seek new forms of preservation within the
museographic area that serves a greater variety of collections.
Key-words: Performance; Contemporary art; Documentation; Collections.
2077
Introdução
A arte contemporânea está cada vez mais inserida nas discussões e nas
instituições museológicas que contém obras com este viés, que por isso conta em seu
acervo com uma ampla variedade de coleções que precisam ser trabalhadas, devendo
fazer um tratamento informacional, que nada mais é que a documentação museológica,
que permite garantir a disseminação de informações para seu público, o que faz com
que a linguagem utilizada em seus sistemas seja de acordo com o seu respectivo acervo.
Dentro desses espaços que englobam a arte contemporânea há uma necessidade por
mecanismos que resguardem tais acervos e que trabalhem com diferentes suportes
diante das mais variadas propostas.
2078
muitas as possibilidades de se trabalhar, o artista é quem passa a definir a proposta e
diante do que ele está pretendendo transmitir, com materiais e técnicas pré-definidas
esta será elaborada, sendo muito difícil de se definir já que diferentes autores a
apresentam como uma linguagem “híbrida”.
Partindo deste conceito dado por Renato Cohen, que trabalha com a questão da
relação de performance com o teatro, pode-se perceber que se trata de uma linguagem
que é multidisciplinar já que nesta se incorporam outras linguagens como o teatro, a
dança, a música. Afim de se aproximar de forma que envolva muito mais o público em
seu desenvolvimento, causando sempre uma reflexão da arte sobre a vida, levantando
questionamentos e deixando livre a interpretação que pode ser múltipla, o fato de uma
obra ter uma intenção e deixar que esta intenção transpareça de forma a fazer que o
público tome aquilo como a forma que ele deveria entender é limitar a arte de maneira a
torná-la estática, pois não precisa deixar de ter uma proposta para a obra a desenvolvê-
la, mas também não vai taxar uma forma de se ver sem ir além do que está visível.
2079
Documentação de obras de arte contemporânea
2080
materiais para novas formas de comunicação, os dispositivos que surgem a partir desta
nova lógica são inúmeros.
Lima afirma (2010) que será a partir das décadas de 1970 e 1980, que haverá a
distinção entre o moderno e o contemporâneo, quando artistas, críticos se dão conta que
as novas formas de construção da obra de arte vão se distanciando da arte moderna e do
seu espírito de revolução e ruptura. Então é com a arte conceitual que a arte
contemporânea acaba atingindo os espaços de maneira mais abrangente em que a ideia
do fazer artístico se torna a obra e o objeto já não é mais o protagonista e essa arte acaba
se sustentando também em movimentos passados.
2081
As conexões entre arte contemporânea e a documentação são um campo em
construção no Brasil e que acaba passando por vários desafios, pois, as formas de
preservação dessas obras ainda são muito recentes e sem segurança, deixando muito a
desejar por conta de vários problemas em relação aos sistemas de inventário, as
tipologias de acervo também são muito variadas, o que as vezes chega a dificultar o
trabalho dos responsáveis pelo tratamento do acervo, já que a instituição muitas vezes
não dispõe de meios tecnológicos para garantir uma maior disponibilidade de
informação.
A documentação vem como uma forma de preservar uma obra já que se houver
materialidade esta pode não existir mais a determinado período de tempo, e quando já
não há a materialidade ao se tratar das obras contemporâneas, como o caso da
performance aqui analisada, que busca preservar seu conceito, sem o advento da
documentação não será possível que futuramente se tenha qualquer aspecto preservado,
já que pode não existir mais o artista para contar a história, e Silva trata desse aspecto:
2082
tanto o documento como a obra ao mesmo tempo, sendo que o vai definir vai ser a
intenção do artista. E a informatização destes acervos de materiais não convencionais e
que precisam de cuidado especial, sendo que o fluxo do material é permitido por meio
de uma base de dados em que será propício para articulação de obras que precisam ser
desmembradas pela distinção de suportes como aponta Silva:
Os elementos que compõe a obra e que sofrem por serem frágeis quando são
separados por setores pode resultar na perda por parte ou até total do conceito que foi
proposto por seu autor. Então, existindo a normatização dos instrumentos pode ser
realizada a organização com conhecimentos específicos sobre a obra e por seus
respectivos suportes evitando alguns problemas de terminologia.
2083
e de crítica, estimulando parcerias que se prestam à construção epistemológica da
unidade do conhecimento”. (LIMA, 2003, p. 04).
2084
interdisciplinaridade na ‘categoria’ “híbrida”, a informação em arte
vem estabelecendo articulações para integrar as diversidades de
conteúdos, linguagens e atividades em processo de elaboração
combinada nas práticas relativas à geração, ao processamento e à
disseminação da informação. (LIMA, 2003, p. 24).
Todavia, algumas performances acontecem sem plateia, sendo exclusiva para ser
fotografada, onde chama-se de “fotografia performada”, que acontece de uma forma não
espontânea. Sendo ensaiada, confunde com o fato de ser ou não uma documentação esse
tipo de registro, tornando-se, portanto, um evento que nunca aconteceu a não ser na
2085
foto. Tal questão gera discussões se seria então fotografia, como outro trabalho, ao
invés de performance, cuja presença do público só viria posteriormente, diante dos
registros fotográficos ou videográficos, e não diante da ação ao vivo, como no trabalho
a seguir de Rettamozo “Ar/Reta”. (é uma obra que consiste em um envelope contendo
três folhas de tamanho A3, nas quais estão impressos trabalhos fotográficos e poemas.
Nestas fotografias o artista opera nas fronteiras entre as linguagens performática e
fotográfica. Estes trabalhos fotográficos afirmam uma poética entre a performance e a
fotografia, no qual a fotografia não é o registro de uma ação ao vivo, mas o lugar de seu
acontecimento disponível e: https://colecaolivrodeartista.wordpress.com/2015/05/26/ar-
reta/).
Ar/Reta
Rettamozo (Luiz Carlos Ayalla Rettamozo – São Borja/RS, 1948)
E também a obra “Blinks” de Vito Acconci de 1969, que levanta questões sobre
o acontecimento da performance, já que o artista caminhava em uma rua deserta
fotografando, em que tentava não piscar.
2086
Vito Acconci, Blinks, 23 de novembro de 1969; tarde.
Photo-piece, Greenwich Street, Nova York;
https://performatus.net/traducoes/perf-doc-perf/
Considerações finais
Neste artigo foi possível adentrar rapidamente nas discussões sobre a arte
contemporânea e sua inclusão ao acervo das instituições museais que resguardam tais
obras e suas respectivas abordagens. As instituições devem rever suas práticas
museológicas convencionais para adequar os acervos contemporâneos, pois a
necessidade de guarda e conservação da informação é algo muito importante e os
paradigmas modernos de classificação e a separação por meios e técnicas são
ineficientes e o fluxo entre alguns espaços são resultantes dessa ineficácia.
E o problema de guarda que esse tipo de obra possui que já não depende mais de
um espaço que se destine a isso, mas sim espaços pela sua variedade de suportes, o que
acabou por dificultar mais ainda o fazer museográfico dentro do museu e que ainda há
muito o que se buscar para a melhoria e diminuição da complexidade nas relações entre
os museus e a preservação.
2087
São poucos os museus que possuem performances em sua coleção, por ser uma
forma difícil de aquisição, por se tratar de instruções e também por não ser a intenção da
maioria das performances que seja realizado essa guarda institucional, e aí entra
também o fator de que muitas das vezes é o autor da obra que a executa, sendo então
mais fácil de ser atualizadas as performances que não são exclusivamente realizadas
pelo autor da obra.
E a instituição para se propor a integrar acervos também não precisa ter
definição, não precisa ser especificamente uma instituição exclusiva para acervos de
obras contemporâneas. Se na obra esses questionamentos como de quebra, rompimento
de ideais, de definições, são tão evidentes, certamente a proposta realmente é de
integração desses acervos em diversos espaços e porque não em todos, já que a obra
pode dialogar com o tempo presente e tornar possível os diálogos sem que seja pré-
concebido um padrão de lugar, até porque não vai existir uma instituição dita ideal para
obras contemporâneas. Os museus existentes para tal finalidade são para concentrar um
acervo maior de obras com tal caráter, mas não significa que seja um padrão de museu
destinado a estes acervos, claro dependendo da linguagem trabalhada.
Referências Bibliográficas
ARANTES, Priscila. O arquivo como dispositivo curatorial. Histórias das exposições.
Casos exemplares (orgs) Fabio Cypriano, Mirtes Marins de Oliveira. – São Paulo:
EDUC, 2006. 176p.
BÉNICHOU, Anne. Esses documentos que são também obras. Revista-valise, Porto
Alegre, v. 3, n. 6, ano 3, 2013, p. 171-191. Disponível em:
<http://file:///D:/Arte%20Brasileira%20III/Esses%20documentos.pdf>. Acesso em:
08/04/2017.
2088
COHEN, Renato. Performance como linguagem. Coleção Debates. São Paulo:
Perspectivas, 2007.
FREIRE, Cristina (org). Arte contemporânea: preservar o quê?/ São Paulo: Museu
de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, 2015. 196 p. Disponível em: <
http://www.mac.usp.br/geacc/preservaroque.pdf>. Acesso em: 01/04/2017.
2089
UMA POÉTICA NO ARQUIVO DO ARTISTA: O CONTÍNUO DESDOBRAR
DAS PAISAGENS DA MEMÓRIA DE GERALDO RAMOS
Abstract: This communication sets in motion the unleashing of the process of creating the
research project "A poetics in the artist's archive: the continuous unfolding of the landscapes of
the memory of Geraldo Ramos". Unarchiving is conceived as a trigger for understanding
epistemic propositions, a kind of "epistemological poise", a concept engendered by the
researcher in the design of the project. Such a concept is more conducive to the encounter of the
"between" in the research, as the researcher and interlocutor cross it, and less accustomed to
locate the essence of knowledge that is put into action. Because the "unfolding" is the
methodological operator that crosses not only the writing of this research, but also the plurality
of arrangements that the landscapes of the memory inscribe as scrapes of this proposition, the
work summons the accompaniment of four devices, four "unfoldings", the Which enclose the
embodied writing, constructed in tautochronology to the displacements undertaken by the
researcher and the artist through the landscapes of the interlocutor's memory, displacements that
implode the habitual conceptions of lived spaces and moments remembered, since it allows to
2090
enter the fluidic terrain of the creative imagination of both The builders of this narrative, playing
with the most palpable references that inhabit these landscapes. The devices are the field
notebook / log book, the artist's book, the dream diary and the exhibition design notebook that
goes through the research, all in the process.
Key-words: poetics in archives; landscapes of memory; epistemological poiesis; Geraldo
Ramos.
2091
Das paisagens da memória à poética em arquivos: experienciar aberturas
Guimarães Rosa: “abro a paisagem”. Minha referência é a abertura de paisagem
de Rosa. São paisagens-modos-de-fazer, são jeitos-memórias-desenhadas, maneiras-
incorporações-desformas. Essas paisagens bebem numa concepção de memória tão
incorpóreas quanto elas, rejeitam Cronos e convocam Aion para as escrituras. Portanto,
estão mais afeitas aos modos de fazer, à observância dos procedimentos, às invenções
memorialísticas: uma memória como de uma velha louca que não reconheceu as marcas
do tempo no próprio corpo e persiste no verbo as vivências de outrora. Tem horror às
ditas “presentificações” do que houve por meio do verbo simplesmente porque seu
tempo é o agora. A partir de algumas leituras propostas na disciplina “Artes, patrimônio
cultural e memória: da salvaguarda à produção de narratividades”, tem-se repensado,
especificamente no quesito métodos e procedimentos metodológicos, o quanto das
estratégias da história oral podem ser disseminadas na feitura dessa pesquisa, embora
não mencionem explicitamente esse método e este seja objeto de reflexão quanto à
eficácia das narrativas em produzir possíveis verdades.
2092
percurso investigativo do arquivo em questão será conduzido na perspectiva do olhar do
seu detentor, Geraldo Ramos, por meio dos sentidos que o fotógrafo dá às imagens que
estão em repouso em armários, pastas-arquivo, gaveteiros e outros suportes. Essas
imagens, inicialmente retiradas do seu locus de guarda, serão “desdobradas”, literal e
conceitualmente, à maneira das reflexões empreendidas no campo da imagem pelo
historiador da arte francês Georges Didi-Huberman (1953), segundo o qual as imagens
devem não só ser observadas, mas também “desdobradas e abertas” (2007, p. 45).
Imagens-força, imagens pensadas ou não pelo interlocutor das experimentações em
diálogo constante com a propositora desse percurso. No regime das imagens que
compartilham das experienciações epistemológicas dos saberes produzidos nesse
percurso, inventariamos uma espécie de tipologia das imagens dessa pesquisa. Temos
imagens que nos “dão as mãos” nessa escritura, aquelas mesmas que se alvoroçam no
meu interlocutor de pesquisa e me atravessam como que por osmose. São as histórias,
as deambulações pelas paisagens, os esforços por narrar os asteriscos que a ponilha
deformou. Já outras, irromperam o desenho da pesquisa: pastas-arquivo, fotos de uma
Amazônia paraense. Elencamos, também, as imagens que vêm sendo produzidas no
decorres desse desenho epistemológico, são os “produtos” da pesquisa: Paisimagem
(poema/ conceito); Paisagens de lance (Como desarquivar um arquivo, instalação);
Feeling Blue (projeto artístico que dialoga arquivo e cianotipia); Flumen (proposição
artística que conjuga arte e documento); Sonoras Paisagens (áudios, narrativas). Em
suma, a nossa pesquisa elegeu o conceito imagem como propositor desse desenho
epistemológico, e como o atravessamos é o mote desse itinerário. Chamamos de
“poiésis epistemológica” ao movimento de produzir conhecimento por meio da
pesquisa, à essa convocação epistemológica a qual é acompanhada de obras artísticas
como experienciações, atravessamentos no meio da pesquisa acompanhada de escrituras
dissertativas.
2093
O movimento de ‘desdobrar” a imagem de arquivos vistos não só como espaços
de guarda pretende, ao abrir os suportes e espraiar seu conteúdo imagético, repensar sua
forma organizacional e propor novas formas de montagem de um arquivo, agora fruto
de uma imersão nas paisagens da memória do seu detentor. Por que remexer numa
ordem que já fora estabelecida? Qual a necessidade de cavoucar documentos imagéticos
para deles emular o que estava arquivado? A perspectiva de uma desmontagem de
acervo vai ao encontro da concepção da heterogeneidade que funda a construção da
imagem e, também, da construção de um atlas da memória, pautada na obra Bilderatlas
Mnemosyne, Atlas de Imagens Mnemosyne, obra inacabada do historiador de arte
considerado, pela literatura especializada, o pensador fundante da iconologia moderna,
Aby Warburg (1866-1929). Esse pesquisador concebia o atlas como um dispositivo que
pressupunha uma escolha diante das imagens e a consequente possibilidade de
remontagens imagéticas, já que essas escolhas seguiriam um fluxo não cronológico de
se pensar a história. As imagens, vistas como montagens constituídas de
heterogeneidades, de “tempos suplementares- fatalmente anacrônicos e heterogêneos
entre si” (DIDI- HUBERMAN, 2007, p.51), se permitem na própria constituição o
movimento de montagem, pensar o seu (movimento) contrário também é concebível.
Montar e desmontar, na proposta de estudo ora apresentada, se funda como movimento
criador enquanto processo de criação e também como um percurso cognitivo enquanto
pensamento por imagens. As imagens desdobradas do título dessa pesquisa vão
obedecer a uma forma de se manifestar própria dos meandros das paisagens arquivadas,
nas quais estão sempre imbricados tempos sucessivos e heterogêneos. Considera-se que
as paisagens estão inscritas nos arquivos. No jogo de montar e desmontar imagens
arquivadas procede-se a um processo de desarquivamento: “desarquivar” por meio de
desdobramentos na perspectiva de Didi-Huberman (2007, p. 48) e na esteira da
reconstrução de um arquivo mais afeito às memórias afetivas do seu detentor. O gesto
de desarquivar convoca um certo movimento espiralado, labiríntico, cíclico, não se
2094
detém no minimalismo do abrir-fechar (imagens, gavetas, memórias). Se as imagens
estão imersas nas bricolagens temporais com as quais dialogam, há de se esperar
movimentos irmanados nessa superposição vertiginosa de tempos.
2095
que não mais se assentarão na ilusória estabilidade de sentidos que supostamente
acompanhariam essas imagens. O jogo, aqui, é a via de acesso ao que elas deixam
escapar naquilo que se retraem ao se darem a “ser vistas”, assim como o contrário é
verdadeiro; na ausência delas os rastros do que estava diante do nosso campo de visão
serão os indícios da permanência do horizonte do que qualificamos como imagens. O
jogo entra na esfera da dialética de uma compreensão de imagem que não é a
mensurável, a objectualizada, a factível. Antes, ela está no entre, nos espaços
intervalares, nos interstícios, nos hiatos, no terreno fértil das ambiguidades e das
discordâncias e, quiçá, dos possíveis desvios. Aqui a diferença se instaura como
norteadora da leitura que as imagens suscitam.
2096
condição flutuante da natureza delas em conformidade com as imbricações de
perspectivas de tempo-espaço e olhar do outro, não se fixa numa suposta natureza
“essencialista” das imagens, como se elas tivessem entranhadas algo no próprio âmago
que escapa ao outro. Quando se diz que elas “se dão a ver”, tal assertiva está sempre
aspeada, compatível com as posições claudicantes que se nos impõem em relação ao “o
que vemos e o que nos olha” (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 32). A proposta de estudo,
aqui, se funda pela relação, sendo assim, tocar no binômio espaço-tempo é tocar
especificamente no objeto dessa proposta de pesquisa, um arquivo fotográfico. O
arquivo enquanto um espaço não só repositório de documentos imagéticos, mas também
locus de memórias carregadas de afetos, dialogando com um tempo que se faz presente
a partir do momento no qual imagens fotográficas são retiradas desses loci repositórios
e ressignificadas pelos afetos do detentor do arquivo. Tempo ausente que se presentifica
pela paisagem que é desarquivada, pelas imagens que são sintoma de algo que não elas
mesmas, que apontam para algo que não elas mesmas, numa tentativa de extrair do
visível o que está latente no invisível, na esteira do conceito de sintoma, como
manifestação de algo que não se expressa, mas está lá: “A imagem é um rastro, uma
esteira, um arrastamento visual do tempo que quis tocar (...)” (DIDI- HUBERMAN,
2007, p. 51). O que é sintoma no presente já foi manifestação no passado, assim como o
que qualificamos como espaço arquivístico no presente já foi o vivido num tempo
pregresso. Esse espaço arquivístico, ao abrigar imagens que por natureza se permitem a
imprecisão, e na esteira das relações que estão imbricadas num e noutro enquanto jogo
de alteridades, não pode repousar na qualificação de espaço sem embates dos jogos de
memória. A metáfora da esteira em Didi-Huberman estende nosso olhar de um tempo
recuado, mas sempre presentificado, esgarça a compreensão de arquivo para um lugar
de devir e, também, para o espaço arquivístico como exercício de pensamento. Ainda
com o historiador da arte, concordamos com a concepção de arquivos como não só
locus de informação, mas o espaço privilegiado de onde se pode tirar “emoções e
2097
bocados de memória, imaginação e bocados de verdade” (2012, p. 123). O arquivo é
portador de imagens que são sintomas de tempos heterogêneos os quais, nesse jogo de
heterogeneidade, permitem montagens e desmontagens de tempos, idas e vindas, o
presente-ausente: sempre a dialética, o jogo.
2098
perspectiva de constituição de arquivos de artistas na Amazônia paraense, um arquivo
que vem sendo trabalhado há pelo menos 40 anos. Geraldo Ramos foi, ele mesmo, um
dos diretores do Museu da Imagem e do Som (MIS), a partir de meados da década de 80
até o início dos anos 90. Isto é, deparou-se com as mesmas questões que envolvem a
seleção e guarda de material imagético.
Diante do exposto sobre as imagens e seus loci de guarda, intui-se que não basta
armazená-las e organizá-las em repositórios arquivísticos. Há que presentificá-las no
gesto de desdobramento, há que fazê-las imagens desdobradas. Se permitem o
desdobramento é porque algo na sua natureza condiz com as dobraduras que se lhe
interpõem. Pelo o exposto até aqui, esse algo é o entre que se desvela quando diante
dela estamos. Esse entre, expondo as dobraduras, permite do mesmo modo se repensar
em novas montagens. Portanto, a partir do entrelaçamento de imagens instáveis
dispostas como registros fotográficos em loci repositórios como arquivos, somos
desafiados a repensar como estão dispostas essas imagens efêmeras em depósitos
“estáveis”.
2099
concepção de arquivo se esgarça para além do espaço tradicionalmente eleito como tal.
Nosso corpo, por exemplo, posto que tem na pele aparente ou nos sistemas neuronais as
marcas das vivências atravessadas enquanto constituintes da memória, configura-se
como um arquivo vivo (VIGARELLO, 2003, p. 29). As memórias que estão sendo
processadas no presente são um arquivo, quiçá um arquivo do futuro. No tocante às
paisagens, George Simmel (1996) postulou que os recortes são inerentes à concepção de
paisagem, paisagem que tem sua forma oriunda da natureza e das suas continuidades
infinitas. Essa possibilidade de recortes originou o enquadramento e intersecção de
quadros assentados de forma expansiva na natureza. Isso é visível na representação
pictórica no ocidente a partir do século XVI, no qual o enquadramento foi a via de
acesso a esses recortes em potência.
2100
mesma esteira de raciocínio que toma as imagens como formas múltiplas porque
múltiplos são as depreensões que repousam nelas.
Quanto à segunda pergunta que norteará essa pesquisa iremos proceder, junto às
indagações que norteiam o percurso investigativo, a uma experimentação no trato com o
arquivo do fotógrafo, já que os sentidos que o detentor porventura atribua ao seu acervo
imagético implica o primeiro gesto supracitado nessa proposta, que é o de abrir o
arquivo. Diante da abertura, que não pode estar destituída de uma intenção, os sentidos
dados pelo fotógrafo ao próprio acervo serão justificados pela memória afetiva que se
2101
espraia nas imagens produzidas num tempo recuado, a partir da seleção de algumas
imagens mais carregadas de sentidos para ele. O acesso a essas imagens selecionadas
dar-se-á pelo “desarquivamento” das paisagens arquivadas, por meio do diálogo
empreendido entre a pesquisadora e o fotógrafo e de desdobramentos da imagem na
perspectiva de Didi-Huberman. Aqui nos depararemos com o princípio das “imagens
desdobradas”. De fato, as imagens serão desdobradas a partir do arquivo, no gesto de
abrir armários e cavoucar os registros imagéticos nos quais estão assentadas as
paisagens da memória afetiva do fotógrafo. Nesse gesto de abrir e fechar espaços
repositórios, as paisagens arquivadas virão à tona, como numa ação arqueológica. É
importante frisar a interlocução que atravessará todo o percurso de abertura e seleção
das imagens do arquivo, o papel da pesquisadora não só na elaboração conceitual de
trato do objeto ora investigado, mas também com intenso acompanhamento desse
desdobrar e redescoberta das paisagens afetivas.
De posse das imagens selecionadas resta saber o que fazer com elas, com essas
memórias imagéticas que se abrem em outra perspectiva no presente. Entraremos na
terceira pergunta que norteará a pesquisa, na qual trabalhar-se-á com a hipótese de que
as imagens selecionadas, antes dispersas nos espaços escuros não só da memória como
também dos armários arquivísticos, podem ser redispostas ou remontadas na confecção
de um livro de artista. Montar e remontar aos moldes de um Atlas Mnemosyne de Aby
Warburg. A concepção de Atlas nessa pesquisa se estende para a elaboração de um livro
de artista, isto é, passaremos de um arquivo para um livro. O livro de artista enquanto
um espaço expositivo privilegiado está ancorado, também, na concepção de arte
conceitual (MELIM, 2013, p. 35). O campo expositivo do livro vai de encontro ao
sistema da arte que insiste numa produção seriada marcada por diretrizes
mercadológicas, as quais aferem o que deva ou mereça ser publicizado. Tratar de livros
de artista implica uma escolha cuidadosa dos elementos que dele farão parte, desde a
escolha do suporte livro aos materiais que participarão do conceito que está em
2102
elaboração. A escolha do iconólogo pelo Atlas conjectura a possibilidade de abertura
inerente ao suporte que dele se depreende. Atlas implicam escolhas, redistribuições de
imagens e seleções carregadas de sentidos por alguém. Assim como os livros de artista,
agora frutos de um processo que, mais que apontar as paisagens que foram
desarquivadas, serão escolhas imagéticas carregadas de sentidos para aquele que com
elas sempre conviveu.
2103
grupo foram de importância capital no tocante ao pensamento e as obras de Didi-
Huberman e Aby Warburg. Há exatos um ano e meio as ideias empreendidas por esses
dois teóricos da imagem vêm sendo exaustivamente pesquisadas e trabalhadas pelo
grupo de pesquisa. Temas como o estatuto das imagens, sua permanência e
desdobramentos, as concepções de montagem e desmontagem que delas são
depreendidas vêm suscitando inquietações que se estendem não só ao repensar da
imagem enquanto ideia, mas também um possível pensar por imagens, assim como
novas perspectivas no que tange aos métodos de empreender um estudo por imagens.
2104
Warburg, que nos inícios do século XX já antecipava o que posteriormente tomaríamos
como ordem para os estudos sobre as imagens. O estudo do arquivo de um fotógrafo
paraense pretende, também, abrir novas perspectivas de estudo no que tange ao
colecionismo nas artes produzidas na Amazônia paraense, não só como um campo
pleno de potencialidades mas também por conta das preposições heurísticas que serão
levantadas por essa pesquisa, especialmente no que toca as propostas de métodos
investigativos de conteúdos arquivísticos e na elaboração de um novo suporte para as
imagens fruto da abertura do arquivo, que será a confecção do livro de artista. Livro
produzido aos moldes de desmontagem e remontagem de imagens, isto é, produzido
segundo a definição de atlas tal qual a ensejada por Warburg, na qual as imagens
selecionadas serão consequência da releitura do conteúdo do arquivo.
2105
que têm incursões nesse campo temático e publicações científicas e poéticas que
subsidiem o desenvolvimento dessa investigação, assim como repensá-las no âmbito do
inusual que uma poética em arquivos mobiliza.
2106
Após a coleta de dados, através de observação participante e observação direta,
o passo seguinte será a definição de uma ação metodológica para interpretá-los,
articular as evidências com as fontes teóricas mobilizadas, a fim de construir sentido e
significado para as informações coletadas. Os teóricos levantados para essa reflexão
são, inicialmente, Aby Warburg (os procedimentos metodológicos tangenciados pela
montagem e remontagem das imagens; a construção de um atlas na mesma proposição
da construção de um livro de artista); Didi-Huberman (as imagens e seus
desdobramentos; os estudos empreendidos sobre Aby Warburg) e George Simmel
(paisagens na ordem da subjetividade; as paisagens arquivadas da memória).
2107
experimento, atravessamento no corpo da pesquisa acompanhado da dissertação; o
“Diário dos sonhos”, experiências transpessoais que enxameiam os sonhos oníricos e
contaminam a pesquisa; o “Caderno do projeto poético concebido como exposição”,
rascunhos das imagens que irromperam o desenho da exposição proposta como a
reunião dos diversos “desdobramentos” engendrados em proposições artísticas, a saber:
“Como desarquivar um arquivo” (instalação: audiovisual e caderno de campo);
“Feeling Blue” (projeto artístico e exposição que dialoga arquivo, a saudade na
fotografia, melancolia e cianotipia); “Flumen” (exposição premiada que conjuga arte e
documento); “Sonoras Paisagens” (álbuns de fotografia nas quais as imagens
iconográficas foram retiradas, e a substituição por paisagens sonoras); “Paisagens
Prospectivas” (instalação: audiovisual, instalação fotográfica e caderno de campo).
Assumindo uma postura de abertura à poésis tal como Guimarães Rosa, estamos
abrindo as paisagens.
Referências bibliográficas
2108
PATO, ANA Matos Porto. Arte contemporânea e arquivo: reflexões sobre a 3a
Bienal da Bahia. São Paulo: Revista CPC (USP), v. 20, 2015, p. 112.
SCHAMA, Simon. Paisagem e Memória. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
2109
ARTE ON-LINE: EXPOSIÇÃO, DOCUMENTAÇÃO E COLEÇÃO
Abstract: The purpose of the article was to discuss exhibition conditions, documentation and
online art collection. Negotiations between artists, museologists and historians have interested
us to understand how artistic production in interface with digital media, an increasingly
influential part of contemporary art, reorganizes museological procedures into conventional
institutions. We use a literature concerned with the phenomenon of online art and we choose
examples for consideration and debate. The discussion presents changes in the sense of
collecting, transforming museums into places of sharing, concerned with intermediate access to
works, giving up the exclusivity of owning, exposing and storing them.
Keywords: Contemporary art; Art online; documentation; exhibition; collection.
2110
Introdução
“Sentimental Journey” foi uma obra-projeto de Cleido Vasconcelos de 2011. Até
recentemente toda vez que utilizávamos verbos nas formas pretéritas para uma obra
estávamos, com grande probabilidade, nos referindo a bens materiais desaparecidos e
destruídos. O caso de “Sentimental Journey” é distinto. Ele nos transporta para a relação
entre a arte on-line e sua contingência off-line. A obra em questão usava um recurso
simples da web. Utilizando como base o recurso Google Maps, Vasconcelos identificou
o lugar (rua, edifício, cidade) onde amigos e familiares morreram em anos anteriores.
Tais pessoas são lembradas e tagueadas de forma pública. No processo o artista
consultou parentes e outros amigos próximos dos homenageados. Todo um protocolo
ético foi criado para preservar a memória dos afetos perdidos. Vasconcelos utilizou uma
linguagem cartográfica muito divulgada e conhecida na atualidade para propor uma
intervenção afetiva, uma criação autorreferente que se manifestava pelo tabu da perda.
2111
Figs. 1 e 2. Site do projeto“Sentimental Journey”, Cleido Vasconcelos, 2011. Reprodução do artista; Site
não encontrado, tentativa de acesso em agosto de 2015.
2112
quando lhe fosse conveniente (fig.3). A ideia inicial era propor uma obra em processo.
Em expansão graças à derradeira perspectiva de que outros entes queridos
desapareceriam no futuro. Todavia, o trabalho deixou de existir há quatro anos. Sua
existência “material” foi legada a alguns registros fotográficos e aos arquivos de outras
pessoas que guardaram trechos da obra que lhe eram especiais. A manutenção tornou-
se inexequível para o artista e, segundo Vasconcelos, só um colecionador ou uma
instituição poderiam mantê-lo em funcionamento63. Certamente uma visão otimista do
artista, sobretudo em relação a capacidade das instituições museológicas convencionais
em manter uma obra on-line disponível ao público.
Fig.3. “Sentimental Journey”, Cleido Vasconcelos, 2011, exposição “Arsênico”, Faculdade de Medicina
da Universidade de São Paulo, em Ribeirão Preto-SP. Fotografia gentilmente ofertada pelo artista.
A história das artes visuais, desde os anos de 1960, celebrou linguagens díspares
como vídeoarte, performance, intervenções urbanas, arte-mídia, entre tantas que
63
2113
surgiram a partir daquela década. Atualmente quase todas as linguagens surgidas, desde
então, iniciaram uma aproximação com as práticas, as lógicas e o aparato constitutivo
das novas mídias. Instalações que se metamorfoseiam-se em vídeo-intalações, cine-
instalações, e em tantas formas de ambientes imersivos. Performances telemáticas
(INAUGLE; CRAWFORD, 2014) ou ciber-digitais. Intervenções “e-urbanas” a partir e
para plataformas digitais. A videoarte alcançou os ambientes das redes globais de
difusão, decupando-se em mídias móveis e dispositivos de compartilhamento, como a
game-arte ou arte locativa (BAMBOZZI, 2010). Ou seja, o continente que costumamos
denominar de arte-mídia, arte digital e arte computacional ampliou-se na direção das
demais linguagens e estratégias criadoras da arte contemporânea (GASPARETTO,
2016). Diante dessas novas formas de produzir arte e seus desafios para historiadores da
arte, conservadores, museólogos, educadores etc., a obra de Vasconcelos torna-se um
exemplar do extenso e complexo problema do desaparecimento da produção arte-mídia,
em especial da arte on-line, nas últimas décadas e de seus possíveis impactos no
acervamento de uma infinidade de outras obras, dependentes direta ou indiretamente das
tecnologias difundidas desde os anos de 1990. De modo desafiador, já podemos partir
da premissa que parte considerável desta produção não tem sido colecionada nem por
instituições, nem por colecionadores dedicados às artes visuais (BOONE, 2013).
Embora bem-sucedidos, os projetos e instituições que se dedicam à memória da time-
based-midea, em especial aquela produzida no sistema World Wide Web, são pontuais e
demasiadamente tímidos no sistema museológico brasileiro (PATO, 2014).
Tomemos nesse sentido apenas a arte on-line como questão. A demanda do
colecionamento da arte on-line esbarra numa cadeia de relações interpessoais e
institucionais que vem afetando a produção das obras consideradas “efêmeras” desde os
anos de 1960. Desta forma, o conflito entre a produção artística contemporânea e as
narrativas de “arquivamento” não é recente. Nos últimos 60 anos, um elenco formidável
de obras veio colocar em xeque os sistemas de registro e de documentação, os modelos
2114
de circulação e de interação, os discursos expositivos e as narrativas historiográficas.
Num passado recente, para muitos artistas a política do arquivamento, a manutenção
residual ou a reapresentação de suas obras não eram questões cruciais do
desenvolvimento de seus trabalhos. Muitas obras não estavam, em sua origem,
programadas para o colecionamento ou para reexibição. Todavia, do outro lado, todo
um sistema de garantias patrimoniais começava a se redefinir para incorporar alguns
exemplares de obras “efêmeras”, seja pela reconsideração do que vinha ser chamado de
registro, seja pela ampliação do entendimento de onde começava e terminava uma obra
de arte, dentro e fora das relações de recepção e visibilidade (OLIVEIRA, 2015). Assim
sendo, a arte on-line acrescentou particularidades à questão. Se podemos considerá-la
com uma parte efetiva da produção da arte contemporânea, tê-la colecionada e
arquivada como política de memória parece-nos fundamental, mesmo que, mais uma
vez, tenhamos de contrariar a intenção do criador. E isso certamente não é nem mais
nem menos polêmico na atualidade, visto que a maioria dos artistas contemporâneas
reconhece nas instituições essa capacidade de instigá-los e de contradizê-los, embora
não são raros os excessos que pervertem a obra, destituindo-a de sua potência poética.
Como no passado, a arte on-line coloca em cheque dois processos cruciais para
arquivos e coleções: exposição e registro. Tratar-se de duas práticas operadoras que nos
auxiliam na compreensão dos processos de (re) introdução das obras no circuito
artístico. E, portanto, na garantia de seu reconhecimento pelos profissionais das artes.
Tais operações, tomadas pelo viés da história das práticas museológicas, funcionam
como verificadores metodológicos, capazes de instruir e demonstrar mudanças
importantes nas relações entre museus e a produção hodierna. E mais: de oferecer
indícios sobre a obsolescência tanto das obras, quanto dos discursos museológicos.
Visto que, como bem nos alertou Domingues (2009), a incapacidade de salvaguarda e
de comunicação de parte efetiva da arte contemporânea – a pesquisadora dedicou
2115
especial atenção a arte-mídia – reforça a própria relevância e função dos museus na
atualidade.
Exposição e documento
As exposições passaram por uma rápida mutação nas últimas duas décadas em
museus tradicionais dedicados à arte contemporânea. Graças à dinâmica de obras
constituídas pela transitoriedade, os museus passaram a ocupar o papel de co-executores
dos trabalhos (HUCHET, 2005, p.76), transformando muitas exposições em eventos
curatoriais vinculados ao processo de reconhecimento das próprias obras – feitas para
museu, por museus e em museus. Mesmo que ainda raros na realidade brasileira,
projetos curatoriais passaram a privilegiar em suas expografias a variabilidade e o
efêmero contidos em obras de caráter descontínuo. Todavia, quando se trata da arte on-
line o perigo reside na transformação de uma obra construída para habitar ambientes
virtuais em um trabalho materialmente localizado. Uma extensão “negativa” da obra
que nega sua própria poética transitória. Algo que Vasconcelos evitou ao não traduzir
“Sentimental Journey” para o espaço expositivo.
Este é um aspecto importante para a contingência museológica. Museus tem
disponibilizado em seus sites, ou mesmo em seus espaços edificados, acesso a obras que
foram instituídas no ciberespaço. Caquelin nos lembra que isso é crucial para uma obra,
visto que “A grande diferença entre o espaço tradicional das obras e o espaço
cibernético é a impossibilidade de tratar o espaço cibernético segundo a análise, isto é,
segundo a possibilidade de distinguir suas partes, como o recomendaria o espírito
geométrico” (2008: 144). Isso significa que a obra on-line e sua exposição são
indissociáveis. A própria obra, em sua fatura numérica, organiza e produz os efeitos
próprios da expositividade. Assim, o modo como a intenção poética primaria (o que em
casos convencionais chamaríamos da obra em si), a exposição e seus rastros impactam
2116
na salvaguarda dos projetos artísticos, em sua sobrevida. Todavia, muita da produção
on-line tem sido apropriada apenas em sua dimensão documental.
Umas das estratégias possíveis de curadores atuais é a “encenação
documental”64, cujo caráter central é a reintrodução de obras por meio de seus registros
em expografias críticas. A recente literatura está repleta de exemplos de obras cujos
relatos orais, os registros fotográficos e videográficos são os únicos elementos
instituidores de uma memória sobre e da obra, tanto no plano internacional, quanto
local. Esta estratégia é limitada para Nathalie Leleu, que nos lembra que as obras que
utilizam aparatos tecnológicos atuais exigem uma condição documental ampla. Leleu
defende que para a obra tecnológica seja construída um dossiê com uma hierarquia
própria de informações, cujas informações pertencentes à obras são indissociáveis de
sua condição de circulação, interação, mutabilidade e expositividade. Ou seja, o dossiê
para a arte on-line seria aberto, colaborativo e interativo, embora evidentemente
custoso:
O custo de uma unidade documental aberta, colaborativa e interativa é
medida pelos benefícios alcançados. O custo da infraestrutura técnica
e tecnológica desenvolvido é uma cifra orçamentária significativa e
que não pode ser negligenciada sem o risco de total fracasso. No
entanto, as preocupações com o investimento mais caro,
especialmente com recursos humanos, dedicado à criação de um
sistema é um valor agregado. O sucesso de tal empreendimento é
baseado em uma política documental rigorosa e ambiciosas
habilidades de gestão: controle de acesso e contribuições; validação de
conteúdo com contribuições de vários atores na produção cultural,
níveis artísticos e de gestão de confidencialidade e sustentabilidade
dos dados e das redes (LELEU, 2010, p.388, tradução livre).
2117
brasileira, raramente tal modalidade artística é considerada em suas particularidades.
Frequentemente os registros alienam a obra de seu processo de visibilidade constante.
Nas últimas décadas a arte instituída por meio de tecnologias emergentes, numa solução
terminológica oferecida por Rosangella Leote (2007), ampliou a discussão e estabeleceu
novas fronteiras para as políticas de arquivamento. Tais tecnologias tem mesmo
eliminado o sentindo temporal de antes e depois, numa coabitação entre tempos que
tornam o registro um próprio essencial para a circulação de determinado ato criador
(GIANNETTI, 2006). Pouco a pouco a ética de tais procedimentos volta-se para a
estética do arquivamento, da reapresentação contínua e da obsolescência material.
Questões ainda pouco debatidas pelas instituições colecionadoras.
Parte efetiva da produção time-based-midea pode parecer obsoleta em poucos
anos. Muda-se o sentido do que é interativo para o público. Mudam-se as bases
operacionais e sensitivas das imersões. Mudam-se as plataformas de acessibilidade. Um
trabalho produzido na chamada estética 8bits precisa ser contextualizado, por exemplo.
É nesse ponto, que acreditamos que as instituições convencionais podem oferecer
estratégias de documentação, traduções eficazes para a reapresentação, acessibilidade e
preservação da arte on-line. Em especial no caso brasileiro, cuja dependência do Estado
para a preservação de obras de arte é historicamente relevante. Mas que isso é preciso
compreender como três valores necessários para a compreensão desta produção
artísticas precisam ser debatidos pelos museus: a emulação, a migração e a
reinterpretação.
A emulação funciona como estratégia de acomodação e atualização de uma obra
de arte dentro de uma tecnologia (software, plataforma digital, etc) similar e compatível
à original, de modo a não alterar a estrutura da obra, mas identificando as mudanças
ocorridas pela adequação: “Emulated culture looks the same, feels the same, behaves
the same as the original, but in a different medium”. Assim sendo, “in digital culture,
2118
however, the technique of software emulation – whereby one computer impersonates
another – is a powerful preservation tool.”65 (IPPOLITO, 2014, p.9)
A Migração já exige uma mudança na matriz tecnológica, aqui transportar o
trabalho artístico significa alterá-lo pela tradução. Assim sendo, imprime sobre a obra
uma alteridade negativa, tornando-a outra, mas com efeitos e ecos da intenção primeira
da obra. “That said, migration can alter a work’s look and feel, and the further a work is
migrated away from its original medium, the greater the risk of its departing from the
spirit of the original” (idem). E, até recentemente mais rara nas artes visuais era
reinterpretação, que consiste na reintrodução da obra em outro espaço-tempo:
A obra de Napier, lembrada por Ippolito, foi adquirida pelo Museu Guggenheim
em 2002 e compõe seu acervo on-line. Com o uso de um software on-line, visitantes do
site netflag.guggenheim.org, sob responsabilidade do museu (fig.4), podem criar, alterar
bandeiras do mundo todo. Napier buscava com a obra o questionamento da cultura
65
“A cultura emulada parece igual, sente o mesmo, comporta-se do mesmo modo que o
original, mas numa mídia distinta (...) Na cultura digital, no entanto, a técnica de emulação de
software – por meio de um computador que faz passar por outro – é uma poderosa ferramenta
de preservação”(tradução livre).
2119
“nacional”, seus símbolos e sua lógica territorial. Para o curador e pesquisador
estadunidense, net.plag é um exemplo da possibilidade do infinito armazenamento de
toda arte-mídia criada, embora os custos políticos e econômicos não fiquem claros.
Ippolito (2014) predica que a memória da arte arte-mídia está sob três níveis de ameaça
não excludentes: a ameaça tecnológica, que ao inserir novas ferramentas no sistema
produtivo, catalisa o que ele chama de “cultura da obsolescência”; a ameaça da
legislação, que permanece atrelada às garantias de uma propriedade autoral unificada e
singular e; a ameaça institucional, na medida que instituições, como os museus, tanto
negociam políticas de conservação quanto estimulam ações de esquecimento (2014, p.
7).
Fig.4. Mark Napier, net.flag, obra on-line do Museu Guggenheim (netflag.guggenheim.org); criação
inicial: 2002; fonte: http://marknapier.com/netflag
2120
Embora essas particularidades sejam cruciais para reflexão incipiente da relação
entre produção on-line e web-colecionamento, temos, no caso brasileiro uma questão
que agrava o processo: instituições museológicas brasileiras raramente compram obras
de arte. A doação tornou-se o mais importante e corriqueiro processo de assimilação dos
museus públicos dedicados às artes visuais. Os museus, de modo geral, são amplamente
dependentes das doações para ampliar seus acervos. Se a doação é o dispositivo mais
usual na composição de acervos de arte contemporânea, artistas e colecionadores
privados tornaram-se, indiretamente, os provedores de tais acervos. Todavia, quando
artistas não são solicitados a doar e quando colecionadores não adquirem obras
vinculadas às novas tecnologias, temos uma cadeia de problemas que comprometem a
manutenção memorial de obras como a de Vasconcelos66.
De fato, algumas características da arte on-line não são facilmente assimiladas
pelo mercado de arte. Em especial, a produção vinculada à web fere os valores de
exclusividade, de raridade e, portanto, de distinção. Valores tão caros à economia das
artes visuais. Tradicionalmente trata-se de uma produção colocada à disposição de
milhões de pessoas, uma produção que pode ser copiada, hackeada e alterada por
interatores, independente dos desejos e intenções de seus criadores e, possíveis,
colecionadores proprietários. Neste tocante, Quaranta apresenta seu diagnóstico para o
problema:
66
Como lembramos acima, a questão é mais delicada na medida que outras linguagens
são “contaminadas”
2121
uma obra em vídeo, som ou software, uma imagem animada ou
estática, que podem ser facilmente baixadas por qualquer um?
(QUARANTA, 2014, p.239)
67
2122
das estratégias possíveis é seguir o conselho de Quaranta, adaptando-a às instituições
convencionais.
Podemos especular um momento em que as instituições admitam publicamente
sua incapacidade de gerir obras que necessitem de acesso continuo, provedores atentos
às alterações de suas obras, de segurança cibernética capaz de garantir a integridade dos
trabalhos, de atualizações tecnológicas demandas pelos artistas, entre outros fatores.
Uma vez que poucas instituições em países em desenvolvimento são capazes de garantir
recursos para esse tipo de colecionamento - garantir a emulação, a migração ou a
reinterpretação das obras -, uma possibilidade é a construção de uma rede de
colecionadores privados, vinculados aos museus por códigos éticos e de pertença.
Uma rede de coleções compartilhadas gerida pelas instituições que contasse com
obras arquivadas, preservadas e mantidas por parceiros das instituições68, na mesma
direção apontada por Leleu (2010) na condição documental. Evidentemente isso não
destituiria museus de sua participação nesse colecionamento. Mas ampliaria as
possibilidades de acesso, via a parceria, a obras que tendem à condição off-line. Esta
rede certamente colocaria os museus de arte nas discussões patrimoniais próprias aos
museus de comunidade. Exigiria uma rediscussão do sentido de posse-propriedade
paternalista, fartamente amplificado pelas demandas fetichistas conferidas às obras de
arte pelas sociedades de consumo. Tal rede seria uma coleção de colecionadores, ou
seja, uma coleção de relações, de tensões, de enfrentamentos e de confiança, muito mais
próxima à realidade poética da arte contemporânea. Num continuo jogo de re-coleção,
pois alteraria dentro dos museus o próprio sentido de colecionar, transformando as
68
Alguns projetos bem-sucedidos devem ser lembrados: Projeto Medien Kunst Netz, plataforma
digital para arte midiática criada em 2004 pelos pesquisadores Rudolf Frieling e Dieter Daniels. Acesso:
˂http://www.medienkunstnetz.de/medienkunstnetz˃; Projeto Netzspannung.org , plataforma para arte
midiatica criada pelos midiartistas Monika Fleischmann e Wolfgang Strauss em 1997; acesso:
˂http://www.netzspannung.org/about/?lang=en˃
2123
instituições em lugares de partilha, preocupadas em intermediar o acesso às obras,
abrindo mão da exclusividade de possuí-las, expô-las e armazená-las.
Referências Bibliográficas
BAMBOZZI, Lucas. “Aproximações arriscadas entre site-specific e artes locativas” In:
BAMBOZZI, L.; BASTOS, M.; MINELLI, R.2012 (Orgs.). Mediações, tecnologia e
espaço público: panorama crítico da arte em mídias móveis. São Paulo: Conrad Editora
do Brasil, 2010. p. 65-74.
BOONE, S. “O efêmero tecnológico e a ausência da arte computacional nos acervos
brasileiros”. Tese de Doutorado. Programa de Pós-graduação em Artes Visuais.
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2013.
GIANNETTI, C.. Estética Digital: sintopia da arte, a ciência e a tecnologia. Trad. Maria
Angélica Melendi. Belo Horizonte: C/Arte Editora, 2006
2124
LEOTE, R.. “Arte e mídias emergentes: modos de fruição” In: ROCHA, C. (org.). Arte:
limites e contaminações. Salvador: ANPAP, 2007, p.184-192.
2125
MIRANTE E DESAPEGO: OBRA EM DESLOCAMENTO, DIFERENTES
LUGARES E UM SÓ MUSEU.
Abstract: The numerous offsets from a work by artist paraense Armando Queiroz, in the
sculpture garden MUFPA and subsequent disappearance of your viewing angle, we instigated
the safeguard procedures reflect and museological communication of a work of conceptual art
and its modes of appearance and disappearance in a University Museum back to Visual Arts.
The reflections of this communication are part of the research "and artists and Visual
Collections from the Museum of the Federal University of Pará (MUFPA): research on art and
research in art, who was supported by the Announcement of 2015 collections of Dean of
research and graduate studies (PROPESP) at the Federal University of Pará (UFPA). The
research methodology approached the field of contemporary art (art history and art criticism) to
the field of museology and heritage, with regard to the process of Museum documentation. The
2126
resources used were semi-structured interviews with the artist and curator, questionnaires with
the public. At the end we weave some thoughts about the difficulty of conducting research and
museological documentation of two works of conceptual art of the artist, titled of Mirante
(wood carving/2006 modules) and Detachment (performance for video of 2012). Contact with a
specific conceptual work, safeguarded in a University Museum as MUFPA establishes link with
the definition of Museum and its functions arising from your action that includes: preservation,
research, communication, education, exhibition, mediation, management, architecture.
