Percursos dos estudos da linguagem no Brasil: o lugar do
conceito de gênero
Sandoval Nonato GOMES-SANTOS
Universidade Federal do Pará
Pass J3, no. 30 – Conj. COHAB – Gleba 1 – 66.623-590 – Belém – PA – Brasil sandovalnonato@hotmail.com
Abstract. This paper presents an attempt to characterize the modes of
emergence of the concept of genre in the brazilian scientific research, focusing the themes and data as the reflection about this concept is stablished.
Resumo. Em trabalho anterior (Gomes-Santos, 2004), assinalamos que o
evento de emergência do conceito de gênero na conjuntura institucional brasileira mais recente instaura-se no interior de um conjunto de fenômenos e tendências, entre os quais destacamos a legitimação de questões de ordem didático-pedagógica como um lugar passível de se revestir de pertinência acadêmico-científica e, simultaneamente, a consolidação de uma certa autoridade do campo dos estudos da linguagem para tratar dessas questões. Com base nessa percepção, propomos discutir, neste trabalho, como um tal fenômeno se configura pelos temas e dados de que se ocupa a pesquisa acadêmica brasileira sobre gênero. Para tanto, apresentamos a descrição e análise de um corpus composto de artigos científicos que tematizam o conceito – publicados, entre 1998 e 2002, em periódicos especializados, anais de reuniões científicas e coletâneas.
Palavras-chave. conceito de gênero; pesquisa científica; temas; dados.
1. Introdução
Em trabalho anterior (Gomes-Santos, 2004), assinalamos que o evento de
emergência do conceito de gênero na conjuntura institucional brasileira mais recente instaura-se no interior de um conjunto de fenômenos e tendências, entre os quais destacamos a legitimação de questões de ordem didático-pedagógica como um lugar passível de se revestir de pertinência acadêmico-científica e, simultaneamente, a consolidação de uma certa autoridade do campo dos estudos da linguagem para tratar dessas questões. Uma tal percepção parece colocar em foco indagações relativas ao percurso mais recente de constituição de saberes da/sobre a disciplina lingüística no contexto brasileiro, entre as quais se pode destacar duas: i) como o conceito de gênero, ao adquirir prestígio para os estudos em lingüística e em lingüística aplicada, aponta para o fenômeno mais amplo de redefinição do próprio
campo dos estudos da linguagem, particularmente no que se refere à problematização das fronteiras entre o plano do teórico e o plano do aplicado e ii) como o conceito de gênero – em função da dimensão intervencionista que marca sua circulação na atual conjuntura institucional brasileira – dá visibilidade a temas mais tipicamente nacionais, tais quais a questão do ensino de língua portuguesa e a questão da inserção da sociedade brasileira, na multiplicidade identitária que a constitui, em práticas de letramento necessárias à participação cidadã. O que se busca questionar, a partir dessas indagações, é exatamente como o interesse da pesquisa em lingüística por questões de ordem didático-pedagógica, além da dimensão intervencionista de que se busca investir parte considerável de seus referenciais de investigação, tornam-se pertinentes no contexto particular de emergência do conceito de gênero. Um tal fenômeno será caracterizado com base na descrição e análise de um corpus composto de cento e cinqüenta e sete artigos científicos que tematizam o conceito – publicados, entre 1998 e 2002, em periódicos especializados, anais de reuniões científicas e coletâneas (Ver anexo). Quanto aos periódicos especializados e anais de reuniões científicas, buscamos contemplar aqueles editados sob a responsabilidade de três grupos de estudos regionais (CELSUL, GEL, GELNE) e de uma associação de lingüística (ABRALIN) reconhecidamente importantes no cenário nacional. No que se refere às coletâneas, foram consideradas as seguintes: Gêneros do discurso na escola; Gêneros textuais e ensino; Gêneros textuais e A prática de linguagem em sala de aula – praticando os PCNs. Entre as várias possibilidades de tratamento desse corpus, propomos abordar particularmente os enfoques temáticos e os dados privilegiados pela reflexão sobre gênero.
