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(...) gêneros são o que as pessoas reconhecem como gêneros a cada momento do
tempo, seja pela denominação, institucionalização ou regularização. Os gêneros
são rotinas sociais de nosso dia-a-dia.(Marcuschi, 2008, p.16)
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By rhetoric, I mean most broadly the study of how people use language and other symbols to realize human
goals and carry out human activities. Rhetoric is ultimately a practical study offering people greater control
over their symbolic activity. Rhetoric has at times been associated with limited techniques appropriate to
specific tasks of political and forensic persuasion within European legal institutions. Consequently, people
Convencionou-se denominar escola norte-americana, ou escola da Nova Retórica, os
estudos de pesquisadores norte-americanos, cujos trabalhos se inseriam na retórica
tradicional, influenciados pelos temas da produção textual acadêmica e produção textual
em língua materna. A essa orientação passou a se denominar, posteriormente, Nova
Retórica, em que se inseriam pesquisas originadas de diversas disciplinas sobre ensino de
L1, em cujo foco se incluíssem a retórica, os estudos sobre produção textual e escrita em
contexto profissional/acadêmico.
A escola chamada Nova Retórica relaciona-se aos estudos da linguagem na
perspectiva de reconfigurar o papel da Retórica nos estudos de textos específicos, detendo-
se num ponto de vista mais funcionalista, voltada para o caráter dialógico que marca a
estrutura do texto e seus usos e contextos de produção, sem, no entanto, desprezar a
estabilidade (já discutida desde Bakhtin) que os arranja em vários gêneros. Na abordagem
da Nova Retórica, as questões de linguagem estão a serviço da análise da produção,
circulação e consumo de textos, e sob esse viés, os estudos propuseram diversas
orientações teórico-metodológicas para a análise de gêneros textuais, sem se deter em
detalhes sobre essas orientações. Apresentam-se, neste item, alguns dos principais
representantes dessa vertente.
A arquitetura dessa orientação se configura, inicialmente, pelo trabalho de Carolyn
Miller, publicado em 1984, intitulado “Genre as social action”. Sob a rubrica “Nova
Retórica” abrigam-se trabalhos cujo foco incide mais sobre os contextos situacionais em
que os gêneros ocorrem do que na forma desses gêneros, enfatizando, principalmente, os
propósitos sociais e as ações desencadeadas pelos gêneros nessas situações de
comunicação, incluindo-se aí os trabalhos de Bazerman (1988, 2000, 2004, 2006),
Freedman e Medway (2004), e vários outros. O artigo de Miller (1984) teve o mérito de
delinear os pressupostos da teoria de gênero da Nova Retórica dentro das disciplinas de L1:
(…) uma definição retórica de gênero não deve ser focada na substância ou
forma do discurso mas na ação usada para realiza-lo. Para isso, eu examinarei a
relação entre gênero e situação recorrente bem como o modo pelo qual se diz que
genero reepresenta uma ação retórica tipificada. Minha análise também
concerned with other tasks have considered rhetoric to offer inappropriate analyses and techniques. These
people have then tended to believe mistakenly that their rejection of political and forensic rhetoric has
removed their own activity from the larger realm of situated, purposeful, strategic symbolic activity. I make
no such narrowing and use rhetoric (for want of a more comprehensive term) to refer to the study of all areas
of symbolic activity.
demonstrará como modelos hierárquicos de comunicação podem ajudar a
esclarecer a natureza e estrutura de tal ação reórica. (MILLER, 1984, p.151)3
Os estudos da escola norte-americana tendem a se concentrar em textos não
literários. Seus teóricos também tendem a focar nas substanciais similaridades linguisticas
e regularidades das esferas de atividade humana (Freedman e Medway, 1994, p.1), sem, no
entanto, abandonar as concepções anteriores de gêneros como tipos de discurso, cuja
principal preocupação era buscar as similaridades no conteúdo e forma.
No artigo de Miller (1984) é possível identificar algumas características comuns dos
gêneros escritos:
a) A escola Nova Retórica concebe os gêneros como uma “categoria convencional de
discurso na tipificação em larga escala das ações retóricas” (Miller, 1984, p.160). Ou seja,
o gênero é aqui tomado como uma forma de ação social, entendido tanto como uma ação
social frequentemente repetida por um grupo ou por um único indivíduo a fim de atender a
seus propósitos comunicativos;
b) Como ação significativa que é, o gênero pode ser interpretado por meio de regras,
o que significa que os gêneros são, até certo ponto, determinados por certas regras;
c) O gênero é uma entidade que se distingue da forma. Miller o define da seguinte
maneira: “gênero é uma forma num nível específico resultante da fusão entre formas do
nível inferior e substância característica [desse nível]” (Miller, 1984, p.160)4;
d) Os gêneros se constituem como padrões recorrentes de usos da língua e, neste
sentido, ajuda a constituir uma cultura. Tal ideia implica que gêneros não são apenas parte
de uma cultura, mas, antes, ferramentas de modelagem da cultura;
e) O gênero é tomado como uma força que tensiona as relações entre indivíduo e
sociedade: “um gênero é um meio retórico para mediar intenções particulares e exigências
sociais (Miller, 1984/1994, p.60).5 Com isso, a autora postula que examinando os gêneros
pode-se perceber e explicar o processo social no qual a escrita de um indivíduo é
influenciada ou mediada por fatores contextuais.
A autora também argumenta, no mesmo ensaio (Genre as Social Action, 1984), pela
proposição de um princípio de classificação dos gêneros baseado na prática retórica em
contraste com o estudo de gêneros, cujo foco recai mais na estrutura, conteúdo e tema.
3
Tradução livre do excerto: (…) a retorically sound definition of genre must be centered not on the substance
or the form of discourse but on the action it is used to accomplish. To do so, I will examine the connection
between genre and recurrent situation and the way in which genre can be said to represent typified rhetorical
action. My analysis wil also show how hierarchical models of communication can help illuminate the nature
and structure of such rhetorical action. (MILLER, 1984, p.151)
4
(...) genre is a form at one particular level that is a fusion of lower level forms and characteristic substance”
5
“A genre is a rhetorical means for mediating private intentions and social exigence”
Além disso, Miller propõe um tipo de abordagem etnometodológica para o estudo de
gêneros:
A classificação que defendo é, de fato, etnometodológica: busca explicar o
conhecimento criado pelas práticas. Esta abordagem insiste em que os gêneros
“de facto”, os tipos para os temos nomes em nossa linguagem cotidiana, nos
dizem alguma coisa teoricamente importante sobre o discurso. Considerar como
gêneros potenciais os gêneros do discurso cotidiano tais como a carta de
recomendação, manual de usuário, o relatório de desempenho, a aula e o papel
em branco, bem como o elogio, a apologia, o processo público inaugural, e o
sermão não implica em trivializer o estudo dos gênêros, e sim considerer a
retórica na qual estão imersos e as situações nas quais nos encontramos.