Articulate and reflect on the process by which work Gazebo/Detachment of Armando Queiroz
contributes to the study of this phenomenon in full development in the world of museums, as we
know with your role to safeguard memories.
Key-words: MUFPA;Conceptual Art; Museum Documentation; Armando Queiroz;
Detachment.
2127
Introdução
69
O projeto foi desenvolvido entre os anos de Agosto de 2015 até julho de 2017. A partir dele foram
realizados dois Trabalhos de Conclusão de Cursos no Curso de Museologia, da discente Sandra Regina
Coelho da Rosa (2017), que versou sobre documentação Museológica da Coleção Carmen Souza e outra
do Curso de Bacharelado em Artes Visuais do discente Werne Souza Oliveira (2017), que tratou do tema
da Arte Conceitual no MUFPA por meio da análise das obras de Armando Queiroz.
2128
congregando a história da arte, a crítica, as teorias da arte e os conceitos de outras áreas
do saber). Em ambas as modalidades de pesquisa há apenas a diferença de intensidade
deste pensamento visual.
A diferença da pesquisa em Arte e da pesquisa sobre Arte, segundo Sandra Rey
(2002, p.125-140) nos aproxima da Arte em seu processo de constituição, como num
fluxo. Propõe-nos imaginar a nascente de um rio – aí se situaria a pesquisa em Arte,
enquanto que na desembocadura do rio, no mesmo fluxo – estaria a pesquisa sobre Arte.
Ambas realizam trocas e se situam no mesmo fluxo, e chega a um mesmo destino – o
espectador da obra.
A pesquisa sobre a Arte Contemporânea, como as obras do artista visual
Armando Queiroz, foi processada por uma aproximação dos pesquisadores nas três
dimensões de instauração da obra, que se entrelaçaram mutuamente: na forma de ideias,
de esboços; os procedimentos ou a dimensão prática do modo de fazer do artista; e as
atribuições de significados. Neste sentido, por meio do instrumental metodológico que
inclui a entrevista semiestruturada e as conversações com o artista, e a observação in
loco dos processos de documentação museológica realizado pelo MUFPA. A pesquisa
aproximou campos disciplinares da Arte Contemporânea- Crítica e História da Arte ao
campo da Museologia e Patrimônio, em especial aos processos de documentação
museológica.
O contato com uma obra conceitual específica, salvaguardada em um museu
universitário como MUFPA estabelece vínculo com a definição de museu e suas
funções que decorrem de sua ação que inclui: preservação, pesquisa, comunicação,
educação, exposição, mediação, gestão, arquitetura (DESVALLÉES; MAIRESSE,
2013). Articular o processo pelo qual passou a obra Mirante/Desapego de Armando
Queiroz contribui para o estudo desse fenômeno em pleno desenvolvimento no mundo
dos museus, como o conhecemos com seu papel de salvaguardar memórias.
2129
Os inúmeros deslocamentos de uma obra do artista paraense Armando Queiroz,
localizada no Jardim de Esculturas do MUFPA e seu posterior desaparecimento do
ângulo de visão, nos instigou a refletir acerca dos processos de salvaguarda e
comunicação museológica de uma obra de arte conceitual e seus modos de aparição e
desaparição em um museu universitário voltado às artes visuais.
2130
investigação, sob a guarda da instituição; e o Público (BRITTO, 2014). Quase trinta e
cinco anos de sua criação o MUFPA se afirma como o único museu instituído
oficialmente pela Universidade Federal do Pará (UFPA).
a b
2131
o público. Entender a arte conceitual é desafio para poucos, não só depende de uma
acentuada sensibilidade adquirida por um notório conhecimento teórico e técnico do
assunto, mas também para compreender as mensagens no objeto é preciso ter e estar em
atualidade com os fatos políticos e sociais da sociedade em que vive. Segundo Cristina
Freire (1999, p.15) “A obra conceitual quebra expectativas arraigadas e cria, muitas
vezes, um desconforto intelectual ou em alguns casos até mesmo físico para o
espectador”.
Deste acervo de arte conceitual do MUFPA, destacam-se as peças de Armando
Queiroz que tiveram suas aquisições pelo museu, de origens diferenciadas, seja pelas
exposições (Traços Locais II e Amazônia Lugar da Experiência ) ou por doação do
artista ou aquisição por compra da obra pelo museu, que detém obras de diferentes
períodos e criações do artista, sendo elas: “Tempo” (2005), objeto; Indumentária da
performance para vídeo- “Urubu-Rei(2009)” , “Aparelhos para escutar sentimentos e
segredos” (2008), instalação; “Auto da Devassa”, “Cartório de óbitos” e “Lista de
Morte” (2010), instalação; “Ouro de Tolo” (2010), objeto ; “Casa sega” (2012), objeto;
“Máscara I, II, III, IV e V” (2012), escultura; 25 Objetos de vidro (2012), “Leque para
borboletas” (2012), gravura; “Mirante” (2006), escultura; “Desapego”(2012), vídeo.
Portanto a pesquisa propiciada pelo edital e a bolsa consistiu em estudar a obra
de Armando Queiroz a partir de característica evidenciada na arte conceitual conectada
com sua salvaguarda no MUFPA. Escolhemos a obra Mirante e Desapego, dentre as
citadas para realizar um estudo mais detalhado, uma pesquisa que pudesse possibilitar a
compreensão do processo pelo qual passou a obra em sua constituição até sua recepção
e salvaguarda no museu. Ou seja, entender a obra “Mirante” (2006) e a ideia que a
criou, se foi concretizada a partir da ideia inicial ou não, como se deu a relação da obra
com o espaço e suas transformações, esse processo relacional fazia parte da ideia
original ou foi consequência das limitações espaciais por estar instalada no museu.
Com essas indagações ancoramos nossa pesquisa em aspectos que conduzem a pesquisa
2132
em arte tais como: As novas formas de efetivação das propostas artísticas e os canais de
circulação que inclui os papéis do artista e do público. Questões relacionadas à atividade
do artista na arte conceitual, que como chama a atenção Cristina Freire (1999) muitas
criações fundem-se com a interpretação do crítico, do curador e até mesmo, em certos
projetos, com o pesquisador em ciências sociais. Por outro lado a ideia como
predomínio na arte conceitual incita o questionamento sobre o papel do Museu e sua
concepção enquanto espaço de salvaguarda e ou como local de experimentação.
Neste sentido, verificamos as proposições do museu para o tratamento aos novos
suportes usados na apresentação da arte conceitual. Será possível experimentar e
comunicar esta relação que vem se estabelecendo entra as obras de arte salvaguardadas
pelo MUFPA com suas características expressas nas estratégias utilizadas na elaboração
da obra, em que predomina a ideia, caso da proposta de Armando Queiroz. A
experiência de Armando fez interação com o espaço e com funcionários. Ao
permanecer a ideia, então mais do que guardião o museu é testemunha do processo pelo
qual passou a obra.
Baseadas nestas informações, estudamos as diversas possibilidades da relação
obra/museu, público e os questionamentos sobre o conceito que integra esta obra e faz
do museu seu grande interlocutor com o público. Para pesquisar a obra “Mirante”
(2006), que se transforma pelo ato do artista em “Desapego” (2010), foi observado o
processo de criação, transformação e inserção em um museu universitário voltado para
arte contemporânea, segundo as afirmações de sua atual diretora a profa. Jussara
Derenji.
Esse estudo teve como objeto de pesquisa as obras de arte de Aramando Queiroz,
cuja relevância justifica-se pela pesquisa dos objetos/documentos acondicionados na
reserva técnica do MUFPA, na intenção de ampliar o entendimento da investigação,
interligando as obras artísticas e os documentos(registros, entrevistas, recepção da obra,
2133
dentre outros), de modo que promovam a recuperação de informações referentes à
trajetória de vida e obra de duas obras da coleção do artista sob a guarda do museua por
meio da documentação de acervos museológicos em relação aos artefatos/objetos
artísticos.
A documentação de acervos museológicos segundo Helena Dodd Ferrez (1994) é o:
[...] conjunto de informações sobre cada um dos seus itens e, por
conseguinte, a representação desses por meio da palavra e da imagem
(fotografia). Ao mesmo tempo, é um sistema de recuperação de
informação capaz de transformar as coleções dos museus de fontes de
informações em fontes de pesquisa científica ou em instrumentos de
transmissão de conhecimento (FERREZ, 1994, p. 66, grifo nosso).
Nesta perspectiva museológica, a pesquisa apoiou-se no filtro teórico-prático da
documentação, em busca do conjunto de informações das obras, considerada aqui como
fonte de pesquisa científica, por meio da análise das etapas/ações direcionadas a esse
acervo ao adentrar no MUFPA – seleção, aquisição, pesquisa, conservação,
documentação e comunicação (CURY, 2005), ou seja, os processos ora citados em que
os objetos e documentos perpassam por cada uma dessas ações, deixando um registro
informacional dessas etapas; e quando sistematizadas em uma proposta de catalogação
das peças, com campos de registros definidos para gerar novas informações e produção
de conhecimento, pois, mediante a sua estrutura organizacional, os museus estão ligados
diretamente aos métodos de salvaguarda e ao processo de comunicação dos bens
culturais para com o seu público.
Segundo Ulpiano Meneses (1998), a transformação do artefato em documento é
possível pelas ações da musealização, constituída e compreendida em diversos
processos para assumir a função documental. Ampliando o entendimento, Waldisa
Rússio (1990) assegura que o ato de musealizar pondera a informação trazida pelos
objetos em termos de “documentalidade, testemunhalidade e fidelidade” (RÚSSIO,
1990, p. 8). Esses procedimentos são mais bem interpretados por Marília Cury (2005),
sobre os caminhos percorridos pelos objetos almejando a musealização. Esses caminhos
iniciam-se na aquisição, depois passam pelos processos de pesquisa, conservação e
documentação e finalizando com a comunicação, como mostra a representação gráfica
do processo de musealização dos objetos no Quadro 1.
2134
Quadro 1- Diagrama do Processo de Musealização.
2135
Mirante e Desapego de Armando Queiroz
Armando Queiroz (Belém, 1968) é artista visual paraense, graduado em artes
visuais pela UFPA e atualmente está cursando o mestrado em poéticas visuais em Minas
Gerais na Universidade Federal. A trajetória artística de Armando se insere no sistema
de arte da cidade em 1993, participando de diversas mostras coletivas e individuais no
Brasil e no Exterior. Nesta fase, em 1993, o artista se expressava criando pequenos
objetos a partir do cultivo do universo do bricabraque, e produzia os ready-made, termo
adotado pelo artista Marcel Duchamp (1887-1968) para designar os objetos criados por
ele a partir de materiais de uso cotidiano, de uma cultura de massa. Nos termos da
historiadora da arte, Marisa Mokarzel (2011, p.50), os objetos de Queiroz trazem: “Os
arranjos construtores de uma cultura popular [que] deixam antever a admiração por
Emanuel Nassar e já revelam a percepção crítica do mundo, a acidez interpretativa que
não impede a poética visual”.
No início, Armando propôs ao museu a criação da obra “Mirante”, uma
escultura de grande verticalidade, composta por módulos quadrangulares de madeira
fixos uns aos outros que, juntos, funcionariam como uma espécie de observatório ao
qual, ironicamente, era vedada a observação (Figura 2).
2136
6 metros
Então essa obra, ela foi concebida, percebida como mirante, porque
até então eu não sabia que fazia parte do projeto da professora Jussara,
de abrir aqueles muros que até então eram muros que impediam a
visibilidade dali, de quem passava na rua, que depois ela colocou
um gradio. E aí eu acho que foi uma opção muito boa dela, de uma
possibilidade que a cidade ganhasse esse jardim, e as pessoas
percebessem esse fluxo assim, que ela comentando comigo, que o
Museu da UFPA é um espaço muito privilegiado da cidade, e que
ela teve informação de uma pesquisa que aquela esquina é a
esquina de maior fluxo de Belém, de trânsito de pessoas e carro.
Então, na verdade, ela nunca se configurou como esse obelisco, e ela
ganhou a horizontalidade. Então desses elementos que estão muito
mais lidando com a relação com o espaço, com as outras obras e
com pouco público, e antes disso teve um experimento (Entrevista
Armando Queiroz, 2014,Grifo nosso).
2137
O processo de criação da obra Mirante só foi possível após a realização de vários
diálogos do artista com os funcionários e gestora do espaço museológico, assim como após
ter realizado algumas instalações da obra nas salas da casa-Palacete. Conforme relato de
Armando:
Foi neste período de experimentação, e a partir dos possíveis diálogos da obra nos
ambientes da Casa-Palacete, que Armando observou a interação dos operários da
construção civil com a obra, nos espaços construídos e abertos. Os operários estavam
trabalhando na obra de restauração da edificação. Na Figura 3 apresento a imagem da obra
exposta em dois salões do MUFPA, conforme descrito por Armando e registrado por
Patrick Pardini.
Essa ideia inicial de construir o Mirante em sua grande verticalidade foi
inviabilizada devido à interferência visual que provocaria na fachada do prédio. Assim,
o artista buscou uma nova concepção, a partir de módulos soltos, que poderiam tomar
formas variáveis (Figura 4). A intenção do artista era buscar um diálogo da obra com os
diversos públicos que podiam interagir com os módulos e articulá-los de diferentes
2138
maneiras. As Figuras 5 e 6 apresentam duas arrumações diferenciadas da instalação Mirante no
jardim do MUFPA, após o processo de feitura e posterior inauguração do espaço expositivo e
paisagístico, em maio de 2006. A primeira imagem (Figura 5) demonstra a interação de visitante
anônimo e sua proposta; a segunda fotografia (Figura 6), realizada em 2009, demonstra a
relação dos transeuntes nas calçadas da “esquina” e suas possíveis interações visuais com a
instalação, que se encontra em outra organização.
2139
Figura 4. Mirante, escultura 2006. Armando Queiroz.
Foto: Arquivo do Artista.
2140
Figura 6. Relação das pessoas com a obra no jardim, em maio de 2009
Após longo período de exposição da obra em área livre, com as intempéries do
tempo, a deterioração da madeira foi inevitável. Neste contexto, em 2010, Queiroz
resolveu desdobrar o princípio conceitual da obra e fazer o seu enterro; houve então um
longo período de negociação com a diretora do museu. O artista só colocou em prática o
seu novo projeto: “Desapego”, durante a programação especial do 20º Salão Arte Pará
(2012), quando houve uma performance voltada para vídeo e fotografia, constituída por
uma cerimônia de enterramento da obra, realizada ao amanhecer no próprio jardim do
MUFPA (Figura 7).
2141
Nos relatos de Marisa Mokarzel (2011, p.37-53), que foi a curadora da ação de
Queiroz, ela narra sobre o dia do ritual artístico:
Neste ritual, outros tempos da história e da memória do lugar afloraram por meio
dos fragmentos de louças e objetos encontrados por ocasião da escavação do sítio usado
para enterrar a obra. Hoje, há apenas uma placa com a datação de um Mirante que
nunca existiu, ficou no trânsito da escultura modular, na imagem ora ausente, na matéria
abrigada na terra. Deste cerimonial de enterramento da obra no Jardim do MUFPA
ficaram os registros do ato performático que gerou o vídeo, assim como as fotografias.
Estes produtos artísticos são as coleções geradas a partir da performance do artista
Armando Queiroz. E na paisagem do Jardim de Esculturas estão as marcas inscritas
deste ato performático, não visíveis ao visitante, mas que agenciam para outras tramas e
urdiduras daquele “lugar de memória” (NORA, 1993, p.1-28).
As informações das etapas de metamorfose da obra Mirante em Desapego e suas
questões conceituais não estão registradas nos processos de documentação museológica
2142
da obra, nem mesmo o vídeo da performance foi tombado enquanto acervo do MUFPA.
Na pesquisa realizada, e em fase de finalização até agosto de 2017, foi elaborado o
arrolamento de todas as obras do artista. Assim como, a proposição de criação da
Coleção Armando Queiroz, que contenha as fases e momentos de seu fazer conceitual,
assim como, a proposta de criação de uma ficha catalográfica, que tenha o registro das
fases da obra e seu projeto inicial e metamorfoses, assim como, entrevista com o artista
e sua recomendação para salvaguarda e comunicação da sua obra “Desapego”.
Outro momento realizado pela pesquisa refere-se às questões comunicacionais
ou de recepção da obra por parte do público. Neste sentido, foi organizada a atividade
“Conhecendo Arte Conceitual no MUFPA” pelo discente de Artes Visuais e bolsista de
iniciação à pesquisa Werne Oliveira. A proposta foi vivenciar e experiênciar junto com
treze discentes do Curso de Artes Visuais, a visita ao MUFPA pra conhecer a obra
Mirante e Desapego, atividade da disciplina Laboratório de Projetos Experimentais,
ministrada pelo docente Ubiaraelcio Malheiros.
A visita foi realizada no horário da tarde, primeiro foi feita a visita ao jardim do
museu, os alunos sabiam sobre a obra, mas não o seu destino, o enterro no jardim, ou
seja, sua ausência material, e não mais existente no campo visual. Observa-se que neste
local, consta apenas uma placa com o nome do artista e o nome da obra Desapego. A
visita em seu roteiro, foi iniciado como o “conhecer a obra a partir do seu fim”, como
explicitou Marisa Mokarzel que conversou com os discentes nesta atividade, falando
sobre o artista, a obra e arte conceitual. Depois, foi encaminhado um questionário70 aos
participantes com três questões, dentre estes cinco discentes responderam.
Na questão: “O que você sentiu sobre a obra Mirante e Desapego?”:
70
Dados apresentados no Trabalho de conclusão de Curso em Artes Visuais (bacharelado) de Werne
Oliveira (2017).
2143
minimalistas e permitia a interação do espectador para transformar sua
composição. No entanto, ao chegar ao museu da UFPA fiquei frustado
por não encontrar uma obra que ocupava um significativo campo
visual no local. Somente com a apresentação da obra metamorfoseada
em Desapego, fui entender a sua ausência no espaço e perceber todo
um processo reflexivo do artista para a obra, desde o seu início até o
seu relativo fim performático. E isso realmente achei incrível (Ailson
Tanaka, 2017).
Gosto da ideia de haver apenas uma placa. Para mim esta placa é
lápide. Lápide da obra. Sempre me interessei pelo silêncio, pela
sutileza do silêncio. Agora, cada vez mais considero muito
interessante pensar em como alguém pode encontrar aquela placa, ao
2144
acaso, e se perguntar o que representa, onde está aquele mirante do
qual fala esta lápide. Onde está?
Considerações Finais
2145
de gestão do acervo contemporâneo do MUFPA e quanto ao processo de documentação
museológico, na atualidade do museu não existe essa preocupação ou ação.
Referências bibliográficas
BRITTO, Rosangela Marques de. Os usos do espaço urbano das ruas e do
patrimônio cultural musealizado na “esquina” da “Jose Malcher” com a
“Generalíssimo”: itinerários de uma antropóloga com uma rede de interlocutores no
Bairro de Nazaré (Belém-PA). 2014. Tese (Doutorado em Antropologia Social) –
Universidade Federal do Pará, Belém, 2014.
2146
DESVALLÉES, André; MAIRESSE, François. Conceitos-chave de Museologia.
Tradução: Bruno Brulon Soares, Marília Xavier Cury. ICOM: São Paulo, 2013.
Disponível em:
<http://icom.museum/fileadmin/user_upload/pdf/Key_Concepts_of_Museology/Conceit
os-ChavedeMuseologia_pt.pdf>. Acesso em: abr. 2015.
DERENJI, J. 1987. Arquitetura eclética no Pará: no período correspondente ao ciclo
econômico da borracha (1870-1912), In: Ecletismo na Arquitetura Brasileira.
Organizado por A. Fabris, pp.147-175. São Paulo: Nobel; EDUSP.
FREIRE, Cristina. Arte Conceitual. São Paulo: Editora Iluminuras ltda. 1999.
FERREZ, Helena Dodd. Documentação museológica: teoria para uma boa prática. In:
Cadernos de ensaios, n. 2. Estudos de museologia. Rio de Janeiro: Minc/Iphan, 1994.
p. 64- 67.
NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática dos lugares. Tradução Yara
Aun Khoury. Projeto História, São Paulo, n.10, p.1-28, dez., 1993.
2147
PADILHA, Renata Cardozo, Documentação Museológica e Gestão de Acervo.
Florianópolis: FCC Edições, 2014. p. 14-24. (Coleção de Estudos Museológicos, v. 2).
REY, Sandra. Por uma abordagem metodológica da pesquisa em Artes Visuais. In: In:
BRITES, Blanca; TESSOLER, Elida (Orgs.). O meio como ponto zero: metodologia
da pesquisa em artes plásticas. Porto Alegre: EdUFRGS, 2002. p. 125-140.
2148
Patrimônio e memória
da alteridade em
coleções museológicas
de arte e cultura
populares
2149
AS CAMADAS DO DIABO: ALGUMAS TRANSFORMAÇÕES DE
(IN)VISIBILIDADE
Resumo: O diabo tem lugar de destaque no imaginário coletivo ocidental. Este artigo objetiva,
de forma panorâmica e preliminar, apresentar a pesquisa em andamento sobre a representação
do diabo em museus brasileiros de arte e cultura popular. Metodologicamente, tem como base a
literatura especializada proveniente dos estudos literários e culturais sobre o diabo. Constata,
por meio da revisão de literatura, que o diabo passou por inúmeras transformações de
visibilidade ao longo dos anos e que ao passo que existe uma dessacralização do diabo na
literatura, o tema ainda é invisibilizado e pouco estudado na museologia.
Palavras-chave: Diabo; Literatura; Cultura Popular; Museologia; Museu.
Abstract: The devil has a prominent place in the Western collective imagination. This article
aims, in a panoramic and preliminary way, to present the ongoing research on the representation
of the devil in Brazilian museums of art and popular culture. Methodologically, literature based
on literary and cultural studies on devil. He notes, through a literature review, that the devil has
gone through countless of visibility over the years and whereas of the devil in the literature, the
theme is still invisible and little studied in the museology.
Keywords: Devil; Literature; Popular Culture; Museology; Museum.
2150
“No princípio...
o anjo Lúcifer foi expulso do céu e condenado a governar o inferno eternamente.
Até que decidiu tirar férias...” 1
Esta é a voz-off (e texto) que abre a série televisiva Lucifer (2016), produção
norte-americana criada por Tom Kapinos que narra o dia a dia, ou pelo menos as férias
na terra, de Lúcifer Morningstar. Nesta narrativa audiovisual o diabo é branco,
heterossexual, alto, bonito, sexy, sensual, articulado, arrogante, culto, divertido,
persuasivo, espontâneo, influente e elegante. Sim, ele “veste Prada” (FRANKEL, 2006)
mesmo! Mas nem sempre foi assim.
1
Conforme no original: “In the beginning... the angel Lucifer was cast out of Heaven and condemned to
rule Hell for all eternity. Until he decided to take a vacation…”
2151
transformações de visibilidade. Essas transformações das “camadas” do diabo são o
mote deste texto, que é fruto das considerações preliminares de uma pesquisa que
desenvolvo na Universidade Federal de Goiás – cujo objetivo é levantar e analisar
musealias que representem e façam pensar a figura do diabo nos acervos de arte e
cultura popular dos museus brasileiros – junto aos projetos de pesquisa Museologia e
memória social em performances culturais e Performances e representações do diabo
nos acervos de cultura popular de museus brasileiros ambos sob a coordenação e
orientação da professora Vânia de Oliveira.
“Conhecem o Diabo?”2
“O diabo é-nos muito mais próximo que o Senhor e [segui-lo] é muito mais
cômodo e simples do que perseguir os obscuros caminhos divinos” (FLUSSER, 1965, p.
17). O filósofo tcheco, naturalizado brasileiro, Vilém Flusser (1965, p. 16), no livro
História do Diabo, aponta que “nós, os ocidentais, somos produtos de uma tradição
oficial que pinta o diabo com cores negativas, a saber, como opositor de Deus”. No
entanto, pontua o autor, “essa tradição parece querer esgotar-se” (FLUSSER, 1965, p.
16).
O diabo, como é sabido e apesar da tradição oficial apontada por Flusser, tem
lugar de destaque no imaginário coletivo ocidental, sobretudo enquanto “resultado da
ascensão do cristianismo à religião do Império” (MAGALHÃES; BRANDÃO, 2012, p.
277) nos séculos XII e XIII até a ideia de sedução e consumo que lhe cabe na
contemporaneidade. Ele – e os temas ligados a ele – desperta e alimenta o interesse do
público. Não à toa existam tantas narrativas sobre o diabo e tantos produtos culturais –
como Lucifer, por exemplo – que bebam dessas narrativas.
2
Trata-se de uma referência ao conto “O Senhor Diabo”, do escritor português Eça de Queirós.
2152
A literatura, o teatro, a música, as artes em geral e as várias manifestações
culturais nos dão pistas do por que desse lugar de destaque e – compete mencionar que
– as buscas por arcabouço teórico para fundamentar a pesquisa sobre a representação do
diabo em museus brasileiros de arte e cultura popular evidenciaram que o campo de
maior produção bibliográfica sobre o diabo é a literatura. Neste sentido, é a partir dela
que este texto pretende abordar as camadas do “tinhoso”. Todavia, oportunamente,
serão citados outros campos e outras linguagens.
O “diabo é idêntico à língua” (FLUSSER, 1965, p. 88) e língua é entendida neste
texto, numa leitura flusseriana, como realidade na qual se articulam os pensamentos.
Nesse emaranhado de pensamentos, observa-se – à luz de Magalhães e Brandão (2012,
p. 283) – que “a figura do diabo apenas surge na escrita por meio da expressão literária”
e temos, na literatura, inúmeras narrativas sobre o diabo “que forjam o imaginário
ocidental” (MAGALHÃES; BRANDÃO, 2012, p. 283). Dada a centralidade que o
diabo tem em algumas narrativas religiosas consideradas sagradas para os cristãos (que
acabam sendo reconstruídas e/ou citadas pelas narrativas seculares), entende-se, neste
texto a Bíblia como literatura.
Posto isto, observa-se no Antigo Testamento, por exemplo, embora pouco
presente, que o diabo é considerado um anti-deus e recebe o nome de “Serpente”,
responsável pela “perda do paraíso” de Eva e Adão. No Novo Testamento, por sua vez,
ele aparece como “Satanás” e no Apocalipse, como “Lúcifer”, “Anjo Caído” e “Estrela
da Manhã” (Morningstar, lembra?), nomes que se multiplicam em inúmeras narrativas
com o passar do tempo.
O diabo, ainda citando Flusser,
2153
aspectos do mesmo processo. Assim poderíamos afirmar que a nossa
tentativa de fugir do diabo é um outro aspecto da nossa tentativa de
emergir da temporalidade (FLUSSER, 1965, p. 15).
2154
Ferraz (2009, p. 02) pontua que as narrativas sobre o diabo foram contadas e recontadas
“pelos autores das mais diferentes épocas e das mais diversas literaturas”.
Estas narrativas vão desde A Divina Comédia, de Dante Alighieri (2003);
passando pelo pacto com o Diabo em Fausto, de Goethe (2003); O Diabo do
Campanário, de Edgar Allan Poe (2017); O Auto da Barca do Inferno, A Hora do
Diabo, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de Gil Vicente (2012), Fernando Pessoa
(2004) e José Saramago (1991), respectivamente. Obras de autores que, em conjunto
com os anteriormente citados, influenciam – direta ou indiretamente – a produção
literária brasileira e as nossas leituras acerca desta tão incompreendida personagem.
Exemplo dessas influências são as obras Macário, de Álvares de Azevedo
(1988); Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa (1994); O Auto da
Compadecida, de Ariano Suassuna (2005), que foi adaptada para o teatro e cinema, na
qual o diabo é o “Encourado” acusador, uma mistura de “promotor, sacristão, cachorro e
soldado de polícia” (SUASSUNA, 2005, p. 128); e, por falar em outras linguagens,
temos no cinema e audiovisual – para citar alguns exemplos – Deus e o Diabo na Terra
do Sol (1964); Rainha Diaba (1974); Madame Satã (2002) e O Homem que Desafiou o
Diabo (2007) filmes de Glauber Rocha, de Antônio Carlos Fontoura, de Karim Aïnouz
e de Moacyr Góes, respectivamente, dentre outras manifestações.
Nota-se que o diabo – ou o imaginário coletivo que se criou sob esta personagem
– transita e se confunde com a história, passeia pela literatura, pela teologia e dá o ar da
graça no teatro, no cinema e, sobretudo, nas manifestações de cultura popular, pois
como nos lembram Magalhães e Brandão (2012, p. 279), “é dentro da cultura popular
2155
cristã que o Diabo passará a ter força na arte”. Afinal, “uma coisa é certa: o cristianismo
é o principal responsável pela força do Diabo no mundo, pois é justamente nele que as
representações e projeções do Diabo encontrarão um singular avanço na cultura e na
civilização” (MAGALHÃES; BRANDÃO, 2012, p. 278).
Ainda no âmbito da literatura, campo em que existe uma extensa produção
acerca do diabo, Salma Ferraz (2009, p. 04) pontua que “o Diabo, em carne, osso e
espírito fez (e faz) sucesso entre as crianças” e essa afirmativa, penso, se estende aos
jovens e adultos – não à toa o livro O Diabo veste Prada tenha sido adaptado, em um
curto intervalo de tempo, para o cinema e conseguido um grande público e a série
televisa Lucifer, citada no início desta comunicação, tenha alcançado só no primeiro
episódio mais de sete milhões de espectadores3.
Infere-se que esse fascínio pelo diabo seja fruto das sucessivas transformações
de sua visibilidade, que ganhou inúmeras camadas ao longo dos anos e que passou,
segundo Marcos Renato Holtz de Almeida (2010, p. 01), a “ser utilizado pela indústria
do entretenimento e pela sociedade de consumo como mercadoria capaz de satisfazer os
gostos das sociedades e das culturas contemporâneas”.
Mas, e os museus?
3
Os dados podem ser consultados neste link: http://www.adorocinema.com/series/serie-18145/audiencias/
2156
operatória que é, nas palavras dele, “o conjunto sequencial e inter-relacionado de
atividades que são inerentes ao fazer museológico, que independem da perspectiva
formal ou conceitual da instituição” (CUNHA, 2012, p. 242). O autor esclarece ainda
que esta cadeia conta com ações de salvaguarda e comunicação patrimoniais. Mas de
que maneira os museus expõem o fascínio pelo Diabo?
Vânia de Oliveira (2015, p. 08), no projeto de pesquisa intitulado Performances
e representações do diabo nos acervos de cultura popular de museus brasileiros,
pontua que “a vivência profissional tem mostrado que o capeta aparece nos museus em
geral, e em particular nos acervos de cultura popular, onde sua ocorrência é mais
frequente”. Todavia, a pesquisadora constatou que não foram, até o momento,
encontradas referências sobre esta indagação (OLIVEIRA, 2015). Vale mencionar que
os estudos de Oliveira (2015) vão ao encontro dos estudos de Magalhães e Brandão
(2012) quando dizem que é na cultura e na arte popular que o diabo e a representação
dele têm maior aparição.
No âmbito dos museus, no contexto brasileiro e utilizando como mecanismo de
busca o Cadastro Nacional de Museus (CNM), não foi encontrado nenhum museu cuja
denominação ocorresse a palavra diabo ou algum de seus sinônimos. Contudo, apesar
de não haver museus do diabo e afins e considerando o que a literatura especializada diz
acerca da cultura popular enquanto campo para se estudar o diabo, foram levantados –
por meio do CNM – quatorze museus/centros culturais que têm por tipologia a arte e a
cultura popular. Estes e os acervos/coleções que possuem são o foco de análises da
pesquisa que se delineia, sob a coordenação e orientação de Vânia de Oliveira, em
artigos a serem publicados e em exposição a ser organizada ao fim do desenvolvimento
desta pesquisa.
2157
À guisa...
Referências Bibliográficas
ALMEIDA, Marcos Renato Holtz. O Diabo e a indústria cultural. Revista Nures. n. 16.
Set-dez, 2010.
AZEVEDO, Álvares de. Macário. 3.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988.
2158
CUNHA, Marcelo Nascimento Bernardo da. Algumas considerações sobre museus
digitais. In. SANSONE, Livio (Org.). A política do intangível: museus e patrimônios
em nova perspectiva. Salvador: Edufba, 2012.
FRANKEL, David. O Diabo veste Prada. EUA: 20th Century Fox, 2006.
2159
QUEIRÓS, Eça de. O senhor diabo. Disponível em:
<http://virtualbooks.terra.com.br/freebook/port/O_Senhor_Diabo.htm>. Acesso em: 30
ago. nov. 2017.
ROCHA, Glauber. Deus e o Diabo na terra do sol. [S.l.]: Copacabana Filmes, 1964.
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Nova Aguilar: Blam, 1994.
SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo: Companhia das
Letras, 1991.
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. 35. ed. Rio de Janeiro: Agir, 2005.
VICENTE, Gil. Auto da Barca do Inferno. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2012.
2160
O MUSEU DO FOLCLORE EDISON CARNEIRO - RJ E O MUSEU DE ARTE
POPULAR - BA: DOIS EXEMPLOS DE DISPUTA E DOIS MODOS DE FAZER
MUSEU
Resumo: O presente estudo tem por objetivo refletir a problemática que envolve o uso dos
termos, “cultura popular” e “folclore”, frente a formação e classificação de coleções em museus,
considerando sua concepção frente uma conjuntura social onde se pensava construir uma
identidade nacional pautada na produção do homem comum. Dessa forma, refletir uma
categorização destes conceitos no que tange uma classificação na identificação dessas coleções
encontra-se de forma complexa. Assim, como processo metodológico trago para estudo de caso,
a formação da coleção Museu de arte Popular da Bahia, discorrendo desde sua formulação como
também, uma análise frente ao discurso expográfico que a mesma propaga na sociedade.
Palavras-chave: cultura popular; artesanato; folclore.
Summary: The present study aims to reflect the problematic that involves the use of the terms
"popular culture" and "folklore", in front of the formation and classification of collections in
museums, considering its conception before a social conjuncture where it was thought to
construct a national identity ruled In the production of the common man. Thus, to reflect a
categorization of these concepts regarding a classification in the identification of these
collections is complex. Thus, as a methodological process, I bring to the case study the
formation of the collection of the Museum of Popular Art of Bahia, discussing from its
formulation as well as an analysis of the discography discourse that it propagates in society.
Key-words4: popular culture; Crafts; folklore.
2161
Introdução
Os museus e suas coleções constituem-se num campo de estudo que envolve
agentes sociais e práticas que dinamizam a memória e o esquecimento frente a
construção de uma identidade nacional. No Brasil, no início do século XX, foi possível
mapear discursões acerca da valorização da cultura popular brasileira como
instrumentos de construção e consolidação da identidade nacional. No entanto,
associado a isso, começavam também a surgir problemas que envolvem a identificação
dos artefatos como exemplares do folclore e da cultura popular ao passo que estes são
usados como sinônimos.
Para os intelectuais daquele período o assunto teve uma grande problemática
conceitual, mas isso não impediu que coleções identificadas como “folclore” “cultura
popular”, e ou “arte popular” começassem a emergir dentro dos espaços museais,
tornando-se sinônimos de folclore. É dessa forma que o discurso político a partir da
institucionalização do patrimônio na década de 30 e o movimento folclorista entre as
décadas de 40 e 50, começam a promover a valorização e a preservação desses artefatos
para compor a noção de nacionalidade brasileira.
Atrelados a uma ideia de produção artesanal diversos museus identificaram os
artefatos em suas expografias por meio de uma narrativa em que o cotidiano do homem
comum fosse ali apresentado.
Desse modo o presente estudo tem por objetivo refletir a problemática que
envolve o uso dos termos “folclore e cultura popular” utilizando dois museu como
parâmetro: o Museu do Folclore Edison Carneiro, no Rio de Janeiro – RJ e o Museu de
Arte Popular da Bahia pertencente à Fundação Instituto Feminino da Bahia – FIFB, em
Salvador - BA.
Enquanto método, optou-se pela pesquisa histórica e bibliográfica nos livros,
artigos, catálogos, periódicos e websites que discutem ou apresentam a problemática em
estudo e também uma pesquisa documental. Buscamos sistematizar as temáticas sobre a
2162
“arte popular” que envolve uma discussão acalorada, visto que existem múltiplas
interpretações na realidade nacional que exaltam “valores” em detrimento do seu
contexto social.
O objeto em estudo, desperta o interesse para pesquisa, por trata-se de um tema
que ao refletir os conceitos de folclore, cultura popular, e arte popular, e como estes são
identificados nos Museus brasileiros por meio dos artefatos, verifica-se a necessidade de
pesquisas em relação à temática, pela carência de trabalhos e publicações no que tange a
Museologia e o campo interdisciplinar de outras áreas do saber.
5
Todas as informações apresentadas acerca do Museu do Folclore Edison Carneiro estão disponíveis
nos jornais do bando de dados da hemeroteca do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular e
foram organizadas de modo que auxiliasse a leitura. Disponível:
http://docvirt.com/docreader.net/docmulti.aspx?bib=hemeroteca&pesq=MUSEU%20DO%20FOLC
LORE%20EDISON%20CARNEIRO%20. Acesso em 08/ 10/ 2016.
6
Baiano de Salvador/BA o etnólogo, folclorista, historiador e cientista Edison Carneiro, viveu no Rio
de Janeiro desde 1939, onde trabalhou como jornalista, ensaísta e professor. Atento às questões da
brasilidade e do popular ele se tornou um dos mais destacados pesquisadores da cultura popular,
tendo participado de movimentos que visavam ao conhecimento e valorização do folclore nacional e
internacional. Disponível em: http://www.cnfcp.gov.br/interna.php?ID_Materia=162. Acesso em
08/ 10/ 2016.
2163
pintura e da escultura populares, apresentados de modo compreensivo e didático”
(NOTICIÁRIO, 1963, p. 105) e seu acervo seria composto “por doação de seus amigos
e por aquisição já acertada com alguns colecionadores, de um total de mais de duas mil
peças de arte popular dos mais variados pontos do Brasil” (NOTICIÁRIO, 1963, p. 105
e NASCIMENTO, 1988, p. 6).
Em 1965, no Noticiário do número 11 da Revista Brasileira de Folclore (1965, p.
95) o projeto do Museu é novamente relatado e agora a proposta seria num “prédio
doado pelo Governador Carlos Lacerda, na Ilha de Paquetá”. Novamente não acontece
e, no ano seguinte, reaparece como Museu de Artes e Tradições Populares – Museu já
existente na cidade de São Paulo – mas infelizmente também não obtêm êxito
(NOTICIÁRIO, 1966, p. 317).
Em 1968, após o convênio entre a Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro e
o Museu Histórico Nacional é firmado o acordo onde as duas instituições partilhariam a
responsabilidade pelo Museu. Dessa forma, o Museu de Folclore foi inicialmente uma
das seções do Museu Histórico Nacional. Não foi possível identificar quando os
artefatos deixam o Museu Histórico Nacional, mas em 1974, na Rua do Catete n 179,
mesmo endereço do Palácio do Catete – Museu da República, a Campanha Nacional do
Folclore consegue um local para abrigar o acervo.
Com o gradativo crescimento do acervo do Museu, em 1975, o então
departamento de assuntos Culturais do Ministério da Educação e Cultura cedeu o Prédio
da antiga garagem do Palácio do Catete localizado na rua do Catete no prédio nº 179,
onde a CDFB na gestão de Bráulio do Nascimento, passou a ter sede própria e onde
funciona até hoje o Instituto Nacional de Folclore. Em 1976, a instituição passa a ser
denominada Museu do Folclore Edson Carneiro pela lei nº pela Lei 63537, dado a
Brasil. Lei n 6.353, de 13 de Julho de 1976. Da o nome de “Edison Carneiro” ao Museu do Folclore.
Disponível em: legis.senado.gov.br/legislação/ListaTextoIntegral.action?id=99767&norma=123557
2164
contribuição que o professor e jornalista ofereceu aos estudos do folclore, como também
a sua atuação como diretor da campanha de 1961 até 1964.
A partir de 1982, o Instituto Nacional de Folclore, então sob direção de Lélia
Gontijo Soares, foi submetido a um processo de (re) conceituação, através do qual os
fatos folclóricos passaram a ser estudados a luz de teorias mais abrangentes e adequadas
às normas conceituais que regem a antropologia cultural, do qual o folclore foi tido
como parte integrante. Renovando seus critérios teóricos e museológicos, o museu
refletiu essa concepção emergente e se voltou para estudos etnográficos do objeto, que
conduzissem à contextualização de seu acervo respaldado em uma documentação de
campo e minucioso registro museológico. Surgiu assim, a necessidade de reformular sua
galeria de exposição permanente e, por já contar com um acervo de dez mil peças,
implicar em espaço físico maior (BOLETIM DO PROGRAMA NACIONAL DE
MUSEUS, 1985).
Desse modo, em 1983, a Fundação Nacional de Arte adquiriu a casa de n 181
na rua do Catete, uma antiga casa de beira de rua erguida em 1880 e tombada na
primeira metade do século XX. O prédio que se encontrava em estado lamentável,
contava com azulejos e grades de ferro rendado na fachada que fugia do estilo neo-
clássico trazido pela missão francesa (1816) e em voga na época. Com o apoio da
Fundação Nacional Pró-memória procedeu às obras de restauração do imóvel.
Executado pela FUNARTE e sob a coordenação do prof. Alcides da Rocha Miranda,
arquiteto com 40 anos de dedicação à área patrimonial, o projeto de recuperação atingiu
o máximo de fidelidade do prédio original (BOLETIM DO PROGRAMA NACIONAL
DE MUSEUS, 1985).
Durante o processo de adequação para cunho museológico, as salas receberam
iluminação especial e, visando integrar o conjunto, o terraço agora construído, foi
2165
ornamentado com plantas brasileiras, comumente empregadas em rituais, doadas pelo
paisagista Roberto Burle Marx. Os espaços foram projetados com livre circulação para
cadeirantes e conta com um elevador, fruto de doação da construtora Andrade Gutierrez.
A ação interdisciplinar envolveu museólogos, antropólogos e demais técnicos da
instituição como arquitetos, engenheiros, mestres de obras e operários. Em cada uma
das áreas do museu estão expostas peças de várias regiões do Brasil e ao ampliar suas
instalações o museu transformou sua antiga sede em anexo abrigando a Galeria Mestre
Vitallino para exposição temporárias. Nesse local ainda há um auditório, reserva técnica
e gabinetes de trabalho (BOLETIM DO PROGRAMA NACIONAL DE MUSEUS,
1985).
Desde então o Museu está instalado em dois casarões do final do século XIX e
mantêm-se estruturado em quatro unidades: museologia, antropologia, conservação e
restauração e difusão cultural. A exposição de longa duração reúne cerca de 1.500
objetos, de um acervo total de 14 mil peças, que contam uma multiplicidade de histórias
sobre o homem brasileiro e apresenta-se organizada em cinco unidades temáticas: vida,
técnica, religião, festas, e arte.
2166
levam a assinatura de artesãos que já tem renome internacional. Não,
não é uma contradição: o indivíduo criador que produz o que se
denomina arte do povo, não é anônimo, nem a-histórico. Recebido o
legado de seu grupo cultural, ele reelabora e exprime sua
contemporaneidade no trabalho artesanal. A mostra começa com as
rendeiras e seus diferentes teares, com as diversas rendas, do filé ao
bilro. O traçado de palha, das cestas aos abanicos e a vez da cerâmica
do vale do Jequitinhonha (MG) ao Maragogipinho (BA). Lá estão as
areias coloridas engarrafadas pelos artistas de Timbau (RN) e as
esculturas fantásticas de GTO, Valentim Rosa, Laurentino que
trabalham pedras-sabão e madeiras de tipos diversos. Há pintores
primitivos diversos cujas obras representam bem o impacto da
civilização industrial sobre seus trabalhos e são representativos do
processo histórico nas artes populares. O museu Edison carneiro
apresenta uma visão dinâmica e viva do folclore brasileiro e permite
aos visitantes um descobrimento das ricas tradições culturais do país,
submerso nas redes de comunicação eletrônica. O folclórico não é
apenas o sui generis, o exótico, mas corresponde às maneiras de se
expressar nas populações, desde o hábito de vestir, às formas de lazer,
às comemorações comunitárias, até a reverência às divindades,
concebidas e processadas pelo grupo humano de que são signo das
necessidades e solução cotidianas, no nível do real e do imaginário.
(Jornal do Brasil, Crianças Folclore Vivo, Eliana Yunes)8.
8
Não foi possível identificar a data do jornal havendo apenas no site a numeração da hemeroteca F-
1028.
2167
O Museu de Arte Popular é uma das três instituições museológicas que faz parte
da Fundação Instituto Feminino da Bahia – FIFB9. Construído no ano de 1937 e
inaugurado no ano de 1939 no Bairro da Politeama, Salvador- BA, o prédio da
Fundação possui uma área de aproximadamente 5.000 m² distribuída em cinco
pavimentos. Nascida de um projeto católico e assistencialista de Henriqueta Martins
Catharino10 e Monsenhor Flaviano Osório Pimentel a FIFB foi sendo construída e
idealizada desde 1923 e ocupou outras sedes e teve diversas funções até se constituir no
que atualmente conhecemos11.
O Museu de Arte Popular está localizado no subsolo da Fundação e dividiu sua
área, quando havia o funcionamento da escola, com as práticas de esporte e lazer para as
internas, contando inclusive com uma piscina. O primeiro pavimento era destinado ao
setor administrativo e ainda é assim. Havia um restaurante e salões de recepção que hoje
funcionam como parte do cerimonial onde é realizado casamentos, batizados,
confraternizações e missas. No segundo pavimento, localizavam-se as salas de aula,
hoje salas de exposição do Museu Henriqueta Cataharino e ainda há uma capela para as
9
A Fundação Instituto Feminino da Bahia é uma instituição de cunho particular, ligada a
arquidiocese Primaz do Brasil e que possui, além do Museu de Arte Popular, o Museu Henriqueta
Catharino – de arte decorativa, localizado nos dois primeiros pavimentos do palacete; e o Museu do
Traje e do Têxtil – de trajes e tecidos, organizado no terceiro andar.
10
Heriqueta Martins Catharino, foi uma mulher que viveu na alta sociedade baiana, entre o século
XIX e XX. Filha do Comendador Bernardo Martins Catharino, teve uma educação privilegiada que lhe
permitiu se aprofundar em conhecimento em pintura, princípios morais, musica, língua, e etc.
11
No ano de 1923 Dona Henriqueta alugou um grande prédio na praça 15 de novembro, número 15,
antigo Terreiro de Jesus e criou a Casa São Vicente. O espaço funcionou como uma biblioteca, sala de
leitura, uma pensão para as moças, uma Agência de Colocações e um Restaurante para senhoras e
jovens. Em 8 de dezembro do mesmo ano inaugura-se a Escola Comercial Feminina. Meses antes da
inauguração, em abril de 1923 em um prédio da Avenida Sete foi aberto o Atelier São José onde
moças que não casaram eram preparadas para o trabalho com salário. Com a morte de sua mãe, D.
Úrsula Martins Catharino no dia 9 de setembro de 1924, coube a Henriqueta entre outros imóveis, o
prédio da praça 13 de maio 5, Piedade, para onde se transferiu Casa São Vicente em 1926. Em março
de 1928 a Escola Comercial Feminina passou a funcionar na casa da Avenida Sete, 215 antigo
Rosário e em seguida as demais seções também foram transferidas. Em 21 de março de 1929 a
escola foi oficializada pelo Governo Federal, e dado o crescimento da Casa São Vicente, elaboram o
primeiro estatuto da obra em 21 de 1929 onde passou a denominar-se Instituto Feminino da
Bahia (MUSEU DO TRAJE E DO TÊXTIL, 2003).
2168
celebrações religiosas da arquidiocese. “Embora todo o espaço da Instituição fosse
decorado com móveis, porcelanas, biscuits, opalinas e uma diversidade de arte
decorativa” (MUSEU DO TRAJE E DO TÊXTIL, 2003, p. 11) o conjunto de peças do
Museu de Arte Popular está no subsolo o que indica a hierarquização do acervo.
Para Helder do Nascimento Viana (2002) é legitimo compreender que o Instituto
Feminino da Bahia fez uso de um aparato pedagógico composto por uma rede de órgãos
e instituições que incluía além de uma estrutura administrativa e sala de aulas, uma série
de unidades auxiliares.
12
Quanto ao significado da palavra Escumilha, torna-se difícil definir uma vez que o seu uso foi
atribuído em diferentes contextos e ações. Segundo Marijara Souza Queiroz “A imprecisão das
2169
miniatura, provenientes do Museu do Recolhimento dos Humildes do município de
Santo Amaro - BA, estão expostos nos corredores que dão acesso a Capela. No Museu
do Traje e do Têxtil ainda há na Ala Eclesiástica a presença do Deus Menino do
Monte13, outra forte representação cultural popular presente no museu e fora do Museu
de Arte Popular.