2. Algumas tendências da reflexão acadêmica brasileira sobre gênero
Afirmar que existe uma dimensão didático-pedagógica na reflexão sobre gênero
parece mais ou menos evidente. Essa dimensão ganha visibilidade pelo próprio modo de tratamento da chamada questão do gênero na pesquisa acadêmico-científica brasileira: expressões como ensino-aprendizagem de gêneros, gêneros escolares/gêneros escolarizados, gênero como objeto de ensino etc. buscam contemplar a complementaridade de problemas de ordem lingüística com aqueles de ordem mais propriamente didático-pedagógica. A partir da percepção dessa complementaridade, cabe o investimento em um segundo passo: descrever e analisar de que que modo essa dimensão didático-pedagógica materializa-se nos artigos científicos tomados como corpus deste estudo. Essa é a tarefa que propomos a seguir.
2.1. Dos enfoques temáticos privilegiados
Por enfoques temáticos referimo-nos aos recortes ou delimitações temáticos
propostos pelos trabalhos quando da reflexão sobre o conceito de gênero. Embora seja verdade que determinados enfoques temáticos são preferencialmente associados a certas tradições disciplinares e não a outras, não se pode conceber essa correspondência como definidora da reflexão sobre gênero em sua totalidade, uma vez que trabalhos ligados a correntes teóricas diferentes podem ocupar-se de temas similares e, inversamente,
enfoques temáticos diferentes podem integrar trabalhos pertencentes a uma mesma corrente teórico-disciplinar. A tabela a seguir expõe os principais enfoques temáticos.
Tabela 1: Enfoques temáticos da reflexão sobre o conceito de gênero
Enfoques temáticos No. de artigos %
científicos 1. Análise de fatos da dimensão textual-enunciativo- 48 30,6 discursiva da linguagem ou análise de questões macrodiscursivas em gêneros particulares 2. Identificação, análise, caracterização ou descrição de 48 30,6 gêneros com objetivos os mais diversos 3. Problematização de questões de ordem didático- 41 26 pedagógica pelo recurso às teorias e/ou à descrição e ao uso de gêneros 4. Problematização do conceito por meio de visadas 18 11,5 históricas, pela reflexão de cunho teórico- epistemológico ou pela discussão sobre opções metodológicas e dispositivos de análise 5. Outros enfoques temáticos 2 1,3 TOTAL 157 100
Não deixa de chamar a atenção o caráter de complementaridade que tais
enfoques apresentam: de um lado, temos a tendência de análise de fenômenos de linguagem em gêneros particulares associada ao interesse de descrição de gêneros – ambas implicando na caracterização de gêneros; de outro, a necessidade de clarificar o próprio conceito por meio de sua problematização. Em outros termos, no primeiro caso, pressupõe-se um determinado conceito de gênero, o que é necessário para que se proceda à análise de fenômenos da linguagem e à descrição de certas produções de linguagem tomadas como gênero; já no segundo caso, é o próprio conceito – como construto teórico e metodológico – que é posto em questão. Dado o objetivo deste trabalho, cabe destacar a proeminência, no corpus considerado, do enfoque relativo à problematização de questões de ordem didático- pedagógica pelo recurso às teorias ou à descrição e ao uso de gêneros. Nesse bloco foram agrupados os trabalhos que focalizam a relação do conceito de gênero com alguma preocupação de ordem didático-pedagógica. Nessa direção, os trabalhos apresentam os mais diversos interesses, podendo problematizar seja a questão do ensino de língua, de leitura e de escrita em contexto escolar, seja a formação de professores. Podem contemplar também a análise de materiais didáticos ou propor atividades didáticas para o ensino de um determinado gênero. Há ainda os que tratam do processo de produção de um determinado gênero ou descrevem intervenções didáticas (programas de alfabetização, por exemplo) fundamentadas no conceito de gênero, entre outros aspectos. Embora mais proeminente nesse bloco de trabalhos, a investigação de temas que se localizam no domínio das práticas didáticas atravessa, em uma certa medida, vários dos outros enfoques, o que indicia o papel central e articulador do conceito de gênero na discussão de temas mais tipicamente didáticos e, inversamente, o
quanto ele é pertinente quando a reflexão didática se volta para questões mais tipicamente lingüísticas. Definidos os enfoques temáticos da reflexão sobre gênero, vejamos a seguir os tipos de dados sobre os quais se volta essa reflexão.
