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Capítulo 1 – Abordagem da escrita acadêmica sob a perspectiva dos gêneros

(...) gêneros são o que as pessoas reconhecem como gêneros a cada momento do
tempo, seja pela denominação, institucionalização ou regularização. Os gêneros
são rotinas sociais de nosso dia-a-dia.(Marcuschi, 2008, p.16)

A discussão sobre os gêneros do discurso não é nova pois as idéias de Bakhtin


circulavam na Europa desde os anos de 1950, no entanto emergiu, no Brasil como um
campo privilegiado de pesquisas na década de 1980. Nestes últimos setenta anos,
pesquisadores de várias nacionalidades e de diferentes áreas do conhecimento dedicaram-
se ao estudo mais sistemático dos gêneros, como se pode ver pela diversidade de
publicações tratando do tema. Neste trabalho, optou-se por fazer uma revisão, a partir do
precursor dessas discussões, Bakhtin (1997), passando depois por algumas tradições no
estudo de gêneros , cujas abordagens são tão diferentes que a elas se convencionou nomear
“escolas” cf. Hyon (1984): a ESP (English for Special Purposes) ou escola Britânica, a
escola de Sidney e a Nova Retórica (ou escola norte-americana). Embora a escola de
Genebra e os trabalhos de Bronckart, bem como os de Schneuwly, Dolz e Noverraz, não
estejam presentes na discussão de Hyon incluem-se, neste capítulo, algumas questões
relativas ao gênero na perspectiva da escola de Genebra, considerando sua importância no
cenário acadêmico atual. Para finalizar, foram revisitados outros aportes teóricos
importantes para a pesquisa em questão: Maingueneau (1996) e, mais especialmente, as
contribuições de Jean-Michel Adam (1997,1999).
A despeito das diferenças entre as várias abordagens, destacam-se, entre elas, pontos
em comum, como o fato de reconhecerem (em maior ou menor grau, a depender da
abordagem) a importância do aspecto social na análise e compreensão dos gêneros, e,
portanto, do papel do contexto na produção escrita (Freedman & Medway 1994:10). Essa
noção, que parece ser a mais básica a orientar os estudos sobre gêneros, representa uma
ruptura com a abordagem das gramáticas de texto, cujos princípios analíticos não
abrangem uma série de desdobramentos, problemas e desafios deixados de lado pelos
estudos centrados na palavra, na frase ou na estrutura interna do texto, ou seja, centrados
apenas em seus traços formais ou propriedades linguísticas.
No Brasil, vários autores também se dedicam ao estudo dos gêneros, dentre os
inúmeros trabalhos, já publicados, recorreu-se aos estudos de Marcuschi (2002) tratando
dos gêneros, sua definição e distinção dos tipos textuais. Neste artigo, o autor pontua os
três principais aspectos que caracterizam os gêneros: a maleabilidade, dinamicidade e
plasticidade: “Eles surgem, situam-se e integram-se funcionalmente nas culturas em que se
desenvolvem” (Marcuschi, 2002, p.20). Tais aspectos, de certa forma, orientam a
abordagem mais voltada para os aspectos sócio-comunicativos e funcionais, em detrimento
dos aspectos formais. Particularmente, considerou-se mais conveniente adotar abordagens
que abranjam ambas as dimensões, mais adiante nas considerações a respeito do quadro
teórico proposto por Adam (2011) essa questão será retomada.
De todo modo, resta ainda um problema nas proposições que privilegiam os aspectos
sócio-comunicativos e funcionais, pois suas bases de análise são heterogêneas,
contrastando com os critérios de análise formal, de natureza mais homogênea ou restrita.
Neste sentido, classificar e descrever o comportamento de um determinado gênero torna-se
um desafio para os estudiosos do texto e dos gêneros ou como diria Coutinho (2007):
Na bibliografia especializada, parecem consensuais as reservas relativamente à
possibilidade de descrição de géneros – tendo em conta, por um lado, a
multiplicidade de factores e de critérios que podem intervir nessa tarefa e, por
outro, a natureza mutável que os caracteriza (de que decorre o facto de serem,
teoricamente, em número infinito). Ao mesmo tempo, admite-se que qualquer
texto se relaciona com um género, que reproduz de forma mais fiel ou mais livre.
Assim sendo, parece impor-se a necessidade de pensar, em termos
metodológicos, a viabilidade de descrição de géneros de texto – tanto mais que
estes só se tornam acessíveis através de textos empíricos que constituem
exemplares do género, como já atrás ficou sublinhado. Como se poderá
circunscrever a descrição e análise de géneros – que por definição só são
observáveis através de textos efectivamente realizados? Quais os contornos
epistemológicos e as reservas metodológicas que poderão sustentar um trabalho
efectivo sobre géneros de texto? (COUTINHO, 2007, p.639)
Diante deste questionamento, pareceu importante considerar os critérios, que
segundo Bronckart ,sd, p.4 (apud Ramires 2005) , devem ser levados em conta na tarefa de
descrição e análise de gêneros: os critérios psicológicos , pragmáticos e os linguísticos, a
utilização de um desses critérios ou de uma combinação deles caracteriza as diferentes
abordagens de gêneros, que, embora divergentes (em maior ou menor grau), dão contornos
aos modelos teóricos, assim como às terminologias e categorias que os caracterizam. De
todo modo, como já se observou anteriormente, há alguns pontos em comum nas diversas
abordagens sobre gêneros, alguns dos quais estão elencados abaixo:
- Gêneros possuem um caráter sociocomunicativo, ou seja, materializam-se em
textos concretamente situados em contextos sociais de uso;
- São regulados por normas definidas na comunidade discursiva;
- Em algumas abordagens (especialmente a da escola norte-americana) seu estudo
parece privilegiar os aspectos funcionais em detrimento de aspectos formais ou estruturais.
Tendo em vista essas considerações mais gerais, passa-se a uma exposição,
inicialmente sobre questões de ordem terminológica e conceitual abrangendo os conceitos
de gênero, texto e discurso, para então dedicar-se aos principais estudos de gêneros,
buscando reconhecer as principais contribuições para esta pesquisa, iniciando pela visão
bakhtiniana sobre gêneros, por considerá-lo precursor e a base de quase todos os estudos
posteriores, a escola Norte-americana, a escola de Sidney, a escola Britânica (ou English
for Special Purposes – ESP), a escola de Genebra e alguns outros autores não vinculados a
nenhuma dessas escolas, mas cujos trabalhos são ainda relevantes para esta pesquisa.

1.1 A evolução do conceito de gêneros


O termo gênero de discurso tem sua origem na tradição greco-latina aristotélica. Os
primeiros modelos de análise discursiva se limitavam ao modelo platônico do discurso,
baseado na expressão, recepção e mímese, em tal modelo entende-se que as dimensões
sociais, contextuais, culturais e dialetais estão, obviamente, ignoradas em detrimento de
um esquema retórico universal e escrito, derivado, principalmente das línguas grega e
latina. Desta forma, as primeiras tipologias genéricas se encerram num sistema fechado de
classificação: os gêneros da oratoria, relacionados à vida na cidade e correspondendo às
estratégias argumentativas particulares, sendo, por isso, ensinadas com essa finalidade.
Até mesmo os gêneros literários foram, por muito tempo, apresentados numa lista
finita e normativa que corresponderia às normas de classificação que prevaleceram em
praticamente todos os sistemas de ensino até meados do século XX: no ensino clássico, tais
normas classificatórias confinavam as obras num sistema fechado de classificação a partir
da co-ocorrência de traços caracteríticos de obras tidas como modelos. Esta noção de
gênero, construída com vistas à aquisição de modelos, adequava-se à descrição dos
corpora fechados representados pelos textos da tradição. (cf. Branca-Rossof,1999, p.5)
De fato, as tipologias clássicas de gêneros literários começaram, lentamente, a se
diluir, a partir do século XVII, na medida em que as produções da época deixaram,
paulatinamente, a deixar de corresponder fielmente ao corpus fechado das obras ensinadas.
O romance, assim, forjou seu lugar no universo dos gêneros literários transgredindo as
coerções genéricas, embora as convenções e restrições genéricas tenham permanecido
ainda fortes até o século XIX. De modo geral, progressivamente tomou forma a
consciência de que o gênero não se confina a uma categoria fixa numa tipologia imutável,
sendo, sobretudo, um objeto em constante mutação, que emerge, evolui e desaparece de
acordo com as épocas e os contextos. Mais do que uma mera unidade de classificação, os
gêneros se tornaram um objeto de descrição linguística.
Desde Bakhtin até os dias de hoje, entende-se que o estudo de gêneros chama a
atenção de diversas áreas, favorecido por diferentes abordagens. A particularidade desses
estudos consiste em relacionar os gêneros às práticas sociais enquanto espaços de trocas e
interesses na linguagem como construtora dos gêneros. Entende-se, desta forma, porque a
questão dos gêneros despertou tanto o interesse de diversas disciplinas e diversas
abordagens desde meados do século XX: para além dos domínios linguísticos, os gêneros
podem ser abordados por diferentes pontos de vista, tanto sociológico, como antropológico
ou psicológico, inspirados em numerosos eixos de análise pluri ou interdisciplinar.
Concebê-lo como uma entidade de dupla face (Branca-Rossof, 1999), uma social e outra
linguística, é o que determina o grau de complexidade da análise, assim, nos próximos
tópicos, dedicar-se-á a alguns modelos de análise de gêneros, atrelados a concepções
diversas, a fim de examinar as modalidades de descrição genérica.

1.1.1 A discussão bakhtiniana sobre os gêneros


Falar em gêneros textuais, gêneros acadêmicos, ou ainda, nas várias perspectivas de
análise de gêneros, requer (não obrigatoriamente, mas desejavelmente) retomar a
contribuição importante das ideias de Bakhtin e seu círculo, especialmente as teses
discutidas na “Estética da Criação Verbal”, obra em que se apresenta, dentre outras
discussões, a questão dos gêneros do discurso, calcada nos conceitos de dialogismo e
interação verbal.
Para Bakhtin os enunciados são o produto das atividades humanas, em outras
palavras, as esferas1 de atividade humana estão ligadas à utilização da língua e aos modos
de utilização. Nos comunicamos por meio de enunciados, e não por palavras ou frases
isoladas, e esses usos (oral ou escrito) da língua refletem as condições específicas e cada
uma das esferas de ação humana, assim, cada uma dessas esferas elabora seus tipos
relativamente estáveis de enunciados, chamados por Bakhtin de “gêneros do discurso”
(Bakhtin, 1997, p. 262).
Como resultado da atividade humana não se poderia esperar um produto homogêneo,
compreendendo que tão variadas são as ações humanas quanto são os gêneros, pois cada
esfera de atividade produz um determinado repertório de gêneros que se diferem também
em função da complexidade da esfera social. Ponderando sobre a estabilidade dos gêneros
1
. A noção de “esferas” é, sob diferentes denominações, recorrente nos estudos linguísticos e sociológicos e tende a designar um espaço
da experiência humana organizado, dentre outros fatores, em torno de relações sociais e de um conjunto de princípios e esquemas de
produção e recepção de discursos mais ou menos estáveis. Considerando a população a ser avaliada, podem-se definir as seguintes
esferas e gêneros de discurso a elas associados: esfera da vida doméstica (listas de compras, manuais de instrução de equipamentos
diversos, rótulos e embalagens de produtos, bilhetes, cartas, convites, lista de telefones ou endereços, agenda, calendário, receitas
culinárias, diário, regras de jogos); esfera do espaço urbano (placas, cartazes, sinalização, quadros de horário de ônibus, etc.); esferas da
vida pública (documentos como carteira de identidade, certidões,contas, cheques, faturas, etc); esfera escolar (listas de materiais e de
atividades, enunciados de atividades, definições, textos de diferentes áreas de conhecimento, manual didático, boletins e outros
documentos - tais como ocorrências, bilhetes aos pais,etc - dicionário, enciclopédia.) esfera jurídica (contratos, petições judiciais,
sentenças judiciais, etc.). Limito-me, nesta lista, a essas esferas - não considero-a completa, ao contrário - entendendo que estendê-la
ainda mais seria exaustivo e desnecessário.
de determinadas esferas, Bakhtin (1997) ainda observa que a variedade de gêneros orais ou
escritos pode ser um entrave na definição do caráter genérico do enunciado, mas não
impossibilita seu estudo.
Não se deve, de modo algum, minimizar a extrema heterogeneidade dos gêneros
discursivos e a dificuldade daí advinda de definir a natureza gera do enunciado.
Aqui é de especial importância atentar para a diferença essencial entre os
gêneros discursivos primários (simples) e secundários (complexos) - não se trata
de uma diferença funcional. Os gêneros discursivos secundários (complexos –
romances, dramas, pesquisas científicas de toda espécie, os grandes gêneros
publicísticos, etc..) surgem nas condições de um convívio cultural mais
complexo e relativamente muito desenvolvido e organizado (predominantemente
escrito) artístico, científico, sociopolítico, etc. (BAKHTIN, 1997, p. 263)
Seguindo Bawarshi e Reiff (2010, p.25-28) pode-se dividir a discussão bakhtiniana
sobre as relações entre os gêneros em dois eixos: um horizontal e um vertical. No eixo das
relações horizontais encontra-se uma descrição da relação dialógica dos gêneros e de como
um gênero se configura como uma resposta a outro dentro de uma esfera de atividade
humana. A autora menciona, como exemplo, as chamadas para publicação, em que se pode
considerar tanto as chamadas para publicação em periódicos científicos como em anais de
eventos, tais chamadas geram propostas de artigos que tanto podem ser aceitos quanto
refutados, e aí temos outro gênero, a carta de aceite, da mesma maneira, há a tese, a
dissertação e a monografia, as quais engendram outros gêneros como a sessão de defesa,
bem com as atas dessa sessão. Isso, só para citar dois poucos exemplos do mundo
acadêmico, há todo um universo de relações horizontais para exploração do analista.
As relações verticais dizem respeito ao que Bakhtin denomina gêneros primários e
secundários. Os gêneros primários, tidos como simples, são forjados nas circunstâncias
mais comuns de comunicação verbal espontânea, no dia a dia das pessoas, em outras
palavras, para Bakhtin, os gêneros primários tomam forma numa atividade de comunicação
não mediata, o que significa que eles mantêm uma relação imediata com a realidade e com
as falas reais, tais gêneros são também considerados como base para a constituição dos
gêneros secundários, estes considerados complexos e surgem em situações comunicativas
mais complexas, como por exemplo, a escrita científica, literária, etc. Uma conversa
telefônica, é, sem sombra de dúvida, um gênero primário, no entanto, essa mesma
conversa, gravada e posteriormente usada num julgamento judicial já é um gênero
secundário, o gênero primário foi alterado e absorvido pelo secundário, e uma vez
recontextualizado passa, a partir daí, a exibir outras características que o complexificam.
As relações verticais nas quais os gêneros secundários absorvem e alteram os primários são
de grande valia na análise de como os gêneros literários e os cotidianos interagem para
formar e transformar as práticas sociais.
O conceito bakhtiano de gênero ancora-se no tripé estilo (seleção lexical, arranjos e
recursos fraseológicos e gramaticais), tema (o conteúdo) e construção composicional. Estes
três elementos estão indissoluvelmente fundidos nos enunciados e são marcadas pelos tipos
de ações mediadas pela língua nas esferas de atividades humanas.
Como o autor se refere, na maior parte de sua obra, ao discurso literário, o estilo
ganha contornos mais privilegiados de estudos na obra bakhtiniana. Para Bakhtin, o estilo
está relacionado fortemente à construção composicional e ao tema. Em grande parte de sua
obra, o autor dispende mais tratos ao discurso literário, de maneira que o estilo está
presente em toda a obra bakhtiniana, apresentando-se como acabamento estético.
Analisando o estilo, Bakhtin critica a estilística tradicional e estabelece uma estreita
ligação entre o conceito de estilo e o de gêneros do discurso. Desta forma, compreende-se
o estilo como um dos elementos basilares na constituição da genericidade: “Quando há
estilo, há gênero. ” (Bakhtin, 1997, p. 287). É, segundo o autor, no estudo das formas e das
categorias que encontraremos o estilo, trata-se de um acabamento estético e provisório,
resultado de uma atividade intrinsecamente relacionada às definições ideológicas e de
natureza dialógica que pressupõe a existência de um interlocutor. Assim, a elaboração do
discurso considera não apenas a atitude responsiva do interlocutor como também antecipa
a resposta, presumida ainda antes de ser enunciada. A imagem (e as expectativas dela
decorrentes) que se tem deste outro é tão fundamental que determina, segundo Bakhtin, a
escolha do gênero, dos procedimentos composicionais e, do estilo adotado:
O estilo é indissociavelmente vinculado a unidades temáticas determinadas e, o
que é particularmente importante, a unidades composicionais: tipo de
estruturação e de conclusão de um todo, tipo de relação entre o locutor e os
outros parceiros da comunicação verbal (relação com o ouvinte, ou com o leitor,
com o interlocutor, com o discurso do outro, etc.) (BAKHTIN, 1997, p. 285)
Quanto ao tema, pode-se defini-lo como conteúdos de “um querer-dizer” através de
uma forma, no entanto, não se resumem a um assunto e seu sentido, mas, principalmente,
os contornos que lhe garantem um lugar dentro de uma situação de interação social. O
tema é, então, determinado pelas formas linguísticas e pela situação interacional
(extraverbal) compartilhada pelos interlocutores. Associado ao estilo e à construção
composicional, o tema é marcado também pela esfera sócio-verbal, caracterizando, assim,
o enunciado. Em outras palavras, trata-se de como o assunto é tratado num texto, sua
significação e orientação argumentativa. Além de expressar o conteúdo, o tema também
vincula aspectos valorativos conferidos ao enunciado, estabelecendo um diálogo entre os
interlocutores e entre outros enunciados.
A composição abrange a estruturação e enquadramento formal do enunciado, em
outras palavras, a forma escolhida para realizar o “querer-dizer” de um locutor. A escolha
de um gênero é determinada em função da especificidade de um determinado campo da
comunicação, do tema e da intencionalidade:
O querer-dizer do locutor se realiza acima de tudo na escolha de um gênero do
discurso. Essa escolha é determinada em função da especificidade de uma dada
esfera da comunicação verbal, das necessidades de uma temática (do objeto do
sentido), do conjunto constituído dos parceiros, etc. Depois disso, o intuito
discursivo do locutor, sem que este renuncie à sua individualidade e à sua
subjetividade, adapta-se e ajusta-se ao gênero escolhido, compõe-se e
desenvolve-se na forma do gênero determinado. Esse tipo de gênero existe
sobretudo nas esferas muito diversificadas da comunicação verbal oral da vida
cotidiana (inclusive em suas áreas familiares e íntimas). (BAKHTIN, 1997,
p.302)
No nível da forma composicional estabelece-se a construção das relações entre os
elementos que compõem o enunciado e a estrutura do gênero, e de como essas relações se
organizam no nível da estrutura textual.
De acordo com Marcuschi (2005, p. 21) a forma em alguns casos é determinante do
gênero, embora não possa ser considerada, primordialmente, o elemento que o caracteriza,
sugerindo ao analista que se acautele contra o hábito de tomar apenas a forma, ou apenas
as funções como parâmetros para determinação e identificação do gênero. Nesta
perspectiva o gênero não existe por si só, mas se constrói necessariamente numa relação
interacional entre os falantes de uma língua, em contextos de usos institucionais e em
atividades sociais.