Para Viana (2002) é provável que o contanto das alunas com as coleções dos
museus e com as exposições periódicas14, servisse de instrumento de conhecimento
sobre usos e boas maneiras dentro de um espaço social.
O Museu de Arte Popular da Bahia teve sua coleção formada ainda na década de
1920 conforme consta no catálogo. Entretanto, no ano de 1957 devido ao III Congresso
Nacional do Folclore, com as temáticas “O Artesanato”, “Folclore do mar e dos rios”, e
o “Folclore da Bahia”, a coleção do museu foi exposta abrindo o referido congresso
como parte de destaque na programação oficial. A coleção constituída por mais ou
menos 1.000 peças, serviria, na prática, como reflexo a uma releitura moderna de uma
produção artesanal cultural da Bahia.
2170
É oportuno deixar aqui anotado que o interesse do IFB [Instituto
Feminino da Bahia] pelas manifestações artísticas das camadas mais
simples do povo é muito anterior aos movimentos oficiais surgido
com a finalidade de estimular e amparar essas mesmas manifestações.
[...] Sem ter ainda um museu de arte popular, a verdade é que o rico
material adquirido e carinhosamente guardado pelo IFB ia não só
impressionando a quantos tinham oportunidade de vê-lo, como
aumentando em quantidade e categoria. Olga Obry fez para a
“Gazeta” de São Paulo, em 1947, o seguinte comentário: “o Instituto
Feminino da Bahia possui o museu mais rico de artes femininas de
caráter tipicamente local, que se possa encontrar pelo mundo afora”.
[...] Com a transferência do IFB para as novas instalações, na Rua
Monsenhor Flaviano, n 2, em 1939, foi que resolveu sua direção
reunir todas as peças de arte popular em um mesmo local (REVISTA
AABB, 1961, p. 22 - 23).
2171
divulgação dos bens culturais brasileiros, foi uma constante em toda a
sua vida, haja vista o imenso acervo reunido na Fundação Instituto
Feminino da Bahia (MUSEU DO TRAJE E DO TEXTIL, 2003, p.
12).
15
Foi a partir da comparação entre as diversas manifestações culturais pesquisadas que se elaborou
uma tipologia, distinguindo fazeres codificados (como a tecelagem) dos que dão margem à
criatividade individual (como a cerâmica); fazeres tradicionais (como a cerâmica e a tecelagem) do
artesanato de transformação e reciclagem (como as lixeiras, que são um subproduto da atividade
industrial, e como, frequentemente nos dias de hoje, o brinquedo popular). Em todos os casos se
procurava entender os processos de transformação e/ou de resistência dessas atividades, sempre
tentando se aproximar o máximo possível do ponto de vista dos produtores e dos consumidores, de
modo a apreender, sem preconceitos, essas trajetórias, e a fundamentar uma visão prospectiva
(FONSECA, 2009, p.147-148).
2172
Não foi possível dizer com precisão o ano de fechamento do museu, mas sua
coleção ficou guardada no Instituto Feminino da Bahia até o ano de 2014 quando o
Museu de Arte Popular da Bahia foi reaberto ao público. O conjunto de peças por pouco
não foi deslocado para outro lugar conforme descrito por Ana Lucia Uchoa Peixoto no
catálogo do Museu do Traje e do Têxtil.
A museóloga Ana Lucia Peixoto e posterior diretora da Fundação descreve no
catálogo institucional sua atuação na montagem do Museu do Traje e do Têxtil
indicando como possível local o subsolo do palacete.
Demos início ao projeto em março do mesmo ano. O espaço que
dispúnhamos era o subsolo do edifício-sede da Fundação. O problema
era então o que fazer com a coleção de arte popular. Imaginamos,
juntamente com a Presidente, em transferi-la para um dos casarões de
propriedade da Instituição, situado em rua nobre do Pelourinho.
Definido o local para abrigar Museu de Arte Popular, prosseguimos
com o projeto. Entretanto, desconhecíamos os planos reservados pela
Divina Providência (MUSEU DO TRAJE E DO TÊXTIL, 2003, p.
13).
2173
consciência que há muita pesquisa a ser realizada que os auxilie a identificar as muitas
peças que estão expostas, bem como outras que ainda estão em reserva técnica. Ela
também reconheceu que o objetivo principal da abertura do Museu foi tornar novamente
aquele conjunto visível ao público para que pesquisadores possam ter acesso aos
artefatos e contribuam com suas pesquisas na melhora do tratamento museológico como
um todo.
Na Museologia, a representação da nacionalidade em museus é trabalhada, por
exemplo, tomando como referência três intelectuais brasileiros - Gustavo Barroso,
Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro – no trabalho de Mario de Souza Chagas (2009) na
criação do Museu Histórico Nacional, o Museu do Homem Nordeste e o Museu do
Índio, respectivamente.
O Museu Histórico Nacional criado em 1922, sobre influência da figura de
Gustavo Barroso, colaborou para construção de uma nacionalidade no início do século
XX. Em sua coleção selecionada e valorada pelo viés estético celebra uma nação unida
pelo entendimento de tradição que, através de objetos acionam uma memória do
passado representando personalidades heroicas. Assim, o Museu Histórico Nacional
promove, através de uma nostalgia de uma passado, uma continuidade de
temporalidades históricas que retratam uma nacionalidade pelo viés de uma tradição
Imperialista e Republicana.
Dessa forma, a mediação simbólica se dá pelo processo de preservação da
memória através da materialidade, transformando e reelaborando um passado a partir de
um determinado ponto de visto. Vale destacar que Gustavo Barroso fazia parte do seleto
time de intelectuais folcloristas que pensavam e discutiam essa representação da cultura
popular na década de 40 pelo viés do folclore. Sua posição enquanto aristocrata não o
impediu de pensar lições sobre arte indígena e arte popular no curso de museus.
2174
conservadorismo político que informava o seu pensamento. É
oportuno registrar que, em 1942, ele publicou, no Anais do Museu
Histórico Nacional, o artigo “Museu Ergológico Brasileiro”, que
contém ideias básicas para a criação de um possível museu de “ciência
folclórica”. Para Barroso, essa ciência dividia-se em duas partes. A
primeira “animologia”, referente à alma e ao espírito do povo, é
dedicado ao estudo dos “costumes, usos, cerimônias, ritos, fórmulas
de vida, contos, cantos, música, danças, anexins, parêmias, jogos,
pulhas, adivinhações, apólogos, fábulas etc.” A segunda, “ergologia”,
diz respeito ao estudo dos elementos de utilidade, “desde os alimentos
e os modos de prepará-los até os ofícios manuais como os de
trançador de couro, prateiro e profissões rústicas, algumas muito
originais como as de domador, rastreador, cantor e curandeiro”
(BARROSO, 1942).
2175
Por fim, ao analisar Darcy Ribeiro e o Museu do Índio, Chagas (2009) apresenta
que Darcy Ribeiro problematizou, com o museu, o lugar dos povos indígenas chamando
atenção quanto a sua representação nesses espaços institucionais. O estabelecimento do
lugar do exótico e do preguiçoso, facilmente direcionado aos povos indígenas, para
Ribeiro, é tratamento comum dado pelos Museus Tradicionais. Assim, na expografia do
Museu do Índio eles serão vistos como “seres humanos movidos pelos mesmos
impulsos fundamentais, suscetíveis dos mesmos defeitos e qualidade inerentes a
natureza humana e capazes dos mesmos anseios de liberdade, de progresso”
(RIBEIRO,1955, p. 2). Para Chagas (2009), desse modo a alteridade cede lugar a
identificação de pertencimento partilhando da mesma natureza humana.
Decerto, a partir das problematizações em torno da identificação dos artefatos de
cultura popular no Museu do Folclore Edison Carneiro e no Museu de Arte Popular da
Bahia –FIFB, bem como a abordagem que Mario Chagas (2009) fez acerca do nacional
nos Museus, fica claro que o tratamento dado a essas coleções traduzem uma
representação (de) sobre o outro. Apenas no Museu do Índio a questão da auto-
representação foi colocada em debate.
O caráter nacionalista e/ou regionalista atribuídos a estes artefatos contribuem
para fabricação de uma identidade onde seus referentes muitas vezes não são
devidamente contemplados. Esse fato ganha centralidade quando esses artefatos são
musealizados dentro das instituições museológicas reproduzindo práticas de campo de
intelectuais folcloristas ou colecionadores particulares que pensaram a formações desses
objetos frente aos pensamentos da época.
Hoje, é possível perceber que nas instituições museológicas que detém esse tipo
de acervo, surge a difícil tarefa de categorizar esses objetos da coleções de cultura
popular ao modo que possibilite uma maior apreensão da sua real significância,
ampliando para além das categorias que foram instituídas, enquanto objetos de
expressões artísticas.
2176
Inquietações
Problematizar sobre o que é nomeado por arte popular e como ela está inserida nesse
campo indefinido de termos se faz importante. São objetos que transitam entre os
espaço museais que legitimam uma representatividade, e isto influencia quanto a
construção da identidade do outro, seja através de exposições ou de práticas outras que
o museu venha a desenvolver.
Desse modo foi possível aferir que conforme os tempos históricos e o
aprofundamento das pesquisas, o conceito de folclore e o de cultura popular ora se
aproximam ora se distanciam. Faz parte de um jogo de tensões políticas e ideológicas,
onde as articulações em torno desses conceitos resultam no campo da cultura e em
específico na cultura popular enquanto palco de conflito. Para esse estudo acreditamos
que o caráter tradicionalista e a imutabilidade são elementos que dificilmente são
ajustados ao conceito de cultura, menos ainda em cultura popular, visto que a cultura é,
em essência, dinâmica. Assim como a cultura e seus elementos referentes, é interessante
observar que as palavras também são dinâmicas, elas sofrem em diferentes contextos e
tempos históricos significados distintos, e isso ganha relevância quando identificamos a
noção de arte.
Os museus, por meio da formação dessas coleções de cultura popular e
folclore, legitimaram a representação cultural do povo em um espaço de fabricação do
nacional e regional, fortalecendo a construção de uma suposta identidade nacional
brasileira. Assim, enquanto instituição política buscamos analisar como as políticas
públicas culturais que cercaram o campo do patrimônio e os Museus, atuaram frente o
papel das instituições culturais que normatizaram artefatos ora como folclore ora como
cultura popular e outras vezes como arte popular.
Com isso é válido ressaltar que para o campo da Museologia coube a tarefa de
organizar os bens em exposições que atendessem as necessidades técnicas da área e
2177
também resolvesse os impasses conceituais que aparecem nos discursos expográficos e
no tratamento das peças. Dito isto os museus, por meio da formação de coleções de
cultura popular e folclore, legitimaram a representação cultural do povo em um espaço
de fabricação do nacional e regional, fortalecendo a construção de uma suposta
identidade nacional brasileira.
Visto sob esse entendimento, reconhecemos que os museus e suas coleções
como instrumentos responsáveis pela consolidação de versões sobre folclore e cultura
popular, produzem e (re) produzem discursos a respeito que se faz necessário repensar
essas práticas representativas sobre o outro. Talvez por essa razão, seja oportuno
sublinhar as orientações de Mário Chagas (2009) quando reconheceu que hoje na
contemporaneidade o museus modernos ainda procuram o seu lugar enquanto
instituição inovadora. É nas interfaces desses elementos que devemos pensar a
musealização dos objetos e a imagem do museu como um componente social de
construção de instrumento significativo à compreensão do campo museal, onde a
museologia e o museus estejam centrados nas pessoas, nos seus referentes e não apenas
nos objetos.
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ANDRADE, Rodrigo Melo Franco de. Rodrigo e o SPHAN. Rio de Janeiro, 1987.
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Palavras-chave: um vocabulário de cultura e sociedade. Boitempo, 2007
Sítios:
www.insitutofeminino.org.br
www.cnfcp.gov.br
www.centrocultural.sp.gov.br
2181
RITUAIS PARA BRANCOS E COLEÇÕES ETNOGRÁFICAS: AS RELAÇÕES
DOS WAUJA COM OS MUSEUS E A SUBJETIVAÇÃO DOS OBJETOS
Abstract: This paper presents some ethnographic and museological elements about the
meanings of the transactions between Xinguano Indians, anthropological museums and their
agents. The most complex of these transactions happen in ritual contexts for which are
produced, exchanged and sold an expressive amount of ritual artefatcs. From the dynamics of
ritual and shamanic processes, I analyse how the modes of subjectivization of these artefacts
challenge the assumptions and aims of museological collecting. Three interconnect
museological cases are analysed, involving a North American museum, a Portuguese museum
and a French museum.
Key-words: rituals; ethnographic collections; anthropological museus; indigenous cosmology;
shamanism
2182
Introdução
O início das relações dos Wauja do Alto Xingu com museus e seus
representantes data de 1884, quando o etnólogo alemão Karl von den Steinen, chefe da
equipe de expedição do Museu de Etnologia de Berlim, visitou as quatro aldeias wauja
então existentes no Alto rio Batovi, um dos formadores do rio Xingu (STEINEN, 1886).
O interesse colecionista pelo Alto Xingu existe, portanto, desde longa data e perdura até
a atualidade. À ele tem sido somados mais recentemente novos significados e desafios
tanto para a guarda das novas coleções, quanto para seu conhecimento e presença como
legado cultural ameríndio.
O objetivo principal deste texto é discutir as representações e transações entre
os índios Wauja do alto rio Xingu, Amazônia Meridional, as instituições museológicas
e seus representantes. O patrocínio direto e indireto de rituais xinguanos por brancos e
suas instituições é, comparativamente ao trabalho colecionista, uma atividade mais
recente, cujo início data da década de 1990. No Alto Xingu, esses rituais estão
diretamente ligados ao sistema de objetos, o que resulta na produção e circulação de um
volume considerável de objetos, dos quais muitos têm como destino a constituição de
coleções públicas e privadas. Embora essas relações se manifestem por transações
materiais concretas e facilmente quantificáveis, um outro plano relacional aponta para a
subjetivação desses conjuntos materiais. Esse plano não é quantificável, nem estável.
Sua instabilidade e inconstância são próprias das ontologias multinaturalistas
ameríndias, que tem no xamanismo um modo particular de conhecer e revelar essas
subjetividades (VIVEIROS DE CASTRO, 2015). Esse texto procura mostrar como os
museus, seus agentes e os rituais por eles patrocinados, são capturados, como índices
externos de poder, e incluídos na dinâmica sociocosmológica wauja.
A realização de rituais para brancos ou patrocinados por brancos reflete, dentro
dessa mesma dinâmica, uma expansão de fronteiras espaço-temporais, nas quais os
2183
xinguanos têm possibilidades de manipular símbolos de representação política no
âmbito das suas relações com os brancos. Um exemplo disso foram os rituais funerários
Kwarup feitos para os indigenistas Cláudio e Orlando Villas Boas e para o empresário
Roberto Marinho. Ao permitir a visitação cerimonial de brancos, esses rituais ajustam
tais relações na órbita do próprio mundo xinguano.
Analizarei aqui aspectos de um caso que envolveu uma antropóloga americana e
o National Museum of Natural History da Smithsonian Foundation e de dois casos nos
quais tive participação direta como criador e executor dos projetos museológico-
etnográficos; o primeiro deles para o Museu Nacional de Etnologia de Portugal, e o
segundo para o Museu do quai Branly de Paris, cujos trabalhos se desenrolaram,
respectivamente, entre setembro de 1999 e dezembro de 2000 e entre fevereiro de 2004
e julho de 2005. O projeto português envolvia a formação de uma grande coleção
etnográfica sistemática e a montagem de duas exposições de longa duração (PAIS DE
BRITO, 2000; BARCELOS NETO, 2004). O projeto francês previa a montagem de um
espetáculo de música vocal e instrumental e dança de máscaras para o Festival de Radio
France et Montpellier (BARCELOS NETO, 2005), o qual implicava na aquisição de
uma coleção etnográfica de máscaras que serviriam, por sua vez, para a própria
encenação do espetáculo. A aquisição dessas coleções dependia, inevitavelmente, da
realização de rituais em que os objetos pudessem ser produzidos. Mas o que significa
realizar rituais para museus com o propósito de adquirir coleções etnográficas? Antes de
responder a essa pergunta dedico alguns parágrafos sobre os Wauja e seu sistema ritual.
2184
cabeceira do rio Batovi há poucos quilometros da fronteira sudoeste do Parque Indígena
do Xingu com as extensas fazendas de soja e gado dos municípios de Paranatinga e
Gaúcha do Norte, Estado do Mato Grosso. A terceira e menor aldeia, Piyulewene, é
também a mais isolada, localizada à margem esquerda do médio rio von den Steinen,
um dos formadores do rio Ronuro. A Secretaria Especial da Saúde Indígena recenseou a
população wauja em 542 indivíduos (SESAI, 2013). Falantes de uma língua do tronco
arawak (família maipure), eles constituem, juntamente com os Mehinako, os
Yawalapíti, os Pareci e os Enawene Nawe, o grupo dos Arawak centrais. Segundo a
hipótese de Urban (1992), os Arawak teriam como centro de dispersão original a região
das cabeceiras dos rios da bacia amazônica que nascem nos piemontes andinos
boliviano e peruano, em uma profundidade cronológica de três mil anos ou mais antes
do presente. Urban supõe que os Arawak-Maipure tiveram duas direções migratórias
básicas: uma em direção ao sul amazônico e outra ao norte, conservando-se sempre na
periferia da grande bacia (URBAN, 1992, p. 95-96). As investigações arqueológicas
recentes sobre a formação da cultura xinguana apontam que os grupos arawak teriam
sido os primeiros a se estabelecerem na região do Alto Xingu por volta do ano 900
(HECKENBERGER, 2005).
Os Wauja integram, juntamente com outros oito grupos étnicos, a saber os
Kamayurá, os Aweti, os Yawalapíti, os Mehinako, os Kuikuro, os Kalapalo, os Matipu e
os Nahukwa, um sistema regional multiétnico e multilinguístico existente na região da
bacia dos formadores do rio Xingu desde pelo menos meados do século XVIII
(HECKENBERGER, 2001a, 2001b). Os grupos xinguanos distinguem-se uns dos
outros, sobretudo, pela língua (no Alto Xingu são faladas duas línguas do tronco tupi-
guarani, três do tronco arawak e duas do tronco carib), pela especialização tecnológica
(conhecimento e efetiva utilização das técnicas de fabricação da cerâmica, dos
instrumentos musicais, dos trançados, dos arcos e dos adornos corporais), ou por
práticas específicas no âmbito dos rituais e da chefia. Tal profunda e variada
2185
diferenciação lingüística entre os povos xinguanos, todavia, não impede que haja entre
eles eficientes mecanismos de coesão e comunicação, que se dão, acima de tudo, em
níveis supralingüísticos, notadamente nos planos do ritual, dos intercasamentos, das
trocas de artefatos, da pintura e ornamentação corporais, da feitiçaria e do xamanismo.
O Alto Xingu é bastante conhecido na literatura etnológica das terras baixas da
América do Sul pela existência de um sistema formal de trocas de objetos
especializados. Tal especialização se dá de acordo aos grupos que compõem o sistema
multiétnico e multilinguístico xinguano. Assim, os grupos de língua arawak (Wauja e
Mehinako), carib (Kuikuro, Kalapalo, Matipu, Nahukwá), tupi-guarani (Kamayurá) e
tupi (Aweti) são respectivamente especializados na produção de utensílios de
cerâmica16, colares e cintos de casca de caramujo, arcos de madeira dura e sal de aguapé
(GALVÃO, 1953; AGOSTINHO, 1974). As trocas ocorrem majoritária e
preferencialmente nos rituais intercomunitários que acontecem ao longo do ano, sendo o
Kwarup, o mais importante deles (AGOSTINHO 1974, CARNEIRO, 1993;
GUERREIRO, 2015). Esses objetos de troca, altamente visíveis e prestigiosos, atuam
como marcadores estéticos da xinguanidade e dos movimentos de recursos materiais nas
redes políticas xinguanas. Em coexistência a esse sistema de objetos de trocas rituais há
um outro sistema, cujos objetos são muito menos visíveis e de circulação extremamente
restrita, quando não proibida; são os objetos de apapaatai, os quais circunscrevem os
xinguanos em relações de alteridade e identidade marcadas pela presença de espíritos-
animais (BARCELOS NETO, 2008).
Dois dos cinco principais rituais intercomunitários xinguanos, o Pohoká (furação
de orelhas para reconhecimento público de status de nobreza e potencial chefia) e o
Kwarup (ritual funerário para pessoas nobres) o têm o jaguar associado a ambos, porém
ele é pouco presente nos demais rituais xinguanos, sejam eles intercomunitários ou
intracomunitários. Contudo, essa presença menos explícita dificilmente permitiria
16
Os Yawalapiti, embora sejam um grupo de língua arawak, não são especialistas na arte da cerâmica.
2186
aventar hipóteses de uma menor relevância simbólica. O mesmo pode ser dito para a
anaconda e a harpia, outros dois grandes predadores amazônicos, cujos espíritos são
também considerados poderosos nos domínios do xamanismo e da chefia. Importante
salientar que das peles e penas desses três animais são elaborados um número limitado
de adornos, de acordo com um tipologia específica, que marcam, sobretudo em âmbito
ritual, as distinções entre nobres e não-nobres. Nos grandes rituais intercomunitários
Kwarup e Yawari, esse sistema de distinções marcados diretamente no corpo é
intensamente atuado. O fazimento desses espíritos-animais como objetos-personagens
rituais constitui um dos pontos centrais da ontologia política do sensível xinguana.
Os rituais de apapaatai
A estrutura organizacional dos rituais wauja permite que qualquer indivíduo ou
grupo, disposto de recursos suficientes, patrocine um ritual. Os patrocínios não-
indígenas necessitam ser mediados por um “dono” (weheho em wauja, geralmente
traduzido como “aquele que cuida de algum recurso ou de alguém”) de apapaatai, i.e.,
dos seres patogênicos que ganham corpo na forma de máscaras, aerofones e demais
objetos rituais. Um “dono” de apapaatai é um indivíduo que foi adoecido por esses
seres e que para estabilizar seu estado de saúde deverá assumir os cuidados alimentares
exigidos pelos apapaatai, os quais são representados (no sentido de representante,
conforme GELL, 1998) pelos kawoká-mona, pessoas da comunidade investidas de
conhecimentos performáticos específicos oriundos desses mesmos apapaatai.
Quem cuidou dos apapaatai para o Museu Nacional de Etnologia de Portugal e
para o Museu do quai Branly foi um grupo de “donos”, encabeçado por Itsautaku, um
xamã visionário-divinatório (yakapá), que considerou a venda dos apapaatai, e a sua
posterior conservação em museus, uma oportunidade de obter recursos para a compra de
máquinas necessárias para a aldeia e de permitir aos brancos conhecerem melhor a
cultura wauja.
2187
O ponto central das transações entre os museus e os índios Wauja envolve a
feitura de objetos-sujeitos rituais (máscaras basicamente), que devem ser alimentados e
postos a dançar e a cantar, para posteriormente serem vendidos. Mas a venda não subtrai
por completo a personitude dos objetos rituais: enquanto estes permanecerem intactos,
um resíduo de personitude ainda os ligará aos seus “donos” apapaatai, ou melhor, aos
protótipos espirituais causadores de doenças.
Com a exceção dos rituais de iniciação (Pohoká e Kaojatapá) e funerários
(Kwarup e Yawari), todos os demais rituais xinguanos têm os apapaatai – os seres
prototípicos da alteridade – como protagonistas.
Os apapaatai podem assumir sete formas rituais básicas: (1) máscaras
(apapaatai onai, literalmente “roupa de apapaatai”), (2) aerofones (flautas, clarinete e
trompete), (3) coros femininos (Yamurikumã), (4) pá de beiju e desenterrador de
mandioca (personagens do ritual Kukuho), (5) Matapu/Mapulawá (zunidor e demais
personagens da festa sazonal do pequi), (6) grupo de trocas presidido por Andorinhas
(Huluki) e (7) trocano (Pulu Pulu). A forma ritual que os apapaatai irão assumir
depende, direta e exclusivamente, da forma como eles se apresentaram aos xamãs
visionário-divinatórios (yakapá) durante os transes que envolveram a cura de um pessoa
em estado grave de adoecimento.
Uma doença grave corresponde ao rapto da alma (princípio vital, consciência)
do doente pelos apapaatai. Em sua companhia, ela passará a se alimentar das comidas
dos bichos carne crua ou podre, sangue, capim, folhas as quais, obviamente, não
fazem parte da dieta wauja. Essa mudança alimentar e o convívio com os apapaatai
desencadeiam um processo de animalização do doente. No sonho, ou seja, na sua
condição cativa, a alma do doente começa a adquirir a forma dos apapaatai que o
adoeceram, e, em pouco tempo, ela será como um deles. A desanimalização só pode ser
feita pelos xamãs, que retiram do corpo do doente as substâncias que provocaram a sua
transformação em pessoa-animal e revelam os apapaatai que o adoeceram.
2188
Após as revelações xamânicas, o doente (ou ex-doente caso seu estado de
saúde tenha se normalizado) torna-se “dono” (wekeho) dos apapaatai que lhe estão a
adoecer e passa a ter o direito de fabricá-los como objetos rituais, contudo ele pode
transferir esse direito a quem demonstre interesse na fabricação dos apapaatai. A
depender dos objetos rituais produzidos, o “dono” deverá alimentá-los por períodos que
variam de algumas semanas a vários anos17.
Quanto à ritualização dos seus apapaatai, o doente tem quatro possibilidades:
1. jamais festejá-los, o que implica a possibilidade dos mesmos apapaatai lhe fazerem
mal novamente; 2. festejá-los, em pequenos rituais, logo após o processo de
intervenções terapêuticas dos xamãs; 3. festejá-los no âmbito de uma festa oferecida por
uma outra pessoa; 4. guardar os apapaatai para que todos sejam festejados, de uma só
vez, numa grande festa de máscaras (Apapaatai Iyãu), que poderá ter então entre 25 e
50 personagens rituais18.
Tomo aqui o caso de produção de um Apapaatai Iyãu, o único ritual capaz de
produzir um grande número de máscaras que atenda as exigências de uma coleção
etnográfica sistemática.
No início da década de 1990, Atamai, o atual chefe wauja, foi acometido por
uma gravíssima infecção nos olhos. Aos dois maiores yakapá de Piyulaga, a aldeia
wauja, foi dada a responsabilidade de identificar os agentes patogênicos, que foram
revelados como sendo: Kawoká (flauta de madeira), Kawoká Otãi (filhote de Kawoká),
17
A oferta alimentar e a duração dos objetos rituais têm uma incidência direta sobre o sentido de
permanêcia dos apapaatai entre os Wauja. Em um trabalho recente (BARCELOS NETO, 2012) analiso as
estratégias e conflitos em torno da mantenção dos objetos e a sua atuação em ciclos rituais biográficos.
18
A performance do Apapaatai Iyãu tem um “palco” muito bem definido: o enekato (a grande praça da
2
aldeia), cuja área, em Piyulaga, é de 3,84 acres (15.540 m ). Uma pequena parte dessa área é
constituída pelo enekutaku, pátio central situado em frente à porta frontal da kuwakuho. O enekutaku é
correntemente traduzido pelos Wauja como “o meio”. Na verdade, grande parte da atividade ritual
acontece no enekutaku, é também aí que os homens se reúnem diariamente, logo após o por do sol,
para conversar sobre assuntos diversos.
2189
Yamurikumã e Makaojeneju (tipos de mulheres monstruosas), Tankwara Yanumaka
(Jaguar clarinetista), Atujuwá Yanumaka (Jaguar vestido com “roupa” redemoinho),
Ewejo (Ariranha), Yuma (Pirarara), Tukujen (uma espécie de Pombo), Kukuho (uma
espécie de Larva), Kagaapa (uma espécie de Peixe), Yukuku (uma espécie de Árvore),
Nukuta Pitsu Run Run Run (Arqueiro), Kapulu (Macaco-Preto), uma espécie de Peixe
vestido de Kuwahãhalu, e sete espécies de apapaatai vestidos de Sapukuyawá (um tipo
genérico de máscara).
Após as revelações xamânicas, Atamai tornou-se “dono” dos apapaatai
mencionados. Kukuho foi festejado enquanto Atamai estava internado num hospital de
Brasília e Ewejo logo que ele retornou à Piyulaga. Um par de anos mais tarde, foi a vez
de Tankwara e Kagaapa. Os outros dezenove apapaatai ficaram “guardados”, a espera
da ocasião mais oportuna para serem festejados. Para Atamai, essa oportunidade chegou
inesperadamente por uma via bastante incomum: uma solicitação da Artíndia19 de
Brasília para que os Wauja fizessem uma “demonstração” do seu praticamente
desconhecido grande ritual de máscaras. Reproduzo a seguir um trecho de uma narrativa
de Atamai, datada do ano 2000, que enquadra esse evento na perspectiva temporal do
seu adoecimento e da subseqüente produção ritual das máscaras.
Lá, em Brasília, eu fiquei mais doente. Eu pensei que ia morrer. Eu não tinha
apetite, não comia nada mesmo, por isso fiquei muito fraco. Eu achava que apapaatai
estavam comigo. Depois descobri que Tankwara e Atujuwá que estavam comigo eram
de Yanumaka (Jaguares). Os dois estavam comigo, por isso eu comia as comidas dos
Jaguares nos meus sonhos, como porco, veado, anta. Eram os Jaguares que estavam
dando esses animais para eu comer, por isso eu não tinha fome.
Na aldeia, chegou a notícia de que eu tinha piorado. Foi aí que os meus
kawoká-mona perguntaram à minha filha se eles podiam fazer a festa de Kukuho para
19
A Artíndia foi um programa de revenda de “artesanato indígena brasileiro” da Fundação Nacional do
Índio (FUNAI). O programa foi oficialmente extinto em 2011.
2190
mim, mesmo eu estando distante. Minha filha disse que sim, e aceitou fornecer todas as
comidas da festa enquanto eu estava em Brasília. Assim, fizeram a festa de Kukuho para
mim.
Quando terminou a festa aqui em Piyulaga, logo na mesma noite eu sonhei
com algumas “pessoas” (apapaatai) falando comigo: “Nós vamos embora, pois já
terminou tudo o que nós queríamos”.
Então, quando eu acordei eu estava me sentindo melhor. Eu já não sentia as
mesmas dores fortes de antes. Só sentia algumas dores na cabeça.
Quando eu cheguei de volta à aldeia, o pessoal falou para mim: “Tio, nós
fizemos apapaatai (Kukuho) para você”.
Aí eu pensei: ah! é por isso que eu estou melhor agora. Eu fiquei emocionado
com essa atitude deles, com a sua preocupação comigo. Eles fizeram a coisa certa para
eu melhorar. Então eu fiquei aqui na aldeia. Eu já estava um pouco melhor, mas não
podia trabalhar como antes, nem ficar muito tempo exposto ao sol.
Logo quando eu cheguei aqui, fizeram Ewejo (Ariranha) para mim. Chamaram-
me e disseram que iam fazer apapaatai para eu melhorar. Então fizeram. Quando
terminou a festa de Ewejo eu nunca mais pesquei no meu sonho e nem comi peixe cru.
Depois de algum tempo fizeram Tankwara. São eles que estão me ajudando
agora. Tankwara não permite que outros apapaatai me façam mal. Agora eu estou bem.
Só o meu olho que às vezes fica um pouco ruim.
Mas os meus sonhos com as “pessoas” (apapaatai) não tinham parado
totalmente, eu ainda sonhava muito com as “pessoas” que me adoeceram. Até quando a
Artíndia de Brasília pediu para a gente mostrar a festa de apapaatai para eles.
Então eu contei (consultou) para os meus irmãos e sobrinhos (que neste caso
são seus kawoká-mona). Eles aceitaram fazer a festa. O pessoal da Artíndia veio,
assistiu, fez fotos da dança, levou as máscaras para a loja e nunca mais voltou.
2191
Fui eu que patrocinei essa festa de máscaras para a Artíndia. Perguntei a todos
da aldeia se eles tinham apapaatai, e se gostariam de fazer a sua festa. Os que já tinham
apapaatai optaram em festejá-lo em outra ocasião. Assim, eu mesmo ofereci os meus
apapaatai para que fosse feita a grande festa.
Depois que terminou aquela grande festa eu melhorei mesmo. Eu me senti tão
forte. Eu realmente me senti bem.
Os eventos abrangidos por essa narrativa aconteceram num intervalo de
aproximadamente 7 anos, sendo o primeiro evento a ida de Atamai para Brasília e o
último, a realização do grande ritual das máscaras (Apapaatai Iyãu) para a Artíndia,
ocorrido em agosto de 1997. A contrapartida solicitada pelos Wauja foi o auxílio para a
abertura de uma pista de aterragem para pequenos aviões. O auxílio consistia no envio
de máquinas que permitissem tal trabalho. É importante notar que Atamai relaciona a
sua melhora, de modo direto e inequívoco, à realização desse ritual, e igualmente
enfatiza a idéia de que estrangeiros podem encomendar/patrocinar uma festa
“original”20 de apapaatai.
A raiz desse tipo de promoção do ritual, que o liga diretamente a instituições
como museus e lojas renomadas, não é assim tão recente, ela pode ser remontada há
pelo menos duas décadas. E se pensarmos em termos de um comércio mais amplo da
cultura material wauja, devemos levar em consideração a grande coleção feita por
Harald Schultz em 1963, que reuniu 664 peças para o então Museu Paulista da
Universidade de São Paulo.
Em 1983, a antropóloga Emilienne Ireland, então em trabalho de campo
financiado pelo National Museum of Natural History da Smithsonian Foundation,
pretendia fazer uma coleção de máscaras. Contudo, a sua aquisição mostrou-se mais
20
“Original” é uma categoria nativizada pelos Wauja e diz respeito basicamente aos objetos e
performances produzidas em contextos rituais ou solenes, cujo rigor estético está diretamente ligado a
vegonha/respeito pelas pessoas que receberão esses objetos como pagamento ritual e pelas pessoas que
assistirão às performances. A categoria “original” opõe-se à de “paraguai”, que carrega um sentido
ofensivo e é geralmente aplicada aos objetos falsos, de má qualidade e ao artesanato para turistas.
2192
complicada do que parecia ser à primeira vista. Foi impossível para Ireland comprar as
máscaras que os Wauja guardavam e que futuramente seriam ritualmente queimadas.
Também não era possível encomendá-las a um artesão, visto que os Wauja
consideravam um desrespeito fazer apapaatai “simplesmente para vender”.
Because the sponsor of a given ceremony is supposed to display in his house
paraphernalia associated with the ceremony he has sponsored, it would not have been
possible for me to collect a mask that had been used on a ceremony commissioned by a
Waura without going against local custom and public opinion. Of course, it is always
possible to find individual Waura who are willing to sell to outsiders items that the
Waura say it is wrong to sell, but this would have create bad feelings. The only
reasonable solution was to sponsor a ceremony myself, which would automatically
make me the rightful owner of the ceremonial paraphernalia. I had planned to do this as
a purely economic transaction, and applied to the Smithsonian for a grant to sponsor the
atujuá ceremony in this fashion (IRELAND, 1985, p. 16-17).
Portanto, a única alternativa de Ireland era a encomenda de um ritual de
máscaras para que ela pudesse ter a posse desses objetos. Mas esse seu projeto sofreu
uma inesperada reviravolta.
No período em que os Wauja aguardavam chegar de São Paulo parte das
matérias-primas encomendadas para fazer as máscaras Atujuwá para o National
Museum of Natural History da Smithsonian Foundation, Ireland ficou muito doente,
tendo sido levada a recorrer aos cuidados de um xamã local (Ireland, 1985: 18).
Segundo o diagnóstico xamânico, a sua doença fora causada pelos apapaatai
Sapukuyawá e Kuwahãhalu, com os quais ela então passava a ter a relação de “dona”.
Assim, na condição de “dona” desses apapaatai, Ireland pode tranquilamente promover
o ritual dessas máscaras e viabilizar a sua aquisição para o National Museum of Natural
History da Smithsonian Foundation. Ao adoecer, Ireland adquiriu imediatamente uma
prerrogativa ritual sobre o fazimento dos apapaatai. Porém, como ela não ficou doente
2193
das grandes máscaras circulares Atujuwá, Ireland não teve o direito de fabricá-las em
seu ritual de cura.
A aquisição das grandes máscaras Atujuwá sempre foi uma tarefa difícil. Por se
tratar de um apapaatai de extraordinários e perigosos poderes, ele é raramente trazido e
corporificado pelos xinguanos, e em geral seu ritual é acompanhado pelas caríssimas
flautas de madeira conhecidas como kawoká. Em 1887, Karl von den Steinen desejou
levar um exemplar para o Museu de Etnologia de Berlim, porém as precárias condições
logísticas da sua viagem o impediram. Finalmente, em 1898, Herrmann Meyer
conseguiu levar uma máscara Atujuwá para o mesmo museu. Este único exemplar
sobreviveu até os últimos anos da Segunda Guerra Mundial, quando então foi destruído
pelos bombardeios que devastaram Berlim. Em 1963, Harald do Schultz fotografou
duas Atujuwá, mas não pode adquiri-las. Em 1983, Emmiliene Ireland fracassou, como
mencionei acima, em seu projeto de aquisição de um casal de Atujuwá para o National
Museum of Natural History da Smithsonian Foundation, em Washington. Em 1994,
Michael Heckenberger logrou adquirir, para o Carnegie Museum of Natural History de
Pittsburg, um casal dessas máscaras, feita pelos Kuikuro, porém de menor tamanho e de
iconografia muito diferente daquela executada dos Wauja. Esses dizem que as Atugua
dos grupos carib do Xingu não são exatamente como as suas Atujuwá. O casal de
Atujuwá Yanumaka feito ritualmente pelos Wauja, em agosto 1997, para curar Atamai,
foi vendido pela Artíndia de Brasília para um antiquário (Baú-Baú) da cidade do
Salvador. Em julho-agosto de 2000, adquiri para o Museu Nacional de Etnologia de
Portugal, juntamente com dois casais de Atujuwá, também feitos pelos Wauja, um
conjunto de 32 máscaras rituais. E por fim, em março de 2005 os Wauja fizerem três
casais de Atujuwá para o Museu do quai Branly acompanhados de outras vinte máscaras
de menor tamanho.
Eu soube da produção do ritual Apapaatai Iyãu para a Artíndia antes mesmo da
minha primeira viagem à Piyulaga, em março de 1998. Porém, só soube dos detalhes da
2194
negociação em março de 2000, quando indaguei Atamai sobre o assunto. Desde 1998,
desejava ver esse mesmo ritual. No entanto, queria que ele acontecesse
espontaneamente, sem que se caracterizasse uma transação comercial. Mas isso não se
mostrou possível.
A conversão dos apapaatai de bens metafísicos a artefatos rituais é antes de
tudo uma decisão individual, ou melhor, daquele indivíduo que possui apapaatai ainda
não festejados. Se sua decisão for positiva, ele poderá então solicitar, com a mediação
do chefe, neste caso o “dono da aldeia” (putakanaku wekeho), a ajuda do resto da
comunidade. Essas negociações internas são delicadas e dependem de um forte apoio
dos amunaw (nobres/chefes). Portanto, apenas possuir muitos apapaatai não é um
requisito suficiente para realizar um Apapaatai Iyãu.
Simultaneamente à aquisição das máscaras para o Museu Nacional de
Etnologia de Portugal, interessava-me a performance ritual “original” das máscaras.
Inicialmente supus que se o ritual fosse encomendado, o processo “original” que
informa a sua execução seria elidido pelo objetivo comercial que o motivava, o que
faria a minha encomenda resultar em uma mera demonstração de dança e não em um
ritual. Porém, não tardou algumas semanas para eu perceber que a minha suposição
inicial estava errada.
Era a última semana de junho de 2000 quando consultei Atamai sobre a
possibilidade de se realizar o Apapaatai Iyãu. “Acabou tudo naquela festa” (para a
Artíndia). Esta foi a resposta que Atamai me deu quando lhe expus minha intenção de
comprar máscaras rituais para a coleção. Com efeito, o que ele quis dizer é que não lhe
sobravam mais máscaras. “Vou perguntar se alguém ainda tem”, disse Atamai,
procurando não anular minhas esperanças. Atamai levou o caso ao “dono da aldeia” e
demais amunaw, que o discutiram ao longo de uma semana. Verificou-se então que
apenas o amunaw Itsautaku tinha apapaatai suficientes para realizar o Apapaatai Iyãu.
Ele imediatamente concordou em promover o fazimento ritual dos seus apapaatai,
2195
porém, era preciso que os seus kawoká-mona concordassem em levar a cabo essa
produção. Diante da unânime concordância dos kawoká-mona, a questão foi mais uma
vez discutida pelo “conselho dos amunaw”. Assim, cinco semanas mais tarde, a minha
encomenda virou ritual.
Embora o ritual tenha sido inicialmente motivado por uma encomenda, é
preciso esclarecer que essa motivação tornou-se irrelevante. Logo após as primeiras
reuniões destinadas a discutir o pagamento das máscaras e a organizar o Apapaatai
Iyãu, os Wauja calaram-se em relação ao destino museológico das máscaras, como se
fossem indiferentes ao mesmo. Assaltados pela alegria da festa, os Wauja conferiram
um sentido autônomo ao Apapaatai Iyãu. A realização do ritual já não era movida por
uma razão externa aos Wauja. Nessa oportunidade, pude recuperar uma série de
informações a respeito da festa “para” a Artíndia.
A razão pela qual foi realizado o Apapaatai Iyãu em agosto de 1997 foi
elaborada a posteriori pelos Wauja, que diziam que o pessoal fez a festa “para Atamai,
a festa era dele, para ele ficar melhor, para dor ir embora, para ele sonhar bem”. É o
próprio Atamai que, em seu depoimento, diz: “Depois que terminou aquela grande
festa eu melhorei mesmo. Eu me senti tão forte. Eu realmente me senti bem”. É como se
há tempos ele esperasse por aquela festa, cujo momento adequado pareceu ser aquele
em que a Artíndia manifestou seu interesse pelas máscaras. Portanto, a festa não foi
realizada com o propósito de se obter uma pista de aterragem de aviões, que afinal
acabou sendo feita sem a ajuda da Artíndia. Enfim, o ponto de vista que prevalece é o
xamânico-terapéutico, ou seja, se não são por razões de cura não há porque se fazer os
custosos rituais de máscaras e aerofones.
2196
vez com um triplo objetivo: realizar um vídeo etnográfico, uma coleção etnográfica de
máscaras para o Museu du quai Branly e a adaptação do ritual como espetáculo, o qual
deveria ser encenado por dezessete Wauja no Festival de Radio France et Montpellier,
em julho de 2005. Alguns Wauja disponibilizaram seus apapaatai ainda não festejados
para compor o Apapaatai Iyãu, que finalmente ocorreu em março de 2005. Igualmente
como sucedeu em 1997 com a Artíndia e 2000 com o Museu Nacional de Etnologia, a
decisão de fazer um Apapaatai Iyãu para o Museu do quai Branly implicou na imediata
constituição de uma rede de serviços rituais baseada em obrigações de oferta alimentar e
em retribuições desses alimentos com presentes, como panelas, flechas, longos colares
de miçangas e outros objetos de apreço.
Tudo aquilo que envolve os apapaatai é cercado de imenso cuidado. Quando
se decide dar corpo aos apapaatai na forma de objetos rituais, a primeira disposição
moral mútua que emerge entre o “dono” do ritual e os kawoká-mona é o respeito-
vergonha. A carga moral atribuída ao ritual é que ele gera mais e mais obrigações entre
os participantes. Não se trata apenas de produzir para trocar/vender (seja entre índios ou
entre índios e brancos), mas de despertar a vida oculta dos objetos, ou melhor, de
despertar os famintos apapaatai em objetos-sujeitos. Toda a produção de alimentos que
um ritual exige é destinada à satisfação dos apapaatai. Vejamos alguns detalhes desse
despertar e de como a oferta alimentar está por trás da retenção de personitude nos
objetos de origem ritual.
Os cantos escuros das casas wauja escondem tesouros. Certa feita, em junho de
2000, deparei-me acidentalmente com três impressionantes panelas kamalupo,
protegidas sob panos velhos e poeirentos. Elas faziam parte de um conjunto de cinco
panelas oferecidas ao chefe Atamai por seus kawoká-mona Tankwara. Cada uma das
panelas correspondia a um dos cinco tubos que invariavelmente constituem o conjunto
dos clarinetes Tankwara e cada tubo corresponde a um kawoká-mona Tankwara.
2197
Os objetos rituais wauja podem ser dispostos em um escala dos menos duráveis
aos mais duráveis, a qual é homóloga à duas outras escalas: a da dureza da matéria-
prima e a da dificuldade/tempo de fabricação do objeto. No pólo inferior de dureza
estão as máscaras de palha (apapaatai onai) e no pólo superior as flautas de madeira
(Kawoká). Elas ocupam o centro do sistema ritual e são responsáveis pela produção de
uma série de outros objetos de menor dureza/durabilidade. As Kawoká, em função de
sua condição de longa permanência/longa retenção de personitude, é capaz de mobilizar
uma cadeia produtiva que vai desde o plantio de uma roça até a construção de uma casa
residencial e os seus silos de armazenamento da farinha produzida a partir daquela
mesma roça.
No ano de 1999, quando a grande amunaw opona (casa do chefe) foi
concluída, realizou-se em Piyulaga um Iyeju Tankwara, um grande ritual dedicado aos
cinco “donos” de Tankwara da aldeia para que estes fossem retribuídos pela comida que
eles ofereceram aos seus kawoká-mona ao longo de meses ou anos seguidos. Vinte e
cinco panelas foram pagas de uma só vez aos cinco “donos” de Tankwara pelos seus
respectivos kawoká-mona. As panelas de Atamai estavam entre as mais bem feitas, com
pinturas finamente executadas.
A produção de objetos “bonitos” não implica apenas em respeito pelo “dono”,
ela gera também a satisfação estética dos apapaatai, cujo efeito é a supressão da sua
agressividade patogênica e o direcionamento da ação ritual para a cura. Cabe à beleza
contribuir para o sucesso da terapia.
Das cinco panelas que Atamai recebeu, uma tinha se partido em abril de 2000,
depois de meses de intenso uso, o que o obrigou a lançar mão de uma segunda panela, e
as três remanescentes permaneceram guardadas21. Consultei Atamai, sobre a
possibilidade de venda das suas panelas, que me respondeu negativamente,
21
A última delas só foi usada em setembro de 2002.
2198
acrescentando: “isso é pagamento de Tankwara, não posso desrespeitar quem está me
ajudando, se eu fizer isso, eu morro.”
A declaração coloca seus kawoká-mona, as pessoas que fabricaram as panelas,
numa condição implícita de agentes e a ajuda é dita ser de Tankawara, mais
precisamente dos Jaguares que o adoeceram. Atamai evocou um princípio básico da
relação com os apapaatai, que é o medo-respeito (ou risco de adoecer gravemente),
para reforçar o ponto de vista da proibição da venda. Portanto, a desaprovação da venda
não seria apenas dos seus tão bem dispostos kawoká-mona, mas também dos Jaguares.
Portanto, as panelas não são de Atamai, mas de Tankwara mesmo, pois são elas que
permitem os Jaguares consumirem alimentos cozidos.
Em julho de 2000, mais de um mês depois do episódio das panelas, estávamos
eu e Atamai a conversar sobre o seu adoecimento e sobre os trabalhos pregressos de
seus kawoká-mona Tankwara. Foi aí que de repente, ele me disse: “eu tive Ewejo
(Ariranha) também. Faz tempo eles me ajudaram muito. Você quer ver?” Atamai, como
que se tivesse lembrado de algo há tempos esquecido, dirigiu-se ao fundo escuro da casa
com uma lanterna, vasculhou os cantos e trouxe, arrastando, um enorme saco plástico
coberto de poeira, fuligem e teias de aranha, do qual começou a retirar o que tinha
dentro. Eram oito máscaras Ariranha (Ewejo) feitas quando ele retornou do hospital de
Brasília. Elas constituíram o grupo de personagens do segundo ritual de apapaatai que
os Wauja fizeram para Atamai depois de sua crise, o primeiro, Kukuho, foi feito quando
ele ainda estava internado. Portanto, em julho de 2000, aquelas máscaras já tinham
quase uma década de existência.
Diante das oito máscaras dispostas no chão, Atamai voltou a dizer: “essas
Ariranhas me ajudaram muito”. Perguntei se elas ainda o ajudavam. Atamai disse que
não, que elas (i.e. as Ariranhas que o adoecerem) já tinham ido embora, mas que um dia
elas (as máscaras) seriam queimadas.
