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Sidélia Teixeira

Patrick Fraysse
Nathalie Sejalon-Delmas
Organizadores

MEDIAÇÕES
CIENTÍFICAS
POTENCIAIS
MUSEUS E COLEÇÕES DA
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA/BRASIL
E DA UNIVERSITÉ DE TOULOUSE III/
PAUL SABATIER/FRANCE
O livro Mediações científicas
potenciais: Museus e Coleções da
Universidade Federal da Bahia/Brasil
e da Universidade de Toulouse/Paul
Sabatier/França, aborda o patrimônio
universitário e a sua importância
para as sociedades. Na primeira parte,
os autores brasileiros abordam o
processo de mediação intercultural e
dialógica no Museu de Arqueologia
e Etnologia; a história da coleção
religiosa afro-brasileira no Museu
Afro-brasileiro e a experiência de
criação de uma disciplina a partir das
coleções do Museu de História Natural.
A segunda parte do livro, em francês,
denomina-se História das Coleções e
Museografia em Toulouse e analisa
aspectos expográficos em relação aos
fragmentos científicos e às etiquetas;
a importância das coleções para a
construção identitária da universidade
e a questão da exposição e teatralização
do corpo a partir dos artefatos de
medicina.
MEDIAÇÕES CIENTÍFICAS POTENCIAIS
MUSEUS E COLEÇÕES DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA/BRASIL
E DA UNIVERSIDADE DE TOULOUSE/PAUL SABATIER/FRANÇA

MÉDIATIONS SCIENTIFIQUES POTENTIELLES


MUSÉES ET COLLECTIONS DE L'UNIVERSITÉ FÉDÉRALE DE BAHIA/
BRÉSIL ET L'UNIVERSITÉ DE TOULOUSE/PAUL SABATIER/FRANCE
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
Reitor
João Carlos Salles Pires da Silva

Vice-reitor
Paulo Cesar Miguez de Oliveira

EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

Diretora
Flávia Goulart Mota Garcia Rosa

Conselho Editorial
Alberto Brum Novaes
Angelo Szaniecki Perret Serpa
Caiuby Alves da Costa
Charbel Niño El-Hani
Cleise Furtado Mendes
Evelina de Carvalho Sá Hoisel
Maria do Carmo Soares de Freitas
Maria Vidal de Negreiros Camargo

REALIZAÇÃO
Universidade Federal da Bahia/Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
Programa de Pós-Graduação em Museologia
Université de Toulouse 3
Laboratoire d’Études et de Recherches Appliquées en Sciences Sociales (LERASS)

PATROCÍNIO
Pró-Reitoria de Ensino de Pós-Graduação da UFBA
Sidélia Teixeira
Patrick Fraysse
Nathalie Sejalon-Delmas
Organizadores

MEDIAÇÕES CIENTÍFICAS POTENCIAIS


MUSEUS E COLEÇÕES DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA/BRASIL
E DA UNIVERSIDADE DE TOULOUSE/PAUL SABATIER/FRANÇA

MÉDIATIONS SCIENTIFIQUES POTENTIELLES


MUSÉES ET COLLECTIONS DE L’UNIVERSITÉ FÉDÉRALE DE BAHIA/
BRÉSIL ET L’UNIVERSITÉ DE TOULOUSE/PAUL SABATIER/FRANCE

Salvador
Edufba
2022
2022, autores.
Direitos para esta edição cedidos à Edufba. Feito o Depósito Legal.

Grafia atualizada conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,


em vigor no Brasil desde 2009.

Coordenação editorial Projeto gráfico e diagramação


Susane Santos Barros Rodrigo Oyarzábal Schlabitz

Coordenação gráfica Revisão


Edson Sales Tikinet Edições LTDA.

Coordenação de produção Normalização


Gabriela Nascimento Marcely Moreira
Imagem de capa
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Sistema Universitário de Bibliotecas – UFBA


M489 Mediações científicas potenciais: museus e coleções da Universidade
Federal da Bahia/Brasil e da Universidade de Toulouse/Paul
Sabatier/França = Médiations scientifiques potentielles: musées et
collections L'Université Féderalé de Bahia/Brésil et L'Université de
Toulouse/Paul Sabatier/France. - Sidélia Teixeira, Patrick Fraysse,
Nathalie Sejalon-Delmas, Organizadores. - Salvador: EDUFBA, 2022.
180 p.

Texto em português e francês.


ISBN: 978-65-5630-333-8

1. Museologia - Brasil. 2. Museus – Brasil - França. 3. Universidades e


faculdades públicas - Museus. I. Teixeira, Sidélia. II. Fraysse, Patrick.
III. Sejalon-Delmas, Nathalie. IV. Título: museus e coleções da Universidade
Federal da Bahia/Brasil e da Universidade de Toulouse/Paul Sabatier/França.
V. Título: Médiations scientifiques potentielles: musées et collections
L'Université Féderalé de Bahia/Brésil et L'Université de Toulouse/Paul
Sabatier/France.

CDU: 069.5:378.1

Elaborada por Geovana Soares Lira CRB-5: BA-001975/O

Editora afiliada à

Editora da UFBA
Rua Barão de Jeremoabo, s/n – Campus de Ondina
40170-115 – Salvador, Bahia / Tel.: +55 71 3283-6164
www.edufba.ufba.br/edufba@ufba.br
SUMÁRIO

9 INTRODUÇÃO
Sidélia Teixeira
Patrick Fraysse

PRIMEIRA PARTE
MUSEUS E COLEÇÕES DA UFBA: MEDIAÇÃO, HISTÓRIA E ENSINO

35 MEDIAÇÕES COM OS ÍNDIOS KAMAYURÁ DO ALTO XINGU/AMAZÔNIA/


BRASIL NO MUSEU DE ARQUEOLOGIA E ETNOLOGIA DA
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
Marco Tromboni Nascimento
Paride Bollettin
Sidélia Teixeira

