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DISCURSO, EDUCAÇÃO E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL

Marta da Silva Aguiar


Universidade Federal de Pernambuco

RESUMO: Partindo da compreensão de educação como prática social e discursiva e


tomando como base o pensamento de dois dos principais autores da Análise Crítica do
Discurso (Fairclough e van Dijk) procuraremos explicitar neste artigo como alguns dos
pressupostos teóricos centrais dessa abordagem coadunam-se com a perspectiva
pedagógica de Paulo Freire para o processo de alfabetização de jovens e adultos,
principalmente no livro Pedagogia do Oprimido (2011), no que diz respeito ao
desvelamento dos discurso dominantes com o objetivo de formar cidadãos críticos.

PALAVRAS-CHAVE: Educação. Discurso. Transformação Social.

ABSTRACT: Starting from the comprehension of education as a social and discursive


practice and based on the thinking of two of the main authors of Critical Discourse
Analyses (Fairclough and van Dijk) we intent to explicit how some of the central
theoretical assumptions of this approach are in line with the Paulo Freire’s pedagogical
perspective to the literacy process for youth and adult, especially in the book Pedagogia
do Oprimido (2011), with regard to the unveiling of the dominant discourse in order to
form critical citizens.

KEYWORDS: Education. Discourse. Social Transformation.

Introdução
“What people learn in and through text and talk, and through the process of
texturing as we might put it (making text and talk within making meaning), is
not merely (new) ways of texturing, but also new ways of acting, relating,
being, and intervening in the material world, which are not purely semiotic in
character.” (FAIRCLOUGH, 2004, p. 231)

A prática educativa, enquanto prática social historicamente e culturalmente


situada, é também constituída por práticas discursivas que atuam de forma dialética na
construção dos sujeitos e das relações sociais. A educação não é um campo neutro e,
sendo assim, exige uma análise atenta dos discursos que o perpassam e de como tais
discursos podem contribuir para a reprodução ou a transformação das estruturas de
poder dentro e fora do ambiente escolar. Para tanto, acreditamos que os estudos sobre
discurso, poder e sociedade, desenvolvidos no âmbito da Análise Crítica do Discurso
(ACD), podem ser de grande valia.
Considerando que a ACD possui um amplo escopo de aplicação, podendo
voltar-se para aspectos diversos da vida social, procuraremos perceber em nosso
trabalho como alguns dos principais pressupostos teóricos desta abordagem coadunam-
se com a perspectiva pedagógica de Paulo Freire para o processo de alfabetização de
jovens e adultos, principalmente no livro Pedagogia do Oprimido (2011). Acreditamos
que esse direcionamento pode nos ajudar pensar a transformação social relacionada às
práticas discursivas e educativas, pois como afirma Rogers (2004a), citando Lave

1
(1996), ao associar a aprendizagem com a transformação social, “learning as social
transformation is important to realizing a vision of democratic education” (p.13).
Com a intenção de redimensionar as contribuições da obra freiriana,
principalmente no que se refere ao desvelamento do discurso dos grupos dominantes,
para a construção de cidadãos críticos e de uma sociedade justa, exploraremos,
primeiramente, algumas das ideias centrais da ACD. Para, em seguida, retomar as
formulações de van Dijk (2010) sobre abuso de poder, controle, dominação e acesso e
de Fairclough (2001) sobre discurso e mudança social, resguardando as especificidades
das abordagens propostas por estes dois autores para o estudo do discurso e traçando um
diálogo com os pressupostos centrais da pedagogia do oprimido.