2199
Algum tempo depois do ritual das máscaras, os oito kawoká-mona Ewejo de
Atamai fizeram para ele quase duas dezenas de cestos cargueiros, os quais ele
dependurou sob o teto da sua casa, formando uma linha horizontal de cestos. Tal
disposição dos grandes cestos deve ter causado um efeito visual altamente impactante
sobre os estrangeiros que visitaram Piyulaga naquela altura. Conforme Atamai, os
mesmos pediam com insistência para que ele lhes vendesse ao menos um cesto. Atamai
recusou todas as solicitações. Os cestos foram sendo usados aos poucos pelas mulheres
da casa. O último deles foi desamarrado do teto quase dois anos mais tarde. Tal qual sua
amunaw opona (casa do chefe), os cestos são índices da sua aliança com os apapaatai,
com os kawoká-mona e, por extensão, com a comunidade.
Depois de me contar a história dos cestos, Atamai perguntou se eu queria levar
as oito máscaras para o Museu Nacional de Etnologia de Portugal. A oferta causou-me
surpresa, que mais tarde se tornou uma questão: por que, ao invés de certos cestos e
panelas, máscaras podem ser vendidas a um museu? A resposta envolve três aspectos
básicos: função, produção e posse. As máscaras, depois de usadas no ritual, perdem sua
função. Porém, em casos excepcionais como o de Atamai, as máscaras podem assumir,
antes de serem destinadas ao fogo, uma breve colaboração com objetos rituais
hierarquicamente superiores.
Após o ritual de Ewejo, as máscaras foram guardadas, mas a relação de Atamai
com seus kawoká-mona Ewejo não cessou, pois ele continuou, esporadicamente, a
oferecer-lhes comida. Dois anos mais tarde, os kawoká-mona Tankwara decidiram fazer
o ritual de clarinetes para Atamai, criando-se assim um novo grupo de produção ritual,
ao qual os oito Ewejo vieram a se somar como colaboradores. A superioridade
hierárquica e a tendência dos clarinetes a permanecerem como personagens rituais agem
como um atrator em relação às máscaras, situando-as no esquema da produção ritual
para seu “dono”. No entanto, se Atamai não possuísse os clarinetes, as máscaras jamais
trabalhariam em suas roças, no máximo, teriam feito alguns cestos.
2200
Panelas, cestos e outros artefatos integram a cadeia de produção e pagamentos
rituais que mencionei no início desta seção. Esses artefatos são índices da distribuição
de pessoas humanas e não-humanas (GELL, 1998). Eis a via dessa distribuição: em
primeiro lugar, os apapaatai fragmentam a alma do doente, cada fragmento corresponde
a um apapaatai raptor, que é familiarizado pela oferta de comida a um kawoká-mona,
portanto a primeira grande distribuição dá-se ao nível dos membros da comunidade; em
segundo lugar, os kawoká-mona produzem artefatos rituais (máscaras e aerofones
basicamente) que lhes permitem atualizar a agência dos apapaatai, cujo sentido é
direcionado para produção de roças, panelas, cestos, fardos de pequi, armadilhas de
pesca, pás de beiju, desenterradores de mandioca etc., portanto a segunda grande
distribuição dá-se ao nível dos artefatos.
Tanto quanto os membros da comunidade, tais artefatos fazem parte das
relações de produção ritual, portanto eles não são simplesmente
implementos/instrumentos de trabalho, e sim pessoas que trabalham. Os artefatos,
escrupulosamente proibidos a venda por Atamai, estão repletos de personitude, tanto
dos apapaatai quanto dos kawoká-mona que os fabricaram. É por esse motivo que a
venda de objetos rituais para museus abrange, quase exclusivamente, aqueles que teriam
como destino a fogueira, o esquecimento ou a destruição pelo tempo, ou seja, objetos
que após a performanece ritual passarão por um longo processo de perda de personitude.
As máscaras são, por excelência, tais objetos, objetos que morrem consumidos pela
fome ou pelo fogo. Por outro, lado há objetos rituais que são hiper-retentores de
personitute, como as flautas kawoká, os clarinetes tankwara e o trocano pulupulu, pois
idealmente devem receber alimentos por anos ou décadas a fio. Esses objetos muito
dificilmente farão parte uma transação monterária sem que seja apagado algo que
compõe sua personitude.
2201
Referências bibliográficas
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Universidade de São Paulo, 1974.
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Etnologia, 2004.
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Penteado (org.), Karl von den Steinen: um século de antropologia no Xingu. São Paulo:
EDUSP, 1993, p. 405-429.
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GELL, Alfred. Art and Agency: an Anthropological Theory. Oxford: Oxford University
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2202
Epidemias, índios bravos e brancos: contato cultural e etnogênese do Alto Xingu. In:
FRANCHETTO, Bruna e HECKENBERGER, Michael (org.), Os povos do Alto
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PAIS DE BRITO, Joaquim (Ed.). Os índios, nós. Lisboa: Museu Nacional de Etnologia,
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STEINEN, Karl von den. Durch Central Brasilien. Leipzig: Brockhaus, 1886.
2203
VÉIO E O MUSEU DO SERTÃO: UMA PERSPECTIVA INICIAL SOBRE O
POTENCIAL CRIATIVO, A PRESERVAÇÃO DE MEMÓRIAS E A
REELABORAÇÃO DE SABERES POPULARES.
Cícero Alves dos Santos é um dos artistas plásticos sergipanos com maior
visibilidade nacional e internacional na contemporaneidade. Conhecido pelo seu
apelido: Véio, contração de velho, cuja alcunha recebeu ainda criança, aos cinco anos de
idade, devido a um interesse constante em estar entre os mais idosos, ouvindo histórias
e narrativas de sua gente. Autodidata, o escultor, tem obras no acervo da Fondation
Cartier Pour Lárt Contemporain, em Paris (França), no Pavilhão das Culturas
Brasileiras, na Pinacoteca do Estado de São Paulo, e em diversas coleções particulares
importantes no Brasil, além de ser representado pela Galeria Estação, em São Paulo. Já
realizou inúmeras exposições individuais e coletivas em Sergipe, em outros estados
brasileiros e em alguns países, como a Itália, por exemplo, quando expôs em Veneza,
integrando a programação da Bienal de Veneza, em 2015. O escultor foi contemplado
ainda com um dos maiores prêmios do sistema das artes brasileiros: o Prêmio Itaú
Cultural 30 Anos. Este prêmio, entregue no último dia 12 de junho, foi entregue a dez
pessoas e coletivos que, ao longo das últimas três décadas, intervieram
significativamente na vida artística e cultural do Brasil, demonstrando a importância e o
alcance da potência criativa e a reelaboração dos saberes populares deste sergipano.
2204
Figura 1 - (Foto: Rogério Vieira, disponível em https://medium.com/revista-bravo/pr%C3%AAmio-
celebra-a-diversidade-cultural-d589aa7f4d1a)
2205
Véio é um colecionador de toda sorte de objetos, demonstrando seu interesse
pelas histórias dos homens e mulheres de sua região, pelas manifestações culturais,
sobretudo as ligadas ao universo popular: “causos”; religiosidade popular católica,
curandeiros, benzedores, Padre Cícero, Candomblé, feitiços, grupos de penitentes,
crendices de todas as ordens; reisados; danças; circo; caretas; e mais uma miríade de
manifestações da cultura popular sertaneja sergipana. Este profundo interesse, associado
a uma ideia de preservação e divulgação da história de Glória, de Sergipe, do Brasil,
motivou a criação do Museu do Sertão. Véio, que vive da venda de suas esculturas há
muito tempo, conseguiu com recursos próprios montar um espaço, ao lado de sua
residência, no sítio SóArte, localizado entre Feira Nova e Nossa Senhora da Glória,
designado pelo mesmo de Museu do Sertão. Neste espaço, cujo acervo conta com
aproximadamente 17.000 (dezessete mil) peças, segundo Cícero, estão misturados
objetos, entre os quais figuram documentos, fotografias, mapas, cartas, livros,
ferramentas e instrumentos de trabalho, uma casa de farinha completa, máquinas de
diversos tipos e funções, e esculturas de sua autoria. Os objetos, incluindo as esculturas
de sua autoria, estão distribuídos e organizados em espaços específicos em cada “casa”
construída para abrigar as seções elaboradas pelo artista-colecionador, como um
percurso consciente e estruturado pelas narrativas históricas e simbólicas do mesmo.
2206
Figura 2 - Vou mudar essa imagem por uma tirada por Alexandra
Em entrevista aos autores, Véio conta que está no sítio há 15 anos e o espaço do
Museu do Sertão vem se desenvolvendo desde então. São quatro “salas” interligadas e
outros quatro espaços independentes, as “casas temáticas”. Tudo apresentado de modo
um pouco improvisado, empoeirado e sem recursos tecnológicos ou de identificação.
No entanto, tudo tem relação entre si, transformando o Museu do Sertão num espaço de
uma potência histórica, estética, e simbólica único, principalmente diante do contexto
local, ou seja, numa cidade do interior sergipano, cujos equipamentos culturais são
praticamente inexistentes. Cristina Freire (1997), aponta sobre espaços que condensam
o passado e o presente, numa recriação de diversidades de tempos e de espaços, cujo
exemplo do Museu do Sertão pode ser apresentado como tal. Este impõe sua própria
narrativa, todavia, se mostra aberto à múltiplas leituras, intervenções e sugestões de
aprendizado sobre cultura, sobre memória, patrimônio, arte, estética, história, entre
outros. Os museus, enquanto instituições, vem sendo associados aos processos de
formação simbólica de diversas modalidades de autoconsciência individual e coletiva,
constituindo a ideia de patrimônios, os quais “nos ‘inventam’ (no sentido de que
constituem nossa subjetividade), ao mesmo tempo em que os construímos no tempo e
no espaço. Em outras palavras: quando classificamos determinados conjuntos de objetos
2207
materiais como ‘patrimônios culturais’, esses objetos estão por sua vez a nos ‘inventar’,
uma vez que eles materializam uma teia de categorias de pensamento por meio das
quais nos percebemos individual e coletivamente. (GONÇALVES, 2007, p 29)
O Museu do Sertão foi, e continua a ser, construído pelo agrupamento de objetos
que refletem uma memória coletiva, do sertanejo, mas também do indivíduo Cícero
Alves dos Santos. É notório a relação simbiótica entre a coleção e as esculturas
produzidas pelo artista, entre o colecionador e o escultor. Véio faz de sua arte uma
espécie de testemunho do encontro com o irrepresentável, que segundo Rancière (2009),
desconcerta o pensamento normativo e ordinário das coisas. O artista trabalha de duas
maneiras em suas esculturas: na primeira, escolhe, com o que chama de troncos abertos,
pedaços de vegetação que encontra dispostos pela região em que vive, e nos quais ele
faz poucas e precisas intervenções artísticas. Véio consegue extrair da natureza um
caráter expressivo, contido em suas torções e formas já encontradas e através de cores e
cortes bem específicos, acaba por delinear formas de animais, homens e outras figuras
fantásticas; na segunda maneira, entalha o que nomeia de troncos fechados. Véio
debasta a madeira até deixar à vista o que planejou ou previu no tronco, segundo o
mesmo. São composições que abordam diversos temas e possuem dimensões muito
variadas, desde um milímetro a 12 metros de altura.
Acreditamos que Véio não “representa” o mundo sertanejo, mas organiza e
constitui narrativas criativas e complexas a partir de várias camadas de memórias e de
histórias de Nossa Senhora da Glória e das pessoas com as quais ele conviveu e ouviu
falar a vida toda. Trata-se de um artista com uma produção impressionante pela
quantidade de obras produzidas, pela variedade de temas e possibilidades simbólicas,
além da capacidade de sua oralidade e construção de narrativas poéticas. Entendemos
que para construir um estudo sobre a produção deste artista é preciso um cuidado
minucioso com muitos aspectos que a circunda. Os conceitos/métodos elaborados por
Cecília Salles (2004), por exemplo, apresenta outros meios de perceber a construção de
2208
uma obra de arte, além de seus aspectos visuais. A autora afirma que para se aproximar
do sujeito criador é preciso percorrer seu espaço e tempo, suas questões relativas à
memória, percepção e recursos de criação. “Daí a necessidade de se pensar a criação
artística no contexto da complexidade, romper o isolamento dos objetos ou sintomas,
impedindo sua descontextualização e ativar as relações que os mantêm como sistemas
complexos. [...] Do mesmo modo, a obra vai se desenvolvendo por meio de uma série
de associações ou estabelecimento de relações.” (SALLES, Op. Cit., p.27) Zeny
Rosendahl (2003), é outro autor pertinente nestes estudos sobre a produção artística e
suas relações, sobretudo, a partir de seu estudo da geografia cultural, no qual afirma que
é pela existência de uma determinada cultura que se cria um território, e é dentro deste
território que se constrói e se exprime a relação simbólica existente entre a cultura e o
espaço. E, talvez se encontre nesta relação uma possibilidade de compreensão do
universo simbólico particular criado pelo artista-colecionador sergipano. Sua relação
com o espaço vivenciado, espaço este, que assim como a cultura, neste caso cultura
popular nordestina, sertaneja e sergipana, são plenos de referências e memórias
múltiplas.
2209
Figura 3 - Penitentes. Foto
Em todas as entrevistas realizadas, Véio se queixa de não ser reconhecido na sua
própria região, apesar de já ter participado de muitas exposições, feiras de arte e mesmo
de ter representado Sergipe em eventos realizados em Brasília, por exemplo. Todavia, a
queixa mais frequente é em relação a não valorização da “memória do sertão”, dos
costumes e fatos acontecidos em Glória. O museu, a partir dos objetos que o criador
coleciona, reelabora e reclassifica estas peças de acordo com seus desejos, perspectivas
e construções narrativas orais.
Todavia, existe um risco real dessas narrativas, histórias e objetos se perderem. Em
primeiro lugar, Cícero não tem seguidores ou aprendizes. Ninguém da família seguiu
seus passos e ainda não foi realizado um processo de documentação e registro de seu
2210
acervo, nem tão pouco de suas obras escultóricas. O Museu do Sertão existe, porém não
como uma instituição formal, ou seja, não possui nenhum tipo de documentação,
histórico ou qualquer acompanhamento técnico museológico de seu acervo. Os telhados
necessitam de reparos, as salas necessitam de limpeza, iluminação, organização na
disposição das peças, ou melhor, uma expografia, extintores de incêndio, questão
apontada como uma das maiores preocupações do artista-colecionador, entre outras
necessidades primárias, como o inventário do acervo, por exemplo.
Trata-se de um espaço que existe independente de qualquer financiamento
externo, completamente fragmentado, o qual resiste pela imensa vontade de um homem
que tem consciência da potência cultural e das relações patrimoniais, educativas e
simbólicas do Museu do Sertão. Esta iniciativa partida de um sujeito, que é ao mesmo
tempo produtor de objetos-obras de arte-significantes, e sujeito analítico, agente de
intervenção do meio cultural, cujas funções se misturam e se complementam, é muito
desafiadora para se pensar a formação e o sentido das instituições formais que lidam
com a preservação de bens culturais, sobretudo, os bens ligados ao universo
conceituado como popular, já que a maioria dos exemplos de museus de arte poppular
ou cultura popular foram constituídos a partir de acervos provenientes de pesquisadores,
antropólogos, etnólogos, ou colecionadores, estrangeiros ou brasileiros, interessados em
elementos das culturas populares, quase sempre de origem abastada.
É possível diagnosticar que a maior urgência, pensando numa questão de
estrutura e permanência do que já existe, é a realização do inventário das peças do
acervo do Museu do Sertão. Segundo Padilha (2014), o inventário é a contagem de
todos os objetos que fazem parte do museu e esse procedimento é fundamental para ter
o conhecimento geral sobre seu acervo e contribui para a segurança do mesmo. Foi
pensando neste contexto e na importância do Museu do Sertão que um projeto de
pesquisa começou a ser desenvolvido neste ano por alguns professores e estudantes da
UFS. Tal iniciativa pensa nos desdobramentos dos procedimentos museológicos de
2211
documentação, catalogação e expografia do acervo existente, além da documentação de
algumas das narrativas orais elaboradas pelo artista, nas quais o mesmo entrecruza as
memórias do sertanejo às da sua própria vida e poética. Este projeto prevê muitas etapas
conceituais, as quais poderão contribuir para a análise e debate críticos das artes visuais
sergipanas, brasileira e contemporânea, além da ampliação dos discursos sobre
apropriação, patrimônio, conceituações sobre o popular, a musealização de objetos,
memória e etc. O estudo sistemático e amplificado da trajetória artística de Cícero Alves
dos Santos, o Véio, e sua relação direta com a construção do Museu do Sertão tem
muito a acrescentar aos campos dos estudos da Museologia, Artes Visuais, Design,
História, Ciências Sociais, entre outros.
Referências Bibliográficas
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casas e a monumentalização de Mario Quintana. In MUSAS – Revista Brasileira de
Museus e Museologia, n. 7, 2016. Brasília : Instituto Brasileiro de Museus, 2016.
SILVA, Michel Platini Fernandes da, LISBOA, Pablo Fabião. Histórias sobre coisas e
pessoas: Coleção e colecionismo em Krzysztof Pomian e Jean Baudrillard. In: IV
Congresso Sergipano de História e IV Encontro da ANPUJ/SE, 2014, Aracaju.
Anais Eletrônicos do IV Congresso Sergipano de História. Aracaju, 2014. v. 1.
NAVES, Rodrigo. Cícero Alves dos Santos [Véio]: esculturas. São Paulo: Editora
WMF Martins Fontes, 2014.
2212
CAMINHOS DE UM PATRIMÔNIO SIMBÓLICO MARGINALIZADO: A ROTA
MUSEOLÓGICA DO CANGAÇO.
Resumo: O cangaço foi um fenômeno social ocorrido no sertão brasileiro no final do século
XIX, tendo grande destaque na década de 30 do século seguinte devido à atuação de grupos
vistos como bandidos por parte da população do nordeste. Virgolino Ferreira da Silva, vulgo
Lampião, foi o líder que ganhou mais destaque pela resistência, disciplina e organização de seu
bando, sendo posteriormente bastante estudado. Esse grupo era constituído de homens e
mulheres que estavam insatisfeitos com uma ordem social estabelecida devido às desigualdades
e injustiças econômicas da época em que viviam. Assim, esse artigo objetiva identificar os
possíveis locais para construção de um circuito expográfico do cangaço que englobe os estados
nordestinos do país e que discuta esse patrimônio cultural muitas vezes marginalizado. Acredita-
se que o processo de musealização dos locais e das celebrações que ocorrem como a missa dos
vaqueiros, por exemplo, poderá fortalecer e valorizar ainda mais a cultura popular nordestina e
sertaneja.
Palavras-chave: Cangaço; Rota; Musealização; Patrimônio simbólico; cultura popular.
Abstract: The “cangaço” was a social phenomenon occurred in the Brazilian backlands in the
late nineteenth century and highlight in the 30 of the next century due to the action of groups
seen by part of population as villains throughout the northeast of the country. Virgolino Ferreira
da Silva, aka Lampião, was the leader who gained more prominence because of his strength,
discipline and organization of his band subsequently been intensively studied. This group was
constituted of men and women who were dissatisfied with a social established order due to the
inequalities and economic injustices of the period in which they lived. Thus, this work aims to
identify possible sites for building an expografic circuit of cangaço covering the northeastern
states of the country and to discuss this cultural heritage often marginalized. It is believed that
the musealization process of local and celebrations that occur as the cowboy mass, for example,
could fortify and valorize even more the northeastern backlands popular culture.
Key-words: cangaço; route; musealization; symbolic heritage; popular culture.
2213
Introdução
O cangaço foi um fenômeno social ocorrido no fim do século XIX e início do
século XX, na região do semiárido do nordeste brasileiro, e ficou conhecido por sua
característica de revolta contra o sistema econômico e social da época que desfavorecia
os mais pobres. Composto por homens e mulheres, esses bandos percorriam toda a
região do sertão realizando saques e assaltos, mas especialmente definindo uma posição
de revolta contra o sistema estabelecido.
No Brasil, esse período é marcado por uma série de injustiças econômicas e
políticas, onde diversas revoltas ocorreram principalmente pela ditadura estabelecida em
toda a Era Vargas. Além disso, o poder continuou concentrado nas mãos dos ricos
fazendeiros o que ocasionou contestações dos trabalhadores pobres daquelas fazendas
sobre aquela forma de administração de terras e de riquezas produzidas que enriqueciam
apenas os grandes fazendeiros.
Dessa forma, os cangaceiros ocuparam um importante papel de disputa social, e
os lugares que tem registro de sua passagem nessa delimitação geográfica ganharam
posteriormente a designação de lugares de memória. Nessa geografia, entre outras
coisas, encontram-se rotas de passagem dos cangaceiros que se tornaram atualmente
pontos de memória desse fenômeno.
Ao identificar os lugares de passagem desses bandos e perceber o cangaço como
um patrimônio cultural, devido seu valor histórico no cenário cultural do nordeste,
sendo assim uma marca dessa história e memória, poderemos discutir os processos de
patrimonialização em relação às rotas nos estados nordestinos com a presença desse
fenômeno que já foi muitas vezes marginalizado.
2214
nos ombros para transportar objetos’, remete ao fardo de armas objetos que os
cangaceiros, nômades, carregavam” (LEBENSZTAYN, 2009, p. 135). Rastreando a
origem das palavras “cangaceiro”, “bandoleiro” e “bandido”, a autora afere que a
semelhança entre cangaceiro e bandoleiro é o fato deles carregarem bandola, cinto do
qual pendem cartucheiras de pólvora o que evidencia a existência do que ela considera
ser um círculo vicioso, da ordem do trabalho explorado, do banimento, à esfera da
violência.
Dessa forma, o cangaço é compreendido como um movimento que tem como
característica principal a relação com os poderosos homens donos da terra, a existência
de um clima semiárido com períodos de seca constante e uma paisagem social de
desolação. A pesquisadora Élise Grunspan-Jasmin (2006), recorrendo a documentos
antigos, identifica que
Para Sarah Lima Batista (2012), o cangaço é formado por bandos de pessoas
armadas que podiam ser parentes do coronel local, jagunços, e o cabra ou cangaceiro
manso, comumente identificado como um morador comum que se comprometeria em
defender o proprietário de terra, em troca de trabalho nesta e de proteção.
O cangaço seria então considerado um fenômeno banditista como explica José
Bezerra Lima Irmão (2014) ao diferenciar o que é bando e quadrilha. O bando atuaria
nas zonas rurais e a quadrilha (com mais de quatro integrantes) nas zonas urbanas. O
2215
cangaço viria do termo bandido, derivado de bando, de onde surge o banditismo
caracterizado pelo autor como um fenômeno universal.
2216
Motivados pela própria condição de miséria que viviam, um tipo de resistência
tomava forma nesses bandos por meio do uso de força e violência. Assim, eles passaram
a ter uma organização sólida e estratégias de luta eficientes especialmente para não
serem presos em suas atuações. Historicamente o que se passava no entorno social do
Brasil naquele período e que como com uma mola propulsora impulsionou o cangaço no
Nordeste na década de 3022, estava fortemente ligado aos fatos sociais e políticos.
Entretanto, distante de ser um movimento uniforme, no cangaço há períodos
marcados pela organização de bandos também a serviço dos coronéis que queriam
proteger suas fazendas e terras e os cangaceiros eram contratados para prestarem esse
tipo de serviço. Contudo, houve tempo em que esses bandos tornaram-se independentes,
o que gerou um cenário de luta armada. O cangaço, naquele momento, não apenas
lutava e resistia por motivos de fome generalizada em períodos de seca, mas também
contra as injustiças que ocorriam com a população mais pobre.
James Scott (2011) afere que a resistência estava diretamente ligada ao embate
entre classes sociais. Havia naquele cenário árido uma recusa em atender as diversas
demandas feitas pelas classes superiores como a proteção às fazendas, serviços
domésticos exploratórios e ou trabalho na terra. Portanto, tais demandas e
reivindicações – entendida aqui como recusa – têm normalmente a ver com o que
motiva a relação da luta de classes, ou seja, a apropriação da terra, do trabalho, dos
22
Na década de 30, o Brasil enfrentava um período de transição: A Revolução de 1930; Movimento de
oligarquias que não se beneficiavam com a política “Café-com-Leite”, marcou o início de uma década de
mudanças para o Brasil. Com a Revolução, foi possível a ascensão ao governo nacional de um
representante do Rio Grande do Sul: Getúlio Dornelles Vargas, assumindo um governo provisório que
futuramente, através de um golpe, se consolidaria até seu suicídio em 1954. O levante comunista de 1935
tinha por objetivo depor Getúlio Vargas e implantar um governo comunista no Brasil, tendo como líder da
revolta Luís Carlos Prestes. Porém a revolta fracassou, sendo reprimida terrivelmente pelo governo
Vargas, que aproveitando a ameaça comunista implantou o Estado Novo em 1937, suspendendo as
eleições de 1938, alegando não poder haver uma eleição com o Brasil em estado de guerra, assim
efetivou-se a Ditadura Varguista, concentrando todos os poderes nas mãos do presidente. Foi neste
contexto nacional que o Banditismo Social ou o popularmente conhecido “Cangaço” teve seu auge,
repercutindo não apenas regionalmente, mas também a nível nacional, representando mais uma ameaça ao
governo ditatorial do período (BATISTA, 2012, p. 14).
2217
impostos, das rendas, etc. Portanto, a resistência dos cangaceiros tinha o intuito de
conquistar ganhos sociais imediatos.
Maria Isaura Pereira de Queiroz (1982) aponta como destaque de resistência a
figura de Virgolino Ferreira da Silva, vulgo Lampião23, um dos líderes mais conhecidos
dos bandos de cangaceiros, devido seu caráter disciplinado, sua resistência nas lutas e a
organização de seu bando e trabalha seu mito de origem chegando à delimitação
geográfica do cangaço, ao que ela chama de “Polígono das Secas” (QUEIROZ, 1982, p.
15).
Tanto Serra Talhada/PE, como Triunfo/PE, Petrolina/PE, Piranhas/AL ou Poço
Redondo/SE e Mossoró/RN, são lugares que registraram a passagem pacífica ou não de
Lampião nesses territórios, sejam como trincheiras de resistência ao cangaço ou como
locais que apoiaram as ações dos cangaceiros, ou mesmo como cenário de confrontos
dos cangaceiros com a volante, como explica Marcos Edilson de Araújo Clemente
(2006, p. 44).
Fernando Sá (2014), em sua pesquisa sobre o cangaço no sertão de Sergipe e
Alagoas, realizou diversos levantamentos científicos nas cidades de Poço Redondo/SE,
Canindé do São Francisco/SE, Piranhas/AL, Olho D’água do Casado/AL, Juazeiro do
Norte/CE, Triunfo/PE, Serra Talhada/PE, Paulo Afonso/BA e Poço Redondo/SE, e
acaba apontando também essas cidades como locais de ações comemorativas em relação
à figura de Lampião.
Logo, o autor explica que, de algum modo, nessas visitas realizadas e nas
consultas a jornais e livros, percebeu que em cada estado ou cidade na qual se registrou
a passagem do bando de Lampião, havia uma preocupação em demarcar na geografia a
especificidade da participação no fenômeno social do cangaço (SÁ, 2014, p. 286).
23
Filho de José Ferreira dos Santos e Maria Vieira Lopes, conhecido como “Rei do Cangaço”. Lampião
nasceu no sítio de Passagem das Pedras, atual município de Serra Talhada, mas sua data de nascimento é
duvidosa, enquanto alguns afirmam ter sido em 07 de julho de 1897, outros sustentam que foi em 04 de
junho de 1898. A data de morte não tem tanta indistinção, o cangaceiro morreu na Grota de Angicos,
município de Poço Redondo, em 28 de julho de 1938 (FILHO, 2014, p. 1).
2218
Assim, o recorte feito aqui passa por cinco estados, sendo eles, Pernambuco,
Bahia, Sergipe, Alagoas e Ceará, por onde o bando de Lampião passou e deixou marcas
históricas, sejam elas através da memória do povo ou mesmo dos jornais da época que
faziam tal registro da passagem dos cangaceiros por determinados locais, indicando essa
preocupação em registrar a passagem dos cangaceiros.
Os levantamentos feitos em pesquisas destacam até agora sete estados brasileiros
com atividades do cangaço24, entretanto para esta pesquisa, o foco cai sobre os estados
de Alagoas, Sergipe, Pernambuco, Bahia e Ceará, por atrelarem de alguma maneira
memórias sobre a passagem do bando de Lampião.
Outras marcas são atualmente identificadas em museus e locais de celebração,
como a Grota de Angicos, onde é realizada a missa do cangaço, fazendas de coiteiros
que eram utilizadas como refúgio, entre outros espaços.
Assim, depois de delimitado o espaço geográfico do cangaço como também
alguns motivos e consequências de sua passagem por determinadas cidades do sertão
nordestino, traçaremos uma explanação sobre o que tange o patrimônio e suas questões,
e também pelo fato de que a simbologia que rodeia o cangaço na sua ótica atual pode
ser compreendida como um patrimônio relativamente interligado à identidade cultural
do povo nordestino, assim como uma marca registrada nos capítulos da história do povo
brasileiro.
2219
O patrimônio aqui discutido e que podemos chamar de marginalizado, segue a
mesma linha lógica sobre o que ocorreu com o cangaço, também marginalizado hoje em
dia e por parte da população da época. É por essa e outras ligações que se nomeia esse
patrimônio dessa maneira. É bastante válido, neste momento, discutir o conceito de
patrimônio. Para Mario Chagas (2005):
2220
patrimônio, é bastante recente, tendo em vista que no período em que existia não
possuía tal significado, sentido ou relevância para alguma contribuição cultural da
época.
Vale salientar o que seria o cangaço senão esse movimento de respaldo na
identidade cultural do povo do Nordeste. O que aqui se pretende mostrar é como o
cangaço pode se tornar um patrimônio da região nordeste no sentido de que resquícios
de seus símbolos e signos moveram o imaginário da população nordestina e brasileira.
Assim, o conceito que mais se adequaria ao caso do cangaço sob essa ótica, seria o do
autor Mário Chagas ao tratar o patrimônio como um lugar de conflitos, construção, de
embates, situações estas em que o cangaço se encontra inserido.
Essa mistura de símbolos e signos presente no legado deixado pelo cangaço
acaba se estruturando como uma das forças motrizes geradoras da identidade cultural do
povo nordestino, sendo também um legado histórico e cultural nessa memória visitada
devido à realidade existente naquela região. Dessa forma, Sarah Lima Batista (2012)
nos explica que o movimento pode ser compreendido como “pertencente à cultura
imaterial, posto que esta modalidade de cultura necessita inevitavelmente da memória
coletiva para existir” (BATISTA, 2012, p. 16).
São, portanto, legados que percorrem a imaterialidade dessas manifestações do
cangaço na memória e que traçam o paralelo com o que podemos atualmente chamar de
patrimônio cultural ou patrimônio simbólico, constituinte também de uma identidade
cultural.
Ao longo dos tempos, houve uma construção de discursos que se contrapunham
até os dias de hoje entre pesquisadores do tema, levantando o debate sobre a questão dos
cangaceiros e cangaceiras serem heróis ou bandidos naquela realidade sertaneja e dentro
do imaginário nordestino, tomando-os, portanto, como patrimônio cultural desse povo.
2221
É comum que os bens do cangaço sejam interpretados de maneira equivocada
nos museus, como destaca Clovis Carvalho Britto em seu artigo sobre a as mulheres e a
musealização do cangaço.
Nessa pesquisa do tema, Britto (2016) também problematiza acerca dos objetos
do cangaço em museus e sobre as mulheres no cangaço e aponta que de acordo com
José Murilo de Carvalho, “os cangaceiros eram compreendidos, [...] como bandidos
sociais que reagiam à situação de desigualdade [...] no sertão, mas que se utilizavam das
mesmas táticas dos coronéis, sobretudo a violência” (BRITTO, 2016, p. 54).
A questão torna-se mais complexa a ponto de ser possível analisar o fato de que
nesse imaginário popular, o cangaço ganhou espaço e gerou sentimentos de
pertencimento à região nordeste, além de ressoar na herança cultural em suas mais
diversas manifestações, sejam elas materiais ou imateriais, encontrando aí as suas
características museológicas sendo este objeto uma fonte de pesquisa na área da
Museologia e do campo do patrimônio que expande-se constantemente, podendo o
cangaço ser identificado como patrimônio simbólico, intangível e cultural.
2222
expressividade em relação à Lampião e seu bando. Fernando Sá inicia sua jornada
através dos confins de Serra Talhada/PE e tal escolha não é aleatória e nem por acaso,
pelo contrário, o autor indica um dos pontos de partida para desembocar no cangaço e
sua força através de Lampião.
O que possui de cangaço nesses espaços geográficos? A partir do ponto de vista
da construção de um patrimônio simbólico que é também muitas vezes marginalizado,
volta-se o olhar mais fortemente para Triunfo/PE que possui um Memorial do Cangaço,
além de Poço redondo/SE que tem a Praça Lampião e o Museu do Sertão em
Piranhas/AL. Esses locais são os principais apontados por Fernando Sá e intitulados
como Museus de cangaço.
Cabe discutir também como se constituem as rotas geográficas com um caráter
ainda museológico25 para se pensar o patrimônio simbólico. Logo, um viés necessário e
crucial para o entendimento e a pesquisa sobre a rota geográfica do cangaço, é
justamente captar a essência do que se entende por rota geográfica e trabalhar na
construção da produção da mesma.
25
Para Cristina Bruno (2005) “museológico é o fenômeno (é quando este fato é identificado, percebido,
ou seja: o museu)”. (BRUNO apud CURY). Logo, aqui, o que se chama de uma rota museológica é uma
rota identificada e tendo o fenômeno, no caso do cangaço, como elemento constituinte.
2223
errante e aparentemente, incerta. Assim, é capaz surgir uma nova perspectiva e noção de
patrimônio através da rota. Para compreender o conceito de rota, o ICOMOS, apresenta
que:
2224
Dos segmentos capazes de serem investigados sobre tais museus que possuem
acervos de cangaço, considerando os estados onde esses espaços museais estão
inseridos faz-se relevante contextualiza-los para compreender a importância da
passagem e produção do cangaço nesses locais. Muitos dos indícios a serem
encontrados nessas abordagens quanto à rota, se revelará também à medida de uma
busca meticulosa, profunda e uma pesquisa bibliográfica mais especializada sobre o
tema cangaço e rotas geográficas e processos de musealização26.
Logo, esses espaços de consagração e fabricação de uma ideia de patrimônio
simbólico ressalta a preocupação atual das populações de delinearem esses lugares
como sendo de memória, logo pontos geográficos memoráveis e significados atribuídos
a esses locais são indicativos para a construção dessa rota patrimonial e museológica.
Atribuindo esse valor de lugares de memória, atualmente, e partindo da
concepção de Pierre Nora sobre tal conceito, vale destacar o desenvolvimento da
simbologia que envolve tal memória e que percorre o campo também do patrimônio
nessa compreensão mais ampla do que o cangaço representa hoje em dia. Então, o autor
explica que tais espaços são lugares capazes de gerarem efeitos sobre o material, o
simbólico e o funcional, todas em graus diversos e mesmo um espaço aparentemente
material, só se tornará de memória quando a imaginação investi-lo dessa aura simbólica
(NORA, 1984, p. 21).
Portanto, essas estratégias dos processos de consagração dos lugares,
celebrações e manifestações oferecem subsídios para fortalecer a ideia da cultura
sertaneja como um elemento simbólico assim como foi o movimento do cangaço. Como
explica Sara Maia e Maria Baptista (2011, p. 14), “as rotas museológicas são inovadoras
e promovem a interdisciplinaridade”.
26
É um processo que se inicia com a seleção realizada pelo “olhar museológico” sobre as coisas
materiais, ou seja, “[...] uma atitude crítica, questionadora, capaz de um distanciamento reflexivo diante
do conjunto de bens culturais e naturais [...]” (CHAGAS apud CURY, 2005, p. 24).
2225
Pois assim como o campo da Museologia, a proposta de uma rota museológica é
justamente possuir em seu cerne o interesse e o caráter interdisciplinar. A partir dessa
vertente trabalhada é que novas formas surgirão de maneira mais nítida na elaboração
da rota do cangaço.
2226
A construção de rotas museológicas é uma das formas de colocar em prática a
relação entre a atividade cultural e a turística. Podemos compreender que o que se
entende por museológico, segundo Cristina Bruno (2005), é o fenômeno, ou seja, o fato
identificado e percebido, como pontuado acima, logo a rota museológica é uma rota
cujo fenômeno do cangaço é identificado ali e cujo bando de Lampião traçou
geograficamente esses pontos.
Mais do que uma simples rota turística, uma rota museológica pode vir a ser o
testemunho de uma identidade (BAPTISTA; MAIA, 2011, p. 4). Porém mais do que
uma construção turística desses sistemas de rotas, elas possuem um caráter
museológico, e nesse caso se relaciona diretamente com a noção de patrimônio aqui
discutida. A proposta da rota do cangaço é importante para que se pense e descontrua
alguns estratégias empreendidas em relação ao tema que cristalizam uma versão do que
foi o cangaço a partir desses lugares, e que a Grota seria um elemento chave desse
processo, demarcando um ponto final da trajetória de alguns integrantes do bando de
Lampião.
Os patrimônios simbólicos estão a todo o instante se movendo, sendo
transformados e transformando quem o vivencia, fazendo assim com que a comunidade
onde esteja inserida, interaja diretamente com eles. No entanto, tal patrimônio é antes de
tudo, um meio para se chegar a algo. Ele é o intermédio e busca ser um elo que una o
seu contexto de memória com a atualidade do meio em que está inserido.
Portanto esse ponto de vista se encaixa na ideia de movimentação e de rotação
constante, pois o cangaço também era um fenômeno com bastante movimento e
mudança de lugar no sertão nordestino. E assim como a missa do vaqueiro,
manifestação do sertão nordestino, o cangaço acaba por tornar-se elemento crucial na
construção da sociedade sertaneja. Para Janirza Cavalcante da Rocha Lima (1991):
2227
estudar o sentimento e a realidade do vaqueiro, seu trabalho, sua vida,
seu sofrer, seu viver e seu morrer? [...] Polariza todas as injustiças e
desmandos do seu tempo (LIMA, 1991, p. 38).
2228
Logo a rota museológica poderá receber um tratamento patrimonial, levantando
esses principais pontos, no que se refere à questão sobre o que existe de patrimônio do
cangaço por essa determinada região. Patrimônio este no sentido de haver alguma
possibilidade de representação da memória do cangaço e que faça parte de uma
memória que integra a identidade dos povos que possuem tal material, onde a
celebração da memória torna-se um componente marcante na escolha desses espaços.
Consideração Final
Por fim, no entanto, há de se considerar que este artigo busca identificar
possíveis pontos geográficos para construção desse circuito expográfico e museológico
do cangaço, englobando estados nordestinos do país que justamente abordem e tratem
do patrimônio simbólico desse tema que é muitas vezes marginalizado pelo seu caráter
considerado de banditismo.
Assim, para gerar uma provocação inicial referente à construção do patrimônio
simbólico marginalizado, torna-se importante dialogar com teóricos da Museologia
(quanto aos conceitos de patrimônio) e teóricos que buscam trabalhar a questão de rotas
geográficas, para que assim seja possível pensar de forma mais elaborada uma rota
museológica delimitada. Aliando o que se tem de cangaço nos estados a serem
estudados, além das rotas já construídas, se faz relevante problematizar as rotas
existentes a partir desta nova construção museal.
O processo de musealização dessa rota, incluindo os locais e celebrações que
eles abrigam, transforma-se em mais uma ferramenta capaz de fomentar e impulsionar a
cultura nordestina, como um elemento crucial na identidade cultural, assim como
relevante elemento simbólico do país.
O início de um projeto da rota museológica do cangaço, partindo de seus
espaços geográficos, busca provocar outros meios de modificar a dimensão real e
simbólica do cangaço, que por sua vez encontra-se na memória coletiva do povo
2229
nordestino, ora como um fenômeno símbolo das reivindicações de direitos de um povo,
ora como um movimento de bandidos, mas que fortaleceu e contribuiu para o que se
conhece hoje como cultura popular nordestina e sertaneja.
Referências bibliográficas
AZEVEDO, Luiz Henrique Cascelli de. A seca, os cangaceiros e os beatos. Cadernos
Aslegis, v. 2, n. 5, 1998, p. 14-17.
2230
CURY, Marília Xavier. Exposição: concepção, montagem e avaliação. São Paulo:
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GOHN, Maria da Glória (org.). Movimentos sociais no início do século XXI: antigos
e novos atores sociais. Petrópolis: Vozes, 2003.
NORA, Pierre. Os lugares de memória, uma outra história. In: Entre Memória e
História: A problemática dos lugares. São Paulo: Projeto história: Revista do
programa de estudos Pós-graduados em História e do Departamento de História
da PUC, 1993, cap. 3. p. 21-28.
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. História do cangaço. São Paulo: Global Ed., 1982.
80p.
2231
SÁ, Antônio Fernando Araújo. Combates entre história e memórias. São Cristóvão:
Editora
UFS; Aracaju: Fundação Oviêdo Teixeira, 2005. 326p.
2232
UM MUSEU QUE DÁ SAMBA! A MUSEALIZAÇÃO COMO INSTRUMENTO DE
SALVAGUARDA DAS MATRIZES DO SAMBA CARIOCA
Paula C. Leite e Silva*
Elizabete de Castro Mendonça*
*Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO
Abstract: The proposal to create the Samba Museum results from the Patrimonialisation
process of the Samba Matrices in Rio de Janeiro. Added to this is the experience of isolated
actions that, throughout the institutional history, seek approximations with the processes of
Musealization. Considering this articulation between the Patrimonialisation of intangible assets
and Musealization processes allows us to reflect on the role of museology and museums in the
scope of the National Policy on Intangible Heritage (PNPI). In this aspect, the present research
has as general objective to analyze, based on the conceptual bases of the field of Museology, the
institutional discourse and the practices of the Cultural Center Cartola (focus of the project of
creation of the Museum of the Samba) in what concerns the parallel between Patrimonialization
And Musealization of intangible cultural references. For this case study, bibliographical
references and institutional documents were collected and analyzed, as well as a systematic
observation about the functioning of the Museum. In this way, the use of the Musealization
process as a Safeguard strategy for the Samba Matrices of Rio de Janeiro can be observed, and
also the role that Museology and museums can play in the scope of public policies for
2233
Intangible Heritage in Brazil, configured as important instruments for actions to safeguard
assets of this nature.
Key-words: Museology; Intangible Heritage; Safeguard; Musealization; Samba Museum.
2234
Introdução
27
O termo Salvaguarda, no campo das políticas de Patrimônio Cultural Imaterial, é entendido conforme
preconiza a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial (2003). Segundo Mendonça
(2016), “cabe destacar que existe diferenciação entre o termo Salvaguarda utilizado no âmbito das
políticas de Patrimônio Cultural Imaterial e no contexto específico dos processos de Musealização”.
Frente aos processos de musealização, Salvaguarda é um procedimento de Preservação que inclui ações
de conservação e documentação (Bruno, 1995). Utilizamos nesse trabalho o termo salvaguarda como
sinônimo de Preservação, ou seja, como política maior, que engloba diversas ações, como a conservação,
a pesquisa, o restauro, o tombamento ou registro, a comunicação dentre outras. No âmbito do Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN, o termo salvaguarda é mais utilizado no que diz
respeito à proteção do Patrimônio Imaterial, enquanto o termo preservação seria seu correlato no que
tange ao patrimônio material.
2235
reconhecimento e defesa da memória do samba carioca, impulsiona o nascimento do
Museu do Samba. O CCC nasce com caráter social, de prestação de serviços à
comunidade do entorno, entretanto tinha como principal aspiração o “desejo de romper
com o descaso com a memória do samba, recuperar o protagonismo social da
comunidade sambista e se opor a descaracterização imposta pela indústria cultural e
globalização” (NOGUEIRA, 2014, p.34). Destaca-se pela grande atuação ao lado da
comunidade sambista no processo de registro como Patrimônio Imaterial e Salvaguarda
dos principais elementos que compõem as chamadas Matrizes do Samba Carioca.
O desenvolvimento do presente trabalho se deu por meio de estudo de caso e
para sua estruturação, inicialmente foram coletadas e analisadas referências
bibliográficas que tratam de conceitos fundamentais (como Musealização,
Patrimonialização, Museu e Patrimônio Imaterial) além do histórico do CCC e Museu
do Samba. No segundo momento, foi feito levantamento e análise da documentação
institucional do CCC (idealizador do Museu do Samba) e do Museu do Samba, para
compreensão do contexto de surgimento do museu, seus objetivos e suas atividades.
Foram levantados e analisados também os documentos referentes à preservação,
pesquisa e comunicação. Na etapa subsequente, realizou-se pesquisa empírica - análise
situacional do objeto de pesquisa. Esta etapa abarcou a observação sistemática sobre o
funcionamento do Museu do Samba. Por fim, foram observados os seguintes elementos:
seleção, aquisição, gestão, conservação, catalogação, exposição, publicações.
Estruturamos nossa pesquisa no ambiente teórico da Museologia. Sendo assim,
procurou-se estabelecer as relações existentes entre Patrimonialização e Musealização, a
partir da definição destes conceitos, buscando a compreensão do potencial para efetivar
a Preservação a partir desses processos. Esta concatenação reflexiva busca apoiar-se a
partir da Linguagem de Especialidade do campo da Museologia, entendendo que a
compreensão de sua terminologia permite ao acesso ao conhecimento específico
desenvolvido pelo campo (SANTOS, 2010). Além disso, Lima (2009, p. 61) chama
2236
atenção para o fato de que o “uso adequado da linguagem pode ajudar a alinhar aqueles
dentro do grupo atrás de um compromisso que identifica os valores comuns envolvidas
com a organização. No caso de um museu: o que é, a quem ele serve, e por que ele
existe”. Para compreensão da potencialidade do campo da Museologia em realizar a
Salvaguarda do Patrimônio Imaterial é preciso fazer uma breve análise sobre o processo
de Musealização e suas implicações no que diz respeito à preservação, assim como do
papel da instituição museu. À luz de autores do campo da Museologia, como Desvallés
e Mairesse (2013), Loureiro (2012), Santos e Loureiro (2012), Mendonça (2015), Lima
(2008, 2012, 2014,2015, 2016) e Guarnieri (1990), pretende-se estabelecer um debate
sobre como a Musealização através de sua natureza preservacionista pode incidir como
importante elemento para a realização da Salvaguarda de bens de natureza imaterial. O
museu é concebido como local por excelência de aplicação do processo de
Musealização, objetiva-se contextualiza-lo como local potencial para implementação da
Salvaguarda desses bens, conforme preconiza Carvalho (2011).
A presente investigação tem como objetivo geral a análise do embasamento
conceitual do campo da Museologia presente no discurso institucional e nas práticas do
Centro Cultural Cartola no que tange o paralelo entre Patrimonialização e Musealização
de referências culturais imateriais, foco do projeto de criação do Museu do Samba. Para
tal, pretende-se identificar os procedimentos de Musealização realizados pelo Centro
Cultural Cartola no período de 2006 a 2015; analisar as ações de Musealização
realizados pelo Centro Cultural Cartola, em especial as que fundamentam o projeto de
criação Museu do Samba; e, por fim, analisar as justificativas que direcionaram a
criação do Museu do Samba dentro das ações do Centro Cultural Cartola – em especial
as referentes a proposta de preservação das “Matrizes do Samba no Rio de Janeiro”
como Patrimônio Imaterial.
Fundamentação Teórica
2237
A relação entre a Museologia e os museus com o Patrimônio Imaterial é
consequência do desenvolvimento do processo histórico em que o campo se estrutura e
desenvolve seus modelos interpretativos, sempre afinado com as transformações e
desdobramentos da noção de Patrimônio. Lima (2012), ao contextualizar longa trajetória
que estabelece a relação existente entre Patrimônio – Patrimonialização e Museologia –
museu/Musealização, afirma que sempre houve grande ação do campo museológico em
favor das questões do Patrimônio, e que as áreas apresentam como ponto de
aproximação o debate em torno da Preservação. O alargamento da concepção de
Patrimônio, que passa a incluir não mais somente a tipologia monumento histórico e
artístico, possibilita que o museu passe a figurar como importante agente de Preservação
dentro do processo de Patrimonialização. O museu passa a ter a incumbência da
Salvaguarda para a Preservação, a partir do processo de Musealização, no “qual se
imprime ao Bem Cultural um caráter diverso da sua função original, dotando-o de teor
museológico, colocando-o sob tutela especializada para a proteção e a guarda” (LIMA,
2012, p. 40). Os novos Patrimônios musealizados suscitaram a inserção do intangível no
contexto museológico, compreendido como importante representante de referências
culturais28.