(MILLER, 1984, p.155)6
Sob esta perspectiva, para que se entenda como um gênero se desenvolveu e como
funciona, o analista precisa recorrer tanto às análises sobre o gênero como sobre a situação
em que o gênero ocorre. Os estudos de gênero da escola Nova Retórica diferem
significativamente daqueles empreendidos pela Escola de Sidney, cujo foco se direciona
mais para as características textuais do gênero.
A noção de ação é central na discussão de Miller sobre gêneros, bem como as noções
de situação e motivação. A autora afirma: “ação humana, simbólica ou não, é interpretável
somente em um contexto situacional e por meio da atribuição de motivos.” 7 (Miller, 1984,
p.152). Sua noção de ação implica basicamente em duas dimensões que se articulam e
tensionam as relações entre indivíduo e sociedade: situação e motivo, ambos considerados
como construtos sociais. Assim, a autora considera gêneros como ações sociais mediados
tanto pela situação (fatores externos) como por motivos (fatores internos).
A definição de gêneros de Miller (1984) repousa no princípio da recorrência de
modos de uso do discurso. A partir dessa perspectiva, o analista pode examinar textos
com base nas características formais compartilhadas para concluir que as formas
recorrentes têm implicações cognitivas para os usuários, levando-se em conta, ainda, o
trabalho ou ação social que enseja o gênero. Assim, a autora elabora um modelo de análise
genérica que pode ser apropriado tanto do ponto de vista textual, quanto cognitivo,
contextual ou retórico, o que equivale dizer que os gêneros podem ser um caminho para se
teorizar práticas discursivas complexas, uma vez que não apenas se realizam em contextos
sociais específicos como também modelam, e de certo modo, estabilizam estes contextos.
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The classification I am advocating is, in fact, ethnometological: it seeks to explicate the knowledge that
practices creates. This approach insists that the "de facto" genres, the types we have names for in everyday
language, tell us something theoretically important about discourse. To consider as potential genres such
homely discourse as the letter of recommendation, the user manual, the progress report, the ransom note, the
lecture, and the white paper, as well as the eulogy, the apologia, the inaugural, the public proceeding, and the
sermon, is not to trivialize the study of genres; it is to take seriously the rhetoric in which we are immersed
and the situations in which we find ourselves. (MILLER, 1984, p.155)
7
“human action, whether symbolic or otherwise, is interpretable only against a context of situation and
through the attributing of motives”
Em Berkenkotter e Huckin (1995) encontram-se cinco princípios que orientam e
constituem um modelo analítico para o estudo de gêneros, são eles:
a) Os gêneros são formas discursivas dinâmicas desenvolvidas em resposta às
situações recorrentes e que servem para estabilizar a experiência. Além disso, gêneros são
capazes de modificar-se ao longo do tempo de modo a satisfazer as mudanças nas
necessidades sóciocognitivas dos usuários da língua.
b) Situacionalidade: o conhecimento de um gênero é adquirido pelos membros
de uma comunidade discursiva ao participarem nas atividades de produção do
conhecimento, na vida cotidiana e profissional. Os autores pontuam que o conhecimento
sobre gêneros é mais um processo de aculturação de que de ensino: “[o conhecimento
genérico] mais do que ser explicitamente ensinado, é transmitido pela aculturação
conforme os aprendizes se socializam nas formas de fala de uma comunidade discursiva
específica”8 (Berkenkotter; Huckin, 1995, p.7)
c) O conhecimento de gênero implica conhecimento sobre forma e conteúdo,
incluindo-se aí a adequação de um determinado conteúdo para um propósito específico em
uma situação específica e num determinado tempo (que vale dizer que o gênero é
localizado em ambos: tempo e espaço).
d) Considerando-se que as pessoas usam os gêneros e, também, se envolvem
em atividades profissionais no âmbito de uma instituição. Neste caso, as duas dimensões
(gênero e atividade profissional) criam e reproduzem estruturas sociais específicas. Ou
seja, quando as pessoas usam os gêneros nas demandas de suas atividades profissionais e
institucionais elas constroem, nestes contextos, certas estruturas sociais, bem como, ao
mesmo tempo, reproduzem essas estruturas. Tal movimento aponta a forte relação entre
estruturas sociais e atividades comunicativas.
e) O quinto princípio estabelecido pelos autores diz respeito ao fato de que as
normas de uma comunidade discursiva, bem como sua epistemologia, ideologia e
ontologia social são simbolizadas pelas convenções genéricas. Desta forma gêneros são
vistos como parte de um contexto disciplinar ou atividades profissionais condicionadas
pelas normas e valores de uma dada comunidade. As pessoas assimilam os valores e
perspectivas de uma comunidade discursiva na medida em que aprendem a usar os
gêneros, que delas se esperam que se faça uso.
8
“[genre knowledge] rather than being explicitly taught, is transmitted through enculturation as apprentices
become socialized to the ways of speaking in particular disciplinary communities”
Bawarshi e Reiff (2010, p.78) consideram os gêneros, a partir das propostas de
Berkenkotter e Huckin (1995) , como formas de cognição situadas, ou seja, para que os
gêneros realizem ações eles devem estar relacionados à cognição, pois o que sabemos e
como agimos estão intimamente relacionados entre si. Ou seja, equivale a entender que o
contexto determina a maneira como assimilamos e empregamos os gêneros com os quais
lidamos no nosso cotidiano (respondendo às demandas situacionais).
Enfim, a partir dessas considerações entende-se que na perspectiva da Nova Retórica
o foco tende a explorar mais os aspectos socioculturais do gênero do que os linguísticos,
sendo este último aspecto mobilizado para descrever regularidades nos tipos de discurso
oferecendo uma compreensão mais ampla a respeito dos aspectos socioculturais da língua
em uso.