1. Análise Crítica do Discurso

A relação entre linguagem, discurso e sociedade tem sido focada por diferentes
abordagens de análise do discurso, sejam elas linguisticamente orientadas ou não.
Fairclough (2001), como forma de contextualizar os estudos na área e de estabelecer as
bases para a sua Teoria Social do Discurso, descreve algumas abordagens que agregam
a análise linguística a uma visão social do discurso e divide-as em não-críticas e críticas,
destacando como o diferencial destas últimas com relação às primeiras a preocupação
com as questões de ideologia e de poder que informam a produção do discurso e
também a relação deste com a construção das identidades e das relações sociais e dos
sistemas de conhecimentos e crenças. No entanto, mesmo nas correntes críticas, as
relações entre linguagem, discurso, poder e ideologia são tomadas de modo estanque,
sendo realçados os processos de reprodução e manutenção das relações de poder.
A ACD, que se desenvolve a partir da década de 80, sem, contudo, consistir em
um campo de estudos homogêneo, ou em uma disciplina ou escola dentro do âmbito dos
estudos do discurso, propõe, através da obra de diferentes autores, como Fairclough
(2001, 2004), van Dijk (2010), Wodak (2001), Rogers (2004), dentre outros, novas
possibilidades de investigação discursiva. A nova abordagem proposta pelos analistas
críticos do discurso não representa uma ruptura com as correntes anteriores, mas difere
delas por adotar um posicionamento político-epistêmico na investigação das relações
entre linguagem e poder e de preocupação com questões como desigualdade e injustiça
social, discriminação e dominação. Meyer (2001, p.15) destaca que na ACD os limites
entre a pesquisa científica social e a discussão política são algumas vezes ultrapassados,
buscando-se explicitar as relações de poder geralmente implícitas e obter resultados
com relevância prática para os grupos dominados.
Van Dijk (2010) sugere a denominação Estudos Críticos do Discurso (ECD) e
aponta como principal razão para esta renomeação o fato de que tais Estudos não são
um método de análise, mas sim se utilizam de métodos que sejam relevantes para os
objetivos da pesquisa. Por não definir-se como um método, o que se destaca no âmbito
desses estudos é uma atitude “crítica”. Para especificar mais claramente essa atitude são
propostos alguns critérios: a) estudar as relações de dominação a partir da perspectiva
dos dominados; b) recorrer às experiências dos grupos dominados para analisar o
discurso dominante; c) poder mostrar que as práticas discursivas dos grupos dominantes
são “ilegítimas”; e d) poder formular alternativas conciliáveis com os interesses dos
grupos dominados.
Fica evidente, então, que os estudiosos críticos do discurso ao se voltarem para
as relações entre linguagem e sociedade, estruturas sociais e estruturas discursivas,
adotam uma postura reflexiva sobre seu papel na sociedade e advogam explicitamente
2
em favor dos grupos que sofrem discriminação e injustiça social. A forma de construção
do conhecimento distancia-se da ideia de neutralidade que permeia o paradigma
científico moderno e parece aproximar-se do paradigma emergente descrito por Santos
(2004, p. 60): “de um conhecimento prudente para uma vida decente”. Logo, uma das
questões presente nos estudos da ACD é como se posicionar diante das relações de
poder a partir do próprio fazer científico. Como resumem as palavras de Wodak (2001,
p. 09): “Basically, ‘critical’ is to be understood as having distance to the data,
embedding the data in the social, taking a political stance explicitly, and a focus on self-
reflection as scholars doing research”.
A ACD preocupa-se não só em investigar como as estruturas discursivas são
influenciadas pelas estruturas de poder da sociedade ao mesmo tempo em que as
mantêm e reproduzem, mas também como tais relações constituem-se e transformam-se
a partir das práticas discursivas. Além disso, é importante para esta perspectiva estudar
as relações entre forma e função da linguagem, tomando os contextos de uso e o
funcionamento da fala e da escrita como fundamentais para a compreensão dos
discursos. Assume-se a ideia de que “all discourses are historical and can therefore only
be understood with reference to their context” (MEYER, 2001, p.15), daí que se
constitua como uma perspectiva multidisciplinar, buscando uma análise ampla dos
problemas sociais e relacionando-os com aspetos culturais, históricos, políticos.