Para esse estudo, o conceito de Patrimonialização será compreendido conforme a
definição de Lima (2012, p.34), segundo o qual trata-se do “ato que incorpora à
dimensão social o discurso da necessidade do estatuto da Preservação”. Para melhor
compreensão desta definição dentro no contexto das políticas de Patrimônio Cultural,
Vianna e Teixeira (2008, p. 122) afirmam que patrimonializar é o ato jurídico através do
28
Arantes (2001) afirma que “no caso do processo cultural, referências são as práticas e os objetos por
meio dos quais os grupos representam, realimentam e modificam a sua identidade e localizam a sua
territorialidade” (ARANTES, 2001:130-131). As referências culturais podem estar em objetos e nas
práticas (performances), caracterizando-se por serem sentidos atribuídos a suportes materiais ou
imateriais, por isso apresentam um caráter múltiplo. Partindo desse entendimento, o Patrimônio Imaterial
traduz-se pelas referências das identidades sociais.
2238
qual “o Estado declara um fato cultural como patrimônio nacional e passa a tratá-lo
como bem cultural de interesse público. Patrimonializar pode ser compreendido como
ato jurídico tanto como político”. Nesse contexto específico, o processo de
Patrimonialização é corroborado a partir de procedimentos documentais, como o
tombamento (no caso de Bens de natureza material), ou o registro (que contempla Bens
imateriais). Grigoleto (2012, p. 65) assevera que “a documentação patrimonial não é um
recurso elaborado simplesmente para registrar ou transcrever o pré-existente, mas para
construir um campo discursivo capaz de outorgar um ato e sustentá-lo”. Ressalta, dessa
maneira, a importância da documentação como instrumento primordial para valoração e
consequente reconhecimento de um Patrimônio em sua institucionalização, pois
documentos patrimoniais materializam valores materiais e imateriais atribuídos.
Torna-se importante salientar que é possível estabelecer afinidades entre as
ações de Patrimonialização e Musealização, principalmente no que diz respeito ao
objetivo de alcançar o propósito da Preservação de referências culturais. Nesse sentido,
segundo Lima (2014)
2239
perspectiva museológica. Posto que, o entrelace entre a Musealização e a
Patrimonialização encontra-se no objetivo de realizar a Preservação, musealizar bens
culturais já patrimonializados justifica-se pelo fato de que “o ato de musealizar o
patrimônio historicamente tornou-se uma ferramenta auxiliadora e fomentadora do
processo de Patrimonialização” (MENDONÇA, 2015, p.95). Esta perspectiva ressalta a
importância do processo de Musealização como elemento capaz de intensificar a
Preservação.
2240
Comumente o sentido de Preservação está relacionado à proteção, garantia de
integridade e salvaguarda. Este conceito aplicado às políticas patrimoniais configura-se
como ações que propiciem a transmissão dos valores culturais às outras gerações, ou
seja, a perpetuação da herança cultural. Pinheiro e Granato (2012, p. 31) afirmam que o
termo remete a atitude que objetiva a manutenção física de determinado Bem Cultural,
mas que também incidi sobre um maior conhecimento sobre o mesmo, abrangendo,
assim, “a documentação, a pesquisa em todas as dimensões, a conservação e a própria
restauração [...]”. No âmbito da Museologia e dos museus, Ferrez (1994, p.65) afirma
que a função de Preservar incorpora ações de coleta, aquisição, armazenamento,
conservação, restauração e documentação, com vistas à pesquisa e comunicação. Com
base nessa perspectiva, a Preservação pode ser concebida de maneira ampla, abrangente,
pois inclui o conjunto de ações voltadas para a manutenção de um determinado Bem
Cultural, desde os instrumentos legais que o protegem até os mecanismos e as
intervenções que colaboram para sua integridade, passando pelas ações de
documentação, destinadas ao registro e à transferência de informações.
(SANTOS;LOUREIRO, 2012, p.50)
Ao refletirmos sobre a potencialidade do campo da Museologia para a realização
de ações que propiciem a Salvaguarda do Patrimônio Imaterial, tomamos como ponto
de partida a assertiva de Meneses (2009) de que o Patrimônio Cultural tem,
necessariamente, como suporte vetores materiais, desconsiderando a existência de uma
suposta dicotomia entre o tangível e intangível. De acordo com o autor, “se todo
patrimônio material tem uma dimensão imaterial de significado e valor, por sua vez
todo patrimônio imaterial tem uma dimensão material que lhe permite realizar-se”
(MENESES, 2009, p. 31). O entendimento de que são as práticas sociais que atribuem
os sentidos, significações e valores aos vetores materiais, sendo assim, tangível e
intangível são indissociáveis, permite conceber a Musealização como estratégia de
Preservação do Patrimônio Imaterial. Lima (2014) esclarece que:
2241
E ao tratarmos de preservação não podemos esquecer que o conceito
de preservar que entendemos também se estende ao contexto
informacional, portanto, abrange o que se reconhece como
preservação de Bens Culturais musealizados representados no sentido
tradicional do contexto da materialidade e, de igual modo, como
preservação das informações. (LIMA, 2014, p. 4341)
O sentido alargado que o processo confere a Preservação, devido sua natureza
infocomunicacional - que permite a integração mútua entre tangível e intangível ao
considerar as informações intrínsecas e extrínsecas contidas na estrutura informativa do
objeto de museu (FERREZ, 1994, p. 66), o torna um potente meio para Salvaguarda de
bens de natureza imaterial. Por esse ângulo, Santos e Loureiro (2012, p. 51) concebem a
Musealização como estratégia de Preservação, compreendendo que esta não visa apenas
“garantir a integridade física de uma seleção de objetos, mas também promover ações
de pesquisa e documentação voltadas à produção, registro e disseminação das
informações a eles relacionadas, com vistas à transmissão a gerações futuras”. Dessa
maneira, a Musealização propicia o acesso a partir do desenvolvimento de pesquisas, de
diferentes pontos de vista, indagações inéditas, proporcionando a produção de novas
informações, caracteriza-se por ser um instrumento que possibilita a Preservação, mas
esta compreendida em sentido mais amplo e total.
Para além dos procedimentos operacionais contidos no processo de
Musealização, cabe também destacar o papel político do processo. Guarnieri (1990)
reforça que Musealização pressupõe Preservar, e esta ação aplicada ao patrimônio
cultural é um ato e um fato político, pois através da Musealização a Preservação
exprime a atribuição de significados a objetos que se convertem em Patrimônio
Cultural. A autora ressalta que a Preservação denota aspectos ideológicos diversos, e no
que tange a ação museológica, ao informar para agir “reaproxima objetos e homens
(Homem e Realidade), revitalizando o fato cultural” (Ibid., p.10). Subjacente ao
processo de Preservação há ainda a construção de uma “memória” que possibilita a
existência de identidade cultural, “algo extremamente ligado à auto-definição, à
2242
soberania, ao fortalecimento de uma consciência histórica” (Ibid.). A partir desse
prisma, musealizar Bens Culturais de natureza imaterial significa, então, atitude política
no sentido do reconhecimento da diversidade cultural e Preservação de elementos da
cultura de grupos tradicionais e populares historicamente alijados do processo de
formação da memória e identidade das nações. Em outras palavras, contribui para a
formação de outra memória, de outra herança patrimonial, fundamentada nos elementos
da cultura popular.
Nesse contexto, a Musealização pode ser traduzida como uma forma de
intervenção, consistindo numa atribuição de valor, um juízo engendrado pelo campo
cultural ao “reinterpretar as manifestações culturais”, tendo em vista sua “inserção na
categoria de Bem Cultural”, conforme elucida Lima (2015, p. 387). Consequentemente,
o Bem Cultural é registrado como “elemento possuidor de caráter diferencial”, sendo
musealizado a partir do critério de representatividade para o grupo em questão. A autora
enfatiza ainda que nesse processo, as instâncias de legitimação cultural desempenham
papel fundamental por classificar e definir categorias, além de registrarem e
estabelecerem diretrizes e normativas para interpretação e uso (Ibid.). É importante
ressaltar que a Musealização ao institucionalizar, sob o olhar da Museologia, os bens já
patrimonializados, dota-os de outros usos e sentidos, colocando-os sob o amparo da
instituição museológica, que passa a ser responsável pela proteção de sua integridade
física, informacional e sua comunicação a partir de então. Essa percepção evidencia
ainda mais o entrelace entre as ações de musealizar e patrimonializar, já que:
Musealização e Patrimonialização são processos gestados por
estatutos de perfil imposto, reconhecidos e aplicados por instâncias
culturais personificadas como agentes especializados e
institucionalizados para trato do tema. São, ao mesmo tempo,
instrumentos do poder simbólico cuja presença é exercida pela
qualificação emprestada às instâncias para atuar como representantes
das necessidades e aspirações vocalizadas por inúmeros grupos sociais
nos moldes comunitários, associativos, profissionais, entre outros, aos
quais foi relacionada a figura da identidade cultural (pertencimento).
(LIMA, 2014, p. 4345)
2243
Como importante instância de legitimação cultural no contexto de políticas
patrimoniais destaca-se a instituição museu, devido sua singularidade de lugar onde a
memória se corporifica e se criam discursos. O museu apresenta importante papel como
promotor de Preservação patrimonial, caracterizando-se como “Instituição Cultural de
Memória” (LIMA, 2008, p.37), e, como tal, possui relação intrínseca com os elementos
estruturadores da Memória Social. Mais precisamente, é importante instituição
responsável por tutelar a proteção e divulgação das informações referentes aos bens
culturais. Essa atuação confirma a Preservação como sua função primordial,
constituindo-se como cerne de sua ação. Operações como aquisição de acervo, pesquisa,
conservação, documentação e comunicação são facetas de suas atividades que devem
estar subordinados ao seu caráter preservacionista (BRUNO, 1997, p. 25).
Diante da emergência das exigências colocadas a partir dos novos sentidos do
termo Patrimônio e das crescentes transformações estruturais da sociedade, é possível
reafirmar aos museus um papel estratégico na valorização integrada do Patrimônio
Cultural que inclua o imaterial, através dos elementos de Musealização. Carvalho
(2011), sob a influência dos desdobramentos da Convenção para a Salvaguarda do
Patrimônio Cultural Imaterial, ao analisar a relação entre o Patrimônio Cultural
Imaterial (PCI) e os museus, assegura que o alargamento da noção de Patrimônio
impulsionou o mesmo com o campo de atuação do museu, que não mais se limita
apenas aos aspectos materiais de suas coleções, mas sim numa visão integrada e mais
completa que abarca o material e imaterial. Nesse sentido, sua reflexão tem por objetivo
afirmar que o museu configura-se como instituição estratégica para implementação de
Planos de Salvaguarda do PCI, partindo da compreensão de que sua trajetória o coloca
como local que apresenta possibilidades para uma abordagem integrada de ações
voltadas a valorização, Salvaguarda e difusão de referências culturais imateriais
patrimonializadas. A fim de tornar esse ponto mais preciso, frisa que a mudança de
2244
discurso do ICOM (Conselho Internacional de Museus)29 corrobora essa ideia, pois a
partir da alteração da definição de museu, em 2007, é nítida a tentativa de sobrepujar
uma tradição de atuação dos museus profundamente arraigada na cultura material –
incluindo em sua definição os testemunhos imateriais (ICOM, 2007).
Essa nova demarcação da abrangência de funções de um museu ao incluir os
testemunhos imateriais em seu escopo, revela a importância dos museus na Preservação
de bens dessa natureza. O que é importante considerar é que os museus “poderão ser
uma das instituições mais bem posicionadas para implementar estratégias de
salvaguarda do PCI” (CARVALHO, 2011, p. 101). Contudo, é necessário lembrar que a
Salvaguarda do Patrimônio Imaterial não apresenta centralidade na formação de
coleções de museus. O grande desafio colocado por essa categoria de Patrimônio é a
realização de ações de pautadas nas comunidades envolvidas.
Resultados / Discussão
Localizado na Mangueira, um dos redutos mais tradicionais de sambistas no Rio
de Janeiro (IPHAN, 2014b, p. 91), o Museu do Samba é gestado após a
Patrimonialização das “Matrizes do Samba do Rio de Janeiro: Partido-Alto, Samba de
Terreiro e Samba-Enredo”, evidenciando as novas políticas públicas para a área da
cultura, em especial, para as áreas de Patrimônio Imaterial e de museus, caracterizando-
se, assim, como importante reflexo das transformações ocorridas na área. Nasce das
aspirações do Centro Cultural Cartola30 (CCC) em efetivar e fortalecer ações de
29
Mendonça (2016, p. 12) esclarece que a trajetória da mudança de perspectiva do órgão é marcada por
documentos de referência “como a Carta de Shanghai (2002) e a Declaração de Seoul (2004)”, por
atribuir “competências aos museus na participação da salvaguarda do Patrimônio Imaterial”.
30
A pesquisa ora apresentada constatou que a tentativa de implementação do referido Museu acarretou
sobreposição de ações entre CCC e o Museu do Samba Carioca, ficando este diluído dentro do primeiro,
fato que não possibilitou sua real efetivação. No entanto, existem elementos que confirmam sua
existência, ou tentativa de implementação a partir de 2013, como minuta do “Regimento Interno do
Museu do Samba Carioca”, placa fixada na fachada e legenda nas exposições com as inscrições “Museu
do Samba Carioca”, além de ter sido noticiado pela mídia.
2245
salvaguarda do bem titulado. Sua concepção inicial como “Museu do Samba Carioca”,
em 2013, pode ser constatada a partir da implantação do Plano de Atividades do
“Museu do Samba Carioca”, com apoio da Secretaria do Estado de Cultura (CCC, 200-
).
Os desdobramentos do PNPI estimularam a comunidade sambista do Rio de
Janeiro, que, capitaneada pelo CCC, foi responsável pelo lançamento de diversas ações
que vislumbravam a titulação do Samba Carioca como Patrimônio Imaterial,
pretendendo sua valorização e salvaguarda. Nessa ação é possível reconhecer o
protagonismo dos detentores decorrente das disposições legais sobre bens de natureza
imaterial, tanto no processo de reivindicação do reconhecimento de seu Patrimônio,
quanto na concepção e estruturação de ações de salvaguarda para o mesmo. Mais do que
isso, reforça a ressonância (GONÇALVES, 2007) do patrimônio em questão junto a um
setor específico da sociedade carioca.
A investigação dos eventos que levaram à Patrimonialização das Matrizes do
Samba Carioca permite identificar a utilização de estratégias de articulação entre os
processos de Patrimonialização e de Musealização, culminando na criação do Museu do
Samba. Ao refletirmos sobre qual papel o campo pode desempenhar nesse contexto,
podemos afirmar que a Museologia e os museus têm se configurado como importantes
instrumentos nas políticas de Patrimônio Imaterial, ocupando lugar de destaque no que
diz respeito a ações de Salvaguarda de bens dessa natureza. Nessa perspectiva, Primo
(2006, p. 91) aponta que no atual contexto de políticas públicas a Museologia pode ser
concebida como recurso para a preservação, a comunicação e a divulgação dos valores
culturais. Seu ponto de vista compreende a Museologia como importante artifício
cultural a serviço da sociedade, num contexto de lógica de expansão e criação de novos
valores, ou de reforço dos valores culturais locais. Concebe, assim, o campo da
2246
Museologia como espaço de ação de políticas públicas, configurando-se como
instrumento estratégico das políticas culturais contemporâneas.
O primeiro passo é dado em 2004, com o projeto “Samba Patrimônio da
Humanidade”, que teve por objetivo o encaminhamento à UNESCO de uma proposta de
transformar o samba carioca em Obra-prima do Patrimônio Oral e Imaterial da
Humanidade (CCC,200-). Apesar de não obter êxito, esse projeto iniciou o
levantamento de fontes documentais sobre o tema e, concomitantemente, a fomentação
de ação de cunho Museológico, a partir da elaboração de exposição sobre a história do
samba do Rio de Janeiro. No ano seguinte, em 2005, foi celebrado convênio entre o
Iphan e o CCC, com participação da Fundação Cultural Palmares e Secretaria Especial
para Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), cujo objetivo foi realizar pesquisa para
instrução de processo de registro do Samba Carioca como Patrimônio Imaterial. Essa
parceria possibilitou a formação de um banco de dados e a montagem da exposição de
longa duração intitulada “Samba Patrimônio Cultural do Brasil”, inaugurada em
dezembro de 2006. Nessa exposição, é clara a utilização de ações de cunho
Museológico para salvaguarda, objetivando a disseminação, já que sua narrativa busca
abordar os primórdios do samba carioca exaltando sua origem na cultura afro-brasileira
e concebendo-o como importante símbolo de identidade nacional. A análise do
Catálogo da Exposição (CCC, 2008) demonstra que foi considerada elemento
estratégico na campanha pelo reconhecimento das Matrizes do Samba Carioca como
Patrimônio Imaterial.
Como importante resultado dessa campanha, há a elaboração de um Dossiê, cujo
principal objetivo foi o registro do Bem “Matrizes do Samba do Rio de Janeiro: Partido-
Alto, Samba de Terreiro e Samba-Enredo”, que em 2007 foi considerado Patrimônio
Cultural Brasileiro e inscrito no Livro de Registro de Formas de Expressão do IPHAN.
As Recomendações de Salvaguarda contidas no “Dossiê das Matrizes do Samba do Rio
de Janeiro: Partido-Alto, Samba de Terreiro e Samba-Enredo” apresentam reivindicação
2247
de ações que se pode atribuir caráter museológico, principalmente no que diz respeito à
transmissão do saber. Esse documento sugere além de pesquisa e documentação, a
reunião de acervo específico com intuito de promover o “estímulo e apoio à criação e
capacitação de centros de memória e referência do samba, dentro das comunidades e/ou
na Cidade do Samba” (IPHAN, 2014b, p. 119).
Em 2009, partindo dessa premissa e com o apoio do Iphan, que procurava
ampliar a construção de políticas públicas de Salvaguarda de bens registrados, o CCC
passou a Pontão de Memória das Matrizes do Samba Carioca, instituindo-se como
Centro de Referência de Pesquisa e Documentação do Samba do Rio de Janeiro
(NOGUEIRA, 2015, p. 122). No mesmo ano, o CCC realizou o “II Seminário Samba
Patrimônio Cultural do Brasil”, ocasião na qual foram levantadas diretrizes iniciais para
elaboração do Plano de Salvaguarda das Matrizes do Samba Carioca. Nesse documento,
assinalamos como de suma importância o ponto “Produção, registro, promoção e apoio
à organização”, por apresentar proposta de criação, produção, apresentação e difusão
das Matrizes do Samba Carioca com objetivo de realizar “pesquisa, reflexão e
documentação; aquisição, organização, gestão, manutenção e recuperação de acervos”,
assim como “montagem de exposições; formação de novos públicos; transmissão do
saber e troca de experiências” (NOGUEIRA, 2009, p. 45, grifo nosso). Note-se que as
ações destacadas propostas pela instituição com o intuito de realizar Salvaguarda efetiva
do Bem em questão, vão claramente ao encontro do campo da Museologia, pois
fundamentam-se em elementos como pesquisa, documentação, gestão de acervo,
exposição, visando disseminação, aproximando-se, assim, da Musealização.
O processo de Patrimonialização das Matrizes do Samba Carioca confere novas
linhas de atuação ao CCC, principalmente no que diz respeito às novas funções
designadas relacionadas à elaboração e implementação de um plano de salvaguarda para
o Bem titulado. Como consequência direta, em 2013 é iniciado o processo de criação do
Museu do Samba. Mendonça (2015, p. 96) aponta que após cerca de dois anos de
2248
idealização, perspectivas foram construídas e reconstruídas até o lançamento oficial da
instituição Museu do Samba, em 13 de agosto de 2015.
O minucioso exame da proposta de criação do Museu do Samba a partir do
discurso institucional explicita uma perspectiva de fundamentação da instituição
ancorada nos preceitos da Museologia, apresentando reivindicação de embasamento
conceitual no campo. Cabe assinalar que o histórico apresentado confirma que as
justificativas e o embasamento conceitual que direcionaram a criação do Museu são
desdobramentos da proposta de Salvaguarda das Matrizes do Samba Carioca como
Patrimônio Imaterial.
Ao balizarmos o debate aqui proposto a partir das narrativas institucionais, o
pensamento de Nilcemar Nogueira (2015), então Diretora Executiva do Museu do
Samba, torna-se essencial para a análise da formação do Museu em questão. Além de
detentora e herdeira de importante memória do samba – devido às figuras de seus avós
D. Zica e Cartola, distingue-se por ser uma agente social reconhecida pela comunidade
sambista. Sua tese de doutorado, intitulada “O Centro Cultural Cartola e o Processo de
Patrimonialização do Samba Carioca”, fornece elementos para a compreensão da
transformação do CCC em Museu do Samba e a motivação desta reconfiguração.
Destaca que o processo de Patrimonialização das Matrizes do Samba Carioca delineou
as ações do CCC, que passa a ser responsável por execução de ações de salvaguarda
para o Bem titulado. Reforça, ainda, que a instituição ficou incumbida de apresentar
proposta de trabalho ancorada nas ações de resgate, registro e difusão, enfatizando que a
partir da Patrimonialização “o Centro Cultural Cartola desenvolve um trabalho de
salvaguarda do samba, uma política do Ministério da Cultura de proteção a bens
imateriais inscritos nos Livros de Bens Patrimoniais do Brasil” (NOGUEIRA, 2015,
p.124).
O novo cenário formado em decorrência da Patrimonialização permite que a
instituição Museu passe a ser vislumbrada como local potencial para aplicação de
2249
Salvaguarda do Patrimônio em questão, confirmando-a como instituição estratégica para
implementação de Planos de Salvaguarda, conforme sugere Carvalho (2011). Nesse
sentido, Nogueira (2015, p. 208) afirma que o Museu do Samba passa a representar um
“espaço que sensibiliza para a reflexão da importância do patrimônio imaterial como um
modo de viver de seus detentores, para a ameaça a que estão expostas essas expressões
culturais, pela descaracterização ou pela perda de sua essência”, desempenhando, assim,
relevante papel social através de atividades de “documentação, estudos, exposições,
educação patrimonial, seminários”. Ainda sobre a importância do museu, Guarnieri
(1990) nos chama atenção para o fato de ser o cenário institucionalizado que fornece a
base necessária à atividade museológica e, consequentemente, a Musealização.
Nos discursos institucionais é perceptível a reivindicação da Musealização das
Matrizes do Samba Carioca como importante meio de Preservação, por possibilitar a
realização de projetos de identificação, documentação, repasse de saberes e
disseminação de informação. Segundo Nogueira,
Tendo [o Centro Cultural Cartola] criado o Museu do Samba Carioca,
fomentou o surgimento de um espaço de memória social que revela a
história do samba como a “expressão cultural” que melhor representa
a alma brasileira em sua totalidade coletiva.
[...] A musealização, utilizada como estratégia de preservação,
objetiva não apenas garantir integridade física de uma seleção de
objetos, mas promover ações de pesquisa e documentação voltadas à
produção, registro e disseminação de informações relacionadas ao
samba, com vistas a fazer conhecê-lo bem nas suas características
fundamentais e garantir a transmissão de sua essência a gerações
futuras. (NOGUEIRA, 2014, p. 35, grifo nosso)
A concepção apresentada evidencia a apropriação da Musealização como
poderoso artifício para a execução da salvaguarda do Bem titulado, ressaltando a
potencialidade preservacionista inerente ao processo. Além disso, traz a tona o
importante debate sobre sua aplicabilidade ao Patrimônio Imaterial, ao reforçar que sua
natureza infocomunicacional a torna forte instrumento para efetivação de ações de
2250
salvaguarda. Também ressalta a importância da Musealização como ação política, por
possibilitar um processo de Preservação que recai sobre a construção da memória e
reforço da identidade cultural da comunidade sambista do Rio de Janeiro, contribuindo,
assim, para a construção de sua herança patrimonial e reconhecimento em âmbito
nacional.
O contexto apresentado refere-se a instituição em seu período de construção,
mas que apresenta forte intento em estruturar-se enquanto museu. Até a fundação do
Museu do Samba (2015) apresentou três exposições de longa duração e uma temporária,
a saber: “Simplesmente Cartola” (2005), “Samba Patrimônio Cultural do Brasil” (2006),
“Dona Zica 100 anos” (2012) e “Cenários da Mangueira (2014), respectivamente.
Apesar da não existência de definição de política de acervo, este encontra-se em estágio
embrionário e tem sido formado principalmente através de doações espontâneas, sendo
composto por acervo de artes plásticas, acervo de clipping, acervo de croquis, acervo
de fotos e vídeos, acervo de LPs, acervo de manuscritos, acervo de revistas, acervo de
VHS, acervo hemeroteca e depoimentos da personagens emblemáticos da comunidade
sambista, assim como de objetos pessoais que contam a trajetória de sambistas.
Apresenta também biblioteca especializada em samba voltada para o público em geral.
Observa-se que o acervo do Museu do Samba apresenta perfil de constante expansão,
justamente pela natureza dinâmica do Patrimônio em questão. No que tange a
documentação, há tentativas não padronizadas de catalogação isoladas que não
contemplaram ainda a totalidade das coleções. Relevante ponto a se ressaltar é a
existência de Setor de Pesquisa com profissionais especializados, existência de
publicação denominada “Samba em Revista”, visitas mediadas com o público e
desenvolvimento de projetos educativos com as escolas do entorno.
Importante frisar que as “Matrizes do Samba do Rio de Janeiro” foram
registradas como Bem Cultural no “Livro de Registro das Formas de Expressão”, pelo
seu perfil performático, fato que traz muitos desafios ao Museu do Samba, já que tem
2251
como desafio ultrapassar a Musealização do objeto em si. O Museu tem respondido a
esta demanda com algumas ações pontuais em seu espaço, como, por exemplo, a roda
de Samba de terreiro, que compõe o projeto 'Memória das Matrizes do Samba do Rio de
Janeiro', conduzido pelo Museu com o objetivo de resgatar e incentivar a preservação e
novas produções deste gênero musical. Realizada no espaço do Museu e aberta ao
público configura-se como local de sociabilidade da comunidade sambista. Além da
produção e apreciação musical, os participantes podem degustar pratos e bebidas, como
feijoada e cerveja, tradicionalmente relacionados ao mundo do samba. Trata-se de uma
ação criativa que tem como meta a articulação do detentor do conhecimento e suas
referências culturais patrimonializadas. O evento funciona como ponte para a geração
do registro tendo como finalidade o processo de Musealização dos depoimentos dos
sambistas participantes.
Considerações Finais
O debate teórico ao longo do texto reforça o entendimento de que a execução do
conjunto de procedimentos que compõem o processo de Musealização viabiliza a
efetivação da Preservação de Bens Culturais. Essa potencialidade preservacionista
inerente ao escopo da Museologia pode ser um poderoso artifício nas políticas
patrimoniais direcionadas ao Patrimônio Imaterial, principalmente por seu caráter
infocomunicacional. O ponto de aproximação entre a Museologia e a Salvaguarda do
Patrimônio Imaterial está na ação de musealizar, partindo da compreensão de que a
Preservação é um desdobramento deste processo que não é centrado somente nos
aspectos materiais dos objetos.
Ao refletirmos sobre qual papel a Museologia e os museus podem desempenhar
no âmbito das políticas públicas para o Patrimônio Imaterial no Brasil, a partir do
estudo de caso do Museu do Samba podemos afirmar que têm se configurado como
importantes instrumentos, ocupando lugar de destaque no que diz respeito a ações de
2252
Salvaguarda de bens dessa natureza. Observa-se que o campo apresenta significativa
potencialidade para efetivar e intensificar ações de Salvaguarda do Patrimônio
Imaterial, através da elaboração e execução de estratégias de articulação entre os
processos de Patrimonialização e de Musealização. O processo de criação do Museu do
Samba vem ilustrar esse quadro. Seu surgimento está relacionado a campanha pela
titulação das Matrizes do Samba do Rio de Janeiro como Patrimônio Imaterial.
Conforme discurso da instituição, esta campanha iniciada em 2004 pelo CCC lança mão
de uma gama de ações Museológicas para legitimar a Patrimonialização, que culminam
na proposta de criação do Museu. Após a titulação, essas ações continuam encadeadas e
resultam, em 2013, no primeiro projeto de estruturação do Museu do Samba Carioca,
revisto em 2015 como Museu do Samba. A Musealização das Matrizes do Samba é tida
como fator que possibilita a realização de projetos de identificação, documentação,
repasse de saberes e disseminação de informação. Esse contexto evidencia como a
Museologia e os museus podem contribuir para a salvaguarda do Patrimônio Imaterial,
através do processo de Musealização e sua natureza infocomunicacional.
A construção do Museu do Samba, então, configura-se como poderoso artifício
para execução do projeto de Salvaguarda e, principalmente, de real estruturação da
instituição. Mais do que isso, reforça o potencial que a Museologia e os museus
possuem para efetivar políticas preservacionistas relacionadas ao Patrimônio Imaterial.
Além disso, o processo em questão evidencia a inserção do campo nas políticas
brasileiras direcionadas a bens de natureza imaterial, trazendo subsídios para futuras
reflexões. No entanto, o Museu do Samba passa a ter um grande desafio: ser um espaço
apropriado pelas múltiplas comunidades sambistas.
Referências bibliográficas
2253
BRASIL. Decreto n° 3.551. de 4 de agosto de 2000. Institui o Registro de Bens
Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro, cria o
Programa Nacional do Patrimônio Imaterial e dá outras providências. Disponível em:
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2257
ESCOLAS DE SAMBA E PATRIMÔNIOS AFETIVOS: ENTRE VIDA E
CARNAVAL.
Suzete Montalvão Fraiha*
*Universidade Federal do Pará
Resumo: O presente trabalho tem como objeto de estudo os acervos de duas escolas de samba
de Belém: o Rancho não Posso me Amofina e a Embaixada Império Pedreirense. Trata-se de um
olhar museológico sobre os acervos de samba abrigados nas sedes e nas casas de integrantes
dessas agremiações. Procuramos pensar as relações estabelecidas com os objetos
salvaguardados, as narrativas de memórias produzidas através dos objetos e dos significados
neles contidos. O propósito refletir sobre acervos e constituição de acervos para além dos muros
dos museus, entender o especial processo de musealização envolvido na seleção, guarda,
conservação e exposição das “coisas do samba”, feito pelas escolas de samba em suas sedes e
por sambistas nas residências particulares. A pesquisa atenta para as motivações, os sentimentos
que levaram a constituição e salvaguarda dos acervos. O trabalho se desenvolveu através de
pesquisa em campo com entrevistas semiestruturada com os brincantes das escolas de samba de
Belém e dos registros de imagens para análise dos resultados pesquisados.
Palavras chaves: Escola de Samba, acervo, memória, afetivo e museu
Abstract: The present work has as object of study the collections of two schools of samba of
Belém: the Rancho não Posso me Amofina and the Embaixada Império Pedreirense. It is a
museological look at the samba collections housed in the headquarters and houses of members
of these groups. We try to think of the relations established with the safeguarded objects, the
narratives of memories produced through the objects and the meanings contained therein. The
purpose is to reflect on the collection and the creation of collections beyond the walls of
museums, to understand the special process of musealization involved in the selection, guard,
conservation and exhibition of "samba things", done by samba schools at their headquarters and
by samba artists in private residences. The careful search for the motivations, the feelings that
led to the constitution and safeguard of the collections. The work was developed through field
research with semistructured interviews with the students of the samba schools of Belém and of
the records of images to analyze the results researched.
Keywords: School of Samba, collection, memory, affective and museum
2258
Introdução
O museu pode ser visto como um espaço de salvaguarda de objetos,
agenciamento da cultura material e sua transformação em memória. Todavia, nesta
pesquisa partimos do princípio de que outros espaços têm a mesma potência.
Movimentos de aquisição, descarte e salvaguarda, de transformação de coisas
(MILLER, 2013) em fontes de narrativas memoriais que ocorrem fora dos museus. Com
um olhar sensível podemos pensar nessa espécie de musealização da vida cotidiana
ainda nas nossas casas, onde selecionamos o que guardar e o que se desfazer, o que
lembrar e o que esquecer, transformando, por conseguinte, o sentido das coisas. Há uma
musealidade, então, nos processos de constituição de memórias e de patrimônios
afetivos que sustentam nosso “museu particular”; nossa museália é acumulada e
ressignificada ao longo da vida sem que percebamos o conteúdo museológico disso.
Desse modo, pensamos que as manifestações da cultura popular são boas para
pensar o que temos chamado de uma espécie de musealização de objetos fora dos
museus. Escolhemos as escolas de samba da cidade de Belém do Pará levando em
consideração a força dessas agremiações na cidade e sua expressividade diante de outras
brincadeiras de carnaval paraenses. As escolas de samba de Belém constroem ao longo
de anos muitas histórias, enredos, música, fantasias, encontros, enlaces, desencontros e
desafetos, tudo traduzido nas coisas que guardam e nas narrativas, em constante
transformação, que eles detêm.
Durante a construção do carnaval do ano seguinte, desde a concepção do
enredo ao desfile na Aldeia Cabana, o que a antropóloga Maria Laura Cavalcanti (1995)
chama de “processo ritual do desfile”, muitas coisas são produzidas como figurinos,
adereços e carros alegóricos, um trabalho coletivo. Tais coisas, no entanto, em poucos
minutos após o desfile perde sua função original, e quando não são descartados
definitivamente, ou guardados para reaproveitamento no desfile do ano seguinte, será
salvaguardado como objeto de memória, dentro da escola de samba ou na casa dos
2259
brincantes de samba, ganham a nova função. A museologia, como área do
conhecimento preocupada com o patrimônio e a memória pode contribuir para analisar
o lugar das coisas na vida social das escolas de samba e de seus componentes. As coisas
ocupam não apenas o espaço físico da escola ou da casa, mas são elos materiais entre o
passado e o presente.
Ao adentrar no universo do carnaval, nas sedes das escolas de samba de Belém
escolhidas para a pesquisa, nos deparamos não apenas com sedes sociais onde
acontecem festas, ensaios e projetos sociais, elas são verdadeiros espaços de memória
com coisas, testemunhos materiais, espalhados por todos os lados, das paredes aos
armários. Guardam memórias de uma vida de samba desconhecida por muita gente da
cidade, de várias vidas que se conectaram pelo carnaval e agora também pelas memórias
de carnaval. Despertam narrativas, biografias, fatos e versões, falam de gente e de
Belém. As sedes, grandes artefatos, transformam-se em lugares de abrigo para acervos
constituído de modo intuitivo, numa musealização possível, irrefletida, orgânica.
Entretanto, tais acervos estão articulados com outros acervos, àqueles
guardados na casa dos brincantes e ex-brincantes, que misturam com mais potência as
memórias afetivas, particulares, e as coletivas, compartilhadas. Roupas, fotografias,
documentos, adereços que dizem respeito a carnavais específicos, quando a escola
ganhou ou perdeu, mas também dizem respeito às memórias indivíduas, ao que o
brincante viveu.
A pesquisa como objetivo principal iluminar a existência desses acervos, ou de
um grande acervo interligado que se ramifica e se instala nas sedes das escolas de
samba e nas casas dos brincantes. Como se constitui, quais objetos são guardados, quais
histórias abrigam, ou, em suma, iluminar processos de produção de memória que se
revelam nessa espécie de musealização fora dos museus. Atentar para as transformações
de sentidos de um objeto de carnaval que passa a ser objeto de memória, as motivações
e sentimentos que levaram ao processo de seleção, de salvaguarda e exposição nos
2260
espaços das escolas de samba e locais privados como salas, quarto, gavetas e armários
das residências dos sambistas, evidenciando, assim, as relações afetivas que se
estabelecem entre o colecionador e o objeto.
Para esta pesquisa seguimos as pistas deixadas por Mário Chagas (2002) que
também esteve atento aos processos de produção de memória nas escolas de samba.
Para ele o patrimônio cultural da escola de samba é a pessoa e ainda o espaço (a
quadra), a materialidade (o pavilhão, o instrumento, a fotografia...), e a imaterialidade
(as relações, as casas, as amizades, o amor...). O patrimônio das escolas de samba, para
Chagas, “é preservado dentro e fora dos sambistas.”.
Estamos ainda alinhados com o trabalho do antropólogo Vinícius Natal (2010 e
2016) que realizou pesquisas sobre memória e escola de samba a partir de acervos do
departamento cultural do Acadêmicos do Salgueiro (RJ) e na casa de um dos fundadores
(o único ainda vivo), Djalma Sabiá, detentor de muitas coisas com as quais promove o
processo rica e complexo de fusão entre as memórias indivíduas de sua vida de samba e
das histórias do carnaval do Rio de Janeiro e do Salgueiro. A ideia de Natal é entender
tanto a sede da Escola quanto a casa de Djalma como lugares de elaboração de memória
e constituição de acervo.
Também alinhados coma a ampliação do conceito de objeto, inadvertidamente
proposto por Daniel Miller (2013), a proposta de coisas atende à variedade de elementos
que fazem parte desses acervos. Miller (2013) faz pensar além da materialidade sem
perdê-la de vista, o que ajuda a reflexão museológica, pois é a circulação de coisas cria
a sociedade. As coisas guardadas mostram que é possível viver o carnaval não só nos
poucos minutos do desfile na avenida do samba, mas ao longo de todo o ano. Diz
respeito às histórias vividas, aos afetos construídos, a convivência dentro dos barracões,
no bairro, nas casas dos sambistas, nas reuniões, nas relações sociais. As coisas que
circulam animam o mundo social que agita parte da cidade a cada ano.
2261
Ao adentrar na casa dos sambistas entrevistados encontramos, sem surpresa,
uma forte relação afetiva com as suas escolas de samba, o que nos levou a pesquisar
sobre a história das duas agremiações pesquisadas. Uma delas, o Rancho, tem muitos
registros em documentos, livros e outras plataformas. A Império, por outro lado, exigiu
um esforço de ouvir as narrativas fundacionais e montar uma versão da história, um
esforço inédito como registro desse grupo. A pesquisa, então, se subdivide em duas
partes uma voltada para a história das agremiações e a outra que atende ao indicativo de,
nesse momento, apresentar os acervos que materializam os esforços de seus
componentes na produção de memória.
Desenvolvimento
2262
cumpre a tarefa de comunicar e de preservar a memória e salvaguardar o patrimônio
cultural material e imaterial. E, expande-se para além do universo dos barracões das
escolas e se intensifica e reafirma nas narrativas de memória dos sambistas dentro de
suas residências. Nos afirma CHAGAS, (2002) “ O patrimônio cultural da escola de
samba é a pessoa, a quadra, a bandeira, o ritmo, o instrumento, a dança, a experiência, a
fotografia, a fita, o disco, o vídeo, a casa do amigo, a amizade, o amor e a devoção. O
patrimônio é material e espiritual, é móvel e imóvel, é preservado dentro e fora dos
sambistas. ”
Como metodologia de pesquisa, realizamos visitas a campo para observação e
entrevistas semiestruturadas em duas escolas de samba de Belém: Rancho não Posso me
Amofiná e Embaixada Império Pedreirense, situadas no bairro do Jurunas e Pedreira,
respectivamente. Ambas escolhidas porque são referências de valor histórico e social
dentro do contexto do carnaval. Realizamos 9 (nove) visitas na Escola não Posso me
Amofiná e 7 (Sete) na Império Pedreirense, em oportunidades variadas como eventos
comemorativos, festas, reuniões de diretoria, entre outras. Durante o processo da
pesquisa de campo escolhemos nossos interlocutores mais importantes para a realização
de 09 (nove) entrevistas na sede e nas casas de sambistas, além de registros visuais para
criação de um banco de dados de imagens. Através das escutas, da vivência e das
experiências narradas pelos representantes do universo do samba, começamos a
encontrar as primeiras respostas para as indagações levantadas na interface entre
museologia e antropologia. Produção de um banco de imagens com fotografias dos
acervos das sedes e das casas, foram registrados total de 412 fotografias, sendo 317 do
Rancho não posso me amofiná e 95 da Escola de Samba Embaixada da Império
Pedreirense. As visitas a campo foram norteadas pela perspectiva etnográfica - que
envolve identificação, escuta, vivência e experimentação -, para a produção de dados e
narrativas sobre a experiência do samba em Belém e salvaguarda – e musealização
particular - dos objetos produzidos para e pelo carnaval. O trabalho de campo na
2263
perspectiva etnográfica demandou a aplicação de entrevistas semi-estruturadas e/ou
depoimentos com agentes representativos desse universo, apontamentos do diário de
campo e registros fotográficos. As entrevistas foram transcritas, alguns dados
depurados, outros ainda serão burilados. Foram entrevistados:
2264
Imagem: Quadros e troféus exposto na sede da escola de samba Rancho.
Foto: Suzete Fraiha
Imagem: Fantasias e fotografias das sambista de D. Tereza Camara e Ex-porta bandeira Rosangela Dias.
Foto: Suzete Fraiha
2265
Considerações Finais
O movimento que se constrói no universo das escolas de samba durante o
processo de preparação para o desfiles das escolas na avenida resulta na produção de
diversos objetos materiais como fantasias e adereços, alegorias, enredo, samba enredo e
outros elementos para serem expostos por alguns minutos na passarela do samba. Após
esse momento os objetos, supostamente perdem sua real função e acabam por ficar as
margens dos interesses que moveram a sua construção, mas o que se pode observar que
os objetos selecionados ganham vida e novos significados e adentram os espaços
expositivos das escolas e da própria casa dos sambistas com a força de rememorar fatos
da história que ligam a vida dos integrantes do samba com a dos objetos e com a própria
história da escola contribuindo para a permanência do samba na vida cotidiana dos
sambista na comunidade carnavalesca. Esse é um processo de a ser tomado como objeto
na perspectiva museológica.
Referências bibliográficas
CHAGAS, Mário. A Escola de Samba como lição de processo museal. Caderno visual
de turismo, Vol.2, Nº 2,(2002).
2266
Museu, memória e
patrimônio das culturas
negras
2267
“MEMÓRIAS NEGRAS”: CONFLITOS EM TORNO DO MEMORIAL DAS
BAIANAS EM SALVADOR – BAHIA
Abstract: The objective of this work is to analyze the resistance against the destruction of the Afro-
Brazilian patrimony, starting from the categories of "Resonance" and "Battles of Memories". The
problem arises around the expogues spaces with the black theme, is how the Afro-Brazilian cultural
assets trigger in the field of cultural, symbolic production. In front of how the object generates
tensions relative to the absence of the black representation in the spaces of memory. In this aspect, the
work discusses the articulation between culture, religion and heritage in the representations at the
Memorial of the Baianas in Salvador - Bahia, supported by the news divulged and transmitted on the
internet related to the constant attacks of racism, prejudice against the assets of representations of the
patrimony Afro-Brazilian. Highlighting the difficulties faced by the Bahians for the maintenance of
museum space and how the memorial becomes a space of resistance in a society still marked by
racism and religious intolerance. For this work, we propose a preliminary analysis of how museums
and Museology have positioned themselves in the "battles of memories".
2268
Museu, memória e exposição: o sujeito e o “entre – lugar” do negro nos museus
As mudanças dos hábitos, horários e lugares são índices influentes, anacrônicos da nova
percepção transformacional do tempo; buscando alguns indicadores que contribuem para o
diálogo em torno dos significados que contextualizam os conceitos de museu e da museologia
diante do “homem”.
Os museus consistem em um importante instrumento social acionador e reprodutor de
memórias, caracterizado por meio da comunicação - “exposição”. As instituições
museológicas são lugares de preservação de discursos sobre o limite do “tempo”, preservando
“as memórias” para o futuro com o propósito de valorizar o objeto ressignificado,
incorporando as ideias de memória social, patrimônio simbólico, virtual/digital.
Ao discutir o “entre – lugar” do negro na sociedade brasileira ao longo dos séculos, o
modo de como a cultura afro-religiosa é preservada, o processo de patrimonialização e da
musealização nós espaços de memória, investigando as práticas e os discursos de intolerância
religiosa a partir da divulgação nas mídias. Nesta perspectiva de Homi K. Bhabha (1998).
Contribui questionando “de que modo se formam sujeitos nos "entre - lugares\ nos excedentes
da soma das "partes" da diferença (geralmente expressas como rap/classe/gênero etc.)” (1998,
p, 20).
No Brasil, em Salvador, na capital baiana observamos a maior quantidade de objetos
musealizados de herança negra; destaca - se algumas instituições que tem em seu acervo
peças de matrize africana, a saber: O Museu Estácio de Lima, Memorial de Mãe Menininha, e
o Instituo Histórico e Geográfico da Bahia que consiste em uma das principais coleções sobre
o candomblé consiste em uma coleção, originária das apreensões e quebras promovidos pela
polícia no início do século XX. Dessa coleção, um dos objetos que possui grande
representação para o candomblé é a cadeira do pai de santo Jubiabá, que foi retirada à força
do seu local de culto, inserida na coleção e devolvida décadas depois ao terreiro de origem:
2269
supostamente racionais da colheita de provas do crime. (ROCA, 2007, p.
99).
Assim como a cadeira de Jubiabá, muitos objetos que integram as coleções afro-
brasileiras nos museus brasileiros, sobretudo em Salvador, que por meios de atos violentos em
que os objetos foram retirados do lugar “sagrado” e doados para as instituições. Exemplo
disso é o Museu Estácio de Lima que possui em sua coleção um conjunto de otás:
A representação das culturas negras nos museus também pode ser observada em outros
estados brasileiros, a exemplo de Sergipe e do Museu Afro-Brasileiro. Situado na cidade de
Laranjeiras - Sergipe, local impactado pela economia do açúcar e da escravização para a
manutenção da organização colonial, a cidade congregou considerável contingente de negros,
conforme afirma Raul Lody: “Por tudo, isso ver se vive um forte e expressivo legado
afrodescendente, notando-se até uma comunidade chamada Mussuca, como sua inspiradora,
em Angola, África Austral” (LODY, 2005, p. 195).
O acervo do museu reúne várias coleções de tipologias e procedências diversas. A
parte térrea do sobrado onde se localiza no centro da cidade, na tentativa de recontar as
matrizes africanas em Sergipe, abriga instrumentos agrícolas, instrumentos de tortura, além de
peças da casa senhoril. É notável que a escravidão consiste em uma das linhas mestras da
exposição que não problematiza essa condição, nem indica outras contribuições dos afro-
brasileiros para além da religiosidade:
2270
taieiras, por exemplo, bem como outras manifestações populares e
tradicionais, profundamente religiosas. (LODY, 2005, p. 196).
Diante de todas as regiões do Brasil, destaco o estado da Bahia como o local de maior
concentração de negros das regiões habitadas pelos daomeanos (jêjes) e pelos iorubás (nagôs).
Nesse contexto, destaco a questão simbólica e ancestral das religiões de matrizes africanas,
problematizando o espaço de disputa e afirmação dos valores afro-brasileiros nos museus. Os
escravizados ao chegarem ao Brasil foram proibidos de exercer seus modos tradicionais de
origem como; falar, vestir e sobretudo, o modo de cultuar seus deuses. Mesmos sabendo que
2271
o culto era proibido, os negros buscaram modos de contornar esse repúdio, dando origem ao
que muitos reconhecem como sincretismo:
2272
Os museus são instituições que objetiva; a preservação, pesquisa, exposição e
comunicação, possibilitando inúmeros caminhos de pesquisa em uma expectativa
preservacionista e memorável, resgatando indicadores de memórias em suas diferentes
significações. A Museologia tem como objeto de estudo a relação entre o “Homem e Objeto”
Waldisa Rússio Camargo Guarnieri (2010). Que constitui a base de preservar a memória
social. A ação preservacionista é vista como um ato de “valor”:
Os museus são lugares que desenvolvem o sentido das coisas “objetos”, que por meio
da preservação da herança cultural e histórica, responsáveis por atuar junto com a sociedade.
Os museus através da exposição desenvolvem a categoria “imaginação museal” em torno dos
objetos visíveis e invisíveis, transformando em vetores de pesquisa e comunicação por meio
do processo de musealização.
2273
Para problematizar a representação do negro nas exposições museológicas, destaco
questões como a situação local, cada instituição possui uma realidade distinta da outra. Qual a
“missão” dos museus? Apenas expor? A exposição atribui valores entre a relação o homem
com a realidade social. Ao selecionar os objetos é necessário criar estratégias para não
acontecer o distanciamento da sociedade perante ao objeto
Nesse caso cabe ao museu criar meios de combater esse distanciamento e acionar
práticas de aproximação, trilhando novos caminhos, para retroceder os constantes ataques a
instituições, revisando as políticas públicas, técnicas e teóricas. As exposições são analisadas
através da experiência museal, reconhecida pela presença dos termos da musealização. No
qual destaco a preservação da memória negra, com objetivo de salvaguardar o patrimônio afro
– brasileiro promovendo um trabalho de “solidificação” das memórias.
O preservar os objetos museais, aguça os sentidos e desejos. O desejo pela posse e
pela satisfação, destacando que muitos dos objetos que são introduzidos nas coleções museais
principalmente objetos que representam o negro, que são destacados como conquistas perante
a história. Muitos dos objetos que compõe os museus com a temática afro brasileira, foram
retirados à força dos lugares de origem, dos terreiros de candomblé (lugar - sagrado).
Nesse trabalho não se busca mostrar que a cultura negra é frágil, mas de trazer ao
campo da museologia e da museografia a compreensão dos processos museais simbólicos dos
objetos da cultura negra. Chamo a atenção para homenagear o “outro” diante as intersecções
do sujeito protagonista negro, buscando compreender como a museologia e os museus se
posicionam na ressignificação do modo de como reescrever a história da representação da
mulher negra.