1.1.2 A Escola Norte-americana (ou a Nova Retórica)


A exposição sobre os estudos desta escola se inicia tomando de empréstimo uma nota
de rodapé muito esclarecedora em “Shapping Written Knowledge” em que Bazerman
(1988) define em quais bases se concebe o termo “retórica”:
Por retórica, eu quero dizer mais abrangentemente o estudo de como as pessoas
usam a língua e outros simbolos para atingir seus objetivos e executar suas
atividades. Retórica é, em otras palavras, um estudo prático que pode oferecer às
pessoas maior controle sobre suas atividades simbólicas. Algumas vezes foi
associada às técnicas limitadas e apropriadas para tarefas específicas de
persuasao política ou forense dentro de instituições legais européias.
Consequentemente, as pessoas consideravam que a retórica não oferecesse
técnicas e analyses apropriadas para outras áreas. Essas pessoas tendiam a
acreditar, equivocadamente, que sua rejeição à retorica forense e política
removeria sua atividade de um campo de atividade simbólica, estratégica e
proposital. Eu não faço um uso retórico tão estrito para me referir ao estudo de
todas as áreas de atividade simbólica..2 (BAZERMAN, 1988, p.6)

2
By rhetoric, I mean most broadly the study of how people use language and other symbols to realize human
goals and carry out human activities. Rhetoric is ultimately a practical study offering people greater control
over their symbolic activity. Rhetoric has at times been associated with limited techniques appropriate to
specific tasks of political and forensic persuasion within European legal institutions. Consequently, people
Convencionou-se denominar escola norte-americana, ou escola da Nova Retórica, os
estudos de pesquisadores norte-americanos, cujos trabalhos se inseriam na retórica
tradicional, influenciados pelos temas da produção textual acadêmica e produção textual
em língua materna. A essa orientação passou a se denominar, posteriormente, Nova
Retórica, em que se inseriam pesquisas originadas de diversas disciplinas sobre ensino de
L1, em cujo foco se incluíssem a retórica, os estudos sobre produção textual e escrita em
contexto profissional/acadêmico.
A escola chamada Nova Retórica relaciona-se aos estudos da linguagem na
perspectiva de reconfigurar o papel da Retórica nos estudos de textos específicos, detendo-
se num ponto de vista mais funcionalista, voltada para o caráter dialógico que marca a
estrutura do texto e seus usos e contextos de produção, sem, no entanto, desprezar a
estabilidade (já discutida desde Bakhtin) que os arranja em vários gêneros. Na abordagem
da Nova Retórica, as questões de linguagem estão a serviço da análise da produção,
circulação e consumo de textos, e sob esse viés, os estudos propuseram diversas
orientações teórico-metodológicas para a análise de gêneros textuais, sem se deter em
detalhes sobre essas orientações. Apresentam-se, neste item, alguns dos principais
representantes dessa vertente.
A arquitetura dessa orientação se configura, inicialmente, pelo trabalho de Carolyn
Miller, publicado em 1984, intitulado “Genre as social action”. Sob a rubrica “Nova
Retórica” abrigam-se trabalhos cujo foco incide mais sobre os contextos situacionais em
que os gêneros ocorrem do que na forma desses gêneros, enfatizando, principalmente, os
propósitos sociais e as ações desencadeadas pelos gêneros nessas situações de
comunicação, incluindo-se aí os trabalhos de Bazerman (1988, 2000, 2004, 2006),
Freedman e Medway (2004), e vários outros. O artigo de Miller (1984) teve o mérito de
delinear os pressupostos da teoria de gênero da Nova Retórica dentro das disciplinas de L1:
(…) uma definição retórica de gênero não deve ser focada na substância ou
forma do discurso mas na ação usada para realiza-lo. Para isso, eu examinarei a
relação entre gênero e situação recorrente bem como o modo pelo qual se diz que
genero reepresenta uma ação retórica tipificada. Minha análise também

concerned with other tasks have considered rhetoric to offer inappropriate analyses and techniques. These
people have then tended to believe mistakenly that their rejection of political and forensic rhetoric has
removed their own activity from the larger realm of situated, purposeful, strategic symbolic activity. I make
no such narrowing and use rhetoric (for want of a more comprehensive term) to refer to the study of all areas
of symbolic activity.
demonstrará como modelos hierárquicos de comunicação podem ajudar a
esclarecer a natureza e estrutura de tal ação reórica. (MILLER, 1984, p.151)3
Os estudos da escola norte-americana tendem a se concentrar em textos não
literários. Seus teóricos também tendem a focar nas substanciais similaridades linguisticas
e regularidades das esferas de atividade humana (Freedman e Medway, 1994, p.1), sem, no
entanto, abandonar as concepções anteriores de gêneros como tipos de discurso, cuja
principal preocupação era buscar as similaridades no conteúdo e forma.
No artigo de Miller (1984) é possível identificar algumas características comuns dos
gêneros escritos:
a) A escola Nova Retórica concebe os gêneros como uma “categoria convencional de
discurso na tipificação em larga escala das ações retóricas” (Miller, 1984, p.160). Ou seja,
o gênero é aqui tomado como uma forma de ação social, entendido tanto como uma ação
social frequentemente repetida por um grupo ou por um único indivíduo a fim de atender a
seus propósitos comunicativos;
b) Como ação significativa que é, o gênero pode ser interpretado por meio de regras,
o que significa que os gêneros são, até certo ponto, determinados por certas regras;
c) O gênero é uma entidade que se distingue da forma. Miller o define da seguinte
maneira: “gênero é uma forma num nível específico resultante da fusão entre formas do
nível inferior e substância característica [desse nível]” (Miller, 1984, p.160)4;
d) Os gêneros se constituem como padrões recorrentes de usos da língua e, neste
sentido, ajuda a constituir uma cultura. Tal ideia implica que gêneros não são apenas parte
de uma cultura, mas, antes, ferramentas de modelagem da cultura;
e) O gênero é tomado como uma força que tensiona as relações entre indivíduo e
sociedade: “um gênero é um meio retórico para mediar intenções particulares e exigências
sociais (Miller, 1984/1994, p.60).5 Com isso, a autora postula que examinando os gêneros
pode-se perceber e explicar o processo social no qual a escrita de um indivíduo é
influenciada ou mediada por fatores contextuais.
A autora também argumenta, no mesmo ensaio (Genre as Social Action, 1984), pela
proposição de um princípio de classificação dos gêneros baseado na prática retórica em
contraste com o estudo de gêneros, cujo foco recai mais na estrutura, conteúdo e tema.

3
Tradução livre do excerto: (…) a retorically sound definition of genre must be centered not on the substance
or the form of discourse but on the action it is used to accomplish. To do so, I will examine the connection
between genre and recurrent situation and the way in which genre can be said to represent typified rhetorical
action. My analysis wil also show how hierarchical models of communication can help illuminate the nature
and structure of such rhetorical action. (MILLER, 1984, p.151)
4
(...) genre is a form at one particular level that is a fusion of lower level forms and characteristic substance”
5
“A genre is a rhetorical means for mediating private intentions and social exigence”
Além disso, Miller propõe um tipo de abordagem etnometodológica para o estudo de
gêneros:
A classificação que defendo é, de fato, etnometodológica: busca explicar o
conhecimento criado pelas práticas. Esta abordagem insiste em que os gêneros
“de facto”, os tipos para os temos nomes em nossa linguagem cotidiana, nos
dizem alguma coisa teoricamente importante sobre o discurso. Considerar como
gêneros potenciais os gêneros do discurso cotidiano tais como a carta de
recomendação, manual de usuário, o relatório de desempenho, a aula e o papel
em branco, bem como o elogio, a apologia, o processo público inaugural, e o
sermão não implica em trivializer o estudo dos gênêros, e sim considerer a
retórica na qual estão imersos e as situações nas quais nos encontramos.
(MILLER, 1984, p.155)6
Sob esta perspectiva, para que se entenda como um gênero se desenvolveu e como
funciona, o analista precisa recorrer tanto às análises sobre o gênero como sobre a situação
em que o gênero ocorre. Os estudos de gênero da escola Nova Retórica diferem
significativamente daqueles empreendidos pela Escola de Sidney, cujo foco se direciona
mais para as características textuais do gênero.
A noção de ação é central na discussão de Miller sobre gêneros, bem como as noções
de situação e motivação. A autora afirma: “ação humana, simbólica ou não, é interpretável
somente em um contexto situacional e por meio da atribuição de motivos.” 7 (Miller, 1984,
p.152). Sua noção de ação implica basicamente em duas dimensões que se articulam e
tensionam as relações entre indivíduo e sociedade: situação e motivo, ambos considerados
como construtos sociais. Assim, a autora considera gêneros como ações sociais mediados
tanto pela situação (fatores externos) como por motivos (fatores internos).
A definição de gêneros de Miller (1984) repousa no princípio da recorrência de
modos de uso do discurso. A partir dessa perspectiva, o analista pode examinar textos
com base nas características formais compartilhadas para concluir que as formas
recorrentes têm implicações cognitivas para os usuários, levando-se em conta, ainda, o
trabalho ou ação social que enseja o gênero. Assim, a autora elabora um modelo de análise
genérica que pode ser apropriado tanto do ponto de vista textual, quanto cognitivo,
contextual ou retórico, o que equivale dizer que os gêneros podem ser um caminho para se
teorizar práticas discursivas complexas, uma vez que não apenas se realizam em contextos
sociais específicos como também modelam, e de certo modo, estabilizam estes contextos.
6
The classification I am advocating is, in fact, ethnometological: it seeks to explicate the knowledge that
practices creates. This approach insists that the "de facto" genres, the types we have names for in everyday
language, tell us something theoretically important about discourse. To consider as potential genres such
homely discourse as the letter of recommendation, the user manual, the progress report, the ransom note, the
lecture, and the white paper, as well as the eulogy, the apologia, the inaugural, the public proceeding, and the
sermon, is not to trivialize the study of genres; it is to take seriously the rhetoric in which we are immersed
and the situations in which we find ourselves. (MILLER, 1984, p.155)
7
“human action, whether symbolic or otherwise, is interpretable only against a context of situation and
through the attributing of motives”
Em Berkenkotter e Huckin (1995) encontram-se cinco princípios que orientam e
constituem um modelo analítico para o estudo de gêneros, são eles:
a) Os gêneros são formas discursivas dinâmicas desenvolvidas em resposta às
situações recorrentes e que servem para estabilizar a experiência. Além disso, gêneros são
capazes de modificar-se ao longo do tempo de modo a satisfazer as mudanças nas
necessidades sóciocognitivas dos usuários da língua.
b) Situacionalidade: o conhecimento de um gênero é adquirido pelos membros
de uma comunidade discursiva ao participarem nas atividades de produção do
conhecimento, na vida cotidiana e profissional. Os autores pontuam que o conhecimento
sobre gêneros é mais um processo de aculturação de que de ensino: “[o conhecimento
genérico] mais do que ser explicitamente ensinado, é transmitido pela aculturação
conforme os aprendizes se socializam nas formas de fala de uma comunidade discursiva
específica”8 (Berkenkotter; Huckin, 1995, p.7)
c) O conhecimento de gênero implica conhecimento sobre forma e conteúdo,
incluindo-se aí a adequação de um determinado conteúdo para um propósito específico em
uma situação específica e num determinado tempo (que vale dizer que o gênero é
localizado em ambos: tempo e espaço).
d) Considerando-se que as pessoas usam os gêneros e, também, se envolvem
em atividades profissionais no âmbito de uma instituição. Neste caso, as duas dimensões
(gênero e atividade profissional) criam e reproduzem estruturas sociais específicas. Ou
seja, quando as pessoas usam os gêneros nas demandas de suas atividades profissionais e
institucionais elas constroem, nestes contextos, certas estruturas sociais, bem como, ao
mesmo tempo, reproduzem essas estruturas. Tal movimento aponta a forte relação entre
estruturas sociais e atividades comunicativas.
e) O quinto princípio estabelecido pelos autores diz respeito ao fato de que as
normas de uma comunidade discursiva, bem como sua epistemologia, ideologia e
ontologia social são simbolizadas pelas convenções genéricas. Desta forma gêneros são
vistos como parte de um contexto disciplinar ou atividades profissionais condicionadas
pelas normas e valores de uma dada comunidade. As pessoas assimilam os valores e
perspectivas de uma comunidade discursiva na medida em que aprendem a usar os
gêneros, que delas se esperam que se faça uso.

8
“[genre knowledge] rather than being explicitly taught, is transmitted through enculturation as apprentices
become socialized to the ways of speaking in particular disciplinary communities”
Bawarshi e Reiff (2010, p.78) consideram os gêneros, a partir das propostas de
Berkenkotter e Huckin (1995) , como formas de cognição situadas, ou seja, para que os
gêneros realizem ações eles devem estar relacionados à cognição, pois o que sabemos e
como agimos estão intimamente relacionados entre si. Ou seja, equivale a entender que o
contexto determina a maneira como assimilamos e empregamos os gêneros com os quais
lidamos no nosso cotidiano (respondendo às demandas situacionais).
Enfim, a partir dessas considerações entende-se que na perspectiva da Nova Retórica
o foco tende a explorar mais os aspectos socioculturais do gênero do que os linguísticos,
sendo este último aspecto mobilizado para descrever regularidades nos tipos de discurso
oferecendo uma compreensão mais ampla a respeito dos aspectos socioculturais da língua
em uso.