2. Relações de poder, discurso e prática pedagógica

O pensamento pedagógico freiriano denuncia uma ordem social injusta em que


alguns sujeitos assumem o papel de opressores e outros o de oprimidos e propõe uma
prática educativa que vise a conscientização e a transformação social, através do
desvelamento do mundo, ou seja, através da desnaturalização das práticas de
dominação.
Durante sua trajetória como educador, Freire não esteve apenas preocupado em
estabelecer uma metodologia que possibilitasse a alfabetização eficaz de jovens e
adultos, mas principalmente procurou formular uma teoria de ação pedagógica voltada
para a conscientização e para a transformação, ou seja, voltada para questões éticas,
políticas e sociais que, a nosso ver, aproximam-se dos objetivos gerais da ACD. O livro
Pedagogia da Autonomia (1996) reúne pontos de seu pensamento educacional que
deixam claros seu comprometimento político e seu engajamento social, comuns ao
trabalho desenvolvido pelos analistas críticos do discurso. Nessa obra, o autor reúne
alguns saberes considerados essenciais para o exercício da prática pedagógica, dentre os
quais destacamos seis por sua maior relação com as características da ACD já colocadas
anteriormente:
1) Ensinar exige criticidade, a superação da “curiosidade ingênua” para a
construção da “curiosidade epistemológica”, a superação da ingenuidade
para a criticidade;
2) Ensinar exige reflexão crítica sobre a prática, ou seja, uma atitude dialética
que articule o fazer e o pensar;
3) Ensinar requer a assunção dos educandos e educadores como seres sociais,
culturais e históricos;
4) Ensinar exige comprometimento com o trabalho educativo e a compreensão
de que o espaço pedagógico não é neutro e de que a presença do professor
nesse espaço é uma presença política;

3
5) Ensinar exige a percepção de que a educação é uma forma de intervenção no
mundo, uma forma de ação.

“Intervenção que além do conhecimento dos conteúdos bem ou mal


ensinados e/ou aprendidos implica tanto o esforço de reprodução da
ideologia dominante quanto o seu desmascaramento. Dialética e
contraditória, não poderia ser a educação só uma ou só a outra dessas coisas.
Nem apenas reprodutora nem apenas desmascaradora da ideologia
dominante” (FREIRE, 1996, p.98).

6) Ensinar exige compreender que a educação é ideológica1. Freire vê o


discurso ideológico como algo que distorce a nossa percepção da realidade.
Sua posição, contudo, não é fatalista, pois, para ele, o exercício da
consciência crítica possibilita o desvelamento das ideologias dominantes
mobilizando os homens para a resistência e para a transformação.
A criticidade, a reflexividade, o posicionamento político e o reconhecimento da
educação como forma de ação, que figuram nos saberes pedagógicos enumerados
acima, evidenciam que ensinar/aprender não é transferir/receber conhecimentos, mas
um ato em que educadores e educandos, ao se debruçarem de forma crítica e reflexiva
sobre o mundo, criam as possibilidades para a construção do conhecimento. No entanto,
o modelo de educação que serve às elites dominantes relega tais aspectos com o
objetivo de manter seu status quo e de controlar os grupos dominados.
Van Dijk (2010) indica como uma das tarefas centrais da ACD a explicitação
das propriedades semióticas do discurso em sua ligação com as relações de poder na
sociedade, evidenciando como este último constitui-se em abuso e como é produzido,
reproduzido, combatido ou legitimado. O poder social é definido pelo autor como
controle de grupos sobre outros e quando as ações envolvidas nesse controle dizem
respeito a aspectos comunicativos, instaura-se, então, o controle sobre os discursos, que
se encontra difuso na sociedade: as

“pessoas não são livres para falar ou escrever quando, onde, para quem, sobre
o que ou como elas querem, mas são parcial ou totalmente controladas pelos
outros poderosos, tais como o Estado, a polícia, a mídia ou uma empresa
interessada na supressão da liberdade da fala e da escrita (tipicamente
crítica). Ou, ao contrário, elas têm que falar ou escrever como são mandadas
a falar ou escrever” (p.18).

O controle abrange, além das práticas sociais, as “mentes” das pessoas e


indiretamente suas ações (que podem ser novamente discursivas). Para van Dijk, que
adota uma perspectiva sociocognitivista em sua abordagem para a ACD, não existe uma
ligação direta entre as estruturas sociais e as estruturas discursivas, esses elementos são
mediados por dimensões cognitivas construídas na interação social: a cognição social e
a cognição pessoal. O “controle da mente” refere-se, então, de forma bastante ampla, a
conhecimentos sociais e pessoais, atitudes, ideologias, opiniões, normas ou valores.
Para Freire (2011), um dos principais obstáculos para a luta pela libertação e
pela transformação social é o fato de que a estrutura do pensar dos oprimidos “encontra-
se condicionada pela contradição vivida na situação concreta, existencial, em que se

1
Aqui é preciso esclarecer que a concepção de Freire de ideologia pauta-se em uma perspectiva marxista
de ideologia como forma de dominação, “ocultação da verdade”.

