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In: Signorini, Inês (Org.) Situar a língua(gem). São Paulo: Parábola, 2008.

CONTEXTO É/COMO CRÍTICA*


Jan Blommaert , Universidade de Gent, Bélgica
Trad.: Daniel do Nascimento e Silva e Clara Dornelles

V
igor crítico é algo desejável para analistas do discurso como
eu1, que sentimos que novos modos de analisar a impor-
tância das economias simbólicas em nosso(s) mundo(s) são
necessários para equacionar o que experienciamos como
padrões de poder e de desigualdade mutáveis, cada vez mais comple-
xos2. As principais fontes e formas do poder e da desigualdade são sim-
bólicas, compreendendo o uso e o mau uso da linguagem e do discurso.
O trabalho com tais formas lingüístico-discursivas de poder e desigual-
dade tem um histórico respeitável (de fato, pode-se dizer que esse tra-
balho estimulou a emergência de pelo menos alguns ramos da sociolin-
güística moderna — tome-se Labov e The Logic of Non-Standard English

* Este texto foi originalmente publicado em forma de artigo no volume temático Discurso
e crítica, da revista Critique of Anthropology, em 2001, 21 (1): 13-32, com o título Context is/as
Critique. Foi mais tarde também incorporado ao capítulo 3 do livro de Blommaert intitulado:
Discourse: a Critical Introduction [Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 39-67].
1. Blommaert inclui neste rol também os colegas que colaboraram para o volume temático
mencionado na nota anterior, que visava sobretudo aproximar duas abordagens de análise do
discurso nem sempre vistas como compatíveis: a análise crítica do discurso e a antropologia
lingüística. Para os autores, essas duas abordagens são complementares em seus pontos fortes e
fracos, e compartilham o interesse em compreender a relação entre linguagem, ideologia e
desigualdade social. Sua associação pode contribuir para explicitar o papel da crítica e da lingua-
gem em um mundo em constante mudança. Vale ressaltar que os artigos do volume foram
publicados em dois números separados da revista (1, 2).
2. Agradeço aos colegas no grupo de trabalho do FWO sobre “Linguagem, Poder e Identida-
de” — Monica Heller, Jim Collins, Ben Rampton, Jef Verschueren e Stef Slembrouck — por seus
ricos comentários, críticas e feedback em inúmeras versões deste artigo. Mary Bucholtz contri-
buiu com críticas pontuais e construtivas na versão apresentada na AAA session. Jan-Ola
Östman, Dell Hymes, Karen Sykes e Johannes Wagner comentaram as histórias dos requerentes
de asilo em várias ocasiões. Katrijn Maryns, com quem analisei esses dados, tem sido uma
interlocutora excelente e altamente crítica. Devo agradecer, com todas as observações costumei-
ras da responsabilidade do autor sobre o conteúdo, a todas essas pessoas.
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[1970] como exemplo disso). Avaliar os desenvolvimentos acadêmi-


cos, assim como as mudanças percebidas e experienciadas no mundo,
deveria nos estimular a continuamente renovar o exercício de análise.
Uma preocupação premente nesse exercício é a diferença que nós mes-
mos podemos (devemos?) fazer: especificar os detalhes no discurso,
demonstrar o modo preciso e exato pelo qual esse bem simbólico funcio-
na, gera ou articula poder e desigualdade.

As tendências críticas na análise do discurso enfatizam a conexão


entre o discurso — conversação, texto, fala — e a estrutura social. Elas
posicionam a dimensão crítica da análise na intersecção entre discurso e
sociedade e sugerem formas pelas quais características da estrutura so-
cial precisam ser tratadas, em análise do discurso, na forma de contexto.
Meu objetivo neste capítulo é discutir como concepções de contexto têm
sido utilizadas nas atuais tendências críticas da análise do discurso (e,
portanto, avaliar resultados acadêmicos recentes). Argumentarei que al-
gumas dessas concepções são parciais e tendenciosas; revelam sérios pon-
tos fracos e precisam ser complementadas com outros contextos se o
objetivo for alcançar os alvos críticos estipulados pelo analista.

Na primeira parte do capítulo, discuto tratamentos de contexto em


duas escolas da análise do discurso. De um lado, problematizo a análise
crítica do discurso (ACD) — um ramo recente e popular, principalmente
na Europa, da análise do discurso (Blommaert & Bulcaen, 2000); de
outro, discuto formulações críticas da análise da conversação (AC) —
uma escola em análise do discurso igualmente popular, que enfoca o
exame de procedimentos e métodos de comportamento interacional. O
que se verifica é que ambas as tradições estão atualmente fechadas para
debates em torno da “crítica” de suas respectivas abordagens (cf.
Schegloff, 1997; Wetherell, 1998; Billig & Schegloff, 1999)3. Na segun-
da parte do capítulo, apresento três formas de contextos de discurso

3. Na minha discussão, não farei jus à variedade de abordagens, nem às imensas diferenças
de nuance e sofisticação analítica nas duas tradições. Terei de generalizar e focar no trabalho
mais típico desses domínios, na tentativa de levantar questões gerais sobre as quais, sem dúvida,
muitos analistas do discurso estão pontualmente conscientes. É adequado dizer que estou fami-
liarizado com bons trabalhos nas duas tradições e que meus comentários se aplicam em vários
níveis aos diferentes trabalhos. Blommaert (1997a) apresenta discussões longas e mais detalhadas
de “contexto” na ACD e na AC.
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freqüentemente “esquecidos” e ilustro sua utilidade potencial como


ferramentas críticas, por meio de uma análise de alguns exemplos de
narrativas de africanos em busca de asilo na Bélgica. Nessa parte do
capítulo, argumento em favor de uma integração mais estreita entre
sociolingüística, etnografia e análise do discurso, defendendo que a
conexão entre discurso e estrutura social também deveria ser descrita
em termos dos recursos lingüístico-comunicativos e de seus valores
sociais, e de histórias situadas etnograficamente — histórias tanto de
discurso como de dados e prática analítica.

DUAS CONCEPÇÕES CRÍTICAS DE CONTEXTO


O contexto como pano de fundo: análise crítica do discurso
A ACD emergiu na última década como uma escola em análise do dis-
curso atraente e bem-sucedida. Os objetivos da ACD foram formulados
por Ruth Wodak nos seguintes termos: “Analisar tanto as relações estru-
turais de dominação, discriminação, poder e controle opacas, quanto as
transparentes, tal como manifestadas na linguagem” (Wodak, 1995:204).
A ACD postula que o discurso é socialmente constitutivo e socialmente
condicionado. Além disso, o discurso é visto como um objeto de poder
opaco, que a ACD tenta tornar mais transparente. A ACD também defende
o intervencionismo nas práticas sociais por ela investigadas; explicitude
nos interesses políticos e no uso político da pesquisa social científica é
igualmente bem-vinda. A ACD, portanto, professa abertamente um estrei-
to compromisso com a mudança, inclinação antipoder e orientação à prá-
tica. No trabalho de Wodak, assim como no de outros teóricos importan-
tes da ACD (por ex. Fairclough, 1992), o movimento de integrar análise
lingüística com discernimento socioteórico anda de mãos dadas com o
desejo de produzir pesquisa “relevante” e com compromisso político.
Compartilho profundamente com os objetivos estipulados pela ACD e penso
que é difícil discordar de seus princípios e abordagens fundamentais. As
diferenças que mantenho com a ACD devem, então, ser vistas contra o
pano de fundo de uma preocupação partilhada com o poder e a desigual-
dade e com a integração fundamental entre discurso e sociedade.
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Um dos problemas metodológicos mais importantes na análise do dis-