55 O MUSEU AFRO-BRASILEIRO E A FORMAÇÃO DA SUA COLEÇÃO


DE CULTURA MATERIAL RELIGIOSA AFRO-BRASILEIRA
Marcelo Nascimento Bernardo da Cunha
Juipurema A. Sarraf Sandes

75 MUSEUS DE HISTÓRIA NATURAL E SOCIEDADE:


UMA EXPERIÊNCIA INSPIRADORA
Priscila Camelier
Angela Zanata
Fernanda F. Cavalcanti
José Geraldo Aquino Assis
Luciana Leite
Marcelo Felgueiras Napoli
Nádia Roque
SEGUNDA PARTE
HISTÓRIA DAS COLEÇÕES E MUSEOGRAFIA EM TOULOUSE

97 LE FRAGMENT: UNE DYNAMIQUE DE PARTAGE


Corinne Labat
Carlos de Matos

115 UN CARTEL, DES CARTELS: DE LA VULGARISATION À L’INCLUSION,


VERS UNE MÉDIATION EN CONCEPTION UNIVERSELLE
Muriel Molinier

137 DE L’HERBIER À L’IDENTITÉ DE L’UNIVERSITÉ DE TOULOUSE


Viviane Couzinet
Nathalie Sejalon-Delmas

153 MISE EN SCÈNE ET THÉÂTRALISATION DE LA MÉDECINE EN EUROPE:


DE LA SPECTACULARISATION À LA MUSÉIFICATION
Christine Carrère-Saucède

173 SOBRE OS AUTORES


SOMMAIRE

21 INTRODUCTION
Sidélia Teixeira
Patrick Fraysse

PARTIE 1
MUSÉES ET COLLECTIONS DE L’UFBA: MÉDIATION, HISTOIRE
ET ENSEIGNEMENT

35 MÉDIATIONS AVEC LES INDIENS KAMAYURÁ D’ALTO XINGÚ/


AMAZONIE/BRÉSIL AU MUSÉE D’ARCHÉOLOGIE ET D’ETHNOLOGIE
DE L’UNIVERSITÉ FÉDÉRALE DE BAHIA
Marco Tromboni Nascimento
Paride Bollettin e Sidélia Teixeira

55 LE MUSÉE AFRO BRÉSILIEN ET LA FORMATION DE SA COLLECTION


DE CULTURE MATÉRIELLE RELIGIEUSE AFRO BRÉSILIENNE
Marcelo Cunha
Juipurema Sandes

75 MUSÉES D’HISTOIRE NATURELLE ET SOCIÉTÉ: UNE EXPÉRIENCE


INSPIRANTE
Priscila Camelier
Angela Zanata
Fernanda Cavalcanti
José Geraldo Assis
Luciana Leite
Marcelo Napoli
Nádia Roque
PARTIE 2
HISTOIRES DE COLLECTIONS ET MUSÉOGRAPHIE À TOULOUSE

97 LE FRAGMENT: UNE DYNAMIQUE DE PARTAGE


Carlos de Matos
Corinne Labat

115 UN CARTEL, DES CARTELS: DE LA VULGARISATION À L’INCLUSION,


VERS UNE MÉDIATION EN CONCEPTION UNIVERSELLE
Muriel Molinier

137 DE L’HERBIER À L’IDENTITÉ DE L’UNIVERSITÉ DE TOULOUSE


Viviane Couzinet
Nathalie Delmas

153 MISE EN SCÈNE ET THÉÂTRALISATION DE LA MÉDECINE EN EUROPE:


DE LA SPECTACULARISATION À LA MUSÉIFICATION
Christine Carrère-Saucède

173 À PROPOS DES AUTEURS


Mediações com os índios Kamayurá
do Alto Xingu/Amazônia/Brasil no
Museu de Arqueologia e Etnologia da
Universidade Federal da Bahia
MARCO TROMBONI NASCIMENTO
PARIDE BOLLETTIN
SIDÉLIA TEIXEIRA

MEDIAÇÃO INTERCULTURAL, COMUNICAÇÃO E NARRATIVAS


MUSEOLÓGICAS
Em países de passado colonial como o Brasil, os museus tendem a se
legitimar socialmente enquanto espaços dedicados à produção de iden-
tidades e às memórias sociais associadas à construção política do próprio
estado-nação. Os primeiros museus de uma nação brasileira, em vias de
sua consolidação interna, eram sustentados e geridos pelas elites herdeiras
do pacto colonial. Até meados do século passado, essas instituições divul-
gavam acriticamente ideias sobre a nacionalidade, que se apoiavam em
uma imaginação sociológica fundamentalmente eurocêntrica. No caso,
num evolucionismo social de inspiração “darwinista” aplicado a uma

35
sociedade em formação que, em última análise, era inegavelmente racista
e, portanto, excludente de negros, índios e mestiços.1
Baseando-se em argumentos tidos na época como científicos, busca-
va-se ao mesmo tempo justificar a dominação dessa elite branca e euro-
centrada, assim como obscurecer a continuidade, por outros meios e sob
novas máscaras, da velha exploração colonial, desta feita internalizada,
de uma imensa população despossuída e alijada das políticas de estado,
não por acaso, majoritariamente negra, indígena e/ou mestiça. Assim, a
despeito do fato de que seus diversos segmentos contribuíam ativamente
na produção da experiência social, sobretudo local, suas capacidades de
agência em quaisquer direções eram simplesmente invisibilizadas. No
caso dos povos indígenas, sua presença era vista apenas como sobrevi-
vência efêmera de um passado em vias de desaparição e/ou superação
pelo advento da “civilização europeia”. (SCHWARCZ, 2005)
A partir de meados do século XX, o Brasil assiste ao início de uma
vida universitária, concomitante a uma acelerada industrialização e
urbanização do país, que se disseminam entre as gerações mais jovens de
intelectuais; já no público mais letrado em geral, uma sociologia e uma
historiografia autóctones de orientação culturalista cujo sucesso remode-
laria a autoimagem da nação, bem como faria de autores, como Gilberto
Freyre (2006) e Sérgio Buarque de Holanda (1995), verdadeiros paradigmas
da interpretação da nacionalidade, aliás, de certo modo ainda vigentes
hoje em dia. Quaisquer que tenham sido as permanências do ideário colo-
nialista que se possa encontrar nessas obras e autores, por questionável
que se tenha tornado a ideia de uma “democracia racial” dos trópicos que
tenham ajudado a disseminar e transformar em pouco tempo num novo
e pernicioso senso comum de nosso imaginário social, elas tiveram seu
mérito. No mínimo, contribuíram para incluir as expressões culturais das
populações marginais do país no debate sobre a identidade nacional ainda
em construção. Agora, entretanto, com um sinal positivo, ainda que as