4
‘formam’” (p. 44). Suas formas de ser e comportar-se refletem, em momentos e de
modos diversos, as estruturas de dominação, fazendo com que assumam posturas
fatalistas diante da situação de opressão, de “autodesvalia”, vendo a si mesmos como
incapazes, ou então com que aspirem ao modelo de vida do opressor.
O elemento mediador na relação opressor-oprimido seria a prescrição, ou seja, a
imposição da consciência, da ideologia dos opressores a consciência dos oprimidos,
nesse processo os oprimidos introjetariam a consciência dos opressores, transformando-
se em “hospedeiros” desta. Essa visão estabelece uma simples relação causal entre o
social, o ideológico e o discursivo.
Contudo, é preciso considerar, como ressalta van Dijk (2010), a existência de um
complexo processo sociocognitivo em que as estruturas sociais são vivenciadas,
interpretadas, representadas pelos membros da sociedade em sua interação cotidiana e
que essas representações, os modelos mentais ou outras representações cognitivas dos
participantes, construídos intersubjetivamente, é que irão influenciar as práticas sociais
e discursivas das pessoas. O próprio conceito de ideologia que baseia sua obra
distancia-se da concepção marxista tradicional que identifica a ideologia dominante de
um período com a da classe dominante que é incorporada pelos grupos dominados como
uma “falsa consciência”, sendo, assim, naturalizada. O autor caracteriza a ideologia, ou
as ideologias, como sendo uma forma de cognição social que está ligada aos interesses
dos grupos e permeia o conhecimento, as opiniões, os preconceitos. As ideologias são
formadas e transformadas em sua maioria através das práticas comunicativas e
discursivas e influenciam as nossas práticas sociais e as estruturas sociais em seu
processo de formação e transformação.
Voltando ao problema do controle discursivo, salientamos que este não remete
apenas à fala e à escrita, mas também aos contextos, relacionando-se a questões de
acesso ao discurso e aos eventos comunicativos. Os grupos que têm acesso preferencial
ou detém o controle sobre o discurso público constituem uma elite simbólica, que ao
gerenciarem os grandes meios de produção discursiva, gerenciam também as mentes das
massas. A noção de poder simbólico vai além da posse de bens materiais, mas pode
associar-se a outras formas de poder: como o político, o econômico, entre outros.
Porém, nem todos os casos de poder devem ser objeto de estudo da ACD, mas
apenas aqueles casos em que é exercido em benefício dos que o detêm e em detrimento
dos interesses daqueles que não o possuem, gerando desigualdade e injustiça social, ou
seja, os casos de abuso de poder, de dominação de grupos sobre outros. A dominação
discursiva, especificamente, apresenta como consequências negativas a manipulação, a
doutrinação e a desinformação. Isso implica que existem formas legítimas e ilegítimas
de poder, sendo tal legitimidade definida historicamente e culturalmente.

“O abuso de poder é o uso ilegítimo do poder [e] significa a violação de


normas e valores fundamentais no interesse daqueles que têm o poder e
contra o interesse dos outros. Os abusos de poder significam a violação dos
direitos sociais e civis das pessoas. Na área do discurso e da comunicação,
isso pode significar o direito de ser bem ensinado e educado, de ser bem-
informado etc.” (VAN DIJK, 2010, p. 29).

O abuso de poder confere certos privilégios para aqueles que integram os grupos
dominantes. Esses grupos controlam os discursos e suas formas de produção, definindo
quem pode falar ou escrever o que, para quem, em determinados contextos, como
caminho para a manutenção de tais privilégios, como caminho para a manutenção do

5
controle social. Assim, “quanto menos poderosa for uma pessoa, menor o seu acesso às
várias formas de escrita e fala” (VAN DIJK, 2010, p.44).
Voltando-nos para a questão da alfabetização, a negação deste acesso a
determinados grupos evidencia-se nos dados do censo 2010, divulgado em novembro de
2011 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e que aponta que 14
milhões de brasileiros com 15 anos ou mais são analfabetos, o que representa 9,6% da
população. Esta condição de exclusão perpetua-se dentro de várias famílias, sendo fato
comum entre avós, pais e filhos, mesmo quando estes frequentam a escola:

“Na apertada e quase espinhosa casa de Rosilda Pereira da Silva, 42, não
saber ler é sina que passa de geração em geração. (...) Dos três filhos que
ainda moram com ela, Paloma, 14, Lenilson, 11, e Franciele, 8, só o do meio
já sabe ler e escrever.”2