curso em geral é o enquadramento do discurso em seleções particulares de
contextos. E a relevância de tais contextos é estabelecida pelo pesquisa-
dor, embora não seja posta como objeto de investigação. Parte desse pro-
blema parece ser inevitável: utilizam-se na análise todos os tipos de pres-
suposições e assunções, conhecimento do mundo real e do senso comum
(cf. Blommaert, 1997a; Verschueren, 2001). Mas esse problema é ainda
mais sério no caso da ACD, em que a situacionalidade social dos dados
discursivos é crucial e em que freqüentemente se atribuem ao contexto
observações sistêmicas e institucionais amplas. Não se analisa tão-somente
discurso, mas discurso político, discurso burocrático, discurso na relação
médico-paciente. Na ACD, o discurso é acompanhado por uma narrativa
sobre o poder e as instituições, sendo que grande parte dessa narrativa é
copiada de fontes comuns ou inspirada no saber autorizado4. Os comen-
tários de Charles Briggs em relação à preferência pelo discurso “ordiná-
rio” em pragmática podem facilmente ser invertidos:
… a questão em torno do que é “ordinário” ou “cotidiano” envolve mais do que
apenas quais dados selecionamos; depende crucialmente de como os enqua-
dramos e analisamos. Ao nos afastarmos de elos indexicais para atingir
parâmetros sociais, políticos e históricos mais amplos, podemos dar até mesmo
aos discursos historicamente mais coercitivos a aparência e a sensação do mun-
dano (Briggs, 1997b: 454).

E eu acrescentaria: e vice-versa; mesmo a fala mais mundana pode


ser transformada em uma instância de abuso de poder se enquadrada
adequadamente. Isso acontece ao se estabelecerem os elos indexicais
aos quais Briggs se refere, identificando-os e especificando precisamen-
te sua estrutura e função. Nesse sentido, uma vultosa contextualização
a priori é conduzida por trabalhos qualificados como ACD, o que eu acho
contestável. Em grande parte do trabalho da ACD, formulações a priori
sobre relações de poder são utilizadas como perspectivas sobre o discur-

4, No campo de análise do discurso político (uma das principais preocupações da ACD),


freqüentemente também narrativas históricas altamente simplificadas e fortemente tendencio-
sas são apresentadas como “background a partir do qual o discurso precisa ser entendido”. Nessas
descrições históricas, papéis históricos (agressor, vítima, vencedor, perdedor) podem ser pré-
definidos de forma muito pouco “neutra”. Cf. a discussão entre Galasinski (1997a, 1997b) e
Blommaert (1997b) sobre o enquadre “pós-comunista” de uma análise do discurso político.
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so (por ex. “o poder é ruim”, “os políticos são manipuladores”, “a mídia


é uma máquina reprodutora de ideologias”), assim como conceitos e
categorias socioteóricos são utilizados improvisadamente e, também, de
modo auto-evidente (por ex. “poder”, “instituições”, também “os gru-
pos que lideram a sociedade”, “negócios” e assim por diante). Isso acar-
reta modelos altamente simplificados de estruturas e padrões sociais de
ação — políticos sempre manipulam intencionalmente seu eleitorado,
médicos são, por definição, sempre a parte mais poderosa nas relações
médico-paciente etc. — o que, por sua vez, é projetado em amostras de
discurso. As relações de poder são sempre pré-definidas e, em seguida,
confirmadas por traços de discurso (às vezes de forma bastante
questionável — cf. Verschueren, 2001).

É de particular interesse aqui o uso do que se pode chamar de


etnografias prima facie: descrições densas de contextos e instituições uti-
lizadas como recursos de enquadramento nas análises. Passemos para
um exemplo concreto: o artigo clássico de Wodak (1997) sobre a “análise
crítica do discurso e o estudo da interação médico-paciente”. No início de
seu artigo, a autora nos chama a atenção para o fato de que:
[e]m sociedades modernas, domínios [socialmente importantes] são incorpo-
rados em instituições estruturadas em termos de relações de poder social e
caracterizadas por divisões específicas de trabalho… No interior das institui-
ções, as elites (consistindo tipicamente de homens brancos) ocupam as posi-
ções dominantes e, portanto, detêm poder. Elas determinam o que Bourdieu…
chama de “mercado simbólico”… isto é, o valor e o prestígio do capital simbó-
lico (ou certo comportamento comunicativo). Isso pode ser facilmente
visualizado nos registros técnicos utilizados por todos os grupos profissionais…
mas também se manifesta de maneira menos evidente na forma de estilos pre-
feridos e certas estratégias comunicativas (Wodak, 1997: 174).

Algumas páginas adiante, a autora apresenta sua pesquisa no hospi-


tal com a seguinte contextualização:
Para que se compreenda o contexto, é importante ter em mente que a enferma-
ria tem status e prestígio baixos em relação ao restante do hospital. É uma
espécie de posição fronteiriça… funciona como lugar de treinamento para
jovens médicos, o que resulta em residentes sem experiência trabalhando onde
os experientes são discutivelmente mais necessários. Hierarquia, conhecimen-
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to, experiência e gênero estão interligados de modo estranho e singular na


enfermaria… (Wodak, 1997: 179).

Não somos informados sobre o lugar de onde tal informação


etnográfica crucial procede. Trata-se do “contexto” para o restante da
análise, e tal contexto é oferecido como uma série de “fatos”
inquestionáveis e não teorizados. Muitas vezes, diz-se indiretamente
que tais abordagens contextuais baseiam-se em observação e entrevista
in loco (novamente, não se teoriza a abordagem nem se discutem seus
procedimentos explícitos). Sua função, no entanto, é crucial: trata-se
de traços contextuais centrais, que autorizam argumentos em favor de
uma perspectiva interna (Wodak, 1997:178) nos padrões comunicati-
vos estudados na ACD. O embasamento etnográfico de tais argumentos é
excluído do escopo da ACD e raramente encontram-se discussões de pro-
cedimentos de pesquisa de campo e das abordagens nos escritos da ACD.
A análise começa assim que os dados “estão lá”.
No tipo de ACD aqui examinado, é por meio de tais contextualizações
a priori que a fala é socialmente situada e que as discussões são
estabelecidas entre instâncias comunicativas que são e que não são tó-
picos potenciais para uma análise crítica do discurso. A distinção
freqüentemente tem a ver com a presença e saliência de relações de
poder. O problema é que tais relações de poder são geralmente
estabelecidas anteriormente ao início da análise real do discurso, por
meio de narrativas contextuais — via de regra, bastante “acríticas”. Isso,
por seu turno, acarreta uma série de argumentos metodológicos que
norteiam o trabalho da interpretação. Tomemos, mais uma vez, o artigo
de Wodak (1997) como exemplo. Sua equipe de pesquisa foi chamada
para investigar e solucionar certas fraquezas institucionais e organizacio-
nais na enfermaria. A análise de Wodak mostra que certas crenças da
equipe do hospital (o que ela chama de “mito da eficiência” e idéias
sobre economia de tempo) são instâncias de falsa consciência. Nos
termos de Wodak, todas as razões para a falha organizacional situam-se
em outro lugar (nos “aspectos opacos” da realidade). Ela conclui:
Apenas uma análise do contexto, uma compreensão da vida cotidiana na ins-
tituição e uma análise seqüencial do discurso permitem uma compreensão
plena dos eventos e a descoberta de contradições e dos modos em que o poder
é exercido (Wodak, 1997: 197).
CONTEXTO É/ COMO CRÍTICA 97

Rigorosamente, a única análise oferecida em seu artigo é uma análi-


se do tipo “análise seqüencial do discurso”; nem o “contexto” nem a
“vida cotidiana na instituição” foram analisados. Ainda assim, espera-
se que a análise do discurso explique e esclareça as relações de poder
“implícitas”, cuja estrutura já foi dada nas descrições contextualizadoras.
Então o que a análise do discurso explica? Freqüentemente (o que não
é de surpreender), ela confirma as formas de desigualdade e assimetria
já dadas na descrição do contexto de fala. Em grande parte do trabalho
da ACD, o contexto é geralmente apenas o pano de fundo de uma análise
do discurso (lingüística ou interativa) bastante ortodoxa, com algumas
conexões girando em torno do texto e do contexto, ao passo que ambos
os “blocos” permanecem como unidades distintas. A “crítica”, nesse
sentido, torna-se, muito freqüente e demasiadamente, uma questão da
credibilidade do pesquisador, cuja abordagem do poder em narrativas
contextuais é oferecida não por inspeção, mas por crença.