1 Para mais detalhes e exemplos de museus brasileiros que veicularam tais ideias, consultar
Schwarcz (1993).

36 MARCO TROMBONI NASCIMENTO • PARIDE BOLLETTIN • SIDÉLIA TEIXEIRA


romantizassem e ajudassem a obscurecer a opressão e a exploração sociais
em que, não obstante, vicejavam. Segmentos sociais desfavorecidos estes
que, tampouco, constituíam ainda o público a que se dirigiam essas novas
ideias. Não representavam as próprias percepções dos sujeitos retratados,
embora tenham se infiltrado nelas. Além disso, faltava muito para que se
fizesse ouvir a sua própria voz na apresentação de suas próprias expressões
culturais, isto é, que seus protagonismos intelectual e político se mani-
festassem finalmente na cena nacional através dos museus, dentre outras
instituições culturais e educativas. Para tanto, foi preciso esperar o surgi-
mento de uma nova museologia, assim como lutar por sua incorporação
às políticas de Estado para o setor, cuja maior expressão são o chamado
Estatuto dos Museus (BRASIL, 2009a) e a criação do Instituto Brasileiro
de Museus (IBRAM). (BRASIL, 2009b)
As experiências museais populares consolidadas na segunda metade
do século XX, a partir da diversificação e criação de museus alternativos
e, sobretudo, comunitários, aliadas às discussões acadêmicas, que viabi-
lizaram a identificação de patrimônios culturais para além dos limites
estéticos e epistêmicos europeus até então consolidados, contribuíram
para o rompimento de fronteiras e tiveram de romper regras e disciplinas
museológicas. As novas práticas de mediação atualizaram a potência de
uma imaginação que deixou de ser prerrogativa apenas de alguns grupos
sociais. (CHAGAS, 2009)
Tudo isso, claro, traduziu-se na complexificação dos discursos museo-
lógicos e na atualização de suas estratégias expositivas, voltadas para
públicos cada vez mais diversificados, informados e especializados. Com
efeito, ampliava-se o eixo das discussões em torno de uma museologia na
qual as coleções eram compostas principalmente por objetos, para uma
Museologia em que as coleções passaram a ser compostas também por
problemas/questões da sociedade. (MOUTINHO, 2018) É nesse processo
que surgem, a partir dos anos 1970, alguns museus universitários de Ciên-
cias, entre os quais, aqueles especializados em arqueologia e etnologia
indígena ganham novo impulso, a exemplo daquele de que falaremos

MEDIAÇÕES COM OS ÍNDIOS KAMAYURÁ DO ALTO XINGU/AMAZÔNIA/BRASIL... 37


aqui mais detidamente, o Museu de Arqueologia e Etnologia da Univer-
sidade Federal da Bahia (MAE/UFBA).2
Pretendemos focar nas práticas de mediação, entendidas enquanto
processos museológicos comunicacionais simultaneamente culturais e
políticos. Vale dizer, relevantes e desafiadores para a sociedade contem-
porânea a que se dirigem, assim como para os povos indígenas que even-
tualmente queiram se expressar em museus como esse, através dessas
mesmas ações. Práticas cujo desafio, nesse sentido, é lograr acolher nos
museus a diversidade sociocultural por meio de algum tipo de diálogo
possível entre os vários segmentos sociais, eventualmente, representados
nas suas coleções, adquiridas ou ainda por adquirir e/ou atualizar.
De fato, museus universitários, como o MAE/UFBA, têm um grande
potencial para funcionar como agências de relacionamento intercultural
e intergeracional numa perspectiva dialógica, por oposição às tarefas tra-
dicionais orientadas unicamente para a valorização das coleções em si
mesmas. (CARTER; ORANGE, 2012) Em particular, no caso dos chamados
povos indígenas no Brasil, a destinação desses objetos segue imensamente
provocadora. (ATHIAS, 2016; CURY, 2016a) Na medida em que ainda
persiste, no seio dessa sociedade mais ampla, uma visão preconceituosa
e estereotipada acerca dessas populações, apesar de políticas afirmativas
de Estado recentes virem se esforçando para mudar esse quadro, como
a Lei nº 11.645/08, que obriga a inclusão do estudo da história e cultura
indígena nos ensinos fundamental e médio. (TEIXEIRA; CARVALHO;
SILVA, 2010)
O MAE/UFBA, inaugurado em 1983, é um museu universitário de
Ciências que teve como propósito promover ações de pesquisa nessas duas
áreas de conhecimento e, através delas, recolher um acervo que pudesse,
por sua vez, servir a ações diversas de extensão, sejam aquelas voltadas
à divulgação junto ao público em geral dos conhecimentos gerados por
tais pesquisas, sejam, especialmente, aquelas dirigidas ao público escolar
em particular, incluindo professores e alunos dos ensinos fundamental e

