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Benicio Targas
Para Nilo
Em caso de incêndio-mental,
faça-me visitas!
Os últimos anos de sua
vida estavam sendo
acompanhados pelo silêncio
da humilde casa, onde
passara bons tempos com a
sua querida esposa.
Andava inquieto e
pensativo. Sua intuição lhe
dizia que as Parcas já
haviam tecido a linha
inteira de sua existência.
O fim estava próximo.
Decidiu então exprimir
as navalhas que
infortunavam sua mente,
encontrou uma caneta e
rasgou um pedaço de papel
do pão que havia comprado
mais cedo, sentou-se numa
cadeira envernizada sobre
uma mesa desgastada e
escreveu:
“Um bêbado egocêntrico
só merece desprezo. Justo?
”
Nascia ali, sua primeira
nota. O primeiro suspiro de
alívio.
A noite havia sido
quente, um mormaço
insuportável.
Com sua pele enrugada
esticou o braço na cama de
casal, e abraçou apenas o
vazio.
Roseli significava tudo
para o velho Nilo. Apesar
do calor insuportável,
gostaria mais uma vez de
encostar-se a sua pele
macia.
Lembrou-se dela,
enquanto bebia água em sua
cozinha, com um olhar
distante para janela e um
pouco mais à frente estava
o seu quintal bagunçado.
Não há mais ordem em sua
casa.
Imediatamente foi
registrar aquela lembrança,
as palavras estavam por um
triz de sumirem.
Não se pode confiar na
memória de um velho:
“Ainda sonolento, notei
que uma jovem moça me
fitava com ternura. Seus
olhos estavam cheios de
vida, era possível perceber
que ainda experimentaria
muitas taças com o sabor da
vida. Eu era apenas um
homem corroído com quarenta
anos. Devo alertá-la que
sou um caso perdido? Pensei
comigo. Fiz Melhor. Desci
do ônibus na próxima parada
e sumi dos olhos da moça,
mas eu me tornaria um
misterioso homem e isto
despertara a sua
curiosidade; o destino
cooperaria para que eu a
encontrasse novamente. ”
Dia nublado. Nilo
mantinha sua rotina
impecavelmente, era uma das
formas de manter-se na
linha. Mantinha a sua
sanidade intacta.
Saindo de casa observou
alguns garotos jogando
bola, sempre quisera ter um
filho com Roseli. Foi à
padaria e pediu seu
habitual café sem açúcar.
Enquanto aguardava,
tirou seu bloco de notas do
bolso, pegou a caneta acima
de sua orelha e iniciou
suas anotações (estava um
pouco eufórico, percebeu
que tinha pegado a manha da
coisa):
“Eu sempre fui um bêbado
incurável, mas eu possuía
um espírito livre e meu
passatempo era me envolver
com mulheres frágeis,
dominá-las e usá-las como
eu bem quisesse. Percebi o
jogo virar com o passar dos
anos, a diversão tornara-se
um fardo, descobri que eu
possuía consciência,
ocasionando um infindável
sofrimento.
Decidi ir a uma igreja,
saber qual era a sensação
em confiar em um ser
invisível. Assisti a missa
inteira e perto do fim, ela
passou pelo corredor, eu a
reconheci instantaneamente,
era a moça do ônibus.
Abaixei a cabeça, porém não
foi o suficiente para me
esconder, ela também se
lembrava de mim.
Aproximando-se lentamente,
estendendo sua mão com um
sorriso esplendoroso e voz
suave, a jovem disse:
- Oi, seja bem-vindo!
Sou a Roseli e você?
Era um anjo que veio
salvar a minha alma.
Quando ela partiu,
pensei que voltaria a
automutilação com o álcool,
sei que ela ficaria
desapontada, mas por
incrível que pareça, hoje,
o cheiro de qualquer bebida
me traz ânsia, é como se
uma parte dela ainda
vivesse dentro de mim. ”
Era noite de pôquer. Um
hábito recente, pois nada
mais costumava ser como
deveria ser.
O filho e o afilhado
decidiram que todas as
quartas iriam jogar cartas
com o velho. Estavam
preocupados em deixá-lo
sozinho por um longo
período.