A fala dentro-e-fora da interação: análise da conversação


O aparente caráter tendencioso do que se concebe como “contex-
to” e a projeção do contexto “relevante” no discurso também vêm sen-
do apontados por teóricos da análise da conversação (AC), especialmen-
te Emanuel Schegloff. Quando a questão é identificar relações de tex-
to-contexto e direcionar a crítica à análise, Schegloff defende a prima-
zia da “análise interna”:
… uma conclusão que eu gostaria de extrair desse exercício é que, mesmo
quando a análise crítica é necessária e justificável, quando suas pré-condições
podem ser satisfeitas, o que se deveria propriamente enaltecer é a atenção à
análise interna do evento, do episódio, da troca, do “texto”… Você precisa da
análise técnica primeiro, para constituir esse objeto ao qual a análise crítica e
sociopolítica poderá ser adequada e proveitosamente aplicada. E então você
pode achar que isso não tem mais importância (Schegloff, 1997: 174).

Schegloff oferece um argumento metodológico para essa posição:


a fala-em-interação é um objeto “com um sentido justificável de sua
própria realidade” (Schegloff, 1997: 171), portanto, não se faz neces-
sária nenhuma imputação do analista, na medida em que a dimensão
sociopolítica é fornecida pelos próprios falantes e observáveis no des-
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dobrar de sua interação. Diz Schegloff: “A fala-em-interação forne-


ce… um ponto arquimediano… interno ao objeto de análise em si”
(Schegloff, 1997: 184).

A AC revela um respeito imensurável pela densidade e complexidade


da interação humana; seus resultados na tarefa de tornar conhecida a
riqueza da fala humana são imensos. Ao mesmo tempo, devido a uma
série de princípios e restrições auto-impostas a seu programa metodoló-
gico, há limites na relevância da AC nos termos da agenda que pretendo
apresentar aqui. Percebo dois principais problemas: um deles tem a ver
com a análise como prática de entextualização; o outro, com a localiza-
ção dos aspectos sociopolíticos em excertos concretos de fala (cf. tam-
bém Duranti, 1997: 264–75).

Comecemos com o primeiro ponto. As interpretações analítico-


conversacionais de opiniões, idéias, posições políticas, entre outras
ações dos falantes, são baseadas em regularidades interacionais. O ar-
gumento parece proceder nos seguintes termos: se os participantes
realizam os movimentos esperados, legitimam as ações efetuadas pe-
los seus interlocutores, dão validade a certas reivindicações e respon-
dem e co-constroem identidades, então nós, analistas, não somos “lei-
tores da mente”, mas “somos virtualmente encarregados de proceder
à análise dessa forma” (Schegloff, 1997: 175). A AC schegloffiana tor-
na-se, portanto, a replicação analítica do que os participantes disse-
ram e fizeram. Esse argumento metodológico central é circular por-
que a retirada da voz do analista depende de observações das regulari-
dades dos falantes em seu comportamento, e tais regularidades têm
sido estabelecidas pela AC por meio de elaborações analiticamente fo-
calizadas e empiricamente assentadas através da voz do analista. Note-
se, para efeitos de esclarecimento, que as regularidades observadas
podem, obviamente, ser válidas como elaborações sobre o objeto de
investigação. Não estou defendendo que são falsas ou que não sejam
justificadas, por exemplo, pelos próprios julgamentos de comporta-
mento dos falantes. Meu problema é que esse reconhecimento de
regularidades analiticamente estabelecidas na fala é posto no nível de
uma réplica de fala: o que a AC identifica na fala é fala. O elo entre a
coisa e a descrição — a análise — é suprimido.
CONTEXTO É/ COMO CRÍTICA 99

A análise é entextualização, uma vez que aponta para os processos


de extrair o texto do contexto, posicionando-o em outro contexto e adi-
cionando qualificações metapragmáticas a ele, de forma a especificar as
condições pelas quais os textos deveriam ser compreendidos, o que eles
querem dizer e o que significam, e assim por diante (cf. Silverstein &
Urban, 1996). Apesar do fato de os procedimentos analítico-conversacio-
nais serem um caso em questão, a AC — ou pelo menos o ramo da AC aqui
discutido — é incapaz de reconhecer até mesmo a existência das práticas
de entextualização que ela aplica ao texto, insistindo, em vez disso, em
uma isomorfia entre “texto e contexto originais” e “texto e contexto ana-
líticos”. O enquadre (e, portanto, remodelação) metapragmático envolvi-
do em toda análise é denegado, ou, se reconhecido (como alguns pesqui-
sadores da AC prontamente fazem com, por exemplo, procedimentos de
transcrição), não é aplicada ao trabalho de interpretação; a fala é definida
e remodelada — “textualizada” — na visão profissional da AC (talvez com
mais intensidade, e mais radicalmente, do que em muitas tendências da
análise do discurso), e o que existe é uma crença de que “esse texto
interacional estratégico, amplamente transparente, pode ser estudado
transcricionalmente in vitro com a certeza de que a realidade in vivo é
facilmente acessível” (Silverstein, 1992: 74).

Isso nos leva ao segundo problema. Segundo Schegloff, o social é


definido, em termos metodológicos, como pertencendo apenas ao nível
dos coparticipantes em segmentos específicos de fala: “Compreensão…
em termos de gênero pode também, em princípio, ser demonstrada em
qualquer caso particular como sendo ‘o entendimento dos participan-
tes’, mas isso requer demonstração” (Schegloff, 1997:180). Poder-se-ia
denominar o princípio metodológico subjacente de “mundanização” de
fala (cf. Briggs, 1997b, anteriormente comentado). A fala com marcas
de gênero e raça precisa ser tratada, em primeiro lugar, como fala “nor-
mal” e regular; contextos “especiais” são, em princípio, contextos como
quaisquer outros, cuja “especificidade” deve ser estabelecida por análi-
se interna da fala, processo que, por seu turno, é restrito a instâncias
únicas de fala. O último aspecto é importante: em contraste com, por
exemplo, a etnografia lingüístico-antropológica, a AC tende a escolher
instâncias singulares de fala, desconsiderando descrições post hoc da
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interação ou o modo como instâncias singulares podem ser situadas em


padrões mais amplos de interação através de eventos.