2 Consultar (RIBEIRO, 2013) para uma visão de conjunto dos museus universitários brasileiros.

38 MARCO TROMBONI NASCIMENTO • PARIDE BOLLETTIN • SIDÉLIA TEIXEIRA


médio, público ou privado. Por outro lado, internamente à universidade,
sua vocação era servir como campo de atuação na formação de quadros
técnicos especializados, ou seja, enquanto espaço de prática profissional
para estudantes e docentes de graduação e pós-graduação nas áreas de
museologia, arqueologia e etnologia indígena. (SANTOS, 2014)
No acervo do MAE/UFBA, as coleções etnográficas são as melhor conhe-
cidas pelo próprio quadro técnico do museu e, por isso também, encon-
tram-se melhor organizadas. Os povos que representam, por outro lado, são
contemporâneos e, particularmente, cada vez mais atuantes em diferentes
esferas da vida social brasileira. Assim, ao menos por ora, essas são as coleções
que parecem se prestar melhor e mais imediatamente à mobilização desse
encontro entre museu e povos indígenas. Encontro que de fato aconteceu,
como esperamos mostrar brevemente aqui, e por iniciativa deles, mais
que nossa. Um experimento de mediação provocado pela capacidade de
agência dos sujeitos que representaram um desses povos nesse encontro
particular, em busca de um diálogo com técnicos, docentes e discentes
da universidade, como também, sem contradição alguma, a dos próprios
objetos, nos termos de Gell (1998). De modo algum pioneiro ou único, tal
“exercício do possível” foi, na verdade, cheio de acidentes e percalços e
apenas exemplifica um movimento de mudança dos museus etnográficos,
que se encontra em pleno curso no Brasil (CURY, 2016b; LIMA FILHO;
PORTO, 2019), mas cuja implementação e disseminação, porém, ainda são
incertas e dependem de um aprendizado mútuo a se realizar, bem como
da obtenção de resultados satisfatórios que estimulem a sua replicação.
Os museus, assim, têm se preocupado de forma cada vez mais ativa
com as comunidades produtoras dos objetos que guardam, conservam
e exibem, e, por isso mesmo, buscam um reposicionamento em seus dis-
cursos e práticas institucionais de modo a enfatizar uma nova função
social, a de servir como espaços para a promoção de pautas afirmativas
de agentes até aqui, e como tais, têm sido amplamente sub-representados
em seus projetos e ações. Em síntese, buscam se transformar em espaços
capazes de multiplicar e acolher novos participantes na concepção, na
montagem de suas exposições e nas demais atividades de comunicação

MEDIAÇÕES COM OS ÍNDIOS KAMAYURÁ DO ALTO XINGU/AMAZÔNIA/BRASIL... 39


museológica. Do sucesso de iniciativas concretas na direção desse encontro
de diferentes atores sociais, alguns dos quais de fato mal começam a aden-
trar esses espaços enquanto sujeitos protagonistas, e não apenas enquanto
meros espectadores e/ou sujeitos representados, depende a necessária
renovação do papel social e, talvez, a própria manutenção do interesse que
os museus etnográficos e as suas coleções possam ter no mundo contem-
porâneo. (LIMA FILHO; ABREU; ATHIAS, 2016; VELTHEM; KUKAWA;
JOANNY, 2017)
Há já uma promissora expectativa de renovação dos processos comuni-
cacionais, em geral, desses museus, ao mesmo tempo que esses processos
já respondem de algum modo à própria criação de museus indígenas, de
fato a efetiva apropriação por parte desses grupos, mais que desses espaços
em si, que não reconhecem como “deles”, mas da própria ideia de museu
e de uma concepção museológica própria, a exemplo do Museu Maguta.3
(OLIVEIRA, 2013) Com efeito, todos esses processos implicam redefinir as
agentividades envolvidas, reconhecendo que múltiplas perspectivas con-
correm para costurar narrativas que são afetadas e afetam as narrativas
produzidas pelos atores sociais envolvidos (ABREU; CHAGAS; SANTOS,
2007), as quais podem ser perfeitamente incorporadas aos valores patri-
monial e dialógico dos objetos materiais presentes em quaisquer coleções
etnográficas. (BOLLETTIN, 2019)
Mais que apenas uma renovação de ideias e teorias acadêmicas, há
de fato uma pressão desses povos batendo às portas dessas instituições.
Os poucos “museus etnográficos”, ou que se possa assim classificar, exis-
tentes no Brasil são quase todos públicos e, em grande parte, museus uni-
versitários de Ciências. Ao menos estes, portanto, já não escapam à nova
lógica. Os discursos antropológicos, museológicos e patrimoniais têm sido
apropriados pelos próprios povos indígenas à medida que aumentam sua

3 O Museu Maguta, localizado na cidade de Benjamin Constant, no Estado do Amazonas, é um


museu propriamente indígena, ou seja, reúne e apresenta uma coleção de artefatos dos índios
Ticuna que, para eles, são representativos de sua própria cultura, contudo, exibidos a partir de
uma expografia determinada por eles mesmos (https://www.facebook.com/pages/category/
Nonprofit-Organization/Museu-Mag%C3%BCta-560591093959134/).

40 MARCO TROMBONI NASCIMENTO • PARIDE BOLLETTIN • SIDÉLIA TEIXEIRA


compreensão acerca da nossa sociedade e da necessidade de defender a
sua autonomia em face dela. Reciprocamente, nos museus públicos em
geral, em particular nos universitários, busca-se desenvolver cada vez
mais estratégias de construção de ações articuladas com as comunidades
produtoras do patrimônio que conservam.
A mediação, então, é vista como um processo dialógico e participativo
oriundo da seleção e contextualização dos objetos a serem divulgados a
partir de um diálogo direto com os sujeitos produtores deles e/ou seus
presuntivos herdeiros contemporâneos. Proprietários, senão dos objetos
preservados nos museus em si, decerto que das “tradições” que suposta-
mente representariam. É preciso, em realidade, elaborar estratégias abertas
para seu engajamento nos museus, desde a construção dos sentidos das
ações e/ou atividades a serem desenvolvidas e, portanto, dentro de nar-
rativas que não são as nossas apenas. É nessa linha que apresentamos e
analisamos a experiência de construção da exposição virtual intitulada –
Objetos Kamayurás: tempos, memórias e diálogos.4 Trata-se de um trabalho
desenvolvido no quadro de duas disciplinas dos cursos de pós-graduação
e de graduação em antropologia e museologia da UFBA, denominadas
respectivamente “Antropologia e Museus” e “Laboratório de Expografia”,
as quais foram articuladas com o MAE/UFBA e contaram com a partici-
pação de representantes do grupo indígena Kamayurá, da região do Alto
Xingú, na Amazônia brasileira.