Nos últimos dias ele
sentia-se extra-sensorial,
tinha certeza que a
campainha tocaria,
instantes depois aquilo
aconteceu.
Atrás da porta estavam
os únicos parentes que lhe
sobraram: Seu filho (fruto
da irresponsabilidade na
juventude), e o filho do
seu melhor amigo (um irmão
que já havia concluído seu
combate nesta terra fria e
cruel).
Horas a fio, tomaram
refrigerantes, jogaram
várias rodadas e
divertiram-se juntos.
Para Nilo, ver os dois
ali interagindo, era como
olhar para um espelho, onde
se via abraçado com seu
querido amigo Gil. Agora,
mais do que nunca não havia
dúvidas sobre o poder que o
sangue dos antepassados
exerce nas vidas de seus
descendentes.
Mais animado que o
comum, resolveu contar-lhes
uma de suas desventuras:
“Rapazes, às vezes era
necessário apenas um bar
dos baratos, com uma mesa
de sinuca no fundo... E
isto já era mais do que
merecíamos! ”
Era a típica noite onde
as crianças brincavam até
mais tarde, enquanto seus
pais jogavam conversas fora
com os vizinhos no portão.
O clima estava
agradabilíssimo.
Um cheiro de cigarro
invadiu completamente a
sala, Nilo foi rapidamente
até a janela e lá fora um
grupo de garotos estavam
reunidos com suas baganas e
um deles estava tocando
violão eximiamente.
Enquanto fechava a
janela, lembrou-se
perfeitamente das suas
desventuras: Gil vagando
pelas ruas noturnas com um
vinho barato nas mãos e ele
buscando uma garota que o
compreendesse. Um maço,
violão e as melhores
intenções do mundo.
Demorou, mas Roseli
apareceu para compreendê-
lo. Nunca é tarde demais
para o amor.
Às vezes não há espaço
para arrependimentos,
conhecemos as pessoas
certas nos momentos certos,
talvez se o tempo tivesse
passado lentamente enquanto
esteve ao lado dela, ele
sentiria a sensação de
dever cumprido. Maldito
câncer, levou o seu anjo da
guarda tão cedo.
Com os olhos umedecidos,
Nilo rabiscou em um caderno
surrado:
“Se eu soubesse que você
partiria nos próximos três
meses, eu lhe abraçaria por
horas a fio e estaria ao
seu lado do amanhecer até o
anoitecer, eu te amo tanto
sabia? Não sei quanto tempo
mais aguento sem você! ”
Após exprimir as
palavras que o agonizavam
por dentro, o velho Nilo
sentiu uma forte dor no
peito e desabou no chão
desmaiado.
As paredes eram brancas,
havia uma persiana cobrindo
uma grande janela. Seu
corpo estava dormente.
Rapidamente percebeu que
estava num leito de
hospital, o cheiro era
familiar, pois passara
muitas noites em salas como
aquela, mas sempre como
visitante e não um
ocupante.
A enfermeira entrara na
sala e deixara o seu café
da manhã, abrira as
persianas e o brilho do sol
inundara o leito frio em
que o velho repousava.
Sua mente divagava,
parecia não escutar a
enfermeira dizer que haviam
visitas aguardando para vê-
lo, apenas concordou com um
movimento discreto com a
cabeça, mas estava se
confortando nos sonhos que
tivera antes de acordar,
numa varanda serena,
tocando um velho violão,
Roseli ao seu lado,
cantando com entusiasmo uma
de suas músicas favoritas:
anel de fogo, o laço deles
era como um incêndio que
nunca teria fim. Um trecho
da canção que mais lhe
intrigava, martelava em sua
mente:
“O sabor do amor é doce,
quando corações como os
nossos se encontram. Eu me
apaixonei por você feito
criança, mas o fogo nos
tornou selvagem. ”*
O velho Nilo sentia que
o rio de sua história havia
chegado ao fim, mas uma
força maior preferiu
contrariar a vontade do
velho e ainda mantinha o
coração dele batendo
avidamente. O médico de
plantão trouxera boas
novas, muito em breve ele
receberia alta.
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Incêndio Mental
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Ficha Técnica
Autor: Benicio Targas
Ilustrações: Deivs Mello
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Projeto Gráfico: Benicio
Targas
Revisão do Texto:
Benicio Targas