1.1.3 A Escola de Sidney (Ou Linguistica Sistêmico Funcional)


A perspectiva do gênero na Escola de Sidney é baseada, principalmente, nos estudos
da Linguistica Sistêmico Funcional, especialmente nos trabalhos de Halliday (1978),
Halliday e Hasan (1976) e ainda Martin, J (1993, 1997, 2008). Os linguistas dessa vertente
consideram a língua como recurso para produzir significados, mais do que como um
conjunto de regras. A gramática sistêmica se propõe como uma gramática de síntese
baseada na noção paradigmática de escolha, contruída a partir de três estratos: semântica
(significação), léxicogramática e fonologia. O conceito organizador nos três estratos é o
sistema paradigmático: nessa abordagem um sistema é um conjunto de opções com uma
condição de entrada, de tal modo que uma opção só pode ser escolhida se satisfizer
adequadamente a condição de entrada. Ainda percorrendo o percurso de Bawarshi (2010)
compreende-se que a Linguistica Sistêmico Funcional, desenvolvida por Halliday, traz em
seu bojo a noção de que a língua comporta um conjunto de sistemas com escolhas variadas
das quais o falante dispõe na fala e/ou escrita.
Esta perspectiva é ao mesmo tempo rica e complexa na medida em que, a partir da
língua, toma o discurso como texto-em-contexto e propõe a separação entre texto e
contexto como um esforço de abstração útil para algumas análises. Tal abstração é
considerada útil para fins de análise em razão de promover a desconstrução do texto-em-
contexto e evidenciar, assim, os diferentes estratos (níveis) de sentido e recursos de
significação mobilizados em cada estrato. Desta forma, entende-se a Linguistica Sistêmico-
Funcional, a um só tempo, como uma teoria da língua e como metodologia de análise de
textos e seus contextos de uso.
De acordo com Eggins (1994) os linguistas sistêmico-funcionais advogam quatro
principais postulados sobre a língua: i) o uso da língua é uma atividade funcional; ii) sua
função é produzir sentidos; iii) os sentidos são influenciados pelo contexto sociocultural;
iv) o processo de usos da língua é um processo semiótico através do qual as pessoas
produzem sentido ao fazer suas escolhas linguísticas. Desta forma, compreende-se que na
perspectiva da Linguistica Sistemico Funcional o foco está em descrever e explicar como
as pessoas usam a língua e como a língua é estruturada pelos diferentes usos. Além disso,
comporta um componente social, uma vez que toma o sentido como um fenômeno tanto
linguístico como social. Os postulados da Linguistica Sistemico Funcional são empregados
como ferramenta analítica para uma descrição sistemática e detalhada dos padrões de
linguagem nos textos em vários estudos, principalmente, os de Halliday (1989, 2004),
Halliday e Hasan (1989), Martin (1985,1992, 1997, 2000), Martin e Rose (2008), Martin e
Eggins (2003), dentre outros. No Brasil, principalmente, os trabalhos de Vian Júnior (2002,
2009, 2010).
Um dos principais pontos estabelecidos na Linguística Sistêmico-Funcional é o fato
de que a língua deve ser considerada como um sistema semiótico-social, em outras
palavras, a língua é um sistema de produção de sentidos. No entanto, Bawarshi aponta a
fragilidade do termo “semiótica” considerando que o termo é demasiadamente abrangente
e genérico, concernendo mais à noção de signo como sistema e ao estudo das relações
entre os elementos que compõem uma forma simbólica.
A natureza semiótica permite à língua ser abundantemente criativa em sentidos. Não
se limita a um conjunto delimitado de sentidos, ou o espelhamento da realidade, antes, se
propõe a língua operando um sistema gerador de sentidos, e o recurso ou potencial para a
significação é desenhado pelo falante, movido por suas necessidades comunicativas, em
outras palavras, Halliday e Hasan (1985) estabelecem que para uma pessoa se expressar ela
deve fazê-lo dentro de um ambiente semiótico.
O segundo ponto, dentre os princípios da Linguistica Sistêmico-Funcional,
estabelece a língua como um processo social. Ao relacionar a língua com questões de
ordem social, Halliday afirma que a língua é “o único sistema social que incorpora todas as
experiências e relações humanas” (Halliday, 1998, p.2) 9. Nesta visada, se percebe que a
língua é concebida como um fenômeno social, parte de um sistema social e cultural, não se
reduzindo a uma entidade estanque, monolítica e separada de seus contextos sociais de uso.

9
Tradução livre do fragmento: “the only semiotic system that embodies all human experience and all human
relationships.”
O autor estabelece que as formas da língua são modeladas por características chave do
contexto situacional, as quais podem ser descritas em termos de registros variáveis:
campo, relações e o modo (cf. Eggins, 1994 e Halliday, 1994). O campo diz respeito ao
que está acontecendo, em outros termos, sobre o que as interações tratam, as relações
dizem respeito a quem participa da atividade que está acontecendo, ou, que papéis
desempenham, o modo diz respeito à qual parte da língua está em jogo, ou, como a língua
se estrutura para atingir os objetivos comunicativos postos em questão. Os elementos do
contexto e as realizações linguísticas, dialeticamente relacionados, permitem a previsão
de um a partir de outro. Desta forma, Halliday aponta que é possível identificar e delinear
quais partes do sistema da língua se relacionam com cada tipo de variável contextual,
relancionando cada uma delas a uma das metafunções: o campo se exprime pela
metafunção ideacional, as relações, pela metafunção interpessoal, e o modo, pela
metafunção textual.
As metafunções se relacionam aos três sentidos que as pessoas precisam realizar
quando atuam no mundo social, são elas: metafunção ideacional, responsável pela
construção da experiência humana; a metafunção interpessoal, que habilita as relações
humanas e a metafunção textual, responsável pela criação do discurso. Percebe-se, assim,
que os conceitos que se aplicam às características linguísticas nas análises sistêmico-
funcionais são descritos em termos de funções que realizam, mais do que em termos
gramaticais.
As três metafunções (ideacional, interpessoal e textual) se situam na interface entre o
linguístico e o extra-linguistico (campo, relações e modo). Ainda, compreende-se que, em
relação ao contexto, a metafunçao ideacional se relaciona com o campo no nível
semântico, no nível léxicogramatical se fará pela transitividade. A metafunção interpessoal
realiza as relações do discurso no nível semântico, no nível léxico gramatical se realiza
primariamente nos sistemas modais. A metafunção textual se relaciona com o modo no
nível semântico e no nível léxicogramatical é realizada, principalmente, nos sistemas
tema/rema, identificação e periodicidade.
Como se pode perceber, as metafunções são mobilizadas e realizadas em função das
necessidades comunicativas nas situações de comunicação, o que equivale a dizer que a
mobilização de uma determinada metafunção ocorre partir do registro, de um contexto
situacional que por sua vez se insere num contexto de cultura específico. São os elementos
dessa cultura que nos permite selecionar os modos de produção de um texto, bem como os
participantes e a finalidade desse texto. Assim, as características dos textos são tão diversas
quanto diversas também são as circunstancias sociais que demandam a produção textual,
embora se possa falar em situações em que haja produções mais estruturas, como, por
exemplo, no contexto acadêmico em que é previsível a ocorrências de determinados textos
relativamente estruturados: o artigo científico, a monografia, a dissertação e tese, os
projetos e relatórios de pesquisa, etc.
Martin, no artigo intitulado “Analysing Genres: Functional Parameters” (1997)
define gêneros como “processos sociais seriados e orientados para um objetivo através dos
quais os sujeitos sociais vivem suas vidas numa determinada cultura” 10 Para o autor, os
gêneros se definem como processos sociais em função da interação social da qual ele
resulta, também é orientado para um objetivo, porque as pessoas os mobilizam para fazer
algo ou ter algo feito, e também seriado porque normalmente se requer mais de uma etapa
para que os participantes atinjam seus objetivos.
No que diz respeito aos estudos de gêneros, a maior contribuição dos linguistas
sistêmico-funcionais é a proposta de análise de micro-gêneros, ou seja, textos menores tais
como os recontos, narrativas, relatos, descrições, argumentos, procedimentos e
explanações que os textos mais complexos comportam, ou macro-gêneros, tais como
novas estórias, relatórios de pesquisa e gêneros escolares (Martin e Christie ,1997). Para
Eggins (1994), o que distingue a Linguistica Sistêmico-Funcional é sua proposta de
desenvolvimento de uma teoria sobre a língua como um fenômeno e processo social bem
como o desenvolvimento de ferramentas analíticas e metodologia de análise, que permitem
uma descrição detalhada e sistemática dos padrões da língua.

1.1.4 A Escola Britânica (ESP – English for Special Purposes)


A escola britânica, mais comumente denominada ESP, tem sua origem,
principalmente, nos trabalhos de Swales (1981, 1990,) sobre estrutura do discurso e
características linguísticas dos artigos científicos. A pesquisa, na vertente da ESP, traz
consigo a tradição da ESP em descrição da língua e características do discurso de gêneros
específicos. Os resultados das análises são, normalmente, aplicados aos currículos e à
produção de materiais didáticos no ensino de Língua Inglesa para propósitos específicos.
Nesta perspectiva, a estrutura do discurso é comumente descrita em termos de movimentos
(Swales, 1990, 1991, 2004) e os objetivos comunicativos ganham contornos especiais, na
medida em que lhe é conferido um papel especial.

10
“staged, goal oriented social processes through which social subjects in a given culture live their lives”.
A ESP insere-se num quadro mais amplo, comumente denominado Language for
Specific Purposes, cujo foco é o estudo de variedades da língua inglesa, frequentemente
para falantes não nativos do idioma, em contextos acadêmicos ou profissionais. English for
Specific Purposes acabou se tornando um termo “guarda-chuva” em que se incluem áreas
mais especializadas de estudos tais como English for Academic Purposes (EAP), English
for Occupational Purposes (EOP) e ainda English for Medical Purposes (EMP).
A obra de Swales “Genre Analysis: English in Academic and Research Settings” foi
uma das maiores contribuições no campo da ESP, em função de seu esforço de teorização e
desenvolvimento de uma metodologia que considerasse a análise de gêneros no ensino e
pesquisa em contexto de ESP. Nesta obra, Swales (1990) propõe a identificação das
características chave nas abordagens de gênero, especialmente o foco na língua inglesa
usada para fins acadêmicos e de pesquisa (o que também poderia ser considerado Inglês
Profissional, ou EOP), ressaltando-se, é claro, seu objetivo do uso de análise de gêneros
para fins aplicados.
A natureza aplicada da ESP se configura como uma chave para a definição do
campo, desde o seu princípio. Em Genre Analysis (1990), Swales esclarece que o percurso
das abordagens em ESP pode ser relacionado ao estudo quantitativo das propriedades
linguísticas em um texto, para fins de identificação da frequência de ocorrência de
determinadas características linguísticas num registro específico, o que faz dessas
características o foco no ensino de língua. Desta forma, os primeiros trabalhos em ESP
tinham a preocupação de apresentar um estudo quantitativo das propriedades linguísticas
das variedades de língua, e, pode-se dizer (cf. Belcher 2004) que esta é uma tendência que
ainda influencia a pesquisa em gêneros na vertente da ESP.
Em contrapartida, Swales (1990) observa que, desde os anos 60 do século XX, os
estudos em ESP tem se estreitado cada vez mais num ritmo crescente de verticalização. Tal
afunilamento se verifica na passagem de categorias de registro mais amplas, como, por
exemplo, as categorias linguagem “médica” ou “científica”, para um foco mais estreito na
variedade de gêneros utilizados nas disciplinas médicas e científicas. O autor também
observa outro avanço em relação aos estudos em ESP: as análises se tornaram, ao longo do
tempo, mais robustas no que diz respeito, principalmente, a ultrapassar a mera descrição
das características linguísticas de uma dada variedade da língua para propor análises
consistentes das condições de produção, propósitos comunicativos e seus efeitos.
Segundo Swales (1990) tal avanço representa um interesse em questões retóricas,
estruturais e também sobre as escolhas lexicais e sintáticas. Este movimento de descrição
e delineamento dos efeitos de escolhas linguísticas proporcionado pela abordagem do
gênero na ESP colabora com uma possível aproximação com os estudos retóricos do
gênero. A noção de gêneros como ação social exerce grande influência na pesquisa em
ESP. Nesta perspectiva o gênero não se define como a substância, a forma do discurso,
mas, sobretudo, como a ação que mobilizamos para atingirmos determinado propósito (cf.
Miller, 1984, p.151). Em Genre Analysis (1990) Swales define os gêneros como “uma
classe de eventos comunicativos com propósitos comunicativos compartilhados”, o autor
ainda esclarece que tais propósitos são reconhecidos pelos membros expertos de uma
determinada comunidade discursiva, sendo um dos aspectos constitutivos do gênero. No
entanto, em trabalho posterior, Askehave e Swales (2001), observam que as incertezas e
instabilidades que rondam o conceito de propósitos comunicativos inviabilizam tomá-lo
como critério metodológico para identificação do gênero. Ainda assim, sugerem que os
analistas de gêneros podem tomar tal conceito como instrumento valioso de apoio às
análises.
O conceito de comunidade discursiva é uma noção importante no quadro elaborado
por Swales (1990, p. 24-27). O autor propõe seis características definidoras na
identificação de um grupo de pessoas como membros de uma comunidade discursiva, a
saber: i) um conjunto de objetivos comuns, ii) mecanismos pré-estabelecidos de
intercomunicação, iii) troca de informação mediante mecanismos de participação, iv) um
ou mais gêneros são utilizados para satisfazer necessidades comunicativas da comunidade
e, por fim, vi) léxico específico. Os membros se caracterizam como aprendizes ou expertos
com um grau razoável de experiência. O exemplo descrito por Swales, um grupo
denominado Hong Kong Study Circle, atende, exemplarmente, todos os critérios acima
estabelecidos.
Em um artigo de 1981, Swales defende a importância da introdução num artigo
científico, bem como reconhece o papel do artigo científico na disputa acirrada no meio
acadêmico por reconhecimento e prestígio sob o lema “publique ou pereça” (Swales, 1981,
7). O modelo inicial previa um texto que cumpriria, de modo exemplar, funções específicas
em quatro movimentos, a saber:
Movimento I - Estabelecer o campo: situar sua discussão num campo mais amplo das
pesquisas em que o artigo se insere.
Movimento II – Sumariar pesquisas anteriores: síntese das pesquisas anteriores que
implica em diferentes orientações, por exemplo, orientação forte ou fraca para o autor,
orientação para o assunto.
Movimento III – Preparando para a pesquisa (avaliação do que foi sumariado):
movimento que implica na indicação de lacunas apresentadas em pesquisas anteriores e
levantamento de questões e hipóteses a partir dos estudos anteriores, bem como a extensão
dos achados desses estudos.
Movimento IV – Introdução da presente pesquisa: indicação do propósito do
trabalho, apresentação do objeto e objetivos, descrição da pesquisa que foi feita.
Essas proposições sofreram reformulações ao longo da trajetória dos trabalhos do
autor, e em Genre Analysis: English in academic and research settings (1990), Swales
apresenta um modelo reformulado: Create a research space. Neste novo modelo
apresentam-se as principais alterações:
 Os componentes de cada movimento foram denominados “passos”;
 Os movimentos foram redesignados da seguinte forma:
o O movimento I foi designado “estabelecer um território”, contendo três
passos: reivindicar centralidade, fazer generalizações sobre o tópico e revisão de itens de
pesquisas passadas, reunindo-se, assim, os movimentos I e II;
o O antigo movimento III foi redesignado como “estabelecer um novo nicho”,
tornando-se o segundo movimento com quatro passos: contra-alegação, indicar uma
lacuna, levantar questão, continuar uma tradição;
o O antigo movimento IV foi redesignado como “ocupar o nicho”, contendo
quatro passos: delinear propósitos, anunciar a presente pesquisa, anunciar os principais
achados, e indicar a estrutura do artigo de pesquisa.
Segundo Aragão (2011) essa nova versão resultou de apontamento de falhas feita por
diversos autores (Grookes, 2006; Anthony, 1999; Samraj, 2002), resultando em um modelo
mais flexível.
A corrente britânica já produziu uma enorme variedade de estudos ao longo dos
últimos vinte anos, cujos resultados são apropriados para os mais diversos fins desde a
elaboração de materiais didático-pedagógicos até necessidades de análise. Inicialmente
estava ligada a conceitos pedagógicos, entretanto, trabalhando com a análise de gêneros na
tradição estabelecida por Swales, Bhatia (1993) considera que o conhecimento de língua
deve ser associado às considerações sociais e sócio-cognitivas. Em sua obra ‘Worlds of
written discourse: A genre-based view’ (2004) o autor ainda argumenta que tais fatores
contribuem decisivamente para a construção, interpretação e exploração do gênero. Seus
estudos caminham no sentido de afastar-se da direção eminentemente pedagógica que até
então predominava na corrente para focar-se no estudo dos gêneros em contexto
profissional e institucional, daí sucedeu uma concepção de gênero ligeiramente diferente:
gêneros não podem ser considerados como algo estático como fronteiras e limites bem
delineados atribuídos a uma comunidade discursiva específica. Bhatia (2004), leva em
consideração que a tensão entre gêneros híbridos e ainda preservando sua integridade
genérica é a chave para se entender como a experiência profissional é adquirida e isto é um
aspecto que tem sido negligenciado nos estudos sobre gêneros. Pode-se dizer que o autor
considera os gêneros em toda sua complexidade: verticalmente, na análise de super e sub-
gêneros, horizontalmente, focando os conjuntos de gêneros e suas interrelações com as
características do contexto.
Essa abordagem multidimensionnal proposta por Bhatia pode ser mobilizada em
várias análises de gêneros a partir de três perspectivas: i) tomando a definição de gênero
como uma visada específica sobre o discurso em contextos comunicativos
convencionalizados, ii) no estabelecimento da relação entre o discurso do mundo real e o
mundo da aplicação (ou seja, diferenciando-se o real do ideal, do que de fato é realizado
em termos de escrita em contextos acadêmicos, profissionais ou institucionais e as
representações idealizadas,e, não raro, estereotipadas, sobre os gêneros, e iii) na
elaboração de um conjunto de ferramentas analíticas para o estudo dos gêneros
mobilizando fatores textuais, sócio-cognitivos e sociais. Compreende-se que tal conjunto
de ferramentas analíticas proporciona a associação de diferentes perspectivas de análise
para aplicação num grupo de textos, a saber: a perspectiva textual (compreendendo gênero
com um reflexo das práticas discursivas no interior de comunidades disciplinares), uma
perspectiva etnográfica (gêneros em ação, baseados em experiências narradas de membros
expertos de uma determinada comunidade discursiva), e uma perspectiva sócio-cognitiva e
sócio-crítica (questões histórica e estruturalmente fundamentadas das condições sob as
quais os gêneros são construídos e interpretados pelos membros de uma disciplina para
atingir seus propósitos específicos).
Em obra posterior, Swales (2009) estabelece um conjunto de “metáforas” do gênero,
adaptadas a partir de definições de vários outros autores. Tais metáforas parecem uma
série de definições que , reunidas, podem mais bem dar conta da tarefa de definir um
gênero, são elas:
Esquema 1 - Metáforas do Gênero (Swales, 2009)