Além disso, como defende Briggs (1997b), nem toda fala é a mesma,
nem todas as categorias no comportamento social são equivalentes. Uma
coisa é caracterizar as pessoas como “falantes” e “ouvintes”; outra é
caracterizá-las, conforme a AC, como “membros” (de quê?); e outra ainda é
categorizá-las em termos de categorias institucionalizadas como raça, gêne-
ro, etnia, preferência sexual, idade e assim por diante, tendo em vista que
sua importância política e ideológica foi estabelecida por outros tipos de
pesquisa. No trabalho de Schegloff e em trabalhos afins, o contexto é redu-
zido a um contexto estereotípico, neutro e autocontido, em que tudo pare-
ce acontecer. Mas a fala (por ex. em ambientes institucionais) pode ser
entendida nos termos de suas marcas de gênero, por outros participantes,
posteriormente, e de forma impactante para os participantes “originais”
(Ochs, 1992). Antecipando a discussão da próxima seção, trata-se precisa-
mente de uma das questões críticas fundamentais: o fato de que a fala pode
não ter certas implicações para os participantes (“diretos”), de que certas
questões não são “demonstravelmente relevantes”, e sim tornadas rele-
vantes por reentextualizações posteriores dessa fala realizadas por outrem.

A opção feita por Schegloff é clara: “interação” é equacionada com


“contexto” (de única instância). Automaticamente, nos termos da agenda
investigativa da AC, o contexto para os participantes da fala é idealizado
como sendo a interação única, e os papéis e funções sociais (incluindo
elementos “mais afastados”, tais como elementos institucionais ou polí-
tico-ideológicos) só são “relevantes” na medida em que são
“proceduralmente conseqüentes”, na medida em que emergem de modo
demonstrável nas práticas interacionais. Schegloff postula que a “estru-
tura social” (incluindo as relações de poder) é produzida em (instân-
cias únicas de) interação. De fato, a ambição sociológica da AC é “de-
monstrar como as partes incorporam reciprocamente as relevâncias da
interação e, assim, produzem a estrutura social” (Schegloff, 1999:113).
A AC procura demonstrar como a estrutura social emerge “nessa con-
duta real à qual ela deve finalmente se referir” (1999:114, ênfase minha).

O problema consiste na associação entre “fala-em-interação” — o


objeto da AC — e a qualificação de tais instâncias de fala como “uma
CONTEXTO É/ COMO CRÍTICA 101

atividade autocontida” (Schegloff, 1999:109). Tal associação permite


que casos únicos de interação sejam tomados como equivalentes a “con-
texto” relevante. A fala freqüentemente aparenta ser uma atividade
“autocontida”, mas na verdade é, ao mesmo tempo, uma atividade que
pode ser apropriada e submetida a interpretações e julgamentos de rele-
vância que se situam para além das preocupações dos participantes (di-
retos). A “fala-em-interação” é muito freqüentemente acompanhada
da “fala-fora-da-interação”.

TRÊS CONTEXTOS ESQUECIDOS


As duas abordagens discutidas acima oferecem visões e descrições de
contextos como locus para o emprego de análise crítica, com intenso foco
nas relações singulares entre instâncias individuais de texto/discurso e
contexto(s). A questão consiste geralmente em “[um] contexto para [um]
texto [particular]”. Em ambos os casos, espero ter demonstrado que a
conexão entre discurso e estrutura social deixa muito a desejar. Nos dois
casos, a relevância dos contextos baseia-se, geralmente, em julgamentos
de demonstrabilidade (envolvendo conotações de explicitude, franque-
za, aspectos denotativos da linguagem e assim por diante): na medida em
que se acredita que um texto exibe traços identificáveis da estrutura so-
cial (demonstrados ou não, o que é outra questão), a estrutura social
serve como um contexto crítico para um texto.
Até aqui, posso apenas enunciar o problema. Em vez de sugerir um
caminho direto ao ponto, gostaria de apresentar brevemente outros
contextos — ou, melhor, apresentar alguns fenômenos de fala e lingua-
gem e sugerir que eles deveriam ser vistos como “contextos” de “tex-
tos”. Em todos os três casos, os contextos que apresentarei nos oferece-
rão avanços adicionais — refinados cumulativamente — na estrutura
social. Em outras palavras, sua função contextualizadora consistirá em
articular discurso e estrutura social, oferecendo, assim, melhores pers-
pectivas para a crítica. Nos três casos, os contextos não são caracterís-
ticas de textos individuais, mas de economias de comunicação e
textualização mais amplas. Eles não são adequadamente abordados pela
ACD ou AC — eles são contextos freqüentemente “esquecidos”.
102 SITUAR A LINGUA[GEM] | JAN BLOMMAERT

Ilustrarei meus argumentos por meio de dados de uma pesquisa em


andamento sobre narrativas autobiográficas de africanos em busca de
asilo na Bélgica (Bloomaert, 1999a). Tais dados, coletados em entrevis-
tas narrativas longas, em 1998, no auge de uma crise política sobre a
situação das pessoas que buscam asilo na Bélgica, são alvos primários
para uma análise crítica “tradicional”. Os sujeitos que atuam nesses dados
são um grupo muito marginalizado na sociedade belga. Seus direitos e
oportunidades na vida são exíguos. Eles são objeto de repressão e con-
trole administrativo. Trata-se de um grupo que enfrenta forte pressão
institucional para contar histórias de certos modos — o resultado do
procedimento de asilo é quase completamente baseado em (percepções)
da irrefutabilidade e coerência das histórias contadas por essas pessoas.
Mas a enunciação e interpretação de suas histórias envolve um com-
plexo trabalho de contextualização — mais complexo do que pode ser
apreendido pelas concepções de contexto discutidas na seção prévia.
Passemos agora a esse ponto.

Recursos como contextos


O primeiro contexto esquecido que eu gostaria de discutir é o com-
plexo de instrumentos lingüísticos e habilidades comunicativas
freqüentemente identificados como recursos. Os falantes podem/não
podem falar variedades de línguas, podem/não podem escrever e ler e
podem/não podem mobilizar recursos específicos para realizar ações
específicas na sociedade. E todas essas diferenças — diferentes graus de
proficiência variando entre “nenhum” ou “completo” domínio de códi-
gos, variedades lingüísticas e estilos — têm conseqüências sociais: os
recursos são hierarquizados em termos de adequação funcional, e aque-
les que têm diferentes recursos freqüentemente pensam ter recursos
desiguais, porque o acesso a certos direitos e benefícios na sociedade é
restringido pelo acesso a recursos comunicativos (por ex. narrativa)
específicos (cf. Hymes, 1996).

As pessoas que buscam asilo na Bélgica são submetidas a uma com-


plexa série de procedimentos administrativos, envolvendo e pressupondo
acesso a vários gêneros (por ex. textos legais, regulamentos de bem-
CONTEXTO É/ COMO CRÍTICA 103

estar), várias línguas (holandês, francês, inglês) e códigos (escrito, fala-


do). Além das habilidades lingüístico-comunicativas de que necessi-
tam no procedimento de asilo, elas também precisam ser capazes de
conduzir sua vida em uma vila ou cidade belga. As aproximadamente
50 pessoas em busca de asilo que entrevistamos usam inglês, francês ou
holandês na condução de suas atividades cotidianas. Muitas delas, no
entanto, demonstram dificuldades consideráveis em sua expressão nes-
sas línguas. Em termos do discurso falado, os graus de proficiência va-
riaram de muito pobre a sofisticado, e tais diferenças obviamente afe-
tam a estrutura e o conteúdo das narrativas. Alternância e mistura de
códigos, variedades e estilos foram também um ingrediente crucial das
histórias (cf. Maryns & Blommaert, 2000). Vejamos o exemplo 1, um
breve fragmento de uma narrativa de um angolano, em francês5.