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Tradução livre do fragmento: “the only semiotic system that embodies all human experience and all human
relationships.”
O autor estabelece que as formas da língua são modeladas por características chave do
contexto situacional, as quais podem ser descritas em termos de registros variáveis:
campo, relações e o modo (cf. Eggins, 1994 e Halliday, 1994). O campo diz respeito ao
que está acontecendo, em outros termos, sobre o que as interações tratam, as relações
dizem respeito a quem participa da atividade que está acontecendo, ou, que papéis
desempenham, o modo diz respeito à qual parte da língua está em jogo, ou, como a língua
se estrutura para atingir os objetivos comunicativos postos em questão. Os elementos do
contexto e as realizações linguísticas, dialeticamente relacionados, permitem a previsão
de um a partir de outro. Desta forma, Halliday aponta que é possível identificar e delinear
quais partes do sistema da língua se relacionam com cada tipo de variável contextual,
relancionando cada uma delas a uma das metafunções: o campo se exprime pela
metafunção ideacional, as relações, pela metafunção interpessoal, e o modo, pela
metafunção textual.
As metafunções se relacionam aos três sentidos que as pessoas precisam realizar
quando atuam no mundo social, são elas: metafunção ideacional, responsável pela
construção da experiência humana; a metafunção interpessoal, que habilita as relações
humanas e a metafunção textual, responsável pela criação do discurso. Percebe-se, assim,
que os conceitos que se aplicam às características linguísticas nas análises sistêmico-
funcionais são descritos em termos de funções que realizam, mais do que em termos
gramaticais.
As três metafunções (ideacional, interpessoal e textual) se situam na interface entre o
linguístico e o extra-linguistico (campo, relações e modo). Ainda, compreende-se que, em
relação ao contexto, a metafunçao ideacional se relaciona com o campo no nível
semântico, no nível léxicogramatical se fará pela transitividade. A metafunção interpessoal
realiza as relações do discurso no nível semântico, no nível léxico gramatical se realiza
primariamente nos sistemas modais. A metafunção textual se relaciona com o modo no
nível semântico e no nível léxicogramatical é realizada, principalmente, nos sistemas
tema/rema, identificação e periodicidade.
Como se pode perceber, as metafunções são mobilizadas e realizadas em função das
necessidades comunicativas nas situações de comunicação, o que equivale a dizer que a
mobilização de uma determinada metafunção ocorre partir do registro, de um contexto
situacional que por sua vez se insere num contexto de cultura específico. São os elementos
dessa cultura que nos permite selecionar os modos de produção de um texto, bem como os
participantes e a finalidade desse texto. Assim, as características dos textos são tão diversas
quanto diversas também são as circunstancias sociais que demandam a produção textual,
embora se possa falar em situações em que haja produções mais estruturas, como, por
exemplo, no contexto acadêmico em que é previsível a ocorrências de determinados textos
relativamente estruturados: o artigo científico, a monografia, a dissertação e tese, os
projetos e relatórios de pesquisa, etc.
Martin, no artigo intitulado “Analysing Genres: Functional Parameters” (1997)
define gêneros como “processos sociais seriados e orientados para um objetivo através dos
quais os sujeitos sociais vivem suas vidas numa determinada cultura” 10 Para o autor, os
gêneros se definem como processos sociais em função da interação social da qual ele
resulta, também é orientado para um objetivo, porque as pessoas os mobilizam para fazer
algo ou ter algo feito, e também seriado porque normalmente se requer mais de uma etapa
para que os participantes atinjam seus objetivos.
No que diz respeito aos estudos de gêneros, a maior contribuição dos linguistas
sistêmico-funcionais é a proposta de análise de micro-gêneros, ou seja, textos menores tais
como os recontos, narrativas, relatos, descrições, argumentos, procedimentos e
explanações que os textos mais complexos comportam, ou macro-gêneros, tais como
novas estórias, relatórios de pesquisa e gêneros escolares (Martin e Christie ,1997). Para
Eggins (1994), o que distingue a Linguistica Sistêmico-Funcional é sua proposta de
desenvolvimento de uma teoria sobre a língua como um fenômeno e processo social bem
como o desenvolvimento de ferramentas analíticas e metodologia de análise, que permitem
uma descrição detalhada e sistemática dos padrões da língua.
10
“staged, goal oriented social processes through which social subjects in a given culture live their lives”.
A ESP insere-se num quadro mais amplo, comumente denominado Language for
Specific Purposes, cujo foco é o estudo de variedades da língua inglesa, frequentemente
para falantes não nativos do idioma, em contextos acadêmicos ou profissionais. English for
Specific Purposes acabou se tornando um termo “guarda-chuva” em que se incluem áreas
mais especializadas de estudos tais como English for Academic Purposes (EAP), English
for Occupational Purposes (EOP) e ainda English for Medical Purposes (EMP).
A obra de Swales “Genre Analysis: English in Academic and Research Settings” foi
uma das maiores contribuições no campo da ESP, em função de seu esforço de teorização e
desenvolvimento de uma metodologia que considerasse a análise de gêneros no ensino e
pesquisa em contexto de ESP. Nesta obra, Swales (1990) propõe a identificação das
características chave nas abordagens de gênero, especialmente o foco na língua inglesa
usada para fins acadêmicos e de pesquisa (o que também poderia ser considerado Inglês
Profissional, ou EOP), ressaltando-se, é claro, seu objetivo do uso de análise de gêneros
para fins aplicados.
A natureza aplicada da ESP se configura como uma chave para a definição do
campo, desde o seu princípio. Em Genre Analysis (1990), Swales esclarece que o percurso
das abordagens em ESP pode ser relacionado ao estudo quantitativo das propriedades
linguísticas em um texto, para fins de identificação da frequência de ocorrência de
determinadas características linguísticas num registro específico, o que faz dessas
características o foco no ensino de língua. Desta forma, os primeiros trabalhos em ESP
tinham a preocupação de apresentar um estudo quantitativo das propriedades linguísticas
das variedades de língua, e, pode-se dizer (cf. Belcher 2004) que esta é uma tendência que
ainda influencia a pesquisa em gêneros na vertente da ESP.