Bhatia (2004) também fornece o caminho básico para uma abordagem multi-
dimensional e multi-perspectiva na análise: o percurso de análise se inicia com uma análise
textual e se estende às questões de ordem sócio-cognitiva e sócio-crítica, enfatizando-se a
intertextualidade e a interdicursividade de modo a ultrapassar os recursos léxico-
gramaticais e retóricos em contextos de uso real e cotidiano e sua performance retórica.
À guisa de encerramento da discussão sobre estudos dos gêneros dividos por
“escolas” na perspectiva de Hyon (1984) , considera-se, especialmente, o comentário de
Swales (2009) sobre o fato de que, ultimamente, as fronteiras entre as três escolas descritas
por Hyon (e posteriormente comentadas exaustivamente por outros pesquisadores de
gêneros) têm, paulatinamente, se diluído, a ponto de não se poder mais falar exatamente
em três movimentos distintos e estanques na tradição de estudos de gêneros, ainda que tais
tradições mantenham minimamente suas características, a saber, na Nova Retórica, uma
maior preocupação com contextos situacionais nos quais os gêneros ocorrem, na
abordagem Norte-americana, cujo foco está no detalhamento das características formais
dos gêneros, focando em menor grau as funções especializadas do texto, e na visada
sistêmico-funcional, com uma concepção de gênero que o engloba num sistema semiótico-
social complexo, delineando e explorando as características textuais.

1.1.5 A Escola de Genebra


A tradição franco-suíça de estudos de gêneros, particularmente os estudos inseridos
na corrente interacionista sócio-discursiva (ISD), traz em seu bojo discussões originárias
de diversos autores tais como Bakhtin, Vygostky, Wittgenstein, Foucault, Habermas,
dentre outro. Segundo Bawarshi e Reiff (2010) todas essas discussões também são
familiares aos estudos retóricos do gênero, e, embora não se perceba uma influência direta
nos estudos retóricos do gênero da corrente norte-americana, ao menos se vislumbram
alguns conceitos utilizados em ambas as tradições, como por exemplo, o conceito de
atividade e ação da Nova Retórica como uma adaptação da Teoria da Atividade
vygotskyana. Assim, pode-se compreendero ISD como uma corrente, alinhada à
Psicologia da Linguagem, cujos pressupostos permitem considerá-la como um elemento
para a construção da Ciência do Humano. Tal ciência, descartando a tradicional
compartimentalização dos saberes, apoia-se nos conhecimentos de ordem psicológica,
sociológica e linguística.
Inclui-se, neste trabalho, uma descrição básica dos princípios do ISD por considerar
sua origem epistemológica, firmemente calcada nas tradições retórica, sociológica e
linguística, além de sua ampla influência nos estudos de gêneros realizados no Brasil.
Desenvolvida por Jean-Paul Bronckart, J. Dolz, B. Schneuwly, dentre outros, o ISD
estabelece, como principal postulado, que as ações humanas devem ser tratadas nas
dimensões sociais e discursivas, tomando-se a linguagem como a característica
fundamental das atividades humanas, uma vez que os seres humanos interagem para se
comunicar através de ações linguageiras, individuais e coletivas, consolidadas através dos
mais variados gêneros materializados em textos.
Araújo (2010, p.46) esclarece que na perspectiva do ISD os gêneros são
compreendidos em duas dimensões: tanto são produtos das atividades sociais como
também se configuram como ferramentas mobilizadas pelos sujeitos, a fim de realizar
ações de linguagem e participar de várias atividades das esferas sociais. A influência das
ideias bakhtinianas nos princípios do ISD é marcada especialmente no que tange à língua
em uso e ao se tomar gêneros como tipificação da fala. Da mesma forma, a influencia
vygotskyana se observa nas distinções chave do ISD entre agir, atividade e ação, segundo
Baltar et al (2009, p.53) o termo “agir” descreve quaisquer formas de intervenção
direcionada e motivada, o termo “atividade” refere-se à noção compartilhada e socialmente
definida do agir em situações específicas, enquanto o termo “ação” se refere à
interpretação que se faz do “agir” no nível individual, envolvendo atividades
individualmente realizadas. A ação individual é, então, emoldurada dentro das atividades
socialmente definidas. Tais atividades, socialmente definidas, conferem um sentido
cognoscível às ações individuais ao mesmo tempo em que associam as ações a indivíduos
específicos, autorizados a performatizar as atividades em determinados contextos espaço-
temporais. Desta forma, estamos constantemente negociando entre as ações socialmente
sancionadas, as quais fornecem a motivação social e autorizam detrminados papéis, e
nossas ações situadas imediatas (cf. Baltar, 2010, p.54).
Considerando-se estas observações, Baltar (2010, p.54) entende que na perspectiva
do ISD há três princípios para se atentar: o plano motivacional dos atores, que equivale às
nossas ações para agir, o plano intencional, que equivale aos nossos propósitos para a ação,
e os recursos e instrumentos disponíveis. Da mesma maneira que as ações sociais
envolvem uma negociação entre atividades socialmente definidas e ações individualmente
instanciadas, Baltar et al explicam que as ações linguageiras envolvem tanto uma dimensão
social (num contexto que define uma atividade) quanto uma dimensão físico-
comportamental (a realização de um ato de fala, de um texto ou discurso). Assim, as ações
linguageiras envolvem um ato de enunciação/texto/discurso definidos em relação a uma
atividade que pré-determinam os objetivos almejados tanto quanto também determinam os
papéis sociais e sua alternância nos contextos de produção e recepção dos gêneros. Na
perspectiva do ISD os gêneros cumprem, então, um papel mediador entre as dimensões
sociais e compportamentais da linguagem, compreendida como atividade em ação.
Os postulados do ISD têm sido mobilizados para o desenvolvimento de modelos
analíticos ou pedagógicos no estudo de gêneros (cf. Araújo, 2010). Do ponto de vista
analítico, o modelo consiste no exame de: i) conteúdo através do qual se descrevem as
condições espaço-temporais nos quais os participantes interagem, ii) os participantes em
seu espaço físico, iii) o espaço social no qual as interações ocorrem, iv) o papel social dos
participantes, v) efeitos de sentido da escrita. Do ponto de vista pedagógico, o modelo
proporciona uma ferramenta de ensino da escrita mais no nível textual do que gramatical,
situa o ensino da escrita dos gêneros e seus contextos de uso. Para essa finalidade,
Schneuwly et al (2004) descrevem o que eles chamam “sequência didática”, uma
ferramenta pedagógica que facilita a aquisição dos gêneros por meio de um conjunto de
atividades escolares, organizadas de modo sistemático, em torno de um gênero oral ou
escrito. Tal proposta permite aos professores de língua situar a escrita dos aprendizes
dentro de atividades sociais definidas como significativas.
A partir das premissas postuladas por Bronckart (2003, 2004, 2006), compreende-se
melhor o ser humano e suas ações de linguagem a partir das interações sociais em que ele
se envolve. Os objetos do conhecimento se constroem nessas interações mediadas pela
linguagem, sendo exatamente nesse processo que ocorre a apropriação dos conhecimentos
histórica e socialmente construídos pela humanidade.
O programa de pesquisa do ISD compreende o primeiro dos níveis voltado para a
análise de aspectos inerentes ao ambiente humano e foca quatro elementos principais, são
eles:
a) as atividades coletivas: compreendidas como os elementos fundamentais para o
desenvolvimento humano num determinado contexto espaço-temporal. É no âmbito dessas
atividades coletivas que Bronckart (2004) entende que se observam as atividades
linguageiras, reguladas por acordos estabelecidos na própria atividade.
b) as formações sociais: segundo o autor são as “formas concretas que as
organizações da atividade humana e, de modo mais geral, da vida humana, assumem, em
função dos contextos físicos, econômicos e históricos” (Bronckart, 2004). Sob o efeito de
tais formações engendram-se normas, regras e valores reguladores da interação social. A
natureza das relações sociais (conflituosas ou harmônicas) depende da divisão do trabalho
e dos jogos de poder que tensionam essas relações.
c) os textos: unidades comunicativas, cujas características específicas dependem das
situações de interação e que são frutos das atividades linguageiras. Reflexos de uma
condição sócio-histórica, realizam-se em múltiplos gêneros, os quais são reconhecidos pela
sociedade como pertencentes a uma determinada situação de interação sócio-comunicativa.
d) o mundo formal do conhecimento: na perspectiva do ISD, a língua é tomada como
uma organização social estruturada a partir de signos mobilizados na representação de
mundo, numa atividade permanente e histórica. Assim, pode-se dizer que o mundo formal
do conhecimeto constitui modalidades de organização lógica do conhecimento, divididas
em três tipos, a saber, o mundo objetivo, contruído pelas representações das pessoas sobre
o ambiente ao seu redor; o mundo social, construído por representações coletivas acerca de
valores e convenções e, por fim, o mundo subjetivo, construído a partir de representações
das pessoas sobre elas mesmas.
O conjunto desses saberes constitui o contexto da atividade social, ou seja, no
momento da produção de um texto, o autor mobiliza diversos parâmetros que balizam os
três mundos formais, influenciando a forma, o conteúdo e o estilo de um texto,
configurando o que Brockart (2008) denomina contexto de produção, e o leitor, trata de
recuperar esses mesmos parâmetros em sua atividade de leitura. Considerando-se o
exposto, compreende-se que o primeiro nível de análise se detém sobre o contexto de
produção textual.
O segundo nível de análise do modelo descendente proposto por Bronckart (2004)
compreende os processos desenvolvidos pelo ser humano a fim de assegurar e reproduzir
os pré-construídos. Tais processos englobam: i) a educação informal, meio de integração
dos recém-chegados a um grupo, ii) a educação formal, e iii) transação social, na forma de
avaliações recíprocas resultantes de interações cotidianas, que mantém as interações e
redefinem os pré-construídos coletivos.
Quanto ao terceiro nível de análise, Bonckart (2004) considera que se trata dos
efeitos que a trasnmissão dos pré-construídos exerce sobre a constituição e
desenvolvimento do ser humano. Tres agrupamentos distintos caracterizam essa dimensão,
a saber: i) condições de emergência do pensamento consciente, resultante da interiorização
de signos linguisticos; ii) condições do desenvolvimento posterior do ser humano,
resultante da análise do conhecimento e das capacidades do agir; e, iii) análise dos
dispositivos que contribuem para a constante transformação dos pré-construídos.
No bojo das teses basilares do ISD a linguagem ganha papel de destaque no
desenvolvimento dos seres humanos, e, partindo de Habermas (1987, apud Bronckart,
2008), Bronckart mobiliza, em seu quadro, a noção do agir comunicativo, para esclarecer o
modo pelo qual a linguagem determina e contribui para o desenvolvimento e
funcionamento da psique humana. Assim, na perspectiva do ISD os textos são muito mais
do que produções linguísticas, são, sobretudo, representantes empíricos, materializações
das atividades nas quais as pessoas se envolvem cotidianamente.