PROTAGONISMO KAMAYURÁ E O MUSEU DE ARQUEOLOGIA E


ETNOLOGIA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA COMO ESPAÇO DE
ENGAJAMENTO E LABORATÓRIO DE FORMAÇÃO
O MAE/UFBA possui uma coleção de cerca de 250 artefatos Kamayurá
recolhida na década de 1960 pelo antropólogo Pedro Agostinho da Silva,
responsável por introduzir o emprego de uma metodologia de pesquisa
antropológica moderna, baseada em trabalho de campo etnográfico, nos

4 Link da exposição: https://acervo.mae.ufba.br/kamayura/.

MEDIAÇÕES COM OS ÍNDIOS KAMAYURÁ DO ALTO XINGU/AMAZÔNIA/BRASIL... 41


estudos dedicados às populações Ameríndias desenvolvidos na Univer-
sidade Federal da Bahia. (SERRA, 2013) Na década de 1980, esse acervo
foi incorporado ao Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade
Federal da Bahia no momento de sua criação, do qual este professor e pes-
quisador foi um dos idealizadores e fundadores. Pedro Agostinho da Silva,
à custa de muito esforço, logrou também trazer de seus três períodos de
trabalho de campo na região do Alto Xingu, ocorridos entre os anos de
1965 e 1968, todas as peças que lhe pareceram características da cultura
material kamayurá que pôde obter na forma de presentes e/ou por meio
de trocas, os quais chegaram à universidade muito tempo antes, portanto,
da criação do museu. De certo modo, pode-se dizer que o próprio MAE/
UFBA teve na agência desses objetos uma causa para a sua própria criação,
em que pese apenas quase duas décadas mais tarde. Não se podia simples-
mente guardá-los e esquecê-los em algumas das prateleiras da universi-
dade. Demandavam, digamos assim, um museu inteiro para justificá-las.
No ano de 2019, quase quatro décadas após sua inauguração, esses
mesmos objetos trouxeram para a Bahia três representantes do povo
Kamayurá, os quais visitaram o MAE/UFBA no contexto de seu próprio
projeto de pesquisa, denominado “Arquivo Kamayurá”.5 Seu alvo, é claro,
era a reserva técnica do museu, mas a visita ocorreu em um momento
em que a principal exposição do MAE/UFBA tinha como tema o próprio
trabalho antropológico, e de eminente militante da causa indigenista, do
professor Pedro Agostinho da Silva, cuja memória é por ela celebrada. Esse
trabalho, por sua vez, tinha nos próprios objetos Kamayurá que coletara
a sua materialização, assim como o era o próprio museu que ele ajudara
a criar e veio a dirigir um dia eram. Alguns dos quais agora lá estavam
expostos, contudo, segundo uma concepção e uma orientação de sentido
que, certas ou erradas, de modo algum resultavam de um diálogo de fato
entabulado diretamente com algum Kamayurá.

5 Trata-se de projeto que visa identificar e fornecer um mapeamento sobre os objetos Kamayurá,
que se encontram preservados nos museus de arqueologia e etnologia brasileiros. Para mais
informações sobre o Projeto Arquivo Kamayurá, ver: https://www.itaucultural.org.br/secoes/
rumos/uma-jornada-em-busca-de-reconstruir-a-sabedoria-dos-kamayura.

42 MARCO TROMBONI NASCIMENTO • PARIDE BOLLETTIN • SIDÉLIA TEIXEIRA


Produto de uma tradução intersemiótica complexa e densamente
recursiva, tratou-se de um novo diálogo o que esses objetos expostos inevi-
tavelmente provocaram, desta feita entre esses visitantes indígenas, agora
eles próprios investidos da condição de pesquisadores e representantes
de seu povo, e a equipe do museu, seus técnicos, docentes e discentes.
Assim como aquilo que aconteceu quando conheceram a exposição e a
reserva técnica, não deixou de ser um novo diálogo entre eles próprios e
seus antepassados recentes do qual o próprio antropólogo, perfeitamente
lembrado por eles, foi um dos interlocutores e continuava a ser um dos
mediadores. Não menos, aliás, que um diálogo entre os vivos e os mortos,
por meio inclusive das fotografias do ritual funerário, que aquele estudara
e que integram a exposição.
Portanto, de certa forma, essa iniciativa partiu desse povo, isto é, decorreu
de uma demanda deles ao MAE/UFBA. Na visita ao museu, vieram como
representantes deles Kanawayuri L. Marcello Kamayurá, Auakamu Kamayurá
e Kaluwá Kamayurá. Nesse âmbito, eles decidiram visitar instituições museo-
lógicas brasileiras que possuem objetos e registros de imagem e som de
seus antepassados, a fim de criar um acervo próprio, inicialmente digital,
que pudesse servir para rememorar e revitalizar, a partir das técnicas e dos
saberes evocados por esses artefatos específicos, certos conhecimentos e
fazeres tradicionais de seu povo. Seu objetivo claro é evitar o que se per-
cebe como um processo de “perda” (expressão utilizada pelos Kamayurá)
na transmissão de seus costumes e suas tradições às gerações mais jovens.
Seu papel como projeto integra-se bem ao contexto mais amplo do que
se tem convencionado chamar no Brasil de “museus indígenas”, embora
o “Arquivo Kamayurá” enquanto projeto não seja em si, ao menos ainda,
um projeto de museu e mais uma preparação para tanto.