2.2. Tipos de dados analisados na reflexão sobre o conceito de gênero
Nesta seção, são considerados os vários tipos de dados de que se utilizam os
trabalhos quando da reflexão sobre o conceito de gênero. A opção que determina quais os dados pertinentes para um determinado projeto de investigação não se dissocia das escolhas temáticas que fazem os trabalhos. No conjunto dos dados de que dispomos, há trabalhos, entretanto, cujos objetivos não contemplam a análise de qualquer corpus. Daí que uma primeira distinção se faz necessária:
Tabela 2: Organização dos trabalhos segundo a análise ou não de dados
Quanto à análise de dados Nos. de artigos científicos %
Trabalhos que não analisam dados 22 14 Trabalhos que analisam dados 135 86
Os trabalhos que analisam dados, por sua vez, distribuem-se segundo a tabela a seguir.
Tabela 3: Tipos de dados analisados na reflexão sobre o conceito de gênero
Tipos de dados analisados na reflexão No. de artigos %
sobre o conceito de gênero científicos 1. Dados de natureza escolar ou didático- 47 34,8 pedagógica 2. Dados da (ou em suportes da) mídia impressa, 36 26,7 falada, televisiva ou eletrônica 3. Dados de natureza acadêmico-científica em 17 12,6 suportes diversos 4. Outros tipos de dados ou conjugação de dados 35 25,9 diversos TOTAL 135 100
As preocupações de ordem escolar e/ou didático-pedagógica parecem ser o
móvel principal para a constituição de grande parte dos corpora analisados nos trabalhos. Essas preocupações diversificam-se bastante conforme o tipo de foco que se dispensa aos dados sob análise. Entre os tipos de material que mantêm alguma relação com um enfoque escolar, didático e/ou pedagógico, temos como mais proeminentes em freqüência os textos de diversos gêneros produzidos por alunos em contexto escolar e/ou universitário, o que pode incluir textos produzidos em início de escolarização e aqueles relativos ao nível médio ou superior de escolaridade; ou, ainda, aqueles produzidos em esferas particulares de escolarização, como a alfabetização de jovens e
adultos ou cursos profissionalizantes. Há também textos escolares designados segundo um princípio classificatório suposto como tal pelos trabalhos – textos dissertativos, textos descritivos; textos narrativos. Ainda sob um enfoque didático, é relevante o número de trabalhos que opta por textos produzidos por professores em situação de prática de ensino ou em contexto de formação. Os textos de professores configuram-se como análise escrita de material didático, relatos escritos etc. Dois outros tipos de dados integram aquilo que mencionamos como preocupações de natureza escolar e/ou didático-pedagógica: inicialmente, as produções didáticas, tais como propostas didáticas para o ensino de língua, leitura e escrita, documentos oficiais de normatização do ensino, livros didáticos, questionários dirigidos a professores, prova de Vestibular. Por fim, os eventos de trocas interativas constituem um último viés do conjunto de dados de que se ocupam os trabalhos que enfocam alguma preocupação de ordem escolar e/ou didático-pedagógica. Tais eventos consistem tanto em aulas filmadas e transcritas, quanto em situações de interação em oficinas de formação de professores (em serviço ou pré-serviço), além de outros eventos, como interação professor-alunos em sala de aula e produção de um determinado gênero em situação experimental. Não é difícil detectar a correspondência entre os dados de que se ocupa a pesquisa e os vários enfoques temáticos por ela privilegiados: a alta freqüência, por exemplo, de dados de natureza escolar e didático-pedagógica no conjunto dos trabalhos parece coerente com o significativo número de trabalhos que têm como enfoque temático a problematização de questões de ordem didático-pedagógica. Apenas essa correspondência já dá a medida de quanto a reflexão sobre gênero, confusa à primeira vista, guarda coerências, o que tem conferido pertinência teórico-metodológica a objetos de pesquisa que acabam por ganhar um estatuto particular quando apreendidos nos limites do conceito de gênero.