Fragmento 1
oui/l’autre président . . . (xxxxxx)/ on l’a empoisonné/ c’est le président Mobutu/
qui a mis le poison retardé/ il est parti au russe/ l’URSS/ pour traîter/ il a
retourné/ il est mort/ mais on a abandonné son corps hein/ oui/ {{Question:
C’était un président de MPLA?}} C’était le même mouvement MPLA/ dans le
temps/ année septante-cinq/ quand il est mort on dit/ comme on = =il est
marxisme/ on a pris on a choisi =on= on a fait faux testament/ cette testament
c’était au temps du russe qui a fait ça/ comme toi tu =le= le président il est
mort/ il a décidé Eduardo qui va me remplacer/ sans vote/ parce que il est
toujours du même parti/ Eduardo il est d’origine angolais/ mais il est des Cap
Verdiens/ parce que ce sont des anciens prisonniers/ et Portugais il a mis à l’île
hein/ nous sommes à l’océan/ et on a mis une prison là-bas/ parce qu’il est
venu pour commander l’indépendance/ c’était une petite ville =une petite=
une petite village/ on a mis au pouvoir/ maintenant le président/ c’est on dit/

5. Apresento traduções, embora sabendo que elas obviamente não podem fazer jus ao modo
“quebrado” e, por essa razão, também muito complicado, de falar. Farei uso aqui de um formato
de transcrição altamente simplificado. Os símbolos usados são: = para sucessões rápidas de
turnos ou sílabas em autocorreções; / para frases marcadas com entonação ou finais de sentenças;
pontos indicam pausas. Até o momento, não houve pesquisa sistemática sobre letramento ou
discurso escrito envolvendo esse grupo; um exemplo pequeno de escrita burocrática foi apresen-
tado em Blommaert (1999b). A falta de letramento e o semiletramento estão claramente espalha-
dos no grupo de africanos em busca de asilo, e muitos deles precisam da ajuda de advogados e
assistentes sociais para cuidar de sua documentação. Os dados foram coletados ao final de 1998
por alunos do programa de estudos africanos, na Universidade de Gent, no âmbito de um projeto
de trabalho de campo supervisionado por mim.
104 SITUAR A LINGUA[GEM] | JAN BLOMMAERT

il dit que non/ tous les gens/ qui parlent Lingala/ les gens du Nord/ ce sont des
gens plus malins/ plus intelligents/ par rapport au gens du Sud/ en Angola
nous sommes quatre couleurs/ comme le Bré= le Brésil.

Tradução
sim/ o outro presidente . . . (xxxxxx)/ eles envenenaram ele/ é o presidente
Mobutu/ que colocou o veneno atrasado/ ele partiu pra Rússia/ a União Sovié-
tica/ pra tratar/ ele devolveu/ morreu/ mas abandonaram seu cadáver, certo/
sim/ {{Pergunta: É um presidente do MPLA?}}/ Era o mesmo movimento
MPLA/ naqueles dias/ ano setenta e cinco/ quando ele morreu eles disseram/
como eles = = ele é marxismo/ eles pegaram eles escolheram =eles =eles
fizeram um falso testamento/ aqueles testamento foi no tempo dos russos que
fez isso/ como você você =o =o presidente está morto/ ele decidiu Eduardo
quem vai me substituir/ sem voto/ porque ele é sempre do mesmo partido/
Eduardo ele é de origem angolana / mas ele é dos Cabo-Verdianos/ porque eles
são prisioneiros antigos/ e português se impôs na ilha, certo/ nós estamos no
oceano/ e eles colocaram uma prisão por lá/ porque ele tinha vindo para co-
mandar a independência/ era uma cidade pequena = uma pequena = uma
pequena vila/ eles colocaram no poder/ agora o presidente /isso é o que eles
dizem/ ele disse que não/ todas as pessoas/ quem fala Lingala/ as pessoas do
norte/ elas são pessoas mais sabidas/ mais inteligentes/ em relação às pessoas
do sul/ em Angola nós somos quatro cores/ como o Bra=Brasil.

O angolano se esforça para explicar o contexto político mais amplo


em que sua fuga de Angola deve ser enquadrada. Assim, ele é forçado a
oferecer informações detalhadas sobre o regime político em Angola,
incluindo digressões sobre as práticas coloniais portuguesas (enviando
os soldados do Movimento Popular de Libertação de Angola [MPLA]
para o exílio nas ilhas de Cabo Verde) e as divisões lingüísticas e étnicas
no país. A história é altamente complexa e, aparentemente, todos esses
detalhes contam para o narrador. Tais digressões detalhadas e comple-
xas sobre a terra natal aparecem na grande maioria das narrativas que
gravamos, a ponto de podermos genericamente identificá-las como “nar-
rativas da terra natal” (Blommaert, 1999a). Narrativas da terra natal
costumam desempenhar funções de contextualização cruciais nas his-
tórias: sem elas, um entendimento preciso das causas e motivos para a
fuga não pode ser alcançado. Com freqüência e de maneira explícita, os
narradores chamavam a atenção para a importância dessas explicações
CONTEXTO É/ COMO CRÍTICA 105

contextuais densas para o entendimento de quem eles eram e por que


tinham vindo para a Bélgica. A questão, no caso específico do exemplo
acima, é que esse bloco complexo e importante de informação deve ser
transmitido através de uma variedade “quebrada” do francês, adquiri-
da informalmente durante o período de viagem do narrador pelo Congo
e durante sua estada na Bélgica (e carregando traços desse itinerário
migratório). O francês utilizado pelo angolano é, como o inglês e o ho-
landês de muitos outros, um produto da vida de refugiado e um espelho
da marginalidade vivenciada por eles aonde quer que se dirijam.

A forma das narrativas não pode ser separada de seus conteúdos:


histórias como esta são formadas em grande parte pelos recursos que as
pessoas têm para contá-las; o que pode ser contado depende de como se
pode contar. Histórias complexas se tornam ainda mais complexas quan-
do são contadas em variedades lingüísticas com as quais os falantes não
se sentem confortáveis. A forma como a seqüência temporal dos even-
tos é organizada no fragmento 1, por exemplo, é altamente problemáti-
ca (por ex. onde devemos situar o ‘parce qu’il est venu pour commander
l’indépendance’ na passagem sobre Cabo Verde?); o mesmo acontece
para qualificações cruciais dadas através de escolhas lexicais nada ade-
quadas (por ex. ‘il est marxisme’ em vez de ‘il est marxiste’); dêixis e
referência são outro domínio problemático (veja o “il” em “parce qu’il
est venu pour commander l’indépendance”). A luta com os meios de
narração disponíveis também tem efeito no ritmo e na prosódia, cau-
sando quebras no fluxo da narrativa e a perda de uma gama importante
de pistas de contextualização. Contada para interlocutores belgas que
são falantes nativos (no caso de holandês ou francês) ou falantes não-
nativos que algumas vezes utilizam variedade do inglês igualmente pro-
blemática, o potencial de desentendimento é compreensivelmente mui-
to alto. Histórias “digressivas” rapidamente se tornam histórias “ru-
ins”, qualificadas como “não confiáveis” ou cheias de “elementos obs-
curos” e “contradições”. As partes da história que são difíceis de enten-
der durante a interação freqüentemente não são entendidas de forma
alguma. Os recursos controlados pelos narradores e seus interlocutores
são parte do kit de interpretação das histórias e, dado o papel central
das histórias no procedimento de asilo, a disponibilidade de recursos
pode influenciar o resultado dos pedidos de asilo.
106 SITUAR A LINGUA[GEM] | JAN BLOMMAERT