Nesse aspecto, os museus são lugares que desenvolvem o sentido das coisas “objetos”,
bem assim os memoriais que são espaços destinados a “lembranças, relatos, homenagens e
2274
recordações da memória” de um agente ou de um grupo. O silenciamento será fundamental
para problematizarmos o processo de musealização no memorial, ao mesmo tempo,
analisando a ressonâncias dos bens culturais afro-brasileiros acionados no campo de produção
cultural. O fato é que apesar de ser um pequeno espaço expositivo, o Memorial das Baianas
contribui para acionar uma série de reflexões sobre o modo como as mulheres negras são
representadas, verificando o acervo do memorial das baianas em suas diversas tipologias a
partir das memórias em torno dos silenciamentos, embates e racismo religioso. Analisando o
processo de musealização do oficio das baianas e a falta de delimitação do conceito de
“memorial”,
2275
africano, considerando o fato de que historicamente a África nos legou não
somente os primeiros humanos, mas também os saberes primordiais, os
valores civilizatórios presentes nas religiões e culturas africanas e os
conhecimentos, como a agricultura, como condição primeira para a
reprodução da vida; um sistema de cura; a medicina; a tecnologia, o saber da
forja ancestral do ferro que deu origem à metalurgia e as técnicas para a
extração do ouro; a primeira universidade, a filosofia. (CARDOSO, 2012, p.
22)
Muitas vezes essa memória é silenciada. Um exemplo é o Museu da Magia Negra que
Alessandra Rodrigues Lima (2012) destaca ter sido a primeira experiência do SPHAN 1 na
patrimonialização de um bem cultural vinculado ao universo afro-brasileiro:
O mesmo ocorreu com os bens intangíveis, com a instituição do Decreto n.º 3.351 de
2000. Ao logo dos anos a capoeira, por exemplo, era uma prática proibida no Brasil. Os
desafios contra a sua destruição foram árduos, visando seu reconhecimento enquanto
importante expressão cultural: “Um reforçado imaginário produzido por livros, filmes e
1
Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) foi a primeira denominação do órgão federal de
proteção ao patrimônio cultural brasileiro, hoje Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).
2276
telenovelas relacionou a capoeira à escravidão rural, à sua prática nas senzalas sob o olhar
desconfiado do senhor de engenho” (Ofício dos Mestres de Capoeira, 2008, p.10).
A capoeiragem, porém, fincou raízes nas áreas urbanas (Oficio dos mestres de capoeira,
2008, p. 13). A luta em busca de afirmação foi contínua até que o ofício dos mestres foi
reconhecido como patrimônio nacional e registrado no livro de saberes, como estratégia
política e jurídica de legitimação e de combater o constante preconceito em torno dessa
manifestação cultural. Aqui é necessário destacar a noção de ressonância – para
problematizarmos como os bens de matriz africana são visualizados -, segundo a proposta de
José Reginaldo Santos Gonçalves (2005) citando o historiador Stephen Greenblatt: “ao poder
de um objeto exposto atingir um universo mais amplo, para além de suas fronteiras formais, o
poder de evocar no expectador as forças culturais complexas e dinâmicas das quais ele
emergiu e das quais ele é, para o expectador, o representante” (GONÇALVES, 2005, p. 19).
A luta pelo respeito às expressões de matriz africana é constante. Um fato recente (e
reincidente no Brasil) foi o incêndio que destruiu a imagem de Osalá, na Praça dos Orixás em
Brasília, no dia 11/04/2016. A partir das divulgações nas mídias aos constantes ataques ao
patrimônio cultural afro – religiosos. O Portal G12 divulgou a nota sobre o acontecimento. Na
madrugada do dia (11), os vizinhos perceberam um incêndio na praça dos orixás em Brasília.
O caso foi entendido como “crime” e foi registrado na 1ª Delegacia da Policia Civil (Asa Sul)
como “dano ao patrimônio”:
‘Não há como ter pegado fogo por uma vela, como já disseram na delegacia,
porque a chama não seria alta o suficiente. Se pegasse fogo de baixo para
cima, o pé queimaria primeiro e a imagem tombaria’, diz o presidente da
Federação de Umbanda e Candomblé de Brasília e Entorno. ‘São vários
casos, e até hoje ninguém foi responsabilizado. Como não tem segurança
nem câmera, é sempre a denúncia de alguém que viu, alguém que contou, é
difícil seguir investigação. A gente depende do relato de quem mora aqui na
praça, é um relato que não costumam levar a sério no inquérito’, diz o
presidente.3
2
Disponível em: http://g1.globo.com/distrito-federal/noticia/2016/04/incendio-destroi-imagem-de-oxala-na-
praca-dos-orixas-em-brasilia.html Acesso em: 4 fev. 2017.
3
Idem.
2277
Para melhor compreendemos os jogos de poder na “batalha das memórias” (Ângela de
Castro Gomes, 1999) evidenciando as representações do modo de fazer o acarajé e os
conflitos em torno do ofício das Baianas de acarajé. Ao observar a “batalha” em diversas
interprestações, reconhecido e autênticos, as memórias são retrocedidas entre a exaltação da
religiosidade e a apresentação do sofrimento. Exaltando a divulgação das mídias nas páginas
virtuais na internet, O blog “O Portal GospelPrime” – apresentou uma nota com título O
cristão bem informado4, destacando que a prefeitura de Salvador, anunciou as “regras” para
vender acarajé nas ruas. Com a obrigatoriedade do uso dos trajes da baiana de tabuleiro,
alguns evangélicos pararam de vender acarajé. Como forma de rebater essa posição da
prefeitura, os evangélicos buscaram outra estratégia e rebatizaram o acarajé como “bolinho de
Jesus”, desvinculando a sua ligação com a cultura afro. Outra tensão consiste nos constantes
ataques que o Memorial tem sofrido e que merecem ser problematizados como fruto do
racismo religioso.
4
Disponível em: https://noticias.gospelprime.com.br/evangelicas-acaraje-bolinho-de-jesus/ Acesso em: 9 fev.
2017.
2278
Figura 1: Vista lateral do Memorial.
2279
bordados, valorização da identidade afro-baiana etc. Desse modo, os conflitos serão
inseparáveis:
2280
Izabela Tamaso (2002), há, contudo, um patrimônio que ainda não foi expropriado do grupo
que o produziu e lhe atribuiu valores: o patrimônio imaterial. Este é um domínio no qual a
agencialidade dos sujeitos sociais ainda não sofreu impacto. Para a pesquisadora, a cultura
tradicional e popular – crenças, comida, dança, procissões, folias, expressões, música etc. –
mantém-se com relativa autonomia, no que concerne à ação dos realizadores e participantes
locais.
Conforme destacou Alessandra Rodrigues Lima (2012), cabe ressaltar que a perspectiva
de patrimônio e a noção de salvaguarda que marcam o entendimento da ABAM possui
orientações que ressaltam o ofício principalmente como uma profissão:
Nesse sentido, o Memorial das Baianas torna-se exemplo dos múltiplos atravessamentos
em torno do campo do patrimônio, especialmente as “batalhas das memórias” e dos conflitos
acionados pelo preconceito e pelo racismo religioso. Exemplo desses fatos são os ataques
frequentes que o memorial sofre que são divulgados nas mídias.
2281
O portal Kickante5 divulgou um noticiário na internet com objetivo de arrecadar
recursos para impedir o fechamento do Memorial das Baianas, em Salvador-BA, visando
garantir a segurança do mesmo após 42 ocorrências em menos de dois anos. A matéria
intitulada “ABAM: Resgate histórico de um símbolo nacional” apresenta os conflitos e meios
de proteger o patrimônio afro-religioso no campo cultural.
O título da matéria chama atenção por atingir um espaço de preservação de um conjunto
de expressões culturais da diáspora negra, “Memorial das Baianas pode ser fechado por
causa de arrombamentos; 39 ocorrências registradas”. Os furtos ao Memorial se tornam
rotina, um espaço sem segurança, sem policiamento. Como informa o blog, em 18 de junho
de 2016 foram furtados, por exemplo, um botijão de gás, dois fogões e ainda um rolo de
fiação. O blog procurou Rita Santos, coordenadora da Associação das Baianas de Acarajé,
após sofrerem 39 assaltos que também incluíam peças da exposição museológica:
5
Disponível em: https://www.kickante.com.br/campanhas/abam-resgate-historico-de-um-simbolo-nacional
Acesso em: 4 fev. 2017.
6
Idem.
7
Disponível em: http://www.metro1.com.br/noticias/cidade/26212,abandonado-memorial-das-baianas-de-acaraj-
j-foi-arrombado-42-vezes.html. Acesso em: 10 fev. 2017.
2282
freezers, não temos nada. Levaram tudo que você possa imaginar. Mesa, cadeira,
liquidificador, fogão, botijão de gás. Não tenho geladeira, porque eles arrancaram o motor’”.8
Importante enfatizar que o Memorial das Baianas é um espaço do Município, cedido
pela prefeitura de Salvador. De acordo com Rita Santos, nenhum órgão se responsabilizou em
prestar assistência ao Memorial após os danos causados: "O município não ajuda em nada.
Serraram as grades, arrancaram as luminárias do teto todas, e eu não recebi uma visita, nada".
Os policiais informam que os itens roubados foram recuperados, no entanto, a própria
coordenadora nega essa afirmativa, os policiais procuram produzir a crença em um espaço
seguro e controlado, embora não seja bem a realidade do local:
8
Idem.
9
Idem.
2283
O preconceito existente em torno das baianas (a maioria filhas de santo) surge do modo
de fazer acarajé, relacionando-o à Iansã e ao candomblé. Essas baianas por seguirem o
candomblé ficam expostas a uma sequência de atos de racismo, violência física, psíquica e
moral, além de intolerância religiosa. Seus trajes, o ritual de preparo do acarajé, a limpeza do
local, todos esses costumes são de herança africana:
As baianas ao saírem nas ruas são expostas a serem chamadas por várias frases
preconceituosas, por exemplo: “Para uma negra, você até que é bonita”; “Por que você não
penteia o cabelo?”; “Você vai se dar bem com os gringos, mula de exportação”; “Negrinha,
você usa maquiagem ou carvão”.10 O Portal O Globo11 divulgou um caso de racismo a uma
baiana de acarajé na praia de Salvador, o agressor foi acusado de racismo e agressão física e
verbal, chamando-a de “negrinha”:
10
Informações obtidas durante a pesquisa de campo.
11
Disponível em: http://oglobo.globo.com/brasil/dono-de-barraca-agride-baiana-de-acaraje-e-preso-por-racismo-
em-salvador-2965399. Acesso em: 10 fev. 2017.
12
Idem.
2284
“moderna”. Tornando indícios representativos do modo como as culturas herdeiras da
diáspora africana ainda são visualizadas como jogos, também enquadradas na “batalha das
memórias”. O papel dos museus e da Museologia é enfrentar essas tensões, na luta em prol de
uma prática cultural mais igualitária.
Referências bibliográficas
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no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.
BHABHA, H. K. O local da cultura. Tradução Myriam Ávila et al. Belo Horizonte: UFMG,
1998.
DANTAS, Rafael Jesus da Silva. O que é que a baiana tem? O memorial das baianas do
acarajé de Salvador/Ba e a “batalha” das memórias. Anais do XVI Encontro Regional de
História da ANPUH – Rio: Saberes e práticas científicas, 2014.
2285
LIMA, Alessandra Rodrigues. Patrimônio Cultural Afro-brasileiro: as narrativas
produzidas pelo Iphan a partir da ação patrimonial. Dissertação (Mestrado em Preservação do
Patrimônio Cultural), Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 2012.
LODY, Raul. O Negro no Museu Brasileiro. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
SILVA, Joana Angélica Flores. A representação das mulheres negras nos museus de
Salvador: uma análise em branco e preto. Dissertação (Mestrado em Museologia),
Universidade Federal da Bahia, 2015.
TAMASO, Izabela. A expansão do patrimônio: novos olhares sobre velhos objetos, outros
desafios... Sociedade e Cultura, Goiânia, v. 8, n. 2, jul/dez 2005.
2286
O ESTUDO DA JOALHERIA AFRICANA DO MAFRO/UFBA: EM BUSCA DOS
SUJEITOS PRODUTORES
Resumo: Este artigo tem por finalidade apresentar os resultados da pesquisa sobre o acervo de joias
que faz parte da Coleção Africana do Museu Afro-Brasileiro da Universidade Federal da Bahia
(MAFRO/UFBA). O projeto foi desenvolvido no programa de iniciação científica, contemplado pelo
EDITAL PROPCI/UFBA 01/2016 – PIBIC, intitulado Estudo do Acervo do Museu Afro-Brasileiro
para a Requalificação da Exposição de Longa Duração. Para tanto, será apresentado o percurso
metodológico, os objetivos traçados e resultados alcançados, focando principalmente na importância
da pesquisa museológica para a formação acadêmica dos bolsistas, estudantes de graduação do Curso
de Museologia, inclusive para o desvelamento dos objetos, na revelação de informações que até então
estavam presas na materialidade física dos mesmos. Esta pesquisa, além de subsidiar a escrita de
novas narrativas acerca dos objetos, irá identificar os sujeitos responsáveis pela sua criação,
evidenciando seus contextos de produção e uso, trazendo à tona informações que até então não haviam
sido apresentadas nas antigas legendas e painéis informativos.
Abstract: This article aims to present the research’s results about the jewelry collection, which is part
of the African Collection in the Afro-Brazilian Museum of Federal University of Bahia. The project
was developed through the scientific initiation program, approved by the ANNOUNCEMENT
PROPCI/UFBA 01/2016 – PIBIC, entitled Study of the Afro-Brazilian Museum of UFBA for a
Requalification of the Long-Term Exhibition. To do so, it will present the methodological course,
objectives outlined and the results achieved, mainly focusing on the importance of the museum studies
research for the academic formation of the undergraduate students, who receive a scholarship, from
the Museology Course, as well as for the unveiling of objects, in the discovery of information that,
until this moment, was trapped in their physical materiality. This research, besides subsidizing the
writing of new narratives about the objects, also will contribute to identify the subjects creators,
showing the contexts of production and use, bringing to the light information that, so far, hasn’t been
showed in the old subtitles and informative panels.
2287
Introdução
A Coleção Africana é composta por mais de 1192 peças, provenientes das regiões
Ocidental, Central e Oriental do Continente Africano. Nela estão reunidos objetos de
tipologias e funções diversificadas, a exemplo de tapeçarias proverbiais, instrumentos de
Orixás, vasos em cerâmica e terracota, máscaras gueledés, adirês, dentre outros.
Os museus, na sua grande maioria, têm apresentado em suas mídias, especialmente nas
exposições de longa duração, o acervo de maneira estanque. Trazem informações que
constroem uma narrativa estéril e, frequentemente, pretensiosa, ressaltando, muitas vezes,
apenas técnica e materialidade, aprisionando e/ou negando o contexto social que circunscreve
os objetos. Contribuindo, ainda, para a negação e ocultamento dos/as produtores/as e
usuários/as destas peças, agentes diretos da tessitura dos objetos e, portanto, da escultura
social.
2288
A partir disso, se fez necessário intensificar o número de pesquisas sobre o acervo,
visto que a maioria dos objetos que o compõem se encontram somente com informações
oriundas das antigas listas de arrolamento e fichas de catalogação e identificação, que não
apresentam muitas informações para além daquelas intrínsecas, caracterizadas por Ferrez
(1991, p. 2) como aquelas que “são as deduzidas do próprio objeto, através da análise das suas
propriedades físicas”, que foram transcritas para as legendas e painéis informativos da
exposição de longa duração.
Reforçando a nossa fala contra formas sutis e perversas dos museus de Salvador, neste
caso, baseando-se na análise dos museus de tipologia histórica, de acordo com o Cadastro
Nacional de Museus do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), que apresentam obras e
objetos no intuito de representar sujeitos de uma classe com menor poder econômico-social e
grupos étnico-raciais, considerados minoria, apresentamos aqui a ponderação crítica reflexiva
de Joana Flores no seu livro-denúncia Mulheres Negras e Museus de Salvador: Um diálogo
em branco e preto: “É reservado ao objeto o lugar que lhe possibilita o destaque de maior ou
menor visibilidade, sem levar em consideração as questões de gênero e raça que podem
desencadear uma nova perspectiva metodológica na expografia.” (FLORES, 2017, p. 58).
Partindo deste ponto de vista é que objetivamos contribuir para a ampliação do olhar sobre os
objetos, identificando os sujeitos envolvidos na sua produção, distribuição e uso – dados
fundamentais para perceber as relações entre sujeitos e objetos.
2289
No caso deste estudo, ainda incipiente, conseguimos identificar, ao menos, alguns de
seus nomes para lhes atribuir a devida autoria nas joias a partir da documentação primária
produzida por Pierre Verger, etnólogo responsável pela aquisição do acervo africano.
Iniciamos o levantamento dos dados acerca deste grupo de objetos investigando informações
sobre seu processo de aquisição, para fazer o delineamento da biografia.
Tabela 1
2290
como está exemplificado nas imagens comparativas, abaixo, da pulseira de Oxum e da face
escarificada.
Fonte: https://www.geledes.org.br/cultura-fotografa-da-costa-marfim-faz-exibicao-sobre-tradicao-da-
escarificacao/
Até o momento não temos registros suficientes que possam comprovar as técnicas
empregadas na confecção das peças. Apenas podemos inferir que algumas delas,
2291
possivelmente, foram produzidas pela técnica da cera perdida13. Ainda que a documentação
da qual dispomos atualmente tenha sido de grande valia para o desenvolvimento das
atividades, serão necessárias outras iniciativas para viabilizar o entendimento desta coleção
em seus diferentes aspectos.
Neste caso, temos nos embasado nos documentos de compra – faturas, recibos,
registros de encomenda, entre outros – produzidos por Pierre Verger, que foi um dos
principais responsáveis pela aquisição dessas peças, ao registrar os trâmites realizados.
Fotógrafo e etnólogo francês, participou do grupo de professores/as, intelectuais e
representantes da comunidade negra da Bahia no Centro de Estudos Afro-Orientais da
Universidade Federal da Bahia (CEAO/UFBA) a fim de conceber e executar o projeto de
criação do MAFRO/UFBA. O Museu é resultado de um acordo de cooperação (convênio)
entre o Ministério das Relações Exteriores do Brasil, o Governo do Estado da Bahia, a
Universidade Federal da Bahia, e a Prefeitura Municipal de Salvador, firmado entre os anos
de 1972-1974, mas só aberto ao público em 7 de janeiro de 1982.
Verger foi designado para formar a Coleção Africana devido a sua experiência tanto
em viagens à África, para países como Benin e Togo, quanto em acervos etnográficos. Sendo
contratado como professor visitante, pela Universidade Federal da Bahia, de acordo às
informações de Thiara Matos (2012), que pesquisou suas correspondências no período em que
esteve envolvido com as atividades de criação do Museu Afro-Brasileiro/UFBA e formação
de seu acervo:
13
Técnica empregada, principalmente, na confecção de peças pequenas como as joias e outros adornos e
amuletos. O processo se dá esculpindo no primeiro momento o molde em cera de abelha que em seguida é
introduzido na argila ou barro e que quando posto para secar a cera se derrete e escorre, por uma abertura feita
previamente e por onde, finalmente, o metal em estado líquido é inserido. E, como a cera é utilizada apenas no
primeiro momento e possivelmente é descartada essa técnica é comumente denominada “cera perdida”.
2292
Matos (2012, p. 12) afirma que “Entre as principais atividades realizadas por ele,
destaca-se a elaboração do projeto conceitual e a realização de uma viagem ao continente
africano em 1975 para comprar peças para o acervo da instituição.” - Grifo nosso.
O fato desses objetos terem sido comprados em mercados populares, como o da cidade
de Ibadan, na Nigéria, com a finalidade de compor o acervo de um Museu, não torna menos
potentes os valores sociais, históricos e culturais utilizados como pano de fundo para sua
produção e posterior atuação no desenvolvimento dos processos museológicos. Tais peças,
certamente, seguem cânones específicos relativos ao período em que foram fabricadas e,
portanto, falam da sociedade onde foram produzidas, ponto central do nosso estudo, uma vez
que buscamos identificar não só os produtores, mas também os contextos em que estavam
inseridos, para que possamos traçar sua biografia buscando compreender não apenas as
motivações artísticas, mas um amplo entendimento do cenário sociocultural. Como caminho
para esta compreensão, utilizamos a Coleção de Joalheria Africana.
Desta forma, é possível perceber o modo como esta coleção de joalheria em metal atua
enquanto imanência da cultura material africana e torna possível remeter ao uso dessas joias –
as quais, neste artigo, serão também referidas como artefatos, uma vez que são resultado de
um saber fazer materializado por mãos humanas – no Benin e no Togo, países onde foram
adquiridas. Neste caso, tais artefatos atuam como identificadores e legitimadores de valores
2293
sociais e culturais das sociedades às quais pertencem, e que as produzem e as utilizam, agindo
não apenas no campo simbólico, mas no cotidiano, à medida que ratifica os valores que
fomentam a produção dos objetos. Conforme ressalta Lima (2011, p. 19): “Por meio de
discursos materiais, as pessoas falam silenciosamente sobre si mesmas, sobre sua visão de
mundo, sobre o que não pode ou não deve ser dito verbalmente, e aí reside a sua força”.
Nos referidos países, como em outras regiões da África, a utilização de joias está para
além de fins estritamente estéticos ou artísticos. Há uma forte função social imbricada no
objeto, que pode denotar hierarquia social; rituais de passagem que demarcam, além de status
social, também gênero, e o poder mágico, simbolizado, no sentido de trazer proteção, atraindo
boa sorte e evitando infortúnios para quem as usa. Fisher (1984, p. 81) assinala alguns desses
usos:
The Benin name for coral, eshugu, means rank and wealth, and coral is
believed to protect the fertility of the land - a property renewed every year
by washing the beads in blood. This jewelry [...] is handed down through
generations of Obas14.
14
O nome utilizado no Benim para coral, eshugu, significa prestígio e riqueza, e acredita-se que o coral protege
a fertilidade da terra - uma propriedade renovada a cada ano, lavando-se as contas em sangue. Essa joia [...] é
passada através de gerações de Obas. - Tradução livre nossa.
2294
Isso se deve ao fato de que a produção de objetos em metais era de domínio, também,
de sociedades africanas, muito antes da chegada dos europeus em África. O conhecimento
especializado no âmbito da metalurgia foi primordial para criação de objetos confeccionados a
partir de mais de um metal, como é o caso, principalmente, do cobre que, ligando-se ao
estanho ou ao arsênio, forma a liga metálica que dá origem ao bronze, outro importante metal
bastante utilizado para produção de joias no Benim.
Nesse contexto, é possível perceber a maneira com que diferentes civilizações lidaram
de modos diversos com o emprego e utilização dos metais por sujeitos que dominavam a
metalurgia, que eram vistos como artífices por uns, e por outros reconhecidos como artistas
que trabalhavam diretamente na produção de joias. Nesse sentido, Matos afirma que:
A partir da concepção africana de arte, que leva em conta não apenas o objeto estético,
para fruição, mas o percebe através de uma ótica de simbolismos e códigos próprios aos
grupos sociais que o produzem e, portanto, emitem mensagens entre si, ou seja, “uma tradição
artística calcada na verdade utilitária e mágica do cotidiano” (Araújo, 2016, p. 5), é possível
perceber as sociedades africanas. Nesse caso, daquelas oriundas do Benin e do Togo. Como
afirma Dohman:
2295
produzidos por Pierre Verger15 - importa informar que estes foram basilares para a nossa
investigação.
15
Encontramos tais documentos na Fundação Pierre Verger (FPV), durante a pesquisa de campo, localizados em
uma pasta classificada como Museu Afro-Brasileiro (FPV 1B-299). Estes documentos foram digitalizados e
disponibilizados no MAFRO/UFBA, bem como serão entregues, ao final do projeto, à FPV. Esta iniciativa foi
importante no sentido de afunilar as informações constantes tanto na Fundação, quanto no Museu, e foi
possibilitada graças à receptividade da equipe da FPV a quem agradecemos na pessoa da Profª Drª Ângela
Lühning.
16
Este projeto foi contemplado pelo Edital MinC/UFPE de 2013 que tinha como objetivo principal formar
acervos digitais do patrimônio afro-brasileiro. Foi desenvolvido com a participação de quatro bolsistas,
estudantes de museologia, coordenado pela Prof,ª Dr,ª Maria das Graças de Souza Teixeira e supervisionado pela
museóloga Andrea de Britto. Atualmente é supervisionado pela museóloga Zinalva Ferreira.
2296
Nesse processo, pudemos verificar que os dados replicados na documentação
subsequente não eram, na sua totalidade, confiáveis uma vez que o conteúdo de alguns
campos apresentava muitas divergências, contribuindo para a permanência de ausências de
dados condizentes com os objetos, implicando, assim, na disseminação de informações
equivocadas. Diante desse cenário, a pesquisa aqui apresentada tem sido de suma importância
não só para atender ao objetivo inicial, o de subsidiar a construção de novas narrativas para o
projeto de requalificação da exposição de longa duração do Museu Afro-Brasileiro – UFBA,
mas para preencher lacunas ainda existentes, como a identificação da origem precisa das
peças, dos contextos de produção e, principalmente, desvelar nomes de seus produtores.
2297
Estes documentos possibilitaram não só traçar uma pequena parte da biografia dos
objetos em questão, a partir, também, da assinatura dupla em cada fatura, certificando autoria
dos produtores/fornecedores deste tipo de peças, e de um outro tipo de assinatura que são as
observações manuscritas a lápis feitas pelo próprio Verger. Ao nosso ver, esses escritos são
como as marcas por incisões, tanto no corpo metálico das joias, como no corpo físico
daqueles/as aos quais os objetos se destinaram.
Considerações finais
2298
também a importância do cruzamento de registros diversificados, no sentido do
desenvolvimento da pesquisa museológica, que deve buscar diálogo entre fontes documentais
distintas ampliando o escopo epistemológico para dar conta das várias facetas que envolvem a
concepção, produção, distribuição e usos dos objetos de museus.
Isto posto, assegura-se a construção de narrativas que possam contribuir para leituras
que fomentem a reflexão tanto daqueles/as que as produzem, neste caso os/as profissionais de
museus e o público visitante. Tendo em conta que se o museu é uma grande mídia que está a
serviço do desenvolvimento social, como preconizam o ICOM – Conselho Internacional de
Museologia e o Instituto Brasileiro de Museus, acreditamos, portanto, que esta é a função
social do museu, à medida em que preserva a memória, evidenciando a humanidade imbricada
na relação entre os sujeitos e as realidades das quais fazem parte, mediadas pelos objetos.
Ressaltamos ser importante o desdobramento desta pesquisa, visto que este é um recorte da
Coleção Africana, e ainda se faz necessário preencher as demais lacunas referentes a outros
grupos de objetos.
Referências bibliográficas
ARAUJO, Emanoel. In: BEVILACQUA, Juliana Ribeiro da Silva; SILVA, Renato Araújo da.
África em Artes. São Paulo: Museu Afro Brasil, 2015.
CUNHA, Laura; MILZ, Thomas. Joias de crioula. São Paulo: Terceiro Nome, 2011.
FALCÃO, Andréa. (org). Seminário Arte e Etnia Afro-Brasileira. Arte e etnia afro-
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GOLA, Eliana. A jóia: história e design. São Paulo: SENAC São Paulo, 2008.
2299
INGOLD, Tim. Estar vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Rio de
Janeiro: Vozes, 2015.
LUZ, Natalia da. Cultura: fotógrafa da Costa do Marfim faz exibição sobre a tradição da
escarificação. In: Geledés – Instituto da Mulher Negra, 2014. Disponível em:
<https://www.geledes.org.br/cultura-fotografa-da-costa-marfim-faz-exibicao-sobre-tradicao-
da-escarificacao/>. Acesso em 10 de outubro de 2017.
WILLET, Frank. African Art. New York: Thames and Hudson, 1993.
2300
O TRABALHADOR NEGRO NO MUSEU DE ARTES E OFÍCIOS:
REPRESENTAÇÃO E SILENCIAMENTO
Sofia Gonçalez*
*Programa de Pós-Graduação Interunidades em Museologia
da Universidade de São Paulo (PPGMus-USP)
Resumo: O artigo propõe uma descrição analítica da exposição de longa duração do Museu de Artes e
Ofícios de Belo Horizonte, que abriga objetos relacionados a ofícios pré-industriais, sobretudo
instrumentos de trabalho. Observamos os núcleos expositivos que apresentam ofícios exercidos por
homens e mulheres negros, sobretudo escravizados, debatendo a forma pela qual estes trabalhadores
são representados. Procuramos demonstrar que, apesar do MAO ser uma experiência recente, as ideias
mobilizadas no imaginário nacional pelo mito da democracia racial permanecem agentes no discurso
da exposição. Além disso, o artigo recupera o início da trajetória do Museu de Artes e Ofícios,
apresentando aspectos dos projetos originais, sobretudo sua relação com a corrente museológica dos
ecomuseus.
Abstract: The article proposes an analytical description of the long-term exhibition of the Museum of
Arts and Crafts of Belo Horizonte, which houses objects related to pre-industrial crafts, mainly labor
instruments. We observe the expository nuclei that present offices exercised by black men and women,
especially enslaved, debating the way in which these workers are represented. We try to demonstrate
that, although the MAO is a recent experience, the ideas mobilized in the national imaginary by the
myth of racial democracy remain agents in the discourse of the exhibition. In addition, the article
recovers the beginning of the trajectory of the Museum of Arts and Crafts, presenting aspects of the
original projects, especially its relation with the current museum of the ecomuseums.
Key words: exhibition; racial democracy; erasure of slavery; Museum of Arts and Crafts.
2301
O Museu de Artes e Ofícios (MAO) configura-se como uma experiência pioneira no
cenário museológico brasileiro, abrigando uma expressiva coleção de instrumentos de
trabalho associados aos ofícios manuais. Coleções semelhantes estão presentes em outras
instituições, no entanto, além de mais volumoso, o acervo do Museu de Artes e Ofícios
recebeu um tratamento expográfico diferente e inovador, quando da sua inauguração,
inspirado na estética expográfica dos ecomuseus franceses do século XX. A exposição
apresenta soluções discursivas que procuram revelar beleza em objetos comumente
entendidos como rústicos, sendo então uma proposta museológica inusual no Brasil.
17
Como se sabe, um dos profissionais mais expoentes da tradição do ecomuseu é George Henri Rivière, cuja
trajetória foi marcada na França e no mundo pela musealização de acervos de cultura popular e pela consagração
de sua “definição evolutiva” de ecomuseu, compilada no livro La museologie selon George Henri Rivière.
2302
38). Buscando musealizar o trabalho, os ofícios e as técnicas dos trabalhadores, a matriz dos
ecomuseus mostrou-se pertinente aos idealizadores do projeto do Museu de Artes e Ofícios.
Ainda que não se pretendesse construir um ecomuseu, a equipe utilizou-se dessa referência no
estabelecimento de seu conceito gerador:
18
Documentação não publicada, gentilmente cedida por Maria Cristina Bruno.
2303
dificuldades para o estabelecimento de consensos dentro da equipe, opondo Catel ao grupo da
Expomus. Como exemplo, citamos os dissensos gerados em função das sugestões do
consultor em História Nicolau Sevcenko, que entendia que um museu que tratasse do trabalho
no Brasil deveria abordar a questão da tradição escravista do trabalho manual e sua
estigmatização. Para ele, seria preciso marcar as diferenças entre trabalho livre e trabalho
escravo. Sevcenko afirmou em reunião:
19
Como pudemos verificar nas atas, sobretudo da reunião realizada em 22 de maio de 2002. Esta ata se encontra
anexa ao relatório da Expomus.
2304
temos um museu que se construiu sobre demonstrações da evolução das
técnicas, efetivamente: energias humana, animal, hidráulica, elétrica – e em
cada uma delas, historicamente, talvez possamos explicar melhor por que a
escravidão desapareceu. Não foi apenas uma forma de pensar, mas foram
também as origens da evolução técnica que permitiu descobrir que não
tínhamos mais necessidades de escravos (CATEL, 2005, p. 329).
Assim sendo, devido aos entraves no trabalho com o arquiteto e a uma divergência
quanto ao cronograma entre Expomus e ICFG, a empresa paulista encerrou suas atividades
junto ao projeto em 05 de julho de 2002.
De acordo e a partir do pensamento de Sevcenko, que era uma proposta inicial para a
abordagem curatorial da instituição, entendemos que o acervo do Museu de Artes e Ofícios
teria a potencialidade de ser mobilizado para representar uma interpretação sobre a história do
Brasil capaz de colocar em destaque a reflexão sobre as dinâmicas, violências e resistências
que permeiam o mundo do trabalho no país. Contudo, essa leitura que o historiador entendia
como necessária, centrada na reflexão sobre a escravidão e as relações e consequências
sociais que ela engendrou e engendra, e suas diferenças em relação a outros regimes de
trabalho, não se verifica na atual exposição. Não orientada plenamente pela proposta histórica
de Sevcenko, o museu fez aparecer outra interpretação, já que enquanto discurso a exposição
é sempre mediadora de ideias.
Tentaremos demonstrar que a exposição, tal como se apresenta atualmente, é reflexo,
em certa medida, da ideia de democracia racial. Os profissionais responsáveis pelo
assentamento da exposição após da saída da Expomus tornaram-se vetores e reflexo –
inconscientemente, cremos – dessa interpretação sobre o Brasil e o brasileiro, atestando que a
ideia de democracia racial ainda está em forte circulação no Brasil.
Entendemos que, no MAO, o tema da escravidão aparece menos do que seria
necessário, e menos do que Sevcenko aconselharia, imaginamos.
2305
Figura 120: mapa do primeiro nível do museu.
20
Siglas referentes aos agrupamentos de ofícios: A1: ofícios do transporte; A2: ofícios ambulantes; A3: ofícios
do comércio; A4: proteção do viajante; B1: jardim das energias; B2: ofícios da mineração; B3: ofícios do fogo;
B4: ofícios da madeira; B5: ofícios da cerâmica; B6: ofícios do comércio; B7: ofícios da lapidação e ourivesaria;
B8: ofícios do couro; B9: ofícios da terra.
2306
Figura 2: nicho Figura 3: balança de pesar escravos
2307
legenda. E, talvez numa camada mais profunda de apreensão, incitar uma reflexão sobre o
comércio de escravos como forma de circulação e acúmulo de capital. Porém, a balança de
pesar escravos é apenas apresentada ao visitante.
Ao que parece, o local foi escolhido para abrigá-la devido a uma aproximação
tipológica com as outras balanças presentes naquela área do museu. Contudo, não entendemos
que esteja construído efetivamente um diálogo, visto que a balança não foi associada ao ofício
do comerciante e está deslocada dentro da parede. Não foi feita nenhuma alusão a quem
comercializava e quem comprava escravos, e não se referiu a cor de cada um desses
personagens.
Imediatamente em frente ao nicho onde se encontra a balança, há um módulo dedicado
ao Carregador (FIGURA 4), em que encontramos um deque um grande objeto sobre o qual
está um saco rústico. Ao lado, um manequim carrega outro saco rústico nos ombros e pesos
de referência encontram-se dispostos pelo chão.
2308
Há dois painéis que contam com imagens, por exemplo de Debret, e textos21. Neles, há
referência ao trabalho dos africanos escravizados como carregadores, mas a associação dos
carregadores ou dos comerciantes com a balança logo em frente dependerá de uma elaboração
demasiado grande por parte do visitante, que nós mesmos só fomos capazes na redação deste
texto.
Além disso, como fica claro na figura 4, não há referência na primeira camada de
comunicação – a dos objetos, figuras e texto principal22 – ao fato de que aquele ofício foi
bastante comum entre os negros escravos. O texto traz informações interessantes, mas
também se mostra insuficiente: explica bastante pouco com a primeira afirmação, e já parte
para o presente trabalho de carregadores nos portos sem especificar se este serviço continua
sendo executado por negros majoritariamente, mas pode dar a entender que sim. A referência
à “força de seus ombros e músculos” parece ser uma manifestação de um fenômeno
recorrente nos museus brasileiros, no qual se verifica uma tendência em se destacar os
atributos físicos dos negros como uma das poucas contribuições que eles poderiam dar à
sociedade. O trecho final sobre sindicatos e luta por melhores condições de trabalho denota
que anteriormente as condições eram ruins, mas pode sugerir também que o passado era
marcado por uma atitude de submissão desses carregadores, que aceitavam tudo “por um
vintém”, sem reclamar.
A não problematização sobre a escravidão é um problema também nos núcleos
dedicados aos Ofícios Ambulantes. Nos Vendedores Ambulantes (FIGURA 5), há fotografias
no primeiro nível de comunicação com o público: um homem negro vendedor de doces; um
21
Painel da esquerda: “No século XIX, os negros que viviam nas cidades carregavam tudo por um vintém.
Apesar da crescente modernização das tecnologias de produção, algumas atividades ainda utilizam o trabalho
braçal. Nos portos, por exemplo, carregadores e estivadores continuam se valendo da força de seus ombros e
músculos.
A grande diferença é que, hoje, essa categoria está organizada em sindicatos, com capacidade de reivindicar
melhores condições de trabalho.”
Painel da direita: “Até meados do século XIX, o transporte de carga no Brasil empregava, principalmente, a
força humana. Eram usados, para essa finalidade, escravos africanos ou índios.
‘... nas costas, nos ombros, no pescoço e na cabeça de homens é que se arrebatavam não só fardos e caixas de
mercadorias como também viajantes, estes escanchados no cangote, ou então, como preferiam os mais
comodistas e aquinhoados, espichados em redes frescas e acalentadas ao balanço ritmado dos carregadores’,
registrou José Alípio Goulart, em seu livro Tropas e Tropeiros na Formação do Brasil. ”
22
No painel utilizado para apresentação do ofício, que em alguns casos conta com um verso popular ou trecho
de narrativa de viajante, neste caso se lê apenas “Carregador” e “A2 Ofícios do comércio”.
2309
homem branco ou mulato vendedor de vassouras; uma mulher negra, acompanhada de um
menino negro, vendedora de frutas. Os objetos resumem-se a tabuleiros de doces. Na
legenda23 de um dos tabuleiros, encontramos um texto meramente informativo e que não
corresponde às fotografias, visto que quem está vendendo doces é um homem. O texto do
painel24 novamente atesta o protagonismo das mulheres como vendedoras de comida, e faz
um paralelo muito interessante com os camelôs, propondo a percepção da permanência deste
tipo de serviço nas cidades brasileiras. Porém, apesar de afirmar que os negros de ganho
“tinham no balaio o seu maior instrumento de trabalho”, não há balaios em exposição, o que
configura um discurso conflitante entre o texto de apoio e os objetos.
Figura 5: módulo expositivo dedicado ao Vendedor de rua.
23
Legenda: “tipo de tabuleiro usado pelas quituteiras, ofício muito comum entre as ‘escravas de ganho’ no
Brasil Império”
24
Painel: “Os ambulantes têm uma longa tradição na paisagem urbana do Brasil. Como vendedores ou
prestadores de pequenos serviços, são personagens que resistem à passagem do tempo. No século XIX, os
ambulantes eram componentes típicos das ruas das grandes cidades. Pessoas pobres que participavam de feiras
livres e mercados públicos, exibindo as mercadorias em baús pendurados no ombro ou em caixas de madeira
abertas.
Os negros de ganho (escravos) estavam por toda parte no Rio de Janeiro e tinham no balaio o seu maior
instrumento de trabalho. Vendia-se de tudo: frutas, verduras, utensílios e adornos.
As mulheres negras, escravas ou libertas, ocupavam os mercados e monopolizavam o comércio de comidas
preparadas, doces ou salgadas, vendidas na rua, em tabuleiros. Entre os ambulantes havia músicos que animavam
festas religiosas ou profanas e também aqueles que, com seu realejo, vendiam a sorte nas ruas.
Atualmente, os camelôs são a face mais visível da economia informal, ocupando as ruas das grandes cidades.
Nas praias e nos eventos populares, são os ambulantes que matam a sede e a fome do público, vendendo seus
produtos em carrinhos ou em pesadas caixas de isopor.”
2310
Entendemos que seria interessante uma discussão sobre as especificidades do trabalho
do escravo de ganho em comparação, por exemplo, ao escravo lavrador, condicionadas pelo
espaço urbano e pelo fato de trabalharem com vendas e, portanto, dinheiro. A menção ao
negro de ganho e ao trabalho na cidade poderia funcionar como disparador para uma
discussão sobre as formas de resistência inventadas por ele no espaço urbano, de forma que o
museu se colocaria no cenário da representação do negro superando o modelo da submissão e
dos atributos sentimentais, e ressaltando sua participação ativa na dinâmica político-social,
para além de sua condição de vítimas de exploração.
Outra possibilidade seria o questionamento sobre as diferenças entre ser mulher e ser
homem e trabalhar na rua, já que discussões sobre gênero estarem previstas no programa
museológico. Entretanto, a exposição se furtou a possibilidade de mobilizar a escravidão e
questões paralelas, abordando tais temas de forma secundária, em legendas e textos pouco
legíveis e de maneira informativa.
Em outro núcleo sobre os Ofícios Ambulantes, entre o trabalhador de rua e o
fotógrafo lambe-lambe, temos um módulo dedicado ao Dentista e ao Barbeiro. Nele encontra-
se um painel vertical (FIGURA 6) colocado de forma perpendicular ao corredor, contendo
duas reproduções de imagens de Debret sobre escravos urbanos, entre as quais se encontra um
texto sobre barbeiros, dentistas e cirurgiões. Nessas imagens, vemos homens negros escravos
exercendo o ofício de barbeiro, tratando de outros homens negros. As imagens, no entanto,
são utilizadas apenas como ilustração25, e uma ilustração deslocada, porque efetivamente não
há no texto do painel26 qualquer referência ao fato de esse ofício ter sido exercido por
25
O uso de imagens, sobretudo de época, como ilustração e sem problematização sobre a produção da imagem é
alvo de vasta literatura. Não entraremos neste debate, apesar de sua notável relevância.
26
Painel: “Barbeiro, dentista e cirurgião são profissões que se entrelaçam em suas origens alimentando, por
muito tempo, o imaginário popular: ‘quem lhe dói os dentes vai a casa dos barbeiros’. Ainda no começo do
século XIX, o barbeiro era identificado como o indivíduo que fazia barbas e aparava o cabelo, arrancava dentes e
aplicava sanguessugas. As técnicas eram transmitidas, na prática e oralmente, de geração a geração.
A barbearia, ambiente predominantemente masculino, já era importante como ponto de encontro: nela se
trocavam informações e circulavam as notícias locais. Havia também barbeiros ambulantes.
Como material de trabalho, os barbeiros utilizavam bacia de latão modelada de forma a se adaptar ao pescoço; e
o próprio dedo ou uma noz, por dentro da boca do cliente, para melhor escanhoar – era a barba de caroço ou
barba de dedo. O barbeiro ambulante usava também o artifício de pedir ao freguês para fazer bochecha,
facilitando, assim, o movimento da navalha: “Ioiô, fazê buchichim”.
Ao final do século XIX, com o advento dos profissionais liberais de formação acadêmica, fica mais definida a
distinção entre barbeiro, dentista e cirurgião.”
2311
escravos e também por homens livres brancos – e o que essa condição poderia revelar sobre
as dinâmicas sociais em que esse ofício se desenvolvia. As imagens estão ali, cremos, porque
Debret é um clássico na representação de ofícios no Brasil e porque “retratam” a profissão
representada, mas não se propõe uma reflexão sobre as imagens.
Atrás do painel (FIGURA 7), sobre um deque, há um manequim vestido como
Barbeiro próximo a uma cadeira, como quem convida o freguês a sentar. Logo atrás, há uma
fotografia de dois homens negros, na qual se vê que o assento usado por eles é bastante
diferente da cadeira exposta, mas tal diferença não é explorada. Ao lado há o painel sobre o
Dentista, com a especificidade de não ter fotografia, mas um diploma do século XIX. A
possibilidade – e a necessidade – de pôr em questão a formação dos profissionais no Brasil
não foi aproveitada com a exposição deste diploma, tendo apenas sido sugerida pelo texto do
painel. Entendemos que caberia a problematização sobre o prestígio que se dedica no Brasil às
profissões diplomadas em comparação aos ofícios manuais e qual a colocação dos negros – já
que se optou por iniciar o módulo com as pinturas de Debret – nessa condição de diplomados
ou não, no XIX ou atualmente.
Figura 6 – painel referente aos ofícios do Barbeiro e do Dentista.
2312
Outra reflexão interessante neste sentido seria sobre o fato de que cirurgiões e
dentistas não são atualmente considerados trabalhadores manuais, enquanto o barbeiro o é. A
formação acadêmica exigida dos profissionais de saúde e o prestígio associado a elas apaga
sua condição de trabalho manual, a que se associa pouca dignidade. Outro dado a respeito
dessa questão é a baixa porcentagem de pessoas negras que exercem atualmente as profissões
da área da saúde. A proposta de Sevcenko caminhava exatamente neste sentido, de refletir
sobre essas atribuições de sentido negativo devido à herança escravista, mas tais
possibilidades não foram exploradas na exposição. As diferenças são apagadas em função
daquilo que há de comum no passado, o trabalho no espaço urbano. Tudo que seria diferente –
livres ou escravos, diplomados ou não, brancos ou negros – não precisa, no entendimento da
exposição, ser posto em discussão.
Eichestedt e Small, analisando as falas oficiais de antigas fazendas escravistas do sul
dos Estados Unidos, hoje abertas à visitação, perceberam existir um padrão discursivo de
apagamento da instituição da escravidão e dos homens escravizados. Segundo eles, a
promoção do apagamento e da marginalização se dá na combinação entre o que está presente
e o que não está (EICHSTEDT; SMALL, 2002, p. 105), das informações que são incluídas e
das que não são (EICHSTEDT; SMALL, 2002, p. 107).
Os autores propõem o conceito de aniquilação simbólica, como uma poderosa
estratégia retórica e representacional para obscurecer a instituição da escravidão
(EICHSTEDT; SMALL, 2002, p. 106). Esta estratégia se opera, segundo eles, a partir de
diversos mecanismos. Entre eles, dois nos interessam particularmente: menção dos
escravizados ou negros de forma superficial27 e fugaz, geralmente numa afirmação
descartável dos fatos, sem detalhes ou elaboração, e geralmente com pouco ou nenhum
contexto; ausência de menção, reconhecimento ou discussão sobre a escravidão e os
escravizados (EICHSTEDT; SMALL, 2002, p. 107).
Identificamos no discurso da exposição do MAO a presença desses mecanismos – ou,
pelo menos, de seus efeitos –, na medida em que a escravidão é apresentada de forma apenas
27
No original, perfunctory, que pode significar também negligente, descuidado, por mera formalidade. Estes
significados parecem também servir ao sentido que queremos dar aqui.
2313
informacional e por vezes até anedótica. O primeiro deles especialmente no núcleo do
Trabalhador de rua, em que nem ao menos havia uma relação direta entre o texto e os objetos
expostos. Com os autores, entendemos que o silêncio e a superficialidade no tratamento são
bastante agentes, bastante responsáveis pela produção de sentido que a exposição promove.
Quando ela não discute a escravidão, apenas menciona tangencialmente, ela contribui para o
ofuscamento da importância da escravidão numa reflexão sobre a história do trabalho no
Brasil.
Tendo em vista que toda exposição é, também, um produto de seu tempo e seu lugar,
procuramos demonstrar nessa descrição analítica que ocorre na exposição do MAO um
apagamento da condição negra e escrava destes trabalhadores. Entendemos que tal
silenciamento deve-se a agência das ideias mobilizadas pela “democracia racial” ainda em
forte circulação no Brasil, aliada a um desconhecimento por parte do museógrafo responsável
sobre a história do trabalho no Brasil e sua tradição escravista.
Em seu texto “O mito da democracia racial no Brasil”, Emília Viotti da Costa recupera
o surgimento e o declínio da ideia da democracia racial. Para ela, a chave para compreender o
padrão racial, a formação do “mito da democracia racial” e sua crítica encontra-se no sistema
de clientela e patronagem e no seu desmoronamento (COSTA, 1998, p. 380). Neste sistema
2314
vivenciado principalmente durante o período colonial, brancos pobres, negros livres e mulatos
seriam a clientela de uma elite branca que controlaria a mobilidade social, negando ou
permitindo ascensões conforme seus próprios interesses. Não havia, portanto, um racismo
oficial ou discriminações legais, como encontramos nas experiências de outros países. Essa
aparente possibilidade de mobilidade criava a sensação de que as diferenças reais eram as
sociais, não as raciais.
Tendo observado e analisado este fenômeno nos anos 1930, poucas décadas depois do
desmantelamento do sistema, e convencidos de que os portugueses não eram movidos por
sentimentos racistas, intelectuais como Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda
consolidaram esta interpretação de que as diferenças reais eram as sociais, não as raciais 28.