3. Considerações finais
Considerando o corpus de que se ocupou este trabalho, pode-se afirmar que o
evento de emergência do conceito de gênero na conjuntura acadêmico-científica brasileira mais recente atualiza a possibilidade de se articularem questões teóricas com questões mais aplicadas – especialmente com aquelas ligadas ao ensino de língua na escola. Não é à toa, nessa direção, que o conceito de gênero aparece como pertinente para estudos explicitamente ligados à área de lingüística aplicada e àqueles que – embora mais ligados ao que se convencionou chamar, de modo mais ou menos indistinto, de lingüística do texto, do discurso, da enunciação – manifestam algum tipo de preocupação de ordem didático-pedagógica. Essa natureza didático-pedagógica que marca a reflexão mais recente sobre gênero explica, em grande medida, dois fenômenos: primeiramente, o interesse da pesquisa acadêmica pela caracterização de produções de linguagem tomadas como gênero, as quais, uma vez descritas, podem ser didatizadas. Trata-se, nessa direção, de um investimento investigativo direcionado ao pólo da produção de gêneros, considerados produtos-dados a serem analisados. Em segundo lugar e complementarmente, a reflexão sobre a necessidade e os modos possíveis de inserção das comunidades lingüísticas e de suas práticas linguageiras no mundo letrado sócio- historicamente estabelecido como legítimo. Nesse caso, estaríamos diante de um investimento mais propriamente ligado ao pólo da recepção de gêneros em contextos de produção de linguagem particulares. Essa natureza de investimento – diríamos,
intervencionista – aparece como possibilidade de problematização da relevância social de que se busca investir o exercício acadêmico-científico e, no limite, supõe contemplar a intervenção efetiva no processo de incremento do capital simbólico dos indivíduos por meio da apropriação, pelos mesmos, de gêneros necessários à participação cidadã. Esses dois pólos de interesse para os quais se tem voltado a pesquisa acadêmico-científica sobre gênero, no Brasil, ao se constituírem em objetos complexos de reflexão no contexto dos estudos da linguagem, demarcam as fronteiras em que se encontram campos do saber particulares, entre os quais, a lingüística aplicada, a lingüística textual e a análise do discurso. É ainda a atenção a esses dois pólos que deverá garantir, pelo menos parcialmente, a continuidade da pertinência da reflexão sobre gênero no contexto brasileiro, bem como marcar os tópicos de prestígio no percurso dessa reflexão daqui em diante.
4. Referências bibliográficas
GOMES-SANTOS, Sandoval Nonato. A questão do gênero no Brasil: teorização
acadêmico-científica e normatização oficial. 2004. 251 f. Tese (Doutorado em Lingüística) – Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas (SP).
Anexo: Publicações consultadas
Periódico/Ano 1998 1999 2000 2001 2002 Total
1. Boletim da ABRALIN (nos. - 12 1 42 - 55 23, 25 e 26)
2. Anais do 4o. Encontro do - - - 1 - 1
CELSUL 3. Anais das XVI e XVII - 6 23 - - 29 Jornadas do GELNE 4. Estudos Lingüísticos XXVII, 3 4 4 12 7 30 XXVIII, XXIX, XXX, XXXI Total de artigos 115
Título da coletânea Organizadores Vínculo Editora/ Local, Data No. de
institucional de publicação artigos A. Gêneros do discurso na M. H. N. Brandão USP Cortez Editora/ São 5 escola Paulo, 2000 B. Gêneros textuais e A. P. Dionísio UFPE Lucerna/ Rio de 15 ensino A. R. Machado PUC-SP Janeiro, 2002 M. A. Bezerra UFPB C. Gêneros textuais J. L. Meurer UFSC EDUSC/Bauru (SP), 13 D. Motta-Roth UFSM 2002 D. A prática de linguagem R. Rojo PUC-SP EDUC e Mercado de 9 em sala de aula – Letras/São Paulo e praticando os PCNs Campinas, 2000 Total de artigos 42
Nação tarja preta: O que há por trás da conduta dos médicos, da dependência dos pacientes e da atuação da indústria farmacêutica (leia também Nação dopamina)