Os recursos e a forma como eles funcionam enquanto elementos da


estrutura social são freqüentemente contextos “invisíveis” em análise
do discurso. Iletrados não aparecem em análise do discurso escrito; suas
percepções da “notícia” e da “política” não aparecem na análise de no-
tícias de jornal. Tais análises não são nem sobre, nem para eles. As
inadequações no discurso das pessoas que não têm acesso às variedades
estandardizadas da língua são geralmente editadas e corrigidas e, assim,
desaparecem enquanto índices de estrutura social e de desigualdade e
identidade dessas pessoas. Seus enunciados são geralmente transcritos
em ortografias-padrão, de forma que os estigmas sociais em relação aos
acentos e “pequenas” características discursivas são neutralizados e al-
cança-se uma homogeneização desses usuários da língua com as caracte-
rísticas mais comuns da comunidade de fala (Ochs, 1999)6. No entanto,
a importância dos recursos está na profunda relação entre a língua e uma
economia geral de símbolos e status nas sociedades. Não se pode dizer
apenas que uma pessoa “tem” ou “sabe” uma língua; existe uma dinâmi-
ca complexa e altamente delicada de aquisição e distribuição diferenciada
por trás de frases aparentemente inócuas. Palavras, acentos, contornos
entonacionais, estilos têm história de uso e mau uso; eles vêm também
com uma história de avaliação e julgamento. E é aí que a linguagem nos
leva diretamente para o centro da estrutura social: uma investigação da
linguagem se torna uma investigação dos sistemas e padrões de alocação
de símbolos e instrumentos de poder e, portanto, uma investigação de
padrões básicos de privilégio e desvantagem nas sociedades (cf. Gumperz,
1982; Bourdieu, 1991; Heller, 2001). Observar questões ligadas aos re-
cursos garante que qualquer fragmento de uso da linguagem seja
contextualizado socialmente, de forma profunda e fundamental; cone-
xões entre a fala e a estrutura social seriam então intrínsecas.

Ao mesmo tempo, o papel de formação contextual dos recursos vai


além da ocorrência de textos individuais ou fragmentos de discurso.

6. Rampton (1995 e 2001) mostra a relevância de pequenos detalhes fonéticos, geralmente


desconsiderados, para a compreensão dos processos identitários entre jovens de origem étnica
no Reino Unido. A adoção da vogal “crioula”, em vez de seu equivalente “anglo”, mostrou ser um
fator indexical delicado nos alinhamentos identitários e nas opções de estilo. Rampton – signi-
ficativamente – usa símbolos de transcrição fonética para chamar a atenção para esses aspectos.
A transcrição-padrão baseada na ortografia do inglês-padrão não permitiria a identificação des-
sas minuciosas diferenças, nem, claro, de suas implicações sociais e culturais.
CONTEXTO É/ COMO CRÍTICA 107

Eles não funcionam apenas como elementos de textos, mas das socie-
dades e das estruturas sociais; por essa razão, as chances de esses recur-
sos emergirem a partir da análise do discurso (lingüística) doutrinária
são muito pequenas. Em geral, eles pertencem ao domínio do “normal”
e do “usual”; eles condicionam interações na sociedade e algumas
interações simplesmente nunca acontecerão. Em um estudo crítico da
linguagem, no entanto, a ausência de certos eventos discursivos e a
forma particular de outros em função da disponibilidade de alocação de
recursos deveriam nos preocupar mais: por que não podemos todos fa-
lar e escrever da mesma forma? Por que alguns discursos são privilégio
de algumas pessoas por se basearem em usos exclusivos de recursos
raros? Para entender o que a linguagem faz na sociedade, acredito que
essas questões sejam fundamentais.

Trajetórias de textos
Um segundo contexto “esquecido” foi já brevemente mencionado aci-
ma. Uma das características dos processos de comunicação institucionais,
por exemplo, é o movimento do discurso através dos contextos: a fala é
transformada em notas, resumos, boletins oficiais, citações, discussões etc.
Briggs (1997a) argumenta que justamente esse movimento de textos entre
diferentes contextos — práticas de reentextualização — envolve questões
cruciais de poder. Nem todo contexto é/está acessível a todos, e práticas de
reentextualização dependem de quem tem acesso a qual espaço contextual
(um ponto já elegantemente levantado por Roland Barthes em Mythologies,
1957). No sentido empregado aqui, o acesso também depende dos recur-
sos: reentextualização freqüentemente envolve uma tecnologia de
contextualização, certo nível de conhecimento técnico que é muito exclu-
sivo e objeto de imensa desigualdade em nossa sociedade (por ex.
reentextualizações legais requerem acesso a conhecimento técnico legal,
cf. Philips, 1998). A dinâmica de entextualização claramente nos leva de
volta a questões de acesso diferenciado aos recursos de poder e, portanto,
nos leva diretamente à estrutura social (Bauman & Briggs, 1990).

No procedimento de asilo belga, a história do requerente é um in-


grediente central e, obviamente, inúmeras coisas acontecem com essas
histórias. À longa entrevista sobre os motivos da busca de asilo na Bél-
108 SITUAR A LINGUA[GEM] | JAN BLOMMAERT

gica, seguem-se inúmeros procedimentos administrativos de composi-


ção textual: um boletim oficial, citações de fragmentos em notas e car-
tas trocadas entre administradores, advogados ou assistentes sociais,
interpretações e resumos em veredictos das autoridades responsáveis
pelo concedimento de asilo, entre outros. Considerem o próximo frag-
mento de uma carta oficial ao angolano, em que ele é informado do
indeferimento de seu pedido de asilo. O indeferimento é motivado pe-
los resumos interpretativos de partes da história contada por ele (em
holandês no original, minha tradução7).

Fragmento 2

O interessado foi interrogado em 23 de novembro de 1993 no Commissariat-


General [para Refugiados e Pessoas sem Cidadania], na presença de [nome], seu
advogado.
Ele se diz um “informante político” da MPLA. Em 18 de outubro de 1992, no
entanto, passou informações para UNITA8. No escritório da UNITA, no entan-
to, ele encontrou o Major [nome], que trabalha para a MPLA. Dois dias depois, o
Major [nome] prendeu o interessado. Temendo que o interessado revelasse o
Major no julgamento, [nome do Major] ajudou o interessado a fugir. O interessa-
do foi para [localidade], onde um padre organizou sua partida de Angola. O
interessado, junto com sua esposa [nome e número do registro] e três filhos, veio
para a Bélgica de avião, através do Zaire. Eles chegaram em 19 de maio de 1993.
É preciso chamar a atenção para o fato de o interessado ser muito vago em certos
pontos. Assim, ele é incapaz de dar detalhes precisos sobre seu trabalho como
“informante político”. Além disso, falta credibilidade à história de sua fuga. As-
sim, é improvável que o interessado pudesse roubar roupas e armas militares sem
ser notado e que pudesse, conseqüentemente, escalar os muros da prisão.
É também improvável que o interessado e sua esposa pudessem passar o con-
trole de passaportes em Zaventem [Aeroporto de Bruxelas] levando um passa-
porte em que faltavam seus nomes e fotos.
Além disso, é impossível verificar o itinerário do interessado devido à falta de
documentos de viagem (o interessado mandou os passaportes de volta).
As declarações do interessado contêm contradições quando comparadas às de
sua esposa. Assim ele declara que os passaportes que eles receberam do padre

7. Esta versão em português foi feita a partir da tradução do autor para o inglês [n. da trad.].
8. União Nacional para a Independência Total de Angola [n. da trad.].
CONTEXTO É/ COMO CRÍTICA 109

[nome] estavam já em completa ordem quando eles deixaram Angola. Sua


esposa afirma que eles ainda tiveram de pedir vistos no Zaire.