Em diferentes domínios sociais e institucionais podem ser evidenciadas várias


estratégias de controle ao acesso discursivo. No campo educacional, tais estratégias de
controle podem se tornar mais rígidas ou não segundo a concepção de educação que se
tem.
Na educação “bancária”, por exemplo, descrita por Freire como aquela que serve
aos interesses dos opressores, o professor aparece como o sujeito que detém o
conhecimento a ser transmitido para os alunos. Conhecimento que é apresentado de
forma estática, fragmentada e descontextualizada, através de uma “narração”, que deve
levar os alunos a memorizarem os conteúdos. Aqui o professor é o único que diz a
palavra, e os educandos são aqueles que a “escutam docilmente” como seres passivos.
Essa concepção de educação reflete-se nos métodos avaliativos, na forma como se dá a
escolarização da leitura, nos conteúdos programáticos. Van Dijk (2010, p. 51) aponta
que vários elementos que constituem a prática educacional (currículo, livros didáticos e
as próprias aulas) “são dirigidos por objetivos, assuntos, temas, estratégias de
aprendizagem que, em sua maioria, costumam coadunar-se com os valores e interesses
dos vários grupos de poder da elite”.
A educação “bancária” sugere uma dicotomia homem/mundo e pretende
introduzir o mundo no educando e não o educando no mundo de forma crítica. Por isso,
na educação de jovens e adultos, segundo uma concepção bancária, como exemplifica
Freire (2011, p.85) “não interessa (...) propor aos educandos o desvelamento do mundo,
mas, pelo contrário, perguntar-lhes se ‘Ada deu o dedo ao urubu’, para depois dizer-
lhes, enfaticamente, que não, que ‘Ada deu o dedo à arara’”.
Dentro da pedagogia freiriana, a palavra, e aqui podemos compreender a
linguagem de forma mais ampla, tem duas dimensões que não podem ser dissociadas: a
ação e a reflexão. Sendo ação e reflexão a palavra é práxis, transformação do mundo,
logo, não pode ser privilégio de alguns em detrimento de outros. Diz o autor: “ninguém
pode dizer a palavra verdadeira sozinho, ou dizê-la para outros, num ato de prescrição,
com o qual rouba a palavra aos demais” (2011, p.109). Daí que se faça necessária uma
“pedagogia do oprimido”, uma educação problematizadora e dialógica.
A prática pedagógica que repousa na dialogicidade se configura no próprio
momento de estabelecer os conteúdos programáticos, estes devem partir das próprias
condições estruturais em que se constituem o pensar e a linguagem dos grupos
dominados, não podendo ser organizado apenas a partir das finalidades do educador,

2
Fonte: Jornal do Commercio, 27 de novembro de 2011.

6
como uma imposição. É preciso que a própria opressão e suas causas sejam alvo da
reflexão dos oprimidos que, desta forma, se engajarão na luta pela sua libertação e pela
transformação social como sujeitos ativos e críticos.

3. Desvelamento do mundo e transformação social

A questão das transformações sociais em suas relações com a mudança


discursiva é explorada por Faiclough (2001). O linguista britânico considera que as
mudanças sociais e culturais são parcialmente constituídas por práticas discursivas e que
a linguagem não está apenas relacionada à reprodução das relações de poder existentes,
mas também às lutas e às transformações sociais, que também se dão em uma dimensão
discursiva. O que se busca é

“uma análise de discurso que focalize a variabilidade, a mudança e a luta:


variabilidade entre as práticas e heterogeneidade entre elas como reflexo
sincrônico de processos de mudança histórica que são moldados pela luta
entre as forças sociais” (2001, pp. 58-59).