1.2 Questões terminológicas ou conceituais? : gênero, texto e discurso


À primeira vista uma questão já se impõe como primordial: as definições de gênero
são relativamente diversas, e, invariavelmente, refletem a diversidade de abordagem que
subjaz à cada noção, bem como a diversidade de fundamentos teóricos. Isso explica, de
certo modo, a coexistência de termos como gêneros de discurso e gêneros de texto. Tal
diversidade se verifica também entre os autores estudados: enquanto J.M.Adam (1999)
opõe gêneros a tipos de textos, J.P. Bronckart (1996) opõe gêneros de textos e tipos de
discurso e D. Maingueneau (1998) conceitua tipos de texto e gêneros de discurso. Como se
pode ver, não há consenso nesta questão e a terminologia é flutuante, mesmo na obra de
Bakhtin e seu círculo depara-se com uma certa flutuação terminológica, o que não
impediu, no entanto, o avanço nos estudos sobre gêneros desde há quatro décadas.
Não se deterá, nesta pesquisa, no detalhamento dos posicionamentos teóricos de
todos esses autores, adotando-se a terminologia empregada em Adam (1999 que distingue
entre gêneros textuais e tipos de texto. Segundo o autor, os textos são estruturas de uma
diversidade e complexidade tais que se torna quase imposível estabelecer uma tipologia, e
todos os esforços neste sentido resultam apenas em “vantagens pedagógicas ilusórias”
(Adam, 1999). Por outro lado, pode-se identificar segmentos menores, geralmente
compostos por várias frases, no entanto, não é a frase ou o parágrafo que definem esta
dimensão, chamada de sequência pelo autor. Deste modo, as sequências prototípicas
definidas pelo autor (descritiva, narrativa, argumenttiva, explicativa, dialogica e injuntiva),
estão presentes regularmente nos textos como esquemas de reagrupamento semânticos,
enunciados que produzem efeitos de leitura imediamente reconhecíveis, tais como, por
exemplo um efeito de descrição.
Longe de se tratar de uma questão específica dos gêneros, a utilização conjunta dos
termos, gêneros do discurso e gêneros de texto, já não é mais aceita em Linguística, ainda
assim, esta utilização obriga a incursões sobre a noção de texto e discurso a fim de
justificar as escolhas terminológicas e conceituais no interior desta pesquisa. Buscando-se
esclarecer questões subjcentes à distinção terminológica proposta, deve-se proceder, como
vários autores, de modo a renunciar à ambição de uma definição estável. Autores como
Adam (1999) define texto e discurso a partir de uma distinção fundamental, conceituando
texto em oposição ao discurso, como um objeto formal abstraído das suas condições de
interpretação e produção, para colocá-lo de outra forma: o discurso é concebido como a
inclusão de um texto em seu contexto, isto é, considerando-se suas condições de produção,
recepção e interpretação (Adam, 1999: 39), o que segundo o autor (2011, p.73) se dá
mediante o questionamento das fronteiras da textualidade bem como da ideia de um
universo exterior, o contexto, que se opõe ao interno. Quanto ao interdiscurso o autor o
concebe como uma dimensão que comporta regularidades permitindo reconhecer traços
das trocas entre vários discursos:
Se Maingueneau e Foucault falam do interdiscurso como um espaço de
regularidades, de um “espaço de trocas entre vários discursos”, eles
negligenciam uma ferramenta linguística de distinção teórica para o discurso e o
texto (...). Devemos ainda refletir sobre o que se coloca trivialmente como
Discurso publicitário, político, jornalístico, literário, científico, religioso, etc, (ou
seja, como objeto concreto). Além disso, proponho reconectar o Discurso aos
gêneros do discurso. Assim o poema, o teatro, o romance são gêneros do
discurso literário; o sermão, a parábola, a hagiografia, etc, são gêneros do
discurso religioso; o editorial, a manchete, a reportagem, etc, são os gêneros do
discurso jornalístico; poder-se-ia, igualmente, falar de gêneros do discurso
político, etc. Os (tipos) de texto são, no entanto, os componentes do discurso e
do gênero discursivo: a narrativa a descrição, explicação ou argumentação, por
exemplo, ocorre tanto no romance, quanto na parábola, manchete ou discurso
eleitoral;todos os discursos e gêneros do discurso.Tais distinções não parecem
ser triviais a ponto de serem negligenciadas, elas deveriam ser teorizadas em um
nível de pertinência específica.. (ADAM, 1987, p.54)11

11
Si Maingueneau et Foucault parlent bien de l'inter- discours comme d'un espace de régularités, d'un
« espace d'échange entre plusieurs discours », ils négligent une distinction théorique linguistiquement
utile entre Discours et Texte (esquissée par D. Slakta et que le présent article précisera en partie). Il
faut insister sur le fait que l' interdiscours prime le Texte et le Discours que je pose trivialement
comme D publicitaire, D politique, D journalistique, D littéraire, D scientifique, D religieux, etc.
(c'est-à-dire comme objet concret). De plus, je propose de relier D aux genres du discours. Ainsi le
poème, le théâtre ou le roman sont-ils des genres du discours littéraire; le sermon, la parabole,
l'hagiographie, etc. des genres du discours religieux; 1 'editorial, le fait divers, le reportage, etc. des
genres du discours journalistique ; on pourrait également parler de genres du discours politique, etc.
1.3 Usos linguísticos e funcionamentos sociais: os gêneros como entidades sócio-históricas
e formais
O estudo das propriedades linguísticas de cada gênero não seria adequadamente
realizado sem se levar em conta as práticas sociais que os engendram. De modo que tanto a
produção quanto a interpretação de um gênero parecem estar subordinadas a um conjunto
de critérios linguisticos e não linguísticos, impostos, normalmente, por uma determinada
prática social. Entende-se, assim, que o estudo de um gênero implica numa metodologia
amparada por um quadro multidisciplinar, associando os fatores sociais que determinam os
gêneros às propriedades linguísticas que o caracterizam. Todavia, essa “dupla face”
revela-se um tanto problemática sob o ponto de vista de Branca-Rossof (1999), na medida
em que as dimensões sociais e linguística se interrelacionam:
A noção de gênero é uma noção de dupla face à qual corresponde uma face
interna (os funcionamentos linguísticos) com uma face externa (as práticas
socialmente significantes). Mas os usuários da língua utilizam igualmente os
termos de classificação porquanto não há coincidência entre as duas dimensões:
tanto se privilegia a situação de comunicação como as marcas formais. A
instabilidade da relação entre as formas e comportamentos sociais
institucionalizados é uma dificuldade central para toda definição de gêneros, a
priori. (Branca-Rosoff, 1999, p. 116)12
O objetivo desta pesquisa é um tanto menos ambicioso na medida em que se
restringe à descrição linguística de um determinado fenômeno (a assunção ou não da
responsabilidade enunciativa) num determinado gênero (acadêmico). Considerou-se que a
incidência de aspectos sociológicos sobre os linguísticos parece transbordar para uma nova
etapa de análises, que poderia ser posterior. Assim, a despeito da relevância de se
considerar aspectos sociológicos na análise de gêneros, detem-se exclusivamente sobre
aspectos linguísticos dos gêneros nesta pesquisa, por razões várias, dentre elas a recusa ao
risco anteriomente mencionado.
Para finalizar, convém lembrar que no que tange à dimensão social dos gêneros é
difícil de se estabelecer um parâmetro seguro em termos sociológicos, e sua caracterização

Les (types de) textes sont, en revanche, des composantes de D et de GD : le récit, par exemple, se
rencontre aussi bien dans le roman, la parabole, le fait divers ou le discours électoral; la description
ou l'explication traversent, comme l'argumentation, tous les discours et genres du discours. De telles
distinctions triviales ne me paraissent pas pouvoir être négligées; elles doivent absolument être
théorisées à un niveau de pertinence qui reste, lui, à préciser. (ADAM, 1987, p.54)
12
La notion de genre est une notion biface qui fait correspondre une face interne (les fonctionnements
linguistiques) avec une face externe (les pratiques socialement signifiantes). Mais les usagers de la langue
utilisent également des termes de classification lorsqu’il y a non coïncidence entre les deux dimensions :
tantôt ils privilégient la situation de communication, tantôt les marques formelles. L’instabilité de la relation
entre formes et comportements sociaux institutionnalisés est une difficulté centrale pour toute définition a
priori des genres. (Branca-Rosoff, 1999, p. 116)
linguística não é menos problemática, entendendo-se, assim, porque a questão dos gêneros
tem sido relativamente negligenciada pela disciplina.
Definindo-se, assim, o campo de estudos desta pesquisa, prossegue-se, nos próximos
tópicos, definindo-se o espaço que o estudo dos gêneros ocupa no campo mais vasto de
pesquisas em Linguística e os parâmetros para sua descrição.

1.3.1 A questão dos gêneros em linguística e sua descrição


As análises linguísticas por longo tempo ficaram confinadas ao estudo da frase e o
domínio predileto de tais análises, foi, por muito tempo também, a morfossintaxe. Tal
limitação deve sua origem à história da linguística e, sobretudo, à tradição gramatical.
Todavia, é consensual, hoje em dia, a idéia de que embora a frase represente a unidade de
análise no nível sintático, ela não representa a língua em uso. Poudat (2003) aponta que a
maioria das análises de gêneros e textos parecem ainda se reduzir ao nível frástico, não se
podendo falar em análise de texto, tampouco de gêneros, não remetem nem de longe aos
usos reais e efetivos da língua, deste modo, a autora questiona a pertinência de tais
descrições.
Ainda que não se conceba mais a língua como uma sucessão de frases
estruturalmente uniformes e se tenha mudado para uma concepção em que a fala é regida
por um conjunto de estratégias comunicativas, pertencentes ao comportamento social
humano, poucos passos se têm dado, efetivamente, no estudo de gêneros, e quando o
fazemos, no fundo, nos detemos na análise do texto, na medida em que, cf.Poudat (2006), a
análise genérica ainda se encontra subordinada a um quadro de análise textual:
(...) as teorias da enunciação encontram-se alijadas do texto, e se concentram
sobre os corpus frásticos e permanecem reduzidos, enquanto a pragmática tem se
proposto a pesquisar um modelo comunicacional global a partir do estudos de
alguns gêneros orais, mais especificamente a conversação, em detrimento dos
gêneros escritos e dos textos. (POUDAT, 2006, p.31)13
A despeito dessas considerações, convém ressaltar que diversas abordagens
ultrapassam o quadro frástico, dentre elas, a perspectiva enunciativista, consolidada desde
os estudos de Benveniste (1966), cujo foco se detém no enunciado e seus encadeamentos
em relação à situação de enunciação; e a pragmática, com Austin e a teoria dos atos de
fala, demonstrando que cada enunciado está fortemente ligado a um conjunto de estratégias
comunicativas.

13
les théories de l’énonciation sont encore éloignées du texte, et se concentrent davantage sur des corpus
phrastiques detaille réduite, tandis que la pragmatique a cherché à proposer un modèle communicationnel
global à partir de l’étude de quelques genres oraux, et plus spécifiquement de la conversation, au détriment
des genres écrits et des textes. (POUDAT, 2006, p.31)
Compreende-se, assim, que gênero e texto são duas dimensões intrinsecamente
relacionadas: tanto o gênero afeta diferentes níveis de análise linguística como o estudo de
seus aspectos linguísticos não se realiza num quadro frástico restrito. Assim, o texto
representa uma paleta de descrição mais adequada do gênero, na medida em que se
constitui numa produção determinada por uma prática social, e não numa unidade artificial
de descrição, elaborada em função de uma análise especifica. Admite-se, desta forma, a
noção de Rastier (1996): “os textos são o objeto empírico da Linguística”.
Poudat (2006) também considera que as abordagens textuais são relativamente
recentes, citando os trabalhos de Adam (1987, 1990) em que se descrevem detalhadamente
o objeto e objetivos descritivos e metodológicos, e, considera também os questionamentos
postulados em Hartmann (1980) sobre os problemas relacionados aos pressupostos básicos
de uma teoria do discurso a respeito dos critérios que se poderiam usar para definir as
fronteiras que delimitam um texto e suas condições, as maneiras pelas quais um texto “se
amarra” e os arranjos estruturais dos elementos que compõe um texto.
Tais elementos demonstram, de fato, as normas que um determinado gênero institui
na medida em que os textos apresentam certas propriedades distintivas que não devem ser
descritas pelo mesmo conjunto de descritores, pois resultam de um gênero específico que
lhes determina e que lhes impõe certas restrições, tanto formais quanto coesivas ou
estilísticas14.
Assim, a autora entende que a abordagem dos textos nos quadros discursivos tem
apresentado um nicho inexplorado: tais quadros não consideram o texto em sua articulação
à noção de gênero, de modo que, em sua maioria, se focam sobre o problema do texto
como lugar de intersecção dos fenômenos linguísticos e não linguísticos.
Na busca de se relacionar as propriedades linguísticas de um texto às suas condições
sociais de produção e interpretação chega-se às tipologias discursivas relativamente
questionáveis, fundadas sobre critérios de ordem social que correspondem, globalmente,
aos vetores ideológicos e sócio-politicos. Todavia, Rastier (2001) observa que:
A noção de condição de produção foi transposta do materialismo histórico e
utilizado pela Análise do Discurso para instaurar uma transcendência do sentido
à respeito do texto, pois as condições são consideradas, de fato, como as
determinações causais. (RASTIER, 2001, p. 245)15

14
Neste sentido, entende-se como os gêneros acadêmicos considerados nesta pesquisa são fortemente
estruturados: artigos (bem como vários outros exemplares de gêneros discursivo/textuais da esfera
acadêmica) contém vários níveis de organização, enumerados, dando conta de uma demonstração
progressiva, ao contrário, por exemplo, do romance, divido em capítulos articulados em função de uma
progressão narrativa.
15
[La] notion de conditions de production a été transposée du matérialisme historique et utilisée par
l’Analyse du discours pour instaurer une transcendance du sens à l’égard du texte, car ces conditions sont
Isto, provavelmente, explica o porquê da noção de gênero ser pouco privilegiada em
tais modelos de análise: em alguns quadros, como o da Análise do Discurso, por exemplo,
o estudo sobre os gêneros textuais parece ocupar uma posição secundária por duas razões:
i) porque subjaz à dimensão do enunciado; ii) porque supõe uma relação com aspectos de
ordem social determinada pelas normas intralinguísticas nas quais se enquadram os
gêneros, e não pelas condições de produção, nas quais residem as causas sociais externas
às quais se reduziriam os textos. Como a concepção tradicional de ciência postula partir
dos efeitos para se chegar às causas, a AD postula partir do texto para se chegar às
determinações sociais e ideológicas que lhe engendram, cf. Rastier (2001)
Para resumir a questão, sem se deter nas inúmeras acepções de discurso, adotou-se,
cf Rastier (2001), bem como Adam (2011) o conceito de que os discursos permitem
relacionar as práticas sociais aos gêneros e que estes asseguram a relação entre texto e
discurso. Esta concepção favorece o estudo linguístico dos gêneros levando-se em conta
suas determinações sociais, pois, em princípio, “todo texto se prende à língua por um
discurso e a um discurso pela mediação de um gênero (...) o estudo dos gêneros deveria
ser, portanto, uma tarefa prioritária na pesquisa linguística” (Rastier, 2001, p. 230).
Desta forma, entende-se que, de fato, os gêneros são os elementos de regulagem e
coerção, espaços normativos que permitem, com os discursos e campos genéricos 16, aliar
os estudos da linguística com os da língua em uso:
Os níveis dos gêneros, campos genéricos e discursos são os níveis estratégicos
que permitem passar da generalidade da língua às particularidades dos textos,
pois as relações semânticas entre textos se estabelecem preferencialmente entre
textos do mesmo campo genérico e do mesmo discurso (...). Assim a Linguítica
pode tomar como objeto de descrição o espaço das normas. (Rastier, 2002)17
Trata-se de uma tarefa extremamente complexa na medida em que o gênero
representa uma paleta determinante para o texto, mas, ao mesmo tempo, é determinado por
seu discurso e pelas práticas sociais às quais se associa. Por outro lado, faz-se necessário
considerar que se trata de um objeto linguístico com características próprias e que se presta
mais a determinados tipos de análise. Em outras palavras, alguns quadros teóricos

considérées de fait comme des déterminations causales. (RASTIER, 2001, p. 245)


16
Por campo genérico entende-se o que se postula em Rastier (2004): um grupo de gêneros que contrastam,
ou se rivalizam num determinado campo prático da atividade humana. Por exemplo, pode-se citar, no âmbito
do discurso científico, os gêneros que circulam em períódicos: o artigo de apresentação de um número do
periódico, o ensaio, a resenha, o artigo, as réplicas, entrevistas e etc.)
17
Les niveaux des genres, champs génériques et discours sont bien les niveaux stratégiques qui permettent de
passer de la généralité de la langue aux particularités des textes, car les relations sémantiques entre textes
s’établissent préférentiellement entre textes du même genre, du même champ générique et du même discours.
(…) Bref, la linguistique peut prend de droit pour objet de description l’espace des normes : au lieu de les
édicter, comme elle le faisait naguère en frappant d’inacceptabilité des énoncés, alors même qu’ils sont
attestés, elle doit les décrire etpour cela exploiter des corpus. (Rastier, 2002)
(notadamente os que privilegiam a análise de certos gêneros) desenvolveram modelos de
análise de gêneros particularmente eficazes, é o caso, por exemplo, do ISD ou ainda o
modelo proposto em Adam (2011) que sem privilegiar um gênero em específico, propõe
modelos que abrangem, a rigor, qualquer tipo de gênero.
Conclui-se observando que em todas as discussões sobre descrições linguísticas a
noção de gênero ocupa um espaço central, como um feixe de normas que articulam
questões e reflexões fundamentais sobre a língua em uso e que devem ser descritas pela
linguística. Propõe-se na continuidade deste tópico alguns itens para reflexão acerca dos
gêneros.