Há dois comentários a fazer. Primeiro, o pedido de asilo não é


construído em um ato de comunicação; constrói-se através de uma se-
qüência de reentextualizações, envolvendo recontextualizações para além
da história contada, resumo e paráfrase e reenquadre da história em ter-
mos legais e procedimentais regulados por critérios de “verdade” e
“confiabilidade” (Blommaert, 1999a). Esta seqüência está fixada: a traje-
tória do texto é um procedimento administrativo uniforme. O contexto
que se pode chamar de “proceduralmente conseqüente” envolve uma
série de eventos individuais e também as relações entre esses eventos.
Envolve o fato de a fala ser traduzida, escrita, resumida e enquadrada em
termos legais/procedurais, enfim, de que todo passo nesse processo siste-
mático e uniforme não envolve a repetição, mas sim tranformações mui-
to além da história “original”. Ainda assim, em todas as suas instâncias de
modificação, diz-se que a história é ainda aquela do requerente de asilo
(ver frases como “as declarações do interessado”). Então, qual é “a histó-
ria do requerente”? A história é toda a trajetória do texto.

Segundo, à luz das observações acima sobre recursos, o destaque


da trajetória de textos se torna ainda maior. Cada passo na trajetória
envolve desigualdades na disponibilidade de recursos. A história con-
tada tanto na língua materna, quanto traduzida pelo intérprete (geral-
mente para o francês ou inglês), ou contada no tipo de variedade do
francês, inglês ou holandês ilustrado no fragmento 1, é transposta
para uma variedade-padrão escrita de holandês ou francês. Ela é en-
tão filtrada da forma discutida acima: partes difíceis de entender no
contexto de produção da fala são ou deletadas da história ou mal-
interpretadas. O administrador seleciona as partes da história que pa-
recem ter conseqüência para o resultado do pedido de asilo, usando
critérios de coerência e consistência diretamente atrelados a avalia-
ções de verdade e confiabilidade. Passa-se, então, aos critérios legais, e
a história toda é avaliada como “verdadeira” ou “não-confiável”. Con-
forme a história vai sendo processada através da trajetória do texto,
acumulam-se desigualdades de recursos lingüístico-comunicativos no
procedimento de asilo.
110 SITUAR A LINGUA[GEM] | JAN BLOMMAERT

Atenção a esse tipo de movimento do discurso através do contexto,


envolvendo aspectos de controle e poder em cada uma das fases da
recontextualização, é um elemento de análise que pode, obviamente,
não se sustentar na AC. Na ACD, Fairclough (1992) contempla de certa
forma esses fenômenos, embora o foco esteja nos fluxos textuais e não
no movimento de contextos e recursos, determinante do trabalho de
recontextualização. Minha perspectiva vem da etnografia — a consci-
ência de que o discurso é contextualizado em cada fase da sua existên-
cia e que todo ato de produção, reprodução e consumo de discurso
envolve mudanças contextuais (Silverstein & Urban, 1996; Philips,
1998). Ao estudar o discurso e a estrutura social, esse movimento do
discurso através dos contextos parece ser uma empreitada crítica crucial,
uma vez que contém importantes aspectos de poder.

Histórias dos dados


O terceiro “contexto esquecido” está diretamente ligado ao que foi
dito acima: a história dos dados discursivos. Por ser considerada como
entextualização, a análise é também parte da trajetória dos textos. Nes-
se sentido, um pouco de sensibilidade ao que se faz com os excertos de
discurso tão logo passam a ser chamados de dados pode ser proveitoso.
Observei acima que, especialmente na ACD, dificilmente se trata da ori-
gem etnográfica e da situacionalidade dos dados; comentários semelhan-
tes podem ser feitos em relação à AC (Duranti, 1997: 267–70). Na
etnografia, no entanto, a história dos dados é vista como um elemento
importante para a interpretação. Reconhece-se que a maneira como os
dados são obtidos, gravados e tratados pelo analista tem influência na-
quilo que esses dados nos dizem (cf. Bauman, 1995; Haviland, 1996;
Silverstein, 1996; Urban, 1996). O tempo, o lugar e a ocasião em que os
dados são obtidos têm efeito sobre eles: eles são o que são por ocorre-
rem de determinada forma em determinado contexto9. A questão “Por
que nós investigamos isto agora?” é importante, pois aponta para a
situacionalidade social de nossa própria pesquisa.

9. Blommaert (1997a: 49–61) ilustra a importância das histórias dos dados através do
clássico artigo de Dell Hymes intitulado: Breakthrough into Performance (Hymes, 1975).
CONTEXTO É/ COMO CRÍTICA 111

Essa questão também é importante porque costuma ser


desconsiderada como um fator na pesquisa e interpretação ou tratada
como evidente, recebendo pouca atenção. Minha intenção é trazê-la
para o primeiro plano, determinando o que pode acontecer, como e em
que momento, pois se trata, mais uma vez, de um caso de contexto
geralmente “invisível”. Alguém pode se lembrar aqui da noção de “ar-
quivo” de Foucault (1970): enunciados intrinsecamente ligados às con-
dições de enunciação. Certas coisas podem apenas ser ditas em certos
momentos, sob certas condições; da mesma forma, certas coisas podem
apenas ser pesquisadas em certos momentos, sob certas condições.
Mencionei no início desta seção que nossos dados foram coletados em
1998. Algumas semanas antes do início de nosso trabalho de campo,
uma importante crise política a respeito do problema de asilo irrompeu
na Bélgica. A origem da crise foi a morte violenta de uma requerente de
asilo nigeriana nas mãos da polícia. Como reação a esse incidente, hou-
ve mobilização espontânea de grande parte da população belga, que
demonstrou simpatia pela difícil situação dos requerentes de asilo. Além
disso, grande número dos requerentes também se organizou de manei-
ra inédita. Ocuparam igrejas e escolas e estavam ansiosos para contar
suas histórias. De forma inesperada, apenas por alguns meses, nós nos
encontramos em condições de pesquisa singulares, nunca experimen-
tadas. Antes desse incidente, era realmente muito difícil encontrar os
requerentes de asilo, uma vez que a maioria era ilegal e vivia marginali-
zada. Depois de alguns meses, passado o auge do protesto, as pessoas
em busca de asilo voltaram mais uma vez à marginalização. Durante
esse breve período, gravamos as histórias de pessoas que queriam falar
de sua vida miserável em seu país, no trajeto de fuga e na Bélgica. Elas
contavam suas histórias ansiosa e repetidamente para qualquer um que
parasse para ouvi-las. Um aspecto importante desse período foi o conta-
to: a indignação pública pela morte da jovem nigeriana criou um fórum
de debates entre belgas e requerentes de asilo. Um fórum em que as
histórias sobre asilo e sobre as vidas dos requerentes poderiam circular.
Conseqüentemente, as histórias mudaram e muitas das histórias no
nosso corpus apresentam características do que Hymes (1998) chama
de “narrativas pré-construídas” (fully-formed narratives), isto é, narra-
tivas que apresentam concisão crescente e estrutura narrativa em fun-
112 SITUAR A LINGUA[GEM] | JAN BLOMMAERT

ção dos repetidos momentos de narração, de “ensaio”, poder-se-ia dizer.