Em contrapartida, Swales (1990) observa que, desde os anos 60 do século XX, os
estudos em ESP tem se estreitado cada vez mais num ritmo crescente de verticalização. Tal
afunilamento se verifica na passagem de categorias de registro mais amplas, como, por
exemplo, as categorias linguagem “médica” ou “científica”, para um foco mais estreito na
variedade de gêneros utilizados nas disciplinas médicas e científicas. O autor também
observa outro avanço em relação aos estudos em ESP: as análises se tornaram, ao longo do
tempo, mais robustas no que diz respeito, principalmente, a ultrapassar a mera descrição
das características linguísticas de uma dada variedade da língua para propor análises
consistentes das condições de produção, propósitos comunicativos e seus efeitos.
Segundo Swales (1990) tal avanço representa um interesse em questões retóricas,
estruturais e também sobre as escolhas lexicais e sintáticas. Este movimento de descrição
e delineamento dos efeitos de escolhas linguísticas proporcionado pela abordagem do
gênero na ESP colabora com uma possível aproximação com os estudos retóricos do
gênero. A noção de gêneros como ação social exerce grande influência na pesquisa em
ESP. Nesta perspectiva o gênero não se define como a substância, a forma do discurso,
mas, sobretudo, como a ação que mobilizamos para atingirmos determinado propósito (cf.
Miller, 1984, p.151). Em Genre Analysis (1990) Swales define os gêneros como “uma
classe de eventos comunicativos com propósitos comunicativos compartilhados”, o autor
ainda esclarece que tais propósitos são reconhecidos pelos membros expertos de uma
determinada comunidade discursiva, sendo um dos aspectos constitutivos do gênero. No
entanto, em trabalho posterior, Askehave e Swales (2001), observam que as incertezas e
instabilidades que rondam o conceito de propósitos comunicativos inviabilizam tomá-lo
como critério metodológico para identificação do gênero. Ainda assim, sugerem que os
analistas de gêneros podem tomar tal conceito como instrumento valioso de apoio às
análises.
O conceito de comunidade discursiva é uma noção importante no quadro elaborado
por Swales (1990, p. 24-27). O autor propõe seis características definidoras na
identificação de um grupo de pessoas como membros de uma comunidade discursiva, a
saber: i) um conjunto de objetivos comuns, ii) mecanismos pré-estabelecidos de
intercomunicação, iii) troca de informação mediante mecanismos de participação, iv) um
ou mais gêneros são utilizados para satisfazer necessidades comunicativas da comunidade
e, por fim, vi) léxico específico. Os membros se caracterizam como aprendizes ou expertos
com um grau razoável de experiência. O exemplo descrito por Swales, um grupo
denominado Hong Kong Study Circle, atende, exemplarmente, todos os critérios acima
estabelecidos.
Em um artigo de 1981, Swales defende a importância da introdução num artigo
científico, bem como reconhece o papel do artigo científico na disputa acirrada no meio
acadêmico por reconhecimento e prestígio sob o lema “publique ou pereça” (Swales, 1981,
7). O modelo inicial previa um texto que cumpriria, de modo exemplar, funções específicas
em quatro movimentos, a saber:
Movimento I - Estabelecer o campo: situar sua discussão num campo mais amplo das
pesquisas em que o artigo se insere.
Movimento II – Sumariar pesquisas anteriores: síntese das pesquisas anteriores que
implica em diferentes orientações, por exemplo, orientação forte ou fraca para o autor,
orientação para o assunto.
Movimento III – Preparando para a pesquisa (avaliação do que foi sumariado):
movimento que implica na indicação de lacunas apresentadas em pesquisas anteriores e
levantamento de questões e hipóteses a partir dos estudos anteriores, bem como a extensão
dos achados desses estudos.
Movimento IV – Introdução da presente pesquisa: indicação do propósito do
trabalho, apresentação do objeto e objetivos, descrição da pesquisa que foi feita.
Essas proposições sofreram reformulações ao longo da trajetória dos trabalhos do
autor, e em Genre Analysis: English in academic and research settings (1990), Swales
apresenta um modelo reformulado: Create a research space. Neste novo modelo
apresentam-se as principais alterações:
Os componentes de cada movimento foram denominados “passos”;
Os movimentos foram redesignados da seguinte forma:
o O movimento I foi designado “estabelecer um território”, contendo três
passos: reivindicar centralidade, fazer generalizações sobre o tópico e revisão de itens de
pesquisas passadas, reunindo-se, assim, os movimentos I e II;
o O antigo movimento III foi redesignado como “estabelecer um novo nicho”,
tornando-se o segundo movimento com quatro passos: contra-alegação, indicar uma
lacuna, levantar questão, continuar uma tradição;
o O antigo movimento IV foi redesignado como “ocupar o nicho”, contendo
quatro passos: delinear propósitos, anunciar a presente pesquisa, anunciar os principais
achados, e indicar a estrutura do artigo de pesquisa.
Segundo Aragão (2011) essa nova versão resultou de apontamento de falhas feita por
diversos autores (Grookes, 2006; Anthony, 1999; Samraj, 2002), resultando em um modelo
mais flexível.
A corrente britânica já produziu uma enorme variedade de estudos ao longo dos
últimos vinte anos, cujos resultados são apropriados para os mais diversos fins desde a
elaboração de materiais didático-pedagógicos até necessidades de análise. Inicialmente
estava ligada a conceitos pedagógicos, entretanto, trabalhando com a análise de gêneros na
tradição estabelecida por Swales, Bhatia (1993) considera que o conhecimento de língua
deve ser associado às considerações sociais e sócio-cognitivas. Em sua obra ‘Worlds of
written discourse: A genre-based view’ (2004) o autor ainda argumenta que tais fatores
contribuem decisivamente para a construção, interpretação e exploração do gênero. Seus
estudos caminham no sentido de afastar-se da direção eminentemente pedagógica que até
então predominava na corrente para focar-se no estudo dos gêneros em contexto
profissional e institucional, daí sucedeu uma concepção de gênero ligeiramente diferente:
gêneros não podem ser considerados como algo estático como fronteiras e limites bem
delineados atribuídos a uma comunidade discursiva específica. Bhatia (2004), leva em
consideração que a tensão entre gêneros híbridos e ainda preservando sua integridade
genérica é a chave para se entender como a experiência profissional é adquirida e isto é um
aspecto que tem sido negligenciado nos estudos sobre gêneros. Pode-se dizer que o autor
considera os gêneros em toda sua complexidade: verticalmente, na análise de super e sub-
gêneros, horizontalmente, focando os conjuntos de gêneros e suas interrelações com as
características do contexto.