1.3.2 O gênero e seu duplo aspecto de análise


No decorrer desta pesquisa, vários pontos de vista acerca do gênero foram estudados
e aqui apresentados, e, num aspecto consensual destes pontos de vista, gênero pode ser
definido como uma entidade sócio-histórica e formal, podendo-se admitir, cf. Branca-
Rosoff (1999, p.116) que o gênero é uma noção de dupla face, situando-se na intersecção
entre propriedades sócio-históricas e formais. São elaborados por uma formação social e
regulamentados por interesses e relações muito específicas; os enunciados se apresentam
com características estáveis e refletindo sua função comunicativa e suas condições
específicas de produção. Sob este ponto de vista, todo texto, embora seja um evento
singular, pertence a um gênero, correspondendo a um tipo de interação no âmbito de uma
atividade humana.
O gênero, desta forma, funciona como um espaço privilegiado da articulação entre os
fatores internos e externos, restando, assim, estabelecer as modalidades de tal articulação, o
que supõe, também, definir os aspectos sócio-históricos e formais que dão contornos aos
gêneros.
Não se poderia, também, se restringir a uma abordagem das condições sócio-
históricas das práticas discursivas apenas em termos de tipos de situações comunicativas, e,
para isso, o aporte das reflexões bakhtinianas parece ser um programa eficiente, ainda mais
quando associado a outros estudos acerca da noção de gênero, permitindo, deste modo, que
se formule algumas observações no que diz respeito às duas faces do gênero.
No que tange às convenções genéricas enquanto convenções textuais, Bakhtin (1997,
p. 262) demonstrou que as codificações genéricas atuam em todos os níveis: temático,
estilístico e composicional. Essas três dimensões, evidenciadas pelo autor faz com que se
evoquem a noção tripartite da retórica clássica: a inventio, a dispositio e a elocutio. Mas,
mais importante do que essa observação é a idéia de que os níveis de textualidade, em seu
conjunto, respondem pelas normas dos gêneros e, segundo o princípio de organização do
local pelo global, os componentes textuais ecoam o todo.
Nas reflexões bakhtinianas a forma não se separa do seu conteúdo: semanticamente,
o gênero é definido como um modelo de mundo que o texto propõe. Em Rastier (2001) se
desenvolve a ideia de que é pelos gêneros que se opera uma mediação semiótica, em que se
articulam aspectos físicos e representacionais, condizente com uma abordagem que
restringe o campo da reflexão sobre o signo a uma paleta de unidade linguística, a noção de
gênero se estabelece assim como uma fórmula para se questionar o que Rastier (2001,
p.248) chamou de “semiose textual”. Em outras palavras é por meio dos gêneros que a
atividade semiótica ganha formas, nas quais a função mediadora demonstra que o real, ou o
mundo em si, não é diretamente acessível, se não por meio das representações que os seres
humanos fazem, e que são elaboradas na e pela língua. Desta forma, revela-se vantajosa a
idéia da noção de gêneros inserida num programa de pesquisas que integre a produção
verbal com suas dimensões social e cognitiva, pois por meio das formas discursivas,
socialmente elaboradas se constroem as atividades cognitivas e as representações de
mundo.
Já no que diz respeito ao gênero em sua dimensão contextual, uma questão que se
coloca a respeito das restrições sócio-históricos pesa sobre as práticas discursivas. Para
Bakhtin, a relativa estabilidade dos enunciados é determinada por um certo número de
fatores dos quais importam, sobretudo, o destinatário (tal como concebido pelo locutor), as
intenções deste e mais amplamente a situação na qual se desenvolve a comunicação.
As convenções genéricas ligam os textos às situações de comunicação, definidas por
Bakhtin (1997) como as esferas de uso da língua, ou seja, as reflexões bakhtinianas sobre
os gêneros influenciam as discussões de Rastier (2001), que os define enquanto
ocorrências de uma prática social; assim, nessas discussões, o gênero relaciona o texto não
apenas à situação comunicativa, mas, sobretudo, às práticas sociais, as quais correspondem
também um determinado modo de se relacionar com o mundo.
Distinguir estes níveis antes de considerar como eles interagem permite avançar um
pouco mais na definição dos gêneros, pois se o estudo de gêneros supõe aliar o estudo de
textos ao estudo de seus contextos, ainda seria necessário evidenciar quais elementos
podem ser considerados contexto, pois este não pode ser reduzido à noção de “exterior”,
um estatuto muito problemático, pois ele representa justamente os fatores que condicionam
a produção textual. Assim, observa-se que não basta inscrever a definição de genêros nos
atos de enunciação, por exemplo, das formas de funcionamento da língua, para que,
imediatamente, se esclareça e se operacionalize a noção de condições de produção
linguageira e se compreenda melhor a associação entre funcionamentos linguísticos e
sociais que caracterizam o gênero. É necessário, antes de mais nada, uma visão geral de
como estas duas faces do gênero podem ser relacionadas. Por essa razão, apresenta-se a
seguir os postulados da ATD (Análise Textual dos Discursos) como um modelo teórico
que oferece respostas neste sentido, apresentando o gênero como instância articuladora
entre essas duas dimensões, a textual e a do discurso.

1.4 Abordagem das relações entre propriedades discursivas e formais: a proposta da ATD
Este tópico se ocupa da apresentação da Análise Textual dos Discursos (ATD),
proposta por Adam (2011) e situada num campo mais amplo da Linguística Textual. A
abordagem teórico-metodológica, proposta na ATD, se configura como uma resposta às
demandas impostas na análise de textos, alicerçada num conjunto de reflexões teóricas e
epistemológicas que permitem estabelecê-la no campo da Linguística de Texto, por sua
vez, inscrita, nas reflexões deste autor, no campo mais vasto das análises das práticas
discursivas (Adam, 2011, p.24).
Feitas essas poucas considerações iniciais, apresenta-se, na sequência, algumas das
principais noções da ATD, primeiramente seu modelo textual-discursivo, compreendido
em níveis, depois uma breve descrição dos níveis que compõem a dimensão textual neste
modelo, e por fim, uma descrição um pouco mais detalhada do nível das sequências
textuais. O mérito no modelo do autor reside no fato de que nenhuma unidade/ dimensões
da linguagem se perde, instaurando-se um campo para a Linguística Textual no universo
discursivo.

1.4.1 O modelo textual da ATD (os níveis dos discursos)


Uma das principais contribuições de Adam (2011) é, sem sombra de dúvida, a
proposta de articulação entre texto, discurso e gênero, base para a redefinição dos campos
de domínio da Linguistica Textual e da Análise do Discurso.
O autor concebe as três dimensões, a saber, texto, discurso e gênero,
interrelacionados em imbricados em níveis, como se pode visualizar no esquema (Adam,
2011, p.61) transcrito abaixo:
Esquema 2 - Níveis da Análise do Discurso (Adam, 2011)

Nesta representação, o discurso é compreendido como uma instância mais ampla


onde se encerram gêneros e textos. Tal representação se configura, evidentemente, como
uma abstração, que deveria ser compreendida não num plano bidimensional, mas num
plano tridimensional; do modo possível de se representar, parece que se trata de
encaixamentos, quando, na verdade, não é desta maneira que o autor concebe. Adam
concebe essas dimensões numa relação dinâmica e articulada. No nível do discurso
compreendem-se a intencionalidade, objetivos de comunicação linguisticamente expressos
pelos atos ilocucionários, realiza-se numa determinada formação sociodiscursiva, cujo
socioleto é partilhado pelos membros da mesma comunidade discursiva 18, e mediada pelos
gêneros, ou como sintetizado pelo autor: “Toda a ação de linguagem inscreve-se, como se
vê, em um dado setor social, que deve ser pensado como uma formação sociodiscursiva, ou
seja, como um lugar social associado a uma língua (socioleto) e aos gêneros de discurso.”
(Adam, 2011, p.63).
Nesta perspectiva o texto se constrói a partir de um conjunto de unidades típicas
básicas heterogeneamente agrupadas de modo a formar os gêneros, elemento articulador
das dimensões textuais e discursivas. A proposta da ATD concebe o texto formado por
proposições (unidade mínima de análise, produto de um ato de enunciação, cf. Adam,
2011, p.108), que, no conjunto, se organizam a partir de um processo sócio-histórico de
18
Considera-se bastante conveniente, aqui, o conceito de comunidade discursiva postulado por Swales (1990,
p.9) para quem a noção de comunidade discursiva diz respeito aos usos da língua e dos gêneros em contexto
profissional, de modo que os membros de uma dada comunidade compartilham um maior conhecimento de
suas convenções : [comunidades discursivas são]redes sócio-retóricas que se formam de modo a trabalhar por
um conjunto de objetivos comuns. Uma das características que os membros estabelecidos dessas
comunidades discursivas possuem é a familiaridade com os gêneros específicos
que são usados na busca comunicativa destes conjuntos de objetivos (Swales, 1990, p.9).
fixação, e formadas por duas dimensões: i) uma dimensão diz respeito à configuração, e ii)
a outra dimensão se relaciona à noção de sequência. O aspecto configuracional implica em
alguns pressupostos semântico-pragmáticos que funcionam no espaço de uma dada
sequência textual, forçosamente configurando-a. Por outro lado, a dimensão sequencial diz
respeito ao modo pelo qual o texto se organiza em sequências de proposições típicas.
Na dimensão sequencial, a sequência textual se configura como um grupo de
sequências textuais que assumem características típicas e de acordo com um esquema
específico de uma dada sequência. Tal configuração permite o reconhecimento dessas
sequencias em vários gêneros de discurso. Adam toma essa configuração como ponto de
partida para a orientação de seu quadro conceitual, classificando as sequências em cinco
tipos: a narrativa, a descritiva, a argumentativa, a explicativa e a dialogal.

1.4.1.1.As sequências textuais


Adam (1987) compreende que os mecanismos de textualização são bem mais
complexos do que a mera identificação dos elementos textuais prototípicos, embora estes
sejam justamente o ponto de partida para sua discussão, conforme discutido anteriormente.
Tratam-se de macroproposições dependentes de combinações pré-formatadas de
proposições, tais combinações são definidas como sequências prototípicas a partir de
propriedades inerentes à categoria do texto, conforme se observa a seguir:
a) Sequência Narrativa: composta por duas grandes características, que se
desdobram, a saber, os eventos e ações. Os eventos se desdobram nas noções de causa
(sob cujo efeito acontecem os eventos) e agente (cuja intervenção não é intencional). As
ações se caracterizam pela presença de um agente, cuja ação é provocar ou evitar uma
mudança. Tais elementos se organizam numa estrutura hierárquica, conforme se verá no
esquema 4 abaixo. Nessa esquematização, o autor apresenta, as cinco macroproposições
responsáveis pela inserção das sequências em um texto, correspondendo a cinco momentos
distintos do processo (m).

Esquema 3- A estrutura narrativa (Adam, 2011)


Neste esquema, Pn1 e Pn5 constituem o limite do processo, enquanto que Pn2, Pn3 e
Pn4 constituem o núcleo do processo.
O autor argumenta ainda que tal linearidade é ilusória e dissimula uma ordem
hierárquica mais profunda e representada em níveis no esquema seguinte:

Esquema 4- Ordem hierarquica da superestrutura narrativa - (Adam, 1987)

b) Sequência Descritiva: Ao contrário da narração, não apresenta uma ordem


muito fixa, é a menos estruturada, não apresenta organização das proposições enunciadas
em macroproposições hierarquizadas, formando, assim, mais ciclos de períodos de que de
sequências, propriamente dita. Há um repertório de operações que geram as sequências
descritivas, agrupando-as em quatro macrooperações, que por sua vez, englobam nove
operações descritivas capazes de gerar vários tipos de operações descritivas de base, Adam
(2011). As macrooperações são:
i) A tematização, que por sua vez, engloba outras operações, a saber:
 Pré-tematização (ou ancoragem): trata-se de uma operação em que se determina
imediatamente o objeto a ser descrito. Assim, primeiro se apresenta o objeto, após
introduz-se a sua descrição.
 Pós tematização (ou ancoragem diferida): operação em que se adia a determinação
do objeto a ser descrito, sua nomeação aparecerá somente no final da descrição.
 Retematização: trata-se de uma redefinição do objeto a ser descrito numa operação
que produz nova denominação do objeto. Esta operação implica numa nomeação anterior
que ao longo do discurso sofre reformulações.
ii) A aspectualização: se apoia na tematização e engloba duas operações, a
fragmentação e a qualificação:
 Fragmentação: operação que permite a seleção de partes do objeto a ser descrito a
fim de se produzir uma descrição mais pormenorizada do objeto;
 Qualificação: operação por meio da qual se evidenciam características do todo ou
de partes do objeto a ser descrito.
iii) Relação: consiste na utilização de determinadas características de um objeto para
se compor outro. Esta operação engloba as relações de contiguidade e de analogia:
 Contiguidade: trata da situação temporal ou espacial do objeto descrito. A situação
temporal inscreve o objeto descrito num determinado tempo histórico ou individual. A
situação espacial trata das relações que um objeto do discurso mantém que outros objetos.
 Analogia: relação que trata de descrever objetos ou suas partes selecionadas
estabelecendo uma relação entre eles e outros objetos.
Apresenta-se, por fim, a operação de expansão por subtematização, que consiste
numa “operação de expansão potencialmente ilimitada e regrada por um pequeno número
de operações identificáveis e repetíveis(...)” cf. Adam, 2011, p.224.
c) Sequência Argumentativa: as sequências argumentativas, conforme propostas
por Adam (2011), têm como principal função o arrazoamento, o direcionamento das ações
para o convencimento de outros, assim, constrói—se uma determinada representação da
realidade de forma a promover a modificação de uma ideia acerca de um determinado
objeto. Adam, partindo de Ducrot (1988, apud Adam, 2011), afirma que o ato
argumentativo é construído com base num já-dito, implícito ou não, mas sempre
subentendido pelo interlocutor, detentor do já-dito, não sendo mais necessário ser dito
novamente. A base do esquema argumentativo se assenta em dois movimentos: demonstrar
e justificar uma tese ou refutá-la, nos dois casos opera-se com a apresentação de um dado
ou um elemento explícito de sustentação, o argumento e uma conclusão, outro movimento
previsto é o da refutação da tese ou argumentos de tese adversa. A constituição do esquema
pode apresentar variações, além disso, convém lembrar que n bojo de uma argumentação
repousam questões bastante polêmicas, que mobilizam mais de um ponto de vista e,
exatamente por isso, esta sequencia muitas vezes se estabelece como contraponto a uma
tese já estabelecida.
Esquema 5- Estrutura da Sequência Argumentativa - (Adam, 2011)

No esquema de Adam (2011, p.233) estão demonstrados os dois níveis da


argumentação: num primeiro nível, a justificação, englobando o período argumentativo 1
(momento de apresentação dos fatos ou dados que dão início a uma discussão), somado ao
período argumentativo 2 (apresentação do argumento) e ao período 3 (apresentação de uma
conclusão com uma nova tese). Nesse nível o interlocutor quase não é considerado e a
estratégia argumentativa se organiza a partir dos conhecimentos já apresentados. Outro
nível que se apresenta no esquema é o Dialógico (ou contra-argumentativo), englobando o
período argumentativo 0 (uma tese anterior, implícita ou explícita) mais o período
argumentativo 4 (refutação da tese anterior). Este nível se assenta na estratégia da
negociação com um contra-argumentador (real ou potencial), pressupondo maior interação
com o interlocutor visando-se a transformação dos conhecimentos.
Não há uma ordem linear obrigatória para a estrutura argumentativa: “a (nova) tese
(P.arg3) pode ser formulada de inicio e retomada, ou não, por uma conclusão que a repete
no final da sequência, sendo que a tese anterior (P.arg0) e a sustentação podem estar
subentendidos”, Adam (2011, p.234).
d) Sequência Explicativa: Essas sequências pressupõem o estabelecimento de
contratos, acordos entre os interlocutores obedecendo a três parâmetros: i) o objeto da
explicação é um fato, ii) este fato representa um problema da ordem do saber, ou seja o
conhecimento sobre o objeto está incompleto, iii) quem explica está em condições de fazê-
lo. Esta sequência é a tentativa de resposta às perguntas “por que?” e” como?”. O esquema
prototípico desta sequência apresenta três fases, sendo a primeira a constituição do objeto
da explicação bem como dos papéis de sujeito que explica e sujeito que recebe a
explicação, trata-se da macroproposição inicial, que pode, muitas vezes, vir subentendida.
A fase seguinte constitui-se de um núcleo explicativo, e a última, a ratificação, trata de
sancionar a explicação e fechar a sequência. Esses movimentos dão conta da tarefa de
apresentar um questionamento, respondê-lo e avaliá-lo. As sequências explicativas não se
assemelham (tampouco são dependentes das sequências narrativas ou argumentativas) pois
não se tem como função modificar opiniões ou julgamentos de valor dos objetos e/ou
sujeitos envolvidos na explicação.
Não há uma obrigatoriedade de sequenciamento linear dessas macroproposições,
pois a macroproposição final, a ratificação (que trata da conclusão) pode ser deslocada
para o início da sequência, ou pode ainda ser apagada.
Ainda, vale a pena lembrar Coltier (1986, p.4) que descreve algumas características
situacionais da sequência explicativa, elaborando, por sua vez um modelo (também)
ternário da sequência de base. Os tipos de situação que favorecem a produção de uma
sequência explicativa se assentam em dois parâmetros , a saber, a existência de um real
problema da ordem do saber e um agente (individual ou coletivo) que pode resolver o
problema, ele se incumbe de fazer o outro compreender o objeto da explicação. A autora
ainda explica seu modelo ternário da macroestrutura explicativa: fase de questionamento +
fase resolutiva e fase conclusiva, cf. Coltier (1986, p.8)
O esquema que resume esta sequência foi proposto por Adam (2011, p.245)