Assim, para analisar o discurso integrado à dinamicidade das mudanças sociais,


é necessário um método multidimensional (abarca a dimensão das mudanças sociais e
discursivas associadas às propriedades dos textos e dos eventos discursivos que
integram a prática social), multifuncional (considera, apoiando-se na linguística
sistêmico-funcional de Halliday, que os textos estabelecem identidades sociais, relações
sociais e representam a realidade), histórico (percebe os processos de estruturação
textual e das ordens do discurso ao longo do tempo) e crítico (aspecto já explorado
anteriormente em nosso texto e que Fairclough considera em termos de desvelamento e
intervenção).
O discurso, considerado como uma prática pela ACD, está interligado, em seu
modelo tridimensional, às práticas sociais e aos textos, atuando como elemento
mediador entre essas duas dimensões. Isso traz duas implicações importantes: 1) o
discurso também é um modo de ação; 2) a relação entre o discurso e as estruturas
sociais é dialética. “O discurso é uma prática, não apenas de representação do mundo,
mas de significação do mundo, constituindo e construindo o mundo em significado”
(FAIRCLOUGH, 2001, p. 91), visto que contribui para a construção de “identidades
sociais”, de “relações sociais entre as pessoas” e de “sistemas de conhecimento e
crença”.
Dessa forma, a prática discursiva (que compreende os processos de produção,
distribuição e consumo textual) pode estar relacionada tanto à reprodução das estruturas
de poder como à transformação das mesmas, ou seja, é “constitutiva tanto de maneira
convencional como criativa” (FAIRCLOUGH , 2001, p. 92). Dois aspectos,
explicitados pelo linguista britânico, ao tratar do discurso como prática social,
contribuem para compreender o discurso dentro de um processo dinâmico de
transformação e reprodução: a ideologia e a hegemonia.
Distanciando-se, em certa medida, do conceito de ideologia althusseriano como
“cimento social universal”, restringindo as ações dos sujeitos, Fairclough entende as
ideologias como

“significações/construções da realidade (o mundo físico, as relações sociais,


as identidades sociais) que são construídas em várias dimensões das
formas/sentidos das práticas discursivas e que contribuem para a produção, a
reprodução ou a transformação das relações de dominação” (2001, p. 117).
7
A linguagem é investida pela ideologia em vários níveis e de várias formas,
estando a ideologia presente tanto nas estruturas como nos eventos discursivos e
imbricada tanto nos aspectos semânticos como formais, mesmo porque uma oposição
entre tais aspectos seria ilusória.
O conceito de hegemonia adotado por Fairclough também pressupõe uma
relação dinâmica e mutável das estruturas que compõem a sociedade. O autor baseia-se
em Gramsci que compreende a hegemonia não só em termos de uma dominação de
classe, mas como uma liderança que se estabelece através de um jogo de alianças, de
articulações e desarticulações, sendo, portanto, instável.
Contudo, é preciso ressaltar que a dimensão ideológica das práticas discursivas e
sociais nem sempre é tomada de forma consciente pelas pessoas. Muitas vezes as
ideologias são naturalizadas e automatizadas, tornando-se mais “eficazes” quando
atingem tal estado, aproximando-se, então, do “senso comum”. Daí que se defenda

“uma modalidade de educação linguística que enfatize a consciência crítica


dos processos ideológicos no discurso para que as pessoas possam tornar-se
mais conscientes de sua própria prática e mais críticas dos discursos
investidos ideologicamente a que são submetidas” (FAIRCLOUGH, 2001, p.
120).

Ao tratar das origens e dos motivos que envolvem as mudanças das práticas
discursivas, Fairclough (2001) destaca que estas repousam na problematização, por
parte dos produtores e dos interpretes, das convenções discursivas já naturalizadas. As
contradições, que são as bases para a problematização, colocam os sujeitos diante de
“dilemas” que serão resolvidos através de reconstruções e adaptações das convenções
existentes. As condições sociais mais amplas de tais problematizações, contradições e
dilemas são as lutas em grupos, instituições e na sociedade como um todo. Ao agir de
forma criativa e inovadora diante dos dilemas, as pessoas contribuem não só para
mudanças nos eventos discursivos, mas também para a reestruturação das ordens de
discurso.
Freire propõe que o desvelamento e a desnaturalização dos discursos dominantes
se dê, na educação de adultos, a partir de atividades que envolvam “temas geradores”.
Como já foi dito anteriormente, na educação dialógica, o diálogo não figura apenas no
momento de encontro entre educadores e educandos, mas está no momento mesmo em
que o educador pergunta-se sobre qual será o conteúdo do diálogo (sobre o conteúdo
programático da educação). Para chegar a esse conteúdo, o educador deve incidir,
juntamente com os educandos, sobre a realidade a ser transformada, procurando
perceber suas contradições. Tal atitude coaduna-se com o princípio da ACD de que as
relações de poder devem ser estudadas a partir da perspectiva e dos interesses dos
grupos dominados e de que as experiências dos membros desses grupos devem levadas
em conta.
Em sua relação com o mundo, que é mediada pela linguagem, o homem constrói
visões e pontos de vista impregnados de anseios, dúvidas e esperanças e nos quais estão
implícitos temas significativos que constituirão o conteúdo programático da educação
de adultos. Portanto,