Como afirmou Costa, “os cientistas sociais e os historiadores operam no nível da mitologia
social e eles mesmos, quer queiram quer não, ajudam a destruir e a criar mitos” (COSTA,
1998, p. 369).
Como a própria autora indica no final do texto, “no Brasil, o mito da democracia
racial não está completamente morto” (COSTA, 1998, p. 386), mesmo atualmente, tantos
anos depois da publicação original. A ideia de que não existe racismo no Brasil é bastante
difundida no senso comum e a representação do Brasil a partir do encontro harmonioso de três
raças é recorrente, especialmente no âmbito das práticas e representações culturais. São
exemplos recentes disso as cerimônias de abertura da Copa do Mundo de 201429 e a dos Jogos
Olímpicos de 201630. Assim, apesar do esforço de gerações de revisionistas a partir dos anos
1960, a democracia racial permanece ressoando fortemente no imaginário coletivo sobre o
Brasil. Acreditamos, porém, que o mito não só não está completamente morto, como está
bastante vivo e atuante, inclusive nos museus do país.
28
A reflexão destes intelectuais é, sem dúvida, muito mais complexa, bem como sua participação na circulação
das ideias que consolidaram uma certa interpretação de Brasil a partir dos anos 1930. Por limitações de espaço e
proposta, apresentamos este resumo, grosso modo, na intenção de indicar as bases de nosso argumento. Uma
discussão mais pormenorizada está sendo feita na dissertação de mestrado em andamento, da qual este artigo é
fruto.
29
A abertura da Copa do Mundo antecedeu o primeiro jogo da competição, realizado na Arena Corinthians, em
12 de junho de 2014. Não encontramos o vídeo oficial do evento.
30
A cerimônia de abertura teve lugar no Rio de Janeiro, no Estádio no Maracanã, na noite do dia 5 de agosto de
2016. A gravação oficial do evento pode ser vista em:
https://www.youtube.com/watch?v=N_qXm9HY9Ro
2315
A forma como os museus brasileiros representam a população negra ainda hoje, salvo
exceções, continua reverberando tais mitos. Quando o negro brasileiro é representado nos
museus brasileiros31, são estereótipos resultantes da democracia racial que aparecem. Por
vezes, a negritude desses personagens é negada ou embranquecida. Analisando o Museu
Nacional de Belas Artes, por exemplo, Myriam Sepúlveda dos Santos conclui que o “silêncio
sobre a origem racial de artistas brasileiros pode ser explicado a partir do imaginário nacional,
ou seja, a partir da ideia de democracia racial” (SANTOS, 2007, p. 325). Em casos como este,
opera-se um discurso unificador que combate a polaridade entre branco e negro, valorizando
uma certa miscigenação – a que embranquece –. Nesse pensamento, seria desnecessário
apontar a negritude dos artistas e intelectuais, afinal “somos todos mestiços”.
31
Novas instituições têm surgido no cenário museológico brasileiro, como o Museu Afro Brasil, apresentando
acervos e expografias que valorizam as produções e práticas afro-brasileiras. Porém, entendemos que uma
problematização sobre as “antigas” formas de representação do negro ainda se faz necessárias, porque ainda
estão presentes em muitas instituições, sobretudo as de caráter mais clássico, como parece ser o caso do MAO, a
despeito de sua pouca idade.
2316
intelectuais e políticas, assim como da memória do trabalho e das formas de exploração e
acumulação econômicas.
2317
que foram guiados por ideias ainda muito fortes no imaginário brasileiro e adaptadas a uma
certa representação do negro e da escravidão. Dada a disseminação da ideia de democracia
racial, continua parecendo desnecessário colocar em evidência a negritude dos atores sociais,
assim como a memória do escravismo ou das formas de resistência a ele associados. A
escravidão continua sendo representada sem algozes. Todavia, a força da democracia racial no
imaginário brasileiro não tira a responsabilidade que os curadores da exposição, na condição
de propositores de um sentido particular, tinham, justamente, de confrontá-la.
Quando isso não acontece, ou seja, quando o museu não se debruça sobre problemas
históricos – como, por exemplo, a escravidão e seu legado de estigmatização do trabalho
manual no Brasil –, muitas vezes o resultado é uma fetichização dos objetos, o que nos parece
ser o caso dos núcleos expositivos observados. Da tradição dos ecomuseus, identificamos
algumas das inovadoras técnicas expositivas de Rivière, “mago das vitrines”, que adotava
“uma museografia do fio de náilon e do fundo preto, segundo um puritanismo que rejeita
absolutamente o manequim, mas pretende restituir da melhor forma possível, com seus
movimentos no espaço, os usos do objeto” (POULOT, 2013, p. 48).
2318
funcionamento de cada um deles – em detrimento de uma discussão sobre saúde ou sobre as
condições de inserção social deste profissional.
Como procuramos demonstrar, o MAO não promove uma narrativa sobre a história do
Brasil em que se represente apenas a humilhação e a subordinação do negro escravizado,
prática recorrente nos museus brasileiros. Tal resultado deve-se, entendemos, ao fato de que o
discurso que o museu pretendia construir simplesmente não passava por narrar os horrores da
escravidão, portanto tais representações não caberiam – inclusive porque o acervo não possui
instrumentos de tortura. Nesse sentido, este “avanço” na forma de representação, que supera o
castigo e mostra o trabalho, não foi tampouco intencional. Assumir completa e
deliberadamente uma nova posição na narrativa sobre o negro seria procurar efetivar o
programa histórico de Sevcenko e o planejamento de Franco, superando a tendência ao
embranquecimento e revelando a negritude, ressaltando a importância da escravidão na
trajetória do trabalho brasileiro, explicitando em que medida ser negro e / ou ser escravo
condicionava o acesso de homens e mulheres a determinados ofícios. E, como já apontamos,
este “avanço” não é acompanhado por outro de aspecto museológico, já que se deu
protagonismo aos objetos e não aos homens.
Fontes consultadas
ATAS DE REUNIÃO. In: Relatório de atividades. ICFG, MAO: não publicado, 2002.
CATEL, Pierre. Museu de Artes e Ofícios, Belo Horizonte: afinal, como nascem os museus?
(Entrevista concedida a Luciana S Koptke). História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v.12
(suplemento), p. 323-338, 2005.
. Museu de Artes e Ofícios: projeto museográfico. In: ICFG. Anais dos Seminários
de Capacitação Museológica. Belo Horizonte: ICFG, 2004, p. 48-51.
FRANCO, Maria Inez M. Programa Museológico para o Museu de Artes e Ofícios: modelo
de gestão. In: ICFG. Anais dos Seminários de Capacitação Museológica. Belo Horizonte:
ICFG, 2004, p. 38-47.
2319
Referências bibliográficas
COSTA, Emília Viotti da. O mito da democracia racial no Brasil. In: . Da monarquia
à república: momentos decisivos. 8 ed. São Paulo: Unesp, 1998, cap. 9, p. 367-386.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Trabalho e aventura. In: . Raízes do Brasil. 15 ed.
Rio de Janeiro: José Olympio, 1982, cap. 2, p. 12-40.
SANTOS, Myrian Sepúlveda. “Entre Troncos e Atabaques: Raça e Memória Nacional”. In:
Pereira, Claudio; Sansone, Livio. (Org.). Projeto Unesco no Brasil. Salvador: Edufba, 2007,
p. 321-344.
2320
ENTRE SILÊNCIOS E VOZES: ESTUDO DA COLEÇÃO DE CÓPIAS EM
GESSO DE ARTE CENTRO-AFRICANA DO MUSEU AFRO-BRASILEIRO DA
UFBA
Resumo: Este texto apresenta a síntese de uma pesquisa institucional, em andamento, que estuda a
primeira coleção do Museu Afro-Brasileiro da Universidade Federal da Bahia (MAFRO/UFBA). Ao
propor o estudo da produção escultórica específica “África Central”, que tem seus originais em um
museu colonial e cópias em uma ex-colônia americana, na dimensão de coleção-documento-
testemunho, não se trata tão somente de opção teórica, mas, metodologicamente, implica em uma série
de planos e ações que se entrelaçam à perspectiva conceitual de estudos decoloniais para compreender
historicamente e de forma implicada e entrecruzada, as diversidades e complexidades deste conjunto
de obras da cultura material africana. A intervenção investigativa pretende através da análise de
diferentes propostas curatoriais elucidar as vozes e silêncios intercontinentais entre África (África
Central), Europa (museus etnográficos coloniais) e América (Salvador – cidade considerada mais
negra fora da África).
Abstrat: This text presents the synthesis of an institutional research, in progress, that studies the first
collection of the Afro-Brazilian Museum of the Federal University of Bahia (MAFRO / UFBA). In
proposing the study of the specific sculptural production “Central Africa”, which has its originals in a
colonial museum and copies in an ex-American colony, in the dimension of collection-document-
witness, it is not only a theoretical option, Methodologically, implies in a series of plans and actions
that are intertwined with the conceptual perspective of decolonial studies to understand historically
and in an implicated and interwoven way, the diversities and complexities of this set of works of
African material culture. The research intervention seeks to elucidate the intercontinental voices and
silences between Africa (Central Africa), Europe (colonial ethnographic museums) and America
(Salvador - a city considered to be the blackest outside Africa) through the analysis of different
curatorial proposals.
32
Professora do curso de Museologia da UFBA (graduação e pós).
2321
Esta pesquisa institucional destaca a primeira coleção do Museu Afro-Brasileiro da
Universidade Federal da Bahia (MAFRO/UFBA)33, composta por doze cópias em gesso de
importantes obras que se constituem como referências da arte centro-africana, doadas pelo
Museu Real da África Central (MRAC), situado em Tervuren-Bélgica, destacadas nos
principais livros e catálogos especializados.
O desenvolvimento deste estudo visa iluminar aspectos, até então opacos, da história
desse conjunto, que ficou por muito tempo sem o destaque merecido como a primeira coleção
de 12 peças do Museu34, quiçá por trata-se de peças “não originais”. No entanto, com relação
às cópias é sempre bom lembrar as palavras de Walter Benjamin (1994, p. 166): “Em sua
essência, a obra de arte sempre foi reprodutível. O que os homens faziam sempre podia ser
imitado por outros homens.” Ainda refletindo sobre o universo da obra de arte e suas cópias,
vale a pena também citar as palavras de Alpha Oumar Konaré35 (1985, p. 57) relativas à
produção, comercialização e uso de cópias no continente africano:
2322
autênticas testemunhas das várias histórias, relativas à técnica da modelagem em gesso,
principalmente, a primeira célula constituinte do acervo do MAFRO, pois elas são dotadas de
“[...] um valor de autenticidade, ligadas à materialidade da obra.” (HENNING, 2006, p. 293).
O plano metodológico de estudo das peças incluiu uma série de ações que se
entrelaçam à perspectiva de estudos decoloniais, como opção conceitual para compreender
historicamente e de forma implicada e entrecruzada, as diversidades e complexidades deste
conjunto de obras da cultura material da África Central37, através de propostas curatoriais
advindas das vozes e silêncios intercontinentais entre África, Europa e América.
[...] uma coleção africana não pode ser tratada como uma coleção genérica da
cultura material, sem as prerrogativas oferecidas pela História da Arte, pela
37
Conceito África Central utilizado em função da categoria do Museu que possui as peças originais.
38
Ainda que não apareça como campo teórico específico dos estudos decoloniais.
2323
Tradição Oral e pela Etno-estética africanas - estas, como sustentáculo de
todo o projeto museológico.
2324
implicadas na coleta dos artefatos e registro dessas imagens - indeléveis e a serem reveladas
em toda a sua essência; inócuas sem essa revelação.”
Ainda que, individualmente, cada peça tenha sua história de vida anterior à coleta, o
mundo ocidental só tomou conhecimento desta coleção através da retirada do contexto
original. Esta tomada de conhecimento coincide com o que preconiza Samuel Alberti (2005,
p. 565), quando afirma que “[...] a biografia de um objeto não fica estagnada quando este
chega ao museu. [...] sua incorporação à coleção foi, talvez, o evento mais significativo
[...].”41 Portanto, o perfil biográfico da coleção não se dissocia “[...] das atrocidades coloniais
implicadas na coleta [...]”, como bem salientou Salum (2012, p. 198).
Seis etnias estão representadas na coleção, onze peças são da República Democrática do
Congo (RDC): 1 Bena-Lulua; 1 Yombe; 6 Luba; 2 Kuba; 1 Ndengese e 1 peça de Angola:
Quioco.
41
Tradução nossa do inglês: “Clearly the biography of an object did not stagnate once it arrived at the museum.
Nevertheless, its incorporation into the collection was perhaps the most significant event in the life of a museum
object - and the point at which documentation tends to be richest.”
2325
Figura 1: Escultura feminina ancestral Bena Lulua 42
43 44
Frank Willett (2000, p. 190) afirma que “As figuras dos Bena Lulua são muito
diferentes. Mostram uma elaborada escarificação e em geral têm o umbigo enfatizado, supõe-
se que é porque ela representa a união física com os antepassados.”45
42
Todas as definições apresentadas nas peças estão de acordo com as utilizadas nas fichas de documentação do
MAFRO/UFBA, em processo de revisão.
43
Todas as fotografias das peças são institucionais.
44
O mapa de autoria de Juan Crisóstomo Arriaga, publicado no Catálogo: ÁFRICA EL LEGADO ETERNO
(2001, p. 7).
45
Tradução nossa do espanhol: “Las figuras de los bena lulua son muy distintas. Muestran una escarificación y
por lo general tienen el ombligo enfatizado, se supone que debido a que representa la unión física con los
antepasados.”
46
Tradução nossa do espanhol: “[...] Tatuadas y con el ombligo sobresaliente, las figuras establecían la relación
con el mundo de los no nacidos. La actitud recogida, los párpados entornados y los pequeños rasgos del rostro
dotan a estas estatuillas de una gracia y un lirismo especiales.”
2326
Figura 2: Escultura Mãe e filho Yombe
47
Ezio Bassani (2012) apresenta dois exemplares, do grupo étnico Kongo Yombe,
provenientes da República Democrática do Congo, uma pertencente ao MRAC e a outra de
coleção particular Drs Daniel and Marian Malcom Collection, Tenafly (EUA). Estão
classificadas como “figuras de maternidade”, atribuídas ao Mestre Kasadi:
47
Mapa publicado no Catálogo EL PRIMERO EROS (2004, p. 37).
48
Tradução nossa do espanhol: “Figura de antepasado con la forma de una madre sentada con las piernas
cruzadas sosteniendo un niño, baKongo”
2327
O ‘Mestre de Kasadi’ é identificado como o autor de mais de uma dúzia de
esculturas, a primeira das quais, agora em uma coleção privada, foi adquirida
em 1898. Ele viveu do final do século XIX e início do século XX,
provavelmente na aldeia de Kasadi, na atual República Democrática do
Congo, onde duas de suas obras foram encontradas. (BASSANI, 2012, p.
178).49
50
49
Tradução nossa do inglês: “The ‘Master of Kasadi’ is identified as the author of over a dozen sculptures, the
first of which, now in a private collection, was acquired in 1898. He lived in the late 19th and early 20th century,
presumably in the village of Kasadi in the present-day Democratic Republic of the Congo, where two of is his
works were found.”
50
O mapa de autoria de Juan Crisóstomo Arriaga, publicado no Catálogo: ÁFRICA EL LEGADO ETERNO
(2001, p. 7).
51
Tradução nossa do francês: “Les porteuses de coupe font partie des objets luba les plus cunnus, avc leurs figures
féminines raffinés et leurs compositions complexes.”
2328
[...] representavam a figura feminina com elegância, sensualidade e doçura,
descrevendo os penteados e as escarificações com tanta precisão que as
superfícies das esculturas ofereciam uma textura carnosa. Untadas com óleo
de palma, muitas esculturas Luba possuem pátinas lacadas de uma grande
beleza.52
53
52
Tradução nossa do espanhol: “[…] representaron la figura femenina con elegancia, sensualidad y dulzura,
describiendo los peinados y las escarificaciones con tan exactitud que las superficies de las esculturas ofrecen
una textura carnosa. Untadas con aceite de palma, muchas esculturas luba posen pátinas lacadas de una gran
belleza.”
53
O mapa de autoria de Juan Crisóstomo Arriaga, publicado no Catálogo: ÁFRICA EL LEGADO ETERNO
(2001, p. 7).
54
Tradução nossa do espanhol: “Taburete de jefe de los baLuba, tallado en el ‘estilo de cara larga de Buli’, uno
de los primeros estilos de escultor individual o taller registrado en la literatura.”
2329
Roberts (2007) afirmam que os tamboretes “[...] são os assentos de autoridade [...]” (p. 34),
também chamados de “[...] tamboretes cariátides estão reservados às funções políticas mais
altas” (p. 38)55. E, finalmente uma obra mais recente, de Bassani (2012, p. 187), apresenta a
produção dos tamboretes atribuídos ao Mestre Buli, como produção do “Mestre de Kateba”56.
57
A “Masque Luba”, segundo informações do site do MRAC foi recolhida por Oscar
Michaux58, em 1899, sendo considerada:
55
Tradução nossa do francês : “[...] sont des sièges d'autorité [...]” “[...] les tabourets caryatides étaient réservés
aux fonctions politiques les plus hautes”
56
Esta discussão vai ser aprofundada no livro-catálogo em processo de organização.
57
O mapa de autoria de Juan Crisóstomo Arriaga, publicado no Catálogo: ÁFRICA EL LEGADO ETERNO
(2001, p. 7).
58
<http://www.africamuseum.be/museum/home/treasures/lubamask_jul13> Acesso: 30/08/2016.
59
Tradução nossa do francês: “Ce masque buffle est le chef d’œuvre emblématique du Musée, tant pour ses
qualités esthétiques que pour sa rareté. Des cornes apparaissent sur les côtés latéraux et un oiseau est visible à
l’arrière. Cette figuration anthropozoomorphe réfère au buffle, ce qui laisse penser qu’il s’agit d’un objet
important associé au pouvoir du chef. Le buffle est en effet un animal à la fois paisible et agressif qui est associé
aux qualités surnaturelles et ambivalentes du chef sacré des Luba.”
2330
Figura 6: Escultura Tigela com tampa
60
60
O mapa de autoria de Juan Crisóstomo Arriaga, publicado no Catálogo: ÁFRICA EL LEGADO ETERNO
(2001, p. 7).
61
Tradução nossa, sintética do francês : “Cette coupe à couvercle est un trésor de cette catégorie. Elle servit
autrefois d'emblème puissant lors de l'investiture d'un roi luba. La paire d'esprits semble contempler deux grands
lézards - probablement des varans du Nil - comme des puissances mystiques de la nature.”
62
Tradução nossa do francês : “La femme, souvent représentée soutenant ses seins des deux mains, porte des
signes de l'identitité luba telles les scarifications, critères de beauté qui envahissent torse, bras, dos et cuisses.”
2331
Figura 7: Assento do chefe Bajokwe.
63
Única peça de Angola, região fronteiriça com a RDC, descrita como pertencente ao
povo Quioco - também conhecido com outras denominações, como Cokwe, Tshokwe. A profª
Manuela Borges, com base na sua dissertação de mestrado de 199264, trata sobre a
importância de conhecer esta etnia:
63
O mapa de autoria de Juan Crisóstomo Arriaga, publicado no Catálogo: ÁFRICA EL LEGADO ETERNO
(2001, p. 7).
64
Em fevereiro de 2009 quando juntas estudávamos cultura material africana, ela me entregou o artigo para
publicarmos futuramente em conjunto, quando eu tivesse condições de escrever sobre a única peça Quioco do
MAFRO. No entanto, a profª faleceu em 13/07/2013, por isso o seu texto será publicado no livro-catálogo
produto desta pesquisa. A sua dissertação foi sobre a coleção do Museu Nacional de Etnologia de Lisboa.
2332
Figura 8: Efígie Real - Kata Mbula 109º rei dos Bushongo e Kata Mbula - Efígie Real.
65
O par de esculturas Kuba “Kuta Mbula, 109º roi des Bakubas” - traduzido na
documentação do MAFRO como “Efígie Real - Kata Mbula 109º rei dos Bushongo” e o outro
tão somente “Kata Mbula - Efígie Real” são também chamadas de Ndop.
Segundo Willett (2000) “Os reis de Kata Mbula ou Bushongo, os mais conhecidos das
tribos dos Bakuba, foram comemorados em figuras de madeira, cada um com um símbolo
para identificar o indivíduo representado.” (p. 106).66
65
O mapa de autoria de Juan Crisóstomo Arriaga, publicado no Catálogo: ÁFRICA EL LEGADO ETERNO
(2001, p. 7).
66
Tradução nossa do espanhol: “Los reyes de los baMbala o bushongo, los más conocidos de las jefaturas de los
bakuba, fueron conmemorados en figuras de madera, cada una con un símbolo para identificar qué individuo
estaba representado.”
2333
Figura 9: Escultura comemorativa Ndengese
67
67
O mapa de autoria de Juan Crisóstomo Arriaga, publicado no Catálogo: ÁFRICA EL LEGADO ETERNO
(2001, p. 7).
68
Tradução nossa do espanhol: “[...] viven al otro lado del río Sankuru, al norte de los baKuba, también tienen
figuras de antepasados reales, de forma mucho más alargada y los brazos y el tronco adornados, con dibujos de
sacrificios.”
69
Síntese e tradução nossa do inglês: “The austerity, of the cylindrical and inordinately elongated torso and arms
is accentuated by the white decoration that envelopes them in an ornate sheath. The intricate and regular
geometric motifs of which it is composed constitute a kind of sing language the recipients were certainly familiar
with. The lower part of the body is synthesized in a semicircular block that also forms the base of the figure,
which is an ingenious device.”
2334
Figura 10: Estatueta masculina e Estatueta feminina.
70
Proveniente da RDC, o professor será convidado para compor, com seus textos as narrativas escritas e
expográficas.
2335
Últimas considerações, ainda sem um ponto final...
A história das cópias autorizadas, ainda que não tenham sido diretamente coletadas,
não se dissocia da história de suas originais, marcadas pelas memórias da colonização da
África Central, comandadas pelo rei Leopoldo II. A história colonial escravista, baseada no
sistema econômico de venda de seres humanos e de sua força de trabalho, criou e manteve um
conjunto de instituições, administrativas e posteriormente culturais, com personagens que se
cruzaram e ainda se entrelaçam à história da coleção, em diferentes contextos. Em outras
palavras, o passado colonial imperialista belga está atrelado às cópias, mesmo que sua
produção e uso se distanciem geográfica e temporalmente. Não se pode esquecer que este
cruel processo, não somente econômico, envolveu processos subjetivos, transformou
identidades, marcando cada indivíduo pertencente aos povos submetidos, como lembram as
palavras de Aníbal Quijano (2005, p. 127):
[...] sua nova identidade racial, colonial e negativa, implicava o despojo de seu
lugar na história da produção cultural da humanidade. Daí em diante não
seriam nada mais que raças inferiores, capazes somente de produzir culturas
inferiores.
2336
Você acha que tudo que foi aprendido é de pouca utilidade para entender
Wilson e Lasch. Os seus dados são úteis, mas a lógica da compreensão na
qual lhe ‘educaram’ já não é mais. Chega assim, a conclusão de que era
necessário desaprender o aprendido e voltar a reaprender. Talvez isso
pudesse ser uma leitura decolonial da estética, enquanto as instalações já são
estéticas decoloniais. (p. 21).71
71
Tradução nossa do espanhol: “Piensas que todo lo aprendido es de poca utilidad para entender a Wilson y a
Lasch. Los datos que tenías son útiles, pero la lógica de la comprensión en la que te “educaron” ya no lo es.
Llegas así a la conclusión de que era necesario desaprender lo aprendido y volver a reaprender. Quizás esto
podría ser una lectura decolonial de la estética, a la vez que las instalaciones son ya estéticas decoloniales.”
72
Tradução nossa do espanhol: “[…] veo en Wilson todos los signos de un pensar y un hacer decoloniales. Los
suyos son actos de desobediencia aesthética e institucional. La estética es abiertamente política y
decolonizadora, como lo es también la inversión del papel que el Museo juega en la esfera pública y en la
educación.”
2337
africana em material etnográfico e, consequente transformação em peças de museus e
posterior coleção de cópias. Esta trama museal, constituída pelas diversas trajetórias de
sujeitos e instituições que se entrelaçam em conceitos, ideologias e políticas, articularam os
caminhos da triangulação das peças originais às suas cópias: produção, uso e saída do
continente africano, transferência para um museu colonial belga e a chegada das cópias ao
Brasil. Elementos fundamentais para a tessitura das narrativas escritas e expográficas sobre a
coleção de doze cópias em gesso. Para a construção desta tessitura são pensadas estratégias
curatoriais coletivas73, nas quais são inevitáveis os enfrentamentos com tensões, necessárias
para explicitar as formas de aquisição-exploração no contexto histórico colonial-escravista-
racista74.
Referências
73
Neste sentido há um esforço na busca e encontro de pesquisadoras e pesquisadores do continente africano,
como vozes autorizadas, de forma prioritária, mas não excludente, para a realização, compartilhada, destes
processos curatoriais.
74
Entre tantas tensões se destacam aquelas que envolvem o conceito de estética, colonizado da asesthesis, como
salienta Mignolo (2010).
75
Virtuais e presenciais (temporárias e de longa duração).
2338
ANTONACCI, Maria Antonieta. Memórias ancoradas em corpos negros. 2ª ed. Ver. e
ampl. São Paulo: EDUC, 2016.
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WILLETT, Frank. Arte Africano. Singapura. Editora: El mundo del Arte. 2000.
2340
Educação e mediação
cultural em museus
2341
MUSEU, ENSINO E IMPRENSA: EXPERIÊNCIAS NO MUSEU TIPOGRAFIA
PÃO DE SANTO ANTÔNIO (DIAMANTINA, MINAS GERAIS)
Wellington Gonçalves*
Resumo: Com a intenção de investigar o lugar das fontes históricas e da produção do conhecimento
no ensino de História, este artigo elege a imprensa e o museu como esses “lugares privilegiados” para
a constituição de “outros” e “novos” saberes. A partir da análise de uma visita de alunos do Ensino
Fundamental II da Escola Estadual Professora Gabriela Neves ao Museu Tipografia Pão de Santo
Antônio, ambos na cidade de Diamantina, Minas Gerais, realizada no primeiro semestre de 2017,
investiga-se a importância, no percurso de ensino-aprendizagem da disciplina de História, da relação
entre museus, ensino de História e fontes históricas, com destaque para a imprensa e para os espaços
museais.
Abstract: With the intention of investigating the place of historical sources and the production of
knowledge in the teaching of History, this article selects the press and the museum as these “privileged
places” for the constitution of “other” and “new” knowledge. From the analysis of a visit of
elementary school students of the Escola Estadual Professora Gabriela Neves to the Museu Tipografia
Pão de Santo Antônio, both in the city of Diamantina, Minas Gerais, held in the first half of 2017, the
importance of teaching learning of the discipline of History, of the relationship between museums,
teaching of History and historical sources, especially the press and museum spaces.
2342
Introdução
O presente artigo é fruto do projeto de intervenção pedagógica realizado no primeiro
semestre de 2017, ligado ao estágio supervisionado da licenciatura em História na
Universidade Federal dos Vales Jequitinhonha e Mucuri – UFVJM, na cidade Diamantina-
MG. O projeto foi desenvolvido com os alunos do oitavo ano do ensino fundamental da
Escola Estadual Professora Gabriela Neves. Localizada num bairro periférico de Diamantina,
a escola é mantida pelo governo do Estado de Minas Gerais e oferece à comunidade
diamantinense as séries dos ensinos fundamental e médio.
O objetivo geral da intervenção foi apresentar os jornais como fontes históricas e a sua
importância para a pesquisa e produção do conhecimento. O documento histórico – ou fonte
histórica, como também é conhecido – é um importante instrumento para o labor do
historiador e do pesquisador de diferentes áreas do conhecimento, e também para o professor
de História interessado na efetiva produção do conhecimento. Compreender o significado da
importância histórica e social dos jornais foi o principal objetivo da intervenção. Para
exemplificar e tornar palpável a pertinência do documento histórico, de modo geral, e da
imprensa, de modo específico, realizou-se uma visita técnica ao Museu Tipografia Pão de
Santo Antônio. Esse espaço museal apresenta um acervo que (res)guarda parte da história da
imprensa da cidade de Diamantina, tendo sido imprimido ali, por quase um século (1906-
1990), os periódicos Pão de Santo Antônio (1906-1936) e A Voz de Diamantina (1936), este
último ainda em circulação, porém, impresso em outra gráfica da cidade.
Justifica-se essa ação por compreender que a utilização da imprensa como fonte, tanto
na pesquisa científica, como na sala de aula, é um importante instrumento para a produção de
conhecimentos. Sendo assim, pensar os jornais como fontes históricas nos coloca na condição
de sujeitos históricos, atores sociais que constroem e deixam vestígios nos mais diferentes
formatos.
A temática sobre as fontes históricas no ensino de História tem sido relacionada a
várias questões, como por exemplo, as relações do aluno com a História, e consequentemente,
2343
o seu papel social na sua comunidade. O ensino de história e o contato direto com os
documentos históricos realizados in loco podem fomentar aspectos importantes relacionando
o ensino e o aprendizado, fazendo com que determinados assuntos coexistam nos âmbitos
concretos e simbólicos. Neste caminho, uma pesquisa sobre a visita ao Museu Tipografia Pão
de Santo Antônio se justifica, por tornar palpáveis aos alunos, os processos de produção de
jornais durante o século XX na cidade de Diamantina. Além disso, o Museu apresenta um
acervo com mais de 4.000 jornais, disponibilizados em acervos materiais e digitais, acessíveis
para pesquisa, além de outros objetos museais. A visita ao Museu Tipografia Pão de Santo
Antônio proporcionou a construção de relações entre o que foi discutido em sala de aula com
as realidades sociais da cidade de Diamantina, tendo como foco, alguns jornais da imprensa
que circulou na cidade, ampliando assim, os conhecimentos e abrangendo outros espaços
formativos não escolares. A questão dos espaços e práticas sociais da cidade como espaço de
construção do conhecimento histórico foi abordado pela pesquisadora Luciana Rossato:
2344
Os jornais como fontes históricas
Os jornais são exemplos dos registros da ação dos homens e seus grupos sociais, e eles
podem revelar vestígios das vivências humanas. A partir deles, é possível visualizar traços do
passado, buscando conhecer o cotidiano e as práticas em determinado recorte espaço-
temporal. Esses periódicos não devem ser lidos como pedaços de papel que perdem o valor no
dia seguinte, quando suas informações serão consideradas ultrapassadas. Estes que,
geralmente, eram utilizados para embrulhar pão, forrar a casinha do cachorro e outras tantas
utilidades, aqui, tornam-se importantes registros.
Os jornais se tornam um “manancial fértil para o conhecimento do passado, fonte de
informação cotidiana, material privilegiado para a recuperação dos acontecimentos históricos
são alguns dos qualificativos sobre a utilidade da imprensa para a pesquisa histórica” (CRUZ;
PEIXOTO, 2007, p. 256) A premissa da imprensa enquanto manancial fértil apontada pelas
historiadoras Heloísa de Faria Cruz e Maria do Rosário da Cunha Peixoto exprime a
importância da imprensa na pesquisa histórica.
Por meio dos jornais é possível recuperar dimensões históricas importantes, como as
lutas, os ideais, os compromissos e os interesses de diversos grupos sociais, sobretudo, as
trajetórias de grupos antes marginalizados por uma história seleta que priorizava o campo
político e os seus “grandes” personagens. A utilização da imprensa enquanto fonte histórica
possibilitou um melhor conhecimento das sociedades no nível de suas condições de trabalho,
vida, manifestações culturais, dentre outros aspectos.
Compreender os processos da pesquisa histórica ainda tem sido uma importante e
difícil tarefa para se empreender no ensino de História na educação básica. Uma das
principais atribuições do ensino de História, para além de ensinar o conteúdo programático, é
fazer com que os alunos consigam se atentar para as dinâmicas dos processos históricos.
Tendo isso em conta, não foi intenção da intervenção criar “mini-historiadores”, mas sim
atentar nos alunos que todos os sujeitos e suas produções materiais e simbólicas são históricas
e, portanto, partes da História.
2345
Assim, ao articularmos o conteúdo historiográfico e a visita ao Museu foi possível
visualizar o que chamamos de “vestígios histórico-sociais”, que podem ser, das mais
diferentes naturezas.
Para aplicar o conteúdo em sala de aula realizou-se uma aula expositiva sobre fontes
históricas e o uso de jornais como fonte. Para essa aula foi solicitado que os alunos
trouxessem jornais recentes, que foram utilizados para ilustrar e exemplificar passagens da
aula, construindo o conhecimento histórico a partir do presente. Atentar nos alunos que eles
são sujeitos históricos, portanto, partícipes e construtores da História, ainda é um desafio no
ensino de história na educação básica:
2346
produzidas influem decididamente em sua solução; diversas são as
abordagens ou visões sobre o problema em questão, pois diferentes são os
sujeitos que com ele dialogam de diferentes espações sociais; para a sua
compreensão, construção/reconstrução é fundamental o confronto das
posições, assim como a identificação de suas argumentações e contra-
argumentação (CIAMPI, 2007, p. 203-204).
2347
Muitos alunos levaram o jornal A Voz de Diamantina, publicado desde 1936 até os
dias atuais. Por meio desses jornais, foi possível demostrar que eventos cotidianos, conflitos,
relatos podem tornar-se fontes históricas. Desta forma, utilizamos o trabalho do historiador
Wellington Carlos Gonçalves, que estudou as práticas religiosas e culturais nos anos 1940 em
Diamantina através da imprensa local, com destaque para os jornais A Voz de Diamantina e A
Estrela Polar (GONÇALVES, 2017), exemplificando o papel das fontes histórias para a
investigação da história local da cidade.
2348
As repercussões educativas são visíveis na ampliação das potencialidades de
abordagem de bens culturais mais próximos da realidade dos sujeitos, com a
inclusão de indícios bibliográficos nos processos educativos. Há expansão
das noções de cultura e patrimônio, com inclusão de critérios de valor
referencial e simbólico, que não são intrínsecos aos valores materiais dos
objetos e registros, mas que se ligam à atribuição de sentido pelos grupos e
sujeitos de referência (PEREIRA, 2015, p. 83).
O Museu Tipografia Pão de Santo Antônio, de acordo com as informações em seu site
virtual na Internet, reúne um acervo museológico e documental que testemunha a longa
prática jornalística, editorial e tipográfica desenvolvida, entre 1906 e 1990, pelos jornais
diamantinenses Pão de Santo Antônio e Voz de Diamantina. Foi criado a partir da seleção
pública promovida pela Petrobrás Cultural com o apoio da Universidade Federal de Minas
Gerais, sendo fruto, portanto do projeto Memória do Pão de Santo Antônio, que atuou entre
agosto de 2013 e maio de 2015.
Situado na antiga tipografia dos jornais, oficina que funcionou ao longo de todo o
século XX, o Museu é caracterizado pela união singular dos meios de produção próprios da
tipografia com os impressos saídos dos seus prelos. Trata-se de máquinas impressoras,
cavaletes tipográficos, mobiliário, clichês e outras ferramentas, que assumem seu estatuto,
hoje patrimonial, ao lado dos quase 4 mil exemplares dos jornais outrora ali redigidos,
compostos e impressos.
Outro fator importante destacado pelo museu é fato de ser único do seu gênero no
Brasil. O Museu Tipográfico do Pão de Santo Antônio traz, ainda, na sua concepção, uma
proposta museológica pautada, também, pelas questões do tempo presente. Depois de terem
passado por uma minuciosa restauração, os equipamentos remanescentes da antiga tipografia
foram reativados, dando origem a um novo jornal, desta vez, dedicado à memória da imprensa
tipográfica diamantinense. Assim, através de diferentes ações educativas e patrimoniais o
visitante tem a oportunidade de vivenciar o patrimônio gráfico em movimento.
2349
Figura 1: Início da visita ao Museu Tipográfico do Pão de Santo Antônio
O Museu ocupa duas salas amplas no prédio onde também funciona um asilo para
recolhimento de idosos. No início da visita foi apresentado um pequeno memorial sobre o
fundador do Asilo Pão de Santo Antônio e dos jornais Pão de Santo Antônio (1906-1936) e A
Voz de Diamantina (1936-atualmente), José Augusto Neves:
2350
Depois da apresentação – factual e pautada nos grandes feitos do fundador da
tipografia – realizada pelo funcionário do Museu, a visita foi iniciada. Foram apresentados
placas e objetos pertencentes à tipografia, contudo, sempre enfatizadas como coisas curiosas e
extraordinárias. Apresentar o Museu através de uma perspectiva positivista pode possibilitar o
apagamento da atuação de outros sujeitos, além disso, a história da instituição e seus
fundadores foram contadas linearmente, sem apresentar conflitos. O museu deve atuar como
um espaço social de construção de novos saberes, construção e ressignificação de memórias,
ou seja, um local de interesse e representação para a sua comunidade:
Ainda sobre a visita coordenada pelo responsável do Museu, salientamos que ela teve
um caráter técnico de demonstrar como as peças lá expostas eram utilizadas. Desta forma,
explicou-se o emprego daqueles objetos na produção dos jornais, o que tornou a visita longa
e, por horas, enfadonha. Na explicação eram utilizados muitos termos técnicos, o que
certamente provocou incompreensão, pois não são termos habituais e usados cotidianamente.
Nesse sentido, houve várias intervenções, e a solicitação ao guia histórico que fizesse
comparações com objetos do dia a dia para facilitar a compreensão dos alunos. As analogias
surgiram a partir de uma série de objetos encontrados no Museu que hoje, ressignificados e
remodelados, fazem parte do cotidiano, como as caixas de caracteres que podemos entender
como o teclado das máquinas de escrever e computadores; grampeadores; tintas e
principalmente a relação entre os modos de fazer a imprensa no século XX e automatização
do processo no tempo presente.
2351
A visita na primeira sala, como anunciado, terminou com a execução da impressora
que funcionou por quase um século naquela tipografia. É interessante ver num objeto um
“resquício” de um passado não tão distante, porém, conservada e ainda em funcionamento. A
impressora passou por um processo de restauração, contudo, torná-la “história viva” e
palpável foi uma grande experiência para os alunos.
2352
Ressaltamos aspectos importantes na visita ao Museu: na perspectiva do ensino de
História, “vestígios” do passado em diálogo com realidades e produções atuais possibilitaram
aos alunos a discussão sobre questões relacionadas à nossa atuação enquanto sujeitos sociais e
como produtores de conhecimento. Ao debatermos sobre a produção de dois jornais em
Diamantina, foi possível elucidar que através deles pode-se contar parte da trajetória da
cidade, sujeitos, grupos sociais, instituições, práticas sociais e culturais e outros.
Sobre as experiências proporcionadas pela produção e execução do projeto de
intervenção, e transpostas aqui na forma de narrativa científica, é importante destacar que o
projeto, em alguma medida, criou expectativas sobre sua execução: o tempo programado será
ser suficiente? Os alunos vão se interessar pelo tema? E se der algo errado, temos um “plano
B”? Enfim, todas essas dúvidas foram respondidas no momento em que se iniciou a execução
do projeto. A visita ao Museu exemplificou, tornou real e palpável a visão dos alunos sobre a
produção dos jornais em Diamantina, aqui tomados como fonte para a produção da História.
Sair pela cidade com os adolescentes diamantinenses e lhes apresentar aqueles
espaços, ao mesmo tempo em que foi marcante, também foi desafiador. Compreender que não
há sentimento de pertencimento à sua cidade naqueles jovens da periferia é verificar que há
limites entre o histórico, o patrimonial, o turístico e o simbólico na relação entre eles e os
vários espaços da [sua] cidade.
Considerações finais
O presente trabalho pretendeu investigar o lugar das fontes históricas e da produção do
conhecimento no ensino de História. Elegendo a imprensa e o museu como esses “lugares
privilegiados”, analisamos o episódio da visita dos alunos do ensino fundamental II da Escola
Estadual Professora Gabriela Neves ao Museu Tipografia Pão de Santo Antônio, ambos da
cidade de Diamantina, realizada no primeiro semestre de 2017. Partimos da ideia da
importância, no percurso de ensino-aprendizagem da disciplina de História, dos alunos terem
maior contato com experiências que os aproximem das realidades vivenciadas pela prática da
pesquisa histórica/historiográfica, e assim, sejam capazes de relacionar e construir
2353
criticamente o seu papel social na sua comunidade e enquanto produtor de “Histórias” e
conhecimento.
A trajetória do Museu Tipografia Pão de Santo Antônio foi um importante lócus nesse
sentido, pois, além de evidenciar a relevância da História e da memória da imprensa –
enquanto fonte histórica e também como vestígio histórico-social –, igualmente, salientou
como os sujeitos são participantes e produtores diretos de conhecimento histórico e também
da construção das sociedades e das suas histórias e memórias.
Nesse sentido, os museus não devem ser lidos apenas como receptáculos de objetos e
memórias do passado, mas também como locais de lazer e sociabilidades, (re)construção de
memórias, pertencimento e, também, como um espaço educativo:
O resultado do projeto foi positivo – ao menos alcançou seus objetivos – que foi, entre
outros, despertar o interesse dos alunos pela disciplina da História e o seu ensino através da
prática do labor histórico e, de modo igual, por meio do seu (re)conhecimento como produtor
de conhecimentos, ou seja, aquilo que esta “guardado” no Museu deve ser interpretado como
resultado das suas ações como sujeitos produtores de culturas e saberes diversos, como bem
apontou a historiadora Elizabeth Aparecida Duque Seabra:
As visitas [aos museus] podem trazer uma série de efeitos formativos para os
estudantes-visitantes, [como] desencadear afirmações sobre a identidade
profissional, verbalizar sentimentos e pensamentos sobre o pertencimento
2354
cultural ao tempo presente e estimular a reflexividade sobre o exercício da
escrita da história em museus (SEABRA, 2012, p. 162).
Referências Bibliográficas
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conversas sobre história e imprensa. Revista Projeto História, São Paulo, n. 35, dez. 2007.
2355
. (Org.). Escola e Museus: diálogos e práticas. Belo Horizonte: Secretaria de Estado de
Cultura; Superintendência de Museus; Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais;
Cefor, 2007.
SILVA, Kalina Vanderlei; SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de conceitos históricos. São
Paulo: Contexto, 2009.
2356
PÓS-VISITA AO MUSEU TIPOGRAFIA PÃO DE SANTO ANTÔNIO: O QUE
ACONTECE NA SALA DE AULA
Rhayane Santos*
Elizabeth Aparecida Duque Seabra*
Resumo: O trabalho apresenta uma reflexão sobre o uso pedagógico do Museu Tipografia Pão de
Santo Antônio, localizado na cidade de Diamantina, MG e que possui um acervo composto de uma
coleção de mais de quatro mil exemplares de jornais impressos, devidamente acondicionados e
disponíveis aos diversos públicos. É um espaço expositivo composto em torno da tipografia que
funcionou no mesmo local e produziu esses jornais entre a década de 1940 e 1990. Inicialmente é feita
uma descrição do Museu, seu acervo e das expectativas de visitação expressas pela própria instituição.
Descreve-se em seguida uma visita realizada com uma turma de estudantes da Educação Básica e, por
fim, analisa-se material interpretativo produzido pelos acadêmicos, o seu uso em sala de aula no pós-
visita e os resultados alcançados junto aos estudantes.
Palavras-chave: Museu Tipografia Pão de Santo Antônio; material didático; Educação histórica;
visita a museus; Diamantina.
Abstract: The proposed work presents a reflection on the pedagogical use of the Pão de Santo
Antônio typography museum, located in Diamantina (state of Minas Gerais, Brazil), which has a
collection composed of over four thousand copies of printed newspapers, properly conditioned and
available to the general public. The museum is also an expositive site constructed around the printing
press that took place on the same region and produced these newspapers on the decades between 1940
and 1990. Initially the museum, its collection and the visitation expectations expressed by the
institution are described. Secondly, a visit done by elementary school students is detailed and, finally,
we analyze the interpretive material produced by the academics, its use in the classroom after the visit
and the results achieved amongst the students.
Key-words: Museu Tipografia Pão de Santo Antônio; courseware; Historical education; museum
visits; Diamantina.
2357
Introdução
1
O Asilo do Pão de Santo Antônio possui capacidade para 44 internos. Atualmente abriga um total de 33 idosos
de ambos os sexos.
2358
Como apontado pelo guia do museu, recentemente abolida a escravidão, os libertos que não
tinham aonde residir e não tinha ninguém por eles vagavam pelas ruas da cidade e precisavam
ser vistos. E asilo atenderia essa população; só que era preciso contribuições financeiras e
apoio para realização do projeto assistencial. Com a invocação ao santo padroeiro aqueles que
idealizaram a obra do Pão construíram inicialmente treze casinhas, que até hoje abrigam
idosos e editaram um jornal entre 1940 a 1990. A oficina tipográfica teve como presidente o
escritor/jornalista José Augusto Neves, que entendia que os jornais iriam complementar a
renda para o Recolhimento dos Pobres.
2359
A invocação presente no catálogo é para que a visitação ao Museu se torne dinâmica; é
proposto que a participação da população ocorra. E, para isso ao final da exposição, se imita a
reprodução de jornais; é demonstrado o processo por onde o papel passou até tornar-se jornal.
Nesse espaço, também acontecem oficinas e ações educativas; por estar em bairro
considerado periférico, nota-se a importância de incorporar os moradores locais com a
preservação do patrimônio.
A visita ao Museu
Foi realizada uma visita ao Museu Tipografia Pão de Santo Antônio em junho de
2017, como projeto de intervenção de Estágio Supervisionado em História. O objetivo da
visitação era promover a educação histórica e incentivar a formação de consciência histórica2.
Foi escolhida uma turma de estudantes do 8º ano de uma escola pública localizada em um dos
2
A Educação histórica pode ser entendida como uma área de pesquisa que considera o ensino e a aprendizagem
histórica um campo de intervenção no qual ensino, didática e teoria da história estão correlacionados. São
representativos do campo a produção em diversas universidades brasileiras, na Europa, Canadá e Inglaterra.
2360
bairros fora do centro tombado pelo IPHAN e UNESCO. A escola atende crianças e jovens
em condições de vulnerabilidade econômica e social. Em trabalhos anteriores já havíamos
identificado que os próprios estudantes não se identificam como pertencentes ao centro
musealizado e se consideram distantes tanto do centro, quanto dos espaços entendidos como
culturais como os museus, teatro e biblioteca, também localizados fora de seu bairro. O foco
então foi desenvolver no pós-visita atividades voltadas à história local e o estudo de fontes
documentais consideradas vestígios para a história e ajudariam na ampliação do conceito de
História e patrimônio entre os estudantes.
Foram às visitas um total de 21 estudantes, entre 12 a 14 anos de idade, meninas e
meninos. Com supervisão de três estudantes estagiários do curso de licenciatura em história.
Foram caminhando da escola até o centro de Diamantina, o primeiro local de visita foi a
Biblioteca Antônio Torres, logo após o Mercado Municipal e, em seguida o Museu
Tipográfico. Ao serem perguntados se já haviam visitado a Biblioteca, ou o Museu
Tipográfico do Pão, a maioria desses estudantes afirmaram que nunca estiveram nesses locais.
Alguns apontaram ter estado no centro, mas não entraram nestes prédios.
A visita ao Museu Tipográfico Pão de Santo Antônio é mediada por um outro
estudante da UFVJM que é funcionário do Museu e obedece aos seguintes ambientes:
recepção, impressão e hemeroteca. Na recepção cada estudante assina seu nome em um livro
e anota a data de visitação. A área de impressão recria o espaço da antiga redação do jornal;
contêm ali retratos e objetos de José Augusto Neves, tinteiro e penas. No espaço central está a
impressora tipográfica E. Durand- WIBART; ao seu redor mesa de montagem da chapa
tipográfica, prelo de rosca, cavaletes, gavetas de tipos, prelo de provas, matrizes xilográficas e
clichês fotográficos ou reticulados, entre outros. Já a hemeroteca é área de acesso aos
documentos impressos, ou seja, os jornais produzidos.
Os estudantes ficaram admirados com a estátua de um menino com jornal debaixo do
braço, Zezé Neves, filho de José Augusto Neves. A princípio queriam fotografar junto à
estátua do menino, que está fixada próxima à entrada do Museu. Ficaram curiosos quanto ao
mito de relata o menino estar dentro da estrutura de barro. “É verdade que o menino está lá
2361
dentro?” O interesse pelo museu se iniciara nesse momento. Enquanto uns assinavam o livro,
outros tiravam fotografias com Zezé Neves.