ANTROPOLOGIA E MUSEUS
Para que tal acontecesse, a forma como se tentou entabular esse diá-
logo de uma maneira ao mesmo tempo oficial e pedagogicamente rele-
vante para eles e para o museu e a sua equipe, mas que igualmente servisse

MEDIAÇÕES COM OS ÍNDIOS KAMAYURÁ DO ALTO XINGU/AMAZÔNIA/BRASIL... 43


como experiência formativa de estudantes dos cursos de graduação e pós
de museologia e antropologia da UFBA, universidade mantenedora do
museu, foi convidá-los a participar de um módulo final de uma disciplina
curricular denominada “Antropologia e Museus”, ofertada no segundo
semestre de 2019. A proposta dessa disciplina, aberta a turmas de graduação
de ciências sociais e de museologia e de pós-graduação em antropologia e
museologia, foi conjugar dois propósitos complementares. Por um lado,
visava-se atender a uma demanda por parte dos discentes de disciplinas
voltadas ao diálogo interdisciplinar entre a antropologia e a museologia,
tomadas enquanto disciplinas acadêmicas, ou seja, movidas por seus
paradigmas, epistemologias e controvérsias. Por outro, a disciplina tinha
como foco a formação “prática” dos estudantes participantes por meio de
uma série de exercícios etnográficos a serem realizados sobre diferentes
exposições presentes na cidade de Salvador. Essas atividades foram arti-
culadas de forma a ofertar a necessária preparação dos estudantes para
a visita dos representantes dos Kamayurá, de forma que esta viesse a se
constituir enquanto momento de construção de uma reflexão dialógica
sobre o fazer antropológico e museal entre discentes dessas disciplinas e
os outrora “nativos”. Nesse sentido, baseava-se numa dinâmica que explo-
rava as tensões entre as dimensões “teórica” e “etnográfica” na produção
de percursos vividos e compartilhados.
O projeto “Arquivo Kamayurá” surgiu depois que um incêndio destruiu,
em 2012, a maloca na qual eles tinham coletado não somente os objetos
de uso ritual, mas também outros artefatos que eles não produzem mais
corriqueiramente, no intuito de conseguir a “preservação da sua cultura”
(expressão por eles utilizada). O objetivo dessa maloca era reconectar as
novas gerações aos modos de vida do passado, pois, nas palavras deles:
“as coisas estão mudando cada vez mais rápido”. O intuito, assim, era não
somente de reconstruir e redefinir a maloca, mas também de reinventar
uma nova forma de enfrentar essa tarefa em conexão com os tempos atuais.
A implementação do projeto demandou diferentes negociações políticas
internas ao povo e uma cautelosa execução passo a passo. Após nomeados
alguns representantes, estes foram enviados para visitar algumas coleções

44 MARCO TROMBONI NASCIMENTO • PARIDE BOLLETTIN • SIDÉLIA TEIXEIRA


de artefatos produzidos pelos Kamayurá, mas também para coletar filmes,
fotografias e gravações de áudio que eles sabiam que os pesquisadores
tinham produzido nas décadas anteriores. A maior parte desses mate-
riais está guardada em museus universitários públicos, nos estados de
São Paulo, Rio de Janeiro, Santa Catarina e Bahia.6
A intenção não era somente recolher informações sobre os materiais
que compõem tais coleções, mas sobretudo estudar qual seria a melhor
forma de cuidar desses materiais: formas de armazenamento, conservação
e exibição, incluindo a potencialidade virtual ofertada pela internet. Ade-
mais, esse projeto comportava gerenciar um desafio adicional: artefatos
que têm uma agência particularmente poderosa e reconhecida por eles e
que exigiam, portanto, cuidados especiais. (BARCELOS NETO, 2012) Por
seu lado, pelas suas peculiaridades mesmo, o museu já havia realizado,
alguns meses antes de sua visita e independentemente de sua participação
nesse curso, quando esta última não havia sido ainda acertada com eles,
uma oficina de treinamento preparatória para recebê-los, dirigida a seus
próprios técnicos e estudantes estagiários e ministrada por Aristóteles
Barcelos Neto (University of East Anglia) e Luísa Vicentini (USP).
A visita dos representantes Kamayurá foi organizada para acontecer
num período de pouco menos de duas semanas, e eles se disponibili-
zaram a interagir com os participantes da disciplina ao longo de três
tardes apenas. Duas destas foram essencialmente dedicadas a acompa-
nhar os Kamayurá em sua visita ao MAE, tanto na parte da exposição de
longa duração quanto na reserva técnica, o que permitiu que os diálogos
se desenvolvessem não somente sobre os objetos específicos que naquele
momento chamassem mais sua atenção, mas também – e mais livremente
– sobre aspectos de sua cultura que eles suscitassem. Todos os momentos
foram gravados com o uso de aparelhos de celular e, conforme acordado
entre todos, sucessivamente, compartilhados com os Kamayurá através
de plataformas de armazenamento de dados digitais.

6 Nas instituições museológicas desses estados, os Kamayurá realizaram também pesquisas com
antropólogas e antropólogos.

MEDIAÇÕES COM OS ÍNDIOS KAMAYURÁ DO ALTO XINGU/AMAZÔNIA/BRASIL... 45


O terceiro encontro, dado no contexto de aula da disciplina, era também
o mais relevante. Nele, os representantes Kamayurá e os participantes da
disciplina, aos quais se juntaram os demais funcionários do MAE e outros
convidados avulsos, que se reuniram ao redor de uma mesa sobre a qual
estavam expostos sete artefatos, por eles apontados como representativos
da sua “cultura” e, previamente, escolhidos na reserva técnica nos dias ante-
riores, os quais deveriam, segundo eles mesmos, ser incluídos na exposição
de longa duração do MAE/UFBA. Marcelo Kamayurá, em nome dos demais,
foi sucessivamente apresentando tais artefatos, descrevendo a forma como
estes eram confeccionados, os materiais utilizados para sua realização, o
seu contexto de uso (passado e/ou contemporâneo), as histórias que estes
evocavam, as razões pelas quais estes eram especialmente importantes, a
ponto de serem incluídos na exposição do Museu, e as formas que viam
de realizar essa inclusão. Muito se falou, aprendeu e debateu nesse dia,
mas colocar em prática a tarefa de incluí-los na exposição e as formas de
se fazer isso não eram aspectos muito simples ou tão rápidos.
Nas semanas seguintes, os discentes da disciplina foram convidados a
realizar um mapeamento das informações disponíveis sobre esses objetos,
assumidos tanto como artefatos específicos quanto como categorias de
objetos. Como tinham sido coletados pelo pesquisador Pedro Agostinho,
recomendou-se aos alunos uma leitura cuidadosa dos trabalhos por este
publicados, de forma a encontrar eventuais menções e informações sobre
esses objetos hoje guardados no MAE e escolhidos agora enquanto signi-
ficativos pelos representantes Kamayurá.7 Para se ter uma maior riqueza
de informações, foram pesquisadas também as fichas de documentação
relativas a tais objetos e previamente revisadas a partir da mencionada
oficina preparatória de treinamento realizada com os técnicos e estagiários
do museu. Por outro lado, tendo as falas e descrições de Marcelo Kamayurá
sobre tais objetos um valor exemplar enquanto parte da experiência de