Esquema 6 - Estrutura da Sequência Explicativa - (Adam, 2011)

e) Sequência Dialogal: diz respeito à conversação e a mecanismos que regulam


a alternância dos turnos de fala. Nos gêneros como entrevistas, palestras e debates
predominam, por excelência, as sequências dialogais. No entanto, esta sequência não se
confunde com a situação de enunciação oral real, pois cf. Adam (2011, p.248): “A imitação
da conversação oral leva a formas dialogais escritas que não poderíamos confundir com a
oralidade autêntica”. Assim o autor compreende as sequências dialogais como interações
que se apresentam não apenas como alternância de turnos de fala, mas, sobretudo, como
uma estrutura hierarquicamente organizada dessa alternância.
Ainda de acordo com Adam (2011, p. 249-250) a sequencia de base comporta dois
tipos de sequências dialogais: i) a sequência fática, cujo caráter ritualístico cumpre a
função de abrir e fechar a interação, são socialmente acordadas e universalmente
reconhecíveis; ii) a sequência transacional, constitui o corpo da interação, razão de ser da
interação comunicativa. A organização dessas sequências de verifica no esquema abaixo,
transcrito de Adam (2011, p.250)

Esquema 7 - Estrutura da Sequência Dialogal - (Adam, 2011)

1.5 Síntese dos principais estudos sobre gêneros discursivos/textuais


Conforme estabelecido no ínicio deste capítulo a proposta foi percorrer os principais
estudos sobre gêneros, esquadrinhando um panorama em que Bakhtin se estabelece como o
precursor destes estudos, posto que os postulados e discussões de seu círculo foram em
grande medida mobilizados em estudos posteriores. Um traço em comum em todas as
correntes é o esforço de superação das análises linguísticas tradicionais, demasiado focadas
em um nível frástico, deixando de ver o texto como um todo e negligenciando aspectos
relacionados à situação de produção. Neste sentido, esses estudos representam um grande
salto no campo dos estudos sobre os gêneros discursivos/textuais. Por se tratar de uma
visão panorâmica acerca dessas várias correntes muitas questões não puderam ser tratadas
neste trabalho, dentre elas, a ausência de uma proposta de ferramentas analíticas concretas
nas reflexões bakhtinianas e na abordagem de Carolyn Miller, a exclusão de aspectos
psicológicos na teoria swalesiana, o predomínio de aspectos formais do gênero dentre os
estudiosos da escola de Sidney, etc. É provável que muito mais informações tenham
escapado à construção deste panorama. No entanto, é mais provável ainda que o objetivo
tenha sido cumprido, esclarecendo-se inclusive o porquê da adesão aos postulados da
ATD: ainda que se leve em consideração os demais estudos, a abordagem proposta na
ATD responde mais prontamente aos questionamentos subjacentes à pesquisa
empreendida, bem como fornece as bases para formulação das categorias de análise
mobilizadas.
Apresentam-se os pressupostos mais básicos sintetizados (embora correndo o risco
do aligeiramento típico das simplificações) nos dois quadros seguintes.
Quadro 1 - Sintese dos principais estudos sobre gêneros discursivos/textuais

Tradição de estudos
Principais expoentes* Característica Geral Aproximações/ Distinções
("Escolas") Principais contribuições
Parte de reflexões filosóficas de extraordinária O princípio de interação verbal: possibilita vislumbrar graus
robustez acerca da natureza sócio-discursiva da de distanciamento/aproximação entre os interlocutores, bem
linguagem, pressupõe o outro como elemento Em maior ou menor movimento de aproximação todos os estudos como seus papéis sociais. O princípio dialógico: que
Círculo de Bakhtin Bakhtin constituinte da relação dialógica subjacente aos consultados para compor essa tabela ou partem dos postulados possibilita vislumbrar as vozes no discurso, bem como sua
gêneros. Estabelece o enunciado como o alicerce das bakhtinianos ou o citam. constituição em função do outro.
discussões sobre gêneros, e os assenta sobre o tripé: A noção da tripla dimensão constitutiva de gêneros
estilo, tema e conteúdo composicional primários e secundários.
Halliday, Halliday; Hasan. Ambas, Escola de Sidney e ESP, compartilham a perspectiva
Mobilizam aportes teóricos da linguística sistêmica
fundamental de que aspectos linguisticos estão relacionados ao
(funcionalismo), análises críticas e da teoria textual. O
Escola de Sidney Martin, Martin; Rose, Martin; contexto social e funções. Ambos são direcionados por
Eggins papel do contexto ganha relevância na análise de
demandas pedagógicas de tornar visível ao estudante
aspectos textuais (um desses aspectos é a coesão). A proposta de análise de micro-gêneros ( textos menores
Kress, G. despreparado a relação entre língua e função social do gênero/
como os recontos, narrativas, relatos, descrições,
diferem quanto ao público alvo das aplicações didáticas de suas
argumentos, procedimentos e explanações que os textos
Mobilizam aportes teóricos advindos principalmente propostas: aplicações didáticas dos postulados da Escola de
Swales, J. mais complexos comportam) ou macro-gêneros(novas
E.S.P de teorias do texto, incorporando a retórica e Sidney visam atender à demanda de alunos de educação básica
Bathia, V. estórias, relatórios de pesquisa e gêneros escolares) .
posições etnográficas despreparados na escrita dos gêneros, a ESP visa atender às
demandas da escrita em contexto acadêmico/profissional. Desenvolvimento de uma teoria sobre a língua como um
fenômeno e processo social. Proposição de ferramentas
Os estudos destes autores se aproximam dos da ESP em seus
analíticas e metodologia de análise, que permitem uma
aspectos gerais, notadamente a incorporação da retórica em suas
descrição detalhada e sistemática dos padrões da língua.
discussões, com um conjunto numeroso de autores de diversas
A noção de comunidade discursiva de Swales, permitindo
disciplinas envolvidas com o ensino de L1, incluindo retórica,
Escola Norte- Miller , Mobilizam aportes teóricos advindos principalmente compreender como organizações sócio-retóricas se formam
estudos composicionais e escrita profissional/ acadêmica. Difere-
americana (Nova Bazerman de teorias do texto, incorporando a retórica e para atingir objetivos comuns, utilizando gêneros
se dos estudos desenvolvidos na escola britânica, na medida em
Retórica) Freedman; Medway posições etnográficas específicos, como é o caso da comunidade acadêmica.
que focam mais no contexto situacionais em que os gêneros
ocorrem de que suas formas, enfatizando especialmente os
propósitos sociais ou as ações que os gêneros realizam no âmbito
dessas situações em que eles são engendrados.

Outros: Conjunto de autores de orientação teórica variada, há mais


Interacionismo distanciamentos do que aproximações. No entanto, a despeito
A dimensão sociointeracionista na análise de gêneros
Sócio Discursivo das diferenças teóricas, das diversas orientações macro-analíticas
Mobilizam aportes teóricos muito diversos advindos textuais e a noção de gênero como mega-instrumento
(Escola de Adam, Maingueneau, e categorias de análise, as propostas de Adam e de Bronckart se
da Análise do Discurso, da Linguística de Texto, das (Schneuwly) como suporte às atividades de linguagem. A
Genebra), Bronckart, aproximam quando além de entender que os textos se compõem
teorias enunciativo-dicursivas . proposta de Adam de estabelecer o gênero como instancia
abordagens sócio- de tipos de discurso, se configuram numa dimensão sócio-
de mediação entre o texto e o discurso.
discursivas, AD, histórica da língua, mas se distanciam consideravelmente nos
ATD, etc. movimentos e categorias de seus modelos analíticos.
Quadro 2- Definições de gênero discursivos/textuais dentre os principais autores pesquisados

Autores e Definições de Gêneros


Cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de
Bakhtin
enunciados, sendo isso que chamamos gêneros do discurso. (1997)
Os gêneros são a forma pela qual se faz as coisas quando a
linguagem é usada para realizá-las (1985).
Martin
Um sistema estruturado em partes, com meios específicos para fins específicos.
(1993)
Gêneros textuais são uma categoria distintiva de discurso de algum tipo, falado ou
escrito, com ou sem propósitos literários. (1990)
Gêneros são uma classe de eventos comunicativos vinculada a uma comunidade
discursiva específica que faz uso de um gênero específico para atingir seus objetivos.
Swales (1993)
Os gêneros se definem essencialmente em termos do uso da linguagem em contextos
comunicativos convencionados, que dá origem a conjuntos específicos de propósitos
Bathia comunicativos para grupos sociais e disciplinares especializados que, por sua vez,
estabelecem formas estruturais relativamente estáveis e, até certo ponto, impõem
restrições quanto ao emprego de recursos léxico-gramaticais. (1997)
A noção de ação é central na discussão de Miller sobre gêneros, bem como as noções
de situação e motivação, assim, gênero é uma forma num nível específico resultante da
Miller
fusão entre formas do nível inferior e substância característica. Ação retórica tipificada
funcionando como resposta a situações recorrentes e definidas socialmente. (1984)
Gêneros não são apenas formas. Gêneros são formas de vida, modos de ser. São
frames para a ação social. (...) Gêneros são os lugares familiares para onde nos
Bazerman
dirigimos para criar ações comunicativas inteligíveis uns com os outros e são os
modelos que utilizamos para explorar o não-familiar. (2007)
Define gêneros como categorias prático-empíricas necessárias à produção e recepção
de textos, prototípicas (em função de suas regularidades) e reguladoras das práticas
Adam
nos discursos e como o meio de pensar a diversidade socioculturalmente regulada das
práticas discursivas humanas. (1997)

Os gêneros do discurso não podem ser considerados como formas que se encontram à
disposição do locutor a fim de que este molde seu enunciado nessas formas. Trata-se,
Maingueneau
na realidade, de atividades sociais que, por isso mesmo, são submetidas a um critério
de êxito. (2001)

Ações de linguagem, formas de atividade comunicativa em que adotando-as ou


adaptando-as os humanos aprendem e desenvolvem as regras de interação social ou
Bronckart ainda as regras de atividade que constituem a psicologia do corpo social. Os tipos de
discurso apreendem as regras de funcionamento das diversas relações humanas,
constituindo-se, de fato, como formas de atividade cognitiva. (1994)
1.6 Os gêneros secundários

Partindo-se de Bakhtin (1997), entende-se que o gênero estudado nesta pesquisa,


o artigo científico, pertence ao discurso científico, fazendo parte do que o autor designa
como gêneros secundários, ou complexos, distinguindo-se dos gêneros primários,
considerados mais simples.
Os gêneros secundários (romance, teatro, discurso científico, religioso, político,
etc) são engendrados nas circunstâncias de práticas linguageiras culturais
(principalmente os escritos), artísticas, científicas, sóciopolíticas, e são mais comumente
complexas e relativamente evoluídas (Todorov, 1981, p.267). Os gêneros primários,
como já se observou, resultam das práticas linguageiras do cotidiano. No entanto, ainda
que a distinção bakhtiniana funcione como um princípio que permite ordenar os gêneros
em meio à heterogeneidade, a questão não consiste apenas em decidir sobre uma
possível fronteira entre gêneros primários e secundários, mas, sobretudo, seguindo a
ótica bakhtiniana, em observar o continuum que existe entre osgêneros primários e
secundários do ponto de vista de sua constituição.
Desta forma, o que parece ser mais relevante nesta discussão não é a distinção em
si, mas a própria ideia de secundariedade: os gêneros secundários recorrem às formas de
discurso já estabelecidas para integrá-las numa nova instância discursiva com novas
finalidades comunicativas; nota-se iguamente que a relação entre os dos tipos de gêners
não é unívoca: o fato de dispor de gêneros secundários modifica muito as trocas mais
cotidanas.
Neste aspecto, os gêneros secundários evocam o que Benveniste (1976) trata em
termos de enunciação histórica, para definir os enunciados recortados de sua situação de
enunciação: em razão desta propriedade, estes enunciados são especialmente marcados
por tenderem à ausência de referências dêiticas (ou referência relativa aos parâmetros
físicos da situação de enunciação que são os atores, o tempo e o lugar). Seu encerrameto
interno ainda é a garantia para um complexo sistemas de retomadas anafóricas, e,
especialmente pelo que Maingueneau (1994) nomeou como deixis interna. Os gêneros
acadêmicos, e em especial os tratados nesta pesquisa, enquanto gêneros secundários,
tem a peculiaridade de manter uma relação mediada pelo campo cultural e não uma
relação direta com sua situação de produção ou com a experiência da vida cotidiana. Tal
característica poderia ser considerada como o foco numa dimensão muitas vezes
denominada análise programática de gêneros, e diversamente tratada em termos de
ethos ou papéis discursivos, por Maingueneau (1992), Branca-Rossoff (1999) ou em
termos de imagem de autor, na perspectiva bakhtiniana.
Para discutir a distinção entre gêneros primários e secundários, e avançar na
questão da secundariedade e suas possíveis implicações na análise de um gênero em
particular, Mangueneau (1995) propõe uma outra distinção, bastante próxima à aquela
formulada por Bakhtin: o autor opõe os gêneros conversacionais aos gêneros
denominados por ele como rotinizados ou institucionalizados. Desta forma, o que
Maingueneau define como gêneros conversacionais integra o tipo de trocas que tem
como objeto as análises pragmáticas conversacionais: esse tipo de análise se encarrega,
sobretudo, das interações cotidianas face a face, que se encaixam perfeitamente na
descrição bakhtiniana dos gêneros primários e secundários, ou seja, na relação entre
texto e contexto de sua produção.
No que concerne à distinção proposta por Maingueneau (1992) os gêneros
acadêmicos correspondem a um gênero institucionalizado, em virtude de sua filiação no
campo científico, e, especialmente no caso de artigos que são publicados em periódicos,
da disposição editorial implicada na produção. Além disso, a noção de rotinas na
abordagem proposta pelo autor, permite contemplar um outro aspecto importante no que
diz respeito aos gêneros secundários: a rotinização permite privilegar os papéis
discursivos, que nos gêneros são pré-estabelecidos, muito codificados, e, relativamente
estáveis, diferentemente do que ocorre no quadro dos gêneros conversacionais.
A estabilidade do gênero, questão discutida por Bakhtin (1997), relaciona-se ao
seu caráter institucional, da mesma forma que se pode associar, ao gênero, um papel
discursivo endossado por seu autor, o que leva a postular a ideia de que se trata de um
papel discursivo muito convencional, equivalente, no caso do gênero acadêmico, ao de
representante num campo científico.
Os últimos tópicos deste capítulo continuam detendo-se sobre o mesmo objetivo,
qual seja, o de realizar um percurso teórico sobre a noção de gênero, apresentando as
várias abordagens existentes na busca de definições operacionalizáveis nesta pesquisa,
assim, encaminha-se o último tópico deste capítulo, visando uma caracterização dos
gêneros, e dos gêneros acadêmicos, em específico.