Essa abordagem multidimensionnal proposta por Bhatia pode ser mobilizada em
várias análises de gêneros a partir de três perspectivas: i) tomando a definição de gênero
como uma visada específica sobre o discurso em contextos comunicativos
convencionalizados, ii) no estabelecimento da relação entre o discurso do mundo real e o
mundo da aplicação (ou seja, diferenciando-se o real do ideal, do que de fato é realizado
em termos de escrita em contextos acadêmicos, profissionais ou institucionais e as
representações idealizadas,e, não raro, estereotipadas, sobre os gêneros, e iii) na
elaboração de um conjunto de ferramentas analíticas para o estudo dos gêneros
mobilizando fatores textuais, sócio-cognitivos e sociais. Compreende-se que tal conjunto
de ferramentas analíticas proporciona a associação de diferentes perspectivas de análise
para aplicação num grupo de textos, a saber: a perspectiva textual (compreendendo gênero
com um reflexo das práticas discursivas no interior de comunidades disciplinares), uma
perspectiva etnográfica (gêneros em ação, baseados em experiências narradas de membros
expertos de uma determinada comunidade discursiva), e uma perspectiva sócio-cognitiva e
sócio-crítica (questões histórica e estruturalmente fundamentadas das condições sob as
quais os gêneros são construídos e interpretados pelos membros de uma disciplina para
atingir seus propósitos específicos).
Em obra posterior, Swales (2009) estabelece um conjunto de “metáforas” do gênero,
adaptadas a partir de definições de vários outros autores. Tais metáforas parecem uma
série de definições que , reunidas, podem mais bem dar conta da tarefa de definir um
gênero, são elas:
Esquema 1 - Metáforas do Gênero (Swales, 2009)
Bhatia (2004) também fornece o caminho básico para uma abordagem multi-
dimensional e multi-perspectiva na análise: o percurso de análise se inicia com uma análise
textual e se estende às questões de ordem sócio-cognitiva e sócio-crítica, enfatizando-se a
intertextualidade e a interdicursividade de modo a ultrapassar os recursos léxico-
gramaticais e retóricos em contextos de uso real e cotidiano e sua performance retórica.
À guisa de encerramento da discussão sobre estudos dos gêneros dividos por
“escolas” na perspectiva de Hyon (1984) , considera-se, especialmente, o comentário de
Swales (2009) sobre o fato de que, ultimamente, as fronteiras entre as três escolas descritas
por Hyon (e posteriormente comentadas exaustivamente por outros pesquisadores de
gêneros) têm, paulatinamente, se diluído, a ponto de não se poder mais falar exatamente
em três movimentos distintos e estanques na tradição de estudos de gêneros, ainda que tais
tradições mantenham minimamente suas características, a saber, na Nova Retórica, uma
maior preocupação com contextos situacionais nos quais os gêneros ocorrem, na
abordagem Norte-americana, cujo foco está no detalhamento das características formais
dos gêneros, focando em menor grau as funções especializadas do texto, e na visada
sistêmico-funcional, com uma concepção de gênero que o engloba num sistema semiótico-
social complexo, delineando e explorando as características textuais.
11
Si Maingueneau et Foucault parlent bien de l'inter- discours comme d'un espace de régularités, d'un
« espace d'échange entre plusieurs discours », ils négligent une distinction théorique linguistiquement
utile entre Discours et Texte (esquissée par D. Slakta et que le présent article précisera en partie). Il
faut insister sur le fait que l' interdiscours prime le Texte et le Discours que je pose trivialement
comme D publicitaire, D politique, D journalistique, D littéraire, D scientifique, D religieux, etc.
(c'est-à-dire comme objet concret). De plus, je propose de relier D aux genres du discours. Ainsi le
poème, le théâtre ou le roman sont-ils des genres du discours littéraire; le sermon, la parabole,
l'hagiographie, etc. des genres du discours religieux; 1 'editorial, le fait divers, le reportage, etc. des
genres du discours journalistique ; on pourrait également parler de genres du discours politique, etc.
1.3 Usos linguísticos e funcionamentos sociais: os gêneros como entidades sócio-históricas
e formais
O estudo das propriedades linguísticas de cada gênero não seria adequadamente
realizado sem se levar em conta as práticas sociais que os engendram. De modo que tanto a
produção quanto a interpretação de um gênero parecem estar subordinadas a um conjunto
de critérios linguisticos e não linguísticos, impostos, normalmente, por uma determinada
prática social. Entende-se, assim, que o estudo de um gênero implica numa metodologia
amparada por um quadro multidisciplinar, associando os fatores sociais que determinam os
gêneros às propriedades linguísticas que o caracterizam. Todavia, essa “dupla face”
revela-se um tanto problemática sob o ponto de vista de Branca-Rossof (1999), na medida
em que as dimensões sociais e linguística se interrelacionam:
A noção de gênero é uma noção de dupla face à qual corresponde uma face
interna (os funcionamentos linguísticos) com uma face externa (as práticas
socialmente significantes). Mas os usuários da língua utilizam igualmente os
termos de classificação porquanto não há coincidência entre as duas dimensões:
tanto se privilegia a situação de comunicação como as marcas formais. A
instabilidade da relação entre as formas e comportamentos sociais
institucionalizados é uma dificuldade central para toda definição de gêneros, a
priori. (Branca-Rosoff, 1999, p. 116)12
O objetivo desta pesquisa é um tanto menos ambicioso na medida em que se
restringe à descrição linguística de um determinado fenômeno (a assunção ou não da
responsabilidade enunciativa) num determinado gênero (acadêmico). Considerou-se que a
incidência de aspectos sociológicos sobre os linguísticos parece transbordar para uma nova
etapa de análises, que poderia ser posterior. Assim, a despeito da relevância de se
considerar aspectos sociológicos na análise de gêneros, detem-se exclusivamente sobre
aspectos linguísticos dos gêneros nesta pesquisa, por razões várias, dentre elas a recusa ao
risco anteriomente mencionado.