Assim, o contexto concreto do trabalho de campo teve um impacto em
nossos dados em pelo menos dois níveis:

(1) no fato de as pessoas poderem ser entrevistadas e de desejarem


mostrar suas identidades e “casos” para nós;
(2) na particularidade das características estruturais de algumas das
histórias, que carregam traços do processo de repetição das nar-
rativas.
As narrativas só existem como objetos de pesquisa devido a um con-
texto particular: as histórias só se tornaram disponíveis durante aquele
período e em função do movimento político que trouxe para o primeiro
plano do debate o problema das pessoas em busca de asilo. Isso foi um
fenômeno de crise, um efeito de um desses momentos em que o caos e a
aceleração parecem tomar conta e forçam para vir à tona todos os tipos de
“transcrições escondidas” (Scott, 1992). Depois desse rápido período, as
histórias desapareceram junto com as pessoas que as contaram. Tais histó-
rias podem ser analisadas apenas como casos de desigualdade, porque fo-
ram gravadas em um momento em que essa desigualdade se tornara visível
e saliente, além de acessível à pesquisa. O fato de certas formas de discurso
se tornarem visíveis e acessíveis apenas em períodos particulares e sob
condições particulares é por si só um fenômeno importante, que nos diz
muito sobre nossa sociedade e sobre nós mesmos, e que, necessariamente,
situa discursos particulares no campo sociopolítico em que eles aconte-
cem. As histórias têm um “conteúdo” particular que se relaciona (e se
indexa) a um momento social, político e histórico particular. Remover esse
conteúdo das narrativas poderia envolver o risco de obscurecer as razões
para sua produção e também o fato de que elas se vinculam a pessoas
identificáveis e a circunstâncias particulares que as ocasionaram.

CONCLUSÃO
Concepções de contexto podem ser críticas na medida em que, em
vez de serem vistas como contribuições referenciais diretas ao significa-
do textual, são vistas como condições para a produção do discurso e para
a forma de entendê-lo, tanto a partir da perspectiva leiga quanto profissi-
CONTEXTO É/ COMO CRÍTICA 113

onal. Devemos olhar tanto para a forma como o lingüístico gera o econô-
mico, social e político, quanto para como o econômico, o social e o políti-
co geram o lingüístico. Todos os problemas que identifiquei em relação
ao contexto na ACD e na AC estão voltados para a centralidade do texto
nessas duas tradições: sua aspiração final continua sendo a de explicar o
texto e não de explicar a sociedade através dessa janela aberta pelo dis-
curso. Minhas próprias sugestões foram pautadas na estratégia oposta,
usando o discurso como um objeto social e vendo suas características
lingüísticas como condicionadas e determinadas por circunstâncias que
vão muito além do que podem perceber o falante ou o usuário, mas que
são sociais, políticas, culturais e históricas. É importante lembrar que,
quando dizemos que o texto é “situado” em termos discursivo-analíticos,
parecemos nos referir a formas de localidade: a singularidade, unicidade
e microssituacionalidade do texto. A partir dessa situacionalidade indivi-
dual, estruturas mais amplas, padrões ou “regras” podem ser deduzidos,
mas essas generalizações não envolvem níveis mais elevados de
situacionalidade: o discurso parece perder o contexto assim que é eleva-
do acima do nível de texto individual. Essa diferença de graus de
situacionalidade — amplo, geral, supra-individual, típico, estrutural —
deve ter espaço em qualquer forma de estudo crítico do discurso. Em
termos concretos: a análise do discurso poderia se beneficiar muito de
intuições básicas da sociolingüística. Por exemplo, da questão da diferen-
ciação social e da desigual distribuição de recursos lingüístico-comunica-
tivos. Poderia também se beneficiar muito das intuições da etnografia,
para a compreensão da importância das histórias dos textos e dos dados,
por exemplo. Essas duas fontes de intuição poderiam contribuir para
visibilizar novos contextos do discurso, contextos que não podem sepa-
rar-se da estrutura social. A ênfase no detalhe interacional e discursivo
poderia complementar esforços socioteóricos já existentes, tal qual o de
Bourdieu (1991), para articular o interacional e o estrutural.

Na medida em que as abordagens críticas do discurso devem preo-


cupar-se com o poder, elas não podem se preocupar exclusivamente
nem com o poder pré-definido, do qual o texto é apenas ilustração ou
sintoma, como na ACD, nem com o poder explicitado no âmbito da apre-
ensão das práticas individuais, como na AC. Elas também devem preocu-
par-se com o poder invisível, hegemônico, normalizado — o poder “ca-
114 SITUAR A LINGUA[GEM] | JAN BLOMMAERT

pilar” de Foucault e a burguesia capitalista invisível de Barthes — na


linguagem e não apenas pela linguagem. Como todos sabemos, a lingua-
gem é ela mesma um objeto de desigualdade e hegemonia. Ao
explicitarmos o poder e efeitos da linguagem, não podemos desconsiderar
a forma como a própria linguagem e a fala podem ser “molestadas”,
para usar o termo de Hymes (1996). Esse simples fenômeno por si mes-
mo — pessoas falando e escrevendo, usando a linguagem para funções
específicas — não é um dado inquestionável, e a análise não deveria
começar, poderíamos dizer, assim que as pessoas abrissem suas bocas.
O exame desses fenômenos mais amplos é um alvo crucial para os estu-
dos críticos da linguagem, uma vez que se constitui, certamente, em
uma fonte rica e importante para encontrar “contextos”.

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METAPRAGMÁTICAS
DA LÍNGUA EM USO:
UNIDADES E NÍVEIS DE ANÁLISE*
Inês Signorini (UNICAMP)

1. INTRODUZINDO A QUESTÃO:
O “ESQUELETO EXTERNO” DA LÍNGUA EM USO

N
osso objetivo neste ca- Un des grands mystères que la socio-
linguistique doit résoudre, c’est cette
pítulo é focalizar estru- espèce de sens de l’acceptibilité. Nous
turas e processos socio- n’apprenons jamais le langage sans
culturais de natureza apprendre, en même temps, les
conditions d’acceptibilité de ce langage.
lingüístico-discursiva e político-ideo- C’est-à-dire qu’apprendre un langage,
lógica que adquirem, direta ou indi- c’est apprendre en même temps que ce
langage sera payant dans telle ou telle
retamente, explícita ou implicita-
situation (Bourdieu, 1984: 98).
mente, função metapragmática (Sil-
verstein, 1993; Mey, 2001) na interação social, isto é, função tanto de
descrever e avaliar quanto de condicionar e orientar os usos da língua na
interação oral ou escrita. O exemplo mais saliente é sempre o das regula-
mentações institucionalizadas, notadamente as objetivadas nos sistemas
oficiais de avaliação, que explicitam e colocam em cena, com grande visi-
bilidade no caso dos programas nacionais (do tipo SAEB e ENEM1, por

* Trabalho referente ao Projeto de pesquisa “Metapragmáticas da escrita” (processo CNPq


no. 305703/2005-6) e se reporta a atividades desenvolvidas pelo Grupo de Pesquisa CNPq
“Práticas de escrita e de reflexão sobre a escrita em contextos insitucionais”. Agradeço aos Profs.
Luiz P. Moita Lopes e Aldir S. Paula os comentários feitos a uma versão anterior. O conteúdo do
artigo é, porém, de minha inteira responsabilidade.
1. O Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB) e o Exame Nacional do Ensino
Médio (ENEM) foram criados em 1998 pelo governo brasileiro.

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