1.6.1 O gênero discursivo/textual acadêmico artigo científico


De um modo geral, podem-se estabelecer três pontos de vista distintos na
literatura disponível acerca deste gênero, dependendo da área de atuação dos autores.
Assim, distingue-se um primeiro grupo de obras a respeito da produção científica
acadêmica, produzido principalmente por autores de indiscutível experiência acadêmica,
de produção escrita, mas que não sendo linguistas não têm a língua como objeto de
pesquisa e trabalho. Estas obras são comumente adotadas nas disciplinas de
Metodologia Científica (MC), Pesquisa em Letras, e outras variantes, assemelhando-se,
em grande medida aos do segundo grupo, aos manuais produzidos por associações e
comitês acadêmicos destinados à comunidade acadêmica, os quais são tão comuns que
praticamente quase todas as IES no Brasil disponibilizam um manual, impresso ou
digital, desta natureza, para orientação de seus alunos na confecção de seus trabalhos
acadêmicos. A natureza desses materiais é eminentemente prescritiva, tanto quanto nos
manuais de Metodologia Científica adotado nas disciplinas. Não há nestes textos
nenhuma discussão acerca dos artigos enquanto gêneros discursivos/textuais próprios da
comunidade acadêmica, discussão que fica restrita aos linguistas, (Aragão, 2011).
Uma das críticas que se faz ao modelo de apresentação de artigos escritos por
autores especialistas em MC, mas não em Linguística, é o fato de que se apresentam
pasteurizados, inflexíveis e não refletem a enorme diversidade de estruturas textuais de
artigos recorrentemente publicados em periódicos diversos, bem como ignorando a
especificidade das áreas disciplinares. É, talvez, essa a razão que tenha popularizado os
estudos de Swales (1990, 1993, 2004), bem como os de Bathia (1993) considerando-se
suas propostas e ferramentas analíticas como um arsenal não só para a análise de
gêneros, mas, sobretudo, para seu ensino. Neste sentido, as novas propostas didáticas
(como as de Machado et al, 2004; Motta-Roth;Hendges, 2010) exploram as relações que
os gêneros acadêmicos estabelecem entre si bem como questões relativas a sua
produção e circulação. No que diz respeito a este quesito, alguns gêneros acadêmicos
costumam ter circulação restrita, como por exemplos os projetos e relatórios de
pesquisa, atas de defesa de monografia, dissertação e tese, interessando, na maior parte
das vezes, aos pesquisadores envolvidos e às agências de fomento ou às pró-reitorias de
graduação e de pesquisa. Por essa razão, são menos visíveis e de acesso mais restrito.
Outros, ao contrário, tem circulação mais abrangente, como por exemplo os artigos, as
aulas, as conferências, os seminários, etc, estabelecendo uma relação dinâmica com
esses outros gêneros.
O artigo é um dos gêneros mais prestigiados no circuito acadêmico, em função de
seu estatuto específico no campo – é o que mais respalda a carreira do cientista e o mais
observado entre os pares – acabou se tornando medida de referência da produtividade
acadêmica, por causa de fatores de ordem bibliométrica. Sua importância capital para a
comunidade acadêmica também reside no fato de que veicula resultados de pesquisa, o
saber especializado acadêmico, com grande velocidade e abrangência (Motta-Roth,
2001, p.39), especialmente na era digital. Swales (1990) define o artigo acadêmico
como um texto escrito, de curta extensão em que o relato (incluindo resultados) de uma
pesquisa é apresentado em veículos apropriados, os periódicos especializados, por
vezes, em coletâneas organizada e publicadas em livros. O artigo, seja ele de qual
natureza for, procura relacionar achados da pesquisa relatada com outros trabalhos já
realizados no campo do conhecimento, bem como traz discussões de questões ligadas à
teoria e metodologia.
Convém apontar algumas observações acerca das características do gênero
discursivo/textual artigo científico, que diz respeito, principalmente, ao modo de
produção e circulação. No que diz respeito às restrições editoriais, este é um quesito que
atinge apenas os artigos, mas isso é apenas aparentemente, pois embora relatórios,
projetos, monografias dissertações e teses não se destinem, originalmente, à publicação
em periódicos, eles se assemelham ao artigo no que tange ao fato de serem burocrática e
fortemente estruturados, submissos às coerções de forma e conteúdo. Esses gêneros
obedecem a regras e códigos particulares, ditados ou pelas normas editoriais ou das
agências de fomento à pesquisa, tanto no nível da forma quanto do conteúdo. No nível
do conteúdo, espera-se uma robusta ancoragem teórica e metodológica, apresentação de
resultados novos19 ou sínteses críticas sobre o estado de arte de uma determinada área
do conhecimento.
No que diz respeito à forma, destaca-se a importância do paratexto, as notas,
referências bibliográficas, anexos, tabelas, esquemas, etc., o recurso ao estilo mais
impessoal possível e utilização de terminologia específica. Por meio do seu discurso,
um pesquisador experiente (ou mesmo um iniciante) demonstra que foi capaz de
integrar não apenas o conhecimento, mas, sobretudo um saber-fazer, os códigos e
valores da atividade científica, cf.Boure (1998, p.107). Neste campo (para usar um
termo bourdieusiano) o valor do pesquisador está atrelado ao número de publicações em
periódicos de prestígio e renome.
19
O quesito inovação/novidade deve ser entendido como relativo, na medida em que trabalhos que
realmente invalidam conhecimentos existentes anteriormente são excepcionais, não são a regra: segundo
Kuhn (2009) a novidade, na maioria das vezes, se resume a uma simples diferenciação no nível das
hipóteses, da problemática, ou dos resultados, mas, sempre compatíveis como os paradigmas em curso,
não resultando numa renovação paradigmática.
No caso do gênero enfocado nesta pesquisa também ocorre uma validação
externa: a conformidade científica e redacional dos textos é avaliada por um comitê
científico externo, os pareceristas dos periódicos e/ou os professores das disciplinas para
as quais os artigos de autores iniciantes foram escritos. As modalidades de seleção
variam, no caso dos periódicos de acordo com as normas editorias de cada periódico e
de suas propostas temáticas, ou na demanda de aprendizagem específica no âmbito de
uma disciplina curricular do curso de Letras.
Tais considerações devem ser levadas em conta nas análises na medida em que
influem sobre o estilo e o texto em geral.
No que diz respeito aos aspectos linguísticos o gênero estudado apresenta as
seguintes características: o discurso acadêmico é caracterizado por conter mais
inferências, inclusive as de natureza metalinguística (baseada no pressuposto de que os
leitores são pares familiarizados com o paradigma linguístico do discurso científico),
envolve conceitos altamente abstratos, incidência elevada de conteúdos inferíveis,
combinados a outros conceitos inusitados e/ou apenas inferíveis, exigência de
conhecimentos prévios no campo científico para inferir objetos de natureza altamente
complexa e abstrata, cf. Poudat (2006, p.54).
Concernente a estrutura do gênero, o artigo apresenta-se fortemente estruturado. A
progressão das seções de seu desenvolvimento é, ainda que de modos variados,
submissa à estrutura IMRD20 (segundo sua cultura e domínio científico ao qual se filia):
os gêneros estudados normalmente se dividem em vários elementos e seções facilmente
identificáveis e padronizadamente codificados, como por exemplo: título na abertura do
artigo, ao nome do autor se somam (indicados por asterisco) sua vinculação acadêmica,
as vezes em nota de rodapé, ou após o nome. Apresenta um resumo, ou o abstract, com
as palavras chave, não sendo regra nos textos que compõe o corpus, especialmente os
artigos produzidos por alunos de graduação para avaliação em disciplinas. Considere-se
ainda a variável área do conhecimento, pois segundo Poudat (2006, p.57) a prática de
resumos é mais generalizada nas ciências da natureza do que em ciências humanas,
sendo menos sistemática nestas, sendo, assim, mais dependente das normas editoriais do
periódico.
Outros elementos se apresentam: a bibliografia, geralmente colocada após a
conclusão é facilmente identificada por sua estrutura, o corpo do texto, que no caso de
20
Aragão (2011) observa uma flutuação na estrutura que tanto segue o padrão IMRD, como também o
padrão IDC. No entanto, mesmo dentro do que tradicionalmente se padroniza como IMRD, há diversas
publicações que se estruturam numa variação do IMRD, havendo fusões entre algumas seções.
relatórios, teses, dissertações e monografias é mais propensa a muitas subdvisões
enumeradas, enquanto artigos e projetos são menos sensíveis a muitas subdivisões.
Ainda assim, são previstas as seguintes divisões:
 Introdução: colocada na abertura do corpo do texto, podendo ser ou não
marcada por um título;
 O desenvolvimento (a análise propriamente dita ou discussão), dividida
em diferentes níveis, normalmente enumeradas, organizados ou não em conformidade à
estrutura IMRD;
 A conclusão, colocada ao final do corpo do texto, normalmente indicada
por um título (variável: conclusão, perspectivas, e, muito comum no Brasil,
considerações finais) sem subdivisões.
 Notas de rodapé ou de fim
 Elementos paratextuais: tabelas, fórmulas, quadros, figuras, gráficos, etc.
Motta-Roth (2001), ao tratar da seção Resultados e Discussão, observa que alguns
artigos fundem ambas numa mesma seção, em outros artigos ocorre a fusão das seções
Discussão e Conclusão, outros, ainda, adicionam o item Implicações à Conclusão21.
Em Swales (1981, 1990, 2004) , Motta-Roth (1991), bem como em Gomes (2001)
encontram-se arrolados os objetivos de cada uma das unidades retóricas previstas no
artigo científico:
 Introdução: espaço discursivo destinado ao estabelecimento do tema
do artigo, revisão da literatura (situando o trabalho dentro da grande
área de pesquisa do qual faz parte, cf. Motta-Roth, 2011) e a atrair a
atenção do leitor apresentando também o objetivo, a metodologia, e
proposições. O texto deve ser construído e apresentado de tal forma
que ao final desta seção o leitor já consiga vislumbrar a ideia
principal do artigo.
 Métodos: Seção em que se descrevem, detalhadamente, a
metodologia, os materiais e procedimentos de pesquisa. Em um
artigo, esta seção não deve ocupar muito espaço, restringindo-se a
alguns parágrafos.

21
Em Aragão (2011) também se observa a mesma flutuação: há artigos que seguem classicamente a
organização canônica IMRD ou IDC, no entanto, muitos apresentam o tipo de variação mencionada,
comprovando a instabilidade deste modelo canônico do gênero.
 Resultados: seção em que se descrevem e comentam os achados, o
processo de manipulação dos dados obtidos na seção anterior, com
apenas algumas limitadas declarações sobre os testes realizados.
 Discussão: seção em que, a partir de generalizações possíveis, se
explicita o que foi aprendido com a pesquisa.
Em obra de 2004, em uma proposta de reformulação do modelo anterior baseado
nos movimentos, Swales cria o novo modelo chamado “Create a Research Space” em
que pondera sobre a possibilidade de se apresentarem três formas para o que
tradicionalmente se denomina Revisão de Literatura: i) configurando-se como uma
seção independente22 denominado “Revisão de Literatura”23; ii) incorporada ao texto
que compõe o artigo sem que se constitua seção; iii) diluída ao longo do texto. Essas
considerações do autor pareceram bastante relevantes para esta pesquisa na medida em
que esta é justamente a seção do artigo a ser focada no recorte.
Este modelo, em sua formulação inicial e reformulações posteriores, foi adotado
por inúmeros pesquisadores não apenas para descrever e analisar a seção Introdução
(para a qual foi concebido) como para várias outras seções dos artigos, como o abstract,
discussão, conclusão, bem como para as várias seções que compõem outros gêneros
acadêmicos como monografias, dissertações e teses.
No que diz respeito à natureza do artigo científico encontram-se em Swales
(2004) a seguinte classificação para os artigos científicos:
 Artigos experimentais: são os que se baseiam em estudos sobre dados
coletados.
 Artigos teóricos: tratam de assuntos e/ou pesquisa que não envolvem a
coleta de dados, como a pesquisa experimental, por exemplo.
 Artigos de revisão: são os que apresentam uma revisão de literatura
normalmente finalizada por uma avaliação do autor, (Swales,
2004)..Noguchi (2006) divide-os em quatro categorias: i) artigos que
apresentam uma visão histórica de uma faceta de uma área de estudo; b)
artigos que descrevem o estado de arte das pesquisas em uma área de
estudo; iii) artigos que propõem uma teoria; iv) artigos que colocam em
evidência alguma questão de uma área de estudo. São também chamados
22
Essa variação, admitida por Swales em 2004, parece ser a mais recorrente nos textos que compõe o
corpus desta pesquisa.
23
No corpus estudado, confirmando a instabilidade a seção é comumente encontrada em tópicos
separados, a maioria delas tem como rótulo o campo teórico de discussão, outras “Fundamentação
teórica” outras são diluídas ao longo do texto sem rótulos, e outras, com “Referencial Teórico”
de “Artigo de Revisão”, normalmente escritos pelos membros mais
experientes da comunidade acadêmica, requer reflexões teóricas robustas,
gerando contribuições para a área de estudo. Costuma apresentar um
grande número de referências, seções baseadas em conteúdo, com divisões
e poucas figuras.
Considerados todos esses aspectos ainda resta aquele que motiva esta pesquisa e
fundamenta os estudos realizados no capítulo seguinte: trata-se do diálogo entre aquele
que escreve o texto científico e aqueles que o precederam na pesquisa acadêmica. Na
construção de um artigo o autor científico mobiliza outras vozes de diferentes autores
com diversas finalidades. Neste diálogo entre as vozes se fundamenta também o diálogo
entre o autor científico e a comunidade discursiva, seus pares.
Para finalizar, considera-se que a abordagem de práticas linguageiras sob o ângulo
da problemática dos gêneros exige, cf. Rastier (1996), que se considere os textos como
objetos empíricos suscetíveis de análise linguística. Se todos os níveis de textualidade
variam de acordo com os gêneros e que todos são, a priori, pertinentes para caracterizar
um gênero em específico, o estudo de um gênero não deveria, em princípio, se resumir
ao nível léxico ou frástico, mas estas instâncias podem ser consideradas o ponto de
partida para se estabelecer relações que podem ser depreendidas no texto em relação a
outras dimensões, como o gênero e o discurso. É nesta perspectiva que se entende, no
âmbito desta tese, o modelo de análise textual proposto em Adam (2011): parte-se de
unidades mínimas, a proposição-enunciado, para se chegar às outras dimensões, ou
níveis do texto, num percurso ascendente de análise.
Defendendo a análise a partir das unidades mínimas, Poudat (2006) lembra que os
termos empregados num texto literário ou científico não o são literários ou científicos
por si só, mas, é, sobretudo, o uso que se faz destes termos nos textos que permite
considerar tais termos desta maneira, e, por conseguinte, determinar a característica
literária ou especializada do emprego de certos termos. Tome-se como um exemplo
prático as rotinas citacionais: tais rotinas podem se constituir, por si só, um objeto de
estudo (cf. Faria e Farias, 2014), é também um elemento de descrição e traço distintivo
dos gêneros acadêmicos, e ainda um “condutor” que direciona os estudantes iniciantes
na prática da escrita acadêmica. Assim, o interesse pela citação se justifica por sua
especificidade e sua funcionalidade nestes escritos.
Uma outra perspectiva na análise de gêneros visa a diversidade das dimensões
consideradas unidade de estudo. O objetivo de tal visada é caracterizar ainda mais
finamente um discurso ou um gênero, de modo multicriterial. Trata-se de uma
caracterização geralmente diferenciada: incumbe-se de ressaltar o que é peculiar a um
gênero em comparação a outros e descrevê-los em termos de traços comuns em
oposição aos singulares. A idéia que subjaz aqui é a de que os gêneros sejam descritos
como Rastier (2001, p.253) recomenda: sob um feixe de critérios. Desta forma, a análise
textual encontra na linguística de corpus e na análise estatística ferramentas
particularmente adaptadas para a exploração dos textos e definição genérica.
Contrastando com algumas propostas de definição do gênero em seu conjunto,
esta pesquisa se restringe a determinado fenômeno linguístico, de ordem enunciativa, a
responsabilidade enunciativa materializada em determinadas escolhas lexicais e
sintáticas. Ao fim e ao cabo, a idéia é demonstrar como se operacionaliza, na prática, a
proposta de se considerar o texto como ponto de partida para o estudo dos gêneros,
mobilizando, num enfoque enunciativo, o nível da RE na Análise Textual do Discurso,
das discussões rabatelianas acerca do PDV e vários outros autores em suas
considerações sobre conceitos correlatos. É o que se apresenta no próximo capítulo,
dedicado às questões de ordem enunciativa e polifônica envolvidas na análise textual.

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