7 A análise bibliográfica concentrou-se, sobretudo, na monografia que Pedro Agostinho (1974)


dedicou aos Kamayurá.

46 MARCO TROMBONI NASCIMENTO • PARIDE BOLLETTIN • SIDÉLIA TEIXEIRA


seu povo, foi decidido incorporá-las igualmente ao mapeamento de infor-
mações sobre tais objetos localizados em outras fontes.
Desse modo, os discentes foram encarregados de procurar vídeos,
publicações, catálogos etc. nos quais esses objetos também aparecessem,
para, em seguida, reunirem tais informações em um banco de dados. Este,
por sua vez, tinha o duplo fim de, por um lado, ser compartilhado com os
Kamayurá, de forma a auxiliá-los em seu próprio projeto e, por outro, servir
de base para a apresentação de tais objetos em sua inclusão na exposição
de longa duração do MAE. Se o primeiro objetivo foi alcançado, visto que
as informações foram compartilhadas através de instrumentos virtuais,
o segundo e mais importante para o museu não foi possível realizar por
causa da eclosão da pandemia de covid-19, que forçou a interrupção com-
pleta dos trabalhos planejados nessa direção.8 Essa circunstância inespe-
rada, entretanto, não deteve a agência desses objetos.

LABORATÓRIO DE EXPOGRAFIA
Os autores deste texto, visando adaptar e dar continuidade ao projeto,
contataram os representantes dos Kamayurá já retornados à sua comuni-
dade e entabularam um novo diálogo e negociação acerca da possibilidade
de reformular a proposta na direção da constituição de uma exposição
desta feita virtual, a qual pudesse dar até maior visibilidade a tais objetos
e aos seus significados históricos, culturais, sociais e políticos não apenas
no seu contexto de produção, mas também hoje. A ideia era construir uma
exposição em colaboração com os Kamayurá, optando, assim, por uma
comunicação museológica em que a comunidade indígena abordada par-
ticipasse de forma ativa e criativa de sua execução e na qual aqueles que
nos haviam visitado se transformassem nos seus mediadores junto a seu
próprio povo. Nessa linha, são consideradas fundamentais, sobretudo, a

8 O mapeamento dos materiais disponíveis sobre os objetos escolhidos pelos Kamayurá foi
terminado no mês de janeiro de 2020, e quando estava começando o planejamento da fase
sucessiva de efetiva inclusão destes na exposição, em março, foi decretado na Bahia o estado
de emergência sanitária que tudo paralisou.

MEDIAÇÕES COM OS ÍNDIOS KAMAYURÁ DO ALTO XINGU/AMAZÔNIA/BRASIL... 47


interação e a negociação para estruturação do significado, a construção
de valores comuns e por que não questionamentos, diferenças e conflitos,
que não precisam necessariamente ser ocultados, senão mostrados no que
for possível? (CURY, 2005)
A disciplina Laboratório de Expografia foi ofertada no segundo semestre
de 2020 pelo Departamento de Museologia e organizada a partir de dois
eixos principais. O primeiro visava contemplar um conjunto de discus-
sões teóricas sobre as exposições museológicas digitais, os museus antro-
pológicos; a tecnomemória; as experiências comunicativas em museus e a
metodologia da escuta sensível. O segundo, de ordem prática, abordou o
uso do software Tainacan para a gestão e publicização de acervos digitais
pelos museus, sua utilização como ferramenta de apoio para a elaboração
e execução de um projeto de exposição sobre os objetos selecionados pelos
Kamayurá, bem como servir de plataforma digital para sua operaciona-
lização e acesso por parte do público com um mínimo de interatividade.
Sendo assim, docentes, discentes, técnicas e técnicos do MAE traba-
lharam ao lado dos Kamayurá na produção de um plano expográfico
que contemplou recursos, como fotografias, vídeos, textos, depoimentos
e músicas, com a intenção de produzir uma narrativa dinâmica e inte-
rativa. Para tanto, além das fichas de documentação desse museu e os
dados coletados a partir da pesquisa bibliográfica realizada pelos estu-
dantes da disciplina Antropologia e Museus, foram agregados ao plano
as fotografias, as gravações e os vídeos produzidos durante a visita dos
representantes dos Kamayurá ao Museu de Arqueologia e Etnologia da
UFBA. Além disso, foi incluído o acervo fotográfico relativo ao trabalho
de campo do antropólogo Pedro Agostinho da Silva, um documentário
sobre a atividade desse profissional e outras imagens e músicas disponi-
bilizadas na rede internet.
Esse material foi inserido na Plataforma Tainacan e apresentado duas
vezes aos Kamayurá. Na primeira vez, ainda em fase de esboço, incorpo-
rando as indicações oferecidas pelos Kamayurá e, sucessivamente, em
uma versão mais avançada, para que eles pudessem avaliar, sugerir ulte-
riores modificações e aprovar o produto final. Registra-se, ainda, que a