“o que se pretende investigar, realmente, não são os homens, como se fossem


peças anatômicas, mas seu pensamento-linguagem referido à realidade, os
níveis de sua percepção desta realidade, a sua visão de mundo, em que se
encontram envolvidos seus ‘temas geradores’” (FREIRE, 2011, p.122).
8
A primeira etapa para o estabelecimento dos temas geradores consiste nos
seguintes passos: o conhecimento da área em que vivem os grupos que farão parte do
processo educativo, através de informações secundárias; uma conversa informal com os
membros do grupo para apresentar os objetivos das atividades a serem desenvolvidas;
uma investigação mais detalhada sobre a vida na localidade, através de visitas (neste
momento os membros da localidade também são convidados a participar da
investigação). Durante este período inicial, os educadores e os educandos irão
percebendo as diversas dimensões que compõem a realidade circundante, aproximando-
se assim dos núcleos de suas contradições que envolvem situações-limites (situações
desafiadoras para os educandos).
Na segunda etapa, algumas dessas contradições serão selecionadas para que
sejam elaboradas “codificações” a serem discutidas com o grupo de educandos para
aprofundar e dar continuidade a identificação temática. As “codificações” podem ser
slides, cartazes, textos para leitura e devem seguir os seguintes critérios: representar
situações conhecidas pelos indivíduos para que nelas se reconheçam (esse aspecto é
importante diante do estado de imersão em que os educandos se encontram); não podem
ser demasiado explícitas ou enigmáticas; os elementos que a compõem devem
encontrar-se em interação; as contradições representadas devem incluir outras. No
processo de “descodificação” os indivíduos irão explicitar temas e sua percepção sobre
o real.
As discussões estabelecidas durante o processo de “descodificação” serão
gravadas para que, em uma terceira etapa, a equipe de educadores realize um estudo
sistemático e interdisciplinar do material para que se estabeleçam os núcleos
fundamentais que serão as unidades de aprendizagem e para que se produza o material
didático a ser utilizado na prática pedagógica.
Freire (2011, p.85) cita um depoimento de trabalhadores que, durante um círculo
de investigação, realizam a “descodificação” de uma imagem que apresenta um homem
embriagado caminhando na rua enquanto três jovens conversam na esquina:

“aí é apenas produtivo e útil à nação o borracho que vem voltando para casa,
depois do trabalho, em que ganha pouco, preocupado com a família, a cujas
necessidades não pode atender. É o único trabalhador. É um trabalhador
decente como nós, que também somos borrachos.”

Este depoimento confirma a ideia de Rogers (2004b, p. 247) de que questões de


aprendizagem estão ligadas a questões de discurso e identidade: “learning involves
changes in participation and the subsequent shifts in identity. Such changes are
constructed by social change or social transformation”.

Conclusão

Como colocações finais de nosso trabalho, destacamos a relevância da teoria


pedagógica freiriana para a formulação de uma educação crítico-discursiva voltada para
uma grande parcela da população que se encontra excluída das práticas de leitura e
escrita e que possuem acesso restrito às práticas discursivas. Tal modelo educacional,
que pensa a conscientização dos educandos jovens e adultos desde o processo de sua
alfabetização, possibilita o posicionamento crítico diante da realidade e a luta pela
transformação social, não como ativismo sem reflexão ou como verbalismo sem

9
significado, mas como práxis libertadora que leva os homens à pronuncia de sua própria
palavra que é também pronuncia do mundo.
Acreditamos também que a abordagem de Análise Crítica do Discurso pode
trazer grandes contribuições para a educação, seja na formação crítica de futuros
profissionais ou na formação geral dos cidadãos para que possam analisar de forma
consciente os discursos públicos (VAN DIJK, 2010).
Por fim, concordamos Rogers (2004b) quando afirma que ACD tem um
importante papel para as questões educacionais, pois permite compreender o processo
de aprendizagem de forma mais complexa; e colabora para a construção de uma visão
crítica por parte dos pesquisadores e demais participantes durante o processo de
pesquisa, e para a transformação social que emerge desta criticidade.

Referências Bibliográficas

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