Na apresentação, o mediador do museu relatou uma breve história sobre a construção
do conjunto dos prédios do Pão, a fundação do asilo, a biografia do fundador, e os objetos
utilizados por ele como penas e tintas; fotografias em que ele estava acompanhado de outras
figuras e “personagens de peso” que provavelmente também estavam nas fotografias. Depois,
demonstrou os objetos que eram usados na escrita dos jornais, como tipos de letras, prelo de
provas e gavetas de tipos; a impressora e, em seguida a hemeroteca. Aparentemente os
estudantes voltaram suas atenções para a parte onde se encontra a impressora; perguntavam
“isto é um motor” perguntavam. Ansiosos para que chegasse o momento no qual a impressora
fosse apresentada a eles; “essa roda é para girar? E se girar ela irá funcionar?”. Na hemeroteca
os estudantes chegaram a folear os jornais, arriscaram a ler um e outro trecho de artigos. A
apresentação dos objetos foi bastante descritiva; e, em alguma medida reproduzia as
informações dos textos do catálogo. Ao final da exposição, foi demonstrado como seria os
processos caso a impressora estivesse funcionando, explicou passo a passo dos processos até
o jornal ser reproduzido.
Figura 2: Visita ao Museu Tipografia Pão de Santo Antônio.
2362
Na fotografia acima os estudantes se posicionam ao redor de um prelo que fica na
entrada da exposição do Museu Tipografia do Pão de Santo Antônio.
Material Pedagógico
Colocou-se em prática o material, cuja elaboração foi pensada para uso em sala de aula
após a visita ao Museu Tipografia Pão de Santo Antônio. Esse material pedagógico, voltado
ao visitante escolar, foi elaborado por uma turma cursando a disciplina Ensino de História I,
do curso de história de uma UFVJM. A proposta da disciplina era que os estudantes
universitários produzissem recursos pedagógicos relacionados às temáticas voltados à
educação histórica.
Na elaboração do material seguiu-se um roteiro que incluiu: primeiro uma visita
presencial ao Museu e a problematização da visita com o objetivo de aprofundar os
conhecimentos adquiridos durante a visita. Analisou-se a relação entre o prédio (edifício) que
abriga a sede do museu e os demais espaços internos e externos que constituem o conjunto
arquitetônico do Pão de Santo Antônio (capela, jardins, praça, asilo e etc.). E, a partir desse
debate foi possível refletir sobre o tipo de acervo documental e museológico que está
disponível à consulta e visitação e quais suas possibilidades de uso no ensino de história
(quais temas, abordagens, metodologias) podem ser exploradas. Também, identificou-se a
partir dos objetos/acervo tipos de atividades que poderiam ser realizadas no museu e/ ou nas
escolas considerando questões relativas às práticas de memória e patrimônio, história local e
metodologias de pesquisa documental.
2363
Figura 3: Capa do Material Pedagógico.
O material elaborado tem por eixo o trabalho com os conceitos de conceitos de museu,
patrimônio, memória e documentos e se propõe a avaliar a proposta expositiva e o trabalho do
museu em relação à preservação, restauração e divulgação do seu acervo. Voltado para o uso
em turmas de estudantes de 11 a 14 anos de idade prevê um tempo de uso de duas horas aula.
Os objetivos específicos das atividades elaboradas são incentivar uma análise sobre o
trabalho do tipógrafo a partir dos objetos visualizados no museu e propiciar experiências de
pesquisa histórica aos estudantes. Com as atividades propostas pretende-se que com o
conteúdo programado seja tangível visualização da história através dos objetos do museu e
ocorra interpretação de fontes documentais e objetos do acervo do museu.
2364
apresentadas algumas perguntas ao estudante e pede-se que ele faça um desenho do objeto
que mais lhe chamou a atenção na visita.
A segunda atividade pede que se faça correção tipográfica de texto digitalizado do
Jornal Pão de Santo Antônio. Os estudantes deverão identificar as letras/ palavras que foram
alteradas e reescrever o texto. Após o novo texto é apresentado uma reflexão sobre o trabalho
do tipógrafo. A terceira questão está relacionada com a reprodução de alguns cabeçalhos e
trechos do Jornal Pão de Santo Antônio/Voz de Diamantina. É necessário leitura e
interpretação dos jornais. São apresentadas perguntas sobre o ano de publicação, local da
publicação e nome do jornal. Já a quarta atividade é um caça palavras com objetos do museu.
2365
Figura 4: Desenho do objeto que mais chamou a Figura 4: Desenho do objeto que mais chamou a
atenção no Museu atenção no Museu
Fonte: Desenho realizado por um estudante do 8º ano Fonte: Desenho de uma máquina impressora
Ensino Fundamental. realizado por um estudante do 8º ano Ensino
Fundamental.
2366
se para que respondessem de qual tipo de material o objeto é feito e como ele era utilizado. A
maioria das respostas contém informações a respeito de forma correta.
Outros objetos
Figura 6: Desenho do objeto que mais chamou a Figura 7: Desenho do objeto que mais chamou a
atenção no Museu atenção no Museu
Fonte: Desenho realizado por uma estudante do 8º Fonte: Desenho realizado por uma estudante do 8º
ano Ensino Fundamental. ano Ensino Fundamental.
2367
Por ser um objeto presente no dia a dia, pode-se inferir que, para os estudantes, esse
objeto destacado, por ser mais próximo dos mesmos, possibilita maior interpretação de
transformações e permanências do passar do tempo. A caneta torna-se fonte de análise, de
interpretação de períodos temporais distantes, e, com isso, o estudante pode identificar o
“viver de antigamente”. Por fim, percebe-se que o material usado como proposta avaliativa
demonstra que os estudantes que realizaram a visita ao museu foram capazes de resolver de
forma mais elaborada ou simples a atividade proposta em sala; o que não ocorreu de forma
semelhante por partes dos estudantes que se ausentaram na visita ao museu.
Considerações finais
O trabalho com o Museu Tipografia Pão de Antônio levou-nos a refletir sobre os
espaços de memória; seja os espaços que estão ao nosso redor e, que não percebemos a
importância sejam aqueles espaços musealizados da cidade. Cabe-nos questionar os usos
desses locais públicos abertos à visitação. Cabe observar como os jovens se apropriam destes
diferentes locais e como as visitas escolares podem modificar a visão do próprio lugar da
escola e da cidade.
Refletir sobre as práticas pedagógicas e as práticas de memória diárias considerando o
contexto e a realidade específica das instituições de ensino leva a se perguntar quem são os
alunos e por quais espaços eles costumam a andar e quais outros locais de aprendizagem são
possíveis.
Cada vez mais os professores se perguntam o que fazer para despertar o interesse do
aluno em sala. Pode ser que quando professores e estudantes compreenderem que só com um
projeto que considere a questão da cidadania e do direito ao uso dos locais patrimonializados
pode resultar em melhores condições para a educação escolar.
No museu não encontramos sempre respostas; nem a procuramos tanto. O que se torna
importante é perceber que o conhecimento é amplo e; são amplas as compreensões de
realidades econômicas, sociais e políticas. O debate historiográfico é importante? Sim. O livro
didático também é importante. Como também, produzir material didático também é uma
2368
alternativa real, depende do professor fazer e justificar suas escolhas. O mesmo que pode se
tornar real propostas de atividades que façam refletir o ser e estar do aluno; e melhor, o onde
ele pode chegar.
Referências bibliográficas
MATTOZZI, Ivo. Currículo de História e educação para o patrimônio. Educ. rev. [online].
2008, n.47, pp. 135-155. ISSN 0102-4698. Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_serial&pid=0102-
0188&nrm=iso&rep=&lng=pt>. Acesso em 17, ago 2017.
UTSCH, Ana. Museu Tipografia Pão de Sto. Antônio: patrimônio gráfico entre ação e
preservação. Diamantina, MG: Associação do Pão de Santo Antônio, 2015.
2369
VISITANTES E MUSEALIZAÇÃO: NARRATIVAS VISUAIS DE VISITAS À
DIAMANTINA
Abstract: The present work is part of a developing project done by the group PIBID-HISTÓRIA-
UFVJM at the public schools of Diamantina (MG, Brazil). The main goal of the project is to develop
educational acts of heritage interpretation and to evaluate the appropriations done by students of this
preserved heritage. In this presentation, we analyse a visit done with middle school students through
the historical centre of Diamantina city as well as the consequential activities in the classroom, such as
the reflection about heritage, historical learning and the local history. Two methods were used to
evaluate the visit: a questionnaire and the production of postcards, done by the visitors themselves.
2370
Introdução
O projeto é o resultado da parceria entre a Universidade Federal dos Vales do
Jequitinhonha e Mucuri - UFVJM e Capes através do Programa Institucional de Bolsa de
Iniciação à Docência (Pibid) da área de História, que atua em escolas de ensino fundamental e
médio na cidade de Diamantina.
O trabalho tem por objetivo levar os estudantes das escolas nas quais o programa atua
para visitas ao chamado centro histórico da cidade, realizou-se assim uma visita mediada
pelos bolsistas do PIBID do bairro Bela Vista até o centro, percorrendo os principais pontos
de referência turística passando pela Casa da Glória, onde funciona o Centro de Geologia
Eschwege, ligado ao Instituto de Geociências da UFMG, pelo prédio do Campus I da
UFVJM, pelo Hotel Tijuco, um dos prédios projetos pelo arquiteto Oscar Niemeyer, pelo
Museu do Diamante, pelo Mercado Velho que um local onde ocorre eventos culturais e feiras
artesanais e na Biblioteca Antônio Torres.
O cortejo pelo centro histórico de Diamantina foi realizado com uma turma do 8 º ano
da Escola Estadual Maria Augusta Caldeira Brant, totalizando vinte e oito estudantes
acompanhados por sete pibidianos, uma professora da escola e a coordenadora do Pibid-
História. Ao longo do percurso foram dadas explicações acerca dos prédios e lugares que
compõem o circuito do tombamento. Muitos dos estudantes não sabiam ao certo a história e
os usos dos espaços presentes na caminhada, por isso, foi elaborado com antecedência um
roteiro para explicar cada ponto durante a passagem. Acostumados com a rotina de sala de
aula, ou mesmo não estando presentes nesses ambientes, a maioria dos estudantes não sabiam
dizer a funcionalidade desses locais.
2371
Figura 1: Mapa do centro de Diamantina
Fonte: Folheto disponibilizado pelo Centro de Informação Turística da prefeitura de Diamantina. Diamantina,
2017.
O Mapa acima foi utilizado na preparação para a caminhada. O mapa que é distribuído
pelo Centro de informação ao turista da cidade e indica os principais pontos do centro
histórico que estão dentro do perímetro de tombamento da Unesco, como Patrimônio Cultural
da Humanidade. Foram distribuídas cópias para os estudantes e feita a leitura conjunta, em
sala de aula, antes da saída a campo.
O projeto visava ampliar a visão acerca dos espaços de memória, monumentos e o
vasto casario musealizado, contribuindo com o ensino da história local e fazendo uso dos
monumentos, construções que remetem ao passando e que são fontes históricas, através deles
são possíveis explanar sobre a história do antigo Tijuco.
2372
Figura 2: Saída da escola Bairro Bela Vista
A saída da escola foi precedida de uma explicação sobre os lugares a serem visitados e
um pequeno exercício de alongamento para preparar para a caminhada. O deslocamento foi
feito a pé e o dia estava frio e chuvoso.
A cidade ao fundo parecia exercer nesse momento da descida um papel educativo, a
escola sendo a base e os estudantes se tornando uma espécie de conectores entre as praticas
tradicionais escolares e as práticas urbanas dessa forma
A vivência da cidade pode propiciar uma educação dos sentidos por meio da
ampliação das experiências dos estudantes, proporcionando, inclusive, re-
significação da experiência formativa vivenciada dentro do espaço escolar. A
cidade passa a ser local privilegiado para uma “educação do olhar e do sentir” com
os sentidos, perceber através dos sentidos. Há, assim, expansão da noção de
território educativo, o que faz ruir fronteiras dos muros, portões, grades e cercas,
introduzindo a escola na cidade e a cidade na escola, compondo cenário educador
mais integrado, num universo expansível de partilhas. (BERNARDI; PEREIRA,
2013, p. 290)
2373
patrimônio, insistindo em tomar a cidade como um lugar para todos e indicar no processo de
formação dos professores essa possibilidade de diálogo com a cidade.
A Casa da Glória foi o primeiro lugar da parada na caminhada. A recepção foi
realizada pelos funcionários da instituição, onde foi exibido um vídeo contando a história do
edifício e de suas funções ao longo dos séculos XVIII ao XXI. Sendo que um dos principais
usos foi abrigar o Colégio Nossa Senhora das Dores, um internato religioso para meninas, e
posteriormente, nos anos de 1970, chegou a ser a sede da própria escola estadual na qual
estudam.
2374
Percorremos as exposições do segundo andar e atravessamos o Passadiço, um dos
símbolos de Diamantina, que dá acesso ao outro lado do prédio. Os estudantes nunca haviam
percorrido o interior da Casa. Visitamos também a área externa, um extenso quintal com
frutas e área de hospedagem.
Em seguida passamos pelo campus I da Universidade Federal dos Vales do
Jequitinhonha e Mucuri - UFVJM, onde apresentamos aos estudantes parte da própria e os
cursos que funcionam nessa nesse espaço e a biblioteca.
2375
Figura 6: Visita ao Hotel Tijuco.
O Hotel do Tijuco foi outro local visitado. Antes da entrada propriamente dita foi
comentado com os estudantes sobre alguns aspectos gerais da arquitetura de Oscar Niemeyer
e sua importância no diálogo com a arquitetura chamada colonial. Existem outros prédios de
Niemeyer na cidade como o próprio Campus I, a escola Júlia Kubitschek e a Praça de
Esportes. Falou-se também da ligação do arquiteto com Juscelino Kubitschek em outros
projetos como a construção do conjunto arquitetônico da Pampulha, em Belo Horizonte e de
Brasília, quando o estadista era governador de Minas Gerais e depois presidente da república.
Mesmo sendo o edifício particular em uso por hospedes tivemos a possibilidade de percorrer
desde a cozinha até os corredores dos quartos do andar superior.
2376
Figura 7: Prédio da antiga Escola Normal
2377
Figura 8: Igreja São Francisco.
A partir da visão da escadaria da igreja foi feita também a leitura de um plano mais
elevado da cidade com a vista para a Serra dos Cristais e o casario central. Descemos em
direção ao Mercado Velho para uma pausa para o lanche antes das visitas a Biblioteca
Antônio Torres e ao Museu do Diamante que já estavam agendadas.
2378
O chamado Mercado Velho fica na Praça Barão de Guaicui. O local que era uma das
principais referências para o abastecimento da região por meio de tropas nos séculos XIX,
hoje é um ponto de encontro nos finais de semana. Na praça ocorrem shows e outros eventos
do calendário religioso, festas juninas, feiras de produtores agrícolas e de artesanato aos
domingos. O prédio que abriga o Mercado e o conjunto arquitetônico ao redor foi recuperado
numa ação para candidatura da cidade à Patrimônio da Humanidade em 1999.
Os estudantes levaram seus próprios lanches e alguns socializaram com os colegas em
pequenos grupos enquanto aproveitavam para tecer alguns comentários sobre as visitas.
Outros se mantiveram alheios, ou isolados; outros ainda conversavam com os bolsistas sob
assuntos variados como a morte, a sexualidade e as diferenças entre eles.
A visita seguinte foi à Biblioteca Antônio Torres, ou Casa do Muxârabiê, uma das
instituições mais visitadas em Diamantina por pesquisadores. Segundo as informações obtidas
durante a visita o edifício foi construído na segunda metade do século dezoito e possui
influências da arquitetura árabe. Foi doado à União em 1942 e em 1950 foi tombado pelo
IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional).
O prédio no qual está localizada a Biblioteca, no centro de Diamantina, é considerado
uma construção singular do chamado período colonial mineiro. Uma das estudantes que toca
na banda de música mirim da cidade e se apresenta na Vesperata, um evento que se tornou
atração turística após o tombamento, falou que tem acesso a uma das sacadas próximas à
biblioteca e identificou o balcão de procedência mourisca fechado com treliças de maneira e
que se projeta, no segundo andar do edifício, para a rua juntamente com duas outras sacadas
em madeira. O prédio possui ainda uma estrutura interna em torno de um pátio contornado
por varada e pequenos cômodos nos quais estão acomodados o acervo documental da
biblioteca.
2379
Figura 10: Visita ao interior da Biblioteca Antônio Torres.
2380
Figura 9: Interior da Biblioteca Antônio Torres.
Nesse espaço os estudantes puderam ter contanto com uma casa que traz resquícios do
período escravagista, com um espaço preservado aos escravos, a senzala, e ao mesmo tempo
uma biblioteca de valor documental inestimável.
Terminando o percurso pelo centro, concluímos com a visita ao Museu do Diamante.
Os estudantes foram divididos em dois grupos e conduzidos pelos espaços expositivos com
uma narrativa que destacava determinados objetos e unificava o conjunto de objetos em torno
de uma temática. Assim, uma sala era destacado o diamante, outra peças da religiosa católica,
da escravidão, mais peças e cenários do interior de moradias como quarto e sala de música.
Cabe registrar que esse tipo de mediação e o próprio acervo já foi objeto de reflexão em
outras atividades do projeto.
2381
Figura 10: Entrada no Museu do Diamante.
A reflexão sobre as relações entre museus e visitantes nem sempre é pautada pela
preocupação com o entendimento do papel social de ambos os atores. Nessa visita ao Museu
do Diamante podemos mais uma vez identificar a negociação dos sentidos de uso derivados
das situações e do ponto de vista dos visitantes. Isso acontece no tipo de perguntas que fazem
diante dos objetos e no pós-visita quando podem discutir mais e apresentar o que coletaram
durante as visitas.
2382
Figura 11: Visita ao Museu do Diamante
2383
Considerações finais: pós-visita
2384
Referências
BERNARDI, Andréia Menezes de, PEREIRA, Júnia Sales. Partilha da cidade nos territórios
educativos: a escola entre sensibilidade e expansão. In: MIRANDA, S. R.; SIMAN, L. M. C.
Cidade, memória e educação. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2013. p. 59-92.
MATTOZZI, Ivo. Currículo de História e educação para o patrimônio. Educ. rev. [online].
2008, n.47, pp. 135-155. ISSN 0102-4698. Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_serial&pid=0102-
0188&nrm=iso&rep=&lng=pt>. Acesso em 17 ago. 2017.
2385
OS INSTRUMENTOS DE TRABALHO DO NEGRO NO MUSEU HOMEM DO
NORDESTE
Resumo: A presente pesquisa busca entender a associação dos instrumentos de trabalho relacionado
ao defeito mecânico e, ao personagem negro, ao visitar o Museu Homem do Nordeste - MUHNE,
problematizando o processo historiográfico de trabalho negro pelos instrumentos exposto no museu e
ampliando as discussões sobre os processos de fabricação das representações sociais e das memórias
de segregações raciais, presentes no Brasil e na cidade do Recife, por causa de 358 anos de escravidão
institucionalizada entre os anos de 1530 a 1888 na história da escravidão do Brasil e as novas
continuidades de trabalhos análogos a escravos na pós abolição, ao analisar alguns instrumentos de
trabalhos da cozinha da produção do açúcar, a bacia de barbear, a caixa de sorvete, a máquina para
fazer algodão doce, a máquina de amolar faca, a máquina de lambe lambe, a tábua de pirulitos, a caixa
de cavaquinho, o triângulo, o tabuleiro de doce japonês, tampa do tabuleiro, a mesa, equipamentos
associativos à figura do trabalho mecânico negro oriunda da tensão social entre: branco e negro,
senhor e escravo, casa grande e senzala, relacionados a uma produção historiográfica da cultura
material e da memória regional-local nas relações de poder presentes nesse processo. Não obstante,
iremos introduzir apenas três instrumentos associativos ao negro do MUHNE, a saber: a máquina de
amolar facas, a cozinha da produção do açúcar; e a máquina para fazer algodão doce.
2386
Abstract: The present research seeks to understand the association of the instruments of work related
to the mechanical defect and, to the black personage, when visiting the Museum Man of the Northeast
- MUHNE, problematizing the historiographic process of black work by the instruments exposed in
the museum and expanding the discussions on the processes Of social representations and memories of
racial segregation, present in Brazil and in the city of Recife, because of 358 years of institutionalized
slavery between the years 1530 and 1888 in the history of Brazilian slavery and the new continuities
of similar works to Slaves in the post-abolition, when analyzing some instruments of kitchen work of
sugar production, shaving basin, ice cream box, cotton candy making machine, knife grinding
machine, lambe licking machine, ironing board Lollipops, ukulele box, triangle, Japanese candy tray,
board lid, table, equipment And black and white, lord and slave, large house and senzala, related to a
historiographic production of material culture and regional-local memory in the relations of power
present in this process. Nevertheless, we will introduce only three associative instruments to the Negro
of MUHNE, namely: the grinding machine knives, the sugar production kitchen; And the machine to
make cotton candy.
2387
Introdução
Este trabalho tem por objetivo geral analisar os instrumentos de trabalho mecânicos
associados a figura do negro e seu defeito mecânico (GUEDES, 2006, p, 379-380), no Museu
Homem do Nordeste - MUHNE, como um processo historiográfico na perspectiva da cultural
material, considerando a reprodução da tensão social entre senhor e escravo na memória
regional e local, a parti, da finalidade comunicativa e as reverberações socioespaciais dos
objetos patrimoniais musealizados, apontando algumas ponderações sobre “elementos que
orientam o uso dos museus no ensino de história” (PACHECO, 2012, p, 63).
Não obstante, “cabe ao museu ampliar a sua consciência quanto ao direito básico de
cada cidadão no processo da cultura e, no que concerne o seu compromisso institucional, no
processo da cultura material” (CURY, 2013, p, 26).
2388
A intencionalidade comunicativa para Meneses (2000, p. 94) é ação revestida de
criticidade, onde deve estar afinado com os “princípios essenciais e elementares, distanciando
educação de transmissão, indução, paternalismos, autoritarismos, boas intenções e apelos
outros diversos” (Apud: CURY, 2013, p, 14).
De acordo com Durkheim (1978, p, 82) temos na divisão do trabalho uma perspectiva
mais alargada, isto é, uma perspectiva da solidariedade mecânica e solidariedade orgânica, do
nosso ponto de vista, carregada de intencionalidade e discriminações sociais e raciais, onde
necessariamente inclui o trabalho negro e seus instrumentos de trabalho na escravidão e pós
abolição.
A Cultura Material, grosso modo, seria todo objeto que é manipulado e construído
pelo homem, tratado no sentido simbólico e de uso, tendo várias representações sociais em
determinados tempos espaciais.
2389
sobretudo do artefato, que é apenas um dos componentes - dos mais
importantes, sem dúvida - da cultura material (MENEZES, 1988, p, 100).
Conforme o IPHAN (2000, p, 29) a cultura material refere-se a bens imóveis e bens
móveis, sendo a vertente mais consolidada nas políticas de patrimônio.
Para Agier (2001, p, 22) os objetos patrimoniais musealizados possui uma tenção entre
a identidade e a cultura, sendo um paradóxoco e problemática que é o contrário da
transparência suposta pelo qualificativo de “identidade cultural”:
2390
uma produção historiográfica da cultura material e da memória regional-local nas relações de
poder presentes nesse processo, consequentemente, não estando na memória popular a
associação do negro com trabalhos tidos como complexos e orgânicos como medicina,
advocacia e engenharia dentre outros.
Em diálogo com Durkheim (1978, p, 82) entendemos que a memória e as expressões
culturais da cultura material nas peças do museu sobre os instrumentos de trabalho do negro
possuem diferenças, no entanto, o sistema escravista e pós abolicionista, na perspectiva da
memória e da cultura material, se mesclaram dentro de uma sociedade de trabalhadores onde
“estas duas solidariedades não passam de uma só. São duas faces de uma única realidade..."
(DURKHEIM, 1978, 82).
Para Cury, a organização das salas temáticas de um museu e a localização de suas
peças e objeto patrimonial musealizado são pedagogicamente orientados visando a formação
de uma cidadania e solidariedade, pois “o museu é um meio de comunicação comprometido
com a qualidade de comunicação, ou seja, com a capacidade de despertar a consciência,
estimular questionamentos e pensamentos críticos” (CURY, 2013, p, 13).
Nos parâmetros da comunicação museológica, a máquina de amolar facas, a cozinha
da produção do açúcar; e a máquina para fazer algodão doce para os visitantes do museu, faz
a memória retomar o pensamento que o trabalhador negro afrodescendente está relacionado
ao trabalho social de serviços gerais e do trabalho informal.
Concordamos com Cury, pois existe uma práxis comunicativa no Museu Homem do
Nordeste realista quanto a situação social dos trabalhadores negros da época indica pela
cultura material, mas, ao mesmo tempo, existe uma mensagem pejorativa ao apontar a
segregação racial e a discriminação do trabalhador negro, onde mesmo a pós abolição da
escravatura existem trabalhos análogos a escravidão, bem como, a discriminação profissional
de negros que saem desses parâmetros da comunicação musealizado de que o tipo de trabalho
do negro é predominantemente penoso e braçal (CURY, 2013, p, 17-18).
Ao buscar compreender que o tipo de trabalho do negro, assim como, as continuidades
e descontinuidades dessa memória racista na perspectiva da Museologia, assim como,
2391
reflexões sobre a práticas de memórias e a História Social e Cultural, podemos ampliar as
noções e discussões sobre os instrumentos de trabalho do negro em cada objeto patrimonial
musealizado, propondo outras possibilidades de análises.
Embora isso possa ser considerado para alguns museólogos e historiadores como algo
em segundo plano, deve se configurar como um grande desafio empírico para a compreensão
das potencialidades de aprendizagens nos museus com finalidade em discutir a relação cultura
material e memória em museus e as memórias relacionadas por disputas simbólicas. Isso
porque nos ajuda a analisar as continuidades e descontinuidades da produção da memória e o
papel educador e comunicativo do museu na formação da cidadania.
Nesse sentido, a visão do museólogo e o historiador devem estar sempre se colocando
em perspectiva, porque refletir um objeto patrimonial musealizado e as memórias coletivas
em diferentes contextos e fazer uma história dos poderes simbólicos em meio aos períodos
que são marcos historiográficos ainda são trabalhos bastante desafiadores. No entanto, temas
como este estão presentes nas discussões envolvendo as aprendizagens sensíveis no uso
pedagógico dos museus, tanto a memória regional relacionada ao museu, como a cultura
material e a memória local.
Assim, comprovamos a relevância científica da pesquisa ao atrelar essas dinâmicas da
memória e da historiografia na perspectiva da Cultura Material, a partir dos diferentes
processos temporais dos discursos políticos sobre o objeto patrimonial musealizado acerca
dos instrumentos de trabalho do negro, relacionando-as com o resgate dos debates polêmicos
que envolvem a relação apropriação-ressignificação, entre as tensões, por exemplo, mas não
somente, do senhor e escravo, negro e branco, casa grande e senzala, orla e favela. Onde
nessas relações “sem dúvida, o racismo adicionou um tom perverso” (THOMPSON, 1998, p,
366).
Com base nisso, e agrupando toda essa relevância da cultura material para a História,
esta pesquisa buscará tecer algumas ponderações aos questionamentos iniciais propostos,
dialogando sobre a comunicação museológica e os equipamentos de trabalho do negro
legitimados no exercício do defeito mecânico como formas de discursos.
2392
Os equipamentos de trabalho do negro como formas de discursos
Os equipamentos de trabalho do negro como formas de discursos consideram que
existe um contexto onde a educação patrimonial é importante para a memória e a história no
processo de comunicação e formação da cidadania.
Isso no sentido positivo, no entanto, como discurso um objeto patrimonial
musealizado também pode ser usado como instrumentos reacionários, legitimação do domínio
socioespacial e manipulação de pessoas.
Ao considerar que nenhum discurso patrimonial é neutro, partimos para o
entendimento que também nenhum objeto patrimonial está fora de sintonia com as
intencionalidades do museólogo.
Nesse sentido, o trajeto de cada objeto patrimonial musealizado relacionado ao
instrumento de trabalho do negro deve ser considerado como maneiras de educar e
desenvolver discursos, mas para isso, devemos entender o que realmente está por traz dos
discursos, isto é:
[...] a articulação entre o ato que propõe e a sociedade que reflete; o corte,
constantemente questionado, entre um presente e um passado; o duplo
estatuto de um objeto, que é um "efeito do real" no texto e o não-dito
implicado pelo fechamento do discurso (CERTEAU, 1982, p, 54).
2393
O primeiro objeto patrimonial musealizado exposto no museu do Nordeste que
analisaremos dentre os equipamentos de trabalho do negro como discursos intrínsecos na
perspectiva da cultura material é o afiador ou amolador de facas.
O afiador na historiografia é um instrumento de trabalho que retoma em princípio as
atividades dos homens Sapiens, onde utilizavam as rochas mais resistentes para a afinação de
lanças e ouras rochas. Nesse sentido, não se associa diretamente ao trabalho mecânico do
negro, mas de um utensílio rudimentar que nessa periodização se assemelhava o que
chamamos de pedra de amolar e afiador ou amolador de facas e tesouras.
3
MAQUINA DE AMOLAR FACAS. Registro: 88.17.1. Autor: JOSE ANTONIO DA COSTA FILHO. Origem:
RECIFE PERNAMBUCO. Class.: CIÊNCIA, TECNOLOGIA, MAQUINARIA. Técnica: MARCENARIA,
SOLDAGEM Material: MADEIRA, FLANDRE, COURO Localização: EXPOSICAO, ANTROPOLOGIA -
MODULO A - BASE 18. Aquisição: (19/07/88).
2394
associação oriunda dessa memória segregadorizante, ao nosso ver, vários fazeres
historiográficos e usos pedagógicos dos museus muitas vezes colocam o continente africano
numa generalização como uma região exclusivamente de negros pobres e “inferiores”.
Na escravização institucionalizada a partir de 1530 até 1888, a américa portuguesa
realmente importava escravos negros em sua predominância, porém, também vinham
escravos muçulmanos não negros da África e escravos de outras culturas, como no caso do
escravo muçulmano Rufino que teve sua trajetória de vida na Bahia, Porto Alegre, Rio de
Janeiro e Recife (REIS, 2010, p, 9-12).
A cozinha da produção do açúcar, possui vários objetos patrimoniais musealizados,
dentre eles, instrumentos de trabalho do negro como peças como colheres com cabos longos
utilizadas pelo responsável do caldeirão, artes artesanais sobre a produção açucareira, quadros
que expõem um panorama geral da produção do açúcar pelo trabalho escravo. Assim como,
existe a exposição das fôrmas de pão de açúcar, para formar os blocos de açúcar em formato
de cone. E os instrumentos da produção do caldo grosso de açúcar, com várias bacias de ferro
e um grande caldeirão, seguido de uma foto para ser comparado em justaposição.
Esses utensílios sobre a produção do açúcar expostos no museu possuem veracidade
histórica, pois de fato representam os instrumentos de trabalho do período, de acordo com a
memória e a historiografia. Porém, especificamente no MUHNE a distribuições de três
momentos e salas diferentes, dificulta ao nosso ver, muito o ensino de história, e não existe
nenhum recurso áudio visual pera melhorar o ambiente. E nenhuma interação criativa do tema
histórico com o público visitante que potencializam a aprendizagem sensível da cultura.
Nesse sentido, a cozinha de produção de açúcar claramente mostra o tipo de trabalho
mecânico dos negros escravizados na américa portuguesa, especialmente no Recife, passando
uma mensagem de exploração de trabalho, sofrimento e abuso que na realidade era o que
estava acontecendo, porém, do nosso ponto de vista, o ensino museológico dessa sala temática
no NUHNE enriqueceu a problemática antropológica do museu e de seu papel de formação de
esclarecimento social, assim como, da preocupação do que, na perspectiva do discurso do
2395
patrimônio musealizado, faz uma discriminação do trabalho do negro, um discurso de
manutenção da dominação da casa grande sobre a senzala, até nos tempos hodiernos.
Para Cury, à crítica que se faz aos museus como “lugar de coisa velha”, monótono e,
chato, está associada à sua comunicação, onde na cozinha da produção do açúcar essa
mensagem traz um discurso que esquivar-se do problema ou distanciar-se do que seria a
problemática do museu e seu papel social” (CURY, 2013, p, 14).
O público agrega valor à sinergia não com a sua presença, mas com a sua
contribuição em torno da discussão sobre o significado do patrimônio
cultural. Assim, a comunicação não é o fim e tampouco o começo da
curadoria e sim possibilidade de participação dos sujeitos do museu -
profissionais e público - na dinâmica da cultura material. Há com esta
concepção uma mudança institucional substancial que compreende: (1)
como o museu se pensa e se organiza? (2) como o museu conceitua o
público? (3) como o público participa efetivamente na sinergia? (CURY,
2013, p, 17-18).
2396
constituída por um recipiente na forma de uma bacia e com um cilindro giratório no centro,
dentro do qual é colocado o açúcar”4.
Nas entrelinhas dos discursos analisados até agora, retomamos ao contexto onde a
educação patrimonial é importante para a formação da cidadania mais democrática e menos
reacionária.
4
A Origem das Coisas. Disponível em: http://origemdascoisas.com/a-origem-do-algodao-doce/ . Acessado em:
28.06.2017.
5
MAQUINA PARA FAZER ALGODAO DOCE. Registro: 81.30.1. Autor: NAO IDENTIFICADO Marca:
SEM MARCA. Origem: RECIFE, PERNAMBUCO. Material: MADEIRA, FLANDRE. Localização:
EXPOSICAO: ANTROPOLOGIA - MODULO A - BASE 16. Aquisição: COMPRA Procedência: MARLINDO
ANTONIO DE LIMA. Conservação: BOM. Valor: 00023000CR$. Dimensões: 76X166X59 CM. (ABERTA)-
140X166X59 CM. (FECHADA).
2397
A “máquina para fazer algodão doce” do MUHNE se integra a sala temática dos
instrumentos de trabalhos associativos ao negro e seu trabalho mecânico, porém leva em
consideração uma “evolução” na diversificação do trabalho, onde o negro ainda é mantido
como uma forma de trabalho inferiorizada.
Percebemos ainda que essa “máquina para fazer algodão doce” na sua localização no
MUHNE se encontra entre três subdivisões dessa sala temática dificultando sua real
contextualização para os olhares menos técnicos e apurados.
Pode se dizer até para fins de propostas na comunicação do MUHNE dessa sala
temática, que existe até mesmo o certo anacronismo nesse objeto patrimonial musealizado em
relação a temporalidade mais moderna em comparação com a cozinha da produção do açúcar,
devido a sua localização e falta de adequação com os outros instrumentos de trabalhos
associativos ao negro e seu defeito mecânico expostos nessa sala temática. No entanto, se
encontra contextualizado com as intencionalidades antropológicas e sociológicas do MUHNE,
influênciada pelo seu fundador Gilberto Freyre em 1979.
Não obstante, é necessário não igualarmos como sinônimos os três discursos oriundos
dos objetos patrimoniais musealizados, pois na perspectiva da cultura material os discursos
são dinâmicos e marcados no tempo e espaço.
Propomos uma análise mais ampla para os equipamentos de trabalho do negro como
discursos, pois essa questão ainda é passiva de pesquisa. Indicando como auxílios teóricos e
metodológicos os autores Poulot (2013); Chuva (2008); Cury (2013); Galvão (2011);
2398
Gonçalves (2003); Silvania Sousa do Nascimento (2013); Meneses (2000); Scheiner (2003);
Nora (1981); Oliveira (2008) e Pacheco (2010; 2012) na área de museu-comunicação, museu-
escola e museu e história. Assim como, as abordagens da Análise do Discuso (AD), a Escola
dos Annales - Lucien Febvre e Marc Bloch, tendo a noção de história e memória, e memórias
coletivas em Le Goff (1990) e Halbwachs (2003) respectivamente, e, a questão do mito em
Miguel (2000) e a noção de identidade, sujeito e sujeito sociológico com Hall (2000).
2399
produz o sujeito pós-moderno, conceptualizado como não tendo uma
identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-se uma
“celebração móvel”: formada e transformada continuamente em relação às
formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas
culturais que nos rodeiam (Hall, 1987). E definida historicamente, e não
biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes
momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente.
Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes
direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente
deslocadas. Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o
nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cômoda estória
sobre nós mesmos ou uma confortadora “narrativa do eu” (veja Hall, 1990).
A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma
fantasia. Ao invés disso, à medida em que os sistemas de significação e
representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma
multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com
cada uma das quais poderíamos nos identificar — ao menos
temporariamente (HALL, 2000, p, 11-13).
É importante lembrarmos que essas referências são propostas de acordo com nosso
estudo empírico que necessariamente não são absolutos, mas servem como pontos de partidas
iniciais.
Nesse sentido, consideramos que faz toda a diferença o entendimento da realidade que
todo argumento não é inocente, pelo contrário, o discurso é carregado de emblemas e
intencionalidades que, paulatinamente, fazem “referência a um conteúdo sociopolítico que
identifica uma forma social de ser e de existir historicamente” (NEVES, 2012, p, 7).
Considerações Finais
É muito difícil pensar até para fins de pesquisa em uma desarticulação do museu com
sua função de ensino, comunicação, salvaguardo uma vez que todas essas apropriações e
ressignificações fazem parte da memória coletiva do objeto patrimonial musealizado, seja
negativa ou positiva, mito ou verdade, onde a história cultural e a cultura material servem
também, mas não somente, para esclarecer os equívocos museológicos e historiográficos.
2400
As discussões encontradas nos instrumentos de trabalho mecânicos associados a figura
do negro, no Museu Homem do Nordeste, como um processo historiográfico na perspectiva
da cultural material demonstram que o tipo de trabalho do negro associado na memória é de
trabalho inferior, por uma associação aos trabalhos penosos dos escravos caracterizado como
um trabalho de nenhuma ou pouca rentabilidade financeira.
Propomos um fazer historiográfico mais apurado, numa busca na ampliação das
discussões a comunicação dos museus e os objetos patrimoniais musealizados como os
instrumentos de trabalho associados ao trabalho negro. Onde estão inseridos no fazer
historiográfico sobre a cultura material, direto ou indiretamente os discursos de classes,
direitos sociais, etnia, escravidão, abolição, pós-abolição, nacionalidade, relações de poder,
ações políticas de Estado, movimentos sociais, economia, na atual sociabilidade brasileira.
Enfim, os instrumentos de trabalhos do negro expostos no MUHNE possuem uma
extensão temporal que é a mão de obra negra, a nova escravidão nas representações sociais e
continuidades pós abolicionistas, por exemplo, o barbeiro de rua que foi apresentado como
futuro alvo de pesquisa, por questão de espaço não discutimos, mas gostaríamos de finalizar
com algumas considerações, era uma peça do século XIX, do negro em geral e do escravo de
ganho, onde mostram a forma de escravidão daqueles que manipulam esses instrumentos,
intrinsecamente, revelando uma “divisão” de trabalho precária na escravidão, que continua
sendo precária, discussão, do nosso ponto de vista, carregada de simbolismo.
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2403
SCHEINER, Tereza C. Comunicação - educação - exposição: novos saberes, novos sentidos.
Semiosfera. RJ: UFRJ, v.4-5. 2003.
2404
SUBJETIVIDADES E CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS NA EXPERIÊNCIA DE
USO EDUCATIVO DO MUSEU DE ARTES E OFÍCIOS
Resumo: Nesse texto apresento as relações subjetivas de professores com a exposição do Museu de
Artes e Ofícios em Belo Horizonte. Entendo o museu como um cenário que proporciona experiências
interferentes nos saberes que os professores mobilizam para ensinar história. Apresentamos o museu
como processo e não como um produto, como fenômeno em constante transformação nas relações que
estabelece na sociedade. Esse museu é formativo e os saberes adquiridos na relação com a exposição
são mobilizados nas escolas ampliando o currículo, gerando um conhecimento histórico original, que
está longe de ser uma simplificação da história de corte acadêmico.
Abstract: In this text I discuss the subjective relations between teachers and the Arts and Crafts
Museum’s exposition, in Belo Horizonte. The museum is seen as a setting that provides interfering
experiences on the knowledge gathered by educators in order to teach history. As opposed to a
product, the museum is presented as a process, a phenomenon in constant transformation amongst the
relations it establishes on society. This museum is formative and the knowledge acquired at the
exposition is mobilized in schools broadening the curriculum, which creates an original historical
knowledge that is far from being a simplification of the academy cut on history.
2405
Introdução
Esse texto é parte de minha tese de doutorado que têm como tema principal as
experiências sensíveis dos professores de história no Museu de Artes e Ofícios, Belo
Horizonte, MG. Na tese, analisamos experiências de uso pedagógico do museu e as relações
subjetivas que os docentes estabelecem com a exposição. Os professores vivem experiências
em situação de trabalho, no usufruto cultural, nos ambientes familiares, partidos políticos,
sindicatos, associações de bairro e instituições religiosas. Estas experiências adquiridas são
interferentes nos saberes que mobilizam para ensinar.
Segundo Tardif (2011), o saber dos professores é individual ao mesmo tempo que é
social, uma vez que resulta de experiências individuais e das confrontações que ocorrem na
sociedade. A condição docente é da ordem do humano e, como tal, nas relações que
estabelece com o outro ocorrem tensões, conflitos e também partilhas, trocas, interações
diversas expressas em seu modo de conceber a educação e de dar sentido à sua profissão.
2406
acervo do museu. Por se tratar de uma instituição que propõe uma visualização da história por
meio de objetos tridimensionais, a experiência sensível depende do contato visual com as
exposições dos museus. Pelo contato visual, os sujeitos elaboram percepções baseadas em
suas experiências e constroem uma narrativa empática.
Os museus instituem uma relação de alteridade e, potencialmente, podem promover
diálogos, confrontos, deslocamentos e afirmações identitárias. Portanto, são ambientes de
formação, tanto para educadores que atuam diretamente na instituição museal, quanto para
professores que dele fazem uso educativo. Partimos da consideração de que o museu permite
uma experiência sensível por meio da visualização da história narrada com objetos
tridimensionais, imagens e textos. Os professores relacionam-se de forma empática com essa
narrativa mobilizando estratégias no processo de ensino e aprendizagem da história. No uso
pedagógico dos museus, os professores resinificam sua prática e constroem novas concepções
para a história, baseada em suas experiências vividas.
Nesse texto, partimos das considerações de Tereza Scheiner (2008) que defende um
museu em processo; um museu dionisíaco e apolíneo, pois a despeito de sua lógica racional
permite nossa abertura para as coisas do mundo por meio do fenômeno da memória e
2407
lembrança (SCHEINER, 2008). Scheiner redimensiona a origem mítica dos museus a fim de
mostrar que, para além de um espaço físico de adoração às musas, o Mouseion é um espaço de
presentificação das ideias e de recriação do mundo por meio da memória. Segundo a autora o
Mouseion estava ligado ao culto à Apolo e Dionísio na Grécia antiga.
O primeiro Deus é cultuado presidindo a atividade das musas que são as responsáveis
no panteão grego pela manutenção do universo. As musas são palavras cantadas - “expressão
criativa da memória via tradição oral, trazidas a luz da consciência pela ação dos poetas, para
tornar presentes os fatos passados e futuros, reinstaurando o tempo e o mundo a partir de sua
origem” (SCHEINER, 2008, p. 39). As musas recuperam o ser do não ser (esquecimento),
revelando continuamente a presença das coisas no mundo.
2408
mundo. E assim, ao recuperar estes dois deuses na origem mítica dos museus, Scheiner (2003)
defende a relação existente entre o ser humano e as coisas do mundo como diálogo mais
profundo que o museu pode proporcionar. Para além de todos os aparatos interativos
presentes no museu, Scheiner propõe o olhar para a experiência humana entendendo o museu
como fenômeno que “(...) remete à possibilidade de percebê-lo através da experiência de
mundo de cada indivíduo- por meio das múltiplas e complexas relações que cada ator, ou
conjunto de atores sociais estabelece com o real complexo (SCHEINER, 2003, p. 1).
Baseando nessas considerações podemos pensar o museu como processo e não como
um produto, ou seja, para além de seu caráter institucional, de seus acervos e processos
curatoriais (também essenciais ao museu) deve-se pensá-lo como fenômeno, em constante
transformação nas relações que estabelece na sociedade. Nesse caminho, rompemos com a
visão de um museu organizado para influenciar padrões culturais, sociais e estéticos a partir
do espetáculo e privilegiar um paradigma em que o sujeito possa partilhar com o museu a sua
existência no mundo (SCHEINER, 2008). Pelo museu podemos ver como as sociedades
resolveram seus problemas existenciais ou como tentaram controlar as coisas do mundo, ou
até mesmo a sua incapacidade de se agruparem e manterem laços de solidariedade entre si.
2409
A nossa atitude em relação ao passado é sempre interpretativa, uma vez que é
necessário olhar para além do sentido imediato do que nos é oferecido como informação. Nos
museus, o que nos é oferecido a olhar nos exige uma atitude interpretativa, posto que “o
diálogo que travamos com o passado nos coloca diante de uma situação fundamentalmente
diferente da nossa-uma situação estranha diríamos-que consequentemente exige de nós um
procedimento interpretativo” (GADAMER, 2003, p.20).
Nesse texto, o museu é entendido como processo e não como produto. Não
restringimos o conceito de museu ao acervo e espaço físico. Para além dos processos
curatoriais, interesse do público e capacidade técnica, a dimensão simbólica revela que o
museu é espelho de diferentes categorias de representação social, entendido como processo
capaz de assumir diferentes formas e apresentar-se de diferentes maneiras, de acordo com os
sistemas de valores priorizados em cada sociedade. Acompanhamos as concepções de Tereza
Scheiner, que propõe entender o museu como:
Para além das exposições com seus aparatos interativos e outras soluções expográficas
é preciso pensar nos fenômenos provocados em uma situação de visita aos museus. Por meio
2410
de seus cantos as musas proporcionam experiências diversas que se dão através do plano
afetivo, o modo de fruição individual dos sujeitos que transitam pelo museu.
A ideia de um museu em processo que convida à experiência e que nos encarna, rompe
com a objetividade pretendida no momento em que o professor planeja a visita. Em processo,
a exposição museal admite subversões feitas pelos sujeitos portadores de experiências, que
dão novos sentidos aos conteúdos de história que aprendem nas escolas. Os professores, por
sua vez, admitem estas subversões e as relacionam aos conteúdos curriculares baseados no
saber referente. Há, nesse caso, produção de um conhecimento original, que é consolidado na
escola na fase pós-visita.
O museu é também processo porque admite subversões, desmontagens, principalmente
quando tratamos de seu uso pedagógico. Quais trilhas são propostas pelos professores? Como
subvertem os discursos encontrados nos museus, e aqueles feitos no momento da visita por
educadores de museu? Quais os limites e potencialidades desta relação sob a ótica dos
professores de história? Quais as expectativas trazidas pelos professores aos museus de
história? Quais saberes são acionados pelos professores de história no uso dos museus? Como
planejam suas visitas? Como avaliam as propostas de setores educativos de museus? Qual a
avaliação esses professores fazem antes, durante e depois das visitas feitas ao museu com os
estudantes? Como qualificam sua experiência educativa tendo os museus como cenário
privilegiado? Que problemas localizam na parceria museu e escola? Que dilemas profissionais
enfrentam para fortalecimento deste vínculo? Que conteúdos são construídos e provocados
durante e após a visita aos museus?
Balisamos nossa análise nas considerações propostas à pesquisa por autores da
fenomenologia, em especial as teorias de Merleau Ponty (1999). A fenomenologia tem como
objeto de estudo o próprio fenômeno, isto é, as coisas em si mesmas e não o que é dito sobre
elas. Assim sendo, a investigação fenomenológica busca a consciência do sujeito através da
2411
expressão das suas experiências internas. A fenomenologia busca a interpretação do mundo
através da consciência do sujeito, formulada com base em suas experiências, e pode ser um
método adequado para pesquisas qualitativas. No método fenomenológico são descritos os
fenômenos e não as origens causais e sua natureza fora do próprio ato da consciência. Em sua
raiz etimológica temos duas palavras de origem grega: phainomenon (aquilo que se mostra a
partir de si mesmo) e logos (ciência ou estudo). O estudo ou a ciência do fenômeno poderia
ser uma definição adequada para fenomenologia (MOREIRA, 2002).Para Merleau Ponty
(1999) “a fenomenologia é também uma filosofia que repõe as essências na existência, e não
pensa que se possa compreender o homem e o mundo de outra maneira senão a partir de sua
"facticidade" (MERLEAU PONTY, 1999, p. 1). A fenomenologia parte da presença das
coisas e do homem lançado ao mundo, estudando a relação que se dá entre os dois. Na
condição de ser lançado ao mundo, o que vem ao encontro do homem é a própria coisa e não
a sua definição. A coisa começa a fazer parte do mundo quando é percebida pelo homem. De
acordo com Merleau Ponty (1999), a nossa abertura inicial aos fenômenos é marcada por uma
revisão pré-objetiva do mundo, que se refere à própria condição existencial do homem,
revelada pelos movimentos do corpo, relações e percepções e pelas concepções que possui. O
método fenomenológico enfoca fenômenos subjetivos baseados na crença e na experiência
vivida. O pesquisador adquire subsídio