48 MARCO TROMBONI NASCIMENTO • PARIDE BOLLETTIN • SIDÉLIA TEIXEIRA


disciplina Laboratório de Expografia teve seu término em dezembro de
2020 e as versões da exposição para análise dos Kamayurá ocorreram no
período de janeiro até julho de 2021, respeitando-se, assim, o tempo da
própria comunidade e os seus processos decisórios internos. Após análise e
aprovação dela, a exposição ficou organizada em três módulos principais.
O conteúdo do primeiro módulo expográfico apresenta uma narrativa a
partir da perspectiva dos Kamayurá que foram para Salvador sobre o MAE/
UFBA. Estes demonstram a importância da coleção do MAE para a preser-
vação e compreensão da história e trajetória dos Kamayurá, ao tempo em
que realizam comparações sobre objetos antigos e atuais, registrando ser
necessário preparar os jovens da sua comunidade a partir do patrimônio
cultural. Além disso, afirmam que não existe uma “receita pronta” para
“preservar sua cultura”, mas que esperam encontrar essa resposta junta-
mente às equipes dos museus que possuem acervos da sua cultura. Ainda
nesse módulo, eles afirmam sua identidade brasileira, mas ressaltam que,
via de regra, não são tratados como cidadãos. São constatados, assim, a
importância e o valor político dessa colocação, especialmente, face aos
desafios históricos e atuais das populações Ameríndias. Com efeito, os
povos indígenas brasileiros enfrentam permanentemente uma luta para
a manutenção das suas terras e da sua cultura.
No segundo módulo, os representantes Kamayurá ratificam que
atualmente estão atentos às apresentações sobre a sua cultura e que, cada
vez mais, pretendem monitorar os discursos produzidos nas exposições
museais. Nesse módulo, é destacado que esse tipo de participação visa
também auxiliar e aprimorar o processo de comunicação dos museus,
mas que este não pode ser encarado como um ato isolado, ou seja, para
sua eficácia faz-se necessário o diálogo entre a comunidade produtora/
fruidora dos objetos e outros materiais incorporados nas exposições e os
técnicos dos museus que participem da sua elaboração. Os objetos selecio-
nados e analisados pelos Kamayurá revelam aspectos do cotidiano dessa
comunidade, por exemplo, preparação e guarda de alimentos, alguns de
seus rituais e os trabalhos do seu dia a dia.

MEDIAÇÕES COM OS ÍNDIOS KAMAYURÁ DO ALTO XINGU/AMAZÔNIA/BRASIL... 49


Já no terceiro módulo, são abordados o passado e presente por meio
dos objetos, ou seja, registra-se que alguns artefatos deixaram de ser fabri-
cados, porque foram substituídos por objetos de “fora” e em função da
diminuição da flora e fauna locais. Objetiva-se, assim, deixar claro que
esses artefatos obedecem a uma dinâmica cultural que deve se tornar
explícita nas exposições, de forma a evitar reificações e trivializações dos
próprios objetos e de seus produtores. Ainda nesse módulo, os Kamayurá
demonstram a necessidade de continuar usando determinados objetos
como um processo de autoafirmação, reforçando, assim, a importância
da sua preservação. A exposição disponibiliza também um espaço para os
visitantes apresentarem depoimentos sobre a mostra que, futuramente,
deverão ser analisados pela equipe do MAE/UFBA. Por solicitação dos
Kamayurá, foi inserido um link para as pessoas que o desejarem possam
contribuir financeiramente com essa comunidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo deste trabalho, constata-se o protagonismo do grupo indígena
Kamayurá que procura, cada vez mais, instrumentalizar seus membros,
ao mesmo tempo, como pesquisadores e responsáveis pela preservação
da sua própria cultura. Observam-se tanto uma compreensão ampla sobre
a importância do seu patrimônio, como também os receios e as ameaças
que a perda desses referenciais históricos e culturais representa para eles.
Esse sentimento em torno da necessidade de proteção dos bens cultu-
rais também é reforçado pelo sentido de urgência de sua incorporação à
educação e formação das novas gerações. Da parte do museu, afirma-se
a necessidade de compreender e aprimorar a comunicação em torno das
coleções dos museus etnográficos que retratam a cultura dos Kamayurá.
Demonstra-se, assim, a necessidade de tratar dos temas relacionados a
essa cultura, a partir dos objetos preservados, numa perspectiva cientí-
fica, primando pelo zelo e pela atenção. Isso implica construir um diá-
logo, profundo e progressivo, para negociar a construção das narrativas
expográficas realizadas pelas equipes das instituições museais.

50 MARCO TROMBONI NASCIMENTO • PARIDE BOLLETTIN • SIDÉLIA TEIXEIRA


Com efeito, ao longo dos meses de organização da exposição, um
desafio adicional surgiu no processo dialógico. Para além das dificuldades
de conexão à internet, principal via de comunicação, ou ainda dos efeitos
dramáticos da pandemia da covid-19, que afetou os Kamayurá, assim como
muitos outros povos Ameríndios, ficou claro que os “tempos” de atuação
respondiam a exigências e dinâmicas diferenciadas. Se por um lado, a
equipe do MAE respondia a um tempo ligado às dinâmicas institucio-
nais, que demandam resultados e “produtos” em tempos cada vez mais
rápidos; por outro, os Kamayurá seguiam um tempo ligado à discussão
coletiva e participativa na comunidade.
Essa discrepância gerou, em certos momentos, ansiedade na equipe
do MAE. Dessa forma, cabe refletir sobre as consequências para as prá-
ticas museais do encontro desses “tempos” diferentes e de que forma isso
afeta as possibilidades dialógicas e a própria prática institucional. A pre-
sente experiência revela ainda a importância dos processos de mediação
intercultural, da comunicação e construção de narrativas museológicas
interativas e participativas. Por outro lado, verifica-se o aprimoramento
dos processos de formação profissional através do uso dos museus univer-
sitários como laboratórios de prática interdisciplinar. Espera-se também
que experiências dessa natureza possam estimular e inspirar novos grupos
e museus na construção de uma sociedade diversa e plural.

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