Para finalizar, convém lembrar que no que tange à dimensão social dos gêneros é
difícil de se estabelecer um parâmetro seguro em termos sociológicos, e sua caracterização
Les (types de) textes sont, en revanche, des composantes de D et de GD : le récit, par exemple, se
rencontre aussi bien dans le roman, la parabole, le fait divers ou le discours électoral; la description
ou l'explication traversent, comme l'argumentation, tous les discours et genres du discours. De telles
distinctions triviales ne me paraissent pas pouvoir être négligées; elles doivent absolument être
théorisées à un niveau de pertinence qui reste, lui, à préciser. (ADAM, 1987, p.54)
12
La notion de genre est une notion biface qui fait correspondre une face interne (les fonctionnements
linguistiques) avec une face externe (les pratiques socialement signifiantes). Mais les usagers de la langue
utilisent également des termes de classification lorsqu’il y a non coïncidence entre les deux dimensions :
tantôt ils privilégient la situation de communication, tantôt les marques formelles. L’instabilité de la relation
entre formes et comportements sociaux institutionnalisés est une difficulté centrale pour toute définition a
priori des genres. (Branca-Rosoff, 1999, p. 116)
linguística não é menos problemática, entendendo-se, assim, porque a questão dos gêneros
tem sido relativamente negligenciada pela disciplina.
Definindo-se, assim, o campo de estudos desta pesquisa, prossegue-se, nos próximos
tópicos, definindo-se o espaço que o estudo dos gêneros ocupa no campo mais vasto de
pesquisas em Linguística e os parâmetros para sua descrição.
13
les théories de l’énonciation sont encore éloignées du texte, et se concentrent davantage sur des corpus
phrastiques detaille réduite, tandis que la pragmatique a cherché à proposer un modèle communicationnel
global à partir de l’étude de quelques genres oraux, et plus spécifiquement de la conversation, au détriment
des genres écrits et des textes. (POUDAT, 2006, p.31)
Compreende-se, assim, que gênero e texto são duas dimensões intrinsecamente
relacionadas: tanto o gênero afeta diferentes níveis de análise linguística como o estudo de
seus aspectos linguísticos não se realiza num quadro frástico restrito. Assim, o texto
representa uma paleta de descrição mais adequada do gênero, na medida em que se
constitui numa produção determinada por uma prática social, e não numa unidade artificial
de descrição, elaborada em função de uma análise especifica. Admite-se, desta forma, a
noção de Rastier (1996): “os textos são o objeto empírico da Linguística”.
Poudat (2006) também considera que as abordagens textuais são relativamente
recentes, citando os trabalhos de Adam (1987, 1990) em que se descrevem detalhadamente
o objeto e objetivos descritivos e metodológicos, e, considera também os questionamentos
postulados em Hartmann (1980) sobre os problemas relacionados aos pressupostos básicos
de uma teoria do discurso a respeito dos critérios que se poderiam usar para definir as
fronteiras que delimitam um texto e suas condições, as maneiras pelas quais um texto “se
amarra” e os arranjos estruturais dos elementos que compõe um texto.
Tais elementos demonstram, de fato, as normas que um determinado gênero institui
na medida em que os textos apresentam certas propriedades distintivas que não devem ser
descritas pelo mesmo conjunto de descritores, pois resultam de um gênero específico que
lhes determina e que lhes impõe certas restrições, tanto formais quanto coesivas ou
estilísticas14.
Assim, a autora entende que a abordagem dos textos nos quadros discursivos tem
apresentado um nicho inexplorado: tais quadros não consideram o texto em sua articulação
à noção de gênero, de modo que, em sua maioria, se focam sobre o problema do texto
como lugar de intersecção dos fenômenos linguísticos e não linguísticos.
Na busca de se relacionar as propriedades linguísticas de um texto às suas condições
sociais de produção e interpretação chega-se às tipologias discursivas relativamente
questionáveis, fundadas sobre critérios de ordem social que correspondem, globalmente,
aos vetores ideológicos e sócio-politicos. Todavia, Rastier (2001) observa que:
A noção de condição de produção foi transposta do materialismo histórico e
utilizado pela Análise do Discurso para instaurar uma transcendência do sentido
à respeito do texto, pois as condições são consideradas, de fato, como as
determinações causais. (RASTIER, 2001, p. 245)15
14
Neste sentido, entende-se como os gêneros acadêmicos considerados nesta pesquisa são fortemente
estruturados: artigos (bem como vários outros exemplares de gêneros discursivo/textuais da esfera
acadêmica) contém vários níveis de organização, enumerados, dando conta de uma demonstração
progressiva, ao contrário, por exemplo, do romance, divido em capítulos articulados em função de uma
progressão narrativa.
15
[La] notion de conditions de production a été transposée du matérialisme historique et utilisée par
l’Analyse du discours pour instaurer une transcendance du sens à l’égard du texte, car ces conditions sont
Isto, provavelmente, explica o porquê da noção de gênero ser pouco privilegiada em
tais modelos de análise: em alguns quadros, como o da Análise do Discurso, por exemplo,
o estudo sobre os gêneros textuais parece ocupar uma posição secundária por duas razões:
i) porque subjaz à dimensão do enunciado; ii) porque supõe uma relação com aspectos de
ordem social determinada pelas normas intralinguísticas nas quais se enquadram os
gêneros, e não pelas condições de produção, nas quais residem as causas sociais externas
às quais se reduziriam os textos. Como a concepção tradicional de ciência postula partir
dos efeitos para se chegar às causas, a AD postula partir do texto para se chegar às
determinações sociais e ideológicas que lhe engendram, cf. Rastier (2001)
Para resumir a questão, sem se deter nas inúmeras acepções de discurso, adotou-se,
cf Rastier (2001), bem como Adam (2011) o conceito de que os discursos permitem
relacionar as práticas sociais aos gêneros e que estes asseguram a relação entre texto e
discurso. Esta concepção favorece o estudo linguístico dos gêneros levando-se em conta
suas determinações sociais, pois, em princípio, “todo texto se prende à língua por um
discurso e a um discurso pela mediação de um gênero (...) o estudo dos gêneros deveria
ser, portanto, uma tarefa prioritária na pesquisa linguística” (Rastier, 2001, p. 230).
Desta forma, entende-se que, de fato, os gêneros são os elementos de regulagem e
coerção, espaços normativos que permitem, com os discursos e campos genéricos 16, aliar
os estudos da linguística com os da língua em uso:
Os níveis dos gêneros, campos genéricos e discursos são os níveis estratégicos
que permitem passar da generalidade da língua às particularidades dos textos,
pois as relações semânticas entre textos se estabelecem preferencialmente entre
textos do mesmo campo genérico e do mesmo discurso (...). Assim a Linguítica
pode tomar como objeto de descrição o espaço das normas. (Rastier, 2002)17
Trata-se de uma tarefa extremamente complexa na medida em que o gênero
representa uma paleta determinante para o texto, mas, ao mesmo tempo, é determinado por
seu discurso e pelas práticas sociais às quais se associa. Por outro lado, faz-se necessário
considerar que se trata de um objeto linguístico com características próprias e que se presta
mais a determinados tipos de análise. Em outras palavras, alguns quadros teóricos
1.4 Abordagem das relações entre propriedades discursivas e formais: a proposta da ATD
Este tópico se ocupa da apresentação da Análise Textual dos Discursos (ATD),
proposta por Adam (2011) e situada num campo mais amplo da Linguística Textual. A
abordagem teórico-metodológica, proposta na ATD, se configura como uma resposta às
demandas impostas na análise de textos, alicerçada num conjunto de reflexões teóricas e
epistemológicas que permitem estabelecê-la no campo da Linguística de Texto, por sua
vez, inscrita, nas reflexões deste autor, no campo mais vasto das análises das práticas
discursivas (Adam, 2011, p.24).
Feitas essas poucas considerações iniciais, apresenta-se, na sequência, algumas das
principais noções da ATD, primeiramente seu modelo textual-discursivo, compreendido
em níveis, depois uma breve descrição dos níveis que compõem a dimensão textual neste
modelo, e por fim, uma descrição um pouco mais detalhada do nível das sequências
textuais. O mérito no modelo do autor reside no fato de que nenhuma unidade/ dimensões
da linguagem se perde, instaurando-se um campo para a Linguística Textual no universo
discursivo.
Tradição de estudos
Principais expoentes* Característica Geral Aproximações/ Distinções
("Escolas") Principais contribuições
Parte de reflexões filosóficas de extraordinária O princípio de interação verbal: possibilita vislumbrar graus
robustez acerca da natureza sócio-discursiva da de distanciamento/aproximação entre os interlocutores, bem
linguagem, pressupõe o outro como elemento Em maior ou menor movimento de aproximação todos os estudos como seus papéis sociais. O princípio dialógico: que
Círculo de Bakhtin Bakhtin constituinte da relação dialógica subjacente aos consultados para compor essa tabela ou partem dos postulados possibilita vislumbrar as vozes no discurso, bem como sua
gêneros. Estabelece o enunciado como o alicerce das bakhtinianos ou o citam. constituição em função do outro.
discussões sobre gêneros, e os assenta sobre o tripé: A noção da tripla dimensão constitutiva de gêneros
estilo, tema e conteúdo composicional primários e secundários.
Halliday, Halliday; Hasan. Ambas, Escola de Sidney e ESP, compartilham a perspectiva
Mobilizam aportes teóricos da linguística sistêmica
fundamental de que aspectos linguisticos estão relacionados ao
(funcionalismo), análises críticas e da teoria textual. O
Escola de Sidney Martin, Martin; Rose, Martin; contexto social e funções. Ambos são direcionados por
Eggins papel do contexto ganha relevância na análise de
demandas pedagógicas de tornar visível ao estudante
aspectos textuais (um desses aspectos é a coesão). A proposta de análise de micro-gêneros ( textos menores
Kress, G. despreparado a relação entre língua e função social do gênero/
como os recontos, narrativas, relatos, descrições,
diferem quanto ao público alvo das aplicações didáticas de suas
argumentos, procedimentos e explanações que os textos
Mobilizam aportes teóricos advindos principalmente propostas: aplicações didáticas dos postulados da Escola de
Swales, J. mais complexos comportam) ou macro-gêneros(novas
E.S.P de teorias do texto, incorporando a retórica e Sidney visam atender à demanda de alunos de educação básica
Bathia, V. estórias, relatórios de pesquisa e gêneros escolares) .
posições etnográficas despreparados na escrita dos gêneros, a ESP visa atender às
demandas da escrita em contexto acadêmico/profissional. Desenvolvimento de uma teoria sobre a língua como um
fenômeno e processo social. Proposição de ferramentas
Os estudos destes autores se aproximam dos da ESP em seus
analíticas e metodologia de análise, que permitem uma
aspectos gerais, notadamente a incorporação da retórica em suas
descrição detalhada e sistemática dos padrões da língua.
discussões, com um conjunto numeroso de autores de diversas
A noção de comunidade discursiva de Swales, permitindo
disciplinas envolvidas com o ensino de L1, incluindo retórica,
Escola Norte- Miller , Mobilizam aportes teóricos advindos principalmente compreender como organizações sócio-retóricas se formam
estudos composicionais e escrita profissional/ acadêmica. Difere-
americana (Nova Bazerman de teorias do texto, incorporando a retórica e para atingir objetivos comuns, utilizando gêneros
se dos estudos desenvolvidos na escola britânica, na medida em
Retórica) Freedman; Medway posições etnográficas específicos, como é o caso da comunidade acadêmica.
que focam mais no contexto situacionais em que os gêneros
ocorrem de que suas formas, enfatizando especialmente os
propósitos sociais ou as ações que os gêneros realizam no âmbito
dessas situações em que eles são engendrados.
Os gêneros do discurso não podem ser considerados como formas que se encontram à
disposição do locutor a fim de que este molde seu enunciado nessas formas. Trata-se,
Maingueneau
na realidade, de atividades sociais que, por isso mesmo, são submetidas a um critério
de êxito. (2001)
21
Em Aragão (2011) também se observa a mesma flutuação: há artigos que seguem classicamente a
organização canônica IMRD ou IDC, no entanto, muitos apresentam o tipo de variação mencionada,
comprovando a instabilidade deste modelo canônico do gênero.
Resultados: seção em que se descrevem e comentam os achados, o
processo de manipulação dos dados obtidos na seção anterior, com
apenas algumas limitadas declarações sobre os testes realizados.
Discussão: seção em que, a partir de generalizações possíveis, se
explicita o que foi aprendido com a pesquisa.
Em obra de 2004, em uma proposta de reformulação do modelo anterior baseado
nos movimentos, Swales cria o novo modelo chamado “Create a Research Space” em
que pondera sobre a possibilidade de se apresentarem três formas para o que
tradicionalmente se denomina Revisão de Literatura: i) configurando-se como uma
seção independente22 denominado “Revisão de Literatura”23; ii) incorporada ao texto
que compõe o artigo sem que se constitua seção; iii) diluída ao longo do texto. Essas
considerações do autor pareceram bastante relevantes para esta pesquisa na medida em
que esta é justamente a seção do artigo a ser focada no recorte.
Este modelo, em sua formulação inicial e reformulações posteriores, foi adotado
por inúmeros pesquisadores não apenas para descrever e analisar a seção Introdução
(para a qual foi concebido) como para várias outras seções dos artigos, como o abstract,
discussão, conclusão, bem como para as várias seções que compõem outros gêneros
acadêmicos como monografias, dissertações e teses.
No que diz respeito à natureza do artigo científico encontram-se em Swales
(2004) a seguinte classificação para os artigos científicos:
Artigos experimentais: são os que se baseiam em estudos sobre dados
coletados.
Artigos teóricos: tratam de assuntos e/ou pesquisa que não envolvem a
coleta de dados, como a pesquisa experimental, por exemplo.
Artigos de revisão: são os que apresentam uma revisão de literatura
normalmente finalizada por uma avaliação do autor, (Swales,
2004)..Noguchi (2006) divide-os em quatro categorias: i) artigos que
apresentam uma visão histórica de uma faceta de uma área de estudo; b)
artigos que descrevem o estado de arte das pesquisas em uma área de
estudo; iii) artigos que propõem uma teoria; iv) artigos que colocam em
evidência alguma questão de uma área de estudo. São também chamados
22
Essa variação, admitida por Swales em 2004, parece ser a mais recorrente nos textos que compõe o
corpus desta pesquisa.
23
No corpus estudado, confirmando a instabilidade a seção é comumente encontrada em tópicos
separados, a maioria delas tem como rótulo o campo teórico de discussão, outras “Fundamentação
teórica” outras são diluídas ao longo do texto sem rótulos, e outras, com “Referencial Teórico”
de “Artigo de Revisão”, normalmente escritos pelos membros mais
experientes da comunidade acadêmica, requer reflexões teóricas robustas,
gerando contribuições para a área de estudo. Costuma apresentar um
grande número de referências, seções baseadas em conteúdo, com divisões
e poucas figuras.
Considerados todos esses aspectos ainda resta aquele que motiva esta pesquisa e
fundamenta os estudos realizados no capítulo seguinte: trata-se do diálogo entre aquele
que escreve o texto científico e aqueles que o precederam na pesquisa acadêmica. Na
construção de um artigo o autor científico mobiliza outras vozes de diferentes autores
com diversas finalidades. Neste diálogo entre as vozes se fundamenta também o diálogo
entre o autor científico e a comunidade discursiva, seus pares.
Para finalizar, considera-se que a abordagem de práticas linguageiras sob o ângulo
da problemática dos gêneros exige, cf. Rastier (1996), que se considere os textos como
objetos empíricos suscetíveis de análise linguística. Se todos os níveis de textualidade
variam de acordo com os gêneros e que todos são, a priori, pertinentes para caracterizar
um gênero em específico, o estudo de um gênero não deveria, em princípio, se resumir
ao nível léxico ou frástico, mas estas instâncias podem ser consideradas o ponto de
partida para se estabelecer relações que podem ser depreendidas no texto em relação a
outras dimensões, como o gênero e o discurso. É nesta perspectiva que se entende, no
âmbito desta tese, o modelo de análise textual proposto em Adam (2011): parte-se de
unidades mínimas, a proposição-enunciado, para se chegar às outras dimensões, ou
níveis do texto, num percurso ascendente de análise.
Defendendo a análise a partir das unidades mínimas, Poudat (2006) lembra que os
termos empregados num texto literário ou científico não o são literários ou científicos
por si só, mas, é, sobretudo, o uso que se faz destes termos nos textos que permite
considerar tais termos desta maneira, e, por conseguinte, determinar a característica
literária ou especializada do emprego de certos termos. Tome-se como um exemplo
prático as rotinas citacionais: tais rotinas podem se constituir, por si só, um objeto de
estudo (cf. Faria e Farias, 2014), é também um elemento de descrição e traço distintivo
dos gêneros acadêmicos, e ainda um “condutor” que direciona os estudantes iniciantes
na prática da escrita acadêmica. Assim, o interesse pela citação se justifica por sua
especificidade e sua funcionalidade nestes escritos.
Uma outra perspectiva na análise de gêneros visa a diversidade das dimensões
consideradas unidade de estudo. O objetivo de tal visada é caracterizar ainda mais
finamente um discurso ou um gênero, de modo multicriterial. Trata-se de uma
caracterização geralmente diferenciada: incumbe-se de ressaltar o que é peculiar a um
gênero em comparação a outros e descrevê-los em termos de traços comuns em
oposição aos singulares. A idéia que subjaz aqui é a de que os gêneros sejam descritos
como Rastier (2001, p.253) recomenda: sob um feixe de critérios. Desta forma, a análise
textual encontra na linguística de corpus e na análise estatística ferramentas
particularmente adaptadas para a exploração dos textos e definição genérica.
Contrastando com algumas propostas de definição do gênero em seu conjunto,
esta pesquisa se restringe a determinado fenômeno linguístico, de ordem enunciativa, a
responsabilidade enunciativa materializada em determinadas escolhas lexicais e
sintáticas. Ao fim e ao cabo, a idéia é demonstrar como se operacionaliza, na prática, a
proposta de se considerar o texto como ponto de partida para o estudo dos gêneros,
mobilizando, num enfoque enunciativo, o nível da RE na Análise Textual do Discurso,
das discussões rabatelianas acerca do PDV e vários outros autores em suas
considerações sobre conceitos correlatos. É o que se apresenta no próximo capítulo,
dedicado às questões de ordem enunciativa e polifônica envolvidas na análise textual.